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O REGRESSO - P.2 / Rosamunde Pilcher
O REGRESSO - P.2 / Rosamunde Pilcher

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O REGRESSO

Segunda Parte

 

                                 1939

De acordo com a tradição, o Dia da Entrega de Prêmios no Santa Úrsula acontecia durante a última semana de julho, no último dia do período letivo do verão, e no fim do ano escolar. Era uma ocasião de grande cerimônia, seguindo um padrão de procedimento já consagrado pelo tempo. Reunião de pais e alunas no Grande Salão, um ou dois discursos, entrega de prêmios, o hino do colégio, uma bênção do bispo, e depois o chá da tarde, servido no refeitório ou no jardim, segundo a clemência do tempo. Encerrada a cerimônia, escapavam todos, indo para casa gozar as férias de verão.

O fraseado do convite para esta função anual também era imutável.

Os Dirigentes do Colégio Santa Úrsula para Moças e a Srta. Muriel Catto (MA. Cambridge)... Dia da Entrega de Prêmios... Grande Salão às 14:00... Por favor, estejam em seus lugares às 13:45... RSP para a Secretária da Diretora...

Um belo cartão, grosso, de bordas douradas, em rebuscada escrita. Quase como uma Convocação Real, pensavam alguns pais.

Entretanto, eles compareciam respeitosamente, obedientemente no horário indicado. Faltando dez minutos para duas da tarde, o magnífico salão apainelado em carvalho ficava apinhado de gente e extremamente quente, apesar das janelas abertas em todos os lados, porque orações haviam sido atendidas e, além das portas, florescia um perfeito dia de verão, sem uma nuvem no céu. Em geral, o Grande Salão era um lugar austero, com correntes de vento e gélido como uma igreja sem aquecimento, tendo como decoração apenas um vitral representando o martírio de São Sebastião, alguns Quadros de Honra e um ou dois brasões. Hoje, no entanto, ele borbulhava inteiramente de flores, folhagens e vasos de plantas trazidos das estufas, cujo odor pairando pesadamente no ar quente, se tornava quase sufocante.

Na extremidade norte do salão havia um palco elevado, flanqueado por dois lances de degraus de madeira que partiam do auditório. Era dali que a srta. Catto comandava as Preces Matinais, em pé atrás de seu átril, transmitia diariamente instruções, reprimendas e, de um modo geral, mantinha sua escola mais ou menos firme sobre os pés. Hoje, no entanto, o palco tinha a parte da frente orlada por um perfeito canteiro de vasos de pelargônios em flor e exibia uma espaçada fila de cadeiras semelhantes a tronos, tudo à espera dos que ali se acomodariam. Era a chegada deste grupo ilustre — o Bispo, o Presidente da Diretoria, o Governador do Condado, Lady Beaseley (que tinha sido coagida a entregar os prêmios), e a srta. Catto — que os reunidos no Grande Salão agora esperavam.

Dois terços da platéia eram compostos de pais e famílias, todos trajados com esmero. As mães usavam chapéus para reuniões ao ar livre e luvas brancas, vestidos com estamparias florais e sapatos de salto. Os pais geralmente apresentavam-se em ternos escuros, com exceção de uns poucos em uniforme militar, aqui e ali. Os irmãos e irmãs menores usavam macacões de linho ou algodão e fitas nos cabelos ou roupas marinheiras de passadeiras brancas e sapatos engraxados de branco. Seus protestos podiam ser claramente ouvidos, enquanto choramingavam lamentosamente, queixando-se do calor e do tédio.

Edgar e Diana Carey-Lewis faziam parte desta multidão, assim como o sr. Baines, o advogado e sua esposa. As crianças Baines de menos idade não estavam presentes. Tinham ficado prudentemente em casa, aos cuidados de sua babá.

O restante do auditório, na parte da frente do salão, era ocupado pelas alunas: primeiro as menores, em bancos infantis, com as mais velhas ao fundo. Todas usavam os uniformes de gala regulamentares, de mangas compridas em tussor creme, e meias de seda, pretas e compridas. Somente as alunas muito pequenas tinham permissão para usar soquetes brancas. No final de cada fileira de alunas sentava-se um membro da equipe, em trajes formais e envergando sua beca negra. Entretanto, até mesmo essas peças arcaicas mostravam-se francamente glamourosas, porque cada mestra usava os respectivos capelos acadêmicos cujas dobras, cuidadosamente arranjadas, revelavam os forros de seda em vermelho-rubi, verde-esmeralda ou azul-safira.

Sentada na última fileira dos assentos destinados às alunas, Judith ergueu o punho da manga a fim de consultar o relógio. Dois minutos para as duas. A qualquer momento chegariam os ocupantes do palco, até então reunidos no estúdio da srta. Catto e de lá convocados por Freda Roberts, a Garota Líder. Judith era monitora, porém não tinha sido líder. Recordando a temida Deirdre Ledingham, ela era eternamente grata por esta pequena bênção.

Atrás dela, um garotinho remexeu-se, incomodado.

— Quero beber alguma coisa — gemeu ele, e foi prontamente silenciado.

Ela se encheu de pena do menino. O Dia da Entrega de Prêmios sempre constituía uma provação, e estar com dezoito anos, saber que este era de fato o término da permanência no colégio e seu último Dia da Entrega de Prêmios, de maneira alguma tornava aquilo mais suportável. Os trajes de tussor eram pesados e sufocantes, ela podia sentir gotas de suor começando a brotar nas axilas e atrás dos joelhos. Procurando desviar o pensamento de seu desconforto pessoal, começou a fazer uma lista mental de eventos positivos e alegres que tinham acontecido ou estavam prestes a acontecer.

O mais importante era que, com um pouco de sorte, seria aprovada no exame de aptidão para a universidade. Os resultados só seriam publicados mais tarde no ano, porém a srta. Catto estava confiante, já tendo iniciado arranjos a fim de que Judith fosse para Oxford.

Entretanto, mesmo que tudo isto funcionasse, ficaria adiado durante um ano, porque em outubro já fora reservada passagem em um navio de partida para Cingapura. Finalmente ela ficaria dez meses reunida com a família. Uma coisa de cada vez, havia dito para si mesma durante todos aqueles anos, debruçada no gradil do passadiço de tábuas à beira do mar, em Penzance, enquanto contemplava as ondas verdes que vinham quebrar-se na praia de seixos. Termine o colégio, passe nos exames, e então vá para o Extremo Oriente, ficar com mamãe, papai e Jess. Jess estava agora com oito anos. Judith mal podia esperar para ver todos eles.

Mais imediatamente, havia outras coisas boas. O fim dos dias letivos, a liberdade e as férias de verão. Para estas, ela havia feito planos: duas semanas de agosto a serem passadas em Pothkerris, com Heather Warren e seus pais e, mais tarde, talvez uma visita a tia Biddy. As datas para esta última ainda não haviam sido fixadas. "Basta um telefonema, dizendo quando você quer vir", Biddy escrevera-lhe em uma carta. "O convite permanece em aberto, portanto, deixo a data a seu critério."

Caso contrário, Nancherrow. O que significava Edward.

Sentada no abafado salão do colégio, Judith se sentiu inundada por ditosa antecipação. Os eventos do Natal, os interrompidos avanços de Edward por trás das cortinas fechadas na sala de bilhar, sua infantil rejeição àquelas carícias e a maneira subseqüente como ele manejara a infeliz situação tinham afinal inclinado os pratos da balança no relacionamento dos dois e, em segredo, ela lhe abrira o coração, apaixonando-se perdidamente. Era difícil imaginar como um homem, tão atraente e desejável, poderia ser também tão compreensivo e paciente. Por causa dele, o inofensivo incidente, que poderia ter precipitado um constrangimento bastante destrutivo, nem chegara a ser percebido e deslizara para o esquecimento como água correndo por baixo de uma ponte. Gratidão e admiração faziam parte do amor que ela sentia. A proximidade... (Judith procurara a palavra no dicionário. "Proximidade", havia lido. "Parentesco próximo").. tinha ficado ainda mais forte.

A separação também desempenhara um papel. Como o vento, ela apagava uma pequena vela, mas que produzia uma chama forte que queimava com ainda maior brilho. Judith não via Edward desde janeiro. Ele passara os feriados da Páscoa em um rancho do Colorado, a convite de um colega de turma, um inteligente e jovem americano que ganhara uma bolsa de estudos para Cambridge. Os dois rapazes tinham viajado no Queen Mary, partindo de Southampton para Nova York, e depois viajando de trem até Denver. Tudo isso parecia incrivelmente aventureiro e, embora Edward não fosse muito dado a escrever cartas, enviara a ela dois cartões-postais com fotos muito vívidas das Montanhas Rochosas e de peles-vermelhas vendendo cestas. Ela guardava tão preciosas recordações entre as páginas de seu diário, juntamente com um instantâneo roubado do álbum de retratos de Loveday. Se Loveday percebera o desaparecimento da foto, nada havia dito. E agora, neste exato momento, Edward encontrava-se no sul da França, tendo ido diretamente de Cambridge para lá com um grupo de amigos jovens, hospedando-se todos na villa da tia de um deles.

Quando Diana contou a elas esta última trama, teve acessos de riso e sacudia a cabeça em perplexidade, mas claramente deliciada pela evidência da popularidade de seu querido filho.

— É extraordinária a maneira como ele tem sorte! Não somente arranja amigos ricos, como todos eles parecem ter casas nos lugares mais exóticos. E, para cúmulo, ainda o convidam a suas casas. Isso pode ser ótimo para Edward, porém é um pouco triste para nós. Enfim... felizmente, ele virá passar em casa um pouquinho do verão.

Judith não se importava. Antecipação era ficar ansiosa para tornar a ver Edward, e tudo fazia parte da alegria.

A outra coisa tremendamente excitante que tinha acontecido fora o sr. Baines haver-lhe dito que poderia comprar um pequeno carro para seu uso. Ela estivera aprendendo a dirigir durante os feriados da Páscoa sem Edward e, incrivelmente, havia sido aprovada no primeiro teste de direção. Em Nancherrow, contudo, era um tanto difícil encontrar algo para dirigir. O Bentley de Diana e o Daimler do coronel estavam fora de cogitação, por serem ambos muito grandes. Além disso, ela ficava apavorada à idéia de alguma batida, por insignificante que fosse. Havia ainda o furgão para uso da família, antiquado e enorme, mas, dirigi-lo, deveria ser como dirigir um ônibus.

Ela havia explicado sua dificuldade ao sr. Baines.

—.. acontece apenas que, se quero ir comprar alguma coisa em Penzance, preciso esperar até que alguém mais saia de carro e me dê uma carona, o que nem sempre é conveniente para a maioria das pessoas.

Ele se mostrara bastante compreensivo.

— Sim, eu entendo — respondera ele, e ficara calado, considerando o problema. Então, decidiu. —Se quer saber, Judith, creio que devia ter um carro para seu uso. Já tem dezoito anos, é perfeitamente responsável. E, claro está, poderia movimentar-se à vontade, sem se tornar uma carga para os Carey-Lewis.

—É mesmo? —Ela mal acreditava no que ouvira. —Um carro... para mim? Um carro meu?

— Você gostaria, não?

— Oh, mais do que tudo, porém nunca imaginei que o senhor sugerisse tal coisa. E se tiver um carro, eu realmente cuidarei dele, vou lavá-lo, colocar gasolina e tudo o mais. E quero usá-lo. Ficava tão frustrada, quando mamãe não dirigia o Austin porque tinha medo... Havia um mundo de lugares maravilhosos que poderíamos ter visitado. Tantas coisas lindas para ver, como jardins e praias secretas... Entretanto, nunca fomos!

— Você fará essas coisas?

— Não necessariamente, mas é maravilhoso saber que posso fazê-las, se tiver vontade. Há também uma coisa que eu faria, e que há séculos me preocupa. Trata-se de Phyllis, a moça que trabalhava para nós em Riverview. Ela arranjou outro emprego em Porthkerris, mas depois casou com o namorado e foram morar em Penden. Ele é mineiro. A companhia de mineração deu uma casinha para morarem, e agora ela tem um bebê. Realmente, eu gostaria muito de ir vê-la. Se tivesse um carro, poderia visitá-la.

— Phyllis. Sim, lembro-me de Phyllis, abrindo a porta para mim quando fui ver sua mãe. Estava sempre sorrindo.

— Ela é um amor de pessoa. Uma de minhas melhores amigas. Mantivemos contato escrevendo cartões postais e cartas uma para a outra, porém nunca mais a vi, desde que me despedi dela há quatro anos. Mesmo quando fiquei uma temporada em Porthkerris foi impossível, porque só havia um ônibus por semana e, de bicicleta, ficava muito longe.

— Chega a ser ridículo, não é mesmo? — disse o sr. Baines, mostrando certa solidariedade. —Vivemos neste pequeno condado e, no entanto, tão distantes uns dos outros como criaturas na lua. — Ele sorriu. — Você ter um carro e, por causa dele, independência, parece-me uma necessidade, não um luxo. Enfim, não é coisa para já. Primeiro termine o colégio, seja aprovada em seus exames para a universidade, e voltaremos a considerar a questão. Terei uma conversa com o capitão Somerville.

E assim ficara a situação. Entretanto, Judith estava cheia de esperanças, porque não podia imaginar seu tio Bob dizendo não.

Ocorreu-lhe que talvez, com alguma sorte, teria o carro antes de ficar com os Warrens, assim podendo ela mesmo dirigi-lo até Porthkerris. Loveday também havia sido convidada a hospedar-se na alegre casa em cima da mercearia, mas ainda não aceitara porque tinha um novo pônei para treinar; além disso pretendia tomar parte em várias gincanas e eventos, com esperanças de ser a vencedora. Entretanto, se fosse apresentada à tentação adicional de um carro só delas para a viagem, era bem possível que mudasse de idéia e fosse, nem que apenas por alguns dias. A idéia de cruzar o condado com a amiga em um carrinho esporte de dois assentos, com as malas empilhadas no banco traseiro, era tão estonteante, que gostaria de partilhá-la com Loveday ali mesmo. Entretanto, ela ocupava um assento duas fileiras adiante, de modo que o assunto teria de esperar.

Aos dezessete anos, Loveday estava também deixando o Santa Úrsula para sempre. Nunca havia sido feita monitora e, academicamente, não fora além de submeter-se aos exames para obter seu Certificado Colegial, mas deixara bem claro aos tão longamente sofredores pais que, sem Judith, o Santa Úrsula seria intolerável.

— Bem, querida, mas o que faremos com você? — perguntara Diana, com certa perplexidade.

— Eu vou ficar em casa.

— Você não pode, simplesmente, mofar aqui. Vai virar um repolho!

— Irei para a Suíça, como Athena.

— Oh, mas você sempre disse que nunca mais devíamos enviá-la para longe!

— A Suíça é diferente.

— Bem, acho que poderia ir. Não que isso tenha feito grande bem, a Athena. Tudo quanto ela aprendeu foi esquiar e apaixonar-se por seu instrutor.

— É por isso que eu quero ir.

Ao ouvi-la, Diana explodiu em uma cascata de risadas e abraçou sua filha caçula, dizendo que ia pensar no assunto.

Duas da tarde. Houve uma pequena agitação nos fundos do salão, e todos se puseram, agradecidamente, de pé. Por fim a cerimônia ia começar. Judith refletiu que aquilo era como um casamento, com todas aquelas flores, os presentes em suas melhores roupas, as mães abanando-se com impressos de hinos, e a noiva prestes a surgir pelo braço do pai. Tão forte foi essa ilusão que, quando o Bispo liderou a pequena procissão corredor abaixo, ela quase esperou que um órgão começasse a tocar alguma coisa.

Entretanto, é claro, não havia nenhuma noiva. Em vez disso, o grupo assumiu seus lugares no palco. O Bispo adiantou-se e fez sua breve oração. Todos se sentaram. A cerimônia continuou.

Discursos. (O presidente da Diretoria deitou uma falação que parecia eterna, mas a srta. Catto foi ativa, breve, inclusive um tanto divertida, provocando uma ou duas bem-vindas e espontâneas risadas.)

Entrega de prêmios. Judith pensou que poderia conseguir o Prêmio Sênior de Inglês, e assim foi. Depois, tornou a levantar-se para receber o Prêmio Sênior de História, uma dádiva que nem remotamente tinha esperado. Por fim, o prêmio derradeiro. A cobiçada Taça Carnhayl.

Judith conteve um bocejo. Sabia muito bem quem ganharia a Taça Carnhayl: Freda Roberts, que vivia correndo servilmente de um lado para outro, além de bajular todas as professoras.

A Taça Carnhayl, explicava a srta. Catto em sua voz clara, era entregue anualmente à aluna que, pelo voto popular de toda a equipe de professores, mais contribuíra para a escola. Não se tratava simplesmente de trabalho acadêmico, mas daqueles três essenciais Cs: Capacidade, Caráter e Comedimento. E a vencedora deste ano era... Judith Dunbar.

Judith sentiu sua boca pender, escancarada, de maneira incrível e inconveniente. Alguém deu-lhe uma cutucada nas costelas, sussurrando:

—Vá logo, imbecil!

Com dificuldade, ela ficou de pé pela terceira vez e, de joelhos bambos, foi receber o prestigiado troféu. Tão pouco firmes estavam suas pernas, que tropeçou enquanto subia os degraus, por pouco não se estatelando no chão.

— Bem merecido — disseJLady Beazeley com radioso sorriso.

Judith pegou a taça, fez uma mesura e retornou ao seu lugar sob uma tempestade de aplausos, tendo as faces, bem o sabia, vermelhas como beterrabas.

Então, finalmente o Hino do Colégio. Já em seu posto, a professora de música executou um acorde em seu piano, todos ficaram de pé e oitocentas vozes cantaram juntas, elevando-se até o teto.

Aquele que for corajoso Ao enfrentar os reveses, Que então possa, com firmeza, O Mestre seguir.

O poder da música sempre afetara Judith profundamente, em um instante deixando seu estado de ânimo entre as efêmeras emoções da tristeza e da alegria. Agora, ela chegava ao final de uma era, sabia que nunca mais voltaria a ouvir as palavras familiares do grande poema de Bunyan, sem recordar cada detalhe do momento presente. A tarde quente de verão, o perfume das flores, o grande coro das vozes. Era difícil decidir se estava feliz ou triste.

Senhor, já que a nós tu defendes Com o teu Espírito,

Sabemos que, no final, A vida iremos herdar.

Feliz. Ela estava feliz. Com a flexibilidade da juventude, seu estado de ânimo ganhou as alturas. E, cantando, ocorreu-lhe outro jubiloso pensamento. De posse da Taça Carnhayl, ela estava agora em firme posição para também tomar posse de seu novo carro, antes de partir com Loveday para a visita a Porthkerris. Iriam juntas para lá. Duas amigas que tinham cumprido sua etapa escolar. Adultas.

Então, fogem as fantasias Não temerei o que possam dizer Trabalharei noite e dia E um peregrino serei.

O Dia da Entrega de Prêmios chegou ao fim, todos partiram, o colégio e o dormitório ficaram desertos. Somente Judith ficou para trás sentada em sua cama, examinando o conteúdo de sua bolsa de mão e matando tempo até as seis da tarde, quando tinha uma entrevista no estúdio da diretora, a fim de despedir-se da srta. Catto. Sua bagagem e a mala escalavrada já estavam a caminho de Nancherrow, no porta-mala do Daimler do coronel. O sr. Baines se prontificara a apanhá-la mais tarde, após encerrada a entrevista com a srta. Catto, e a levá-la à residência dos Carey-Lewis. O tempo passado com ele durante tal trajeto, sem dúvida seria uma excelente oportunidade para pleitear a conquista de seu carro novo.

Após terminar com a bolsa de mão, ela cruzou o dormitório e foi debruçar-se no peitoril da janela aberta. Dali podia avistar os gramados vazios, descendo em ondulações até as quadras de tênis e o matagal. Todos os traços da festividade ao ar livre já haviam desaparecido, enquanto as sombras começavam a alongar-se através dos relvados pisados. Judith evocou a tarde em que vira tudo aquilo pela primeira vez — o dia em que estivera ali com sua mãe para uma olhadinha particular. Em retrospectiva, os quatro anos intermediários tinham voado mais depressa do que ela poderia ter imaginado, mas, em certos sentidos, aquela tarde do passado parecia ter acontecido há anos-luz.

Cinco minutos para as seis. Hora de ir andando. Ela se virou para o dormitório vazio, pegou sua bolsa de mão e desceu para o térreo. A grande escada estava solitária e tudo parecia estranhamente silencioso. Não havia o tagarelar de vozes, nenhum clangor de sinetas ou qualquer distante dedilhar de escalas vindo da sala de música, quando algumas alunas faziam seu treinamento. Ela bateu à porta do estúdio, a srta. Catto disse "Entre" e, ao entrar, Judith não encontrou sua diretora sentada atrás da mesa de trabalho, mas acomodada em uma cadeira de braços, voltada para a janela alta e com os pés descansando sobre uma banquetinha. Estivera lendo The Times, mas quando Judith apareceu, dobrou-o e o deixou cair no chão, a seu lado.

— Judith... Aproxime-se. Não vou me levantar daqui, porque estou exausta.

Ela já se livrara da toga e do capelo, que deixara em cima da escrivaninha, e sua aparência era bastante diferente, sem aqueles distintivos do posto. Agora era possível admirar-se seu vestido toalete de seda e observar-lhe as pernas, bem torneadas em finas meias de seda. Seus sapatos azuis-marinhos de festa tinham pequenos saltos e fivelas de prata. Confortavelmente relaxada após seu trabalhoso dia, ela se mostrava feminina e atraente ao mesmo tempo, ocorrendo a Judith que, de fato, era uma pena o sr. Baines já ter esposa e filhos.

—Não é de admirar que esteja exausta. A senhora não parou o dia inteiro!

Outra cadeira de braços fora colocada em posição e, entre elas, estava a mesinha baixa, sobre a qual havia uma salva de prata com uma garrafa de sherry e três copinhos. Judith viu aquilo e franziu o cenho. Nunca houvera nem mesmo cheiro de vinho naquela sala. A srta. Catto notou sua estranheza e sorriu.

—Os três copos são para nós duas e o sr. Baines, quando ele chegar. Entretanto, não vamos esperar por ele. Sirva um copo para cada uma de nós, meu bem, e depois sente-se.

— Eu nunca bebi sherry.

— Bem, este é um dia especial para que comece. E eu penso que fará bem a nós duas.

Em vista disso, ela serviu os dois copos e depois acomodou-se na segunda cadeira de braços. A srta. Catto ergueu seu copo.

—A você e ao seu futuro, Judith!

— Obrigada.

— E, antes que me esqueça, parabéns por ter ganho a Taça Carnhayl. Lembre-se de que foi votação quase unânime, não tendo absolutamente nada a ver comigo.

— Foi uma grande surpresa para mim... Pensei que a Taça seria de Freda Roberts. Aliás, quase levei uma queda, subindo aqueles degraus tortos...

— Bem, não chegou a cair, e isto é tudo o que importa. E agora, qual é o programa para as férias...?

O sherry estava bom. Aquecia, fez Judith sentir-se cômoda e à Vontade. Cruzou as pernas, algo que jamais ousara fazer antes, e contou seus planos para a srta. Catto.

— Inicialmente, voltarei para Nancherrow. Depois irei a Porthker-ris, onde ficarei duas semanas, a convite da sra. Warren.

—Com sua amiga Heather. —A srta. Catto nunca esquecia nomes. — Você vai gostar disso.

— Sim, vou, e eles também convidaram Loveday, porém ela ainda não resolveu se vai.

A srta. Catto riu.

— Bem típico. Será que ela não se sente um pouco acanhada?

— Não, não é isso. É por causa de seu novo pônei. Ela já esteve em Porthkerris comigo, antes. Fomos lá uma vez, apenas durante um dia, mas em outra ocasião passamos todo um fim de semana.

— E Loveday distraiu-se?

— Demais. Foi uma surpresa para mim.

— Três amigas às vezes não são um número muito bom.

— Eu sei, mas Loveday e Heather se deram muitíssimo bem. O sr. e a sra. Warren acharam Loveday uma excelente pessoa. Os irmãos de Heather implicaram com ela e a arreliaram, mas Loveday adorou tudo, retribuindo à altura.

— Foi ótimo para ela afastar-se do ambiente um tanto rarefeito do lar. Pôde ver como vivem outras pessoas e ajustar-se ao estilo delas.

— Estou torcendo para que ela vá e que eu possa levá-la, em meu próprio carro. O sr. Baines não lhe disse nada a respeito?

— Ele falou qualquer coisa.

— Foi idéia dele. Eu disse que precisava ser independente e que talvez, se fosse aprovada em minhas provas para a univ... —Judith vacilou, não desejando parecer esnobe ou presunçosa. — Bem, agora que ganhei a Taça Carnhayl...

Compreensiva, a srta. Catto riu.

— Oh, eu devia ter imaginado! Pretende apanhá-lo desprevenido. Independência! Que formidável... Bem, conte-me mais. E depois, o que fará?

— Provavelmente ficarei algum tempo com tia Biddy. Tio Bob está no mar, e Ned se juntou à Ark Royal, de modo que ela ficará feliz tendo alguém como companhia. Pensamos ir a Londres por um ou dois dias, quando ela me ajudaria a comprar algumas roupas para Cingapura. Não posso chegar lá mal vestida.

—É claro que não. Prometa-me apenas uma coisa. Não se apaixone durante sua permanência em Cingapura e nem se case por lá, porque assim nunca terá a oportunidade de tentar a Universidade novamente.

— Srta. Catto, não tenho a menor intenção de estar casada nos próximos séculos. Pelo menos, não antes dos vinte e cinco anos.

— Ótimo para você. E fique atenta aos romances de bordo. Nunca vivi nenhum, mas ouvi dizer que são letais.

— Não me esquecerei. A srta. Catto sorriu.

— Sentirei sua falta — disse a Judith. —Entretanto, trata-se da sua vida, do momento em que deverá mover-se, tomar suas próprias decisões e estabelecer suas próprias normas, em vez de mais alguém estabelecê-las para você. Lembre-se apenas de que a coisa mais importante é ser verdadeira consigo mesma. Se ficar atenta a isto, não cometerá grandes erros.

— A senhora tem sido sempre tão bondosa...

— Minha cara criança, que tolice! Estou simplesmente cumprindo o meu dever.

— Não. É mais do que isso. E eu sempre me senti mal por nunca ter aceito o convite para ficar com seu pai e sua mãe em Oxford. Eu gostaria realmente de ter ido e de conhecê-los, mas, de algum modo...

Ela vacilou. A srta. Catto riu.

— Você encontrou uma família adotiva para si mesma. Foi um arranjo infinitamente mais conveniente e satisfatório. Afinal de contas, não há muita coisa que uma diretora possa proporcionar, no sentido de orientação. O senso de lar, de pertencer, precisa vir de mais alguém. Olhando agora para você, eu diria que a sra. Carey-Lewis fez um excelente trabalho. Entretanto, também acho que é hora de retornar à sua verdadeira família. Assim sendo...

A conversa foi interrompida neste momento por uma firme batida na porta e logo depois pela chegada do sr. Baines.

—Não estou interrompendo...?

— Em absoluto — respondeu a srta. Catto. Ele deu um tapinha no ombro de Judith.

—Seu motorista, apresentando-se para trabalhar. Terei vindo cedo demais?

Em sua poltrona, a srta. Catto sorriu para ele.

— Estávamos tomando uma revigorante dose de sherry. Sente-se e junte-se a nós por um momento.

O sr. Baines concordou, sentou-se e aceitou seu drinque, enquanto acendia um cigarro que lhe dava uma aparência incomumente vigorosa. Conversaram. Durante a festividade ao ar livre, ele já felicitara Judith pela conquista da Taça Carnhayl e, evidentemente, não via motivos para voltar ao assunto, porém foi caloroso em elogios para a srta. Catto e para o sucesso, o bom andamento geral do dia.

— Sem a menor dúvida, fomos abençoados com o tempo —. observou ela. — Eu só desejaria que alguém omitisse o discurso anual do Presidente da Diretoria. Quem quer ficar ouvindo um relato detalhado do ataque de carunchos nos caibros da capela? Ou da epidemia de sarampo no termo letivo da Páscoa?

O sr. Baines riu.

— É uma espécie de compulsão. Quando ele se levanta para falar, nas reuniões do Conselho do Condado, todos se preparam para um cochilo reparador...

Finalmente chegou o momento de encerrarem a conversa. Os copinhos de sherry foram esvaziados e o sr. Baines olhou para seu relógio.

— Penso que é hora de irmos. Os três levantaram-se.

— Não irei vê-la partir — a srta. Catto disse a Judith. — Odeio ficar acenando em despedida. Entretanto, mantenha contato comigo, e, por favor, deixe-me saber o que está fazendo.

— Certamente.

— E tenha ótimas férias de verão.

— Farei o possível.

— Adeus, minha querida.

— Adeus, srta. Catto.

As duas trocaram um aperto de mão. Não se beijaram. Elas nunca haviam se beijado. Judith deu meia-volta e saiu da sala da diretora. O sr. Baines a seguiu, fechando a porta atrás de ambos. A srta. Catto foi deixada a sós. Ficou em pé durante um momento, pensativa e imóvel; depois recolheu o jornal que deixara cair no chão, quando Judith ali entrara. Dia após dia as notícias iam ficando mais graves. Agora, dois mil guardas nazistas, que se acreditava estarem armados, já se tinham movido para Dantzig. Cedo ou tarde Hitler invadiria a Polônia, assim como anexara a Tchecoslováquia e a Áustria. Isso significaria outra guerra, e toda uma nova geração com uma perspectiva de vida rica e compensadora estava para ser sugada, dizimada por esse aterrador conflito.

Ela dobrou o jornal com perfeição e o deixou sobre a escrivaninha. A srta. Catto bem sabia ser necessário permanecer forte e resoluta, porém era em momentos como este, exatamente quando Judith a deixava para sempre, que a tragédia de semelhante desperdício fazia seu coração dar-lhe a sensação de que estava sendo dilacerado.

Sua toga e seu capelo continuavam onde os tinha deixado. Ela os recolheu e fez deles uma espécie de bola que apertou contra si, como que em busca de conforto. O Dia da Entrega de Prêmios era uma carga anual obrigatória que sempre a deixava exaurida, mas mesmo assim não havia motivos para que se sentisse tão desolada, tão angustiada. Lágrimas repentinas afloraram-lhe aos olhos e, quando desceram pelas faces, ela enterrou o rosto no bolorento tecido negro, silenciosamente enfurecida contra esta guerra iminente, em um lamento pelos jovens, por Judith e por oportunidades que ficariam perdidas para sempre.

Era agosto, uma chuvosa manhã de segunda-feira. Uma chuva de verão, leve e molhando tudo, caía sobre Nancherrow. Chegando do suleste, nuvens baixas e cinzentas obscureciam os penhascos e o mar, enquanto árvores copadas inclinavam-se e gotejavam. Os ralos engoliam a água, as calhas gorgolejavam e a lavagem de roupa semanal fora adiada por um dia. Ninguém se queixava. Após um longo período de tempo quente e seco, aquela suave friagem era bem-vinda. A chuva caía com incessante firmeza, sendo gratamente absorvida pelas flores, frutos e vegetais sedentos. O ar se enchia com o odor incomparável da terra recentemente umedecida.

Com Tiger em seus calcanhares, Loveday chegou ao pátio passando pela copa, deu alguns passos e parou um instante, a fim de farejar o ar e encher os pulmões com aquela doce e revigorante frescura. Usava botas de borracha e um velho impermeável por cima do short e da suéter listrada de algodão que vestia, porém tinha a cabeça nua. Quando começou a caminhar em direção à fazenda Lidgey, a chuva desceu sobre seus cabelos, fazendo com que os anéis escuros se encrespassem mais apertadamente do que nunca.

Ela caminhou pela trilha que levava aos estábulos, porém desviou-se antes de chegar lá e tomou a acidentada alameda que seguia para a charneca. Aqui, os muros antigos e cheios de liquens eram separados da alameda por uma vala funda, agora cheia d'água, e o tojo crescia em espinhosas touceiras, avivadas por flores amarelas cheirando a amêndoas. Também havia uma profusão de dedaleiras e malvas rosa-pálido, assim como emaranhados de madressilvas silvestres, acompanhando a alameda em toda a sua subida, com o granito escuro da rocha pintalgado de retalhos aveludados de liquens cor de açafrão. Além do muro havia pastos, nos quais pastavam as vacas leiteiras Guernsey do sr. Mudge, o capim exibindo um verde brilhante, entre as cristas irregulares de pedregulhos escondidos, em forma de baleia. Mais acima, gaivotas, voando para terra com o vento, revoluteavam e grasnavam.

Loveday gostava de chuva. Era algo a que se acostumara e que a deixava em estado de euforia. Tiger corria à frente e ela o seguia, apressando o passo para manter-se a par de seu entusiasmo. Após alguns momentos, ficou acalorada e desabotoou o impermeável, deixando que se agitasse em torno de seu corpo e às suas costas, como um inútil par de asas. Continuou em frente, e a alameda ziguezagueou, ia para um lado e para o outro, subindo a colina. Lidgey ficava logo à frente, porém Loveday não a podia ver por causa da neblina. Isso não importava, pois sabia que a fazenda estava lá, assim como conhecia todos os recantos de Nancherrow — terras de cultivo e a propriedade — como a palma de sua mão. Os acres de terra pertencentes a seu pai eram o seu mundo e, mesmo vendada, Loveday sabia que encontraria o caminho certo para qualquer local da propriedade. Inclusive para o túnel formado pelas guneras, através da pedreira, chegando aos penedos e à enseada.

Por fim, a última curva da alameda, e a casa da propriedade Lidgey surgiu indistintamente entre a neblina, acima e à frente dela — sólida e atarracada, tendo à volta edificações da fazenda, estábulos e chiqueiros. A janela da cozinha da sra. Mudge brilhava como uma vela amarela, porém isso não era de admirar, em vista das penumbrosas condições;, mesmo nos dias mais brilhantes, a cozinha da sra. Mudge tendia a ser um cômodo pouco iluminado.

Loveday escalou o portão que levava ao pátio e parou um instante, a fim de recuperar o fôlego. Tiger já disparara à sua frente, de maneira que ela cruzou o portão e atravessou o pátio lamacento, tomado pelo cheiro forte de excremento de gado. No meio do pátio havia uma estrumeira de pedra cheia desse excremento, o qual fumegava suavemente enquanto era curtido, até ficar no ponto para adubar as lavouras, misturando-se ao solo enquanto a terra fosse arada. Por ali, as galinhas castanhas da sra. Mudge cacarejavam e ciscavam à procura de comida. No alto da parede da estrumeira, um belo galo espichou-se nas pernas, distendeu as asas e cocoricou a plenos pulmões. Loveday abriu caminho através das lajes escorregadias, passou por um segundo portão e entrou no jardim da casa. Um caminho de seixos levava à porta da frente. Ali ela descalçou as botas de borracha e, de meias nos pés, entrou na casa.

O teto era baixo, e o pequeno vestíbulo, sombrio. Uma escada de madeira subia para o andar de cima. Ela pousou o polegar no ferrolho de ferro da porta da cozinha e o puxou. Ao abrir a porta, foi tomada pelo cheiro cálido dos petiscos da sra. Mudge. Sopa de verduras e pão quente.

— Sra. Mudge?

A sra. Mudge estava lá, em pé diante da pia, descascando batatas e, como sempre, rodeada por uma certa bagunça. Estivera abrindo massa em uma ponta da mesa da cozinha, mas como o aposento também funcionava como sala de estar, a outra extremidade da mesa estava tomada por jornais, catálogos de sementes, brochuras para ferreiros e contas aguardando pagamento. Perto do fogão havia botas por limpar, acima das quais pendiam toalhas de chá. Roupas lavadas ocupavam uma grade, puxada para o teto por uma polia, onde as ceroulas do sr. Mudge ficavam em franca evidência. Havia também um guarda-louça pintado de azul, as prateleiras entulhadas, não somente de peças desencontradas de louça, mas de postais antigos, pacotes de pílulas vermífugas, cartas velhas, coleiras de cão, uma seringa, um antiquado telefone e uma cesta com ovos incrustados de lama, esperando ser lavados. As galinhas da sra. Mudge não se preocupavam com o lugar em que punham seus ovos, e um lugar favorito para procurá-los era nos fundos do canil do cão-pastor.

Loveday mal reparou na bagunça. A cozinha Lidgey sempre tivera essa aparência, e ela gostava disso. De certo modo, ficava bastante aconchegante. E a sra. Mudge também estava confortavelmente desmazelada, ladeada por frigideiras escurecidas, pratos de alimento para as galinhas e todas as panelas e terrinas de seu labor matinal, que ainda não tinham sido lavadas. Usava um avental que a envolvia por inteiro e calçava botas de borracha. Ela ficava de botas o tempo todo, porque estava constantemente entrando e saindo de casa, ora jogando restos de comida para as galinhas, catando gravetos para o fogo ou trazendo da lavanderia pesadas cestas de roupa suja, de maneira que dificilmente valeria a pena tirá-las dos pés. O piso lajeado e os tapetes surrados eram bastante sujos, porém a sujeira não aparecia muito, e o sr. Mudge, assim como o seu filho Walter, desde que fossem bem cuidados e bem alimentados, não tinham queixas a fazer. Assim, questões tão triviais como essas jamais os preocupavam. (Não obstante, Loveday sabia que a leiteria, pela qual a sra. Mudge era a única responsável, estava sempre higienicamente imaculada, escovada e desinfetada. O que, levando-se em conta o número de pessoas que bebiam aquele leite e comiam aquela manteiga e o creme, talvez fosse simplesmente justo.)

A sra. Mudge virou-se da pia, segurando uma batata em uma das mãos e, na outra, sua letal faca, uma afiadíssima e velha faca de trinchar.

— Loveday! — Como sempre, parecia deliciada. Nada havia que ela apreciasse tanto como uma inesperada interrupção. Era uma boa desculpa para pôr a chaleira no fogo, fazer um bule de chá e trocar mexericos. — Bem, esta é mesmo uma agradável surpresa!

A sra. Mudge era desdentada. Tinha dentaduras postiças, porém só as usava quando com visitas ou em ocasiões como a Festa da Igreja, certa de que teria inúmeros problemas com migalhas de bolachas. Ser desdentada fazia com que parecesse muito velha, embora na verdade fosse até bem jovem, com quarenta e poucos anos. Seus cabelos eram lisos e escorridos. Na cabeça tinha um boné marrom, que usava tão constantemente como as botas de borracha, e pelo mesmo motivo.

— Fez toda essa caminhada com um tempo tão horrível?

— Eu trouxe Tiger. A senhora se incomoda se ele entrar?

Era uma pergunta tola e absolutamente desnecessária, porque Tiger já tinha entrado, sacudira o pelame molhado e farejava o balde onde a sra. Mudge reservava a comida dos porcos. Ela o xingou alegremente e simulou dar-lhe um pontapé, de modo que ele recuou para o capacho surrado perto do fogão e ali acomodou-se, começando a limpar-se com lentas e molhadas lambidas.

Loveday despiu sua capa de chuva e a deixou sobre uma cadeira. Depois, estendendo a mão, pegou um pedacinho de massa crua e a comeu. A sra. Mudge cacarejou jocosas risadas.

— Nunca vi ninguém gostar de massa crua.

— É deliciosa.

— Não vai querer uma xícara de chá?

Loveday disse que queria, não por desejá-la na realidade, mas porque bebê-la com a sra. Mudge fazia parte da tradição.

— Onde está Walter?

— Nas lavouras com o pai. — A sra. Mudge largou as batatas e encheu a chaleira, a fim de pô-la para ferver. —Você queria vê-lo?

—Bem, ele não estava nos estábulos esta manhã, e quando cheguei lá, ele tinha soltado os cavalos.

— Ele foi bem cedo para os estábulos, ora se foi, porque o pai precisava dele para consertar um dos muros. Duas vacas fugiram para a estrada esta noite, as idiotas. O que você queria com Walter?

— Apenas dizer-lhe uma coisa, mas a senhora pode dar o recado. Acontece que vou amanhã para Porthkerris e ficarei uma semana por lá, de modo que ele terá de fazer tudo para os cavalos. De qualquer modo, há bastante feno e troquei toda a comida esta noite.

— Eu digo a ele. Vou ficar dando em cima dele, para que não se esqueça. — Erguendo a mão, a sra. Mudge pegou na prateleira a sua latinha de chá decorada com retratos da Realeza, e depois o bule de chá castanho, no lado do fogão. —Por que vai a Porthkerris?

— Vou ficar com os Warrens. Eu e Judith. Eles me convidaram também. Judith vai passar duas semanas lá, e quase deixei de ir, mas então pensei que podia ser bem divertido. Entretanto, fico aborrecida em deixar o novo pônei, mas papai achou que eu devia ir. Por outro lado, e a senhora nem vai acreditar, sra. Mudge, eu e Judith vamos de carro, sozinhas! Ela saiu hoje com o sr. Baines, o advogado, que vai ajudá-la a comprar um carro. E Judith só tem dezoito anos! Não acha que é uma garota de muita sorte? E vai ser um carro novo em folha, também. Nada de segunda mão!

Chocalhando xícaras e pires, a sra. Mudge fez uma pausa, boquiaberta, ao ouvir a novidade.

— Um carro dela mesma! Mal dá para acreditar, não é verdade? E duas mocinhas, viajando por conta própria! Só espero que não sofram algum desastre e morram. —Após ter feito o chá, a sra. Mudge tirou de um pote de cerâmica um bolo de açafrão, do qual começou a cortar generosas fatias. — Os Warrens? Será aquele Jan Warren, o merceeiro?

— Exatamente. Ele tem uma filha chamada Heather. Era amiga de Judith na escola de Porthkerris. E Heather tem dois irmãos muitíssimo atraentes, chamados Paddy e Joe.

A sra. Mudge deixou escapar um grasnido.

— Oh... Então é por isso que você vai!

— Oh, não diga bobagens, sra. Mudge, claro que não é por isso que eu vou!

— Eu não os conheço bem, claro, mas os Warrens são parentes distantes meus. Daisy Warren era prima da minha tia Fio. Tia Fio casou-se com o tio Bert. São uma grande família, os Warrens. E Jan Warrens era um perigo quando jovem, selvagem como um bode, nunca pensamos que ele criasse raízes.

— E ele continua sendo uma pessoa que gosta de arreliar os outros...

A sra. Mudge serviu o chá, puxou uma cadeira e acomodou-se para uma boa conversa.

— O que mais anda acontecendo em sua casa? Continuam com muitos hóspedes?

—Pelo contrário. Papai, eu e Judith somos os únicos por lá. Athena ainda está em Londres e Edward está levando um vidão no sul da França, de modo que, como sempre, não sabemos quando voltará para casa.

— E sua mãe? Loveday fez uma careta.

—Ela foi ontem para Londres. Dirigindo o Bentley. E levou Pekoe.

— Ela foi para Londres — exclamou a sra. Mudge, parecendo muito admirada. — Com todos vocês vindo para casa, e no meio das férias?

Diana-Carey Lewis, aliás, já havia feito semelhante coisa antes. No entanto, embora sentindo um pouco a ausência da mãe, Loveday imaginava compreendê-la.

— Aqui para nós, sra. Mudge, eu acho que ela se sentia um tanto deprimida e infeliz. Precisava mudar de ares. Athena sempre a anima, e eu acho que mamãe queria uma mudança.

— E o que fez sua mãe querer essa mudança?

— Bem, admitamos que tudo anda um pouco deprimente, não concorda? Quero dizer, as notícias, todo mundo falando em guerras, Edward alistando-se na Reserva da Real Força Aérea... Bem, eu acho que isso a amedronta. Papai também não anda nada conversador, e faz questão de ouvir todos os boletins noticiosos do começo ao fim, e estão cavando em Hyde Park para a construção de abrigos antiaéreos, e ele insiste em que todos nós seremos intoxicados por gases. Não está sendo nada divertido conviver com a realidade. Assim, ela apenas fez a mala e se foi.

— Por quanto tempo sua mãe pretende ficar fora?

— Oh, não sei. Uma semana. Talvez duas. O tempo que achar necessário, suponho.

—Bem, se ela está tão perturbada assim, é melhor mesmo que fique fora do caminho. Quero dizer, não é como se ela fosse necessária, entende? Não com os Nettlebeds e Mary Millyway na casa, para ficarem de olho em tudo. -—A sra. Mudge sorveu um longo e ruidoso gole de chá, depois pensativamente afundou sua fatia de bolo no chá que restava na xícara. Ela gostava assim, tudo macio e encharcado, devido à falta dos dentes. — Não sei não... Em realidade, o momento não é bom para nenhum de nós. Enfim, suponho que Walter não terá de ir. Trabalhos de fazenda são uma ocupação preservada, é o que diz o pai dele. Sozinho, ele não conseguiria tocar esta propriedade para diante.

— E se Walter quiser alistar-se?

— Walter — A voz da sra. Mudge estava cheia de orgulhoso desdém. — Ele não se apresentaria como voluntário. Jamais gostou que alguém lhe dissesse o que fazer. Esse foi um motivo dos problemas que teve na escola, tudo por causa das normas e regulamentos. Não posso imaginar Walter dizendo "Sim, senhor" para qualquer sargento-instrutor. Não. Será melhor que fique aqui. Teria mais utilidade.

Loveday terminou o chá. Olhou para seu relógio de pulso.

— Bem, acho melhor eu ir andando. Há mais uma coisa. Preciso levar uma lata extra de creme, porque a sra. Nettlebed está em falta e quer fazer uma geléia de framboesa para o jantar. Foi mais para isto que vim aqui, e para falar a Walter sobre minha ida a Porthkerris.

— Bem, há creme de sobra na leiteria. Sirva-se à vontade, mas não se esqueça de trazer minha lata de volta.

— Não poderei trazer porque viajo amanhã, mas direi à sra. Nettlebed.

A leiteria estava fria e brilhava de limpeza, exalando o cheiro do sabão carbólico com que a sra. Mudge esfregava o chão ladrilhado. Loveday encontrou o creme e uma lata esterilizada, que encheu com uma concha de cabo comprido. Recusando-se a entrar, Tiger gania diante da porta aberta, mas quando ela tornou a surgir no pátio, ele se entregou a êxtases de prazer, dando excitadas corridas em círculo, como se imaginasse haver sido abandonado para sempre. Após ser chamado de idiota, Tiger sentou-se e sorriu para ela.

— Vamos, imbecil, temos que ir para casa!

Ela cruzou o pátio e escalou o portão, depois sentou-se na trave de cima por um instante. Enquanto trocava idéias com a sra. Mudge, surgira uma brisa que fizera a chuva diminuir um pouco. Em algum lugar acima das nuvens, o sol estava brilhando, e alguns raios infiltravam-se para a terra, como sempre parecia acontecer nas ilustrações da Bíblia. A neblina, como uma cortina transparente, começava a dividir-se, permitindo um vislumbre do mar quieto e prateado.

Loveday pensou em Walter e na guerra iminente. Sentiu-se grata por ele não ter que deixar Nancherrow para ser soldado, porque Walter era parte de Nancherrow, parte de tudo que ela havia conhecido a vida inteira, e uma mudança a aterrorizava. Por outro lado, gostava dele. Walter era rude, boca-suja, e corriam boatos de que começava a passar tempo demais no pub de Rosemullion ao anoitecer, mas, ainda assim, era uma constante na existência dela, um dos poucos rapazes que conhecia e com o qual se sentia inteiramente à vontade. Desde que iniciara o preparatório para estudos superiores, Edward estivera trazendo amigos para ficar em casa, mas para Loveday era como se fossem produto de um mundo diferente, com suas arrastadas vozes de membros das classes superiores e, por vezes, seu lânguido comportamento. Enquanto ela se ocupava nos estábulos ou montava em companhia de Walter ou de seu pai, eles estiravam-se em espreguiçadeiras ou jogavam um tênis não muito vigoroso. Além disso, suas conversas à mesa do jantar versavam inteiramente sobre pessoas que ela não conhecia, que jamais veria e nem desejaria ver.

Apesar das maneiras selvagens, ela achava Walter imensamente atraente. Às vezes, quando ele escovava um dos cavalos ou carregava feno, ela o observava disfarçadamente e se sentia encher de satisfação ante a força e flexibilidade do corpo dele, os braços musculosos e queimados, os olhos escuros e os cabelos negríssimos. Walter era como um belo cigano saído de um livro de D.H. Lawrence, e em seus primeiros albores de sexualidade física, Loveday sentia uma espécie de funda pontada no estômago, gerada pela presença dele. Acontecia mais ou menos a mesma coisa com os rapazes Warren, em Porthkerris. Com suas falas típicas da Cornualha, suas brincadeiras rudes e suas implicâncias, nem por um momento Loveday ficava acanhada ou entediada com eles. Ocorreu-lhe que talvez esta sua preferência pelas... ela procurou a palavra certa. Classes inferiores era horrível. Iletradas, era pior. Acertou com autênticas. Sua preferência por pessoas autênticas, tinha algo a ver com a maneira pela qual fora criada, mimada e paparicada a vida inteira, dentro do seguro paraíso de Nancherrow. Fosse lá como fosse, aquele era o seu segredo, não partilhado nem com Judith e nem com Athena.

Walter. Loveday pensou na guerra. Querendo ou não, a cada noite todos eles ouviam o noticiário das nove horas, e a cada noite os eventos mundiais pareciam estar piorando. Era como testemunhar a ereção de um desastre monumental —um terremoto ou um terrível incêndio — sem que ninguém fosse capaz de fazer alguma coisa para evitá-lo. As badaladas do Big Ben, marcando as nove horas, tinham começado a soar para Loveday como as trombetas do Juízo Final. Estava muito mais preocupada com a perspectiva da guerra do que poderia supor qualquer familiar seu, porém ainda não começara a imaginar como seria, em particular dentro do contexto de seu próprio lar, de sua família e do mundo imediato de seus entes queridos. Loveday nunca fora muito boa para imaginar coisas, sempre tinha sido uma inutilidade nos ensaios e composições. Haveria bombas, despejadas por aviões negros, explosões e casas desmoronando? Ou o exército alemão desembarcaria em algum lugar, talvez em Londres, e marcharia através do país? Viriam eles à Cornualha? E se viessem, como cruzariam o Tamar, que tinha apenas uma ponte para a estrada de ferro? Talvez eles construíssem pontões especiais ou cruzassem o rio em botes a remo, mas isso parecia um tanto primitivo.

E se eles viessem, o que aconteceria? Quase todos os homens de seu conhecimento — e certamente todos os amigos de seu pai — tinham uma arma com a qual abatiam faisões e coelhos, também servindo para livrar do sofrimento algum cão ou cavalo machucado. Se todos se armassem e fossem ao encontro dos alemães, então os invasores certamente não teriam a menor chance. Ela evocou a antiga canção da Cornualha, entoada a plenos pulmões pelas multidões nas arquibancadas, durante os jogos de rúgbi no condado.

E terá Trelawney de morrer, meus rapazes, E terá Trelawney de morrer? Quarenta mil, então, da Cornualha Deverão saber por que motivo.

Impaciente, Tiger latia para ela. Loveday suspirou, expulsou da mente os pensamentos sombrios e desceu do portão, começando a trotar pela acidentada alameda, com a lata de creme balançando para cá e para lá. A fim de animar-se, ela pensou no dia seguinte, na viagem a Porthkerris para ficar com os Warren. Tornar a ver Heather, Paddy e Joe. Sentar-se na praia apinhada e tomar sorvetes. E o carro novo de Judith... Talvez fosse um pequeno MG conversível. Ela mal podia esperar para ver o carro novo.

Com tudo isso em mente, ela, quando por fim chegou em casa, já estava novamente com o ânimo em alta.

9 de agosto de 1939 - Porthkerris.

Queridos mamãe e papai,

Peço desculpas por haver levado tanto tempo sem escrever. Tentarei dar todas as notícias com a máxima rapidez, a fim de que esta carta não fique da espessura de um jornal. Como podem perceber, estou em Porthkerris com os Warren, e Loveday também veio. Ela hesitou um pouco, porque tem um novo pônei, chamado Fleet, que está sendo treinado para participar de gincanas, mas finalmente decidiu vir, apenas por uma semana, o que é ótimo para todos nós. Ficaremos um tanto apertados na casa, mas a sra. Warren parece não ligar, porque Paddy agora está trabalhando no barco pesqueiro de seu tio e passa um bom tempo fora de casa. Assim, Loveday ficou com a cama dele e eu estou no quarto de Heather. Ela também deixou a escola e agora vai fazer um curso de secretariado, aqui mesmo em Porthkerris, para então talvez ir a Londres e lá conseguir um emprego.

O tempo tem estado simplesmente maravilhoso, e há muitos visitantes em Porthkerris, de short e sandálias. Joe arrumou um emprego na praia: limpa as tendas de praia e coloca as cadeiras para banhistas no lugar adequado.

Ontem, quando fomos nadar, ele surripiou sorvetes grátis para todas nós. Agora há uma nova garota trabalhando na mercearia. Chama-se Ellie, e parece ter uns dezesseis anos. Ela pinta os cabelos de louro com água oxigenada, mas, embora parecendo tão tola, a sra. Warren disse que é a melhor assistente que já tiveram, e que aprendeu a lidar com a caixa-registradora em um piscar de olhos.

É curioso saber que não terei de voltar mais para o colégio. Ainda não tive qualquer notícia sobre as provas de admissão à Universidade, claro, porém ganhei os prêmios distribuídos para História e Inglês, no Dia da Entrega de Prêmios, o que foi ótimo, além de ser a mais votada para a Taça Carnhayl, isto sim, uma surpresa tão grande, que me deixou de pernas bambas. Entretanto, valeu a pena ganhar, pois, por causa disso, o sr. Baines e tio Bob entraram em acordo e me deixaram comprar um carro para mim, como uma espécie de recompensa. Então, eu e o Sr. Baines fomos à garagem, em Truro, e escolhemos o carro. É um pequeno Morris azul-escuro, de quatro assentos, um encanto! Eles também tinham um carro esporte conversível, porém o sr. Baines disse que se eu tivesse que levantar e baixar a capota (o que eu não faria, é claro), provavelmente quebraria meu pescoço, e ele achou o Morris mais apropriado. Seja como for, eu simplesmente adorei o carro, e voltei para Nancherrow dirigin-do-o eu mesma, por todo o trajeto através de Camborne, Redruth e Penzance, tendo o sr. Baines me seguido em seu carro, como uma espécie de escolta! Foi a melhor coisa que já possuí, desde que tia Louise comprou minha bicicleta; tão logo possa, estarei rodando para Pendeen, para verPhyllis e seu bebê. Darei notícias dela em minha próxima carta.

Afinal, a compra do carro significou que eu e Loveday pudemos vir para cá às nossas custas, em vez de precisarmos usar o furgão de caça de Nancherrow, com alguém mais dirigindo. É impossível descrever como nossa viagem foi divertida, rodando por conta própria, bem devagar, saboreando o passeio! Fazia um dia espetacular, todas as sebes estavam salpicadas de dedaleiras, e viemos pela estrada que passa na charneca, vendo o mar, do azul mais profundo, à distância. Nós cantamos bastante.

Pouco antes de partirmos, Diana Carey-Lewis viajou a Londres e ficará lá algum tempo. O Coronel Carey-Lewis pareceu um tanto melancólico, quando ela lhe disse que se ausentaria, porém ele anda de fato deprimido sobre tudo, nunca esquece de ler os jornais e de ouvir rádio. Acho que o pobre homem está simplesmente com os nervos abalados. Contudo, afinal ele se conformou, viu-a partir e lhe disse que procurasse divertir-se. De fato, ele só pode ser o mais encantador e menos egoísta dos maridos, e quem iria censurá-lo por estar preocupado pela maneira como andam as coisas? Imagino como deve ser angustiante para um homem que durante toda a última guerra lutou nas trincheiras. Fico feliz sabendo que vocês estão em Cingapura e longe disso tudo. Enfim, aí estarão a salvo do que possa ocorrer na Europa.

Preciso terminar. Loveday e Heather querem ir à praia, e a sra. Warren preparou-nos uma cesta de piquenique. Já sinto o cheiro de bolinhos saídos do forno. Pode-se pensar em alguma coisa melhor do que comê-los após nadar um pouco? Eu não posso.

Como sempre, envio todo o meu amor para vocês. Farei o possível para breve escrever novamente.

Judith

Ao contrário de Nancherrow, na casa dos Warren as horas das refeições eram, por necessidade, questões informais. Com dois homens trabalhando e partindo em horas diferentes, o café da manhã era um festim bastante móvel e, por outro lado, o sr. Warren já estava em sua mercearia e Joe na praia, muito antes de quaisquer das jovens terem saído da cama. Por volta do meio-dia, a sra. Warren servia o almoço a seu marido, sempre que houvesse uma pausa nos negócios e ele conseguisse escapar de suas peças de bacon, sacos de chá e quilos de manteiga. Uma vez que estava de pé desde manhã cedo, ele precisava sentar-se por algum tempo, passar os olhos pelo jornal local e tomar um prato fundo de sopa, com uma fatia de pão e queijo, juntamente com uma xícara de chá. Enquanto seu marido comia, a sra. Warren passava roupas, fazia um bolo, lavava o chão da cozinha ou ficava diante da pia descascando quilos de batatas, ouvindo sociavelmente enquanto ele lia trechos de notícias, como os escores do críquete ou quanto o Instituto Feminino de Saint Enedoc conseguira de lucro na Feira Traga & Compre. Após terminar o chá, ele enrolava e fumava um amarfanhado cigarro, voltava ao trabalho, e então era a vez da folga de Ellie. Ela não gostava de sopa. Preparava sanduíches de patê de carne e devorava biscoitos de chocolate, enquanto contava para a sra. Warren o que Russell Oates lhe dissera, quando ambos tinham ficado na fila do cinema — e a sra. Warren achava que ela devia fazer uma ondulação permanente no cabelo? Era uma jovem volúvel e louca por rapazes, mas a sra. Warren a conhecia desde menininha na escola de Porthkerris, e apreciava sua companhia. Também gostava de Ellie porque era ativa, trabalhadora, esperta e sempre amistosa com os fregueses.

—Esta semana vai passar um filme de Jeanette MacDonald — Ellie contou para ela. — Com Nelson Eddy. Sempre achei os dois um pouco melosos, mas a música é bonita. Vi James Cagney semana passada, era uma fita horrível de gangsters e coisas assim, em Chicago.

— Não consigo entender como você agüenta ver tanto tiroteio e matanças, Ellie.

— É excitante. E quando fica sangrento demais, eu apenas me agacho na poltrona.

Loveday ficou lá durante a semana, sendo uma constante fonte de surpresa para Judith a maneira como ela se ajustava e se adaptava à vida na casa apinhada em cima da mercearia, tão diametralmente diversa, em todos os sentidos, do ambiente em que tinha sido criada. Os Carey-Lewis eram "aristocratas rurais"... não adiantava fugir dessa expressão de sonoridade tão incômoda. E Loveday havia sido criada em decorrência, mimada e com as vontades atendidas, cercada por babás e mordomos dedicados, idolatrada por pais extasiados. Não obstante, desde sua primeira visita a Porthkerris, quando ambas ainda estavam no colégio, Loveday ficara fascinada pelos Warren e por tudo sobre eles. Ela adorou a novidade de viver bem no centro de uma movimentada cidadezinha, de cruzar a porta diretamente para a estreita rua lajeada que descia para o porto. Quando o sr. Warren ou Joe começavam a arreliá-la, respondia no mesmo tom, e no referente à sra. Warren, aprendera a arrumar a cama em que dormia, a ajudar na lavagem dos pratos e a pendurar a roupa lavada no pátio atrás da lavanderia. A mercearia, sempre cheia de fregueses, era uma diversão permanente, e ela achava inestimável a liberdade desfrutada pela filha e pelos filhos dos Warren. "Eu agora vou sair", era tudo o que alguém tinha de gritar do alto da escada, e ninguém perguntava para onde ou quando estaria de volta.

Entretanto, o que mais a encantava era o divertimento na praia cheia de gente, onde ela, Judith e Heather passavam a maior parte do tempo. Os dias continuavam mostrando-se perfeitos, com uma brisa fresca e céus sem nuvens, as areias avivadas por tendas listradas e guarda-sóis de praia, ruidosas com alegres reuniões de veranistas aproveitando as férias. Diana comprara para Loveday um novo maiô, um duas-peças, ao qual ela acrescentara um par de óculos escuros, que lhe permitiam encarar ousadamente os outros, sem ser percebida. Como Judith desconfiava, Loveday esperava também que eles a fizessem parecer uma artista de cinema. Tão esguia, bronzeada e encantadoramente bonita, era inevitável que atraísse olhares admirativos, não demorando muito para que algum rapaz jogasse uma bola de praia casualmente em sua direção, a fim de que então fosse travado um novo conhecimento. Mal passava um dia sem que as três fossem convidadas a juntar-se em um jogo semelhante ao beisebol ou para nadar até a balsa e tomar banho de sol sobre a encharcada forração de fibra de coqueiro.

A enseada de Nancherrow jamais seria tão divertida.

Entretanto, o tempo voava e, quase antes de perceberem, chegara o último dia da permanência de Loveday. A refeição da noite, na casa dos Warren, era o único momento em que toda a família — e mais alguém que acaso estivesse lá, precisando ser alimentado — se reunia em torno da comprida e escovada mesa na cozinha da sra. Warren, para conversar, rir, discutir, implicar e, em geral, ficar a par dos assuntos do dia. Nunca houvera qualquer sugestão de trocar-se de roupa ou de vestir-se algo mais formal. Uma apressada lavagem de mãos era tudo quanto se esperava, e todos ocupavam seus lugares com as roupas que tinham usado o dia inteiro, os homens com camisas de colarinho aberto, e a sra. Warren ainda usando seu avental.

A refeição era servida às seis e meia e, embora nunca menos do que um festim, tradicionalmente mencionava-se como "o chá". Era servida uma perna de carneiro, uma galinha ou peixe grelhado, juntamente com batatas amassadas e tostadas, três pratos de vegetais, molhos e picles, e potes de caldo escuro e suculento. Para "depois", havia geléias e tortas, pratos de creme e então um bolo feito em casa ou biscoitos e queijo, tudo acompanhado por grandes xícaras de chá forte.

Nesta noite, havia apenas a família. Os Warren, marido e mulher, Joe e as três jovens, de braços nus e frescas nos vestidos sem manga de algodão, que tinham posto sobre os maiôs, após um dia na praia.

— Sentiremos sua falta — disse o sr. Warren para Loveday. — Esta casa não será a mesma coisa sem você para nos deixar malucos...

— Você tem mesmo que ir? — perguntou a sra. Warren, algo tristonha.

— Sim, é preciso. Prometi a Fleet que voltaria, e há um mundo de trabalho para fazermos juntos. Só espero que Walter a esteja montando, pois do contrário, ficará fogosa e brava como quê.

— Bem, afinal você aqui tomou um bocado de sol — sorriu o sr. Warren. — O que não dirá sua mãe, vendo-a voltar para casa negra como uma indiazinha?

— Mamãe foi passar um tempo em Londres, portanto, não estará em casa. E se estivesse, morreria de inveja. Ela vive tentando bronzear-se. Às vezes toma banho de sol, mas sem vestir nada.

Joe ergueu as sobrancelhas.

— Então, diga a ela que venha à nossa praia. Poderíamos contentar-nos com um ou dois espetáculos extras.

—Oh, não diga asneiras! Ela não faz isso em praias cheias. É apenas em caráter privado, às vezes no jardim ou sobre as rochas.

— Não deve ser tão privado assim, se você sabe do assunto. Costuma ficar espionando?

Loveday jogou nele um pedaço de pão, a sra. Warren levantou-se com dificuldade e foi colocar a chaleira para ferver.

Ela partiu na manhã seguinte, conduzida por Palmer no furgão de caça de Nancherrow. Não era aquele o veículo mais conveniente para as ladeiras empinadas, ruas estreitas e esquinas em ângulo reto de Porth-kerris, de maneira que, quando finalmente chegou, Palmer estava um tanto ou quanto afogueado, porque tinha perdido por completo a direção naquele labirinto de alamedas lajeadas. O fato de chegar à porta da Mercearia Warren foi mais devido à sorte do que a um bom serviço.

De qualquer modo, ele chegou lá. As malas de Loveday estavam empilhadas no andar térreo e através da mercearia, tendo surgido todos à calçada para vê-la partir, entre uma profusão de beijos, abraços e promessas de voltar o quanto antes.

—Quando é que você volta? — perguntou ela a Judith, debruçada à janela aberta do furgão.

—Talvez no domingo de manhã. Ligo para você confirmando. Dê lembranças minhas a todo mundo.

—Eu darei... — Estremecendo, o furgão ganhou vida e se moveu, afastando-se em gigantesca dignidade. — Adeus! Adeus!

Ficaram todos acenando, mas apenas por um momento, porque quase imediatamente o enorme veículo dobrou a estreita esquina junto à Praça do Mercado e desapareceu.

A princípio ficou um pouco estranho, sem Loveday. Como todos os membros da família Carey-Lewis, ela possuía o dom de acrescentar um certo encanto inesperado a qualquer reunião. Por outro lado, também foi interessante ter apenas Heather por companhia, poder recordar os velhos tempos e velhos amigos ou ter de explicar penosamente a ela quem era fulano-de-tal ou quando tal-e-tal coisa havia acontecido.

Sentadas à mesa da cozinha e tomando chá, elas discutiram como passariam o dia, tendo decidido contra a ida à praia de Porthkerris porque, embora Loveday não tivesse desejado fazer outra coisa, a ausência dela oferecia uma boa oportunidade para viajarem um pouco mais além.

— Afinal de contas, estou com o carro. Vamos rodar para algum lugar realmente inacessível.

Ainda estavam indecisas sobre onde irem, quando a sra. Warren se juntou a elas, subindo a escada para um descanso do trabalho na mercearia, e fez a decisão por ambas.

— Por que não vão a Treen? De carro não é muito longe, e os penhascos estarão maravilhosos em um dia como este. Provavelmente não verão uma só alma por lá. De qualquer modo, é um pouco trabalhoso descerem até a praia, mas vocês têm o dia inteiro pela frente, não é mesmo?

Desta maneira, elas foram a Treen, através de Pendeen, pela estrada de Land's End e, depois, por Saint Just Bowlíng. Judith lembrou-se de Phyllis.

—Devo ir visitá-la qualquer dia. Ela mora num lugar perto daqui, mas não sei bem onde. Terei de escrever-lhe uma carta, porque certamente não há telefone.

— Poderá visitá-la esta semana. E, se quiser, também podemos ir a Penmarron.

Judith franziu o nariz.

— Não, eu não gostaria.

— Deixa você com saudades de casa, não é?

— Francamente, não sei. Apenas não quero arriscar-me. — Ela pensou na pequena estação ferroviária, em Riverview e, talvez, em uma visita ao sr. Willis. Entretanto, estas eram lembranças felizes, havendo outras que ficariam melhor estando sepultadas. — Talvez seja melhor apenas lembrar do jeito como era tudo.

Em Treen, estacionaram o carro perto do pub e cruzaram os campos, levando às costas as mochilas com os apetrechos de banho e de piquenique. Aquele era mais um dia com abelhas zumbindo nas campânulas e a claridade do sol difundida pelo calor, tremeluzindo sobre um preguiçoso mar cor de jade. Os penhascos eram tremendamente altos, e a enseada em forma de foice jazia muito abaixo deles, mas elas conseguiram fazer a longa e um tanto arriscada descida pela trilha do desfiladeiro. Quando finalmente chegaram à praia, foi como se estivessem abandonadas em uma ilha deserta, porque não havia ninguém mais à vista.

— Nem mesmo precisamos usar maiôs — observou Heather. Assim, elas se despiram e, nuas, correram para as ondas suaves, com a água gelada e macia como seda. Nadaram até sentirem frio demais para continuarem mais tempo na água. Então emergiram e caminharam pela areia dura em busca das toalhas, secaram-se e depois jazeram sobre as rochas, tomando banho de sol.

Conversaram. Heather confessou que agora tinha um namorado à altura, chamado Charlie Lanyon, filho de um próspero negociante de madeiras em Marazion. Conhecera-o em um Jantar de Críquete, mas mantinha Charlie mais ou menos em segredo da família, porque não suportaria as inevitáveis implicâncias fraternas, tão logo Joe descobrisse a amizade dos dois.

— Charlie é um amor de pessoa. Não apenas atraente, mas bonito de verdade. Tem belos olhos e um sorriso encantador.

— O que você faz com ele?

— Vou ao "Palais de Danse", ao pub, lá tomamos um copo de cerveja... Ele tem carro e, em geral, encontramo-nos perto da parada do ônibus.

— Um dia terá de levá-lo em sua casa.

— Eu sei, mas ele é um tanto tímido. Estamos deixando isso para mais tarde.

— Ele trabalha com o pai?

—Não. Está na escola técnica em Camborne. Tem dezenove anos, mas pretende envolver-se no negócio de madeira.

— Parece ser uma pessoa e tanto. Heather sorriu.

— E é mesmo — respondeu.

Jazendo de costas, Judith fez sombra nos olhos com a mão e ficou calada. Por um momento, deliberou se contaria ou não a Heather sobre Edward. Já que sua amiga lhe fizera uma confidência, achava-se na obrigação de retribuir, mas depois decidiu que não. Por algum motivo, o que sentia por Edward era precioso demais e também demasiado tênue para ser dividido com qualquer pessoa, inclusive Heather. Judith sabia que ela jamais trairia uma confiança, porém segredos, uma vez ditos, estavam soltos para sempre.

O sol estava bastante forte; seus ombros e coxas começavam a queimar. Com dificuldade, ela rolou o corpo e se deitou sobre o estômago, procurando acomodar-se da melhor maneira possível sobre a duríssima platibanda rochosa.

— Vocês pretendem ficar noivos? — perguntou.

— Não. De que adianta um noivado? Se houver guerra, suponho que ele será convocado, e então ficaríamos anos sem nos ver. Por outro lado, não quero casar-me e ficar carregada de filhos. Não por enquanto. Isso a gente pode fazer a qualquer momento.

De repente, ela começou a rir.

— O que é tão engraçado?

— Acabei de me lembrar daquela Norah Elliot, do que ela nos contou atrás do galpão das bicicletas. Sobre como os bebês começam...

Judith também se lembrava perfeitamente e foi sacudida pelo riso.

—.. e nós achamos que ela tinha sido repugnante, que inventara tudo aquilo, e que só alguém tão horrível como Norah Elliot poderia pensar em algo tão medonho.

— E, no final das contas, ela estava absolutamente certa... Quando finalmente as duas contiveram a hilaridade, depois que enxugaram as lágrimas dos olhos, Heather perguntou:

— Quem contou para você

— O quê? Sobre sexo?

— Sim. Quanto a mim, fiquei sabendo por mamãe. No seu caso, entretanto, sua mãe não estava presente.

— A srta. Catto me contou. Contou para a minha classe inteira. Isso tinha o nome de Educação Física.

— Poxa, deve ter sido embaraçoso.

— Curiosamente, não foi nada disso. E como todas nós também estudávamos biologia, o assunto não chegou a ser surpresa.

— Mamãe foi muito delicada. Disse que a coisa não parecia muito agradável, mas que amar alguém a tornava realmente especial. Sabe como é. Emoções e tudo isso.

— Você se sente assim, em relação a Charlie?

— Eu não quero ir para a cama com ele, se é o que quer saber...

— Não. Eu quero saber... você o ama?

— Não dessa maneira. — Heather pensou a respeito. — Não se trata disso. Não quero sentir-me presa.

— Então, o que você quer? Ainda um emprego em Londres?

— Eventualmente. Gostaria de ter um pequeno apartamento, um salário adequado...

—Posso vê-la em um vestido preto de gola branca, sentada no colo do chefe e taquigrafando uma carta.

— Não me sentarei no colo de nenhum chefe, pode ter certeza.

— Não sentiria falta de Porthkerris?

— Claro que sentiria, mas não vou ficar aqui pelo resto da vida. Conheço garotas de sobra, às voltas com uma penca de filhos e sem nunca terem saído da cidade. Eu quero ver o mundo. Gostaria de ir ao estrangeiro. Como a Austrália.

— Para sempre?

— Não. Não para sempre. Eventualmente, eu sempre voltaria. —

Heather sentou-se e bocejou.

— Está um pouco quente, não acha? Estou faminta. Vamos comer alguma coisa.

Passaram o dia inteiro ao sol, em cima das rochas, na areia e no mar. A maré encheu durante a tarde, ocupando a praia candente, de modo que as ondas fracas não pareciam tão frias. Elas ficaram boiando, encarando o céu e embaladas pelo doce balanceio das ondas de verão. Por volta de quatro e meia da tarde, parte do calor já deixara o sol, isto fazendo com que as duas decidissem encerrar o passeio e iniciar a longa escalada para o alto dos penhascos.

— É uma pena a gente ir embora — lamentou-se Heather, enquanto punham os vestidos de algodão e enchiam as mochilas com as coisas de banho e restos do piquenique. Virando-se para contemplar o mar que, à claridade alterada assumira miraculosamente uma tonalidade diferente, agora não mais cor de jade, porém de forte água-marinha azul, ela disse: — Se quer saber, nunca mais será deste jeito. Nunca mais. Apenas nós duas, este lugar e nesta época. As coisas só acontecem uma vez. Nunca pensou nisso, Judith? Parece bobagem, claro, porém nunca mais será exatamente a mesma coisa.

Judith entendia perfeitamente.

— Eu sei — respondeu.

Heather inclinou-se e jogou a mochila para as costas, enfiando os braços nus através das alças.

— Em frente, então! Escalar a montanha!

De fato, foi uma longa e exigente escalada, embora não tanto assustadora quanto a descida até a praia. Chegarem ao topo sem qualquer contratempo foi um imenso alívio, e então fizeram alto por um momento, enquanto recuperavam o fôlego. De pé sobre a espessa relva turfosa, elas baixaram os olhos para a enseada deserta, depois contemplando os penhascos imutáveis e o vazio, tranqüilo do mar.

As coisas só acontecem uma vez.

Heather tinha razão. Nunca mais será deste jeito. Judith perguntou-se quanto tempo levaria antes que voltassem novamente a Treen.

Às seis da tarde estavam de volta a Porthkerris, queimadas de sol, com a pele salgada e exaustas. A mercearia já ostentava seu aviso de "Fechado", mas a porta estava aberta e elas entraram. Encontraram o sr. Warren em mangas de camisa, registrando nos livros os negócios do dia. Quando as duas apareceram, ele ergueu a cabeça de suas colunas de números.

— Ora vejam só quem está chegando! Tiveram um bom dia?

— Perfeito... fomos a Treen.

— Eu sei. Sua mãe me disse. — Os olhos dele pousaram em Judith. — Telefonaram para você, há coisa de uma hora atrás.

— Para mim?

—Para você. Ele quer que ligue em resposta. —Baixando a caneta

o sr. Warren procurou em sua mesa. —.. aqui está. Eu anotei.

Estendeu a ela o pedaço de papel no qual estavam escritas três palavras: "Ligar para Edward." — Ele disse que você sabe o número.

Edward. Judith sentiu-se transbordar de alegria, como uma esponja seca encharcada de água. A felicidade elevou-se das solas de seus pés até o topo da cabeça, e ela pôde sentir o sorriso repuxando-lhe os cantos da boca. Edward.

— De onde ele ligou?

— Não falou. Disse apenas que estava em casa. Heather estava surpresa.

— Quem é, Judith?

— Oh, apenas Edward Carey-Lewis. Pensei que ainda estivesse na França.

—Então, é melhor ligar logo para ele. —Judith hesitou. O telefone que ficava sobre a mesa do sr. Warren era o único da casa. Heather percebeu sua hesitação. — Papai não se importa, não é, papai?

— Claro que não. Fique à vontade, Judith.

Ele se levantou. Judith estava profundamente constrangida.

— Oh, por favor, não precisa sair. Nada há de particular. É apenas Edward.

— Já encerrei aqui por ora. Posso fazer o resto mais tarde. Vou subir e tomar uma cerveja...

Com os olhos negros cintilando, Heather disse:

—Vou servi-la para você. Dê-me sua mochila, Judith, e pendurarei suas roupas molhadas no varal...

Com sutileza consumada, eles a deixaram sozinha. Judith ficou olhando enquanto os dois subiam juntos a escada. Depois sentou-se na cadeira do sr. Warren, atrás da mesa, ergueu o fone do antiquado telefone e forneceu à telefonista o número de Nancherrow.

— Alô? — Era Edward.

— Sou eu — respondeu ela.

—Judith?

—Acabei de chegar. O sr. Warren deu-me o seu recado. Pensei que você ainda estivesse na França.

— Não. Voltei na última quinta-feira, para encontrar uma casa praticamente vazia. Sem mamãe, sem Judith e sem Loveday. Eu e papai temos levado uma existência de solteirões.

— Oh, mas Loveday já voltou!

— Sim, porém dificilmente a vejo. Ela passou a tarde inteira nos estábulos, treinando o novo pônei.

— Divertiu-se muito na França?

— Foi espetacular. Quero contar-lhe a respeito. Quando é que volta?

— Dentro de mais uma semana.

— Não posso esperar. Que tal esta noite? Eu podia ir de carro a Porthkerris e convidá-la a sair para um drinque ou qualquer coisa. Os Warren não se importariam?

— É claro que não se importariam.

— Muito bem, então digamos oito horas. Como vou encontrá-la?

— Desça a colina e tome a direção do porto. A Mercearia Warren fica bem atrás da velha Praça do Mercado. A porta da loja estará trancada, mas há uma entrada lateral sempre aberta e você poderá usá-la. É uma porta pintada de azul-vivo, com maçaneta de latão.

— Imperdível. — Ela podia ouvir o sorriso na voz dele. — Oito horas. Até lá.

Edward desligou. Ela ficou quieta um momento, sonhadora e sorridente, repassando tudo o que ele havia dito e cada nuance na voz dele. Edward ia chegar. Queria contar-lhe sobre a França. Não posso esperar. Ele queria vê-la. Ia chegar.

Teria que mudar de roupa, tomar um banho, lavar a cabeça para tirar o sal. Não havia tempo a perder. Mobilizada para a ação, ela saltou da cadeira e disparou escada acima, nem percebendo o quanto eram íngremes os degraus, subindo dois de cada vez.

Ela estava em seu quarto e passava o batom, quando ouviu o carro dobrar a esquina e parar diante das venezianas fechadas da mercearia.

Largando o batom, correu até a janela aberta, debruçou-se no peitoril e viu, muito abaixo dela, o Triumph azul-escuro e as pernas compridas de Edward, que saía do carro. Ele fechou a porta atrás de si, com uma batida suave.

— Edward!

Ao ouvir a voz, ele parou e então olhou para cima, uma figura minimizada pelo ângulo visual de Judith.

— Você parece Rapunzel — disse ele. — Desça.

— Irei em seguida!

Ela voltou ao quarto, pegou a bolsa branca de correia sobre o ombro, deu um último e rápido olhar ao seu reflexo no espelho antes de sair, correu escada abaixo, cruzou a porta azul e chegou à rua, onde compridas sombras espichavam-se nas lajes do calçamento, ainda quentes do calor do dia. Recostado contra o reluzente capô de seu carro, ele a esperava. Edward estendeu os braços, Judith correu para eles e os dois se beijaram, primeiro em uma face, depois na outra. Ele usava calças de linho ferrugem, sapatilhas e uma camisa azul e branca, aberta no pescoço. Tinha as mangas enroladas até os cotovelos, e estava muito queimado, os cabelos descorados pelo sol mediterrâneo.

— Você está maravilhoso — disse ela.

— Você também.

A aparência informal de Edward tranqüilizou-a. Resistira à tentação de usar um traje formal e, depois do banho, enfiara um vestido de algodão em listras azuis e brancas. As pernas estavam nuas, os pés em sandálias brancas.

— Estou com inveja — disse ele. —Acho que você conseguiu um bronzeado melhor do que o meu.

— Tivemos um tempo formidável.

Edward afastou-se do carro e ficou ereto, com as mãos nos bolsos da calça, o rosto erguido para a fachada da alta e estreita casa de pedra.

— Que lugar esplêndido para ficar!

— A casa é construída em andares — explicou Judith. — Há três deste lado, mas somente dois nos fundos. Suponho que seja porque, como o restante da cidade, tenha sido construída sobre uma colina. A cozinha fica no primeiro andar, com uma porta que dá para um pátio nos fundos. É lá que a sra. Warren cultiva suas plantas em vasos e pendura a roupa lavada. Ela não tem jardim.

— Não estou convidado a entrar?

— Sim, claro, desde que queira. Contudo, agora não há ninguém, aí, além de mim. Há uma feira de verão no campo de rúgbi, e Heather foi lá com os pais, andar de carrossel, arremessar cocos e ganhar prêmios.

— Elefantes de pelúcia cor-de-rosa? Judith riu.

— Exatamente. E Joe, é o irmão de Heather, saiu para passar a noite com amigos.

— Então, aonde iremos? Qual é o local noturno da moda nesta temporada?

— Eu não sei. Suponho que poderíamos tentar o "Guincho Corrediço".

— Uma ótima idéia. Faz anos que estive lá. Vamos ver o que está acontecendo. Quer ir de carro ou caminhamos?

— Vamos andar. Nem vale a pena levar o carro.

— Neste caso, en avante!

Os dois partiram, descendo a ruela estreita que dobrava na Casa do Barco Salva-vidas e chegava ao porto. Um pensamento ocorreu a Judith:

— Você comeu alguma coisa?

— Por quê? Estou com aparência de faminto?

— Não é isso, mas sei muito bem que o jantar em Nancherrow é às oito. Assim, presumo que você não esteve presente a ele.

— Tem razão. Não comi e nem preciso. Concluí que, lá em casa, todos nós comemos demais. Suponho que tudo tenha a ver com a culinária da sra. Nettlebed. Não posso imaginar por que meus pais não são gordos como barris de banha, mas a verdade é que mastigam alimentos quatro vezes ao dia e jamais ganham um só grama de peso.

— Tudo tem a ver com uma coisa chamada metabolismo.

— Onde foi que aprendeu uma palavra tão comprida?

— Oh, no Santa Ursula fomos muito bem educadas.

— Fomos muito bem educadas — repetiu Edward. — Não é maravilhoso saber que tudo ficou para trás agora? Eu mal podia acreditar quando finalmente deixei Harrow. Costumava ter pesadelos sobre voltar para lá e acordava durante a noite suado de apreensão.

— Ora, vamos, não pode ter sido assim tão ruim! Aposto como sente um nó na garganta, quando ouve vozes de garotos cantando velhas canções da escola.

— Não, não sinto, mas admito que possa sentir, quando estiver com cinqüenta anos.

Eles dobraram a esquina da Casa do Barco Salva-vidas e continuaram ao longo da rua do porto. Era um anoitecer tão dourado e acolhedor, que a rua ainda estava apinhada; havia veranistas por toda parte, caminhando sem pressa junto à borda do molhe, parando para debruçar-se na balaustrada e observar os barcos pesqueiros; lambendo sorvetes ou comendo peixe e batatas fritas de cones de papel. Sabia-se que eram visitantes, porque usavam roupas bastante peculiares, estavam vermelhos como camarão por causa do sol desacostumado, e falavam com sotaques de Manchester, Birmingham e Londres. A maré estava alta, e o céu cheio de gaivotas gulosas. Alguns dos velhos residentes que ainda moravam em casas junto do porto tinham levado cadeiras de cozinha para fora das portas e nelas se sentavam, vestidos de preto e falando em voz muito alta, enquanto aproveitavam o último calor do dia e apreciavam o mundo que passava à sua frente. Fora do "Guincho Corrediço", um grupo de jovens veranistas, ruidosos e queimados de sol, bebia cerveja em torno de uma mesa de madeira.

Edward fez uma careta.

— Espero que não esteja cheio demais. Na última vez que estive aqui era inverno, e só havia um ou dois velhotes no interior, desfrutando de um pouco de paz longe das esposas. Enfim, vamos dar uma espiada lá dentro.

Ele entrou na frente, encurvando a cabeça abaixo do deformado lintel da porta. Em seus calcanhares, Judith internou-se na penumbra e imediatamente foi tomada pelo cheiro da cerveja, de bebidas alcoólicas e de acalorada humanidade, juntamente com nuvens de fumaça de cigarros e da estridência de vozes joviais. Não havia admitido para Edward, porém aquela era sua primeira ida ao "Guincho Corrediço", porque se tratava de um pub que os homens da família Warren reservavam estritamente para si próprios. Agora, ela olhou em torno com certa curiosidade, procurando descobrir o que havia de tão especial no lugar.

— Está pior do que pensei —comentou Edward. —Devemos dar o fora ou ficar?

— Vamos ficar.

— Está bem. Tome posição aqui e garanta uma mesa, caso alguma fique livre. Vou pegar as bebidas. O que vai querer?

— Um shandy. Ou uma cidra. Não faz diferença.

— Eu lhe trarei um shandy.

Ele se foi, abrindo habilidosamente caminho para o bar, e ela o viu afastar-se usando os ombros para forçar passagem, ao mesmo tempo mostrando-se muitíssimo polido "Sinto muito... Perdão... Com licença..."

Ele já se aproximava do enlouquecido barman quando, por um golpe de sorte, o grupo que estivera ocupando uma mesa sob uma pequenina vigia que fazia as vezes de janela começou a reunir-se como que para ir embora. Com uma rapidez que a ela mesma surpreendeu, Judith chegou junto do grupo em um instante.

— Desculpem-me, mas estão indo embora?

— Isso mesmo. Temos que subir a colina até a nossa pensão. Vai querer a mesa?

— Seria bom poder sentar-me.

— Claro. Isto aqui até parece o "Buraco Negro" de Calcutá. Eram quatro pessoas e demoraram algum tempo, mas Judith permaneceu bem perto, precavida contra intrusos. Assim, tão logo o grupo afastou-se, ela deslizou para o estreito banco de madeira e deixou a bolsa ao seu lado, marcando um lugar para Edward.

Quando ele voltou, carregando sua caneca de cerveja e o copo dela, mostrou-se deliciado com a esperteza de Judith.

— Que garota inteligente você é! — exclamou. Pousou cuidadosamente as bebidas em cima da mesa e depois deslizou no banco, ao lado dela. — Como foi que conseguiu? Fez caretas para afugentar os ocupantes?

— Nada disso. Eles iam mesmo embora. Voltaram para a pensão onde se hospedam.

—Uma sorte e tanto! Seria terrível termos de ficar em pé o tempo todo...

 

Mistura de cerveja e gengibirra. (N. da T.)

 

— Eu nunca havia reparado que o "Guincho Corrediço" era tão pequeno.

— Pequeníssimo. —Edward pegou um cigarro e o acendeu. —No entanto, todo mundo quer vir para cá. Há inúmeros outros pubs na cidade, porém imagino que todos os visitantes achem pitoresco este lugar. O que, sem dúvida, não deixa de ser. Enfim, céus, está lotado! Não há espaço nem mesmo para um humilde jogo de dardos. O jogador provavelmente acertaria o olho de alguém. Seja como for — ele ergueu sua caneca — à nossa! É tão bom ver você novamente... Passou muito tempo.

— Desde o Natal.

— Tanto assim?

— Bem, você esteve na América durante toda a Páscoa.

— É verdade.

— Fale-me sobre a França.

— Foi esplêndido...

— Aonde você esteve?

— Em uma villa nas colinas atrás de Cannes. Perto de uma aldeia chamada Silence. Muito rural. Cercada por vinhedos e olivais. A villa tinha um terraço coberto de vinhas, onde todos fazíamos as refeições, e no jardim havia uma pequena piscina gélida, formada por um regato que descia do topo da montanha. Também havia cigarras, gerânios cor-de-rosa e, dentro de casa, pairava um cheiro de alho, óleo de bronzear e cigarros Gauloise. O paraíso.

— De quem era a villa

— De um casal idoso muito simpático, chamado Beath. Penso que ele tinha algo a ver com o Ministério das Relações Exteriores.

— Quer dizer que você não os conhecia?

— Nunca os tinha visto antes na vida.

— Então, como...

Edward suspirou e forneceu uma laboriosa explicação.

— Fui a Londres, a fim de comparecer a uma festa com Athena. Foi onde conheci uma divertida garota e, no correr do jantar, ela me contou que os tios eram donos dessa villa no sul da França. Acrescentou que fora convidada a hospedar-se lá, podendo levar um ou dois amigos.

— Edward, você é o...

— Por que está rindo?

— Porque somente você seria capaz de ir a uma festa em Londres e terminar passando duas semanas no sul da França.

— Pensei que fosse muito inteligente de minha parte.

— Ela deve ter sido terrivelmente bonita.

— As villas do sul da França tendem a tornar bonitas as garotas. Da mesma forma como uma espetacular conta bancária deixa as mulheres mais hediondas sexualmente atraentes. Para um determinado tipo de homem, é claro.

Ele estava troçando. Ela sorriu. No Natal, quando Edward lhe falara sobre seus feriados na Suíça, Judith fora incapaz de conter uma pontada de ciúme das garotas desconhecidas que haviam esquiado em companhia dele e com as quais dançara noites sem fim ao som das melodias de Richard Tauber. Garotas eram feitas para serem amadas e beijadas. Agora, contudo, talvez porque ela estivesse bem mais velha e muito mais segura de si, não sentiu ciúmes em absoluto. Afinal de contas, ao voltar para Nancherrow e não a encontrando, ele prontamente entrara em contato e viera ao seu encontro. Isso parecia indicar que ela era um pouco importante na vida dele, que Edward não entregara o coração a outra, não o deixara no sul da França.

— E o que aconteceu depois, Edward?

— Como assim?

— Você disse que o convite incluía um ou dois amigos.

— Sim, isso mesmo. Ela havia combinado com uma amiga, porém todos os rapazes que gostariam de convidar já estavam comprometidos com outros arranjos. Desta maneira... — Ele deu de ombros. — Ela me convidou. E sendo dos que nunca rejeitam uma boa oferta, aceitei prontamente, antes que ela mudasse de idéia. "Traga um amigo", ela disse, e então sugeri este cara chamado Gus Callender.

Era a primeira vez que Judith ouvia esse nome.

— Quem é ele?

— Um escocês moreno e compenetrado, originário das agrestes Highlands. É meu colega em Pembroke, estuda engenharia, mas só cheguei realmente a conhecê-lo este verão, quando ambos ficamos com quartos no mesmo andar. É um sujeito bastante tímido e reservado, mas incrivelmente simpático. Pensei logo nele, certo de que não teria feito nenhum plano para as férias. Pelo menos, nenhum impossível de ser modificado.

— E ele se ajustou ao resto do grupo na casa?

— Claro! — exclamou Edward, parecendo surpreso por Judith chegar a questionar seu impecável julgamento social. —Nunca duvidei disso. Uma das garotas ficou loucamente apaixonada por seu jeitão concentrado. Callender lembra Heathcliff, e a sra. Beath vivia me dizendo que o achava um encanto. Além disso, ele tem dotes artísticos, o que acrescentava uma dimensão extra. Pintou uma tela da vila, mandou emoldurá-la e deu aos Beath, como presente de agradecimento. Eles ficaram felicíssimos.

Judith concluiu que esse Callender tinha uma personalidade bem pouco interessante.

— Engenheiro e artista... Uma mistura curiosa.

— Nem tanto. Pense em todos aqueles desenhos técnicos. Geometria é algo muitíssimo complicado. Aliás, parece que há boas probabilidades de você vir a conhecê-lo. Depois que voltamos para casa e finalmente chegamos em Dover, convidei-o a vir a Nancherrow comigo, porém ele tinha que retornar à sua sombria Escócia e ficar algum tempo com o pai e a mãe idosos. Não falou muito sobre a família, mas tive a impressão de que não devem ser os mais excitantes pais do mundo.

— Então, por que há boas probabilidades de que eu o conheça?

— Porque ele talvez venha mais tarde. Pareceu bastante tentado pela idéia. Não chegou a aceitar prontamente o convite, mas é óbvio que ele nunca aceita coisa alguma prontamente. — Edward olhou para Judith e a viu rindo. Franziu a testa. — Qual é a graça?

— Espero que ele não seja sem queixo e maçante, porque então Loveday o crucificaria.

— Loveday é uma pedra no sapato. E, naturalmente, Gus tem queixo. Todos os escoceses têm queixos.

— Ele nunca esteve na Cornualha?

— Nunca.

— Se for pintor, então ficará fascinado, como acontece com todos os outros, e nunca mais quererá ir embora.

— Conhecendo Gus, creio que a carreira dele está segura. É consciencioso demais para entregar-se a coisas secundárias. Tradicionalmente, os escoceses sentem um profundo respeito pela educação.

Daí por que eles são tão espertos e inventam coisas como capas impermeáveis, pneus infláveis e estradas macadamizadas.

Judith, entretanto, já tinha falado o suficiente sobre Gus Callender.

— Fale-me mais sobre a França. E sobre a viagem de carro para o sul. Foi bonita?

— Foi grande viajar para o sul, porém a volta nada teve de muito divertida. Depois de Paris, as estradas para Calais parecem congestionadas pelo trânsito e tivemos que esperar meio dia por uma vaga no ferry.

— Por que isso?

— Puro pânico. Nervosismo sobre a guerra. Todas as pequenas famílias inglesas passando férias na Bretanha e na Bélgica decidiram interromper subitamente sua permanência e correr para casa.

— O que achavam que possa acontecer?

— Não sei. Talvez o exército alemão irrompendo subitamente na Linha Maginot e invadindo a França. Ou outra coisa qualquer. Azar dos hoteleiros. Você precisava ver as caras melancólicas do sr. e sra. Du Pont, do Hotel du Plage, vendo seu pão com manteiga rodarem estrada afora, de volta à Inglaterra...

— A situação está mesmo tão ruim assim, Edward?

— Se quer saber, bastante ruim. O pobre e velho papai está cheio de apreensões.

— Eu sei. Penso que foi este o motivo de sua mãe ter fugido para Londres.

— Ela nunca foi de enfrentar fatos cruéis. É excelente para mantê-los à distância, porém não sabe o que fazer, em se tratando de enfrentá-los. Ela telefonou ontem à noite, querendo saber se estamos todos sobrevivendo sem sua presença e para dar notícias de Londres. Athena arranjou namorado novo. Chama-se Rupert Rycrift e está na Guarda dos Dragões Reais.

— Nossa, que elegante!

—Eu e papai fizemos apostas sobre quanto tempo irá durar. Cinco libras cada um. Vou pegar outra cerveja. E quanto a você?

— Ainda não terminei o meu.

— Não deixe ninguém tomar o meu lugar.

— Não deixarei.

Ele se foi, tornando a abrir caminho com dificuldade até o bar, e Judith ficou sozinha. Isto não importava nem um pouco, porque havia muita coisa e um bocado de gente para olhar. Uma freqüência bastante heterogênea, decidiu. Dois ou três homens idosos, claramente moradores do lugar, estavam firmemente instalados nos bancos de madeira que flanqueavam a lareira. Tinham as mãos engelhadas abraçando preguiçosamente canecas de cerveja e conversavam entre si, com tocos de cigarro colados aos lábios inferiores. Judith achou que deviam estar sentados ali desde que a casa abrira e, sem dúvida, não tinham feito outra coisa.

Havia também um bom grupo de pessoas, provavelmente hóspedes dos grandes hotéis na colina, mas dedicando algum tempo a visitar o "Guincho Corrediço" e observar como viviam os nativos. Falavam com o tom de voz desdenhoso das classes superiores e pareciam totalmente deslocados ali dentro, mas enquanto Judith os observava, pareceram decidir que já haviam tido o suficiente, porque terminaram seus drinques, largaram os copos vazios e prepararam-se para ir embora.

A partida do grupo criou um vazio não imediatamente preenchido, o que permitiu a ela uma clara visão do recinto até o banco situado no extremo oposto. Havia um homem lá, sentado sozinho, com um copo pela metade à sua frente. Olhava para ela. Fixamente. Judith viu os olhos que não piscavam, o bigode caído e manchado de nicotina, o boné de tweed puxado para diante, tapando quase toda a testa. Abaixo das sobrancelhas eriçadas, o olhar aquoso era impassível. Ela estendeu a mão para seu shandy, tomou um gole, mas logo largou o copo, porque sua mão começara a tremer. Podia sentir o coração disparando no peito e o sangue fugir do rosto, como água em um ralo.

Billy Fawcett.

Nunca mais o tinha visto nem soubera dele, desde o dia do funeral de sua tia Louise. A medida que os anos passavam — e agora, os quatorze anos pareciam estar a um mundo de distância — o trauma da adolescência fora desaparecendo aos poucos. Nunca, porém, desaparecera por completo. Ultimamente, mais velha e melhor informada, chegara inclusive a tentar compreender um pouco as patéticas aberrações sexuais daquele homem, porém havia sido algo quase impossível e de nada adiantara. Aliás, a recordação dele quase destruíra seu relacionamento com Edward e, naturalmente, Billy Fawcett era o motivo de nunca ter desejado voltar a Penmarron.

Durante suas visitas iniciais aos Warren, enquanto ainda estudante, vivera no terror de encontrar Billy Fawcett por acaso — talvez na rua, saindo do banco ou do barbeiro. Entretanto, o cenário aterrorizante jamais se tornara realidade e, pouco a pouco, enquanto os anos passavam, seus temores abateram-se e ela ganhou coragem. Talvez ele houvesse se mudado de Penmarron, abandonando seu bangalô e o clube de golfe para ir morar no interior. Talvez — que maravilhoso pensamento — estivesse morto.

Entretanto, ele não estava morto. Estava ali, no "Guincho Corrediço". Sentado no outro extremo do recinto e encarando-a, os olhos queimando como dois seixos brilhantes no rosto corado. Judith olhou em torno, procurando Edward, mas ele estava espremido no bar, pegando sua cerveja, sem que ela pudesse gritar por ajuda. Oh, Edward, volte, pediu silenciosamente. Volte logo!

Edward, no entanto, demorava-se trocando alguns comentários amistosos com o homem ao seu lado. E agora, Billy Fawcett se punha de pé, pegava seu copo e caminhava pelo piso ladrilhado em direção aonde estava Judith, petrificada como um coelho hipnotizado por uma serpente. Ela o viu chegar e ele parecia o mesmo, apenas um pouco mais decrépito, de sapatos cambaios e empobrecido. Tinha as faces congestionadas e riscadas por veias purpúreas.

—Judith...

Ele estava ali, firmando-se com a velha mão nodosa no encosto de uma cadeira. Ela nada disse.

— Importa-se se a acompanho? Permite que me sente? — Ele puxou a cadeira da mesa e baixou-se cautelosamente sobre o assento. — Eu a vi — disse. — Reconheci-a assim que cruzou a porta. — Seu hálito recendia a fumo velho e uísque. — Você cresceu.

— Sim.

Edward aproximava-se. Ela ergueu os olhos em um mudo apelo de ajuda. Um tanto confuso, Edward ficou visivelmente contrariado com a presença daquele velhote estranho e arruinado na mesa deles.

— Olá — disse polidamente, porém não havia muita amizade em sua voz e a expressão era circunspecta.

— Meu caro rapaz. Peço que me desculpe... —A palavra demorou um pouco a ser dita, de maneira que Billy Fawcett tentou novamente. —... desculpe por interromper, mas Judith e eu somos velhos amigos.

Tínhamos que trocar algumas palavras. Meu nome é Fawcett. Billy Fawcett. Ex-coronel do Exército da índia. — Ele encarou Edward.

Creio que ainda não tivemos o prazer... —disse, a frase extinguindo-se antes de completada.

— Edward Carey-Lewis — disse Edward, mas sem estender a mão.

— É um grande prazer conhecê-lo. — Buscando em torno algo com que ocupar as mãos, Billy Fawcett percebeu seu uísque, tomou um grande gole e depois bateu com o copo de volta à mesa. — E de onde é você, Edward?

— Rosemullion. Nancherrow.

— Não me é familiar, caro rapaz. Não ando muito por aí ultimamente. O que faz para viver?

— Estou em Cambridge.

— Aquelas altas e deleitosas torres, hein? Bem lembradas colinas azuladas... Eu trabalhei muito nos domínios do ouro... —Seus olhos apertavam-se, como se estivessem arquitetando algum plano. —Será, Edward, que teria consigo algum cigarro? Parece que os meus acabaram.

Silenciosamente, Edward tirou do bolso seu maço de Players e o ofereceu a Billy Fawcett. Com certa dificuldade, ele conseguiu extrair um, para em seguida remexer em um bolso bambo e exibir um isqueiro metálico de letal aparência. Foi-lhe preciso certa concentração para girar a rosca, produzir uma chama e então aplicá-la à ponta do cigarro — agora parecendo um pouco inclinada — porém finalmente conseguiu. Deu uma longa tragada, tossiu aterradoramente, sorveu outro bom gole de uísque e então fincou os cotovelos na mesa, dando a impressão de que pretendia continuar ali para sempre.

Seu tom ficou confidencial.

—Judith foi minha vizinha — disse para Edward. — Com sua tia Louise. Em Penmarron. Tivemos grandes momentos. Uma mulher maravilhosa, Louise. Minha melhor amiga. Aliás, minha única amiga. Sabe, Judith? Caso não tenha percebido, eu provavelmente teria casado com Louise. Ela me dedicava uma boa parte de seu tempo, antes de você aparecer. Éramos bons amigos. Senti uma falta terrível dela, quando se matou naquele carro que tinha. Uma falta infernal. Nunca me senti tão só. Abandonado.

Sua voz engasgou-se. Ele ergueu uma mão sarapintada e limpou uma lágrima que escorria. Tinha alcançado a fase lamuriosa da embriaguez, solicitando compreensão e cheio de pena de si mesmo. Judith fixou os olhos em seu shandy. Não queria olhar para Billy Fawcett, e a vergonha, a consternação, impediam que olhasse para Edward.

Billy Fawcett divagou.

— Para você, no entanto, foi diferente, não foi, Judith? Você não ficou nada mal, hein? Arrebanhou tudo. Sabia de onde é que lhe vinha o pão. Nem se importou comigo. Estragou tudo para mim. Nem ao menos me dirigiu a palavra no funeral de Louise. Ignorou-me. E ficou com tudo. Louise sempre disse que cuidaria de mim, porém não me deixou um miserável níquel. Nem mesmo um dos velhos e malditos troféus de golfe de Jack. — Ele meditou nesta injustiça durante um momento, depois soltou o tiro. — Espertalhonazinha conivente! — Um pouco de saliva voou no ar e pousou sobre a mesa, bem perto da mão de Judith.

Seguiu-se um longo silêncio, e então Edward remexeu-se ligeiramente em sua cadeira. Depois ele disse, em voz comedida:

— Você não deseja ouvir mais esta sujeira, não é, Judith? Ela meneou a cabeça.

— Não.

Edward ficou de pé sem pressa, agigantando-se acima do velho bêbado.

—Acho melhor o senhor ir embora — disse polidamente.

Billy Fawcett ergueu o rosto apoplético, com uma expressão de confusa descrença, enquanto encarava o rapaz.

— Ir embora? Seu frangote pretensioso, só vou embora quando terminar, e ainda não terminei.

— Oh, mas já terminou. Terminou o seu uísque e terminou de insultar Judith... Agora, vá!

— Dane-se! —replicou Billy Fawcett.

A resposta de Edward a isto foi agarrar a gola do frouxo paletó de Billy Fawcett e puxar até deixá-lo em pé. Quando o velho encerrou seus protestos... "não ouse encostar as mãos em mim... não ouse... tratar um homem como um qualquer... Vou denunciá-lo por isso..." Edward já o tinha puxado da mesa, depois o empurrado através da porta e da saída do pub. Soltou-o sobre a rua lajeada, onde Billy

Fawcett, sufocado e de pernas bambas, arriou na sarjeta. Havia um bocado de gente em torno e todos testemunharam a humilhação.

— Não volte mais aqui — avisou Edward. — Nunca mais mostre sua cara nojenta neste lugar!

Mesmo caído na sarjeta, entretanto, Billy Fawcett ainda possuía uma fagulha de luta.

— Seu maldito bastardo! — berrou. — Eu nem terminei o meu drinque!

Ao ouvi-lo, Edward tornou a entrar no bar, recolheu o copo com o resto de uísque, levou-o para a rua e despejou o conteúdo no rosto de Billy Fawcett.

—Agora terminou — disse — portanto, vá para casa.

Depois disso, Billy Fawcett perdeu os sentidos.

Descendo sem pressa a Rua dos Peixes em sua volta para casa, após passar algumas horas da noite na companhia de seu amigo Rob Padlow, Joe Warren desembocou na rua do porto, nas alturas do "Guincho Corrediço", bem a tempo de testemunhar uma cena que lhe prendeu a atenção. Paradas no local, numerosas pessoas mostravam expressões variadas de choque e espanto, pois havia um velho bêbado jazendo de costas na sarjeta, e um jovem alto e louro, em mangas de camisa, que lhe despejava uísque na cabeça, antes de tornar a entrar no pub em largas passadas.

Joe não pretendia entrar no "Guincho Corrediço", mas fatos tão dramáticos exigiam uma investigação. O velho embriagado parecia ter desmaiado, de modo que ele apressou o passo e seguiu o rapaz louro ao interior do pub, onde seu espanto aumentou ainda mais, ao encontrá-lo sentado à mesa abaixo da janela, e na companhia de Judith.

Judith estava branca como um lençol.

—O que foi que aconteceu? — perguntou Joe. Ela ergueu a cabeça, viu-o parado ali, e tudo quanto pôde fazer foi sacudir a cabeça. Os olhos dele se voltaram para o rapaz que a acompanhava. — Você é o irmão de Loveday?

— Exatamente. Edward.

—Eu sou Joe Warren. — Ele puxou a cadeira da qual Billy Fawcett fora removido tão a contragosto, e sentou-se. — O que andou fazendo? — perguntou brandamente a Edward.

— Ele é um velho bêbado agressivo, de maneira que o ajudei a ir tomar um pouco de ar fresco. Então, xingou-me e disse que queria terminar seu drinque. Fiz-lhe a vontade. Isso foi tudo.

—Bem, ele agora está "morto" para o mundo. Importunou Judith? — Joe franziu a testa, ao olhar para ela. — Parece um tanto pálida. Está tudo bem com você?

Judith respirou fundo e exalou o ar com força. Estava decidida a não tremer, não chorar ou portar-se como uma idiota, em nenhum sentido.

— Sim, está tudo bem. Obrigada, Joe.

— Você conhece o velho bêbado?

— Conheço. É Billy Fawcett.

— E você? — perguntou Edward a Joe. — Também o conhece?

— Apenas de vista, porque ele aparece aqui no pub duas ou três vezes por semana. Contudo, em geral é bastante dócil. Ninguém precisou jogá-lo na rua antes. Ele a importunou, Judith?

— Oh, Joe, já está tudo terminado.

— Bem, você parece a ponto de desmaiar. — Joe levantou-se. — Vou trazer-lhe um drinque. Não me demoro.

Ele se foi, antes de Judith poder detê-lo. Ela se virou para Edward.

— E ainda nem terminei este... — murmurou, com ar infeliz.

— Creio que Joe tinha algo mais forte em mente. Diga-me, aquele sapo velho era mesmo amigo de sua tia?

— Sim, era.

— Ela devia estar louca.

— Não se trata disso. Apenas era generosa. Ela e o marido o conheciam dos velhos tempos, quando estavam todos na índia. Acho que se sentia um tanto responsável por ele. Os dois jogavam golfe. Ele mora em um horrível bangalozinho em Penmarron. Oh, Edward, como ele irá chegar em casa?

— Eu o deixei cercado de espectadores boquiabertos. Espero que algum deles seja suficientemente insensato para ter pena do velhote.

— Não devíamos fazer alguma coisa?

— Não.

—Sempre imaginei que ele quisesse casar-se com tia Louise —disse ela. — Billy Fawcett estava atrás da casa confortável que ela possuía, claro, além de seu dinheiro e seu uísque.

— Dá para supor que ele sempre foi apreciador do álcool.

— Eu o odiava.

— Pobre Judith, que horrível!

— E ele...

Judith pensou na mão de Billy Fawcett, rastejando por sua perna acima e perguntou-se como, afinal, poderia explicar aquilo a Edward e fazê-lo compreender. Nesse momento, contudo, Joe voltou para junto deles e a oportunidade ficou perdida. Ele estendeu o cálice de brandy.

— Beba isto e se sentirá melhor.

— Joe, quanta gentileza! E, por favor, não conte nada para seus pais, está bem? Tudo já acabou. Não quero que fiquem sabendo.

— Eu nada vi que mereça comentários. Apenas um velho bêbado em uma sarjeta. Um sujeito que nada tinha a ver com você. Acho bom dar uma olhada e saber o que está acontecendo.

Após falar, ele saiu, para voltar pouco depois com a notícia de que algum caridoso transeunte sentira pena e telefonara pedindo um táxi. Billy Fawcett fora colocado no veículo e já estava a caminho de casa. Após transmitir sua mensagem, Joe anunciou que ia para casa.

— Posso pagar-lhe um drinque? — sugeriu Edward.

— Não, obrigado, já bebi tudo o que devia. Agora, preciso de minha cama e de meu sono de beleza. Boa noite, Judith.

— Boa noite, Joe. E obrigada, mais uma vez.

— Faça o favor de engolir esse brandy, meu bem...

Joe foi embora. Por um momento, nada foi dito. Judith sorveu sua bebida e sentiu-a arder como fogo em sua garganta, mas desceu con-fortavelmente para seu estômago e ajudou a aquietar o pânico em seu coração.

Ao lado dela, Edward acendeu outro cigarro e puxou o cinzeiro para perto.

— Acho que você está precisando falar, não está? — disse por fim. — Porque, se estiver, estou perfeitamente preparado para ouvir. — Ela nada respondeu, limitando-se a contemplar as próprias mãos. — Você o odiava. Certamente, não apenas porque ele tinha uma queda para a bebida.

— Não. Não foi nada disso.

— Então, o que foi?

Ela começou a contar e, após começar, viu que não era tão difícil como imaginara. Falou na partida de Molly e de Jess, na mudança de Riverview e, conseqüentemente, a sua entrega aos cuidados de Louise Forrester. Depois contou sobre o aparecimento de Billy Fawcett em cena, a amizade aparentemente íntima dele com Louise.

— Antipatizei com ele desde a primeira vez que o vi. Havia algo tão... — ela franziu o nariz —.. tão espalhafatoso nele... E estava sempre sorridente, muito alegre e... de algum modo, não inspirava confiança.

— Sua tia não percebia isso nele?

—Não sei. Naquela época fiquei apavorada à idéia dela casar com ele, mas agora, refletindo melhor, tenho certeza absoluta de que tia Louise jamais faria algo tão imbecil.

— Então, o que aconteceu?

— Ele nos levou ao cinema. Estava passando O Picolino. Tive que me sentar ao lado dele, que começou a alisar e apertar minha perna. — Ela olhou para Edward. — Eu tinha quatorze anos, Edward, não fazia a menor idéia do que ele pretendia. Entrei em pânico e fugi do cinema. Em casa, tive uma terrível discussão com tia Louise. — Ela franziu a testa. — Você não está com vontade de rir, está?

— Não estou. Prometo não rir. Você contou para sua tia?

— Oh, eu simplesmente não poderia. Não sei por quê. Eu apenas não podia.

— Isso é tudo?

— Não.

— Pois bem, conte-me o resto.

Ela então falou sobre o domingo chuvoso em que ficara sozinha e tinha ido de bicicleta a Veglos, a fim de permanecer longe de Billy Fawcett.

— Ele costumava vigiar-nos, de seu bangalô. Posso apostar como tinha binóculos. Sabia que eu estava sozinha em casa naquele dia, porque tia Louise, em sua inocência, deixara o fato escapar. De qualquer modo, quando voltei para casa...

— Não me diga que ele estava à sua espera!

— Mal havia entrado e ele telefonou, dizendo que já vinha. Então, tranquei todas as portas e janelas, corri para o andar de cima e fiquei escondida debaixo da cama de tia Louise. Durante uns dez minutos ele gritou, xingou, esmurrou portas, tocou campainhas e tentou alcançar-me, enquanto eu continuava embaixo da cama, absolutamente aterrorizada. Nunca senti tanto medo desde então. Tive pesadelos com ele. Ainda tenho, às vezes. É sempre o mesmo pesadelo: ele está entrando em meu quarto. Sei que é infantil, mas quando o vi esta noite, fiquei simplesmente petrificada de terror...

— E eu sou a primeira pessoa a quem conta tudo isso?

— Não. Depois que tia Louise morreu, contei para a srta. Catto.

— O que ela disse?

— Oh, foi muito delicada, mas bastante realista. Disse apenas que ele não passava de um velho degenerado, e que eu não devia pensar mais naquilo. Entretanto, não se pode controlar o que acontece dentro de nossa cabeça, não é? Se fosse possível fazer alguma coisa física, como assassinar Billy Fawcett ou esmagá-lo como a uma barata, isso talvez facilitasse as coisas. Entretanto, fico impotente, se minha psiquê dá saltos como um idiota aos berros, sempre que o nome desse homem vem à baila ou eu me lembro dele.

— Foi o que aconteceu no Natal, quando a beijei atrás das cortinas da sala de bilhar?

Judith ficou tão constrangida pela recordação, por Edward apenas mencionar o incidente, que podia sentir o rubor, como fogo, esgueirando-se para suas faces.

—Não foi nem um pouco como Billy Fawcett, Edward. Nem pense nisso. Foi apenas que, quando você... você me tocou... tudo deu errado.

— Acho que você ficou traumatizada.

Ela se virou para ele, quase chorando de desespero.

— E por que não consigo livrar-me disso? Não quero viver dessa maneira pelo resto da vida. E continuo com medo dele, porque me odeia demais...

— Por que ele a odeia tanto?

— Porque eu não o deixaria aproximar-se de mim. E porque tia Louise, quando morreu, me deixou todo o seu dinheiro.

— Entendo. Eu não sabia disso.

—Recomendaram-me que nunca dissesse a ninguém. Não que seja um segredo, mas porque a srta. Catto disse que era vulgar falar sobre dinheiro. Sua mãe sabe, naturalmente, e seu pai também, mas isso é tudo.

— Um monte de dinheiro? Judith assentiu, a contragosto.

— Oh, mas é absolutamente maravilhoso!

—Sim, é como diz. Isto significa que posso comprar presentes para as pessoas e agora tenho o meu próprio carrinho.

— E, por causa disso, Billy Fawcett nunca a perdoará?

— Ele esteve no funeral de tia Louise. Naquele dia, dava a impressão de que gostaria de matar-me.

Agora, Edward sorriu.

— Se apenas o querer matasse, todos nós há muito estaríamos mortos. — Ele amassou o toco do cigarro, passou os braços em torno dela e inclinou-se para beijar-lhe a face. — Querida Judith... Que tempestade tão desagradável em um copinho d'água! Quer saber a minha opinião? Acho que você precisa de um catalisador, de qualquer espécie. Não me pergunte qual, mas de repente pode acontecer algo que dissipará seus temores e a deixará livre de todo esse tormento. Não deve permitir que uma recordação infeliz se coloque entre você e o amor. É uma garota doce demais para isso. E nem todo homem será tão constante e paciente como eu.

— Oh, Edward, não sabe o quanto lamento...

— Nada existe para lamentar. Apenas, lembre-se de contar-me quando tudo isso tiver ficado para trás. E agora, creio que realmente devo levá-la para casa. Foi uma noite bastante movimentada.

— O melhor de tudo foi ter você aqui.

— Quando é que volta para Nancherrow?

— No domingo da próxima semana.

— Estaremos à sua espera.

Edward levantou-se e esperou até ela conseguir sair do apertado banco. No exterior, a noite começava de fato. O sol já se fora, escondendo-se atrás do mar, e o céu ostentava uma tonalidade escura de azul-safira. Pequenas ondas lambiam o molhe, e o porto estava tomado pelas luzes-guias dos barcos pesqueiros. Ainda havia bastante gente por ali, aproveitando a quentura deixada pelo crepúsculo e relutando em encerrar o dia indo para casa. Billy Fawcett, no entanto, já se fora.

Edward tomou o braço de Judith e, juntos, caminharam lentamente de volta ao lugar em que deixara seu carro.

Ele telefonou na manhã seguinte. Judith estava na cozinha, ajudando a sra. Warren com a louça do café da manhã, quando surgiu Ellie, após subir correndo a escada que vinha da mercearia.

— Telefone para você, Judith. Ele disse que é Edward.

— Edward! — A sra. Warren exibiu um ar malicioso. — Ele não perde tempo!

Judith fingiu não ter ouvido. Sem tirar o avental de listras azuis e brancas, desceu ao andar de baixo e entrou no escritório do sr. Warren.

— Edward?

— Bom-dia.

— São apenas nove horas. Por que está telefonando?

— Queria perguntar se você dormiu bem.

— Oh, que bobagem! Claro que dormi. Lamento o que aconteceu ontem à noite, mas não chegou a ser um contratempo grande que eu não pudesse controlar. Chegou bem em casa? Ora, mas que pergunta idiota, é claro que chegou.

— Sim, cheguei. Só que... — ele vacilou. — Este é o outro motivo de meu telefonema. A verdade é que estamos às voltas com um ligeiro pânico por aqui.

O coração de Judith ficou apertado.

— Aconteceu alguma coisa?

—Não, quero dizer, pelo menos por enquanto. Tia Lavinia passou mal esta noite. Aparentemente, esteve fazendo jardinagem anteontem e demorou mais do que o costumeiro, de modo que pegou um resfriado. Foi para a cama, mas seu estado piorou e agora declarou-se uma pneumonia. A pobre Isobel ligou para Mary Millyway, e o médico está indo e vindo. Também há uma enfermeira cuidando da velhinha o tempo todo, mas a verdade é que estamos um tanto preocupados. Tudo aconteceu muito de repente.

— Oh, Edward, isso é terrível... — Tia Lavinia lhe parecera indestrutível. — Ela não vai morrer, vai?

— Bem, tia Lavinia é muito idosa. Todos temos que morrer um dia, mas nenhum de nós deseja que a hora dela já tenha soado.

— Sua mãe está em casa?

— Papai ligou para ela ontem à noite, já bem tarde. Mamãe deve chegar hoje.

— E quanto a Athena? Athena adora tia Lavinia!

— Athena partiu para a Escócia com Rupert Rycroft... Creio que eles viajaram no começo da semana. Ficamos indecisos entre dizer ou não a ela, mas papai decidiu que, se o pior acontecer e Athena nem mesmo ficar sabendo que tia Lavinia estava doente, bem, ela nunca o perdoará. Ele conseguiu o número do telefone com mamãe e fez uma ligação interurbana para algum vale remoto qualquer, mas Athena já havia partido para as montanhas e o único recurso foi deixar-lhe um recado.

— Pobre Athena. Você acha que ela virá em casa?

— Não sei. É uma viagem e tanto. Ainda vamos ver.

— E Loveday? Ela está bem?

— Perfeitamente bem. Um pouco lacrimosa, mas Mary Millyway é o próprio consolo maternal, e Loveday estará ótima, assim que mamãe estiver novamente em casa.

— Você já foi ver tia Lavinia?

—Papai esteve lá. Ela o reconheceu, mas é evidente que se encontra bem mal. Se eu conseguir o sinal verde, talvez vá à Dower House com ele à tarde.

—A situação não me parece muito esperançosa.

— Não fique desanimada. A velhinha é um osso duro de roer. O mais provável é que ainda enterre todos nós.

—Posso voltar hoje para Nancherrow, se isso for de alguma ajuda.

—Aí está uma coisa que não deve fazer. Só lhe contei, imaginando que poderia ficar aborrecida se ninguém contasse. Sei que seus sentimentos por tia Lavinia são bem semelhantes aos de todos nós, mas não interrompa suas férias. Nós a veremos domingo que vem ou qualquer outro dia. E, incidentalmente, Gus também estará aqui. Havia um recado para mim, quando cheguei ontem à noite. Virá da Escócia de carro e já se encontra a caminho.

— Oh, Edward! Que ocasião imprópria para mais visitantes! Você não poderia avisá-lo?

— Não. Não sei onde ele está. Provavelmente Birmingham ou qualquer outro lugar aborrecido. Será impossível interceptá-lo.

— Pobre homem. Vai chegar para uma espécie de pandemônio.

— Oh, ficará tudo bem. Ele é um sujeito de boa natureza. Saberá compreender.

Judith concluiu que os homens — inclusive Edward — às vezes podiam ser bem pouco sensíveis. Ele passara a vida inteira convidando amigos para Nancherrow, aceitando como naturais o rebuliço doméstico e a organização que tais prolongadas visitas envolviam. Agora, ela podia fazer um retrato mental da pobre Mary Millyway, de braços com uma crise na família, o suficiente para ocupar-lhe todo o tempo, mas tendo que enfrentar uma tarefa extra: alertar a sra. Nettlebed para o fato de que haveria mais uma boca a ser alimentada, apanhar roupas de cama limpas nos armários onde eram guardadas, incumbir Janet de aprontar um dos quartos vagos, providenciar toalhas e sabonetes novos, checar cabides no guarda-roupa e prover a lata na mesa de cabeceira com biscoitos para chá.

— Talvez eu devesse voltar.

— De maneira nenhuma! Eu a proíbo, ouviu bem?

— Está certo. Entretanto, sinto muito por vocês. Dê lembranças minhas a todos. Abrace seu pai por mim.

— Farei isso. E não fique preocupada.

— Um abraço para você também.

—O mesmo, em retribuição. — Ela podia sentir o riso na voz dele. — Até breve, Judith.

Ao volante de seu Lagonda verde-escuro, Gus Callender deixou Oke-hampton para trás e subiu com ímpeto a íngreme ladeira que o levaria para fora daquela cidadezinha-sede de feira de gado, para penetrar na região mais alta que tinha pela frente. Era uma clara manhã de agosto, e ventava muito, tudo em torno de Gus era agradavelmente novo e desconhecido, porque nunca antes viajara por aquelas partes. Tratava-se de uma verdejante zona rural de pastagens e campos onde já fora feita a colheita, jazendo dourada ao sol dos fins de verão. Na distância frisas de olmos antigos marcavam os limites das sebes de árvores.

Ele já levava dois dias dirigindo, sem pressa de chegar, apreciando a liberdade de estar sozinho e o satisfatório desempenho de seu possante carro. (Gus comprara o Lagonda um ano atrás, com o dinheiro ganho em seu vigésimo primeiro aniversário, sendo aquele o melhor presente que já tivera.) Abandonar o lar havia sido um pouco difícil, é claro, pois seus pais achavam que, já tendo passado aquelas duas semanas na França, ele se daria por satisfeito em estar com eles durante o resto das férias. Entretanto, Gus explicara, bajulara e prometera voltar sem demora, de modo que sua mãe acabou encarando a situação da melhor maneira possível, e despediu-se dele corajosamente, acenando o lenço como se fosse uma pequena bandeira. A despeito de todas as suas resoluções, no entanto, ele fora momentaneamente tomado por um ridículo senso de culpa, mas assim que se viu fora de vista conseguiu expulsar aquilo da mente sem grande dificuldade.

Gus dirigiu de Deeside a Carlisle, depois de Carlisle a Gloucester. Agora cobria a última parte da longa jornada. Depois da Escócia (chuvosa) e das Idlands (nubladas), era como chegar a um mundo inteiramente novo, banhado de sol e pastoral. No topo da comprida colina, Dartmoor surgiu avista, os desérticos quilômetros de elevações cheias de penhascos e brejos mudando sutilmente de cor, quando encapeladas sombras de nuvens rolavam na paisagem, sopradas pelo vento que vinha do oeste. Ele viu as formas curvilíneas de encostas que pareciam saltar para o céu, o verde-esmeralda dos pântanos, os dól-mens de granito, esculpidos pelo vento em esculturas primevas e, ainda assim, singularmente modernistas. Seu olho de pintor foi capturado, e seus dedos comichavam por lápis e pincéis. Ele gostaria de fazer alto de vez em quando, de tentar captar de algum modo, para sempre, este lugar e esta luminosidade em seu bloco de desenho.

Entretanto, sabia que, se parasse, lá permaneceria pelo resto do dia, quando era aguardado em Nancherrow durante o correr daquela tarde. A pintura podia esperar. Ele pensou na França e no quadro que pintara da deliciosa villa dos Beath. Ao pensar na villa, começou a cantar a canção que sempre seria o tema daquelas férias, ouvida no rádio ou tocada na vitrola, enquanto tomavam banho de sol ao lado da piscina ou ficavam sentados na varanda durante os azulados entardeceres, bebendo vinho, contemplando o sol que se escondia atrás das montanhas do Midi, e as luzes de Silence, acendendo-se de uma em uma, cintilando no lado oposto da colina como enfeites de Natal em uma árvore escura

O mar

Visto a dançar no seio de golfos claros

Tem brilhos argentinos

O mar

Cintila mutante

Na chuva.

Lauceston. Gus rodou por uma pontezinha e percebeu que já cruzara os limites do condado. Estava na Cornualha. A frente estendia-se a vastidão da Charneca Bodmin. Em algum lugar por lá havia um pub chamado Jamaica Inn. Eram onze e meia da manhã e, por um momento, ele vacilou entre parar lá para um drinque e comer alguma coisa ou seguir em frente. Optou pela segunda alternativa. Em vez de parar, aceleraria para Truro. Diante dele espichava-se a estrada vazia. Gus acelerou e entregou-se a uma desacostumada e não característica euforia.

O mar

No céu de estio confunde

Seus alvos carneiros

Com os anjos tão puros...

O mar, pastor do azul

Infinito..

Truro dormitava em seu vale, ao sol do meio-dia. Aproximando-se, ele avistou a torre da catedral e o brilho prateado da água marginada de árvores. Entrou na cidade, rodou para a ampla rua principal, estacionou diante do "Leão Vermelho", entrou e caminhou para o bar. O interior estava muito escuro, apainelado em madeira, cheirando a cerveja, mas fresco. Um ou dois homens de idade sentavam-se por ali, lendo jornais e fumando seus cachimbos, mas Gus preferiu instalar-se no bar e, tendo pedido sua dose de cerveja, perguntou ao barman se era possível comer alguma coisa.

— Não. Nós não servimos refeições aqui embaixo. Para comer alguma coisa, terá de subir ao refeitório.

— Preciso reservar mesa?

— Mandarei um recado para o chefe dos garçons. Está sozinho?

— Sim, estou.

O barman pousou sobre o balcão a cerveja que ele pedira.

— Está viajando?

— Sim. Tenho o meu carro lá fora.

—Vem de muito longe?

— Na verdade, venho. De Aberdeen.

— Aberdeen? Isso fica lá na Escócia, não? Uma viagem puxada. Há quanto tempo está rodando?

— Dois dias.

— Cobriu um bocado de chão. Ainda falta muito?

— Estou perto do fim. Irei além de Penzance.

— Fica na direção de Land's End, não?

— Mais ou menos isso.

— Mora na Escócia?

— Moro. Nascido e criado lá.

— Pois se me permite dizer, não tem o menor sotaque. Tivemos um escocês aqui, faz um ou dois meses, oriundo de Glasgow, e eu não conseguia entender uma palavra do que ele dizia.

— Os nativos de Glasgow têm sotaque muito forte.

— Sem dúvida. Forte de verdade.

Dois novos clientes cruzaram a porta, o barman pediu licença, deixou Gus e foi servi-los. Sozinho, Gus pegou seu maço de cigarros e e acendeu um. No fundo do bar, atrás das prateleiras de garrafas, a parede era forrada por um espelho. Em suas lodosas profundidades, além das garrafas, fragmentos de seu próprio reflexo devolviam-lhe o olhar. Um jovem de cabelos negros, parecendo — decidiu ele — mais velho do que realmente era. Olhos escuros, cabelos escuros, pele pálida, barbeado. Usava uma camisa azul de algodão e tinha ao pescoço um lenço fazendo às vezes de gravata, mas mesmo esta informalidade em nada contribuía para amenizar a imagem de um indivíduo sério. Inclusive, sombrio.

Alegre-se, sujeito taciturno!, disse para seu reflexo. Você está na Cornualha. Conseguiu! Finalmente chegou aqui! Como se seu reflexo já não soubesse. Cobriu um bocado de chão, havia observado o barman, porém dissera uma verdade mais sutil do que poderia perceber.

Gus ergueu o copo para si mesmo. Você cobriu um bocado de chão. Depois bebeu a cerveja fresca, de sabor silvestre.

Edward Carey-Lewis fora o primeiro que começara a chamá-lo de Gus, e o apelido pegara. Antes disso ele havia sido Angus, o filho único de pais idosos. Seu pai, Duncan Callender, tinha sido um sagaz e bem-sucedido homem de negócios de Aberdeen, que se elevara de um começo humilde à custa do próprio esforço. Quando da chegada de Angus a este mundo, seu pai já amealhara uma sólida fortuna no negócio de aparelhamento para barcos. No correr dos anos, os interesses dele também se tinham diversificado, incluindo um negócio de ferragens por atacado e grandes investimentos imobiliários na cidade, como prédios de apartamentos para alugar e ruas de casas geminadas para moradores de baixa renda.

A infância de Angus transcorrera no coração de Aberdeen, em uma sólida casa de granito no centro de um pequeno terreno murado. O terreno era gramado na frente do prédio e também nos fundos, onde ficava o varal de roupas lavadas, com um pequeno trecho de terra onde sua mãe cultivava feijão e couve. Era um pequeno mundo, para um garotinho que ali se sentia absolutamente feliz.

Entretanto, Duncan Callender não estava satisfeito. Chegara até aquela condição graças ao seu trabalho árduo, honestidade e justeza, tendo merecido o respeito de empregados e colegas, porém isso não era o bastante. Ele acalentava ambições para o filho único, estando determinado a criá-lo e educá-lo como um cavalheiro.

Desta maneira, quando Angus fez sete anos, a família mudou-se. Da casa confortável e despretensiosa que fora o lar até então, transferiram-se para uma enorme mansão vitoriana em uma aldeia às margens do rio Dee. Dali, Duncan Callender seguia diariamente de trem para seu escritório em Aberdeen, enquanto Angus e a mãe ficavam sozinhos, procurando tirar o melhor proveito da situação. Após as ruas da cidade, com suas lojas e os familiares bondes sacolejantes, aquelas colinas majestosas e os grandes vales de Deeside eram, não só estranhos, como aterradores — e a nova moradia o era apenas um pouquinho menos com sua imensidão de enfumaçadas vigas de carvalho e vitrais, tapetes axadrezados e lareiras onde seria possível assar-se um boi, se alguém tivesse tal desejo.

Além disso, para dirigir tão maciço sistema, tivera de ser contratada uma numerosa criadagem. Se antes a sra. Callender conseguira dar boa conta dos serviços domésticos e culinários, agora esperava-se que desse ordens a uma equipe residente de seis empregados e dois jardineiros, um dos quais morava na casinhola junto ao portão de entrada. Ela era uma devotada esposa e mãe, porém de natureza simples, o que lhe tornava uma penosa provação estar sempre lutando para manter as aparências.

Em Aberdeen, ela se sentia à vontade; conhecia seu próprio lugar no mundo e havia segurança na dignidade de um lar modesto e bem dirigido. Em Deeside, no entanto, sentia-se inteiramente deslocada. Havia perdido sua identidade. Era uma tarefa quase impossível comunicar-se com os moradores da aldeia, isto a convencendo de que os rostos severos e as frases monossilábicas em resposta aos seus tateantes avanços provavam que eles a tinham em baixa conta, não estando impressionados pela riqueza e estilo de vida daqueles recém-chegados.

Os outros vizinhos dela, as antigas famílias nobres que tinham vivido em seus castelos e propriedades durante gerações, eram ainda mais aterrorizantes, e tão estranhos como os seres de um outro planeta. Lady Isto e o Marquês Aquilo, com seus narizes aquilinos e seus murchos tweeds. A sra. Huntingdon-Gordon, que criava cães labradores e reinava como um general em uma arcaica fortaleza na colina. E o Major-general Robertson, que aos domingos lia as lições na igreja, dando a sensação de latir ordens para a batalha e nunca se preocupando em baixar a voz, ainda que estivesse sendo rude com o ministro.

Foi um período bastante difícil, porém não durou muito tempo para Angus. Aos oito anos de idade, ele foi despachado para um internato, um caro colégio preparatório em Perthshire, o que virtualmente encerrou sua infância. A princípio, os colegas implicavam e debochavam dele, fosse por seu sotaque de Aberdeeen, por seu kilt ser comprido demais, por usar o modelo errado de caneta-tinteiro — e, como se tornou o primeiro da classe, ganhou o apelido de "queima-pestanas". Não obstante, era um garoto musculoso, bom no futebol e, após arrancar sangue do nariz do valentão entre os alunos menores, à vista de todos que se encontravam no pátio de recreio, foi deixado em paz e rapidamente ajustou-se. Quando voltou a Deeside para os feriados do Natal, tinha crescido cinco centímetros, e seu sotaque era algo perdido no passado. A mãe chorou em segredo pelo filho que sabia ter perdido, porém Duncan Callender ficou deliciado.

—Por que não convida algum de seus novos colegas para vir aqui? — ele havia perguntado.

Gus, entretanto, fingira nada ter ouvido, preferindo escapulir da sala para ir andar de bicicleta fora de casa.

Terminados os anos de ensino preparatório, transferiu-se para Rugby, onde ganhou a reputação de atleta completo. Foi neste período que descobriu as alegrias da Sala de Arte e um dom latente para desenhar e pintar, uma aptidão que nunca julgara possuir. Com o incentivo de um compreensivo professor de arte, ele começou a encher um caderno de desenho, enquanto isso desenvolvendo seu próprio estilo. Eram desenhos a lápis, coloridos em pálidas tonalidades... os campos de jogos, um aluno trabalhando em uma roda de oleiro, um professor caminhando apressado em um pátio ventoso, a caminho de sua sala de aula com um punhado de livros sob o braço, a toga negra esvoaçando como polpudas asas negras...

Certo dia, folheando um exemplar de The Studio, leu um artigo sobre os pintores da Cornualha, a Escola Newlyn. Ilustrando o escrito, havia uma lâmina colorida de um trabalho de Laura Knight: uma jovem em pé sobre uma rocha, contemplando o mar. O mar era azul-pavão, porém a jovem usava uma suéter, de maneira que a temperatura não devia ser tão quente, e seus cabelos eram ruivo-acobreados, presos em uma trança única que lhe caía sobre um ombro.

Com a atenção despertada, ele leu o artigo e, por algum motivo, ficou com a imaginação em chamas. Cornualha. Talvez pudesse tornar-se um artista profissional e instalar-se na Cornualha, como tantos já haviam feito antes. Usaria roupas bizarras manchadas de tinta, deixaria o cabelo crescer, fumaria cigarros Gitanes, e sempre teria à sua volta uma jovem fascinada e dedicada, de tendências domésticas, é claro, mas bonita. Ela viveria em sua companhia num chalé de pescador ou talvez em um celeiro adaptado, com uma escada externa de blocos de granito e uma porta pintada de azul, havendo em torno gerânios escarlates em vasos de cerâmica...

A ilusão era tão real, que ele quase sentia o calor do sol e o cheiro do ar marinho carregado com o perfume de flores silvestres. Contudo, era tudo uma fantasia. Erguendo o rosto, contemplou, através da sala de arte deserta e de uma janela alta, um céu invernal dos condados centrais do país. Uma fantasia de escolar. Ele jamais seria pintor profissional, porque já se comprometera com matemática e física, encaminhava-se para a Universidade de Cambridge e, de lá, sairia engenheiro.

De qualquer modo, sonhos e fantasias eram por demais preciosos para serem totalmente abandonados. Pegando seu canivete, destacou cuidadosamente a lâmina colorida. Enfiou-a em uma pasta que continha alguns dos seus próprios desenhos e, ignorando a consciência, fez a reprodução desaparecer como que por encanto. Mais tarde, montou-a e emoldurou-a, tornando a jovem desconhecida da Cornualha uma interessante decoração para as paredes de seu estúdio.

Rugby também expandiu sua experiência em outras direções. Embora por demais reservado para fazer amigos íntimos, ele era uma figura popular, sendo convidado vez por outra a passar parte das férias e feriados na casa de campo de outras pessoas, no Yorkshire, em Wiltshire ou Hampshire. Tais convites eram aceitos polidamente, ele era acolhido com gentileza e fazia o possível para não cometer nenhuma gafe social óbvia.

— E de onde vem você? — perguntava-lhe uma senhora, durante a primeira xícara de chá.

— Da Escócia.

— Rapaz de sorte! De que região da Escócia?

— Meus pais têm uma propriedade em Deeside.

E então, antes que ela começasse a falar sobre pesca de salmões, tambores rufando junto ao Dee e gaios silvestres das charnecas, ele mudava de assunto e pedia uma fatia de bolo de gengibre. Depois disso, com alguma sorte o tema não voltaria mais à baila.

Após tais visitas, a volta para casa invariavelmente tinha algo de um anticlímax. A verdade é que ele se distanciara dos pais idosos, a casa hedionda parecia-lhe claustrofóbica e os dias intermináveis eram interrompidos somente pela chegada de demoradas e tediosas refeições. As atenções amorosas da mãe o asfixiavam, e o orgulho e o interesse constrangedores do pai somente pioravam a situação.

Entretanto, nem tudo era sombrio. Ao completar dezessete anos, ele recebeu uma dádiva inesperada, embora sendo também uma confusa graça divina. Parecia ter corrido pelos arredores a nota de que o rapaz Callender, apesar da nítida desvantagem de seus pais, não apenas era atraente, como perfeitamente apresentável e, caso alguma anfitriã estivesse necessitando de um homem disponível... Começaram então a chegar convites impressos, solicitando a presença de Angus em várias funções, às quais seus pais não eram convidados. Eram festas com danças escocesas e bailes de verão, onde suas parceiras tinham nomes como Lady Henrietta McMillan ou Honorável Camilla Stokes. A essa altura, ele já dirigia carro e, ao volante do imponente Rover do pai, comparecia obedientemente a estes eventos formais, vestindo com correção o traje a rigor das Highlands, de camisa branca engomada e gravata preta. Seu treinamento naquelas casas de campo do Yorkshire, Wiltshire e Hampshire agora se revelava útil, permitindo-lhe enfrentar a formalidade de jantares de gala, seguidos por danças que entravam pela madrugada — sorrir, mostrar-se atencioso para com as pessoas certas — desta maneira conquistando a aprovação geral.

Não obstante, tudo aquilo possuía certa semelhança com uma representação. Ele continuava sendo quem era, sem nenhuma ilusão sobre seu ambiente ou filiação. Dirigindo pela longa estrada na volta para casa após um destes bailes, em meio à paisagem penumbrosa e vazia, com o céu clareando ao primeiro toque do alvorecer, ocorria-lhe o pensamento de que, a partir dos sete anos de idade e depois que a família deixara Aberdeen para sempre, era-lhe impossível recordar algum lugar onde se sentira confortavelmente em um lar. Certamente, não na casa de seu pai. Nem na escola. E tampouco nas hospitaleiras casas de campo do Yorkshire, Wiltshire e Hampshire, onde havia sido tão bem acolhido. Por mais que se divertisse, sempre havia a sensação de estar à margem, observando os demais. E ele queria pertencer, queria ser parte.

Um dia, talvez isso acontecesse. Como amar alguém. Ou ouvir uma voz. Ou entrar em um aposento estranho e identificá-lo imediatamente, mesmo que nunca o tivesse visto antes na vida. Um lugar onde ninguém precisaria condescender, onde ele não teria que ser rotulado etiquetado. Onde fosse bem-vindo, simplesmente por ser ele próprio. "Angus, meu caro! Como foi bom ter vindo, e como é formidável ver você!"

Tal estado de coisas, no entanto, iria melhorar inesperadamente. Passados os instáveis anos de adolescência que, para Gus, foram mais penosos e difíceis do que para a maioria de seus contemporâneos, Cambridge foi uma revelação, ao mesmo tempo que uma liberação. Desde o primeiro momento, achou ser aquela a cidade mais encantadora que já conhecera, e Trinity um sonho de arquitetura. Durante as primeiras semanas iniciais, passou muito do seu tempo de lazer simplesmente caminhando, aprendendo pouco a pouco o seu rumo através das ruas e pátios antigos, imemoriais. Criado como presbiteriano, comparecia ao culto dominical em King's Chapei pela mera alegria de ouvir o coro, e foi onde teve contato, pela primeira vez, com o gregoriano "Miserere". Nesse momento, ele se sentiu invadir por um júbilo irracional, enquanto ouvia as vozes dos alunos pairando em alturas que certamente seriam inatingíveis, exceto e talvez para os anjos.

Após algum tempo, à medida que se foi familiarizando com seu novo ambiente, o impacto visual de Cambridge espicaçou-lhe o instinto de pintor e, antes de muito tempo, seu caderno de desenho estava cheio de rápidos esboços feitos a lápis. Trechos das margens do rio orladas de salgueiros, nos fundos dos prédios da universidade, a Ponte dos Suspiros, os pátios internos de Corpus Christi, as torres gêmeas de King's College, silhuetadas contra a imensa abóbada celeste acima da planura dos pântanos... Para ele, foi um desafio o próprio tamanho e a pureza de proporções e perspectivas. Os brilhantes matizes do céu, dos relvados, os vitrais, a folhagem de outono, tudo lhe gritava um pedido para ser posto no papel. Ele se sentiu circundado, não somente por profundos poços de aprendizado, mas também por uma beleza não pertencente à natureza que, espantosamente, havia sido criada pelo homem.

Sua faculdade era a Pembroke e seu estudo a engenharia. Edward Carey-Lewis também estudava na Pembroke, porém inglês e filosofia. Os dois haviam sido calouros na mesma época, o período letivo de Michaelmas — as festas de São Miguel, 29 de setembro — em 1937, mas somente no último período de seu segundo ano é que ambos se conheceram e tornaram-se amigos. Havia motivos para isto. Como estudavam matérias diferentes, tinham professores também diferentes. Seus quartos situavam-se em partes distintas de Pembroke, de modo que ficava excluída a possibilidade da conversa normal e casual de vizinhos de acomodações. Por outro lado, enquanto Gus jogava críquete e rúgbi, Edward parecia não demonstrar qualquer interesse por jogos de equipe, preferindo passar a maior parte de seu tempo no Clube de Aviação da Universidade, esforçando-se em conquistar o brevê de piloto.

Em vista disso, seus caminhos raramente se cruzavam, mas era inevitável que Gus visse Edward pelos arredores. Podia ser no extremo oposto do Refeitório da Faculdade, nas ocasiões formais em que todos os calouros eram convocados para jantar com certa cerimônia. Ou descendo a Rua Trinity em seu Triumph azul-escuro, sempre com uma ou duas belas garotas ao lado. Por vezes era divisado entre um pub apinhado, membro de algum grupo ruidoso, em geral aquele que pagava a conta de uma rodada de drinques. E a cada encontro, Gus admirava-se por achá-lo ainda mais agraciado, confiante, atraente e satisfeito consigo mesmo. Uma instintiva antipatia (nascida da inveja? — nem para si mesmo ele admitiria isto) transformou-se em aversão, mas, com nata discrição, Gus guardou seus sentimentos para si mesmo. Não havia por que fazer inimigos e, por outro lado, ele jamais havia trocado uma palavra com o indivíduo em questão. Acontecia apenas que, nele, havia algo bom demais para ser verdadeiro. Edward Carey-Lewis. Homem nenhum podia ter tudo. Deveria haver algum defeito oculto, porém não cabia a Gus descobrir qual.

Assim, ele deixou tudo como estava e concentrou-se nos estudos. O inconstante destino, no entanto, tinha outra coisa em mente. No período letivo de verão em 1939, Gus Callender e Edward Carey-Le-wis receberam quartos no mesmo pavimento em Pembroke, além de partilharem uma cozinha em miniatura, conhecida como "cozinha de acampamento". No final de certa tarde, quando fervia uma chaleira para um bule de chá, Gus ouviu passos subindo a escada de pedra às suas costas, os quais depois faziam uma pausa diante da porta aberta. Em seguida, ouviu uma voz:

— Olá!

Virando-se, ele viu Edward Carey-Lewis parado na soleira com uma mecha de cabelos louros caída na testa e o comprido cachecol da faculdade enrolado em torno do pescoço.

— Olá — respondeu.

— Você é Angus Callender.

— Exatamente.

— Edward Carey-Lewis. Parece que somos vizinhos. Que tal seus aposentos?

— Não tenho queixas.

— Preparando chá? — perguntou Edward descaradamente.

— Sim. Aceita?

— Você tem alguma coisa para comer?

— Tenho. Bolo de frutas.

— Ótimo. Estou morrendo de fome.

Assim, Edward foi para o quarto de Gus e os dois sentaram-se diante da janela aberta, bebendo chá em canecas. Gus fumou um cigarro e Edward comeu a maior parte do bolo de frutas. Conversaram. Sobre nada em particular, mas, dentro de quinze minutos, Gus percebia que, no tocante a Edward Carey-Lewis, estivera redondamente enganado, porque seu vizinho de quarto não era esnobe e nem imbecil. Seus modos francos e a expressão sincera dos olhos azuis eram absolutamente genuínos, e sua autoconfiança não se originava de uma criação refinada, mas do fato de ser claramente ele próprio, de não se considerar melhor nem pior do que qualquer dos seus contemporâneos.

Com o bule vazio e o bolo quase terminado, Edward levantou-se e começou a bisbilhotar os aposentos de Gus, lendo os títulos de seus livros ou folheando alguma revista.

— Gosto da sua pele de tigre posta diante da lareira.

— Comprei-a em uma loja de quinquilharias.

Agora, Edward olhava para os quadros de Gus, indo de um para outro, como um homem pretendendo comprar.

— Bonita aquarela. Onde é isso?

— O Distrito dos Lagos.

—Você tem uma coleção e tanto aqui. Comprou todos os quadros?

— Não. Eu os pintei. Eu mesmo os fiz.

Edward virou a cabeça e ficou olhando para ele, boquiaberto.

— São mesmo obras suas? Mas que sujeito talentoso você é! Que bom saber que, se for reprovado nos exames finais, poderá ganhar a vida sempre manejando os pincéis. — Ele voltou à sua inspeção. — Não faz pinturas a óleo?

— Faço. Às vezes.

— Esta aqui é coisa sua?

— Não — admitiu Gus. — Fico envergonhado em dizer, mas eu a destaquei das páginas de uma revista, quando estava na escola. Gosto tanto desse quadro, que o levo comigo para todo canto e o penduro onde possa contemplá-lo.

—Foi a garota bonita que enfeitiçou sua mente de garoto ou foram as rochas e o mar?

— Acho que a composição como um todo.

— Quem é o artista?

— Laura Knight.

— Isto é a Cornualha — disse Edward.

— Eu sei, mas como pode afirmar?

— Não poderia ser nenhum outro lugar. Gus franziu a testa.

— Você conhece a Cornualha?

— Devo conhecer, porque moro lá. Sempre morei. É minha terra natal.

Após um momento, Gus exclamou:

— Que extraordinário!

— O que é extraordinário?

— Não sei ao certo. Acontece que sempre senti um enorme interesse pelos pintores da Cornualha. Acho surpreendente que tantas pessoas incrivelmente talentosas se reunissem em um lugar tão remoto, mas, ainda assim, permanecessem tão influentes.

— Não entendo muito disso, porém Newlyn está transbordando de artistas. Há colônias deles. São como camundongos.

—Já conheceu algum deles? Edward negou com a cabeça.

— Não creio. Penso que sou um tanto ignorante no que se refira a arte. Em Nancherrow temos muitas telas sobre temas esportivos e sombrios retratos de família. Você deve saber como são. Ancestrais pendurados nas paredes, ao lado de seus cães. — Ele pensou por um momento. — Com exceção do de minha mãe, que foi pintado por de Lászió. É um quadro maravilhoso. Está colocado na sala de estar, acima da lareira. — De repente, Edward pareceu perder o interesse. Sem-cerimônia, bocejou com vontade. — Céus, como estou cansado! Acho que vou tomar um banho. Obrigado pelo chá. Gostei de seus aposentos. — Encaminhou-se para a porta, abriu-a e então se virou. — O que vai fazer hoje à noite?

— Não muita coisa.

—Alguns de nós iremos de carro a Grantchester para um drinque no pub de lá. Quer ir conosco?

— Eu gostaria muito. Obrigado.

— Baterei à sua porta às quinze para as sete.

— Está bem. Edward sorriu.

—Até lá então, Gus.

Gus pensou não ter ouvido bem. Edward já saía do quarto.

— Como foi que me chamou?

A cabeça de Edward assomou pela abertura da porta.

— Gus.

— Por quê?

— Suponho que penso em você como Gus. Não o imagino como Angus. Angus tem cabelos vermelhos, sapatões de solas muito grossas e volumosas calças presas abaixo dos joelhos, feitas de tweed amarelo-avermelhado.

Gus não se conteve e riu.

— É bom tomar cuidado. Eu venho de Aberdeenshire. Edward, entretanto, não se deu por achado.

—Neste caso — replicou — você sabe bem do que estou falando.

Após dizer isto, ele desapareceu de cena, fechando a porta atrás de si.

Gus. Ele era Gus. E Edward possuía tal influência, que depois daquela primeira noitada, ele nunca mais foi chamado por outro nome.

De repente, sentiu uma fome devoradora. No andar de cima, no refeitório cheio apenas pela metade — bolorento, velho-mundo, tapetes turcos e toalhas de mesa engomadas, vozes murmurantes acima do cauto retinir de talheres — ele saciou a fome com sopa, carne cozida com cenouras e pudim. Então, sentindo-se um novo homem, pagou a conta e escapou novamente para o ar livre. Caminhou por alguns momentos pelas calçadas de laje até encontrar uma livraria, onde entrou e comprou um mapa rodoviário da região oeste da Cornualha. De volta ao carro, acendeu um cigarro, abriu o mapa e planejou sua rota. Nancherrow. Pelo telefone, Edward dera-lhe algumas vagas instruções, mas agora, trabalhando na escala de uma polegada por milha, Gus decidiu que somente um imbecil não encontraria o caminho. De Truro até Penzance, e depois pela estrada litorânea que levava a Land's End. Seu dedo traçou a rota deslizando pelo papel rígido e parou em Rosemullion, claramente marcada com igreja, rio e ponte. Depois vinha Nancherrow, a palavra escrita em itálico, uma linha pontilhada indicando a estrada de aproximação, um diminuto símbolo representando a casa. Era bom encontrá-la ali, registrada por algum geógrafo culto. Isso tornava real o seu destino, não era apenas um nome casualmente pronunciado, nem uma fantasia de sua imaginação. Dobrando o mapa, deixou-o ao seu lado, ajeitou o cigarro e ligou o motor.

Recomeçou a viagem, descendo a erma espinha dorsal do condado, onde saltava aos olhos a evidência de falecidas minas de estanho, com velhas casas de máquinas e escoras desfazendo-se. Nada agradável à vista. Quando chegaria ao mar? Ele estava impaciente pelo mar. Finalmente a estrada fez uma curva ladeira abaixo, à sua frente, e a zona rural começou a mudar. A direita surgiu uma fileira de dunas arenosas em forma de outeiros, em seguida um fundo estuário, para finalmente ser recompensado pela primeira visão do Atlântico. Nada mais do que um vislumbre de ondas verdes quebrando-se em um banco de areia. Além do estuário, a estrada encurvava-se para o interior, e havia pastagens cheias de gado leiteiro, assim como terrenos estendendo-se para o sul com plantações, todos aqueles campos demarcados por irregulares muros de pedras que pareciam ter estado ali desde sempre. Palmeiras cresciam nos jardins de chalés, as casas tinham as paredes caiadas oxidadas pelo tempo, e alamedas estreitas destacavam-se da estrada principal, aprofundando-se em vales arborizados, convidativamente sinalizados por nomes obscuros ou de santos. Tudo parecia dormitar ao sol quente do entardecer. As árvores lançavam sombras escuras que salpicavam o macadame escuro, e havia um extraordinário toque de imemorialidade no ambiente, como se ali sempre fosse verão, com folhas que jamais caíam daquelas árvores antigas, e as suaves curvaturas das terras cultivadas nunca tendo conhecido o cruel açoite dos temporais de inverno.

Pouco mais tarde, Gus viu à frente, cintilando em um clarão de luz difusa, o outro mar, a vasta amplidão da Baía da Montanha, um brado de azul, o horizonte esfumaçado. Um grupo de pequenas embarcações estava na água, talvez uma regata. Impelidos pela brisa, os barquinhos navegavam muito próximos, as velas escarlates enfunadas, rumando para alguma distante bóia de balizamento.

E aquilo era penetrantemente familiar, como se ele já houvesse visto tudo antes, e agora a visão simplesmente retornasse para um lugar há muito conhecido e profundamente amado. Sim. Sim, tudo está aqui. Exatamente da maneira como sempre foi. Exatamente da maneira como eu sabia que seria. O braço protetor do molhe do porto, o agrupamento de barcos com mastros altos, o ar animado pelo grasnido das gaivotas. Um pequeno trem a vapor, sacolejando para fora de uma estação e ganhando a curva do litoral. Uma fileira de casas no estilo Regência, de janelas piscando à vívida claridade, jardins transbordando de pés de magnólia e camélia em flor. E, acima de tudo, fluindo pela janela aberta do carro, o cheiro forte, fresco e salitrado das algas marinhas e do mar aberto.

O mar

Que os embalou

Ao longo de golfos claros

E de uma canção de amor...

O mar

Meu coração embalou

Para a vida...

Tudo fazia parte do todo. Ele se sentiu como um homem retornando às suas raízes. Era como se tudo quanto já fizera, cada lugar onde vivera, houvesse sido tão-somente um tempo de espera, umaintromissão. Era algo estranho, mas, analisando bem, devia ser um lugar que talvez o acolhesse sorridente e de braços abertos.

— Gus! Que bom ver você

Tão visivelmente satisfeito estava ele, que todas as reservas evaporaram-se.

— Digo-lhe o mesmo

— Peço desculpas por tudo isto...

— Eu é que devia desculpar-me..

— Você? Desculpar-se por quê?

— Bem, tenho a impressão de que não devia estar aqui.

— Oh, não diga asneiras Eu o convidei...

— Seu mordomo me falou sobre sua tia estar muito doente. Tem certeza de que minha presença não será inconveniente?

— Sua presença aqui não faria diferença alguma, de uma forma ou de outra. Exceto que ajudará a animar-nos. E quanto a tia Lavinia, ela parece estar resistindo bem. É uma velhota tão teimosa e durona, que me recuso a acreditá-la capaz de fazer outra coisa. E então, foi uma viagem muito longa? Quanto tempo levou? Espero que consiga alguma espécie de boas-vindas, e que Loveday não o deixe entregue a si mesmo. Dei a ela sérias instruções para tomar conta de você.

— E sua irmã se saiu muito bem. Descemos até a enseada.

— As maravilhas nunca cessam! Geralmente, ela nunca é muito social. Agora, venha e conheça meu pai e Mary... —Edward se virou para os outros e parou, franzindo a testa com certa perplexidade. — Bem, parece que Mary desapareceu. — Deu de ombros. — Espero que tenha ido alertar a sra. Nettlebed para que ponha a chaleira no fogo. Bem, enfim, conheça meu pai. Papai!

O coronel estava em absorta conversa com a filha, o que Gus não estranhava em absoluto, porque simplesmente testemunhava, embora pela primeira vez, uma experiência que se tornara de todo identificável através dos artistas da Cornualha, cuja obra havia estudado e seguido com tanta avidez. Laura Knight, Lamorna Birch, Stanhope, Elizabeth Forbes e incontáveis outros. Também recordava sua fantasia da meninice, nascida na sala de arte em Rugby: a de ir morar na Cornualha, abraçar a vida boêmia e pintar. Comprar um chalé branco, banhado pelo sol, e plantar gerânios à entrada. Ele sorriu, lembrando que a fantasia tinha incluído uma vaga e indefinida companhia feminina. Não era nenhuma pessoa em particular e nunca dera a ela um rosto, porém essa criatura teria de ser jovem, é claro, além de bonita e excepcional como modelo a ser pintado e excelente cozinheira. Sua amante, naturalmente. Enquanto dirigia, Gus tinha dado risadas pela inocência de sua perdida juventude e por achar graça dos inofensivos sonhos do menino simplório que então havia sido. Depois cessara de rir daquilo, porque agora que estava aqui, agora que realmente chegara, os sonhos pareciam perfeitamente viáveis, de maneira alguma fora dos limites da possibilidade.

Essas recordações o tinham acompanhado enquanto atravessava a cidade e saía para campo aberto pelo lado oposto. Havia subido uma ladeira, empinada como o teto de uma casa e, alcançado o topo, vira que o terreno tornava a modificar-se abruptamente. Os campos das isoladas propriedades estendiam-se e subiam até as charnecas de tonalidade acobreada, coroadas por dólmens rochosos. A esquerda o mar era onipresente, mas agora seu odor picante estava sufocado pelo cheiro adocicado e musgoso de torrentes e pauis, enquanto chegava aos seus ouvidos, vindo de muito longe, o toque prolongado e borbu-lhante de um sino anunciando que era hora de recolher.

Havia também o outro sonho, há muito esquecido e expulso da mente, mas que de súbito surgia pungente e muito real outra vez: o de que um dia chegaria a uma casa, a um lugar nunca visitado antes, e lá, instantaneamente, absolutamente, saberia que ele pertencia, como nunca pertencera, à sombria mansão de Deeside ou aos lares hospitaleiros de seus colegas de estudos. Cambridge era o mais próximo que conseguira chegar desta fantasia em particular, porém Cambridge era uma universidade, um centro de aprendizado, uma extensão do colégio. Não era de um refúgio que ele precisava, mas de um recanto do mundo no qual pudesse fincar raízes, um lugar para onde retornar, sabendo que sempre o encontraria lá, imutável, sem exigências, cômodo e confortável como um par de sapatos velhos. Um lugar seu. Gus. Caro Gus. Você voltou.

Há muito esquecido. Isso mesmo. Devaneios eram a prerrogativa dos muito jovens. Com certa firmeza, Gus expulsou tudo isso da cabeça e concentrou-se novamente na tarefa imediata de não perder o rumo. Foi então que avistou uma encruzilhada de estradas e um poste sinaleiro de madeira, tendo impresso o nome "Rosemullion", isto o fazendo perceber que havia apenas mais uns quinze quilômetros a percorrer — e o senso comum voou pela janela, sendo substituído pelo irracional excitamento do garoto voltando do colégio para as férias em casa. O retorno ao lar. E isto em si era peculiar porque, para Gus, o retorno ao lar jamais havia sido um pensamento que o enchesse de muito prazer. Pelo contrário, esse retorno se tornara uma espécie de penoso dever que cumpria com forte relutância, voltando lealmente para estar com os pais, mas nunca ficando mais do que uns dois dias, antes de começar a procurar, desesperadamente, qualquer desculpa que lhe permitisse partir. Seu pai e sua mãe eram idosos, de costumes arraigados e pateticamente orgulhosos do filho único, porém isso, por algum motivo, somente piorava as coisas. Não que Gus se envergonhasse deles em qualquer sentido. A verdade era que até sentia orgulho dos dois, e do pai em particular. Entretanto, tornara-se distanciado do velho, pouco tinha em comum com ele, ressentindo-se por ter que procurar coisas para dizer e esforçar-se a fim de manter a conversa mais banal. E tudo isso acontecia porque o valente Duncan Callender decidira que o filho se tornaria um cavalheiro; insistira em uma dispendiosa educação particular, desta maneira afastando Gus de si próprio, enviando-o para um mundo que ele e sua esposa jamais haviam conhecido e que nunca chegariam a conhecer.

Era uma cruel situação. Irônica. Entretanto, não tinha sido Gus que erigira a barreira que jazia entre eles. Mesmo antes de haver deixado Rugby, ele se forçara a entrar em acordo com a incômoda situação e a sua própria consciência intranqüila para, finalmente e com firmeza, liberar-se de todo o senso de culpa. Isto era importante, pois, do contrário, acabaria passando o resto da vida tendo pendurada ao pescoço uma pedra de moinho de culpa.

Loveday colhia framboesas, trancada no viveiro de frutas. Era bom ter alguma coisa para fazer, porque tudo agora estava horrível demais. A ansiedade e o medo pela sorte de tia Lavinia impregnavam a casa como uma nuvem carregada, afetando tudo e todos. No tocante a seu pai, aquilo assumira prioridade inclusive sobre o noticiário e, ao invés de ouvir as notícias no rádio, ele agora passava todo o tempo disponível ao telefone: falando com o médico, com Diana em Londres, recebendo recados que Athena mandava da Escócia e providenciando enfermeiras diárias e noturnas, a fim de que a doente tivesse atendimento constante na Dower House. Houvera alguma discussão quanto a tia Lavinia dever ser removida para o hospital, mas finalmente ficou decidido que os transtornos da viagem em ambulância e a angústia de ver-se em ambiente estranho fariam mais mal do que bem. Assim, ela permaneceria tranqüilamente onde estava, em sua própria casa e na sua própria cama.

Aquela era a primeira experiência de Loveday com a possibilidade de uma doença mortal. As pessoas morriam, é claro. Entretanto, não os seus familiares tão próximos. Não tia Lavinia. De quando em quando, Loveday fazia um esforço real para imaginar a vida sem a velha Senhora, porém ela constituíra sempre uma tal parte de Nancherrow, fora tão forte e benevolente a sua influência na família inteira, que era impossível pensar em tal hipótese. Aliás, não suportava ter tais pensamentos.

Seguindo ao longo da fileira de estacas, colhia as doces frutinhas vermelhas com as duas mãos e, deixando-as cair na cesta grosseira que prendera com um barbante em torno da cintura. Era de tarde, o dia estava brilhante e ensolarado, mas um vento irritante soprava do mar e, para proteger-se, vestira uma velha suéter de críquete pertencente a Edward, já amarelada e cerzida. Era uma peça muito comprida e ficava pendurada sobre sua saia de algodão, mas o sol lhe batia nos ombros, quente através da lã grossa da suéter, e Loveday agradecia seu fraterno conforto.

Ela estava entregue a si mesma, porque depois do almoço seu pai, Edward e Mary Millyway tinham subido até a Dower House. O coronel dera um jeito para falar com o médico, Edward ia ficar com tia Lavinia durante algum tempo, e Mary os acompanhara a fim de fazer companhia à pobre Isobel, com quem tomaria chá na cozinha. Talvez Isobel é que estivesse mais necessitada de consolo do que qualquer um deles. Ela e tia Lavinia tinham vivido juntas por mais de quarenta anos. Se a velha senhora morresse, provavelmente Isobel não demoraria muito a acompanhá-la.

— E quanto a você, minha querida? — perguntou o coronel a Loveday. —Não quer ir conosco?

Ela caminhara até o pai, passara os braços pela cintura dele e apertara o rosto contra a frente de seu colete. Ele compreendeu e a abraçou com força.

— Não — disse ela, em voz sufocada. Se o pior acontecesse, desejava recordar tia Lavinia do jeito como era, alerta, graciosa, unindo-se a todas as brincadeiras da família. Não queria imaginar uma velha idosa e enferma, acamada, escapando ao convívio deles. — Ela está tão mal assim? Eu preciso ir?

— Não. Acho que não há necessidade.

Loveday chorou, o pai a beijou e secou-lhe os olhos com seu enorme e imaculado lenço de linho branco. Eram todos muito gentis com ela. Edward apertou-a nos braços, dizendo:

—De qualquer modo, é preciso que haja alguém aqui, quando Gus aparecer. Ele estará chegando a qualquer momento esta tarde, e seria falta de hospitalidade não haver ninguém para recebê-lo. Você será o comitê de recepção.

- Eu sozinha?

Ainda fungando, Loveday não gostou muito da idéia.

— Vou ter que ficar matando tempo pela casa? Mary deu uma risada.

—Não, claro que não. Faça o que tiver vontade. Tenho certeza de que Fleet apreciaria um bom galope.

Desta vez, no entanto, Loveday não sentia vontade de montar Fleet. Desejava permanecer dentro dos limites de Nancherrow, onde se sentia a salvo e segura.

—Já fiz Fleet galopar ontem — respondeu.

—Então, talvez possa colher framboesas para a sra. Nettlebed. Ela quer fazer geléia. Poderia ajudá-la a lavar e pesar as frutas.

Não era uma perspectiva muito excitante, mas era melhor do que não fazer nada. Loveday suspirou.

— Está bem — disse.

—Esta é a minha garotinha—disse Mary, dando-lhe um leve abraço e um beijo. — E daremos lembranças suas a tia Lavinia, dizendo-lhe que tão logo melhore um pouco você irá vê-la. E, lembre-se, sua mãe volta hoje de Londres. Certamente estará cansada de dirigir e angustiada, mas não queremos que chegue em casa e encontre apenas caras tristes. Pense nela e procure não se preocupar além da conta.

Assim, Loveday tinha ido colher framboesas. Levou algum tempo para encher as duas cestas que a sra. Nettlebed lhe dera, mas finalmente ambas ficaram transbordando de frutas maduras e perfeitas. Comera algumas, mas não muitas. Agora, com uma pesada cesta em cada mão, foi abrindo caminho pelo folhudo corredor entre as estacas, e depois saiu do viveiro de frutas, trancando-o cuidadosamente ao passar. Assim, nenhum pássaro conseguiria entrar lá, entupir-se de frutas e depois encontrar a morte enquanto se debatia contra as grades do viveiro, tentando voar para a liberdade.

Na cozinha, encontrou a sra. Nettlebed fazendo a cobertura de um bolo de chocolate com montes de volutas e pedacinhos de frutas cristalizadas. Colocou as cestas em cima da mesa.

— E então, o que acha disso, sra. Nettlebed?

A sra. Nettlebed mostrou-se gratamente apreciativa.

— Formidável. Você é realmente um encanto. Debruçando-se sobre a mesa, Loveday enfiou o dedo na tigela que continha a cobertura do bolo e o lambeu. Concluiu que o sabor do chocolate não combinava com o de framboesas.

— Agora, olhe para você, Loveday! Está lastimável, com a roupa cheia de gravetos e suco de framboesa. Devia ter posto um avental.

— Oh, não tem importância. É somente roupa velha. Quer que a ajude a preparar a geléia?

—Agora não há tempo. Farei isso mais tarde. Aliás, você tem coisa melhor a fazer, porque o moço chegou.

—O convidado de Edward! —O coração de Loveday quase parou. Colhendo as framboesas, tinha esquecido o incômodo amigo de seu irmão, que vinha para ficar. — Oh, que droga, ele já está aqui? Pensei que só chegasse depois de Edward vir para casa. — Ela franziu o nariz. — E como é ele?

—Não faço a menor idéia. Nettlebed o recebeu e o levou para seu quarto. Deve estar lá agora, desfazendo as malas. Será melhor você subir, dizer-lhe como vai e dar-lhe as boas-vindas.

—Nem mesmo me lembro do nome dele...

— É sr. Callender. Gus Callender.

— Tenho mesmo que ir? Eu preferia muito mais fazer geléia.

— Oh, Loveday! Vá fazer o que é preciso!

Ao falar, a sra. Nettlebed deu um leve tapa no traseiro de Loveday, pondo-a em movimento. Ela se foi, relutante. Subiu a escada e seguiu pelo corredor que levava ao quarto do hóspede. Na metade do trajeto, viu que a porta dele estava aberta. Loveday alcançou-a e parou, hesitante. Ele estava lá, em pé e de costas para ela, com as mãos enfiadas nos bolsos, olhando pela janela aberta. A bagagem fora empilhada sobre o porta-bagagem de madeira aos pés da cama, porém as malas continuavam fechadas e ele parecia não se ter dado ao trabalho de desfazê-las. Os pés dela, enfiados em tênis surrados, não tinham produzido som algum no corredor atapetado, e Loveday percebeu que nem de longe havia sido pressentida, o que a deixou um tanto acanhada e pouco à vontade. Podia ouvir o arrulhar dos pombos, no pátio mais abaixo. Após um momento, decidiu-se.

— Olá — falou.

Sobressaltado, ele deu meia-volta. Por um instante, encararam-se através do quarto, e então o rapaz sorriu.

— Olá — respondeu.

Loveday estava desconcertada. Este convidado não era o que esperava. O que esperava era um clone dos vários jovens que Edward havia trazido para casa durante as férias e feriados escolares. Todos pareciam ter sido cortados pelo mesmo molde, e ela achara difícil apreciar qualquer deles. Este aqui, no entanto, tinha origem inteiramente diversa, e ela de imediato reconheceu o fato. Antes de mais nada, parecia mais velho do que Edward, mais maduro e experiente. Amorenado e magro, de expressão séria. Interessante. Não era alguém que fizesse comentários cretinos e nem que a tratasse — a irmãzinha de Edward — como uma imbecil. Até então, Walter Mudge e Joe Warren haviam sido seus padrões para a espécie de homem que começava a achar perturbadoramente atraente, ambos de espalhafatosa masculini-dade e maneiras simples. Curiosamente, Gus Callender parecia um pouco com ambos: tinha os mesmos cabelos e olhos escuros, porém era mais alto, menos musculoso do que Walter ou Joe, e quando sorria seu rosto modificava-se por completo, ele perdia a aparência de seriedade.

De repente, ela deixou de sentir-se acanhada.

— Você é Gus Callender.

— Exato. E você deve ser Loveday.

—Lamento não haver mais ninguém aqui, além de mim. E eu estive colhendo framboesas.

Entrando no quarto, Loveday encarapitou-se na cama alta.

— Tudo bem. Seu mordomo...

— O sr. Nettlebed.

—.. já me deu as boas-vindas. Loveday olhou para a bagagem dele.

— Parece que ainda não tirou muita coisa das malas.

— É verdade. Para ser franco, eu me perguntava se deveria.

— O que quer dizer?

— O sr. Nettlebed deu-me a entender que estão com problemas. Uma doença na família. E que Edward foi visitar a tia...

—Tia-avó Lavinia. Sim, ela está com pneumonia. E é incrivelmente velha, o que torna tudo um tanto preocupante.

— Não é um momento muito bom para terem hóspedes em casa. Pensando bem, acho que eu deveria dar o fora diplomaticamente.

— Oh, não deve fazer isso! Edward ficaria muito aborrecido e desapontado. De qualquer modo, tudo está pronto para você, e estamos todos preparados, de maneira que não faria muita diferença, faria?

— Eu desejaria apenas que Edward tivesse telefonado para mim e explicado a situação. Eu jamais teria vindo.

— Ele não poderia, porque faz muito pouco tempo que tia Lavinia adoeceu. Além disso, Edward não sabia onde você estaria, até que ponto tinha viajado. Seja como for, não se preocupe com isso. Esteja você aqui ou não, a situação continua a mesma. — Isto não soara muito amistoso. — Se eu deixar você escapar, todos ficarão furiosos comigo. E eu sei que mamãe gostaria de conhecê-lo. Ela esteve em Londres, mas está vindo hoje de carro, por causa da tia Lavinia. Papai está tendo uma conversa com o médico, e Mary Millyway foi tentar consolar Isobel. Quanto a Judith, bem, ela é minha amiga, fica muito tempo aqui em casa, mas por enquanto ainda está em Porthkerris. — A essa altura, Gus começava a ficar um tanto perplexo, como seria de esperar. Loveday fez um esforço para explicar a situação. — Mary Millyway foi minha babá, é um encanto de pessoa, faz tudo que se possa imaginar... e Isobel é a velha empregada de tia Lavinia.

— Entendo.

— Todos estarão de volta a tempo para o chá, e então você poderá ver Edward. Que horas são?

Ele olhou para seu relógio, em ouro maciço com correia de couro em torno do pulso magro.

— Precisamente três da tarde.

— Bem... — Ela refletiu. — O que você gostaria de fazer? — Não estava sendo muito hospitaleira. —Tirar suas coisas das malas? Ou sair para uma volta, alguma coisa assim?

— Eu gostaria de tomar um pouco de ar. Posso desfazer minhas malas mais tarde.

— Então, desceremos até a enseada. Você poderá nadar, se tiver vontade, mas há um vento irritante soprando. A água fria não me incomoda, mas detesto sair dela para um vento frio.

— Então, não vamos nadar.

— Tudo bem, daremos uma volta. Tiger foi com papai, do contrário poderíamos levá-lo conosco. — Ela deslizou de cima da cama. — É uma trilha um tanto inclinada e escorregadia para o mar. Você tem sapatos com sola de borracha? Ou talvez um pulôver? Pode ser um pouco desagradável no alto dos penhascos.

Ele sorriu do jeito mandão dela.

— Muito bem, tenho as duas coisas. — Gus havia jogado uma suéter no encosto de uma cadeira, uma peça de lã azul-escura e convenientemente grossa. Recolheu-a, atirou-a nos ombros e amarrou as mangas em torno do pescoço, como um cachecol. — Mostre o caminho — disse para Loveday.

Sendo ele um hóspede de primeira vez, ela não o levou pela escada dos fundos, mas ao longo do corredor, depois pela escada principal e a porta da frente. O carro dele ficara estacionado diante da casa e, distraída pelo veículo, Loveday parou para admirá-lo.

— Céus, que carro espetacular! É terrivelmente veloz?

— Pode ser.

— Parece novo em folha. Faróis reluzentes e tudo o mais.

—Já o tenho há coisa de um ano.

— Eu gostaria de dar uma volta nele, quando for possível.

— Será um prazer.

Os dois começaram a caminhar. Contornaram a quina da casa e então o vento caiu sobre eles, cortante e salitrado. Mais acima, enormes nuvens brancas corriam pelo céu de puríssimo azul. Seguiram pelos terraços gramados e depois ganharam a trilha, por entre os cerrados bosques de arbustos e incongruentes palmeiras, em direção ao mar.

Após algum tempo, a trilha ficou estreita demais para caminharem lado a lado, e então seguiram em fila indiana, Loveday à frente, andando cada vez mais depressa, em passo acelerado e forçando seu companheiro a alguma concentração e uma boa dose de esforço físico, a fim de poder acompanhar seus pés que pareciam voar. Gus perguntou-se se ela estaria agindo assim de propósito, querendo troçar dele que procurava segui-la de perto, enquanto baixava a cabeça durante a travessia pelo túnel de guneras e depois escorregando, escorregando sempre, ao descer os íngremes degraus que levavam à base da pedreira. Em seguida, pela pedreira e pelo portão; uma alameda que levava a alguma fazenda, e uma pedra formando degraus para cruzar uma vedação (algo parecido a uma corrida de obstáculos), para finalmente chegar aos penhascos.

Ela o esperava, em pé na turfa relvosa e manchada de púrpura pelo tomilho. Turbulento, o vento sacudia-lhe a saia de algodão e a inflava em torno das longas pernas bronzeadas. O seu rosto animado e seus olhos cor de violeta estavam à beira da gargalhada quando ele chegou ao seu lado, ofegando ligeiramente.

—Você corre como um coelho — comentou Gus, quando recuperou o fôlego.

— Nem tanto. Você manteve a velocidade.

— Tem muita sorte por eu não ter sofrido algum dano físico irreparável. Pensei que íamos sair para dar uma volta, não para uma corrida de maratona.

— Oh, mas valeu a pena. Admita que valeu!

Quando olhou, Gus viu o mar azul-turquesa, a faixa de praia e os gigantescos vagalhões que se quebravam contra as rochas ao pé dos penhascos. As ondas sibilavam como espuma e jatos de sabão, em iridescentes explosões líquidas, saltando seis ou mais metros no ar. Era tudo extremamente revigorante e simplesmente espetacular. Então Loveday estremeceu.

— Está com frio? — perguntou ele.

— Um pouco. Em geral descemos até as rochas, mas agora a maré está alta e ficaríamos encharcados pelos respingos.

— Pois então não vamos.

Assim, em vez de descerem, os dois encontraram abrigo do vento atrás de uma pedra monumental, amarelada pelos liquens e ervas-pinheiras. Loveday acomodou-se sobre uma espessa almofada de turfa, dobrou os joelhos e passou os braços em torno deles, encolhendo-se na suéter para acumular mais calor. Gus estirou-se ao lado dela, de pernas espichadas e o peso suportado pelos cotovelos.

— Assim está melhor. Não podemos ver o mar, mas podemos ouvi-lo e, pelo menos, não ficamos ensopados. — Fechando os olhos, ela virou o rosto para o sol. Disse, após um momento: — Está muito melhor. Mais quente agora. Eu gostaria que tivéssemos trazido alguma coisa para comer.

— Se quer saber, não estou com fome.

— Eu estou. Sempre tenho fome. Athena também. Acho que ela virá para casa. Por causa da tia Lavinia. Ela está na Escócia. Você mora na Escócia, não?

— Moro.

— Em que parte?

—Aberdenshire. Em Deeside.

— Perto de Balmoral?

— Não muito.

— E sua casa é perto do mar?

— Não. Apenas do rio.

— Bem, mas rios não são o mesmo que o mar, são?

— Não. Nem um pouquinho.

Loveday ficou em silêncio, pensando nisto, enterrando o queixo nos joelhos.

—Acho que eu não conseguiria viver longe do mar.

— Não é tão ruim assim.

— É pior do que ruim. É uma tortura. Ele sorriu.

—Acha mesmo?

— Acho. E tenho certeza porque, quando estava com uns doze anos, fui mandada para um colégio interno em Hampshire e quase morri. Deu tudo errado. Eu me sentia deslocada. Era tudo com o formato errado, as casas, as sebes, até mesmo o céu. E eu sempre tinha a sensação de que o céu estava pousado no alto de minha cabeça, empurrando-me para baixo. Tive dores de cabeça terríveis. Acho que morreria, se tivesse que continuar lá.

— Você não continuou?

—Não. Agüentei meio período e então vim para casa. Fugi. Desde então tenho ficado aqui.

— A escola?

— Em Penzance.

— E agora?

— Deixei a escola.

— Ficará só nisso? Ela deu de ombros.

—Não sei. Athena foi para a Suíça. Eu poderia ir para lá também. Só que, se houver uma guerra, será impossível.

— Entendo. Que idade você tem?

— Dezessete.

— Muito nova para ser convocada.

— Convocada para quê?

— Para a guerra. Prestação de serviços. Fabricar munições. Loveday pareceu horrorizada.

— Não vou ficar diante de uma esteira rolante fazendo balas. Se não for para a Suíça, não irei para lugar nenhum. Se houver uma guerra, vai ser bastante difícil mostrar bravura e coragem mesmo aqui. Em Nancherrow. Claro está que eu não conseguiria ser brava nem corajosa em Birmingham, Liverpool ou Londres. Em vez disso, enlouqueceria!

— Não necessariamente — disse Gus.

Ele agora procurava tranqüilizá-la, quase lamentava ter tocado no assunto. Ela ficou pensativa por um instante, depois perguntou:

— Você acha que vai haver guerra?

— Provavelmente.

— O que acontecerá a você?

— Serei convocado.

— Imediatamente?

— Sim. Estou no Exército Territorial. Os Gordon Highlanders. O regimento de minha terra natal. Juntei-me ao batalhão em 1938, depois que Hitler invadiu a Checoslováquia.

— O que significa ser um Territorial?

— Um soldado profissional em tempo parcial.

— Você foi treinado?

—Até certo ponto. Duas semanas em um acampamento de treinamento a cada verão. Agora sou plenamente capaz de disparar uma arma e matar o inimigo.

— Desde que ele não o mate primeiro.

— Sim. É um caso a pensar.

— Edward vai para a Real Força Aérea.

—Eu sei. Suponho que se possa dizer que ambos tivemos a intuição de uma catástrofe iminente.

— E quanto a Cambridge?

— Se formos convocados, então não poderemos voltar. Nossos exames finais terão de esperar.

— Pelo fim da guerra?

— Suponho que sim. Loveday suspirou.

— Que desperdício! — Ela meditou sobre isto. — Em Cambridge, todos pensam como você e Edward?

— De maneira nenhuma. As atitudes políticas variam amplamente entre os estudantes. Alguns têm simpatias pela esquerda, mas não demasiadamente, porque não dão o passo final e nem se tornam comunistas de fato. Dentre estes, os mais corajosos já desapareceram, foram lutar na Espanha.

— Realmente corajosos!

— Sim, muito. Não particularmente sensatos, porém de uma incrível coragem. Há ainda outros para quem a resposta é o pacifismo, e aqueles que se portam como um bando de avestruzes, enfiando as cabeças na areia e agindo como se nada de errado pudesse acontecer um dia. — Ao pensar nisso, ele riu de repente. — Há um sujeito impossível, chamado Peregrine Haslehurst...

— Não acredito! Ninguém pode ter um nome desses!

— Pois eu lhe garanto que pode. Volta e meia, se fica curto de dinheiro, ele me procura e permite condescendentemente que lhe empreste algum ou lhe pague um drinque. Sua conversa não passa do trivial, mas se forem discutidos assuntos mais sérios, ele sempre me choca com sua atitude francamente jovial, quase demente. Como se uma nova guerra não encerrasse mais perigos do que uma partida de críquete ou do Wall Game em Eton, que foi onde Peregrine estudou quando menino.

— Talvez ele esteja apenas fingindo. Talvez esteja realmente tão apreensivo quanto todos nós.

— Está aludindo ao sangue-frio inglês? Ao sujeito que não entrega os pontos? Ao gênio da exposição abrandada dos fatos?

— Sei lá. Acho que sim.

—São características que considero francamente irritantes. Fazem-me pensar em Peter Pan, esvoaçando com sua espadinha para dar combate ao Capitão Gancho.

— Eu odiei Peter Pan — disse Loveday. — Eu simplesmente odiei aquele livro.

—Que curioso, eu também! Morrer será uma incrivelmente grande e espetacular aventura. Deve ser a linha mais idiota que um homem já escreveu.

— Não creio que morrer seja nem um pouquinho aventuroso. E também não creio que seja a opinião de tia Lavinia. — Loveday ficou calada, pensando em tia Lavinia, que, por um ou dois momentos, chegara a esquecer. Perguntou: — Que horas são?

— Quatro e meia. Alguém deve comprar um relógio para você.

— Eles compram, mas eu sempre perco. Talvez devêssemos voltar. — Ela estirou as pernas compridas e ficou abruptamente em pé, de súbito impaciente para ir embora dali. — Os outros logo estarão em casa. Espero que nada terrível tenha acontecido.

Gus refletiu que qualquer comentário a esse respeito pareceria vazio e sem significado, portanto, nada disse. Fora agradável ficar sentado ao sol, sentindo o calor da rocha, mas ela se pôs de pé e sentiu a fustigada do vento, frígido e penetrando na lã grossa de sua suéter.

— Muito bem, podemos ir andando, mas que tal manter os passos em velocidade razoável?

Ele falava alegremente, sabendo que suas palavras pouco tinham de piada. Não que isso importasse, porque Loveday parecia não estar ouvindo. Ela havia feito uma pausa, virada de costas para ele, como que relutante em abandonar os penhascos, as gaivotas e o mar tempestuoso, para voltar à realidade. E nesse momento, Gus viu, não Loveday, mas a jovem de Laura Knight, o quadro que havia removido sub-repticiamente das páginas de The Studio, tanto tempo atrás. Até as roupas, os sapatos de tênis gastos, a saia listrada de algodão, a antiga suéter de críquete (encantadoramente manchada de sumo de framboesa) eram os mesmos. Só os cabelos eram diferentes. Não havia nenhuma trança castanho-avermelhada caída sobre um ombro, como uma pesada corda. Em vez disso, havia a desgrenhada cabeleira de Loveday, semelhante a um crisântemo de reluzentes anéis, agitada pelo vento.

Lentamente, eles fizeram a caminhada em sentido inverso, seguindo pela trilha onde Gus se lançara atrás dela, com a rapidez possível. Agora, Loveday parecia não sentir muita pressa. Cruzaram a base da pedreira e iniciaram a subida dos degraus que levavam ao topo do penhasco xistoso. Continuaram subindo através do matagal, parando de vez em quando para respirar, para uma pausa em uma das pequenas pontes de madeira, enquanto admiravam o riachinho correr para longe, abaixo de seus pés. Quando finalmente emergiram do meio das árvores e a casa surgiu, pairando acima deles, Gus estava acalorado pelo exercício. Os abrigados jardins banhavam-se ao sol, estendendo-se para baixo através de gramados recentemente aparados. Ele parou por um instante a fim de tirar a suéter, passá-la por sobre a cabeça e pendurá-la ao ombro. Loveday esperou, enquanto Gus fazia isso. Ele a fitou nos olhos, e ela sorriu.

— Isso é um bocado irritante — disse ela, quando recomeçaram a andar — porque em um dia quente de verdade, quando a gente chega até aqui tudo o que realmente quer é nadar mais um pouco...

Loveday se calou de repente. Um som lhe chegara ao ouvido. Seu sorriso morreu e ela ficou muito quieta, ouvindo. Gus também ouviu, de muito longe, o ruído do motor de um carro que se aproximava. Então viu o majestoso Daimler emergindo das árvores no final da alameda de veículos, cruzando o piso de cascalhos e fazendo alto ao lado da casa.

— Eles voltaram. — Quando vinha da enseada, tagarelando inconseqüentemente, Loveday parecera bastante alegre, porém agora sua voz transbordava de apreensão. — Papai e Edward voltaram. Oh, o que terá acontecido... — Então, abandonando Gus, começou a correr, disparou através do gramado e subiu os degraus dos terraços. Ele a ouviu gritando para os recém-chegados:

—Por que todos demoraram tanto? O que aconteceu? Está tudo bem...?

Rezando para que assim fosse, Gus continuou a caminhar, em passos deliberadamente lentos. Sua confiança desaparecera de repente, e ele se viu desejando estar em outro lugar que não aquele, que nunca tivesse vindo. Naquelas circunstâncias, Edward tinha todos os motivos para esquecer por completo seu amigo de Cambridge, a quem tão casualmente convidara para sua casa; e, ao vê-lo, seria compelido a simular prazer com sua chegada. Por um momento, Gus desejou ardentemente ter seguido seu instinto original, que fora o de tornar a levar as malas para o carro e ir embora dali. Loveday é que o persuadira a ficar. Com certeza, enganosamente. Esta, sem a menor dúvida, não era a hora de ser um hóspede desconhecido.

Entretanto, agora era tarde demais para modificar a situação. Lentamente, ele subiu a ampla escada de pedra que dividia em partes iguais o terraço do topo, e caminhou em frente, ao nível do solo. O Daimler estava ali, estacionado ao lado de seu próprio carro, com as portas ainda abertas. Seus ocupantes formavam um pequeno grupo, mas, ao avistar Loveday, Edgar aproximou-se dela e estava fazendo o possível para consolá-la e tranqüilizá-la. Entretanto, ao ouvir que Edward o chamava, ele parou de falar, ergueu o rosto, avistou Gus e então pôs Loveday delicadamente de lado. Caminhou para os dois, seus sapatos de couro cru fazendo o cascalho ranger, alto, vestindo tweed e magro como um espantalho. Se o coronel fazia reservas sobre um estranho vir ficar sob seu teto naquele particular e inoportuno momento, guardou-as para si mesmo. Gus viu apenas a expressão gentil de seus olhos claros e o sorriso tímido de sincero prazer.

— Gus, este é meu pai, Edgar Carey-Lewis. E, papai, este é Gus Callender.

— Como tem passado, senhor? O coronel estendeu a mão, que Gus tomou na sua.

— Gus, meu caro rapaz — disse o pai de Edward — como foi bom ter vindo, e que prazer recebê-lo!

Na manhã seguinte, às dez horas, Edward Carey-Lewis ligou para a Mercearia Warren, em Porthkerris, e pediu para falar com Judith.

— Quem eu digo que quer falar com ela? — perguntou uma desconhecida voz feminina, com forte sotaque da Cornualha.

— Apenas Edward.

— Um momento.

Ele esperou. Judith está aí? Telefone para ela! A voz de mulher, presumivelmente gritando de um lance de escada, chegou distante até ele, através do fone. Continuou esperando. Ela veio.

— Alô? —A voz estava cheia de ansiedade. —Edward?

— Bom-dia.

— O que está havendo?

— Tudo bem. Tenho boas novas.

— Tia Lavinia?

— Ela parece ter vencido a crise. Recebemos notícias de Dower House. Aparentemente, tia Lavinia acordou esta manhã, perguntou à enfermeira da noite o que fazia sentada perto de sua cama, e exigiu uma xícara de chá.

— Oh, eu nem acredito!

—Em vista disso, papai e mamãe apressaram-se em ir vê-la e checar a situação geral. Achei que seria bom ligar para você.

—Oh, vocês todos devem estar tão aliviados! A querida velhinha...

— Deveria dizer "perversa velhinha", por ter-nos dado tanto susto. E todo mundo voando de todos os pontos cardeais, vindo para cá! Mamãe chegou ontem à noite, parecendo absolutamente exausta, e Athena mais Rupert já estão vindo da Escócia. Como aconteceu com Gus, ignoramos em que ponto eles se encontram, de modo que não podemos telefonar, dizendo para darem meia-volta e voltarem para Auchnafechle ou seja lá onde é que estavam. A coisa toda transformou-se em um completo circo.

— Isso não importa. O principal é que ela vai melhorar.

— Quando é que você volta?

— No domingo.

— Se ela puder receber visitas, eu a levarei para vê-la.

— Domingo de manhã. Estarei de volta no domingo de manhã.

— Está combinado então. Como vai?

— Começando a desejar que estivesse com todos vocês.

— Não deseje demais. É quase a mesma coisa que viver em pleno Piccadilly Circus. Enfim, sinto falta sua. Sem você, há um vazio aqui em casa.

— Oh, Edward...

— Vejo você no domingo de manhã.

— Até lá. E obrigada por telefonar.

Rupert Rycroft dormiu demais em sua primeira manhã. Quando acordou, abriu os olhos e ficou encarando a parede oposta com perplexidade, ainda desorientado. Houvera viagens além da conta e muitas camas estranhas em tão curto espaço de tempo. Agora, vendo a extremidade de latão dos pés da cama, um papel de parede listrado e cortinas fartamente floridas, meio abertas na janela, não conseguia imaginar onde, infernos, poderia estar.

Entretanto, foi apenas por um instante. A recordação logo chegou ao cérebro. Cornualha. Nancherrow. Finalmente trouxera Athena para casa, após percorrer o país de alto a baixo — e somente ele dirigira, durante todo o tempo. De quando em quando, sem grande entusiasmo, Athena oferecera-se para tomar o volante, mas ele preferira controlar a situação, e aquele carro era-lhe demasiado precioso para ser confiado às mãos de outra pessoa. Mesmo de Athena.

Rupert puxou um braço nu de sob as cobertas e apanhou seu relógio. Dez horas. Deixou-se cair sobre o travesseiro, com um grunhido. Que horror! Entretanto, ao levá-lo a seu quarto, o coronel havia dito:

— O breakfast é às oito e meia, mas durma o quanto quiser. Estaremos ao seu dispor, quando acordar.

Então, algum mecanismo automático no cérebro de Rupert havia feito o que lhe fora dito. O que significava a mesma coisa, de maneira algo inversa, como saber que deveria participar da parada às sete e meia da manhã, por pior que fosse a ressaca resultante da festa na noite anterior.

Eles haviam chegado à meia-noite, e somente os pais de Athena estavam lá para recebê-los, porque todos os outros já tinham ido dormir. Bem desperta e falante pela maior parte do trajeto, Athena mergulhara em profundo silêncio durante mais ou menos a última hora da jornada. Rupert sabia que ela ansiava pela chegada e também a temia. Evidentemente, Athena ansiava estar lá, segura no seio da família, mas temendo ouvir a terrível notícia que poderiam dar-lhe. Era uma ansiedade tão íntima e pessoal, que ele preferiu ficar calado e deixá-la em paz, sem querer intrometer-se.

No final do dia, entretanto, acabaram sabendo que tudo terminaria bem, que a idosa tia tão enferma estava a caminho da recuperação, que enfim não havia nenhum risco de expirar. O galante sacrifício de Rupert de uma semana de caça ao galo silvestre, assim como o esforço daquela maratona para trazer Athena de volta à família, tinham sido em vão. Tudo desnecessário. Era algo difícil de aceitar, porém ele manteve a expressão teimosamente jovial.

Athena, no entanto, estava felicíssima, o que era natural. Ficou parada junto à mãe no alto e iluminado saguão de Nancherrow, houve abraços em profusão, trocas de palavras carinhosas, explicações, frases inacabadas e imensa satisfação, tudo soando como uma positiva colisão de emoções.

— Nem posso acreditar...

— Viajar tanto para chegar aqui...

—.. tinha tanto medo de que ela fosse morrer...

— Oh, minha querida...

—.. rodamos o dia inteiro...

— Tão cansada...

—.. ela vai mesmo melhorar...

— Assim espero. Que longa viagem! Talvez não devêssemos ter-lhe contado...

—.. eu tinha que estar aqui...

—.. estragar seus feriados...

—.. não importa... nada importa...

Rupert já conhecia Diana Carey-Lewis. Ela estivera com a filha na casinha de Cadogan Mews, quando ele chegara para levar Athena à Escócia. Então pensara — e continuava pensando — que elas mais pareciam irmãs do que mãe e filha. Esta noite, e em hora tão avançada, Diana já estava sensatamente envolta em um robe de lã rosa que chegava ao chão, porém o coronel permanecia inteiramente vestido. Acima das cabeças das duas mulheres incoerentemente felizes, Rupert procurou encontrar os olhos de seu anfitrião; viu o muito usado dinner-jacket de veludo, a gravata-borboleta de seda e percebeu uma confortável familiaridade. Como seu próprio pai, era claro que o coronel mudava de roupa todas as noites para o jantar. Agora ele vinha ao seu encontro, de mão estendida.

— Edgar Carey-Lewis. Não imagina o quanto foi gentil, trazendo Athena em casa para nós. E agora isto pode parecer-lhe que todos os seus esforços foram desperdiçados por uma causa vazia...

Ele era tão apologético e tão compreensivo, que Rupert sufocou seu aborrecimento particular e fez o melhor que pôde para tranqüilizar o homem mais velho.

— Nem pense nisso, senhor. É um caso de tudo está bem quando termina bem.

—É muito generoso de sua parte. De qualquer modo, sempre resta um certo desapontamento por haver perdido sua caçada. — E então, candidamente, com talvez uma inadequada fagulha de interesse nos olhos pálidos, perguntou: — Diga-me, que tal com os galos silvestres?

— Tivemos dois dias excelentes.

— Quantas peças abateram?

— Mais de sessenta pares. Não podia ser melhor.

— Suponho que agora está ansioso em voltar, não? Rupert negou com a cabeça.

— Não valeria a pena, senhor. Convidaram-me por apenas uma semana.

— Sinto muito. Nós estragamos tudo.

— Não pense mais nisso.

— Bom, você é mais do que bem-vindo aqui. Fique pelo tempo que quiser. —Ele olhou aprovadoramente para Rupert. —Devo dizer que está aceitando muito bem a situação. Em seu lugar, eu estaria mascando os tapetes... E agora, que tal um último drinque antes de dormir?

Dez horas da manhã. Rupert pulou da cama e foi abrir as cortinas inteiramente. Viu-se olhando para um pátio de piso lajeado, inundado pelos arrulhos de pombos de caudas brancas em forma de leque; havia potes de gerânios e um varal cheio de alvíssima roupa lavada que se agitava à brisa. Além do pátio ele viu canteiros com cercaduras gramadas e, a média distância, um maciço de copado arvoredo. Inclinando-se para fora da janela e espichando um pouco o pescoço, foi recompensado com a visão do horizonte azul. Estava tudo banhado pelos puros raios de sol de uma perfeita manhã estival e, filosoficamente, ele decidiu que, se não podia estar abatendo galos silvestres em Glenfreuchie, então este lugar era a melhor coisa seguinte. Afastando-se da janela, Rupert bocejou e espreguiçou-se com vontade. Sentia uma fome devoradora. Encaminhou-se para o banheiro e começou a fazer a barba.

O andar térreo parecia um tanto desconcertante, pois parecia não haver ninguém por lá. Entretanto, após um pequeno reconhecimento do terreno, Rupert descobriu a sala de refeições, ocupada por um cavalheiro alto e pomposo, que claramente devia ser o mordomo. Nettlebed. Athena falara de Nettlebed.

— Bom-dia — disse ao entrar.

O mordomo virou-se do aparador, onde estivera rearrumando pratos na chapa quente.

— Bom-dia, senhor. Capitão Rycroft, pois não?

— Exatamente. E você é Nettlebed.

— Eu mesmo, senhor.

Rupert adiantou-se e os dois trocaram um aperto de mão.

— Estou terrivelmente atrasado.

— O coronel disse que lhe recomendara dormir bastante, senhor. Entretanto, tenho certeza de que gostaria de comer alguma coisa... Aqui temos bacon e salsichas. Se quiser um tomate frito, a sra. Nettlebed terá prazer em prepará-lo. E café. Ou prefere chá...

—Não. Café está ótimo. —Rupert olhou para a mesa, uma grande e comprida extensão de mogno, com apenas um solitário serviço posto a um lado. — Parece que sou o último.

— Falta apenas Athena, senhor. E a sra Carey-Lewis disse que só a esperasse na hora do almoço.

— Claro. Ela estará precisando dormir.

Rupert serviu-se de bacon e salsichas, e Nettlebed despejou seu café.

— Foi uma longa viagem, senhor?

— Por todo o comprimento do país. Diga-me, onde estão todos os outros?

Nettlebed explicou,

— O coronel e a sra. Carey-Lewis subiram até Dower House. Eles vão lá todas as manhãs visitar a sra. Boscawen e certificar-se de que a enfermeira tem tudo sob controle. Edward levou Mary Millyway de carro até Penzance, a fim de fazer algumas compras para a casa e recolher suprimentos para a sra. Nettlebed. E Loveday saiu com o sr. Callender, em busca de algum lugar pitoresco onde ele possa fazer seus desenhos.

— Quem é o sr. Callender?

— Sr. Gus Callender, senhor. Amigo de Edward, de Cambridge. Aparentemente, ele é uma espécie de artista amador.

— E também está hospedado aqui? Vocês têm uma casa bastante cheia para dirigir. Não é de admirar que Edward tenha ido em busca de rações.

— Nada além do costumeiro, senhor — assegurou-lhe Nettlebed modestamente. —Eu e a sra. Nettlebed estamos acostumados com uma casa cheia.

— Então, o que me sugere que eu faça depois que terminar meu café e até que Athena apareça?

Nettlebed permitiu-se um sorriso, apreciativo da segurança do jovem cavalheiro.

— Os jornais da manhã estão na sala de espera, senhor. E sendo uma manhã tão agradável, talvez queira lê-los fora da casa, ao ar livre. Encontrará cadeiras de jardim fora das portas-janelas. Não preferiria um pouco de exercício? Uma caminhada, possivelmente...?

—Não. Acho que o exercício pode esperar. Ficarei ao sol, folheando os jornais.

— Uma excelente idéia, senhor.

Ele apanhou The Times na sala de estar, levou-o para fora, mas terminou não o lendo. Em vez disso, acomodou-se em uma comprida cadeira de vime e, através de olhos semicerrados, ficou contemplando a agradável perspectiva do jardim. O sol era cálido e um pássaro trinava em algum lugar. Mais abaixo, um jardineiro aparava a grama da quadra de tênis, seguindo em linha reta e jogando para trás chumaços de verde.

Rupert perguntou-se se, mais tarde, esperariam que ele jogasse. Então, parou de pensar no tênis, e meditou na questão de Athena.

Recordando, achou difícil imaginar como chegara a este dilema, algo que se transformara no que menos esperava e no momento mais inconveniente. Estava com vinte e sete anos, era oficial de cavalaria, capitão nos Dragões da Guarda Real e um homem que sempre apreciara e resguardara sua vida razoavelmente movimentada de solteiro. Era iminente uma nova guerra, na qual seria fatalmente envolvido e despachado para algum lugar esquecido por Deus, a fim de ser metra-lhado, baleado, ferido ou, possivelmente, morto. E, neste exato momento, a última coisa de que precisava era casar-se.

Athena Carey-Lewis. Ele e dois amigos de seu Regimento tinham ido de carro de Long Weedon a Londres, para uma festa. Era um frio anoitecer de inverno e uma aconchegantemente iluminada sala de estar térrea, em Belgravia. E, quase imediatamente, ele a tinha visto no outro lado da sala, achando-a de uma beleza sensacional. Naturalmente, ela estava enfronhada em uma conversa com um indivíduo gordo e de aparência vazia que, ao dizer alguma piada tola, a fez rir, um sorriso que penetrou nos olhos de Rupert. Um sorriso que era encantamento, com um nariz ligeiramente de forma errada e olhos azuis que eram como jacintos muito escuros. Rupert mal podia esperar para dar-se a conhecer. Mais tarde, e não prematuramente, sua anfitriã os apresentou.

— Athena Carey-Lewis, meu querido. Sem dúvida já a conhecia, não é mesmo? Não? Athena, Rupert Rycroft. Ele não é fantástico? Musculoso e queimado de sol. E com o copo vazio!

Depois da festa, Rupert desembaraçou-se dos amigos e a pôs em seu carro. Foram ao "The Mirabelle", depois ao "The Bagatelle", e somente por ter de estar em Northamptonshire e formar na parada das sete e meia da manhã, é que por fim ele a levou para casa, deixando-a à porta da casinha em Cadogan Mews.

— A casa é sua?

— Não, de minha mãe.

— Ela está aí?

— Não. Não há ninguém. Entretanto, você não pode entrar.

— Porque não?

— Porque eu não quero que entre. E porque você tem que voltar para Northamptonshire.

— Poderei vê-la novamente?

— Não sei.

— Posso telefonar para você?

— Se quiser, tudo bem. Somos os únicos Carey-Lewis na lista. — Athena depositou um beijo na face dele. —Adeus.

E antes que Rupert pudesse detê-la ou mesmo acompanhá-la, ela já tinha descido do carro, cruzado o pequenino jardim, aberto à porta da frente, entrado e fechado a porta firmemente às suas costas. Ele ficou quieto por um instante, os olhos fixos naquela porta, pergun-tando-se, de modo algo estonteado, se não teria imaginado todo o encontro. Em seguida, com um profundo suspiro, pôs o carro em movimento e afastou-se ruidosamente, descendo o Mews e cruzando o arco do final. Chegou a Long Weedon em cima da hora da parada matinal.

Telefonou, porém nunca houve qualquer resposta. Escreveu uma carta, um cartão-postal, mas não foi retribuído. Por fim, em uma manhã de domingo, apresentou-se à entrada da casinha, bateu à porta com o punho fechado e, quando Athena a abriu, usando um robe de seda e de pés descalços, ele lhe jogou um buquê de flores, dizendo:

— Voe comigo para Gloucestershire.

— Por que Gloucestershire? —perguntou ela.

— Porque é lá que eu moro.

— Por que não está em Northamptonshire, treinando cavalos?

— Porque estou aqui e só terei de apresentar-me lá ao anoitecer de amanhã. Por favor, venha.

— Tudo bem — respondeu Athena tranqüilamente. — E o que esperam que eu faça?

Ele não entendeu bem.

— Nada.

— Não foi o que eu quis dizer. Falei sobre a espécie de roupas. Sabe como é. Uma roupa para um baile, outra para caminhadas em terrenos lamacentos, talvez um vestido mais formal para o chá, entendeu?

— Traje de montaria.

- Nunca!

— Nunca?

— Nunca. Odeio cavalos.

O coração de Rupert ficou opresso, porque sua mãe não falava nem pensava em outra coisa. Entretanto, a opressão não foi demasiada, e ele insistiu.

—Alguma coisa para jantar e alguma coisa para a igreja — foi tudo que lhe veio à cabeça.

— Céus, que momentos agitados teremos! Sua mãe já sabe que eu vou?

— Dei-lhe um aviso de última hora. Disse que talvez levasse você comigo.

— Ela não vai simpatizar comigo. Mães nunca simpatizam. Não tenho assunto para conversar.

— Meu pai vai adorá-la.

— Isso em nada melhora a situação. Pelo contrário, apenas cria problemas.

— Athena, por favor. Deixe-me entrar e esperar, enquanto você faz as malas. De nada adianta ficarmos discutindo.

— Não estou discutindo. Procuro apenas avisá-lo de que posso ser o mais rotundo fracasso.

— Enfrentarei esse problema, quando ele surgir.

A visita de Athena a Gloucestershire não foi um sucesso. O lar familiar de Rupert era Taddington Hall, uma vasta construção vitoriana incrustada em jardins de austera formalidade. Além destes ficavam os terrenos da propriedade, as pastagens, as plantações de consumo local, a floresta cultivada, um riacho de trutas e a extensão de terras onde era praticada a caça aos faisões, lugar famoso pelo número de aves mortas que despencavam anualmente do céu. O pai dele, Sir Henry Rycroft, era Governador do Condado, coronel de seu antigo Regimento, Master de cães para a caça à raposa e Presidente dos Conservadores locais, além de dirigir o Conselho do Condado e ter assento no tribunal, como Juiz de Paz. Lady Rycroft também era ativa em seu comitê de obras e, quando não estava organizando as Escotistas, o pequeno hospital sem corpo médico residente ou a Junta Local de Educação, ocupava-se em pescar, fazer jardinagem e ir à caça da raposa. O aparecimento de Athena constituiu uma espécie de choque para os progenitores de Rupert e, quando ela não se apresentou à hora marcada para o breakfast, a mãe decidiu interrogar o filho.

— O que ela está fazendo?

— Dormindo, suponho.

— Certamente deve ter ouvido a sineta.

—Não sei. Quer que eu vá acordá-la?

— Nem pense em semelhante coisa!

— Está bem, não irei. Seu pai intrometeu-se.

— O que a moça faz?

— Eu não sei. Nada, suponho.

—Afinal, quem é ela? — insistiu Lady Rycroft. — Quem são seus pais?

— Você não deve conhecê-los. São da Cornualha.

—Nunca vi uma moça tão indolente. Ontem à noite, ficou apenas sentada. Devia ter trazido algum trabalho para fazer.

— Está falando de tapeçaria? Não acredito que ela saiba como enfiar uma agulha.

— Nunca pensei, Rupert, que você andasse de amores com uma moça tão inútil.

— Eu não ando de amores com ela, mamãe.

— E ela não monta. Que extraordinário... Eu diria que...

Nesse momento, contudo, a porta se abriu e Athena surgiu à vista, usando calças compridas de flanela cinza e uma suéter azul-clara de lã angorá, parecendo tão bonita quanto um pufe para pó-de-arroz.

— Olá — disse ela. — Eu não sabia em que sala seria servido o breakfast. A casa é tão grande, que acho que me perdi...

Não. De maneira alguma foi um sucesso. Sendo o mais velho de dois filhos, Rupert estava destinado a herdar Taddington, e sua mãe tinha fortes e imutáveis idéias sobre o tipo de moça com quem ele deveria casar. A primeira prioridade era de que fosse bem-nascida e bem-relacionada. Afinal de contas, ele era capitão nos Reais e, em tal regimento, a condição social das esposas era imensamente importante.

Em seguida, algum dinheiro não seria de desprezar, embora não houvesse — pelo menos ainda — nenhuma necessidade dele se lançar à caça de uma herdeira. A aparência da moça pouco importava em realidade, desde que possuísse o tipo certo de voz e um decente par de ancas para gerar futuros Rycroft do sexo masculino e, desta maneira, assegurar a continuidade da linhagem. Naturalmente devia ser boa montando um cavalo, e capaz — quando chegado o momento — de lidar com a administração de Taddington, a casa desconexa e de difícil manejo, assim como com os acres de jardim, todos idealizados segundo a vasta e ostentosa escala tão querida dos vitorianos.

Athena era a própria antítese do sonho do casal.

Rupert, contudo, não se preocupou. Não estava apaixonado por Athena e tampouco pensava casar com ela. Não obstante, ficara encantado pela aparência dela, por sua conversa ligeiramente tola e sua mera imprevisibilidade. Por vezes ela o enlouquecia; em outras, ele se sentia tocado até o coração pela infantil falta de malícia que nela percebia. Athena parecia não notar o efeito que produzia nele, sendo bastante provável que desaparecesse em um fim de semana com algum outro rapaz, que sumisse sem avisar para esquiar em Zermatt ou fosse visitar uma velha amiga em Paris.

Finalmente, com a chegada de agosto, ele conseguiu que Athena se definisse.

— Tenho uma longa folga em breve — disse-lhe, sem mais preâmbulos — e fui convidado a caçar gaios silvestres. Em Perthshire. Eles disseram que você também pode ir.

— Eles, quem?

— Os Montague-Crichton. Jamie Montague-Crichton e eu fomos colegas em Sandhurst. Os pais dele são criaturas excelentes, e possuem este maravilhoso pavilhão de caça bem no alto de Glenfreuchie. Um lugar onde só há montanhas, urzes e fogueiras de turfa ao anoitecer. Diga que irá.

— Terei que montar um cavalo?

— Não, apenas caminhar um pouco.

— E choverá?

— Com alguma sorte, não, mas se chover, você pode ficar dentro de casa, lendo um livro.

—Na realidade, não me interessa fazer o que quer que seja. Apenas detesto quando os outros esperam que eu faça coisas.

— Eu sei. Eu compreendo. Então, venha. Será divertido. Ela hesitou, mordendo o rosado lábio inferior.

— Quanto tempo teremos de ficar lá?

— Uma semana.

— E no fim da semana você ainda estará de folga?

— Por que pergunta?

— Farei uma troca com você. Se eu for à Escócia em sua companhia, depois irá à Cornualha comigo? E ficará hospedado em Nancherrow, conhecerá mamãe, papai, Loveday e Edward? E os queridos cachorros e todas as pessoas que eu realmente estimo?

Rupert não só foi apanhado de surpresa, como ficou imensamente satisfeito por este convite não solicitado. Athena lhe demonstrara tão pouco encorajamento, aceitara o seu teimoso interesse com tanta naturalidade, que ele nunca podia afirmar se ela apreciava sua companhia ou simplesmente o tolerava. A última coisa que esperaria era aquele convite para a casa dela.

Com certo esforço, dissimulou o seu prazer. Ficar muito contente poderia assustá-la, fazê-la mudar de idéia. Fingiu considerar a proposta, e então disse:

— Sim. Sim, acho que poderia fazer isso.

— Oh, que ótimo! Sendo assim, irei a esse lugar com você.

— Glenfreuchie.

— Por que os lugares escoceses sempre têm nomes que soam como espirros? Precisarei sair e comprar um monte de tweeds que espetam a pele?

—Apenas uma boa capa de chuva e um par de sapatos adequados. Além de um ou dois vestidos de baile para danças das Highlands.

— Nossa, que imponência! Quando é que você quer ir?

— Partirei de Londres no dia 15. Sendo uma viagem longa, precisaremos de algum tempo.

— Passaremos a noite a caminho de lá?

— Se você quiser.

— Quartos separados, Rupert.

— Tem a minha palavra.

— Tudo bem, eu irei.

Glenfreuchie foi um sucesso, na mesma proporção em que Tad-dington foi um fracasso. O tempo esteve perfeito, o céu do mais puro azul, e a urze deixava as montanhas purpúreas. No primeiro dia, Athena caminhou quilômetros alegremente, ficou ao lado de Rupert no toco de árvore de onde ele espreitava a presa, e mantinha a boca fechada quando lhe dizia para ficar calada. O restante do grupo de caça era composto de pessoas amistosas e informais, de maneira que, como nada era esperado de sua parte, Athena desabrochou como uma flor. No jantar daquela noite, ela usou um vestido longo azul-escuro que transformava seus olhos em safíras, deixando mais ou menos apaixonados todos os homens presentes. Rupert transbordava de orgulho.

Para surpresa dele, na manhã seguinte ela acordou cedo e animada, pronta para mais um dia na montanha. Não desejando que Athena se cansasse além da conta, ele lhe disse, quando ela se sentou à mesa da sala de refeições e consumiu um enorme breakfast:

— Você não precisa ir.

— Não quer que eu vá?

— Mais do que tudo, porém de maneira alguma ficaria magoado se você preferisse passar o dia aqui, ou mesmo a manhã. Poderá ir ao nosso encontro com as cestas do almoço.

— Muito obrigada, mas não quero ser uma cesta de almoço. E também não quero que você me trate como uma violeta definhando.

— Não pensei que estivesse agindo assim.

Para o primeiro levantamento da caça do dia, coube a Rupert o ponto de tocaia mais alto, isto envolvendo uma escalada quase semelhante a montanhismo, porque subiram com dificuldade uma longa e intimidante encosta, por entre a urze que chegava à altura dos joelhos. Era outra gloriosa manhã de agosto. O ar límpido se enchia com o som do zumbido das abelhas e dos pintarroxos da urze trinando a plenos pulmões, unidos ao espadanar de pequenos regatos manchados de turfa, descendo ladeira abaixo aos borbotões até se juntarem ao rio, no sopé do vale profundo. De tempos em tempos, eles faziam alto para refrescar os pulsos e banhar o rosto na torrente fria como gelo até que, acalorados e suados, finalmente chegaram ao topo. Então, todo aquele tremendo esforço foi recompensado pela vista que puderam descortinar dali. Uma brisa fresca soprava de noroeste, enviada pelas encostas azul-ameixa das distantes Grampians.

Mais tarde, no local de espreita com Athena ao seu lado, Rupert esperou silenciosa e pacientemente, com o restante dos caçadores. Ao norte, escondidos dos pontos de tocaia por uma dobra das montanhas uma linha de batedores marchava através da charneca fervente, armados com bandeiras, pedaços de pau e uma boa dose de xingamentos, tangendo os bandos de gaios silvestres adiante deles. As aves ainda não tinham surgido à vista, mas era um clássico momento de intensa excitação, e Rupert foi subitamente invadido por uma sensação de total e dilacerante felicidade, o tipo de êxtase irracional que nunca mais experimentara, desde quando garotinho.

Virando-se, ele se inclinou impulsivamente e beijou o rosto de Athena. Ela riu.

— Por que isso?

— Não faço a menor idéia.

— Devia estar concentrado, não beijando.

— A questão é...

Lá de baixo, da linha de batedores, chegou um brado de "Para o alto!" e um solitário galo silvestre voejou lentamente para cima. Entretanto, quando Rupert endireitou o corpo, levantou a arma e atirou, era tarde demais. A ave conseguira escapar, ilesa. Do meio dos batedores, chegou uma voz claramente audível no ar parado.

— Maldito tolo!

— Eu lhe disse que devia concentrar-se — falou Athena, cheia de si.

Naquele anoitecer, retornaram ao pavilhão de caça às seis horas, queimados de sol e exaustos. Cambaleando no último trecho da trilha que vinha da colina, Athena disse:

— Quero ir direta para um farto banho quente, marrom-escuro e cheirando a fumaça de turfa. Então, me deitarei na cama e provavelmente acabarei dormindo.

— Eu a acordarei.

— Faça isso. Eu odiaria faltar ao jantar. Estou faminta. —Jamie disse algo sobre uma dança campestre esta noite.

— Não é um baile?

— Não. Apenas tapetes enrolados para junto das paredes e discos de vitrola.

— Céus, quanta energia! O único problema é que não sei danças campestres.

— Eu posso ensinar.

— Você sabe dançar?

— Sinceramente, não.

— Que lástima! Vamos estragar a alegria geral.

—Você não estragaria coisa nenhuma. E, hoje, nada estragará este dia.

Famosas últimas palavras! Assim que entraram, a sra. Montague-Crichton, que não acompanhara o grupo na montanha por estar ocupada com deveres domésticos, desceu a escada e aproximou-se deles.

— Athena... Oh, minha querida, eu sinto muito, porém telefonaram de sua casa. —Athena imobilizou-se imediatamente, e Rupert viu a cor fugir-lhe do rosto. — Era seu pai. Apenas para comunicar-lhe que a sra. Boscawen está muito doente. Ele me explicou que ela é bastante idosa. E achava que talvez você quisesse ir para casa.

Foi a reação de Athena a essa mensagem que mudou tudo para Rupert. Porque, como uma criança, ela prorrompeu em lágrimas. Ele jamais vira qualquer jovem tão instantaneamente desatinada e entregue a tão ruidoso choro, algo que deixou bem preocupada a sra. Montague-Crichton, pois, sendo escocesa, era de opinião que sentimentos pessoais não deviam ser demonstrados abertamente em público. Percebendo isto, Rupert passou um braço em torno de Athena, levou-a com firmeza para o quarto dela, no andar de cima, e trancou a porta ao entrar, na esperança de que isto abafasse o som de seus soluços.

Ele chegara a esperar que ela se jogasse na cama com o rosto enfiado no travesseiro e se entregasse ao pesar, mas, ainda soluçando e fungando, Athena já tirava a mala do guarda-roupa, jogava-a aberta sobre a cama e a enchia de roupas apanhadas aos punhados nas gavetas, as quais arrumava de qualquer maneira. Rupert nunca vira ninguém fazer isso antes, exceto nos filmes.

— Athena...

— Eu tenho que ir para casa. Pegarei um táxi. Tomarei um trem.

— Mas...

— Você não compreende. É a tia Lavinia. Papai nunca ligaria para cá, se pensasse que ela ia se sair bem dessa. E, se ela morrer, eu simplesmente não conseguirei suportar, porque ela tem estado lá para sempre. Também não poderei suportar saber que papai e mamãe estão infelizes, sem mim lá para ser infeliz com eles!

— Athena...

— Tenho que ir, imediatamente. Seja bonzinho e informe-se sobre trens, suponho que partindo de Perth. Veja se consigo um compartimento com leito ou coisa assim. Qualquer coisa. Oh, por que eu tinha de estar tão longe agora?

Isto fez Rupert sentir que, de certo modo, poderia ser o culpado. A angústia de Athena o desnorteava, era terrível vê-la tão infeliz.

— Eu a levarei... — disse.

Ele esperava uma reação de soluçante agradecimento a uma incrivelmente desprendida sugestão, mas Athena, imprevisível como sempre, ficou bastante irritada e impaciente.

.— Oh, não seja absurdo! — Ela abrira as portas do guarda-roupa e estava puxando peças dos cabides. — É claro que você não pode. Você está aqui. —Jogando as roupas em cima da cama, foi em busca de outras. —Caçando gaios silvestres. Foi para isso que veio. Não pode simplesmente ir embora e deixar o sr. Montague-Crichton com um caçador de menos. Seria demasiado descortês. — Ela embolou o vestido longo azul e o enfiou em um canto da mala. Depois, virando-se para ele, declarou, com ar trágico: — E você está se divertindo intensamente — declarou, com ar trágico. Tinha os olhos marejados de lágrimas —.. e bem sei como esteve ansiando por isto... durante... tanto... tempo...

O que dizia era a pura verdade, porém em nada melhorava a situação, de modo que ele a tomou nos braços e a deixou chorar. Estava absolutamente perplexo. Vendo Athena sempre tão trivial e alegre, jamais a imaginara capaz de semelhante intensidade emotiva, de tamanho amor, tanto envolvimento com os parentes mais chegados.

De algum modo, talvez houvesse mantido tais sentimentos deliberadamente escondidos dele, mas agora Rupert sentia que estava presenciando o lado oculto da face dela, a pessoa integral que era Athena.

Seu lenço estava imundo, coberto de suor e de graxa da arma, de modo que pegou uma toalha de rosto e entregou a ela, para assoar o nariz e enxugar os olhos.

— Eu a levarei — tornou a dizer. — Iríamos mesmo para a Cornualha; portanto, isto significa apenas que chegaremos lá um pouco antes do que pretendíamos. Explicarei aos Montague-Crichton e sei que eles compreenderão. Entretanto, preciso tomar um banho e vestir roupas limpas. Sugiro que faça o mesmo. Depois disso partiremos, assim que você ficar pronta...

— Não sei por que está sendo tão gentil..

— Não sabe? —Ele sorriu. —Estas coisas acontecem!

E, mesmo para si próprio, isto parecia uma coisa estúpida a dizer. Em realidade, era a declaração do ano.

Todos se mostraram muitíssimo simpáticos e compreensivos. O carro de Rupert foi tirado da garagem e trazido para a porta da frente. Alguém pegou as malas de ambos e as colocou no porta-malas. Jamie prometeu telefonar para Nancherrow e comunicar ao pai de Athena o que estava acontecendo. A sra. Montague-Crichton preparou sanduíches e encheu uma garrafa térmica.

—.. apenas para o caso de precisarem...

Feitas as despedidas, por fim eles partiram, descendo a longa estrada do vale que levava à auto-estrada. Athena havia parado de chorar, mas dizia queixosamente, olhando pela janela:

— Estava tudo caminhando tão bem... Mal cheguei aqui, e já estamos indo embora...

— Nós voltaremos — disse ele.

Suas palavras, no entanto, soavam tão vazias para ambos, que ela não deu resposta.

Quando afinal cruzaram a fronteira entre Escócia e Inglaterra e aproximavam-se de Scotch Corner, a noite já caíra e Rupert sabia que, se não dormisse, provavelmente terminaria cabeceando de sono ao volante e jogando os dois na vala ao longo da estrada.

— Acho que devíamos parar no hotel por esta noite — disse.

Partiremos amanhã bem cedo e, com um pouco de sorte, faremos o resto da viagem sendo ainda dia.

— Tudo bem.

Ela parecia esgotada, e ele colocou um sorriso na voz, a fim de tentar alegrá-la.

— Quartos separados.

Athena ficou calada. Após um momento, disse:

— É o que você quer?

As palavras dela o fizeram estremecer de leve.

— Não é o que você quer?

— Não necessariamente.

A voz dela era muito casual, sem comprometimentos. Encarava a estrada escura à frente deles, além do comprido facho dos potentes faróis do carro.

— Você não me deve nada — disse ele. —E sabe disso. —Não estou pensando em você. Estou pensando em mim.

— Tem certeza de que é o que quer?

—Não estou com o ânimo mais conveniente para ficar sozinha.

— Então, sr. e sra. Smith.

— Sr. e sra. Smith.

E assim eles dormiram juntos, a fadiga de ambos e o desejo dele amenizados no conforto anônimo e impassível de uma enorme cama de casal. E a última pergunta, aquela ainda não feita, ficou respondida, pois nessa noite ele descobriu que Athena, apesar de todos os seus envolvimentos sentimentais, sua fieira de admiradores, seus rápidos fins de semana em Paris, ainda era virgem. Semelhante descoberta foi a coisa mais tocante, mais maravilhosa que jamais acontecera a ele; era como se, gratuitamente, ela lhe tivesse ofertado um presente inestimável que, sabia ele, guardaria bem perto de si, entesourado, pelo resto de sua vida.

Daí o dilema. Por assim dizer, um dilema que se esgueirara por trás dele, mas com o seu subconsciente sabendo que estava lá, aproximando-se, pronto para atacar de súbito a qualquer momento, enquanto ele ficara dizendo a si próprio o tempo todo, vigorosamente, que Athena era apenas mais um relacionamento, mais uma garota. Mentiras. De que adiantava mentir para si mesmo, quando a verdade é que seria insuportável qualquer espécie de existência sem ela? Athena havia, de fato, se tornado o seu futuro.

Pronto. Assunto encerrado. Aceito. Ele inspirou fundo e deixou todo o ar escapar de uma vez, em um longo suspiro de alívio.

— Você parece muito melancólico.

Rupert virou a cabeça, e Athena estava ali, em pé junto às portas-janelas, sorrindo para ele. Usava um vestido sem mangas de linho creme e, em torno da cintura estreita, amarrara uma echarpe salpicada de creme e azul, como para o críquete.

— Você parece uma estrela de matinê fazendo uma entrada — replicou ele. —Alguém pretende jogar tênis?

— E você parece o Juízo Final em pessoa, só que bastante cômodo. Não se levante. — Ela saiu para o gramado e puxou uma segunda cadeira de jardim para perto de onde ele estava. Sentou-se de lado, encarapitada, de modo a encará-lo. — O que motivou o suspiro?

Estendendo o braço, ele lhe segurou a mão.

— Talvez fosse um bocejo. Você dormiu bem?

— Como nunca.

— Só esperávamos vê-la à hora do almoço.

— O sol me acordou. —Já fez seu breakfast?

— Tomei uma xícara de café.

— Na verdade, eu não estava bocejando. Estava pensando.

— Então era o que fazia? Parecia terrivelmente cansativo.

— Eu estava pensando que talvez devêssemos casar-nos. Athena pareceu um tanto chocada. Após um instante, exclamou.

— Oh, céus!

— É uma sugestão tão terrível assim?

— Não. Acontece apenas que surgiu em um momento curioso.

— O que há de curioso sobre isto?

— Não sei. Na realidade, tudo. Tia Lavinia morrendo e depois não morrendo, nós dois disparando estrada afora da Escócia para cá... Enfim, eu sinto que não sei ao certo o que vai acontecer em seguida. Exceto que parecemos oscilar à beira de uma horrível guerra.

Era a primeira vez que Rupert a ouvia emitir uma séria e ponderada afirmativa sobre a situação na Europa. Durante todo o tempo que haviam passado juntos, ela mostrara um ar tão superficial, tão alegre e doce, que ele nunca tocara no assunto, simplesmente por não querer estragar nada, por desejar vê-la continuando daquele jeito.

— Isso a amedronta? — perguntou agora.

— É claro que amedronta. A própria idéia me deixa trêmula. E eu odeio esperar. E ficar ouvindo os noticiários. É como ver areia escorrendo por uma ampulheta, enquanto cada dia se torna mais e mais nebuloso e sem esperanças.

— Se vale como consolo, estamos todos juntos nisso.

— Eu me angustio por pessoas como meu querido pai. Ele já passou por tudo isso antes, e mamãe diz que está ficando desesperado, embora se esforce ao máximo para esconder o que sente. Não por causa dele, mas por todos nós. Principalmente Edward.

— É por causa da guerra... que você receia o casamento?

— Eu não disse isso.

— Pode imaginar-se como esposa de um oficial do exército?

—Não, não posso, mas isto não significa que a idéia me desagrade.

— Seguir o rufar dos tambores?

— Se o que tememos acabar acontecendo, penso que não haverá muito rufar de tambores para seguir.

— É verdade. Assim, por enquanto não tenho muito a oferecer-lhe, exceto e provavelmente anos de separação. Se acha que não poderá enfrentar isso, compreenderei perfeitamente.

Ela respondeu, com absoluta segurança:

— Oh, eu poderia enfrentar isso com facilidade.

— Então, o que não consegue enfrentar?

— Oh, coisas absurdas, que você certamente não acharia importantes.

— Experimente dizer-me quais são.

— Bem... Não estou querendo ser rude nem criticar coisa alguma, mas acho que não me ajustei muito bem em sua família. Admita, Rupert, eu não causei a melhor das impressões.

Ele foi compreensivo.

— Minha mãe é um tanto autoritária, bem sei, porém nada tem de tola. É capaz de tirar o melhor proveito de qualquer situação. E quanto a eu herdar Taddington, assumir a responsabilidade que isso implica, com um pouco de sorte ainda vai demorar décadas. Também respeito meus pais, porém nunca fui intimidado por eles.

— Nossa, você é corajoso! Está querendo dizer que voaria, contra a vontade deles?

— Estou querendo dizer que pretendo casar com alguém a quem ame, não com a Lady Chefe dos Cães de Caça à Raposa e nem com uma possível candidata dos Conservadores.

Por algum motivo, isso a fez rir e, de repente, ela se tornava a sua querida Athena de novo. Rupert passou a mão em torno do pescoço dela, puxou-a para bem perto e a beijou. Ao terminar de beijá-la, ela disse:

— Tenho certeza de que não me encaixo em nenhuma dessas categorias.

Ele tornou a recostar-se na cadeira.

— O que resolve uma das coisas absurdas. Qual é a próxima objeção?

— Promete que não rirá?

— Prometo.

— Bem, a questão é que, na realidade, eu nunca quis casar.

— Nunca quis casar ou estar casada?

— Casar. Quero dizer, bodas, coisas assim. Odeio cerimônias de casamento. Nem gosto de ir a elas. Sempre me dão a sensação de serem uma terrível provação para todos. Particularmente para a pobre noiva.

— Pensei que o dia do casamento fosse o sonho de toda jovem.

— Não para mim. Já compareci a muitos, fosse como dama de honra ou convidada, porém são sempre a mesma coisa, exceto que cada um parece um pouquinho mais extravagante e pretensioso do que o outro. Como se a idéia geral fosse superar o último desempenho, exibindo um espetáculo ainda mais dispendioso e teatral. Além disso, casamentos exigem meses de organização, há acessórios, listas de convidados, tias idosas com recados sobre a lua-de-mel, e a obrigação de aceitar-se como dama de honra a prima de alguém, que costuma ser francamente horrorosa. Não se falando em centenas de medonhos presentes de casamento. Torradeiras, vasos japoneses e quadros que nem em um milhão de anos, a gente desejaria pendurar na parede. Fora o tempo que se gasta escrevendo hipócritas cartas de agradecimento, com os dedos cruzados. Todos ficam tensos, infelizes, e há uma infinidade de choros. O milagre é que qualquer pessoa ainda enfrenta a cerimônia de um casamento, porém aposto como a maioria das moças tem colapsos nervosos na lua-de-mel...

Ele ouviu tudo isso pacientemente, até que Athena afinal ficou sem fôlego. O discurso dela foi seguido por um longo silêncio. Em seguida ela disse, com ar birrento:

— Eu avisei que era um motivo absurdo.

— Não — respondeu Rupert. — Não o acho nem um pouco absurdo. Contudo, creio que se concentrou no não-essencial. Estou falando de toda uma existência, ao passo que você aponta um único dia. Uma tradição. Pela maneira como o mundo está indo, penso que temos todo o direito de jogar a tradição pela janela.

— Odeio dizer isto, Rupert, mas minha mãe ficará arrasada.

— Claro que não ficará! Ela a ama e saberá compreender. Agora, já abordamos todos os pontos, os prós e os contras. E quanto ao casamento em si, chegada a conjuntura, em realidade ninguém precisará estar lá, além de nós dois.

— Está mesmo falando sério?

— Claro que estou.

Athena ergueu a mão dele e a beijou. Quando ergueu o rosto para fitá-lo novamente, Rupert viu que os olhos dela estavam brilhantes de lágrimas não derramadas.

— Que tolice sentir vontade de chorar! Enfim, eu nunca pensei que isso pudesse acontecer: que tivesse um grande amigo e um amante, ambos sendo uma única pessoa. Você é o meu amante de Scotch Corner, Rupert. Dá a impressão de algo para comer, não? Contudo, a parte do grande amigo é a mais importante, por ser a que dura mais tempo.

— É verdade — disse-lhe Rupert, e precisou esforçar-se para manter a voz firme, tão comovido estava pelas lágrimas dela, e tão cheio de amor protetor. — Isso é o que realmente importa.

— Você tem um lenço?

Ele lhe passou o lenço limpo, e ela assoou o nariz.

— Que horas são, Rupert?

— Quase meio-dia.

— Eu gostaria que já fosse hora do almoço. Estou morrendo de fome.

Foi somente no sábado, último dia de sua permanência em Porthkerris, que Judith partiu para Pendeen, a fim de ver Phyllis. Os motivos do adiamento eram vários. Claro está que ela queria ver Phyllis, de maneira alguma achava que isto significasse cumprir um dever; apenas havia muita coisa acontecendo, e os dias corriam com alarmante velocidade. Havia ainda a complicação de comunicar-se com ela e o tempo que levaria para entrar em contato por carta. Judith enviara a Phyllis um cartão-postal, sugerindo uma ou duas datas, e finalmente recebeu a resposta dela, escrita em uma folha de papel pautado, retirada de um caderno.

Sábado seria o melhor dia. Venha por volta de três horas e tomaremos chá. Moro a pouco mais de quilômetro e meio depois de Pendeen. Na fila de casas da esquerda. Número dois. Cyril está em Geevor, no turno do fim de semana, mas eu e Ana estaremos esperando. Beijos. Phyllis.

— Sábado. É o meu último dia! — protestou ela para Heather. — Oh, que pena, eu devia ter marcado isso antes.

— Não se preocupe. Mamãe quer ir a Penzance comprar um chapéu para o casamento de Daisy Parson, e, se eu não for com ela, voltará para casa com alguma coisa parecendo um urinol. Nós duas podemos fazer alguma coisa ao anoitecer. Pediremos a Joe que nos leve ao "Palais de Danse".

Assim, na tarde de sábado Judith estava a caminho, subindo a colina em seu carro, a fim de sair da cidade. Deixou lojas e sua antiga escola para trás, assim como fileiras de casas em terraço, cada fileira um pouco mais alta do que a vizinha. A baía e o porto sumiram atrás dela, e logo alcançava a encruzilhada de estradas indicando a direção para Land's End.

O tempo continuava excelente, quente e ensolarado, mas um vento cortante soprava do mar, e o Atlântico estava coroado de espumas brancas nas ondas. As nuvens velejavam pelo céu, e quando o carro prosseguiu, subindo para a charneca em terceira velocidade, ela viu as sombras disparando através das colinas castanho-avermelhadas. Do topo, a vista era espetacular — os baixios de verdejantes terras cultivadas, penhascos distantes, tojo amarelo, salientes promontórios, o límpido horizonte e o mar índigo. Por um momento, ficou tentada a parar ao lado da estrada, baixar o vidro da janela e apenas contemplar tudo aquilo por um instante, mas Phyllis a esperava e não havia tempo a perder. Moro a pouco mais de quilômetro e meio depois de Pendeen. Na fila de casas da esquerda. Não era difícil seguir as indicações de Phyllis porque, uma vez tendo cruzado Pendeen e passado pela Mina Geevor, onde estava o pobre Cyril neste momento, trabalhando no subsolo profundo, o ambiente rural mudava abruptamente, tornando-se ermo. Primevo, quase proibitivo. Nada mais de pequenas e encantadoras propriedades em meio a campos de pastagens verdejantes, rendilhados por muros de pedra que datavam da Idade do Bronze. Agora não havia uma só árvore à vista, nem mesmo entortada pelo vento.

As moradias dos mineiros no terreno em plataformas, quando Judith chegou lá, eram um ponto isolado e irracional, no meio de nenhures. As construções davam a idéia de uma fila de paredes de tijolos, acimentadas juntas e depois derrubadas ao acaso, sendo em seguida abandonadas onde haviam caído. Cada parede de tijolos possuía no térreo uma porta e uma janela, havendo outra janela no andar de cima. O telhado de todas as casas era de ardósia cinzenta. Separavam-se da estrada por um muro de pedras, e depois por pequenos e comprimidos jardins à frente. O jardim da número dois exibia uma faixa de grama áspera, alguns amores-perfeitos e uma profusão de ervas daninhas.

Judith desceu do carro, pegou o buquê de flores e os pequenos embrulhos que trouxera para Phyllis, abriu um portão desconjuntado e começou a cruzar a passagem que dividia o pequeno jardim. Entretanto, estava apenas a meio caminho, quando a porta se abriu e Phyllis correu a recebê-la, trazendo nos braços a pequenina Anna.

— Judith! Fiquei espiando pela janela, esperando você chegar. Pensei que pudesse ter perdido o caminho. — Phyllis olhou para a estrada, com ar incrédulo. — Esse carro é seu? Não pude acreditar, quando você disse que viria em seu carro. É lindo! Nunca vi nada tão novinho...

Ela estava mudada. Não exatamente envelhecida, mas perdera peso e, com ele, parte de seu frescor. A saia e a blusa larga tricotada dançavam no corpo, como se um dia tivessem pertencido a alguém de tamanho muito maior. Os cabelos lisos pareciam secos como palha. Os olhos, no entanto, brilhavam de excitamento e nada era capaz de apagar-lhe o sorriso.

— Oh, Phyllis!

As duas abraçaram-se. Em todos os anos passados, Jess nos braços de Phyllis é que impedira o seu abraço. Agora era Anna que se interpunha entre elas, mas não o suficiente para atrapalhar, exceto por mostrar uma expressão profundamente desaprovadora. Judith achou graça.

—Ela parece achar que estamos fazendo algo terrivelmente errado. Olá, Anna! — Anna a encarou sinistramente. — Que idade ela tem?

— Oito meses.

— É uma gracinha rechonchuda.

— E tem vontade própria. Vamos, entre, o vento está impossível, e não queremos ficar aqui fora, com todos os vizinhos olhando...

Dando meia-volta, ela tornou a cruzar a entrada da casa e Judith a seguiu, entrando diretamente para uma salinha que, sem dúvida, era o único espaço para receber alguém. Pela janela penetrava pouca claridade, de maneira que lá dentro era um tanto escuro, mas um fogão da Cornualha mantinha o aposento quente, e uma ponta da mesa havia sido cuidadosamente arrumada para o chá.

— Eu lhe trouxe algumas coisinhas... — disse Judith, depositando os embrulhos na ponta livre da mesa.

— Oh, Judith! Não era preciso... — Os olhos de Phyllis no entanto, brilhavam de feliz expectativa ao pensar nas surpresas inesperadas. — Espere só um instantinho, enquanto ponho a chaleira no fogo para bebermos uma xícara de chá — disse, segurando o bebê contra o ombro, e depois puxou uma cadeira, na qual se sentou com Anna no colo. A menininha pegou uma colher de chá e a enfiou desajeitadamente na boca. — A minha queridinha está com os dentinhos nascendo.

— Talvez devêssemos colocar as flores na água.

— Flores! Rosas! Oh, mas há anos que não vejo rosas, não como estas. E que perfume! Onde vou colocá-las? Não tenho jarro nenhum...

— Uma caneca serviria. Ou um pote de geléia. Diga-me onde encontrar um.

Phyllis começou a desembrulhar delicadamente o papel de seda que enrolava as flores de longas hastes.

— Naquele armário há um velho pote de picles. E a torneira fica logo depois da porta, nos fundos, no cômodo de lavar. Oh, vejam só que maravilha! Já tinha esquecido como são lindas!

Judith foi abrir a porta do armário, descobriu o pote de picles e, saindo com ele pela porta dos fundos, desceu dois degraus para chegar a um cavernoso recinto onde eram lavadas as coisas, um telheiro inclinado de dupla altura, anexado aos fundos da casinha de dois aposentos. O piso era de laje, a caiação das paredes soltava pedaços, e tudo estava impregnado com o cheiro de sabão caseiro e da encharcada superfície de madeira ao lado da pia, onde a louça era posta para secar. O frio e a umidade deixavam o ambiente gélido. A um canto, como um enorme monstro, cochilava um boiler para ferver roupas, e também um tanque de argila sob o qual ela viu uma bacia de metal para banho. O tanque tinha uma torneira, e um aberto lance de degraus de madeira conduzia ao aposento do andar de cima. Evidentemente, o bebê dormia com o pai e a mãe.

Nos fundos daquele recinto havia uma porta envidraçada na metade superior, mal ajustada e fonte de uma frígida corrente de ar. Através da vidraça, Judith viu um pátio de cimento, um varal com esvoaçantes fraldas e camisas de trabalho, um frágil carrinho de bebê e uma desconjuntada construção que certamente abrigaria a privada. Era neste desolador recanto que Phyllis sem dúvida passaria a maior parte do tempo, acendendo o fogo debaixo do boiler para lavar a roupa da família ou pegando no fogão uma chaleira de água quente para lavar uma pia cheia de louça. Imaginar a dura labuta envolvendo tão-somente a lida com as tarefas normais da vida diária deixou Judith angustiada. Não era de admirar que Phyllis estivesse tão magra. Chegava a ser quase impossível compreender como alguém poderia, antes de mais nada, construir semelhante casa sem pensar na mulher que teria de trabalhar nela. Somente um homem, decidiu com amargura.

— O que está fazendo? — chamou Phillys, pela porta aberta. — Estou cansada de esperar.

— Já vou.

Judith abriu a torneira solitária, encheu o pote de picles e o levou de volta para a sala, fechando a porta firmemente ao entrar.

— Um lugar horrível esse dos fundos, não acha? No inverno fica gelado, a menos que se ponha o boiler para ferver.

Phillys, no entanto, disse isso com franca jovialidade, evidentemente não achando que fossem incômodas tão primitivas condições. Colocou as rosas no pote de picles, uma por uma, e depois recostou-se na cadeira para admirá-las.

— As flores modificam tudo, não é mesmo? Fazem um lugar parecer completamente diferente.

— Abra as outras coisas, Phyllis.

Phyllis demorou algum tempo desatando cordéis e dobrando papéis que seriam postos de lado, para uso futuro.

— Sabonetes! Lavanda de Yardley! Exatamente o que sua mãe costumava usar. Não vou gastá-los, vou guardá-los. Dentro de uma gaveta, com minha roupa de baixo. E isto aqui, o que é?

— É para Anna.

— Oh, vejam só! Um casaquinho! — Phyllis ergueu o pequenino agasalho. — Mal se pode dizer que ela já teve uma coisa nova, sempre vestindo roupas usadas, desde o dia em que nasceu... Veja só isto, Anna. Não é lindo? Poderá usá-lo domingo que vem, quando for ver a vovó. E que lã tão macia! Você vai parecer uma princesinha!

— E isto é para Cyril, mas, se ele não gostar, você pode comê-los. Pensei em cigarros, mas não sabia se ele fumava.

— Não, ele não fuma. Toma um copo de cerveja, mas não fuma. Diz que ataca seu peito. Cyril tosse muito. Creio que deve ter algo a ver com trabalhar lá embaixo, na mina.

— Mas ele está bem?

— Oh, está bem. É uma pena que hoje esteja fora. Você não chegou a conhecê-lo, nem mesmo depois de todo aquele tempo em que fiquei com sua mãe?

— Eu o conhecerei qualquer dia.

— De certo modo — disse Phyllis — é até melhor sem ele aqui. Assim, podemos conversar melhor. — Ela retirou o envoltório do último pacote. —Oh, pelo amor de Deus, bombons! Cyril é louco por bombons... Veja a fita, Anna, e que linda caixa! Está vendo o gatinho e o cachorrinho em suas cestinhas? É maravilhoso, Judith. Tudo maravilhoso. Quanta gentileza sua...

Ela sorria, estonteada de felicidade, porém havia o brilho das lágrimas nos olhos, e Judith se sentiu invadida pela culpa. Tinha trazido coisas tão insignificantes, e ali estava Phyllis, quase chorando de gratidão.

— Acho que a chaleira está fervendo — disse.

— Sim, está mesmo — respondeu Phyllis.

Ajeitando Anna à cintura, ela ficou rapidamente em pé para resgatar a chaleira sibilante e preparar o chá.

Embora de maneira esporádica, no transcorrer dos anos elas duas sempre haviam mantido contato por meio de cartas e cartões de Natal, mas, mesmo assim, muito havia para falar e numerosos detalhes a serem preenchidos. Na mente de Phyllis, entretanto, acima de tudo havia o fato de que Judith, aos dezoito anos, era realmente a proprietária de um carro. E sabia dirigi-lo! Para ela, isto chegava às raias do milagre, era algo nem sequer sonhado. Tornava-se impossível esquecer tal realidade.

— Quando foi que o conseguiu? Como, por Deus, você arranjou Na linguagem de Phyllis, arranjar significava pagar por. "Não posso arranjar um vestido novo", ela diria ou "Não podemos arranjar férias este ano".

Judith hesitou. Parecia terrivelmente injusto estar naquela modesta casinha, com Phyllis parecendo tão necessitada, e falar a respeito de dinheiro. Era evidente que, ali dentro, muito pouco havia para ser economizado. Entretanto, era uma coisa que ela estava decidida a desabafar. Afinal, quando tudo acontecera, não lhe fora possível descrever o sucedido em uma carta para Phyllis. As palavras, simplesmente, faziam tudo aquilo parecer demasiado materialista e cobiçoso. Nos velhos tempos em Riverview, entretanto, Phyllis se tornara a mais estimada amiga de Judith, a mais confiável das confidentes, e ela não queria que isso mudasse, algo que sem dúvida aconteceria, se entre ambas pairassem segredos não ditos.

—.. foi tia Louise, Phyllis — disse ela por fim. —Nunca escrevi a você falando nisso, porque queria que estivéssemos juntas quando lhe contasse. Acontece que, com a morte dela, herdei todo o seu dinheiro, sua casa... e tudo o mais. Tia Louise deixou testamento.

— Oh! —Phyllis ficou de boca aberta, ao ouvir tão extraordinária notícia. — Não pensei que essas coisas acontecessem a pessoas de verdade. Achava que não passavam de histórias do Peg's Paper.

— Eu também não conseguia acreditar. Levei séculos para me acostumar com a idéia. Naturalmente, só receberei a herança quando fizer vinte e um anos, mas o sr. Baines, o advogado, e tio Bob Somerville são meus curadores, e quando tenho muita necessidade de alguma coisa ou quando eles acham que eu deveria tê-la, então me dão sua permissão.

Phyllis tinha ficado vermelha de excitamento.

— Estou tão satisfeita por sua causa...

—Você é um amor. E eu me sinto até um pouco envergonhada por ter tido tanta sorte...

—Não há nada para deixá-la envergonhada. A sra. Forrester queria que fosse a herdeira, então, por que você não deveria ser? Uma sorte dessas não poderia ter acontecido a uma pessoa mais doce. E ela devia ter pensado em tudo direitinho, ouça o que lhe digo, sua tia não era nenhuma tola. Uma senhora de excelente coração, foi o que sempre pensei, embora tivesse um modo de ser curioso. Acho que se poderia dizer que era uma pessoa direita... — Phyllis meneou a cabeça, visivelmente perplexa. — A vida é engraçada, não? Lá estava você, com seis pence para seus gastos, e agora é dona do seu próprio carro. Quem diria! E sabendo dirigi-lo, ainda por cima. Eu me lembro de sua mãe toda nervosa como uma galinha choca, sempre que precisava sair naquele pequeno Austin. Enfim, ela tinha motivos para ficar nervosa quando a gente pensa na maneira como a sra. Forrester terminou. Uma coisa terrível. Um fogaréu no alto da charneca. A gente podia avistá-lo por quilômetros. E era ela. Foi difícil acreditar quando li no jornal, na manhã seguinte. Muito difícil. Enfim, ela era um perigo como motorista. Cada criatura de West Penwith sabia disso. O que, de maneira nenhuma, justificou o acontecido.

— Sim — concordou Judith. — Não justificou.

— Fiquei preocupada com o que aconteceria a você. Naquela época, quero dizer. Pensei então que talvez ficasse aos cuidados dos Somerville. Não perguntei ainda por eles, perguntei? Como vai a sra. Sommerville? Eu gostava dela, sempre me fazia rir, ora se fazia, com seus modos engraçados. E também gostava quando ela vinha passar tempos em Riverview. Não era nem um pouco arrogante.

— Pelo que sei, estão todos muito bem. Meus avós morreram, com meses de distância um do outro. Pensei que fosse triste para mamãe e tia Biddy, mas acho que foi também um certo alívio. Tia Biddy vivia viajando para o vicariato, querendo saber se eles estavam bem, se não passavam fome ou qualquer outra coisa.

— A velhice é uma coisa terrível. Minha avó ficou assim. Morava sozinha e não se preocupava em alimentar-se, ou então esquecia de comer. Eu ia lá de vez em quando e não via uma migalha de comida naquela casa, só a coitada da velhinha, sentada, com o gato no colo... Posso compreender o alívio que sua tia Biddy deve ter sentido.

— Ela comprou uma bonita casinha perto de Bovey Tracey. Já estive lá umas duas ou três vezes. Na maioria do tempo, entretanto, fico com os Carey-Lewis, em Nancherrow. Volto para lá amanhã... — Mesmo quando dizia isso, ela podia sentir o prazer na própria voz, o sorriso em seu rosto. Edward. Amanhã veria Edward novamente. Judith não pensava nele o tempo todo, não ficava com a idéia fixa nele e nem ansiava para que ele estivesse lá. Não estava apaixonada e tampouco alucinada pelo rapaz. No entanto, quando ele lhe vinha à mente ou tinha o nome mencionado casualmente em uma conversa, era impossível ignorar o salto de seu coração, a sensação de entontecedora felicidade. E agora ocorria-lhe, ali na pobre casinha de Phyllis, que talvez o ápice da felicidade fosse estar sem uma pessoa, mas, ainda assim, saber que logo estaria de novo com essa pessoa. —.. amanhã de manhã.

— Que ótimo! A essa altura, eles devem ser como sua própria família. Quando você escreveu contando que ia ficar com eles, parei de preocupar-me com o que poderia acontecer-lhe. Achei que ia ficar muito bem. E depois, aquele rapaz que você tornou a encontrar lá...

Judith franziu a testa. Por um momento, não imaginou em quem Phyllis estaria falando.

— Rapaz?

— Você sabe. Escreveu para mim e me contou. Aquele rapaz que conheceu no trem, no anoitecer em que você, sua mãe e Jess voltavam no Natal em Plymouth. E lá estava ele, em casa dos Carey-Lewis...

Judith recordou prontamente.

— Oh! Você está falando de Jeremy Wells.

— Claro que estou. O jovem médico. Ele continua indo lá?

— Sim, continua, e não parece mais tão acanhado. Mal o vemos agora. Quando deixou o Hospital Saint Thomas, voltou para Truro e começou a clinicar com o pai, de modo que agora é um ocupado médico rural, com pouco tempo para a vida social. Entretanto, às vezes toma o lugar do pai, se alguém adoece na casa. Tive uma gripe horrível na última Páscoa, e ele me visitou e foi extremamente gentil.

— Não sonha mais com ele? Parecia ter ficado atraída pelo rapaz, no trem.

— Oh, isso foi há anos. De qualquer modo, ele agora está com mais de trinta anos. Velho demais para mim.

— Bem, mas...

Era claro que Phyllis não pretendia mudar de assunto, e insistia em saber da vida amorosa de Judith. Entretanto, nem com Phyllis ela desejava partilhar o segredo de Edward. Procurando algum meio de desviar a conversa para um assunto mais corriqueiro, encontrou a saída ao olhar para Anna.

— Oh, Phyllis, acho que Anna está com sono.

Phyllis baixou os olhos para sua filha. Tendo bebido leite de uma caneca de lata e comido o pão com manteiga de um prato, ela agora tinha o polegar firmemente enfiado na boca. Seus olhos pesavam sonolentamente, os longos cílios lançando sombras nas bochechas róseas.

— Tem razão. —A voz de Phyllis baixou para um sussurro. — Ela não dormiu esta manhã. Vou deixá-la no carrinho. Certamente vai tirar uma boa soneca...

Ela se levantou, erguendo suavemente a criança nos braços.

—.. o meu amorzinho... Mamãe vai pôr você no seu carrinho. — Phyllis abriu a porta nos fundos da sala e saiu para o telheiro de lavar roupas. —... durma, que o papai logo estará em casa...

Sozinha, Judith permaneceu onde estava. O vento ganhava força, vindo dos penhascos, sibilando através da charneca e sacudindo a janela mal ajustada. Abraçando a xícara de chá nas duas mãos, ela olhou em torno e constatou, com tristeza, que aquilo ali não era muito semelhante a uma casa. Miserável e mal apetrechada. Tudo quanto Judith via comprovava pouco dinheiro e tempos difíceis. Claro que a limpeza era absoluta, porém nada tinha de alegre. O piso era coberto com linóleo, rachado em vários pontos, e tão gasto, que o padrão original desaparecera quase por completo. Um desbotado tapete de retalhos jazia junto da lareira, e a única cadeira de braços expelia crina por um buraco no surrado estofamento de veludo. Ela não viu um rádio, telefone ou quadros nas paredes. Apenas um berrante calendário comercial, pendendo de um prego. As polidas maçanetas de cobre do fogão e o cintilante guarda-fogo de cobre da lareira eram as únicas coisas alegres a serem vistas. Judith recordou Phyllis fazendo paninhos de crochê para o enxoval, e perguntou-se o que teria acontecido a esses tesouros. Não havia nenhum sinal deles na sala. Talvez estivessem no quarto dela...

Phyllis já voltava. Judith se virou, quando ela fechou a porta.

— Anna está bem?

— Dormiu logo, a queridinha. — Ela pegou o bule e tornou a encher as xícaras. — E agora — Phyllis recostou-se na cadeira — que o melhor fique por último. Fale-me sobre sua mãe e Jess...

Isso levou algum tempo, mas Judith trouxera a última carta de Cingapura e uma carteira de instantâneos tirados por seu pai.

—... esta é a casa deles... e aqui está Jess, com o jardineiro chinês.

— Veja só o tamanho dela!

— E esta aqui foi tirada no Clube de Críquete de Cingapura, durante uma festa ou coisa assim. Mamãe não está bonita? E aqui estão eles nadando. Aqui, mamãe está indo jogar uma partida de tênis. Ela recomeçou a jogar, sempre no fim da tarde, quando fica mais fresco.

— Deve ser um lugar maravilhoso... —comentou Phyllis, tornando a examinar as fotos.

— Lembra-se de que ela não queria ir? Pois agora mamãe adora aquilo lá! Há sempre muita movimentação. Festas em navios da Marinha e em quartéis do Exército. Naturalmente, o calor é terrível, muito mais do que em Colombo, porque há muita umidade, porém ela parece ter-se acostumado a isso. E todos dormem a tarde inteira.

— E agora que terminou a escola, você irá ao encontro deles. Nem dá para imaginar! Quando é que parte?

— Já tenho passagem reservada para outubro...

— Não perdeu tempo... Quanto tempo ficará lá?

— Um ano. Depois, com um pouco de sorte, vou para a Universidade. — Ela pensou nisso e suspirou. — Não sei, Phyllis, eu realmente não sei...

— O que quer dizer com "não sei"?

— Não sei o que farei, se houver guerra.

— Está falando desse Hitler, não? Ele não é ninguém para impedir você de estar com sua mãe, seu pai e Jess!

— Suponho que as linhas de navegação continuarão funcionando. A menos que todos os vapores sejam transformados em navios de tropas, navios-hospital ou coisa semelhante.

— Oh, eles vão continuar navegando. Você tem de ir. Ansiou tanto tempo por isso! — Phyllis ficou calada e, após um instante, meneou a cabeça. —É terrível, não? Tudo tão incerto... Tão errado! O que será que Hitler cobiça tanto? Por que ele não deixa os outros em paz? E aqueles pobres judeus. Que mal há em ser judeu? Ninguém pode mudar a maneira como nasceu. Somos todos filhos de Deus, não vejo motivos para revirar o mundo de cabeça para baixo, separar famílias...

Phyllis pareceu tão desolada, que Judith procurou animá-la.

— Oh, mas vocês estarão bem, Phyllis. A mineração é muito importante. Sem a menor dúvida, será classificada como atividade de exceção. Cyril não será convocado, não irá tornar-se soldado. Continuará trabalhando em Geevor.

—Esperanças perdidas! — exclamou Phyllis. — Ele irá, fique certa. Já se decidiu, ora se já! Atividade de exceção ou não, se houver guerra, Cyril pretende alistar-se na Marinha.

— Alistar-se na Marinha! Ora, mas por que ele faria isso, se não tem que ir para a guerra?

—A verdade — admitiu Phyllis — é que ele está farto de trabalhar na mina. O pai dele foi mineiro, mas Cyril nunca quis ser um. Desde garotinho, seu sonho era ir para o mar. Para a Marinha Mercante ou qualquer coisa, mas o pai dele nem queria ouvir falar nisto e, vivendo neste lugar, não havia muita coisa mais que Cyril pudesse fazer. Aos quatorze anos deixou a escola, e isso foi tudo.

Aflita por Phyllis como estava, Judith sentiu uma certa mesquinha solidariedade por Cyril. Não podia imaginar nada pior do que alguém ser forçado a trabalhar debaixo da terra, se não era esse o seu desejo. Entretanto, mesmo assim ele agora era um homem casado, com responsabilidades.

— Está querendo dizer que, se houver guerra, ele então agarrará sua oportunidade?

— É mais ou menos isso.

— E quanto a você E ao bebê?

— Não sei. Acho que daremos um jeito.

Bem, agora surgia mais uma ansiedade. As perguntas saltitavam em sua mente, porém uma era mais importante do que todas as outras.

— De quem é esta casa?

— Da Companhia de Mineração. Eles a ofereceram a Cyril antes de nos casarmos. Se não oferecessem, ainda estaríamos de namoro. Não tínhamos nem um banquinho por mobília, mas nossas famílias ajudaram. Minha mãe nos deu a cama, e a avó de Cyril nos deixou esta mesa e algumas cadeiras.

— Vocês têm que pagar aluguel?

— Não. É uma casa vinculada ao emprego dele.

— Então... se Cyril for para a guerra, você terá de sair daqui?

— Eles não me deixariam continuar aqui por conta própria. Precisam da moradia para alguém mais.

— Nesse caso, o que aconteceria?

— Acho que eu voltaria a morar com minha mãe.

— Na casa em Saint Just? Ora, Phyllis, lá não haveria espaço para todos vocês!

— Terá de haver.

— Oh, isso é cruel demais!

— Bem que tentei fazer Cyril desistir dessa idéia, Judith. Quis que ele visse a situação pelo meu ponto de vista, mas é um homem muito teimoso, eu lhe digo. Tudo o que ele já quis na vida foi ir para o mar. — Ela fungou. — Às vezes, até penso que ele reza para a guerra começar.

— Você nem deve imaginar tais coisas. Tenho certeza de que ele não deseja isso. Creio que seu marido não faz idéia dos perigos que enfrentará, não apenas no mar, mas quanto a canhões, torpedos, submarinos e bombas.

— Já disse tudo isso para ele, mas não se pode impedir que um homem vá lutar por seu país. Não se pode tirar de um homem a única coisa que já quis na vida.

— Bem, acho tudo isso muito injusto. E quanto ao que você quer...?

— O que eu quero? Sabe o que eu queria? Às vezes penso nisso. Eu queria algum lugar para morar que fosse bonito, com flores e um banheiro de verdade. Fiquei mal acostumada, morando com vocês em Riverview. Aquele foi o primeiro banheiro que vi, com a água sempre saindo quente da torneira e o cheiro do sabonete de sua mãe. E o jardim... Nunca esqueço aquele jardim, onde nos sentávamos nas tardes de verão, tomando chá em piqueniques, e tudo isso. E flores por toda parte... Plantei amores-perfeitos na frente desta casa, porém lá não bate sol. Só há vento. E no pátio dos fundos a gente não encontra um só torrão de terra. Não que esteja me queixando. Afinal, temos um teto em cima de nossas cabeças, bem sei, e provavelmente esta será a melhor casa que chegarei a ter. Só que não custa nada sonhar, não é mesmo?

Judith meneou a cabeça.

— É, não custa nada.

As duas ficaram novamente em silêncio, porque de repente parecia não haver muito mais sobre o que falarem. Simplesmente era tudo por demais terrível e deprimente. Por fim, foi Phyllis quem rompeu o tenebroso vazio. Recostou-se na cadeira e sorriu.

—Não sei o que estamos fazendo, sentadas aqui como dois velhos em um funeral — disse, e Judith recordou, com amor e gratidão, que Phyllis sempre fora capaz de descobrir o lado divertido de uma situação, por pior que esta fosse. — Carrancudas como estávamos, íamos ambas levar um tiro...

— Como é mesmo que sua mãe dizia, Phyllis? Não se preocupe, isto pode nunca acontecer.

— E se acontecer, sairá tudo na água do banho. — Phyllis ergueu a tampa do bule e olhou o que havia lá dentro. — Está me parecendo frio como gelo e negro como tinta. Vou botar a chaleira no fogo outra vez e teremos um bule fresco.

A tarde ia avançada, quando Judith finalmente despediu-se, entrou em seu carro e iniciou o trajeto de volta a Porthkerris. O tempo sofrera uma mudança total. Enquanto ela e Phyllis conversavam, as nuvens acumularam-se e espessaram-se, vindas do mar e trazendo consigo um nevoeiro molhado que se estendia por sobre a terra, como fogo. Anna tivera que ser acordada e trazida novamente para dentro, a fim de não apanhar chuva, e Phyllis abrira a porta do fogão, apenas pelo prazer de verem os carvões em brasa. Agora, os limpadores de pára-brisa moviam-se para lá e para cá, enquanto a serpenteante estrada na charneca adquiria um tom plúmbeo e molhado, uma fita de cetim cinza-escuro, desenrolando-se em muitas curvas no solo encharcado.

Tudo era suficientemente depressivo, mesmo sem o peso da preocupação com Phyllis, que agora ocupava a mente de Judith. Nós conseguimos uma casa, ela lhe tinha escrito. Vamos casar. Depois, mais tarde, Vou ter um bebê — e tudo parecera tão certo, tão exatamente o que Phyllis sempre quisera e que, acima de tudo, merecia! A realidade, no entanto, era uma desilusão, tendo sido doloroso separar-se dela e deixá-la abandonada naquela casinha desagradável e primitiva, fincada no meio de nenhures. Após as despedidas, depois que Judith colocou seu carro na estrada e iniciou a volta para casa, Phyllis e o bebê haviam permanecido na porta aberta da casa, acenando. Ela vira seus reflexos no espelho lateral, ficando cada vez menores à medida que se afastava, porém Phyllis continuava acenando, até que uma curva da estrada fez com que mãe e filha desaparecessem de vista.

Injusto. Era tudo absolutamente injusto.

Judith evocou a Phyllis dos velhos tempos em Riverview. Todos a tinham amado, confiavam nela e a tratavam como se fosse da família, o que certamente era o motivo dela ter permanecido lá, até o fim. Recordando, era impossível lembrar-se de alguma vez em que Phyllis se mostrara amuada ou irritada, sua cozinha sempre tendo proporcionado um cálido refúgio de risos e tagarelices. Podia recordar caminhadas com Phyllis, colhendo flores silvestres, aprendendo seus nomes e depois arrumando-as em um pote de geléia para o meio da mesa da cozinha; e a agradável visão de Phyllis, animada em seu enorme avental de algodão listrado de rosa e branco, correndo atrás de Jess na escada ou carregando chás de piquenique pelo gramado até debaixo da amoreira, onde se tinham sentado. Ainda mais pungente era a lembrança do agradável cheiro de talco que ela usava depois do banho, e de como seus cabelos ficavam macios, quando mal acabava de lavá-los...

Enfim, de nada adiantava ficar sentimental. O fato é que Phyllis escolhera casar com Cyril; aliás, levara anos esperando por isso. A vida de uma esposa de mineiro costumava ser dura e, sendo filha de mineiro, ela sabia disso melhor do que ninguém. Afinal, o bebê era uma gracinha, e presumivelmente eles tinham o suficiente para comer, mas... como isso era injusto!

Por que deveria Phyllis — logo Phyllis — ter de viver e criar sua filha em tais condições, só porque seu marido era mineiro? Por que mineiros não podiam ter casas atraentes, como os Warren? Por que ser merceeiro era muito mais compensador do que ser mineiro? Evidentemente, as pessoas que faziam um horrível trabalho debaixo da terra, deveriam ganhar mais dinheiro do que as ocupando atividades agradáveis. E por que algumas pessoas, como os Carey-Lewis, deveriam ser tão ricas, tão privilegiadas, tão... e isto precisava ser dito... mimadas, quando uma criatura realmente admirável como Phyllis precisava ferver água antes de poder lavar sua louça ou atravessar o pátio, estivesse o tempo como estivesse, se quisesse ir ao banheiro?

E se houvesse guerra, então Cyril pretendia apresentar-se para lutar, deixando Phyllis e seu bebê para trás. Segundo parecia, ele não agiria assim movido por algum forte motivo patriótico, mas apenas porque sempre desejara afastar-se de Pendeen e da mineração, ir para o mar. Judith perguntou-se quantos milhares de jovens haveria no país sentindo o mesmo que ele. Jovens que praticamente nunca deixavam suas aldeias, exceto talvez para uma viagem de ônibus à igreja da cidade mais próxima ou em excursão para assistirem a um Campeonato de Arremesso de Dardos.

A bicicleta que ela conhecia, uma vez inventada, revolucionara a vida rural na Inglaterra porque, pela primeira vez, um rapaz podia viajar oito quilômetros para cortejar uma moça na aldeia vizinha, e tal mobilidade minimizara consideravelmente as deformidades congênitas e resultantes de casamentos consangüíneos, nas comunidades isoladas. Se uma simples bicicleta conseguira tudo isso, uma guerra moderna com certeza estraçalharia e dispersaria, para sempre, as tradições e convenções sociais que haviam sido respeitadas desde tempos imemoriais. Em seu presente estado de ânimo, Judith decidiu que, no fim das contas, isso talvez não fosse uma coisa prejudicial. A imediata perspectiva de uma mobilização nacional, de bombardeios e ataques a gás, no entanto, continuava sendo muitíssimo assustadora.

Então, o que seria de Phyllis e Anna? Eles não me deixariam continuar aqui por conta própria. Acho que eu voltaria a morar com minha mãe. Destituída. Uma mulher casada e sem a dignidade da própria casa, por humilde que fosse. Sabe o que eu queria? Algum lugar para morar que fosse bonito, com flores e um banheiro de verdade.

Se, ao menos, houvesse algo que pudesse ser feito... Se houvesse algum modo de ajudar... Entretanto, não havia. E, mesmo que houvesse, isto seria apenas intromissão. Tudo quanto Judith podia fazer era manter contato, voltar a Pendeen para visitá-la o mais freqüentemente que pudesse, e estar por perto, se necessário, para recolher os cacos.

O relógio da torre da igreja batia cinco da tarde quando ela parou o carro junto à calçada, diante da Mercearia Warren. O estabelecimento ainda estava aberto e assim ficaria por mais uma hora. O anoitecer dos sábados era sempre um período movimentado, com as pessoas correndo a comprar provisões de última hora, ante a perspectiva de um domingo vazio; um pouco mais de bacon para o café da manhã, ervilhas em lata e farinha Birds Custará para a lauta refeição do meio-dia. Quando Judith cruzou a porta, no entanto, este anoitecer parecia mais movimentado que de costume, com meia dúzia de fregueses em fila para serem servidos, e somente Heather atrás do balcão, um pouco afobada, porém fazendo o melhor possível para dar conta do recado. Em si, isto era surpreendente. Heather raramente trabalhava na mercearia e, embora tivesse total competência, somente em períodos de crise era convocada para uma ajuda extra.

— Você falou duzentos e cinqüenta gramas de açúcar?

— Não, meio quilo. E não quero granulado, mas refinado...

— Desculpe...

Virando-se para pegar o outro saco na prateleira de baixo, Heather avistou Judith e revirou os olhos para o alto, mas se o gesto era um pedido de socorro ou um silencioso grito de exasperação, ninguém saberia dizer. Era evidente que a paciência dela chegava ao fim.

— Talvez seja melhor eu levar setecentos e cinqüenta gramas.

— Decida-se de uma vez, Betty, pelo amor de Deus.

Judith perguntou:

— Onde estão seu pai e Ellie, Heather?

Despejando açúcar em um saco colocado na balança, Heather apontou com a cabeça.

— Lá em cima.

— Lá em cima?

— Na cozinha. É melhor você ir.

Assim, Judith a deixou com sua confusão e, perguntando-se o que, afinal, estaria acontecendo, passou pelos fundos da loja e subiu os degraus que levavam à cozinha. A porta sempre aberta, neste anoitecer estava fechada. Do outro lado, Judith ouviu o som de ruidosos soluços. Abriu-a, entrou, e encontrou o casal Warren e Ellie sentados à mesa da cozinha. Era Ellie quem chorava e, a julgar por seu estado, o choro já durava algum tempo, porque tinha o rosto vermelho e inchado de lágrimas, os cabelos louros em desalinho, e apertava na mão um lenço encharcado e inútil. A sra. Warren, sentada ao lado dela, enquanto seu marido estava de frente para as duas, no outro lado da mesa, os braços cruzados sobre o peito, com o rosto quase sempre jovial agora mostrando uma expressão assustadoramente inflexível. Judith sentiu-se invadir pela apreensão. Fechou a porta atrás de si e perguntou:

— O que aconteceu?

— Ellie passou por um mau momento — respondeu a sra. Warren. — Estava nos contando. Você não se importa se Judith souber, não é mesmo, Ellie?

Incoerente com os soluços, Ellie gemeu uma vez mais e sacudiu a cabeça.

— Vamos, pare de chorar, se possível. Tudo já terminou.

Sem saber o que dizer, Judith puxou uma cadeira e se juntou ao pequeno grupo. Perguntou então:

— Ela sofreu algum acidente ou coisa parecida?

— Não, não foi nada disso, embora ruim o bastante.

A sra. Warren pousou a mão sobre a de Ellie e a apertou com força. Judith esperou, e a sra. Warren lhe contou a aterradora história. Ellie tinha ido ao cinema, ver um filme com Deanna Durbin. Pretendia ir com sua amiga íris, mas esta desistira à última hora, de modo que ela acabou indo sozinha. O filme estava já pela metade, quando entrou um homem e ocupou o assento próximo ao de Ellie. Pouco depois, ele punha a mão em seu joelho, começava a movê-la por sua perna acima, e então ela viu...

A essa altura, a boca de Ellie se abriu como a de um bebê, e ela começou a chorar novamente, as lágrimas saltando-lhe dos olhos como água da chuva de dentro de uma calha.

— O que foi que ela viu?

O que Ellie tinha visto, contudo, era algo inexprimível, pelo menos no que dizia respeito à sra. Warren. Ela ficou muito corada, desviou os olhos e comprimiu os lábios. O sr. Warren, entretanto, não sofria de tão delicados escrúpulos. Era evidente que ele estava fora de si, tal a sua raiva.

— Os botões da braguilha do miserável velhaco estavam abertos, com sua coisa apontando para fora...

— Deu em Ellie o maior susto de sua vida. Vamos, Ellie, acalme-se. Não chore mais.

—... e então ela fez o que era mais sensato. Saiu do cinema e veio para cá. Estava tão perturbada, que não podia ir para casa. Disse que não tinha coragem de contar isso para a mãe.

Oh, mas tudo aquilo já havia acontecido antes. Adolescentes, mesmo garotas sabidas como Ellie, não contavam para as mães, nem mesmo para as tias. Ficavam envergonhadas demais para isso; não encontrariam palavras para explicar. Elas simplesmente fugiam, escondiam-se no toalete das senhoras ou disparavam para a rua chorando histericamente, em desesperada busca de proteção.

Judith perguntou, já sabendo qual seria a resposta:

— Você falou com o gerente do cinema?

Ellie passou pelos olhos uma ponta do lenço encharcado e conseguiu balbuciar algumas palavras por entre os soluços:

— Não... pude... e quem acreditaria em mim... Iam dizer que era apenas uma história minha... como se eu tivesse inventado alguma coisa...

A perspectiva era claramente tão horrenda, que as lágrimas voltaram a fluir.

— Bem, mas você viu o rosto do homem? — insistiu Judith.

— Eu não quis olhar.

— Faz alguma idéia da idade dele? Era um rapaz? Ou alguém... mais velho?

— Ele não era novo. — Pateticamente, Ellie fez um sincero esforço para compor-se. — A mão dele era ossuda. E me apalpava. Subindo pela minha perna, debaixo da minha saia. E ele cheirava. O hálito. Como uísque...

— Vou preparar uma boa xícara de chá — disse a sra. Warren. Levantando-se, ela pegou a chaleira e a encheu debaixo da torneira.

Judith ficou calada por um momento. Pensou em Edward. O que mesmo ele havia dito? Acho que você precisa de um catalisador de alguma espécie. Não me pergunte qual, porém acontecerá alguma coisa, e tudo isso será resolvido. Um catalisador. Um motivo para lutar, para acabar com Billy Fawcett para sempre e finalmente curar o trauma que ele lhe infligira, em todos aqueles anos passados. Sentada à mesa da cozinha dos Warren, ela não nutria a menor dúvida sobre a identidade do bolinador da pobre Ellie, exceto que ele agora era pior do que apenas um velho e inofensivo bolinador, pois não apenas abusara, como se exibira. O próprio pensamento a fez estremecer. Não era de admirar que Ellie se encontrasse naquele estado. Quanto a ela, deixara de sentir a mais leve pena de Billy Fawcett, e raiva era algo muito mais saudável do que a compaixão inútil. Um catalisador. Um motivo para lutar. Ou isso poderia ser classificado como vingança? Fosse o que fosse, ela não se importava. Sabia apenas o que tinha de ser feito, e que teria o maior prazer em fazê-lo.

Respirando fundo, disse com firmeza:

— Nós temos que contar ao gerente do cinema. Depois iremos todos à polícia dar parte do ocorrido.

— Não sabemos quem ele é — observou o sr. Warren.

— Pois eu sei.

— Como pode saber? Você não estava lá!

— Sei, porque o conheço. E porque ele fez a mesma coisa comigo, quando eu tinha quatorze anos.

— Judith! — exclamou a sra. Warren, sua voz e sua expressão espelhando a incredulidade e o choque que sentia. —Ele fez mesmo isso?

— Sim, fez. Em realidade, não chegou a exibir-se, mas tenho absoluta certeza de que, cedo ou tarde, isso estava em seus cálculos. O nome dele é Billy Fawcett. Coronel Billy Fawcett. Mora em Penmarron. E é a pessoa mais asquerosa que já conheci na vida.

— Seria melhor que nos contasse.

Ela contou a eles. Tudo quanto acontecera, desde a época em que havia ficado com tia Louise, em Windyridge. A ida ao cinema, a tentativa dele de invadir a casa quando a soubera sozinha, seu malévolo comparecimento ao funeral de tia Louise, e finalmente o desastre de sua ida noturna ao "Guincho Corrediço", com Edward Carey-Lewis.

A essa altura, distraída pelo drama da saga, Ellie parará de chorar. Quando Judith chegou ao ponto em que Edward despejara o uísque no rosto do velho, ela até começou a sorrir. A sra. Warren, contudo, nada via de engraçado na história.

— Por que não nos contou tudo isso? — exclamou, indignada.

— Como eu contaria a vocês? Adiantaria alguma coisa? O que poderíamos fazer?

— Deter o grande vilão.

— Bem, é o que podemos fazer agora. Por causa do que aconteceu com Ellie. —Ela se virou para Ellie, passou um braço em torno de seus ombros magros e apertou de leve. — Você fez exata e absolutamente a coisa certa, vindo aqui e contando tudo para a sra. Warren. Se eu tivesse tido mais senso, contaria para tia Louise, mas não fui tão corajosa como você. Não deixe que isso a preocupe, Ellie, não permita que o acontecido estrague as coisas em sua vida. Os homens geralmente são delicados, gentis e divertidos. Apenas alguns deles é que tornam tudo tão terrível e assustador. Agora, precisamos ter certeza de que isso nunca mais tornará a acontecer. Vamos dar parte à polícia e certificar-nos de que Billy Fawcett comparecerá diante de algum juiz, magistrado ou tribunal para ser punido, a fim de que nunca, nunca mais repita o que fez. Posso ser testemunha da acusação, havendo necessidade, e ficarei deliciada se ele for mandado para a prisão. Não estou me importando. Sei apenas que quero acabar com ele definitivamente — por Ellie, por mim e por todas as outras jovens de quem abusou.

Após esse longo e ardoroso discurso, ela se recostou na cadeira para recuperar o fôlego. Seus ouvintes ficaram calados por um momento. Então, a sra. Warren falou:

— Uma coisa eu tenho que dizer, Judith. Nunca a tinha ouvido manifestar-se desta maneira sobre alguma coisa.

A despeito de si mesma, Judith começou a rir. De repente, sentia-se eufórica. Forte, adulta, cheia de inabalável determinação.

— Talvez assim seja melhor. — Ela se virou para o sr. Warren. — O que o senhor diz?

— Eu digo muito bem — Ao falar, ele ficou de pé. — Que seja agora. Imediatamente. Não adianta esperarmos outro momento. E você virá comigo e com Judith, Ellie, queira ou não queira. Nada lhe acontecerá. Estaremos ao seu lado o tempo todo e confirmaremos cada palavra que disser. Depois disso, eu a levarei em casa para sua mãe e, juntos, explicaremos a ela o que houve. Lembre-se apenas de que não aconteceu mal algum, e que se disso resultar algum bem, então você fez a sua parte. — Ele deu um tapinha no ombro de Ellie e parou para plantar um beijo de conforto no topo de sua desgrenhada cabeleira cor de palha. — Não foi culpa sua, menina. Nada foi culpa sua.

E assim foi feito. Tudo tomou bastante tempo. No posto policial, o sargento de plantão nunca tivera que manejar um caso tão delicado antes —seu trabalho costumeiro envolvia roubo de bicicletas e detenção de bêbados — de modo que precisou encontrar o material necessário como a folha apropriada para anotação do caso e os formulários essenciais. A seguir, a queixa foi sendo feita, quase soletrada e escrita com agonizante lentidão. A aflição de Ellie, reacendida pelo gélido ambiente burocrático do posto policial, em nada contribuiu para ajudar, e volta e meia ela precisava ser instada a continuar. Quando por fim, penosamente, o trabalho foi encerrado, ela teve que ser levada em casa, uma visita que envolveu novas explicações, reações de choque e de fúria e, eventualmente, inumeráveis xícaras de revigorante chá. Finalmente acalmaram-se todos, e o sr. Warren e Judith, ambos sentindo-se exauridos, puderam voltar para casa. Encontraram a mercearia já fechada. Na cozinha, no andar de cima, Heather, a sra. Warren e Joe esperavam por eles, com o jantar pronto para ser posto na mesa. O sr. Warren, entretanto, ainda não estava preparado para fazer logo a refeição.

— Preciso de um drinque — disse ele, encaminhando-se para o armário onde guardava uma garrafa de uísque Black and White para as épocas de crise. — Quem me acompanha? Joe? —Joe, entretanto, divertido pelo desacostumado comportamento do pai, meneou a cabeça. — Você, mamãe?

Heather? Judith, então?

Ninguém se mostrou disposto a beber, de maneira que ele se serviu de uma boa dose e a bebeu praticamente de um gole, virando-a garganta abaixo. Depois disso, largou o copo vazio e anunciou-se pronto e capaz para trinchar o assado de porco.

Mais tarde, encerrada toda a conversa, com a louça lavada e a cozinha novamente arrumada, Judith desceu ao escritório do sr. Warren e telefonou para o sr. Baines. Por necessidade, foi um telefonema razoavelmente longo, e a princípio o sr. Baines ficou um pouco aborrecido por ela nunca ter confiado nele antes e lhe relatado sua infeliz experiência da meninice com o temível Billy Fawcett. Entretanto, a leve irritação pouco durou, e ele logo voltava a ser o homem calmo de sempre, compreensivo e solícito. Disse que ela e o sr. Warren tinham feito exatamente a coisa certa, e que já era tempo do velho malandro ser interrompido em suas nefastas atividades. Sobre um possível comparecimento dela ao tribunal, quando o caso fosse levado a julgamento, o sr. Baines prometeu fazer o possível para ela não precisar atuar como testemunha, e que estaria presente para substituí-la, expor seu caso e cuidar de tudo.

Judith ficou profundamente agradecida e manifestou-lhe sua gratidão.

— Não há o que agradecer. Estou aqui para isso.

Em seguida ele mudou de assunto e perguntou-lhe se estava aproveitando bem aqueles dias em Porthkerris. Os dois conversaram um momento sobre nada em particular, finalmente despediram-se e desligaram.

Quando na cama essa noite, em meio à escuridão silenciosa, Judith ficou muito quieta olhando para o teto, e decidiu que, de um modo estranho, aquele dia tinha significado o fim de um começo. Não simplesmente por ser o último dia de sua permanência com os Warrens ou por finalmente ter conseguido visitar Phyllis, mas pelo conhecimento de que, afinal, a saga de Billy Fawcett estava encerrada. Eu gostaria de matar Billy Fawcett, havia dito para Edward, ou de esmagá-lo como se fosse uma barata. Na verdade, acabara fazendo melhor do que isso. Com a ajuda do sr. Warren, da lacrimosa Ellie e do lúgubre sargento da polícia, pudera colocar as engrenagens da lei em movimento, desta forma acertando contas com as horrendas atividades de Billy Fawcett, ao mesmo tempo em que eliminava para sempre seu próprio fantasma pessoal. Assim, agora estavam quites, e tinha certeza de que ele nunca mais assombraria seus pesadelos, subindo por uma escada de mão para alcançá-la pela janela aberta de um quarto. Nunca mais acordaria petrificada, chorando silenciosamente. E nunca mais ele se interporia entre ela e o que ela mais desejava. A sensação era maravilhosa. Como ser aliviada de uma carga dolorosa, de uma sombra espectral que estivera pairando nas margens de sua mente durante quatro anos, e que quase destruíra seu relacionamento com Edward.

Isto fez com que seus pensamentos retornassem a ele, naturalmente. Voltaria para Nancherrow na manhã seguinte e tornaria a vê-lo. Se tia Lavinia estivesse bem o suficiente, então ela e Edward iriam a Dower House visitá-la. Talvez fosse uma oportunidade de estar a sós com ele, longe de todos os outros, com tempo para conversar. Para dizer-lhe que estivera certo sobre o catalisador. Para explicar-lhe o que tinha acontecido. E para dar-lhe, generosamente, a chance de falar "Eu não lhe disse?"

Seria como um novo começo, porque agora ela era outra pessoa. Agora não havia nenhuma necessidade de rejeição e terrores infantis, porque nada existia para amedrontá-la. A fim de testar-se, imaginou-se sendo beijada por Edward, da maneira como ele a beijara no Natal passado, enquanto permaneciam escondidos atrás das cortinas da sala de bilhar, em Nancherrow. Judith recordou os braços dele em torno de seu corpo, a mão afagando-lhe o seio, a pressão da boca na sua, depois a língua dele, forçando-a a abrir os lábios...

De repente, ela se sentiu consumida pela pressão do desejo, havia uma dor funda em seu ventre, um fluxo de insopitável quentura. Fechando os olhos, Judith virou-se abruptamente de lado, enovelada como um bebê, os braços envolvendo os joelhos com força. Sozinha na escuridão, ela sorriu, porque tinha a sensação de haver chegado a um acordo com alguma verdade maravilhosa.

Em Nancherrow, Rupert Rycroft estava sozinho em seu quarto, trocando de roupa para jantar. Já tomara banho e se barbeara pela segunda vez nesse dia, e agora vestia calças e meias, envergava uma imaculada camisa branca e dava o nó na gravata-borboleta. Isto exigia que ficasse em pé diante do espelho, e precisava dobrar um pouco os joelhos, por ser mais alto do que a maioria dos homens. Ao lidar com a gravata, fez uma ligeira pausa e inspecionou o próprio reflexo, o rosto comum e vulgar que o fitara do espelho durante toda a sua vida. Orelhas um pouco grandes demais e um queixo que parecia querer entrar no colarinho. No lado positivo, entretanto, um bem aparado bigode militar auxiliava a reunir todas aquelas desordenadas características em alguma espécie de ordem, e os cruéis sóis da Palestina e do Egito haviam tornado sua pele curtida como couro, dando-lhe uma aparência de maturidade, de homem mais velho e mais experiente do que seus anos de vida. Ele esperou.

Seus cabelos castanho-escuros eram fartos e macios, francamente descontrolados depois do banho. Entretanto, a loção Mr. Trumpers Royal Yacht e um firme uso de duas escovas de cabelo encastoadas em marfim haviam posto suas madeixas outra vez em ordem, rigidamente disciplinadas no corte de nuca e laterais bem tosados, como competia a um soldado na ativa.

Afastando-se do espelho, ele ajeitou as calças e depois tentou polir um pouco os sapatos com seu lenço usado. O resultado não foi muito animador, e ele evocou melancolicamente o soldado Stubbs, seu ordenança que, com cuspo, um osso e uma dose razoável de firme esforço, conseguia produzir um brilho cintilante, inclusive em um par de botas rudes e vincadas pelo uso.

Entretanto, Stubbs não estava ali. Os sapatos ficariam assim mesmo. Ele vestiu o dinner jacket de lapelas de seda, reuniu pequeninos objetos que guardou nos bolsos, depois apagou a luz, saiu do quarto e caminhou para o andar de baixo.

Eram sete horas, e só jantariam às oito. Na sala de estar, contudo, Rupert encontrou o Coronel Carey-Lewis, sozinho e já tendo trocado de roupa, sentado em uma poltrona, lendo seu jornal e saboreando um restaurador uísque com soda, antes que as hordas dos que se achavam na casa descesse para perturbar-lhe a paz. Era justamente o que Rupert esperara. Porque era justamente assim que seu pai fazia, quando Tad-dington pululava de hóspedes.

Interrompido, o coronel baixou o jornal e conseguiu não parecer contrariado demais. Era um homem imensamente cortês.

— Rupert.

—Por favor, não se levante, senhor. Sinto muito. Cheguei um tanto cedo...

— Em absoluto. Em absoluto. — O jornal foi dobrado e posto de lado. — Sirva-se de um drinque. Depois venha e sente-se. — Grato pela perspectiva da coragem que a bebida fornecia, Rupert fez o que lhe foi dito. — Espero que esteja bem acomodado. Havia água quente suficiente? Para um bom banho?

— Estava esplêndido, senhor, obrigado. — Levando seu drinque, ele foi sentar-se ao lado do coronel, encarapitado na banqueta junto da lareira, as pernas compridas dobradas como um canivete. — Eu estava um pouco suado e com calor. Athena me fez jogar tênis...

Embora Rupert houvesse planejado este interlúdio a sós com seu anfitrião, ao mesmo tempo o temia um pouco, pois, apesar de todo o seu charme, era bastante claro que uma conversa inconseqüente não constituía o forte do Coronel Carey-Lewis, basicamente um homem tímido. Seus temores, contudo, foram infundados. Os dois deslizaram sem dificuldade para a conversa, seus interesses comuns fornecendo muito o que discutir — caçadas, cavalos e o Exército foram mais do que suficientes para quebrar o gelo. Em seguida o coronel fez perguntas pessoais, e Rupert falou sobre Taddington, seus pais e sua carreira. Eton, Sandhurst, os Dragões da Guarda Real. Postos no Egito e na Palestina, atualmente no Centro de Equitação, em Northamptonshire.

— O problema é que Long Weedon fica muito perto de Londres. Disparar-se para a cidade à menor oportunidade é uma tentação, mas depois, claro está, tem-se que fazer a corrida em sentido inverso, geralmente pela madrugada, com uma terrível ressaca e a obrigação de chegar em tempo para a parada.

O coronel sorriu.

— Este é, simplesmente, um dos problemas e desvantagens da juventude. Há alguma idéia de mecanizarem os Reais?

—Nenhuma até agora, senhor. Contudo, para ser sincero, em uma guerra moderna um regimento de cavalaria parece um tanto anacrônico.

— Qual a sua opinião sobre os tanques?

— Eu lamentaria despedir-me dos cavalos.

O coronel remexeu-se no assento. Ergueu a cabeça e, através da janela, seus olhos claros contemplaram os jardins que jaziam além, banhados pelo sol dourado do fim do entardecer. Então disse:

— Receio que tenhamos de ir à guerra. Muitos meses já passaram, recheados de compromissos e tratados. Sem nada positivo, até onde posso ver. As esperanças foram desaparecendo, uma por uma. Da mesma forma como a Áustria foi extinta, depois a Checoslováquia, e agora a Polônia. De repente, é tarde demais. A Polônia é apenas uma questão de tempo; Hitler não tem motivos para mobilizar homens. O exército alemão está pronto para entrar em marcha, assim que a ordem for dada. O que não deve tardar. Será na primeira quinzena de setembro, antes das chuvas de outubro. Antes que os atoleiros de novembro possam deter seus tanques.

— E a Rússia?

—Eis a grande interrogação. Se Stalin e Hitler assinarem um pacto, então a Rússia dará à Alemanha o sinal verde para agir. E isso será o começo. — Ele olhou novamente para Rupert. — E quanto a você? O que lhe acontecerá?

— Provavelmente voltarei à Palestina.

— Esta será uma guerra de poderio aéreo. Edward voará com a Real Força Aérea. — Ele pegou o copo e terminou seu drinque abruptamente, lançando-o à garganta como se fosse um remédio. — Seja camarada, meu caro, e ponha-me outra dose. E como está seu copo?

— Tudo bem por enquanto, senhor. — Rupert levantou-se e foi renovar o drinque do coronel, em seguida voltando ao seu lugar. — Em verdade — falou — eu me perguntava se poderia ter uma conversa com o senhor.

Uma expressão bem-humorada surgiu nas feições de seu anfitrião.

— Pensei que estivéssemos tendo uma conversa.

— Não é bem isso... — Rupert hesitou. Nunca havia feito isto antes, e estava ansioso em não estragar tudo. — Eu gostaria de pedir sua permissão para casar-me com Athena.

Seguiu-se um momento de atônito silêncio, e então o coronel Carey-Lewis exclamou:

— Santo Deus! Por quê?

Foi uma reação inesperada e um tanto chocada. Rupert, no entanto, procurou sair-se da melhor maneira possível.

— Bem, eu gosto muitíssimo dela e creio que Athena me corresponde. Sei que esta não é a época mais apropriada para um casamento, com a guerra a caminho e a incerteza sobre nosso futuro mas, ainda assim, creio que seria uma boa idéia.

— Não imagino que espécie de esposa ela daria.

— Parece duvidar, senhor.

— Ela sempre foi tão notívaga... Suponho que saiu à mãe inteiramente.

— No entanto, casou com a mãe dela, senhor.

— Sim, casei com ela. E ela nunca cessou de divertir-me e seduzir-me. Eu já amava Diana há anos, quando finalmente a desposei. Você e Athena conheceram-se apenas outro dia.

— O tempo suficiente, senhor.

- Já discutiu o assunto com ela?

Sim. Nós o discutimos.

Esposa de militar. Anos de separação. Tudo isso?

— Tudo isso, senhor.

E o futuro... O futuro, quando este terrível desastre que paira sobre nossas cabeças se tornar uma coisa do passado. Então...?

— Não sei dizer. Posso apenas afirmar que, quando meu pai morrer, Taddington virá para mim.

— Athena e Gloucestershire? Essa é uma boa idéia? Ela odeia cavalos, como sabe. Não chegaria nem a um insignificante metro de distância de um deles.

Rupert riu.

— Sim, eu sei disso.

— E ainda assim quer casar com ela?

— Sim, quero.

— Quando?

— Penso que o mais cedo possível.

— Leva-se meses para planejar um casamento.

—Nós... bem, nós não teríamos essa espécie de casamento, senhor. Athena tem horror a casamentos pomposos. Receio que isso seja uma grande decepção para a sra. Carey-Lewis, porém estamos pensando em algo bem informal, inclusive somente uma ida ao Cartório de Registros. Eu poderia obter uma licença especial.

— Oh, bem. Isso me pouparia um bocado de dinheiro. Suponho que devemos ser gratos por pequenas mercês.

— Eu a amo realmente, senhor.

— Eu também a amo. Ela é uma jovem meiga e invulgar, sempre a considerei uma criaturinha encantadora. Lamento apenas que vocês tenham que enfrentar essa incerteza, porém se o pior agravar-se e separar vocês, então Athena sempre poderá voltar para Nancherrow e, aqui, aguardar a sua volta.

— Eu esperava que me dissesse isso, senhor. Naturalmente, meus pais a acolheriam com prazer e a fariam feliz da maneira que pudessem, porém ela e minha mãe são tão diferentes como água e vinho. Em vista disso, não creio que o arranjo se tornasse muito cômodo.

O coronel disse secamente, e com alguma percepção:

— Evidentemente, para você é lamentável que sua futura mulher não sinta apreço por cavalos.

— Sim. Lamentável. Mas não é o fim do mundo.

— Neste caso, parece que já abordamos todos os pontos. Tudo quanto posso dizer é, sim, case com ela, e eu desejo a ambos toda a boa sorte e felicidade que este mundo cruel lhes reserva.

— Só mais uma coisa, senhor...

— Fale.

— Quando os outros descerem, não diga nada. Quero dizer, não anuncie um noivado ou coisa assim. Caso não se importe.

— Por que não?

— Bem, nós falamos a respeito, Athena e eu, mas ainda não a pedi realmente em casamento. E ela realmente ainda não disse que aceita.

O coronel pareceu um tanto perplexo, como seria de esperar.

—Está bem. Não direi uma palavra, mas seja um bom rapaz e acerte tudo isso o mais breve que puder.

— Assim farei, senhor, e obrigado.

— Não faz sentido deixar-se de molho tais arranjos. Sempre digo que devemos malhar o ferro enquanto quente. Do contrário, tudo tende a desmoronar.

— Mais ou menos como um suflê, senhor.

— Um suflê? — O coronel refletiu um instante. — Sim, sim. Entendo o que quer dizer.

Nas manhãs de domingo, sempre que havia um punhado de hóspedes na casa, a cozinha de Nancherrow ficava aquecida como um caldeirão, tal a sua furiosa atividade. Apesar das portas e janelas abertas, a temperatura naquele balsâmico dia de setembro subia sem parar, deixando a sra. Nettlebed de rosto vermelho e seus incômodos tornozelos inchados como balões, sobre as correias de sapatos que apertavam.

Nove na sala de refeições e cinco na cozinha para serem alimentados. Não, ela mesma corrigiu, não eram nove na sala de refeições, mas oito, porque a sra. Carey-Lewis estava acamada — um ataque bilioso, segundo explicara o coronel — e provavelmente almoçaria o que lhe fosse levado em uma pequena bandeja. A sra. Nettlebed aceitara sem comentários a justificativa do ataque bilioso, mas, em particular, ela e o sr. Nettlebed achavam que a sra. Carey-Lewis simplesmente estava esgotada; toda aquela movimentação em Londres, e depois a correria em voltar para casa, quando todos pensavam que a velha sra. Boscawen caminhava para a morte. Claro que ela não caminhava para a morte, porque superara a crise miraculosamente, mas ainda assim persistia a ansiedade, e a casa estava cheia de convidados. Um ambiente que nada tinha de repousante. Se a sra. Nettlebed fosse a sra. Carey-Lewis, também teria ido para a cama, só saindo de lá quando as coisas ficassem um pouco mais calmas.

Em pé junto à mesa da cozinha, ela amassou vivamente com os dedos uma mistura de trigo, açúcar e manteiga em uma grande terrina de cerâmica, mais ou menos como se fosse fazer um bolo leve. Qualquer que fosse a estação, e por mais alta que estivesse a temperatura, o coronel sempre saboreava sua torta quente, que neste domingo seria de maçãs partidas, adoçadas com açúcar, frutas cristalizadas e uvas passas, tudo rematado com uma colherada de brandy. As maçãs, já descascadas e fatiadas, jaziam como pétalas verde-claras na fôrma para tortas, esperando o restante dos ingredientes. Hetty preparara as maçãs logo após ter descascado quilos de batatas, limpado duas couves-flores, cortado um repolho em tiras e esmagado os morangos frescos de quatro cestinhas redondas. Agora ela se afanava na copa, lavando o que a sra. Nettlebed considerava "as sobras", isto é, panelas, tigelas, coadores, facas e talheres da cozinha.

No forno, um lombo de vaca de seis quilos estava sendo assado, e através da porta firmemente trancada evolava-se o aroma — um delicioso cheiro de caldo de carne, mesclado ao da cebola que a sra. Nettlebed introduzira nas laterais do lombo. Com esta carne seriam servidos batatas assadas, pastinagas assadas, tortas do Yorkshire, molho de rábano-bravo, caldo e mostarda inglesa quentíssima, preparada na hora.

Os pudins estavam prontos. Duas travessas de vidro, contendo morangos frescos e um suflê de chocolate, esperavam a ida para a mesa sobre a fria prateleira ladrilhada da copa. Assim que enfiasse a torta de maçãs no forno quente, a sra. Nettlebed se concentraria nas tortas do Yorkshire. Hetty podia tê-las feito, porém tinha a mão demasiado pesada para massas.

A porta da cozinha se abriu. Imaginando que fosse seu marido, a sra. Nettlebed não levantou a cabeça do que fazia. Perguntou:

— Você acha que devemos servir creme batido com o suflê?

— Deve ficar delicioso — respondeu um homem que não era o sr. Nettlebed.

As mãos da sra. Nettlebed ficaram imóveis. Girando a cabeça num gesto brusco, viu parado à porta aberta, nada menos do que Jeremy Wells. Ela abriu a boca, deliciada, enquanto pensava que, naquele exato momento quando se atarantava em despachar o almoço domingueiro, ele era a única pessoa cujo aparecimento inesperado a encheria de prazer.

— Dr. Wells! —exclamou.

— Olá, sra. Nettlebed. Que cheiros deliciosos em sua cozinha! O que há para o almoço?

— Lombo assado. — Ela continuou onde estava, com o gorro de lado e as mãos brancas de trigo, sorrindo para ele. — Dr. Wells, quase ninguém o vê mais! (Nos velhos tempos, quando ele dava aulas a Edward, ela sempre o chamara de Jeremy, mas assim que o soube aprovado em seus exames finais e diplomado, passou a tratá-lo de "Doutor". A sra. Nettlebed achava que ele merecia tal tratamento, depois de todos aqueles anos estudando livros e fazendo exames. Para evitar confusão, ao mencioná-lo dizia o jovem Dr. Wells, enquanto o pai dele, para seu desgosto, era rebaixado como o velho Dr. Wells.) — O que está fazendo aqui? Veio a chamado do coronel? Ele não me disse uma palavra!

Jeremy fechou a porta atrás de si e aproximou-se da mesa.

— Por que ele me chamaria?

— Por causa da sra. Carey-Lewis. Não está nada bem. O coronel disse que é um ataque bilioso, mas eu e Nettlebed pensamos diferente. Eu diria que é esgotamento, cansaço por uma coisa e outra. Sabia que a sra. Boscawen esteve doente?

— Sim, ouvi dizer. Contudo, parece que o pior já passou...

— Que susto ela nos deu! Todos correndo para casa, de Londres, da Escócia e só Deus sabe de onde mais, pensando que ela estava para dar o último suspiro. Foi tão terrível e...

— Sinto muito. Ela franziu a testa.

- Se o coronel não o chamou, então por que está aqui?

—Apenas para ver vocês todos. —Ele esticou o braço, pegou um pedaço de maçã para a torta e o comeu. Se tivesse sido Loveday, a sra. Nettlebed lhe teria dado um tapa na mão. — Onde está todo mundo?

—Foram todos à igreja. Exceto a sra. Carey-Lewis. Como lhe disse, ela está de cama.

— Talvez eu suba até seu quarto para vê-la.

— Se a encontrar dormindo, deixe-a dormir.

— Tudo bem. Estão com a casa cheia?

— Transbordando. — A sra. Nettlebed pegou a fôrma de torta e começou a estender a massa sobre as maçãs, pressionando a mistura em uma crosta firme. —Athena trouxe seu namorado, o capitão Rycroft, e Edward também tem um amigo hospedado. Um sr. Callender.

— E Loveday?

— Sim, Loveday também está, claro. E Judith volta esta manhã.

— Onde Judith esteve?

— Em Porthkerris, com os Warren.

— Há almoço sobrando para mim?

— O que está pensando, seu tolo? Eu diria que há mais do que suficiente. Já esteve com Nettlebed?

— Não, não vi ninguém. Apenas fui entrando.

—Direi a ele que arrume mais um lugar à mesa... E agora, por que não sobe e dá uma espiada na sra. Carey-Lewis? Se ela estiver falando em sair da cama, diga-lhe para ficar onde está. Hetty! Já terminou aí? Há mais coisas para lavar e também preciso de você aqui, para bater um pouco de creme...

Jeremy a deixou entregue a seus afazeres, saiu da cozinha e subiu ao quarto de Diana pela escada dos fundos. Bateu suavemente à porta, e ouviu a voz dela mandando-o entrar. Ele quase esperava cortinas cerradas e uma obscuridade de inválido, porém o quarto estava cheio da claridade do sol. Diana, contudo, ainda permanecia na cama, deitada em travesseiros macios e usando um casaquinho de cama em voai, orlado de rendas. Ao lado dela, sobre um travesseiro alvíssimo e enfeitado de rendas, estava Pekoe em grande pompa, enovelado em uma bola e profundamente adormecido. Ela estivera lendo. O livro jazia aberto, com as páginas contra o edredom de cetim branco, e Diana pousara sobre ele a mão de unhas vermelhas.

— Jeremy...

— Olá!

— O que está fazendo aqui? Oh, será que Edgar o incomodou com um chamado? Eu disse a ele que não se preocupasse comigo...

— Não, ele não me chamou.

Jeremy fechou a porta e veio sentar-se na beira da cama, sem nenhum toque de profissionalismo. Ela não parecia febril, mas estava pálida e sua pele fina dava a impressão de estirada sobre a clássica estrutura óssea de seu rosto. Os cabelos geralmente imaculados, estavam agora candidamente em desalinho e, abaixo de seus olhos surpresos, havia manchas de exaustão.

— Está parecendo esgotada — disse ele.

— E estou mesmo, porém Edgar está dizendo a todos que é um ataque bilioso.

— O que andou fazendo, para ficar neste estado?

— Do jeito como fala, parece que tudo é muito divertido. No momento, contudo, nada é divertido. Lavinia esteve muito doente, e há coisas demais a serem feitas. Em algum momento, eu e Mary teremos que sair para comprar milhares de metros de horrível algodão preto, que de algum modo transformaremos em cortinas para cada janela da casa. A verdade é que estou cansada, infeliz, deprimida e sem energias para continuar fingindo que nada acontece comigo. Assim, vim para a cama e disse a Edgar que não me sentia bem. Ele antes prefere saber que não estou bem do que me sentindo infeliz.

— Está preocupada com a sra. Boscawen?

— Sim, um pouco. Ela ainda não ficou boa de todo. Deu-nos um susto e tanto. De qualquer modo, eu já estava exaurida, após Londres e noites seguidas dormindo tarde, tendo que vir correndo para casa... Nunca dirigi o Bentley tão depressa e por tão longo trajeto, não sozinha. Rodando por aquela terrível A30, e o desvio de Exeter congestionado de trânsito!

— Afinal, você conseguiu.

— Sim, consegui, para encontrar uma Isobel histérica e nenhuma enfermeira lá. Em seguida, todos voltando para casa e trazendo hóspedes. Como se ainda fosse pouco, esta noite Edgar me disse que esse namorado de Athena quer casar com ela!

— O Capitão Rycroft?

— Quem lhe falou sobre ele?

— Asra. Nettlebed.

—O nome dele é Rupert. Um rapaz muitíssimo gentil. Dos Dragões Reais. Um tanto convencional e totalmente inesperado. Entretanto, nenhum de nós abrirá a boca para dizer uma palavra a respeito porque, aparentemente, ele nem a pediu ainda! As pessoas são curiosas, não?

— Pois eu acho uma notícia muito agradável.

— Bem, de certo modo não deixa de ser, mas, se ficarem noivos, eles vão insistir em um casamento praticamente às escondidas, tudo muito rápido. Um Cartório de Registros ou algo assim, tudo me parecendo algo melancólico. Enfim, como alguma coisa pode ser festiva, com os jornais repletos de coisas soturnas e pessimistas, com tudo piorando a cada dia que passa, e Edgar me fazendo ouvir com ele o noticiário das nove, todas as noites? Às vezes penso que vou ficar doente de terror.

A voz dela estremeceu e, pela primeira vez, Jeremy ficou de fato preocupado. Durante todo o tempo que a conhecera, nunca tinha visto Diana Carey-Lewis em estado nem remotamente semelhante àquele. Ela sempre lhe parecera sem nervos, despreocupada, capaz de ver o lado ridículo — e portanto, engraçado — das mais sérias situações. Essa Diana de agora, contudo, perdera a vivacidade e, desta maneira, a sua maior força.

Pousou a mão sobre a dela.

— Não deve sentir medo, Diana. Você nunca teve medo de nada. Ela pareceu não tê-lo ouvido.

—Passei este ano inteiro como um avestruz—disse. —Enterrando a cabeça na areia e fingindo que isto não vai acontecer, que haverá algum milagre, que algum idiota de cartola conseguirá outra folha de papel assinada, e seremos capazes de respirar novamente, de continuar vivendo. Entretanto, isto não adianta mais. Quero dizer, eu apenas enganava a mim mesma. Não vai haver nenhum milagre. Apenas outra guerra terrível. — Para seu espanto, Jeremy percebeu que os olhos de Diana estavam marejados, sem que ela fizesse qualquer esforço para enxugar as lágrimas. —Depois do Armistício em 1918, dissemos a nós mesmos que aquilo nunca mais aconteceria. Toda uma geração de homens jovens, eliminada nas trincheiras. Todos os meus amigos. Desaparecidos. E sabe o que eu fiz? Parei de pensar a respeito. Parei de lembrar. Simplesmente, expulsei tudo aquilo da mente, coloquei dentro de uma mala, como um punhado de coisas imprestáveis. Passei a chave nas fechaduras, afivelei as correias e empurrei a mala para o fundo mais distante de algum sótão. Agora, no entanto, apenas vinte anos mais tarde, está tudo começando de novo e não posso deixar de lembrar. Coisas terríveis. Ir à Estação Vitória para dizer adeus, e todos aqueles rapazes de uniforme caqui, tudo envolto no vapor desprendido das máquinas. E os trens rodando, e todo mundo acenando... e mães. irmãs e namoradas, deixadas para trás na plataforma. Em seguida, páginas e mais páginas com Listas de Baixas, colunas em tipos miúdos. Cada nome era de um rapaz novo, ceifado pela guerra ainda antes de ter tido tempo para viver. Recordo que fui a uma festa e lá havia uma moça sentada sobre um piano de cauda, balançando as pernas e cantando "Deixemos que o grande mundo continue girando". Todos os presentes fizeram coro, mas eu não pude cantar, porque não conseguia parar de chorar.

Ela agora chorava, enxugando a face com um inútil lencinho orlado de rendas.

— Não tem um lenço maior do que esse?

— Os lenços das mulheres são sempre tão idiotas, não acha?

— Tome o meu. Um tanto antigo, mas limpíssimo e eficiente.

— Que linda cor! Combina com sua camisa azul. — Ela assoou o nariz com força. — Estou falando demais, não estou?

— De modo nenhum. Acho que precisa falar, e estou aqui para ouvi-la.

— Oh, Jeremy querido, você é um encanto de homem... E, na realidade, de um modo curioso, não sou nem um pouco tão imbecil quanto pareço. Sei que vai estourar uma guerra. Sei que não podemos continuar permitindo que coisas terríveis aconteçam na Europa — pessoas sendo suprimidas, perdendo a liberdade, sendo presas e assassinadas, só porque são judias. —Ela tornou a enxugar os olhos e enfiou o lenço dele debaixo do travesseiro. — Eu lia este livro, pouco antes de você chegar. É apenas um romance, nada muito profundo... mas faz com que tudo seja tão terrivelmente real...

— Que livro é?

— Chama-se Evasão, da autoria de uma mulher chamada Ethel Vance. É sobre a Alemanha. Há uma escola de aperfeiçoamento, muito chique e cosmopolita, dirigida por uma americana que se tornou condessa, uma viúva. Mocinhas vão para seu colégio, onde aprendem a esquiar, estudam francês, alemão e música. Tudo muito charmoso e civilizado. Entretanto, perto dali, oculto na floresta além das trilhas de esquiar, há um campo de concentração e, aprisionada nele, uma atriz judia condenada à morte.

— Espero que ela é que tenha êxito na evasão.

— Não sei. Ainda não cheguei ao fim. Contudo, é uma leitura arrepiante. Porque se situa no agora. Está acontecendo agora, a pessoas como nós. Não é nenhum episódio histórico. É agora. E é tão execrável, que alguém tem de acabar com isso. Portanto, suponho que o "alguém" sejamos nós. — Diana sorriu para ele de um modo estranho, e foi como se um aguado raio de sol surgisse em um dia chuvoso. — Pronto. Não me lamentarei mais. É tão bom ver você! Só que ainda não consigo entender por que está aqui. Sei que é fim de semana, e você está de camisa desabotoada, vestido informalmente, mas por que não ficou misturando poções, operando e mandando as pessoas dizerem "33"? Ou será que seu pai lhe deu o dia de folga?

— Nada disso. Na verdade, meu pai e minha mãe tiraram alguns dias de férias e foram para a Sicília. Ele disse que ia agarrar a oportunidade enquanto podia, porque do jeito que vão as coisas, só Deus sabe quando haveria a chance de outra folga semelhante.

— Entendo, mas e a clínica?

— Conseguimos alguém que se encarregará dela.

— Um substituto? E você...?

— Não sou mais sócio de meu pai.

— Ele o despediu? Jeremy riu.

— Não exatamente. Entretanto, fui selecionado pelo comitê médico local como "sacrificável". Por ora, meu pai continuará sozinho. Apresentei-me como voluntário, a fim de alistar-me nos VRMR, ou seja, Voluntários da Reserva da Marinha Real, tendo sido considerado apto pelo diretor-médico. Capitão-de-corveta médico Jeremy Wells, VRMR. Que tal lhe parece?

— Oh, Jeremy... Soa pomposo, mas terrivelmente amedrontador e corajoso. Você tem mesmo que fazer isso?

—Já fiz. Inclusive fui a Gieves e comprei meu uniforme. Fico mais parecido com um porteiro de cinema, porém creio que acabaremos acostumados com isso.

— Você ficará com uma aparência divina.

— Terei de apresentar-me ao quartel em Devonport, na próxima quinta-feira.

— E até lá?

— Eu queria ver todos vocês. Dizer adeus.

— Você ficará aqui, claro.

— Se houver uma cama disponível.

— Oh, menino querido, sempre há uma cama para você! Mesmo que estejamos com a casa um pouco alvoroçada. Trouxe mala?

Ele teve a gentileza de parecer um tanto acanhado.

— Trouxe. Bem cheia. Para o caso de você convidar-me.

— A sra. Nettlebed lhe falou sobre Gus Callender? Um colega de Edward, de Cambridge?

— Ela disse que era um hóspede.

— Um rapaz muito interessante. Um tanto retraído. Acho que Loveday ficou fascinada por ele.

— Loveday?

—Não é incrível? Você sabe o quanto ela sempre foi rude e irritante com os amigos de Edward. Punha apelidos horríveis neles, imitava suas vozes empoladas, lembra-se? Pois este é um caso completamente diverso. Quase se poderia dizer que ela bebe cada palavra dele. É a primeira vez que a vejo vagamente interessada em um rapaz apresen-tável.

Jeremy achou o caso francamente divertido.

— E como o rapaz aceita a dedicação dela?

— Eu diria que tranqüilamente. Enfim, ele está se portando bem.

— Por que ele é tão interessante?

— Não sei. Apenas é diferente de todos os outros amigos de Edward. É escocês, porém não fala muito sobre a família. Reservado, suponho. Seria um tanto insosso? No entanto, é um artista. Seu hobby é pintar e, nisso, é extraordinariamente bom. Já fez alguns pequenos desenhos encantadores. Peça a ele que lhe mostre.

— Talentos ocultos.

— Sim, suponho que sim. E por que não? Como somos todos extrovertidos, esperamos que os demais ajam da mesma forma. Enfim, você o conhecerá. E, lembre-se, todos parecemos ter feito um tácito acordo de evitar piadinhas. Até Edward está sendo imensamente diplomático. Afinal de contas, às vezes esquecemos que nossa menininha mimada está com quase dezoito anos. Talvez já seja hora dela ficar apaixonada por algo que não tenha quatro patas e uma cauda. Devo dizer que ele se mostra muito delicado com Loveday. Gosto disso. — De repente, ela bocejou, voltou a recostar-se nos travesseiros e puxou a mão de sob a dele. — Eu gostaria de não me sentir tão cansada. Tudo quanto realmente quero fazer é dormir...

— Pois então, durma.

— Apenas conversar com você já me deixou bem melhor.

— Assim é que uma consulta profissional deveria ser.

— Você teria de enviar-me uma conta astronômica.

— E enviarei mesmo, se você não ficar na cama. Precisa descansar bastante. O que acha sobre alimentar-se? Quer comer alguma coisa no almoço?

Ela franziu o nariz.

— Para ser franca, não.

— Um pouco de sopa? Consomê ou coisa assim? Terei uma palavrinha com a sra. Nettlebed.

— Não. Fale com Mary. Ela deve estar por aí. Diga-lhe também que é convidado. Mary encontrará um quarto para você.

— Certo. — Ele ficou de pé. — Virei vê-la mais tarde.

— É tão confortador saber que você está aqui! — exclamou ela. Justamente como nos velhos tempos. — Então sorriu, um sorriso cálido, de grato afeto. — Isso torna tudo muito melhor.

Ele a deixou e saiu do quarto, fechando a porta atrás de si. Vacilou por um momento, sabendo que devia procurar Mary Millyway, porém sem saber por onde começar a procurá-la. Então, todos os pensamentos de Mary Millyway foram apagados de sua mente pelo som de música.

Vinha do extremo oposto do comprido corredor que era a ala dos hóspedes. Do quarto de Judith. Ela estava lá. Tinha voltado de Porthkerris. Provavelmente desfazia as malas e, enquanto isso, pusera um disco na vitrola, talvez para ter companhia. Para conforto.

Música de piano. Bach. "Jesus, alegria dos homens."

Ele ficou parado e ouviu, tomado por uma doce e penetrante nostalgia. Com espantosa nitidez, recuou no tempo até Evensong, à capela de sua escola, recordando a dourada luminosidade do verão coando-se através dos vitrais; o forte desconforto dos vetustos bancos de carvalho, e as vozes puras de jovens sopranos cantando as frases alternadas do clássico coral. E quase podia sentir o cheiro dos hinários bafientos.

Após um momento, desceu o corredor, com as pisadas amortecidas pelo tapete espesso. A porta de Judith estava entreaberta. Ele a empurrou suavemente. Ela nada ouviu. Havia malas e sacolas pelo chão, mas, aparentemente, Judith as abandonara e preferira escrever uma carta, porque estava sentada diante de sua secretária, absorta no que fazia, o perfil destacado pela janela aberta. Um anel de cabelo cor de mel caía sobre uma face, e ela usava um vestido azul-celeste de algodão, salpicado de florzinhas brancas. Sua concentração, o desconhecimento da presença dele a tornavam tão vulnerável e encantadora ao mesmo tempo, que imediatamente Jeremy viu-se desejando que o tempo pudesse ser detido. Como um filme, fixo em um só quadro, ele quis que o momento durasse para sempre.

Ocorreu-lhe então que dezoito anos eram uma idade admirável para uma jovem, suspensa, por assim dizer, entre a desajeitada juventude e o pleno desabrochar da mulher. Era como espiar o firme botão de uma rosa entreabrir-se dia após dia, sabendo que sua perfeição total ainda estava por vir. Claro está que tal metamorfose mágica não acontecia a todas em geral, e em sua vida ele já se deparara com uma profusão de escolares de crescimento rápido, carnudas em blusas de malha que comprimiam bustos bem desenvolvidos, e exalando tanto encanto feminino como um treinador de rúgbi em um dia chuvoso.

Entretanto, ele testemunhara o milagre acontecer com Athena. Um dia uma loura escanifrada e de pernas compridas, no outro, o objeto do desejo de cada homem. E agora era a vez de Judith, e ele recordava a adolescente que lhe falara pela primeira vez no vagão da ferrovia, quatro anos atrás. Ficou um pouco entristecido. Entretanto, também havia motivos para ser grato. Seu pai, o velho dr. Wells, servira na Linha de Frente como oficial-médico, durante a Primeira Guerra Mundial, e falara um pouco, embora não demasiado, acerca de suas enlouquecedoras experiências. Assim, Jeremy sabia que a única certeza sobre os meses e anos que tinha pela frente, como médico da Marinha a bordo de um dos navios de Sua Majestade, era que de tempos em tempos iria enfrentar a solidão, exaustão, terrível desconforto e o puro terror, provavelmente tendo as recordações de melhores dias como os guardiães de sua própria sanidade.

O agora. Este momento, congelado no tempo como uma mosca em um âmbar, era uma recordação.

Jeremy decidiu que já havia ficado ali o tempo suficiente. Ia falar, mas a música de Bach, naquele momento, chegou ao seu magnífico final. O silêncio que se seguiu aos acordes finais permaneceu vazio, preenchido apenas pelos arrulhos dos pombos no pátio abaixo da janela.

—Judith...

Ela ergueu o rosto e o viu. Por um momento nada disse, enquanto ele contemplava suas faces pálidas de apreensão.

— Diana está doente — disse ela então, e não era uma pergunta, mas uma declaração.

Apenas por ele ser um médico. Jeremy respondeu prontamente:

— Nem um pouquinho. Está apenas cansada.

— Oh! — Ela largou a caneta e recostou-se na cadeira. — Que alívio! Mary me disse que ela estava de cama, porém não falou que tinham chamado você.

Mary não sabia. Ainda não a vi. Aliás, não vi ninguém, exceto a sra. Nettlebed. Aparentemente, foram todos à igreja. E eu não fui chamado, simplesmente vim. Quanto a Diana, está realmente bem, não se preocupe.

Talvez eu devesse fazer-lhe uma visitinha rápida.

- Não agora. Acho que ela irá dormir. Poderá visitá-la mais tarde. — Ele hesitou. —Estou interrompendo?

— É claro que não. Eu apenas tentava escrever para minha mãe, Porem não estou muito inspirada. Entre. Entre e sente-se. Há meses que não o vejo...

Assim, ele entrou no quarto, passou por cima das malas ainda fechadas e arriou em uma ridícula poltroninha, estreita demais para suas costas masculinas.

— Quando foi que voltou? — perguntou ele.

— Faz uma meia hora. Pretendia desfazer as malas, mas então resolvi escrever para meus pais. Faz um bom tempo que não escrevia. Muita coisa tem acontecido.

— Divertiu-se bastante em Porthkerris?

— Sim. Lá é sempre divertido; mais ou menos como um circo de três picadeiros. Você tirou o dia de folga ou coisa assim?

— Não. Não exatamente.

Judith esperou que ele esclarecesse melhor. Como Jeremy nada dissesse, ela sorriu de repente.

— Sabe de uma coisa, Jeremy? Você é extraordinário! Nunca muda. Tem a mesma aparência do primeiro dia em que o vi, naquele trem vindo de Plymouth.

— Não sei como você encara isso. Sempre pensei que houvesse lugar para uma melhora.

Ela deu uma risada.

— O que eu disse foi como um cumprimento.

— Estou de folga — disse ele.

— Tenho certeza de que você a merece.

— Suponho que se poderia chamar de folga de embarque. Alistei-me na VRMR. Deverei apresentar-me em Devonport na próxima quinta-feira, e Diana convidou-me a ficar aqui até eu ter que ir.

— Oh, Jeremy

— Foi uma decisão e tanto, não? Contudo, eu a estive ruminando durante todo o verão, e agora começo a achar que quanto mais cedo começar a guerra, mais cedo estará terminada para sempre. E eu poderia perfeitamente estar no início das coisas.

— O que seu pai disse?

— Discuti totalmente o assunto com ele que, por sorte, tem também meu modo de pensar. Aliás, isto será bom para ele, porque terá de carregar sozinho a carga de uma clínica considerável.

— Você irá para o mar?

— Com um pouco de sorte, irei, sem dúvida.

— Sentiremos sua falta.

- Você poderá escrever cartas para mim. Poderá ser a minha correspondente.

— Tudo bem.

Então, está prometido. E agora — com certa dificuldade, ele se levantou da poltroninha — preciso encontrar Mary, a fim de que ela me encontre acomodação. Os outros devem chegar da igreja a qualquer momento, e eu gostaria de arrumar-me um pouco antes do almoço.

Judith, no entanto, tinha notícias a dar.

— Sabia que agora tenho um carro?

Um carro? — Ele ficou muito impressionado. — Seu mesmo?

Sim. — Ela sorriu, satisfeita com a reação dele. —Novinho em folha. Um pequenino Morris, encantador. Preciso mostrá-lo a você.

— Poderia levar-me para uma volta. Que garota mimada você é! Eu só tive meu carro quando fiz vinte e um anos. Custou-me cinco libras e tinha toda a aparência de uma antiquíssima máquina de costura montada sobre rodas.

— E ele andava?

— Como uma brisa. Cinqüenta quilômetros por hora, pelo menos, com todas as portas abertas e vento favorável. — Em pé na soleira, ele fez uma pausa e ficou ouvindo. Do andar de baixo chegava claramente até ali o som de vozes, passos, portas batendo e o latido alegre de Tiger. —Parece que o bando da igreja já chegou. Preciso ir andando. Até logo mais...

Da igreja para casa. Todos tinham voltado, povoando a casa: a família e os dois estranhos que Judith ainda ia conhecer. E Edward estava lá, com o resto deles. No andar de baixo. Seu coração começou a bater com um excitamento que mal era possível conter, e ela sabia que a carta Para Cingapura teria de esperar. Empurrando as folhas de papel para um lado, tirou rapidamente algumas coisas das malas. Trocou os sapatos, lavou as mãos, passou um pouco de batom e então, após ligeira consideração, um toque de perfume. Era tudo. Não havia tempo para demorar-se no que fazia. Estava diante do espelho, escovando os cabelos, quando ouviu a voz de Loveday, chamando-a:

— Judith!

— Estou aqui.

— O que está fazendo? Já voltamos todos para casa. Você tem que descer e ver todo mundo... Poxa, está com uma aparência ótima! Como é que foi tudo? Continuou a divertir-se? Quando foi que voltou para casa? Já viu mamãe? Coitada, ela não anda muito bem...

—Não, ainda não a vi, creio que está dormindo. Jeremy disse que está apenas um pouco esgotada.

— Jeremy! Ele está aqui?

— Chegou pouco antes de mim. Vai ficar alguns dias. Penso que está com Mary, procurando um lugar onde possa dormir. E por falar em aparências, olhe só para você! Onde arranjou esse casaco espetacular?

—É de Athena. Ela me emprestou. Schiaparelli. Não é divino? Oh, Judith, preciso falar rapidamente a você sobre Gus, antes que o conheça. Ele é, simplesmente, a pessoa mais maravilhosa que já conheci na vida, já fizemos montes e montes de coisas juntos, e não se mostrou nem um pouquinho entediado comigo ou qualquer coisa assim.

Enquanto partilhava tão absorvente informação, abrindo o coração e não fazendo o menor esforço para esconder sua óbvia atração por Gus, seu rosto iluminava-se com uma espécie de felicidade interior que Judith nunca vira antes. Loveday sempre fora bonita, mas agora, neste momento, estava sensacional. Era como se, afinal, houvesse abandonado a deliberadamente cultivada despreocupação da adolescência e, quase da noite para o dia, estivesse decidida a crescer. Ela também mostrava uma espécie de radiosidade, uma luminescência interior que nada tinha a ver com artifícios. Estar amando, decidiu Judith, assentava em Loveday quase tão bem como o casaquinho de linho escarlate que tomara emprestado com Athena.

— Oh, Loveday, por que ele ficaria entediado com você? Em toda a sua vida, jamais alguém ficou entediado com você.

— Não, mas você entende o que quero dizer.

— Claro que entendo, e isso é maravilhoso para você. — Judith voltou a escovar os cabelos. — Que tipo de coisas andaram fazendo juntos?

—Oh, tudo. Nadar, mostrar a propriedade a ele, cuidar dos cavalos e levá-lo a lugares bonitos, onde possa pintar suas telas. Ele é um artista

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incrivelmente talentoso, tenho absoluta certeza de que será um tremendo sucesso nisso; só que, claro, terá de ser engenheiro. Ou soldado.

— Soldado?

Um membro dos Gordon Highlander. Se houver guerra.

Entretanto, nem mesmo tal perspectiva conseguiu ensombrecer a radiosidade que Loveday expandia.

—Jeremy vai se juntar à Marinha. —Já? Ele já se alistou?

— Por isso é que está aqui. Veio em uma espécie de folga de embarque.

— Céus... — Não obstante, com a auto-absorção de qualquer jovem enamorada, Loveday não se interessava por outra pessoa além dela e do objeto de seu desejo. —Mal posso esperar para você conhecer Gus. Entretanto, não seja gentil demais com ele, para que não fique gostando mais de você do que de mim. A vida não é absolutamente extraordinária? Pensei que ele terminasse sendo como todos aqueles outros tipos insossos que Edward trouxe aqui em casa, mas ele não é assim, nem um pouquinho!

— Sorte dele ser diferente, porque então você o faria passar maus pedaços...

Loveday deu uma risadinha sufocada.

— Lembra-se de Niggle, e de como ele chegou a desmaiar de verdade, quando Edward trouxe para casa um coelho morto que ele tinha abatido com um tiro?

— Oh, Loveday, coitado, você foi terrível com ele. E não se chamava Niggle, mas Nigel.

— Eu sei, mas, admita, Niggle ("Dispersivo") assentava muito mais nele. Niggle-Niggle... Oh, apresse-se e desça logo, estão todos esperando; vamos ter drinques no jardim. Depois iremos até a enseada esta tarde. A maré terá subido, vamos poder nadar...

— Talvez eu vá visitar tia Lavinia.

Não é uma maravilha ela não ter morrido? Eu não suportaria, agora, vamos. Não posso mais esperar. Pare de se enfeitar. Você está

Ao seguir Loveday e depois sair para o exterior pelas portas-janelas da ala de estar, Judith foi ofuscada pela claridade. O jardim estava inundado de luz; era uma luminosidade que o sol do meio-dia, batendo no mar, fazia reverberar para terra, de modo que tudo parecia incandescente, tremeluzindo, deslocado na brisa estival. As folhas dos eucaliptos estremeciam e viravam-se, verdes e prateadas; pétalas rubras, caídas de uma roseira carregada de flores, eram empurradas pelo vento através do gramado, e as grossas franjas brancas do guarda-sol de jardim de Diana, aberto através do orifício central de uma ornada mesa em ferro forjado, dançavam e sacudiam-se no ar.

Sobre essa mesa havia uma travessa de copos, cinzeiros e tigelas de cerâmica com batatas fritas e nozes. Além da sombra escura do guarda-sol haviam sido dispostas cadeiras de lona arrumadas em tosco semicírculo, com mantas axadrezadas de carro espalhadas na grama. Percebendo a clemência do dia e sabendo que os membros jovens do clã Carey-Lewis nunca ficavam dentro de casa se pudessem estar ao ar livre, Nettlebed certamente aproveitara a indicação e estivera bem ocupado.

Judith procurou por Edward, porém não o viu ali. Somente três figuras esperavam por elas, arranjadas com graça, como se houvessem posado, ali colocadas por algum artista desejoso de um pouco de interesse humano, a fim de animar sua paisagem. Esta impressão de uma tela — um momento congelado no tempo — era tão forte, que Judith se viu contemplando a cena como se avaliasse um quadro; um óleo cintilante, magnificamente emoldurado em ouro, talvez pendendo das paredes de uma galeria de prestígio. Seu título, Antes do Almoço, Nancherrow, 1939. Uma obra que alguém ansiaria possuir, que seria impelido a comprar, por cara que fosse, e conservá-la para sempre.

Três figuras. Athena jazia sobre uma das mantas, apoiada nos cotovelos, com os cabelos louros agitados pelo vento e o rosto escondido por enormes óculos escuros. Os homens haviam puxado duas das cadeiras e sentavam-se de frente para ela. Um era bem moreno, o outro louro. Haviam despido os paletós dos ternos com que tinham ido à igreja, tirado as gravatas e enrolado as mangas das camisas. A despeito das calças de risca de giz e dos sapatos polidos, conseguiam ter uma aparência confortavelmente informal.

Três figuras. Athena e os dois rapazes que Judith estava prestes a conhecer. Ela repetiu os nomes para si mesma: Gus Callender e Rupert Rycroft. Bem, e qual deles seria Gus? Qual era o homem que havia capturado o caprichoso coração de Loveday e, em questão de dias, efetuara a transformação final de uma adolescente deliberadamente desengonçada em uma radiosa e jovem mulher, vestindo Schiaparelli, usando batom e com a luz do amor brilhando em seus olhos cor de violeta?

Incapaz de conter a impaciência, Loveday correu ao encontro deles.

— Onde está todo mundo? — perguntou. Eles haviam estado conversando, mas, interrompidos desta maneira, pararam de falar. Athena continuou na mesma posição, mas os dois rapazes levantaram-se de suas cadeiras de lona, com certa dificuldade. — Oh, não se levantem, parecem tão à vontade... —Judith a seguiu para a claridade do sol e através do gramado, momentaneamente tomada pela timidez que ainda sentia ao conhecer pessoas, mas esperando que isto não transparecesse. Viu que os dois rapazes eram altos, mas que o louro era excepcionalmente alto e magro, sendo o de maior estatura. —... Não há nada para beber? Estou morta de sede, depois daquela cantoria de hinos e de tanta reza!

— Já vem, já vem, tenha um pouco de paciência — disse Athena para sua irmã mais nova, e Loveday arriou na manta do lado dela. Athena virou seus óculos escuros para Judith. — Olá, querida, que bom ver você! Parece ter levado séculos ausente. Ainda não conhece Gus e Rupert, certo? Rapazes, esta é a muito querida Judith, nossa irmã "postiça". A casa sempre parece mais vazia quando ela não está aqui.

Como sua mãe, Athena tinha o dom de fazer uma pessoa sentir-se especial, o que acabou com a timidez de Judith.

— Olá — disse ela, sorrindo.

Todos apertaram-se as mãos, e ela percebeu que Rupert era o muito alto, o amigo de Athena que havia sacrificado sua semana esportiva para trazê-la de carro à Cornualha. Pertencendo indiscutivelmente ao Exército, com seu arquétipo de oficial da Guarda, o bigode bem aparado, o corte severo de cabelo e o queixo inegavelmente recuado. Entretanto, de maneira alguma parecia incapaz, porque seu rosto havia sido queimado por algum sol estrangeiro e adquirido uma aparência coriácea, o aperto de mão era firme, e os olhos de pálpebras indolentes a fitavam com uma expressão divertida e amistosa ao mesmo tempo.

Gus, pelo contrário, não era indiscutivelmente alguma coisa. Tentando descobrir o elemento isolado que por fim derrubara as teimosas defesas de Loveday, Judith nada pôde encontrar. Os olhos dele eram escuros como café preto, a pele era olivácea e a funda covinha no queixo dava a impressão de ter sido colocada ali pelo cinzel de um escultor. A boca era ampla e bem desenhada, mas séria, toda a postura dele indicando-o como um homem estranhamente contido, talvez acanhado, mas certamente sem revelar seu segredo. Relacionar tão enigmático rapaz às efervescentes confidências de uma Loveday atingida pelo amor não só era algo confuso, como praticamente impossível. Afinal, como é que aquilo pudera acontecer? Ela não soubera ao certo o que esperar, mas com toda certeza não seria isso.

Ele havia dito "É um prazer conhecê-la", e a sombra de um sorriso lhe tocara momentaneamente os lábios, a voz era cautelosa, sem sotaque, mas, ainda assim, sem nenhum traço do herdado e esnobe timbre da maioria dos amigos de Edward. Um material inteiramente novo, decidiu Judith. E, afinal, por que não?

— Onde quer sentar-se? Pronto, eu lhe arranjo uma cadeira — disse ele, puxando uma para ela.

— Onde está todo mundo? — tornou a perguntar Loveday. Athena respondeu, quando todos se acomodaram novamente ao sol cálido:

— Papai subiu para ver mamãe, e Edward foi descobrir alguma coisa para beber. Nettlebed não quis trazer a bebida para fora, pois ficaria muito quente ao sol.

— Sabia que Jeremy está aqui?

— Nettlebed já nos disse. Que ótima surpresa! Mamãe ficará extasiada...

— Ele está gozando uma folga de embarque — disse Judith. —Vai ser médico nos Voluntários da Reserva da Marinha Real, e terá de apresentar-se em Devonport semana que vem.

— Oh, céus! — exclamou Athena. — Uma atitude absolutamente destemida. O querido Jeremy... Este seria o exato tipo de coisa desinteressada que ele faria.

— Explique quem é Jeremy — disse Rupert.

— Era o que eu ia fazer, quando Judith e Loveday chegaram. Ele é outra espécie de membro "postiço" da família. Sempre nos conhecemos. O pai dele é nosso médico e Jeremy já deu aulas a Edward. Creio que chegou quando estávamos todos na igreja.

— Ele vai ficar — disse-lhe Judith. — Até quando tiver de partir

— Devemos mimá-lo ao máximo, torná-lo muito especial.

Gus havia deixado o paletó sobre a grama, ao seu lado. Esticando o braço, levantou-o e apalpou o bolso, em busca dos cigarros e do isqueiro. Quando fazia isso, um objeto escorregou de um bolso interno e caiu na grama, ao lado da cadeira de Judith. Ela viu um pequeno e grosso caderno de desenho, preso por uma fita de borracha. Sentada aos pés dele, Loveday também viu o caderno e apanhou imediatamente.

— Seu caderno de desenho. Não pode perdê-lo! Gus pareceu um pouco constrangido.

— Oh... perdão. — Estendeu a mão para apanhá-lo, porém Loveday não o entregou. —Oh, deixe-me mostrar a Judith. Você não se incomodaria, não é mesmo? É tão talentoso, eu quero que ela veja. Por favor.

— Tenho certeza de que ela não está interessada...

— Oh, não seja modesto, Gus! É claro que ela está. Todos nós estamos. Diga que posso mostrar!

Judith sentiu uma pontada de pena do rapaz que, evidentemente, não desejava ver sua obra essencialmente particular posta em exibição.

— Loveday, ele talvez não queira ver todos nós boquiabertos.

— Não ficarão boquiabertos, mas interessados e cheios de admiração.

Judith olhou para Gus.

— Costuma andar sempre com seu caderno de desenho?

— Costumo. — Ele lhe sorriu de repente, talvez grato por vê-la interessada, e o sorriso transformou suas feições algo severas. —Nunca se sabe quando surgirá alguma coisa pedindo para ser copiada, e então é angustiante não dispormos do meio para captá-la. Algumas pessoas tiram fotos, mas sou melhor no desenho.

Isso pode acontecer mesmo na igreja? Ele riu.

É possível, embora eu não tivesse coragem de começar a desenhar na igreja. Este caderno é apenas uma coisa que carrego comigo automaticamente, em minhas andanças.

Como dinheiro trocado.

Exatamente. — Ele pegou o caderno com Loveday e o jogou no colo de Judith. — Fique à vontade.

— Tem certeza?

— Claro. São apenas pequenos esboços; nada muito bom.

Loveday, no entanto, interveio excitadamente. Ajoelhando-se junto a Judith, fez deslizar a tira de borracha que prendia o caderno e o deixou sobre os joelhos dela, enquanto virava as páginas e fazia os comentários, em orgulhoso tom de proprietária.

—... e esta é a enseada. Não está maravilhoso? E Gus fez o desenho em um instantel E aqui é a rocha oscilante no alto da charneca, e o celeiro da sra. Mudge, com as galinhas nos poleiros...

A medida que as páginas iam sendo lentamente viradas para ela, Judith viu-se invadida por crescente admiração, pois sabia que olhava para o trabalho de um verdadeiro profissional. Cada pequeno rascunho a lápis fora feito com a precisão e o detalhismo do desenho de um arquiteto, sendo depois intitulado e datado com a situação exata. Enseada de Nancherrow. Fazenda Lidgey. Ele colorira o desenho em pálidos tons de aquarela, e as cores eram inteiramente originais, observadas pelo olho de um verdadeiro artista, de modo que a chaminé de uma velha mina de estanho permanecia lilás à claridade do anoitecer, o granito era tocado por um tom de rosa-coral e um teto de ardósia mostrava-se azul como jacintos. Uma paleta que Judith — e provavelmente a maioria das pessoas — jamais percebera antes.

Agora, uma praia. Ondas rolando para areias cremosas, vindas de um horizonte azul e esfumado. Outra página: a igreja de Rosemullion. Ela viu o vão da entrada em pedra esculpida, bem como o portal do século XI, suportado por capiteis romanescos. Então, ficou quase envergonhada, porque Gus pudera ver a beleza e simetria que ela, indo e vindo por aquela entrada em incontáveis ocasiões, nunca tivera tempo de apreciar. Estavam apenas na metade do caderno, quando Loveday anunciou:

— Este agora é o último. Daqui em diante as páginas estão em branco. — Ela virou a página final com um floreio. — Ta-ra, ta-ra-ra! Sou eu! Gus me pintou!

Não era preciso que ela dissesse. Sentada no alto de um penhasco e silhuetada contra o mar, Loveday usava um desbotado vestido rosa de algodão, estava descalça e o vento agitava os cachos escuros de seus cabelos. Judith percebeu que Gus se valera de uma licença de retratista, exagerando o comprimento das pernas e do pescoço esguio, a saliência dos ombros ossudos, a ambígua espontaneidade de sua pose. Assim, de certo modo ele captara a própria essência de Loveday e no ponto mais vulnerável — seu encanto. De repente, tudo estava mudado, e Judith compreendeu que o relacionamento entre Gus e Loveday não era unilateral, conforme imaginara antes, porque este era um retrato em miniatura pintado com amor. No mesmo instante ela se sentiu como um voyeur, perturbando um momento da mais privada intimidade.

Fez-se um silêncio. E, nas bordas deste vazio, ela podia captar as vozes suaves de Rupert e Athena, conversando um com o outro. Athena fazia uma guirlanda de margaridas. Então, Loveday perguntou:

— Você gostou do retrato, Judith? — De repente, Judith fechou o livro, tornando a prendê-lo com a faixa de borracha. — Gus não é talentoso?

— Muito talentoso. — Erguendo os olhos, viu que Gus a observava. Por uma fração de segundo, Judith experimentou uma intensa troca com ele. Você percebeu. Eu sei que você sabe. Não diga nada. Ele nada falara, porém as palavras chegaram até ela como uma mensagem telepática. Sorriu, atirou-lhe o caderno de desenho e ele o pegou, como se fosse uma bola de críquete. — É mais do que talentoso. Realmente brilhante. Loveday tem razão. Obrigada por permitir que eu visse seu caderno.

—Não tem de quê. —Ele se virou para pegar o paletó e o encanto foi quebrado, o momento já passara. — É apenas um passatempo. — Gus tornou a guardar o caderno em seu esconderijo. — Não gostaria que meu pão com manteiga dependesse disto.

—Aposto como você será muito melhor como artista do que como engenheiro — disse Loveday.

— Posso ser as duas coisas.

— Mesmo assim, não acredito que você terminasse passando fome numa água-furtada.

Ele riu para Loveday, depois meneou a cabeça.

— Eu não teria tanta certeza...

Uma porta bateu em algum lugar, dentro da casa. Athena ergueu o rosto, com a guirlanda de margaridas pendendo de suas mãos.

— Só pode ser Edward! O que ele andará fazendo? Estou simplesmente morta de sede!

Edward. Surpreendentemente, por um momento, Judith esquecera Edward. Agora, no entanto, Gus e Loveday, bem como todas as especulações sobre eles, desapareceram de sua mente. Edward estava quase ali. Olhando, viu os dois rapazes emergirem pelas portas-janelas abertas. Edward e Jeremy, ambos carregando bandejas pesadas de copos e garrafas. Ficou olhando enquanto eles se aproximavam e cruzavam o gramado banhado pelo sol de verão, rindo de alguma piada não ouvida. Foi bastante ver Edward, para que tudo entrasse em harmonia. Ela sentiu o bater mais forte do coração, a ânsia de correr ao encontro dele, e compreendeu que aquele era o instante da certeza absoluta. Soube que o amava acima de tudo, que sempre o amara e sempre o amaria. Além disso, tinha algo maravilhosamente excitante para contar a ele... um segredo a ser partilhado somente com Edward. Disse para si mesma que seria como dar a ele um maravilhoso presente, algo que lhe custara muito conseguir, cujo envoltório poderia vê-lo abrir. Isto, contudo, ficaria para mais tarde. Para quando estivessem sozinhos. Por ora, bastava esperá-lo aproximar-se, caminhando pelo gramado.

Gus havia ficado em pé e agora começava a juntar coisas em cima da mesa, fazendo espaço para as duas bandejas. Rupert, ao contrário, decidiu sensatamente continuar onde estava, com seu corpo comprido jeitosamente acomodado na curvatura da cadeira, e os olhos sonolentos semicerrados contra o sol.

As bandejas foram finalmente depositadas na mesa, com um gratificante ruído.

— Nossa, como estão pesadas! —exclamou Edward. —As coisas que fazemos para as horas de ócio de vocês!...

— Estamos todos sedentos — queixou-se Athena, ingratamente. — O que vocês ficaram fazendo

— Tagarelando com Nettlebed.

— E Jeremy... Que surpresa maravilhosa! Venha cá e me dê um beijo. — O que, obedientemente, Jeremy fez. — Há um bocado de caras novas para você conhecer. Gus. E Rupert. E todo mundo. Já sabemos que vai para o mar, Jeremy. Rapaz corajoso! Mal posso esperar para vê-lo de uniforme. E agora, quem vai ser o barmann? Estou morrendo por um gim-tônica. Trouxeram gelo?

Edward estava entre Judith e o sol. Ela ergueu os olhos, viu o rosto dele, os olhos azuis e a mecha de cabelos claros. Inclinando-se, ele se apoiou no encosto da cadeira dela para dar-lhe um beijo.

Chegou em casa sã e salva — disse.

— Há cerca de uma hora.

Ele sorriu e endireitou o corpo.

— O que quer beber? — perguntou.

No momento era o suficiente, ela não precisava de nada mais. Com os drinques distribuídos e todos acomodados, começaram a discutir planos para a tarde.

— Decididamente, temos que ir à enseada — anunciou Loveday.

E se ninguém mais quiser ir, eu e Gus iremos. A maré vai estar alta

às cinco horas, o que será absolutamente perfeito!

— Quando querem ir? — perguntou Athena.

— Logo depois do almoço. O mais depressa possível. Faremos um piquenique... Oh, vamos todos! — Ela se voltou para Rupert com olhos suplicantes. — Você gostaria de ir, não?

— É claro. E quanto a Athena?

— Eu não perderia por nada. Iremos todos. Exceto papai, porque ele não é muito amigo de piqueniques.

—Nem sua mãe — disse Jeremy, sentado de pernas cruzadas sobre a grama, tendo na mão uma caneca de cerveja. — Ela vai passar o dia na cama.

— Ordens do médico? — perguntou Athena.

— Ordens do médico.

— Ela não está doente, está?

— Não. Apenas um pouco esgotada. Precisa dormir.

— Sendo assim, vamos pedir a Mary que se junte a nós. Talvez ela ajude a preparar as cestas do piquenique. Não podemos esperar que a sra. Nettlebed faça outra coisa, depois de cozinhar o almoço de domingo para todos nós. Afinal, nas tardes de domingo ela sempre descansa com os pés para cima, o que tem todo o direito.

Eu posso ajudar — ofereceu-se Loveday prontamente. — Há uma lata novinha de biscoitos de chocolate, e a sra. Nettlebed fez um bolo de limão. Eu vi esta manhã, antes de irmos para a igreja.

Levaremos também galões de chá e limonada. E iremos com os queridos cachorrinhos.

— Isto começa a ter certa semelhança com uma expedição militar — disse Rupert. — Espero ser convocado a qualquer momento para cavar uma latrina.

Athena deu-lhe um tapa no joelho.

— Oh, não seja tão rude!

— Ou montar uma tenda. Aliás, sou uma negação na montagem de tendas. Elas sempre acabam caindo.

Athena não pôde deixar de rir.

— E quanto a fogueiras? Tem alguma experiência no ramo? Não, pensando bem, nem precisa preocupar-se, porque Edward irá e é perito em acender fogueiras.

Edward franziu o cenho.

— Para que vão querer uma fogueira em um dia como este?

— Para cozinhar coisas.

— Que coisas?

— Salsichas. Levaremos salsichas. Ou assar batatas. Bem, talvez alguém pesque um peixe...

— Com quê?

— Com um tridente. Um alfinete entortado, na ponta de um pedaço de barbante.

— Pessoalmente, acho que devíamos esquecer sobre acender fogueiras. Está fazendo calor e dá muito trabalho. Por outro lado, eu e Judith não iremos.

Exclamações de pesar, desapontamento e incredulidade acolheram tal declaração.

— Oh, mas é claro que devem ir! Por que não? Por que não querem ir?

— Porque temos um compromisso anterior. Vamos até Dower House, ver tia Lavinia.

— Ela está sabendo?

— Claro que está e insiste em nossa ida. Apenas por pouco tempo, naturalmente. Acontece que tia Lavinia não vê Judith desde que ficou doente. Assim, vamos até lá.

— Oh, tudo bem — replicou Athena, dando de ombros. — Se não demorarem muito, poderão ir ao nosso encontro mais tarde. De qualquer modo, deixaremos uma das cestas de piquenique para vocês levarem e, se não forem, ficaremos com menos coisas para comer. Por falar nisso...

Interrompendo-se, Athena ergueu os óculos escuros e consultou seu relógio.

já sei —disse Rupert —você está morrendo de fome.

— Como foi que adivinhou?

Instinto. Puro instinto animal. Contudo, ouça... —Ele bandeou a cabeça. —Não precisa mais desmaiar. O socorro vem chegando...

O Coronel Carey-Lewis surgiu nesse momento, saindo da sala de estar e caminhando em largas passadas pelo gramado, em direção ao pequeno grupo formado pelos três filhos e amigos deles. Ainda usava o terno com que fora à igreja, e o vento engalfinhou-se com seus cabelos ralos, deixando-os em desalinho. Ao aproximar-se, ele exibiu seu sorriso tímido, enquanto tentava alisar os cabelos com a mão.

— Estão todos parecendo muito à vontade — disse. — Receio ter vindo perturbá-los. — Os quatro homens já se tinham levantado. — Nettlebed me pediu para dizer a vocês que o almoço vai ser servido.

— Oh, papai querido, não tem tempo para um drinque?

—Já tive um. Um cálice de sherry com sua mãe.

— E como está ela? — Athena começava a levantar-se, sacudindo das roupas pedacinhos de relva e pétalas de margaridas.

— Muito bem. Mary acabou de levar-lhe uma sopa. Ela acha que não se sente bem o bastante para levantar-se em homenagem ao rosbife do almoço. Acho que ficará na cama pelo resto do dia.

Athena foi abraçar o pai.

— Meus pobres queridos... — disse suavemente. — Não se preocupe, papai. Vamos

Enfiando o braço no do pai, começou a caminhar com ele para a casa. Os outros demoraram-se um pouco, recolhendo copos, garrafas de cerveja e enchendo as bandejas novamente. Sem que lhe pedissem, Gus pegou uma das bandejas

Para onde a levo? — perguntou.

Se me seguir — respondeu Edward — iremos para a copa de Nettlebed...

A pequena procissão entrou na casa, com Judith na retaguarda, levando um cinzeiro e dois copos que tinham sido esquecidos. Atrás dela, o jardim deserto parecia queimar à luz do sol, e a sombra do guarda-sol, com suas franjas oscilantes, caía escura sobre as cadeiras de lona vazias e as mantas xadrez.

Terminado o almoço e retirados os pratos da sobremesa, a pedido de Athena o café foi servido na mesa da sala de refeições.

— Se desfilarmos para a sala de estar — observou ela, com toda razão —vamos cair em poltronas, dormir ou começar a ler os jornais, e a tarde chegará ao fim, antes mesmo de começar.

Loveday concordou imediatamente.

— Eu não quero café. Vou começar a preparar as coisas do piquenique.

— Não perturbe a sra. Nettlebed — avisou Mary.

— Não perturbarei. Virá comigo para ajudar, Mary? Tudo ficará pronto mais depressa se formos as duas. E queremos que venha conosco — acrescentou, bajuladora. — Há séculos você não vai à enseada. E vamos levar os cães.

— Não pode levar Pekoe. Está enrodilhado na cama de sua mãe como um pequeno príncipe. Nem adianta pensar em incomodá-lo.

— Então, levaremos Tiger. Por favor, Mary, venha e me ajude. Mary suspirou. Todos percebiam claramente que ela preferiria muito mais sentar-se por cinco minutos e digerir seu lauto almoço de domingo, mas, como sempre, Loveday terminou vencendo.

— Nunca vi uma garota como você — disse-lhe Mary, mas levantou-se, pediu licença ao coronel e, carregando seu café, xícara e pires, seguiu Loveday para fora da sala.

Judith ainda ouviu Loveday dizendo para Mary, com ares de importância:

— Passaremos manteiga nos pães para sanduíche e poremos a chaleira no fogo, a fim de termos litros e litros de chá...

Edward estava igualmente impaciente, mas por outro motivo.

— Acho que devíamos omitir o café — disse para Judith — e ir logo para Dower House. Tia Lavinia costuma ficar sonolenta depois do almoço, mas poderá dormir mais tarde. Este é o melhor momento para surpreendê-la em plena forma.

— Não demorem muito — avisou seu pai. — Meia hora deve ser o máximo que ela poderá suportar.

— Certo, papai. Prometido.

— Quando é que voltam? — perguntou Athena.

— Acho que lá pelas três e meia.

— E irão ao nosso encontro na enseada?

— Claro. Pode esperar que iremos.

— Deixaremos uma das cestas de piquenique na mesa do saguão, para que a levem quando forem.

— Você faz a coisa soar como uma penitência.

—Não. Apenas um artifício para ter certeza de que irão. Está uma tarde maravilhosa, perfeita para nadarmos junto dos rochedos.

— Estaremos lá. Pronta, Judith?

Ela levantou-se. Os outros continuaram na mesa, os rostos voltados para ela e sorridentes. O coronel, Athena, Jeremy, Rupert Rycroft e o enigmático Gus.

— Até logo mais — disse Judith.

— Vamos ficar esperando...

— Dê lembranças a tia Lavinia...

— Beije-a por mim...

— Diga a ela que irei vê-la um pouco mais tarde...

Os dois saíram. Diante da porta principal havia uma seleção de carros, incluindo-se o de Edward, porque nele conduzira Athena e Rupert à igreja. Entraram no carro e, como o veículo ficara estacionado ao sol, o calor em seu interior era sufocante, o couro dos assentos parecia pegar fogo.

— Céus, que estufa! — exclamou Edward, baixando os vidros a fim de criar uma pequena ventilação. Para almoçar, pusera uma gravata em deferência ao pai, mas agora a tirava e abria o botão superior da camisa azul. — Eu devia ter deixado o carro na sombra. Enfim, isso torna ainda mais convidativa a perspectiva de pular no mar. Então, chegado o momento, será ainda melhor, sabendo que nós dois cumprimos o nosso dever.

— Não é realmente um dever — observou Judith, embora não querendo discordar e compreendendo bem o ponto de vista dele.

— Tem razão. — Edward ligou o motor, e o carro começou a afastar-se pela alameda de cascalho, em direção ao frescor do túnel da avenida. — Contudo, não espere que ela seja a mesma jovial e ativa tia Lavinia que todos nós conhecemos e amamos. Ela passou momentos extremamente desgastantes, e as marcas estão visíveis.

— Certo, mas ela não está morta, e isto é a única coisa que de fato importa. Naturalmente, tia Lavinia tornará a ficar forte. — Judith refletiu nisso. Afinal de contas, tia Lavinia era muito idosa. — Ou, de qualquer modo, mais forte. — Ocorreu-lhe outro pensamento. — Oh, céus, não trouxe nada para dar a ela! Eu devia ter comprado flores ou algo assim. Talvez bombons...

— Ela está sobrecarregada com as duas coisas. Além de uvas, água-de-colônia e caixas de sabonetes Chanel. Não é somente a família que se preocupa com ela. Tia Lavinia tem amigos pelo condado, os quais têm comparecido em peso para apresentar seus respeitos e comemorar o fato dela não ter ido desta para melhor.

— Deve ser muito bom estar idosa e ainda possuir montes de amigos. Uma pessoa ficar velha e solitária seria terrível.

— Ou velha, solitária e na pobreza. Isto seria ainda pior.

Era uma observação tão incomum vindo de Edward, que Judith franziu o cenho.

— Como é que você sabe?

— Por causa dos velhos na propriedade... Papai costumava levar-me para visitá-los. Não de um modo protecionista e superior, apenas como uma tentativa de certificar-se de que estavam bem. Em geral não estavam.

— E então, o que vocês faziam?

— Não se podia fazer muito. Via de regra não queriam mudanças. Não queriam ir morar com um filho ou uma filha. Tinham pavor do estigma de qualquer espécie de assistência social. Seu único desejo era morrer nas próprias camas.

— É compreensível.

— Sim, mas de solução nada fácil. Particularmente quando a casa onde moram deveria abrigar um novo trabalhador ou guarda-florestal jovem.

— Bem, mas vocês não os expulsavam, não é mesmo?

— Você fala como uma personagem de novela vitoriana. É claro que não eram expulsos. Nós os consolávamos e cuidávamos deles, até finalmente falecerem.

- E onde morava o trabalhador jovem?

Edward deu de ombros.

Com os pais, em alojamentos ou coisa assim. Era apenas uma questão de fazer com que todos tivessem rendimentos.

Judith pensou em Phyllis, e falou a Edward sobre sua infeliz situação.

... foi muito bom vê-la, mas horrível ao mesmo tempo, porque mora em um lugar pavoroso e numa casinha miserável. Então, se Cyril alistar-se e for para o mar, ela terá que sair de lá, porque a casa pertence à companhia de mineração.

— A síndrome da moradia vinculada.

— É tudo tão terrivelmente injusto!

— Bem, quando queremos que um homem trabalhe para nós, temos que dar a ele uma casa para morar.

— Todos não deveriam ter sua própria casa?

— Você está falando sobre utopia, algo que não existe.

Judith ficou calada. Estavam agora na estrada principal, descendo a ladeira que desembocava em Rosemullion. As árvores lançavam sombras escuras e pintalgadas sobre o macadame, e o vilarejo cochilava ao calor, aconchegado junto ao riozinho de águas claras, com margens amareladas pelos botões dos ranúnculos. Judith tornou a pensar em Phyllis, depois concluindo que esta era uma conversa muito singular para ter com Edward, a quem amava mais do que a qualquer pessoa que conhecesse e a quem não tornara a ver desde o anoitecer da humilhação de Billy Fawcett, na sarjeta de Porthkerris. Entretanto, isto também era agradável, significando que eles não tinham apenas o amor como tema de conversa, mas outros tópicos mais profundos. Por outro lado, era fácil e natural falar com ele sobre tais coisas, uma vez que o conhecia há tanto tempo — e ele fizera parte de sua vida, muito antes de passar a ser toda essa mesma vida.

O pensamento voltava a Phyllis.

Você acha que isso nunca chegará a acontecer? Estou falando e utopia. Acredita que as coisas jamais serão corretas para todos?

— Nunca serão.

- E a igualdade?

- Não existe semelhante coisa como igualdade. E por que estamos debatendo assuntos tão sérios? Falemos sobre algo bastante alegre, para então chegarmos a Dower House com um sorriso radioso no rosto, deixando todos, inclusive Isobel e a enfermeira, encantados por nos verem.

E, naturalmente, a chegada deles foi um encantamento. Isobel abriu a porta para os dois justamente quando a enfermeira descia a escada, trazendo de volta a bandeja do almoço de tia Lavinia. Apesar do calor do dia, a enfermeira estava trajada com todo o aparato do cargo: avental engomado, véu branco e grossas meias pretas. Era uma figura formidável, e Judith respirou aliviada por não ser ela a pessoa que estava de cama no andar de cima, sendo cuidada por semelhante perfeição — a própria idéia era por demais intimidante, mas, afinal, tia Lavinia jamais fora intimidada por pessoa alguma, nem mesmo por alguém como esta acha de guerra.

O nome dela era Irmã Vellanowath. Edward pronunciou este importante nome, apresentou Judith, e esta, apertando a mão da mulher, precisou controlar uma vergonhosa hilaridade. Quando subia a escada e certa de não ser ouvida, esmurrou o braço dele.

— Por que não me avisou sobre o nome dela? — sussurrou furiosamente.

— Eu queria fazer-lhe uma surpresa agradável.

— Ela não pode chamar-se Vellanowath!

— É claro que pode. Ela é Vellanowath — replicou ele, mas também ria.

O quarto de tia Lavinia estava inundado de sol, flores, pratas e cristais cintilando, fotos e livros. Ela jazia na cama, recostada a uma pilha de alvíssimos travesseiros de fronhas rendadas e com os ombros envoltos em um xale da mais fina lã Shetland. Tinha os cabelos brancos muito bem penteados e, quando seus visitantes surgiram à porta, ela tirou os óculos e estendeu os braços acolhedoramente.

— Oh, meus queridos, esperei tanto por este momento! Fiquei tão ansiosa, que mal pude comer meu almoço... peixe no vapor e creme de gemas, quando meu desejo era um pedaço de carneiro. Venham dar-me um beijo. Querida Judith, há tanto tempo não a vejo...

Ela estava mais magra. Muito mais. Parecia ter perdido tanto peso, que a pele do rosto se colara sobre os ossos e os olhos estavam fundos. Entretanto, eram os mesmos olhos brilhantes de sempre, e as bochechas permaneciam erguidas, como se ela não conseguisse parar de sorrir. Judith inclinou-se para beijá-la.

Sinto-me culpada — disse — por não lhe ter trazido um presente.

Eu não quero presentes, só quero você. E Edward. Meu caro garoto, quanta gentileza sua em vir! Sei muito bem que em um dia como este, deve estar morrendo de vontade de descer à enseada e pular no mar.

Edward deu uma risada.

— A senhora é clarividente, tia Lavinia, sempre foi. Enfim, não se preocupe, a vontade de nadar pode esperar. Todos os outros irão para a enseada, assim que Loveday e Mary Millyways terminarem de preparar as cestas do piquenique. Mais tarde, eu e Judith iremos ao encontro deles.

— Sendo assim, não preciso sentir-me egoísta. Vamos, sentem-se, as poltronas são confortáveis, e me contem tudo o que têm feito. Sabem de uma coisa? Sempre pensei que ficar doente fosse tedioso, porém não é nem um pouco. Ultimamente, tenho visto mais gente e velhos amigos do que em anos passados. Alguns um tanto melancólicos, devo admitir, sussurrando como se eu estivesse quase batendo a bota, porém a maioria tão sociável como sempre. Cheguei a esquecer que tinha tantos amigos. E agora... — Judith havia puxado uma poltrona para junto da cabeceira da cama e, estendendo o braço, tia Lavinia tomou-lhe a mão, que ficou segurando apertadamente. A mão que segurava a dela pertencia a uma senhora de muita idade, parecendo ter apenas ossos, juntas e anéis. A mão querida de uma velhinha. — Como foram os seus feriados em Porthkerris? E quem deixou em Nancherrow? Depois, fale-me sobre o jovem que está cortejando Athena...

Judith e Edward ficaram lá por uma meia hora, o tempo que lhes havia sido permitido e que foi passado entre conversas e risos, enquanto tia Lavinia ficava sabendo de tudo quanto acontecera e estava por acontecer. Eles lhe contaram sobre Rupert, sobre Jeremy e Gus...

Gus. É o seu amigo, Edward? Fiquei sabendo por seu pai que Loveday finalmente está com estrelas nos olhos. A vida não é espantosa, a julgar pela maneira como garotinhas crescem de repente? Espero que ela não se machuque. E Diana... Minha querida Diana... Como tem Passado?

Eles então lhe falaram sobre Diana. Tia Lavinia ficou bastante angustiada, precisou ser tranqüilizada.

— É apenas um ligeiro esgotamento. Ela tem tido muito o que fazer.

— Tudo culpa minha. Dar este susto em todo mundo! Ela tem sido uma santa, a querida Diana, subindo até aqui diariamente, certifican-do-se de que tudo à minha volta está correndo como deveria. Enfim, aqui tudo anda nos eixos. E, já que Jeremy está em Nancherrow, é bom que fique de olho nela.

Tia Lavinia não perguntou por que Jeremy estava em Nancherrow e, como por tácito acordo, Edward e Judith não lhe contaram que ele aproveitava a sua folga de embarque. Se soubesse, ela começaria a preocupar-se com o rapaz e lamentaria o triste estado em que andava o mundo. Neste exato momento, pelo menos, tia Lavinia devia ser poupada disso.

— E você vai ficar aqui durante o verão? —perguntou ela a Judith.

— Bem, por enquanto. Depois passarei algum tempo com tia Biddy, em Devon. Iremos a Londres e lá ficaremos alguns dias, a fim de que eu compre roupas para Cingapura.

— Cingapura! Esqueci que vai deixar-nos. Quando viaja?

— Em outubro.

— Quanto tempo ficará lá?

— Um ano mais ou menos.

— Oh, sua mãe ficará felicíssima! Que encontro vocês terão! Fico muito feliz por você, minha querida...

Por fim, chegou o momento da despedida. Edward olhou discretamente para seu relógio.

— Acho que devemos ir andando, tia Lavinia... não queremos cansá-la além da conta.

— Vocês não me cansaram nem um pouco. Apenas me deixaram muito feliz.

— Está precisando de alguma coisa? Alguma coisa para trazer ou que deva ser feita?

— Não. Tenho tudo de que preciso. — Então, ela recordou. — Sim. Há uma coisa que pode fazer por mim.

— O que é?

Tia Lavinia soltou a mão de Judith, que estivera segurando durante toda a conversa e, virando-se na cama, estendeu o braço para a gaveta da mesa-de-cabeceira. Aberta a gaveta, ela remexeu seu interior e de lá tirou uma chave, presa a uma etiqueta amassada.

A Cabana — disse, entregando a chave a Edward.

Ele pegou a chave.

— O que tem a Cabana?

— Sou eu que cuido dela. Abro-a regularmente, limpo-a das aranhas e das teias, procuro certificar-me de que está aquecida e seca. Pouco disso foi feito, desde que caí doente. Antes de voltar para Nancherrow, será que você e Judith podiam ir até lá, ver se está tudo em ordem? Tenho muito receio de que algum dos garotos mais velhos da aldeia possa vir bisbilhotar e fazer algum estrago. Não por maldade, claro, apenas por divertimento. Seria uma preocupação fora da minha cabeça, se fossem verificar que as coisas andam bem na Cabana. É um lugar precioso para mim, e eu odiaria ficar presa a esta cama, imaginando que ela foi negligenciada.

Levantando-se, Edward riu.

— Tia Lavinia, a senhora é uma permanente surpresa para mim! A última coisa com que precisa preocupar-se é sobre o estado da Cabana.

— Pois eu me preocupo. Ela é importante para mim.

— Nesse caso, fique certa de que eu e Judith iremos até lá, abriremos todas as portas e janelas e, caso surja um camundongo, prometo que um e outro seguirão seu caminho.

— Eu sabia — disse tia Lavinia — que você compreenderia, mais do que qualquer outra pessoa.

No exterior, o antiquado jardim como que cochilava, perfumado, à tarde cálida de verão. Edward seguiu à frente pela trilha, cruzou o jardim das rosas e desceu o lance de degraus de pedra para o pomar. Ali, a relva tinha sido cortada e amontoada em pequenas pilhas, as árvores haviam frutificado e suas frutas começavam a cair ao chão, onde jaziam apodrecidas e sumarentas, circundadas por abelhas. O ar cheirava fracamente a cidra.

—As frutas têm sido colhidas? — perguntou Judith.

— Sim, mas o problema é que o jardineiro mal se agüenta... como tia Lavinia e Isobel, está ficando velho. Ele precisaria de alguém para ajudar, se as maçãs tiverem que ser colhidas e armazenadas para o inverno. Terei uma conversa com papai. Talvez Walter Mudge ou qualquer dos empregados mais novos possa vir um dia até aqui e subir numa escada para colher as frutas.

Ele continuou andando à frente, mergulhando abaixo dos ramos que vergavam, carregados de frutos castanho-avermelhados. Mais acima, o melro cantava em uma árvore. A Cabana aconchegava-se em seu abrigado e boscoso recanto, banhada pelo sol. Edward subiu os degraus, enfiou a chave na fechadura e abriu a porta. Entrou. Judith o seguiu.

Ficaram parados, muito próximos, no pequeno espaço entre os dois beliches. O lugar ainda exalava um cheiro agradável de creosoto, porém estava quente e abafado, sufocante com o calor aprisionado. Uma enorme mosca-varejeira zumbiu em torno da lanterna que pendia da viga central e, a um canto, via-se o rendilhado de imensa teia de aranha, povoada de moscas mortas.

— Nossa! — disse Edward, afastando-se para abrir as janelas.

Estavam todas um tanto emperradas, necessitando de algum esforço muscular. A mosca-varejeira foi embora zumbindo e desapareceu por uma das janelas.

— O que faremos com a teia de aranha? — perguntou Judith.

— Vamos tirá-la.

— Com quê?

Edward vistoriou o fundo do armário feito de caixotes de embalar laranjas, lá encontrando uma pequena vassoura e um velho pano de pó.

— De vez em quando a gente tinha que varrer o chão — explicou para Judith.

Ela ficou olhando, o nariz torcido com nojo, enquanto ele retirava a teia de aranha com suas repugnantes vítimas, embrulhava tudo no pano de pó e depois saía pela porta, para sacudir o conteúdo sobre a grama.

— Há mais alguma coisa? — perguntou Edward ao voltar.

—Acho que é tudo. Não há sinal de camundongos. Nem de ninhos de pássaros. Também não vi buracos nas mantas. As janelas é que talvez precisem de uma limpeza.

— Seria um ótimo trabalho para você, num dia em que não tivesse nada melhor para fazer. — Ele tornou a guardar a vassoura e o pano dobrado em seu armário improvisado. Depois sentou-se na beira de um dos beliches. — Poderia brincar de casinha.

- Era o que você fazia? — Ela se sentou também, no outro beliche, de frente para ele no estreito espaço. Era mais ou menos como conversar na cabine de um barco ou no compartimento de terceira-classe de um trem. —Aqui, quero dizer.

Nada tão tolo assim. Nós nos divertíamos de verdade, com fogueiras de acampamento e tudo o mais. Descascando batatas e cozinhando as comidas mais insossas que, por algum motivo, sempre tinham um gosto delicioso. Salsichas e costeletas de porco ou peixe fresco, se houvéssemos pescado. Entretanto, na cozinha éramos uma inutilidade. Nunca se tinha nada no ponto, tudo sempre ficava cru ou queimado.

— O que mais faziam?

— Não muita coisa. Brincadeiras inocentes. O melhor era dormir no escuro com portas e janelas abertas, ouvindo os sons da noite. Algumas vezes fazia um frio miserável. Certa noite houve um temporal...

Edward estava tão próximo, que ela poderia pousar a mão em seu rosto. A pele dele era lisa e acobreada, os braços cobertos de finos pêlos dourados, os olhos no mesmo tom de azul da camisa de algodão, a mecha de cabelo caída na testa. Ficou sentada e imóvel, os braços à volta do próprio corpo, sem dizer nada, contemplando a beleza dele, ouvindo-lhe a voz.

... com relâmpagos riscando o céu. Naquela noite, um navio naufragou em alto-mar, diante de Land's End, e vimos os foguetes explodindo no céu, pensamos estar vendo cometas...

— Que estranho...

Os olhos deles encontraram-se.

Judith querida — disse ele. — Você ficou muito bonita. Sabia disso? E senti sua falta.

- Oh, Edward...

- Eu não diria, se não fosse verdade. E acho particularmente agradável estarmos sentados aqui, juntos, longe de hordas de outras pessoas.

Tenho uma coisa para contar a você — disse ela.

A expressão dele alterou-se sutilmente.

— Importante?

— Acho que é, pelo menos para mim.

— De que se trata?

— Bem... é sobre Billy Fawcett.

— Aquele bode velho. Não me diga que ele tornou a levantar a cabeça!

— Não. Ele acabou. Acabou-se para sempre.

— Explique-se.

— Você tinha razão. Disse que eu precisava de um catalisador, e foi o que aconteceu. Tudo ficou mudado.

— Conte-me.

Ela contou. Sobre Ellie e sua horrorosa experiência no cinema. Sobre a lacrimosa confissão de Ellie aos Warren e a ela própria. Sobre a ira do sr. Warren e a subseqüente visita que fizeram ao posto policial, para a denúncia formal contra Billy Fawcett por comportamento indecente e abuso de uma menor.

—Tudo isso demorou séculos. As rodas da burocracia giram muito lentamente, mas foi feito

— Que ótimo para você. Aliás, já era mais do que hora de fazerem o velhaco nojento cessar suas atividades. O que aconteceu?

— Suponho que o caso irá a julgamento em Bodmin, no próximo trimestre...

— Nesse meio tempo, ele estará fervendo de apreensão. Bastará isso para manter suas mãos sujas longe de menininhas.

—O ocorrido fez com que me sentisse muito forte, Edward. Muito positiva. Sem sentir mais medo. Ele sorriu.

— Nesse caso...

Ele estendeu as mãos e as pousou nos ombros dela, depois inclinou-se através do pequeno espaço que os separava e a beijou na boca. Foi um beijo suave, que rapidamente se tornou apaixonado, mas agora Judith não recuou nem o rejeitou, porque seu maior anseio era deixar que Edward fizesse o que queria. Abriu a boca para ele, e foi como se uma corrente elétrica percorresse cada nervo que possuía, enquanto todo o seu corpo parecia despertar para a vida.

Edward ficou em pé e passou os braços em torno dela, fez com que Judith se levantasse e depois a deitou no beliche em que estivera sentado. Tornando a sentar-se, agora ao lado dela, ajeitou-lhe almofadas sob a cabeça, afastou os cabelos que lhe cobriam o rosto e então, muito delicadamente, começou a desabotoar os pequeninos botões de pérola que fechavam a frente de seu vestido de algodão.

— Edward... — A voz dela não ia além de um sussurro.

— O amor não pára aqui. Isto é apenas o começo do amor...

— Eu nunca...

—Eu sei que nunca fez isso, mas eu já fiz. Já fiz antes, e vou mostrar a você como é.

Ele lhe baixou suavemente o vestido pelos ombros, depois as alças de cetim do sutiã branco, e Judith pôde sentir a friagem do ar em seu busto nu. Baixando a cabeça, Edward enterrou o rosto na pele lisa entre os seios, e ela não ficou nem um pouco amedrontada, apenas tranqüila e excitada ao mesmo tempo. Então, tomando a cabeça dele entre as mãos, fitou-o no rosto.

— Eu o amo, Edward, e quero que você saiba disso agora... Após o quê, não houve tempo, oportunidade e nem necessidade de dizer mais nada.

Um zumbido. Não da mosca-varejeira, mas de um robusto e monótono abelhão, embriagado de néctar. Judith abriu os olhos e o viu revolu-teando perto do pequeno teto de vigas, para finalmente instalar-se, aderido a uma das vidraças sujas.

Ela espreguiçou-se. Ao seu lado, no beliche estreito, estava Edward, com um braço sob seu corpo. A cabeça de Judith repousava no ombro dele. Virou o rosto, e ele tinha os olhos abertos, tão próximos, que em cada um ela pôde distinguir uma profusão de matizes de azul, algo como contemplar o mar.

De modo muito suave, muito baixo, ele perguntou:

— Tudo bem? Ela assentiu.

— Sem equimoses, arranhões ou ferimentos? Ela meneou a cabeça.

— Você foi excepcional. Ela sorriu.

— Como se sente agora?

— Sonolenta.

Ela deslizou a mão pelo peito nu dele, sentiu os ossos das costelas sob a carne firme e queimada de sol. Perguntou:

— Que horas são?

Ele ergueu o braço, para ver o relógio de pulso.

- Três e meia.

—Como é tarde!

— Tarde para quê?

— Pensei que fôssemos ficar aqui apenas por alguns momentos.

— Conforme Mary Millyway insiste em dizer, o tempo voa quando a gente se diverte. — Edward suspirou fundo. — Talvez fosse melhor sairmos daqui. Temos que aparecer no piquenique, do contrário ouviremos mil perguntas curiosas e incômodas.

— Sim, suponho que sim. Sei como é. Ele a beijou.

— Fique um pouco deitada. Não estamos com tanta pressa assim. Levante a cabeça de meu ombro. Estou ficando com cãibras.

Judith assim fez, ele puxou o braço preso e se sentou, de costas para ela. Então vestiu a camisa e a cueca, depois as calças, ficando em pé para prender as abas da camisa, fechar o zíper e afivelar o cinto de couro trançado. No pomar, além da porta aberta, a brisa agitava de leve os ramos das macieiras, e sombras sacudiam-se sobre as paredes de troncos da cabana. Ela ouviu o trinado do melro e o grasnido de gaivotas distantes. De mais longe ainda vinha o som de um carro, subindo penosamente a ladeira à saída de Rosemullion. Edward foi até a porta, enfiou a mão no bolso da calça, apanhou o maço de cigarros e o isqueiro. Judith virou-se de lado e contemplou-o; com o cigarro aceso, ele deu alguns passos e recostou o ombro contra o poste de madeira da pequena varanda, e ela pensou que as costas dele tinham uma certa semelhança com a ilustração de um conto de Somerset Maugham —um dos malaios. Um pouco desarrumado e deliciosamente decadente, descalço, com os cabelos despenteados e o mundanismo de seu cigarro. A qualquer momento, uma donzela morena e usando sarongue assomaria da selva (o pomar) para espionar, e se enlaçaria sedutoramente nos braços dele, murmurando palavras de amor.

Edward. Judith podia sentir o sorriso ganhar seu rosto. Agora não podia haver caminho de volta. Tinham dado o passo final, e ele se mostrara maravilhosamente meigo, reclamando-a para si na mais absoluta das maneiras; escolhendo-a; amando-a. Eram um par. Um casal. Algum dia, em algum lugar, casar-se-iam e ficariam juntos para sempre. Quanto a isso não havia a menor dúvida, e a perspectiva a encheu de um cálido senso de continuidade. Por alguma razão, os ritos sociais desta condição —pedido, noivado, casamento —jamais haviam passado por sua cabeça. Eram apenas floreios das convenções, sem importância e quase desnecessários, pois — como se fossem pagãos — Judith sentia que ela e Edward já haviam trocado seus votos.

Bocejando, ficou sentada e esticou o braço para apanhar suas roupas: a calcinha, o sutiã e o vestido de algodão foram recolhidos do chão. Enfiou o vestido pela cabeça, abotoou a frente e achou que devia pentear os cabelos, porém não tinha pente. Edward terminou o cigarro, jogou-o longe, virou-se e voltou para junto dela, tornando a sentar-se. Frente a frente, exatamente como tinham feito antes, uma hora atrás, uma era atrás, um mundo atrás.

Ela não falou. Após um instante, ele disse:

— Agora precisamos mesmo ir.

Judith, contudo, não queria ir já. Havia muito a dizer.

— Eu o amo, Edward. — Isso era o mais importante. — Acho que sempre o amei. — Era maravilhoso poder expressar isto em palavras, não ter mais de mostrar-se tímida ou sigilosa. — É como se, de repente, tudo se tornasse realidade. Não posso imaginar-me, nunca, amando uma outra pessoa.

— Você amará — disse ele.

— Oh, não! Você não compreende. Eu não poderia. Ele repetiu:

—Sim. Sim, você amará. —Falava com imensa delicadeza. —Você agora ficou adulta. Não é mais uma criança, nem mesmo uma adolescente. Dezoito anos. Com a vida inteira pela frente. Isto foi apenas o começo.

— Eu sei. O começo de estar com você. De pertencer a você. Ele meneou a cabeça.

— Não. Não a mim. Ela ficou confusa.

— Mas...

— Agora, ouça. O que estou dizendo não significa que não goste muito, intensamente de você. Que não me sinta protetor. Terno. Estas coisas todas. E todas as palavras adequadas. Todas as emoções apropriadas. Entretanto, elas pertencem ao agora. A este momento, a esta tarde. Não são exatamente efêmeras, mas é claro que não são para sempre.

Ela ouviu, escutou, e a incredulidade a atordoava. Edward não sabia o que estava dizendo. Não podia saber o que estava fazendo. Judith sentia que a apaixonada certeza de ser amada acima de tudo o mais, para sempre, escorria lentamente de seu coração, como água desaparecendo em um ralo. Como Edward não sentia o mesmo que ela? Como não percebia o que ela sabia, além de qualquer dúvida? O fato de que se pertenciam. De que um pertencia ao outro.

Agora, contudo.

Era mais do que podia suportar. Procurou freneticamente por pontos fracos nos argumentos dele, motivos para suas justificativas, sua perfídia.

—Entendo o que está acontecendo. É por causa da guerra. Haverá uma guerra e você terá de ir, lutar com a RAF, poderá ser morto, e não quer me deixar inteiramente só.

Ele a interrompeu.

—A guerra nada tem a ver com isto. Havendo ou não uma guerra, tenho toda uma vida para viver antes de comprometer-me com uma pessoa, antes de fincar raízes. De ter filhos. De receber Nancherrow de meu pai. Ainda não fiz vinte e um anos. Não poderia começar a tomar uma decisão a longo prazo, com alguém apontando uma arma para minha cabeça. Talvez me case um dia, mas não antes de estar com, pelo menos, trinta e cinco anos. Então, você já terá seguido seu caminho, tomado suas próprias decisões e estará vivendo feliz para sempre. — Ele sorriu encorajadoramente para ela. — Cingapura. Você vai para Cingapura. Provavelmente se casará com um riquíssimo chefe de firma comercial estrangeira ou plantador de chá e levará uma vida de tremendo luxo, com toda a opulência do Oriente, servida por empregados de andar macio.

Ele parecia um adulto tentando alegrar uma criança birrenta.

— Pense só na viagem que vai fazer! Aposto como não chegará ao Canal de Suez sem receber pelo menos duas dúzias de pedidos de casamento.

Ele falava tolices. Judith perdeu a paciência, e atacou:

—Não brinque com isso, Edward, porque não tem a menor graça.

Ele respondeu, de modo estranho:

— Não, acho que não tem mesmo. Estou assobiando no escuro, porque odeio magoar você em qualquer sentido.

— O que está dizendo é que não me ama.

— Eu amo.

— Não da maneira como o amo.

—Talvez não. Como já disse, sinto-me ridiculamente protetor em relação a você, como se de algum modo fosse responsável por sua felicidade. Como Loveday, mas também não como Loveday, porque você não é minha irmã. Entretanto, eu a vi crescer, e você tem sido parte de Nancherrow e da família, durante todos estes anos. Voltei para casa trazendo comigo aquele incidente com o miserável Billy Fawcett. Via como você estava sozinha, como era vulnerável. E sentia arrepios, pensando em você traumatizada por aquele velho nojento. Não suportava imaginar que aquilo pudesse repetir-se.

Finalmente, ela começou a entender.

— Então, você dormiu comigo. Você fez amor comigo. Você fez isso.

— Eu queria expulsar o fantasma dele para sempre. Tinha que ser eu, não alguém incompetente, algum devasso grosseiro libertando-a de sua pura virgindade, fazendo-a passar momentos intoleráveis e destruindo todas as alegrias do sexo.

— Você me fez uma gentileza. Você tinha pena de mim. Praticou uma boa ação. — Judith percebeu que sua cabeça começava a doer. Podia sentir a dor, como cordéis apertados e esticados por trás de seus olhos, um latejamento nas têmporas. — Prestou-me um favor — terminou amargamente.

— Judith querida, nunca pense assim! Pelo menos, dê-me o benefício de tê-la amado com a melhor das intenções.

Isto, contudo, não era o suficiente. Jamais o seria. Ela baixou o rosto, não querendo ver os olhos dele. Ainda estava descalça. Levantando-se, pegou uma de suas sandálias, começou a calçá-la e afivelou a correia de couro.

— Acho que fiz o papel mais ridículo deste mundo — disse. — Enfim, talvez isto não devesse ser nenhuma surpresa.

— Nunca. Isso, não. Amar não é ridículo. Apenas não faz sentido dar todo o seu amor à pessoa errada. Não sou adequado para você. Você precisa de alguém inteiramente diferente de mim; um homem mais velho, capaz de dar-lhe as coisas maravilhosas que bem merece, coisas que eu jamais encontraria em meu coração para prometê-las.

— Eu gostaria que me tivesse dito tudo isso antes.

— Antes, não era relevante.

— Está falando como um advogado.

— Você ficou zangada. Judith se virou para ele.

— Bem, como esperava que eu ficasse?

Seus olhos doloridos estavam quentes, devido às lágrimas não derramadas. Ele pareceu percebê-las e exclamou, um tanto alarmado:

— Não chore!

— Não estou chorando.

— Eu não suportaria vê-la chorar. Faria com que me sentisse um crápula.

— E agora, o que vai acontecer? Ele deu de ombros.

— Somos amigos. Nada pode mudar isto.

— Continuaremos agindo como se nada tivesse acontecido? Sendo cuidadosos, para não perturbar Diana? Como já fizemos antes. Não sei se poderei fazer isso, Edward.

Ele ficou em silêncio. Ela começou a afivelar a outra sandália e, após um momento, Edward enfiou os pés descalços nos sapatos, depois amarrou os cordéis. Levantando-se, foi fechar e aferrolhar as janelas. O abelhão fora embora. Judith ficou em pé. Edward caminhou para a porta e ficou lá, esperando-a sair antes dele. Quando ela passou ao seu lado, ele a deteve com o braço e fez com que se virasse para encará-lo. Judith o fitou dentro dos olhos, e ele disse:

— Procure compreender.

— Eu compreendo. Perfeitamente. Só que isso não torna coisa alguma mais fácil.

— Nada mudou.

Ao ouvi-lo, Judith pensou que aquela talvez fosse a coisa mais idiota, mais mentirosa que já ouvira um homem dizer. Soltando-se dele, correu para o pomar e continuou correndo através da relva, mergulhando por baixo dos ramos e esforçando-se ao máximo para não prorromper em lágrimas.

Atrás dela, Edward fechou a porta e a trancou cuidadosamente. Estava feito. Estava tudo acabado.

Voltaram para Nancherrow em um silêncio que não era doloroso e nem amistoso, mas uma espécie de meio-termo entre as duas coisas. Claro está que aquele não era o momento mais adequado para conversarem, e a dor de cabeça de Judith ficara tão intensa, que a deixava incapaz de qualquer esforço para manter um diálogo, por trivial que fosse. Além disso, começava a sentir-se algo nauseada e havia estranhas manchas negras, como girinos, nadando em seu campo visual. Jamais tivera uma enxaqueca na vida, mas suas colegas de escola às vezes eram atacadas pelo mal e haviam tentado descrever-lhe os sintomas. Perguntou-se se não estava começando a ter uma, e concluiu que provavelmente não, pois sabia que enxaquecas levavam muito tempo a desenvolver-se, por vezes dias, e o que lhe acontecia agora fora tão repentino como uma súbita martelada.

Com o coração apertado, ela pensou na fase seguinte deste dia interminável. Chegar em casa e tornar a sair, a fim de juntar-se ao grupo que fazia piquenique na enseada. Atravessar o jardim, passar por entre as guneras, cruzar a pedreira, emergir nos penhascos e ver os outros bem abaixo deles, acampados sobre a rocha tradicional. Corpos morenos, untados de óleo contra o sol, toalhas de cores vivas espalhadas em torno, chapéus de palha e roupas abandonadas, jazendo onde tinham sido deixadas. Vozes erguidas e o chapinhar das águas, quando alguém mergulhava do alto da rocha. E, acima de tudo, a claridade do dia luminoso, o brilho implacável do mar e do céu.

Era demais. Quando se aproximavam da casa, ela respirou fundo e disse:

— Eu não quero ir à enseada.

— Você precisa ir! — exclamou Edward, com impaciência na voz. — Sabe que eles nos esperam!

— Estou com dor de cabeça.

— Oh, Judith.

Evidentemente, ele achava que fosse alguma desculpa inventada por ela.

—É verdade. Estou mesmo com dor de cabeça. Meus olhos ardem, estou vendo manchas negras à minha frente, a cabeça lateja e me sinto um pouco nauseada.

— Fala sério? — Ele agora ficara preocupado. Virou a cabeça e olhou para ela. — Bem, você está um pouco pálida. Por que não disse antes?

— Estou dizendo agora.

— Quando foi que começou?

— Há um momento atrás — foi o melhor que conseguiu dizer.

— Oh, sinto muito. —Edward estava realmente contrito. —Pobre Judith! Nesse caso, assim que chegarmos, é melhor que tome uma aspirina ou algo assim, e se deite um pouco. Logo estará melhor. Podemos ir à enseada mais tarde. Eles só virão embora pelo menos às sete horas, de modo que ainda temos horas pela frente.

— Sim. — Ela ansiava estar em seu quarto silencioso, de cortinas fechadas contra a claridade impertinente, sentindo o frescor do linho macio sob sua cabeça latejante. Paz. Solidão. Um pequeno espaço de tempo para recuperar sua dignidade e lamber as feridas. —Acho que farei como diz. Não fique esperando por mim.

— Não quero ir e deixá-la sozinha.

— Não estarei sozinha.

— Estará. Mary foi para a enseada com os outros, e papai deve estar fazendo a ronda domingueira pelas plantações, com o sr. Mudge.

— Sua mãe estará em casa.

— Ela está doente.

— Eu ficarei bem, não se preocupe.

— E irá à enseada, quando a dor de cabeça passar?

Aquilo parecia importante para ele. A fim de evitar uma discussão, ela respondeu:

— Sim, talvez eu vá quando ficar mais fresco.

—Nadar ao anoitecer fará a você todo o bem do mundo. Afastará as tristezas e refrescará sua cabeça.

Judith pensou em como isto seria maravilhoso, se pelo menos fosse possível. Entretanto, o que quer que fizesse, o interior de sua cabeça continuaria ardendo, ela não conseguiria fugir ao castigo de recordar coisas que desejaria esquecer.

Estavam de volta. Edward parou o carro diante da porta principal, que estava aberta, os dois desceram e entraram na casa. Em cima da mesa, no meio do saguão, viram a cesta de piquenique, cheia de caixas de lata e garrafas térmicas. Sobre tudo isto, perfeitamente dobradas, estavam duas toalhas listradas de vermelho e branco, além do calção de banho de Edward e do maio de Judith. Ao lado da cesta, preso sob o peso da bandeja de cobre da correspondência, havia um bilhete de Athena.

Não digam que não pensamos em tudo. Os banhistas fizeram todos os preparativos, poupando tempo a vocês. Venham logo. Não demorem. Um beijo. Athena.

Edward leu o bilhete em voz alta. Judith disse:

— É melhor você ir.

Ele, no entanto, sentia-se visivelmente culpado por deixá-la sozinha. Pôs as mãos nos ombros dela e baixou os olhos para seu rosto.

— Tem certeza de que ficará bem?

— Claro que tenho.

— Tomará uma aspirina?

— Encontrarei uma. Por favor, vá logo, Edward. Entretanto, ele continuava a demorar-se.

— Estou perdoado?

Era como um garotinho, ressentido pelo desagrado de outra pessoa e precisando ser tranqüilizado, saber que tudo estava certo em seu mundo.

— Oh, Edward, aquilo tanto foi culpa sua como minha.

E ela dizia a verdade, mas sentindo-se tão envergonhada, que era desagradável até pensar nisso. Para ele, contudo, foi o bastante.

— Tudo bem, então. — Sorriu. — Eu não gostaria que ficasse zangada comigo. Não suportaria a idéia de deixarmos de ser amigos.

Abraçando-a de leve, ele a deixou ir e se virou para pegar a pesada cesta de cima da mesa, em seguida caminhando para a porta. Antes de sair, Edward se virou pela última vez.

— Estarei esperando por você — disse a ela.

Judith sentia que, novamente, as lágrimas idiotas afloravam aos seus olhos, impedindo-a de falar. Assim, assentiu com a cabeça, desejando que ele fosse logo embora. Edward recomeçou a caminhar, cruzou a porta aberta, ficou um instante silhuetado contra a claridade do sol e depois desapareceu. O som de seus passos na alameda de cascalhos foi diminuindo e extinguíu-se afinal, em meio à quente e sonolenta tarde de domingo.

Ela caminhou para a escada, pretendendo subir ao andar de cima, porém alguma coisa a deixava tão exausta que, em vez disso, arriou o corpo no último degrau e encostou a testa na madeira fria do corrimão. As lágrimas agora fluíam com força, e ela soube apenas que chorava, que soluçava como uma criança. Não tinha nenhuma importância, claro, porque não havia ninguém que a ouvisse. Além disso, era uma espécie de alívio simplesmente dar vazão à sua infelicidade, deixá-la esvair-se em suas lágrimas. Seus olhos estavam inundados e o nariz escorria. É claro que não havia um lenço, e então ela quis usar a barra da saia, porém mal havia assoado o nariz.

Nesse momento, ouviu passos, soando rápidos no corredor de cima. O ruído cessou no alto da escada.

—Judith?

Era Mary Milliway. Judith ficou gélida, a custo sufocando um soluço.

— O que está fazendo aí?

Enxugando freneticamente as lágrimas, Judith não conseguiu dar uma resposta. Mary começou a descer a escada.

—Pensei que vocês dois tivessem voltado há séculos, e que há horas estariam na enseada. Então, da janela do quarto de brinquedos vi Edward descendo sozinho pelo jardim. A sra. Boscawen está bem, não está? — A voz dela soava estridente pela ansiedade. — Não há nada de errado, há?

Chegando ao lado de Judith, ela pousou a mão em seu ombro. Como uma criança traquinas, Judith limpou o nariz no dorso da mão. Depois meneou a cabeça.

— Não há nada de errado. Ela está bem.

— Não ficaram tempo demais com ela? Não a cansaram?

— Não, não a cansamos.

— Então, por que demoraram tanto?

536

—Nós fomos à Cabana, limpar as teias de aranha.

— E qual o motivo destas lágrimas? — Mary sentou-se no degrau junto dela, e passou um braço por seus ombros. — Conte para Mary. O que foi? O que aconteceu?

— Não aconteceu nada. Eu estou. Acabei de ficar com dor de cabeça. Não quis ir à enseada. — Só então Judith virou o rosto para Mary. Viu a familiar fisionomia sardenta, a expressão preocupada e doce nos olhos dela. —Você. você por acaso tem um lenço, Mary?

— É claro que tenho.

Do bolso do enorme avental listrado de Mary saiu um lenço, com o qual Judith assoou agradecidamente o nariz. Poder parar de fungar foi o bastante para que se sentisse um pouquinho melhor.

— Pensei que você também tivesse ido à enseada com todos os outros — disse.

— Não, eu não fui. Não me agradava deixar a sra. Carey-Lewis sozinha, caso precisasse de alguma coisa. E agora, o que faremos com essa dor de cabeça? Ficar sentada aqui, deixando as lágrimas correrem, não fará com que se livre dela. O que acha de ir comigo ao quarto de brinquedos, para vermos se encontro alguma coisa no meu armário de remédios? Depois, um bom repouso e uma xícara de chá. Eu estava mesmo pensando em pôr uma chaleira no fogo.

O conforto da presença dela, sua aura de normalidade e bom senso foram como que um bálsamo. Mary levantou-se, ajudou-a a ficar em pé e a levou escada acima, em direção ao quarto de brinquedos. Acomodou-a em um canto do velho e macilento sofá, e depois puxou um pouco a cortina, a fim de que o sol não lhe batesse nos olhos. A seguir, desapareceu no banheiro anexo e, ao voltar de lá, trazia um copo d’água e dois comprimidos.

—Tome isto agora, e logo estará melhor. Basta ficar aí, bem quieta, enquanto preparo o chá.

Judith engoliu obedientemente os comprimidos, empurrando-os com um gole da água fria e límpida. Recostando-se no sofá, fechou os olhos e ficou sentindo a brisa que penetrava pela janela aberta, o reconfortante aroma de roupa recém-passada a ferro que sempre havia no quarto de brinquedos, o cheiro de biscoitos doces e o perfume das rosas colhidas por Mary, e depois por ela arranjadas no pote azul e branco em cima da mesa. Sua mão ainda estava crispada em torno do lenço de Mary, e Judith aferrou-se a ele, como se fosse alguma espécie de talismã.

Mary voltou pouco depois, trazendo o bule de chá, xícaras e pires em uma pequena bandeja. Judith remexeu-se no sofá.

— Não se mova agora — recomendou Mary. — Colocarei a bandeja nesta banquetinha. — Ela puxou sua velha cadeira de balanço e instalou-se nela confortavelmente, de costas para a janela. — Nada como uma xícara de chá, quando a gente fica um pouco deprimida. Está menstruada?

Judith poderia ter mentido e dito que estava, o que seria uma esplêndida justificativa, porém jamais mentira para Mary e, nem mesmo agora, era capaz de forçar-se a tal coisa.

— Não. Não se trata disso.

— Quando foi que sua dor de cabeça começou?

— Em algum momento. desta tarde. — Ela pegou a xícara fumegante que Mary lhe passava, e sua mão tremeu de leve, fazendo a xícara chocalhar. — Obrigada, Mary. Você é um encanto. Fico tão contente por você não ter ido à enseada! Não sei o que teria feito, se não a encontrasse aqui.

— Acho que nunca a vi chorar assim antes — disse Mary.

— É verdade, acho que nunca viu mesmo.

Judith bebeu o chá. Aos golinhos; escaldava, mas ao mesmo tempo era maravilhosamente reconfortante.

— Aconteceu alguma coisa, não foi?

Judith ergueu os olhos, porém Mary estava ocupada em encher uma xícara de chá para si mesma.

— Por que diz isso?

— Porque não sou tola. Conheço todos vocês, crianças, com a palma da minha mão. Aconteceu alguma coisa. Você não se debulharia em lágrimas por nada, não soluçaria daquela maneira, como se o mundo tivesse acabado.

— Eu. eu acho que não quero falar sobre isso.

— Se você falar a respeito com alguém, é melhor que seja comigo. Eu tenho olhos, Judith. Vi você crescer. Sempre senti certo receio de que isto pudesse acontecer.

— O que poderia acontecer?

— É por causa de Edward, não?

Judith levantou a cabeça e não viu curiosidade nem censura no rosto de Mary. Ela estava apenas declarando um fato. Não julgaria nem repreenderia. Já vira muito da vida e, melhor do que ninguém, conhecia as crianças Carey-Lewis, com todo o seu encanto e todas as suas falhas.

— Sim, é por causa dele.

Foi imenso o alívio ao admitir tal fato, ao expressá-lo em voz alta.

— Apaixonou-se por ele, não?

— Seria quase impossível isso não acontecer.

— Vocês brigaram?

— Não. Nós não brigamos. Houve apenas uma espécie de desentendimento.

— Discutiram o assunto, não?

—Penso que foi o que estivemos fazendo. Entretanto, descobrimos apenas que não sentimos da mesma forma. Compreenda, pensei que fosse acertado dizer a ele como me sentia. Pensei que já havíamos passado da fase da simulação. No entanto, estava inteiramente enganada e, no fim das contas, percebi que conseguira apenas fazer um papel ridículo.

— Vamos, não comece a chorar de novo! Conte para mim. Saberei compreender.

Com algum esforço, Judith pôde controlar-se e passar no rosto o lenço encharcado. Bebeu um pouco mais de chá. Depois disse:

— É claro que ele não está apaixonado por mim. Edward gosta de mim da maneira como gosta de Loveday, mas não me quer para sempre. O problema é que isso já aconteceu uma vez, antes. No Natal passado. Só que eu era nova demais para lidar com a situação. e acho que entrei em pânico. Na época, nós discutimos, e tudo poderia ter ficado muito difícil e embaraçoso para todos. Só que não ficou, porque Edward se mostrou incrivelmente sensato e pronto a esquecer o que tinha acontecido, disposto a começar tudo outra vez. E tinha razão. Só que, esta tarde.

Era evidente que não poderia contar a Mary. O que tinha acontecido era demasiado íntimo. Particular. Inclusive chocante. Judith ficou olhando para sua xícara de chá e podia sentir o rubor traiçoeiro que lhe subia para as faces.

— Desta vez — disse Mary — foram um pouco longe demais, não é mesmo?

— Eu poderia dizer que sim.

— Bem, isto já aconteceu antes e acontecerá novamente. Entretanto, fico um pouco desapontada com Edward. Ele é um homem encantador, é capaz de enfeitiçar pássaros nas árvores, mas não leva os outros em consideração, não pensa no futuro. Borboleteia pela superfície da vida como uma libélula. Nunca vi ninguém assim, fazendo amigos e trazendo-os em casa, para logo em seguida emendar com outros convidados, antes que se possa dizer amém.

— Eu sei. Acho que sempre soube.

— Quer mais uma xícara de chá?

— Daqui a pouco.

— Como está a dor de cabeça?

—Um pouco melhor. —E era verdade. Entretanto, o alívio deixara um vazio, como se a dor houvesse drenado alguma substância de sua mente. — Eu disse a Edward que iria até a enseada. Mais tarde. Com o tempo mais fresco.

— Só que você não quer ir.

— Isso mesmo, não quero. Entretanto, nada tem a ver com o que estou sentindo. É porque não quero ver nenhum deles. Loveday, Athena e os outros. Não os quero olhando para mim, fazendo perguntas e querendo saber o que aconteceu. Não sinto vontade de vê-los. Eu só queria desaparecer.

Ela esperou que Mary fosse dizer, ”Não seja tão tola; fugir de nada adianta; ninguém desaparece; não se pode, simplesmente, desaparecer.” Mary, entretanto, não fez nenhuma dessas melancólicas observações. Em vez disso, falou:

— Penso que não seria má idéia.

Judith olhou para ela, atônita. O rosto de Mary, porém, estava absolutamente tranqüilo.

— O que quer dizer com isso, Mary?

— Onde está a sra. Somerville agora? Sua tia Biddy?

— TiaBiddy?

— Ela mesma. Onde está morando?

— Em Devon. Bovey Tracey. Em sua casa de lá.

— Você vai ficar com ela?

— Sim. Ainda não decidi quando.

— Sei que estou me intrometendo. No entanto, acho que você deveria ir agora.

— Agora?

— Exatamente. Agora. Ainda esta tarde.

— Oh, mas eu não poderia simplesmente ir.

— Agora, ouça, meu bem. E não me queira mal. Alguém precisa dizer-lhe isto, e não há ninguém além de mim para fazê-lo. Sua mãe está no outro lado do mundo, e a sra. Carey-Lewis, apesar de toda a sua generosidade, nunca foi muito boa para este tipo de coisa. Como falei antes, vi você crescer, conheço-a desde o dia em que Loveday a trouxe do colégio para cá. Eu a vi ir sendo absorvida por esta família e tornar-se parte dela, o que foi uma coisa maravilhosa. Entretanto, foi também uma coisa perigosa. Porque eles não são a sua família, e se você não tomar muito cuidado, correrá o risco de perder a própria identidade. Está agora com dezoito anos. Creio já ser hora de soltar as amarras e viver sua própria vida. Ouça, nem por um instante fique pensando que quero me ver livre de você. Sentirei a sua falta, muito, muitíssimo, e não quero perdê-la. Acontece apenas que você é uma pessoa por direito próprio, mas receio que, se for ficar aqui em Nancherrow por muito tempo mais, acabará perdendo a noção disso.

— Há quanto tempo vem pensando nessas coisas, Mary?

— Desde o Natal passado. Percebi que você estava ficando envolvida com Edward. E rezei para que não estivesse, porque sabia como isso terminaria.

— E, naturalmente, estava certa.

—Não me agrada estar certa. Sei apenas que estes Carey-Lewis são pessoas de forte personalidade. Uma família de líderes natos, a gente poderia dizer. Você se encontra agora no meio de uma confusão emocional, porém, em tais circunstâncias o melhor a fazer é enfrentar corajosa e rapidamente a dificuldade. Tomar a iniciativa. Se não por outro motivo, apenas para ajudar a manter a própria dignidade.

E Judith sabia que Mary tinha razão. Porque algo bem semelhante tinha acontecido na noite em que Billy Fawcett dera tamanho susto à pobre Ellie, no cinema. Então, Judith assumira o controle e levara todos à polícia para a devida denúncia. E em seguida, ela nunca se sentira tão forte ou tão positiva, porque Billy Fawcett havia sido exorcizado para sempre.

Tia Biddy. A própria idéia de afastar-se de Edward, de Nancherrow e de todos eles, apenas por algum tempo, era imensamente tentadora. Ficaria afastada apenas pelo tempo suficiente para colocar tudo em proporção, para lidar com o coração partido e recolocar sua vida nos trilhos. Tia Biddy não conhecia Edward. Tia Biddy não faria perguntas, ficaria simplesmente deliciada em ter um pouco de companhia, além do pretexto para organizar um ou dois coquetéis e receber amigos.

As complicações da partida, contudo, eram por demais numerosas para serem resolvidas num piscar de olhos

—Como posso ir embora, sem mais nem menos? Como partir sem nenhum pretexto? Seria demasiado descortês de minha parte.

— Bem, a primeira coisa a fazer é descer até o estúdio do coronel e telefonar para a sra. Somerville. Você tem o número dela? Muito bem. Então, telefonará para sua tia, perguntando se ela pode recebê-la ainda esta noite. Dê uma desculpa qualquer, caso lhe faça perguntas. Poderá ir dirigindo seu carrinho. Não levará mais de quatro horas e, com um pouco de sorte, não encontrará muito trânsito.

— Suponhamos que ela não esteja lá. Ou que não concorde com minha ida.

— Ela concordará. Você pretendia mesmo visitá-la, é apenas uma questão de chegar um pouco mais cedo. Então, faremos dela o motivo de sua partida. Diremos uma mentira. Diremos que sua tia não se sente bem, que está sozinha, que pegou um resfriado, quebrou a perna. Diremos que ela ligou para você; foi como um pedido de ajuda, e parecia tão urgente, que você simplesmente entrou em seu carro e partiu.

— Nunca fui boa para dizer mentiras. Todos saberão que estou mentindo.

— Você não precisará dizer nenhuma mentira. Isso fica a meu cargo. O coronel só voltará à hora do jantar. Ele e o sr. Mudge foram ver um rebanho nos arredores de Saint Just. Quanto a Edward, Athena, Loveday e os outros, eles só virão da enseada daqui a mais ou menos uma hora.

— Então, você quer dizer que. não terei de despedir-me.

— Você não terá de ver nenhum deles novamente, pelo menos enquanto não estiver forte o bastante e disposta a isso.

— Eu voltarei, claro. Voltarei antes de ir para Cingapura. Terei de despedir-me do coronel e de Diana.

—Sem dúvida. Será uma visita pela qual todos estaremos ansiando. Neste exato momento, contudo, seria esperar demais de você, querer que agisse como se nada tivesse acontecido — justamente depois do que houve. Aliás, acho que também seria exigir-se demais de Edward.

— É uma espécie de catalisador, não é?

— Não faço a menor idéia do que seja um catalisador. Sei apenas que não se pode ser outra pessoa que não nós próprios. Porque do contrário, terminamos asfixiados com isso.

— Você até parece a srta. Catto falando.

— Eu seria bem pior. Judith sorriu.

— E quanto a você, Mary? — disse. — Também é parte da família, mas não creio que tenha sido absorvida por eles ou que haja perdido sua identidade.

— Eu sou diferente. Eu trabalho para eles. Este é o meu ofício.

— Bem, mas talvez você nunca os deixe. Mary deu uma risada.

— É o que você acha? Pensa que vou ficar aqui para sempre, ficando mais velha e perdendo a utilidade? Passando um pouco de roupa, esperando que Athena ponha no mundo uma fieira de bebês, enfrentando outra geração de noites sem dormir e varais de fraldas lavadas, de ensinar criancinhas a usar o peniquinho? E depois tendo um infarto ou coisa assim, ficando senil? Uma carga. Tendo que ser cuidada pelos outros. É como vê o meu futuro?

Judith ficou um pouco embaraçada porque, de certo modo vergonhoso, era exatamente o que pensava. A empregada dedicada, sentada em uma cadeira com um xale nos ombros, tricotando peças que ninguém jamais usaria, com alguém levando-lhe xícaras de chá e, em particular, sendo deplorada por haver-se tornado semelhante estorvo.

— Não posso imaginar você em qualquer outro lugar que não seja Nancherrow — disse por fim.

— Pois bem, está enganada. Quando fizer sessenta anos, pretendo aposentar-me e morar em um chalé na propriedade de meu irmão, perto da estrada para Falmouth. O chalé é meu. Economizei dinheiro e o comprei dele, por duzentas e cinqüenta libras. Assim, serei independente. E dessa maneira é que terminarei meus dias.

— Oh, Mary, que bom para você! Enfim, também não posso imaginar o que todos eles farão sem você.

— Eles darão um jeito. Ninguém é insubstituível.

— Eles sabem de seus planos?

— O coronel sabe. Eu lhe contei quando comprei o chalé, deixei-o saber de meu segredo. Ele foi lá, viu o chalé e pagou para fazer uma vistoria.

— E a sra. Carey-Lewis? Mary riu e abanou a cabeça.

— Nem por um segundo chego a imaginar que o coronel lhe tenha contado. Ele a protege, entenda. De tudo. Como se ela fosse uma criança. Bem. — Mary ficou prática novamente. — Estamos perdendo tempo. Sentadas aqui e tagarelando, não resultará em coisa alguma. Se você tem que ir, então é bom que comece a movimentar-se.

— Você me ajudaria a fazer as malas?

— Ligue primeiro para sua tia — disse Mary. — De nada adianta colocar o carro na frente dos bois.

Diana acordou. Havia dormido a tarde inteira. Soube disso mal abriu os olhos, porque o sol havia descido no céu e seus raios agora penetravam enviezados, através da janela oeste. Ao seu lado, Pekoe ainda ressonava. Bocejando e espreguiçando-se, ela tornou a recostarse nos travesseiros e pensou como seria perfeito se o sono pudesse, não apenas restaurar uma pessoa, mas eliminar todas as ansiedades no mesmo processo. Assim, o despertar encontraria uma mente totalmente limpa e tranqüila, tão macia e vazia como uma praia, lavada e alisada pelas idas e vindas das marés.

Entretanto, não era o que acontecia. Ela despertou, e todas as pressionantes ansiedades imediatamente surgiram à sua volta e tornaram a erguer as cabeças. Estavam apenas à sua espera. Tia Lavinia, recuperada, mas ainda muito frágil. E uma guerra, na iminência de explodir. Quando, ninguém sabia. Dentro de uma semana, talvez. Uma semana. Em dois ou três dias. Os intermináveis boletins transmitidos pelo rádio e pelos jornais, as manchetes que ficavam mais graves de hora para hora. A expressão angustiada de Edgar, que a deixava com o coração dilacerado. Ele tentava esconder-lhe o que sentia, porém nem sempre tinha êxito.

E os jovens. Jeremy, seu esteio, o forte pilar de tantos anos. E agora, desfrutando de sua folga de embarque, comprometido com a Marinha Real, já prestes a engajar-se. Era o primeiro a ir, porém assim que a guerra fosse declarada, todos os demais estariam na linha de frente da convocação. Seu precioso Edward, para pilotar aqueles aviões tão perigosos — já perigosos o bastante sem nenhum alemão disparando balas contra eles ao mesmo tempo. E Gus, o amigo de Edward, que já era oficial nos Gordon Highlanders. Eles nunca retornariam àquela encantadora cidade de espiras sonhadoras, sem outra coisa a fazer além de absorverem conhecimentos e se divertirem. Quanto a Rupert, naturalmente era um militar de carreira, porém havia a complicação adicional de que ele e Athena pretendiam casar, e logo o pobre rapaz seria enviado para algum deserto inóspito com seu cavalo, onde o abateriam a tiros, e Athena ficaria sozinha durante anos e anos, desperdiçando sua juventude. Todos eles, a seunesse dor, desperdiçando os preciosos anos que jamais voltariam.

E a pequena Loveday. Dezessete anos, e amando pela primeira vez, sem qualquer esperança de iniciar alguma espécie de relacionamento com o objeto de seus sonhos juvenis. Diana não conseguia imaginar o que aconteceria a Loveday. Tombada no meio de outra terrível guerra, para ela era impossível deduzir como Loveday reagiria. De qualquer modo, sua filha caçula sempre fora de todo imprevisível.

Espreguiçando-se, ela virou a cabeça a fim de olhar para seu pequeno relógio dourado de cabeceira. Quatro e meia da tarde. Sentia vontade de tomar chá, mas não tinha coragem de apertar a campainha e convocar a sra. Nettlebed para subir penosamente a escada dos fundos, com seus pés inchados. Diana também se sentia entediada. Talvez se levantasse. Caso conseguisse juntar energias, seria capaz de levantar-se, tomar um banho, vestir-se e descer para o térreo. Jeremy lhe dissera para ficar onde estava, porém ele não fazia idéia do tédio.

Alguém bateu à porta com os nós dos dedos.

— Quem é?

A maçaneta girou, e a porta se abriu em uma fresta.

— Sou eu, Judith. Você está acordada?

— Sim, estou.

— Não irei perturbá-la?

—Nem um pouco. Já começava a sentir tédio. Precisava de alguém com quem conversar.

Judith entrou, fechou a porta atrás de si e cruzou o quarto, indo sentar-se na borda da cama de Diana. Parecia muito limpa e arrumada, em uma blusa branca de gola franzida e uma saia de algodão listrada de azul e branco. Os cabelos estavam penteados e escovados de pouco. Um cinto escarlate de couro contornava-lhe a cintura estreita.

— Como se sente agora? — perguntou Judith.

— Oh, melhor. Apenas com preguiça.

— Você dormiu?

— A tarde inteira. — Diana franziu o cenho. — Por que não está na enseada com os outros?

— Tive um pouco de dor de cabeça, de modo que Edward foi para lá sozinho.

— Deve ser o calor. E como está tia Lavinia?

— Muitíssimo bem. Tagarelando sem parar. O estado dela é francamente admirável, levando-se em conta o que passou.

— Acredita que ela voltará a fazer todas aquelas coisas adoráveis que fazia antes?

— É claro que sim. — Judith hesitou um instante, e então disse: —Diana, preciso comunicar-lhe uma coisa. Explicar. Tenho que partir. Agora.

Surpresa total.

— Partir? Ora, meu bem, por quê?

—É um pouco complicado. Bem, eu tomava chá com Mary, quando recebi um telefonema

— Eu não ouvi.

— Devia estar dormindo. Era da minha tia Biddy. Biddy Somerville. Está com uma gripe pavorosa e, claro, como tio Bob e Ned estão ausentes, no mar, ela ficou sozinha, não tem mais ninguém em casa, apenas uma senhora que aparece lá todos os dias para trabalhar, vindo de bicicleta desde Bovey Tracey. De qualquer modo, foi uma espécie de pedido de ajuda. Ela perguntou se eu poderia fazer-lhe companhia. Seu médico disse que não devia ficar sozinha.

— Oh, minha querida, que terrível contratempo! Pobre mulher! Você gostaria de pedir a ela que viesse para cá, que ficasse conosco?

— Diana, você é um encanto de pessoa, mas não creio que ela agüentasse a viagem. Acho que devo ir para lá. Eu já pretendia mesmo ir, um pouco mais tarde. Assim, indo agora, não fará muita diferença.

— Que boa menina você é!

Judith sorriu, e então ocorreu a Diana que ela parecia terrivelmente cansada. Seus lindos olhos estavam fundos nas órbitas, e o batom de cor viva apenas acentuava a palidez das faces. Pobre criança, estivera sofrendo com uma dor de cabeça e, por um rápido instante, Diana perguntou-se o que teria causado a indisposição. Sabia que devia perguntar, mostrando uma preocupação maternal, mas em seu atual estado não se sentia forte o bastante para enfrentar mais confidências, mais problemas. Sempre havia também a possibilidade de que isso tivesse algo a ver com Edward e, apenas por esse motivo, seria muito melhor ela ficar sem saber coisa alguma. Afinal de contas, por muito que amasse Judith, ela não era sua filha e, por enquanto, Diana já tinha cargas demais para suportar, juntamente com a incerteza do que poderia acontecer a seus próprios filhos. Disse, então:

— É claro que deve ir, se há tanta necessidade de sua presença. Como chegará até lá?

— Levarei meu carro.

— Dirigirá com cuidado, promete?

— Claro que sim.

— E quando parte?

— Agora mesmo. Mary ajudou-me a preparar uma mala. Vou levando apenas umas poucas coisas. Não creio que precise ficar lá por muito tempo. De qualquer modo, pretendo voltar, se possível, porque quero ver todos vocês, antes de embarcar para Cingapura.

— É claro que você vai voltar.

— E explicará tudo ao coronel por mim?

— Oh, eu tinha esquecido. Você não o viu. Tampouco viu os outros. Que lamentável, ir sem dizer adeus a eles! Não poderia dar uma chegadinha à enseada por um momento, antes de partir?

— Não haverá tempo. Você se despedirá deles por mim.

— Farei isso, mas tenho certeza de que ficarão muito contrariados.

— Eu. eu sinto muito por isso. Ainda bem que você compreende.

— Oh, querida, a culpa não é sua!

Judith ficou em pé e depois, inclinando-se, beijou o rosto de Diana.

— Será apenas por pouco tempo — disse.

— Nesse caso, não diremos adeus, somente au revoir.

— Au revoir.

—Boa viagem. —Judith sorriu, virou-se e caminhou para a porta. Quando já ia saindo, Diana a chamou: —Judith!

— O que é?

— Mary está por aí?

— Está

— Diga a ela que Pekoe precisa ir ao jardim fazer pipi. E peça-lhe para ser boazinha e trazer-me uma xícara de chá.

Judith fechou a porta ao sair e caminhou pelo corredor até o quarto de brinquedos. Mary a esperava, sentada no banco-janela, olhando para o jardim. Ao ouvir Judith dizer seu nome, ela virou a cabeça e levantou-se.

— Esteve com a sra. Carey-Lewis?

— Sim. Ela estava acordada. Contei-lhe minha mentira. Está tudo bem. Não me fez nenhuma pergunta. apenas me pediu para dizer a você que Pekoe precisa ser levado para fazer pipi e que fosse boazinha, levando-lhe uma xícara de chá.

Mary sorriu de modo estranho.

— Nunca termina, não é mesmo?

— Eu me sentiria culpada, indo embora sem me despedir dela.

— Não. Não devia ter ido. Bem, está feito. Agora deve apressar-se. Irei vê-la partir.

Judith não a deixou terminar.

— Por favor, não vá. Eu não suportaria. Ia começar a chorar novamente.

— Tem certeza?

— Absoluta.

— Bem, então. adeus. —As duas abraçaram-se, apertadamente. — Lembre-se de que será apenas por pouco tempo. Logo a teremos aqui. Dê notícias. Agora vá, e dirija com cuidado.

— Claro.

— Tem gasolina suficiente? Em Penzance há uma garagem perto da estação, que fica aberta todos os domingos.

— Encherei o tanque lá.

— E dinheiro? Está levando o necessário?

— Dez libras. É mais do que suficiente.

— Não se aflija por Edward — disse-lhe Mary. — Não olhe para trás e nem permita que seu coração seja dilacerado. Você é muito jovem e bonita demais para isso.

— Tudo ficará bem.

Ela deixou Mary no meio do quarto de brinquedos, sozinha e parecendo um tanto perdida. Seguiu pelo corredor e correu para o andar de baixo. Já havia tirado o carro da garagem, e Mary colocara sua mala no banco traseiro. Judith deslizou para trás do volante, ligou o motor e deu partida. Os pneus começaram a rodar sobre a alameda de cascalhos. Era agoniante não chorar, mas ela conseguiu evitar as lágrimas.

Disse para si mesma, ”Não vai ser para sempre”, porém era esta a impressão que causava. E, de nenhures, as palavras de um poema lhe surgiram na cabeça, fazendo-a recordar sua mãe lendo em voz alta, muito tempo atrás, quando ela era apenas uma garotinha em Colombo.

Para casa e horta, campo e gramado, Os portões do prado logo nós abrimos

Ela olhou para seu pequeno espelho lateral e nele viu, emoldurada, a miniatura refletida de Nancherrow, banhada de sol, e recuando na distância, ficando cada vez menor.

Para curral e bomba, árvore e balanço, Adeus, adeus, para vocês dizemos.

Então recordou sua chegada ali pela primeira vez, no Bentley de Diana, quando viu a casa, os jardins e o mar distante, ficando imediatamente cativada, perdidamente apaixonada pelo lugar. E soube que voltaria, mas certa de que Nancherrow, como a tinha conhecido, nunca, jamais tornaria a ser a mesma.

E então Judith chegou com seu carro às árvores, e tudo desapareceu de vista. Edward havia desaparecido e. novamente, estava entregue a si mesma.

 

Encarapitada na colina acima da cidadezinha de Bovey Tracey, a casa de Biddy Somerville tinha o nome de Upper Bickley. Sua data estava esculpida acima da porta principal — 1820 — de maneira que era uma construção bastante antiga, solidamente construída, de pedra, emassada e caiada, com um teto de telhas de ardósia e altas chaminés. Os tetos internos eram baixos, e os pisos às vezes rachados. As portas nem sempre permaneciam fechadas. No andar térreo ficavam a cozinha, a sala de refeições, a sala de estar e o vestíbulo. Um enorme armário havia sido transformado em lavabo do térreo, onde casacos eram pendurados e botas de borracha brigavam por espaço com uma profusão de armas, caniços de pesca, sacolas de caça e arpões. No andar superior havia três dormitórios e um banheiro; acima dele, um sótão bolorento entulhado de cômodas de marinheiro, fotografias velhas, várias peças de uniforme naval comidas por traças e os brinquedos de Ned —trenzinhos e quebra-cabeças —há muito esquecidos e abandonados, mas que Biddy nunca tivera coragem de jogar fora.

Chegava-se à casa através de uma estreita alameda, íngreme e serpenteante —um risco em si, e intransponível na neve —e a entrada era um portão de fazenda que ficava sempre aberto.

Além do portão, um caminho forrado de seixos levava à porta principal, que ficava nos fundos da casa. O jardim não era grande. Um pouco de grama na parte da frente e despretensiosos canteiros de flores; depois destes, algumas construções de utilidade para a casa, uma pequena horta e um relvado onde a roupa era lavada e pendurada no varal. A seguir, até o alto da colina, um padoque onde algum proprietário anterior mantivera seus pôneis. Bem no alto da colina, via-se um maciço de pinheiros raquíticos e fibrosos, assim como um muro de pedras demarcando os limites da propriedade. Depois desse muro era o começo de Dartmoor — uma extensão interminável de turfa, sarças, urzes e brejos que chegava até a distante linha do horizonte, coroada por altaneiros picos rochosos. No inverno, os pôneis selvagens às vezes chegavam até o muro de pedras em busca do que comer e, com pena dos pobres e esquálidos animais, Biddy os alimentava com feno. Durante o inverno, o vento soprava quase sempre e o litoral ficava amortalhado pela chuva, mas, no verão e dias claros, por cima dos amontoados tetos cinzentos da cidadezinha tinha-se uma vista espetacular do sudoeste, abrangendo verdejantes plantações e as sebes de árvores nas fazendas, até Torbay e o cintilante mar do Canal da Mancha.

Com certa dose de coragem, os Somerville haviam comprado Upper Bickley em certo estado de dilapidação. A casa permanecera vazia durante quatro anos, em seguida ao falecimento da idosa senhora que ali vivera por meio século, uma vez que seus quatro filhos, em meio a brigas e discussões, não conseguiam decidir o que fariam com a propriedade. Eventualmente, um exasperado (e honesto) advogado intervinha, aconselhava a querelante família a parar de perder tempo, fazer as pazes e decidir-se. Por fim, conseguiu que todos concordassem em colocar a casa à venda. Os Somerville vieram de carro desde Plymouth para vê-la, perceberam que o preço exigido era ridiculamente baixo e ficaram com ela. Seguiu-se então o inevitável hiato da reforma. Construtores, eletricistas, encanadores, pedreiros e carpinteiros tiveram vez através dos antigos aposentos, esqueceram peças vitais de equipamento, furaram canos ocultos com enormes pregos próprios para alvenaria, colaram papéis de parede de cabeça para baixo, e enfiaram a extremidade de uma escada de mão através das vidraças da janela arqueada que dava para a escada interna da casa. Biddy passava o tempo apressando-os e adulando-os, ao mesmo tempo em que, alternadamente, dava-lhes xícaras de chá e reprimendas. Por fim, Bob declarou Upper Bickley mais ou menos habitável, os chocalhantes caminhões e camionetas cruzaram o portão pela última vez, e Biddy providenciou a mudança.

Aquela era a sua primeira casa como proprietária, sendo tão diferente de viver em moradias da Marinha, que a novidade demorou a tornar-se rotineira. Ela nunca se sobressaíra muito como dona de casa, e agora não podia mais contar com a sra. Cleese, que se fora, porque não gostava do campo, tinha pavor de vacas e queria ficar em Plymouth. Quanto a Hobbs, recebera uma aposentadoria compulsória do Alto, posto que morrera quase imediatamente. Biddy cumprira o dever de ir ao funeral, e jurava que tinha ouvido o ranger das botas de Hobbs, quando ele se encaminhara para o grande Refeitório dos Cabos, no céu.

Era preciso encontrar outros serviçais. Em Upper Bickley não havia espaço para hospedar empregados e, por outro lado, Biddy não os queria vivendo lá. Em vez disso, contratou os serviços de duas senhoras locais que compareciam todos os dias, uma para cozinhar, outra para a limpeza. Elas chegavam em uma bicicleta de dois lugares, às oito da manhã, e partiam ao meio-dia. A sra. Lapford cozinhava e a sra. Dagg cuidava das tarefas domésticas. Bill, o marido da sra. Dagg, era lavrador e trabalhava com robustos cavalos em uma fazenda próxima, porém aparecia nos sábados e entardeceres de verão, a fim de cuidar um pouco do jardim e da horta de Biddy. Era difícil dizer qual deles entendia menos do cultivo de flores e vegetais, porém Bill era muito bom para cavar e, naturalmente, sempre podia dispor de fartas quantidades de estérco de cavalo. Entregues aos cuidados dele, as rosas — embora não muita coisa mais — floresceram a olhos vistos.

Resolvidos os problemas domésticos, Biddy atirou-se à procura de um estímulo social. Não tinha a mais remota intenção de passar seus dias arranjando flores, preparando geléias, tricotando meias ou viajando de ônibus com o Instituto Feminino local, mas encontrar outros divertimentos não constituía o menor problema. Ela já possuía um vasto círculo de amigos da Marinha que viviam bem dentro de seu alcance e, então, dentro de pouco tempo travou conhecimento com numerosas famílias do condado — residentes em magníficas e antigas propriedades herdadas, circundadas por acres de terra — sendo por elas convidada. Recém-chegados nem sempre cruzavam com facilidade os portais dessas grandes casas, porém a Marinha Real transformava alguém automaticamente em ”persona grata”, e a hospitalidade era generosa. Biddy recebia convites para almoços de senhoras, seguidos por uma tarde de bridge ou de mah-jong. Bob, por seu turno, era convidado para caçar faisões ou fazer excelentes pescarias. Juntos, os dois compareciam a jantares rigidamente formais, a corridas ligeiramente menos formais e a alegres tardes de tênis em ambientes familiares. Gregários e divertidos, eles também eram meticulosos e liberais sobre retribuição de hospitalidade, de modo que, em menos tempo do que se poderia imaginar, sentiam-se inteiramente à vontade, após as peripécias da instalação na nova casa — tinham sido aceitos.

Era agosto, 1939, e Biddy estava contente. A única nuvem em seu horizonte — e uma nuvem de grande tamanho — era a sombria ameaça de guerra.

Passava das nove e meia do anoitecer de domingo. Sentada junto à janela aberta da sala de estar, Biddy contemplava as sombras crepusculares que ganhavam consistência no jardim, e a claridade do dia já desaparecendo do céu. Estava esperando Judith. Bob viera passar o fim de semana em casa, mas depois do chá voltara para Devonport em seu carro. Não era indispensável que fosse, mas, em épocas tão tensas, ele ficava nervoso se passava mais de um dia fora de seu gabinete de trabalho; era preciso estar de plantão, para o caso de chegar algum sinal vital que exigisse sua imediata atenção e ação resultante.

Assim, ela estava sozinha. Não sozinha de todo, porque tinha um cão deitado aos seus pés. Era uma cadela collie da fronteira escocesa, com manchas irregulares e uma cara cativante, metade branca e metade preta. Seu pêlo era fofo e espesso, a cauda uma pluma, e chamava-se Morag — pertencia a Ned. Era um animal perdido que ele encontrara perambulando nas docas, em Scapa Flow, esfaimado e magérrimo, fuçando as latas de lixo em busca de comida. Muito chocado, ele amarrara um pedaço de corda no pescoço da cadela e a levara ao posto policial local, mas ninguém havia dado parte de um cão perdido e, sem coragem de abandoná-la naquele lugar, Ned saíra de lá com a collie ainda ao seu lado, presa à coleira improvisada. Com o tempo passando rapidamente — ele tinha somente mais uma hora antes de apresentar-se a bordo — Ned encontrara um táxi, embarcara nele com a cadela e pedira para ser levado ao veterinário mais próximo. O médico era um homem afável, que concordou em ficar com o animal por uma noite, dando-lhe banho e uma boa ração. Ned deixou lá a cadela, voltou para o táxi e chegou ao navio em cima da hora, cuja passarela subiu em disparada, quase derrubando o Oficial de Guarda aos seus pés.

No dia seguinte, após refletir um pouco, solicitou uma longa folga de fim de semana que, para sua surpresa, lhe foi concedida. Então telefonou para o veterinário, o qual concordou que ficasse com a cadela por mais dois dias. Na sexta-feira, assim que se viu livre, Ned foi buscar a collie e, juntos, embarcaram na balsa que cruzava Pentland Firth. Uma vez em Thurso, tomou o trem noturno que seguia para o sul.

Por volta das onze horas da manhã seguinte, surgia inesperadamente na casa dos pais, sem avisar e barbado, com a collie ainda na coleira.

— Ela se chama Morag — disse para Biddy, sobre um prato com fritada de bacon, salsichas, tomates, cogumelos e ovos. — É uma cadela escocesa, portanto deve ter um nome escocês. Pensei que ela poderia morar com você.

— Oh, meu bem, eu nunca tive um cão!

— Já é hora de ter um. Ela lhe fará companhia, quando papai estiver ausente. Por falar nisso, onde está ele?

— Caçando faisões.

— Quando estará de volta?

— Lá pelas cinco da tarde.

—Que bom, porque assim poderei vê-lo. Só terei de partir amanhã de manhã.

Biddy olhou para o cão. Sua cadela. Pronunciou o nome dela, e Morag ficou sentada, sorrindo para ela e agitando a cauda peluda. O olho da metade branca da cara não era exatamente da mesma cor que o olho da metade preta, o que lhe emprestava um ar cativante, como se estivesse piscando.

— Você é um encanto — disse para a cadela.

— Fique sabendo que ela a adora.

Ao voltar de sua caçada, Bob ficou tão deliciado por encontrar o filho em casa à sua espera, que mal reparou na collie. E quando chegou a percebê-la, Morag já era um acessório permanente. Ned limpara a arma para ele, deixando-o sem coragem para objeções, embora isso não significasse que todas as dúvidas tinham sido afastadas.

— Ela não irá fazer sujeira por todo canto?

— Claro que não, papai. Ela fará tudo no jardim.

— E onde irá dormir?

— Na cozinha, suponho. Vou comprar para ela uma cesta em Bovey Tracey. E uma manta. Além de uma coleira e uma trela. Também uma vasilha para a comida. E um pouco de ração.

Bob percebeu que Ned já gastara muito tempo e dinheiro com Morag, não se falando nas contas do veterinário. Também desperdiçara uma preciosa folga de longo fim de semana, a fim de trazer a cadela em casa para sua mãe. O pensamento de mais despesas, todas deduzidas do soldo de Ned, tão arduamente ganho como subtenente, era mais do que seu pai poderia suportar.

— Pode deixar comigo. Eu compro tudo — disse Bob. Olhou para seu relógio. — Bem, hoje é sábado e está anoitecendo. Temos apenas o tempo suficiente para uma ida à loja de ferragens, antes que feche. Você escolherá o que for preciso para o cão, e eu pagarei a conta.

Tudo isso acontecera há dois meses e, agora, Biddy mal podia imaginar a vida sem Morag. A cadela era um meigo e conformado animal que gostava de longos passeios, mas ficava absolutamente feliz brincando no jardim, se por acaso alguém não se sentisse tentado a uma caminhada ou preferisse jogar bridge com as amigas. Nesta tarde, Morag não saíra para passear porque, apesar do tempo excelente, Bob ficara a maior parte do tempo em casa, selecionando papéis que deveriam continuar em sua secretária, revistando armários e jogando fora peças de roupa surradas ou não desejadas. Tudo isso encerrado, ele voltara a atenção para a garagem, urgentemente necessitando de uma boa faxina de primavera. Para acabar com o lixo resultante, fizera uma fogueira, e tudo quanto o fogo não podia consumir, como segadeiras quebradas, velhos latões de gasolina, um triciclo com duas rodas e um enferrujado aparador de grama, foi sendo empilhado ao lado da porta dos fundos, à espera da próxima visita do caminhão do lixo.

O sentido de tudo aquilo era bem claro para Biddy. Ela compreendia seu marido perfeitamente e sabia que uma íntima e torturante preocupação, uma ansiedade, somente seriam exauridas através da furiosa atividade física. Vendo-o através da janela da cozinha, o coração dela ficou opresso. Era como se Bob já soubesse que a guerra era inevitável, e agora se punha a limpar o convés de seu navio, antes que a batalha começasse.

Por fim, nada mais havia a ser feito. Ele entrou para uma restauradora xícara de chá na mesa da cozinha, e os dois estavam ali, juntos, quando receberam o telefonema de Judith. O telefone ficava no vestíbulo, e Biddy foi atender. Quando ela voltou, Bob perguntou:

— Quem era?

— Era Judith — respondeu.

— O que ela disse?

— Quer vir para cá. Agora. Ainda hoje. Virá da Cornualha, dirigindo seu carro. Disse que deverá chegar por volta das dez horas.

Bob ergueu as sobrancelhas espessas.

— O que houve?

— Não faço a menor idéia.

— Que impressão ela dava?

— Parecia estar bem. — Biddy refletiu nisto. — Era uma voz um tanto estridente. Sabe como é. Esganiçada.

— Ela disse por que queria vir?

— Não. Não mencionou detalhes. Disse que explicaria quando chegasse.

— Estava telefonando da casa dos Carey-Lewis?

— Estava — disse Biddy.

— Deve ter acontecido alguma coisa.

— Talvez ela tenha se desentendido com sua amiga Loveday. Ou se indispôs com alguém, de alguma forma.

— Não é bem esse o feitio de Judith.

— Concordo com você, não é mesmo. Enfim, pouco importa, e seja qual for o motivo, o caso é que ela está vindo. Poderá ajudar-me a fazer as cortinas pretas de black-out. Comprei toda uma peça do horrível algodão negro, mas ainda não tive ânimo de cortar as cortinas. Judith é um relâmpago com a máquina de costura. — Biddy esvaziou na pia a xícara de chá morno e tornou a servir-se do chá quente do bule. Na esperança de que fosse ganhar algo para comer, Morag sentou-se no tapete de retalhos e olhou para sua dona. — Ainda não é hora do jantar, seu bichinho esfomeado! —disse-lhe Biddy. —Judith ainda não conhece você, minha querida. Ela nem mesmo sabe de sua existência! Se for boazinha para ela, garanto como a levará para passear. — Endireitando o corpo, ela ficou encostada à pia. — Nem mesmo vou ter de preparar uma cama para Judith, porque a sra. Dagg arrumou o quarto vago na manhã de sexta-feira. De qualquer modo, ela estava mesmo para vir, e pretendíamos ir a Londres comprar roupas para Cingapura. Assim, é apenas uma questão de antecipar datas. — Biddy encontrou os olhos do marido, no outro lado da mesa. — Oh, Bob, não adianta ficar imaginando coisas, preocupando-se além da conta. Seja o que for, nós terminaremos sabendo.

— Se alguma coisa realmente estiver errada, ela talvez não queira contar a você.

— Ela contará. Eu lhe perguntarei. Temos um bom relacionamento. De qualquer modo, não sei lidar com correntes ocultas ou sentimentos não expressos.

— Procure agir com tato, meu bem.

— É claro que farei isso, meu querido. E você sabe que eu adoro essa menina.

Pouco depois das onze da noite, quando Biddy começava a ficar nervosa, imaginando acidentes e tanques de gasolina vazios, Judith chegou. Pela janela, Biddy avistou o clarão dos faróis subindo a colina e ouviu o motor se aproximando. Ficou de pé, saiu rapidamente da sala, cruzou o vestíbulo e acendeu a lâmpada que pendia acima da porta da frente. Em pé na ventosa escuridão, com Morag junto a seus calcanhares, ela viu o pequeno Morris passar pelo portão aberto.

Os faróis foram desligados, a porta do carro se abriu, e Judith apareceu.

— Oh, querida, que alívio! Já começava a pensar que tivesse acontecido alguma coisa. —As duas abraçaram-se. — E a viagem? Foi muito difícil?

— Não muito. Apenas demorada. E eu disse que estaria aqui já de noite.

— Sei que disse. Eu é que fiquei nervosa.

— Ventava demais no último trecho. Houve um momento em que pensei ter perdido o caminho. — Judith olhou para baixo. — Quem é ele?

— Ele é ela. Morag, a nossa cadela.

— Vocês nunca tiveram um cão antes!

— Temos um agora. Ela é de Ned.

— Que cachorrinha meiga! Olá, Morag! Há quanto tempo ela está com vocês?

—Dois meses. Venha, não vamos ficar aqui, paradas e tagarelando.

- Onde está sua bagagem? — Biddy abriu a porta traseira do Morris e puxou a mala de Judith de cima do assento. — Isso é tudo?

— É tudo de que preciso.

— Esperei que viesse para ficar séculos.

— A gente nunca sabe — disse Judith, porém não havia riso em sua voz. — Talvez eu fique mesmo.

Elas entraram. Biddy trancou a porta da frente e deixou a mala junto ao último degrau da escada. À fria claridade da luz do corredor, elas pararam e encararam-se. Judith parecia bem, decidiu Biddy. Um pouco pálida e bem mais magra do que quando a vira pela última vez, mas não doente nem coisa parecida. E não dava a impressão de sentir-se mal, de aparentemente estar à beira das lágrimas. Enfim, talvez apenas estivesse sendo corajosa.

— Onde está tio Bob?

—Voltou para Devonport depois do chá. É provável que o veja no próximo fim de semana. Bem, o que você deseja? Comer? Um drinque? Posso dar-lhe uma sopa.

Judith meneou a cabeça.

— Cama, apenas cama. Estou exausta.

— Quer uma bolsa de água quente?

— Não preciso de nada. Apenas de uma cama e um travesseiro.

— Pois, então, é só subir. O quarto de sempre. E não se levante cedo, amanhã. Eu lhe levarei uma xícara de chá por volta das nove horas.

— Eu sinto muito — disse Judith.

— Pelo amor de Deus, por quê?

— Por incomodá-la, assim, tão de repente.

— Oh, não seja ridícula! Nós sempre ficamos contentes quando você vem! — Àquela hora tardia e vulnerável, os sentimentalismos deviam ser mantidos ao largo, a todo custo. Confidências e confissões podiam esperar pelo dia seguinte. — Muito bem, vá andando. Deite essa cabeça no travesseiro. E durma bem.

— Eu dormirei.

Judith recolheu sua mala e subiu a escada. Biddy a ficou olhando. De repente, sentia falta de Bob, gostaria de que ele não tivesse de ir. Em vez da confortadora presença do marido, ela decidiu preparar um uísque para si mesma. Levando o drinque consigo, foi à cozinha, botou Morag na cama, trancou portas e janelas, e finalmente se dirigiu para o andar de cima. No patamar, viu que a porta do quarto de Judith estava fechada. Uma coruja piou, além da janela aberta, mas, fora isso, a casa inteira estava silenciosa.

Não foi Biddy quem acordou Judith, mas Morag. Ainda adormecida, ela ficou cônscia do chocalhar da porta que a cadela arranhava, depois ouviu um fraco e insistente ganido. Mal percebendo o que fazia, Judith desceu da cama, cambaleou para abrir a porta e caiu na cama outra vez. Adormeceu quase instantaneamente. Quando, às nove horas, Biddy foi acordá-la oficialmente, levando a prometida xícara de chá, encontrou Morag enovelada na extremidade da cama de Judith, um morno e forte peso sobre os pés dela.

— Não consegui imaginar para onde Morag tinha ido — disse Biddy, colocando a xícara de chá fumegante em cima da mesa de cabeceira. — Deixei-a sair para urinar, mas então ela desapareceu. Pensei que andasse por aí, perseguindo coelhos, mas deve ter-se esgueirado para dentro de casa. — Biddy não repreendeu a cadela e nem a mandou descer da cama, limitando-se a dizer-lhe que era uma cachorrinha muito esperta. Depois foi abrir as cortinas de cretone, para deixar entrar a claridade do novo dia. (Meu primeiro dia sem Edward, pensou Judith, e desejou que isto não tivesse tido que começar tão cedo.) —Há um pouco de neblina, mas acho que o dia vai serexcelente. Você dormiu bem?

Um passo de cada vez. Era a única forma de cruzar aquele insuportável, miserável vazio. Judith fez um imenso esforço e sentou-se, colocando os travesseiros em posição, a fim de que as grades da cabeceira da cama não machucassem seus ombros.

— Como um tronco — respondeu. Bocejou, depois afastou o cabelo que caía no rosto. — Eu estava exausta.

— Foi o que imaginei. Dirigir por tanto tempo e sozinha. Você parecia esgotada. — Biddy sentou-se na beirada da cama, colocando ainda mais peso sobre as molas rangentes. Usava calças compridas de linho e uma camisa xadrez, como se estivesse pronta para sair e lidar com um pouco de feno. Seus cabelos anelados, outrora tão escuros, começavam a mostrar fios grisalhos. Ela também engordara um pouquinho, porém o rosto continuava o mesmo, com batom, linhas de riso e olhos animados. — Estive dando uma espiada em seu carrinho. É um encanto. Você deve adorá-lo.

— Sim, é isso mesmo.

Judith estendeu a mão para a xícara de chá, que estava quente e muito forte. Biddy esperou um momento, antes de perguntar:

— Você quer falar?

O coração de Judith deu um salto. Tentou ganhar tempo.

— Sobre o quê?

— Contar o que houve, quero dizer. Alguma coisa aconteceu. Teve algum desentendimento com Loveday? Ou é algo mais importante do que isso?

Como uma agulha, sua percepção era afiada e dolorosa.

— O que a faz dizer isso?

Biddy ficou algo impaciente.

— Oh, minha querida, eu não sou nenhuma tonta. E, além de mãe, também sou tia. Não gosto de lidar com sentimentos escondidos, silêncios nervosos ou amuos.

— Eu não estou amuada. Biddy ignorou a interrupção.

— e não é do seu feitio tomar decisões impulsivas. Portanto, seja franca. O que quer que seja, o que quer que a tenha feito deixar os Carey-Lewis com tanta pressa, eu compreenderei. Minha vida nunca foi sem máculas. De fato, está salpicada de bolhas e contusões. Assim, é melhor falar.

Judith não respondeu. Bebeu seu chá e tentou controlar os pensamentos. Biddy esperou pacientemente. Além da janela, o céu se mostrava enevoado, porém o ar era cálido. O pequeno dormitório, anosluz distante do lindo quarto em Nancherrow que era apenas dela, Judith, estava um pouco apinhado e em mau estado, mas confortavelmente familiar, porque era onde sempre dormia, quando passava dias em Upper Bickley — e ali nada fora mudado, nada melhorado ou remobiliado, em qualquer sentido. As cortinas de cretone não combinavam com o padrão do tapete, e as colchas felpudas cobrindo as duas camas gêmeas exibiam uma tonalidade amarelo-prímula, ao passo que o papel de parede era listrado de azul e branco. Decoração de interiores nunca tinha sido o forte de Biddy. Não obstante, havia margaridas em um vaso sobre o toucador, e acima da lareira antiquada pendia o quadro de um porto, com mar azul e barcos de pesca, para o qual era bom ficar olhando um pouco, antes do sono chegar.

Ela suspirou e procurou os olhos de Biddy. Sua tia Biddy era realmente parte da família, não apenas um ”faz-de-conta”. Estar ali, e estar com ela, era mais ou menos como enfiar um par de sapatos velhos, após um dia passado sobre saltos altos, dolorosamente desconfortáveis. Deixou de lado a xícara de chá e disse:

— Acontece apenas que fiz o papel mais idiota deste mundo.

— Como?

Judith contou quase tudo para ela, começando do princípio, desde que Edward tinha ido apanhá-la no colégio naquelas primeiras férias de verão, para encerrar com o sucedido no dia anterior, quando tudo terminou, por pensar que Edward a amava na mesma intensidade em que ela o amava — e por confessar seu amor a ele —apenas para sofrer o terrível choque, a humilhação da rejeição.

Contou quase tudo para Biddy. Entretanto, omitiu Billy Fawcett. De um modo obscuro, isto tinha algo a ver com certa lealdade à querida e falecida tia Louise. Tampouco admitiu para Biddy que realmente dormira com Edward, que o deixara seduzi-la e sentira-se feliz em entregar-lhe sua virgindade. Biddy não se chocava com facilidade, porém nunca se tem certeza sobre a reação dos adultos; fazer amor com Edward tinha sido uma experiência de tão deslumbrante êxtase, que Judith não queria, de maneira alguma, sentir vergonha ou remorsos pelo ocorrido.

— O pior é que havia tanta gente em Nancherrow. a família inteira, os amigos. Uma verdadeira festa em casa. Eu não podia suportar a idéia de todos eles olhando para mim para nós. e não deixar que adivinhassem o que tinha acontecido. Foi Mary Millyway quem sugeriu minha vinda para sua casa. Ela disse que, como eu já programara vir, poderia perfeitamente chegar alguns dias mais cedo. E, no momento, pareceu a única atitude a tomar.

— E quanto à sra. Carey-Lewis?

— Diana? Estava acamada. Não se sentia muito bem. De qualquer modo, mesmo que não estivesse doente, eu não lhe faria confidências. É uma criatura incrivelmente meiga, mas, de certo modo, não é desse tipo de pessoa. Além disso, estando Edward envolvido, seria mais impossível ainda contar para ela. Edward é seu único filho, e Diana é louca por ele.

— Falou para ela que vinha ficar comigo?

— Falei.

— Que pretexto usou? Que motivos deu?

— Contei uma mentira horrível. Disse que você tinha ficado muito gripada e que, estando sozinha, precisava de alguém para acompanhá-la.

— Céus! — murmurou Biddy fracamente.

— Por sorte, Diana pareceu acreditar. Fui despedir-me dela. Não me despedi de nenhum dos outros, porque todos tinham descido os penhascos para nadar. Edward também. Nem mesmo disse adeus para ele.

— Talvez tenha sido melhor assim.

— É, talvez.

— E quanto tempo vai ficar conosco? Judith mordeu o lábio.

—Não será por muito tempo. Apenas o suficiente para que consiga ficar em paz comigo mesma. Está bem assim?

— Espero que demore séculos aqui, porque adoramos ter você conosco. Agora, sabe o que penso? Posso dizer-lhe o que penso?

Ela então disse para Judith o que pensava, disse coisas que sua sobrinha já ouvira milhares de vezes antes. Clichês, talvez, mas só se tinham tornado clichês porque todos já haviam sido comprovados vezes sem conta. O primeiro amor é sempre o que mais magoa. Há mais peixes no mar do que se consegue apanhar. Você nunca esquecerá Edward, jamais, porém a vida não termina aos dezoito anos, e sim está apenas começando. E, por fim, o tempo é o remédio para todos os males. Tudo isso um dia terá passado. Por mais que seu coração agora esteja ferido, você terminará dando a volta por cima.

Quando Biddy chegou ao final de todo o diálogo, Judith estava quase sorrindo.

— Qual é a graça? — perguntou Biddy, parecendo um tanto ofendida.

— Não se trata disso — respondeu Judith. — Apenas você soa como um daqueles dísticos que as pessoas costumavam bordar em Ponto de cruz e pendurar no quarto de mais alguém.

— Você quer dizer algo como ”Para Leste ou Para Oeste, Como o Lar Nada Há Que Preste”?

— Não exatamente.

— Então, que tal,

O beijo do Sol como perdão,

O canto das aves como júbilo,

Em um jardim, mais perto de Deus estamos,

Do que em nenhum lugar mais na Terra.

Minha mãe tinha um igual, pendurado no banheiro do vicariato. Era tudo que se tinha lá dentro para ler, com exceção das letras miudinhas no rolo do papel sanitário.

— O que você recitou é um poema, não um provérbio. Ou um moto. Mais ou menos como ”Há Muita Coisa Louca Entre o Copo e a Boca”.

— Acabei de pensar em um formidável. ”É nas Esquinas da Vida que o Vento Sopra Mais Rijo.” Soa muito animador, mas a verdade é que nada significa.

De repente, as duas estavam rindo.

— Oh, Biddy. —Judith inclinou-se para diante, passou os braços em torno da tia, foi abraçada e acariciada, embalada suavemente de lá para cá, como um bebê com flatulência — você realmente é um encanto. Lamento sinceramente tudo o que houve.

— Não podemos proibir o amor. E não sinta que precisa estar alegre o tempo todo. Um pouco de abatimento não me perturba, desde que eu conheça o motivo. O melhor remédio é manter-se ocupada. Tenho todas aquelas cortinas pretas para cortar e costurar, além de uma lista enorme de coisas que, segundo Bob, devemos ter em estoque. Como parafina, para o caso da guerra começar e haver escassez. Teremos muitas compras a fazer. Por que não toma um banho e se veste? A sra. Lapford está na cozinha, fritando bacon para você. Ficará muitíssimo ofendida, se não descer para comê-lo.

Biddy tinha razão. Uma ocupação, de preferência sem exigir grande esforço mental, era o importante agora. O pior já passara, tudo já havia sido dito e não precisava ser mencionado novamente. Biddy compreendera.

Depois de um banho e algumas roupas limpas tiradas da mala, Judith desceu para o andar de baixo e foi calorosamente acolhida pela sra. Lapford e a sra. Dagg, as quais disseram o quanto ela estava bonita e como era agradável terem mais gente em casa outra vez. Ela fez o breakfast e, depois disso, sentou-se à mesa da cozinha com Biddy, onde fizeram listas de compras. Parafina, velas e lâmpadas elétricas. Gasolina para o cortador de grama. Sopa enlatada. Agulhas para máquina de costura e carreteis de linha preta para a costura das cortinas de black-out, além de parafusos para fixarem os arames nas janelas. A seguir, artigos de uso diário. Ração para Morag, manteiga, macarrão, batatas e frango frito, pão e biscoitos. Duas garrafas de gim, duas de uísque, um sifão de soda, água tônica e três limões.

— Até parece que você está planejando uma festa.

— Não. Apenas os suprimentos de costume. Talvez convidemos algumas pessoas no fim de semana, quando Bob estiver novamente em casa. Agora, anote aí, batatas fritas e biscoitos de chocolate.

Após terminada, a lista estava imensa. Biddy pegou sua bolsa e a cesta, saiu de casa com Judith, entrou em seu carro e dirigiu colina abaixo, rumo à pequenina cidade.

Nessa tarde, depois de terem comido o almoço que a sra. Lapford deixara para elas (costeletas de carneiro e pudim de arroz), levaram Morag para uma caminhada. Quando voltaram, iniciaram a confecção das cortinas pretas. Enquanto Judith preparava a velha máquina de costura em cima da mesa da sala de refeições, enchia carreteis e experimentava uma agulha nova, tia Biddy mediu as janelas e, de joelhos no piso da sala de estar, cortou comprimentos variados de tecido. O algodão era preto e grosso, com um leve cheiro de tinta nanquim.

— Jamais cortei uma coisa tão enfadonha em minha vida — observou Biddy. — Fico feliz por não termos uma casa enorme, com dúzias de janelas.

Passou para Judith as duas primeiras peças cortadas, destinadas à sala de refeições. Teriam de ser emendadas juntas (com costura francesa, para reforçar), seguindo-se um embainhado largo no alto e uma boa bainha na parte inferior, para deixar a cortina com algum peso. Mal terminaram a primeira, elas a penduraram, enfiando o arame através do embainhado do alto e fixando-o à moldura da janela com pequenos parafusos, a fim de que a cortina ficasse bem junto da vidraça. Completada a tarefa, a aparência era horrível, volumosa demais para escapar à vista. As duas recuaram e, com escasso prazer, observaram o resultado de toda a sua labuta. Biddy suspirou fundo.

— Nunca fiz nada tão feio e desagradável. Só espero que essas cortinas funcionem.

— Podemos experimentá-las ainda hoje, depois que escurecer — disse Judith. — Fecharemos as cortinas normais sobre as pretas, e iremos até o jardim, ver se passa alguma claridade para fora.

— Se passar a menor réstia para o exterior, seremos presos ou multados. Bem, já é quase hora do chá, e só acabamos uma cortina. A casa inteira vai nos deixar eternamente ocupadas.

— Dê graças a Deus por não morar em Nancherrow. Acho que a casa tem umas cento e quarenta e três janelas.

— E quem fará as cortinas?

— Não sei. Mary Millyway, suponho.

—Azar o dela, é só o que posso dizer. —Biddy acendeu um cigarro. — Vamos parar agora. Vou pôr a chaleira no fogo.

Assim, elas deixaram todos os metros de algodão negro em cima da mesa da sala de refeições, ao lado da máquina de costura, fecharam a porta e adiaram sua tarefa para o dia seguinte.

Depois do chá, Judith e Morag saíram para o jardim. Judith arrancou um bocado de ervas daninhas e depois colheu uma tigela de framboesas para o jantar. Mais tarde, tio Bob ligou e, quando Biddy terminou de falar, Judith conversou um pouco com ele.

—Até sábado — encerrou ele. — Diga a Bids que estarei em casa a qualquer hora.

— Ele disse que virá para casa no sábado.

Biddy estava sentada junto à janela aberta, meio desanimada em sua ocupação de bordar uma tapeçaria de aparência algo nodosa.

— Há meses venho bordando isto — disse para Judith — e nem sei por que continuo. Vai ficar horrível no assento de uma cadeira. Acho que devia retornar ao tricô. Meu bem, não está esperando que o telefone toque e que seja Edward, está?

— Não, não estou — responde Judith.

— Oh, tanto melhor. Foi apenas uma idéia que tive. Aguardar um telefonema é a pior agonia do mundo. Entretanto, se quiser ligar para ele, sabe muito bem que pode.

— Você é um amor, mas não quero telefonar. Compreenda, não haveria nada para dizer a ele.

Pouco depois, entediada com sua tapeçaria, Biddy enterrou a agulha na tela e a jogou para o lado. Olhou para o relógio, anunciou que estava mais do que na hora, e foi preparar seu primeiro uísque com soda da noite. Em seguida, levando o copo, subiu ao andar de cima para seu banho. Judith leu o jornal, e quando Biddy reapareceu em seu vestido caseiro de veludo azul, experimentaram a nova cortina de black-out.

—Não adianta fazer outras, enquanto não tivermos certeza de que esta primeira funciona — observou Judith.

Ela foi para o jardim, enquanto Biddy lidava com a cortina de black-out, depois puxando sobre ela as cortinas acolchoadas normais, antes de apagar a luz.

— Pode ver alguma coisa? — gritou bem alto, a fim de ser ouvida através de toda aquela espessura.

—Absolutamente nada! Nem a menor claridade. Ficou um trabalho excelente — disse Judith.

Tornou a entrar na casa, as duas felicitaram-se por sua façanha, e então Biddy preparou outro drinque, enquanto Judith ia para a cozinha aquecer o macarrão gratinado da sra. Lapford e preparar uma salada. Como a mesa da sala de refeições continuava atulhada com os detritos da costura, elas comeram na cozinha. Enquanto comiam e tomavam um copo de vinho branco, falaram sobre Molly, sobre Jess e a viagem a Cingapura.

— Não é em outubro que você parte? Não dispomos de muito tempo para os preparativos que ainda faltam. E tampouco devemos ficar adiando a ida a Londres para as compras. Temos que fixar uma data certa. Podemos ficar em meu clube e talvez irmos a um teatro ou coisa semelhante. Será na semana que vem. Ou na seguinte. A loja Liberty sempre tem algodões finos maravilhosos e roupas de verão para cruzeiro, mesmo que no meio do inverno. Se quer saber, não posso deixar de invejá-la, quando vai para longe de toda esta insipidez. Eu decidiria apenas por uma viagem de navio, descendo o Canal de Suez e saindo no Oceano Índico. Terá de prometer que me enviará um fez, quando passar por Aden.

Depois do jantar, elas lavaram a louça e voltaram para a sala de estar. Logo chegava o momento do noticiário das nove horas. Abrigos antiaéreos e sacos de areia em Londres; tropas nazistas em marcha; Anthony Éden voando para um e outro lugar com uma missiva recente do Governo Britânico; iminência da mobilização de reservistas. Claramente incapaz de suportar toda aquela agonia por mais um só momento, Biddy estendeu o braço e girou o botão do receptor para a Rádio Luxemburgo. Imediatamente a sala, iluminada suavemente por abajures e de janelas abertas para o perfumado e penumbroso jardim, foi inundada pela voz de Richard Tauber.

Garotas foram feitas para amar e beijar, E quem sou eu para disto discordar?

Então, Judith retornou a Edward, e era o último Natal, o dia em que ele voltara da Suíça e tinha ido ao seu encontro. Os dois haviam corrido juntos, carregados de pacotes, através das ruas lavadas de chuva cinzenta, e beberam champanha no saguão do hotel ”The Mitre”. Tão dolorosamente vívida foi a recordação, que ela chegou a ouvir as gaivotas grasnando acima deles, sacudidas pela tempestade, a ver as luzes das vitrines das lojas caindo sobre as calçadas inundadas, e a sentir o cheiro de tangerinas e de ramos de pinheiros, a própria essência do Natal. Soube, então, que sempre ia ser assim. Por mais que se esforçasse, Edward sempre estaria lá. Consegui sobreviver um dia, disse para si mesma. Um dia sem ele. A sensação era de haver dado o primeiro passo em uma jornada de mil quilômetros.

Quando Bob Sumerville retornou a Upper Bickley na manhã do sábado seguinte, tinham ocorrido inúmeros eventos disconexos — alguns deles de todo alarmantes.

Morag havia desaparecido para caçar na charneca, tendo voltado com quatorze carrapatos em seu pelame espesso, todos eles exigindo uma dolorosa remoção. Judith sabia ser esta uma tarefa aborrecida, porque Biddy se mostrava cheia de melindres e porque certa vez já vira o Coronel Carey-Lewis executar a horrível operação em Tiger. Já sem os carrapatos, Morag teve que tomar um banho anti-séptico, algo detestado pela cadela a tal ponto que, ao terminar, não somente ela estava encharcada, mas também Biddy e Judith.

Na Áustria, em Obersaltzberg, Herr Hitler anunciou, em discurso a seus generais, que a destruição da Polônia começaria dentro de alguns dias.

Comprometida com uma tarde de bridge, Biddy foi à casa de uma de suas amigas importantes e, ao voltar à hora do jantar, estava feliz da vida — suas cartas haviam sido excelentes, e ela ganhara cinco libras e seis pence.

O mundo tomou conhecimento da sinistra notícia de que os nazistas e os russos haviam assinado um pacto de não-agressão. Parecia que, agora, nada poderia evitar a guerra.

Biddy e Judith, juntamente com os Daggs e os Lapfords, além de um grande número de moradores locais, compareceram ao Auditório da Escola e foram devidamente contemplados com máscaras contra gases. Voltaram para casa carregando-as com cuidado e aborrecidamente, como se fossem bombas-relógio, estocaram-nas debaixo da mesa do vestíbulo e rezaram devotamente para jamais haver um motivo que os forçasse a usá-las.

Aparecendo em certo entardecer quente e úmido para umas duas horas de trabalho no jardim, Bill Dagg encurralou Biddy no trecho reservado como horta, onde ela colhia duas alfaces para o jantar. Apoiado em sua pá, ele começou a conversar, e finalmente chegou aonde queria, ou seja, que a quarta parte inferior do padoque deveria ser revolvida, estercada e plantada com batatas. Biddy respondeu que a tarefa exigiria dias de trabalho, que ela não era assim tão amante de batatas, e que preferia ter o padoque inteiramente relvado. Bill, entretanto, era teimoso e decidido a levar a melhor. Afinal de contas, apontou ele, tirando o boné para coçar a cabeça careca, se o tal doItler terminasse fazendo o que pretendia, então todo mundo na Inglaterra ia morrer de fome. Não fazia sentido deixar desocupada uma boa terra, se nela se pudesse plantar alguma coisa. E que quem tivesse batatas, nunca passaria fome. Biddy acabou deixando-se convencer antes que os mosquitos a devorassem viva, e Bill, triunfante, foi procurar um rolo de barbante para demarcar os limites de sua nova plantação de batatas.

Por fim, Judith completou a gigantesca tarefa de costurar as cortinas. O último par foi para o quarto de Ned, e para lá se dirigiu ela, a fim de pendurá-las. O quarto de Ned era o menor da casa, e ele dormia em um beliche, construído sobre um conjunto de gavetas de mogno. As cortinas de linho eram azul-marinho e as paredes, brancas, exibindo fotografias de grupos de sua escola preparatória, depois de seus anos no Colégio Naval de Dartmouth. Havia também um enorme pôster colorido de uma jovem núbil e semidespida. Ned tinha também uma secretária, com um abajur e uma cadeira. Isso era tudo, porque não havia espaço para mais móveis. A fim de afixar os parafusos na moldura de madeira, Judith precisou puxar a cadeira e subir nela. Quando as cortinas negras ficaram pendentes e ela se virou para descer da cadeira, seus olhos subitamente foram atraídos pelo velho ursinho de pelúcia de Ned, comido de traças, com um só olho e praticamente sem pêlos no corpo, sentado sobre o travesseiro do beliche. E o significado de Ted, sobreposto à loura de seios fartos do pôster, de algum modo era incrivelmente tocante. Judith permaneceu reclinada contra a extremidade do beliche, pensando em Ned Somerville, o que contribuía para afastar-lhe o pensamento de Edward Carey-Lewis. Recordou os bons momentos que ambos haviam passado juntos, e desejou revê-lo bem depressa, porque Ned era o mais próximo de um irmão verdadeiro que ela poderia ter.

Ouviu a voz de Biddy, vinda do andar de baixo.

—Judith!

— Estou aqui! —respondeu.

— Você viu minhas tesouras de podar?

— Não, mas vou descer e encontrá-las.

Ela desceu da cadeira, tornou a colocá-la diante da secretária, e saiu do quarto de Ned, fechando a porta atrás de si.

No sábado, vinte e seis de agosto, Bob Somerville dirigiu seu carro de Devonport até Upper Bickley, onde chegou pouco antes do meio-dia. Ouvindo o rugido do motor na subida da ladeira, Biddy largou o que fazia (a limpeza de uma couve-flor, porque a sra. Lapford não vinha nos fins de semana) e saiu pela porta da frente, recebendo o sol em cheio justamente quando seu marido saía do carro, parecendo cansado e com os cabelos em desalinho. Estava de uniforme. O quepe, com suas folhas douradas de carvalho, estava puxado para a testa, e a túnica, já muito antiga, de maneira que folgava um pouco em torno do corpo fornido de Bill. Os quatro alamares de trança dourada, indicando o posto de oficial-engenheiro, estavam gastos e escurecidos. Ele recolheu sua surrada pasta de couro do banco do passageiro e, assim carregado, aproximou-se para beijar a esposa.

— Tive medo de que você não pudesse vir — disse ela.

— Estou aqui.

— Tudo é tão terrível. Pensei que poderia haver algum pânico em andamento.

— E há. Nunca cessa, mas eu queria ver vocês duas.

Biddy enfiou o braço no dele e, juntos, entraram em casa. Ao pé dos degraus, ela perguntou:

— Quer beber alguma coisa? Ele negou com a cabeça.

— Mais tarde, Biddy. Primeiro vou subir, livrar-me deste uniforme imundo e vestir velhas roupas caseiras. Isto talvez faça com que me sinta eu novamente. Hum. Cheiros agradáveis. O que temos para o almoço?

— Cozido irlandês.

— Delicioso!

Uma vez que as cortinas de block-out estavam prontas e a máquina de costura voltara ao lugar de costume, Biddy e Judith tinham retornado à sala de refeições, após uma semana comendo na mesa da cozinha. Judith pusera a mesa e, quando Bob desceu, envergando velhas calças de veludo cotelê e uma desbotada camisa, confortavelmente limpa, ela foi cumprimentá-lo, sendo abraçada amorosa e apertadamente. Biddy livrou-se do avental e foram todos para o jardim da frente, onde se sentaram ao sol e tomaram drinques. Bob tinha uma cerveja, Judith uma cidra e Biddy seu costumeiro gim-tônica. Ele quis saber o que acontecia por ali e elas lhe falaram sobre as batatas de Bill Dagg e os carrapatos de Morag. (Não mencionaram as máscaras contra gases ou o tratado russo-germânico.) Bob puxou a cadeia para junto de si, acariciou-lhe a cabeça e disse que ela era uma garota boba e suja. Feliz, Morag aninhou-se bem perto dele e parecia sorrir.

Recostando-se na cadeira, Bob virou o rosto para o sol. Um avião, produzindo um ruído semelhante ao de uma abelha, cruzou o céu lentamente. Ele ficou vendo-o afastar-se, um brinquedo prateado suspenso no tempo e no espaço. Disse:

— Espero que neste fim de semana não tenhamos visitas e nem precisemos fazê-las.

— Temos uma pequena reunião esta noite — disse-lhe Biddy. — Aqui em casa. Apenas velhos amigos.

— Quem?

—Os Barking e os Thornton. Não será preciso um enorme esforço social. — Ela vacilou. — Entretanto, se você quiser, posso desmarcar. Eles compreenderão. Eu apenas pensei que todos precisávamos de um pouco de alegria.

— Não. Deixe tudo como está. Eu gostarei de vê-los. — O avião desaparecia, sumindo na distância atrás de uma nuvem vaporosa. — Isso é tudo?

— Isso é tudo.

— Quando é que eles virão?

—Às seis e meia.

- Bob refletiu nisso por um momento, depois disse:

— Por que não convidamos a srta. Lang?

Judith franziu o cenho. Já conhecia os Barking e os Thornton, de visitas anteriores. Os Barking eram um casal reformado da Marinha. Tinham-se instalado em Newton Ferrars e lá compraram uma pequena casa, com acesso para a água e uma rampa de desembarque para seu barco a vela. Uma vez iniciadas as hostilidades, James Barking seria reconvocado para o serviço ativo. Biddy sabia disto, sendo um dos motivos pelo qual os convidara. Os Thornton, Robert e Emily, moravam em Exeter. Ele era advogado e também capitão no batalhão do TA (o Exército Territorial) do Regimento do Devonshire. Emily Thornton era uma das amigas de Biddy, sua parceira nas partidas de brídge e tênis.

—A srta. Lang, no entanto...

— Quem é a srta. Lang? — perguntou. Biddy lhe respondeu.

— É uma solteirona idosa, funcionária civil aposentada, que veio morar aqui. Tem uma casinha de pedra no fim da cidade, com uma porta amarela dando para a calçada e um agradável jardim nos fundos. Bob está apaixonado por ela.

—Não estou apaixonado por ela — protestou Bob, tranqüilamente. — Apenas a acho muitíssimo inteligente e interessante.

— Que idade tem ela? — perguntou Judith. Biddy deu de ombros.

— Oh, suponho que uns sessenta e cinco anos. Muito arrumada, esguia e alerta. Nós a conhecemos em um almoço em casa dos Morrison, há cerca de três meses. — Ela fez uma pausa momentânea, pensando na srta. Lang. Então disse: —Tem toda razão, Bob, eu devia tê-la convidado. Vou convidá-la agora. Acha que seria descortês. assim tão em cima da hora?

— Não creio que ela seja uma dama que se ofenda facilmente.

— E ela não se sentiria um pouco acanhada ou de trop, em meio a velhos amigos como nós e os outros?

— Biddy querida, você é uma anfitriã excelente e jamais deixaria que semelhante coisa acontecesse. Por outro lado, não consigo imaginar a srta. Lang intimidada por alguma coisa. Ela parece ter passado a vida organizando conferências internacionais, comparecendo à Liga das Nações e trabalhando nas embaixadas de Paris e Washington. Não a concebo de língua presa, no convívio com uns poucos bucólicos devonianos.

— E a vi outro dia. Devia tê-la convidado logo, mas foi no Auditório da Escola, quando estávamos todos recebendo nossas máscaras contra gases. De qualquer modo, ela se achava em uma fila diferente, e aquele dificilmente seria o momento mais adequado para formalizar compromissos sociais.

— Pois então, ligue agora para ela.

Biddy entrou para dar o telefonema, e voltou com a informação de que a srta. Lang ficara deliciada com o convite, não se importando em absoluto por ter sido feito tão em cima da hora, e que estaria em Upper Bickley às seis e meia.

Bob pegou a mão de Biddy e nela depositou um beijo.

— Muito bem feito — disse.

Depois acrescentou que começava a sentir fome, de modo que Biddy voltou para a cozinha, pôs o avental e serviu o cozido irlandês.

A srta. Lang chegou um pouco atrasada. Os Thornton e os Barkin já estavam presentes, tinham recebido seus drinques, acendido seus cigarros e se deixavam levar pela conversa fácil de amigos íntimos que se conheciam de muito tempo. Após um momento, Judith conseguiu esgueirar-se para a cozinha, onde um tabuleiro de vol-au-vents de galinha era aquecido no forno, mas evidentemente fora esquecido por Biddy. Estavam apenas um pouquinho tostados demais. Em pé junto à mesa, ela os arrumava em um prato azul e branco quando, pela janela da cozinha, avistou o carrinho verde que cruzava o portão e estacionava diante da porta da frente.

Abandonando os vol-au-vents, Judith foi receber a última convidada. Encontrou na soleira uma senhora esbelta, de cabelos brancos, perfeitamente trajada com uma saia cinzenta de flanela e um cardigan de cashmere cor de clarete, sem luxo, mas muito elegante.

— Srta. Lang.

— Estou atrasada.

— Não importa nem um pouquinho.

—Alguém telefonou, justamente quando eu ia saindo. Não é como sempre acontece? — Ela tinha límpidos olhos cinzentos, vivos e inteligentes. Judith pensou que assim seria a aparência da srta. Catto, dentro de mais vinte anos. — E agora, quem é você?

— Sou Judith Dunbar, sobrinha de Biddy.

— Oh, claro, ela me falou sobre você. Que prazer conhecê-la! Está passando dias aqui?

— Sim, durante algum tempo. Por favor, entre. — No vestíbulo, ela fez uma pausa. O grupo, imerso em franca conversa, era claramente audível, pela porta aberta da sala de estar. —Na verdade, no momento estou às voltas com um tabuleiro de vol-au-vents que passaram um pouquinho do ponto.

A srta. Lang sorriu compreensivamente.

— Não precisa dizer mais nada. Tenho certeza de que estarão deliciosos. E posso cuidar de mim mesma

Após falar, ela seguiu pelo corredor e entrou na sala de estar. Judith pôde ouvir Biddy:

— Oh, aqui está a srta. Lang! Que prazer tê-la conosco. Retornando à cozinha, Judith respirou aliviada ao constatar que os vol-au-vents permaneciam intocados, porque era grande a possibilidade de Morag farejá-los, aparecer para investigar e devorar tudo. Arrumou-os no prato de maneira decorativa e depois o levou para a sala de estar.

O espaço não era muito, e oito pessoas ali dentro pareciam uma multidão. Com a chegada da srta. Lang todos tinham se levantado para as apresentações, em seguida tornando a acomodar-se e reiniciando a conversa. Judith passou o prato de vol-au-vents em torno. A reunião prosseguiu.

Mais tarde, quando estava sentada no banco-janela com Emily Thornton e Biddy, ouvindo com certo divertimento o último escândalo do clube de tênis, a srta. Lang veio juntar-se a elas. Olhando através da janela para o jardim e o gramado verdejante, através do qual as sombras da noite adensavam-se, ela disse não saber que Biddy cultivava rosas tão esplêndidas.

Biddy era extremamente franca em relação aos seus êxitos de horticultura.

— É devido a uma forte carga de estrume de cavalos — explicou. — Tenho acesso a um suprimento ilimitado.

— Eu poderia ir até lá para vê-las? Suas rosas são francamente excepcionais.

— Nem precisaria pedir. Judith a acompanhará. Você não se importa, não é, meu bem?

— Em absoluto. Apenas não sei todos os nomes. A srta. Lang riu.

— Isso quase dá a impressão de que eu esperava ser apresentada. Ela largou seu cálice de sherry, e Judith a levou da sala, deixando Biddy e Emily Thornton comentando alegremente algum mexerico ainda mais candente do clube de tênis. Cruzaram a porta envidraçada que dava para o jardim da frente. Ainda estavam ali as cadeiras de jardim em que tinham se sentado na hora do almoço, com uma cachorra que abanava a cauda no gramado.

— Que noite simplesmente adorável — observou a srta. Lang. — E que vista a sra. Somerville tem daqui! Eu não imaginava a extensão do panorama que se vê aqui do alto. Minha casa fica bem na rua principal, de maneira que não há nenhuma vista, mas quando me aposentei, achei melhor ficar perto dos vizinhos e lojas. Assim, quando ficar realmente decrépita, sem poder mais dirigir, posso continuar independente. — As duas caminharam vagarosamente pelo gramado. — Agora, fale-me de você. É a sobrinha que está de partida para Cingapura, não? Oh, esta rosa é maravilhosa, e sei o seu nome. Ena Harkness. Que tamanho! —Ela parou para aspirar o perfume da flor aveludada. — E a fragrância que desprende é o verdadeiro paraíso. Quando é que viaja?

— Estou pretendendo partir em outubro.

— Há quanto tempo não vê seus pais?

— Quatro anos.

— É muito tempo. E uma separação demasiado cruel. Quantos anos tem?

— Dezoito.

—Já terminou o colégio, naturalmente.

— Sim, este verão.

— E quanto à universidade?

— Ainda não tive os resultados.

— Oh, a espera! É terrível, lembro-me muito bem. Quanto tempo espera ficar em Cingapura?

— Cerca de um ano. Se passar nas provas para a universidade, pretendo ir para Oxford. Então, terei de voltar para estudar.

— Oh, mas isso é maravilhoso. Creio que alguns dos meus anos mais felizes foram os da universidade. — Ela não apenas parecia com a srta. Catto, também falava como ela. — E os idiomas! Você deve estudar alguns. Já tem o francês, naturalmente. Que tal alemão?

— Nunca estudei alemão.

— E latim?

— Não sou muito boa em latim.

— É uma pena. Com o latim, já ficamos a meio caminho para o italiano e o espanhol. Hum, aqui está uma rosa cujo nome eu não sei.

— Nem eu.

— Então, precisamos perguntar à sra. Somerville.

— Duvido que ela saiba. Biddy não tem muita queda para jardinagem.

—Nesse caso, terei de informar-me em outra parte. E nestes quatro anos, enquanto seus pais estavam no estrangeiro, o que andou fazendo de si mesma? A quem procurava nos dias de festa e nas férias.?

Ela parecia tão interessada e ao mesmo tempo tão claramente sem curiosidade, que Judith se sentiu à vontade para falar dos Carey-Lewis e de Nancherrow de uma forma um tanto objetiva, impessoalmente, como se aquele fosse um período em sua vida que já passara, não deixando traços. Isso era estranho, porque não conseguia falar a respeito com Biddy ou Bob, sem que a infelicidade de seu envolvimento com Edward voltasse a causar-lhe sofrimento, e sentindo o terrível nó que se avolumava em sua garganta. Ela falou sobre tia Louise e Loveday, sobre a resultante generosidade de Diana e Edgar Carey-Lewis. A srta. Lang ouvia com a mais profunda atenção.

— Como as pessoas são bondosas — observou ela. — Às vezes esquecemos sua ilimitada generosidade. Não vou dizer que você teve sorte, porque odeio essa palavra. Dá a impressão de que se ganhou o prêmio máximo em alguma espécie de competição, para a qual não era requerida qualquer aptidão. Entretanto, fico muito satisfeita por você, já que essa situação deve ter-lhe proporcionado uma vida tranqüila, muito diferente.

— Sempre havia Biddy, é claro. Eu sempre soube que podia contar com ela.

— Entretanto, com seus novos amigos, você foi claramente um membro da família.

Tinham chegado ao final da plantação de roseiras. ”Salpicos Amarelos” foi a última. Após tê-la admirado, a srta. Lang fez uma pausa e se virou para Judith.

— Gostei muito de conversar com você — disse. — Espero tornar a vê-la.

— É o que também espero, srta. Lang. A srta. Lang hesitou.

— Ainda não falei com a sra. Somerville, mas gostaria que todos me chamassem de Hester. É o meu nome. Agora estou morando aqui. E já fui srta. Lang por tempo demais. Creio já ser chegada a hora de mudar a minha imagem.

Hester. Judith evocou aquele dia tão distante, quando Diana Carey-Lewis lhe dissera praticamente a mesma coisa. Então, ela, Loveday e Diana tinham entrado para o Bentley de capota arriada e todas haviam gritado ”Diana” para o vento.

— De fato, eu gostaria de chamá-la de Hester — disse.

— Então, está combinado. Bem, os mosquitos estão começando a picar. Acho que é hora de nos juntarmos aos outros.

O panorama era imenso, visto de Haytor: uma extensão de Dartmoor, com aldeias pequeninas como brinquedos espalhados sobre um tapete, vales, rios e campos. E, na distância, de Teignmouth até Star Point, o mar prateado e cintilante. Judith e Bob Somerville, com Morag trotando em seus calcanhares, tinham escalado os oito quilômetros de uma trilha na charneca. Quando finalmente atingiram seu objetivo, pararam para recuperar o fôlego e sentaram-se em uma relvosa concavidade, ao abrigo de um providencial pedregulho. Biddy não viera com eles. Contrariamente a seus hábitos, preferira ir à igreja. O almoço, assegurou a eles, era uma festa móvel. Não precisavam apressar-se em voltar. Que demorassem no passeio o quanto quisessem.

Judith e Bob ficaram sentados, em amistoso silêncio. Ainda era cedo, e a quietude se enchia com pequenos sons rurais. O balido de uma ovelha, um cão latindo, um carro rodando em algum lugar e subindo uma ladeira. Enquanto caminhavam, eles tinham ouvido sinos badalando em pequenas torres atarracadas de igrejas, porém agora os toques haviam cessado. Uma brisa se movia, agitando as sarças de leve.

Judith arrancou um talo de relva e começou a riscá-lo com a unha do polegar.

— Tio Bob — disse. — Acha que poderíamos falar?

Ele havia apanhado seu cachimbo, o saquinho de fumo, e estava ocupado em encher o fornilho, pressionando o tabaco em seu interior.

— É claro. Você sempre pode falar comigo.

— É sobre uma coisa um tanto difícil.

— Seria sobre o jovem Carey-Lewis?

Ela virou a cabeça para fitá-lo. Ele acendia o cachimbo com um fósforo. A chama morreu, o fumo tinha um cheiro adocicado e a fumaça subiu em uma bela Diurna cinzenta.

— Biddy lhe contou.

— É claro que me contou. — Ele tornou a guardar a caixa de fósforos Swan Vestas no bolso de seu velho paletó de tweed, uma peça de roupa tão usada, que em certas partes parecia ser de barbante frouxamente tecido. — Ela me conta tudo. Você sabia que Biddy me contaria. Sinto muito. Amor não correspondido não é um estado feliz.

— Não se trata de Edward. É sobre Cingapura.

— O que há sobre Cingapura?

— Acho que não vou poder ir. Estou pensando nisso há séculos, mas não comentei com ninguém. É horrível, porque pareço estar sendo puxada para duas direções. Em uma direção, sinto a vontade mais tremenda de ir, quero ver papai, mamãe e Jess novamente, acima de tudo o mais. Levei anos esperando, ansiava por isso a cada minuto, todos os dias. Contei os meses e os dias. E sei que com mamãe deve ter sido a mesma coisa. Em suas cartas, ela diz, só falta um ano. E então, só faltam seis meses. Depois, só mais três meses. E ela tem um quarto pronto à minha espera, planejou todos os tipos de surpresas adoráveis, como uma grande festa para receber-me, ir a Penang passar férias. E já reservei minha passagem e tudo, não há nada que me impeça de partir.

Ela parou de falar. Bob esperou. Depois perguntou:

— E a outra direção? Judith respirou fundo.

— É a guerra. Todos serão envolvidos por ela. Todos a quem amo de verdade. Você e Ned, todos os meus amigos. Jeremy Wells e Joe Warren, talvez até Heather também. E Athena Carey-Lewis e Rupert Rycroft. Acho que ela provavelmente casará com ele, que está na Guarda dos Dragões Reais. E Gus Callender, o amigo de Edward. E Loveday. E Edward. Sei que, se for para Cingapura, estarei me sentindo como um rato abandonando o navio que afunda. Quero dizer, é claro que não vamos afundar, porém isso não impede que me sinta assim. Na semana passada, eu e Biddy recebemos máscaras contra gases e as estocamos juntamente com parafina e velas, fizemos todas as cortinas para black-out, mas, enquanto isso, tudo que minha mãe faz em Cingapura é ter bandos de empregados, freqüentar o clube, arrumar-se para jogar tênis e comparecer a jantares. Eu teria de ir também a esses lugares, e isso seria tremendamente excitante, um comportamento de adulto, porém sei que a consciência ficaria me acusando, em todos os momentos do dia, Não é como se houvesse a mais remota probabilidade da guerra afetá-los em qualquer sentido, como na Grande Guerra. Para mim, contudo, seria o mesmo que fugir, que esconder-me e deixar que os outros fizessem todo o trabalho sujo. Lutar na guerra, quero dizer.

Ela se calou, parecendo mais ou menos por falta de palavras. Bob não fez nenhum comentário imediato. Depois de um momento, disse:

— Entendo seu ponto de vista, mas lamento por seus pais, principalmente por sua mãe.

— Aí é que está o pior. Se não fosse por ela, eu nem ao menos estaria pensando em ir para Cingapura.

— Que idade você tem?

— Dezoito anos. Farei dezenove no próximo verão.

— E ficaria um ano em Cingapura, depois voltando para cá.

— Não quero arriscar-me. Pode acontecer qualquer coisa. Talvez nem haja um navio. Eu poderia nunca mais voltar. Poderia ficar presa lá durante anos.

— E quanto à Universidade? Oxford. Pensei que fosse o passo seguinte.

— Não durante um ano. E ainda não tive os resultados do exame de matemática. Entretanto, sinto que Oxford pode esperar. Não é tão imperativo quanto realmente permanecer na Inglaterra. Talvez eu consiga ir para a universidade, mas, de fato, o importante, no momento presente, é que eu não quero fugir. Escapar. Não estar aqui para fazer algo útil, para partilhar das coisas terríveis que estão na iminência de ocorrer.

Com o cachimbo queimando tranqüilamente, tio Bob inclinou-se para trás, recostando seus ombros envoltos em tweed contra o granito coberto de liquens.

— Então, o que quer que eu lhe diga?

— Esperei que pudesse ajudar-me a decidir.

— Não posso fazer isso. Você mesma é que tem de tomar sua decisão.

— É muito difícil.

— Eu lhe direi apenas duas coisas. Se for ao encontro de seus pais, tenho certeza de que ninguém pensará o pior a seu respeito ou fará com que se sinta envergonhada. Vocês estiveram separados por tempo demais e, após todos estes anos vivendo entregue a si mesma, creio que você merece divertir-se um pouco. E se não viajar. precisa compreender que a situação vai ser dura. De qualquer modo, a vida é sua. É responsável apenas por si mesma.

—Se eu ficar na Inglaterra, acharia que estou sendo cruel e egoísta?

— Não. Acharia que você estará demonstrando um ilimitado patriotismo, além de total desprendimento. Também me sentiria muito orgulhoso de você.

Patriotismo. Aí estava uma palavra singular, não freqüentemente pronunciada em voz alta, e abrangendo uma emoção ainda mais profunda do que a lealdade e a afeição pelos amigos. Judith recordou a canção que as garotas do Santa Úrsula cantavam no Dia do Império, no aniversário do Rei ou em outras ocasiões adequadas. Suas palavras, uma paráfrase de Shakespeare:

Este real trono de reis, este cetro de ilha, Esta terra de Majestade, este assento de Marte, Esta fortaleza, pela natureza erguida Contra a infecção e contra a mão de guerras.

Eu sentiria muito orgulho de você. Talvez fosse tudo de que ela necessitava. Disse então:

—Acho que vou ficar. Telefonarei para a companhia de navegação cancelando minha passagem, e depois escreverei a mamãe. Ela sofrerá muito com esta decisão, mas terá de compreender.

— Acho melhor enviar primeiro um cabograma para ela. Com SEGUE CARTA no final. Depois que fizer isso, depois que queimar seus navios, você poderá escrever uma carta realmente boa e contará para ela tudo o que acabou de me dizer. Na Marinha Real, damos a isto o nome de ”motivos por escrito”.

— Sim. Sim, tem toda razão. É o que vou fazer. Imediatamente. Assim que voltarmos para casa. Oh, que alívio não ter de ficar angustiada mais tempo por causa disto! Você é um doce, tio Bob.

— Só espero que não lamente a decisão.

— Sei que não vou lamentá-la. Já me sinto muito melhor. E se isto resultar em uma boa confusão, posso contar com o seu apoio, não?

— Serei a sua defesa alternativa. E agora que está tudo decidido o que pretende fazer de sua vida? Já chegou a pensar nisso?

— Sim. O que eu gostaria de fazer seria juntar-me a um dos serviços, porém isto não adiantaria grande coisa, a menos que tivesse alguma espécie de qualificação. Caso contrário, terminaria limpando armas, atando cordéis de um balão de barragem ou cozinhando imensas refeições elementares. Heather Warren, a minha amiga de Porthkerris, vai aprender taquigrafia e datilografia. Pensei em aprender com ela. Taquigrafia e datilografia não são muita coisa, mas, pelo menos, funcionam como uma espécie de qualificação. Pensei também em voltar para Porthkerris e morar lá; talvez a sra. Warren me aceitasse como pensionista. Sei que ela aceitaria, é uma pessoa muito hospitaleira. Já fiquei lá inúmeras vezes e, se Joe for convocado, eu poderia ficar com o quarto dele.

— Porthkerris?

— Sim.

— Por que não Nancherrow?

— Não. E não apenas por causa de Edward, mas por achar que já vivi tempo demais com os Carey-Lewis. Preciso começar a firmar-me em meus próprios pés. Por outro lado, Nancherrow fica a quilômetros de qualquer lugar; se eu fosse tentar aprender alguma coisa, a distância seria um tremendo inconveniente.

— Você quer mesmo retornar à Cornualha?

— Na realidade, não. Acho que talvez precise ficar mais algum tempo longe de tudo aquilo. No momento, ainda não me sinto no total controle de mim mesma.

— Então, por que não ficar aqui? Com Biddy?

— Não posso fazer isso. Indefinidamente.

— Não indefinidamente, mas por enquanto. Eu gostaria que você ficasse. Aliás, estou pedindo que fique.

Judith olhou para ele com certa surpresa. Viu o sólido perfil do tio, sério, com as sobrancelhas espessas, o cachimbo projetando-se da boca. Também viu os cabelos ficando grisalhos, as linhas fundas que corriam do nariz para o queixo e, no mesmo instante, pôde imaginar como ele ficaria quando fosse muito velho. Perguntou, suavemente:

— Por que quer que eu fique?

— Quero que faça companhia a Biddy.

— Ela tem dúzias de amigas.

— Ela sente falta de Ned, e só Deus sabe o que irá acontecer comigo. Biddy gosta de ter você por perto. Uma seria capaz de manter a outra em ordem.

— Bem, mas eu devo fazer alguma coisa. Quero realmente aprender taquigrafia e datilografia!

— Poderá aprender, estando aqui. Teria aulas em Exeter ou Plymouth.

— E como me movimentaria? Você mesmo disse que a primeira coisa a ser racionada será a gasolina. Eu não poderia usar meu carro, e só há um ônibus diário saindo daqui.

Tio Bob começou a rir.

— Você pensa em todos os detalhes, hein? Daria um excelente suboficial escriturário. — Endireitando o corpo, ele se inclinou para diante, a fim de bater o cachimbo na ponta do sapato. — Por que não tomamos uma coisa de cada vez? Prometo descobrir algo. Não iria deixá-la de mãos abanando, sem ter o que fazer. Apenas fique com Biddy por enquanto.

De repente, Judith sentiu-se tomada de amor por ele.

— Está bem — respondeu e, inclinando-se, beijou-lhe a face castigada pelo tempo.

Ele a abraçou de leve. Morag, que estivera deitada nas urzes a pouca distância deles, veio descobrir o que estariam pretendendo. Tio Bob deu-lhe uma palmada macia no flanco espessamente peludo.

— Muito bem, garotinha preguiçosa — disse à cadela. — Estamos voltando para casa!

Eram quase duas e meia da tarde quando eles chegaram, famintos, sedentos e inteiramente exercitados. Tinha sido uma esplêndida caminhada. Aproximaram-se de Upper Bickley através da charneca e, lá chegando, escalaram o muro de pedras na cabeceira do padoque, depois descendo pela relva espessa em direção à casa. Mais espevitada do que nunca, Morag pulou o muro como um cavalo saltador e disparou à frente deles, direta para onde sabia estar sua tigela de água, ao lado da porta dos fundos.

Judith e tio Bob preferiram um passo mais lento. No final do padoque, fizeram uma pausa para inspecionar a projetada plantação de batatas de Bill Dagg. A área havia sido perfeitamente isolada, demarcada com barbante, e cerca de um quarto já fora revolvido, após retiradas a relva e as ervas daninhas. A terra resultante era escura e argilosa. Judith agachou-se e apanhou um punhado; tinha um cheiro adocicado e úmido, e ela a deixou escorregar por entre os dedos.

— Aposto como aqui crescerão as melhores batatas do mundo — disse.

—Já revolvi terra uma vez. Um trabalho que não deixou saudades. Antes Bill Dagg do que. — Interrompendo-se, Bob virou a cabeça para ouvir. Juditn também ouviu o ruído. Era de um carro, fazendo a curva lentamente, a fim de subir a ladeira. Bob franziu o cenho. — Ora, quem poderia ser, vindo até nós?

Os dois ficaram parados, lado a lado, esperando, os olhos fixos no portão aberto. O som do motor soou mais próximo, e então o carro surgiu na estrada, manobrando para a entrada de Upper Bickley. Pneus rodando no cascalho. Um carro escuro, do Estado-maior da Marinha, com um oficial ao volante.

— Maldição! — exclamou Bob, em voz quase inaudível.

— Quem é?

— Meu oficial de comunicações.

O carro parou, e dele saiu um jovem em uniforme de tenente. Bob foi ao seu encontro, caminhando em largas passadas à frente de Judith, depois baixando a cabeça alta por sob o varal de roupa lavada. Judith hesitou, limpou a palma suja de terra no fundilho das calças compridas e então, mais lentamente, começou a aproximar-se da casa. O tenente adiantou-se e perfilou-se, batendo continência.

— Capitão Somerville, senhor.

— Whitaker. O que está fazendo aqui?

— Um comunicado, senhor. Chegou há cerca de uma hora. Vim em seguida, senhor. Achei melhor entregá-lo pessoalmente.

— Em um carro do Estado-maior?

— Creio que irá precisar de transporte, senhor.

O comunicado foi entregue. Em pé, com seus sapatos empoeirados e seu velho paletó de tweed, os cabelos despenteados, Bob Somerville leu a mensagem. Judith perscrutava-lhe o rosto ansiosamente, mas a expressão dele nada revelou. Após um instante, ele ergueu a cabeça.

—Sim —disse para o tenente Whitaker. —Foi melhor ter entregue pessoalmente. Bem pensado. Obrigado. — Ele olhou para o relógio de pulso. — Precisarei de quinze minutos. Tenho que falar com minha esposa, comer um sanduíche ou qualquer coisa e fazer a mala.

— Perfeitamente, senhor.

Bob deu meia-volta para entrar em casa, mas no último momento lembrou-se de Judith, ainda ali parada e sem saber o que fazer.

— Oh, Whitaker, esta é minha sobrinha, Judith Dunbar. É melhor fornecer-lhe os detalhes. E, se for gentil, ela talvez lhe prepare uma xícara de chá.

— Penso que conseguirei sobreviver. Muito obrigado, senhor.

— Quinze minutos.

— Ficarei esperando, senhor.Bob entrou em casa. A porta foi explicitamente fechada atrás dele, e Judith soube que, naquele exato momento, ele não queria ninguém por perto, mas apenas estar sozinho com Biddy. Terrivelmente apreensiva, ela começou a pensar em uma invasão iminente, algum desastre no mar ou más notícias sobre Ned.

— O que está acontecendo?

— O Comandante-em-chefe da Frota Metropolitana solicitou ao capitão Somerville que se junte ao seu Estado-maior. (Já era um alívio; não tinha acontecido nenhuma das coisas horríveis que temera.) Imediatamente. Com toda a conveniente rapidez. Daí o motivo de eu ter trazido um carro do Estado-maior.

— Onde está a Frota Metropolitana?

— Em Scapa Flow.

— Não está pretendendo levá-lo de carro a Scapa Flow, está?

O tenente Whitaker riu, e imediatamente pareceu muito mais humano.

— Não. Penso que o capitão Somerville provavelmente viajará em avião militar.

— Ned está baseado em Scapa Flow.

— Eu sei.

— É tudo tão repentino. — Ela encontrou os olhos do tenente, percebeu a solidariedade dele e tentou sorrir. — Suponho que tudo começará a ser assim.

Após isso, o tenente Whitaker esqueceu que era um oficial, para tornar-se um rapaz absolutamente simpático e amistoso.

— Ouça — disse ele — por que não nos sentamos em algum lugar e fumamos um cigarro?

— Eu não fumo.

— Bem, eu poderia saborear um.

Assim, eles foram sentar-se nos degraus de pedra que levavam ao gramado onde as roupas lavadas secavam. Morag se juntou aos dois, estava um calor agradável sob o sol, Whitaker fumou seu cigarro e perguntou o que Judith e o capitão Somerville tinham estado fazendo. Ela lhe falou sobre a caminhada até Haytor e sobre o panorama descortinado do alto do morro; disse que por ora ficaria em Upper Bickley com Biddy e, enquanto dizia isso, percebeu que agora tio Bob não teria tempo nem oportunidade para fazer planos a respeito do seu futuro. Então, ela mesma é que teria de resolver esta parte.

Bob reapareceu exatamente quinze minutos depois, com Biddy ao seu lado. Desfazendo-se do cigarro, o tenente Whitaker pôs-se elegantemente de pé e foi cumprimentar Biddy apertando-lhe a mão. Ela parecia algo perturbada, porém já estava casada com a Marinha Real por muito tempo, desta maneira tendo aprendido a ser corajosa e filosófica ao mesmo tempo, no tocante a despedidas precipitadas. Quanto a tio Bob, mais uma vez voltara a encarnar seu outro eu. Novamente uniformizado, com o controle nas mãos, parecia diferente e bem-disposto, não um estranho, mas de certo modo distanciado, como que já destacado delas, para ser absorvido por sua real vida profissional.

O tenente Whitaker aliviou-o de sua bagagem e foi colocá-la no banco traseiro do carro. Tio Bob se virou para abraçar a esposa.

—Adeus, minha querida.

Os dois beijaram-se.

— Procure ver Ned. Abrace-o por mim.

— É claro.

Chegou a vez de Judith.

—Adeus.

—Adeus, tio Bob.

Abraçaram-se.

— Cuide-se bem — ele lhe disse, e Judith sorriu, dizendo que assim o faria.

O tenente Whitaker esperava, segurando a porta aberta do carro para Bob. Este deslizou para o assento do passageiro, a porta foi fechada de golpe, e então o tenente deu a volta pela frente do veículo, a fim de sentar-se ao volante.

— Adeus!

O carro cruzou o portão. Bob Somerville se fora. Biddy e Judith, acenando, pararam de acenar. Ficaram ouvindo, até deixarem de perceber o ruído do motor, e então entreolharam-se.

— Você está bem? — perguntou Judith.

— Não. Totalmente em pedaços — respondeu Biddy, mas conseguiu dar uma risada estranha. — A Marinha às vezes me deixa com vontade de cuspir. Pobre homem! Entrando e saindo como uma fumaça, sem nada para sustentá-lo além de um sanduíche de carne. Curioso, mas meu queridinho estava eufórico. Ser alvo de semelhante honra! Que indicação prestigiada! De fato, fiquei satisfeita por ele. Apenas não gostaria que tivesse acontecido tão depressa, e que Scapa Flow não ficasse lá na outra extremidade do país. Perguntei sobre juntar-me a ele, mas respondeu que era um assunto fora de questão. Assim, vou ter de ficar chocando aqui mesmo. — Ela olhou para Judith. — Bob me contou que você pretende passar algum tempo comigo.

— Está bem para você?

—Sei que pareço uma tola, mas, neste momento, eu simplesmente não suportaria perder vocês dois. É maravilhoso pensar que você estará aqui, fazendo-me companhia. Oh, céus. — Ela sacudiu a cabeça, rejeitando a emoção. — É mesmo tolice minha, mas, de repente, sinto vontade de chorar.

— Venha — disse Judith, tomando-lhe o braço. — Vamos entrar, botar a chaleira no fogo e preparar uma xícara de chá bem forte.

Mais tarde, Judith sempre pensaria na tarde daquele domingo de agosto e na partida de tio Bob como o momento em que a guerra de fato começara. Os eventos da semana seguinte — a mobilização da Marinha Real, a convocação dos reservistas, a invasão da Polônia pela Alemanha e o discurso do sr. Chamberlain declarando a guerra —quando vistos em retrospectiva tornaram-se simplesmente as formalidades finais, precedendo o primeiro turno do grande esforço moral que deveria continuar por quase seis anos.

Upper Bickley, Sul de Devon

13 de setembro de 1939

Querida Diana

Sinto muito não ter escrito antes para você, porque tem sido grande a movimentação por aqui, de modo que acabei ficando sem tempo. Foi horrível deixar todos aí tão repentinamente, sem poder despedir-me de quem quer que fosse, mas sei que você compreendeu.

Aqui, Judith cruzou os dedos e transmitiu a última parte de sua continuada mentira.

Tia Biddy passou de fato muito mal, e fiquei satisfeita por ter podido vir. Ela agora está bem melhor e conseguiu superar a gripe pertinaz.

Dedos novamente descruzados.

Além do fato de finalmente a guerra ter começado (de certo modo chegando a ser um alívio, depois das terríveis duas últimas semanas), tenho montes de coisas para contar-lhe. A primeira delas é que resolvi não viajar para Cingapura. São vários os motivos para tal decisão e de explicação muito complexa, mas o principal deles é que me sentia incapaz de zarpar para o Extremo Oriente a fim de divertir-me, enquanto todos que aqui ficavam estariam preparando-se para a guerra. Sei perfeitamente que minha permanência na Inglaterra não fará a mínima diferença, porém eu me sentiria muitíssimo mal não estando aqui. O pior foi comunicar o fato aos meus pais. Em primeiro lugar, cancelei minha passagem, e depois passei um cabograma para eles. Recebi um de volta quase imediatamente (como conseguem ser tão rápidos?), páginas de súplicas procurando fazer-me mudar de idéia, porém sei que tio Bob me apoia e pude continuar firme em minha resolução. Escrevi uma longa carta para eles expondo todos os meus motivos, e espero que ambos possam perceber em que pé está a situação na Inglaterra, e como todos aqui se sentem, isto é, decididos a arregaçar as mangas e preparar-se para o que for de pior. Gostaria que você não me considerasse terrivelmente egoísta. Deve ser o que minha mãe pensa a meu respeito, porém o desapontamento é por demais depressivo, e o pior é saber quanto ela ansiava por estarmos todos juntos novamente e como, agora, acabei com suas esperanças.

Seja como for, aqui estou.

A outra novidade é que tio Bob foi transferido para Scapa Flow, a fim de assumir o posto de capitão-engenheiro no Estado-maior do Comandante-em-chefe da Frota Metropolitana. Como foi especialmente indicado e convidado, trata-se de uma convocação muitíssimo excitante, embora isso não signifique que deixaremos de sentir imensamente a sua falta. É claro que Biddy não poderá acompanhá-lo, de modo que terá de continuar aqui. Então, por enquanto, permanecerei com ela.

Espero que, e sem muita demora, ela se envolva com o trabalho da Cruz Vermelha ou algo assim, podendo ainda juntar-se ao Serviço Feminino Voluntário. No momento, porém, apenas manter tudo aqui em andamento já é tarefa mais do que suficiente. Sua cozinheira diarista, a sra. Lapford, está indo embora: vai cozinhar na cantina de uma fábrica perto de Exeter, alegando precisar dar a sua contribuição. A sra. Dagg, que faz a faxina, ficará mais algum tempo aqui. Casada com um trabalhador do campo, acha que sua prioridade número um é mantê-lo bem alimentado!

Quanto a mim, antes de tio Bob deixar-nos já havia decidido aprender taquigrafia e datilografia. Eu não conseguia imaginar onde ter as aulas (este é um lugar bastante precário), porém tudo se resolveu. Biddy tem uma amiga chamada HesterLang, funcionária pública aposentada que veio morar em Bovey Tracey. Ela apareceu para jogar brídge uma destas tardes e, depois do jogo, enquanto tomava um drinque, conversamos e então falei sobre a taquigrafia e datilografia. e ela disse que me ensinaria! Sendo Hester uma pessoa muito eficiente, tenho certeza de que em pouco tempo estarei apta. Será como ter uma preceptora só para mim. Assim que entender a mecânica da coisa e adquirir suficiente velocidade na escrita, creio que poderei juntar-me aos serviços. Talvez ao Serviço Feminino da Marinha Real, não sei ainda. Se não por outro motivo, provavelmente pelo uniforme, que é lindo!

Espero que todos aí estejam bem. Sinto uma falta enorme de vocês. Mary fez todas as cortinas para black-out? Eu costurei as de Biddy, nisso gastando toda uma semana, e a casa é pequenininha, se comparada a Nancherrow. Detesto ter de deixá-la tão de repente, e peço que, por favor, dê lembranças minhas ao Coronel Carey-Lewis, a Mary, aos Nettlebed, a Loveday, a tia Lavinia, a todos, enfim.

Só mais uma coisa. Os resultados de meus exames para matrícula serão enviados para Nancherrow. Também é possível que a srta. Catto ligue para você e fale sobre eles. De qualquer modo, quando souber de algo, seja boazinha e conte para mim — ou, então, talvez Loveday possa dar-me um telefonema. Estou ansiosa por saber. Não que faça grande diferença. No momento presente, tenho a impressão de que nunca irei para a Universidade.

Todo o meu carinho, como sempre, Judith.

A resposta a esta carta só chegou de Nancherrow duas semanas mais tarde. Caiu com estardalhaço através da caixa de correspondência e depois sobre o capacho da porta, juntamente com o resto do correio — um grande e grosso envelope, endereçado nos rabiscos infantis de Loveday que, juntamente com sua incorrigível ortografia, durante anos fora motivo de desespero para a srta. Catto. Judith ficou surpresa, porque nunca antes recebera uma carta de Loveday e muito menos imaginava que ela conseguisse escrever algo mais do que os bilhetes mais corriqueiros. Levando a carta para a sala de estar, enrodilhou-se em um canto do sofá e abriu o pesado envelope.

No interior estavam os resultados de suas provas e folhas do luxuoso papel de cartas de Nancherrow, dobrado em um naco satisfatório. Ela primeiro olhou para os resultados das provas, desdobrando o formulário oficial com uma cautela cheia de medo, como se o papel fosse explodir. De início mal acreditou no que leu, mas depois foi inundada de alívio, de excitamento e satisfação por uma verdadeira façanha. Se estivesse na companhia de alguém de sua idade, ela teria pulado em pé e dançado entusiasmadamente, mas uma semelhante exibição de si mesma parecia pura tolice e, por outro lado, Biddy tinha ido a Bovey Tracey fazer o cabelo. Assim, ela se contentou em ler os resultados mais uma vez, depois deixou-os de lado e mergulhou na comprida e enfadonha carta de Loveday.

Nancherrow

22 de setembro

Querida Judith,

Adoramos receber sua carta, que está em cima da secretária de mamãe, mas você sabe como ela é difícil se a questão é escrever cartas e, por causa disso, me pediu que lhe escrevesse. Posso garantir que é uma coisa que faço com prazer, além do que lá fora está chovendo horrores, portanto, não há muito mais que eu possa fazer.

Antes que lhe diga qualquer coisa, aqui vão os resultados de suas provas para a Universidade. O envelope chegou e eu simplesmente tive de abri-lo, mesmo sendo endereçado a você, e o li em voz alta durante o café da manhã para mamãe, papaieMary, todos eles aplaudindo. Você é o máximo. Todos aqueles créditos e duas distinções! A srta. Catto deve ter dançado um fandango. Mesmo que você não vá para a Universidade, não importa, porque poderá emoldurar seu certificado, quando ele chegar, e pendurá-lo no banheiro ou em algum lugar apropriado.

Você faz bem em não ir para Cingapura. Não sei se eu agiria com tanta firmeza, por causa de todo o divertimento que irá perder. Espero que sua mãe a tenha perdoado, porque é terrível demais a gente cair no desagrado de alguém. E que notícias formidáveis sobre seu tio! Ele deve ser terrivelmente eficiente e inteligente para fazer um trabalho desses. Tive que procurar Scapa Flow no Atlas. Fica praticamente no Círculo Ártico. Só espero que ele tenha levado montes de roupas de baixo de lã.

Aqui, as coisas estão acontecendo. Pearson nos deixou e se juntou à Infantaria Ligeira do Duque de Cornualha. Janet e Nesta estão procurando decidir-se sobre o que irão fazer, embora não tenham sido convocadas nem nada assim. Janet acha que poderia ser enfermeira, mas Nesta prefere ir para algum lugar onde fabricar munições, porque nunca pensou em lidar com urinóis para doentes. Seja como for, acho que não vai demorar muito, as duas terão ido embora. Graças a Deus, os Nettlebed continuam como acessório permanente, estão velhos demais para lutar, e Hetty também ainda está aqui. Ela sonha ir para o exército e ficar em evidência, andando por aí de uniforme caqui, mas tem apenas dezessete anos (jovem demais), e a sra. Nettlebed fica lhe dizendo que ela é simplória demais para andar solta no meio da soldadesca desavergonhada. Acho que a sra. Nettlebed está sendo impiedosa; acho que ela não quer é ter de esfregar as panelas em que cozinha.

Mary está fazendo cortinas para black-out Costura o tempo todo sem parar, de modo que mamãe chamou a srta. Penberthy para ajudá-la. Ela mora em Saint Buryan. Vem todos os dias de bicicleta e costura, mas como tem um CC infernal, a gente precisa ficar com todas as janelas escancaradas. Ainda há alguns cômodos sem cortinas pretas, portanto, depois que escurece não podemos nem mesmo abrir a porta. Espero que a srta. Penberthy termine logo o que veio fazer aqui e vá embora.

Mamãe teve uma reunião da Cruz Vermelha na sala de estar, e papai tem colocado baldes d’água por todo canto, para a hipótese da casa ser incendiada. Ainda estou procurando acostumar-me com a idéia, mas tenho certeza de haver uma resposta em algum lugar. Está ficando mais frio. Quando o inverno chegar, vamos colocar protetores de poeira nos móveis da sala de estar e ficaremos usando a sala menor. Papai diz que precisamos conservar combustível e plantar montanhas de vegetais.

Agora, notícias dos Outros. Deixei isto para o fim, porque não quero esquecer ninguém.

Tia Lavinia vai muito bem, agora já sai um pouco da cama e fica sentada perto da lareira. É terrível para a coitada ter que passar por mais uma guerra. Primeiro, a Guerra dos Boers, depois a Grande Guerra, e agora esta. É guerra demais para uma única vida.

Depois que você partiu sentimos demais a sua falta, mas os outros também se foram bem depressa. Jeremy foi o primeiro, depois Rupert, que viajou logo para Edimburgo —entre tantos lugares! — e está em alguma parte chamada Quartel Redford. Todos os cavalos da cavalaria foram transferidos de Northampton para lá, imagino que em trens, porque seria longe, muito longe, para os queridinhos irem andando. Adiante há mais sobre Rupert.

Então, foi a vez de Edward e Gus. Edward está em alguma base de treinamento, mas não sabemos onde, porque o endereço dele é Em Algum Lugar da Inglaterra. Mamãe conseguiu uma espécie de número de posta-restante para ele, porém odeia não saber exatamente onde Edward está. Espero que ele esteja se divertindo como nunca, voando por aí e bebendo cerveja nas cantinas militares.

Gus foi para Aberdeen, porque é lá que fica o QG dos Gordon Highlanders. Foi simplesmente penoso despedir-me dele. Não chorei por nenhum dos outros, mas chorei por Gus.

É tão mesquinho a gente conhecer o único homem pelo qual poderia apaixonar-se um dia, para em seguida ele nos ser tomado por esse diabólico e velho Hitler! De noite chorei baldes de lágrimas na cama, porém agora já parei de chorar, porque recebi uma carta dele, que também já respondi. Além disso, tenho uma foto de Gus, tirada com minha máquina de retratos, e mandei ampliá-la. (Ficou um pouco borrada, mas está bem). Coloquei em uma moldura e agora a tenho ao lado de minha cama, podendo dizer boa-noite para ele todas as noites, e também bom-dia todas as manhãs. Aposto como ele fica maravilhosamente bem, vestido com seu kilt. Tentarei convencê-lo a mandar-me uma foto sua, vestido de escocês.

Agora, continuação da história de Rupert.

Três dias depois que ele partiu, Athena anunciou subitamente que também iria para Edimburgo e, tomando um trem, foi para lá. Não é o fim? Ela está morando no Hotel Caledonian. Disse que é enorme e horrivelmente vitoriano, que em Edimburgo faz um frio de doer, mas que isso não importa muito, porque de vez em quando pode ver Rupert. Se Athena não se incomoda de sentir frio, então deve estar apaixonada por ele.

Quanto a mim, vou ficando mesmo por aqui. Mamãe decidiu criar bandos de galinhas, e elas serão o meu trabalho para o esforço de guerra. WalterMudge prometeu ensinar-me a dirigir um trator, para que eu possa ajudar nas plantações. Na verdade, não me importo muito com o que tiver de fazer, seja alimentar fornalhas ou limpar banheiros, desde que ninguém venha me dizer que preciso alistar-me, que serei convocada para prestar serviços ou qualquer coisa que me deixe apavorada.

O sr. Nettlebed acabou de aparecer para trazer a boa nova de que a gasolina vai ser racionada e que, como cidadãos honrados, nos comprometeremos a não encher latas de combustível e nem estocá-lo sigilosamente. Só Deus sabe como nos arranjaremos sobre alimentos, pois Penzance fica longe demais para ir-se de bicicleta até lá! Suponho que começaremos a abater o rebanho de Walter!

Estou ansiosa para tornar a vê-la. Volte logo, assim que puder. Mary manda perguntar se quer que lhe remeta algumas roupas de inverno.

Muita, mas muita saudade mesmo,

Loveday

  1. NOTÍCIA DE ÚLTIMA HORA! Excitante demais! Faz alguns momentos, telefonaram de Edimburgo. Papai atendeu em seu estúdio. Athena e Rupert estão casados! Casaram-se lá, em um cartório de registro civil. O ordenança de Rupert e um motorista de táxi foram as testemunhas. Exatamente como Athena queria. Mamãe e papai estão divididos entre a felicidade e a raiva por terem perdido a cerimônia. Acho que os dois realmente gostam dele. Não sei dizer quando Athena voltará para nós. Talvez não seja muito divertido, casar-se e ficar morando sozinha no Hotel Caledonian.

Judith dobrou a carta e tornou a colocá-la dentro do envelope, nele guardando também os resultados de suas provas. Era confortável ficar ali, enrodilhada no sofá, de modo que permaneceu na mesma posição, olhando através da janela e pensando em Nancherrow. Quase tinha a sensação de estar lá novamente. Pensou em Athena e Rupert casando-se em seu cartório de registro civil, na srta. Penberthy costurando cortinas pretas, em Gus vestindo seu kilt escocês, no coronel e seus baldes d’água, em Loveday criando galinhas. E em Edward. Aquartelado em algum lugar da Inglaterra. Treinando. Treinando para quê? Ele já obtivera seu brevê de piloto. Enfim, era uma pergunta idiota a fazer-se. Treinando para a guerra, naturalmente, treinando para mergulhar dos céus, disparar armas e abater bombardeiros inimigos. Ele está se divertindo como nunca, voando por aí e bebendo cerveja.

Desde aquele último domingo em Nancherrow não houvera qualquer comunicação entre eles, de modo que a carta de Loveday era a primeira notícia que Judith tinha dele. Não escrevera para Edward e nem telefonara, porque não conseguia pensar em alguma coisa para dizer-lhe que já não houvesse sido dita. Além disso, também envergonhava-se ao recordar sua própria ingenuidade e o choque mortal que recebera com a rejeição de Edward. Ele tampouco lhe escrevera ou telefonara, porém ela dificilmente esperaria por isso. Edward havia sido constante e compreensivo durante muito tempo, e a paciência de homem algum pode durar para sempre. Aquela deserção final, fugindo de Nancherrow em seu carro sem ao menos esperar para despedir-se, provavelmente tinha sido a exasperação definitiva. E não havia qualquer motivo, qualquer necessidade de Edward partir à sua procura. A glamourosa vida dele sempre estaria cheia de mulheres encantadoras, apenas esperando, fazendo fila para lhe saltarem ao colo.

Entretanto, continuava sendo impossível recordá-lo desapaixonadamente. O jeito dele, o som de sua voz, seu riso e aquela mecha de cabelo sempre caindo na testa, a todo momento eram expulsos de sua cabeça. Como tudo o mais que, sobre ele, sempre a enchera de felicidade.

Desde sua chegada a Devon, ela se esforçara ao máximo para não entregar-se a devaneios: que ouvia um carro subindo a ladeira e era Edward vindo buscá-la, porque não podia viver sem ela. Tais fantasias eram mais adequadas a crianças, eram contos de fadas com finais felizes, e agora — em todo e qualquer sentido — ela deixara de ser criança. Entretanto, era impossível impedir que ele invadisse seus sonhos à noite, e nesses sonhos havia um lugar a que chegava e onde se sentia consumida por beatífico prazer, pois sabia que Edward estaria lá também; ele estava a caminho, estava chegando. Então, acordava inundada de felicidade, somente para ter essa felicidade consumida pela luz fria da manhã.

Tudo acabara. Agora, no entanto, lembrar-se dele nem mesmo a deixava mais com vontade de chorar, de modo que talvez as coisas estivessem ficando um pouco melhor. Claro que podiam ser piores, mas tinha sido aprovada nos exames e, durante algum tempo, tais confortos práticos lhe dariam forças para seguir em frente. A confiança em si é tudo, pregava a srta. Catto e, após tudo dito e feito, duas distinções dificilmente deixariam de agir como revigorantes morais. Ela ouviu uma porta bater, depois a voz de Biddy, que voltava para casa, com sua ondulação permanente. Judith forçou-se a deixar o sofá e foi ao encontro da tia, a fim de contar-lhe as novidades.

O fim de setembro aproximava-se, quando finalmente começaram as aulas de taquigrafia e datilografia com Hester Lang, uma vez que Hester tinha alguns preparativos a fazer. Ela era proprietária de uma impressionante máquina de escrever — na verdade, não portátil como a de tio Bob — mas que precisava ser limpa e lubrificada em uma loja de Exeter, além de receber uma fita nova e um anteparo, a fim de que Judith ficasse impedida de olhar de soslaio para o teclado. Ela também comprou dois manuais, porque já fazia algum tempo que aprendera a teoria sobre as duas matérias, agora precisando atualizar-se um pouco. Por fim, Hester telefonou e disse que estava pronta para começar.

No dia seguinte, Judith desceu a colina e apresentou-se à porta da frente da casa de Hester. Com uma coisa e outra, a sensação era mais ou menos de voltar ao colégio para o período letivo do Natal; o outono estava no ar e as folhas começavam a ficar douradas. Os dias encurtavam-se e, a cada noite, o ritual de fazer o black-out — puxar as cortinas pretas sobre as janelas, a fim de que nem um só raio de luz se filtrasse para o exterior —chegava um pouco mais cedo. e em breve estariam tomando o chá das quatro e meia-com as cortinas totalmente fechadas. Judith sentia falta dos longos crepúsculos, contemplados de dentro de casa. Era claustrofóbico, ficar trancada lá dentro, com luz elétrica.

Agora, contudo, às nove da manhã, o dia era tonificante e límpido, ela podia sentir o cheiro da fumaça da fogueira de algum jardineiro, queimando uma pira de restos. No correr da semana, ela e Biddy tinham colhido quilos de amoras silvestres nas sebes de árvores nos campos do fazendeiro local, e ele lhes prometera uma carga de troncos, os ramos de um velho olmo derrubado pelas tormentas do último inverno. Bill Dagg os traria para Upper Bickley em um vagão puxado por trator e os galhos seriam estocados, como turfa, contra a parede da garagem. Queimar madeira ajudaria na preservação do estoque de carvão porque, do jeito como iam as coisas, não havia certeza de novos suprimentos.

A casa de Hester era de pedra cinzenta, com dois pavimentos, sendo uma das que formavam uma pequena fila de prédios geminados, de maneira que tinha um vizinho a cada lado. As casas pareciam um pouco sombrias, com portas de entrada pretas ou marrons, a tinta já descascando, e cortinas rendadas que emolduravam aspidistras em vasos verde-ervilha. A porta de Hester, no entanto, era amarelo-manteiga, ao passo que suas reluzentes janelas velavam-se em cortinas de tecido, alvas como neve. Além disso, ao longo do velho capacho de limpar sapatos, ela plantara uma clematite que já cobria um bom pedaço da fachada da casa. Tudo isso contribuía para dar a impressão de que a pequena fila de casas pairava acima do mundo.

Judith apertou a cigarra, e Hester veio abrir a porta, mostrando a aparência imaculada de sempre.

—Oh, aí está você! Imaginei que viesse com uma mochila escolar. Que manhã celestial! Estou acabando de fazer café.

Judith podia sentir seu cheiro fresco e convidativo.

— E eu acabei de fazer o breakfast — disse.

— Então, tome mais uma xícara. Faça-me companhia. Não precisamos começar a trabalhar imediatamente. Bem, você nunca esteve em minha casa, não é mesmo? A sala de estar é por ali; fique à vontade, que em um momento estarei com você.

A porta estava aberta. Além dela, Judith encontrou-se em um comprido aposento que se estendia da frente da casa até os fundos, porque uma parede divisória entre os dois pequenos aposentos originais tinha sido removida. Tal providência tornava tudo espaçoso e muito claro. Além disso, os móveis e a decoração tinham um estilo simples e moderno ao mesmo tempo, em tudo diferente do que ela havia imaginado ou esperava ver. Decidiu que via à sua frente algo semelhante a um estúdio. As paredes eram brancas, o acarpetado bege e as cortinas de linho rústico, cor de barbante. As obrigatórias cortinas de black-out estavam claramente visíveis, mas puxadas para os cantos, de modo que a claridade matinal se tornava difusa através da fazenda frouxamente tecida, quase como se as cortinas tivessem sido feitas de renda. Um tapete kilim cobria o encosto do sofá e havia uma mesa baixa, formada por uma folha de vidro grosso suportada por dois antigos leões de porcelana, ambos dando a impressão de que podiam ter vindo da China, muito e muito tempo atrás. A mesa estava cheia de livros interessantes e, no centro, havia uma peça de escultura moderna.

Tudo muito surpreendente. Olhando em torno, Judith viu uma tela abstrata na parede da lareira, pendendo sem moldura; granulosa e brilhante, a tinta parecia ter sido aplicada com espátula. A cada lado da lareira, havia reentrâncias na parede com prateleiras de vidro, suportando uma coleção de taças de cristal verde e azul-bristol. Havia mais prateleiras com livros, alguns deles encadernados em couro e outros com cintilantes contracapas deliciosamente novas — eram novelas e biografias que convidavam à leitura. Além da janela ficava o jardim, uma comprida e estreita faixa gramada, marginada por uma profusão de margaridas e dálias possuindo todos os entrechocantes matizes do Balé russo.

Quando Hester voltou, Judith estava em pé junto à janela, folheando as páginas de um livro de lâminas coloridas de Van Gogh.

Ela ergueu os olhos, depois fechou o livro e tornou a depositá-lo em cima da mesa, junto com os outros.

—Nunca tive certeza quanto a apreciar Van Gogh ou não — disse.

— Ele é um pouco desconcertante, não? — Hester deixou a bandeja do café sobre uma banqueta de laca vermelha. — Entretanto, eu adoro seus céus turbilhonantes, seus trigais amarelos e seus azuis pálidos.

— Esta é uma sala encantadora. Bem diferente do que eu tinha imaginado.

Acomodando-se em uma confortável bergère, Hester riu.

— E o que você imaginava? Paninhos de crochê nos braços e encostos das cadeiras? Porcelana Príncipe Albert?

— Não isso exatamente, mas também não isso. Já comprou a casa como ela é agora?

— Não. Quando a comprei, era igual a todas as outras. Depois é que derrubei a parede. Também mandei fazer um banheiro.

— Deve ter sido muito rápida. Não está aqui há muito tempo.

— Eu já era dona da propriedade por cinco anos. Costumava vir para cá nos fins de semana, quando ainda trabalhava em Londres. Na época, não tive tempo de ficar conhecendo outras pessoas, porque estava sempre ocupada em arranjar construtores, pintores etc. Só quando me aposentei de fato é que pude instalar-me aqui e fazer amizades. Quer com leite e açúcar?

— Apenas leite, obrigada. — Judith pegou a xícara e o pires que Hester estendia e foi sentar-se na borda do sofá. — Você tem coisas tão fascinantes! E os livros. Tudo, enfim.

— Sempre fui colecionadora. Os leões chineses são herança de um tio; a tela, comprei em Paris; as taças, eu as colecionei durante anos. E minha escultura é uma Barbara Hepworth. Não é espantoso? Como as cordas de algum instrumento maravilhoso.

— E os seus livros.

— São muitos livros. Aliás, livros demais. Por favor, sempre que quiser, peça emprestado. Desde que, naturalmente, os traga de volta.

— Eu gostaria que me emprestasse alguns. E traria tudo de volta.

— Fica evidente que você é uma leitora inveterada. Uma garota bem do meu gênero. De que mais gosta, além de pintura e livros?

— De música. Tio Bob apresentou-me à música. Depois disso, comprei uma vitrola e agora tenho uma razoável coleção de discos. Eu os adoro. A gente pode escolhê-los, segundo o estado de ânimo do momento.

— Você vai a concertos?

— Não há muitos concertos em West Penwith, e dificilmente eu iria a Londres.

— Morando aqui, é do que sinto falta. E do teatro. Fora isso, não sinto realmente falta de mais nada. Estou muito satisfeita.

— Foi muita gentileza sua dizer que eu poderia vir para aprender a taquigrafar e datilografar.

— Gentileza nenhuma. Isso manterá meu cérebro funcionando e é uma mudança de fazer palavras-cruzadas. Tenho tudo preparado na sala de refeições. Para datilografar, você precisa de uma mesa boa e firme. Penso que três horas por dia serão suficientes, não? Digamos, de nove ao meio-dia? E teremos folga nos fins de semana.

— Você manda.

Hester terminou seu café e largou a xícara na mesa. Levantou-se.

— Pois então, venha — disse. — Vamos começar.

Em meados de outubro, com seis semanas de guerra, ainda não havia acontecido muita coisa; nenhum tipo de invasão, qualquer espécie de bombardeio e nem batalhas na França. Entretanto, os horrores da destruição da Polônia mantinham todos grudados a seus aparelhos de rádio ou seguindo os terríveis relatos que apareciam nos jornais. Em comparação com o espantoso sofrimento e a carnificina que aconteciam na Europa ocidental, as pequenas inconveniências e privações da vida diária eram quase bem-vindas, enrijecendo a coluna e dando um senso de objetivo aos sacrifícios mais triviais.

Em Upper Bickley, um destes havia sido a partida da sra. Lapford, que fora prestar serviços na cantina de sua fábrica.

Biddy jamais fervera um ovo em toda a sua vida. Entretanto, Judith passara um bom tempo em cozinhas, vendo Phyllis preparar pudins de semolina e bolos decorados, amassando batatas para a sra. Warren e ajudando a preparar os gigantescos chás que faziam tanta parte na vida diária em Porthkerris. Em Nancherrow, a sra. Nettlebed sempre acolhera com satisfação qualquer ajuda na preparação de geléias e doces de laranja, sendo grata a quem se oferecesse para bater os ovos com açúcar para um fofo bolo-esponja, até a mistura ficar cor de creme. Entretanto, era esse o limite da experiência de Judith. Seja como for, a necessidade é que faz o sapo saltar, como diz o ditado. Ela encontrou um velho livro de receitas Good Housekeeping, vestiu um avental e assumiu a cozinha. No início, foram muitos os bifes queimados e galinhas quase cruas, mas depois de algum tempo ela começou a dominar melhor a matéria, chegando inclusive a fazer um bolo de sabor nada desagradável, embora as passas e cerejas tivessem afundado na forma como pedaços de chumbo.

Outro inconveniente era que todos os comerciantes de Bovey Tracey — o açougueiro, o merceeiro, o verdureiro, o peixeiro — sem exceção, suspenderam suas entregas. Explicaram que era por causa do racionamento da gasolina, de maneira que seus fregueses compreenderam e compraram enormes cestas, além de sacolas tecidas em barbante, que enchiam de compras e levavam para casa. O incômodo não era demasiado, porém exigia um tempo enorme, e a subida da ladeira até Upper Bickley, carregando um peso mais apropriado para burros de carga, era simplesmente exaustiva, para não se dizer o pior.

Além disso, começava a fazer frio. Tendo passado tanto tempo em Nancherrow, onde o aquecimento central só era desligado quando o calor da primavera já se fazia sentir, Judith tinha esquecido o que significava sentir frio. Sentir frio fora de casa era normal, porém sentir frio dentro dela tornava-se um sofrimento atroz. Upper Bickley não possuía aquecimento central. Dois anos atrás, quando ela tinha vindo passar o Natal, lareiras foram acesas nos quartos e o boiler permanecia aceso, com água quente a qualquer momento, nas vinte e quatro horas do dia. Agora, no entanto, elas tinham que ser parcimoniosas com o combustível, e somente era acesa a lareira da sala de estar, porém apenas depois do almoço. Biddy não parecia sentir o frio. Afinal de contas, tinha sobrevivido em Keyham Terrace, que Judith recordava como o lugar mais frio do mundo em que jamais estivera. Talvez ainda mais frio do que o Ártico. E quando o inverno ganhasse força total, Upper Bickley provavelmente estaria com temperatura idêntica. Erguida na encosta da montanha, a casa enfrentava o ataque cortante do vento leste, com janelas e portas antigas que se encaixavam mal nos batentes, deixando penetrar toda espécie de rajadas. Judith antevia sem muito entusiasmo a perspectiva dos meses longos e escuros, sentindo-se grata por Mary ter-lhe enviado, de Nancherrow, uma enorme caixa de embalar vestidos (etiquetada com o nome ”Hartnell’s”) cheia de suas mais quentes roupas de inverno.

Sábado, quatorze de outubro. Judith acordou e sentiu em seu rosto o ar gelado que entrava pela janela aberta. Abrindo mais os olhos, ela viu um céu cinzento e os galhos mais altos da faia ao pé do jardim já dourados de folhas castanho-avermelhadas. Logo elas começariam a cair. Haveria muita varredura do jardim, muitas folhas queimadas e, eventualmente, a árvore terminaria despida de sua folhagem.

Judith ficou quieta na cama e pensou que se a situação não tivesse marchado como marchara, se não houvesse guerra e se ela não tomasse aquela enorme decisão, a esta altura, neste exato momento, estaria em um navio da P & O, no golfo de Biscaia, sendo jogada de um lado para o outro em seu beliche e, provavelmente, experimentando as primeiras náuseas da viagem marítima. Ainda assim, a caminho de Cingapura. Por um ou dois momentos, ela se permitiu sentir uma saudade pungente da própria família. Parecia-lhe estar destinada a sempre morar na casa de outras pessoas, embora muito hospitaleiras, mas a verdade é que, às vezes, ela meditava em tudo que estava perdendo. Imaginou a passagem do navio pelo estreito de Gibraltar, a fim de em seguida penetrar no azul Mediterrâneo, em um esquecido mundo de perpétua claridade solar. Depois o canal de Suez e o oceano Índico, com o Cruzeiro do Sul a cada anoitecer subindo um pouco mais alto, no céu azulado como uma pedra preciosa. E recordou como, à aproximação de Colombo, havia um cheiro pairando no ar, muito antes da mancha que era o Ceilão surgir no horizonte — e era um cheiro de especiarias, de frutas e de cedro, que o vento cálido empurrava para o mar.

Enfim, não era sensato ficar imaginando, e inconcebível lamentar. Seu quarto estava frio. Levantando-se, ela foi fechar a janela contra a manhã brumosa, fazendo uma pequena pausa para desejar que não chovesse. Em seguida vestiu-se e desceu para o andar de baixo.

Já encontrou Biddy na cozinha, um fato incomum, porque geralmente era Judith quem descia primeiro. Biddy estava envolta em seu robe e fervia uma chaleira para o café.

— Por que levantou tão cedo e tão disposta?

— Morag acordou-me. Gania sem parar. Fiquei surpresa por vocênão ter ouvido. Desci e a deixei sair, mas ela apenas fez suas necessidades e voltou rapidamente para dentro.

Judith olhou para Morag, enrodilhada em sua cesta, com uma expressão sentimental nos olhos de cores desencontradas.

— Será que ela está doente? — aventurou.

— A verdade é que não está demonstrando a alegria costumeira. Talvez esteja com vermes.

— Não diga semelhante coisa!

— Provavelmente vamos ter de levá-la ao veterinário. O que vai querer para o breakfast?

— Acho que estamos sem bacon.

— Nesse caso, teremos ovos cozidos.

Durante o breakfast as duas discutiram, um tanto desanimadas, de que maneira passariam o sábado. Judith disse que precisava descer até Bovey Tracey, a fim de devolver um livro emprestado por Hester Lang, e aproveitaria para fazer as compras. Biddy apoiou sua idéia, porque pretendia escrever cartas. Então, acendendo um cigarro, pegou o bloco de anotações e começou a compor a inevitável lista de compras. Bacon e ração de cães para Morag, uma peça de carneiro para o almoço do domingo, papel sanitário, sabonetes Lux.

—. e você poderia passar também pela loja de lãs e me comprar meio quilo de lã impermeabilizada?

Judith olhou atônita para ela.

— O que vai fazer com meio quilo de lã impermeabilizada?

—Estou farta de minha tapeçaria idiota. Falei que ia voltar ao tricô. Vou tricotar meias de marinheiro para Ned.

— Eu não sabia que você tricotava meias.

— Nunca fiz nenhuma, mas encontrei uma receita formidável no jornal. São chamadas de meias em espiral. Agente simplesmente tricota em círculo, sempre e sempre, nunca tendo de montar um calcanhar ou mudar de agulha para uma carreira seguinte de pontos. Assim, quando Ned fizer um grande buraco na meia, basta girá-la, e o buraco vai parar no peito do pé.

— Tenho certeza de que ele vai adorar isso.

—Há uma outra receita para um capuz balaclava. Talvez você pudesse fazer um capuz balaclava para Ned. Manteria as orelhas dele aquecidas.

— Obrigada, mas no momento eu já tenho o suficiente para fazer, praticando com as panelas. Escreva ”lã” no final da lista, e verei se consigo arranjar alguma. E será bom acrescentar também um conjunto de agulhas.

A manhã de sábado em Bovey Tracey era um pouco semelhante ao Dia de Mercado em Penzance: o lugar ficava apinhado de moradores dos arredores, pessoas que vinham de aldeias remotas e propriedades nas charnecas, com a finalidade de comprar os suprimentos da semana. Eles enchiam as calçadas estreitas com cestas e cadeiras dobráveis, conversavam parados nas esquinas, entravam em fila para serem servidos no açougue e na mercearia, enquanto isso trocando mexericos e notícias da família, só baixando a voz para falar de doenças ou do possível falecimento da tia Gert de alguém.

Tudo isso significava levar-se muito mais tempo do que o normal, e já eram onze horas quando Judith, carregando uma cesta volumosa e uma sacola de redinha, seguiu para a casa de Hester Lang e apertou a cigarra da porta.

—Judith.

— Sei que é sábado, e não estou aqui para fazer taquigrafia. Vim apenas devolver o livro que você me emprestou. Terminei de ler esta noite.

— É um prazer vê-la. Entre e tome uma xícara de café.

O café de Hester era sempre particularmente delicioso. Sentindo o cheiro da bebida fresca e recém-coada que evolava da cozinha, não foi preciso muita insistência para fazê-la entrar. Judith depositou suas cestas no chão do estreito corredor e tirou o livro do bolso espaçoso de seu casaco.

— Eu quis trazê-lo em seguida, antes que se sujasse ou que Morag o mastigasse.

— Pobre cachorra. Tenho certeza de que nunca faria nada tão maldoso. Vá e coloque-o no lugar. Pegue outro, se tiver vontade. Trarei o café em um minuto.

O livro que ela levara intitulava-se Grandes Esperanças, sendo um de uma coleção completa de volumes encadernados em couro, da autoria de Charles Dickens. Judith entrou na sala de estar (mesmo em uma manhã cinzenta, ali havia luz e aconchego), e colocou o livro de volta em seu lugar. Estava lendo os títulos com satisfação e tentando decidir que livro tomaria emprestado agora, quando ouviu o telefone começando a tocar no vestíbulo. Depois percebeu os passos de Hester, aproximando-se para atender. Através da porta, que continuava inteiramente aberta, pôde ouvir a voz dela.

— Aqui é oito-dois-seis. Hester Lang falando.

Talvez nada de Dickens agora. Provavelmente algo contemporâneo. Judith retirou o livro A Tempestade Mortal, de Phyllis Bottome, e começou a ler a apresentação na orelha da contracapa, em seguida passando a folhear as páginas ao acaso.

O telefonema continuava. Hester respondia, entre longos silêncios, e sua voz baixara para um leve murmúrio. ”Sim”, Judith a ouviu dizer, ”Sim, é claro.” Depois, outro silêncio. De pé e sozinha, na sala de estar, ela esperou.

Por fim, quando começava a pensar que Hester nunca viria ao seu encontro, o telefonema chegou abruptamente ao fim. Ela ouviu o toque único do fone sendo recolocado, fechou o livro e olhou para a porta. Entretanto, Hester não veio imediatamente. Quando apareceu, havia uma quietude em torno dela, uma compostura deliberada, como se houvesse feito uma pausa para pôr-se em ordem de algum modo.

Ela nada disse. Os olhos de ambas encontraram-se, através do comprido aposento. Judith largou o livro. Perguntou:

— Há algo errado?

—Era. —A voz de Hester extinguiu-se. Ela procurou controlar-se e recomeçou a falar, agora em seu costumeiro tom sossegado e equilibrado. — Era uma ligação do Capitão Somerville. Aquilo era surpreendente.

— De tio Bob? Por que ele ligou para você? Não conseguiu falar para Upper Bickley? O telefone ontem funcionava perfeitamente.

— Isto nada tem a ver com o telefone. Ele queria falar comigo. — Ela fechou a porta e foi sentar-se em uma pequena cadeira de encosto dourado. —Aconteceu algo simplesmente terrível.

A sala estava quente, mas Judith sentiu frio de repente. Como um peso, um senso de fatalidade comprimiu-lhe o estômago.

— O que aconteceu?

— Ontem à noite. um submarino alemão abriu uma brecha nas defesas de Scapa Flow. A maioria da Frota Metropolitana estava no mar, porém o Royal Oak continuava lá, no porto, ancorado. Foi torpedeado, perdido. Afundou muito depressa. Adernou. três torpedos. Os homens que estavam abaixo dos conveses não tiveram a menor possibilidade de escapar.

O navio de Ned. Oh, mas não Ned. Ned estava bem. Ned teria sobrevivido.

—. acredita-se que quatrocentos homens da tripulação do navio estejam a salvo. a notícia ainda não transpirou. Bob disse que preciso contar a Biddy, antes que ela a ouça pelo rádio. Quer que eu vá lá e lhe conte. Ele não suportaria contar-lhe, por telefone. Tenho que ir e dizer a ela.

A voz de Hester extinguiu-se pela segunda vez. Sua mão lindamente manicurada se ergueu para enxugar lágrimas que ainda nem tinham sido derramadas.

— Fico comovida por ele ter pensado em mim, mas preferiria que tivesse feito tal pedido a qualquer outra pessoa no mundo.

Ela não tinha chorado. Não ia chorar.

Judith engoliu em seco, depois forçou-se a perguntar:

— E Ned?

Hester meneou a cabeça.

— Oh, minha querida menina, eu sinto tanto, tanto.

E foi só então que a verdade — permanecendo à espera, sempre lá — finalmente a atingiu, e Judith soube que Hester Lang lhe dizia que Ned Somerville estava morto.

Upper Bickley 25 de outubro de 1939

Prezado Coronel Carey-Lewis

Fico-lhe imensamente grata por sua carta tão gentil a respeito de Ned. O momento tem sido de grande sofrimento, mas Biddy agradece as cartas que recebe e as lê todas. Entretanto, sente-se incapaz de respondê-las.

Após o afundamento do Royal Oak, tio Bob ficou impossibilitado de vir imediatamente e ficar com ela, já que estava em Scapa Flow, e também pela crise do ataque e suas conseqüências. Entretanto, na semana passada ele veio em casa por dois dias; foi realmente terrível, porque tentava consolar Biddy, enquanto o tempo inteiro se sentia tão perdido e abalado quanto ela. Tio Bob agora já retornou a Scapa Flow, e estamos sozinhas outra vez.

Vou passar o inverno aqui. Quando chegar a primavera, tornarei a pensar no que fazer, mas é evidente que não posso abandonar Biddy, agora que tanto sofre. Ela tem uma cadela chamada Morag, que ganhou de Ned, porém não sei dizer se o animal representa agora um conforto ou uma triste recordação. Minha própria tristeza é pensar que nenhum de vocês chegou a conhecer Ned e que nenhum poderá conhecê-lo. Ele era uma pessoa muito especial e imensamente querida.

Por favor, dê lembranças minhas a todos e, mais uma vez, obrigada por sua carta.

Da sempre amiga, Judith

Nancherrow 1 de novembro de 1939

Querida Judith

Ficamos todos imensamente tristes pela morte de seu primo Ned. Levei dias pensando em você e desejaria poder estar ao seu lado. Mamãe disse que se quiser trazer sua tia Biddy para cá por uns dias, apenas para uma mudança de ambiente, ela ficaria muito feliz em recebê-las. Por outro lado, contudo, talvez sua tia deseje ficar em sua própria casa, cercada pelo que lhe é familiar.

Papai disse que a entrada do submarino alemão em Scapa Flow foi uma verdadeira façanha náutica, mas não consigo pensar em uma só coisa agradável para dizer a respeito de alemães, e acho que ele está sendo magnânimo demais.

Se eu lhe contar algumas novidades, não vá imaginar que o acontecido aqui é mais importante do que Ned ter sido morto.

Em primeiro lugar, Athena está em casa e vai ter um bebê. Rupert foi para o estrangeiro, com seu regimento e seus cavalos; sem ele, o Hotel Caledonian perdeu o encanto, de modo que ela voltou para casa. Acho que ele retornou à Palestina.

O bebê chega em julho.

Gus está na França, com a Divisão Highland e a Força Expedicionária Britânica. Tenho escrito muito para ele, e recebo carta pelo menos uma vez por semana. Ele me mandou uma foto, vestido com seu kilt, e o achei simplesmente maravilhoso.

Vi Heather Warren outro dia, em Penzance. Está aprendendo taquigrafia e datilografia em Porthkerris, e pretende empregar-se no Ministério das Relações Exteriores ou em alguma espécie de Serviço Civil. Pediu-me para dizer a você que irá escrever-lhe, assim que tiver um momento livre; disse ainda que Charlie Lanyon está na ILDC —a Infantaria Ligeira do Duque de Cornualha —e que também foi para a França. Ignoro quem seja Charlie Lanyon, mas ela disse que você saberia. Outro que se juntou à ILDC foijoe Warren, mas Paddy continua pescando.

Edward não escreve, mas telefona de vez em quando e temos de falar bem depressa, porque só lhe são permitidos três minutos, e logo o telefone dá um sinal, sendo interrompida a ligação. Parece muito satisfeito da vida e pilota um dos novos aviões, aqueles chamados Spitfires. Seria ótimo se ele pudesse vir em casa para o Natal, porém acho que não virá.

As galinhas chegaram, estão todas presas no cercado no final do gramado, onde fazem a maior confusão. Elas têm pequeninas casas de madeira com caixas formando ninhos e portinholas que se fecham à noite, para impedir a entrada da esperta sra. Raposa. Ainda não começaram a pôr, mas assim que começarem, espero que consigamos viver à custa de ovos.

Está ficando terrivelmente frio. Papai está firme e severo sobre o aquecimento central; as cobertas contra a poeira já foram colocadas sobre os móveis da sala de estar, e o candelabro foi todo amarrado e colocado dentro de um saco, para não juntar poeira. O lugar agora ficou com a aparência um tanto esquisita, mas a sala de estar menor é muito mais aconchegante.

O sr. Nettlebed tornou-se um vigilante antiaéreo. Isto significa que, se ele esquecer de fazer o black-out ou se uma réstia de luz aparecer, então terá de acusar-se de negligência e comparecer ao tribunal, para ser multado. Ha, ha!

Outro inesperado vigilante antiaéreo é Tommy Mortimer, mas ele está em Londres, claro. Não pôde ser aceito para lutar, por causa da idade e dos pés chatos (eu nem sabia que ele os tinha), de maneira que presta serviços na Defesa Civil. Esteve aqui para um fim de semana, e nos explicou tudo a respeito. Disse que, em caso de bombardeio aéreo, terá de permanecer em cima do teto do Mortimer’s, em Regent Street, com um balde d’água e uma bomba movida com o pé. Se o Mortimer’s for bombardeado, você acha que haverá anéis de diamantes espalhados pela calçada?

Mamãe está bem e adorando ter Athena conosco. As duas dão rísadinhas folheando a Vogue, exatamente como sempre fizeram, e estão tentando tricotar roupinhas de bebê.

Um monte de abraços. Venha e fique, se quiser. Beijos, Loveday

UpperBicley Sábado, 30 de dezembro

Queridos mamãe e papai

Já estamos quase no fim do ano e isso me alegra. Muito obrigada por meu presente de Natal, que chegou no começo do mês, mas que esperei para abrir somente no Dia de Natal. É uma bolsa de mão maravilhosa, e justamente o que eu estava precisando. Adorei também o corte de seda, que pretendo transformarem uma saia para noite, quando encontrar alguém que possa costurá-la de modo realmente profissional. A cor é simplesmente deslumbrante. E agradeçam ajess, por favor, pelo calendário que ela própria confeccionou; digam-lhe que os macacos e elefantes estavam muitíssimo bem desenhados.

Aqui ficou subitamente muito frio, a neve cobre Dartmoor por completo — inclusive a estrada — por todos os lados vemos sombras azuladas, e os tetos das casas agora ganharam uma espécie de grossos chapéus de neve. A aparência de Bovey Tracey mostra certa semelhança com as gravuras de O Alfaiate de Gloucester. Todas as manhãs levamos feno para os pôneis que descem a colina e vêm abrigar-se do vento atrás do muro, e sair com Morag para um passeio equivale a uma voltinha pelo Pólo Sul. A temperatura dentro de casa não fica muito atrás — embora não tão frígida como em Keyham, é quase a mesma coisa. Estou escrevendo esta carta sentada na cozinha, por ser aqui o lugar mais quente da casa. Estou usando duas grossas blusas de frio.

Tio Bob veio em casa para quatro dias durante o Natal, mas já partiu de novo. Eu receava um Natal sem Ned, porém Hester Lang veio em nosso socorro e convidou-nos para almoçar em sua casa. Não tivemos uma árvore, enfeites, absolutamente nada, a fim de que o dia transcorresse como um dia comum. Hester hospedava um casal de Londres, os dois já bastante idosos, mas muito cultos e interessantes. A conversa durante o almoço não versou sobre a guerra, mas sobre coisas como galerias de arte e viagens pelo Oriente Médio. Creio que ele era arqueólogo.

Judith aqui fez uma pausa, largou a caneta e soprou os dedos entorpecidos e gelados, perguntando-se se valeria a pena preparar logo um bule de chá. Eram quase quatro horas, porém Biddy e Morag ainda não tinham voltado de seu passeio. Além da janela da cozinha, o jardim obscurecido avançava para a charneca mais acima, estando congelado e branco de neve. O único verde à vista eram os galhos escuros dos pinheiros, sacudidos pelo vento leste que soprava do mar. Quanto a sinais de vida, havia somente um, o que provinha do tordo bicando nozes, no saco pendurado por Judith à mesa dos pássaros.

Olhando para o tordo, ela pensou neste triste e cinzento Natal de agora, ao qual de um modo ou de outro tinham conseguido sobreviver, graças também à ajuda de Hester. Então, permitindo-se o luxo de uma onda de nostalgia, recordou o último Natal, e evidentemente recordou Nancherrow, com toda a encantadora casa cheia de convidados, com luzes e risos por toda parte. Enfeites cintilantes, o cheiro de pinheiro que se desprendia da árvore de Natal, os presentes empilhados sob seus galhos estendidos.

E sons. Canções natalinas entoadas no culto matinal na Igreja de Rosemullion; panelas entrechocando-se na cozinha da sra. Nettlebed, enquanto ela preparava montanhas de comida deliciosa; valsas de Strauss.

Lembrou-se de quando se vestira para o jantar em seu lindo quarto rosa, entontecida de excitamento; evocou o perfume da maquiagem e a sensação sedosa, no momento em que seu primeiro vestido de gala para adulta lhe deslizou por sobre a cabeça. Depois, ao cruzar a porta aberta da sala de estar, com Edward vindo tomá-la pela mão e dizendo-lhe ”Vamos beber champanha”.

Há um ano, um ano somente. Entretanto, já outra época, outro mundo. Suspirando, ela pegou a caneta e prosseguiu com sua carta.

Biddy está bem, mas ainda incapaz de lidar com muita coisa. É uma situação um tanto difícil, porque continuo passando as manhãs com HesterLang, tendo aulas de datilografia e taquigrafia, mas Biddy freqüentemente não se levanta na hora em que saio de casa. Claro que a sra. Daggs chega, de modo que ela não fica sozinha, mas tem-se a impressão de que Biddy perdeu o interesse em tudo. Ela não quer fazer nada e nem ver seja quem for. As amigas telefonam, porém Biddy nem pensa em sair para jogar brídge, inclusive ficando aborrecida, se alguma delas aparece para visitá-la.

A única pessoa que se recusa a ser posta de lado é Hester Lang, e creio que somente ela conseguirá fazer Biddy retornar ao seu círculo de amizades — não sei o que faríamos sem ela! É uma mulher muito sensata e gentil. Sobe até Upper Bickley quase todos os dias, sempre a pretexto de alguma coisa, e acho que planeja uma partida de brídge para a semana que vem, insistindo em que Biddy tome parte. Realmente, já é hora dela começar novamente a ter contato com as pessoas. Neste momento está fora, com Morag e, tão logo chegue, eu lhe farei uma xícara de chá.

Biddy nada fala sobre Ned e tampouco eu, porque acho que ela ainda não suportaria. A situação certamente ficará melhor quando Biddy mostrar interesse por um trabalho na Cruz Vermelha ou coisa parecida. É uma pessoa dinâmica demais para ficar sem fazer algo pelo esforço de guerra.

Espero que tudo isto não os deixe deprimidos; de nada adiantaria eu lhes dizer que Biddy está ótima, porque não é verdade. Entretanto, estou certa de que dentro em breve ela se sentirá melhor. De qualquer modo, por enquanto ficarei aqui, fazendo-lhe companhia. Temos uma excelente convivência, portanto, não devem ficar preocupados com nenhuma de nós.

Depois de amanhã será 1940, dia de Ano Novo. Sinto imensamente a falta de vocês, e às vezes desejaria estar aí, mas em vista de tudo o que aconteceu, sei que tomei a decisão certa. Pensem no quanto ficaríamos preocupados, sabendo que Biddy estaria aqui sozinha.

Preciso parar, porque estou congelando. Vou descer, ajeitar os troncos na lareira da sala de estar, fechar as cortinas do black-out, enfim, abafar a casa. Biddy e Morag estão voltando, posso vê-las na trilha que sai do portão. Teremos que limpar a neve que a cobre e depois cobri-la com as cinzas do boiler, a fim de que o pobre carteiro (que anda por todo lado) consiga entregar as cartas sem quebrar a perna.

Mil beijos e abraços para todos vocês. Tornarei a escrever no ANO QUE VEM.

Judith

 

                               1940

Em fins de março, após o inverno mais frio que a maioria das pessoas podia recordar, o pior da neve e do gelo finalmente desaparecera e apenas traços ao acaso permaneciam em Dartmoor, presos em valas onde não batia o sol ou empilhados contra a parte mais exposta dos muros de pedra. À medida que os dias alongavam-se, o vento cálido do oeste deixava o ar suave, as árvores exibiam brotos e os pássaros retornavam às suas moradas do verão; as prímulas selvagens salpicavam as altas sebes de Devon e, no jardim de Upper Bickley, os primeiros narcisos ofereciam seus topos amarelos à brisa.

Em Nancherrow, na Cornualha, a casa estava cheia de sofisticados refugiados de Londres que abandonavam a cidade e chegavam para passar a Páscoa. Tommy Mortimer surripiou uma semana de folga de seu trabalho na Defesa Civil, onde lidava com a bomba portátil de água contra pequenos incêndios, e Jane Pearson trouxe os dois filhos para ficarem o mês inteiro. O marido de Jane, o sólido e bem-intencionado Alistair, estava agora no Exército, e na França. A babá das crianças, mais jovem do que se poderia imaginar, voltara à enfermagem e dirigia uma enfermaria cirúrgica em um hospital militar no sul de Gales. Na falta da babá, Jane empreendera ousadamente a viagem de trem até Penzance, contando apenas consigo mesma para distrair e disciplinar sua prole, porém mal chegara, passara as duas crianças aos cuidados de Mary Millyway. Agora, enrodilhada em um sofá, ela bebericava um gim com laranja, conversava com Athena e fazia confidências. Ainda morava em sua casinha da Lincoln Street e se divertia tanto, que não tinha quaisquer planos para deixar Londres. Nunca tivera uma vida social tão movimentada, saindo da cidade e almoçando no Ritz ou no Berkeley com garbosos comandantes da aviação ou jovens oficiais dos Guardas.

—E quanto a Roddy e Camilla? — perguntou Athena, quase como se eles fossem cachorrinhos e também quase esperando Jane responder que simplesmente os deixava em canis.

— Oh, minha diarista fica com eles — retrucou Jane com volubilidade. — Quando ela não pode, eu os deixo com a empregada de minha mãe. — Depois acrescentou: — Minha querida, eu preciso lhe contar. Foi tão excitante... — E começou a relatar mais um sensacional encontro com alguém.

Todos estes hóspedes ocasionais traziam consigo seus cartões de racionamento de emergência, para a compra de manteiga, bacon, toucinho e carne, mas Tommy ainda levou uma provisão os improváveis petiscos de antes da guerra, todos eles da casa Fortnum & Mason. Faisão recheado, castanhas de caju recobertas de chocolate, chá perfumado e minúsculos potes de caviar de beluga

Ao ver tão variadas dádivas sendo colocadas sobre sua mesa da cozinha, a sra. Nettlebed comentou - para quem quisesse ouvir que era uma pena o sr. Mortimer não ter conseguido arranjar um decente pernil de porco.

A criadagem de Nancherrow estava agora bastante diminuída. Nesta e Janet haviam partido, um tanto excitadas, para vestir uniforme, fabricar munições e dar a sua contribuição ao esforço de guerra. Pearson e o segundo jardineiro também tinham sido convocados, e o único substituto a ser encontrado fora Matty Pomeroy, um idoso aposentado residente em Rosemullion, que todas as manhãs aparecia em uma rangente bicicleta e trabalhava a passos de tartaruga.

Hetty, naturalmente, nova demais para ser de grande utilidade a alguém, continuava na copa, quebrando pratos e deixando a sra. Nettlebed fora de si. Agora, no entanto, todos os hóspedes tinham de colaborar, fechando suas próprias cortinas de black-out, arrumando as camas em que dormiam e oferecendo-se para lavar pratos e carregar lenha. As refeições continuavam sendo servidas com certa formalidade na sala de refeições, porém a sala de estar permanecia fechada, com seus móveis cobertos por protetores de poeira. O melhor da prataria havia sido limpo, envolto em sacos de camurça, e tudo fora cuidadosamente guardado, assim devendo permanecer por todo o tempo que durasse a guerra. Aliviado da tediosa tarefa de limpar a prata, algo que anteriormente ocupava grande parte do seu dia, Nettlebed aos poucos começou a esgueirar-se imperceptivelmente para fora de casa. Foi uma progressão gradual, iniciada quando passou a escapar da cozinha, a fim de verificar se o velho Matty não estava vadiando atrás do galpão dos vasos de plantas, filando uns dez minutos para fumar seu fedorento cachimbo. Em seguida, ofereceu-se para montar um ou dois esteios de batatas para a sra. Nettlebed ou colher um repolho. Antes de muito tempo, ele próprio se incumbira de cuidar da horta, de planejar o que seria plantado e de fiscalizar Matty Pomeroy, tudo isso com a sua perfeição e competência costumeiras. Em Penzance, ele comprou um par de botas de borracha e, usando-as, cavou uma vala para plantar feijão-trepadeira. Aos poucos, suas feições graves e pálidas ficaram bastante queimadas de sol, e suas calças começaram a parecer um pouco folgadas. Athena jurava que, no fundo, Nettlebed era um filho do solo que pela primeira vez na vida descobria sua real vocação. Muito divertida, Diana decidiu ser algo chique ter um mordomo bronzeado de sol, desde que ele conseguisse escovar as unhas e limpá-las da terra, antes de servir a sopa.

Foi em meados destes feriados da Páscoa, na noite de oito de abril, que Lavinia Boscawen faleceu.

Ela morreu na própria cama, em seu quarto na Dower House. Tia Lavinia nunca se havia recuperado inteiramente da doença que deixara a família tão amedrontada e perturbada, mas sobrevivera tranqüilamente ao inverno, levantando-se todos os dias, sentando-se ao pé de sua lareira e tricotando meias cáqui diligentemente. Não sentiu qualquer indisposição ou qualquer espécie de dor. Uma noite, simplesmente foi para a cama como de hábito, adormeceu, e nunca mais acordou.

Foi Isobel quem a encontrou. A velha Isobel, como tantas vezes antes, subindo a escada para o andar de cima com a bandeja do chá matinal da sra. Boscawen (Earl Grey, com uma fatia de limão), batendo de leve à porta, para depois acordar sua senhora. Deixando a pequena bandeja em cima da mesa-de-cabeceira, ela foi abrir as cortinas e erguer as de black-out.

— Faz uma linda manhã — observou, porém não houve resposta.

Ela se virou.

—Faz uma linda. — repetiu, mas ainda dizia as palavras e já sabia que não ia haver qualquer espécie de resposta.

Lavinia Boscawen jazia quieta, a cabeça sobre o travesseiro macio exatamente na posição em que fora dormir. Os olhos estavam fechados, e ela parecia anos mais jovem, havia placidez em sua fisionomia Idosa e versada, nos caminhos da morte, Isobel apanhou no toucador um espelho de mão engastado em prata e o manteve perto dos lábios da sra. Boscawen. Não houve nenhuma respiração, nenhum movimento. Imobilidade. Isobel largou o espelho e cobriu delicadamente o rosto da sra. Boscawen com o lençol de linho bordado. Depois arriou a persiana e desceu para o térreo. No saguão, com alguma relutância porque sempre detestara o horrendo instrumento, ela ergueu o fone encostou-o ao ouvido e pediu à telefonista que a pusesse em contato com Nancherrow.

Dispondo a mesa para o breakfast na sala de refeições, Nettlebed ouviu o telefone tocar no estúdio do coronel. Olhou de relance para o relógio, viu que faltavam vinte minutos para as oito, colocou um garfo precisamente em seu lugar, e foi atender à chamada.

— Nancherrow.

— Sr. Nettlebed!

— É ele mesmo quem fala.

—Aqui é Isobel. Da Dower House. Sr. Nettlebed. a sra. Boscawen está morta. Morreu dormindo. Eu a encontrei esta manhã. O coronel está em casa?

— Ele ainda não desceu, Isobel. —Nettlebed franziu o cenho. — Tem certeza do que está dizendo?

— Certeza absoluta. Não sai a menor respiração dos lábios dela. Está tranqüila como uma criança. A querida senhora.

— Você está sozinha, Isobel?

— É claro que estou. Quem mais estaria aqui?

— E você está bem?

— Eu preciso falar com o coronel.

— Vou chamá-lo.

— Fico esperando.

— Não. Não espere. Ele ligará para você. Apenas fique perto do telefone, para ouvi-lo tocar.

— Não há nada errado com minha audição.

- Tem certeza de que você está bem?

Isobel não respondeu.

Basta dizer ao coronel que ligue para mim o quanto antes — disse bruscamente, e desligou.

Nettlebed recolocou o telefone no gancho e ficou olhando para ele durante um ou dois momentos. A sra. Boscawen, morta. Depois de um instante, exclamou, em voz alta:

Que confusão!

Depois, em seu jeito sem pressa, saiu da sala e subiu para o andar de cima. Encontrou o coronel no banheiro, fazendo a barba. Ele usava um robe de lã macia por sobre o pijama listrado, calçava chinelos e tinha uma toalha em volta do pescoço. Já barbeara um lado do rosto, porém o outro continuava cheio da alva espuma perfumada e, em pé sobre o capacho do banheiro, empunhava sua afiada navalha, enquanto ouvia o noticiário no rádio portátil, que colocara sobre o tampo de mogno do vaso sanitário. Aproximando-se, Nettlebed ouviu os tons graves e comedidos do locutor noticiarista da BBC. Quando pigarreou discretamente e bateu na folha da porta aberta, o coronel se virou para vê-lo, ergueu a mão pedindo silêncio, e os dois homens ouviram juntos o boletim da manhã. Notícias graves. Tropas alemãs haviam penetrado na Dinamarca e Noruega, durante as primeiras horas da madrugada. Três navios para o transporte de tropas tinham entrado no porto de Copenhague enquanto outros portos e ilhas eram ocupados, e agora Skagerrak e Kattegat, as vitais passagens para o mar, estavam sob controle inimigo. Na Noruega, a marinha alemã desembarcara tropas em todos os portos do país, indo até Narvic, no extremo norte. Um destróier inglês havia sido afundado.

O coronel inclinou-se e desligou o rádio. Depois, endireitando o corpo, virou-se para o espelho e continuou a fazer a barba. Seus olhos encontraram os de Nettlebed através do cristal.

- Bem — falou — isto é o começo.

Sim, senhor. É o que parece. Sempre o elemento surpresa. Não obstante, por que deveríamos ficar surpresos?

- Não faço a menor idéia, senhor. —Nettlebed hesitou, relutando em semelhante momento. Entretanto, era preciso. — Lamento perturbá-lo, senhor, mas receio ser portador de notícias ainda mais tristes. —Shrap! fez a navalha afiadíssima, deixando uma faixa de pele limpa na face cheia de espuma. — Isobel acabou de telefonar, senhor da Dower House. A sra. Boscawen faleceu. Esta noite, enquanto dormia. Isobel a encontrou esta manhã, e telefonou imediatamente. Eu lhe disse que o senhor telefonaria para lá, e ela está esperando, ao lado do telefone.

Nettlebed fez uma pausa. Após um instante, o coronel se virou e em seu rosto havia tal expressão de angústia, tristeza e perda, que Nettlebed chegou a sentir-se um assassino. Houve silêncio entre eles por um momento, e Nettlebed não conseguia encontrar palavras apropriadas para ocupá-lo. Então, o coronel balançou a cabeça.

— Oh, Deus, é tão difícil aceitar isto, Nettlebed!

— Eu sinto muitíssimo, senhor.

— Quando foi que Isobel ligou?

— Faltavam vinte para as oito, senhor.

— Descerei em cinco minutos.

— Perfeitamente, senhor.

—E, Nettlebed. poderia encontrar uma gravata preta para mim?

O telefone tocou em Upper Bickley, e Judith apressou-se em atender.

—Alô?

—Judith, aqui é Athena.

—Athena! Que surpresa!

— Mamãe me pediu que ligasse para você. Receio que seja uma notícia muito triste, mas, de certo modo, não chega a ser tão triste. Isto é, triste apenas para todos nós. Tia Lavinia morreu.

Aturdida, Judith não soube o que dizer. Estendeu a mão para uma desconfortável cadeira do vestíbulo e arriou o corpo no assento.

— Quando? —conseguiu finalmente perguntar.

— Na noite de segunda-feira. Ela foi dormir e não acordou mais. Não estava doente, não sentia nada. Estamos nos esforçando em pensar que assim foi melhor para ela, que não devemos ser egoístas, mas fica a impressão de que chegou o fim de uma era.

Ela soava muito controlada, muito adulta e conformada. Judith ficou surpresa. Antes, quando tia Lavinia estivera tão doente e deixara a família inteira tão assustada, Athena tivera ataques histéricos de choro ao ser informada, ficando em tal estado, que Rupert se vira forçado a trazê-la em seu carro através das terras agrestes da Escócia, até o oeste da Cornualha. Agora, no entanto... Talvez estar casada e grávida produzisse tal metamorfose, fazendo com que se portasse de maneira tão racional e objetiva. Enfim, Judith ficou grata por isso. Seria intolerável receber a notícia através de uma pessoa a quem as lágrimas mal permitissem falar.

— Eu sinto muito, Athena, sinto muitíssimo — respondeu. — Ela era uma pessoa tão especial, uma verdadeira parte de todos vocês... Devem estar transtornados.

— De fato estamos, estamos realmente.

— Sua mãe está bem?

— Sim. Até mesmo Loveday. Papai dirigiu-nos algumas palavras, dizendo que não devíamos pensar em nós, mas em tia Lavinia, que morreu em paz e tranqüila, não tendo que sofrer com os horrores desta guerra sangrenta. Tudo absolutamente terrível, não? Pelo menos, ela não lerá mais os jornais nem verá todos aqueles horríveis mapas e setas.

— Foi muita gentileza sua comunicar-me a notícia.

— Oh, querida Judith, é claro que tínhamos de contar para você! Tia Lavinia sempre a considerou uma do clã. E mamãe quer saber se virá para o funeral. Não é uma perspectiva muito agradável, mas se você vier, sua presença significará muito para todos nós.

Judith hesitou.

— Quando será o funeral?

— Terça-feira que vem, dia dezesseis.

— Todos... todos vocês estarão aí?

— É claro. Não faltará ninguém. Menos Edward, que está preso em seu aeroporto, suponho que à espera de derrubar bombardeiros alemães. Ele tentou conseguir uma licença por morte de familiar, mas estando a situação como está, seu pedido foi negado. Enfim, o resto de nós estará presente. Inclusive Jane Pearson, que se encontra aqui com seus filhos. Acho que Tommy Mortimer também virá. Que loucura, ele ficou uns dias conosco, depois teve que voltar para Londres, e agora fará a viagem inteira novamente! Aliás, todos nós temos perguntado: "Essa viagem dele seria realmente necessária?" Enfim, Tommy era muito apegado a tia Lavinia, embora ela sempre lhe servisse sherry, nunca o desejado gim.

Venha, Judith. E fique conosco. Está tudo pronto à sua espera. Nunca deixamos ninguém ocupar o seu quarto.

— Eu. eu terei que falar antes com Biddy.

— Sem dúvida ela ficará bem. Por outro lado, já é hora de tornarmos a ver você. Venha no domingo. Como chegará aqui? Virá dirigindo seu carro?

— Talvez eu devesse economizar minha gasolina.

— Então, pegue um trem. Iremos recebê-la em Penzance. A gasolina não chega a ser um grande problema, porque papai e Nettlebed têm alguns cupons a mais, por fazerem parte da Defesa Civil. Embarque no Riviera.

— Bem.

— Oh, venha, por favor! Estamos todos com saudades, e eu quero que você admire o meu volume. Todos lhe mandam lembranças. Loveday disse que tem uma galinha favorita, à qual deu seu nome. Preciso desligar, meu bem. Até domingo.

Judith procurou Biddy e explicou a situação.

— Eles querem que eu vá a Nancherrow. Que esteja lá para o funeral.

— Então, é claro que deve ir. Pobre senhora! Que tristeza! — Biddy olhou para Judith, parada à sua frente, mordendo o lábio. — Você quer ir?

— Sim, acho que quero.

— Parece vacilante. Edward estará lá?

— Oh, Biddy.

— Estará?

Judith balançou a cabeça.

— Não. Não conseguiu licença.

— Se ele estivesse, você quereria ir?

— Não sei. Provavelmente inventaria um pretexto qualquer.

— Meu bem, tudo aconteceu faz meio ano, e desde então você permaneceu aqui comigo, levando uma santa vida de freirinha. Não pode ficar atormentada por Edward Carey-Lewis pelo resto da vida.

De qualquer modo, tudo isto é hipotético, porque já disse que ele não estará lá. Portanto, vá. Esteja novamente com todos os seus amigos.

— Não me agrada deixá-la aqui sozinha. E sobre cozinhar refeições? Você não pode parar de alimentar-se.

—Nada disso vai acontecer. Vou comprar montanhas de coisas do padeiro e comerei frutas até enjoar. E agora que você já me ensinou, posso muito bem fazer um ovo cozido. A sra. Dagg me preparará uma sopa e, como sabe, adoro pão com margarina.

Judith, no entanto, continuou vacilante. Aparentemente, Biddy estava recuperada do golpe provocado pela morte de Ned. Instada por Hester, ela se juntara à Cruz Vermelha e, duas vezes na semana, ia à casa de Hester embalar artigos para as tropas na França. Além disso, recomeçara a jogar bridge e a ver velhas amizades. Não obstante, convivendo diariamente com ela, Judith sabia que algo de Biddy também morrera quando Ned se fora, isto não permitindo que conseguisse refazer-se da terrível perda de seu único filho. Em certos dias, quando o sol brilhava e havia uma fagulha no ar, um pouco de sua antiga vivacidade retornava e ela exibia uma de suas muito divertidas e repentinas observações; então, as duas davam risadas e, por um momento, era como se nada jamais houvesse ocorrido. Em outros dias, no entanto, ela era dominada pela depressão, ficava na cama e recusava-se a sair de lá, fumando cigarros demais e vigiando o relógio, para ver se já era hora de seu primeiro drinque do anoitecer. Judith sabia que muitas vezes Biddy era incapaz de resistir à tentação e saltava as horas. Assim, ao voltar de um passeio, ela encontrava a tia em sua poltrona, embalando o precioso copo com as duas mãos, como se sua própria vida dependesse daquela bebida.

— Eu não gostaria de deixar você sozinha — disse.

—Já lhe disse que terei a companhia da sra. Daggs. Além de Hester, no fim da rua, e de todas as minhas simpáticas senhoras da Cruz Vermelha. Não se falando em Morag. Ficarei muito bem. Por outro lado, você não pode ficar mofando aqui para sempre. Agora que já terminou suas aulas de datilografia e taquigrafia com Hester, de fato não há motivo para que fique aqui. Não desejo que vá embora, é claro, mas você nunca deve deixar de ir por minha causa. Encaremos a situação: eu preciso ser independente! Alguns dias sem você serão um bom treinamento para mim.

Desta maneira, Judith foi persuadida.

— Tudo bem — respondeu.

Sorriu, porque sua indecisão chegara ao fim e, com o encorajamento de Biddy, conseguira equilibrar sua mente hesitante. Então, imediatamente ficou tão excitada como se estivesse planejando um feriado o que não era o caso — e recordou que, mesmo ansiando tanto voltar a Nancherrow, permanecia o fato de que as duas pessoas mais especiais não iam estar lá. Tia Lavinia, porque tinha morrido, e Edward, por causa das exigências da guerra. Não. Mentira. Não devido às exigências da guerra. Edward estava irremediavelmente perdido para ela, por causa de sua própria ingenuidade e inexperiência. Ele saíra de sua vida para sempre e a única culpada disso era ela mesma.

Mas. Sim, havia um enorme "mas". Nancherrow era constante, e ela ia voltar, retornar àquele lugar de conforto, de aconchego e luxo onde as responsabilidades podiam ser jogadas pela janela, sendo possível desfrutar da sensação de voltar a ser criança. Apenas por alguns dias. Provavelmente tudo iria ser tremendamente triste, porém ela estaria lá, voltaria para seu próprio quarto rosa, seus amados pertences, sua secretária, sua vitrola e sua caixa chinesa. Judith viu-se abrindo a janela e debruçando-se para fora, a fim de ver o pátio e vislumbrar o mar, de ouvir o arrulho das pombas brancas em torno do pombal. Viu-se dando risadinhas contidas com Loveday, ou apenas estando na companhia de Athena, de Mary Millyway, de Diana e do coronel. Seu coração inundou-se de gratidão, e ela sabia ser isto a coisa melhor e mais próxima de um retorno ao lar. Então perguntou-se se tia Lavinia, onde quer que estivesse, perceberia a opulência de seu legado.

A viagem para a Cornualha foi impregnada de nostalgia e recordações. A estação de Plymouth, agora já de todo familiar, estava apinhada de jovens marinheiros e mochilas, todos recentemente mobilizados e rumando para o interior do país. Os rapazes amontoavam-se na plataforma oposta, sendo forçados a uma espécie de fila por um exasperado instrutor militar. Quando o trem Riviera parou na estação, eles desapareceram momentaneamente de vista, escondidos atrás da enorme e pulsante máquina a vapor, porém continuavam lá mal o trem recomeçou a rodar, e a última visão que Judith teve deles foi a de um borrão de novos e engomados uniformes azul-marinho e de jovens rostos de faces coradas.

Quase em seguida o Riviera chocalhou sobre a ponte do Saltash, e o porto estava tomado por navios da Marinha Real, agora não mais cinzentos, mas inteiramente cobertos pela pintura de camuflagem. Logo depois, a Cornualha: casas caiadas de rosa, vales profundos e viadutos. O trem fez alto em Par.

— Par! Par! Par, baldeação para Newquay! — entoou o chefe da estação, como sempre havia feito.

Truro. Judith viu a cidadezinha aninhada em torno da comprida torre da catedral, e recordou a vez em que fora lá com o sr. Baines para comprar sua vitrola, depois tendo ido almoçar no "O Leão Vermelho". Então pensou em Jeremy, na primeira vez em que o vira, na maneira como ele recolhera seus pertences e se despedira, saltando do trem em Truro. Naquele momento, achara que nunca mais tornaria a vê-lo e que, certamente, jamais saberia seu nome.

Por fim, Hayle e o estuário, azul com a maré alta. No lado contrário, Penmarron, os telhados de Riverview claramente visíveis através do verde recente de abril nos galhos das árvores.

No entroncamento, ela pegou sua mala no porta-bagagem acima do assento e ficou em pé no corredor, não desejando perder a primeira visão de Mounfs Bay e do mar. As praias, enquanto o trem seguia ruidosamente ao longo do litoral, estavam tomadas por defesas de arame farpado, e havia casamatas de concreto com guarnições de soldados, além de armadilhas antitanques, para a hipótese de uma invasão por mar. Não obstante, a baía cintilava ao sol, exatamente na maneira de sempre, e o ar se enchia do grasnido das gaivotas, do cheiro forte de maresia.

Athena estava lá, esperando-a. Em pé na plataforma, e imediatamente visível, com seus cabelos louros esvoaçando à brisa. Sua gravidez era de todo óbvia, porque ela não fazia nenhum recatado empenho de esconder seus contornos, e usava frouxas calças compridas de veludo cotelê, com uma camisa masculina de mangas enroladas e abas soltas.

— Judith!

Encontraram-se a meio caminho na plataforma. Judith largou sua mala e as duas abraçaram-se. A despeito de sua não costumeira aparência desleixada, Athena estava perfumada, como sempre, por alguma fragrância deliciosamente cara.

— Céus, que bom ver você! Você perdeu peso, eu ganhei. — ela deu tapinhas no estômago. — Não é excitante? Fica maior a cada dia que passa!

— Para quando vai ser?

—Julho. Mal posso esperar. Isto é toda a sua bagagem?

— O que você esperava, malas próprias para camarotes e caixas de chapéus?

— O carro está lá fora. Venha, vamos para casa.

O carro foi uma surpresa e tanto. Não era um dos grandes e dignificados veículos que tanto faziam parte de Nancherrow, mas um pequeno furgão em estado lastimável, tendo escritas na lateral da carroceria as palavras H.WILLIAMS, PEIXEIRO, em letras maiúsculas.

— Quem entrou para o comércio pesqueiro? —perguntou Judith, algo divertida.

— Não é o fim? — exclamou Athena. — Papai o comprou de segunda-mão, para economizar gasolina. Você nem imagina quanta gente cabe aí atrás. Foi comprado há uma semana. Ainda não tivemos tempo de remover a inscrição. Aliás, penso que não deveríamos. Eu a acho incrivelmente chique. Mamãe também.

Judith depositou sua mala no interior cheirando a peixe e elas partiram. O furgão pipocou umas duas vezes, e só então saltou para diante, por pouco não se chocando com a borda do muro do porto.

— Foi muita gentileza sua ter vindo. Estávamos agoniados, imaginando que pudesse mudar de idéia no último momento. Como vai sua tia? Conseguindo sobreviver? Pobre Ned. Que coisa mais terrível foi acontecer! Todos nós lamentamos muitíssimo a morte dele.

— Ela está bem. Recuperando-se aos poucos, imagino. Contudo, tem sido um longo inverno.

— Sem dúvida. E o que você tem feito?

— Aprendendo taquigrafia e datilografia. Já adquiri velocidade e tudo o mais, de maneira que nada me impedirá de inscrever-me para alguma função ou de arranjar algum tipo de emprego.

— Quando pretende fazer isso?

— Ainda não sei. Qualquer dia. — Judith mudou de assunto. — Tem alguma notícia de Jeremy Wells?

— Por que pergunta?

—Estive pensando nele no trem. Recordei quando viajamos juntos e ele desembarcou em Truro.

— O pai dele apareceu há dias, porque Camilla Pearson caiu do balanço, abriu um corte na cabeça, e Mary pensou que talvez precisasse levar pontos. Não precisou. Ele disse que Jeremy está indo e vindo pelo Atlântico em um destróier. Faz parte de comboios da marinha mercante. Ele não forneceu detalhes, mas tudo isso parece bastante duro. Quanto a Gus, está na França, com a Divisão Highland, mas parece que não há muita coisa acontecendo por lá.

— E Rupert? — perguntou Judith, antes que Athena começasse a falar sobre Edward.

— Oh, ele está ótimo. Escreve montes de cartas divertidas.

— Onde se encontra?

— Na Palestina. Em um lugar chamado Gedera. Só que não tenho permissão de contar a ninguém, para o caso de algum espião estar ouvindo. Eles continuam sendo um regimento de cavalaria, porque ainda não foram mecanizados. Depois do que ocorreu com a cavalaria polonesa, no lugar deles eu me bandearia bem depressinha para os tanques, não acha? Enfim, suponho que o Ministério da Guerra saiba o que está fazendo. Ele escreve um número espantoso de cartas. Está eufórico sobre o bebê. Fica sugerindo nomes horríveis, como Cecil, Ernest e Herbert. Nomes de família dos Rycroft. Francamente pavorosos.

— E se for uma menina?

— Então, eu a chamarei de Clementina.

— Isso é um nome de laranja.

—Talvez ela seja um bebê-laranja. De qualquer modo, será divina! Estou ficando enfronhada no assunto crianças, agora que Roddy e Camilla estão lá em casa. Sempre pensei que os dois eram um pouco mimados, lembra-se da choradeira no dia de Natal? Mas Mary Milly-way os deixou em forma num piscar de olhos, e agora estão uns amores. Costumam dizer as coisas mais incríveis.

— E Tommy Mortimer?

— Deve chegar amanhã. Queria trazer seu fraque, mas papai disse que isso seria exagerar um pouco.

— Está esquisito sem tia Lavinia?

— Sim. Ficou estranho. É como a gente saber que há um quarto vazio em casa, sem flores e de janela fechada. Uma coisa tão final concorda? A morte, quero dizer.

— Sim, é decididamente final.

Mais tarde, depois que tudo havia terminado em segurança, todos concordaram que o funeral de Lavinia Boscawen havia sido tão exatamente correto, que ela própria poderia tê-lo dirigido. Era uma suave tarde de primavera; a Igreja de Rosemullion estava repleta de flores, e tia Lavinia, em paz no seu ataúde, esperava lá para receber seus amigos mais chegados pela última vez. Os bancos estreitos e incômodos estavam tomados pelos tipos mais diversos de indivíduos, nenhum dos quais, por nada neste mundo, teria perdido aquela ocasião. Chegaram de todas as partes do condado e de todos os patamares da vida, do Governador do Condado para baixo, tendo sido encontrado espaço para os mais humildes — o marinheiro aposentado de Penberth, que durante anos fornecera peixe fresco à sra. Boscawen, e o simplório rapazote que estocava combustível para o boiler da escola e fazia a limpeza dos primitivos banheiros.

Isobel estava lá, naturalmente, assim como o jardineiro da Dower House, usando seu melhor terno de ttveed verde, com uma rosa "Gloire de Dijon" na lapela. De Penzance vieram três profissionais liberais: o sr. Baines, o sr. Eustick (gerente do banco) e o proprietário do Hotel "The Mitre". De Truro, o dr. Wells e sua esposa. A viúva Lady Tregurra fizera de táxi todo o trajeto desde Launceston, não parecendo nem um pouco abalada pela experiência. Outros pranteadores, porém, não se achavam tão aprumados, tendo precisado de alguma ajuda no trajeto do portão de entrada do cemitério até a igreja, enquanto seguiam pesadamente pela alameda sombreada de teixos com seus bordões e bengalas, além de terem dificuldade, uma vez acomodados, com fastidiosos aparelhos auditivos e cometas acústicas. Um idoso cavalheiro chegou na própria cadeira de rodas, empurrado por seu empregado ligeiramente mais novo, enquanto o tempo todo a igreja se enchia e o órgão gemia, ofegante, a música dificilmente reconhecível como Nimrod de Elgar.

O grupo de Nancherrow ocupou os dois primeiros bancos. Edgar carey-Lewis, Diana, Athena, Loveday e Mary Millyway sentaram-se no da frente. Atrás deles, ficaram seus convidados, Judith, Tommy Mortimer e Jane Pearson, com o sr. e a sra. Nettlebed. Hetty fora deixada para trás, tomando conta de Camilla e de Roddy Pearson.

Tanto Mary quanto a sra. Nettlebed ficaram algo ansiosas com este arranjo porque Hetty não era a mais inteligente e nem a mais confiável das jovens. Entretanto, ao partir para a igreja, a sra. Nettlebed a encheu de medo, dizendo-lhe que, se chegasse em casa e encontrasse aquelas crianças com contas enfiadas no nariz, ia haver barulho.

Todos eles, graças ao expediente de emprestar e tomar emprestado, tinham conseguido vestir-se de negro total. Todos, exceto Athena, que usava um esvoaçante vestido de crepe creme, parecendo um belo e absolutamente sereno anjo.

Por fim, ficaram todos acomodados. O sino cessou os toques plangentes, e o órgão, nesse meio tempo, arquejou para o silêncio. Dos fundos da igreja, através da porta que ficara aberta, chegava o som de pássaros chilreando.

O encanecido vigário levantou-se, e imediatamente decidiu que precisava assoar o nariz. Isto levou um ou dois momentos, enquanto todos permaneciam pacientemente sentados e olhando para ele, que remexia nos bolsos fundos em busca do lenço, retirava-o das dobras da sotaina, trombeteava dentro dele e tornava a armazená-lo. Depois pigarreou para clarear a garganta e finalmente anunciou, em tons trêmulos, que a sra. Carey-Lewis lhe pedira para anunciar que, após o serviço, todos seriam bem-vindos em Nancherrow para um refresco. Encerrada esta importante comunicação, ele abriu seu livro de orações, os membros da congregação — os que puderam — ficaram em pé, e o serviço começou.

Eu sou a Ressurreição e a Vida, disse o Senhor, e aquele que crer em mim, embora estando morto, ainda assim viverá.

Cantaram um um ou dois hinos, o Coronel Carey-Lewis leu uma passagem apropriada da Bíblia, seguiu-se uma oração, e isso foi tudo. Seis homens adiantaram-se para erguer o ataúde de Lavinia Boscawen nos ombros: o coveiro e seu robusto ajudante, o coronel, Tommy Mortimer, o sacristão e o jardineiro de terno verde, este tendo certa semelhança, conforme Athena comentou mais tarde, com um adorável e pequenino gnomo que comparecera à festa errada. O ataúd (estranhamente pequeno) foi carregado do interior da igreja para o cemitério ensolarado, enquanto os membros da congregação seguiam mais atrás, em velocidades variadas.

Diplomaticamente distanciada da família, Judith observou o ritual de sepultamento e ficou atenta às palavras. O pó ao pó, e as cinzas às cinzas, mas era difícil perceber que algo tão final tivesse muito a ver com tia Lavinia. Olhando em torno, ela viu a figura alta do sr. Baines um pouco afastado dali. Então recordou o funeral de tia Louise, em meio ao vento cortante no cemitério de Penmarron, e a maneira como o sr. Baines fora gentil com ela, naquele dia terrível. Depois viu-se pensando em Edward e desejando, por causa dele, que pudesse ter estado ali, a fim de também ajudar a carregar tia Lavinia para seu derradeiro lugar de repouso — para enviá-la em sua última viagem.

Uma vez que a sala de estar havia sido posta fora de uso, a reunião pela morte de tia Lavinia foi feita na sala de refeições. Tudo havia sido preparado com antecedência e tornado festivo. No centro da platiban-da da lareira havia um enorme arranjo de tenras folhas de faia e lírios olhos-de-faisão, que Diana levara boa parte da manhã confeccionando. Na lareira, troncos crepitavam alegremente ao fogo, embora a tarde de abril continuasse tão agradável, que era possível deixar as janelas abertas e permitir que o ar fresco e salitrado penetrasse na casa.

A mesa enorme, expandida em todo o seu comprimento, estava coberta por uma toalha branca, e sobre ela expostos os petiscos da sra. Nettlebed (dois dias inteiros de labuta) para que todos os admirassem e depois consumissem. Bolos esponja, tortas de limão, bolinhos de gengibre, diminutos sanduíches de pepino e "delícias de cavalheiro”, graciosos bolos glaçados e biscoitos amanteigados.

No aparador (responsabilidade de Nettlebed), estavam os dois bules de prata — um deles contendo chá da índia, o outro chá da China — o jarro de prata com água, o jarro de leite e o açucareiro. Ao lado, todos os melhores pires e xícaras casca-de-ovo. Lá estavam também (discretamente colocados) a garrafa ornamental contendo uísque, o sifão de soda e os copos de cristal trabalhado. As cadeiras da sala de refeições haviam sido dispostas contra a parede, em torno do aposento. Aos poucos foram sendo ocupadas pelos mais enfermos e menos firmes, enquanto os outros permaneciam de pé ou se moviam por ali trocando cumprimentos. A conversa aumentou de tom e as vozes sussurravam. Antes de muito tempo, tudo começou a assemelhar-se um pouco a uma reunião para coquetel, da melhor espécie.

Instruída por Diana, Judith ajudou a carregar bandejas e a oferecer vários petiscos, parando de vez em quando para trocar algumas palavras ou apanhar uma xícara de chá vazia para ser novamente enchida. Tão ocupada estava, que passou algum tempo antes de encontrar a oportunidade de falar com o sr. Baines. Encaminhava-se para o aparador, com uma xícara e um pires em cada mão, quando a meio caminho se viu face a face com ele.

— Olá, Judith.

— Sr. Baines. Que bom vê-lo aqui, e como foi gentil em vir.

— É claro que eu viria. Você parece muito ocupada.

—Todos querem mais chá. Não creio que alguém esteja acostumado a xícaras tão pequeninas.

— Eu preciso falar com você.

— Isso está parecendo muito sério.

— Fique tranqüila. Não é nada sério. Será que podíamos afastar-nos um pouco, por um ou dois minutos? Há várias empregadas servindo, estou certo de que você pode ser dispensada por enquanto.

Certo. tudo bem, mas primeiro preciso servir estas duas Pessoas, coitadinhas, que estão esperando e sedentas.

- Já troquei algumas palavras com o Coronel Carey-Lewis. Ele disse que Podemos usar seu estúdio.

sendo assim, estarei com o senhor em um instante.

- Muito bem. O que tenho a dizer-lhe não levará mais de dez minutos. - Loveday passava com uma bandeja de biscoitos amanteigados e ele aproveitou para apanhar um. — Isto me sustentará, até você chegar.

No aparador, Judith tornou a encher as xícaras e as levou de volta Para a sra. Jennings, que dirigia a Agência dos Correios de Rosemulion, e sua amiga sra. Carter, que limpava os metais dourados da igreja.

— Você é uma garota adorável — disse-lhe uma das senhoras. Estamos de garganta seca, após cantarmos tanto. Há mais daqueles bolinhos de gengibre? Já sabíamos que teríamos um saboroso chá se a sra. Nettlebed tivesse algo a ver com ele.

— não sei como ela se arranja, com este racionamento.

—. ela deve ter posto alguma coisa de lado, acredite no que lhe digo.

Judith serviu os bolinhos de gengibre e afastou-se, enquanto elas mastigavam vagarosamente, limpando pequenas migalhas dos lábios com dedinhos delicados. Aparentando naturalidade, ela saiu da sala. Era um certo alívio, poder afastar-se daquela tagarelice em vozes agudas e, seguindo pelo corredor, cruzou a porta aberta para o estúdio do coronel. O sr. Baines a esperava, recostado contra a secretária maciça, consumindo tranqüilamente o último pedaço do biscoito amanteigado que surripiara. Apanhando o lenço de seda, limpou as migalhas aderidas aos dedos.

— Que banquete! —comentou.

— Ainda não comi nada. Estive ocupada demais alimentando os outros. — Judith deixou o corpo afundar em uma fofa poltrona de couro, e foi bom descarregar o peso dos pés, afrouxando os incômodos sapatos fechados, de couro negro e salto alto. Olhou para o sr. Baines e franziu a testa. Ele havia dito que não era nada sério, porém não mostrava uma expressão muito jovial. Seria ótimo se o que dissera fosse verdade. — Sobre o que deseja falar comigo?

— Sobre várias coisas. A principal delas, você. Como está? Ela deu de ombros.

— Tudo bem.

— O Coronel Carey-Lewis me deu a triste notícia da morte de seu primo. Isso foi trágico.

—Sim. Sem dúvida, foi trágico. Ele tinha apenas vinte anos. Jovem demais para morrer, não acha? E aconteceu logo no início da guerra... quase antes de todos nos acostumarmos à idéia de que realmente estávamos em guerra. Foi uma coisa totalmente repentina.

— Ele também me disse que você resolveu não ir para junto de sua família, mas continuar aqui no país.

Judith sorriu estranhamente.

— O senhor parece estar a par de tudo o que aconteceu.

- Vejo o coronel de tempos em tempos, no Penzance Club. Gosto de saber como estão os meus clientes. Espero que tenha boas novas de Singapura.

Ela lhe contou as notícias que soubera pela mãe, e prosseguiu explicando sobre Hester Lang, as aulas de taquigrafia e datilografia que, de algum modo, tinham ajudado a ocupar o longo, frígido e penoso inverno em Upper Bickley.

— Agora já adquiri uma boa rapidez nas duas matérias, de modo que posso deixar Biddy e arranjar um emprego ou coisa assim. Entretanto, sinto certa relutância em ir embora e deixá-la sozinha...

Há um tempo certo para tudo. Talvez chegue mais depressa do que imagina. De qualquer modo, parece estar sobrevivendo. Agora, há algo mais a dizer-lhe. É a respeito de Billy Fawcett.

Judith ficou gelada. Que odiosa informação teria o sr. Baines para dar-lhe? Jamais lhe ocorreu o fato de que talvez não fosse odiosa, porque a própria menção do nome de Billy Fawcett era suficiente para encher-lhe o coração de apreensão.

— O que há sobre ele?

— Não dê a impressão de petrificada. Ele está morto.

- Morto?

— Aconteceu há pouco, na semana passada. Ele estava no banco, em Porthkerris, creio que descontando um cheque. Então, o gerente saiu de seu gabinete e disse, muito polidamente, que gostaria de ter uma conversa sobre os saques a descoberto de Billy Fawcett. O coronel teria a bondade de entrar em seu gabinete? Ao ouvi-lo, o velho teve um acesso de fúria, ficou subitamente com o rosto azulado, deu um gritinho sufocado e caiu no chão ao comprido, de costas. Imóvel. Dá Para imaginar a consternação. Ficou-se sabendo que ele sofrera um ataque cardíaco maciço. Foi chamada uma ambulância, ele foi levado a Hospital Geral de Penzance, porém quando chegou lá já estava morto.

Judith não encontrava nada para dizer. Enquanto o sr. Baines falava, seu choque e o terror iniciais foram gradualmente substituídos por um desejo histérico de rir, porque podia visualizar claramente a Morte de Billy Fawcett, tudo lhe parecendo mais hilariante do que trágico... nem um pouco diferente da noite em que Edward Carey-Lewis o depositara na sarjeta, diante do pub Guincho Corrediço.

Prestes a explodir em risadinhas nervosas, ela tapou a boca com a mão, porém seus olhos traíam o riso. O sr. Baines sorriu, mostrando certa compreensão, e depois meneou a cabeça, como se não soubesse o que dizer a respeito.

— Suponho que devíamos estar com rostos solenes, porém tive exatamente a sua reação, quando me contaram o sucedido. Assim que ele deixou de ser uma ameaça, mostrou-se como uma ridícula figura de homem.

— Sei que eu não devia estar rindo.

— O que mais se pode fazer?

— Há tanta gente morrendo.

— Eu sei. E sinto muito.

— Ele chegou a comparecer ao tribunal?

— Naturalmente. Apresentou-se ao Juiz Itinerante do terceiro trimestre. Declarou-se culpado, e seu advogado expôs um punhado de circunstâncias irrelevantes e extenuantes: um velho e leal soldado do Rei, traumáticas experiências no Afeganistão etc, etc. Assim, foi liberado com uma pesada multa e uma reprimenda. Teve sorte em não ir para a prisão, mas penso que o resto de sua vida foi bastante infeliz. Ninguém em Penmarron queria ter muita amizade com ele, e foiconvidado a desligar-se do clube de golfe.

— E o que ele fez depois disso?

— Não sei dizer. Embriagava-se, suponho. Tenho certeza apenas de que deixou de ir ao cinema.

— Que fim de vida miserável!

—Eu não teria muita pena dele. De qualquer modo, agora é tarde demais para lamentar-se alguma coisa.

— Fico surpresa, porque o sr. Warren ou Heather nada me disseram sobre a morte dele.

— É como lhe disse, foi muito recente. Houve uma pequena nota no Western MorningNews de dois dias atrás. Billy Fawcett não era um homem muito conhecido e tampouco muito estimado.

— Isso devia causar tristeza.

— Não fique triste. Apenas expulse da mente todo o infeliz episódio, de uma vez por todas.

Enquanto falava com ela, o tempo todo o sr. Baines havia permanecido na mesma postura, com o corpo alto e anguloso contra a borda secretária do Coronel Carey-Lewis. Agora, no entanto, ele se abaixava para apanhar sua pasta, que deixara no assento de uma poltrona. Então, após largar a pasta sobre o tapete, sentou-se na poltrona e cruzou uma das pernas compridas sobre a outra. Judith o observava, adivinhando que ele ia tirar os óculos e limpá-los com seu lenço de seda. Foi o que aconteceu, mas, por experiência, já sabia que o Sr. Baines estava ordenando os pensamentos.

— Muito bem—disse ele — agora vamos ao que de fato interessa e tornou a colocar os óculos, guardou o lenço e cruzou os braços.

Talvez seja um pouco precipitado, mas eu queria trocar idéias com você, antes que tornasse a partir para Devon. É sobre a casa da sra. Boscawen.

—A Dower House?

— Exatamente. Eu gostaria de saber o que me responderia, se eu lhe sugerisse que deveria comprá-la. Como disse, este não é o momento mais apropriado para falar de negócios, mas já refleti bastante a respeito e, em vista das circunstâncias, decidi que não valia a pena perder tempo.

Ele ficou calado. Os olhos de ambos encontraram-se, através da sala. Judith o encarava fixamente, perguntando-se se, de repente, o sr. Baines teria perdido o juízo. No entanto, ele estava claramente esperando sua reação a tão atordoante esquema.

— Oh, mas eu não preciso de uma casa. Estou com dezoito anos. Neste exato momento, uma casa era. a última coisa no mundo de que necessitaria. Estamos com uma guerra em andamento, e provavelmente me juntarei aos serviços, ficando afastada durante anos. Por que iria arranjar a preocupação de uma casa.

— Deixe-me explicar.

—. além disso, certamente a Dower House não pode ser colocada no mercado. Ela não faz parte das terras de Nancherrow?

—Já fez. Não faz mais. Assim que pôde, o marido da sra. Boscawen adquiriu o domínio absoluto.

— E o Coronel Carey-Lewis não desejaria comprá-la de volta?

—Já discuti isto com ele e, aparentemente, não pretende comprá-la.

— O senhor já falou a respeito com o coronel?

— É claro. Eu não podia expor-lhe o negócio, sem primeiro ter Ouvido os pontos de vista dele sobre o assunto. É importante demais.

Eu não preciso apenas da aprovação, mas também da opinião do coronel.

— Por que é tão importante? Por que comprar a Dower House é tão importante?

— Porque, como um de seus curadores, considero que o melhor investimento que você talvez possa fazer, sem dúvida, será a aquisição de uma propriedade. Imóveis nunca perdem o valor e, mantidos adequadamente, só tendem a valorizar. Além disso, este é um bom momento para comprar porque, como sempre acontece em tempos de guerra, os preços caem a seu nível mais baixo. Sei que você é muito jovem e que o futuro está cheio de incertezas, mas, ainda assim, temos que olhar para diante. Aconteça o que acontecer, você possuirá uma base. Suas próprias raízes. Outra consideração é a sua família. Graças à sra. Forrest, você é que tem dinheiro. Ser dona da Dower House significaria um lar para onde seus pais e Jess voltariam, chegada ao fim a permanência deles em Cingapura. Ou, pelo menos, uma base. Algum lugar onde ficarem, até poderem encontrar uma casa para eles.

— Oh, mas ainda faltam anos para que isto aconteça!

— É verdade. No entanto, acontecerá.

Judith ficou calada. De repente, parecia-lhe haver muita coisa em que pensar. A Dower House. Propriedade sua. Seu próprio lar. Raízes. A única coisa que jamais conhecera e pela qual sempre ansiara. Recostando-se na espaçosa poltrona, ela fitou a lareira vazia e deixou a imaginação conduzi-la através da velha casa, com seus quartos quietos e antiquados, o relógio tiquetaqueante e os degraus rangentes da escada interna. A sala de estar, cintilando à luz do sol e ao fogo da lareira; tapetes e cortinas desbotados, e sempre o perfume de flores. Pensou na úmida passagem de pedra que levava aos vetustos aposentos da cozinha, naquele ar de tempo em suspensão, que nunca deixara de encantá-la. Viu o panorama através das janelas, com a linha do horizonte se mostrando através dos galhos mais altos dos pinheiros de Monterey; depois o jardim, descendo em terraços até o pomar, onde ficava a cabana de Athena e Edward. Seria possível lidar com tantas e tão diversificadas memórias? Naquele momento, parecia não haver meio algum de saber.

— Não posso decidir-me tão depressa — falou.

— Pense a respeito.

- Estou pensando. Compreenda, sempre sonhei possuir uma casinha, que fosse só minha e de mais ninguém. Entretanto, era apenas sonho. E se não posso morar nela, de que adianta? Se comprar a Dower House, o que farei com ela? A casa não pode ficar abandonada, se estiver vazia.

— Ela não precisa ficar vazia — observou o sr. Baines, no tom de quem está raciocinando a fundo. —Isobel não permanecerá lá, é claro.

Já fez planos para morar com o irmão e a esposa dele; antes de morrer, a sra. Boscawen deixou-lhe uma anuidade, de modo a permitir que termine seus dias com independência e a necessária dignidade. Quanto à casa, poderia ser alugada. Talvez a alguma família de Londres, ansiosa na própria evacuação para o campo. Estou certo de que não haverá escassez de interessados. Podemos ainda encontrar um casal aposentado que fique lá como caseiro ou alguma pessoa grata por um teto sobre sua cabeça, além de um pequeno salário regular.

Ele falava persuasivamente, porém Judith cessara de ouvi-lo. Uma pessoa grata por um teto sobre sua cabeça; alguém que cuidaria do jardim, que poliria e limparia a casa como se sua fosse. Que achasse as antiquadas cozinhas o máximo do luxo e da funcionalidade, que provavelmente se debulharia em lágrimas de alegria ao pousar os olhos no pequeno toalete, com suas paredes de tábuas encaixadas e pintadas de branco, e o vaso sanitário, com sua correntinha pendente e a palavra PUXE escrita no pegador.

—. evidentemente, a propriedade não está em excelente ordem. Desconfio de um toque de caruncho no piso da cozinha, e nos forros do sótão há algumas manchas de umidade, mas.

— Phyllis — disse Judith.

Interrompido em meio da frase, o sr. Baines franziu a testa.

— Como disse?

— Phyllis. Phyllis poderia tomar conta da casa. — A idéia expandiu-se, floresceu. Animada pelo excitamento, Judith empertigou-se na poltrona e inclinou-se para diante, com as mãos entrelaçadas sobre os joelhos. — Oh, o senhor lembra-se de Phyllis. Ela trabalhava para nós em Riverview. Agora é Phyllis Eddy. Casou-se com Cyril, seu namorado, e tem um bebê. Fui vê-la quando passei dias em Porthkerris, durante o verão. Fui em meu carro. Fazia quatro anos que não a via...

— Não compreende? Cyril era mineiro, mas agora está na Marinha. Ele a deixou. Sempre quis ir para o mar. Nunca desejou ser mineiro. Ela me escreveu e contou tudo isso, quando Ned foi morto. Escreveu-me uma carta tão doce.

Judith prosseguiu, explicando ao sr. Baines sobre Phyllis e sua humilde situação, morando numa casinha lúgubre, a quilômetros de qualquer lugar além de Pendeen. E como era uma casa vinculada pertencente à companhia de mineração, Phyllis teria de deixá-la e voltar a morar com a mãe.

—. e já há gente demais morando com a mãe. Tudo o que Phyllis sempre quis foi um lugar seu, com um jardim e um banheiro dentro de casa. Poderia trazer o bebê, e ela cuidaria da Dower House para nós. Não seria o mais perfeito arranjo que se poderia imaginar?

Ela esperou, ansiosa, que o sr. Baines lhe dissesse o quanto estava sendo inteligente. Entretanto, ele era cauteloso demais para tanto.

— Judith, você não está comprando um lar para Phyllis. Está fazendo um investimento para si mesma.

— Sim, mas é o senhor quem quer que eu compre a casa, e foi o senhor quem sugeriu alguém para cuidar dela. Eu apenas encontrei a resposta perfeita.

Ele aceitou isto.

—É verdade. Entretanto, Phyllis deixaria a mãe e se mudaria para Rosemullion? Não sentiria falta da família e das amizades?

—Não creio. Pendeen era tão pavoroso, que ela nem podia cultivar amores-perfeitos no jardim. Além disso, estava a quilômetros de distância dos parentes. Rosemullion fica a apenas uma caminhada, ladeira abaixo. Quando Anna tiver idade suficiente, poderá ir para a Escola de Rosemullion. Elas farão amizades. Phyllis é uma criatura tão bondosa, que todos quererão ser seus amigos.

—Já pensou que ela pode achar o lugar solitário?

—Ela está solitária de qualquer modo, agora que Cyril se foi. Pelo menos, ficaria solitária em algum lugar agradável.

Visivelmente perturbado por essa reviravolta, o sr. Baines tirou os óculos, recostou-se na poltrona e esfregou os olhos. Depois tornou a colocá-los.

—Parecemos ter ido de um ao outro extremo. Creio que devemos agir com calma e tentar seguir o caminho do meio. Planejar sensatamente e apontar prioridades. É um grande passo o que estamos considerando, além de ser um passo que custará um bom dinheiro, portanto, você precisa estar realmente certa do que quer fazer.

- Quanto teremos de pagar?

— Eu avaliaria em cerca de duas mil libras. Haverá um limite para necessários reparos e reformas, porém isto terá de esperar pelo fim da guerra. Conseguiremos um perito em...

.Duas mil libras! Parece-me uma quantidade incrível de dinheiro.

O sr. Baines permitiu-se um leve sorriso.

Sem dúvida, mas trata-se de uma soma que o fundo pode gastar sem problemas.

O que ela ouvia era inacreditável.

— Há mesmo tanto dinheiro assim? Nesse caso, vamos em frente. Oh, não precisamos discutir mais!

—Há cinco minutos, você me dizia que não queria comprar a casa.

— Bem, admitamos que a idéia foi como uma bomba.

— Sempre achei que aquela era uma casa cheia de felicidade.

— Sim. — Judith desviou os olhos dos dele e tornou a recordar a Cabana, aquela tarde de verão, o cheiro de creosoto e o som do abelhão zumbindo no teto. Tais recordações, no entanto, por mais dolorosas que fossem, não tinham permissão para interferir, para impedi-la de dar este enorme e excitante passo à frente. Phyllis, ocupando toda a sua mente, era de importância mais imediata do que Edward. — Os chineses vendem felicidade. Colocam boas pessoas em uma casa, para que vivam nela e a encham de um espírito tranqüilo. — Virando-se, sorriu para o sr. Baines. — Por favor, consiga-a para mim!

— Tem certeza?

— Absoluta!

Em vista disso, durante alguns momentos eles conversaram, discutiram os prós e contras, fizeram planos. Uma vez que Bob Somerville não estava disponível, agora a quilômetros de distância em Scapa Flow inteiramente ocupado com a guerra, claro que seria impossível uma reunião de curadores. Entretanto, o sr. Baines entraria em contato com ele, além de também conseguir um perito. Nesse meio tempo, nada devia ser comentado a respeito. Especialmente com Phyllis, advertiu com certa severidade.

E quanto a meus pais?

— Creio que deveria escrever para eles e comunicar-lhes nossas intenções.

— De qualquer modo, só receberão a carta daqui a três semanas.

— E até lá, já devemos ter alguma idéia sobre como as coisas funcionarão. Quando volta para Devon?

— Dentro de um ou dois dias.

— Tenho seu número de telefone. Ligarei para você, quando tiver alguma notícia.

— O que acontecerá então?

— Creio que você deverá voltar à Cornualha, a fim de finalizarmos todos os arranjos. Depois que tudo estiver assinado e selado, então poderá procurar sua amiga Phyllis.

— Mal posso esperar!

— Tenha um pouco de paciência.

— O senhor tem sido muito gentil. Ele olhou para seu relógio.

— Já a retive por tempo demais. A estas horas, a reunião para o chá deve estar encerrada.

— Não é uma "reunião para o chá". É uma homenagem à morta.

— Parecia mais uma alegre reunião.

— Será errado ficar tão animada no dia do funeral de tia Lavinia?

— Em minha opinião — disse o sr. Baines — o motivo de sua animação não daria a ela outra coisa senão prazer.

Não obstante, um mês se passou em Upper Bickley, antes que houvesse um telefonema do sr. Baines. Era uma manhã de quinta-feira. Biddy saíra para ir à casa de Hester e reunir-se com as companheiras da Cruz Vermelha, e Judith estava no jardim da frente da casa, colhendo os primeiros lírios-do-vale que iriam enfeitar a sala de estar. O punhado de esguios e rígidos talos aumentava em suas mãos, e o perfume das flores em forma de sininhos era delicioso, evolando-se da coroa de pétalas pontudas.

Ela ouviu o tilintar do telefone dentro de casa. Parou, esperando que a sra. Dagg também tivesse ouvido e fosse atender. Entretanto, Como o toque continuasse, Judith cruzou o gramado às carreiras e Cm entrou no vestíbulo pela porta do jardim.

- UpperBickley!

Judith? Aqui fala Roger Baines.

Oh sr. Baines! —Ela depositou cuidadosamente o punhado de líriosdo-vale sobre a mesa do vestíbulo. — Estive esperando seu telefonema.

— Sinto muito. Tudo demorou mais do que eu previa, mas acho que agora estamos prontos. O perito...

Judith não queria saber o que havia dito o perito.

Vamos poder comprar a Dower House? —perguntou.

Sim. Está tudo arranjado. Agora, precisamos apenas de sua presença e de algumas assinaturas.

Oh! Que alívio! Cheguei a pensar que tivesse surgido algo terrível, qualquer impedimento, algum parente desconhecido reclamando aposse.

— Não houve nada tão desastroso. O único porém é que irá custar três mil, e o relatório do perito não foi precisamente o que se esperava.

— Não importa.

— Pois você devia importar-se. —Judith sentiu o riso na voz dele. — Como chefe da casa, precisa estar a par de todos os defeitos. não vale a pena comprar nabos em sacos.

— Um dia consertaremos os defeitos. O mais importante de tudo é que a conseguimos. —Agora já poderia dizer a Phyllis. Só em pensar nisso, Judith simplesmente mal podia esperar para ver o rosto dela. Perguntou: — O que o senhor quer que eu faça?

Volte à Cornualha assim que puder, e teremos toda a papelada assinada e selada.

— Que dia é hoje?

— Quinta-feira.

Irei na segunda-feira. Acha um dia adequado? Preciso de algum tempo para organizar a situação por aqui, refeições e essas coisas, para o fim-de-semana. De qualquer modo, irei na segunda-feira. Eu e Biddy estivemos poupando ao máximo nossos cupons de gasolina, portanto, irei em meu carro.

- Onde vai ficar?

- Em Nancherrow, suponho.

— Se quiser, pode ficar conosco. Comigo e minha mulher.

— Oh, é muita gentileza sua, obrigada, mas tenho certeza de que tudo estará bem em Nancherrow. Seja como for, eu lhe telefonarei quando estiver certa de meu horário de chegada. Provavelmente à hora do almoço, na segunda-feira.

— Venha diretamente ao meu escritório.

— Farei isso.

— Até lá, Judith.

— Até lá, sr. Baines. E obrigada.

Judith desligou o telefone e ficou parada, sorrindo de maneira idiotizada, por um ou dois momentos. Depois, recolhendo o punhado de lírios-do-vale, seguiu pelo corredor e foi à cozinha.

Lá encontrou a sra. Dagg, sentada à mesa e desfrutando de sua folga do meio da manhã. Isto significava preparar uma xícara de chá forte e comer alguma coisa que encontrasse, reservada, em cima da prateleira de pedra da despensa. Às vezes era um ou dois pedaços de queijo de couve-flor, em outras um sanduíche frio de carneiro. Hoje, seu lanche era metade de um pêssego em calda, sobra do pudim da noite anterior, com uma boa colherada de creme. Enquanto saboreava o pequeno repasto, a sra. Dagg geralmente lia os suculentos mexericos no jornal da manhã, porém agora ela esquecera os mexericos e estava lendo coisa mais séria.

Ergueu os olhos, quando Judith cruzou a porta. Era uma senhora magra e rija, de cabelos grisalhos apertadamente ondulados, e usava um enorme avental que lhe envolvia todo o corpo, confusamente estampado com peônias. Havia sido costurado por uma das damas do Instituto Feminino, aproveitando uma sobra do cretone das cortinas de alguém, e as cores berrantes tinham atraído os olhos da sra. Dagg, na Feira da Igreja do Natal anterior. E, desde então, os olhos de Judith e de Biddy é que passaram a ser atraídos pelas cores berrantes do avental.

Em geral uma mulher alegre, naquele momento a sra. Dagg parecia visivelmente abatida.

— Posso jurar que não entendo.

— O que é que não entende, sra. Dagg?

—Esses alemães. Veja esta foto do que eles fizeram com Rotterdam. Explodiram tudo. Agora, o exército holandês se rendeu, e eles estão indo para a França. Pensei que não fossem cruzar a Linha Maginot.

Era o que todo mundo dizia. Espero que não seja como da última vez. Trincheiras e tudo. Dagg esteve nas trincheiras, e disse que nunca viu tanta lama.

Judith puxou uma cadeira e sentou-se de frente para a sra. Dagg. A mulher empurrou o jornal para o lado e, sem muita alegria, continuou a consumir seu pêssego enlatado.

Relanceando os olhos para o cabeçalho negro da página, Judith compreendeu o que a sra. Dagg quisera dizer. Os mapas, com suas pontudas setas negras. Os alemães haviam cruzado o Meuse. E onde estava a Força Expedicionária Britânica? Ela pensou em todos que lá se encontravam: Gus, Charlie Lanyon, Alistair Pearson, Joe Warren e os milhares de outros jovens soldados britânicos.

— Não é possível que eles invadam a França! — exclamou. Era insuportável olhar para a foto de Rotterdam destroçada. — É apenas um ataque inicial. Tenho certeza de que, muito breve, as setas estarão apontando na outra direção.

— Bem, eu não sei. Acho que está sendo um pouco esperançosa, se quer a minha opinião. O sr. Churchill disse que vai haver sangue, suor, labuta e lágrimas. E sabe de uma coisa? Ele está certo dizer isso diretamente para nós. Não adianta a gente pensar que será uma brincadeira esta guerra. E eles não estariam começando isso de Voluntários de Defesa Local, se não achassem que os alemães iriam vir. Dagg vai alistar-se. Disse que é melhor estar a salvo do que lamentar. Agora, de que adianta ele ir? Nem posso imaginar. Não tem vocação para lidar com armas. Mal consegue acertar um coelho, quanto mais um alemão!

uma vez que a sra. Dagg recusava-se a ser otimista, Judith dobrou o jornal e o deixou de lado.

— Sra. Dagg, preciso dizer-lhe uma coisa — falou. — Eu tenho que ver meu advogado. Será que a senhora poderia cuidar da sra. Somervilie por mim? Como já fez antes?

Ela havia esperado uma concordância imediata, a garantia de que já se tinham saído muito bem antes e que o mesmo tornaria a acontecer. No entanto, a reação da sra. Dagg à sua inocente proposta foi surpreendentemente sem entusiasmo. Para começar, ela nada disse. Continuou sentada, de olhos baixos, remexendo os restos do pêssego no prato. Ao fitá-la, Judith notou uma mosqueada mancha vermelha em seu pescoço e faces, a boca se mexendo, enquanto ela mordia os lábios.

— Sra. Dagg!

A sra. Dagg largou a colher.

— Sra. Dagg, o que há de errado?

Após um momento, a sra. Dagg ergueu o rosto, e os olhos de amk encontraram-se através da mesa.

—Não creio que essa seja uma idéia muito boa.

— Por que não?

— Bem, para lhe ser franca, Judith, não acho que eu possa responsabilizar-me. Pela sra. Somerville, quero dizer. Não, sozinha Não, com você ausente.

— Por que não?

—Quando você não está aqui. — Os olhos da sra. Dagg estavam angustiados. — Quando você não está aqui, ela bebe.

— Sim, mas. — De repente, o coração de Judith foi tomado de medo, toda a euforia desapareceu. — Ela sempre gostou de um drinque, sra. Dagg. Um gim na hora do almoço e dois uísques ao anoitecer. Todos sabemos disso. Tio Bob também sabe.

— Não estou falando desse tipo de bebida, Judith. Estou falando de coisa forte. De muita bebida. É perigoso.

Ela falava tão quieta e definitivamente, que Judith não a julgou exagerando nem mentindo.

— Como é que a senhora sabe? — perguntou. — Como pode ter certeza?

— Pelas garrafas vazias. Você sabe para onde vão as vazias: para aquele caixote na garagem. Depois, a cada semana são postas lá fora, esperando o lixeiro. Quando você esteve fora, cheguei aqui uma manhã e a sra. Somerville nem tinha levantado ainda. Subi para ver se ela estava bem, e o quarto recendia a álcool, ela dormia que nem uma pedra. Já vi bêbados dormindo assim. Só bêbados. Não pude entender o que havia. O caixote das garrafas vazias não estava cheio, nem nada assim, por isso dei uma espiada no depósito de lixo, e debaixo de todos os jornais velhos e latas, encontrei duas garrafas vazias de uísque e uma garrafa vazia de gim. Ela escondeu as garrafas de mim. É como os bêbados fazem. Eles escondem as provas. Tive um tio que não podia parar de beber, e havia garrafas vazias pela casa inteira, até na gaveta das meias dele e atrás da privada.

Ela se calou, vendo o crescente horror no rosto de Judith. Depois disse:

— Eu sinto muito, Judith. De verdade. Não queria contar a você, mas foi preciso. Acho que ela só faz isso quando se sente sozinha. Fica muito bem se você está por perto, mas eu só venho aqui de manhã, entende? Tendo só a cachorra com quem falar, acho que ela simplesmente não agüenta a solidão. O capitão longe daqui, e Ned morto...

De repente, a sra. Dagg começou a chorar, e Judith não pôde suportar isso. Inclinando-se para diante, pousou os dedos sobre a mão calejada da mulher.

— Por favor, sra. Dagg, não fique tão nervosa! Teve toda a razão em me contar. É claro que não vou deixar Biddy. Não vou deixá-la com a senhora.

— Bem, mas... — A sra. Dagg encontrou um lenço e com ele enxugou os olhos, depois assoando o nariz. As manchas vermelhas sob a pele começavam a desaparecer. Era claro que, tendo contado tudo e afastado a responsabilidade sobre a terrível verdade, começava a sentir-se melhor. — Você disse. Disse que tinha de ver seu advogado. Isso é importante. Não pode deixar de ir vê-lo.

—Eu vou vê-lo.

—Talvez — sugeriu timidamente a sra. Dagg — a sra. Lang ficasse com ela em sua casa. É tudo de que a sra. Somerville precisa. Apenas um pouco de companhia.

—Não, não posso pedir isso a Hester Lang. Seria pedir demais e, por outro lado, Biddy poderia ficar desconfiada. —Judith refletiu profundamente na situação. — Eu. eu vou levá-la comigo. Fingirei que será um pequeno feriado. O tempo vem melhorando, e a Cornualha estará deliciosa. Iremos de carro, nós duas.

— E onde vão ficar?

— Eu. eu ia para Nancherrow. Ficar lá com meus amigos.

E ainda poderia ir, levando Biddy consigo e certa da ilimitada hospitalidade de Diana Carey-Lewis. Oh, meu bem, é claro que deve trazê-la, diria Diana, eu ainda não a conheço e sempre quis conhecê-la. Será divertido. Quando é que chegam?

Entretanto, na condição incerta de Biddy, talvez Nancherrow não fosse uma boa idéia, em absoluto. Era insuportável imaginar Biddy ficando tonta no jantar, sob o olhar gélido de Nettlebed.

— Não irei para Nancherrow — prosseguiu Judith. — Ficaremos em um hotel. O "The Mitre", em Penzance. Vou ligar para lá e reservar dois quartos. Assim, ficarei com ela o tempo todo, passearemos de carro e a levarei ao lugar em que morávamos. Será bom para Bidy. Ela ficou presa aqui, com sua tristeza, durante todo o inverno. É hora de experimentar uma mudança.

— E quanto a Morag? — perguntou a sra. Dagg. — Não se pode levar um cachorro para um hotel.

— Por que não?

— Ela poderia fazer suas necessidades no tapete.

— Tenho certeza de que Morag não fará isso.

— Bem, acho que poderia deixá-la comigo — sugeriu a sra. Dagg porém sem grande entusiasmo.

— A senhora é muito gentil, mas estou certa de que nos arranjaremos muitíssimo bem. E poderemos levar Morag para passeios na praia

—Sim, acho que assim será melhor. Dagg não sente muita simpatia por cachorros. Acha que eles devem ficar fora de casa, não na sala de estar.

Um pensamento ocorreu a Judith.

— Sra. Dagg, a senhora falou com seu marido. sobre a sra. Somerville e as garrafas vazias?

—Não disse uma palavra a ninguém. Só falei com você. Dagg gosta de sua cerveja, mas detesta bêbados. Não quero que ele me diga que tenho de parar de trabalhar para a sra. Somerville. Você sabe como certos homens podem ser.

— Sim — disse Judith, que nada sabia. —Acho que sei.

— Quanto menos dito, mais depressa é resolvido, é o que sempre digo.

— A senhora é uma boa amiga, sra. Dagg.

— Oh, não diga bobagens. — A sra. Dagg voltava a ser a mesma de sempre. Ergueu sua xícara, tomou um gole de chá, e imediatamente fez uma careta. — Horrível. Frio como gelo.

Levantando-se, despejou o conteúdo da xícara na pia.

— Prepare outro bule, sra. Dagg, e eu a acompanharei.

— Não gosto de fazer meus trabalhos domésticos com toda essa pressa.

— Oh, danem-se os trabalhos domésticos! — exclamou Judith

Na Cornualha, o primeiro e ansiado calor do verão já havia chegado, os ardores do sol eram temperados por uma brisa refrescante que cheirava a mar, e toda a zona campestre vestia as doces e suaves cores de maio: o verde viçoso das folhas tenras e da relva nova, o cremoso das flores de castanheiro, o rosado dos rododendros, o branco dos pilriteiros, e o malva desbotado das vergônteas dos lilases, abanando os botões abertos acima dos muros dos jardins. Tranqüilo sob um céu sem nuvens, o mar se mostrava luminoso, raiado de um tom água-marinho e azul-jacinto e, no começo das manhãs, uma bruma jazia no horizonte, para ser mais tarde evaporada pelo calor do sol.

Em Penzance, as ruas movimentadas enchiam-se de luz e sombra. Judith saiu do hotel "The Mitre", seguiu a pé pela Chapei Street e entrou no Greenmarket, precisamente quando o relógio do banco badalava meio-dia e meia. Estava bastante quente. Ela usava um vestido de algodão e sandálias, sem meias cobrindo as pernas. As portas das lojas permaneciam abertas, com os toldos descidos, e havia caixotes de frutas, verduras e legumes expostos nas calçadas. A laje de mármore do peixeiro era um mar de gelo partido, no qual jaziam, de olhos mortos e fixos, bacalhaus e sardinhas inteiros, bem como montes de reluzentes cavalinhas. Os cartazes dos vendedores de jornais estavam negros com as notícias da manhã — ALEMÃES ALCANÇAM O LITORAL BELGA — mas, no entanto, junto à porta de seus quiosques ou tabacarias, via-se a costumeira e inocente exposição de pás de madeira e baldes de lata, chapéus de sol em algodão, redes para pescar camarões e bolas de praia, exalando ao sol um cheiro de borracha. Havia, inclusive, alguns visitantes vindos de Londres, de Reading ou de Swindon; jovens com filhos pequeninos e idosas vovós, os tornozelos já inchando sobre os recentemente adquiridos calçados para caminhar na areia.

Judith atravessou o Greenmarket e internou-se em Alverton, onde se situava a pequena e agradável casa georgiana que abrigava os escritórios de Tregarthen Opie & Baines. Após a porta que, no alto, deixava a claridade entrar pelas vidraças em forma de leque, o corredor também estava inundado da luz penetrando pela janela da escada. Em um gabinete, isolada dos visitantes por uma pequena abertura semelhante e a um guichê de passagens, sentava-se a recepcionista. Havia uma sineta para tocar, de maneira que Judith a tocou — ping! A recepcionista levantou-se de sua máquina de escrever, para falar com a recém-chegada.

— Bom-dia.

A mulher usava óculos sem aros e exibia ondulação permanente nos cabelos grisalhos e bem penteados.

— Vim ver o sr. Baines. Eu sou Judith Dunbar.

— Ele está à sua espera. Pode ir até o escritório? Conhece o caminho? Primeira porta à direita, no alto da escada.

Judith foi. A escada tinha um tapete turco e, no patamar, havia retratos de sócios anteriores da firma, senhores de suíças e relógios de corrente presa ao colete. A porta da direita ostentava uma placa de latão com o nome dele: "Roger Baines." Ela bateu. "Entre", disse ele e Judith abriu a porta.

Ele ficou em pé, atrás de sua secretária.

—Judith!

— Aqui estou eu.

— E bem na hora. Uma jovem pontual. Entre e sente-se. Está com uma aparência absolutamente estival.

— Bem, hoje faz um dia de verão.

— Quando foi que chegou?

— Há cerca de uma hora. Saímos de Upper Bickley logo depois de um breakfast bem cedo. Não havia muito trânsito na estrada.

— A sra. Somerville está com você?

— Sim, ela e o cachorro. Já nos instalamos no "Mitre". Ela levou Morag para uma corridinha na praia, mas eu disse que voltaria para um almoço atrasado.

— Foi uma boa idéia trazê-la com você.

— Pensei que ela não queria vir, mas ficou eufórica com a idéia. Para ser franca, acho que ela estava justamente precisando de uma mudança de ares. Por outro lado, está tão excitada como eu sobre a Dower House, e ansiosa por um passeio pelos arredores.

— Quanto tempo podem ficar?

— Na realidade, quanto tempo quisermos. Trancamos a casa e a sra. Dagg ficará olhando por tudo.

— Bem, isso é bastante satisfatório. E a temperatura tem estado agradabilíssima. Portanto, não percamos mais tempo, vamos aos negócios.

Não demorou muito. Havia alguns papéis para assinar (a srta. Durtiss, a recepcionista, foi convocada como testemunha do ato), e o cheque a ser preenchido. Em toda a sua vida, Judith jamais imaginara que chegaria a preencher um cheque com tão vultosa quantia. ”Três mil libras.” Não obstante, escreveu-a, assinou o cheque e o empurrou por sobre a secretária. Com um clipe de papéis, o sr. Baines o anexou aos documentos restantes.

— Isso é tudo?

tudo. Exceto por um ou dois pequenos, mas necessários pontos que devem ser discutidos. — Ele se recostou na cadeira. — Na realidade, a Dower House está pronta para ser habitada. Isobel a deixará esta tarde. Às cinco horas o irmão irá apanhá-la em sua camioneta e a levará para morar com ele.

— Ela está muito abalada?

— Não. Se quer saber, creio que até se mostra bastante excitada por iniciar uma nova vida aos setenta e oito anos. Passou as duas últimas semanas esfregando e limpando tudo, decidida a não deixar você encontrar um só grão de poeira ou uma torneira sem polir. — Ele sorriu. — De onde ela extrai tanta energia, não sei dizer, porém a diarista esteve lá para dar-lhe uma ajuda, de modo que, com alguma sorte, Isobel não morrerá de ataque cardíaco.

— Eu gostaria de vê-la, antes que o irmão a levasse.

— Iremos a Rosemullion depois do almoço. Então ela poderá entregar-lhe todas as chaves e dar-lhe as instruções finais.

— E quanto aos móveis?

Era essa a outra coisa sobre a qual eu queria falar-lhe. A sra. Boscawen legou toda a sua mobília ao Coronel Carey-Lewis, para ele e sua família. Entretanto, como bem sabe, Nancherrow já está inteiramente mobiliada e nenhum dos filhos, até a data presente, possui sua própria casa. Assim, ocorreu o seguinte: alguns poucos e especiais itens foram removidos, a fim de que cada membro da família possuísse uma pequena recordação da sra. Boscawen. O restante, o grosso do mobiliário continua onde está, na Dower House, e os Carey-Lewis querem que seja tudo seu.

Oh, mas.

O Sr. Baines ignorou os protestos de Judith.

- Nada sendo particularmente valioso e nem mesmo em perfeito estado. Entretanto, por ora os móveis estão em boas condições de uso e servirão esplendidamente, até você ter tempo e oportunidade de adquirir sua própria mobília.

— Como eles puderam ser tão gentis?

— Acredito que se sentiram bem aliviados por não terem que enfrentar o problema. Conforme observou para mim a sra. Carey-Lewis, se tudo fosse colocado em um leilão ou posto à venda, provávelmente quase nada renderia. Existem ainda um ou dois outros entraves. A sra. Carey-Lewis e Isobel recolheram as roupas da sra. Boscawen seus objetos mais pessoais, ao passo que o coronel retirou de sua secretária os papéis que considerou de importância. Fora isso, nada mais foi tirado. Assim, há gavetas entulhadas de velhas cartas e álbuns de retratos, enfim, as recordações acumuladas durante toda uma existência, as quais terão de ser selecionadas. Receio que essa tarefa recaia sobre você, porém não há nenhuma pressa imediata, e qualquer coisa que considere de interesse para a família Carey-Lewis pode ser posta de lado, sendo depois entregue a eles. De qualquer modo, quase posso garantir que a maioria será destinada a uma fogueira.

A palavra "fogueira" evocou a questão do jardineiro de terno verde.

— O que acontecerá com ele? Também se aposenta?

— Tive uma palavrinha com ele. Segundo me disse, o jardim está ficando um pouco trabalhoso demais para a sua idade; porém, como mora em Rosemullion, tenho certeza de que subirá a ladeira uns dois dias na semana, para manter a grama aparada e as ervas daninhas arrancadas. Isto é, se você o quiser.

— Eu odiaria ver o jardim maltratado.

— Sem dúvida. Seria uma tristeza. Entretanto, dentro em breve poderemos tentar encontrar alguém mais novo e mais permanente. Talvez valesse a pena comprar uma cabana. uma casa de jardineiro por perto, isso apenas aumentaria o valor da propriedade.

Ele continuou falando, sugerindo vários outros pequenos melhoramentos que poderiam ser feitos mais tarde. Judith ficou ouvindo e decidiu que era uma enorme tranqüilidade apenas ouvi-lo falar, em tom comedido, expondo idéias para um futuro que, no momento presente, parecia tão distante, improvável e infinitamente precário. Os alemães tinham chegado à costa belga, o Canal da Mancha inglês estava ameaçado e, em resultado, também a Força Expedicionária Britânica, em algum lugar na França. velhos e adolescentes apresentaram-se como voluntários para a defesa local, e parecia que a invasão aconteceria a qualquer momento. Ainda Assim, o sol inundava tudo, crianças chapinhavam nas poças d’água e o jornaleiro vendia redes para pescar camarões e bolas de borracha para a praia. E aqui estava ela, na sala antiquada do advogado — uma sala que talvez não houvesse sofrido a menor modificação durante um século — na companhia do sr. Baines em seu tradicional terno de tweed, discutindo desapaixonadamente a possibilidade de um banheiro extra na Dower House, novos encanamentos e a reforma eventual das antiquadas cozinhas. A sensação era de ter sido capturada entre dois mundos, um ontem seguro e um amanhã potencialmente aterrorizante, e por um momento ela se viu confusa, incerta sobre qual desses dois mundos seria o mais real.

Judith percebeu que o sr. Baines havia parado de falar, como ela havia parado de prestar atenção ao que ele dizia. Por um instante, houve uma pausa entre ambos. Então, ele disse:

—... mas isso é tudo para uma data futura.

Judith suspirou.

— O senhor parece muito certo de que vai haver um futuro. — Ele franziu o cenho ao ouvir isso. — Quero dizer, tudo parece estar caminhando de maneira muito ruim para nós. As notícias, se me entende. Suponha que não vençamos a guerra.

—Judith —exclamou ele, sinceramente espantado, inclusive um tanto chocado.

Bem, admita, nada parece muito esperançoso.

— Perder uma batalha não significa que você perdeu a guerra, Estamos sujeitos a reveses. Lutamos contra um exército ferozmente ciente e bem preparado. Entretanto, não seremos derrotados. Ainda levaremos a melhor. Isto pode levar algum tempo, porém a alternativa possível. Trata-se de algo impensável. Portanto, nunca, nem por um momento, considere a possibilidade de qualquer outro desfecho.

- O senhor parece muito convicto — observou Judith, em tommelancólico.

Eu estou convicto.

- Como pode ter tanta certeza?

- É uma intuição. Um pressentimento. Como dizem os velhos,

"Posso sentir em meus ossos". É uma certa e inabalável convicção. Aliás, também imagino que esta guerra será algo como uma cruzada.

— Está se referindo ao Bem contra o Mal?

— Ou a Jorge e o Dragão. Não devemos ter medo. Nem jamais perder a coragem.

Ele não estava agitando uma bandeira e tampouco esgrimindo uma lança. Tinha mulher e três filhos pequenos, mas no entanto permanecia tão visivelmente calmo e resoluto, que Judith parou de sentir-se insegura e trêmula. A vida tinha de continuar; portanto, haveria um futuro. Provavelmente muito tempo passaria antes da vinda desse futuro e, sem dúvida, haveria momentos de medo espantoso e de horror quase invencível, mas o derrotismo era uma prática inútil, e se o sr. Baines — com toda a sua experiência de vida — podia ficar tão tranqüilo e convicto, então o mesmo podia acontecer com ela. Judith sorriu.

— Eu não terei medo e nem perderei a coragem, sr. Baines. Pelo menos, tentarei. — De repente, ela se sentia muito diferente, aliviada de uma carga, imprudente e quase despreocupada. — Obrigada. Eu sinto muito. Estava apenas precisando falar com alguém.

— Foi uma boa coisa ter-me escolhido.

— O senhor pretende alistar-se como voluntário no serviço de defesa?

—Já fiz isso. Ainda não me deram uma arma e nem um uniforme, mas tenho uma faixa para colocar no braço. Esta noite comparecerei a uma sessão de exercícios militares. Acho que vou aprender a apresentar armas com um cabo de vassoura.

Esta imagem e a voz seca do sr. Baines a fizeram rir, pois era tal a intenção dele. Satisfeito por tudo ter voltado ao normal, ele ficou de pé.

— Bem, uma e quinze já. Vamos retornar ao "The Mitre" para um almoço comemorativo com a sra. Somerville, e então iremos de carro a Rosemullion, a fim de que você tome posse de sua casa.

Judith ficara apreensiva, ao imaginar que poderia sentir-se uma intrusa. Que a presença de tia Lavinia ainda impregnasse a Dower House, desta maneira deixando-a relutante em entrar, em abrir portas sem bater e percorrer aposentos que eram o domínio privado de outra pessoa. Por sorte nada disso aconteceu, talvez porque tudo se encontrasse muito ordenado, tão polido e limpo, como se cada vestígio da proprietária anterior houvesse sido varrido por Isobel. Não havia flores; as almofadas mostravam-se lisas e gordas, sem sinais de qualquer ocupante. Os livros e revistas tinham sido removidos, e bolsas de trabalhos manuais, óculos ou tapeçarias por acabar não jaziam sobre a mesa, ao lado da poltrona de tia Lavinia. Além disso, certos itens tampouco estavam mais ali, devidamente reclamados pelos Carey-Lewis, em seu lugar ficando vazios imediatamente tão óbvios como a falta de um dente. Um armário de canto cheio de porcelana Rockingham, o espelho veneziano sobre a lareira da sala de estar. A terrina de porcelana, sempre atulhada de miscelâneas, o retrato de tia Lavinia quando criança, que pendia da parede do patamar, fora de seu quarto... No quarto dela, a mesa rainha Anne que servira como mesa-de-cabeceira, repositório para pílulas e livro de orações, também se fora, e, com ela, inúmeras fotografias da velha senhora, em tons castanhos de sépia e emolduradas em prata. Onde elas haviam permanecido ou tinham sido penduradas havia apenas superfícies nuas de mesas e manchas escuras no papel de parede não desbotado.

Nada disso importava. Nada disso fazia a menor diferença. A casa não era mais de tia Lavinia, mas dela própria.

Depois de um alegre e sociável almoço no ”The Mitre” (carneiro assado e molho de alcaparras, com Biddy apreciando claramente a companhia de uma nova e solícita presença masculina), entraram.todos no carro do sr. Baines e partiram para Rosemullion. Morag foi também, já que não tinham com quem deixá-la. Biddy sentou-se na frente com o sr. Baines, e Judith ficou no assento traseiro com Morag, de janela aberta a fim de que a cadela pudesse enfiar a cabeça sarapintada e deixar que o vento lhe achatasse as orelhas.

— O que faremos com ela quando chegarmos a Dower House? — perguntou Judith. —Isobel não vai querê-la deixando marcas de patas pelo chão encerado ou soltando pêlos por todo canto.

— O jeito será deixá-la no carro. Estacionado na sombra e com a janela aberta. Assim que Isobel for embora, poderemos soltá-la.

Quando os três chegaram, Isobel estava à espera, envergando seus melhores trajes negros — um casaco e uma saia — e ostentando um chapéu de palha decorado com cerejas, que já tinha visto a luz de incontáveis domingos de verão. Suas duas pequenas malas achavam-se ao pé da escada, tendo ao lado a grande e cômoda bolsa de mão. Ela estava pronta para partir, porém ainda havia tempo de sobra para mostrar-lhes a casa, das cozinhas ao sótão, enquanto saboreava modestamente os elogios dirigidos ao seu árduo trabalho em lavar cortinas, encerar assoalhos, engomar cobertas de camas, polir ferragens e limpar janelas.

Enquanto prosseguiam, ela soltava instruções, como se fossem favores. Todas as chaves estão penduradas naqueles porta-cbaves, ao lado do guarda-louça. Porta da frente, porta dos fundos, garagem, galpão de ferramentas, portão do jardim, casa do jardim. As cinzas do fogão têm de ser removidas, de noite e de manhã. Os melhores talheres foram para Nancherrow, mas eu deixei os segundos melhores nestas gavetas. O armário de roupa branca fica aqui, e o furgão da lavanderia vem nas terças-feiras. É preciso tomar cuidado com a torneira de água quente, porque ela já sai fervendo.

Vistoriaram a casa aposento por aposento, das cozinhas à sala de refeições e à sala de estar. No andar de cima foram mostrados o pequeno banheiro, o quarto de tia Lavinia e o quarto vago. Mais uma subida até o sótão, onde ficava o quarto que Isobel dormira, em uma cama com cabeceira de ferro pintada de branco. Fronteiro a este quarto havia um outro aposento, no qual continuavam empilhadas as velhas caixas e malões de viagem, manequins de costureira, montes de revistas amarradas com barbante, falecidas máquinas de costura, rolos de tapete e linóleo, e quatro molduras de retratos, vazias.

— Eu poderia ter tirado tudo daqui — disse Isobel — porém não sabia o que fazer com todas essas coisas, não sendo minhas. Então, a sra. Carey-Lewis disse que deixasse tudo como estava. Os malões estão cheios de cartas e fotos antigas.

— Não se preocupe — disse-lhe Judith. — A senhora fez mais do que era preciso, e tudo isso pode ser vistoriado e arrumado em qualquer época.

— Eu varri bem o chão e limpei algumas teias de aranha. Sempre achei que aqui daria um excelente quarto, mas onde poríamos todos estes malões...?

Até então, Biddy não falara muito. Agora, no entanto, cruzou o aposento e se postou sob o teto alcatroado da janela do sótão, de onde ficou olhando para fora.

— Você está certa, Isobel — disse. — Aqui é perfeito para um quarto. Dá para ver o mar... e hoje ele está tão azul! — Virando-se, ela sorriu para Isobel. — Não sentirá falta da vista?

Isobel sacudiu a cabeça, e as cerejas de seu chapéu entrechocaram-se.

— Há um tempo certo para tudo, sra. Somerville. Sem a sra. Boscawen, isto aqui não é mais o mesmo para mim. E a casa de meu irmão tem uma linda vista. Não tanto quanto esta, compreenda, mas também muito bonita. Pode-se avistar toda a extensão dos campos, até a fábrica de creme.

Era evidente que ela superara o abalo com a morte da sra. Boscawen, talvez conseguindo expulsá-lo de seu íntimo através daquela orgia de faxina da primavera. Agora, em todos os sentidos da palavra, estava pronta para partir. Saíram do sótão e tornaram a descer. Quando Isobel chegava ao corredor do térreo, ouviram o som do motor de um carro e, em poucos instantes, um Austin Baby rodava pela alameda de cascalhes, indo parar além da porta da frente, aberta. O irmão de Isobel havia chegado para levá-la embora.

Houve ainda alguma demora. De repente, Isobel ficou um pouco afobada, recordando coisas que esquecera de falar. E o que havia feito com sua caderneta de seguros? Foi encontrada na enorme bolsa de mão. Havia ainda seis panos de pó limpos e pendurados no varal, que deviam ser trazidos para dentro. E se eles quisessem uma xícara de chá, havia chá em sua respectiva latinha e um jarro de leite em cima da laje, na despensa...

Por fim o sr. Baines conseguiu acalmá-la, garantindo-lhe que tudo estava na mais perfeita ordem, e que talvez ela não devesse deixar seu irmão esperando. O pequeno carro recebeu as malas, Isobel apertou a mão deles três, foi introduzida no banco do passageiro e finalmente o Austin afastou-se, sem que ela — conforme observou o sr. Baines — desse algo mais do que um olhar para trás.

—Fico satisfeita por isso — disse Judith, enquanto permaneceram acenando, até o Austin Baby desaparecer de vista. —Não seria terrível se ela ficasse emotiva? Eu ficaria com a sensação de estar expulsando-a daqui.

— Ela vai ter um belo panorama da fábrica de creme. O que você quer fazer agora?

— O senhor tem que voltar ao escritório?

— Não. Todo o meu dia é seu.

— Oh, que ótimo! Podemos ficar aqui um pouco. Vou soltar Morag, dar-lhe um pouco de água, e depois porei a chaleira no fogo para tomarmos uma xícara de chá.

O sr. Baines sorriu.

— Você até parece minha filha, brincando de casinha.

— Só que, agora, isto é real.

Sendo aquela uma tarde tão quente, a reunião para o chá ocorreu na varanda abrigada, tendo o sr. Baines levado para lá algumas velhas peças de vime, nas quais se acomodaram. Algumas nuvens altas e vaporosas tinham surgido no céu, reunindo-se e depois dispersando-se, como fumaça soprada. Uma brisa agitou os galhos de uma ameixeira rosa-vivo, e pétalas caíram suavemente, como neve rosada, formando um tapete sobre a grama verde. Em algum lugar um tordo cantou. Enquanto bebiam chá nas xícaras de porcelana com guirlandas de rosas que tinham pertencido a tia Lavinia, Morag desapareceu em uma excursão exploratória, vasculhando aquele novo território e familiari-zando-se com tudo que tivesse cheiro interessante. Biddy ficou um pouco ansiosa.

— Será que ela pode perder-se?

— Não se preocupe.

— Até onde vai o jardim?

— Até o sopé da colina. Em terraços. Há um pomar no fundo. Eu lhe mostrarei mais tarde.

O tordo recomeçava a cantar. Biddy deixou sua xícara a um lado, recostou-se na poltrona de vime e fechou os olhos.

Pouco depois, o sr. Baines e Judith a deixavam, a fim de fazerem outra inspeção da casa, agora com olho clínico para os defeitos que exigiam atenção imediata. A mancha de umidade no sótão de Isobel; outra no banheiro. Uma torneira gotejante na cozinha, a suspeita de carunchos na copa.

—Vou precisar de um encanador — disse o sr. Baines.

Saindo da casa, ele foi examinar as calhas no alto do telhado e as que desciam pelas paredes, e verificar se faltavam telhas de ardósia ou havia dobradiças enferrujadas. Certa de que sua presença era dispensável, Judith voltou para junto de Biddy. Quando cruzou a cozinha, tirou de seu gancho a chave da casa do jardim — porque não havia um momento melhor do que aquele. O único fantasma infeliz da Dower Hause precisava ser exorcizado o mais rápido possível, a fim de que em sua nova propriedade as memórias fossem varridas e expulsas de todos os recantos.

Biddy continuava como a tinham deixado, porém Morag havia voltado e descansava ao lado dela. Há muito e muito tempo Judith não via Biddy fazendo alguma coisa tão tranqüilamente. Parecia uma vergonha perturbá-la, porém ela não estava dormindo. Puxando uma banqueta de vime, Judith sentou-se diante dela.

— Quer ver o jardim? Biddy virou a cabeça.

— O que você fez com seu amigo advogado?

— Ele está inspecionando as calhas.

— Que homem tão simpático!

—Também acho. O sr. Baines é especial.

—A sra. Boscawen deve ter sido uma senhora muito tranqüila.

— Por que diz isso?

— Porque não me lembro de já ter estado em um lugar mais tranqüilo. Não se ouve o menor som. Apenas pássaros, gaivotas e um jardim ensolarado. E essa pequena vista do mar.

— Quando vim aqui pela primeira vez, anos atrás, pensei que era Como a gente estar no estrangeiro. No Mediterrâneo, em algum outro lugar. Na Itália, talvez.

— Exatamente. Puro E.M. Forster. Eu tinha esquecido como era a Cornualha. Há tanto tempo não vinha aqui. Aquele último verão em Riverview. é como o passado. Outro país. E Devon, agora, também já parece muito distante.

- Acha que isso é uma boa coisa?

— Sim. É uma boa coisa. Curativa. Estar em algum lugar. numa casa como esta. que não tem recordações de Ned.

Desde a morte de Ned, era a primeira vez que Judith de fato ouvia Biddy pronunciar o nome dele.

— E isso também é bom? — perguntou.

— É. Não devia, mas é. Eu gostaria de ficar com minhas recordações, porém Upper Bickley está cheia demais delas. Acordo durante a noite e penso ter ouvido a voz de Ned. Entro no quarto dele, enterro o rosto na coberta de sua cama e choro de desolação. Tem sido um inverno tão ruim. Acho que não o teria suportado, se você não estivesse em Devon comigo.

— O inverno já terminou — disse Judith.

—Sim, mas eu ainda terei de voltar. De lidar com a minha fraqueza e enfrentar a realidade. Sei disso muito bem.

— Você não precisa voltar. Podemos ficar aqui. Esta é minha casa. Podemos mudar-nos para cá amanhã, se quiser. E, também se quiser, poderá ficar dias, semanas ou meses. O verão inteiro. Por que não?

— Oh, Judith! Que idéia! Quando foi que pensou nisso?

— Agora. Neste momento. Enquanto você falava. Não há nada que nos impeça.

—Oh, mas, e a minha casinha em Devon? Não posso simplesmente abandoná-la!

— Claro, mas pode alugá-la para o verão, mobiliada. Qualquer família da marinha, estacionada em Devonport, agarraria a oportunidade com unhas e dentes. Uma casa tão conveniente, tão perto de Plymouth! Era só você deixar a notícia correr pelo porto; alugaria sua casa num piscar de olhos.

— Bem, mas os Daggs.

— Se alugar a casa para pessoas distintas, os Daggs ficarão felizes em continuar trabalhando lá, além de ficarem de olho na casa e no jardim para você. Vir para cá seria como se estivesse passando umas belas férias neste lugar. Além disso, pode ajudar-me a vasculhar todas aquelas caixas que estão no sótão.

De repente, Biddy começou a rir.

— Oh, mas assim não seriam férias!

Judith, no entanto, pôde notar o crescente excitamento no rosto dela.

- Não há nada para deter-nos. Está entendendo? Nada pode impedi-la de simplesmente ficar aqui. Vamos, Biddy, diga que aceita! Dê a si mesma uma oportunidade. Você a merece!

—Oh, mas você... combinamos que não poderia ficar comigo para sempre, e eu sou tão inútil se estou sozinha...

—Eu lhe contei. Vou pedir a Phyllis e seu bebê que venham morar aqui, portanto, você não ficará sozinha. Sempre gostou de Phyllis, e Anna é uma criança meiga. Mesmo que eu vá prestar serviços como Wren ou outra coisa qualquer, vocês três podem ficar aqui, juntas. Fazendo companhia uma à outra. Eu a levarei a Nancherrow e, depois de conhecer Diana e todos eles, garanto que não se sentirá nem um pouco solitária. Além disso, poderá trabalhar na Cruz Vermelha com ela, em vez de com Hester Lang. Está vendo só? Tudo se ajusta tão perfeitamente, que parece ter sido feito sob medida!

Biddy, no entanto, a despeito de si mesma, continuava indecisa.

— E quanto a Bob?

— Ligaremos para ele e contaremos o nosso plano.

— Certo, mas as folgas, coisas assim... Eu preciso estar lá, se ele tiver uma licença.

— Aqui é apenas um pouco mais longe do que Devon. Ou então, se você preferir, pode ir de trem para Londres e encontrá-lo lá. Por favor, não pense em mais objeções. Apenas concorde. De qualquer modo, até o fim do verão.

—Vou pensar nisso —disse Biddy fracamente, mas Judith não quis ouvir.

— Já sei o que faremos. Voltamos para o ”The Mitre” esta noite, dormimos lá, depois compramos um pouco de comida e regressamos para cá amanhã. Então, arrumaremos as camas e colheremos montes de flores. Vamos acender o fogão esta noite, para que não fique apagado. Assim, haverá fartura de água quente para banhos e outras coisas... e isso é absolutamente tudo em que pensaremos.

— E Morag?

— Oh, Biddy, Morag vai adorar morar aqui. Não é mesmo, cachorrinha querida? Ela já se sente quase perfeitamente em casa. Por favor, não pense em novos impedimentos agora. De que adianta eu ter uma casa, se não pudermos desfrutar dela, todos nós? Por fim, Biddy entregou os pontos.

 

Membro do Women’s Royal Naval Service, o Serviço Feminino da Marinha Real. (N. da T.)

 

— Está bem. Podemos experimentar. Por umas duas semanas digamos. — Ela então riu. — Por tudo que há de mais sagrado, não sei de quem herdou poderes tão persuasivos! Certamente não foi de sua querida mãe e tampouco de seu pai.

— Prefiro pensar que os herdei de você. Agora, rapidamente, antes que o sr. Baines volte e diga que está na hora de voltarmos para Penzance. Venha comigo e deixe-me mostrar-lhe o jardim.

Biddy então levantou-se e, juntas, saíram para o agradável calor do fim de tarde, cruzaram o gramado, seguiram pela trilha que atravessava o roseiral, e em seguida desceram para o pomar. Ali, as velhas e retorcidas macieiras ostentavam uma profusão de brotos verdes; já estavam floridas e formados os diminutos botões dos novos frutos. A relva se mostrava crescida, pontilhada de papoulas silvestres e margaridas. Em breve, tudo aquilo teria que ser ceifado e depois atado em pequenas medas. Biddy aspirou o ar perfumado.

— É como uma pintura de Monet! — exclamou. Morag saltitava à frente delas. — Que casinha é aquela?

— Oh! Aquela é a Cabana. Tenho a chave comigo. Tia Lavinia mandou construí-la para Athena e Edward Carey-Lewis. Eles costumavam acampar aqui, na época do verão.

— Você quer mostrá-la para mim?

— Sim, acho que quero.

Judith seguiu à frente de Biddy, baixando a cabeça sob os galhos das macieiras. Subiu os degraus de madeira e sentiu o cheiro cálido de creosoto. Enfiando a chave na porta, girou-a e empurrou para abri-la. Viu o beliche, com sua manta escarlate, onde havia encontrado e perdido o seu amor.

Este é apenas o começo do amor.

Não obstante, havia sido o fim.

Não faz sentido dar seu amor à pessoa errada.

Ela recordou o abelhão, zumbindo junto ao teto. Olhou para cima. Havia teias de aranha novamente, e seus olhos ficaram marejados de lágrimas.

—Judith.

Era Biddy, atrás dela.

Judith esfregou os olhos para secar as lágrimas, depois se virou.

.Quanta idiotice!

— Fala de você e Edward?

Eu precisava vir. Nunca mais estive aqui, desde então; precisava vir hoje.

. Enfrentando o problema com coragem?

Suponho que seja isso.

— E ainda dói?

— Sim.

— Isto agora é seu — disse Biddy. — Pode enchê-lo com suas próprias experiências, fazer as suas próprias recordações. Foi corajosa em vir aqui.

— Neste exato momento, não me sinto nem um pouco corajosa.

— Se todas as providências falharem, ainda poderá usar a Cabana como um quarto extra para hóspedes. Que tal reservá-la para hóspedes que ronquem?

De repente, as lágrimas idiotas recuaram e elas duas estavam rindo com vontade. Biddy abraçou Judith de leve e a empurrou pela porta, que trancaram novamente. Depois iniciaram a caminhada de volta através do pomar, e ainda não haviam chegado, quando ouviram o sr. Baines que as chamava, perto da casa. Apressando o passo, elas cruzaram o jardim para contar imediatamente a ele, sem perda de tempo, os planos que haviam feito.

— Aqui é Nancherrow. — Diana, sou eu, Judith!

— Querida! Onde você está?

— Na Dower House. Mudei-me ontem para cá. Estou morando aqui.

— Oh, que notícia mais agradável! Eu nem sabia que você tinha vindo.

— Trouxe Biddy comigo. E a cachorra dela. Recebemos as chaves na segunda-feira, e então nos mudamos ontem para cá.

— É uma mudança definitiva?

—Ainda não estou bem certa. De qualquer modo, ficarei aqui por enquanto. Este lugar é o paraíso, Diana. E eu preciso agradecer muito a você, por deixar-me ficar com todos os móveis. Imagino que deva pagar-lhe por eles e.

— Céus, nem pense em tal coisa, porque Edgar ficaria mortalmente ofendido. Receio termos deixado alguns lugares vazios, removendo todas aquelas coisas, porém eu queria realmente que as crianças tivessem pelo menos uma pequena recordação da querida tia Lavinia.

— Os vazios a que se refere nem saltam aos olhos. Um dia eu os encherei com peças minhas, pessoais. Como vão todos?

— Com problemas de saúde. Acabamos de ver Edward por uns dois dias. Foi totalmente inesperado, mas seu comandante concedeu-lhe um fim de semana de licença, e achei uma bênção poder tornar a vê-lo. É uma pena que, por pouco, você tenha deixado de encontrá-lo.

— e como está ele?

— Parecendo um pouco cansado e magro. Passou dormindo a maior parte do tempo e, ao voltar para o tenebroso Kent, ou seja lá onde estiver, já se sentia perfeitamente dono de si. Contei a ele que você tinha comprado a Dower House. Edward ficou deliciado; aliás, como todos nós. Falou que era como manter a propriedade na família. Pediu para dizer-lhe que, quando vier em casa da próxima vez, irá visitá-la e certificar-se de que você não está fazendo nenhuma mudança ou reforma radicais.

— O que ele imaginou que eu pudesse fazer?

— Oh, não sei. Construir uma ala com um salão de baile ou coisa assim. Quando é que a veremos? Venha almoçar. Traga sua tia e a cachorra para o almoço. Que dia? Amanhã?

—Amanhã é impossível, porque temos de ir a Saint Just e conversar com Phyllis Eddy. Quero que ela também venha morar aqui, com sua filhinha. Tenho esperanças de que fique feliz com a idéia, mas a gente nunca sabe, não é mesmo?

— Querida, qualquer coisa será melhor do que Saint Just. Então o que me diz de sexta-feira? Um almoço na sexta-feira?

— Seria maravilhoso. Por falar nisso, eu gostaria que você alistasse Biddy na Cruz Vermelha.

— É claro que será ótimo recebermos gente nova. Barbara Parke Brown está ficando terrivelmente mandona e todos têm pavor dela, exceto eu. Ficamos repetindo que estar em guerra revela o que há de melhor nas pessoas, mas a verdade é que revelou o que há de pior nela. Ouça, meu bem, e quanto às suas coisas que estão aqui? Pretende removê-las ou quer que eu as conserve para você?

- Pretendo trazê-las daí, e então você poderá ter de volta seu quarto rosa.

— Muito triste. O fim de uma era. Pedirei a Mary que empacote tudo e mandaremos para você, com um trator ou coisa assim.

Não há nenhuma pressa. Como vai Athena?

Ficando mais enorme a cada momento. Estou ajeitando o berço. Com bordado inglês, está lindo demais. Mostrarei a você quando vier. Sexta-feira, à hora do almoço. Vou já contar para a sra. Nettlebed, a fim de que ela mate o carneiro mais gordo ou torça o pescoço de uma das galinhas velhas de Loveday. Até lá então, minha querida. Obrigada por telefonar. É formidável saber que você voltou novamente para perto de nós. Até sexta!

Dower House

Rosemullion

Cornualha

Sábado, 25 de maio

Queridos mamãe e papai

Novamente, há séculos que não escrevo para vocês. Lamento, mas têm acontecido coisas demais. Muito importante: o que acham deste papel de cartas, não é adorável? Eu o descobri em uma gaveta e não resisti à tentação de usá-lo. Achei-o em uma caixa da Harrods, todo timbrado e parecendo estar à minha espera.

Como podem ver, já nos mudamos. Biddy, a cachorra dela

Biddy gostou da mudança, sente-se muito mais calma agora e nunca teve melhor aparência. Penso que ela acha esta casa muito tranqüila e sem recordações de Ned. Por outro lado, ela sempre gostou da Cornualha, e esta tarde nós vamos até o mar para nadar. Espero que Biddy alugue Upper Bickley e fique comigo, pelo menos durante o verão, porém ela é que decidirá o que achar melhor.

Ontem, fomos de carro até Saintjust verPhyllis. Ela agora está morando com os pais e mal há lugar para a gente dar um passo, mas depois dos cumprimentos e das inevitáveis xícaras de chá com fatias de bolo de açafrâo, eu e Biddy a levamos para o gramado onde coram e secam a roupa lavada e, sentadas no capim, convidei-a a trazer Anna e vir morar aqui. (Anna é adorável, está engatinhando e começando a dizer algumas palavras. Felizmente é parecida com Phyllis e não com Cyril, cujo único traço bom parecem ter sido sobrancelhas bem-feitas.) De qualquer modo, a proposta demorou alguns minutos para ser entendida, mas quando finalmente entendeu, Phyllis prorrompeu em lágrimas, tomada de felicidade e gratidão. O arranjo (com a aprovação do sr. Baines), foi o de eu lhe pagar uma espécie de salário como caseira, de modo a não deixá-la em apuros financeiros. A Marinha, aliás, já a reembolsa com parte de um soldo e, desta maneira, Phyllis estará bem. Imaginei-a algo relutante em deixara casa da mãe e vir para tão longe (em quilômetros não é longe demais, mas certamente não fica logo ali na esquina), porém ela foi bastante filosófica a respeito, e acho que quando demos a notícia para sua mãe, esta ficou bem aliviada porque, com sinceridade, a casa de Saintjust está superpovoada, o que é demasiado anti-higiênico.

Na sexta-feira, levei Biddy para almoçar em Nancherrow. Eu estava um pouco ansiosa sobre ela e Diana se darem bem, porque as duas são parecidas em certos sentidos e, por vezes, quando as pessoas se parecem muito, não fazem amizade entre si. Entretanto, minhas preocupações foram em vão, uma vez que as duas simpatizaram uma com a outra de cara, e logo estavam se dobrando de rir por causa das mesmas piadas tolas. Biddy vai juntar-se ao grupo de Diana na Cruz Vermelha, o que lhe dará algum trabalho de guerra para fazer. Enquanto isso, ela está instalada aqui inteiramente à vontade e, como já falei, relaxando mais, começando a tornar-se a divertida Biddy de antigamente, a cada dia que passa. Eu não tinha percebido a tensão em que ela vivia, passando os dias em uma casa tão cheia das lembranças de Ned.

Mal posso esperar para lhes mostrar minha adorável casa nova. Não é mesmo uma sorte será dona de uma propriedade, ter minhas próprias raízes e ainda nem mesmo estar com dezenove anos?

Não pretendo ficar aqui para sempre. Em verdade, desejo juntar-me às Wrens, mas primeiro devo ter tudo e todos devidamente instalados. Talvez lá pelo fim do verão.

Agora, preciso ir ajudar Biddy. Um dos sótãos foi deixado cheio de malas velhas, restos de tapetes etc, etc, e ela está começando a fazer uma limpeza por lá. No momento dispomos de apenas três quartos, Phyllis e Anna precisando dormir no sótão, onde dormia Isobel. Entretanto, no ritmo em que vamos precisaremos de outro quarto, pois logo que nos livrarmos de toda a quinquilharia, o aposento levará uma mão de tinta, e vou comprar alguns móveis.

As notícias da guerra são assustadoras. Os Aliados recuaram para Dunquerque. O Coronel Carey-Lewis está convencido de que toda a Força Expedicionária Britânica será aniquilada ou capturada. Tudo aconteceu com incrível rapidez e, quando finalmente receberem esta carta, só Deus saberá a quantas andamos. O sr. Baines, no entanto, tem certeza absoluta de que, chegado o momento, iremos ganhar esta guerra; assim, resolvi também ter essa certeza.

Não devem preocupar-se conosco. Sei que é difícil, estando nós tão longe uns dos outros; entretanto, também sei que, aconteça o que acontecer, estaremos bem.

Montes de amor,

Judith

Os Nove Dias Prodigiosos — a evacuação das tropas britânicas encurtadas em Dunquerque — tinham chegado ao fim. Os primeiros homens foram levados para casa na noite de 26 de maio, pote Dunquerque estava em chamas, após dias e noites de consistemte ataque, com a destruição de molhes e portos. Assim, o que sobrou da Força Expedicionária Britânica reuniu-se nas praias e dunas, à espera do resgate. Paciente e ordeiramente, os soldados formaram longas serpenteantes filas sobre as rasas areias francesas.

Os navios de tropas e destróieres, sob constante fogo de artilharia e ataques aéreos, jaziam em águas fundas, diante da praia, mas, sem meios de transporte, não havia como serem alcançados pelas tropas sitiadas. Em vista disso, foi levantada a segurança, foi dado o sinal. Então, na noite seguinte, uma frota de pequenos barcos partiu de Dover, navegando através do Canal. Eram iates e lanchões, barcos de recreio, rebocadores e pequenos barcos a remo, que partiram de ancoradouros e estaleiros em Poole e no Hamble, da ilha Hayling e de Hastings, da ilha Canvey e de Burnham, no Crouch. E os tripulantes dessas pequenas embarcações eram homens idosos e rapazolas, gerentes aposentados de bancos, pescadores e corretores de imóveis, além de qualquer pessoa suficientemente decidida que já passara seus verões dos tempos de paz navegando inocentemente em barcos por aquelas mesmas águas.

Suas instruções eram para chegarem às praias o mais perto que pudessem, lotarem suas embarcações com soldados e carregarem-nos para a segurança, indo e vindo, entregando sua exaurida carga humana aos navios que esperavam em mar aberto. Desarmados, varridos pelo fogo inimigo, eles continuaram sua tarefa até o combustível esgotar-se e ser hora de voltarem à Inglaterra para um novo suprimento e duas horas de sono. Em seguida, recomeçar tudo de novo.

Nove dias. A 3 de junho, uma segunda-feira, a operação chegou ao fim. Graças a inspiradas organização e improvisação, não se falando em atos individuais de enorme coragem pessoal, mais de três mil soldados foram resgatados das praias de Dunquerque e despachados para casa, levados de volta à Inglaterra e à segurança. O país inteiro deu graças a Deus, porém quarenta mil homens tinham ficado para trás e passariam os cinco anos seguintes como prisioneiros de guerra.

A 51a Divisão Highland, contudo, não estava em Dunquerque. Essa divisão, incluindo batalhões dos Black Watch, dos Argylls, dos Seaforths, dos Camerons e dos Gordons, ainda permanecia na França, lutando ao lado dos remanescentes de um desencorajado exército francês. Era, entretanto, uma batalha perdida. A cada manhã, os jornais ingleses mostravam as sinistras e invasoras setas do avanço do exército alemão que nada os conseguia deter, tornando-se aterradoramente claro que se tratava apenas de uma questão de dias, antes que este último e corajoso remanescente do exército britânico fosse empurrado para o litoral.

Por fim, chegaram a Saint Valéry en Caux, e não puderam ir mais

O nevoeiro impossibilitava o resgate pelo mar, e os batalhões exauridos pela luta foram cercados — encurralados pelo insuperável poderio das divisões Panzer alemãs. A 10 de junho a unidade francesa capitulou, e, horas mais tarde, capitulava também tudo quanto restava da Divisão Highland. Mais tarde, desarmados, eles tiveram permissão para desfilar diante de seu general e, na chuva, dirigir-lhe um olhar à direita. E continuaram marchando, seguindo para o cativeiro. Os Black Watch, os Argylls, os Seaforths, os Camerons, os Gordons. E Gus.

Em uma retrospectiva, depois disso Judith sempre se lembraria da guerra como sendo uma espécie de longa viagem de avião. horas de tédio, entremeadas com jatos do mais puro terror. O tédio era perfeitamente natural. É humanamente impossível a qualquer pessoa viver durante seis anos de guerra sempre no ápice do envolvimento apaixonado. O medo, no entanto, assim como a proximidade desse medo, também eram naturais e, durante os sombrios dias de Dunquerque e da queda da França, Judith e praticamente todos os habitantes do país existiram em permanente aflição, nas garras da ansiedade e do suspense.

Na Dower House, o rádio em cima do aparador da cozinha era Mantido ligado o dia inteiro, resmungando para si mesmo do início da manhã até noite alta, a fim de que não se perdesse um só boletim ou noticiário imprevisto. Ao anoitecer, Judith, Biddy e Phyllis agrupavam-se em torno do rádio da sala de estar e, juntas, ouviam o noticiário das nove horas.

A medida que os dias límpidos do início do verão iam passando, o desespero foi substituído por uma cautelosa esperança, mais tarde — enquanto a extraordinária operação era efetuada segundo o planejado por gratidão e orgulho, e finalmente por intenso alívio. Um alívio que desabrochou em uma espécie de triunfo. Os homens estavam em casa. Haviam voltado e nada mais tinham além de rifles, baionetas e algumas metralhadoras. Para trás deles, jaziam quantidades maciças de equipamentos abandonados. Canhões, tanques e veículos a motor muitos dos quais tinham sido destruídos, juntamente com tanques de gasolina e depósitos de óleo, no pátio enfumaçado e demolido que era tudo quanto restava de Le Havre.

Entretanto, os homens estavam em casa.

Aos poucos foram pingando notícias daqueles que haviam sido resgatados e dos que tinham ficado para trás, na França. Palmer, o outrora jardineiro-motorista de Nancherrow, havia voltado. Como Joe Warren e seu amigo Rob Padlow.

De Londres, Jane Pearson telefonou para Athena com a feliz novidade de que Alistair Pearson havia sido salvo — içado do mar por um corpulento iatista, aquecido por umas doses do melhor brandy francês e depositado na praia, em Cowes. Para Alistair, este parecia um final convenientemente civilizado de suas aventuras. Entretanto, o filho do governador do condado havia sido ferido e estava em um hospital de Bristol, ao passo que o sobrinho da sra. Mudge, juntamente com Charlie Lanyon, o amigo de Heather, tinham sido dados como desaparecidos, presumivelmente mortos.

Entretanto, o mais pessoal e importante de tudo — para Diana e Edgar Carey-Lewis, para Athena, Loveday e Mary Millyway, para os Nettlebed e Judith — era que Edward Carey-Lewis tinha sobrevivido, seu esquadrão de aviões de caça tendo efetuado sucessivas patrulhas sobre a mutilação de Dunquerque, dispersando formações de bombardeiros alemães e afugentando-as para longe das praias sitiadas.

De quando em quando, durante aqueles dias tensos e ansiosos, sempre que tinha oportunidade e conseguia uma linha desimpedida, Edward telefonava para casa, apenas para comunicar à família que continuava vivo, e muitas vezes sua voz soava esganiçada pelo excita-mento de uma surtida que acabara de ser completada.

Quanto a Gus, depois de Saint Valéry toda a esperança fora perdida. Gus eclipsara-se, juntamente com seu regimento. Todos rezaram para que ele continuasse vivo, mesmo sendo feito prisioneiro, porém tantos membros da Divisão Highland haviam sido mortos durante a feroz luta que precedera Saint Valéry, que esta alternativa parecia somente provável. Por amor a Loveday, os rostos mostravam expressões corajosas, porém ela só tinha dezessete anos e recusava qualquer consolo.

A melhor coisa a fazer é manter-se ocupada — disse a sra. Mudge.pelo menos é o que todos falam, porém mais fácil é dizer do que fazer, não acha? Afinal, como posso dizer isto para minha pobre irmã, quando ela não pára de preocupar-se, a ponto de adoecer, ignorando se o rapaz está morto ou vivo? Desaparecido é a mesma coisa que morto, se é! Que notícia mais desastrosa para a pobre criatura receber em um telegrama! E não havia ninguém em casa com ela, o marido estava no mercado de Saint Austell, e lá só havia o rapazinho do telégrafo para preparar-lhe uma xícara de chá.

Loveday nunca tinha visto a sra. Mudge tão abatida. Desastres, mortes, doenças, operações e acidentes fatais geralmente significavam coisas da vida para ela, incidentes a serem sofridos por outras pessoas e demoradamente comentados com grande satisfação. Isto agora, supunha Loveday, era bem diferente. Não se tratava do jovem Bob Rogers, morador nos arredores de Saint Austell, que perdera os dedos no cortador de nabos, nem da velha sra. Tyson, encontrada morta em uma valeta junto à estrada, quando voltava da Associação das Mães para casa. Agora, o caso dizia respeito à carne e sangue da sra. Mudge, ao filho único de sua irmã.

— Acho que eu devia ficar alguns dias com ela. Apenas para fazer-lhe companhia. Minha irmã tem filhas que moram na zona rural, mas nada existe como uma irmã, concorda? A gente pode falar sobre os velhos tempos com uma irmã. As filhas dela são todas avoadas, só Querem saber de estrelas de cinema e roupas.

- Então, por que não vai, sra. Mudge?

Como eu poderia? Tenho que tirar o leite das vacas e trabalhar na leiteria. Além disso, a ceifa do feno começará dentro de uma ou duas semanas, isto significando idas aos campos com a garrafa térmica de chá, e Deus sabe com quantas bocas a mais para alimentar. Não vai ser Possível, eis a verdade.

E onde mora sua irmã?

— O marido dela tem uma propriedade nos fundos de Saint Veryan. Nos fundos, é maneira de dizer. As terras dele são além dos fundos, eu diria. Quando se tem sorte, há um ônibus para lá, uma vez na semana. Não sei como ela agüenta isso. Nunca pude saber.

Eram dez e meia da manhã, e elas bebiam chá, sentadas à mesa da cozinha de Lidgey. Loveday passava necessariamente muito de seu dia em Lidgey, ajudando Walter e o pai dele na propriedade, aprendendo a lidar com o birrento trator, alimentando as aves e agora os porcos (uma nova aquisição, comprada no mercado de Penzance, de olho no bacon que poderiam vender). Não obstante, só ultimamente, desde que tinham ficado a par das sombrias notícias de Saint Valery, é que ela passara a fugir para lá ao menor pretexto — e às vezes sem nenhum pretexto. Por algum motivo, Loveday achava a companhia simplória da sra. Mudge mais confortadora do que a amorosa solidariedade de sua mãe, de Mary e de Athena. Em Nancherrow, todos se mostravam insuportavelmente compreensivos e gentis, porém a questão era que, embora tentando acostumar-se à idéia de que Gus estava morto e que nunca mais tornaria a vê-lo, tudo quanto ela queria era poder falar sobre ele, como se não estivesse morto. Como se ainda estivesse vivo. A sra. Mudge era boa nisso. Vezes sem conta ela repetira, "Note bem, note bem, ele pode ter sido feito prisioneiro!", e Loveday podia dizer o mesmo à sra. Mudge, a respeito do sobrinho dela. “Não sabemos se ele está morto. Houve batalhas tão terríveis! Como alguém pode ter certeza?"

Desta maneira, uma consolava a outra.

A sra. Mudge tinha terminado o seu chá. Levantou-se fatigadamente, foi até o fogão e tornou a encher a xícara para si mesma, em seu enorme bule castanho. Observando-a pelas costas, Loveday decidiu que ela havia perdido a inclinação para a tagarelice. Os instintos familiares tinham força, e era evidente que a sra. Mudge ansiava estar com a irmã. Alguma coisa precisava ser feita. O inato senso Carey-Le-wis de responsabilidade de Loveday, juntamente com seu jeito natural para dar ordens, assumiram maiores proporções. Quando a mulher tornou a sentar-se, Loveday já tomara sua decisão.

— A senhora precisa ir para Saint Veryan agora — disse, em tom firme. — Hoje. Para ficar lá uma semana, sendo preciso. Antes que a colheita do feno comece.

A sra. Mudge a fitou como se pensasse que Loveday perdera o juízo.

- O que você está dizendo é uma bobagem.

- Não é bobagem. Posso ordenhar as vacas. Walter me ajudaria. Eu tiraria o leite.

Você?

- Sim, eu. Meu serviço de guerra é trabalhar na propriedade. E ordenhar. A senhora me mostrou como se faz, quando eu era pequena. Posso ser um pouco lenta, mas logo aprenderei o jeito.

.Você nunca poderia fazer isso, Loveday. Nós começamos às seis da manhã.

Posso levantar cedo. Posso levantar às cinco e meia. Se Walter levar as vacas até o galpão da ordenha para mim, então estarei aqui às seis, para começar a trabalhar.

— O leite não é tirado só de manhã, mas também ao anoitecer.

— Sem problema.

— Ainda há os latões de leite que precisam ser limpos e levados até a estrada, a fim de serem recolhidos pelo caminhão do leite. O homem chega às oito da manhã e não gosta de ficar esperando.

— Não o deixarei esperando. — A sra. Mudge olhou dubitativa-mente para Loveday. Estava claramente dividida entre o desejo de ficar ao lado da irmã enlutada, e um certo desapontamento à idéia de que não era indispensável. — Você terá de limpar tudo quando acabar — avisou ela. — Walter não fará isso para você. Não é trabalho de homens. E eu não vou querer encontrar um galpão imundo e latões sujos, quando voltar para casa.

— Tem a minha palavra. Encontrará tudo limpo. Oh, deixe-me fazer isso, sra. Mudge! Por favor! Acabou de dizer que o importante é a pessoa manter-se ocupada, e eu me sinto tão infeliz e preocupada como sua irmã. Fico acordada de noite pensando em Gus, por isso Poderia muito bem levantar-me às cinco da manhã e fazer alguma coisa. Assim, se a senhora for visitá-la, estará ajudando a nós duas.

-Não deve imaginar que penso menos a respeito de Gus do que e meu sobrinho. Um excelente rapaz era o Gus. Lembra-se do dia em que veio até aqui, pintar um quadro do meu celeiro? Havia galinhas e esterco por todo lado, mas nem se importou.

— Telefone para sua irmã e diga a ela que irá vê-la. O sr. Mudge pode levá-la de carro até Saint Veryan esta tarde, e a senhora ficaram pelo tempo que achar necessário.

A sra. Mudge balançou a cabeça, perplexa.

— Não sei não, Loveday, você me deixa mortificada. Cheia de surpresas. Nunca a imaginei com tanta consideração.

—Não estou tendo consideração, sra. Mudge, estou sendo egoísta. Provavelmente eu não faria coisa alguma, se não pensasse em tirar algum proveito disso.

— Está fazendo pouco de si mesma.

— Não, de modo nenhum. Estou apenas sendo honesta.

— Isto é o que você diz — retorquiu a sra. Mudge. — Os outros pensarão coisa bem diferente.

Todos os dias, às oito e meia da manhã, depois de levar os latões de leite até onde a alameda encontrava a estrada, de entregá-los ao caminhão do mercado do leite e de trazer os latões vazios para a leiteria, Loveday caminhava de volta para casa e para seu breakfast, quase morrendo de fome.

Estavam a dezoito de junho. A ausência da sra. Mudge já durava cinco dias, e ela devia voltar para casa no dia seguinte. De certo modo, Loveday até lamentava o retorno dela. Incumbir-se da ordenha e do resto, uma tarefa-maratona que ela assumira tão impetuosamente, resultara em uma espécie de desafio e de trabalho extremamente árduo. A princípio havia sido lenta e desajeitada (nervosismo), mas Walter, alternadamente praguejando ou oferecendo algumas palavras de encorajamento ("se você esperar, eu lhe mostrarei como mover esse maldito latão"), havia sido incomumente cooperativo, ajudando-a assim a sair-se bem.

Não havia muita conversa. Walter era um indivíduo taciturno. Loveday não tinha certeza se ele sabia sobre Gus, mas, conhecendo a sra. Mudge, quase podia afirmar que sabia. De qualquer modo, Walter nada disse e tampouco ofereceu qualquer espécie de compreensão. Quando Gus estivera hospedado em Nancherrow, os dois se tinham encontrado nos estábulos certa manhã, e Loveday os apresentara. Entretanto, Walter se mostrara absolutamente brusco, um verdadeiro índio do palafreneiro descortês, e Gus, após uma ou duas tentativas amistosas, terminara desistindo. Na época, ocorrera a Loveday que Walter podia estar enciumado, mas a idéia era tão absurda, que imediatamente a expulsou da mente. Walter era guiado por seus próprios princípios, mas ela o conhecera a vida inteira e sempre se sentira à vontade em companhia dele.

Ao anoitecer, quando a última vaca havia sido ordenhada e o pequeno rebanho devolvido aos campos novamente, Loveday empenhou-se na limpeza, esguichando água da mangueira no galpão e esfregando tudo, orgulhando-se em deixar o piso brilhante, e limpíssimos os baldes em que aparava o leite. Seu desejo era que, ao voltar, a Sra. Mudge não encontrasse falha alguma. Em troca, a cozinha de Lidgey era um chiqueiro de pratos sujos, panelas enegrecidas e roupas por lavar. No dia seguinte ela talvez encontrasse algum tempo para também dar um jeito naquilo. Parecia-lhe o mínimo que podia fazer pela pobre sra. Mudge.

Loveday cruzou o pátio e escalou o portão que dava para a alameda, ficando algum tempo sentada na viga de cima, porque aquele era um de seus panoramas favoritos. Nesta manhã, a vista parecia particularmente luminosa e radiante. Mais cedo, quando ela viera trabalhar, tudo estava orvalhado e tranqüilo sob os primeiros raios baixos do sol nascente. O próprio mar, balouçando-se suavemente, sem rugas produzidas pelo vento, passara do cinza para um translúcido madrepérola. Agora, no entanto, três horas mais tarde, oferecia uma tonalidade azul-sedosa, sob um céu sem nuvens. Levantara-se uma brisa e, de onde estava, ela podia ouvir o som distante das ondas, rolando ao pé dos penhascos. Gaivotas revoluteavam nas alturas. A luz do sol, as charnecas estavam amarelo-acastanhadas e os pastos de um brilhante verde-esmeralda. Ela avistou as vacas pastando tranqüilamente e, de mais longe ainda, ouviu os latidos furiosos do cão de Walter.

Curiosamente, sua mente esvaziou-se. Durante muito tempo ela não Pensara em nada e isso era bastante agradável — era como estar em um limbo, flutuando no espaço entre dois mundos. Então, pouco a Pouco, o vácuo formado por aquela descuidada atitude foi preenchido Pela imagem de Gus, subindo a alameda em largas passadas e aproximando-se dela, com os apetrechos de pintura dentro de uma mochila Pendurada ao ombro. Loveday pensou nele então, na França, e o visualizou andando, talvez marchando ou ferido, porém não morto. A presença vital de Gus foi tão forte que, de repente, ela foi consumida pelo excitamento, pela certeza irrefutável de que ele ainda estava vivo. Gus pensava nela, nesse exato momento; quase podia ouvir-lhe a voz sussurrando em sua direção, como que transmitida por invisíveis fios de telefone. Fechou os olhos em uma espécie de êxtase e permaneceu imóvel, com as mãos aferradas à viga superior do velho portão da fazenda. Quando tornou a abri-los, tudo estava diferente. Nem mesmo se sentia mais cansada, e todo o maravilhoso mundo estava inundado pelas velhas possibilidades de felicidade.

Pulando do portão, Loveday desceu a alameda correndo, suas per-nas ganhando velocidade à medida que a ladeira aumentava o declive com suas botas de borracha batendo como pistões sobre as lajes frouxas e nos torrões de lama seca. No final da ladeira, saltou por cima do segundo portão, mas então, sem fôlego e sentindo uma agoniante pontada no lado, precisou parar e beijar o joelho, pois era este o remédio clássico para pontadas. Depois foi só seguir pela trilha, cruzar a entrada, chegar ao pátio e alcançar a porta dos fundos.

— Tire suas botas, Loveday. Estão cobertas de lama.

— Desculpe, sra. Nettlebed.

— Voltou mais tarde hoje. Esteve muito ocupada?

— Não muito. Apenas fiquei perambulando por aí.Calçada apenas de soquetes, ela entrou na cozinha. Queria perguntar se havia notícias, se chegara alguma carta, se alguém soubera de alguma coisa, mas, se fizesse isso, a sra. Nettlebed e todos os demais começariam a fazer perguntas. E até haver alguma confirmação da segurança de Gus, ela não sussurraria uma só palavra de novas esperanças — para ninguém, nem mesmo Judith.

— O que temos para o breakfast — perguntou. — Estou morrendo de fome.

— Ovos fritos e tomates. Estão sobre a chapa de aquecer, na sala de refeições. Todos os outros já terminaram. É melhor apressar-se, Para que Nettlebed possa arrumar tudo.

Assim, Loveday lavou as mãos na copa e as enxugou na toalha de rosto que pendia atrás da porta. Depois saiu da cozinha e seguiu pelo corredor. Do andar de cima chegou até ela o som do aspirador. A porta estava aberta, e ela acabara de entrar, quando o telefone começou a tocar. Loveday parou de súbito e esperou, mas como ninguém atendesse, ela continuou andando e entrou no estúdio de seu pai. Estava vazio.

O telefone tocava, em cima da mesa dele. Ela ergueu o fone e o tilintar cessou.

- Nancherrow. — Por algum motivo, sua boca ficara seca. Pigarreou e repetiu: — Nancherrow.

Clique, clique, fez o telefone, depois começando a zumbir. Alô? — Ela começava a sentir um certo desespero. Clique, clique. Quem fala? — Uma voz de homem, apagada e distante.

— Loveday.

— Loveday? Sou eu. Gus.

As pernas dela perderam subitamente a consistência. Não conseguindo manter-se de pé, escorregou para o chão, levando o telefone consigo.

— Gus!

— Está me ouvindo? Esta é uma linha horrível. Só posso falar por um momento.

— Onde você está?

— No hospital.

— Onde?

— Southampton. Estou bem. Serei mandado para casa amanhã. Tentei ligar antes, mas estamos todos no mesmo barco e não há telefones suficientes.

M-mas. o que. o que aconteceu? Está muito ferido?

Apenas minha perna. Estou bem. De muletas, mas inteiro.

Eu sabia que você estava salvo. Soube de repente.

Não há mais tempo agora. Eu só queria falar com você. Vou escrever.

Escreva e eu responderei. Qual o seu endereço?

- É...

Contudo, antes que ele pudesse informar, a linha emudeceu.

- Gus? Gus? — Loveday colocou o fone no gancho e tentou novamente.—Gus?. Não adiantou. A ligação terminara. Erguendo o braço, ela colocou o fone de volta sobre a mesa. Ainda sentada no espesso tapete turco, recostou a cabeça na madeira fria, escura e envernizada da secretária de seu pai, fechando os olhos sobre as lágrimas que insistiram em deslizar, silenciosas, descendo por suas faces.

— Obrigada — falou em voz alta, não muito certa sobre o que agradecia. — Eu sabia que você estava vivo. Sabia que você entraria em contato comigo — e agora ela falava para Gus.

Após um momento, tornou a sentar-se ereta, puxou a camisa para fora das calças, limpou o rosto e assoou o nariz na aba. Então levantando-se, saiu do estúdio gritando pela mãe, tornando a gritar e voou escadas acima com pés que pareciam alados, para ser acolhida por Mary, para atirar-se nos braços de Mary, e partilhar, em histérica alegria, a incrível notícia.

Na Dower House, Biddy fez pleno uso da recém-encontrada energia e esvaziou o segundo sótão de suas quinquilharias. Tudo o que sobrou foram duas malas grandes de viagem, sendo encontrado espaço para elas no patamar do andar de cima, pois o que continham era demasiado pessoal e antigo, para que Judith assumisse a responsabilidade de desfazer-se do material.

Uma das malas estava repleta de cartas antigas, atadas em maços com desbotadas fitas de seda; programas de baile, dos quais pendiam pequeninos lápis; partituras musicais; fotografias, álbuns; livros de aniversário e um surrado Livro de Visitantes, encadernado em couro e datado de 1898. A outra guardava uma porção de adornos vitorianos. Compridas luvas brancas com minúsculos botões de pérolas, plumas de avestruz, murchos buquês de gardênias artificiais, bolsas feitas de contas e enfeites de massa para os cabelos. Tudo muito sentimental e bonito demais para ser jogado fora. Diana Carey-Lewis prometera vir um dia a Dower House para inventariar todas aquelas antigas lembranças. Até lá, Judith deixaria as malas cobertas por velhas cortinas de damasco William Morris e, assim disfarçadas, elas provavelmente permaneceriam onde estavam durante anos, sem que ninguém as perturbasse.

Tudo o mais tinha sido classificado como inútil ou quebrado (inclusive as molduras de retratos, que estavam comidas de caruncho) e levado penosamente para o andar de baixo, a fim de ser posto junto das latas de lixo. Da próxima vez em que o caminhão do lixo viesse, o motorista ganharia meia coroa se conseguisse transportar tudo aquilo de uma só vez.

Assim, o sótão agora estava vazio. Lado a lado, Judith e Phyllis combinaram e discutiram como seria usado. Estavam sozinhas, porque Ana cavava buracos no jardim com uma velha colher de lata, e Morag a acompanhava, dando o melhor de si para ajudá-la em tal exercício. De vez em quando, Phyllis chegava à janela e olhava para baixo, para certificar-se de que a cachorra e a criança não implicavam uma com a outra ou que ninguém se machucara. Entretanto, tudo parecia tranqüilo.

Biddy estava na cozinha. Sem o menor pendor para cozinheira, ela havia encontrado, no velho e surrado livro de receitas de Isobel, todo manchado de manteiga, uma receita para preparar um cordial de flores de sabugueiro. Por acaso, neste momento as flores de sabugueiro estavam desabrochando e as sebes exibiam uma pesada profusão de flores cremosas, sutilmente perfumadas. Biddy foi tomada de entusiasmo. Em sua mente, fazer um cordial de flores de sabugueiro nada tinha a ver com cozinhar. Cozinhar significava guisados, carneiro assado, gelatinas e bolos, nenhum dos quais ela pretendia tentar. Entretanto, preparar bebidas deliciosas era outro departamento, em especial quando os ingredientes podiam ser colhidos de graça, nos arbustos de beira de estrada.

—Acho que devíamos transformá-lo em mais um quarto extra — dizia Phyllis. — A sra. Somerville ocupa o único que existe — e se alguém vier aqui para ficar?

Judith, entretanto, não concordou.

— Mais um quarto extra é pura perda de espaço. Acho que devíamos fazer dele um quarto de brinquedos para Anna. Podemos colocar aqui uma cama para ela dormir, algumas prateleiras para seus livros e talvez um velho sofá. Sofás sempre parecem muito aconchegantes. Assim, ela poderá usá-lo para local de brincar e ter um espaço Para bagunçar, quando o dia for chuvoso.

Judith. —Aquilo se tornava uma discussão. —Nós já temos um quarto grande. Esta é a sua casa, não a minha. Não pode dar-nos todo este espaço.

- Bem, e como será, quando Cyril tiver uma licença? Ele vai querer estar com você e Anna. Assim, virá para cá também. A menos é claro, que prefira ficar com os pais.

— Oh, ele não quereria fazer isso

—Bem, vocês não podem dormir todos juntos. No mesmo quarto Não ficaria bem. Anna não é mais um bebezinho. Phyllis pareceu um tanto constrangida.

— Nós já nos arranjamos antes.

— Bem, não quero que vocês se arranjem em minha casa. Não há necessidade. Portanto, está decidido. Este quarto é para Anna. Já é tempo dela aprender a dormir sozinha. E a cama será de tamanho apropriado, para o caso de, havendo um hóspede, podermos remover Anna, a fim de que o visitante durma na cama dela. Não é uma boa idéia? Além disso, poremos um carpete no chão.

— Um pedaço de linóleo serviria.

— Linóleo é horrível e frio. Deve ser um carpete. Azul, suponho. — Imaginando o carpete azul, ela olhou em torno. O sótão era espaçoso e arejado, mas tinha somente uma pequena janela saliente no telhado, e os tetos inclinados o deixavam um pouco escuro. — Pintaremos as paredes de branco, e o ambiente ficará mais claro. Podemos colocar um friso do Coelho Peter em torno das paredes. O único senão é aqui não haver uma lareira. Temos de imaginar algo para aquecimento no inverno.

— Uma estufa de parafina faria isso.

—Não gosto de estufas de parafina. Sempre as considerei um tanto perigosas.

— Eu gosto do cheiro de estufas de parafina.

— Certo, mas Anna poderia derrubá-la, e todos seríamos dissolvidos em fumaça e cinzas. Talvez.

Ela não prosseguiu, porque do andar de baixo chegou o som da porta da frente sendo fechada e de uma voz, aguda de excitamento, chamando seu nome.

—Judith!

Loveday. Ela e Phyllis saíram para o patamar, debruçaram-se na balaustrada e foram recompensadas por uma rápida visão de Loveday já subindo a escada. Ela fez uma pausa no primeiro patamar.

— Onde é que você está

—Aqui em cima, no sótão!

Ela continuou subindo e chegou à escada do sótão, com o rosto vermelho pelo esforço e calor, os anéis dos cabelos saltitando, os olhos verde violeta arregalados de êxtase e delícia. Ainda a meio caminho, já estava contando:

E e você nem vai acreditar! Gus acabou de telefonar!. — Ela arquejava pela falta de fôlego, porque tinha corrido toda a distância de Nancherrow, e não apenas subira as escadas da Dower House. Ele telefonou faz uma meia hora. De Southampton. Hospital. Está ferido. Usando muletas, mas está bem.

Tapetes, roupas de cama e aquecedores foram esquecidos. Judith deu um grito de triunfo, e a esperava com os braços abertos. As duas abraçaram-se, beijaram-se e dançaram como crianças. Loveday continuava com as velhas e sujas calças de veludo, as abas da camisa para fora ainda cheirando a curral, mas não tinha importância, nada importava, exceto que Gus estava salvo.

Por fim, elas pararam de dançar e Loveday arriou no último degrau da escada.

— Meu fôlego acabou. Fui de bicicleta até Rosemullion, deixei-a junto do pátio da igreja e, acreditem, corri toda a ladeira acima, até aqui. Eu simplesmente não podia esperar para contar a vocês!

— Podia ter telefonado.

— Eu queria estar aqui. Queria ver a expressão de vocês. Phyllis, entretanto, tinha uma expressão preocupada.

— Ele está ferido? É coisa séria? Como foi ferido?

—Eu não sei. Acho que foi baleado na perna. Está de muletas, mas isso não pareceu tão terrível. Não tivemos tempo de conversar. Foi apenas um momento, e a linha ficou muda. Entretanto, ele está indo Para a Escócia amanhã e disse que vai escrever.

— Como é que ele conseguiu sair da França? —Judith quis saber.Como escapou?

- Eu já lhe disse, não sei de nada. Não houve tempo dele contar. Sei aPenas que está salvo e vivo.

- É como um milagre!

- Foi o que eu pensei. Meus joelhos não me agüentaram de pé. E Mamãe disse para todas vocês descerem a Nancherrow neste anoitecer, porque papai vai abrir uma champanha. Todas vocês, Phyllis, Anna e Bidy Para termos uma reunião de verdade.

Biddy. Por um instante, lendo pensamentos, elas ficaram em silêncio. Gus estava salvo, porém Ned jamais voltaria. A própria alegria de Loveday foi, por um instante, amortecida. Ela perguntou, baixando a voz:

— Onde está Biddy?

— Na cozinha.

— Hum. Espero que ela não tenha me ouvido, irrompendo desta maneira e gritando minhas notícias a plenos pulmões. Eu devia ter pensado. mas a verdade é que não pensava em mais nada.

— É claro que não pensava. Por que pensaria em outra coisa? Não podemos deixar de ser felizes. Mesmo Ned estando morto, não é motivo para que deixemos de ficar felizes por sua causa. Penso que devemos descer e contar a ela. Biddy é tão generosa que, mesmo se sentindo infeliz e amarga, não deixa transparecer. Ela está muito melhor agora, até fala no nome de Ned em tom bastante normal. E se começar a entristecer, nós lhe anunciaremos a reunião com champanha e mostraremos o maior interesse por seu cordial de flores de sabugueiro.

Ardvray House

Bancharry

Aberdeenshire

Sexta-feira, 21 de junho

Minha querida Loveday

Por fim, eis um momento em que posso escrever. Quando voltei para Aberdeen fui parar no hospital novamente, mas tudo parece estar indo bem e encontro-me em casa, ainda de muletas, porém convalescendo. Minha mãe arranjou uma enfermeira para cuidar dos ferimentos etc. Ela tem um porte de praticante de luta livre e fala o tempo todo, o que me dá esperanças de que não vá ficar aqui por muito tempo.

Foi maravilhoso falar com você e lamento termos sido interrompidos tão abruptamente, mas as mesas telefônicas do hospital eram bastante rígidas quanto ao racionamento de nossas ligações. Levei uns dois dias tentando telefonar, antes de conseguir completar a ligação, porque não era uma chamada para minha casa. Se não fosse pelo fato de, no momento, não estar muito bem dos pés, eu saltaria o muro, pegaria um trem iria à Cornualha ver você. A Cornualha fica bem mais perto de Southampton do que a Escócia, e a longa viagem de trem até Aberdeen pareceu levar uma eternidade.

Escapei um dia antes da capitulação. Em vista da diretiva do general de sauve qui peut, vários grupos pouco numerosos encaminharam-se para o pequeno porto de Veulles-les-Roses, a cerca de seis quilômetros a leste de Saint Valéry. Entre esses grupos havia alguns soldados franceses, homens da região dos Lothians e da Border Horse. Fomos à noite, e seis quilômetros nunca pareceram tão longos e tão cheios de perigos. Entretanto, quando alvoreceu, pudemos avistar as formas difusas dos navios da Marinha Real, parados em mar aberto (o nevoeiro não estava tão ruim em Veulles). Nesse lugar, os penhascos são tremendamente altos, mas pequenos escoadouros chegam até a praia, de modo que fizemos fila e aguardamos a nossa vez, porque a Marinha Real estava enviando grupos de resgate à praia, mesmo com os navios sendo atacados desde Saint Valéry.

Um ou dois rapazes estavam impacientes demais para esperar a sua vez e quiseram descer os penhascos com cordas improvisadas. Entretanto, já era dia claro, e os alemães atacavam de ambos os lados, usando não só metralhadoras, como também franco-atiradores.

A praia estava juncada de mortos e fui atingido na coxa antes de avançar cem metros. A minha frente, dois soldados escoceses viram o que tinha acontecido e voltaram, a fim de ajudar. Entre os dois, consegui manquejar e cambalear pelos três quilômetros de praia até os barcos. Mal nós três entramos em um barco, os bombardeiros chegaram, e um deles foi afundado, com trinta homens embarcados. Os navios dispararam uma alucinante barragem, e dois bombardeiros foram derrubados. Por fim, completamente encharcados, cobertos de lama (e também de sangue), fomos içados para bordo do destróier. Quando Pensamos que estávamos a salvo, o inimigo passou ao ataque, disparando do alto dos penhascos. Entretanto, continuamos lá, até ser decidido que não havia possibilidades da existência de mais homens na praia ou nos penhascos. Foi quando levantamos âncoras e zarpamos. Isso foi por volta de dez da manhã de doze de junho.

Atracamos em Southampton e fui conduzido a terra em uma padiola, de lá seguindo para o hospital, onde me removeram a bala da perna, fui enfaixado etc. Ela não penetrou muito fundo e parece que não haverá nenhum dano permanente. Agora, é questão apenas do ferimento fechar.

Não sei o que acontecerá agora. Há um comentário de que a Divisão Highland será reformada. Se assim for, eu gostaria de ficar com eles. Entretanto, as autoridades constituídas talvez tenham outros planos para mim.

Envio meu afeto a você e a toda a sua família.

Gus

Esta era uma carta, porém no envelope havia outra, uma única folha, sem cabeçalho e sem data.

Adorada Loveday

Pensei que seu pai talvez quisesse ler o relato anexo, mas esta pequena nota é para você apenas. Foi maravilhoso ouvir sua voz atendendo o telefone. Pensei em você durante o tempo todo que fiquei esperando para descer ao inferno daquela praia, decidido a realizar a façanha. Aqui faz um dia belíssimo, com as colinas inteiramente floridas à luz matinal, e o sol arrancando reflexos do rio. Quando puder caminhar um pouco melhor, descerei até a margem e tentarei pescar um peixe. Escreva-me e não deixe de contar tudo o que está fazendo. Com todo o meu amor, Gus

 

pouerHouse Rosernullion

24 de julho de 1940

Queridos mamãe e papai.

O bebê de Athena nasceu às duas desta madrugada. Ela o teve em Nancherrow, em seu próprio quarto, com o velho dr. Wells e Lily Crouch, a enfermeira distrital de Rosernullion, prestando o atendimento. Pobres almas, tendo que estar de pé àquelas horas, mas o velho dr. Wells disse que não perderia o nascimento do bebê de Athena por nada no mundo. Agora são sete horas e está anoitecendo. Acabo de voltar de Nancherrow (fui e voltei de bicicleta), e vi a recém-chegada. Ela é enorme, tem certa semelhança com uma indiazinha pele-vermelha, com o rosto muito corado e fartura de cabelos lisos e escuros. Seu nome é Clementina Lavinia Rycroft, e o coronel enviou um cabograma à Palestina, comunicando a boa nova a Rupert. Athena está simplesmente deliciada e envaidecida, como se tivesse feito tudo sozinha (e suponho que, de certo modo, fez mesmo), e se senta na cama tendo ao lado o bebê em seu berço enfeitado. Naturalmente, o quarto está repleto de flores com Athena encharcada de perfume e usando o mais divino negligê àe voai branco, todo ornado de rendas.

Eu e Loveday seremos as madrinhas, porém Clementina será batizada apenas quando seu pai vier de licença ou coisa assim, para assistir a tudo. De fato é excitante ter esta pequenina e nova vida entre nós, e não imagino por que teria de ser tão excitante assim, uma vez que há meses sabíamos que ela estava a caminho.

Enquanto estive em Nancherrow, o velho dr. Wells apareceu novamente. Disse que era para saber como iam todos e para examinar mãe e filha. O coronel abriu uma garrafa de champanha, e molhamos a cabeça do bebê. (Ele é ótimo para abrir garrafas de champanha. Receio que um dia seu estoque acabe porque não se consegue comprá-las mais. Espero que ele reserve pelo menos uma caixa, para o dia em que comemorarmos a Vitória.) Seja como for, enquanto todos bebericávamos nosso champanha e nos alegrávamos, o velho dr. Wells revelou que o verdadeiro motivo de sua segunda visita era para contar-nos que Jeremy está em um hospital naval em algum lugar perto de Liverpool. Ficamos todos abalados e chocados, pois era a primeira vez que sabíamos disso, mas o dr. Wells disse ter pensado que duas da madrugada (e com o accouchement de Athena em pleno andamento) não seria o momento mais adequado para dar notícias semelhantes. Que delicadeza de sentimentos, não? No entanto, ele devia estar ansioso para contar a todo mundo.

Voltando ao assunto. Jeremy. O que aconteceu é que seu destróier foi torpedeado e afundado por um submarino alemão no Atlântico. Ele e mais três homens ficaram um dia e uma noite no mar, cobertos de óleo e agarrados a uma bóia, antes de serem avistados e recolhidos por um barco mercante. É terrível imaginar uma coisa dessas, não? Mesmo sendo verão, o Atlântico deve ser frio como gelo. De qualquer modo, ele estava sofrendo pela exposição ao sol, com o cansaço e as queimaduras no braço, por causa da explosão. Assim, tão logo o barco mercante chegou a Liverpool, conduziram-no para o hospital naval, onde ainda se encontra. A sra. Wells foi de trem paraLiverpool, a fim de ficar junto dele. Quando Jeremy receber alta, terá uma licença por doença, de modo que todos poderemos vê-lo em breve. Não é maravilhoso — inclusive miraculoso — que ele tenha sido encontrado e salvo? Não sei como as pessoas conseguem sobreviver em tais circunstâncias; imagino que seja porque a alternativa é inimaginável.

A febre da invasão tomou conta do país, e todos estamos doando nossas latas e panelas de alumínio ao Serviço Feminino Voluntário, a fim de que sejam derretidas e transformadas em aviões Spitfires e Hurricanes. Tive que ir a Penzance e comprar todo um jogo de horríveis panelas esmaltadas, que se racham e queimam, porém não há outro jeito. Os Voluntários de Defesa Local, que agora têm o nome de Guarda Territorial, o que soa muito mais grandioso, e todos estão ficando membros. O Coronel Carey Lewis voltou a usar uniforme e, devido a sua experiência na Primeira Guerra Mundial, foi nomeado oficial-comandante do Destacamento de Rosemullion. Eles já receberam uniformes e armas. O salão da Prefeitura de Rosemullion tornou-se o QG da Guarda Territorial, e eles contam com um telefone, quadros de avisos e tudo o mais, inclusive sendo submetidos a treinamentos.

Além disso, todos os sinos das igrejas foram silenciados logo depois de Dunquerque, devendo tocar somente para avisar-nos de que os alemães desembarcaram. Um pobre velho, reitor de uma paróquia remota, nada sabia a respeito ou tinha esquecido, e o guarda local o surpreendeu puxando a corda, o sino badalando na torre, e imediatamente o prendeu. Outro homem foi multado em vinte e cinco libras por espalhar boatos. Estava em seu pub local, contando para todos que vinte pára-quedistas alemães, disfarçados de freiras, tinham aterrado na Charneca Bodmin. O juiz disse que o sujeito tinha muita sorte de não ser posto na prisão por comentários derrotistas.

Uma outra coisa é que todos os postes sinalizadores locais foram removidos, de modo que quem chegar a um remoto cruzamento de estradas na Cornualha, ficará sem saber para que direção ir. Biddy não acha que seja uma grande idéia. Segundo ela, os poderes constituídos imaginam que uma divisão de Panzers germânicos, marchando para Penzance, dobraria à direita por engano, indo parar em Lamorna Cove. Onde, sem a menor dúvida, alguém tentaria vender-lhes cremes para o chá.

Entretanto, a despeito de nossas risadas, está tudo terrivelmente imediato e próximo. Falmouth foi bombardeada há duas semanas, e todas as noites ouvimos relatos de batalhas aéreas sobre Kent e o Canal, mal podendo acreditar que os pilotos dos loes de caça estão se saindo com tanta perícia, derrubando do céu os bombardeiros alemães. Edward Carey-Lewis é um deles, a fotos nos jornais mostrando os jovens aviadores sentados ao sol, em espreguiçadeiras e cadeiras de vime; entretanto, apenas reunidos e esperando o alerta de Scramble, que significa a aproximação de outra formação de Stukas. É mais ou menos como Davi e Golias E, naturalmente, as ilhas do Canal já foram ocupadas, estando a suástica içada no lugar da nossa Union Jack. Pelo menos não houve muita luta e pessoas sendo mortas. Não foram disparados tiros, tudo transcorreu em ordem, e a única resistência correu por conta de um irlandês embriagado que esmurrou o nariz de um alemão.

Por aqui, estamos todos bem. Biddy tem dado plantão no Serviço Feminino Voluntário, recolhendo latas e panelas para aviões, e Phyllis terminou de pintar o sótão paraAnna. Amanhã, um homem irá colocar o carpete para nós. É azul e tem uma espécie de padronagem. Será afixado junto às paredes. Acho que vai ficar bonito.

Phyllis está muito feliz aqui, e Anna se desenvolve. É uma menininha adorável, dorme bastante e não dá problemas. Phyllis é amorosa, mas severa com ela. Cyril está no Mediterrâneo, creio que em Malta, mas não tem permissão para dizer. Ele teve que fazer um curso prévio, sendo agora um ACM, isto é, Artífice da Casa de Máquinas, embora eu ignore quais as atribuições de tal cargo. Imagino que seja um posto acima de foguista. De qualquer modo, ele agora é um marinheiro de primeira e, portanto, conquistou sua âncora. Enviou a Phyllis uma foto sua, vestindo flanela de algodão (o distintivo bem à vista) e gorro reluzente. Parece bastante queimado e bem-disposto. O curioso é quet embora eu sempre soubesse sobre Cyril, nunca o conheci pessoalmente. Não é um homem atraente, porém Phyllis ficou deliciada com a foto e disse que ele "melhorou horrores".

Espero que todos vocês estejam bem. Receio que esta carta tenha sido muito longa, mas estamos vivendo momentos tão extraordinários, que quis contar-lhes tudo.

Meu amor para vocês dois e para Jess,

Judith

 

Pavilhão do Reino Unido. (N. da T.)

 

A Dower House, como todas as residências de cavalheiros distintos construídas no século XIX, possuía vários anexos erigidos nas proximidades de sua entrada dos fundos. Uma velha cocheira, um galpão para ferramentas e outro para depósito de vasos de plantas; um telheiro onde eram guardados o carvão e a lenha, um banheiro externo (conhecido como ”banheiro da empregada”) e uma lavanderia. Esta última continha o tradicional boiler e uma calandra monumental, exigindo um muito e trabalhoso transporte de água e também de acender de fogos. As roupas lavadas eram passadas na mesa da cozinha, forrada com cobertores e lençóis velhos, usando-se chapas de ferro que precisavam ser aquecidas em cima do fogão.

Quando os Boscawen tomaram posse da casa, entretanto, Lavinia Boscawen, tendo em mente o bem-estar de Isobel, providenciou vários e ousados modernismos. A cocheira se tornou uma garagem. Um novo banheiro foi construído dentro da casa, após um pequeno corredor que partia da copa, e o banheiro da empregada destinado ao jardineiro, caso fosse apanhado de surpresa, enquanto cuidava de seus nabos. A lavanderia passou a ser um galpão-depósito de maçãs, batatas e baldes de ovos preservados, enquanto a enorme pia da copa, do tamanho de um bebedouro de cavalos e instalada tão baixo que quase partia espinhas, foi removida e levada embora. Seu lugar foi ocupado por duas pias fundas de argila, com rolos para espremer roupa fixados em posição entre elas. Finalmente, todas as velhas chapas de ferro usadas para passar a roupa foram jogadas na lixeira, e Isobel foi presenteada com um dos novos ferros elétricos. Ela imaginou-se no céu.

Anos mais tarde, Phyllis Eddy imaginou algo semelhante. Após a desolada casinha em Pendeen e depois da apinhada cabana de mineiro de sua mãe, os arranjos domésticos da Dower House pareceram-lhe o cúmulo do luxo. Olhar a água quente correr de uma torneira para dentro de uma pia ou banheira sempre a deixava excitada. Ao mesmo tempo, lidar com pratos e roupas sujas — algo que sempre considerara uma interminável escravidão — transformou-se em tarefas quase prazerosas, tal a rapidez e facilidade com que eram feitas. E o banheiro dali, tão bom quanto o existente em Riverview, era provido de espessas toalhas brancas no trilho aquecido, tinha alegres cortinas de algodão esvoaçando à brisa e o mesmo adorável e inesquecível cheiro de sabonete-lavanda de Yardley.

Quanto à temida segunda-feira — dia da lavagem de roupa, Phyllis agora quase ansiava por ela. As fraldas de Anna eram lavadas todos os dias e penduradas no varal, como uma fileira de bandeiras brancas. Lençóis e toalhas de banho ainda iam para a lavanderia, porém havia quatro pessoas morando na casa, e todas as demais peças de roupa ali usadas — não se falando em blusas, roupas de baixo, vestidos de algodão, aventais, saias e calças compridas, meias soquetes — enchiam duas enormes cestas de vime, a cada manhã de segunda-feira.

Em geral, Phyllis e Judith ocupavam-se disso juntas, enquanto Anna ficava sentada no piso da copa e brincava com prendedores de roupas. Phyllis tinha uma tábua para esfregar as roupas brancas e uma grande barra de sabão "Sunlight". Ao decidir que uma fronha ou outra peça qualquer já tinham sido esfregadas o suficiente, ela as torcia no espremedor de roupas, que em seguida as derrubava na pia ao lado, onde Judith enxaguava em água limpa. Trabalhando em dupla, elas costumavam terminar a lavagem de toda a roupa e a tinham pendurada no varal dentro de uma hora. Se estivesse chovendo, era tudo colocado nos trilhos da polia da cozinha e içado para o teto quente, acima do fogão.

Hoje não estava chovendo. O céu se mostrava enevoado e fazia bastante calor, porém sem nenhum indício de chuva. Um forte vento oeste mantinha as nuvens em movimento, que de vez em quando eram afugentadas e deixavam surgir o céu azul, com jatos de sol quente.

Mesmo com a porta dos fundos escancarada, a copa estava úmida e inundada de vapor, cheirando a sabão e a roupa lavada, limpa. Por fim, a peça final, um aventalzinho de Anna, foi enxaguada, torcida e jogada sobre o monte de roupas úmidas na cesta de vime da lavanderia.

— Agora, só na semana que vem — disse Phyllis, com certa satisfação. Inclinando-se, puxou a tampa do ralo e deixou a água de sabão escoar-se gorgolejando. Enquanto a via diminuir, ela ergueu o braço para afastar os cabelos da testa úmida. —Faz calor, não? Estou suando de alto a baixo.

— Eu também. Venha, vamos tomar um pouco de ar fresco. — Judith abaixou-se e levantou uma das pesadas cestas, sustentando-a na cintura. — Traga os pregadores, Anna.

Ela cruzou a porta e o vento oeste fustigou-lhe o rosto, penetrando no fino algodão da saia pegajosa de suor. O terreno gramado onde ficavam os varais tomava o espaço entre a garagem e a porta dos fundos. A relva estava salpicada de margaridas, e uma sebe baixa de escalônias, ostentando uma profusão de espinhosas flores rosadas, dividia aquele terreno do caminho de cascalhos que vinha do portão até a casa. Juntas, abaixando-se e estirando o corpo, Judith e Phyllis encheram os varais com a roupa lavada. O vento soprava dentro das fronhas, transformando-as em balões quadrados, e recheava as mangas das camisas.

— Agora haverá fraldas em Nancherrow — observou Phyllis, colocando pregadores em uma toalha de chá. —Quem estará cuidando delas?

— Mary Millyway, quem mais poderia ser?

—Eu não desejaria o trabalho dela. Gosto de crianças, mas nunca quis ser babá.

— Nem eu. Se tivesse que escolher, entretanto, preferiria ser ajudante de lavanderia.

— Você devia ir ao médico, examinar sua cabeça.

—Não é preciso. Pendurar roupa lavada é muito mais interessante do que esvaziar urinóis de algum velho horrível.

— Quem está falando de urinóis?

— Eu.

— Eu gostaria de ser criada de quarto. Fazer penteados e ouvir todos aqueles escândalos da alta sociedade.

— E agüentar acessos caprichosos, ter de ficar acordada até três da madrugada? Esperando a madame voltar do baile? Eu acho que...

— Há um carro subindo a ladeira.

Judith aguçou os ouvidos. Havia. Elas ficaram imóveis, um tanto interessadas, mas esperando que o motorista, fosse quem fosse, continuasse até o alto da ladeira. O carro, entretanto, diminuiu a marcha, engatou uma mudança e depois surgiu através dos portões. Pneus rangeram sobre o cascalho e pararam diante da porta da frente.

— Sabe de uma coisa? — disse Phyllis, sem necessidade. — você tem visitas.

— É verdade — replicou Judith.

— Sabe quem é?

— Sei.

— Quem é?

Judith deixou cair dentro de sua cesta os pregadores que estivera segurando, e jogou uma combinação de Biddy na direção de Phyllis. Podia sentir o sorriso tolo estendendo-se em seu rosto.

— É Jeremy Wells — respondeu. E foi ao encontro dele.

Jeremy Wells. Por cima do varal, Phyllis ficou espiando, disfarça-damente, enquanto pendurava a combinação de qualquer jeito, e procurando não encarar. Entretanto, era difícil, porque levara muito tempo esperando para saber quem era Jeremy Wells, o jovem médico que Judith conhecera havia tantos anos, no trem que vinha de Ply-mouth. Naquela ocasião, ela só tinha quatorze anos, mas sentira atração por ele. Não havia dúvidas quanto a isso. Mais tarde, de maneira tão estranha, voltara a encontrá-lo através dos Carey-Lewis, de Nancherrow. Ao ficar sabendo dessa extraordinária coincidência, Phyllis imediatamente decidiu que tudo fazia sentido; que estava escrito nas estrelas; que era uma daquelas histórias de amor que teria um final feliz.

Judith, é claro, fingia nada existir de verdadeiro nisso. "Oh, não diga tolices", falaria para Phyllis, caso esta fizesse referências maliciosas ao jovem médico. Entretanto, ficara bastante orgulhosa quando ele se juntara à Marinha Real e também bastante angustiada ao saber que o navio de Jeremy havia sido afundado pelo inimigo, e que ele ficara perdido no Atlântico só Deus sabia por quanto tempo. Phyllis não conseguia decidir qual o pior pesadelo — um navio em chamas, com conveses em brasa, ou o salto para o mar escuro, profundo, gelado e inóspito. Ela e Cyril não sabiam nadar. Enfim, de um modo ou de outro, o doutor tinha sido salvo e aqui estava ele agora, parecendo muitíssimo bem de saúde, até onde ela podia ver. Era uma pena que não estivesse usando uniforme. Phyllis gostaria de vê-lo uniformizado. Apenas as velhas calças de flanela cinza e a camisa de algodão azul, mas Judith dava a impressão de pouco ligar para isso, porque deu-lhe um forte abraço, além de um beijo no rosto. E lá estavam eles, falando pelos cotovelos, os dois sorrindo como dois gatos de Cheshire.

phyllis podia ter permanecido ali, boquiaberta e para sempre, mas Judith subitamente se lembrou dela e virou um rosto sorridente em sua direção, chamando-a para aproximar-se e ser apresentada. De repente, Phyllis ficou muito acanhada, mas abandonou a roupa lavada, em seguida, inclinou-se e tomou Anna nos braços. Depois cruzou o relvado, passou pela abertura na sebe de escalônias e atravessou o rangente piso de cascalho, desejando estar mais arrumada, em vez de inteiramente envolta em um avental molhado.

— Esta é Phyllis Eddy, Jeremy. Ajudava mamãe em Riverview. Agora está morando aqui conosco. Seu marido também está na Marinha.

— É mesmo? E em que trabalha lá?

— Ele é um ACM — conseguiu Phyllis dizer-lhe, orgulhosamente — Marinheiro de primeira. Conquistou sua âncora,

— Isso é formidável. Ele deve estar indo muito bem. Onde se encontra?

— No Mediterrâneo, em algum lugar.

— Homem de sorte. Sol à farta. Quem é esta garotinha?

— É a minha Anna. Só que ela não rirá para o senhor. É muito encabulada.

Judith disse então:

— Jeremy está indo para Nancherrow, Phyllis. Vai ficar uns dois dias com eles.

— Uma boa idéia — disse Phyllis.

Ele não era realmente bonito e usava óculos, mas tinha o sorriso mais sedutor que ela já vira em qualquer homem, além de belos dentes alvos. Aliás, para alguém que acabara de ter seu navio explodido, ficara queimado e quase se afogara, parecia admiravelmente em forma.

— Só sou esperado à hora do almoço — explicou ele — e não Poderia passar por Rosemulion sem vir ver todas vocês, dar uma espiada na velha casa e descobrir o que você fez com ela.

Phyllis sorriu para si mesma, com certa satisfação. Ele viera fazer a visita. Eram apenas dez e meia; portanto, teria duas horas de folga antes de se pôr a caminho. Tempo bastante para um pouco de privacidade e uma despreocupada conversa sobre os velhos tempos. PPhilis transferiu Anna para o outro braço.

— Por que não leva o dr. Wells para dentro, Judith, ou para varanda? Vou pendurar o resto da roupa lavada e depois levo um café para os dois.

Foi bom ela falar assim. Era como nos velhos tempos, quando trabalhava para a mãe de Judith, e a sra. Dunbar tinha visitas. Jeremy Wells era uma visita. Uma xícara de café podia não ser grande coisa mas Phyllis estava preparada para qualquer esforço, desde que ajudasse a facilitar o caminho para o verdadeiro amor.

Havia muito sobre o que falarem, notícias a serem dadas, novidades a trocarem sobre amigos comuns. Tinham estado juntos pela última vez onze meses atrás — naquele calorento domingo de agosto, que começara tão feliz para Judith, e terminando tão desastrosamente, com sua repentina e precipitada fuga de Nancherrow. Ela se via despedindo-se deles, enquanto ainda permaneciam à mesa, diante dos restos do almoço de domingo. "Até logo mais", havia prometido, porém nunca mais tornara a ver sequer um deles.

Até agora. Jeremy estava mudado, pensou, enquanto o estudava disfarçadamente. Dez meses de guerra e de vida no mar o tinham endurecido e bronzeado. Em seu rosto havia linhas que nunca tinham existido antes, e seu encantador sorriso não era mais tão fácil, porém Judith sempre o conhecera como adulto e responsável, de modo que não podia lamentar a passagem da juventude dele.

Conversaram sobre Athena, Rupert e a menininha Clementina.

— Ela nasceu enorme — contou Judith. — Quase quatro quilos e meio, e parece uma indiazinha.

— Estou ansioso por conhecê-la.

—Todos pensávamos que Athena a entregaria diretamente a Mari Millyway, mas o fato é que ela se sente incrivelmente maternal e passa horas na cama, conversando com Clementina. Uma beleza. Como se Clementina fosse um cachorrinho de estimação, um filhotinho. Quanto a Loveday, tornou-se uma camponesa integral. Não oficialmente claro, e não tendo que usar aquele uniforme horrível. mas trabalha como um castor e cuida de dúzias de galinhas. Também nos mantém supridos de ovos, pois às vezes a agência dos correios fica em falta. E o sr. Nettlebed, além de vigilante das Medidas de Precauções Antiaéreas, incumbiu-se da horta de Nancherrow, mas continua representando seu pomposo papel, quando está servindo o jantar. Você vai adorar tudo por lá. Nancherrow ficou diferente, mas, de um modo curioso, continua a mesma coisa.

Jeremy perguntou em seguida pelos Warren de Porthkerris e Heather, a amiga de Judith. Ela ficou muito tocada pelo interesse dele, já que só conhecia aquela família através de notícias.

—Estão todos muito bem. Joe Warren voltou de Dunquerque para casa, graças a Deus. Conseguiu uma licença e depois tornou a partir, mas não sei ao certo por onde anda. Eu e Biddy fomos um dia a Porthkerris e tomamos chá com eles, quando então ficamos sabendo de todas as novidades. Heather está se saindo muitíssimo bem e trabalha para o Ministério das Relações Exteriores, em algum lugar altamente secreto, que não podemos saber exatamente onde fica. Contudo, até agora ninguém soube nada a respeito de seu namorado, Charlie Lanyon. Ele também esteve em Dunquerque, e os Warren limitam-se a rezar para que tenha sido feito prisioneiro. — Isto a fez pensar em Gus. — E Gus Calender? — perguntou. — Soube que escapou e conseguiu sair de Saint Valéry?

— Meu pai me deu a notícia. Um verdadeiro milagre.

— Devia ver o rosto de Loveday, quando ela veio aqui para contarnos. Andava realmente muito infeliz, preocupada com ele, quando de repente teve uma espécie de intuição, uma convicção de que Gus estava vivo... Ela me contou a respeito, quase como se pudesse ouvir a voz dele lhe falando. Estava a caminho de Lidgey para casa, então seguiu a toda pressa para Nancherrow e, uns cinco minutos depois de chegar lá, o telefone tocou, e era ele. Do hospital, em Southampton. Então, talvez tenha sido realmente ”telepatia”.

— Quando uma pessoa sente afeto por outra, acredito que a telepatia seja perfeitamente possível... além do que, sendo nascida e criada na Cornualha, Loveday é, de fato, uma pequena celta. Se alguém foi abençoado com a premonição ou intuição, deveria ser Loveday.

A esta altura eles deixaram de falar nos Carey-Lewis porque, afinal de contas, Jeremy estaria com a família dentro de mais ou menos uma hora. Judith relatou-lhe os trágicos detalhes da morte de Ned Somerville, falou sobre seu tio Bob e Biddy.

— Ela deixou Devon e veio morar aqui conosco. Você sabia?

— Sim, sabia. Esperei poder conhecê-la.

— Biddy foi a Penzance esta manhã. Queria ir ao cabeleireiro. Não -sei quando estará de volta. Entretanto, tudo resultou perfeito. Eu disse para o sr. Baines que era como se "estivesse escrito".

— Phyllis também?

— Aí está o melhor. Ela é um encanto de criatura. Simplesmente adora morar conosco, está desabrochando como uma flor. E preparamos um quarto para Anna, de maneira que quando Cyril (é o marido dela) vier em licença, poderá ficar aqui e estar com Phyllis. Eu lhe mostrarei tudo, antes de você ir. Ainda não acredito que estou em minha própria casa. Costumava tecer fantasias sobre possuir um lugar só meu. Eram fantasias muito humildes, claro, não iam além de um chalé de granito e uma palmeira. Apenas um lar que me pertencesse, onde eu pudesse criar raízes e ter para onde voltar. No entanto, tudo isso agora é meu. Todo meu. As vezes, acordo de noite e fico pensando se é mesmo verdade.

— Você pretende ficar aqui?

— Sempre. Só que, de imediato, provavelmente não. Terei de ir e fazer a minha parte. Penso juntar-me ao serviço naval, talvez às Wrens ou coisa assim.

Jeremy sorriu, mas não insistiu no assunto. Em vez disso, perguntou-lhe sobre sua família em Cingapura, e Judith contava as últimas notícias, quando Phyllis apareceu com a bandeja do café. Inclinou-se para deixá-la sobre a banqueta entre eles, e Judith reparou que colocara na bandeja a melhor porcelana de tia Lavinia, que o café estava com um delicioso aroma, moído pouco antes, e que havia um prato de biscoitos amanteigados.

Matizes de Riverview.

— Colocou apenas duas xícaras, Phyllis. Não nos acompanha.

—Não. Estou ocupada na cozinha, e vocês têm muito o que dizer um ao outro. Eu coloquei açúcar, dr. Wells; não sei se o senhor prefere.

— Sim, prefiro. Foi muita gentileza sua. Obrigado.

Com um leve, tímido e cúmplice sorriso no rosto, Phyllis voltou

Para seus afazeres. Esperando que Jeremy não houvesse notado esse detalhe, seUS Judith serviu o café e estendeu-lhe uma xícara.

— Já falamos de todo mundo — disse ela — menos de você. De seu navio sendo torpedeado e tudo o mais. — Percebendo a expressão no rosto dele, acrescentou rapidamente: — Bem, talvez não queira falar a respeito.

— Nada tem de agradável.

— Não quero ouvir, se você não quiser contar.

— Agora, não tem mais tanta importância.

— Seu navio afundou?

— Sim. Muito lentamente. Aferrei-me àquela maldita bóia e o fiquei vendo submergir. Primeiro a popa, depois a proa. Em seguida, uma onda enorme, sugadora. E depois, nada, apenas o mar, óleo e destroços.

— Perderam muitos membros da tripulação?

— Cerca de metade. O oficial-artilheiro e o primeiro-tenente foram ambos mortos. Meu capitão foi recolhido, ainda está no hospital.

— Seu pai disse que você teve queimaduras.

— Sim. Sofri queimaduras nos ombros, costas e parte superior do braço esquerdo. Nada demasiado feio. Sem necessidade de enxertos de pele. Estou em recuperação.

— O que acontecerá agora?

— As autoridades é que decidirão.

— Outro navio?

— É o que mais espero.

— O Atlântico novamente?

— Será mais do que provável. Formando comboios. É uma contínua batalha.

— Você acha que vamos vencê-la?

— Temos de vencer. Precisamos manter abertas as rotas comerciais para a América e também manter o país suprido de alimentos e armas. Os submarinos alemães estão por toda parte, são como lobos caçadores; entretanto, a velocidade do comboio é a velocidade do navio mais lento, e continuamos perdendo uma infinidade de barcos mercantes.

— Você não sente medo, Jeremy? Ante a idéia de voltar?

— É claro que sinto. No entanto, a gente aprende a fingir que não sente medo. Todos agem da mesma forma. A rotina e a disciplina contribuem em grande parte para concentrar-se a mente. E, afinal, da próxima vez já saberei o que esperar.

Era tudo muito deprimente. Judith suspirou.

— Tantas batalhas! A batalha da França. E agora, a batalha da Inglaterra.

Ela não prosseguiu. Sabia o que Jeremy ia dizer em seguida.

— E Edward está no centro dela.

— Sim, eu sei.

— Tem notícias dele?

— Somente as que manda para a família.

— Ele não escreve para você? Judith meneou a cabeça.

— Não.

— E você não escreve para ele?

— Não.

— O que aconteceu?

— Nada.

— Isso não é verdade.

— Pois acredite, é verdade. — Judith olhou para ele. — Não aconteceu nada.

Entretanto, ela nunca soubera mentir.

— Você amava Edward.

— Todos o amam. Penso que ele é um homem que nasceu para ser amado. Sua fada-madrinha devia estar bem por perto, quando ele nasceu.

— Não foi isso que eu quis dizer.

Judith baixou os olhos. No jardim, as árvores agitaram-se ao vento, e duas gaivotas passaram voando e grasnando, lá no alto. Quando ela silenciou, Jeremy tornou a falar.

— Eu sei como era. Fiquei sabendo naquele último domingo, quando estávamos todos no jardim, em Nancherrow, antes do almoço-Eu e Edward levávamos as bebidas para fora, mas então você ergueu o rosto e o viu. Havia uma aura de tal júbilo contornando-a, que era como uma lâmpada recém-acesa. Ele foi falar com você, e parecia que? por uma espécie de mágica, um anel cintilante envolvia os dois. mantendo-os separados do resto de nós.

Para Judith, era quase insuportável lembrar-se disso.

—Talvez fosse o que eu queria que todos vocês pensassem — disse.

— Depois do almoço, vocês dois nos deixaram e vieram visitar a sra. Boscawen. Edward mais tarde foi à enseada, porém nunca mais tornamos a vê-la. Você havia partido. Deixara Nancherrow. Alguma coisa aconteceu, não foi?

Ele sabia. De nada adiantava negar.

— Sim. Aconteceu. Aconteceu, e pensei que Edward sentisse tão profundamente por mim o mesmo que eu sentia por ele. Creio que sempre amei Edward, Jeremy, desde o primeiro momento em que o vi. Enfim, existe algo de irresistível em uma pessoa que sempre transforma os momentos mais comuns em uma comemoração. E ele sempre teve esse dom incrível, inclusive quando ainda era estudante. — Ela se virou e sorriu para Jeremy. Era um riso forçado, ao qual ele respondeu prontamente com seu velho e encorajador sorriso. — E você, talvez mais do que ninguém, sabe disso perfeitamente.

— Sim, eu sei.

— Imaginei que ele sentisse o mesmo por mim, mas é claro que não sentia.

— Ele sentia uma imensa afeição por você.

— Só que não se ligava à idéia de um compromisso permanente.

— Edward é jovem demais para compromissos.

— Foi o que ele me disse.

— E você deixou que isso pusesse um fim em tudo?

— Fui longe demais e falei além da conta. Tive que recuar.

— E deixar Nancherrow?

— Eu não poderia continuar lá. Não na casa, não com ele e a família. Não vendo-o todos os dias. Você compreende, não?

— Posso compreender o fim do amor, mas não o fim da amizade.

— Eu não saberia como agir. Athena talvez soubesse, mas não sou tão experiente como ela.

— E você ainda ama Edward?

— Procuro não amá-lo. Entretanto, acho que a gente nunca deixa de amar o homem que foi o primeiro amor de nossa vida.

— Que idade você tem?

— Dezenove. Acabados de completar.

— Tão jovem...

— Eu estarei bem — disse ela.

— Você se preocupa com ele?

— O tempo todo. No fundo de minha mente. Olho para as fotos dos combates aéreos e de Spitfires que saem nos jornais e, embora pense e Edward, acho impossível identificá-lo com tudo aquilo. Talvez, por ser encantador, ele esteja encantado. De uma coisa podemos ter certeza: seja o que for que Edward esteja fazendo, isso o diverte imensamente.

Jeremy sorriu, compreensivo.

— Entendo o que quer dizer, e sinto muito ter bisbilhotado. Não pretendia invadir sua privacidade. Acontece apenas que conheço Edward muito bem. suas qualidades e seus defeitos. e estava preocupado. Receava que ele a tivesse magoado.

—Agora está encerrado, e eu posso falar a respeito. Além do que não me incomoda você saber.

— Que bom saber disso. — Ele havia terminado seu café. Largou a xícara e olhou para o relógio de pulso. — Bem, se pretende mesmo me mostrar sua propriedade, talvez seja melhor começarmos logo, porque, não demora muito, terei de ir andando.

Assim, eles se levantaram de suas cadeiras, entraram na casa, e a beatífica tranqüilidade dos velhos aposentos dissolveu o último constrangimento que pudesse haver entre eles, agora substituído pelo orgulho de posse de Judith e pelo ilimitado entusiasmo de Jeremy. Ele já estivera muitas vezes naquela casa, é claro, nos tempos de tia Lavinia, porém nunca se aventurara além da sala de estar e da de refeições. Agora, os dois fizeram um completo tour de inspeção, começando pelo sótão, com o novo quarto de brinquedos, e terminando na cozinha.

—. Diana e o coronel me deixaram ficar com todos os móveis e peças que a família não queria, de modo que não precisei comprar nada. Sei que o papel de parede está desbotado e as cortinas gastas, porém chego a gostar de coisas assim. Inclusive dos pedaços surrados nos carpetes. Isto os torna amigáveis e familiares, como as rugas no rosto de uma pessoa querida. Claro que há lugares vagos, antes ocupados por coisas que foram para Nancherrow, mas posso viver muito feliz assim. E a cozinha funciona perfeitamente.

— Como aquece sua água? —Ele estava sendo confortadoramente prático.

—No fogão. É incrivelmente eficiente, desde que a gente se lembre de alimentá-lo duas vezes ao dia. A única coisa que eu gostaria realmente de possuir seria um refrigerador adequado, mas ainda não tive tempo de cuidar dessa parte, e como a loja de Penzance não tem nenhum à venda, suponho que terei de ir a Plymouth. O sr. Baines sugeriu mais um banheiro, porém, sinceramente, não nos faz falta nenhuma. Eu antes preferiria um aquecimento central, como em Nancherrow, mas acho que isso terá de esperar pelo fim da guerra...

—Você precisaria ter um boiler extra para o aquecimento central.

— Há espaço para um, além da copa...

Ela lhe mostrou o espaço que tinha em mente, e eles passaram outros cinco satisfatórios minutos discutindo o assunto e considerando as dificuldades de inserir canos através das velhas e espessas paredes de pedra da casa. Então, Phyllis e Anna juntaram-se a eles, após terem colhido ervilhas para o almoço. Depois de conversar um pouco mais, Jeremy tornou a consultar seu relógio e disse que chegara o momento de realmente despedir-se.

Judith acompanhou-o até o carro.

— Quanto tempo vai ficar em Nancherrow?

— Apenas uns dois dias.

— Tornarei a vê-lo? —perguntou ela, um tanto ansiosamente.

— Naturalmente. Ouça, por que não desce até lá esta tarde? Poderemos ir à enseada juntos. Com quem quiser que também deseje ir. Nadaríamos.

Era uma idéia tentadora. Há muito que ela não ia à enseada.

— Tudo bem. Irei de bicicleta.

— Leve seu maiô.

— Levarei.

— Três horas, que tal?

— Estarei lá. Entretanto, se eles tiverem feito outros planos e queiram a sua companhia, é só ligar para mim.

— Eu telefono.

Jeremy entrou em seu carro e ela ficou parada, vendo-o afastar-se. Então, entrou em casa pela cozinha e sentou-se à mesa com Phyllis e Anna, para ajudar a descascar as ervilhas.

A comprida alameda para carros em Nancherrow estava marginada de hidrângeas cobertas de flores. À luz amortecida do sol que se fíltra pelos galhos das árvores altas, a sensação era de pedalar ao longo de um leito de um rio muito azul. Judith estava de short e uma velha camiseta de malha. Na cesta da bicicleta colocara sua toalha de praia listrada, o maiô, uma suéter grossa e um pacote de bolinhos secos de gengibre para comer depois do banho de mar. Estava ansiosa por nadar e esperava que Loveday, e talvez Athena, se juntassem a ela e Jeremy

Quando emergiu da sombra das árvores, os pneus da bicicleta chocalharam sobre o cascalho. O nevoeiro da manhã já desaparecera porém o vento oeste ainda soprava. As janelas de Nancherrow piscavam ao sol da tarde, e as galinhas de Loveday, presas em seu cercado aramado ao lado da casa, cacarejavam, emitindo todos os sons tradicionais de aves alegres e saudáveis que tinham acabado de pôr — ou estavam prestes a pôr — um ovo.

Parecia não haver ninguém por ali, mas a porta da frente estava aberta. Judith estacionou a bicicleta, encostando-a à parede da casa, recolheu seus apetrechos de banho e a suéter. Ao virar-se para entrar e encontrar alguém, levou um susto tremendo, porque Jeremy havia surgido de lugar nenhum e estava em pé logo atrás dela.

— Oh! Jeremy, seu malvado! Que susto levei! Não vi você, nem o ouvi chegar!

Ele pôs as mãos nos braços dela, imobilizando-a, como se Judith pretendesse fugir de algum modo.

— Não entre — disse.

O rosto dele estava tenso e muito pálido sob o bronzeado da pele. Um nervo latejava pouco acima do ângulo do maxilar. Ela o encarou, perplexa.

— Por quê?

— Telefonaram para cá. Faz meia hora. Edward está morto. Judith ficou grata por estar segura com tanta firmeza, uma vez que seus joelhos começaram a tremer descontroladamente. Por um momento, um pânico terrível a invadiu, como se lhe fosse impossível continuar respirando. Edward está morto. Sacudiu a cabeça, em apaixonada negativa.

— Não!

— Ele foi morto esta manhã.

— Não. Não Edward. Oh, Jeremy, não Edward!

— O comandante dele telefonou, dando a notícia. Falou com o coronel.

Edward. O medo torturante que vivera com eles por tanto tempo, espreitando e esperando, finalmente havia desferido o golpe. Judith fitou o rosto de Jeremy e viu, por trás dos óculos que eram tão parte dele, os olhos brilhando por lágrimas não derramadas. E ela pensou: Todos nós sentiremos essa dor. Todos nós amamos Edward, embora de maneiras diferentes. Cada um de nós, cada pessoa que chegou a conhecê-lo, irá sentir um enorme vazio em sua vida.

— Como foi que aconteceu? — ela quis saber. — Onde aconteceu?

— Acima de Dover. No Hell-fire Comer. Houve um tremendo ataque inimigo acima dos navios no porto. Caças de mergulho Stuka e aviões de caça Messerschmitt. Um gigantesco, intenso bombardeio. Os caças da RAF penetraram nas formações alemãs. Derrubaram doze aviões inimigos, mas perderam três de suas próprias máquinas. O Spitfire de Edward foi uma delas.

Entretanto, tinha que haver um fio de esperança. O choque a tinha exaurido. Ela agora se sentia tomada por uma ira inútil.

— E como é que eles sabem? Como podem saber que ele está morto? Como podem ter certeza

— Um piloto de outro Spitfire anotou em seu relatório, ao voltarem da missão. Ele viu tudo acontecer. Um disparo direto de um dos Stukas. Uma espira de fumaça negra. O avião mergulhou em parafuso, caiu ao mar. Depois explodiu. Não houve ejeção do piloto. Nenhum pára-quedas se abriu. De forma nenhuma um homem sobreviveria a isso.

Ela ouviu em silêncio as dolorosas palavras de Jeremy, e o fio de esperança morreu para sempre. Depois ele deu um passo à frente e a tomou nos braços. Judith deixou cair o rolo da toalha e da suéter no Caminho de cascalho, e passou os braços em torno da cintura dele. Assim, ambos fizeram o melhor que podiam para um confortar o outro. Ela com a face apertada contra o ombro dele, o cheiro limpo de algodão de sua camisa, o calor de seu corpo. Em pé ali, enlaçada por Jeremy, ela pensou na família, em algum lugar dentro da casa. Os fascinantes Carey-Lewis e a desolação do pesar, o inimigo que invadira aquela casa adorável, feliz e cheia de sol. Diana e o coronel. Athena e Loveday.

 

Royal Air Force (Real Força Aérea). (N. da T.)

 

Como enfrentariam eles a agonizante finalidade de perda? Pensar nisso era quase insuportável. Toda a certeza era que Judith não tinha lugar naquela desolação particular. Um dia se sentira parte dos Carey-Lewis. Talvez ainda voltasse a sentir-se.

Agora, neste momento, ela não passava de uma intrusa, uma estranha em Nancherrow, uma invasora.

Afastou-se de Jeremy, soltando-se delicadamente dos braços dele e Disse:

— Nós não devíamos estar aqui, você e eu. Não devíamos ficar. Ambos temos que ir embora. Agora. Deixá-los a sós.

Eram palavras atropeladas, ditas com urgência, mas ele entendeu

— Vá você, se quiser. Aliás, acho que deveria ir. Volte para casa Para Phyllis. Eu, no entanto, devo ficar. Apenas por uns dois dias. Creio que o coronel está preocupado com Diana. Você sabe o quanto ele a protege. Em vista disso, ficarei por aqui. Talvez haja algo que eu possa fazer para ajudar. Mesmo que somente dar um pouco de apoio moral a ele.

— Mais um homem na casa. Se eu fosse o coronel, desejaria que você ficasse. Oh, Jeremy, eu queria ser como você! Forte. Você tem tanto a dar para todos eles. Neste momento, contudo, não me sinto em condições de dar coisa alguma. Só quero fugir. Ir para casa. Ir para casa, para a minha casa. Isso é terrível?

Ele sorriu.

— Não. Nada tem de terrível. Se quiser, eu a levarei de carro

— Tenho a minha bicicleta.

— Pois então pedale com cuidado. Você levou um choque.

Jeremy inclinou-se, recolheu o rolo da toalha e da suéter dela e limpou-a da terra e pedrinhas aderidas ao tecido, e colocou tudo na cesta da bicicleta. Em seguida, segurando os guidons, empurrou a bicicleta até onde Judith estava.

— Vá agora.

Ela segurou a bicicleta, mas ainda hesitava.

— Diga a Diana que vou voltar. Dê meu abraço nela. Explique.

— Claro.

— Não vá embora sem se despedir de mim.

— Não irei. E, de outra vez, iremos nadar.

Por algum motivo, isto fez com que os olhos dela se enchessem de

Por algum motivo, isto fez com que os olhos dela se enchessem de lágrimas.

— Oh, Jeremy, por que tinha de ser Edward?

— Eu não sei. Não me pergunte.

Assim, Judith não disse mais nada. Apenas montou na bicicleta e afastou-se pedalando lentamente. Ele ficou observando até ela desaparecer de vista, quando fez a curva da alameda e mergulhou no túnel formado pelas árvores.

Por que tinha de ser Edward?

Um momento depois, ele deu meia-volta, subiu os degraus, cruzou a porta e tornou a entrar na casa. Depois disso, Judith pouco podia recordar da sua volta de Nancherrow para Dower House. Parecendo terem adquirido uma volição própria, suas pernas movimentavam os pedais da bicicleta, funcionando automaticamente como pistões que empurravam a máquina para diante. Ela não pensou muito sobre qualquer coisa. Seu cérebro estava tão entorpecido como um limbo que tivesse sofrido um tremendo golpe. Mais tarde, ele começaria a doer e então a dor ficaria lancinante. Por ora, sua única idéia era chegar em casa, como se fosse um animal ferido rumando para seu covil, caverna, antro, toca ou qualquer outro nome que se quisesse dar.

Por fim chegou aos portões de Nancherrow e estava novamente fora de lá, em pleno sol, para então seguir ladeira abaixo, veloz, até o profundo vale de Rosemullion. No fundo, fez a curva para entrar na aldeia e pedalou ao longo da estrada, junto ao pequeno rio. Uma mulher, pendurando a roupa lavada, chamou seu nome.

- Olá! Que lindo dia!

Judith, entretanto, mal a ouviu e nem virou a cabeça.

Continuou pedalando, agora ladeira acima, até que a forte inclinação a derrotou, fazendo-a descer da bicicleta e empurrá-la pelo resto do caminho. Diante dos portões da Dower House, viu-se forçada a parar por um instante, a fim de recuperar o fôlego. Depois prosseguiu, empurrando a bicicleta sobre os seixos do caminho. Ao lado da porta, deixou-a cair, com a roda dianteira ainda girando lentamente, os guidons tortos para um lado.

A casa esperava Por ela, modorrenta à luz do entardecer. Ela pousou as mãos sobre a parede da entrada, e a pedra antiga ainda estava

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quente do sol que nela havia batido durante toda a manhã. Como uma pessoa, pensou Judith. Um ser humano. Vivo e com o coração batendo.

Após um momento, cruzou o pórtico e desceu o corredor lajeado onde o único som era o lento tique-taque do relógio de pé. Parou e escutou.

— Biddy! — chamou. Repetiu: — Biddy! Silêncio. Evidentemente, Biddy ainda não voltara.

— Phyllis!

Phyllis tampouco respondeu. Judith seguiu até o fim do corredor e abriu a porta de vidro que dava para a varanda. Além desta ficava o jardim, onde pôde verPhyllis, sentada em uma manta estendida na grama, com Anna e Morag, e mais alguns brinquedos para a menina divertir-se. A bola de borracha que Judith comprara para a criança, e um aparelho de chá para bonecas, feito de lata, desencavado quando Biddy fizera a faxina no sótão.

Ela cruzou a varanda e saiu para o gramado. Ouvindo seus passos, Morag sentou-se nas patas traseiras e latiu sem qualquer necessidade, depois olhando em torno para descobrir quem ou o que provocara seu latido.

—Judith! Não a esperávamos tão cedo! Não foi nadar?

— Não.

Chegando ao lado de Phyllis, Judith arriou na manta, junto dela. A lã grossa estava confortadoramente quente ao sol, como uma espessa suéter vestida após nadar em água muito fria.

— Por que não? Está um dia tão.

— Phyllis, quero perguntar uma coisa a você.

Phyllis franziu o cenho, ante a intensidade que percebeu na voz de Judith.

— Você está bem?

— Se eu me for. se eu tiver que ir, você ficará aqui e cuidará de tia Biddy para mim?

— De que você está falando?

— A questão é que ainda não falei com ela, mas acho que provavelmente quererá ficar na Dower House com você. Não voltar para Devon, quero dizer. Entretanto, compreenda, você não deverá deixá-la. Ela não pode ser deixada sozinha. Fica terrivelmente solitária, e começa a pensar em Ned, e começa a beber uísque para levantar o ânimo. Quero dizer que em tais ocasiões ela passa da conta na bebida, fica de fato embriagada. Já aconteceu antes, quando a deixei em Devon. Então, a sra. Dagg me contou o que havia. Este foi um dos motivos que me fizeram trazê-la comigo para a Cornualha. Por isso estou contando a você agora, enquanto ela não está aqui, a fim de que fique somente entre nós duas. Você nunca a deixaria, não é, Phyllis? Phyllis, naturalmente, estava confusa.

— Ouça, Judith, o que significa tudo isto?

— Você sabia que eu partiria. Algum dia. Para alistar-me. Não posso continuar aqui para sempre.

— Sim, mas...

— Vou para Plymouth amanhã. Para Devonport. Tomarei um trem e lá me alistarei, no Serviço Feminino da Marinha Real. Claro está que voltarei para casa. Só serei convocada dentro de duas semanas, pelo menos. Então, partirei para sempre, mas você nunca deixará Biddy, está bem, Phyllis? Prometa-me. E se você e Anna tiverem que ir embora, talvez pudesse conseguir alguém que viesse morar aqui, ficar com ela...

Phyllis percebia que Judith ficava cada vez mais nervosa — e por quê? Tão tensa e urgente, falando precipitadamente, suas palavras mal fazendo sentido. Phyllis estava perplexa e preocupada ao mesmo tempo. Pousou a mão no ombro de Judith e recordou a época em que tentara acalmar e imobilizar um potro nervoso.

— Bem... — ela começou, lenta e calmamente. — Pare de ficar tão preocupada. É claro que não vou deixar sua tia. Por que a deixaria? Todos conhecemos a sra. Somerville, sabemos que ela gosta de seu pequeno drinque ao anoitecer.

— Não se trata apenas de um pequeno drinque — Judith quase gritou para ela. — Você não compreende,..

— Compreendo. E lhe dei minha palavra. Agora, acalme-se.

As palavras fizeram efeito. O súbito acesso de irritação foi sufocado. Judith mordeu o lábio e ficou calada.

— Assim está melhor — disse Phyllis, encorajadoramente. — Agora, vamos conversar com calma. Sobre você. Sei que há meses vem pensando em alistar-se; mas por que tão de repente? Com toda essa pressa? Viajar para Devonport amanhã. Quando foi que decidiu tudo isso? O que a fez decidir-se?

— Não sei. Eu simplesmente decidi.

— Aconteceu alguma coisa?

— Sim.

— Agora?

— Sim.

— Então, conte para Phyllis.

Seu tom era o mesmo de outrora, dos velhos tempos em Riverview quando Judith ficava pela cozinha, infeliz e preocupada com os resultados dos exames, por não ter sido convidada para alguma festa de aniversário ou outra coisa qualquer.

Conte para Phyllis. Ela respirou fundo, e então contou.

— Edward Carey-Lewis foi morto. Seu avião foi derrubado sobre Dover.

— Oh,Deus!

— Jeremy acabou de contar-me. Por isso é que não fomos nadar. Vim para casa. Eu só queria estar em casa. Precisava tanto de você! — De repente, o rosto dela se franziu como o de uma criança, Phyllis estendeu os braços e a puxou bruscamente para si, beijou-lhe a cabeça e a embalou como se fosse um bebê. — Acho que não vou poder suportar, Phyllis. Não queria que ele morresse. Estava sempre em algum lugar, e não agüento pensar que ele não está mais em lugar algum. Agora ele nem.

— Sshhh.

Ainda embalando Judith nos braços, Phyllis compreendeu subitamente. Era tudo claro como água. Edward Carey-Lewis tinha sido o amor de Judith. Não Jeremy Wells. Apesar de toda a sua convicção e de altas esperanças, Phyllis estivera latindo para a árvore errada. Era o jovem Carey-Lewis a quem Judith entregara seu coração — e agora ele estava morto.

— Sshhh. fique quietinha.

— Oh, Phyllis.

— Apenas chore.

A vida era tão cruel, pensou Phyllis, e a guerra ainda pior. E de que adiantava mostrar coragem, sufocar os sentimentos? Era melhor dar vazão ao sofrimento, nadar a favor da maré, deixar a natureza seguir seu curso sanador, devastar tudo que havia pela frente em um dilúvio de lágrimas, como um dique transbordando.

Três dias se passaram, antes que Judith voltasse a Nancherrow. No primeiro dia de agosto, caía uma chuvinha leve e insistente, tão típica da Cornualha, que se abatia sobre jardins e campos, refrescando o ar. O rio inchado de águas gorgolejava sob a ponte, afogando os ranúnculos que cresciam em suas margens verdes; havia poças nas estradas e grandes gotas d’água desciam em chuveiros dos galhos mais altos.

Na chuva, usando uma capa de oleado preto, mas de cabeça descoberta, Judith pedalava. Depois da aldeia, empurrou a bicicleta colina acima, depois tornou a montá-la junto aos portões de Nancherrow e prosseguiu, através do serpenteante e aquoso túnel da estrada para carros. Tudo brilhava e gotejava, e os buquês de hidrângeas pendiam desolados, pesados de umidade.

Chegando à casa, ela deixou a bicicleta junto da entrada principal, cruzou a porta e entrou. Então parou, seus olhos desviados para o velho carrinho de criança de Nancherrow, suspenso por correias e clássico como um Rolls Royce. Havia sido estacionado no saguão junto à entrada, à espera de que a chuva cessasse e Clementina pudesse ser levada ao jardim, para sua necessária dose de ar puro. Judith desabotoou a capa e a deixou sobre uma cadeira de madeira esculpida, de onde ficou gotejando sobre os ladrilhos. Depois foi olhar o carrinho, querendo alegrar os olhos com a adorável visão que era Clementina. Ela dormia profundamente, com as gordas bochechas rosa-pêssego e o sedoso cabelo escuro sobre a fronha de cambraia rendada. Havia sido envolta em uma manta de fina gaze de Shetland, mas, de algum modo, conseguira libertar um braço, e a mão, semelhante a uma estrela-do-mar, de pulso rechonchudo com braceletes de gordura, jazia voltada para cima, como uma oferenda, sobre a pequena manta rosa. Havia algo de imemorial em seu sono tranqüilo, intocado por qualquer coisa terrível que houvesse acontecido ou prestes a acontecer. Ocorreu a Judith ser este o sentido da inocência. Tocou a mãozinha de Clementina e viu as unhas diminutas, perfeitas, e sentiu a doce fragrância que exalava do bebê, composta de limpeza, lã e talco Johnson. Apenas olhar para ela era a coisa mais confortadora e tranqüilizante que havia feito durante dias.

Após um momento, deixou o bebê adormecido e continuou a caminhar pelo saguão interno. A casa estava quieta, mas havia flores sobre a mesa 3 redonda ao pé da escadaria, assim como a pilha costumeira de cartas seladas, esperando que alguma pessoa as levasse ao correio. Ali fez uma pausa e então, como ninguém aparecesse, começou a descer o corredor até a porta da sala de estar menor. Estava com a porta aberta e do outro lado da sala, na janela abaulada, ela viu Diana sentada diante de sua secretária. O móvel costumava ficar na sala de estar principal, mas fora transferido para ali, quando a outra sala maior fora fechada pelo tempo que durasse a guerra.

A secretária estava entulhada com os apetrechos costumeiros para correspondência, porém Diana largara a caneta e nada fazia, além de olhar para a chuva que caía, através da janela.

Judith chamou-a. Diana virou-se e, por um instante, seus lindos olhos permaneceram opacos e sem ver; depois animaram-se, reconhecendo quem era.

—Judith! —exclamou, estendendo um braço. —Minha querida. Você veio.

Judith entrou na sala e fechou a porta atrás de si. Depois cruzourapidamente o aposento e inclinou-se, a fim de abraçar e beijar Diana.

— É tão bom ver você!

Ela parecia magra, pálida e terrivelmente abatida, mas estava elegante e bem-arrumada como sempre, usando uma saia pregueada de linho e uma blusa de seda azul-celeste, com um cardigan de cashmere combinando, posto sobre os ombros. Tampouco faltavam suas pérolas, os brincos, o batom, a sombra de olhos e o perfume. Judith foi tomada de enorme admiração e também de gratidão, porque se tivesse encontrado Diana despenteada, de roupas amarrotadas e malvestida, tudo teria parecido mais amedrontador, desesperançado como o mundo. Não obstante, ela também compreendia que a aparência de Diana era sua armadura pessoal, que o tempo e trabalho claramente dedicados a si mesma eram a sua contribuição particular de coragem. Sempre havia sido prazeroso olhar para ela. E Diana ia continuar assim, — por amor à sua família, pelos Nettlebed e por Mary. Apegando-aos padrões. Mantendo as aparências.

- Pensei que você nunca ia chegar...

- Oh Diana! Eu sinto tanto!

— Querida, não deve dizer essas coisas, pois do contrário eu me desfarei em pedaços. Procure falar comigo do jeito de costume. Que dia horroroso. Veio de bicicleta? Deve ter ficado encharcada. Sente-se por um momento e converse.

— Não a estou incomodando?

—Sim, está, mas eu quero ser incomodada. Escrever cartas nunca foi meu ponto forte, mas tanta gente nos tem escrito, que preciso fazer um esforço e tentar responder. É tão curioso, pois sempre escrevi cartas para os outros, quando alguém morria, porque assim tinha de ser feito. Boas maneiras. Nunca havia percebido o quanto elas significam. Eu as leio vezes sem conta, inclusive as condolências mais banais, e elas me enchem de orgulho e de consolo. E sabe de uma coisa? O extraordinário é que todas elas dizem algo diferente sobre Edward, como se dúzias de pessoas estivessem escrevendo sobre dúzias de Edwards diferentes. Algumas falam no quanto era gentil, quando não recordam algum incidente divertido, uma época em que ele se mostrou particularmente cortês, ou divertido, ou apenas devastadoramente atraente. E Edgar recebeu a carta mais tocante do comandante dele. Pobre homem, tendo de escrever para todos aqueles pais enlutados, tentando pensar em alguma coisa para dizer...

— O que ele falou sobre Edward?

— Simplesmente mencionou o bom trabalho que fez, primeiro na França, e depois acima de Kent. Disse que ele nunca perdia o otimismo nem o senso de humor, que a equipe de terra o estimava e respeitava. Disse ainda que, no fim, ele estava muito cansado por ter de voar vezes seguidas, porém sem jamais demonstrar fadiga, nunca perdendo a coragem.

— O coronel certamente apreciou isto.

— Sem dúvida. Ele conserva a carta em sua carteira. Penso que a deixará lá, até o dia de sua morte.

— E como está ele?

— Destroçado, perdido. Entretanto, como todos nós, esforçando-se em não demonstrar muito o quanto sofre. Aí está outra coisa estranha. Todos eles, Athena e Edgar, inclusive a pequena Loveday, parecem ter encontrado algum lenitivo que nem mesmo nós suspeitávamos.

Athena tem seu bebê, é claro. Clementina é uma doçura, um encanto. E Loveday apenas sai para trabalhar em Lidgey. Um pouco mais cedo cada dia. Por algum singular motivo, creio que ela encontra um grande consolo na sra. Mudge. E suponho que mostrar-se corajosa para os outros ajuda a mostrar-se corajosa para si mesma. Fico pensando em Biddy, quando seu Ned foi morto. Que coisa terrível, ela não ter outros filhos que a estimulem a seguir em frente! Como deve ter se sentido solitária! Mesmo com você lá. Você deve ter-lhe salvo a vida.

— Biddy enviou-lhe uma mensagem. Quando você quiser, ela virá vê-la, mas não quer ser demais.

— Diga-lhe que venha qualquer dia. Eu gosto de conversar. Será que Ned e Edward estão em algum lugar, terrivelmente satisfeitos fazendo amizade?

— Eu não sei, Diana.

— Que pensamento mais tolo este que acabou de me ocorrer! — Diana virou a cabeça e contemplou a chuva novamente. — Quando você chegou, eu tentava recordar algo que eles sempre lêem no Dia do Armistício. Entretanto, sou incapaz de recordar poesias. — Ficou calada, depois tornou a virar-se e sorriu para Judith. —Era qualquer coisa sobre sempre permanecer jovem. Nunca ficar velho.

Judith soube imediatamente do que ela falava, porém as palavras e suas associações eram tão emotivas, que não teve certeza de conseguir pronunciá-las em voz alta, sem sucumbir por completo.

— Stallings, Binyon Stallings — disse. Diana franziu o cenho. — Não, Laurence Binyon. Foi poeta laureado no fim da Grande Guerra. Ele escreveu a poesia.

— E o que escreveu?

— Eles não ficarão velhos, ao passo que nós envelheceremos. A idade não os molestará, nem os anos os condenarão.

Ela parou, porque cresceu um nó em sua garganta, fazendo-a perceber que seria incapaz de recitar as duas últimas linhas. Entretanto, se Diana notou, não deixou transparecer.

— Isso diz tudo, não é mesmo? Como o sr. Binyon foi admirávelmente brilhante, recolhendo de uma montanha de desespero um pequenino grão de consolo, e depois escrevendo um poema a respeito. — Através do espaço entre elas, os olhos de ambas encontraram-se. Diana perguntou, em voz muito suave:

— Você amava Edward, não é verdade? Não, não se perturbe por eu saber. Eu sempre soube, vi acontecer. O problema era ele ser tão jovem. Jovem na idade e jovem no coração. Irresponsável. Fiquei um pouco receosa por você, mas nada havia que eu pudesse fazer. Não deve pranteá-lo, Judith.

— Você quer dizer que não tenho o direito?

— Não, longe de mim tal intenção! Quero apenas dizer que você só tem dezenove anos e que não deve desperdiçar sua juventude chorando pelo que ”poderia ter sido. Céus! — Ela de repente começou a rir. — Estou parecendo Barrie, e aquela peça horrorosa, Caro Brutus. Tommy Mortimer me levou para vê-la em Londres. A platéia inteira choramingava, exceto nós dois, entediados até a alma.

— Não — Judith foi capaz de assegurar-lhe. — Não vou desperdiçar minha juventude. Eu não penso, porém estou indo embora. Deixando todos vocês. Parto para Devonport na terça-feira, a fim de inscrever-me no Serviço Feminino da Marinha Real. Cedo ou tarde serei convocada, e então terei de ir.

— Oh, minha querida!

—Eu sabia que qualquer dia teria de ir. Suponho que apenas estive adiando a partida. E esta me parece a hora adequada. Por outro lado, já fiz tudo que precisava fazer. Biddy, Phyllis e Anna estão instaladas na Dower House e imagino que lá ficarão, enquanto durar a guerra. De vez em quando, talvez você possa dar uma espiada, certificar-se de que elas estão bem.

— Claro que farei isso... De qualquer modo, continuarei vendo Biddy na Cruz Vermelha. O que você vai fazer nas Wrens? Algo francamente glamouroso, como Tripulação de Navio? Outro dia vi uma foto no jornal. Bonitas garotas vestindo calças boca-de-sino. Pareciam algo saído diretamente das páginas da Cowes Week.

—Não, nada de Tripulação de Navio.

— Que decepcionante...

— Taquigrafia e datilografia, provavelmente. Na Marinha, dizem que isto é ser escritor.

— Não soa muito excitante.

— É um trabalho.

Diana pensou nisso por um instante, depois suspirou fundo.

— Não suporto a idéia de você ir embora, mas suponho que deva ir. Tampouco suportei despedir-me de Jeremy, quando ele teve de deixar-nos. Você não imagina que rocha ele foi, apenas ficando aqui conosco, embora por dois dias somente. Então, teve que partir. Voltar para outro navio, suponho.

— Ele esteve na Dower House para despedir-se, quando foi embora. Nessa ocasião é que me disse para vir vê-la.

— Para mim, Jeremy é um dos homens mais queridos que já conheci. Oh, isso faz com que me lembre de uma coisa. — Ela se virou para sua secretária, abriu pequeninas gavetas, remexeu seus conteúdos. — Tenho uma chave aqui, em algum lugar. Se você vai nos deixar precisa ter uma chave.

— Uma chave?

— Sim. Uma chave da minha casa de Cadogan Mews. Quando estourou a guerra, mandei fazer meia dúzia de cópias. Rupert ficou com uma e Athena com outra, naturalmente. E Gus. E Jeremy. E Edward. Edward tinha uma. oh, aqui está. Você deverá colocar-lhe uma etiqueta, para evitar perdê-la a todo instante.

Diana jogou a chave, e Judith a pegou. Uma pequena chave de porta, de latão. Ela a apertou na palma.

— Por que está me dando isso?

— Oh, meu bem, a gente nunca sabe. Em tempos de guerra, todos andam em Londres de um lado para o outro, e os hotéis estarão cheios (de qualquer modo, são terrivelmente caros) — e minha casinha pode ser um pequeno refúgio para você ou um lugar onde recostar a cabeça por uma noite. Se ela não for bombardeada ou sofrer algo desastroso. Agora não tenho motivos para ir a Londres, mas mesmo que vá e, por acaso, encontre algum de vocês albergado por lá, tudo bem. Há espaço suficiente.

— Acho que é uma idéia maravilhosa. É muita gentileza, muita generosidade sua.

— Não há nada disso, nem uma coisa e nem outra. Afinal, partilhar minha casinha com todos vocês, talvez seja o mínimo que posso fazer. Vai ficar para o almoço? Teremos torta de coelho e ha massas.

— Eu gostaria muito, mas preciso voltar.

- Loveday está em Lidgey, mas Athena anda por aí.

- Não. Deixemos para outro dia. Eu só queria ver você.

Diana compreendeu.

- Está bem. — Ela sorriu. — Direi aos outros. Fica para qualquer dia-

A cada manhã, Edgar Carey-Lewis incumbia-se de recolher a correspondência matinal da mesa do saguão — deixada lá pelo carteiro — levá-la para a privacidade de seu estúdio e examinar todas as cartas, antes de entregar qualquer delas a Diana. As mensagens continuavam chegando, dez dias após a morte de Edward, enviadas por jovens e velhos de todas as condições sociais, e ele lia cada uma com atenção e cuidado, filtrando os bem-intencionados, mas possivelmente inconvenientes e desajeitados esforços que, temia, pudessem perturbar sua esposa. Estas cartas ele mesmo respondia, destruindo-as em seguida. As outras, colocava na secretária de Diana, para que ela as folheasse e respondesse, quando sentisse disposição.

Nesta manhã havia a pilha costumeira, mas também um grande e rijo envelope de papel grosso, sobrescritado com tinta negra, em tipo itálico. A agradável escrita chamou-lhe a atenção, ele examinou mais de perto e viu o carimbo de Aberdeen.

Levou o maço de correspondência para seu estúdio, fechou a porta, sentou-se à sua mesa e abriu o grosso envelope com sua espátula de prata. Do interior, retirou uma carta e uma folha de cartolina, dobrada em duas e presa por clipes de papel. Abriu a carta, procurou a assinatura, viu que estava assinado "Gus", e ficou muito comovido, Porque mais um amigo de Edward, de Cambridge, se dera ao trabalho de escrever.

Quartel-general Regimental The Gordon Highlanders Aberdeen

15 de agosto de 1940

Prezado Coronel Carey-Lewis

Somente ontem fiquei sabendo sobre Edward, dado motivo de não haver escrito antes. Por favor, queira me perdoar e compreender.

Passei dez anos de minha vida em internatos, primeiro na Escócia e depois em Rugby, porém em todo esse tempo jamais fiz um amigo íntimo, uma pessoa com quem me sentisse inteiramente à vontade, e cuja companhia nunca deixasse de me ser estimulante e divertida. Quando mais tarde passei a estudar em Cambridge, estava certo de existir algo na minha maneira de ser — talvez a abominável reserva escocesa — que prejudicava tais relacionamentos. Foi então que conheci Edward, e a vida mudou de cor. Seu fascínio era ilusório. devo admitir que, a princípio, fiquei algo receoso. porém assim que o conheci melhor, todas as reservas se diluíram, uma vez que jazia, sob aquele fascínio, essa força de caráter do homem que sabe exatamente quem é, aquilo que quer, e para onde vai.

Daqueles poucos meses em que ficamos nos conhecendo, guardo uma legião de boas lembranças. Seu companheirismo, amabilidade e uma capacidade ilimitada para a amizade; seu riso e bom humor, sua generosidade de espírito. Os dias que passei com vocês em Nancherrow, pouco antes da declaração de guerra, assim como a benevolência que o senhor demonstrou para um total estranho, fazem parte dessas recordações. Nada poderá destruir tão felizes lembranças, e posso apenas sentir-me grato pela sorte de ter conhecido Edward e de ser cotado como um de seus amigos.

Folheando meu caderno de esboços de Cambridge, encontrei este desenho que fiz dele. Era verão, havia uma disputa colegial de críquete, e ele se deixara convencer a completar o número de jogadores. Sem muito entusiasmo, devo acrescentar!

Desenhei-o enquanto ele permanecia ao lado do pavilhão, já uniformizado e aguardando sua vez para entrar no jogo.Não ficarei nem um pouco aborrecido se o senhor jogar o desenho na cesta de papéis, mas pensei que talvez gostasse de tê-lo.

A Divisão Highland está sendo reformada, mas fui destacado para o Segundo Batalhão, o Gordon Highlanders, que já se encontra no estrangeiro. Se me permitir, eu gostaria de escrever para o senhor e manter-me em contato.

Queira aceitar meus cumprimentos, extensivos à sra. Carey-Lewis, Athena e Loveday.

Cordialmente,

Gus

Edgar leu atentamente a carta duas vezes, depois deixou-a de lado e pegou a pasta improvisada. Com certa dificuldade (por algum motivo, seus dedos estavam um pouco trêmulos), soltou os clipes e desdobrou a cartolina. Dentro dela havia uma folha de papel forte e grosseiro, a borda do topo irregular, ao ser arrancada do caderno de desenho de Gus.

Seu filho. Um rápido esboço a lápis, mais tarde colorido a aquarela

(a marca registrada artística de Gus). Captado em um momento, captado para sempre. Edward, vestido para o críquete, com camisa branca, calças de flanela e um lenço vivamente listrado, amarrado na cintura. As mangas da camisa arregaçadas, antebraços musculosos, uma bola de couro para críquete aninhada em sua mão. O rosto virado de lado queimado de sol e sorridente, com aquela teimosa mecha de cabelo cor de trigo caindo sobre a testa. Em mais um instante, ele ergueria a mão e jogaria a mecha para trás.

Edward.

De súbito, Edgar Carey-Lewis percebeu que não conseguia discernir mais o desenho, porque sua visão ficara embaçada pelas lágrimas. apanhado de surpresa, desprevenido, ele estava chorando. Enfiando a mão bolso, pegou um enorme lenço de algodão salpicado de pontos azuis e com ele enxugou as lágrimas, depois assoando vigorosament o nariz. Tudo bem. Não tinha importância. Ele estava sozinho. Ninguém testemunhara seu momento de agonizante sofrimento.

Continuou sentado por muito tempo, com o desenho de seu filho. Depois, cuidadosamente, tornou a colocá-lo dentro da pasta, firmou de novo com os clipes e guardou-a em uma gaveta. Um dia, iria deixar Diana vê-lo. Mais tarde ainda, mandaria emoldurá-lo e o colocaria sobre sua mesa. Mais tarde. Quando se sentisse com forças suficientes para sentar-se e contemplá-lo. E conviver com o retrato.

 

                                                                                CONTINUA 

 

                      

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