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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O REGRESSO / Rosamunde Pilcher
O REGRESSO / Rosamunde Pilcher

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O REGRESSO

Primeira Parte

 

Judith Dunbar jamais conheceu efetivamente a segurança e o bem-estar de uma vida em família. Natural de Colombo, onde o pai trabalha numa empresa de navegação, ela passa a adolescência num internato só para meninas, enquanto a mãe e a irmã mais nova vivem no exterior

Sem dúvida, não é uma vida feliz — mas, certamente, a única que pode ter Até o dia em que sua nova colega de escola, Loveday Carev-Lewis, convida-a para passar o fim de semana em sua mansão. Completamente encantada e arrebatada pela beleza de Nancherrow — seus jardins luxuriantes, o aconchegante conforto da casa, o magnífico mobiliário antigo — Judith mergulha de corpo e alma numa espécie de luxúria mágica E, claro, apaixona-se pela família Carev-Lewis. A começar pela elegante e glamurosa Diana, que oferece-lhe para sempre o quarto rosa da casa. O reservado e amável Coronel, que a acolhe como se fosse sua "própria filha". E Athena e Edward, irmãos de Loveday, com quem Judith se identifica à primeira vista.

Como num verdadeiro conto de fadas, Judith passa de uma simples garota solitária a uma jovem bem educada e generosa, embalada em meio a chamas de amor e afeição.

Mas logo elas se extinguirão com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, e uma tempestade de privações e perdas assolará os dias deslumbrantes e calmos da Cornualha. E a própria Judith, que se alistarápara trabalhar como voluntária na guerra que lhe levará muitos entes queridos, se verá cada dia mais distante de... regressar ao lar.

 

 

                            1935

A Escola do Conselho de Porthkerris situava-se no meio da subida da escarpada colina, que se erguia do coração da cidadezinha até as charnecas vazias que jaziam além. Era um sólido edifício vitoriano, construído de blocos de granito, e tinha três entradas, marcadas Meninos, Meninas e Crianças, um legado dos dias da obrigatoriedade de segregação dos sexos. Era contornada por um pátio de recreio com piso alcatroado e uma alta grade de ferro forjado, oferecendo ao mundo uma fachada francamente proibitiva. Entretanto, naquele fim de tarde de dezembro, a escola se mostrava inteiramente inundada de luz e, de suas portas abertas, fluía uma torrente de crianças excitadas, carregadas de sacolas para botas, sacolas para livros, balões de gás presos em cordões e pequenos sacos de papel cheios de doces. Elas emergiam em pequenos grupos, empurrando-se, rindo tolamente e proferindo gritos agudos de alegres insultos entre si, antes de finalmente se dispersarem e tomarem o rumo de casa.

O motivo daquele excitamento era duplo. Estavam no final do termo letivo de inverno e houvera uma festa de Natal na escola. A festa consistira de jogos cantados e de corridas de revezamento, com os participantes subindo e descendo o corredor do salão de festas, carregando sacos de grãos que deviam ser agarrados e entregues à pessoa seguinte da equipe. As crianças tinham dançado Sir Roger de Cover-ley, à música martelada no pequenino e antigo piano da escola, e tomado um chá com sanduíches de presunto, bolinhos de açafrão e limonada gasosa. Por fim, em fila indiana, uma por uma havia apertado a mão do sr. Thomas, o diretor, desejara a ele um Feliz Natal e ganhara um saquinho de doces.

Era uma rotina cumprida todos os anos, porém sempre alegremente esperada e muitíssimo apreciada.

 

Nome de determinada música e dança rural inglesa. (N. da T.)

 

Aos poucos, a ruidosa torrente de crianças ficou reduzida a um regato: as que vinham embora por último, retidas lá dentro à procura de luvas perdidas ou de um sapato abandonado. No fim de tudo, quando o relógio da escola tocou um quarto para as cinco da tarde, pela porta aberta surgiram duas adolescentes, Judith Dunbar e Heather Warren, ambas com quatorze anos de idade, ambas com casaco azul-marinho e botas de borracha, os gorros de lã bem puxados sobre as orelhas. A semelhança entre as duas, entretanto, parava aí, porque Judith era loura, com dois hirsutos rabos-de-cavalo, sardas e olhos azul-claros; Heather, por sua vez, herdara do pai o seu tom de pele e, através dele, percorrendo gerações de ancestrais, de algum marinheiro espanhol, lançado à costa da Cornualha após a destruição da Armada. Desta maneira, ela possuía uma tez cor de oliva, cabelos negríssimos e olhos escuros, brilhantes como dois sumarentos bagos de uva.

Elas eram as últimas participantes da festa a sair, porque Judith estava deixando a Escola de Porthkerris para sempre e tivera que despedir-se, não apenas do sr. Thomas, mas também de todos os demais professores, além da sra. Trewartha, cozinheira da escola, e do velho Jimmy Richards, cujos humildes encargos incluíam o abastecimento do boiler da escola e a limpeza dos lavatórios externos ao prédio.

Finalmente, não havendo mais ninguém de quem se despedirem, elas seguiram seu caminho, atravessando o pátio de recreio e depois cruzando os portões. O dia nublado escurecera prematuramente e caía uma leve garoa, tremeluzindo contra o clarão dos postes de iluminação. A rua serpenteava colina abaixo, negra e molhada, com poças onde a luz se refletia. Elas começaram a caminhar, descendo para a cidade. Por um momento, nenhuma das duas falou. Então, Judith suspirou.

— Bem — disse ela, em um tom de finalidade —, é isso aí!

— É um tanto esquisito, saber que você não volta mais.

— Também acho. Entretanto, a parte mais esquisita é eu me sentir triste. Nunca pensei que ficaria triste por deixar qualquer escola, mas agora estou.

— Não vai ser a mesma coisa sem você.

— E sem você, também não será a mesma coisa. Você, no entanto, está com sorte, porque ao menos ainda tem Elaine e Christine como amigas. Quanto a mim, vou começar tudo outra vez, da estaca zero, tentando encontrar alguém de quem goste no Santa Úrsula. E odeio usar aquele uniforme!

O silêncio de Heather foi solidário. O uniforme era quase o pior de tudo. Na Porthkerris, todos usavam as próprias roupas e, além disso, ofereciam uma visão bastante agradável, graças às suéteres de cores diferentes, e às fitas de tons vivos nos cabelos das meninas. O Santa Úrsula, contudo, era uma escola particular e arcaicamente antiquada. As alunas usavam capotes de tweed verde-escuro, grossas meias marrons e chapéus verde-escuros, peças tão destoantes, que garantiam a transformação da aluna mais bonita em absolutamente horrível. O Santa Úrsula aceitava alunas externas, assim como internas, e essas infelizes criaturas eram francamente desprezadas por Judith, Heather e suas contemporâneas na Porthkerris, que as consideravam vítimas ideais para implicâncias e deboches, se tivessem a má sorte de tomar o mesmo ônibus que elas. Era deprimente, para Judith, imaginar-se formando fileiras com aquelas criaturas insuportáveis e dengosas, que se davam ares tão importantes.

O pior de tudo, no entanto, era a perspectiva do internato. Os Warrens eram uma família profundamente unida, e Heather não podia imaginar um destino pior do que ser separada do convívio dos pais e dos dois irmãos mais velhos, ambos atraentes e de cabelos tão negros como o de seu pai. Na Escola de Porthkerris, eles haviam ficado conhecidos por suas diabruras e travessuras, porém desde que tinham sido transferidos para a Escola do Condado, em Penzance, de certo modo acabaram domados por um aterrorizante diretor, sendo forçados a prestar mais atenção aos livros e a melhorar o comportamento. Ainda assim, os dois eram as criaturas mais divertidas do mundo. Eles é que tinham ensinado Heather a nadar, andar de bicicleta e pescar cavalinha com rede de arrasto, de seu atarracado barco de madeira. E que divertimento alguém conseguiria ter, na companhia de apenas garotas. Pouco importava o Santa Úrsula ficar em Penzance e, portanto, a somente quinze quilômetros de distância. Quinze quilômetros eram uma eternidade para alguém que tivesse de viver longe de mamãe, de papai, de Paddy e Joe.

De qualquer modo, parecia que a pobre Judith não tinha escolha. Seu pai trabalhava em Colombo, no Ceilão, e durante quatro anos ela, sua mãe e a irmãzinha caçula tinham ficado separadas dele. Agora, a sra. Dunbar e Jess iam voltar para o Ceilão, e Judith ficaria para trás, sem a menor idéia de quando tornaria a ver a mãe outra vez.

Entretanto, como a sra. Warren costumava dizer, não adiantava chorar sobre o leite derramado. Heather procurou algo alegre para dizer.

— Haverá os feriados.

— Com a tia Louise.

— Oh, vamos, não fique tão deprimida! Pelo menos, você ainda estará aqui. Vivendo em Penmarron. Pense só que sua tia poderia morar em algum lugar terrível, bem no interior do país, ou em alguma cidade qualquer. Você não conheceria ninguém. Do jeito como vai ficar, poderemos continuar nos vendo. Você virá para cá, nós desceremos até a praia. Ou iremos ao cinema.

— Tem certeza?

Heather estava perplexa.

— Certeza de quê?

—Bem, quero dizer... certeza de que continuará querendo ver-me, de ser minha amiga. Indo para o Santa Ursula, e tudo o mais... Você não irá pensar que fiquei esnobe e horrível?

— Ora, francamente! — Heather deu uma batida amorosa no traseiro da amiga, com sua sacola de botas. — Quem está pensando que sou?

— Seria uma espécie de fuga.

— Você faz a coisa parecer como ir para a prisão.

— Sabe o que quero dizer.

— Como é a casa da sua tia?

— É bastante grande e fica bem no alto do campo de golfe. E é cheia de bandejas de latão, de peles de tigre e patas de elefante.

— Patas de elefante? Pelo amor de Deus, o que sua tia faz com elas?

— São um porta-guarda-chuvas.

— Eu não gostaria disso. Enfim, suponho que você não terá de olhar muito para semelhante coisa. Terá seu próprio quarto, não?

— Sim, vou ter meu quarto. Era o melhor quarto extra de minha tia. Tem sua própria pia e espaço para minha secretária.

— Parece excelente. Não sei por que você se lamenta tanto a respeito.

— Não é que me lamente. Apenas, simplesmente, aquela não é a minha casa. Além do que, lá no alto faz muito frio, o lugar é totalmente desabrigado e exposto aos ventos. A casa chama-se Windyridge, o que não é de admirar. Mesmo quando tudo está calmo em todos os lugares, parece sempre haver uma ventania sacudindo as janelas de tia Louise.

— Fantasmagórico.

— Há mais uma coisa. Aquela casa é longe de tudo. Não vou mais poder pegar o trem, e a parada de ônibus mais próxima fica a três quilômetros de distância. Para piorar a situação, tia Louise não terá tempo de me levar de carro por aí, porque está sempre jogando golfe.

— Talvez ela lhe ensine a dirigir.

— Oh, ha, ha, ha!

— Está me parecendo que você precisa é de uma bicicleta. Então, poderia ir aonde quisesse e quando quisesse. Pela estrada do alto, são apenas uns cinco quilômetros até Porthkerris.

— Você é formidável! Eu nunca pensei em uma bicicleta!

— Não sei por que ainda não teve uma. Papai me deu a minha quando eu tinha dez anos. Não que ela seja muito boa neste maldito lugar, com tantas ladeiras, mas no lugar para onde você vai, uma bicicleta seria simplesmente o ideal.

— Bicicletas são muito caras?

— Uma nova deve custar umas cinco libras. De qualquer modo, é possível que consiga uma de segunda mão.

— Minha mãe não é muito boa nesse tipo de coisa.

—Se quer saber, acho que mãe nenhuma é. Entretanto, não é muito difícil ir a uma loja de bicicletas. Faça com que ela lhe dê uma no Natal.

—Já pedi uma blusa de malha para o Natal. Com gola pólo.

— Pois peça também uma bicicleta!

— Eu não poderia.

—É claro que pode. Dificilmente ela recusaria. Indo embora e sem saber quando tornará a vê-la, sua mãe lhe dará tudo o que você quiser. Basta malhar enquanto o ferro está quente.

Este era outro dos ditos da sra. Warren. Judith respondeu apenas:

— Veremos.

As duas caminharam algum tempo em silêncio, seus passos retinin-do na calçada úmida. Passaram pela loja de peixe-e-fritas, animada por alegre iluminação, e o cheiro cálido de gordura quente e vinagre que emanava pela porta aberta era de dar água na boca.

 

Cume ventoso. (N. da T.)

 

— Essa sua tia, a sra. Forrester. É irmã de sua mãe, não?

— Não, de meu pai. É muito mais velha do que ele. Tem uns cinqüenta anos. Morou na índia. Foi de onde trouxe a pata de elefante.

— E quanto a seu tio?

—Já morreu. Ela é viúva.

— Tem filhos?

— Não. Acho que eles nunca tiveram filhos.

—Curioso isso, não é? Será porque eles não quiseram ou porque... alguma coisa... não aconteceu? Minha tia May também não tem filhos, e ouvi papai dizer que era porque o tio Fred não tinha aquilo nele. O que ele quereria dizer com isso?

— Não faço a menor idéia.

— Teria alguma coisa a ver com o que Norah Elliot nos contou? Você sabe, aquele dia, atrás do galpão de bicicletas.

— Ela apenas inventou tudo o que disse.

— Como é que você sabe?

— Porque era nojento demais para ser verdade. Somente Norah Elliot pensaria em uma coisa tão repugnante.

— E se...

Era um tema fascinante, cujo teor as duas adolescentes haviam discutido de quando em quando, sem nunca chegarem a qualquer conclusão útil, exceto o fato de que Norah Elliot cheirava mal e suas blusas da escola estavam sempre sujas. De qualquer modo, aquele não era o momento para desfazerem as dúvidas, porque a conversa as fizera descer a colina, chegar ao centro da cidade e à biblioteca pública, onde cada uma tomaria seu rumo. Heather seguiria na direção do porto, descendo por ruas estreitas e frustrantes alamedas calçadas de lajes, até a casa quadrada de granito onde morava a família Warren, em cima da mercearia do sr. Warren. Quanto a Judith, ainda subiria outra ladeira e se encaminharia para a estação do trem.

As duas pararam sob o chuvisco impertinente, abaixo do poste de iluminação, e entreolharam-se.

— Bem, acho que agora é adeus — disse Heather.

— Sim, também acho.

—Você pode escrever para mim. Tem o meu endereço. E se quiser deixar algum recado, telefone para a mercearia. Quero dizer... se quiser vir lá em casa, nos feriados.

— Farei isso.

— Não creio que a escola vá ser tão ruim.

— Tem razão. Também acho que não será.

— Então, adeus.

— Adeus.

Contudo, nenhuma delas se moveu, nenhuma deu meia-volta. Haviam sido amigas durante quatro anos. Aquele era um momento doloroso.

— Tenha um bom Natal — disse Heather.

Outra pausa. De repente, Heather inclinou-se para diante e plantou um beijo na face molhada de chuva de Judith. Então, sem mais uma palavra, ela se virou e começou a descer a rua correndo, o som de seus passos ficando cada vez mais distantes, até não serem mais ouvidos. Só depois disso, sentindo-se algo desolada, Judith prosseguiu em sua caminhada solitária, subindo a calçada estreita entre pequenas lojas vivamente iluminadas, suas vitrines decoradas para o Natal com ouropéis envoltos em caixas de tangerinas, e fitas escarlates amarrando potes de sais para banho. Até o ferragista dera sua contribuição. PRESENTES ÚTEIS E BEM-VINDOS, dizia um cartaz escrito a mão, reclinado em brutal martelo de unhas que exibia um ramo artificial de azevinho. Ela deixou para trás a última loja situada bem no topo da ladeira, que era a filial local da W. H. Smith, onde sua mãe comprava a revista Vogue todos os meses e, a cada sábado, vinha trocar seu livro da biblioteca. Dali em diante, a rua nivelava-se, as casas rareavam e, sem seu abrigo, o vento assenhoreava-se do espaço. Chegava em rajadas suaves, carregadas de umidade, jogando-lhe no rosto uma bruma encharcante. No escuro, este vento provocava uma sensação toda sua e trazia consigo o som das ondas quebrando-se na praia, muito abaixo dali.

Após alguns momentos, ela parou e pousou os cotovelos sobre um muro baixo de granito; precisava descansar após a íngreme subida e também recuperar o fôlego. Judith viu o difuso amontoado de casas descendo para a taça escura do porto, assim como a rua do porto, delineada por um encurvado colar de postes de luz. Nos barcos de pesca, suas luzes de navegar verdes e vermelhas afundavam nas ondas e enviavam tremeluzentes reflexos para a água escura. O horizonte distante estava perdido na escuridão, porém o palpitante e incansável oceano continuava para sempre. Muito além, a luz do farol piscava seu aviso. Um facho curto, depois dois longos. Judith imaginou os vagalhões eternos, lançando-se contra as rochas cruéis em sua base.

Ela estremeceu. Estava escuro e frio demais para ficar parada naquele vento molhado. O trem estaria chegando em cinco minutos. Judith começou a correr, a sacola das botas batendo contra o lado do corpo; chegou ao comprido lance de degraus de granito que desciam para a estação ferroviária e disparou por eles abaixo, com a descuidada confiança gerada por anos de familiaridade.

O trem do pequeno ramal esperava junto à plataforma. A locomotiva, dois vagões de terceira classe, um de primeira classe e o bagageiro do guarda. Ela não precisava comprar passagem, porque tinha os passes do Período Escolar e, por outro lado, o sr. William — o guarda — a conhecia tão bem como sua própria filha. Charlie, o maquinista, também conhecia Judith e, quando ela estava atrasada para a escola, ele aguardava bondosamente com o trem na Parada de Penmarron, tocando seu apito, enquanto ela descia a toda pressa pelo jardim de Riverview House.

Ir para a escola e voltar todos os dias, viajando naquele trenzinho, era uma das coisas de que realmente iria sentir falta, porque durante cinco quilômetros a linha corria ao longo da borda de um trecho espetacular do litoral, abrangendo tudo que uma pessoa possivelmente desejasse contemplar. Como estava escuro, ela agora não podia ver nada lá fora, enquanto as rodas chocalhavam ao longo da via férrea, porém sabia que a paisagem seria a mesma de sempre. Penhascos e cortes profundos, baías e praias, chalés encantadores, pequenas trilhas e campos diminutos que, na primavera, ficavam amarelados de narcisos. Depois vinham as dunas de areia e a praia, vasta e solitária, que ela chegara a considerar sua propriedade.

Às vezes, quando as pessoas sabiam que Judith não tinha pai, uma vez que ele se encontrava no outro lado do mundo, trabalhando para uma importante companhia de navegação chamada Wilson-McKin-non, sentiam pena dela. Como devia ser terrível viver sem um pai ao lado! Ela não sentia falta dele? Qual era a sensação de não tê-lo em casa, nem mesmo nos fins de semana? Quando é que tornaria a vê-lo? Quando ele voltaria para casa?

Ela sempre respondia de maneira vaga, em parte por não querer discutir o assunto, e também porque não sabia exatamente como se sentia. Judith apenas sempre soubera que a vida seria desta maneira, porque assim era para toda família na índia Britânica e, desde a mais tenra idade, as crianças absorviam e aceitavam o fato de que as longas separações e despedidas eventualmente seriam inevitáveis.

Judith havia nascido em Colombo e lá vivera até os dez anos, dois a mais do que o permitido à maioria das crianças inglesas para permanência nos trópicos. Durante esse período, os Dunbars tinham retornado à pátria uma vez, para Férias Prolongadas, porém Judith tinha somente quatro anos na época, de maneira que as lembranças daquele tempo na Inglaterra tinham sido apagadas pela passagem dos anos. Ela nunca sentiu que a Inglaterra era a pátria, o lar. Colombo, sim, naquele espaçoso bangalô na Rua Galle, com um jardim verdejante, separado do Oceano Índico pela estrada de ferro de uma só via que vinha do sul até Galle. Devido à proximidade do mar, nunca parecia importar se o calor era demasiado, pois sempre havia uma brisa fresca soprando com as ondas e, dentro da casa, o ar era movimentado pelas pás de madeira dos ventiladores de teto.

Entretanto, inevitavelmente chegou o dia em que tiveram de deixar tudo aquilo para trás. O dia de dizerem adeus à casa, à ama e ao mordomo Joseph, ao velho Tamil que cuidava do jardim. De dizerem adeus a papai. Por que temos de ir, perguntava Judith, ainda quando ele as levava de carro para o porto, onde o barco P ôc O estava ancorado, mas já com as máquinas em funcionamento. Porque chegou a hora de irem, havia respondido ele; porque há um momento para tudo. Nenhum dos pais lhe contara que sua mãe estava grávida, e somente após cumpridas as três semanas de viagem, quando já estavam de volta à cinzenta Inglaterra, com a chuva e o frio, Judith foi posta a par do segredo de que havia um novo bebê a caminho.

Uma vez que não tinham casa própria para onde voltar, tia Louise, industriada por seu irmão Bruce, havia tomado as rédeas do assunto, localizando Riverview House e alugando-a mobiliada. Pouco depois delas tomarem posse da casa, Jess nascia no Porthkerris Cottage Hospital. E agora, chegava o momento de Molly Dunbar voltar a Colombo. Jess iria com ela, e Judith ficaria para trás, sentindo uma terrível inveja da mãe e da irmã.

Tinham vivido quatro anos na Cornualha. Quase um terço de sua vida. E, de uma maneira geral, aqueles anos tinham sido bons. A casa era confortável, havia espaço para todas elas, e possuía um jardim, extenso e irregular, que descia morro abaixo em uma série de terraços, relvados, degraus de pedra e um pomar de maçãs.

O melhor de tudo, no entanto, havia sido a liberdade de que Judith sempre desfrutara. O motivo para isto era duplo. Tendo que cuidar do bebê, Molly dispunha de pouco tempo para vigiar a filha mais velha, e ficava satisfeita por ela procurar entreter-se sozinha. Além disso, embora sendo por natureza extremamente ansiosa e protetora de suas filhas, Molly em pouco percebeu que a sonolenta aldeiazinha e seus pacatos arredores nenhum perigo representavam para qualquer criança.

Explorando o terreno, Judith aventurara-se além dos limites do jardim, de maneira que a linha do trem, a fazenda de violetas nas vizinhanças e as margens do estuário se tornaram seu local de brinquedos. Ao ficar mais velha, ela descobriu a alameda que levava à igreja do século XI, com sua quadrada torre normanda e um cemitério devastado pelo vento, cheio de lápides antigas cobertas de líquenes. Em um dia de tempo excelente, quando ela se agachava para tentar decifrar a inscrição entalhada em uma lousa, havia sido surpreendida pelo vigário que, encantado por seu interesse, a levara ao interior da igreja, contara-lhe parte da história do templo e apontara suas características salientes, seus singelos tesouros. Então, haviam subido à torre e, parados lá no alto, suportando as rajadas de vento, ele mostrara à menina interessantes pontos de referência. Era como ter o mundo todo revelado, um mapa imenso e maravilhosamente colorido: propriedades rurais, divididas em pequenos campos como uma colcha de retalhos, o verde-aveludado das pastagens e o canelado veludo castanho das terras aradas; montes distantes coroados por marcos de pedra que recuavam no tempo, um tempo tão distante, que ficava além da compreensão; o estuário, com seu fluxo de águas azuis que refletiam o céu, semelhante a um imenso lago cercado pela terra, mas sem ser um lago em absoluto, porque se enchia e esvaziava com as marés, correndo para o mar através da passagem de águas profundas, conhecida como o Canal. Nesse dia, o movimento da maré no Canal era azul-índigo, porém o oceano era turquesa, com ondas que rolavam para a praia vazia. Ela avistou a comprida linha costeira de dunas encurvando-se para o norte, até a rocha em que se erguia o farol, e havia barcos pesqueiros no mar, e o céu estava cheio de gaivotas grasnando.

O vigário explicou que a igreja tinha sido construída sobre este outeiro, acima da praia, para que sua torre fosse como um farol, um sinalizador para os navios em busca de águas seguras e da primeira terra vista de bordo. A ela não fora difícil imaginar aqueles galeões de eras passadas, as velas enfunadas ao vento, vindo de alto-mar e subindo a correnteza com a maré cheia.

Além de descobrir lugares, Judith também ficou conhecendo os moradores locais. Os habitantes da Cornualha adoram crianças e, para onde quer que ela fosse, era recebida com tal prazer, que sua inata timidez rapidamente desapareceu. A aldeia parecia fervilhar de personagens interessantes. A sra. Berry, que dirigia a loja da aldeia e fabricava os próprios sorvetes com ovos e creme de leite em pó; o velho Herbie, que conduzia sua carroça de carvão, e a sra. Southey, da agência do correio, que instalara uma grade de lareira sobre o balcão, a fim de manter os bandidos à distância, e mal conseguia vender um selo sem dar o troco errado.

Havia outros ainda mais fascinantes, residindo a uma distância maior. O sr. Willis, que passara uma boa parte da vida trabalhando nas minas de estanho do Chile, mas finalmente voltara à sua nativa Cornualha. Após toda uma existência aventureira, ele fincara raízes em uma cabana de madeira, pendurada acima das dunas arenosas, com vista para a margem do Canal. A estreita praia à frente de sua cabana se enchia de todas as interessantes espécies de destroços trazidos pelo mar: pedaços de corda e de caixotes de peixes, garrafas e encharcadas botas de borracha. Um dia, o sr. Willis se deparou com Judith catando conchas, começou a conversar e a convidou para uma xícara de chá em sua cabana. Depois disso, ela sempre fazia questão de procurá-lo para conversarem.

O sr. Willis, no entanto, de maneira alguma era um ocioso vasculhador de praia, porque tinha dois empregos. Um deles era vigiar as marés e erguer um sinal, quando a água subisse o suficiente para que os barcos de carvão pudessem passar sem risco por cima dos bancos de areia. O outro emprego era de barqueiro. No lado de fora de sua casa ele instalara um velho sino de navio, que era tocado por qualquer pessoa desejando cruzar o Canal. Ao ouvi-lo, o sr. Willis emergia de sua cabana, arrastava seu birrento barco a remos pela areia e levava seus passageiros para a outra margem. Por este serviço, bastante desconfortável e até perigoso quando de uma forte maré-vazante, ele cobrava dois pence.

O sr. Willis vivia com a sra. Willis, que tirava leite das vacas do fazendeiro da aldeia e, em geral, nunca estava em casa. Corria um rumor de que ela não era a sra. Willis, mas uma senhorita qualquer, de modo que ninguém lhe dava muita conversa. O mistério da sra. Willis tinha muito a ver com o mistério do tio Fred de Heather, o que "não tinha aquilo nele", porém sempre que Judith tocava no assunto com a mãe, era recebida com lábios apertados e uma mudança de assunto.

Judith nunca comentava com a mãe a sua amizade com o sr. Willis. O instinto lhe dizia que talvez fosse advertida a não procurar a companhia dele e certamente proibida de entrar em sua cabana e beber chá. Isso seria simplesmente ridículo. Que mal o sr. Willis faria a alguém? Às vezes, mamãe era terrivelmente obtusa.

De qualquer modo, sua mãe podia ser terrivelmente obtusa em inúmeras coisas, uma delas a de tratá-la da mesma forma como tratava Jess. E Jess só tinha quatro anos! Aos quatorze, Judith reconhecia-se madura o suficiente para partilhar e discutir decisões realmente importantes, que diriam respeito a ela.

Só que não adiantava. Mamãe nunca discutia. Ela simplesmente comunicava.

Recebi uma carta de seu pai, e eu vou voltar para Colombo com Jess.

Uma notícia que tivera mais ou menos o efeito de uma bomba, para dizer-se o mínimo a respeito.

Havia piores.

- Decidimos que você deverá ir para o Santa Ursula, como interna. A diretora chama-se srta. Catto, eu já fui procurá-la e está tudo arranjado. O período letivo da Páscoa começará a quinze de janeiro.

Como se ela fosse uma espécie de embrulho ou de um cão sendo colocado em um canil.

— Oh, mas... e quanto aos feriados?

Irá passá-los com a tia Louise. Ela se ofereceu gentilmente para tomar conta de você e ser sua responsável, enquanto todos estivermos no estrangeiro. Reservou-lhe seu melhor quarto disponível, e você poderá levar todas as suas coisas, deixando-as lá.

Isto era, talvez, o mais atemorizante de tudo. Não que ela não gostasse da tia Louise. Durante o tempo de moradia em Penmarron elas tinham visitado Louise com freqüência, e esta sempre se mostrara gentil. Acontecia apenas que era toda errada. Velha — teria pelo menos cinqüenta anos — e um tanto intimidante, não encorajava qualquer familiaridade. E Windyridge era a casa de uma pessoa velha, uma casa disciplinada e quieta. As duas irmãs — Edna e Hilda — que trabalhavam para Louise como cozinheira e copeira, eram igualmente idosas e inacessíveis, muito diferentes da querida Phyllis, que fazia tudo para elas em Riverview House, mas ainda encontrava tempo para jogar "corrida-de-demônio" na mesa da cozinha e ler a sorte nas folhas de chá.

Provavelmente passariam o dia de Natal com a tia Louise. Iriam à igreja, quando voltassem teriam pato assado para o almoço, e depois, antes de escurecer, dariam uma rápida caminhada pelo campo de golfe, até o portão branco que se situava bem alto, acima do mar.

Nada muito excitante, mas, aos quatorze anos, Judith havia perdido algumas de suas ilusões sobre o Natal. A data deveria ser como era mostrada nos livros e cartões natalinos, porém nunca acontecia assim; sua mãe não tinha muito jeito para coisas de Natal e invariavelmente mostrava bem pouca inclinação para fazer enfeites com azevinho ou decorar uma árvore. Nos dois últimos anos, vinha dizendo para Judith que, em realidade, ela já estava crescida demais para ter uma meia pendurada, à espera de presentes.

De fato, quando pensava no assunto, Judith concluía que sua mãe realmente não sentia a menor inclinação para coisas semelhantes. Molly não gostava de piqueniques na praia e faria qualquer coisa para não promover uma festa de aniversário. Chegava a ter medo de dirigir. Elas tinham um carro, é claro, um Austin muito pequenino e em mau estado, porém sua mãe arranjava qualquer desculpa para não tirá-lo da garagem, certa de que acabaria colidindo com outro veículo, perderia o controle dos freios ou seria incapaz de fazer a mudança, quando chegassem a uma ladeira.

Voltando ao Natal, pouco importava a maneira como o passassem, e Judith sabia que nada seria pior do que o Natal de dois anos atrás, quando sua mãe insistira em ficarem algum tempo com os pais dela, o Reverendo e a sra. Evans.

Seu avô era o encarregado de uma diminuta paróquia em Devon, e sua avó uma velha e derrotada dama que lutara a vida inteira contra uma fidalga pobreza e vicariatos construídos para enormes famílias de filhos vitorianos. Lá, haviam passado um tempo incrível indo e vindo da igreja, e vovó lhe dera um livro de orações como presente de Natal. Oh, muito obrigada, vovó, havia dito Judith polidamente, eu sempre quis ter um livro de orações. E Jess, que costumava estragar tudo, caíra doente com crupe, ocupando todo o tempo e atenção de sua mãe. E, dia sim, dia não, havia compota de figo e manjar-branco de sobremesa.

Não, nada podia ser pior do que isso.

Contudo, ainda assim (como um cão preocupado com um osso, os pensamentos de Judith retornavam ao seu ressentimento original), a questão do Santa Ursula continuava amargurando. Ela nem ao menos tinha visto a escola, não ficara conhecendo a provavelmente aterrori-zante srta. Catto. Talvez sua mãe receasse uma explosão de rebeldia e escolhera o caminho mais fácil, porém mesmo isso não fazia sentido, pois Judith jamais, em toda a sua vida, se rebelara contra o que quer que fosse. Ocorreu-lhe que talvez, aos quatorze anos, devesse experimentar. Durante anos, Heather Warren soubera como conseguir o que queria e trazia o pai lindamente enrolado em torno de seu mindinho. Enfim, os pais eram diferentes. E, por falar nisso, Judith não tinha um.

O trem diminuía a velocidade. Passava debaixo da ponte (a gente sempre tinha certeza, devido ao som diferente produzido pelas rodas) e fez uma sibilante parada. Ela recolheu suas sacolas e saiu para a plataforma diante da estação, pequenina e parecendo um pavilhão de madeira para críquete, com uma profusão de arabescos ornamentais. O sr. Jackson, o chefe da estação, silhuetava-se contra a luz que brotava da porta aberta.

— Olá, Judith. Chegou tarde esta noite.

— Tivemos a festa da escola.

— Que formidável!

O último trecho da jornada era a caminhada mais curta possível, uma vez que a estação ficava exatamente oposta ao portão dos fundos da horta de Riverview House. Ela cruzou a sala de espera, que sempre tinha um desagradável cheiro de banheiros, e emergiu na alameda não iluminada que jazia além. Parou um instante para os olhos se adaptarem à escuridão, e então reparou que a chuva havia cessado, enquanto ouvia o vento passando pelos galhos mais altos do pequeno bosque de pinheiros, que funcionavam como proteção para a estação, no tempo mais inclemente. Era um som espectral, mas não amedrontador. Ela cruzou a estrada, tateou pelo ferrolho do portão, abriu-o e entrou na horta. Dali, começou a subir a trilha sinuosa e íngreme, que se elevava por lances de degraus e terraços. No alto, a casa assomava obscuramente diante dela, com janelas encortinadas e brilhando amigavelmente. A lanterna ornamental que pendia acima da porta da frente fora acesa e, ao seu clarão, Judith viu um carro estranho, parado na alameda de cascalho. Sem dúvida, tia Louise viera para o chá.

Era um enorme Rover negro. Parado ali, tinha uma aparência suficientemente inocente, inócua, sólida e confiável. Entretanto, qualquer pessoa que se aventurasse pelas estreitas ruas e alamedas de West Penwith teria motivos para precaver-se contra sua aparência, pois o veículo era dotado de um potente motor, e tia Louise, uma pacata cidadã que era, freqüentadora regular da igreja e um dos pilares do clube de golfe, experimentava uma espécie de mudança de personalidade, tão logo se sentava ao volante. Então, seu carro passava rugindo em curvas fechadas a oitenta quilômetros por hora, ela tendo plena confiança de que, se mantivesse a palma da mão sobre a buzina, a lei estaria do seu lado. Em vista disso, caso seu pára-choque se chocasse com o pára-lama de outra pessoa, ou se atropelasse uma galinha, jamais ela consideraria, por um momento que fosse, a possibilidade de que a culpa pudesse ser sua. Além disso, tão vigorosas eram as suas acusações e censuras, que as partes prejudicadas geralmente perdiam a coragem de enfrentá-la e desapareciam sem ousar exigir reparação pelos danos sofridos.

Judith não queria enfrentar imediatamente a tia Louise. Por causa disso, em vez de entrar pela porta da frente, deu a volta pelos fundos, cruzando o pátio e a copa, antes de chegar à cozinha. Ali, encontrou Jess sentada na mesa esfregada, com seus lápis de cor e o caderno de desenhos, além de Phyllis, vestida no uniforme verde com avental de musselina que usava à tarde, passando a ferro uma pilha de roupas.

Depois do frio lá fora e da umidade, a cozinha estava maravilhosamente quente. De fato, era o aposento mais quente da casa, porque o fogo naquele fogão da Cornualha, negro e muito pesado, com maçanetas de bronze, nunca era apagado. Agora estava brando, fazendo cantar a chaleira na trempe. Do lado oposto ao fogão havia um aparador sustentando pratos variados de carne, verduras e uma tigela de sopa. Ao lado do fogão estava a cadeira de vime de Phyllis, na qual ela se deixava cair para tirar o peso das pernas, sempre que tinha um momento de folga — o que não era freqüente. O aposento cheirava agradavelmente a roupa limpa e bem passada. Junto ao teto pendia uma roldana, carregada de roupa lavada.

Phyllis ergueu os olhos.

— Olá. O que está fazendo, esgueirando-se pelos fundos da casa? Ela sorria, mostrando os dentes não muito bons. Era uma jovem ossuda e de peito achatado, pele pálida e cabelos lisos, acinzentados, mas a criatura de mais doce temperamento que Judith já conhecera.

— Vi o carro de tia Louise.

— Isso não é nenhum motivo. E então, teve uma boa festa?

— Tive. — Ela enfiou a mão no bolso do casaco. — Tome aqui, Jess — e entregou à irmã um saquinho de doces.

Jess olhou para eles.

— O que eles são?

Era uma linda criança, rechonchuda e de cabelos louros-prateados, mas terrivelmente infantil, o que deixava Judith constantemente exasperada.

— É claro que são doces, sua boba.

— Eu gosto de goma de frutas.

— Pois então, olhe e veja se encontra alguma.

Ela tirou o casaco, o gorro de lã e os jogou em uma cadeira. Phyllis não diria "Pendure-os". Mais tarde, provavelmente ela mesma os penduraria para Judith.

— Eu não sabia que tia Louise vinha para o chá.

— Eu telefonei e ela aceitou, lá pelas duas horas.

— Sobre o que elas estão falando?

— Não seja curiosa.

— Suponho que deva ser sobre mim.

—Bem, sobre você e essa escola, advogados e honorários, períodos letivos e telefonemas. E, por falar em telefonemas, sua tia Biddy ligou esta manhã. Falou uns dez minutos ou mais com sua mãe.

Judith surpreendeu-se.

— Tia Biddy? — A tia Biddy era irmã de sua mãe e a favorita de Judith. — O que ela queria?

— Eu não fiquei ouvindo atrás da porta, fiquei? Vai ter de perguntar para sua mãe. — Ela largou o ferro de passar e começou a abotoar os botões da melhor blusa de Molly. — É melhor você ir andando. Coloquei uma xícara para você, e há bolinhos e bolo de limão, se estiver com fome.

— Estou faminta.

— Como sempre. Não lhe deram nada para comer na festa?

— Deram. Bolinhos de açafrão, mas continuo com fome.

— Pois então, apresse-se, ou sua mãe vai começar a se preocupar.

— Preocupar-se com o quê?

Em vez de responder, Phyllis disse apenas:

— Primeiro vá trocar seus sapatos e lavar as mãos

Foi o que ela fez. Lavou as mãos na copa, usando o sabão "Califórnia Poppy" de Phyllis, e depois, com certa relutância, abandonou a aconchegante camaradagem da cozinha e cruzou o corredor. De além da porta da sala de estar chegava o baixo murmúrio de vozes femininas. Ela abriu a porta, silenciosamente, de modo que, por um momento, as duas mulheres não perceberam sua presença.

Molly Dunbar e sua cunhada Louise Forrester estavam sentadas próximo da lareira, tendo entre elas uma mesa dobrável para chá. Esta havia sido coberta com uma toalha bordada de linho e exibia a melhor porcelana, assim como pratos contendo sanduíches, um bolo glaçado de limão, bolinhos quentes, besuntados de creme e geléia de morangos, e duas espécies de biscoitos — amanteigados e de chocolate.

As duas mulheres estavam bastante confortáveis, com as cortinas de veludo ocultando as janelas e o fogo de carvão crepitando na lareira. A sala de estar não era grande nem luxuosa e, como Riverview House fora alugada com móveis, tampouco era muito bem servida. Chintz desbotados forravam as poltronas, um tapete turco cobria o assoalho, e ocasionais mesas e estantes para livros eram mais funcionais do que decorativas. Não obstante, à luz suave da lâmpada, o aposento parecia bastante feminino e agradável, porque Molly trouxera do Ceilão vários objetos favoritos que, dispostos ali dentro, aliviavam bastante a imper-sonalidade da sala. Ornamentos em jade e marfim; uma caixa para cigarros em laca vermelha; um vaso azul e branco plantado com jacintos, e fotografias da família em molduras de prata.

—... você terá muita coisa a fazer — estava dizendo tia Louise. — Se eu puder ajudar... — Ao inclinar-se para colocar a xícara vazia com o pires em cima da mesa, ela ergueu os olhos e viu Judith em pé na porta aberta. — Bem, veja quem está aqui...

Molly virou-se.

—Judith! Pensei que talvez tivesse perdido o trem.

— Não. Eu estava conversando com Phyllis. — Ela fechou a porta e cruzou a sala. — Olá, tia Louise.

Inclinou-se para beijar o rosto da tia; esta aceitou o beijo, porém não fez qualquer movimento para retribuí-lo.

Ela não era das que demonstram emoção. Ali estava uma mulher corpulenta de cinqüenta e poucos anos, com pernas surpreendentemente delgadas e elegantes, e pés compridos, afilados, em sapatos fortes, engraxados de castanho. Usava um casaco de tweed e blusa por dentro. Seus cabelos grisalhos exibiam uma ondulação permanente e eram mantidos firmes por uma redinha invisível. A voz dela era grave e rouca devido ao cigarro, mas mesmo quando à noite usava uma indumentária mais feminina, como vestidos de veludo e casacos bordados de bridge, havia algo de desconcertantemente masculino sobre ela; dava a impressão de um homem que, por brincadeira ou para um baile à fantasia, houvesse vestido as roupas da esposa, desta maneira proporcionando divertidos momentos aos amigos reunidos.

Era uma mulher atraente, mas não bonita. E, a dar-se crédito a antigas fotos de sépia, nunca o fora, nem mesmo quando jovem. De fato, aos vinte e três anos, ainda não comprometida—e sem qualquer perspectiva de sê-lo — seus pais não tiveram outra alternativa senão embarcá-la para a índia, onde ficaria com parentes do Exército, aquartelados em Delhi. Chegando a época do calor, todos que viviam na casa transferiram-se para o norte, para Poona e as frescas montanhas onde se situava, e foi lá que Louise conheceu Jack Forrester. Jack era major dos Rifles de Bengala, tendo acabado de passar doze meses enfurnado em um remoto forte de montanha, de quando em quando enfrentando escaramuças com belicosos afegãos. Ele estava de folga em Poona, após meses de isolamento, e desesperado por companhia feminina. Louise — jovem, de faces rosadas, descompromissada e atlética — vista de relance em uma quadra de tênis, pareceu uma criatura imensamente desejável aos seus olhos famintos e deslumbrados. Com enorme determinação, mas pouca finura—não havia tempo para sutilezas — ele a perseguiu e, antes de saber o que acontecia, descobriu-se noivo e prestes a casar-se.

Curiosamente, foi um casamento sólido, embora... ou talvez por isso mesmo... eles nunca fossem abençoados com filhos. Ao invés disso, partilharam um amor pela vida ao ar livre e a todas as gloriosas oportunidades para o esporte e a caça que a índia oferecia. Havia caçadas e expedições ao seio de maciços montanhosos; cavalos para montar e jogar pólo, além de inumeráveis oportunidades para jogar tênis e golfe, nos quais Louise era incomparável. Quando Jack finalmente desligou-se do Exército e eles voltaram para a Inglaterra, instalaram-se em Penmarron, simplesmente devido à proximidade do campo de golfe. Assim, o clube se tornou o seu lar fora do lar. Se o tempo ficava inclemente, jogavam bridge, mas a maioria dos dias agradáveis os via fora de casa, entre os buracos do campo de golfe. Além disso, uma certa parte do tempo era passada no bar, onde Jack conquistara a duvidosa reputação de ser capaz de, clandestinamente, derrotar qualquer homem na quantidade de bebida ingerida. Ele se gabava de possuir um estômago como um balde, no que todos os seus amigos concordavam, até uma radiosa manhã de sábado, quando caiu morto no décimo quarto green. Depois disso, eles não tiveram mais tanta certeza.

Molly encontrava-se no Ceilão, quando da ocorrência dessa triste notícia. Escreveu para a cunhada uma carta de profunda solidariedade, não conseguindo imaginar como Louise se arranjaria sem Jack. Os dois tinham sido tão amigos, tão companheiros! No entanto, quando as duas finalmente voltaram a encontrar-se, Molly não descobriu a menor mudança em Louise. Ela parecia a mesma pessoa de antes, continuava morando na mesma casa, desfrutava do mesmo estilo de vida. Ia diariamente para o campo de golfe e, como dona de excelente handicap, além de poder lançar uma bola com a mesma força de qualquer homem, nunca lhe faltavam parceiros masculinos.

Agora, ela estendeu a mão para sua cigarreira, abriu-a e encaixou um cigarro turco em uma piteira de marfim. Acendeu-o com um isqueiro de ouro que outrora havia pertencido ao falecido marido.

— Como foi a festa de Natal? — perguntou para Judith, através de uma nuvem de fumaça.

— Correu tudo bem. Tivemos a dança Sir Roger de Coverley, e havia bolinhos de açafrão — respondeu Judith, com os olhos postos na mesa do chá. — Só que ainda estou com fome.

— Bem, aqui temos de sobra para que você se sirva — disse Molly. Judith puxou uma banqueta baixa e sentou-se entre as duas mulheres, o nariz situado no mesmo nível que os petiscos de Phyllis. — Quer leite ou chá?

— Prefiro leite, obrigada.

Ela pegou um prato e um bolinho quente. Começou a comer com cautela, porque o creme espesso e a geléia de morango tinham sido espalhados tão generosamente, que podiam escorrer para fora e cair em qualquer lugar.

— Despediu-se de todos os seus amigos e amigas?

— Sim. Do sr. Thomas e de todos os demais. Ganhamos um saquinho de doces, mas dei o meu para Jess. Depois desci a ladeira com Heather e...

— Quem é Heather? — perguntou tia Louise.

— Heather Warren. É minha melhor amiga.

— Você os conhece — disse Molly. — Filha do sr. Warren, o merceeiro da Praça do Mercado.

— Oh! — tia Louise ergueu as sobrancelhas e mostrou uma expressão maliciosa. — O vistoso espanhol. Um homem muito atraente. Mesmo se ele não vender minha geléia favorita "Tiptrees", penso que deveria tornar-me sua freguesa.

Evidentemente, ela estava de bom humor. Judith decidiu que aquele era o momento oportuno para abordar o tema da bicicleta. Malhar o ferro enquanto ainda está quente, como costumava dizer a sra. Warren. Agarrar o touro pelos chifres.

— Na realidade, Heather teve a idéia mais formidável. Que eu devia ter uma bicicleta.

— Uma bicicleta!

— Mamãe, você dá a impressão de que estou pedindo um carro de corridas ou um pônei. Aliás, também acho que é uma idéia muito boa. Windyridge não é como esta casa, ao lado da estação do trem — fica a quilômetros da parada do ônibus. Se tiver uma bicicleta, então eu mesma posso ir até lá e tia Louise não teria que me levar em seu carro. Assim — acrescentou Judith, astutamente —, ela pode continuar com seu golfe.

Tia Louise riu com vontade.

— Certamente, você pensou em tudo.

A senhora não se importaria, não é, tia Louise?

— Por que eu deveria importar-me? Seria um prazer ficar livre de você — respondeu a tia Louise, no que considerava o seu jeito de ser engraçada.

Molly recuperou a voz.

— Bem, Judith, mas... uma bicicleta não é muito cara?

— Heather falou em cerca de cinco libras.

—Foi o que pensei. Terrivelmente cara, quando temos tantas coisas para comprar. Ainda nem ao menos começamos com o seu uniforme — e a lista de roupas para o Santa Ursula tem metros de comprimento.

— Pensei que você podia me dar a bicicleta no Natal.

— Oh, mas eu já comprei o seu presente de Natal! O que você me pediu foi...

— Bem, uma bicicleta poderia ser meu presente de aniversário. Você não estará aqui quando eu fizer anos, estará em Colombo, e assim não terá a despesa de me mandar uma encomenda pelo correio.

— Sim, mas você teria que pedalar pelas ruas principais. Poderia sofrer um acidente...

Aqui, tia Louise interveio.

— Você sabe andar de bicicleta?

— Sei, claro, mas nunca pedi uma antes porque não estava mesmo precisando. Entretanto, tia Louise, admito que seria muitíssimo útil para mim.

— Mas, Judith...

— Oh, Molly, não seja tão preocupada! Que mal pode acontecer à menina? Se ela se meter debaixo de um ônibus com a bicicleta, então, a culpa será dela própria. Eu lhe prometo uma bicicleta, Judith, mas sendo tão cara, valerá também como presente de aniversário. O que me poupará também a despesa de mandar-lhe uma encomenda pelo correio.

— É mesmo? —Judith mal podia acreditar que sua argumentação funcionara, que acabara vencendo ao insistir em seu ponto de vista, que realmente conseguira o que queria. — Tia Louise, a senhora é ótima!

— Farei qualquer coisa para não ter você em meus calcanhares.

— E quando iremos comprá-la?

— O que acha na véspera de Natal?

— Oh, não! — exclamou Molly fracamente. Ela parecia perturbada, e Louise franziu o cenho.

— O que foi agora — perguntou. Judith achou que não havia motivo para sua tia falar tão desabridamente, mas a verdade é que com freqüência ela ficava impaciente com Molly, tratando-a mais como uma garota retardada do que como uma cunhada. — Pensou em mais objeções?

— Não... não é nada disso. — Um leve rubor deixou rosadas as faces de Molly. —Acontece apenas que não estaremos aqui. Ainda não lhe contei, Louise, mas eu queria dizer antes para Judith. — Ela se virou para a filha. — Tia Biddy ligou.

— Eu sei. Phyllis me contou.

—Ela nos convidou para passarmos o Natal e Ano Novo com eles, em Plymouth. Eu, você e Jess.

Judith, com a boca cheia de bolinho com creme, por um momento, pensou que fosse sufocar, mas conseguiu engolir tudo, antes que alguma coisa terrível pudesse acontecer.

O Natal com tia Biddy.

— E o que você respondeu

— Eu disse que iríamos.

Era uma notícia tão incrivelmente excitante, que todos os demais pensamentos, inclusive o da nova bicicleta, evaporaram-se da cabeça de Judith.

— Quando é que vamos?

— Eu pensei em um dia antes da véspera do Natal, porque os trens não estarão tão apinhados. Biddy ficou de encontrar-nos em Plymouth. Ela disse que lamentava ter deixado para tão tarde — o convite, quero dizer — mas acontece apenas que foi uma idéia impulsiva. Ao pensar que este vai ser o nosso último Natal durante algum tempo, achou que seria uma boa idéia passá-lo todos juntos.

Se tia Louise não estivesse presente, Judith teria dado saltos de alegria, agitado os braços e dançado em volta da sala. Entretanto, pareceu-lhe um pouco rude mostrar-se tão eufórica, uma vez que ela não fora convidada também. Contendo o excitamento, virou-se para a tia.

—Nesse caso, tia Louise, será que poderíamos comprar a bicicleta depois do Natal?

— Parece que não temos alternativa, não é mesmo? Aliás, eu ia convidá-las para passarem o Natal comigo, porém agora parece que Biddy me poupou o trabalho.

— Oh, Louise, eu sinto muito. Agora, começo a pensar que a desapontei.

— Tolice. Para todos nós, é melhor termos um pouco de variação. O filho de Biddy estará lá?

—Ned? Infelizmente, não. Ele vai esquiar em Zermatt, com alguns colegas do colégio em Dartmouth.

Tia Louise ergueu as sobrancelhas, não aprovando vagabundagens caras e extravagantes. De qualquer modo, Biddy sempre fizera as vontades de seu único filho, e não lhe negaria nenhum divertimento neste mundo.

— É uma pena — foi tudo o que ela disse. — Ele seria um companheiro para Judith.

— Ned tem dezesseis anos, tia Louise! Posso garantir que nem perceberia a minha presença. Aliás, acho que me divertirei muito mais sem ele por lá...

— É possível que tenha razão. E, conhecendo Biddy, vocês terão momentos muitíssimo agradáveis. Há séculos não a vejo. Quando foi a última vez que ela esteve aqui, Molly, hospedada em sua casa?

— No começo do verão passado. Você deve lembrar-se. Tivemos aquela maravilhosa onda de calor...

—Foi no verão em que ela jantou comigo, usando aqueles extraordinários pijamas de praia?

— Sim, isso mesmo.

— E eu a encontrei em seu jardim tomando banho de sol com um maiô de duas peças. De tecido cor de carne. Quase como se estivesse nua!

se no dever de defender a irmã, mesmo fracamente. — Acho que, dentro de bem pouco tempo, todas nós estaremos usando pijamas de praia.

— Deus nos livre!

— O que fará no Natal, Louise? Espero que não se sinta abandonada.

— Céus, não! Fique certa de que me divertirei, mesmo sozinha. Talvez convide Billy Fawcett para um drinque, e depois iremos almoçar no clube. Eles costumam esmerar-se nos preparativos para a data. — Judith elaborou um retrato mental de todos os golfistas, em suas calças presas à altura dos joelhos e sapatos robustos, soltando bombinhas e usando chapéus de papel. —Então, talvez tenha uma ou duas partidas decisivas de bridge.

Molly franziu a testa.

— Billy Fawcett? Acho que não o conheço.

—Não. Nem poderia. Trata-se de um velho amigo, dos tempos em Quetta. Agora está reformado e decidiu experimentar uma temporada na Cornualha. Alugou um daqueles novos bangalôs que foram construídos na minha rua, mais abaixo. Vou apresentá-lo ao nosso grupo. Você precisa conhecê-lo, antes de viajar. Também é bom jogador de golfe, de modo que o indiquei para membro do clube.

— É muito bom para você, Louise.

— O que é bom para mim?

— Bem... ter um velho amigo morando tão perto. E também golfista. Não que lhe faltem parceiros para jogar...

Louise, entretanto, não procurava comprometer-se. Jogava somente com a nata.

— Depende de que tipo é o handicap dele — replicou ela vigorosamente, apagando o cigarro. Olhou para o relógio de pulso. — Céus, já tão tarde? Preciso ir andando. — Pegando sua bolsa, levantou-se da poltrona. Molly e Judith levantaram-se também. — Diga a Phyllis que o chá estava delicioso. Você sentirá falta dessa moça. Ela já encontrou outro emprego?

— Não creio que Phyllis tenha se esforçado muito.

— Ela é um tesouro para uma pessoa de sorte. Não, não toque a sineta para chamá-la. Judith pode acompanhar-me. E caso não a veja antes do Natal, Molly, desejo que tenha momentos muito felizes. Ligue para mim quando voltar. Diga-me quando quer levar os pertences de Judith para Windybridge. E, Judith, nós compraremos a bicicleta no início dos feriados da Páscoa. De qualquer modo, não irá precisar dela antes disso...

 

                            1936

Amanhã escura como breu estava tão fria que, acordando aos poucos, Judith ficou cônscia de seu nariz como uma entidade separada, congelada e presa ao seu rosto. Na noite anterior, ao ir para a cama, o quarto estivera gelado demais para permitir que abrisse a janela, porém havia puxado as cortinas um pouco para trás, e agora, além da vidraça embaçada, podia vislumbrar o brilho amarelado da lâmpada do poste de iluminação na rua abaixo. Não havia nenhum som. Talvez a noite ainda estivesse na metade. Então, ouviu o ruído de patas de cavalos e da carroça de entrega de leite, deixando-a perceber que não estava no meio da noite, mas que o dia já amanhecera.

Agora, era preciso um esforço imenso de coragem física. Um, dois, três! Puxou a mão para fora do calor das cobertas da cama e a esticou para ligar o abajur na mesa-de-cabeceira. Seu relógio novo — ganho do tio Bob, e um dos melhores presentes já recebidos — anunciava sete e quarenta e cinco.

Judith voltou rapidamente a mão para debaixo das cobertas e a aqueceu entre os joelhos. Um novo dia. O último dia. Sentia-se um pouco deprimida. Os feriados de Natal tinham chegado ao fim e iam voltar para casa.

O quarto em que dormia ficava no sótão da casa da tia Biddy e era o segundo melhor dormitório disponível da casa. Molly e Jess haviam ficado com o melhor dos dois, porém Judith preferira este, com seu teto inclinado e uma água-furtada, de cortinas em cretone florido. O frio tinha sido a pior coisa a enfrentar, porque o parco aquecimento dos aposentos abaixo dela não se esgueirava pelo último lance de escadas. No entanto, tia Biddy a deixara ter uma pequena estufa elétrica e, com a ajuda de duas garrafas de água quente, Judith conseguira manter-se aconchegada.

Isto porque a temperatura descera alarmantemente, pouco antes do Natal. Havia uma frente fria a caminho, conforme avisara o meteorologista pelo rádio, mas ele não prevenira ninguém para as condições árticas que tinham prevalecido desde então. Enquanto as Dunbars viajavam país acima, pela Riviera da Cornualha, a neve que caía cobrira de branco a Charneca Bodmin. O desembarque em Plymouth tinha sido mais ou menos como uma chegada à Sibéria, com ventos amargos despejando neve misturada à chuva, sobre a plataforma da estação.

Isso era uma falta de sorte, porque tia Biddy e tio Bob moravam na que tinha de ser a casa mais fria do mundo. Não eram eles os culpados disso, porque a residência era resultante do trabalho do tio Bob, capitão-engenheiro, encarregado do Real Colégio de Engenharia Naval, em Keyham. A casa ficava em um terrapleno de frente para o norte, era alta e estreita, com correntes de vento que assobiavam por todo canto. O lugar mais quente era a cozinha no porão, porém aquele era o território da sra. Cleese, a cozinheira, e de Hobbs, o músico de banda reformado da Marinha Real, que vinha todos os dias para polir botas e amontoar carvão. Hobbs era uma personalidade, com cabelos brancos alisados sobre a parte calva da cabeça, e olhos tão brilhantes, tão sagazes como os de um melro. Tinha dedos manchados de tabaco, o rosto franzido, castigado e bronzeado, como uma velha peça de bagagem. Se houvesse alguma reunião ou festa à noite, ele se ataviava, calçava luvas brancas e passava bebidas aos convidados.

Houvera um bom número de festas porque, a despeito do frio enregelante, aquele havia sido um Natal verdadeiramente mágico, exatamente da maneira como Judith sempre imaginara que devia ser um Natal, mas já começando a pensar que jamais o experimentaria. Biddy, no entanto, que nunca fazia as coisas pela metade, havia decorado a casa inteira — como um encouraçado, comentara tio Bob — e sua árvore de Natal, erguida no vestíbulo e enchendo o poço da escada de luzes, brilhos, ouropéis agitados pelo vento e do cheiro de abeto, era a mais magnífica que Judith já vira. Outros aposentos também se mostravam festivos, com centenas de cartões de Natal pendendo de fitas vermelhas, ramos de azevinho e de hera emoldurando as lareiras e, nas salas de refeições e de visitas, enormes fogos a carvão nunca eram apagados, como fornalhas de navio, estocados por Hobbs e abafados a cada noite com carvão miúdo, a fim de que nunca se extinguissem.

E, o tempo todo, houvera muita coisa a fazer, muita coisa acontecendo. Almoços e jantares festivos, após os quais dançava-se ao som do gramofone. Amigos chegavam a todo instante para o chá ou para um drinque, mas se surgisse uma calmaria ou uma tarde vazia, tia Biddy jamais sucumbia a um período de paz, imediatamente sugerindo uma ida ao cinema ou uma expedição ao rinque coberto de patinação.

Judith sabia que sua mãe havia ficado absolutamente exausta, de quando em quando esgueirando-se para um descanso em sua cama no andar de cima, após entregar Jess aos cuidados de Hobbs. Jess gostava de Hobbs e muito mais da sra. Cleese, de maneira que passava a maior parte de seu tempo na cozinha do porão, empanturrando-se de petiscos inadequados à sua idade. Isso constituía um certo alívio para Judith, que se divertia muito mais sem a irmã menor em seus calcanhares.

Naturalmente, de vez em quando Jess era incluída. Tio Bob adquirira entradas para a pantomima e todos eles haviam comparecido, juntamente com outra família. Tinham ocupado toda uma fileira de poltronas na primeira fila, e tio Bob comprara programas para todos, além de uma enorme caixa de chocolates. Entretanto, quando aDame aparecera, com sua peruca vermelha, espartilhos e volumosos calções escarlates, presos com elásticos abaixo dos joelhos, Jess se portara da maneira mais embaraçosa, soltando gritos de pavor e tendo que ser levada rápida e definitivamente para fora dali pela mãe. Por sorte isso acontecera bem no início, de modo que todos os demais puderam acomodar-se e apreciar o restante do espetáculo.

Tio Bob havia sido a melhor parte. Estar com ele, chegar a conhecê-lo, sem dúvida fora o ponto alto dos feriados. Judith nunca imaginara que pais pudessem ser tão agradáveis, tão pacientes, tão interessantes, tão divertidos. Uma vez que aqueles eram dias feriados, ele não tinha que comparecer diariamente ao Colégio, desta maneira ficando com tempo de folga. Com o tio, Judith passara muitos desses momentos no santuário que era o estúdio dele, onde Bob lhe mostrara seus álbuns de retratos, deixara que ela tocasse discos em seu gramofone de corda manual e lhe ensinara a usar sua castigada máquina de escrever portátil.

 

Mulher idosa, personagem cômico da pantomina. O papel é geralmente desempenhado por um homem.

 

E quando foram patinar, ele é que a tinha ajudado nas voltas pelo rinque de patinação, até ela poder controlar o que tio Bob chamava de suas pernas de "marinheiro de primeira viagem"; além disso, nas festas ele sempre se preocupava em não deixá-la isolada, apresentando-a aos convidados justamente como se fosse uma adulta.

Seu pai, embora amado e fazendo falta, nunca tinha sido tão divertido. Ao admitir isto para si mesma, Judith sentia-se um pouco culpada porque, durante as duas últimas semanas, tinha vivido dias tão maravilhosos, que mal dedicara um pensamento a ele. Procurando compensar-se disto, agora pensava no pai, com firmeza. Entretanto, tinha primeiro que pensar em Colombo, pois era onde ele se encontrava, e por ser aquele o único lugar onde conseguia uma imagem viva dele. Era difícil. Colombo havia acontecido muito tempo atrás. Agente imaginava poder recordar todos os detalhes, porém o tempo esfumava a nitidez da recordação, da mesma forma como a claridade desbota fotos antigas. Judith procurou uma ocasião na qual pudesse fixar a memória.

O Natal. Claro, o Natal em Colombo era inesquecível, ao menos por ser tão absurdo, com os céus brilhantes dos trópicos, o calor sufocante, as águas inconstantes do Oceano Índico e a brisa que agitava as folhas das palmeiras. Na casa da Rua Galle, no Natal, ela abria seus presentes na varanda ventilada, ouvindo as ondas que se quebravam na praia. Além disso, o jantar de Natal não tivera peru, em vez disso sendo um tradicional almoço de curry no Galle Face Hotel. Muitas outras pessoas também comemoravam desta maneira, de modo que aquilo parecia uma enorme festa de crianças, com todos usando chapéus de papel e soprando apitos. Ela pensou no refeitório apinhado de famílias, todos comendo e bebendo demais, com a fresca brisa marinha soprando do mar e os ventiladores girando lentamente no teto.

Funcionou. Agora, Judith tinha um nítido retrato do pai. Podia vê-lo sentado à cabeceira da mesa, com uma coroa de papel azul salpicada de dourado. Perguntou-se como ele teria passado seu Natal solitário. Quando o tinham deixado, quatro anos atrás, um amigo solteiro havia ido morar com ele, a fim de fazer-lhe companhia. Entretanto, de algum modo era impossível imaginar eles dois entregando-se às alegrias da temporada natalina. Provavelmente tinham ido para o clube, com todos os demais solteiros e separados das esposas. Judith suspirou. Achava que sentia falta do pai, porém não era fácil sentir saudades de uma pessoa que tinha vivido tanto tempo longe dela. O único contato eram as cartas mensais dele, que quando chegavam já tinham três semanas de atraso e, mesmo assim, pouco tinham de inspiradoras.

O relógio novo agora marcava oito horas. Hora de levantar-se. Já. Um, dois, três! Ela jogou as cobertas para o lado, saltou da cama e correu para ligar a estufa elétrica. Então, a toda pressa, envolveu-se em seu robe e enfiou os pés descalços nos chinelos de pêlo de carneiro.

Seus presentes de Natal estavam perfeitamente alinhados no chão. Pegando sua maleta — chinesa e feita de vime, com alça e pequenas tranquetas que mantinham a tampa fechada — ela a abriu, a fim de ali guardar os presentes. Colocou na maleta o relógio e os dois livros que ganhara da tia Biddy. O recém-publicado Férias de Inverno, de Arthur Ransome, e um exemplar de Jane Eyre, belamente encadernado em couro. Parecia um livro muito extenso, de letras miúdas, mas possuía numerosas ilustrações, lâminas coloridas protegidas por folhas de papel de seda, e tão cativantes, que Judith mal podia esperar para começar a lê-lo. Em seguida foi a vez das luvas de lã, presente dos avós, e a bolha de vidro que, quando sacudida, explodia em uma tempestade de neve. Presente de Jess. Mamãe lhe dera um pulôver, mas não o que pedira, porque tinha gola redonda e ela quisera de pólo. De qualquer modo, tia Louise a compensara e, a despeito da prometida bicicleta, debaixo da árvore e envolto em papel de presente, estava um pacote destinado a ela. Continha um diário para cinco anos, grosso e de capa dura como uma Bíblia. O presente de papai ainda não chegara. Ele não era muito bom em enviar coisas dentro do prazo, e o correio levava séculos para fazer uma entrega. Ainda assim, era algo pelo que ansiar. O melhor presente quase se podia dizer que era o de Phyllis, e exatamente aquilo de que Judith precisava — um pote de cola, com seu próprio pincelzinho, e uma tesoura. Ela os guardaria na gaveta trancada de sua secretária, longe dos dedos buliçosos de Jess. Então, quando se sentisse com ânimo criativo e quisesse fazer alguma coisa, ou recortar o que quer que fosse, ou colar um postal em seu livro de recortes, não precisaria pedir a tesoura para sua mãe (que dificilmente era localizada) ou ver-se na contingência de preparar a própria cola, com água e farinha de trigo. Era um grude que nunca funcionava a contento, além de desprender um cheiro nauseante. A posse destes dois humildes objetos deixava Judith com uma agradável sensação de auto-suficiência.

Ela arrumou tudo cuidadosamente dentro da maleta, mal havendo espaço para todos os objetos sem que o ferrolho se recusasse a fechar. Judith pressionou as pequenas tranquetas e colocou a maleta sobre a cama. Depois, o mais rápido que pôde, vestiu suas roupas. O desjejum já estaria esperando e ela estava faminta. Esperava que houvesse salsichas, em vez de ovos pochés.

Biddy Somerville sentou-se à extremidade de sua mesa da sala de refeições, bebeu café puro e tentou ignorar o fato de que estava com uma leve ressaca. Na véspera, depois do jantar, dois jovens tenentes-engenheiros tinham feito uma visita de cortesia, e Bob aparecera com uma garrafa de brandy. Na comemoração, Biddy tinha ingerido um pouco além da conta. Agora, um ligeiro latejamento nas têmporas recordava-lhe que devia ter parado na segunda dose. Não comentara com Bob que se sentia um pouco tonta, pois do contrário ele prontamente lhe diria a mesma coisa. Na opinião de seu marido, ressacas ajustavam-se à mesma categoria de queimaduras do sol: uma infração merecendo castigo.

Estava tudo muito bem para ele, que nunca sofrera uma ressaca na vida. Neste momento, sentava-se à outra extremidade da mesa, escondido dela pelas páginas abertas do The Times. Estava uniformizado, porque sua temporada de folga terminara, e hoje voltaria ao trabalho. Dentro de um momento, Bob fecharia e dobraria o jornal, depositan-do-o em cima da mesa enquanto anunciava que era hora de sua partida. Os outros participantes dos feriados natalinos naquela pequena casa ainda não tinham aparecido. Isto era ótimo para Biddy, porque quando aparecessem, com um pouco de sorte ela estaria em sua segunda xícara de café e sentindo-se mais revigorada.

Suas visitas iriam embora hoje, e Biddy lamentava imensamente a aproximação da hora das despedidas. Convidara-as para ficarem em sua casa por vários motivos. Aquele seria o último Natal de Molly antes de seu retorno ao Extremo Oriente, ela era sua única irmã e, em vista do estado em que se encontrava o mundo, ninguém podia saber quando tornariam a ver-se. Ao mesmo tempo, Biddy sentia-se um pouco culpada, achando que não fizera o suficiente pelos Dunbars durante os últimos quatro anos; não estivera vezes suficientes com a irmã e as sobrinhas, além de não ter-se esforçado muito para isso. Por fim, convidara-as porque Ned estava ausente, esquiando, e a idéia de um Natal sem pessoas jovens por perto era terrível, insuportável.

O fato de pouco ter em comum com a irmã e de mal conhecer as sobrinhas não a deixara muito esperançosa quanto ao desfecho do arranjo. No entanto, fora tudo um surpreendente sucesso. Era verdade que Molly murchara de quando em quando, derrotada pelo ritmo turbilhonante da vida social da irmã, indo então para a cama, para ficar com os pés levantados. No tocante a Jess, Biddy era forçada a admitir que se tratava de uma criança demasiado mimada e cheia de vontades, cujos caprichos eram prontamente satisfeitos a cada vez que chorava.

Judith, no entanto, havia sido uma tremenda revelação, mostran-do-se o tipo de menina que ela gostaria de ter como filha, caso houvesse tido alguma. Ela se divertia sozinha, havendo necessidade, nunca se intrometendo em conversas adultas, e ficando entusiasmada, até agradecida, caso fosse sugerida alguma coisa para seu próprio entretenimento. Biddy refletiu que sua sobrinha era também extraordinariamente bonita... ou pelo menos ficaria, dentro de uns poucos anos. De maneira alguma Judith se importara com o fato de na casa não haver ninguém da sua idade e, nas festas da tia, soubera tornar-se útil, servindo os visitantes com nozes e biscoitos, além de responder a todos que faziam uma pausa para dirigir-lhe a palavra. O perfeito entendimento que surgira entre sua sobrinha e Bob era um prêmio extra, sendo óbvio que Judith dera tanto prazer ao tio quanto este a ela. Bob a apreciara por motivos antiquados: ela possuía boas maneiras, e quando falava com alguém, fitava o interlocutor dentro dos olhos. Além disso, entre eles houvera uma atração natural, o estímulo de estar com um membro do sexo oposto, um relacionamento de pai-filha, algo de que ambos sentiam falta, de um modo ou de outro.

Talvez devessem ter tido filhas. Talvez devessem ter tido muitos filhos. Entretanto, houvera apenas Ned, despachado para a escola preparatória aos oito anos, e em seguida para Dartmouth. Os anos corriam velozes, e era como se o tempo não tivesse passado desde que ele era pequenino e adorado, com bochechas de bebê e cabelos dourados, joelhos sujos e ásperos, mãos quentes e pequeninas. Agora, aos dezesseis anos, era quase tão alto quanto o pai. E, praticamente antes que se pudesse piscar um olho, terminaria os estudos e iria para o mar. Seria adulto. Casar-se-ia. Teria sua própria família. A imaginação de Biddy corria solta. Ela suspirou. Ser avó não lhe seduzia muito. Ela era jovem. Sentia-se jovem. A maturidade devia ser mantida ao largo, a qualquer preço.

A porta se abriu e Hobbs entrou na sala em passos rangentes, trazendo a correspondência matinal e um bule de café fresco. Ele pousou o bule sobre a chapa quente no aparador e aproximou-se para deixar as cartas na mesa, ao lado de Biddy. Ela desejou que Hobbs tomasse alguma providência com suas botas chiantes.

— Faz um frio terrível esta manhã — observou ele, com alívio. — Todas as calhas estão entupidas de gelo. Despejei sal na escada da frente.

— Obrigada, Hobbs — Biddy respondeu, lacônica.

Sabia que, se comentasse aquela observação, ele ficaria ali tagarelando eternamente. Frustrado por aquele prolongado silêncio, Hobbs cerrou os dentes com certa rabugice, ajeitou um garfo em cima da mesa a fim de justificar sua presença, mas, finalmente derrotado, bateu em retirada. Bob continuou lendo o jornal. Biddy folheou sua correspondência. Nada importante como um cartão de Ned, mas havia uma carta de sua mãe, provavelmente agradecendo a manta tricotada para os joelhos, que ela lhe enviara como presente de Natal. Biddy pegou uma faca, para abrir o envelope. Ao fazer isso, Bob baixou o jornal, dobrou-o e bateu com ele na mesa, mostrando certa violência.

— O que há de errado? — perguntou Biddy, erguendo os olhos para ele.

— O desarmamento. A Liga das Nações. E eu não estou gostando do cheiro do que está acontecendo na Alemanha.

— Oh, meu bem!

Biddy odiava vê-lo deprimido ou preocupado. Para si mesma, lia apenas as notícias alegres, virando a folha apressadamente, se as manchetes parecessem sombrias. Ele consultou o relógio de pulso.

— Está na hora de ir andando.

Empurrou a pesada cadeira para trás e levantou-se. Era um homem alto e forte, sua corpulência tornada mais impressionante pela túnica escura e trespassada, com botões dourados. O rosto inteiramente bar-beado e de feições marcantes, era sombreado por espessas sobrancelhas. Os bastos cabelos cinza-escuros jaziam lisos sobre a cabeça, de corte rente, controlados firmemente por óleo para cabelos Royal Yacht e duas escovas de cerdas duras.

— Tenha um bom dia — desejou Biddy. Ele olhou para a mesa vazia.

— Onde está todo mundo?

— Elas ainda não desceram.

— A que horas parte o seu trem?

— Esta tarde. É o Riviera.

— Não creio que possa levá-las. Você faria isso?

— Naturalmente.

— Despeça-se delas por mim. Diga adeus a Judith.

— Você sentirá falta dela.

— Eu... — Sendo um homem pouco emotivo, ou melhor, um homem que não demonstrava suas emoções, ele procurou palavras. — Não gosto de pensar que ela ficará abandonada. Sozinha, por conta própria.

—Judith não ficará sozinha. Louise a acolherá.

— Ela precisa de mais do que Louise tem para oferecer.

— Eu sei. Sempre achei que os Dunbars eram as pessoas mais secarronas deste mundo. Enfim, o que se pode fazer? Molly casou com um deles e parece ter sido absorvida pela família do marido. Não há muito o que eu ou você possamos fazer.

Ele pensou a respeito, em pé, olhando pela janela a manhã gelada e escura, enquanto fazia tilintar as moedas que tinha no bolso da calça.

—- Você sempre poderia convidá-la por alguns dias. Eu me refiro a Judith. Durante as férias. Ou isso seria muito tedioso para você?

— De maneira alguma. Entretanto, duvido muito que Molly concorde com a idéia. Tenho certeza de que dará qualquer desculpa, como a de não querer ofender Louise. Você sabe muito bem que minha irmã é terrivelmente dominada pela cunhada. Louise a trata como se fosse uma tola, porém ela nunca se rebela.

— Bem, sejamos francos; sua irmã é um pouco pateta. De qualquer forma, fale com ela a respeito de Judith.

— Farei uma sugestão.

Aproximando-se, ele beijou os cabelos desordenados da esposa, no alto da cabeça.

— Vejo você logo mais à noite — disse.

Bob nunca vinha em casa no meio do dia, preferindo almoçar no salão para oficiais.

— Até logo mais, meu bem.

Ele saiu. Biddy ficou sozinha. Ela terminou o café e foi encher outra xícara no aparador. Depois voltou para a mesa, a fim de ler a carta de sua mãe. A caligrafia era vacilante, trêmula, parecendo ter saído da mão de uma mulher muito idosa.

Minha querida Biddy,

Escrevo apenas uma linha para agradecer pela manta. Foi a lembrança exata para as noites geladas e, com a atual onda de frio, o reumatismo atacou-me novamente. Tivemos um Natal quieto. Pequenas congregações, com a organista ficando gripada e precisando ser substituída pela sra. Fell que, como você sabe, não é muito boa. Papai sofreu uma terrível derrapagem com o carro, quando subia a Rua Woolscombe. O carro está amassado e ele bateu com a testa no pára-brisa. Foi uma contusão feia. Recebi um cartão da pobre Edith. A mãe dela tem piorado...

Mãe

Ainda era muito cedo para digerir notícias tão sombrias. Biddy largou a carta e voltou ao seu café, sentada com os cotovelos fincados na mesa e os dedos compridos encurvados em torno da bem-vinda quentura da xícara. Pensou naquele triste casal formado por seus pais e encontrou tempo para, uma vez mais, surpreender-se ante o fato de que eles realmente haviam desempenhado inimagináveis atos de paixão sexual, através dos quais tinham produzido suas duas filhas, Biddy Molly. Contudo, ainda mais miraculoso era o fato de essas duas filhas, de uma forma ou de outra, terem conseguido escapar do Vicariato, encontrado homens com quem se casaram e ficado livres para sempre do sufocante tédio e da envergonhada pobreza em que tinham sido criadas.

Isto porque nenhuma delas havia sido preparada para a vida. Nenhuma se especializara em enfermagem, freqüentara uma universidade ou aprendera datilografia. Molly ansiara pelo palco, sonhara ser dançarina, uma bailarina. Na escola, sempre tinha sido a estrela das aulas de dança, desejosa de seguir os passos de Irina Baronova e Alicia Markova. Entretanto, desde o início, suas débeis ambições haviam sido minimizadas pela desaprovação dos pais, pela falta de dinheiro e pela não declarada convicção do Reverendo Evans de que pisar o palco era o primeiro passo para tornar-se uma meretriz. Se Molly não tivesse sido convidada para aquela partida de tênis com os Luscombes, e lá conhecido Bruce Dunbar, pela primeira vez desfrutando longas férias de Colombo e procurando desesperadamente uma esposa, só Deus saberia o que teria acontecido à pobre jovem. Uma existência de solteirona, provavelmente ajudando a mãe a enfeitar a igreja com flores.

Biddy era diferente. Sempre soubera o que queria, e se dispôs a consegui-lo. Desde bem nova, pudera ver distintamente que, se pretendia ter qualquer espécie de vida, teria que se arranjar sozinha. Com isso decidido, tornou-se astuta e, no colégio, fez amizades somente com colegas que, no devido tempo, poderiam ajudá-la a realizar suas ambições. A que se tornou sua melhor amiga era filha de um Comandante Naval e morava em uma grande casa, perto de Dartmouth. Além disso, essa jovem tinha irmãos. Biddy decidiu que aquele era um solo fértil e, após algumas insinuações casuais, conseguiu ser convidada para lá passar um fim de semana. Então, como era o seu propósito, tornou-se um verdadeiro sucesso social. Atraente, com longas pernas e inteligentes olhos escuros, bastos e anelados cabelos castanhos, era jovem o bastante Para que suas roupas inadequadas não fizessem diferença. Por outro lado, Biddy possuía um seguro instinto para o que devia fazer; quando ser polida e quando ser agradável ou como flertar com os homens mais velhos, que a consideravam atrevida e davam-lhe palmadas no traseiro. Entretanto, os irmãos eram o melhor; eles tinham amigos, e esses amigos tinham outros amigos. O círculo de conhecidos de Biddy expandiu-se com maravilhosa facilidade e, não demorou muito, ela se tornava um membro aceito desta família substituta, passando mais tempo com eles do que em sua casa, e dando menos e menos importância às admoestações e lúgubres conselhos dos ansiosos pais.

Seu descuidado estilo de vida mereceu-lhe uma espécie de reputação, porém ela não se incomodava. Aos dezenove anos, desfrutava da duvidosa fama de estar comprometida com dois jovens subtenentes ao mesmo tempo, trocando de anéis quando os diferentes navios deles chegavam ao porto. Por fim, quando estava com vinte e um anos, casou-se com o sério Bob Somerville, e nunca se arrependera de sua decisão. Porque Bob não era apenas seu marido e pai de Ned, mas seu amigo, fechando os olhos para uma série de associações passageiras, porém sempre ao alcance quando Biddy precisava dele ao seu lado.

Eles tinham vivido períodos de grande felicidade, porque ela adorava viajar e nunca se recusava a fazer as malas para seguir Bob, para onde quer que o enviassem. Dois anos em Malta haviam sido a glória, porém a vida dos dois nunca enfrentara momentos adversos. Não, quanto a isso não havia dúvidas. Ela realmente tivera muita sorte.

O relógio acima da lareira na sala de refeições bateu sua meia hora. Oito e meia da manhã, e Molly ainda não tinha aparecido. Biddy agora já se sentia ligeiramente menos nauseada e decidiu que estava pronta para seu primeiro cigarro. Levantou-se para apanhar um na cigarreira de prata em cima do aparador e, ao voltar para a mesa, esbarrou no jornal de Bob, que caiu aberto, mostrando as manchetes. Evidentemente não era uma leitura agradável, e ela compreendeu por que seu marido se mostrara tão anormalmente aborrecido. A Espanha parecia rumar para uma sangrenta guerra civil. Herr Hitler fazia ruidosos discursos sobre a remilitarização da Renânia e, na Itália, Mussolini vangloriava-se de seu crescente poderio naval no Mediterrâneo. Não era de admirar que Bob rangesse os dentes. Ele não suportava Mussolini, a quem se referia como o Gordo Fascista, e não tinha dúvidas de que, para silenciar tão bombásticas declarações, bastariam duas salvas do convés de um encouraçado britânico.

Tudo aquilo era um tanto amedrontador. Ela deixou o jornal cair no chão e procurou não pensar em Ned, com dezesseis anos, destinado à Marinha Real e tão maduro para o combate como uma fruta doce. A porta se abriu, e Molly entrou na sala de refeições.

Biddy não se preparava especialmente para o desjejum. Ela possuía uma útil peça denominada chambre, que todas as manhãs vestia sobre a camisola. Por esse motivo, a aparência de Molly, perfeitamente arrumada e vestida, com os cabelos cuidadosamente afofados e uma discreta maquiagem no rosto, provocou nela uma pontada de fraterna irritação.

— Sinto muito o atraso.

— Não está atrasada, em absoluto. Enfim, não importa. Dormiu demais?

— Não foi bem o caso. Fiquei me levantando a noite inteira. A pobre Jess teve pesadelos horríveis e acordava a todo instante. Sonhou que a Dame da pantomima estava no quarto e queria beijá-la.

— O quê? Com espartilhos e tudo? Não consigo imaginar nada pior.

— Ela ainda está dormindo, a coitadinha. Judith também ainda não desceu?

— Provavelmente está arrumando as malas. Não se preocupe com ela. Aparecerá em um momento.

— EBob?

—Já se levantou e se foi. O dever chama. Os feriados terminaram. Pediu que eu me despedisse de você por ele. Vou levá-la de carro à estação. Coma alguma coisa, a sra. Cleese cozinhou salsichas.

Molly foi até o aparador, levantou a tampa da frigideira, hesitou e tornou a baixá-la. Despejou café na xícara e voltou para junto da irmã. Biddy ergueu as sobrancelhas.

— Não está com fome?

— Na verdade, não. Vou comer uma torrada.

As pretensões de Molly sobre beleza jaziam em sua aparência extraordinariamente jovem, nos fofos cabelos claros, nas faces redondas e nos olhos, que refletiam somente uma espécie de aturdida inocência. Ela não era uma mulher inteligente, e sempre lenta em perceber a graça de uma piada, além de aceitar qualquer observação por seu manifesto significado, ainda que estando carregada de duplo sentido.

Os homens pareciam achar isso cativante, porque fazia com que se sentissem protetores, mas a patente transparência da irmã era uma causa de irritação para Biddy. Agora, contudo, ela experimentava certa preocupação. Via que, por baixo da delicada aplicação de pó-de-arroz, o rosto de Molly mostrava sombras escuras sob os olhos, e suas faces estavam incomumente pálidas.

— Está se sentindo bem?

— Sim. Apenas não tenho fome. E sofro com a falta de sono.

Ela bebeu café.

— Odeio ficar sem dormir no meio da noite. É como estar em um mundo diferente, e tudo se torna muito mais terrível.

— Antes de mais nada, o que é tão terrível?

— Oh, eu não sei. Apenas todas as coisas que precisam ser feitas, quando eu voltar para casa. Comprar roupas escolares para Judith, e organizar tudo. Fechar a casa. Tentar ajudar Phyllis a encontrar outro emprego. Depois, ir até Londres, tomar o navio, voltar a Colombo. Tudo. Afastei todas essas coisas da mente enquanto estive aqui com você; procurei não pensar em nada. Agora, tenho que voltar a ser sensata novamente. E acho que uma coisa que terei de fazer é, simplesmente, passar alguns dias com papai e mamãe. Isso significa outra complicação.

— Você tem que ir?

— Eu acho que devo.

— Você é uma gulosa por castigo. Acabei de receber uma carta de mamãe.

— Está tudo bem por lá?

— Não. Como sempre, tudo errado.

— Chego a sentir-me culpada, por eles terem passado o Natal sozinhos.

— Pois eu, não — respondeu Biddy prontamente. — É claro que os convidei. Sempre convido, rezando para que não aceitem. E, graças a Deus, arranjaram as desculpas costumeiras. Papai sem tempo disponível; neve nas estradas; o carro fazendo um barulho esquisito; as pontadas de reumatismo de mamãe. Aqueles dois são impossíveis. Vêem tudo pelo lado mais sombrio. Não adianta a gente querer mostrar-lhes que a vida pode ser melhor, porque aproveitam qualquer pretexto para uma lamentação.

— Eles estão velhos.

- Não não estão. Simplesmente aliaram-se à decrepitude. Em seu lugar não me preocuparia tanto com eles, já que tem tanta coisa para resolver.

- Não está em mim pensar diferente. — Molly vacilou, depois disse, com certa violência: — O terrível é que, neste exato momento, daria qualquer coisa para não ir vê-los. Odeio deixar Judith. Odeio o fato de estarmos sendo separadas. Isso me dá a sensação de que não pertenço a lugar algum. Compreenda, às vezes tenho essa sensação curiosa... como se estivesse em uma espécie de limbo, sem qualquer espécie de identidade. É algo que acontece quando menos espero. Posso estar no topo de um ônibus em Londres ou debruçada na amurada de algum barco da P&O, espiando a esteira do navio dissolver-se no passado. Então penso: o que estou fazendo aqui?, para onde estou indo?, quem sou eu?

Sua voz falhou. Por um terrível momento, Biddy receou que ela fosse se debulhar em lágrimas.

— Oh, Molly...

—... e sei que é apenas esta questão de viver entre dois mundos — e os piores momentos são quando esses dois mundos ficam tão próximos que quase se tocam. Como agora. Não me sinto pertencendo a nenhum deles. É simplesmente... atordoante...

Biddy achou que entendia o que se passava com a irmã.

— Bem, se serve de consolo, há milhares de mulheres como você, esposas da índia Britânica, enfrentando o seu mesmo dilema...

—Eu sei. E não é nenhum consolo, acredite. Continuo a sentir-me inteiramente isolada.

— É porque você está cansada. Sem dormir direito. Qualquer um ficaria deprimido.

— Tem razão. — Molly suspirou mas, pelo menos, não estava chorando. Bebeu mais café, depois depositou a xícara no pires. — Seja como for, continuo desejando que Bruce trabalhasse em Londres, em Birmingham, em qualquer lugar, mas desde que pudéssemos viver na Inglaterra, onde pudéssemos apenas ficar juntos.

— Agora é um pouco tarde para desejar isso.

— Ou, inclusive, que nunca nos tivéssemos casado. Que nunca nos üvéssemos conhecido. Que ele houvesse encontrado outra moça. Que me deixasse em paz.

— É improvável que você houvesse encontrado outro homem — Biddy disse para ela, rudemente. — Procure imaginar a alternativa. Viver no Vicariato com mamãe. E não ter filhas tão bonitas.

— É somente a idéia de ter de começar... novamente. De recolher os pedaços. De não pertencer mais a mim mesma...

Sua voz extinguiu-se. As palavras não ditas pairaram entre elas. Molly baixou os olhos e um leve rubor surgiu em suas faces.

Apesar de tudo, Biddy foi tomada de solidariedade. Sabia perfeitamente o que havia no fundo daquele depressivo fluxo de desacostumadas confidências. Nada tinha a ver com o trabalho iminente de arrumar a bagagem e partir. Nada tinha a ver com a separação de Judith. Tinha tudo a ver com Bruce. Biddy sentia pena dele, por mais apático que fosse. Quatro anos de separação não faziam bem a nenhum casamento, e Biddy não supunha que Molly, tão feminina, tão difícil de contentar e tão diferente, algum dia houvesse sido muito boa na cama. De que maneira todos aqueles maridos abandonados lidavam com seus naturais desejos sexuais era algo que estava fora da sua compreensão. Aliás, pensando bem, não estava tão fora assim. A solução óbvia seria, simplesmente, algum arranjo discreto. Não obstante, até mesmo a moderna Biddy guardava dentro de si os inatos preconceitos de sua geração, de maneira que procurou conter a imaginação e, com firmeza, afastou da mente toda essa história.

O rubor de Molly desaparecera. Biddy decidiu ser positiva. Disse, vivamente:

— Tenho certeza de que tudo acabará se resolvendo. — O que, mesmo a seus ouvidos, soava francamente inconclusivo. — Quero dizer... penso que isso tudo chega a ser excitante. Assim que estiver a bordo, você se sentirá uma mulher diferente. Pense na tranqüilidade, três semanas sem mais nada a fazer, além de estirar-se em uma deliciosa espreguiçadeira de convés. E, uma vez cessados os enjôos na baía de Biscaia, você provavelmente se divertirá como nunca. Voltará para o sol, para os trópicos e para um bando de criados. Tornará a ver todos os seus amigos. Sabe de uma coisa? Quase sinto inveja de você!

— Certo — Molly conseguiu mostrar um sorriso de desculpas. — Claro, claro. Estou apenas sendo tola. Sinto muito... Você, naturalmente, vai me achar uma grande tola.

- Não vou achar coisa nenhuma, bobinha. Eu compreendo. Ainda me lembro de quando fomos para Malta. Como detestei deixar Ned! Enfim, o que podemos fazer? Não se pode ter tudo ao mesmo tempo. A única coisa, para ter certeza, é de que vai deixar Judith em uma escola que a compreenderá e cuidará dela. Como é mesmo o nome da que encontrou para ela?

— Santa Ursula.

— Você gostou da diretora?

— Ela tem excelente reputação.

— Sim, mas gostou dela?

— Bem, acho que gostei, assim que parei de sentir medo dela. Mulheres inteligentes sempre me deixam em pânico.

— Ela demonstrou ter senso de humor?

— Não lhe contei nenhuma piada.

— Claro, mas você ficou satisfeita com a escola?

— Oh, sim. Mesmo que não tivesse de voltar para o Ceilão, acho que enviaria Judith para o Santa Ursula. A Escola de Porthkerris foi excelente, academicamente falando, mas as alunas formam um grupo bastante misturado. A melhor amiga de Judith era a filha do merceeiro.

— Não há nada de errado nisso.

— Eu sei, mas não leva a lugar algum, leva? Socialmente, é o que quero dizer.

Biddy teve de rir.

— Francamente, Molly, você sempre foi uma grande esnobe!

— Não sou esnobe, mas as pessoas têm sua importância.

— Sim, é claro que têm.

—Aonde está querendo chegar agora? — perguntou Molly.

— Louise.

— Você não gosta dela?

— Gosto, na mesma medida em que ela gosta de mim. Com toda a certeza, não desejaria passar meus feriados com ela.

Isto deixou Molly em um estado de súbita agitação.

— Oh, Biddy, por favor, não comece a interferir e a criar objeções! Tudo já foi combinado, feito e encerrado, não há mais nada a ser dito.

— Quem disse que eu ia criar objeções? — exclamou Biddy, e imediatamente começou a criá-las. — Ela é uma velhota teimosa. Tão entediante, com seu interminável golfe, seu bridge e seu "templo

sagrado" que é o Clube de Golfe! Louise é tão pouco feminina, tão apegada a seu sistema de vida, tão... — Biddy franziu a testa, procurando a palavra adequada, mas encerrou somente com "secarrona"!...

— A verdade é que você está vendo as coisas pelo prisma errado. Louise é muito gentil. Ela tem sido um braço forte para mim. Além disso, ofereceu-se para ficar com Judith, eu nem precisei pedir. Isso é generosidade. E vai dar uma bicicleta para Judith. Também é generosidade, porque bicicletas são terrivelmente caras. O mais importante, no entanto, é Louise ser uma pessoa de confiança. Ela dará segurança a Judith... Não precisarei me preocupar...

— Talvez Judith precise de algo mais do que segurança.

— Como o quê?

— Espaço emocional; liberdade para crescer em sua própria direção. Ela logo estará com quinze anos. Precisará abrir as asas, encontrar-se. Fazer amigos. Ter algum contato com o sexo oposto...

— Biddy, você tinha que colocar sexo na conversa. Ela ainda é muito nova para começar a pensar nesse tipo de coisa...

— Ora, vamos, Molly, seja adulta! Você a viu, nestas duas últimas semanas. Judith literalmente floresceu, com todo o divertimento que tivemos. Você não pode privá-la dos perfeitamente naturais prazeres da vida. Não vai desejar que sua filha seja igual a nós, confinadas pelas circunstâncias de nossa condição social e morrendo de tédio!

— O que eu desejo não importa. Como lhe disse, é tarde demais. Ela irá ficar com Louise.

— Chova ou faça sol, eu sabia que seria esta a sua atitude.

— Então, para que discutir o assunto?

Biddy queria feri-la, mas pensou em Judith e conseguiu reprimir a crescente impaciência. Assim, procurou outra abordagem, agora mais suave. Uma persuasão gentil.

—Não acha que seria divertido para ela vir ver-nos de vez em quando? Por favor, não fique tão horrorizada, é uma sugestão perfeitamente viável. Aliás, foi idéia de Bob. Ele simpatizou muito com Judith. Seria uma pequena e agradável folga para sua filha, sendo também uma pequena e agradável folga para Louise.

— Eu... eu teria de discutir isso com Louise...

— Oh, pelo amor de Deus, Molly, mostre um pouco de vontade própria!

- Eu não quero irritar Louise...

Porque Louise não me aprova.

Não. É porque não quero balançar o barco, criar instabilidade para Judith. Não precisamente agora. Por favor, Biddy, procure entender. Mais tarde, talvez...

Pode ser que não haja um mais tarde.

O que está querendo dizer? — perguntou Molly, visivelmente alarmada.

Leia os jornais. Os alemães abraçaram o Nacional Socialismo, porém Bob não sente a menor confiança no que diz Herr Hitler. E pensa o mesmo em relação ao velho e gordo Mussolini.

— Está querendo dizer... — Molly engoliu em seco. —... uma guerra?

— Oh, eu não sei! Entretanto, acho que não devemos ficar tão suscetíveis sobre nossas vidas particulares porque, talvez muito breve, não tenhamos nenhuma. E acho que sua suscetibilidade de agora é por não querer que Judith venha ver-me. Imagino que talvez me ache uma influência ruim para ela. Todas essas festas loucas e jovens tenentes fazendo visitas de cortesia... É isso, não é? Por que não admite de uma vez?

— Não é nada disso! —A conversa tornava-se uma perfeita discussão, com as duas levantando a voz. — Você sabe que não é! E eu fico agradecida. Você e Bob foram tão bondosos...

— Pelo amor de Deus, você faz com que isso pareça uma penitência! Nós as convidamos para o Natal e todos nos divertimos imensamente. Nada mais do que isso. E acho que você está sendo muito pusilânime, muito egoísta. É igual a mamãe... detestando as pessoas que se divertem.

— Isso não é verdade.

— Oh, vamos esquecer, está bem?

Após falar e, exasperada, Biddy estendeu a mão para The Times, abriu as páginas espalhafatosamente e escondeu-se atrás delas.

Silêncio. Inteiramente abalada pelo horror de tudo, pela possibilidade de outra guerra, pelas confusões de seu iminente futuro e pelo ato de que Biddy agora estava furiosa com ela, Molly permaneceu em um estado de trêmula agitação. Aquilo não era justo. Ela estava agindo da melhor maneira possível. A culpa não era sua. O pesado silêncio prolongou-se, e ela percebeu que não poderia suportá-lo nem mais um segundo. Empurrou para trás o punho de seu cardigan e olhou para o relógio de pulso.

— Onde está Judith?

Era um alívio poder pensar em alguma coisa, alguém sobre quem descarregar sua agonia. Levantou-se de repente, empurrando a cadeira para trás, e foi até a porta, a fim de escancará-la e chamar a filha que se atrasava. Entretanto, não precisou chamar, porque Judith já estava lá, bem no outro extremo do corredor, sentada ao pé dos degraus.

— O que está fazendo aí?

— Amarrando o cordão do meu sapato.

Judith não fitou os olhos da mãe ao falar. Molly sentiu uma frieza e, embora nem sempre sendo a mais perceptiva das mulheres, compreendeu que sua filha estivera ali por algum tempo, detida pelas vozes iradas que se filtravam pela porta fechada da sala de refeições, tendo ouvido cada palavra daquela desabrida e lamentável discussão.

Foi Jess quem veio em seu socorro.

— Mamãe!

—Já estou indo, meu bem.

— Quero abotoar meu casaco.

— Já estou indo. — Molly cruzou o corredor e parou por um instante. — É melhor fazer seu desjejum — disse para Judith.

Ela subiu a escada e Judith esperou, até vê-la desaparecer. Em seguida, levantando-se, entrou na sala de refeições. Tia Biddy estava sentada à mesa, em seu lugar costumeiro e, através da sala, as duas entreolharam-se tristemente.

— Oh, querida. — Ela estivera lendo o jornal. Dobrou-o e o deixou cair no chão. — Lamento tudo isso — falou.

Judith não estava acostumada a ouvir desculpas de adultos.

— Está tudo bem — respondeu.

— Sirva-se de salsichas. Pensei que você gostaria.

Judith obedeceu, mas salsichas quentes e crepitantes não serviram de grande consolo. Carregou seu prato de volta à mesa e sentou-se em seu lugar de sempre, com as costas para a janela. Contemplou as salsichas, mas decidiu que, pelo menos por enquanto, não conseguiria comê-las.

— Você ouviu tudo? — perguntou Biddy, após um momento.

- A maior parte.

A culpa foi minha. Não raciocinei direito. Escolhi a hora errada para falar. No momento, sua mãe não se encontra em estado de planejar seja o que for. Eu devia ter percebido.

,Eu estarei bem com tia Louise, acredite.

Eu sei. Não é que me preocupe com o seu bem-estar. Acontece apenas que, com toda a probabilidade, não será muito divertido.

Eu nunca tive divertimentos de adultos antes —disse Judith. — Não antes deste Natal.

— Está querendo dizer que, quando a gente não tem, não sente falta.

— Sim, acho que é isso. Entretanto, eu adoraria voltar.

— Tentarei novamente. Um pouco mais tarde.

Judith pegou o garfo e a faca, e cortou uma salsicha ao meio. Então, perguntou:

— Acha mesmo que vai haver outra guerra?

— Oh, meu bem, não é o que espero. E você ainda é muito nova para ficar preocupada com essas coisas.

— Sim, mas tio Bob está preocupado?

— Não só muito preocupado, creio eu, como frustrado. Ele range os dentes, só em pensar que o Império Britânico está sendo desafiado. Quando enfurecido, Bob pode tornar-se um verdadeiro buldogue.

— Se eu puder ficar, viria para cá?

— Não sei. A indicação de Bob para Keyham foi de dois anos, de maneira que devemos mudar-nos no final do verão.

— E para onde irão?

— Nem imagino. Bob quer retornar ao mar. Se ele for, tentarei comprar uma casinha para nós, Nunca tivemos uma propriedade, sempre vivemos em imóveis militares. Entretanto, acho que seria bom termos uma base permanente. Pensei em Devon. Temos amigos por aQui- Algum lugar como Newton Abbot ou Chagford, não muito longe de seus avós.

Uma casinha de vocês! —Era uma encantadora perspectiva. — Compre uma no campo! Então, eu poderei ir e ficar lá com vocês. —- Se você quiser.

— Eu sempre vou querer.

— Não. Aí está o curioso. Você talvez não quisesse. Na sua idade, tudo muda tão depressa, que um ano às vezes parece durar uma existência. Eu me lembro. Além do que, você fará novas amizades, desejará coisas diferentes. Em seu caso, isso terá ainda mais importância, porque você precisará tomar suas próprias decisões e resolver o que quer fazer. Não contará com sua mãe por perto e, embora possa sentir-se um pouco triste e solitária, de certa forma isto será uma boa coisa. Eu teria dado o mundo para ficar livre de meus pais, quando tinha quatorze, quinze anos. De qualquer modo — acrescentou ela, com certa satisfação — não me saí muito mal, mas só foi assim porque tomei as decisões em minhas próprias mãos.

— Não é muito fácil a gente tomar decisões estando em um internato — observou Judith, achando que sua tia fazia aquilo parecer demasiado fácil.

— Acredito que você deve aprender a precipitar situações, em vez de ser passiva e simplesmente deixar que elas aconteçam. Aprenda a ser seletiva, no referente às amizades que fizer e aos livros que ler. Estou falando, suponho, de uma independência de espírito. — Ela sorriu. — George Bernard Shaw disse que a juventude é malbaratada nos jovens. Somente quando envelhecemos é que começamos a entender do que ele estava falando.

— Você não é velha.

—Talvez, mas a verdade é que há muito deixei de ser uma ninfeta. Judith enfiou um pedaço de salsicha na boca e mastigou, pensativa, refletindo no conselho da tia.

— O que eu realmente detesto — admitiu por fim — é ser tratada como se tivesse a mesma idade de Jess. Nunca sou consultada sobre coisas, nunca me comunicam coisas. Se não tivesse ouvido vocês duas gritando uma com a outra, jamais ficaria sabendo que você tinha me convidado para ficar aqui. Mamãe nunca me diria uma palavra.

— Eu sei. Deve ser enlouquecedor. E acredito que você tenha motivos para ficar ressentida. De qualquer modo, neste exato momento procure não ser muito severa com sua mãe. Por ora, ela se encontra em estado de franca ebulição, e quem poderia censurá-la, se começar a agitar-se de um lado para o outro como galinha choca? — Ela riu, sendo então recompensada pelo começo de um sorriso. — Cá entre nós, eu acho que ela tem medo de Louise.

— Eu sei que tem.

— E você?

— Nunca senti medo dela.

— Boa garota.

—Sabe de uma coisa, tia Biddy? Sinceramente, eu adorei estes dias com vocês. Nunca vou esquecê-los. Biddy ficou comovida.

— E nós gostamos de tê-la conosco. Principalmente Bob. Ele me pediu para dizer-lhe adeus. Lamentou ter que ir trabalhar sem tornar a vê-la. Bem... — Ela empurrou a cadeira para trás e ficou em pé. — Posso ouvir sua mãe e Jess descendo a escada. Acabe com seu desjejum e faça de conta que não tivemos uma conversinha franca. E lembre-se: mantenha o ânimo elevado! Agora, vou subir e vestir umas roupas...

Antes que ela chegasse à porta, Molly e Jess entraram na sala. Jess estava agora de macacão e meias brancas, os cabelos sedosos penteados com escova. Biddy parou para dar um beijo leve no rosto de Molly.

— Não se preocupe nem um pouco — disse para a irmã.

Isto foi o mais aproximado que conseguiu para um pedido de desculpas, e então desapareceu, subindo a escada para o santuário de seu quarto de dormir.

Desta maneira, a discussão foi varrida para baixo do tapete e o dia seguiu em frente. Judith ficou tão aliviada com o ambiente agora claro entre sua mãe e sua tia, sem nenhum desentendimento pairando no ar, que foi apenas quando estavam de fato na estação, em pé na plataforma varrida pelo vento e à espera do Riviera para levá-las de volta à Cor-nualha, que encontrou tempo para lamentar a ausência do tio Bob.

Era horrível, ir embora sem se despedir dele. E ela era a culpada, por demorar tanto a descer para o desjejum. No entanto, teria sido tão bom se ele tivesse esperado, apenas uns cinco minutos, para que houvesse uma despedida apropriada... Além disso, ela gostaria de agradecer-lhe por tudo, e agradecimentos nunca eram a mesma coisa quando escritos em uma carta.

O melhor havia sido o gramofone dele. A despeito das ânsias juvenis de sua mãe em tornar-se bailarina, nem ela e nem seu pai possuíam tendências musicais, porém aquelas tardes passadas com tio Bob em seu estúdio haviam despertado uma percepção, uma valorização da existência que Judith jamais houvera suspeitado. Ele possuía uma grande variedade de discos e, mesmo tendo ela gostado muito das canções de Gilbert e Sullivan, com suas letras inteligentes e melodias cativantes, outras lhe tinham alegrado o coração ou a deixado tão angustiadamente triste, que mal conseguira impedir as lágrimas boiando em seus olhos. Árias de Puccini, extraídas de La Bohéme, o Concerto para piano de Rachmaninoff, a música Romeu e Julieta, de Tchaikovsky... E, absoluta magia, aquele Scheherazade, de Korsakov, um solo de violino que a deixava com arrepios descendo pela espinha... Havia outro disco do mesmo compositor, ao qual tio Bob se referia como "Bum of tbe Flightle Bee", de autoria de Rip His Corsetsoff, uma piada que fazia Judith ter acessos de riso. Ela nunca havia pensado que um adulto pudesse ser tão divertido. Entretanto, uma coisa era certa: ela precisava ter seu próprio gramofone, e então poderia colecionar discos, exatamente como fazia o tio Bob, a fim de tocá-los sempre que tivesse vontade e ser transportada, como que levada pela mão, para aquela outra terra, anteriormente jamais imaginada. Começaria a economizar imediatamente.

Seus pés estavam gelados. Tentou aquecê-los um pouco, batendo-os no piso oleoso da plataforma, como se marcasse compasso. Tia Biddy e sua mãe conversavam inconseqüentemente, como as pessoas costumavam fazer enquanto esperam um trem. Pareciam ter esgotado coisas importantes para dizer. Jess estava sentada na beirada de um carrinho de transporte, e balançava as pernas gorduchas, envoltas em meias brancas. Abraçava seu espantalho, aquele brinquedo revoltante que levava para a cama todas as noites. Judith apostava que o espantalho devia estar imundo, mas, tendo a cara preta, a sujeira não aparecia. E devia estar não apenas imundo, mas cheio de micróbios.

Então, algo realmente bom aconteceu. Tia Biddy parou de tagarelar, espiou por sobre a cabeça da irmã e exclamou, em um tom muito diferente:

— Oh, veja! Aí vem Bob!

 

Jogo de palavras de tradução impossível, referindo-se à obra "O Vôo do Besouro", de Rimski-Korsakov. (N. da T.)

 

O coração de Judith alegrou-se. Ela deu meia-volta. Esqueceu os pés gelados. E lá estava ele, uma corpulenta e inconfundível figura uniformizada, caminhando pela plataforma em direção a elas, o quepe de oficial meio de banda, puxado sobre uma espessa sobrancelha, e um amplo sorriso nas feições marcantes. Os pés de Judith deixaram de sentir frio, e ela precisou ficar absolutamente imóvel, para evitar de ir correndo encontrá-lo.

— Bob! O que está fazendo aqui?

.—Tive um ou dois momentos de folga e decidi vir para o embarque do nosso grupinho. — Ele baixou os olhos para Judith. — Eu não a deixaria ir embora sem uma despedida adequada.

Ela sorriu, deliciada. Disse:

— Estou contente porque veio. Eu queria agradecer-lhe por tudo. Especialmente pelo relógio.

— Precisará lembrar-se de dar-lhe corda.

— Oh, eu me lembrarei...

Ela não conseguia parar de sorrir. Tio Bob bandeou a cabeça, ouvindo,

— Acho que o trem vem vindo.

De fato havia um som — as linhas do trem estavam zumbindo. Judith espiou e, na curva distante, além do final da plataforma, surgiu à vista a enorme locomotiva a vapor verde e negra, com seus polidos acessórios de bronze e a fumaça negra que subia da chaminé. Sua aproximação era majestática e inspirava medo, enquanto corria ao longo da plataforma. O maquinista, de rosto sujo de fuligem, inclinou-se em seu posto, e Judith teve um relance das chamas gulosas crepitan-do na fornalha. Os maciços pistões, como braços de um gigante, revolveram-se cada vez mais devagar, até finalmente a composição Parar, com um esguicho sibilante de vapor. Como sempre, chegava na hora exata.

Houve um pequeno pandemônio. Portas escancaravam-se e passageiros desembarcavam, carregando sua bagagem. Havia uma certa urgência, um lufa-lufa de partida. Então, o carregador colocou as malas delas a bordo e se foi em busca de assentos. Com meticulosidade Ppria de homem do mar, tio Bob o seguiu, apenas para ter certeza de que o trabalho seria feito de maneira adequada. Ligeiramente em pânico, Molly ergueu Jess nos braços e embarcou no trem, precisando inclinar-se para o beijo de despedida na irmã.

—Você foi tão bondosa! Tivemos um Natal maravilhoso. Dê adeus para a tia Biddy, Jess.

Ainda aferrando o espantalho, Jess agitou uma mãozinha enluvada em branco. Tia Biddy se virou para Judith.

— Adeus, querida. Você foi um amorzinho. — Inclinando-se, beijou a sobrinha. — Não se esqueça: eu sempre estou aqui. Sua mãe anotou o meu telefone na caderneta de endereços.

— Adeus. E muito, muito obrigada!

— Depressa! Suba logo, ou o trem irá sem você. —Biddy levantou a voz: — Faça seu tio Bob descer, pois do contrário terão de levá-lo com vocês!

Durante um momento ela ficara um pouco séria, mas agora estava rindo de novo. Judith riu de volta, deu um último adeus e então mergulhou no corredor, atrás dos outros.

Havia sido encontrado um compartimento ocupado por um rapaz apenas, que estava sentado com um livro aberto sobre o joelho, enquanto o carregador ajeitava a bagagem nos bagageiros acima de sua cabeça. Então, depois de tudo no lugar, tio Bob deu uma gorjeta ao carregador e o despachou.

— Você também precisa ir, e depressa — disse-lhe Judith — ou o trem começará a andar e será impossível desembarcar.

Ele sorriu para ela.

— Isso nunca aconteceu até hoje. Adeus, Judith.

Eles trocaram um aperto de mãos. Quando afastou a mão, Judith encontrou, na palma de sua luva de lã, uma nota de dez xelins. Dez xelins ao todo!

— Oh, tio Bob, muito obrigada).

— Gaste-os com sabedoria.

— Farei isso. Adeus.

Ele se foi. Um momento mais tarde, reaparecia ao lado de tia Biddy, em pé na plataforma, abaixo da janela delas.

— Façam uma boa viagem! — O trem começou a mover-se. —Boa viagem! — A velocidade foi aumentando. — Adeus!

A plataforma e a estação foram ficando para trás. Tio Bob e tia Biddy desapareceram de vista. Tudo terminara. Agora, estavam a caminho de casa.

Elas levaram alguns momentos instalando-se. O outro ocupante Ao vagão, o rapaz, sentava-se junto à porta, e por isso elas ficaram com oS assentos perto da janela. O aquecimento funcionava a pleno vapor e estava muito quente, de modo que luvas, casacos e chapéus foram removidos pelas crianças. Molly continuou com seu chapéu. Jess foi posta junto à janela, onde ficou de joelhos sobre a pelúcia áspera do banco, o nariz comprimido contra a vidraça fuliginosa. Judith sentou-se diante dela. Sua mãe, após dobrar casacos e colocá-los no bagageiro, remexeu em sua sacola de viagem à procura dos lápis de cor e do caderno de desenho de Jess. Finalmente sentou-se ao lado da filha caçula e soltou um suspiro de alívio, como se toda a operação tivesse sido quase superior às suas forças. Fechou os olhos, mas, após algum tempo, tornou a abri-los e começou a abanar o rosto com a mão.

— Céus, como está quente! — murmurou.

— Estou achando ótimo — disse Judith, pois seus pés nem mesmo haviam começado a degelar.

Sua mãe, no entanto, ficou insistente.

— Estou pensando se...

Ela agora se dirigia ao rapaz, cuja privacidade e sossego haviam perturbado tão rudemente. Ele ergueu os olhos do livro que lia, e Molly sorriu, simpática.

— Será que não se importaria se baixássemos o aquecimento um pouquinho? Ou se abríssemos uma pequena fresta da janela?

— Em absoluto — disse polidamente. Largou o livro e ficou em pé. — O que a senhora prefere? Talvez as duas coisas?

—Não, acho que um pouco de ar fresco seria o bastante...

— Está bem.

O rapaz aproximou-se da janela. Judith puxou as pernas do caminho e ficou espiando, enquanto ele afrouxava a grossa correia de couro, deixava a janela baixar uns três centímetros e tornava a firmar a correia de novo.

— Está bom assim?

— Perfeito.

— Cuidado para que a fuligem não atinja o olho de sua garotinha.

— Espero que isso não aconteça.

Ele voltou ao seu assento e tornou a pegar o livro. Ouvir a conversa de outras pessoas, espiar estranhos e tentar adivinhar suas vidas eram duas das ocupações prediletas de Judith. Molly chamava isso de "encarar". "Pare de encarar, Judith."

Entretanto, Molly agora lia sua revista, de modo que tudo estava bem.

Judith o estudou disfarçadamente. O livro dele parecia grande e enfadonho. Ela perguntou-se por que aquelas páginas o absorviam tanto, uma vez que não o considerava um tipo estudioso, com aqueles ombros largos e corpo robusto. Bastante forte e bem-disposto, decidiu ela. Vestia calças de veludo cotelê, um paletó de tweed e uma grossa camisa cinza, modelo pólo. Tinha em volta do pescoço um cachecol de lã muito comprido, de listras vivas. Os cabelos não mostravam uma cor particular, não sendo claros nem castanhos. Estavam um tanto despenteados e pareciam precisar de um bom corte. Ela não pôde ver-lhe a cor dos olhos, porque ele estava lendo, mas usava óculos de aros grossos e, no meio do queixo, tinha um corte fundo, masculino demais para ser chamado de "covinha". Judith perguntou-se que idade ele teria e decidiu-se por cerca de vinte e cinco. Talvez estivesse enganada. Não tendo muita experiência com rapazes, era difícil ter certeza.

Ela se virou para a janela. Dentro de alguns instantes estariam passando pela ponte Saltash, e não queria perder a vista de todos os navios de guerra ancorados no porto.

Jess, contudo, tinha outras idéias. Já se entediara de espiar pela janela e agora procurava uma distração diferente. Começou a pular no assento, depois ficou descendo, para subir novamente. Ao fazer isso, seu sapato se chocou com a canela de Judith, causando dor.

— Oh, fique quieta, Jess!

Jess respondeu, atirando o espantalho na irmã. Por pouco Judith não o enfiou pela fresta aberta no alto da janela, e aquele horrível brinquedo teria desaparecido para sempre, mas, em vez disso, apanhou-o, e o jogou de volta. O espantalho bateu no rosto da menina. Jess iniciou um berreiro.

— Oh, Judith — exclamou Molly.

Colocou a filha sobre os joelhos. Depois que os gritos amainaram, ela se desculpou com o rapaz.

Sinto muito. Perturbamos o seu sossego.

Ele ergueu os olhos do livro e sorriu. Era um sorriso particularmente encantador, revelando dentes tão alvos e perfeitos como um anúncio de creme dental. Além disso, aquele sorriso animou suas feições despretensiosas e modificou-lhe o rosto inteiramente, fazendo com que, de súbito, ficasse mais bonito.

— Não foi nada — afirmou ele.

— Está vindo de Londres?

Evidentemente, ela estava com disposição para conversar. O rapaz pareceu notar isto, porque fechou o livro e o deixou de lado.

— Sim, estou.

— Passou o Natal fora?

— Não, estive trabalhando durante o Natal e o Ano Novo. Agora é que estou tirando uma folga.

— Céus, que horror! Ter que trabalhar durante o Natal! E o que faz?

Judith achou que sua mãe estava sendo um tanto bisbilhoteira, mas o rapaz não parecia pensar assim. De fato, dava a impressão de estar bastante satisfeito em falar, como se já houvesse lido o suficiente de seu enfadonho livro.

— Sou residente no Saint Thomas.

— Oh, um médico!

— Exatamente.

Judith ficou terrificada, imaginando o que sua mãe iria dizer, “Parece jovem demais para ser médico", o que deixaria todos constrangidos, mas ela nada comentou. Isto explicava o motivo daquele livro grosso e sólido. Provavelmente o rapaz estudava os sintomas de alguma obscura enfermidade.

— Seu Natal não deve ter sido muito divertido.

— Pelo contrário. No hospital, o Natal é bastante animado. As enfermarias são decoradas e as enfermeiras cantam canções natalinas.

— E agora está indo para casa?

Sim, para Truro. Meus pais moram lá.

— Nós vamos para um pouco mais longe. Praticamente até o fim da linha. Estivemos passando os feriados com minha irmã e seu marido. Ele é capitão na Faculdade de Engenharia.

Aquilo soava como se ela estivesse se vangloriando. Para distrair a atenção, Judith falou:

—Já estamos chegando à ponte!

Para sua surpresa, o rapaz parecia tão excitado a respeito quanto ela.

— Quero dar uma espiada — disse ele.

Levantando-se, ficou em pé ao lado dela, firmando-se com uma das mãos na borda da janela. Sorriu para Judith, e ela reparou que os olhos dele não eram castanhos nem verdes, mas pintalgados, como os de uma truta.

— É bonito demais para que se perca a vista, não?

As rodas diminuíam a velocidade. As vigas de ferro ficaram fragorosamente para trás e, muito abaixo, cintilava a gélida água invernal, juncada de esguios cruzadores e destróieres cinzentos, além de pinaças, pequenas e movimentadas lanchas, e barcos de navios, todos exibindo o Estandarte Branco.

— Esta é uma ponte especial — disse Judith.

— Por quê? Por levar a gente rio abaixo, para terras estrangeiras?

— Não é só por isso.

— Ela é uma obra-prima de Brunel.

— Como disse?

— Brunel. Ele desenhou e construiu a ponte para a Great Western Railway. Foi a maravilha de sua época. Por falar nisso, continua maravilhosa.

Os dois silenciaram. O rapaz continuou ali até o trem atravessar a ponte e passar para Saltash, no lado do Tamar pertencente à Cornualha. Então, retornando ao seu lugar, ele tornou a pegar o livro.

Após alguns momentos, o homem do vagão-restaurante apareceu para anunciar que o chá da tarde estava sendo servido. Molly perguntou ao jovem médico se gostaria de juntar-se a elas, porém ele recusou polidamente. Então, deixaram-no sozinho e começaram a caminhar pelos ruidosos e cambaleantes corredores do trem, até chegarem ao vagão-restauranté. Uma vez lá, foram conduzidas a uma mesa coberta por uma toalha de linho branco e posta com porcelanas brancas. Havia pequenos abajures de cúpulas rosadas, e estavam todos ligados, o que tornava o ambiente luxuoso e aconchegante, porque lá fora a tarde invernal escurecia para o crepúsculo. O garçom aproximou-se, com chá em um bule de porcelana, um pequenino jarro de leite, outro de água quente e uma tigelinha com torrões de açúcar. Jess já tinha comido três torrões, antes que sua mãe percebesse. Então, outro garçom apareceu junto delas, servindo sanduíches, biscoitos quentes e amanteigados para o chá, fatias de bolo e biscoitos de chocolate, envoltos em papel prateado.

Molly serviu as xícaras, e Judith bebeu o chá forte e quente, acompanhando-o com os biscoitos amanteigados. Olhando para a escuridão que aumentava no exterior, ela decidiu que, afinal de contas, aquele não fora um dia tão ruim. Tinha começado de maneira um tanto sombria quando, ao acordar, ela se conscientizara de que os feriados haviam terminado. O ambiente quase se tornara inteiramente desastroso à hora do desjejum, devido àquela terrível discussão entre sua mãe e tia Biddy. Entretanto, as duas irmãs tinham contornado a situação e continuaram sendo gentis uma com a outra; disso tudo, resultara bom saber que tia Biddy e tio Bob de fato gostavam da sobrinha o bastante para desejarem sua volta, mesmo parecendo que a ela não seria dada liberdade para ficar com eles. Tia Biddy se mostrara particularmente gentil e compreensiva, falando-lhe como se ela fosse adulta e dando-lhe conselhos que jamais esqueceria. Outra coisa boa fora tio Bob aparecer na estação para despedir-se e vê-las partirem, e deixando-lhe uma nota de dez xelins na mão. Aquele dinheiro seria o início de suas economias para comprar um gramofone — a sua vitrola. Por fim, a conversa com o jovem médico que viajava no mesmo compartimento ocupado por elas. Teria sido formidável se ele as acompanhasse no chá, mas talvez todos acabassem sem assunto para conversar. Ainda assim, ele se mostrara agradável, com suas maneiras simples. Quando haviam atravessado a ponte do Saltash, ficara muito perto dela, e Judith pudera sentir o cheiro de seu paletó de tweed, enquanto a ponta do comprido cachecol do rapaz lhe pousara sobre um joelho. Brunel, havia dito ele. Brunel construiu esta ponte. Ocorreu-lhe que aquele rapaz seria o tipo de pessoa que gostaria de ter como irmão.

Ela terminou uma fatia do bolo e pegou um sanduíche com patê de salmão, fingindo para si mesma que a mãe e a irmã não faziam parte de sua vida, que estava viajando sozinha através da Europa no Orient Express, levando segredos de estado em sua maleta chinesa de vime, e sendo-lhe reservado todo o tipo de excitantes aventuras em futuro próximo.

Logo depois que retornaram ao compartimento, o trem fez sua parada em Truro, e o passageiro que as acompanhava fechou seu livro, guardando-o na mochila, enrolou o cachecol no pescoço e disse adeus. Pela janela, Judith observou-o seguir seu caminho na plataforma em direção à saída. Então, ele desapareceu.

Depois disso, o ambiente ficara um pouco tedioso, porém faltava pouco para terminar a viagem e Jess tinha pegado no sono. No entroncamento, Judith encontrou um carregador que lhes levou as malas maiores, enquanto ela levava as menores e Molly carregava Jess. Cruzando a ponte que levava à outra plataforma e ao trem para Porthkerris, ela sentiu o vento soprando do mar e, embora estivesse frio, aquele era um frio diferente do de Plymouth, como se sua curta viagem as tivesse transportado para outra terra. A friagem não era mais intensa e enregelante, porém suave e úmida, unida ao cheiro noturno de salitre, de sulcos na terra e de pinheiros.

As três embarcaram no pequeno trem apinhado, e pouco depois estavam partindo, de uma forma algo modorrenta. O som das rodas no trilho era inteiramente diferente do produzido pelo grande expresso de Londres. Cinco minutos mais tarde elas desciam na Parada de Penmarron e, na plataforma, o sr. Jackson veio ao seu encontro, de lanterna na mão.

— Quer uma ajuda com suas malas, sra. Dunbar?

— Não é preciso. Penso que deixaremos aqui as maiores e levaremos conosco apenas as menores. Podemos arranjar-nos por esta noite. Talvez o carregador possa levá-las pela manhã, em sua carroça.

— Suas malas aqui estarão em segurança.

Elas atravessaram a sala de espera, depois a escura estrada de terra, cruzaram o portão e subiram pela horta às escuras. Jess pesava bastante e, de vez em quando, Molly tinha que parar para recuperar o fôlego. Por fim alcançaram o último terraço e viram a luz acesa acima da porta. Quando chegaram ao final da trilha, a vidraça interna da porta fora aberta, e lá estava Phyllis para recebê-las.

- Vejam só quem chegou, de volta como um monte de moedas sem valor! — exclamou ela, satisfeita, descendo apressadamente os degraus. — Vamos, senhora, dê-me a criança. Deve ter ficado exausta com a subida. E não podia ser de outro jeito, carregando-a até cá em cima por todos aqueles degraus, e com ela pesando mais do que deveria, como bem posso perceber!

Sua voz estridente nos ouvidos de Jess finalmente acordou a menina, que pestanejou sonolentamente, sem imaginar onde estaria.

— Quantos petiscos de Natal andou comendo, Jess? Vamos, agora entrem, saiam desse frio! Estou com a água do banho escaldante, há um belo fogo na sala de visitas e uma galinha ensopada para jantarem!

Molly decidiu que Phyllis era realmente um tesouro, e que a vida sem ela nunca mais voltaria a ser a mesma. Após ter ouvido um apressado relato de como fora o Natal das recém-chegadas e de retribuir com uns poucos mexericos da aldeia, ela carregou Jess para o andar de cima a fim de dar-lhe banho, alimentá-la com pão aquecido e leite quente, e depois pô-la na cama. Carregando sua maleta chinesa de vime, Judith a seguiu, ainda tagarelando:

— Ganhei um relógio do tio Bob, Phyllis. Fica em uma espécie de estojo de couro. Vou mostrar a você...

Molly ficou olhando as duas irem. Finalmente aliviada da responsabilidade de Jess e, encerrada a viagem, ela de repente se sentiu de todo exaurida. Tirou o casaco de peles e o pendurou na extremidade do corrimão. Depois recolheu a pilha de correspondência que a aguardava na mesa do vestíbulo e foi para a sala de visitas. O fogo de carvão queimava vivamente, e Molly parou diante dele por um instante, aquecendo as mãos e tentando amenizar a rigidez do pescoço e ombros. Após um momento, sentou-se em sua poltrona e folheou as cartas. Havia uma de Bruce, porém não a abriu logo. Agora, tudo quanto queria era apenas ficar sentada, bem quieta e aquecida pelo fogo, enquanto coordenava os pensamentos.

Afinal de contas, aquele havia sido um dia abalador, e a odiosa discussão com Biddy, após uma noite insone, simplesmente arrasara com ela. "Não se preocupe nem um pouco", dissera Biddy, beijando-a, como se aquilo encerrasse o ressentimento. Antes do almoço, no entanto, ela voltara à carga, enquanto estavam sozinhas bebericando um cálice de sherry e esperando que Hobbs tocasse o gongo para a refeição.

Biddy agira com uma gentileza quase arreliante, porém sua mensagem tinha sido alta e clara.

— Pense um pouco no que lhe digo. É para o seu próprio bem e de Judith também. Não pode abandoná-la durante quatro anos, inteiramente despreparada para o que é sempre um período bastante difícil. Eu odiei ter quatorze anos — sempre me senti como se não fosse peixe frito nem cozido.

— Biddy, ela não está inteiramente despreparada...

Biddy acendeu um dos seus perpétuos cigarros. Soprando a fumaça, perguntou:

— Ela já iniciou seus períodos?

A pergunta direta era embaraçosa, mesmo sendo feita por uma irmã, porém Molly ignorou-a.

— Sim, claro. Há seis meses.

— Bem, afinal, isso é uma bênção. E quanto às roupas dela? Vai precisar de algumas peças atraentes e não imagino Louise muito entrosada nesse campo. Ela terá alguma quantia reservada para roupas...?

— Sim, já tomei essa providência.

— O vestido que Judith usou noites atrás era muito bonito, porém um tanto infantil. Então, você me disse que ela queria um livro de Arthur Ransome para o Natal, de maneira que o comprei.

— Ela adora Arthur Ransome...

— Sim, mas a essa altura, devia estar lendo livros para adultos... ou, pelo menos, começando a lê-los. Por isso tornei a sair na véspera de Natal e comprei Jane Eyre. Assim que ler a primeira página, ela só irá parar quando chegar à última. Provavelmente ficará apaixonada pelo sr. Rochester, como toda adolescente. — Os olhos de Biddy eram provocantes, faiscavam de divertimento. — Ou será que você não se apaixonou por ele? Talvez estivesse se reservando para Bruce, não?

Molly percebia que a irmã queria divertir-se à sua custa, e recusava-se a cair na armadilha.

— Isso é da minha conta.

—Então, quando você o viu pela primeira vez, seus joelhos ficaram bambos...

Biddy às vezes era simplesmente insultante, mas também engraçada de modo que Molly acabou rindo. Ainda assim, ficara bastante aborrecida com aquilo, porém o que tornava a coisa tão perturbadora, era saber que as críticas da irmã, embora perfeitamente justificadas, tinham vindo tarde demais para que pudesse ser feito algo, a fim de melhorar a situação. Isto porque, como de hábito, Molly deixara tudo para o último momento e, agora, pairando à sua frente, havia coisas demais para fazer.

Ela bocejou profundamente. O relógio acima da lareira bateu seis da tarde. Hora do ritual noturno de subir ao andar de cima e vestir-se para o jantar. Molly trocava de roupa para jantar todas as noites, como havia feito durante a vida inteira de casada, embora nos dois últimos anos tivesse apenas Judith como companheira de refeição. Esta era uma das pequenas convenções que haviam sustentado sua vida solitária, proporcionando uma certa ordem e estrutura, necessárias para haver alguma espécie de forma na existência do dia-a-dia, por mais tedioso que isso fosse. Aí estava outro motivo para as implicâncias de Biddy que, vendo-se sozinha, provavelmente enfiaria no corpo aquele seu chambre ou mesmo uma camisola de dormir bem velha, calçaria um par de chinelos e diria a Phyllis para servir o ensopado de galinha em uma bandeja, diante da lareira na sala de visitas.

Ela também se serviria de um generoso uísque com soda. Em sua casa de Riverview House, a bebida noturna de Molly era um só cálice de sherry, saboreado vagarosamente, porém a permanência com Biddy fora uma verdadeira revelação, e ela tomara uísque, como todos eles, após uma tarde fria fora de casa ou a aborrecida e fragorosa visita à pantomima. Agora, a própria idéia de um uísque, quando se sentia tão cansada e abatida, era francamente tentadora. Molly refletiu por um momento se devia ou não. E se valia a pena o esforço necessário para ir até a sala de refeições, apanhar a garrafa de uísque, o sifão da soda e um copo. Por fim decidiu que, por motivos medicinais, um uísque era absolutamente essencial, e parou de debater a questão. Levantando-se da poltrona, foi preparar o drinque. Beberia um apenas, de modo que o fez bastante forte. De volta à lareira e novamente instalada em sua poltrona, tomou um delicioso, aquecedor e confortador gole. Em seguida, deixando o Pesado copo ao lado, pegou a carta do marido.

Enquanto Phyllis lidava com Jess, Judith tomou posse novamente de seu quarto, tirou da bagagem suas coisas para a noite e sua sacola felpuda. Depois abriu a cesta chinesa de vime que continha os presentes ganhos no Natal. Deixou tudo em cima de sua cômoda, a fim de que pudesse mostrar a Phyllis, quando ela terminasse com Jess. Também explicaria a ela quem lhe dera tudo aquilo. A nota de dez xelins do tio Bob foi guardada em uma gaveta particular que tinha uma pequena chave, e seu relógio colocado na mesinha ao lado da cama. Quando Phyllis enfiou a cabeça pela porta, Judith estava sentada à secretária, escrevendo seu nome na folha de abertura do novo diário.

— Deixei Jess vendo seu livro ilustrado — anunciou Phyllis. — Estará dormindo de novo, antes mesmo de saber onde está.

Entrou no quarto e acomodou-se na cama de Judith, que ela própria havia preparado para a noite, quando estivera ali para fechar as cortinas.

— Agora, mostre-me o que ganhou.

— Seu presente foi o melhor, Phyllis. Você foi muito gentil.

— Assim, pelo menos você não terá que ficar me pedindo uma tesoura o tempo todo. Vai precisar escondê-la de Jess. Quero agradecer a você por aqueles sais de banho. Gostei mais de "Noite em Paris" do que de "Papoula da Califórnia". Usei um deles ontem à tarde, quando tomei banho. Depois me senti como uma artista de cinema. E agora, vamos dar uma olhada...

A inspeção durou algum tempo porque Phyllis, de natureza tão generosa, teve de verificar tudo minuciosamente e maravilhar-se ante tal esplendor.

— Veja só este livro! Você vai demorar meses para ler tudo! Coisa de adulto, a gente vê logo. E este macacão... tão macio! O seu diário! Com capa de couro, e você terá segredos para escrever nas páginas.

— Não foi muita generosidade de tia Louise, que já me tinha prometido uma bicicleta? Nunca esperei ganhar dois presentes.

— Oh, e o reloginho! Agora, não tem mais desculpa por descer tarde para o desjejum. O que ganhou de seu pai?

— Eu pedi a ele uma caixa de cedro, com fechadura chinesa, mas ainda não chegou.

- Oh, bem, vai acabar chegando. — Phyllis acomodou-se melhor na cama. — E agora... — disse, cheia de curiosidade — conte-me o que fez por lá.

Judith contou. Falou sobre a casa da tia Biddy.

- Eu estava ficando absolutamente congelada pelo frio, Phyllis. Nunca estive em uma casa tão fria, mas havia fogo aceso na lareira da sala de visitas e, de algum modo, isto não parecia importar muito, porque estávamos sempre nos divertindo demais) e sobre a pantomima, e a patinação, e tio Bob com seu gramofone, sua máquina de escrever e suas fotos tão interessantes, e sobre as festas e a árvore de Natal, e sobre a mesa do almoço de Natal, com a floreira no centro contendo azevinho e rosas do Natal, e sobre os apitos vermelhos e dourados, e as travessinhas prateadas cheias de bombons.

—Nossa! —exclamou Phyllis, com um suspiro de inveja. —Deve ter sido maravilhoso.

Isso fez Judith sentir-se um pouco culpada, pois tinha certeza de que o Natal de Phyllis havia sido bastante simples. O pai dela trabalhava nas minas, nos arredores de Saint Just, ao passo que sua mãe sempre de avental, dona de um busto generoso e de um também generoso coração, geralmente tinha um filho enganchado a um lado da cintura. Phyllis era a mais velha de cinco irmãos, e como eles todos se espremiam naquela casinha de pedra fazendo parede-e-meia com as casinhas dos lados, era um verdadeiro enigma. Certa vez, Judith fora com Phyllis à festa de Saint Just, apreciar o encontro de caçadores para a primeira caçada da estação, e depois disso tinham ido tomar chá na casa dela. Haviam comido bolinhos de açafrão e bebido chá forte, eles sete apinhados em torno da mesa da cozinha, enquanto o pai de Phyllis ocupava sua poltrona ao lado do fogão, bebendo chá em uma tigela para pudim e descansando as botas sobre o polido guarda-fogo de latão da lareira.

— E você, Phyllis? O que fez?

— Em realidade, não muita coisa. Minha mãe não se sentia bem, acho que estava gripada, de maneira que a maior parte do trabalho ficou para mim.

— Oh, sinto muito. E ela melhorou?

Já está em pé mas, bolas, com uma tosse danada.

— E você ganhou um presente de Natal?

— Ganhei. Uma blusa de minha mãe e uma caixa de lenços de Cyril.

Cyril Eddy era o namorado de Phyllis, também mineiro. Ela o conhecia desde que iam juntos para a escola, e namoravam desde então. Não estavam exatamente comprometidos, porém Phyllis ocupava-se em fazer um conjunto de paninhos de crochê para o enxoval. Ela e Cyril não se viam com freqüência, porque Saint Just ficava muito distante e ele trabalhava em turnos, mas, quando conseguiam encontrar-se, davam passeios de bicicleta ou sentavam-se na última fileira do cinema de Porthkerris, estreitamente abraçados. Phyllis tinha um retrato do namorado sobre a cômoda em seu quarto. Não era um rapaz atraente, porém ela assegurava a Judith que tinha sobrancelhas adoráveis.

— O que você deu para ele?

— Uma coleira para o seu cachorro. Ele ficou bem satisfeito. — Uma expressão maliciosa surgiu em seu rosto. — E então, conheceu algum rapaz interessante?

— Oh, Phyllis, claro que não!

— Não precisa falar nesse tom. Não seria nada demais.

— Quase todos os amigos da tia Biddy são adultos. Apenas na última noite é que apareceram dois tenentes jovens, para um drinque depois do jantar. Só que já era bastante tarde e eu fui logo para a cama, portanto, não conversei muito com eles. De qualquer modo — acrescentou ela, decidida a ser sincera — os dois estavam tão ocupados em dar atenção para tia Biddy, que nem olharam para mim...

— Não é uma coisa nem outra. É por causa da sua idade. Em mais dois anos, você será adulta, e os rapazes estarão à sua volta como moscas em torno de um pote de mel. Você os atrairá. —Phyllis sorriu. — Nunca se sentiu atraída por algum rapaz?

— Já falei que não conheço nenhum. Exceto... — ela hesitou.

— Continue. Conte para Phyllis.

— Quando viemos de Plymouth, havia um homem em nosso compartimento. Era médico, mas parecia incrivelmente jovem. Mamãe conversou com ele, e então ele me disse que a ponte de Saltash tinha sido construída por alguém chamado Brunel. Era um rapaz muito atraente. Eu não me incomodaria de conhecer alguém como ele.

— Talvez fique conhecendo.

- Não no Santa Úrsula.

Ninguém vai para um lugar desses a fim de conhecer rapazes, mas para aprender. E não torça o nariz por causa disso. Eu tive que abandonar a escola quando mais nova do que você, para começar a trabalhar. Não sei muito mais do que ler, escrever e fazer uma conta de somar. Quando terminar os estudos, você terá sido aprovada em exames e ganho prêmios. O único prêmio que já ganhei, foi por cultivar agrião em pedaços de flanela úmida.

Suponho que, com sua mãe doente e tudo o mais, você nem teve tempo de procurar outro emprego.

A verdade é que não tive coragem. Acho que, no fundo, é por não querer deixar vocês. Não se incomode, sua mãe já disse que vai ajudar, ela me dará uma boa referência. A questão é que não quero mais ficar tão longe de casa. Nos meus dias de folga, levo a maior parte do tempo pedalando a bicicleta até Saint Just. Eu não suportaria mais isso.

— Talvez alguém precise de uma empregada em Porthkerris.

— Isso já seria melhor.

— Você poderia conseguir um emprego muito mais vantajoso. Com outras pessoas na cozinha com quem conversar e tendo menos tarefas para fazer.

— Não sei. Não quero terminar como empregada faz-tudo para uma cozinheira de mau gênio e descarada. Prefiro fazer tudo sozinha, mesmo não sendo muito boa em massas e não conseguindo pegar o jeito do velho batedor de ovos. Sua mãe sempre diz...

Phyllis parou de repente. Phyllis esperou.

— O que há de errado?

— Engraçado... Ela não subiu para o banho. Olhe, já são seis e vinte! Não reparei que tinha ficado aqui sentada tanto tempo. Terá ela Pensado que ainda não acabei com Jess?

- Eu não sei.

Bem, desça como uma boa menina e diga para ela que o banheiro está Vazio. Não se incomode com a galinha ensopada, posso mantê-la aqecida até sua mãe estar pronta para comer. Coitada, provavelmente está recuperando o fôlego depois dessa viagem de trem, mas não é do feitio dela retardar o banho... — Phyllis ficou de pé. — É melhor eu descer e preparar aquelas batatas.

No entanto, depois que ela se foi, Judith demorou um pouco, colocando tudo nos lugares, alisando o edredom amarrotado e deixando o novo diário em cima da cômoda. A partir de primeiro de janeiro, escreveria nele diariamente, em sua melhor caligrafia. Agora, ela contemplou a folha em branco no início. Judith Dunbar. Pensou em colocar seu endereço, mas depois decidiu que não, porque em breve não teria um endereço adequado. Calculou que, quando terminasse de escrever no diário, seria dezembro de 1940. E ela estaria com dezenove anos. De algum modo, isto era um tanto aterrador, de modo que Judith guardou o diário em uma gaveta, penteou o cabelo e desceu rapidamente para o térreo, a fim de dizer para sua mãe que, caso se apressasse, teria tempo para um banho.

Ela irrompeu na sala de visitas.

— Mamãe, Phyllis disse que se você quiser to...

Não prosseguiu. Havia algo, sem a menor dúvida, obviamente errado. Molly estava sentada em sua poltrona diante do fogo, porém o rosto que virou para a filha estava transtornado pelo desespero, inchado e disforme pelas lágrimas. Havia um copo quase vazio em cima da mesa ao lado dela e, no chão, aos seus pés, espalhavam-se como folhas as dispersas páginas de papel de seda de uma carta, cobertas por uma letra miúda e apertada.

— Mamãe! — Instintivamente, Judith fechou a porta atrás dela. — O que foi?

— Oh, Judith!

Ela cruzou o tapete e ajoelhou-se ao lado da mãe.

— O que está acontecendo?

O horror de ver a mãe em lágrimas era pior do que qualquer coisa que ela lhe pudesse dizer.

— É uma carta do seu pai. Acabei de lê-la. Eu não agüento mais...

— O que houve com ele?

— Nada. — Molly passou no rosto um lenço já encharcado. — Acontece apenas que... não vamos mais ficar em Colombo. Ele está em um novo emprego... teremos de ir para Cingapura.

— E por que isso a faz chorar?

— Porque é outra mudança... assim que eu chegar lá, teremos de arrumar a bagagem novamente e tornar a viajar. Para um outro lugar estranho. E eu não conheço ninguém lá. Já era ruim o bastante voltar para Colombo, mas, afinal, eu tinha a minha própria casa... e agora será ainda mais distante... e eu nunca estive lá... e vou ter de... Oh, sei que estou sendo incoerente... —As lágrimas tornaram a correr de novo. — No entanto, de algum modo isto é como se fosse a última palha. Sinto-me tão cansada e há tanto por...

A esta altura ela chorava tanto, que não conseguia dizer mais nada. Judith a beijou. Sentiu o cheiro de uísque. Sua mãe nunca bebia uísque. Estendendo o braço, Molly deu um abraço desajeitado na filha.

— Estou precisando de um lenço limpo.

— Vou apanhar um.

Judith saiu da sala, correu até seu quarto e apanhou, na gaveta de cima da cômoda, um dos seus grandes e úteis lenços para a escola. Fechando a gaveta com força, ergueu os olhos e viu seu reflexo no espelho. Estava quase tão transtornada e ansiosa como sua lacrimosa mãe no andar de baixo. E isto era algo que de nada adiantaria. Uma delas precisava ser forte e sensata, pois do contrário tudo se espatifaria. Respirou fundo, uma ou duas vezes, depois procurou compor-se. O que mesmo a tia Biddy havia dito? Você precisa aprender a precipitar situações, não deixar, simplesmente, que elas aconteçam em sua vida. Bem, isto de agora era uma situação, se é que já houvera alguma. Empinando os ombros, ela desceu para o térreo.

Descobriu que Molly também fizera um esforço semelhante, pois juntara a carta espalhada no chão e inclusive esboçou um trêmulo sorriso, quando a filha entrou na sala.

—Oh, meu bem, obrigada... —Ela aceitou o lenço limpo e assoou o nariz. — Eu sinto muito. Não sei o que deu em mim. Na realidade, este foi um dia dos mais exaustivos. Acho que estou cansada...

Judith sentou-se na banquetinha ao lado da lareira.

— Posso ler a carta?

— É claro — respondeu sua mãe, entregando a ela as folhas escritas.

Muito querida Molly,

A caligrafia de seu pai era elegante e uniforme, muito preta. Ele sempre usava tinta preta para escrever.

- Quando esta chegar às suas mãos, o Natal já deverá ter passado. Espero que você e as meninas tenham tido momentos felizes. Há novidades importantes para contar-lhe. O presidente me chamou ontem pela manhã em seu escritório e disse que desejam transferir-me para Cingapura, como Gerente de Companhia para a Wilson-McKinnon. Trata-se de uma promoção, isto querendo dizer um salário melhore também outras mordomias, como uma casa maior, carro da companhia e motorista. Espero que se sinta tão entusiasmada e satisfeita como eu. O novo trabalho só começará um mês depois que você chegar, a fim de que possa ajudar na preparação de nossa mudança e na arrumação da casa para o homem que me virá substituir. Depois disso, nós três viajaremos juntos para Cingapura. Sei que sentirá falta de Colombo — da mesma forma que eu — e de toda a beleza desta ilha encantadora, porém acho excitante pensar que viajaremos juntos, e que juntos montaremos o nosso novo lar. O posto que irei ocupar encerra muito mais responsabilidade e provavelmente exigirá bem mais de meus esforços, mas acredito que estou à altura de ocupá-lo e que sou capaz de torná-lo um sucesso. Estou ansioso por sua chegada e para conhecer Jess. Espero que ela não me estranhe demais, logo aceitando a idéia de que sou seu pai.

Diga ajudith que seu presente de Natal estará chegando aí a qualquer dia. Espero que todas as providências em relação ao Santa Úrsula estejam acontecendo segundo o que foi planejado, e que a despedida não seja dolorosa demais para você.

Há dias, estive com Charlie Peyton no clube, e fiquei sabendo que Mary espera um novo bebê para abril. Eles desejam oferecer-nos um jantar...

A carta continuava. Judith não precisou ler mais. Dobrou as folhas e as devolveu à mãe.

parecem boas notícias. Ótimo para papai, não? Acho que você não devia ficar triste demais com isso.

Não é que eu tenha ficado triste. Estou apenas... frustrada. Sei que é egoísmo de minha parte, porém não sinto vontade de ir para Cingapura. Lá é muito quente e demasiado úmido. Além disso, uma nova casa novos criados... ter de fazer novos amigos... tudo isso. É demais...

— Oh, mas não terá de fazer tudo isso sozinha. Papai estará lá com você...

— Eu sei...

— Será excitante.

—Não quero ficar excitada. Quero que tudo esteja calmo e tranqüilo, sem mudanças. Eu quero um lar, não mudanças o tempo todo, para logo ter que desmontar tudo. E com todos exigindo coisas de mim, alegando que faço tudo errado, quando chego a fazer algo, além de saber-me incompetente e incapaz...

— Ora, mas você não é!

— Biddy acha que sou uma tola. Louise também.

— Oh, não dê tanta importância a elas...

Molly tornou a assoar o nariz e tomou mais um gole de seu uísque.

— Eu não sabia que você bebia uísque.

— E não costumo mesmo beber. Agora, no entanto, senti necessidade de uma dose. Talvez por isso é que tenha chorado. Acho que me embriaguei.

— Pois eu não acho.

Sua mãe sorriu acanhada, tentando zombar de si mesma. Então, disse:

Lamento sinceramente o que aconteceu esta manhã. Estou falando daquela discussão idiota que eu e Biddy tivemos. Não sabia que você estava ouvindo, mas, mesmo que soubesse, nunca deveríamos ter tido um comportamento tão infantil.

Não fiquei ouvindo atrás da porta.

Eu sei disso. Espero que não me tenha achado mesquinha e egoísta em relação a você. Quero dizer, sobre Biddy sugerindo que você fique com ela e eu me mostrando contrária. Acontece apenas que, Louise, bem, é verdade que ela não aprova Biddy, e isso apenas me pareceu mais uma complicação a enfrentar... Na verdade, talvez não me tenha saído muito bem em minhas explicações.

Judith respondeu, com sinceridade:

— Nada disso me importa, em absoluto. — Então acrescentou, achando que o momento era tão oportuno quanto qualquer outro para dizê-lo: — Não me importa nem um pouco se visitarei tia Biddy ou ficarei com tia Louise; aliás, nem uma coisa nem outra importam para mim. O que realmente me importa é você nunca me comunicar o que está para acontecer. É você nunca se preocupar em perguntar o que eu quero.

— Foi o que Biddy disse. Pouco antes do almoço, ela voltou ao assunto. E eu me senti muito culpada por talvez ter deixado você demasiadamente por conta própria, e fazer planos a seu respeito sem antes consultá-la. Planos sobre a escola e tudo o mais... sobre tia Louise... E agora, acho que é muito tarde para consertar as coisas...

— Tia Biddy nunca devia ter censurado você. E não é tarde demais...

— Oh, mas há tanto por fazer... — Ela começava a afligir-se novamente. — Deixei tudo para a última hora, nem mesmo comprei seu uniforme, sem falar que ainda há o caso de Phyllis, as malas por arrumar, e tudo o mais...

Molly parecia tão fragilizada, tão indefesa, que Judith subitamente se sentiu muito protetora, organizada e forte.

— Nós ajudaremos — disse para a mãe. — Eu ajudarei. Faremos tudo isso juntas. E quanto àquele horrível uniforme da escola, por que não cuidamos disso amanhã? Aonde teremos de ir?

— A Casa Medways, em Penzance.

— Pois muito bem, nós iremos à Medways e encerraremos isso de uma vez!

— Bem, mas ainda temos que comprar bastões de hóquei, Bíblia, pastas escolares...

— Faremos tudo isso amanhã mesmo. Só voltaremos quando não houver mais nada pendente. Iremos de carro. Você terá de ser corajosa e dirigir, porque certamente não conseguiremos trazer tudo para casa, se viermos de trem.

No mesmo instante, Molly pareceu um pouco menos desolada. Era como se apenas tomar uma decisão por ela a deixasse mais animada.

- Tudo bem —concordou, e refletiu na idéia. —Deixaremos Jess com Phillys, o dia inteiro. E faremos uma espécie de passeio, só nós Ambas. Almoçaremos no "The Mitre", como prêmio. Então, já o teremos merecido.

Além disso — declarou Judith, com toda firmeza — também iremos de carro até o Santa Úrsula, para que eu dê uma olhada no lugar. Não posso ir para uma escola que nunca vi antes...

— Oh, mas estamos em época de férias. Não encontraremos ninguém por lá.

Melhor ainda. Daremos uma volta pelo lugar e espiaremos através das vidraças. Bem, já que está tudo decidido, anime-se! Sente-se melhor agora? Vai querer um banho? Ou prefere ir logo para a cama e que Phyllis lhe leve o jantar em uma bandeja?

Molly balançou a cabeça.

—Não. Nada dessas tentações adoráveis. Agora estou bem. Tomarei meu banho mais tarde.

— Nesse caso, vou dizer a Phyllis que comeremos sua galinha ensopada o quanto antes.

— Espere só um momento. Não quero que Phyllis perceba que estive chorando. Pareço ter chorado?

— Não. Está apenas com o rosto um pouco corado por causa do fogo.

Sua mãe inclinou-se para a frente e beijou-a.

— Obrigada. Você fez com que me sentisse outra. Foi muita bondade sua.

— Não foi nada. — Judith tentou pensar em algo tranqüilizador Para dizer. — Você apenas estava nervosa.

Molly abriu os olhos e enfrentou o novo dia. Mal havia claridade e ainda não era hora de levantar-se, de modo que permaneceu aquecida envolta nas cobertas, tomada de gratidão por ter dormido a noite inteira sem sonhos e por adormecer assim que sua cabeça encostara no travesseiro, sem interrupção e sem que Jess a perturbasse. Por si só, já constituía um pequeno milagre, porque Jess era uma criança lgente. Quando não acordava de madrugada e gritava pela mãe, então abandonava a própria cama terrivelmente cedo, para fazer a difícil escalada para a de Molly.

Parecia, no entanto, que ela estava tão cansada quanto a mãe e, já sendo sete e meia, ainda não havia o menor sinal ou som da parte dela. Talvez fosse devido ao uísque, pensou Molly. Talvez eu devesse beber uma dose todas as noites, antes de dormir. Ou talvez fosse o fato de que as assoberbantes ansiedades e apreensões da véspera houvessem sido sublimadas por sua exaustão física. Fosse lá o que fosse, tinha funcionado. Ela havia dormido. Sentia-se revigorada, renovada, pronta para o que quer que o dia trouxesse.

E o que aquele dia trazia era a aquisição do uniforme escolar de Judith. Molly saiu da cama, vestiu o robe, chegou à janela e puxou as cortinas. Viu uma manhã pálida e nevoenta, ainda não de todo clara, e muito quieta. Abaixo de sua janela, a enladeirada horta em terraços permanecia sossegada e úmida, enquanto os maçaricos grasnavam na margem, além da estrada de ferro. O céu, contudo, estava claro, e ocorreu a Molly que talvez a manhã resultasse em um daqueles dias que a primavera costuma roubar de um inverno na Cornualha, quando tudo fica imbuído do senso de coisas desenvolvendo-se, irrompendo através da terra escura e macia; brotos iniciando o desabrochar e pássaros de retorno começando a cantar. Ela pretendia pôr de parte aquele único dia inteiro, todo ele, uma entidade em si, passado com sua filha mais velha. Ao recordá-lo, ele seria nítido e vívido, como uma foto perfeitamente emoldurada, sem qualquer intrusão perturbando a imagem.

Afastando-se da janela, Molly sentou-se diante de seu toucador e, de uma das gavetas, tirou o grosso envelope de papel pardo contendo a lista de roupas para o Santa Ursula e uma verdadeira pletora de instruções destinadas aos pais:

O termo letivo da Páscoa começa a quinze de janeiro. Solicitamos às internas que não cheguem depois das 14:30 desse dia. Por favor, assegure-se de que o Atestado de Saúde de sua filha foi assinado. A secretária da srta. Catto as receberá no Saguão principal, a fim de mostrar, à senhora e sua filha, o dormitório que ela ocupará. Caso a senhora deseje, a srta. Catto sentirá prazer em oferecer a qualquer mãe de aluna um chá em seu estúdio, das 15:30 em diante. É proibido às internas levarem quaisquer doces ou alimentos para seus respectivos dormitórios. A cota de doces deverá ser de um quilo por termo letivo, porém os mesmos terão de ser entregues à Inspetora. POR FAVOR, certifique-se de que todos os sapatos e botas estejam claramente marcados com o nome de sua filha... (E etc, etc).

Segundo parecia, as normas e regulamentos eram tão severos para pais como para seus pobres filhos. Ela pegou a lista de roupas e passou os olhos pelas suas três páginas. "Os itens assinalados com asterisco podem ser adquiridos na loja autorizada, a Medways, Tecidos e Artigos Esportivos, Penzance." Quase tudo parecia ter um asterisco. Regulamentar isso, regulamentar aquilo. Oh, ainda bem, se pudessem comprar tudo na mesma loja, então toda a trabalheira não tomaria muito tempo. E aquilo tinha que ser feito.

Recolocou os papéis no envelope e foi à procura de Jess.

Durante o café da manhã, Molly deu colheradas de ovo quente a Jess (uma para papai, outra para Golly) — o espantalho que a menina nunca largava — e aproveitou para dar a notícia de que ela seria "abandonada" durante aquele dia.

— Não quero ficar em casa! — protestou Jess.

— É claro que quer. Vai ter um dia formidável com Phyllis.

— Eu não quero...! — O lábio inferior de Jess projetou-se para a frente, como uma prateleira.

— Você e Phyllis vão poder levar Golly para passear, e comprar jujubas de frutas na sra. Berry...

Está subornando Jess — observou Judith, do outro lado da mesa.

Antes isso do que suportar um berreiro...

— Eu não quero!

Parece que não está adiantando — disse Judith.

- Ora, Jess, você adora jujuba de frutas...

- EU NÃO QUERO...!

As lágrimas escorreram pelo rosto de Jess, e sua boca ficou contorcida. Ela começou a gritar. Judith enervou-se:

- Oh, céus, agora ela vai...

Antes que terminasse de falar, Phyllis chegou com uma bandeja de torradas quentes e, ao deixá-la na mesa, disse apenas:

— Ora vejam, o que está acontecendo aqui?

Tomando nos braços a menina aos gritos, levou-a com firmeza para fora da sala e fechou a porta ao sair. Ao chegar à cozinha, os gritos de Jess já haviam perdido a intensidade.

— Graças a Deus por isso — comentou Judith. —Agora podemos terminar nosso café da manhã em paz. E você evite despedir-se dela, mamãe, pois do contrário vai começar tudo outra vez.

Molly foi forçada a admitir que era a pura verdade. Bebendo o café, olhou para Judith que, naquela manhã, havia descido com o cabelo penteado de outro modo, repuxado do rosto e preso por uma fita azul-marinho. Molly não tinha certeza de que o penteado assentava bem. Deixava sua filha mais velha muito diferente, ela não era mais a garotinha de antes, e as orelhas, agora à mostra, nunca tinham sido seus traços mais atraentes. Entretanto, ficou calada e sabia que Biddy teria aprovado seu diplomático silêncio.

— Acho melhor irmos andando assim que terminarmos o café — disse. — Do contrário, não haverá tempo para nada. Devia ver o tamanho da lista de roupas! Além disso, tudo terá que ser marcado com etiquetas contendo o seu nome. Imagine como será tedioso costurar todas elas com linha e agulha! Talvez Phyllis me ajude...

— Por que não usamos a máquina de costura?

— É uma excelente idéia. Será um trabalho muito mais rápido e limpo. Eu nem tinha pensado nisso!

Meia hora mais tarde, estavam prontas para ir. Molly armou-se da lista de instruções, bolsa e talão de cheques. Vestiu-se prudentemente para o caso de chover — já que nunca se podia ter certeza — com sapatos fechados, impermeável e seu chapéu vermelho-escuro. Judith vestiu sua velha capa de chuva azul-marinho e enrolou no pescoço um cachecol axadrezado. A capa estava muito curta, e suas pernas, finas e compridas, pareciam intermináveis.

— Está levando tudo o que é preciso? — perguntou para Molly.

—Acho que sim.

As duas pararam para ouvir, mas da cozinha vinham apenas sons satisfeitos, a voz aflautada de Jess em conversa com Phyllis, que provavelmente estaria preparando algum creme ou varrendo o chão.

- Não podemos fazer nenhum ruído, ou ela quererá ir conosco. Assim, as duas saíram furtivamente pela porta da frente e, na ponta dos pés, foram até o galpão de madeira que servia de garagem. Judith abriu as portas, e Molly subiu cautelosamente para trás do volante do nueno Austin Seven. Após uma ou duas falsas partidas, conseguiu colocar o motor em movimento, forçar a mudança para ré e sair aos arrancos do galpão. Judith sentou-se ao seu lado e partiram. Molly precisou de alguns momentos para controlar os nervos. Cruzaram a aldeia e já tinham rodado um bom pedaço de estrada, quando finalmente acelerou e chegou aos cinqüenta quilômetros por hora.

— Não consigo imaginar por que você tem tanto medo de dirigir. Faz isso muito bem.

— É porque não pratiquei o suficiente. Em Colombo sempre tínhamos um motorista.

Continuaram rodando e logo enfrentaram um trecho algo nevoento, exigindo a ação dos limpadores de pára-brisa, mas havia poucos carros na estrada (felizmente, disse Judith para si mesma), e Molly começou a relaxar um pouco. Houve um momento em que um cavalo puxando uma carroça de nabos pareceu sair do nevoeiro diante do carro, mas ela conseguiu enfrentar a emergência, apertando a buzina, aumentando um pouco a velocidade e ultrapassando o rangente veículo.

— Formidável — disse Judith.

Passado pouco tempo, o nevoeiro dissipou-se tão rapidamente como tinha surgido, e o outro mar surgiu à vista, de um azul-perolado ao fraco sol matinal. Puderam ver a imponente curva de Mount's Bay, e o Monte Saint Michael como um castelo de conto de fadas no alto de seu rochedo. A maré estava alta, de maneira que o monte ficava isolado pela água. Depois a estrada prosseguiu entre a linha do trem e as suaves ondulações das terras de fazendas, pequenas lavouras verdes e brócolis, e a cidade apareceu mais adiante, com o porto apinhado e barcos de pesca. Passaram por hotéis fechados para o inverno e pela estação ferroviária. Em seguida, a Rua do Mercado Judeu elevou-se à frente do carro, até a estátua de Humphrey Davy com sua lâmpada de segurança dos mineiros, e a alta cúpula do prédio do Banco Lloyds. Molly estacionou o carro no Greenmarket, perto da loja de frutas-e-vegetais. Fora de sua porta havia baldes de estanho cheios dos primeiros e delicados ramos de narcisos precoces e, do interior, flutuavam no ar os cheiros de terra, de alho-poró e de pastinagas. As calçadas estavam tomadas por compradores e mulheres do campo que carregavam pesadas cestas, reunidas em pequenos grupos para trocar mexericos.

— O tempo agora ficou maravilhoso, não?

— E a perna de Stanley, como vai?

— Inchou como um balão.

Seria interessante demorar ali e ficar ouvindo, mas Molly já começava a andar, não querendo perder um só momento, e cruzava a rua, encaminhando-se para a Casa Medways. Judith a seguiu, correndo para alcançá-la.

Era um estabelecimento antiquado e sombrio, com vitrines exibindo trajes para uso ao ar livre, tweeds, lãs, chapéus e capas de chuva para damas e cavalheiros. Todo o interior era forrado de madeira escura e cheirava a aquecedores de parafina, impermeáveis de borracha e desatualizados empregados. Um deles, parecendo ter a cabeça pregada ao corpo pelo colarinho alvo e engomado, aproximou-se respeitosamente das recém-chegadas.

— Posso ajudá-la em alguma coisa, senhora?

— Oh, sim, obrigada. Temos que comprar uniformes... para o Santa Úrsula.

— Primeiro andar, senhora. Se quiser subir pela escada...

— Para onde mais ele desejaria que fôssemos pela escada? — cochichou Judith, enquanto subiam.

— Fique quieta, ele pode ouvi-la.

A escada era ampla e majestosa, com um portentoso corrimão de mogno polido que, em outras circunstâncias, seria perfeito para deslizar-se por ele. O departamento infantil ocupava todo o primeiro andar e era espaçoso, com um comprido e lustroso balcão a cada lado, e janelas altas abrindo-se para a rua. Desta vez foi uma empregada que se aproximou delas. Usava um recatado vestido preto e era bastante idosa. Caminhava como se os pés lhe doessem, e provavelmente doíam, após anos trabalhando em pé.

— Bom-dia, senhora. Em que posso ajudá-la?

—Bem... — Molly pegou a lista de roupas em sua bolsa. —Trata-se do enxoval do Santa Úrsula. Para minha filha.

— Que maravilhoso, não? Está indo para o Santa Úrsula! De que precisam?

De tudo — disse Molly.

— Isso demora algum tempo.

Assim, foram providenciadas duas cadeiras para elas. Após sentar-se Molly tirou as luvas, apanhou sua caneta-tinteiro e preparou-se para a enorme compra.

Por onde gostaria de começar, senhora?

Pelo alto da lista, imagino. Um capote verde de tweed.

— Esses capotes são feitos de tecido excelente. Trarei o capote e também a saia. São de uso nos domingos. Para ir à igreja...

Sentada de costas para o balcão, Judith ouvia as vozes delas, mas deixara de prestar atenção, porque agora fora atraída por algo infinitamente mais fascinante. No outro lado do departamento — e também no outro balcão — uma segunda mãe e sua filha faziam compras como elas, porém não pareciam encarar aquilo como uma coisa séria e sim uma espécie de brincadeira, uma vez que ambas conversavam e riam bastante. Além disso, a funcionária que as atendia era jovem, de muito boa aparência, e as três agiam como se aquele fosse o maior divertimento de suas vidas. Aquilo era extraordinário, porque as duas compradoras também estavam adquirindo o enxoval completo para o Santa Úrsula. Ou, mais precisamente, já o tinham adquirido e chegavam ao fim da maratona, pois os imaculados montes de peças, em sua maioria naquele horrendo verde-garrafa, estavam sendo embalados, primeiro envoltos em roçagante papel de seda branco e depois acondicionados em enormes caixas de papelão para vestidos, as quais eram firmemente amarradas com metros de forte barbante branco.

— Se preferir, posso mandar levar em sua casa, sra. Carey-Lewis. O furgão de entregas estará na sua área, na próxima quinta-feira.

— Não é necessário, nós mesmas levaremos. Mary quer costurar as etiquetas com os nomes e, além disso, eu vim de carro. Precisarei aPenas que alguém daqui me faça a gentileza de levar os embrulhos até a rua, mais abaixo, e de colocá-los no porta-malas do carro.

— Chamarei o jovem Will na sala de estoques. Ele a ajudará. Elas estavam sentadas de costas para Judith, mas isso não fazia grande diferença, porque havia um enorme espelho na parede contrária e, de certo modo, olhar para os rostos refletidos era até melhor porque, com alguma sorte, ela podia espiar sem ser observada.

O Santa Ursula. Então, aquela garota ia para o Santa Úrsula. Isso levantava possibilidades e tornava o escrutínio de Judith mais aguçado e muito mais pessoal. Avaliou a idade da outra em cerca de doze, talvez treze anos; muito magra, de pernas compridas e peito chato como o de um garoto. Usava gastas sandálias Clark, meias até os joelhos, uma saia de xadrez pregueada e uma suéter azul-marinho, muito velha, que parecia ter pertencido um dia a algum parente homem e de corpo muito mais robusto. Era uma peça terrivelmente puída, com a bainha despencada e cotovelos cerzidos. Entretanto, nada disso importava, porque ela era tão sensacionalmente bonita e atraente, com um pescoço comprido e esguio, juntamente com escuros cabelos anelados, tão curtos, que a Judith pareceu uma cabeça-flor sobre uma haste, talvez um desgrenhado crisântemo. Abaixo de grossas sobrancelhas escuras, os olhos eram azul-violeta, a pele tinha a cor do mel (ou talvez a tonalidade e constituição de um perfeito ovo castanho) e, quando sorria, seu sorriso era o de um garoto travesso.

Ela se sentava apoiando os cotovelos em cima do balcão, tinha os ombros ossudos encurvados e torcera as pernas finas em torno das pernas da cadeira. Era desgraciosa, mas sem deixar de ter sua graciosidade, porque havia uma falta absoluta de autoconscientização por parte dela, uma tão arrogante confiança, que qualquer pessoa saberia, de maneira instintiva, que ninguém já lhe dissera, em toda a sua vida, que era desajeitada, obtusa ou enfadonha.

O último nó foi dado, e o barbante cortado com uma enorme tesoura.

— Como irá pagar esta manhã, sra. Carey-Lewis?

— Oh, ponha na minha conta, fica mais simples assim.

— Mamãe. Sabe que papai lhe disse que pagasse tudo na hora, porque você sempre atira contas na cesta de papéis.

Houve mais risadas das três.

— Querida, você não devia revelar meus segredos.

A voz da sra. Carey-Lewis era grave e cheia de divertimento, sendo difícil imaginar-se que ela pudesse ser a mãe de alguém. Parecia mais uma atriz de teatro ou artista de cinema, talvez uma encantadora irmã mais velha, até mesmo uma animada tia. Qualquer coisa, menos mãe.

Com ossos miúdos e muito esbelta, seu rosto possuía a palidez da porcelana, cóm sobrancelhas finas e arqueadas, juntamente com uma boca escarlate. O cabelo era de um dourado cor de trigo, sedosamente liso com um penteado simples que nada tinha a ver com a moda, mas sim com estilo. Usava... e isto era particularmente outré... calças compridas. Slacks, como eram chamadas. De flanela cinza, justas em torno das ancas estreitas e depois alargando-se até os tornozelos, como calças de um estudante de Oxford. Sobre os ombros fora jogado um curto casaco de peles castanho-escuras, sendo a peça mais macia e maleável que se pudesse imaginar. Uma das mãos de unhas vermelhas pendia ao lado do corpo, segurando frouxamente as voltas de uma correia escarlate de couro, cuja outra extremidade se prendia a uma imóvel e peluda almofada creme.

— Bem, tudo feito, suponho. — Ela enfiou as mãos nas mangas do casaco de peles e, ao fazê-lo, deixou a correia cair. — Vamos indo, querida, temos que ir embora. Não demorou nem a metade do que temíamos. Agora tomaremos um café e comprarei para você um sorvete ou um pedaço de bolo. Ou qualquer coisa igualmente saborosa. Não se sentindo mais tolhida, a peluda almofada do chão resolveu voltar à vida e ficou em pé sobre quatro patas aveludadas, bocejou escancaradamente e virou para Judith um par de olhos escuros e bulbosos, incrustados em uma cara achatada como se fossem pedras preciosas. Acima de suas costas enrolava-se uma cauda emplumada. Após bocejar, sacudiu-se, farejou um pouco, a cabeça pendida sobre o pequeno queixo entreaberto e então, para delícia de Judith, começou a caminhar para ela através do carpete, com grande dignidade e arrastando atrás de si a correia vermelha, como se fosse uma capa da realeza.

Um cão. Judith adorava cães, mas por numerosas e perfeitament razoáveis razões, nunca lhe fora permitido ter um. Aquele era um Pequinês. Irresistível. Por um momento, tudo o mais foi esquecido.

Quando o cãozinho se aproximou, ela deslizou da cadeira e agachou-se para afagá-lo.

Olá — disse. ousou a mão sobre a cabeça macia e arredondada, e foi como tocar cahsmere. O pequinês ergueu o focinho para ela e tornou a farejar. Judith escorregou os dedos para baixo da mandíbula do animal e friccionou docemente seu pescoço peludo.

— Pekoe! O que está fazendo? — Sua dona veio buscá-lo, e Judith levantou-se, tentando não parecer embaraçada. — Ele odeia fazer compras — disse a sra. Carey-Lewis — mas não gostamos de deixá-lo sozinho, dentro do carro. — Inclinando-se, ela ergueu a correia, e Judith aspirou uma leve onda de seu perfume, adocicado e pesado como a fragrância de recordadas flores nos jardins de Colombo, as flores do templo, que apenas soltavam seu perfume em plena escuridão, depois que o sol se punha. — Obrigada por ser gentil com ele. Gosta de pequineses?

— Gosto de todos os cães.

— Ele é muito especial. Um cão-leão. Não é mesmo, meu querido? Os olhos dela eram de um hipnotizante e intenso azul, orlados por fartos cílios negros. Não pestanejavam. Atordoada pelo impacto daquelas pupilas, Judith ficou apenas olhando para a mulher, pensando em alguma coisa para dizer. Entretanto, a sra. Carey-Lewis sorriu, como se compreendesse o que ocorria, e deu meia-volta para ir embora. Movia-se como uma rainha, com seu cão, sua filha e a funcionária da loja cambaleando ligeiramente pela pilha de caixas, em uma procissão atrás dela. Ao passar por Molly, ela parou um instante.

— Também está providenciando a ida de sua filha para o Santa Ursula?

Apanhada desprevenida, Molly sobressaltou-se um pouco.

— Sim. Sim, de fato estou.

— A senhora já viu, em toda a sua vida, roupas mais horrorosas? — perguntou ela, risonha.

Sem esperar resposta, ergueu o braço em um vago gesto de despedida e guiou seu pequeno grupo para a escada, e lá sumiu de vista.

Elas viram-na afastar-se. Por um momento, ninguém disse nada. A partida do grupo deixou para trás uma espécie de vazio, um extraordinário vácuo. Era como se uma luz tivesse apagado ou o sol se escondesse atrás de uma nuvem. Ocorreu a Judith que provavelmente isto sempre acontecia quando a sra. Carey-Lewis se retirava de um aposento. Ela levava consigo o seu encanto, deixando apenas monotonia atrás de si

Foi Molly quem rompeu o silêncio. Ela pigarreou.

- Quem era ela?

Ela? É a sra. Carey-Lewis, de Nancherrow.

- Onde fica Nancherrow?

Mais além de Rosemullion, na estrada de Land's End. É uma propriedade maravilhosa, bem junto ao mar. Estive lá uma vez, na época das hortênsias. Na excursão da escola dominical. Fomos de ônibus especial, tivemos balões, um chá muito bem servido, e nos divertimos muitíssimo. Posso lhe garantir que nunca vi jardins como aqueles.

— E aquela é a filha dela?

—Sim, é Loveday. A filha caçula. Ela tem mais dois filhos, porém são quase adultos. Uma moça e um rapaz.

— Ela já tem filhos tão crescidos? — perguntou Molly, incrédula.

— Olhando para ela, ninguém acreditaria, não é mesmo? Esbelta como uma mocinha e sem uma ruga no rosto!

Loveday. Ela se chamava Loveday Carey-Lewis. Judith Dunbar soava como alguém caminhando pesadamente, arrastando os pés, um à frente do outro, mas Loveday Carey-Lewis era um nome maravilhoso, leve como o ar, como borboletas em uma brisa de verão. Ninguém poderia ser ignorada, tendo semelhante nome.

— Ela vai para o Santa Ursula como interna? — perguntou Judith à senhora do sombrio vestido negro.

—Não, acho que não. Talvez interna semanalmente, acredito, indo em casa nos fins de semana. Parece que o Coronel e a sra. Carey-Lewis mandaram-na para uma grande escola perto de Winchester, mas ela ficou interna apenas meio período e depois fugiu. Tomou sozinha o trem para casa e disse que não voltava mais para a escola, porque sentia saudades da Cornualha. Então, eles preferiram enviá-la para o Santa Ursula.

Ela me parece um tanto mimada — disse Molly.

— Sendo a caçula, sempre lhe fizeram as vontades, a vida inteira.

— Sim — disse Molly, parecendo pouco à vontade. — Compreendo. - Já era hora de voltar ao que a trouxera ali. — Bem, e agora, o que levaremos? Blusas. Quatro de algodão e quatro de seda. E, Judith, vá até a sala de provas e experimente a túnica para ginástica.

Por volta das onze horas tudo já fora feito e elas podiam ir embora da Casa Medways. Molly preencheu e assinou o enorme cheque, enquanto as pilhas de peças do enxoval do colégio eram dobradas e guardadas em caixas. Para elas, no entanto, não houve a oferta de uma entrega em casa e nem a sugestão de que algum funcionário levasse as compras até seu carro. Talvez, pensou Judith, ter uma conta na Medways tornasse a pessoa importante, infundindo respeito e até uma espécie de servilismo. Não obstante, por atirar todas as suas contas na cesta de papéis, a sra. Carey-Lewis não devia ser uma cliente particularmente bem-vinda. Não, tudo acontecia simplesmente por ela ser quem era, a sra. Carey-Lewis de Nancherrow, incrivelmente importante e bela. Molly poderia ter conta em uma dúzia de lojas e, por mais pontualmente que pagasse suas compras, nunca seria tratada, por pessoa alguma, como se pertencesse à realeza.

Dessa maneira, carregadas como burros de carga, elas mesmas levaram as caixas até o Greenmarket, satisfeitas em largá-las no assento traseiro do Austin.

— Foi uma boa coisa não termos trazido Jess — observou Judith, batendo a porta com força — Não haveria nenhum lugar para ela sentar.

Tinham encerrado sua visita à Casa Medways, mas de maneira alguma terminado. Ainda faltava visitar a loja de calçados e a esportiva (um bastão de hóquei e caneleiras são essenciais para o período letivo da Páscoa); teriam que ir à papelaria (um bloco de papel de cartas, lápis, uma borracha, um conjunto para geometria e uma Bíblia) e ao seleiro (uma pasta com artigos para escrita). Elas viram inúmeras pastas mas, naturalmente, a que Judith realmente queria custava quatro vezes mais do que as outras.

— Você não gostaria desta, com zíper? — perguntou Molly, sem muita esperança.

— Não acho que seja grande o bastante. Quanto a esta aqui, até parece uma pasta de executivo. Tem bolsos no lado de fora para a gente colocar coisas e um livrinho de endereços que é uma graça. Veja! tem fechadura com chave. Assim, posso manter minhas coisas secretas. Posso guardar nela o meu diário para cinco anos e...

Assim, finalmente foi escolhida a pasta de executivo. Quando saíam do seleiro, Judith disse para sua mãe:

- Foi muita bondade sua. Sei que é uma pasta cara, mas se eu cuidar bem dela, poderá durar a vida inteira. E nunca tive um livrinho de endereços só meu. Será incrivelmente útil.

Voltaram mais uma vez ao Greenmarket, para deixarem pacotes do carro. A essa altura já era meio-dia e meia, de modo que foram caminhando pela Chapei Street até o restaurante "The Mitre", onde almoçaram esplendidamente rosbife, pudim do Yorkshire, couve-de-bruxelas e batatas assadas com molho. Para sobremesa tiveram charlote de maçãs e creme da Cornualha. E cada uma bebeu um copo de cidra. Enquanto pagava a conta, Molly perguntou:

- O que você quer fazer agora?

— Vamos ao Santa Ursula dar uma olhada.

— É realmente o que você quer?

— É.

Assim, elas retornaram ao carro, entraram e rodaram através da cidade, saindo na direção contrária, onde as últimas casas rareavam e começava o campo. Internaram-se por uma estrada lateral que subia uma colina e, no alto, chegaram a dois portões no lado esquerdo. Um quadro de avisos dizia COLÉGIO SANTA ÚRSULA — PROPRIEDADE RIGOROSAMENTE PRIVADA, porém não deram importância ao aviso e, cruzando os portões, seguiram por uma alameda marginada de amplas cercaduras gramadas e maciços de rododendros tão altos como árvores de grande porte. Não era uma alameda extensa, e o prédio erguia-se, em seu final, com um trecho forrado de cascalho diante de sua imponente porta principal. Havia dois pequenos carros parados ao pé da escada que conduzia à entrada, mas, fora isso, parecia não haver ninguém por ali.

—Acha que devemos tocar e deixá-los saber que estamos aqui? — Perguntou Molly.

Ela sempre tivera receio de invadir terrenos privados, temendo que alguma irada figura aparecesse para repreendê-la.

Não, nada disso. Se alguém perguntar o que estamos fazendo, diremos simplesmente que...

Ela olhava para o prédio e viu que a parte principal era bastante antiga, com peitoris de pedra nas janelas e uma vetusta trepadeira escalando as paredes de granito. Entretanto, além desta edificação, havia uma ala muito mais nova e moderna, com fileiras de janelas e, na extremidade mais distante, um arco de pedra levando a um pequeno pátio quadrangular.

Mãe e filha caminharam, seus passos rangendo alarmantemente no piso de cascalho, parando de vez em quando para espiar pelas vidraças, Uma sala de aula, cheia de carteiras com tampas e bocais para tinteiros, além de um quadro-negro esbranquiçado de giz; mais além, um laboratório de ciências, com balcões de madeira e bicos de Bunsen.

— Parece um tanto sombrio — comentou Judith.

— Salas de aula vazias são sempre assim. Essa aparência deve ter algo a ver com o ensino de teoremas e verbos franceses. Quer ir olhar lá dentro?

— Não. Vamos explorar o jardim.

Foi o que fizeram, seguindo um caminho que serpenteava através de moitas de arbustos e levava a duas quadras gramadas de tênis. Em janeiro, sem marcações e com a grama crescida, as quadras pareciam abandonadas, não induzindo imagens de nenhum jogo animado. Fora aquela parte, tudo estava muito bem cuidado, com o cascalho aplainado e as sebes podadas.

— Eles devem empregar um bocado de jardineiros — observou Molly.

— Aí está o motivo de cobrarem tão caro das alunas. Trinta libras por um período letivo!

Após alguns momentos, chegaram a um local abrigado do vento, com piso de lajes arredondadas e um banco encurvado. Aquele pareceu um bom lugar para se sentarem por um instante, enquanto desfrutavam do escasso calor do sol de inverno. Dali podiam ver de relance a baía, apenas um trecho de mar e céu pálido, emoldurado por um par de eucaliptos. A casca do tronco das duas árvores era prateada e suas folhas aromáticas tremulavam, agitadas por alguma misteriosa e não percebida brisa.

—Os eucaliptos... — recordou Judith. — Havia muitos no Ceilão. Desprendem um cheiro igual àquele de quando friccionamos o peito.

— Tem razão. No interior do país. Em Nuwara Eliya. Árvores resinosas cheirando a limão.

— Nunca as vi em nenhum outro lugar.

— Suponho que aqui o clima seja brando, portanto, temperado.

Molly recostou-se no banco, ergueu o rosto para o sol e fechou os olhos. Após alguns momentos, perguntou:

O que você acha?

— O que acho sobre o quê?

Sobre este lugar. O Santa Ursula.

É um lindo jardim.

Molly abriu os olhos e sorriu.

— Isso é algum consolo?

Naturalmente que é. Quando a gente tem que ficar trancada em algum lugar, um jardim ajuda, se for bonito.

— Oh, não fale assim! Faz-me pensar que estou abandonando você em alguma espécie de prisão. E eu não quero deixá-la em lugar nenhum. Quero levá-la comigo.

— Eu estarei bem.

— Se... se você quiser ficar com Biddy algumas vezes... pode ir, tem a minha permissão. Eu falarei com Louise. Conversarei. Foi uma tempestade em copo d'água, quando tudo o que realmente desejo é que você seja feliz.

— Eu também desejo ser feliz, mas nem sempre isso acontece.

— Deve fazer com que aconteça.

— Você também.

— O que quer dizer?

— Quero dizer que não deve ficar tão nervosa quanto a viajar para Cingapura. O mais provável é que simplesmente adorará o lugar, ainda mais do que Colombo. Será como ir a uma festa. Aquelas que mais tememos geralmente terminam sendo as mais divertidas de todas.

— Sim — suspirou Molly — você tem razão. Agi como uma tola.

Não sei por que motivo tive tamanho pânico. De repente senti tanto medo! Talvez fosse apenas cansaço. Sei que tenho de pensar nisso como uma aventura. A promoção de papai, uma vida melhor. Sei disso. Contudo, não posso deixar de recear ter que fazer uma mudança geral, conhecer novas pessoas e fazer novos amigos.

Não deve pensar no que ainda falta para acontecer. Pense apenas no amanhã, e então resolva uma coisa de cada vez. Um vapor, tênue demais para ser chamado de nuvem, esgueirou-se sobre a face do sol. Judith estremeceu.

— Estou ficando com frio. Vamos andar.

Abandonaram aquele pequeno recanto de descanso e se foram, seguindo uma alameda de terra revolvida, que levava à subida da ladeira. No alto, viram um jardim murado, mas as flores e vegetais haviam desaparecido, substituídos por uma quadra asfaltada de netball. Um jardineiro varria as folhas amontoadas na alameda, e havia feito uma série de pequenas fogueiras, queimando as folhas enquanto trabalhava. A fumaça pura e adocicada tinha um cheiro delicioso. Quando elas se aproximaram, ele ergueu os olhos, levou a mão à pala do boné e disse:

—Tarde! Molly parou.

— Faz um lindo dia.

— É verdade. E seco o suficiente.

— Estamos apenas dando uma olhada por aí.

— No que me diz respeito, não tem problema nenhum.

Elas o deixaram e cruzaram uma porta, incrustada no alto muro de pedra. Por ali chegava-se a campos de jogos, com traves de gol para hóquei e um pavilhão de madeira para jogos. Fora do abrigo do jardim, de súbito o ambiente ficou muito mais frio, enregelante e ventoso. Caminharam mais depressa, encurvadas contra o vento cortante, e cruzaram os campos, chegando a edificações próprias de fazenda e a galpões de carroças. Em seguida, ganharam uma estrada de fazenda que passava por uma fileira de chalés, retornaram ao portão principal, e dali à alameda, ao pátio diante do Santa Ursula e ao pequeno Austin que as esperava.

Entraram no carro e bateram rapidamente as portas. Molly esticou a mão para a chave de ignição, mas não a girou. Judith esperou, porém sua mãe apenas repetiu o que já lhe havia dito, como se, de algum modo, a repetição tivesse o dom de fazer acontecer:

— Realmente quero que você seja feliz.

— Está se referindo a ser feliz na escola ou a ser feliz para sempre?

— Acho que às duas coisas.

— Feliz para sempre é o que lemos nos contos de fadas.

— Eu desejaria que não fosse. — Molly suspirou, depois ligou o motor. — Que coisa mais tola para dizer!

 

Esporte feminino semelhante ao basquetebol. (N. da T.)

 

- Não tem nada de tola. Acho ótima.

Iniciaram, então, a volta para casa.

Aquele havia sido um excelente dia, concluiu Molly. Um dia construtivo, que a deixara sentindo-se bastante melhor acerca de tudo. Desde aquela agitada discussão com Biddy, ela vinha sofrendo de um incômodo sentimento de culpa, não somente porque retornava ao Ceilão e deixava Judith para trás, mas por causa de incompreensões passadas e de sua própria falta de percepção. A culpa já era suficientemente ruim, mas saber que lhe restava tão pouco tempo para acertar as coisas entre elas era algo que a angustiava mais do que admitiria, mesmo para si própria.

Enfim, de algum modo havia funcionado. Não apenas porque haviam conquistado muito, mas porque tudo tinha sido feito em circunstâncias de grande satisfação e companheirismo. Ambas tinham se esforçado ao máximo — Molly percebia muito bem — e só isto já bastava para encher-lhe o coração de grato apreço. Sem Jess em seus calcanhares, exigindo atenção, estar com Judith havia sido como passar tempo com uma amiga, uma contemporânea. Os pequenos luxos e extravagâncias — como almoçar no "The Mitre" e comprar aquela pasta de executivo tão cara, por ser a única que Judith realmente queria —eram um preço ínfimo a pagar pela certeza de que, de alguma forma, ela havia cruzado uma difícil ponte no relacionamento com sua filha mais velha. Talvez houvesse deixado isso para muito tarde, mas finalmente fora feito.

Molly se sentia muito mais calma e revigorada. Faça uma coisa de cada vez, Judith lhe dissera. Encorajada e estimulada pela cooperação da filha, ela lhe aceitara o conselho, recusando-se a ficar desanimada Por tudo que ainda era preciso fazer. Havia elaborado tarefas, cada uma com o respectivo número de prioridade, as quais iam sendo riscadas logo depois de resolvidas.

Assim, nos dias seguintes, em estrita seqüência, planos eram formados e cumpridos para o fechamento de Riverview House e resultante dispersão de seus moradores. Objetos pessoais que Molly trouxera de Colombo para aquela casa, ou que acumulara durante os anos vivendo ali, eram recolhidos de vários aposentos e armários, listados e embalados, para mais tarde ficarem estocados em uma firma especializada. A nova mala escolar de Judith, com guarnições de latão e já marcada com as iniciais dela, permanecia aberta no patamar do andar de cima e, à medida que os vários itens iam sendo etiquetados com seu nome e dobrados, terminavam perfeitamente acondicionados no interior daquela volumosa peça de bagagem.

—Judith, pode vir aqui e ajudar?

—Já estou ajudando! — respondeu Judith, sua voz vindo de além da porta do seu quarto.

— O que está fazendo?

— Embalando meus livros que serão levados para a casa de tia Louise.

— Todos eles? Os seus livros infantis também?

— Não. Estes eu vou colocar em outra caixa. Podem ficar estocados, junto com as suas coisas.

— Você nunca mais vai precisar de seus livros infantis!

— Vou, sim. Quero guardá-los para meus filhos.

Pesarosa, dividida entre o riso e as lágrimas, Molly não teve coragem de argumentar. E, afinal de contas, que diferença fariam algumas poucas caixas a mais? Respondeu:

— Oh, está bem.

Em seguida, fez uma marca após "botas de hóquei", na interminável lista do enxoval do colégio de Judith.

— Encontrei um novo emprego para Phyllis. Pelo menos, acho que encontrei. Ela irá a uma entrevista depois de amanhã.

— Onde?

— Em Porthkerris. Será até melhor para ela. Ficará mais perto de casa.

— Com quem?

— Com a sra. Bessington.

— Quem é a sra. Bessington?

—Oh, Judith, você sabe quem é. Costumamos encontrá-la algumas vezes, fazendo compras, e ela sempre conversa um pouco. Geralmente leva uma cesta para acomodar suas compras, e tem um cão terrier branco. Mora no topo da colina.

-Ela é velha.

Bem... de meia-idade. E muito saudável. Entretanto, sua empregada de vinte anos quer aposentar-se, por causa das varizes. Vai tomar conta da casa do irmão. Assim, eu sugeri Phyllis.

A sra. Bessington tem cozinheira?

.Não. Phyllis é que ficará com esse posto.

— Bem, já é alguma coisa. Ela me disse que preferia fazer tudo sozinha. Não quer terminar como empregada faz-tudo para uma cozinheira de mau gênio e descarada.

— Não devia empregar esse palavreado, Judith.

— Estou apenas repetindo o que Phyllis disse para mim.

— Bem, ela não deveria ter dito.

—Eu acho que "descarada" é realmente uma boa palavra. Significa apenas uma pessoa abusada. Não há nada de grosseiro nisso.

Os últimos dias escoaram-se com aterrorizante velocidade. A essa altura, os aposentos despidos de suas fotografias, retratos e enfeites tornaram-se impessoais, como se já abandonados. Sem suas flores e pequenos toques pessoais, a sala de visitas mostrava-se árida e tristonha. Parecia haver caixotes e caixas de embalagens por todos os lados. Enquanto Judith e Phyllis mourejavam corajosamente, Molly passava muito tempo ao telefone, falando com a companhia de navegação, o departamento de passaportes, a firma que estocaria tudo que não levaria na viagem, a estação ferroviária, o gerente do banco, o advogado, Louise, sua irmã Biddy e, finalmente, sua mãe.

Este último telefonema foi o mais exaustivo, porque a sra. Evans estava ficando surda e não confiava no telefone, achando que a mulher da central telefônica ouvia conversas particulares, para em seguida contá-las a outros. Dessa maneira, foram necessárias uma explicação introdutória e uma boa dose de frustração, antes que a moeda caísse e a telefonista conseguisse convencer a sra. Evans a aceitar a ligação.

- O que significa tudo isso? — perguntou Judith, chegando no fim da conversa.

97

— Oh, ela é impossível! Enfim, penso que resolvi tudo. Depois que levar você para o Santa Ursula, fecho esta casa, e então eu e Jess passaremos a última noite com Louise. Ela prometeu, muito gentilmente, levar-nos em seu carro até a estação. Depois disso, ficaremos uma semana com seus avós.

— Oh, mamãe, você tem mesmo de ir?

—Acho que é o mínimo que posso fazer. Eles estão ficando muito velhos e só Deus sabe quando tornarei a vê-los.

— Está querendo dizer que eles poderão morrer?

— Oh, não exatamente. — Molly refletiu em suas palavras. — Bem... sim, eles poderão — admitiu — mas não quero pensar nisso.

— Tem razão. Seja como for, ainda acho que você está com uma paciência de santa, se insiste de fato nessa idéia. Não viu minhas botas de borracha por aí, em algum lugar qualquer...?

O carregador da estação chegou à porta da frente com seu cavalo e sua carroça de eixos baixos, sobre a qual foram colocadas a cômoda de Judith e outros pertences que deveriam ser transportados à casa de tia Louise. O homem levou algum tempo amarrando tudo aquilo bem firmemente com cordas, e Judith ficou obsevando a partida: a carroça sacolejando pela estrada, atrás do cavalo com sua andadura cômoda, na viagem de cinco quilômetros até Windyridge. Então foi a vez do homem que dirigia o posto de gasolina da aldeia fazer uma oferta pelo Austin Seven. Não foi uma grande coisa como oferta, mas tampouco havia uma grande coisa como carro. No dia seguinte ele veio apanhar o carro, entregou o cheque insignificante e foi embora, dirigindo o Austin. Ver aquele carro rodando pela última vez era mais ou menos como ver um velho cão sendo levado pelo veterinário, para ser eliminado.

— Se não tivermos um carro, como é que você vai me levar para o Santa Ursula?

— Chamaremos um táxi. De qualquer modo, nunca conseguiríamos colocar a sua mala no Austin. E então, depois que você estiver seguramente instalada, o mesmo táxi trará nós duas — eu e Jess — de volta para casa novamente.

- Se quer saber, eu não gostaria que Jess fosse.

Oh, Judith! Coitadinha da Jess! Por que não?

.Ela perturba o tempo todo. Está sempre chorando ou fazendo alguma coisa. E se ela chorar, nós duas vamos acabar chorando também.

Você nunca chora.

Não, mas poderei. Prefiro despedir-me dela aqui, quando me despedir de Phyllis.

— Parece um pouco injusto.

— Acho que será melhor assim. De qualquer modo, duvido que ela perceba o que está acontecendo.

Jess, no entanto, percebia. Não sendo uma criança obtusa, foi com considerável alarme que testemunhou o desmembramento de seu lar. Tudo estava mudando. Objetos familiares desapareciam, havia caixas de embalagem no corredor e na sala de refeições, e sua mãe andava ocupada demais para dar-lhe atenção. Sua casa de bonecas, seu cava-linho-balanço, pintado de vermelho, e o cachorro de puxar, com rodinhas nas patas, estavam lá um dia, para desaparecerem no seguinte. Só lhe restara "Golly", o espantalho, e, de polegar enfiado na boca, ela o carregava para todos os lados, segurando-o por uma perna.

Jess não tinha idéia do que estava acontecendo em seu pequeno mundo, sabia apenas que não estava gostando nem um pouco daquilo. No último dia, como a sala de refeições já fora despojada de pratos e talheres e estes, reduzidos ao mínimo básico, as quatro almoçaram na cozinha, sentadas em torno da mesa escovada de Phyllis. Comeram ensopado e purê de amoras-pretas, nos pratos desbeiçados e desaparelhados que tinham vindo com a casa, quando Molly a alugara. Aferrando "Golly", Jess deixou que a mãe a alimentasse com uma colher, porque queria ser bebê novamente. Depois de comer sua sobremesa, ganhou um pacotinho de jujubas de fruta, só para ela. Ficou teo absorta em abrir o pacotinho e escolher as cores das jujubas, enquanto Phyllis tirava a mesa, que mal notou que a mãe e Judith haviam desaparecido no andar de cima.

Então, aconteceu a cena perturbadora. Phyllis estava na copa, chocalhando pratos e esfregando panelas, quando Jess, ao levantar o rosto, viu pela janela o desconhecido carro negro cruzar o portão, andar lentamente pela alameda de cascalho e parar diante da porta Principal. Com as bochechas entulhadas de jujubas, foi contar a novidade a Phyllis.

— É um carro!

Phyllis sacudiu a água das mãos avermelhadas e pegou uma toalha para enxugá-las.

— Deve ser o táxi...

Jess foi com ela até o vestíbulo e deixaram o homem entrar na casa.

Ele usava um boné pontudo, como um carteiro.

— Tem bagagem para levar?

— Tem. Tudo isto aqui.

A bagagem estava empilhada ao pé da escada. A mala de guarnições de latão, valises e sacolas, o bastão de hóquei e a nova pasta executiva de Judith. O homem ia e vinha, levando tudo para seu táxi, colocando cada peça no porta-malas aberto, depois firmando-as com uma corda, para que não caíssem para fora.

Para onde ele ia levar aquilo? Jess ficou parada, olhando fixamente. Em suas idas e vindas, o motorista do táxi sorria para ela e perguntava como se chamava, mas ela não sorriu de volta nem lhe disse seu nome.

Então, mamãe e Judith desceram para o térreo, e esta foi a pior parte, porque mamãe estava de casaco e chapéu, enquanto Judith usava um conjunto verde que Jess nunca tinha visto antes. Também estava de colarinho e gravata, como um homem, e calçava sapatos marrons de cadarço. Tudo aquilo parecia tão tenso e incômodo, além de tão grande, e a aparência dela era tão amedrontadoramente estranha, que imediatamente Jess se sentiu tomada de terror e, incapaz de conter-se por mais tempo, explodiu em um berreiro histérico.

As duas estavam indo embora, iam deixá-la para sempre. Era disso que havia obscuramente desconfiado, e que agora estava prestes a acontecer. Gritou para que sua mãe a pusesse no colo e a levasse também, agarrou-se ao casaco de Molly e tentou subir até seus braços, como se quisesse subir em uma árvore.

Entretanto, foi Judith quem se adiantou e a pôs no colo, abraçan-do-a apertadamente. Em desespero, Jess enroscou os braços em torno do pescoço da irmã, apertou as bochechas lacrimosas no rosto de Judith e soluçou amargamente.

— Onde é que vocês vão?

Judith nunca imaginara que algo tão terrível acontecesse, e percebeu que havia subestimado Jess. Tinham agido como se ela fosse um bebê, imaginando que um pacotinho de jujubas as deixaria livre da possível crise. Tanto ela como sua mãe estavam erradas, e esta cena dolorosa era o resultado de seu erro.

Abraçou Jess com força e a embalou de um lado para outro.

Oh, Jess, não chore! Está tudo bem. Phyllis vai ficar aqui e mamãe estará de volta bem depressa.

Eu também quero ir

O peso da menina era doce, os bracinhos e pernas rechonchudos insuportavelmente macios e suaves. Ela cheirava a sabonete e tinha os cabelos sedosos como paina. Judith concluiu que não adiantava relembrar todas as vezes que se mostrara impaciente e zangada com a irmã menor, porque essa época já terminara. Tudo quanto importava agora era que as duas se despediam, e que amava realmente sua irmãzinha. Beijou várias vezes as bochechas de Jess.

— Por favor, não chore! — implorou. — Escreverei cartas para você e terá de me mandar lindos desenhos e fotos. E pense só uma coisa: quando nos encontrarmos outra vez, você estará com oito anos e quase da minha altura!

Os soluços diminuíram um pouco. Judith tornou a beijá-la, e então se moveu para entregá-la a Phyllis, enquanto desprendia os braços de Jess, que continuavam enroscados em seu pescoço. A menina ainda soluçava, mas seus gritos tinham abrandado e voltara a enfiar o polegar na boca.

—Tome conta direitinho do "Golly", ouviu? Não o deixe cair pela borda do navio. Adeus, Phyllis querida.

As duas abraçaram-se, mas Phyllis não pôde ser mais demonstrativa porque tinha os braços ocupados com Jess. Por outro lado, pareciam incapaz de dizer qualquer coisa além de "boa sorte".

- Boa sorte para você também. Prometo escrever.

- Não vá esquecer.

Saíram todas da casa, para onde o táxi esperava. Molly depositou um beijo na bochecha molhada de Jess.

- Daqui a pouco estarei de volta — prometeu. — Seja uma boa menina para Phyllis.

— Não se apresse em voltar, senhora. Demore o tempo que for preciso. Não há nenhuma necessidade de vir correndo para casa.

Em seguida as duas entraram no táxi, o homem bateu a porta atrás delas e ocupou o seu lugar ao volante. O motor roncou. O cano de descarga soltou uma fedorenta nuvem de fumaça.

— Dê adeus, Jess — disse Phyllis. — Dê adeus, como uma boa menina.

Jess sacudiu "Golly" como se estivesse acenando com uma bandeira, e o táxi começou a rodar sobre o cascalho rangente. Elas viram o rosto de Judith apertado contra o vidro traseiro, e também ela dava adeus e continuava a acenar, até o táxi dobrar a esquina da casa, subir a alameda e desaparecer de vista, seu som extinguindo-se na distância.

Windyridge,

Sábado, 18 de janeiro de 1936.

Muito querido Bruce,

Escrevo-lhe esta em meu quarto, na casa de Louise. Jess está dormindo, e vou descer daqui a pouco, a fim de acompanhar Louise em um drinque antes do jantar. Neste momento, River-view House já ficou para trás, fechada e vazia. A querida Phyllis nos deixou, vai passar uns dias em casa e depois começará em seu novo emprego em Porthkerris. Na segunda-feira de manhã, Louise me levará com Jess à estação, em seu carro, e passaremos alguns dias com meus pais, antes de eu rumar para Londres e tomar o navio. Partiremos dia 31. Na quarta-feira, levei Judith ao Santa Ursula e a deixei lá. Não levamos Jess conosco, o que resultou numa deplorável cena em Riverview House, antes de entrarmos no táxi. Eu não esperava nada semelhante, nem tinha percebido o quanto Jess estava angustiada com a partida. Foi algo bastante perturbador, mas Judith particularmente não a queria nos acompanhando até o colégio e, claro está, tinha toda razão. Foi melhor que tudo acontecesse na privacidade de nossa própria casa.

Receei que esta cena fosse demasiada para Judith, mas ela soube manejá-la de modo bastante adulto, mostrando-se muito amorosa e compreensiva com a pequena Jess. No táxi, falamos de coisas práticas, porque achei impossível abordar qualquer outro assunto. Ela parecia muito elegante em seu novo uniforme, porém ao mesmo tempo tão estranha, que era como se eu estivesse levando a filha de qualquer outra pessoa para o colégio, em vez da minha. Durante estas últimas semanas ela amadureceu subitamente e me foi de inestimável ajuda na arrumação de tantas bagagens, bem como nas providências a serem tomadas. Chega a ser uma ironia a gente levar tantos anos criando uma filha, para então, justamente quando ela começa a ser uma amiga e nossa igual, ter de abandoná-la e prosseguir na vida sem sua companhia. Neste momento, quatro anos me parecem intermináveis, alongando-se à minha frente como a eternidade. Imagino que, tão logo me veja no navio, indo para Colombo, minha depressão sobre tudo isto diminuirá; neste momento, entretanto, nada tem de divertida.

Chegando ao Santa Úrsula, era minha intenção entrar lá comjudith, instalá-la em seu dormitório, e depois tomar uma xícara de chá com a srta. Catto. No táxi, contudo, já a meio caminho para Penzance, Judith anunciou subitamente que não me queria fazendo tais coisas. Seu desejo era que nossas despedidas fossem rápidas e curtas, demorando o menos possível. Ela me assegurou que saberia manejar bem a situação. Não queria que lhe fizesse companhia durante seu primeiro contato com o colégio, porque então eu ficaria também sendo parte dele, e isso era algo que não deveria acontecer. Afirmou não desejar que seus dois mundos se tocassem, e tampouco que um se impingisse ao outro, em nenhum sentido. Considerei isso um tanto embaraçoso, pois sentia que minha presença era esperada, que me cabia mostrar alguma espécie de interesse, mas então achei melhor desistir, ao pensar que era o mínimo que poderia fazer por minha filha.

Assim sendo, nossa despedida durou somente alguns minutos. Nós mesmas descarregamos a bagagem, e logo surgiu um carregador, que levou em seu carrinho a mala grande e os demais pertences de Judith. Havia outros carros lá, portanto, também outros pais e outros filhos, todos iniciando o novo período letivo.

Em seus uniformes verdes, as garotas ficavam idênticas umas às outras, de modo que Judith imediatamente se tornou mais uma delas, como se tivesse perdido por completo a individualidade, homogeneizada como o leite. Não sei se isso tornou o nosso adeus mais fácil ou mais difícil. Observei seu rostinho doce, nele antevendo uma promessa de beleza que será evidente quando eu finalmente tornar a vê-la. Seus olhos não estavam lacrimosos. Nós nos beijamos e abraçamos, prometemos escrever, tornamos a abraçar-nos, e então ela se foi. Deu meia-volta, afastou-se, subiu a escada e entrou pela porta aberta. Não olhou para trás uma só vez. Carregava a sacola de livros, o bastão de hóquei e a pequena pasta executiva que eu lhe tinha comprado, onde guardaria seus papéis de cartas, seu diário e seus selos.

Sei que você achará uma tolice de minha parte, mas chorei no táxi durante todo o trajeto de volta para casa, só me controlando depois que Phyllis me serviu uma xícara quente de chá. Então, liguei para a srta. Catto, desculpando-me por minha rudeza. Ela disse que compreendia e que manteria contato conosco, para deixar-nos a par do bem-estar e dos progressos de nossa filha. Entretanto, vamos ficar tão distantes! E os barcos postais demoram tanto!

Molly fez uma pausa, largou a caneta e começou a ler o que já tinha escrito. Concluiu, então, que sua carta parecia terrivelmente emocional. Ela e Bruce nunca tinham achado fácil abrir o coração um para o outro, fosse para comentar intimidades ou partilhar segredos. Gostaria de saber se sua evidente angústia não o deixaria perturbado. Ficou indecisa, pensando que talvez fosse preferível rasgar as páginas e começar a carta de novo. Entretanto, escrever tudo aquilo a acalmara e, por outro lado, não se sentia com coragem nem energia para fingir friamente que tudo ia bem.

Tornando a pegar a caneta, ela continuou.

Assim, tudo está terminado, e procuro mostrar um rosto alegre por causa de Jess e de Louise. Não obstante, sofro como se houvesse perdido uma filha. Sofro pelas oportunidades passadas e não convividas, como também pelos anos à minha frente que não serão partilhados com ela. Sei muito bem que milhares de outras mulheres têm passado pelo mesmo que eu, mas, por um ou outro motivo, isso em nada minora a situação.

Dentro de um mês, eu e Jess estaremos com você. Enviarei mais notícias quando passar por Cingapura. Você agiu muito bem, e estou feliz por isso. Com todo o meu amor,

Molly

  1. Seu presente de Natal parajudith ainda não chegou. Deixei instruções com a sra. Southey, no Correio de Penmarron, que deverá despachá-lo para o Santa Ursula, assim que finalmente houver chegado.

Ela tornou a ler a carta, do princípio ao fim. Depois a dobrou, enfiou-a em um envelope, selou-o e o endereçou. Pronto. Estava feito. Molly ficou sentada, ouvindo a crescente intensidade do vento no exterior, que sacudia a janela e gemia além da cortina que a encobria. A sensação era de uma tempestade iminente. A pequena escrivaninha jazia em um círculo de luz da lâmpada acima dela, porém atrás de Molly, o quarto estava penumbroso e quieto. Jess dormia em uma das duas camas de solteiro, com "Golly" apertado contra a bochecha. Levantando-se, Molly foi beijá-la e ajustar as cobertas. Em seguida aproximou-se do espelho do toucador, para ajeitar o cabelo e modificar um pouco o caimento da echarpe de seda que colocara em torno dos ombros. Seu Pálido reflexo flutuou como um espectro no vidro escuro. Saiu do quarto, fechando a porta suavemente às suas costas. Cruzou o patamar e começou a descer os degraus.

Havia muito, Molly decidira que Windyridge era uma casa cuja construção falhara lamentavelmente. Erigida logo depois da Primeira Guerra Mundial, não era moderna o suficiente para ser de conveniência e tampouco antiga o bastante para ter encanto. Além disso, sua localização no topo da colina, acima do campo de golfe, fazia com que

atuasse na passagem de cada vento que soprasse. Contudo, sua mais infeliz característica era a sala de estar. Molly podia apenas imaginar que o arquiteto, sofrendo de uma infortunada congestão cerebral houvesse imaginado um salão corredor, a fim de que para lá descesse a escada do andar de cima e também para lá se abrisse a porta principal. Tal arranjo era uma garantia de uivantes rajadas de vento e de um senso de impermanência, algo mais ou menos como se estar sentado na sala de espera de uma estação ferroviária.

Fosse como fosse, Louise estava lá, aninhada em sua poltrona, ao lado de crepitantes chamas de carvão na lareira, com seus cigarros, seu uísque com soda e seu tricô convenientemente ao alcance. Ela tricotava meias para caçada. Ao terminar um par, deixava-o em uma gaveta, aguardando a próxima Feira na Igreja ou Trague e Compre, para começar outra vez a tricotar um novo par. Chamava isso de agitação organizada, cronometrando sua aplicação segundo as Boas Obras.

Ao ouvir Molly descendo a escada, Louise olhou para cima.

— Ah, é você! Pensei que estivesse dormindo.

— Sinto muito. Estive escrevendo para Bruce. —Jess dormiu?

— Dormiu. Logo, logo.

— Tome um drinque. Sirva-se.

A um lado da sala havia uma bandeja pronta, com garrafas, copos limpos e um sifão de soda. Era um toque masculino, como que em memória de Jack Forrester, porém nada havia mudado desde a morte dele. Os troféus de golfe que ganhara continuavam decorando a platibanda da lareira, suas fotos do Regimento — da época em que servira na índia — ainda pendiam das paredes, e por todos os lados havia evidências da caça e da presa — a pata de elefante, os tapetes de pele de tigre, os chifres de uma corça.

Molly serviu-se de um pequeno sherry e sentou-se na poltrona do lado oposto da lareira. Louise parou de tricotar e estendeu a mão para seu uísque.

— Saúde! —exclamou, e tomou um gole. Largando o copo, olhou para Molly por cima dos óculos. — Você não me parece muito animada.

— Eu estou bem.

— Não é nada agradável deixar Judith, eu posso perceber. Não se preocupe tanto. O tempo cura tudo. Você superará isso.

-—Acho que sim — disse Molly desanimada.

— Pelo menos, é uma coisa que já deixou para trás. Tudo terminado. E feito.

— Sim, está feito. — Molly concordou. — Acho que...

Não completou a frase. Um som lhe prendeu a atenção, vindo do lado de fora da casa, acima do uivar do vento. Um som de passos, rangendo no cascalho.

— Há alguém lá fora.

— Deve ser Billy Fawcett. Eu o convidei para um drinque. Achei que isso nos alegraria.

A porta da frente se abriu, deixando entrar uma rajada de vento que sacudiu os tapetes, enquanto a lareira lançava uma nuvem de fumaça fuliginosa. Louise ergueu a voz.

— Billy, seu velho tolo, feche a porta! — A porta se fechou com uma forte batida. Os tapetes aquietaram-se, o fogo recuperou a compostura. — Que noite para se estar lá fora! Venha para cá.

Molly ficou intimidada e ao mesmo tempo irritada por aquela inoportuna e inesperada intrusão. No presente momento, o que menos queria era a companhia de estranhos. Não gostava de conversar com pessoas desconhecidas, e considerava uma falta de sensibilidade de Louise convidar um amigo, justamente naquela noite. Enfim, nada havia que pudesse fazer a respeito, e então, sem muita vontade, largou o cálice de sherry e ajeitou o rosto em uma expressão agradável, virando-se na poltrona para cumprimentar o visitante.

Louise levantou a voz.

— Foi bom você ter vindo, Billy!

Ele não apareceu de imediato, porque sem dúvida devia estar tirando o sobretudo e o chapéu. Entretanto, quando por fim surgiu à Porta, esfregando as mãos para afugentar o frio, mostrava a expressão do homem que concede favores gentilmente.

—Aqui estou, minha querida, castigado pela tempestade.

Não era alto, mas de corpulência viril, e usava casaco e calções de golfe em padronagem axadrezada, grande e berrante. Os calções eram Particularmente volumosos e, emergindo de suas amplas dobras, as Pernas finas, em meias de tricô amarelo-vivo, assemelhavam-se às patas de uma ave. Molly perguntou-se se Louise teria tricotado aquelas meias e em caso afirmativo, qual dos dois escolhera a cor. Os cabelos dele eram brancos, rareando sobre um couro cabeludo coriáceo, e as faces eram raiadas de veias vermelhas. Usava uma gravata de Regimento. Tinha um vigoroso bigode e um brilho alegre nos olhos azul-claros. Ela lhe avaliou a idade em cerca de cinqüenta anos.

— Molly, este é meu vizinho, Billy Fawcett. Ou Coronel Fawcett, se preferir ser formal. Billy, esta é minha cunhada, Molly Dunbar.

Molly forçou um sorriso, estendeu a mão, e disse:

— Como vai?

Esperou que ele a apertasse. No entanto, Billy Fawcett agarrou-lhe os dedos e fez uma profunda mesura. Por um louco momento, Molly pensou que ele ia beijá-los, e quase puxou a mão bruscamente. No entanto, ele estava apenas sendo excessivamente cortês.

— É um prazer conhecê-la... já ouvi muito a seu respeito — acrescentou, esta última frase sendo uma garantia de congelar qualquer conversa espontânea.

Louise, no entanto, largou o crochê e, levantando-se da poltrona, assumiu o controle.

— Sente-se, Billy. Depois de seus esforços, deve estar precisando de um uísque.

— Eu não negaria — replicou ele.

Entretanto, não se sentou. Em vez disso, ficou em pé diante do fogo, batendo nas coxas e fazendo com que as folgadas calças se aquecessem ligeiramente, emanando um fraco odor de velhas fogueiras.

Molly ajeitou-se de novo na poltrona e estendeu a mão para seu sherry. Billy Fawcett sorriu insinuantemente para ela. Seus dentes eram uniformes e amarelos, parecidos aos de um cavalo saudável.

— Segundo soube, passou dias extenuantes colocando sua casa em ordem, antes de voltar para o Leste.

— É verdade. No momento, somos aves de passagem. Louise nos convidou gentilmente para duas noites, antes de prosseguirmos em nossas jornadas.

— Devo dizer que a invejo. Seria bom ter um relance do velho sol novamente. Oh, obrigado, Louise minha querida, a dosagem exata.

— É melhor sentar-se, Billy. Suas calças vão acabar pegando fogo. Venha, no sofá, entre nós.

— Queria apenas aquecer-me um pouco. Bem, saúde, senhoras!

Ele sorveu um gole do drinque generoso e muito escuro, deixou esccapar um suspiro apreciativo, como se estivesse ansiando uma semana pela bebida, e só então fez o que lhe fora dito, movendo-se de perto das chamas ardentes para acomodar-se contra as almofadas do sofá.

Molly concluiu que Billy Fawcett parecia inteiramente à vontade naquela casa. Perguntou-se quantas vezes aparecia ali para ver Louise, e se planejava mudar-se para Windyridge em base mais permanente.

Louise me disse que você está morando em Penmarron há apenas pouco tempo — disse ela.

Faz três meses que estou por aqui. A casa é apenas alugada, compreenda.

—Joga golfe?

— Sim. Aprecio uma partida. — Ele piscou um olho para Louise.

De qualquer modo, não tenho a perícia de sua cunhada. Certo, Louise? Costumávamos jogar juntos na índia. Quando Jack ainda vivia.

— Há quanto tempo está reformado? — perguntou Molly.

Não tinha o menor interesse em saber, mas achava que, por deferência a Louise, devia mostrar algum polido interesse.

— Dois anos. Livrei-me de minha comissão e voltei para casa.

— Ficou muito tempo na índia?

—Durante toda a minha vida militar. —Não era difícil imaginá-lo jogando pólo e berrando xingamentos para sua montaria. — Aos dezenove anos, como oficial subordinado, servi na fronteira noroeste. Era um trabalho exaustivo, acredite, manter aqueles afegãos dentro dos limites. Ninguém desejaria ser capturado por semelhantes pestes. Não é mesmo, Louise? — Como era óbvio, Louise não deu nenhuma resposta. Estava claro que ela não desejava prosseguir com aquele tipo de assunto. Billy Fawcett, no entanto, de maneira alguma pretendia desistir. — Depois da índia — contou para Molly — decidi que não suportaria mais o frio. Achei que seria interessante experimentar a primavera da Cornualha. Então, conhecendo Louise... foi como uma reaPresentação. Compreenda, os amigos escasseiam na volta à pátria, quando se fica tanto tempo fora dela.

E sua esposa também pensa assim?

A frase o apanhou desprevenido, como era de esperar.

- O que disse?

- Sua esposa. Ela não se acostuma ao frio?

— Eu sou solteiro, minha cara. Nunca encontrei a pequena men-sahib certa. Nos lugares em que lutei havia bem poucas moças bonitas.

— Entendo — disse Molly. — Acho que entendo.

— Bem, você deve saber tudo sobre os rigores do nosso Vasto Império. Onde é que seu marido presta serviço? Rangum, segundo disse Louise?

— Não. Colombo. Entretanto, meu marido tem agora um novo posto e estamos nos mudando para Cingapura.

— Hum-hum! O Comprido Bar, no Raffles Hotel... É a vida!

— Parece-me que iremos morar em uma casa na Rua Orchard.

— E você tem uma filha adolescente, não? A que virá passar os feriados com Louise? Estou ansioso por conhecê-la. Estamos precisando de um pouco de sangue jovem por aqui. Posso ser o seu guia local.

— Ela morou em Penmarron nos últimos quatro anos — replicou Molly friamente — de modo que dificilmente precisaria de um guia.

— Certo. Certo, não precisaria mesmo. — De couro duro, ele não parecia nem um pouco atingido com a leve secura de Molly. — Entretanto, sempre é bom ter um velho amigo para quem se voltar.

A simples idéia de Judith procurando Billy Fawcett por qual fosse o motivo deixou Molly tomada por uma sensação de profunda repugnância. Não estava gostando dele. Não havia uma razão palpável que pudesse apontar de imediato, reduzindo-se tudo a apenas uma instintiva antipatia. Com toda certeza aquele homem era totalmente inofensivo e, além disso, tratava-se de um velho amigo de Louise. Sem falar que Louise não era nenhuma tola, a quem se pudesse enganar sem dificuldade. No entanto, como podia ela aturar a companhia de tal indivíduo? Por que não o agarrava pelo pescoço e o expulsava de sua casa, como um cão que houvesse urinado em um tapete valioso?

Dr. Fell, eu não gosto de você.

O motivo? Nem mesmo sei o porquê.

De repente, a sala e o fogo da lareira a envolveram em opressivo calor. Podia sentir a quentura esgueirando-se por seu corpo acima, chegar às faces e colori-las de chamejante vermelho. Começou a suar levemente. Foi então que, de repente, não pôde mais suportar aquilo.

Havia terminado seu sherry. Puxando ostensivamente o punho da manga, consultou seu relógio de pulso.

Peço que me desculpem por um momento. — Era imperioso ir respirar ar puro, pois do contrário acabaria desmaiando. — Jess tem um sono tão inquieto... Vou dar uma olhada nela. — Levantou-se, virou as costas para eles. —... Logo estarei de volta.

Misericordiosamente, Louise não percebera o seu forte rubor, a sua perturbação.

Quando voltar — disse — tome mais um sherry.

Molly saiu e foi ao quarto que ocupava com Jess. A menina continuava dormindo. Não tinha se movido. Molly pegou um casaco grosso no guarda-roupa e o jogou em volta dos ombros. Saindo do quarto, desceu pela escada dos fundos e cruzou a sala de refeições, onde a mesa havia sido posta para duas pessoas — o seu jantar com Louise. No lado mais distante da sala, portas-janelas davam para um pequeno jardim cimentado e circundado por uma alta sebe de escalô-nias e, portanto, abrigado parcialmente dos ventos. Ali, Louise cultivava plantas carnudas e tomilho perfumado. Durante o verão costumava usar o pequeno terraço para drinques ao ar livre ou refeições informais. Molly correu as pesadas cortinas de veludo, abriu uma porta-janela e saiu. O vento imediatamente caiu sobre ela, sacudindo a porta envidraçada, de maneira que precisou esforçar-se para fechá-la novamente, antes que batesse e se fechasse sozinha, chamando a atenção. Então, virou-se para a escuridão e deixou que seu corpo ardente fosse envolvido pelo frio. Era como estar debaixo de uma ducha gelada, e ela encheu os pulmões com o ar puro e cortante, sentiu o cheiro do mar distante e pouco se importou com o vento que lhe desordenara os cabelos, jogando-os para trás da testa úmida de suor. Agora estava melhor. Fechando os olhos, não se sentiu mais como st prestes a sufocar. Estava refrescada, calma, gelada. Abriu os olhos e viu céu. Uma meia-lua aparecia e desaparecia, quando nuvens negras corriam por sobre sua face. Mais além havia estrelas, o universo, espaço. Molly via-se reduzida a nada, um pontinho de humanidade e, de repente, sentiu um medo terrível, o antigo pânico da desorientação, nulidade. Quem sou eu? Onde estou? Para onde vou e o que acontecerá, quando chegar lá? Ela sabia que este terror nada tinha a ver com a fúria daquela noite impetuosa. O vento e a escuridão eram elementos conhecidos e identificados, porém o medo e a apreensão não possuíam raízes em lugar algum, exceto dentro dela.

Estremeceu. Foi um frisson de puro terror. Um fantasma passando sobre sua sepultura, disse para si mesma. Agarrou o casaco grosso e o puxou para envolver-se, abrigando o peito. Tentou pensar em Judith, mas isso constituía o pior de tudo, porque era como recordar uma filha já morta, uma filha que nunca mais tornaria a ver.

Molly começou a chorar, era a mãe carpindo sua dor. As lágrimas lhe brotaram dos olhos, transbordaram e desceram pelo rosto, sendo secadas pelo vento forte à medida que deslizavam, salgadas, por suas faces. Chorar era uma liberação de sofrimento, e ela deixou que as lágrimas caíssem, não tentou estancá-las. Após alguns momentos, tudo havia terminado e o pânico passara; estava novamente controlada. Não fazia idéia de quanto tempo ficara ali, mas agora estava frio demais para continuar naquele lugar. Virando-se, tornou a entrar na casa, fechou a porta-janela, e cerrou de novo as cortinas. Voltou ao seu quarto pela escada dos fundos por onde havia descido, caminhando suavemente, para não fazer nenhum barulho. Pendurou o casaco e olhou para sua cama, ansiando mergulhar nela, ficar sozinha, dormir. Em vez disso, no entanto, lavou o rosto com uma flanela escaldante, passou pó e penteou os cabelos. Desta maneira, restaurada externamente, Molly voltou à sala.

Quando descia a escada, Louise olhou para cima.

— Oh, Molly... Por que demorou tanto?

— Fiquei com Jess.

— Está tudo bem?

— Sim, está — respondeu Molly. — Tudo perfeitamente bem.

Colégio Santa Úrsula 2 de fevereiro de 1936. Queridos Mamãe e Papai,

O domingo é dia de escrever cartas, portanto, aqui estou eu, escrevendo uma. Tudo está correndo muito bem, e vou me adaptando. Os fins de semana são engraçados. Preparamos as lições nas manhãs de sábado, e à tarde praticamos jogos ao ar livre. Ontem tivemos netball — um jogo parecido com o basquete — ou então "derrube-a-lata". Nos domingos pela manhã vamos à igreja caminhando em fila, o que é entediante. Aliás, também a igreja é tediosa, pois temos que ficar de joelhos a todo instante. É uma igreja muito High Church —eles usam incenso, e uma garota acabou desmaiando. Voltamos para o almoço do domingo, depois damos outra caminhada (como se precisássemos dela), em seguida escrevemos cartas — como agora — e então está na hora do chá. Depois do chá é interessante, porque vamos todas para a biblioteca, e a srta. Catto lê para nós em voz alta. Ela está lendo A Ilha das Ovelhas, escrito por John Buchan, livro muito excitante. Mal posso esperar para saber o que acontece.

As aulas vão bem e só estou atrasada em francês, porém venho tendo aulas de reforço. Fazemos ginástica nas terças-feiras, mas é difícil subir na corda. Rezamos todas as manhãs na ginástica e cantamos um hino. Temos bastante música e ouvimos discos clássicos na vitrola, uma vez por semana. As sextas-feiras temos uma hora de Canto Comunitário, que é encantador. Cantamos músicas como Sweet Lass ofRichmond HiU e Early One Morning.

A srta. Hornet é a responsável pela minha classe, e dá aulas de Inglês e História. É uma pessoa muito severa, e eu sou monitora do quadro-negro; tenho que manter o quadro-negro limpo e providenciar para que haja uma quantidade suficiente de giz.

 

Grupo da Igreja Anglicana que mais se aproxima do catolicismo apostólico romano. (N. daT.)

 

Estou em um dormitório com mais cinco garotas. A Inspetora não é nem um pouco gentil e, portanto, espero jamais ficar doente. Lembra-se da garota que comprava uniforme na mesma hora em que nós? Ela se chama Loveday Carey-Lewis e também está em meu dormitório, mas sua cama fica perto da janela, e a minha perto da porta. Na escola, ela é a única interna semanal. Está em uma classe abaixo da minha, e não conversamos muito, porque ela tem uma amiga que é aluna externa, chamada Vicky Payton, sua conhecida de antes de vir para cá.

Recebi cartas de tia Louise e tia Biddy. Phyllis também me mandou um cartão-postal. A metade do período letivo cairá em 6 de março, quando teremos quatro dias de folga. Será então que tia Louise pretende comprar a minha bicicleta.

Tem feito muito frio e chovido bastante. No colégio há partes aquecidas, porém a maioria dele é fria. O hóquei é o pior, por causa dos joelhos de fora e de não se poder usar luvas. Algumas garotas ficam com frieiras.

Meu presente de papai ainda não chegou. Espero que não tenha se extraviado ou que a sra. Southey tenha esquecido de despachá-lo.

Desejo que vocês estejam bem e que a viagem de navio tenha sido satisfatória. Olhei no mapa e encontrei Cingapura. Fica a quilômetros de distância.

Envio montanhas de amor para todos e parajess.

Judith.

A garota líder do Santa Úrsula era uma robusta e magnífica criatura que atendia pelo deleitável nome de Deirdre Ledingham. Tinha comprido rabo-de-cavalo castanho e um busto esplêndido. Sua túnica verde-escura de ginástica era inteiramente decorada com insígnias de jogos e distintivos de vitórias. Corria o boato de que, quando deixasse o colégio, iria para a Escola Bedford de Treinamento Físico, a fim de tornar-se professora de Educação Física. Observá-la exercitando-se no cavalo de pau era uma visão para não ser esquecida. Além disso, era solista no coro, não sendo de admirar que fosse objeto de violentas paixonites entre as garotas menores e mais impressionáveis, as quais escreviam-lhe cartas de amor anônimas, em folhas rasgadas dos cadernos de exercícios, além de ficarem terrivelmente ruborizadas se, ao passar, ela lhes dirigia pelo menos uma palavra.

Suas obrigações eram muitas e variadas, mas ela aceitava as responsabilidades com grande seriedade: tocar sinetas, escoltar a srta. Catto às Preces Matinais, e organizar a longa e errante fila indiana das alunas que trotavam semanalmente para a igreja. Era ainda a encarregada da distribuição diária das cartas e encomendas que o furgão dos correios trazia para as internas. Este evento tinha lugar todos os dias, durante a meia hora vaga antes do almoço. Ela então se punha por trás de uma grande mesa de carvalho no saguão principal, à semelhança de uma competente balconista de loja, para em seguida ir fazendo a entrega dos envelopes e pacotes de encomendas.

— Emily Backhouse. Daphne Taylor. Daphne, é melhor você arrumar seu cabelo antes do almoço, porque está horrorosamente desgrenhado. Joan Betworthy. Judith Dunbar.

Um grande e pesado pacote, embrulhado em papel grosso, firmemente amarrado, etiquetado e emplastrado de selos estrangeiros.

—Judith Dunbar!

—Não está aqui — disse alguém.

— Onde está ela?

—Não sei.

—Bem, por que ela não está aqui? Alguém vá chamá-la. Não, não se preocupe. Quem está no dormitório dela?

— Eu estou.

Deirdre olhou para a garota que tinha falado, e viu Loveday wrey-Lewis no fim da aglomeração que se acotovelava perto da mesa. franziu a testa. Desde o começo havia implicado com aquela caprichosa recém-chegada que, segundo decidira, era por demais arrogante e Presunçosa. Já a surpreendera duas vezes às carreiras pelos corredores, 711 pecado cardeal, como também a flagrara chupando uma pastilha de hortelã no vestiário.

— Judith devia estar aqui.

— Não tenho culpa disso — replicou Loveday.

— Não seja insolente! — Uma pequena penalidade extra parecia estar na ordem do dia. — É melhor que leve isto para ela. Aproveite para dizer-lhe que deve comparecer à Entrega de Cartas todos os dias. O embrulho pesa bastante, então, cuidado para não o deixar cair.

— E onde vou encontrá-la?

— Não faço a menor idéia. Terá de procurar. Rosemary Castle. Uma carta para você...

Loveday adiantou-se e segurou o enorme pacote contra o peito ossudo. Era extremamente pesado. Segurando-o com todas as forças, ela se afastou da mesa e caminhou pelo assoalho encerado, cruzou o comprido refeitório e depois ganhou o corredor que levava às salas de aula. Foi primeiro à sala de Judith, porém estava vazia. Dando meia-volta, começou a subir a larga escada sem tapetes, rumo aos dormitórios.

Uma monitora vinha descendo.

— Céus, o que você tem aí?

— É para Judith Dunbar.

— Quem lhe disse para trazê-lo?

— Deirdre.

Loveday respondeu com insolência, salva pela certeza de que tinha a autoridade do seu lado. A monitora ficou embaraçada.

— Oh, então tudo bem, mas que nenhuma de vocês se atrase para o almoço.

Loveday mostrou a língua para a retaguarda da monitora que se afastava, e seguiu em frente. Sua carga ficava mais pesada a cada passo que dava. O que, afinal, podia haver ali dentro? Chegou ao patamar da escada, desceu por outro comprido corredor e finalmente alcançou a porta do dormitório. Empurrou-a com o ombro e entrou aos tropeções.

Judith estava lá, lavando as mãos na única pia que todas elas usavam.

— Finalmente a encontrei! — exclamou Loveday.

Deixou o pacote sobre a cama de Judith e, como que exausta, caiu ao lado dele. Seu súbito e inesperado aparecimento, entrando ali de repente, com um enorme pacote, o motivo para isto e o fato de que, pela primeira vez, elas duas estavam sozinhas, sem nenhuma outra pessoa de permeio, fizeram com que Judith fosse tomada por um doloroso e exasperante acanhamento. Desde aquele momento na Medways, quando pusera os olhos pela primeira vez nas Carey-Lewis, mãe e filha, achara Loveday simplesmente fascinante e ansiara travar conhecimento com ela. Assim, o aspecto mais decepcionante de suas duas primeiras semanas no Santa Ursula havia sido o fato de que Loveday ignorara sua presença por completo, deixando-a com a triste convicção de sua tamanha nulidade, que a outra nem mesmo a reconhecera.

Ela tem uma amiga que é aluna externa, chamada Vicky Payton, havia escrito para sua mãe, porém a fria e breve frase fora cuidadosamente elaborada a fim de afastar suspeitas, já que seu natural orgulho não permitia que a mãe a considerasse ofendida ou perturbada pela indiferença de Loveday. Durante os momentos de folga e após os jogos, ela observara disfarçadamente Loveday e Vicky juntas, as duas bebendo seu leite de meia-manhã ou caminhando de volta à escola depois do hóquei, conversando, rindo e invejavelmente íntimas.

Não que Judith não tivesse amigas. A essa altura já conhecia todas as garotas de sua classe, bem como os nomes de todas em geral na Sala Comunal das alunas mais adiantadas. Entretanto, não havia ninguém especial, não uma amiga de verdade como Heather Warren, e ela não pretendia travar amizade com alguém que ocupasse um segundo lugar em sua afeição. Lembrava-se de seu pai dizendo: "Cuidado com o primeiro homem que falar com você em uma viagem porque certamente ele será o sujeito mais cacete do navio." Aquelas sábias palavras haviam permanecido em sua memória. Afinal de contas, um internato não era muito diferente, porque as pessoas se viam forçadas a aceitar a companhia de muitas outras com quem pouco tinham em comum, e separar o joio do trigo exigia um bocado de tempo.

Contudo, de certa forma obscura, Loveday Carey-Lewis era diferente. Ela era especial. E agora, ali estava ela!

— Fui incumbida de repreendê-la por você estar ausente da Entrega de Cartas.

— Eu estava enchendo minha caneta e sujei as mãos de tinta, acontece que a tinta não quer sair.

— Experimente uma pedra-pomes.

— Fico arrepiada, esfregando aquilo na pele.

— Claro, é mesmo terrível, não? Enfim, Deirdre me disse para achar você e entregar-lhe isto. Pesa uma tonelada. Venha abrir, quero ver o que tem aí dentro.

Judith sacudiu a água das mãos, pegou uma toalha e começou a enxugá-las.

—Imagino que provavelmente seja o presente de Natal de meu pai para mim.

— Presente de Natal? Estamos em fevereiro.

—Eu sei. Foi há muito tempo. — Ela se juntou a Loveday na cama, com o enorme pacote entre as duas. Observou os selos, os carimbos postais e etiquetas alfandegárias. Sorriu. — Sim, não é outra coisa. Já estava pensando que nunca chegaria!

— Por que demorou tanto?

— Porque veio de Colombo. No Ceilão.

— Ele mora no Ceilão?

— Mora. Meu pai trabalha lá.

— E sua mãe?

— Faz pouco tempo que viajou para ficar com ele. Levou minha irmãzinha com ela.

— Quer dizer que você está sozinha de todo. Onde mora?

—Até agora, em lugar nenhum. Quero dizer, não temos uma casa neste país. Assim, fico hospedada com a tia Louise. —-

— E quem é ela, quando está em casa?

—Já lhe disse. Minha tia. Mora em Penmarron.

— Você não tem irmãos nem irmãs?

— Só tenho Jess.

—A que viajou com sua mãe?

— Ela mesma.

— Deus do céu, isso é terrível! Lamento por você. Eu não sabia. Quando a vi na loja...

— Quer dizer que você me viu?

— Sim, claro que vi. Pensa que sou cega?

— Não. Foi apenas por não ter falado comigo. Pensei que talvez não me tivesse reconhecido.

— Ora, você também não falou comigo. Era a pura verdade. Judith tentou explicar,

Bem, você está sempre com Vicky Payton. Pensei que fosse amiga dela.

- É claro que sou. Fizemos o jardim de infância juntas. Conheço-a há muito tempo.

- Pensei que você fosse a melhor amiga dela.

— Oh, melhores amigas! — zombou Loveday, o rosto inteligente animado pela diversão. — Você parece até personagem de um livro de Ângela Brazil. Seja lá como for — observou — estamos nos falando agora; portanto, está tudo bem. —A mão dela pousou sobre o pacote. —Abra-o. Estou morrendo de curiosidade para ver o que há dentro dele, e já que transportei a carga o trajeto inteiro pela escada, o mínimo que você pode fazer é desembrulhar o pacote e me mostrar!

— Eu sei o que há no pacote. É o que pedi. Uma caixa de cedro com fechadura chinesa.

— Então, abra logo! Depressa! Antes que toquem o sino para o almoço e a gente tenha que descer.

Judith, no entanto, sabia que não poderia abrir precipitadamente o seu presente. Esperara tanto por ele, e agora que estava ali, ao alcance, desejava prolongar a excitação. Mais tarde, tão logo o abrisse, haveria tempo suficiente para examinar cada mínimo detalhe de sua nova e tão ansiada propriedade.

—Agora não há tempo. Abrirei mais tarde. Antes do jantar.

Loveday ficou exasperada.

— Oh, mas eu quero ver

—Abriremos o pacote juntas. Prometo que não vou olhar sem você aqui. Trocaremos de roupa bem depressa para o jantar, e então teremos tempo de sobra. Vou levar séculos para rasgar toda essa papelada. Sei que levarei, basta olhar para o pacote. Vamos esperar. E será formidável ficar a tarde inteira esperando por essa hora.

— Oh, tudo bem. —Loveday fora convencida, mas evidentemente contra sua vontade. —Não sei como pode ter tanta força de vontade. E apenas para que a expectativa dure mais tempo. Tem um retrato de seu pai? Ao perguntar, Loveday olhou para a cômoda de Judith, pintada de branco e idêntica a todas as outras cinco colocadas em torno do dormitório.

- Tenho, mas não é muito bom.

Ela apanhou o retrato e o entregou para Loveday examinar.

— É ele, o que está de shorts? Parece bem simpático. E esta é sua mãe? Sim, claro que é. Eu a reconheço, também. Por que Jess não está aqui?

— Porque ainda não tinha nascido. Ela só tem quatro anos. Papai nunca a viu.

— Nunca a viu? Não dá para acreditar! E o que ele irá dizer, quando puser os olhos nela? Ela o imaginará apenas outro homem, talvez um tio ou coisa assim. Você gostaria de ver minhas fotos?

— Oh, sim, por favor.

As duas abandonaram a cama e foram até a extremidade do dormitório que pertencia a Loveday, um local muito mais atraente e claro, por estar tão próximo dos janelões. O regulamento do colégio permitia que a aluna tivesse duas fotos, porém Loveday tinha seis.

— Esta aqui é mamãe, absolutamente linda, em trajes de gala, com suas peles de raposa prateada. E este é papai... não ficou excelente? Foi tirada num dia em que caçava faisões, daí o motivo de ter uma arma. E ele está com Tiger — Tiger é o seu cão labrador. Veja, esta aqui é minha irmã Athena, e este é meu irmão Edward. Este aqui é Pekoe, o pequinês, e você também o conheceu, lá na loja.

Judith estava perplexa. Jamais imaginara que alguém pudesse ter um punhado de parentes tão belos, atraentes e glamourosos, todos dando a impressão de terem saído das acetinadas páginas de alguma revista da alta sociedade, como The Tatler.

— Que idade tem Athena?

—Ela está com dezoito anos. Teve sua Temporada Londrina o ano passado e depois foi à Suíça, aprender francês. Ainda está lá.

— Ela pretende ser professora de Francês ou coisa assim?

— Céus, não! Athena nunca trabalhou na vida.

— E o que irá fazer, quando voltar da Suíça?

—Ficar em Londres, provavelmente. Mamãe tem uma casinha em Cadogan Mews. E Athena conhece montes de rapazes, está sempre saindo para fins de semana e coisas assim.

Aquilo soava como uma invejável existência.

— Ela parece uma artista de cinema — disse Judith, um tanto pensativa.

— Sim, parece mesmo.

— E seu irmão?

— Edward? Tem dezesseis anos. Está em Harrow.

— Eu tenho um primo de dezesseis anos. Está em Dartmouth. Chama-se Ned. Sua... —Judith vacilou. —Sua mãe não parece velha o bastante para ter filhos quase adultos.

— Todo mundo diz isso. Chega a ser tedioso. — Loveday largou a última foto e depois, com um baque, sentou-se em sua cama estreita, coberta de branco. — Você gosta deste lugar? —perguntou subitamente.

— Como? Está falando do colégio? Acho legal.

— Você queria vir para cá?

— Não particularmente, mas tive que vir. Por causa do internato.

— Porque sua mãe ia embora? Judith assentiu.

— Eu quis vir para cá — contou Loveday. — Porque queria ficar perto de casa. Em setembro passado, fui mandada para o lugar mais horrível no Hampshire, mas fiquei com tanta saudade, que levei semanas chorando, e então fugi de lá.

Judith já sabia disso, através do relato da funcionária da loja Medways, porém foi novamente tomada de admiração.

—Não consigo imaginar alguém tendo tanta coragem!

—Não foi bem coragem de minha parte. Eu apenas não podia mais suportar aquele lugar horrível, nem por um momento. Tinha de ir para casa. Fugir sempre parece muito difícil, mas na realidade é até bem fácil. Tive somente que tomar um ônibus para a estação de Winchester e depois um trem.

— Precisou trocar de plataformas?

— Oh, sim, duas vezes, mas bastava perguntar às pessoas. Então, Quando cheguei a Penzance, liguei para mamãe de um telefone público e pedi que fosse me buscar. Chegando em casa, falei para ela que nunca, nunca mais tornasse a me mandar para tão longe de casa, e ela Prometeu que não mandaria Assim, vim para cá e, quando a srta. Catto soube de minha fuga, disse que eu podia ficar como interna semanal, Porque não queria que isso se repetisse.

Então... — Não havia mais tempo para que tão fascinante conversa prosseguisse, pois todo o prédio foi subitamente invadido pelo clangor do sino da escola, convocando-as para o almoço.

— Oh, que droga, eu detesto isso! Odeio esse sino, e hoje é terça-feira, portanto, teremos passas e creme de leite na sobremesa. Vamos, é melhor a gente ir andando ou seremos repreendidas.

As duas desceram rapidamente, para se reunirem às colegas em suas respectivas salas de aula. Antes de se separarem, no entanto, houve tempo para uma última troca de palavras.

— Antes do jantar, no dormitório. Então, abriremos o pacote juntas.

— Mal posso esperar!

Depois disso, foi como se todo o colorido e formato do dia houvessem mudado miraculosamente. Judith já experimentara, em tempos passados, os entusiasmos e mudanças de ânimo que afetam toda criança, os súbitos e despropositados transportes de felicidade, até mesmo de êxtase. Isto agora, no entanto, era diferente. Um evento. Uma série de eventos. Seu presente de Natal finalmente tinha chegado e, por causa dele, tinha tido oportunidade de fazer amizade com Loveday Carey-Lewis, e ainda havia à sua espera o cerimonial do desembrulhar da caixa de cedro. A medida que a tarde progredia, seu contentamento acumulava outros prêmios inesperados, e era como se aquele dia houvesse sido encantado, nada nele podendo dar errado. Ao almoço, a sobremesa não constou de passas com creme de leite — que ela detestava — mas torta de baunilha com calda, o que era um petisco. Em seguida, no teste de verbos franceses, acertou oito dos dez apresentados, e quando chegou a hora de apanhar os apetrechos de jogo e encaminhar-se para os ventosos campos de hóquei, viu que a chuva cinzenta da manhã havia cessado. O céu estava claro, de um azul puríssimo. A brisa era perfeitamente suportável. E narcisos precoces, marginando os caminhos que levavam aos campos de jogos, começavam a desabrochar em plena floração amarela. Transbordante de energia física, ela até apreciou o hóquei, correndo para baixo e para cima, à medida que o jogo se movia para lá e para cá, e acertando a bola de couro com fácil precisão, sempre que a tinha em seu caminho. Saiu-se tão bem, que no fim do jogo mereceu um tapinha nas costas? dado pela srta. Fanshaw, a professora de jogos — uma dama robusta de cabelos muito curtos, no estilo de Eton — conhecida por sua parcimônia em elogios.

.Trabalhou bem, Judith! Continue jogando assim, e vamos tê-la na equipe.

Depois disso foi a hora do chá, em seguida a preparação das lições, por fim, o momento de trocar de roupa para o jantar. Ela voou escada acima, dois degraus de cada vez, entrou no dormitório, fechou as cortinas brancas de algodão do seu cubículo, e se livrou das roupas. Conseguiu até mesmo um banheiro livre, antes que qualquer outra garota chegasse à sua frente. Mesmo assim, quando retornou ao dormitório, já encontrou Loveday à sua espera, sentada em sua cama e enfiada no horrível vestido de gabardine verde, com gola e punhos brancos, que era o traje regulamentar de uso à noite.

— Poxa, você foi rápida! — exclamou Judith.

—Meu jogo foi apenas de netball, por isso não fiquei muito suada. Ande depressa e vista-se, para podermos começar. Trouxe minha tesoura, para cortar logo o barbante.

Judith se trocou o mais depressa que pôde, abotoando a frente do vestido enquanto enfiava os pés nos sapatos. Depois passou rapidamente uma escova pelos cabelos, amarrou-os para trás com uma fita, e estava pronta. Pegando a tesoura, cortou o barbante, mas depois precisou puxar com os dedos os grosseiros pontos que costuravam o rústico tecido de juta, para mantê-lo no lugar. Depois da juta havia uma camada de papel pardo, e em seguida uma outra, mais espessa, de papel de jornal, algo bastante excitante por si só, já que todos os jornais estavam cobertos por estranhas letras e caracteres orientais. Tudo cheirava a especiarias e a estrangeiro. O último envoltório era de lustroso papel branco, que foi rasgado e, por fim, revelado o presente de Natal. As duas ficaram caladas, contemplando-o.

Loveday rompeu o silêncio.

— É divina! — exclamou, as palavras exaladas como um satisfeito suspiro.

De fato era um lindo presente, mais esplêndido do que Judith imaginara ganhar. A madeira era cor de mel, lisa como cetim e toda marcadamente lavrada. Sua aldraba ornamental era de prata, em

mato de flor, e o fecho chinês deslizava para dentro dela como um peqeno cadeado. A chave para a fechadura estava presa à tampa da caixa, por uma tira de papel gomado. Loveday prontamente removeu a chave e a entregou a Judith, que a introduziu na lateral da fechadura e uma mola oculta foi tocada e liberada, abrindo o cadeado. Judith ergueu a aldraba, levantou a tampa, e um espelho deslizou para a frente, mantendo a tampa aberta. A frente da caixa podia ser dividida abrindo-se como asas e, desta maneira, revelando duas miniaturas de cômodas com gavetas. O cheiro de cedro impregnava o ambiente.

— Você sabia que ia ser assim? — perguntou Loveday.

— Mais ou menos. Minha mãe tinha uma em Colombo. Por isso pedi uma para mim. Entretanto, a dela de maneira nenhuma era tão bonita quanto esta.

Enquanto falava, abriu uma das pequeninas gavetas, que deslizou doce e suavemente, revelando juntas de encaixe e um cintilante acabamento interno em laca vermelha.

—Que lugar para guardar seus tesouros! E você poderá fechar com chave... Aí está o melhor. E pendurar a chave em torno do pescoço. Céus, você tem sorte... vamos fechar a caixa novamente, trancá-la, e depois vou experimentar com a chave...

Elas poderiam continuar brincando com a caixa indefinidamente, se a Inspetora não irrompesse no dormitório. Tinha ouvido as vozes e puxara as cortinas do cubículo com um gesto brusco e irritado. Muito assustadas, Judith e Loveday ergueram os olhos e a viram encarando-as fixamente, sua aparência em nada melhorada pelo véu de enfermeira que usava puxado para as sobrancelhas, como se fosse uma freira.

— O que fazem vocês duas, que tanto cochicham? Sabem muito bem que não é permitido ficarem juntas nos cubículos.

Judith abriu a boca para desculpar-se, porque a Inspetora a intimidava, porém Loveday não tinha medo de ninguém.

—Veja, Inspetora, não é uma beleza? O pai de Judith mandou para ela do Ceilão, como presente de Natal, mas o pacote levou séculos para chegar até aqui.

— E por que você está no cubículo de Judith?

— Eu estava apenas ajudando a abrir o pacote. Oh, veja! A caixa tem uma fechadura e gavetinhas que são um amor...

Exibindo os encantos do presente, Loveday abriu uma das gavetinhas para a Inspetora ver, mas fez isso de maneira tão insinuante, que a fúria da mulher abrandou-se ligeiramente. Ela chegou a dar um passo a frente, para poder observar melhor o objeto em cima da cama.

Devo dizer — admitiu — que é uma caixa muito interessante. E também bonita. — Então, voltou às suas naturais maneiras prepotentes. — E onde vai guardá-la, Judith? Não há espaço suficiente em seu armário.

O problema ainda não ocorrera a Judith.

Eu acho que... poderia levá-la para a casa de tia Louise, na metade do período letivo.

— A senhora não tem algum lugar seguro, Inspetora? — bajulou Loveday. — Na enfermaria ou algum outro lugar? Dentro de um daqueles armários... Só por enquanto?

— Bem, verei o que posso fazer. Talvez. Nesse meio tempo, arrumem toda essa bagunça e limpem tudo, antes que toque a sineta do jantar. Quanto a você, Loveday, volte para seu cubículo e não me deixe surpreender as duas juntas novamente.

—Claro, Inspetora. Sinto muito, Inspetora. E obrigada, Inspetora.

A fala de Loveday era tão doce, tão arrependida, que a Inspetora franziu o cenho. Por um momento, encarou desconfiadamente o rosto de Loveday, mas esta se limitou a sorrir e, após um instante, incapaz de encontrar mais algum motivo de queixa, a mulher deu meia-volta e se foi. As duas garotas mantiveram-se muito sérias, até ficarem certas de que não seriam ouvidas, e então entregaram-se a acessos incontro-láveis de risadinhas sufocadas.

Colégio Santa Úrsula Domingo, 9 de fevereiro

Queridos mamãe e papai,

Meu presente de Natal de papai chegou esta semana, e obrigada, muito obrigada, ele é exatamente o que eu desejava, e ainda melhor. Tive muito medo de que acabasse se extraviando. Não há lugar para guardá-lo, seja no meu cubículo ou no meu armário, de modo que a Inspetora o levou e guardou no fundo do armário da Cruz Vermelha. Suponho seja gentil da parte dela, porém não posso examiná-lo e orgulhar-me dele. Na metade do período letivo (29 de fevereiro) irei para a casa da tia Louise, e então levarei minha caixa comigo e a deixarei lá, no meu quarto. Obrigada mais uma vez, papai, eu realmente adorei seu presente.

E obrigada a você, mamãe, por sua carta posta no correio em Londres, pouco antes de viajar. Espero que esteja tendo uma boa viagem e que Jess se divirta no navio.

Loveday Carey-Lewis ajudou a abrir o pacote da minha caixa. Ela é realmente simpática. Também é rebelde, mas sempre consegue um jeito de levar a melhor, não ligando para o que lhe digam ou mandem fazer. Está aqui porque prefere ficar em uma escola perto de sua casa. A casa é chamada Nancherrow, e Loveday tem um pônei. Na Sala Comunitária das Calouras temos que fazer projetos destinados a obras benemerentes. Eu e Loveday estamos fazendo uma manta com retalhos. Não creio que ela fosse uma amiga especial de Vicky Payton —apenas as duas já eram conhecidas de antes daqui, e quando Vicky conversa conosco, nós somos gentis com ela. Vicky agora tem outra amiga que é externa, de modo que não deve preocupar-se com Loveday e eu.

Loveday tem uma irmã chamada Athena, que se encontra na Suíça, e um irmão chamado Edward, que está em Harrow. O pai dela tem um cachorro chamado Tiger.

Estou melhorando nos verbos franceses, e amanhã farei um teste, para participar do coro.

Montes de amor para vocês e parajess, da Judith

Na quarta-feira da semana seguinte, quando Judith compareceu obedientemente para recolher qualquer possível correspondência, Deirdre Ledingham comunicou-lhe que não havia nenhuma carta para ela, mas que a srta. Catto queria vê-la imediatamente, antes que o sino tocasse para o almoço.

O coração de Judith ficou imediatamente opresso e seu estômago começou a arder de medo. Estava também cônscia dos olhos voltados em sua direção, cheios de receio e uma espécie de relutante respeito, como se ela tivesse sido incrivelmente audaciosa e tivesse feito algo terrivelmente iníquo.

Judith fez um rápido exame de consciência, mas nada encontrou. Não correr no corredor, não conversar depois das luzes apagadas. Com uma certa acanhada coragem, conseguiu perguntar:

— Por que ela quer me ver?

— Não faço a menor idéia, mas você logo ficará sabendo. Agora vá, sem perda de tempo. Ela está em seu estúdio.

Aterrorizada, mas obediente, Judith saiu.

Em seu papel de diretora, a srta. Catto era uma influência sempre presente na escola, mas, mesmo assim, talvez deliberadamente, procurava manter-se distante das atividades rotineiras de seu colégio. Enquanto o resto da equipe se arranjava com quartos austeros e uma sala de funcionários sempre apinhada de professores, xícaras de chá e cadernos de exercícios, a srta. Catto tinha seus próprios aposentos no primeiro andar da parte antiga do prédio. Seu estúdio no térreo, entretanto, era o santuário dos santuários, o centro nervoso de tudo que estivesse acontecendo. Todos a tratavam com profundo respeito, e, quando ela surgia, com a saia negra flutuando ao caminhar, nas Preces Matinais ou no refeitório, durante as refeições, onde se sentava à mesa principal, o colégio inteiro ficava automaticamente silencioso e todos se punham de pé ao mesmo tempo.

Uma vez que ela lecionava apenas para as garotas mais adiantadas, também lidando com certificados colegiais ou matrículas, havia pouco ou nenhum contato pessoal com as alunas mais novas. Por seu turno, Judith falara com ela apenas uma vez, em seu primeiro dia, quando a srta. Catto havia dito seu nome, para recebê-la e dar-lhe as boas-vindas.

Entretanto, como qualquer outra aluna do colégio, ela estava perfeitamente cônscia da diretora, como uma presença agigantada, observada à distância e constantemente lá.

Em vista disso, ser convocada era uma espécie de provação.

O estúdio da srta. Catto ficava no final do comprido corredor para o qual davam as várias salas de aula. A porta pintada de marrom estava fechada. De boca seca, Judith deu pancadinhas leves na madeira, com os nós dos dedos.

— Entre.

Ela abriu a porta. A srta. Catto estava sentada à sua mesa de trabalho. Erguendo o rosto, deixou de lado a caneta com que escrevia.

— Oh, Judith. Aproxime-se.

Judith fechou a porta ao entrar e avançou na sala. Era uma manhã ensolarada e o estúdio, que dava para o sul, com vista para os jardins, estava inundado de claridade. Havia um jarro de prímulas silvestres sobre a mesa da diretora e, atrás dela, pendurada à parede, uma tela a óleo de uma enseada e um mar cor de anil, com um bote sendo puxado para uma praia.

— Pegue uma cadeira e sente-se. E não precisa ficar com a fisionomia tão angustiada, porque não estou aborrecida com você. Queria apenas ter uma conversa. — Ela se recostou na cadeira. — Como está indo no colégio?

Apesar de sua elevada posição e pesadas responsabilidades, a srta. Catto era relativamente jovem, não tendo ainda chegado aos quarenta anos. Possuía uma pele viçosa, assim como a flexível desenvoltura da mulher que só se sente de todo relaxada quando praticando exercícios ao ar livre. Os cabelos, ligeiramente grisalhos, eram repuxados da testa lisa e presos em um coque despretensioso. Tinha pupilas azuis e límpidas, o olhar penetrante capaz de encantar ou intimidar, dependendo das circunstâncias da entrevista. Por baixo da beca, usava um casaco azul-escuro, bem como um conjunto de saia e blusa de seda, a qual exibia um laço junto à garganta. Suas mãos hábeis não tinham anéis, mas havia uma pérola em cada orelha e um broche, também de pérola, como um alfinete de gravata masculino espetado na lapela.

Tendo encontrado uma cadeira, Judith sentou-se e encarou a diretora.

— Estou indo muito bem, obrigada, srta. Catto.

—Vem obtendo notas bastante satisfatórias, e estou contente com o seu trabalho.

— Obrigada, srta. Catto.

A srta. Catto sorriu, a expressão severa modificando-se para outra de sincera simpatia.

- Recebeu notícias de sua mãe?

Sim, recebi uma carta que foi postada em Gibraltar.

Tudo bem com ela?

Suponho que sim.

Fico satisfeita em saber. Agora, vamos à nossa conversa. Você parece ter feito amizade com Loveday Carey-Lewis.

(Será que nada escapava àquela mulher?)

— Sim, fiz.

— Eu tinha a impressão de que vocês duas pudessem travar amizade, daí o motivo de ter dito à Inspetora para colocá-las no mesmo dormitório. Acontece que a sra. Carey-Lewis telefonou para mim porque, aparentemente, Loveday quer levar você à casa dela, para um fim de semana. Ela lhe disse alguma coisa sobre este plano?

—Não. Sequer uma palavra.

— Boa menina... A mãe a fez prometer que nada diria, enquanto ela não tivesse falado comigo. Você gostaria de ir?

— Se eu gostaria...? —Judith mal podia crer no que ouvira. — Oh, srta. Catto, eu adoraria!

— Muito bem, mas você deverá compreender que se eu lhe der permissão para ir, isso lhe será um grande privilégio porque, oficialmente, a metade do período letivo é o único fim de semana em que as internas podem deixar o colégio. Em vista das circunstâncias, no entanto, com sua mãe fora do país, creio que uma saída seria benéfica para você.

— Oh, obrigada!

— Você irá com Loveday na manhã de sábado, voltando para cá, com ela, ao anoitecer do domingo. Além disso, telefonarei para sua tia Louise, uma vez que é a sua guardiã legal, pois ela deverá estar a par de tudo o que você faz.

Tenho certeza de que ela não seria contra.

,. Eu também, mas é importante e polido observarmos as formalidades— Seu sorriso a estava dispensando. A srta. Catto ficou em pé

Judith, apressada e desajeitadamente, fez o mesmo.

— Então, está combinado. Telefonarei para a sra. Carey-Lewis, comunicando-lhe o que ficou acertado. Agora vá, encontre Loveday e comunique-lhe as boas-novas.

Sim, srta. Catto, e muito, muitíssimo obrigada...

— Lembre-se — e a srta. Catto levantou a voz — de não correr pelo corredor.

Ela finalmente encontrou Loveday em sua sala de aula, esperando com o resto da turma, que soasse o sino para o almoço.

— Loveday, sua fingida! Sua hipócrita!

Loveday, no entanto, quando viu o rosto vermelho e extasiado de Judith, teve um acesso de riso.

— A Gata-catto deixoul —As duas abraçaram-se apertadamente, começando a dar pulos no que parecia uma selvagem dança guerreira de satisfação e euforia. — Ela deixou! Nunca pensei que fosse deixar!

— E você nunca me contou que tinha pedido para sua mãe!

— Prometi não contar porque tínhamos medo de que a srta. Catto recusasse permissão, deixando-nos com a mais horrível decepção deste mundo. Eu chegava a me sentir explodindo por guardar o segredo. Foi idéia de mamãe. Falei a ela sobre você, e ela disse "Traga Judith para casa". Respondi que você não teria permissão, mas ela respondeu, "Deixe comigo!" Então, eu deixei. E deu certo. As coisas sempre dão certo com mamãe. Papai vive dizendo que ela é a mulher mais persuasiva do mundo. Oh, vai ser divertido! Mal posso esperar para mostrar tudo a você. Mal posso esperar... Por que ficou tão triste de repente?

—Acabei de lembrar que não tenho roupas para vestir em sua casa. Todas as minhas coisas estão na tia Louise.

— Oh, céus, qual é o problema? Pode usar as minhas!

— Você é mais magra e mais baixa do que eu.

— Então poderá vestir as de Athena. Ou as de Edward. Não tem importância a aparência com que ficar. E eu vou lhe mostrar...

Não houve tempo para dizer mais nada, porque soou o sino do almoço.

— A melhor coisa quando se vai para casa — disse Loveday, em sua voz alta e convincente — é que lá a gente não tem nenhum maldito sino tocando.

Tais palavras valeram-lhe um ponto negativo de sua chocada monitora de turma, fazendo com que Loveday recuperasse seu estado costumeiro de insolentes risadinhas.

Elas deveriam partir às dez da manhã; já estavam vestidas, de maletas arrumadas e prontas para sair, quando Loveday teve uma de suas brilhantes idéias.

—A sua caixa de cedro!

— O que tem ela?

—Vamos levá-la conosco. Então, podemos mostrá-la para mamãe. Judith ficou duvidosa.

— Bem, mas... acha que ela vai querer vê-la?

—Oh, não seja tola, é claro que vai querer! Contei tudo a ela sobre a caixa.

—A Inspetora ficará furiosa.

— Não há motivo nenhum para que fique furiosa. Pelo contrário, ficará até contente por se ver livre de uma coisa que atravanca seus armários. De qualquer modo, não interessa se ela vai ou não ficar furiosa. Eu irei, se você quiser...

Por fim, foram as duas. Encontraram a Inspetora na enfermaria, medicando uma criança magricela com uma melosa colherada de extrato de malte. Como já era de esperar, a mulher não ficou nem um pouco satisfeita ao vê-las.

—Vocês duas ainda estão aqui? —Ela não aprovara a idéia da srta. Catto em esquecer os regulamentos e permitir a saída de Judith pelo fim de semana, tendo deixado isso perfeitamente claro, desde o momento em que foi informada do plano. — Pensei que, a esta altura, já estivessem longe daqui.

—Já estávamos de partida, Inspetora — explicou Loveday, em sua maneira apaziguadora — quando de repente pensamos em levar conosco a caixa de Judith. Assim, ela não ficará mais ocupando lugar em seu armário — acrescentou, ardilosamente.

— Para que querem levar a caixa?

—Mamãe está ansiosa por vê-la. E eu tenho algumas conchas que queremos colocar naquelas gavetinhas.

— Oh, tudo bem. Podem apanhá-la no fundo do armário da Cruz vermelha. E, por favor, não a tragam de volta, porque eu realmente não tenho espaço disponível para tantas coisas extras. Ora, vamos, Jennifer, pare de fingir que vai se sentir mal. Isto é apenas mal te e faz muito bem a você.

As duas recolheram a caixa em seu esconderijo, despediram-se da Inspetora e afastaram-se depressa, Judith carregando seu novo tesouro e Loveday com uma maleta de viagem em cada mão. Desceram a escada, em seguida o comprido corredor, caminhando o mais rapidamente que podiam, mas sem que de fato chegassem a correr. Atravessaram o refeitório, depois o saguão...

Deirdre Ledingham estava pregando listas de jogos no quadro de avisos forrado de baeta verde.

— Para onde estão indo? — perguntou, em tom autoritário.

— Para casa — respondeu Loveday.

Sem esperar resposta, a menina disparou pela porta aberta e pela escada de pedra, deixando a garota-líder boquiaberta.

Era um dia maravilhoso, um verdadeiro sábado, frio e ventoso, com enormes nuvens brancas deslizando pelo céu de puro azul. O carro dos Carey-Lewis já estava lá, estacionado na alameda de cascalho, com a sra. Carey-Lewis atrás do volante, esperando-as com Pekoe, o pequinês, sentado ao seu lado, no banco do passageiro.

O carro, em si, já era magnífico o suficiente: um Bentley novo, azul-marinho, com um longo e reluzente capô e enormes faróis dianteiros prateados. A despeito do ar frio, a sra. Carey-Lewis tinha arriado a capota. Ela usava um casaco de peles e enrolara uma vistosa echarpe de seda em torno da cabeça, para impedir que o vento lhe jogasse os cabelos nos olhos.

A sra. Carey-Lewis levantou um braço quando elas surgiram.

— Oh, finalmente, queridas! Pensei que nunca mais chegariam. Estão cinco minutos atrasadas.

— Fomos apanhar a caixa de Judith. Mamãe, esta é Judith.

— Olá, Judith, é um prazer ver você. Céus, isto parece pesado! Coloquem tudo no banco traseiro, e então você, Loveday, irá aí atrás com Pekoe, para que Judith se sente perto de mim. Que maravilhosa manhã! Não pude resistir e arriei a capota, porque tudo está com um aroma tão delicioso! Pekoe, nada de birra! Você sabe que adora sentar no banco de trás. Segure-o bem, Loveday, pois, do contrário, se ele avistar uma ovelha, uma vaca ou qualquer outra coisa, vai querer correr atrás. Agora, já que estamos todos instalados...

Sem mais palavras, ela ligou a ignição, o potente motor ronronou, e partiram. Judith recostou-se no assento de couro estofado e soltou um grande, secreto suspiro de prazer, porque nos poucos dias anteriores tinha vivido com certa apreensão de que alguma coisa... qualquer coisa... poderia acontecer para interromper os planos dela e de Loveday. Entretanto, nada acontecera, e tudo estava bem. Cruzaram portões, ganharam a estrada e o colégio Santa Ursula desapareceu, fundiu-se ao passado, atrás delas.

Loveday tagarelava.

Resolvemos trazer a caixa no último momento, e a Inspetora ficou lívida, não foi, Judith? Não sei por que motivo é tão mal-humorada o tempo todo, e não sei por que ela não pode ser como Mary. Acho que não gosta muito de mim e de Judith, não é, Judith? Mamãe, quem vai estar lá em casa este fim de semana? Alguém excitante?

—Na realidade, ninguém. Apenas Tommy Mortimer, chegado de Londres.

— Oh, ho — O tom de Loveday era malicioso. Deu palmadinhas no ombro da mãe. — Tommy Mortimer. É o namorado de mamãe — explicou para Judith. — Costuma trazer para ela deliciosos bombons da Harrods.

— Está sendo ridícula, Loveday. — Sua mãe, entretanto, não parecia nem um pouco aborrecida, apenas divertida. — Não deve acreditar numa só palavra do que diz esta menina, Judith. Aliás, com certeza já descobriu isso por si mesma.

— Estou dizendo a pura verdade e você sabe disso. Athena falou que ele persegue você há anos, daí o motivo de nunca se ter casado.

—Athena fala ainda mais tolices do que você.

— Recebeu carta dela?

Oh, querida, que pergunta boba. Sabe que sua irmã é um horror com cartas. O que recebemos foram uns rabiscos de Edward, para contar-nos que participará da segunda dupla no tênis. E Jeremy Wells apaareceu esta manhã. Papai o convidou. Ele, papai e Tommy sumiram na floresta, para abater pombos.

Jeremy... Oh, poxa, eu não o vejo há séculos. — Gentilmente, ela explicou para Judith. — Ele é legal. Já foi preceptor de Edward, quando Edward se preparava para entrar em Harrow. Também é uma espécie de namorado de Athena. Costumava levá-la a festas, quando estava com uns dezesseis anos. O pai dele é nosso médico. E papai simplesmente adora Jeremy, porque ele é terrivelmente bom no rúgbi e no críquete. Além disso, é o capitão da equipe do condado.

—Oh, meu bem, seu pai não gosta dele somente por esses motivos.

—Afinal, ele sempre vai ao Twickenham, quando a Cornualha está jogando, e ao Lords no verão. Além disso, vive dizendo que Jeremy é um atirador maravilhoso, e quantos faisões abateu.

Diana Carey-Lewis riu pesarosamente.

— Isso lá é verdade — admitiu — mas ainda acho que na amizade deles há mais do que apenas fulminar qualquer coisa que voe...

Judith parou de ouvir. Começava a ficar nervosa, porque eram muitos os nomes comentados. Tanta gente e tantos acontecimentos — além de tudo aquilo ser tão casual, tão mundano, tão infinitamente alheio a qualquer coisa que já houvesse experimentado antes... Esperava que, durante os dois dias seguintes, fosse capaz de enfrentar toda atividade social, sem cometer gafes e ignorados erros crassos capazes de embaraçar os demais, especialmente ela própria. Quanto a Loveday, nunca ouvira filha alguma falar com a mãe dessa maneira, fazendo mexericos como se fossem contemporâneas e espicaçando-a com aquela história de seu namorado. Tommy Mortimer. Ele, mais do que ninguém já mencionado, era uma fonte de pasmo. As mães que Judith conhecia, de maneira alguma tinham namorados ou, se os tivessem, mantinham o fato em absoluto sigilo. No entanto, parecia que a sra. Carey-Lewis não se sentia nem um pouco envergonhada — antes, até orgulhosa — do cavalheiro seu admirador. Não se importava se a família inteira... que, presumivelmente, incluía seu marido... soubesse de tudo, até ficando feliz por todos eles discutirem seu pequeno caso e o tratarem como uma grande piada.

Judith acabou achando que tudo aquilo ia ser muitíssimo interessante.

A essa altura já tinham deixado a cidade para trás, atravessado uma pequena aldeia pesqueira e subido a íngreme colina que dava para as terras vazias mais além. A estrada estreita serpenteava e se torcia, seguindo os irracionais contornos dos meandros de muros de pedra e as divisas irregulares de fazendas, cujas edificações podiam ser vislumbradas, com seus tetos baixos e antigos, atabalhoadamente amontoadas contra o vento. Ladeiras suaves, coroadas por marcos de pedra granítica, desciam para o litoral e os penhascos, diretas ao mar cintilante e pontilhado de sol. Muito longe, no mar, pequeninos barcos de pesca empinavam-se nas vagas e, mais acima, gaivotas espiando um homem que arava atrás de um cavalo, precipitavam-se, grasnavam e pairavam, esperando atacar a terra pouco antes revolvida.

Aquela era uma região bem diferente da que ficava no outro lado da Cornualha.

— É muito bonita — disse Judith. A sra. Carey-Lewis sorriu.

— Nunca passou antes por esta estrada?

— Não. Nunca. Não tão longe assim.

—Não fica muito distante de Penmarron. Na Cornualha, nenhum lugar fica muito longe um do outro.

— Fica, se não tivermos um carro.

— Sua mãe não tinha um carro?

— Tinha. Um Austin Seven, mas como ela não gostava muito de dirigir, geralmente íamos de trem para Porthkerris.

— Oh, que lástima! Ela não gostava de dirigir?

—Não. Ficava muito nervosa. Dizia que era porque, em Colombo, sempre tivera motorista. Na verdade, uma grande bobagem dela, porque conseguia dirigir perfeitamente bem. Apenas achava que não podia.

— De que adianta ter um carro — observou Loveday — se você nunca dirige?

Judith pensou que talvez tivesse sido desleal, que não deveria criticar sua mãe ausente.

— De qualquer modo, antes assim do que como minha tia Louise, que dirige seu Rover a cento e sessenta por hora, e geralmente pelo lado errado da estrada. Mamãe tinha pavor de ir a qualquer lugar junto com ela.

—Acho que eu também sentiria medo —disse a sra. Carey-Lewis. — Quem é tia Louise?

— É irmã do meu pai. Enquanto minha mãe estiver fora, é com ela que vou passar as férias e feriados. Tia Louise mora em Penmarron.

Espero que ela não dirija a cento e sessenta por hora, tendo você Como companhia.

— Oh, não... Ela vai comprar uma bicicleta para mim.

Uma dama sensata. Entretanto, é uma pena que sua mãe não gostasse de dirigir, porque há inúmeras enseadas e praias divinas nesta parte da Cornualha, que só podem ser descobertas para quem tenha carro. De qualquer modo, não se preocupe, nós vamos mostrá-las a você. Nosso divertimento será ainda maior, uma vez que você nunca as viu antes.

A sra. Carey-Lewis ficou silenciosa por um momento. Depois perguntou:

— Como é que você chama sua mãe?

Judith achou a pergunta bastante curiosa.

— Mamãe.

— E como irá me chamar?

— Sra. Carey-Lewis.

— Muito correto e apropriado. Meu marido aprovaria. Entretanto, posso lhe dizer uma coisa? Eu simplesmente odeio ser chamada de sra. Carey-Lewis. Sempre me fica a impressão de que as pessoas estão falando com minha sogra, que era velha como Deus e duas vezes mais amedrontadora do que ele. Atualmente já é falecida, graças a Deus, e então, pelo menos, a gente não tem que se preocupar com ela. —Judith não conseguia pensar em absolutamente nada para dizer a respeito, mas isso não fazia qualquer diferença, porque a sra. Carey-Lewis continuou falando: — Na realidade, só gosto que me chamem de Diana, Querida ou Mamãe. Como não sou sua mãe e Querida soa um pouco afetado, acho melhor que me chame de Diana.

Virando o rosto, ela sorriu para Judith, que reparou então que o vivo tom azul da echarpe que a mãe de Loveday pusera na cabeça combinava exatamente com a cor de seus olhos. Perguntou-se se a sra. Carey-Lewis sabia disso e se, sabendo, apanhara-a deliberadamente em alguma gaveta, para usá-la daquela maneira.

— E a senhora não se importaria?

— De maneira alguma, até prefiro. Também quero que me trate por "você", e será mais fácil começando logo agora. Se continuar a chamar-me de sra. Carey-Lewis, verá depois que é impossível mudar para Diana. Creio que eu não suportaria isso.

—Nunca tratei antes nenhum adulto por seu nome de batismo.

— Ridículo, não? Todos recebemos nomes adoráveis de batismo, portanto, devemos usá-los. Mary Millyway, a quem irá conhecer, é a ama de Loveday — ou, pelo menos, foi, quando Loveday era bebê.

Entretanto, nunca a chamamos de Nanny — "Ama" — porque Mary é um nome muito bonito. Seja como for, detesto essa palavra, nanny. Vyoca. imagens das mais tediosas mães. — Ela passou a usar uma falsa voz de classe superior, mas em perfeita imitação: — "Nanny fica louquíssima, porque deixo Lucinda acordada após sua hora de dormir." Hum, nauseante! Portanto, vamos começar já o que pretendemos continuar. Diga meu nome agora, em voz alta.

— Diana.

— Grite-o para o mundo.

— Diana!

— Melhorou bastante. Agora, vamos gritar o mais alto que pudermos. Um, dois, três, todas juntas...

— DIANA!

Suas vozes espalharam-se na distância, subiram ao céu, foram levadas pelo vento. A fita cinzenta da estrada desenrolava-se diante delas, e as três davam risadas.

Após uns quinze quilômetros mais, o cenário tornou a modificar-se abruptamente, e elas penetraram em um distrito de riachos correntes e profundos vales cobertos de vegetação. Rosemullion jazia ao pé de um destes, um amontoado de chalés caiados de branco, um pátio de fazenda, um pub e uma igreja antiga de torre quadrada, circundada por lousas de sepulturas inclinadas pela idade e amareladas pelos liquens. Uma ponte encurvada cruzava um riacho de águas que corriam suavemente, e a estrada prosseguia, íngreme, subindo novamente. No alto da colina nivelava-se, e surgia ao longe um pórtico imponente, de muros encurvados abrigando altos portões de ferro forjado, estes abertos e emoldurando a perspectiva de uma comprida alameda arborizada, que depois fazia uma curva e se perdia na distância. Diana trocou de marcha, e o Bentley deslizou através da entrada.

— É aqui? — perguntou Judith.

— Sim, é aqui. Nancherrow.

Enquanto a estrada se estirava, torcendo-se, virando-se e nunca parecendo chegar a algum lugar, Judith permaneceu em silêncio. De repente, tudo era um pouco assustador, remoto e impressionante.

Nunca vira antes uma alameda de tal comprimento no início de uma propriedade, e começou a suspeitar de que Nancherrow não fosse uma casa em absoluto, mas sim um castelo, talvez possuindo seus próprios fosso, ponte levadiça e até mesmo um fantasma sem cabeça. Naquele momento, sentia-se tomada de ansiosa apreensão ante o desconhecido.

— Está nervosa? — perguntou Diana. — Costumamos dar a isso o nome de "febre da avenida". Eu me refiro a essa espécie de depressão, sentida quando estamos chegando a algum lugar novo.

Judith perguntou-se se ela era capaz de ler pensamentos, além de tudo o mais.

— Bem, é uma alameda muito comprida.

— Como imagina que será a aparência final? — Ela riu. —Não se preocupe, nada existe de amedrontador. Não há fantasmas. Todos foram incinerados, quando a casa antiga incendiou-se, em 1910. Meu sogro apenas deu de ombros e construiu outra, muito maior e muito mais confortável. Foi um alívio — disse ela, sorrindo — porque temos o melhor dos dois mundos e nenhum fantasma ou passagem secreta na casa. É apenas o lar mais encantador, e todos o adoramos.

Quando finalmente chegaram a Nancherrow, Judith entendeu exatamente o que ela queria dizer. Foi um encontro súbito, abrupto. As árvores circundantes rarearam e ficaram para trás, o sol ventoso voltou a brilhar e a estrada descreveu uma última curva, revelando a casa. Havia sido edificada em granito do lugar e possuía telhado de ardósia, como qualquer casa de fazenda tradicional, exibindo compridas janelas nos dois pavimentos e uma linha de águas-furtadas acima delas. Ficava recuada, além de possuir um amplo caminho para veículos forrado de pálidos seixos marinhos, e sua parede leste era suavizada por clematites e roseiras-trepadeiras. A porta principal incrustava-se na torre redonda, encastelada no topo como uma fortaleza normanda. Por todos os lados estendiam-se gramados verdejantes, pontilhados de maciços de arbustos e terrenos arborizados, canteiros de flores ornamentais e tapetes de narcisos e crocos, amarelos e purpúreos. No lado sul, que era para onde dava a fachada da casa, esses gramados assumiam a forma de terraços, divididos por lances de degraus de pedra. A distância, era possível vislumbrar-se o horizonte azul e o mar.

Ainda assim, apesar de todo o seu esplendor, nada daquilo era assoberbante ou amedrontador, em nenhum sentido. Desde aquele primeiro momento, Judith apaixonou-se por Nancherrow, imediatamente sentindo que compreendia Loveday muito melhor. Isto porque agora sabia com certeza por que motivo ela havia fugido da escola no Hampsire e encontrara o caminho de volta para este lugar mágico e fizera a mãe prometer que nunca, jamais tornaria a enviá-la para longe.

O Bentley fez alto dignamente diante da porta principal, e Diana desligou o motor.

Bem, aqui estamos, minhas crianças, sãs e salvas!

Elas desceram, recolhendo suas posses, e caminharam para a entrada, com Pekoe encabeçando imponentemente a fila e Judith, sobrecarregada com sua caixa de cedro, seguindo à retaguarda. Subiram um lance de escada de pedra, cruzaram um pórtico circular pavimentado de lajes e depois portas internas envidraçadas, dando para o saguão central que jazia além. Tudo parecia incrivelmente grande e espaçoso, mas a despeito do tamanho e das proporções generosas, os tetos não eram demasiadamente altos. Assim, a impressão imediata era a de uma casa campestre, uma residência familiar, amistosa e sem pretensões. Imediatamente Judith se sentiu muito mais à vontade, em casa.

As paredes do saguão eram apaineladas em madeira natural, e pelo assoalho de tábuas enceradas, estavam espalhados gastos e desbotados tapetes persas. A ampla escadaria, espessamente acarpetada, subia para o patamar superior em três lances retos, e a claridade do sol infiltrava-se através do amplo vitral da escada, encortinado em dobras de pesado brocado de seda amarela. No meio do saguão havia uma mesa redonda de pedestal, sobre a qual pousava uma lustrosa terrina repleta de narcisos brancos, desabrochados à noite. Viam-se também ali um Livro de Visitantes com surrada encadernação de couro, uma ou duas coleiras para cães, as luvas de alguém e uma pilha de correspondência. No lado oposto da escadaria ficava a lareira, de platibanda muito esculpida e ornamentada. Em seu bojo jazia uma camada de cinza, Porém Judith adivinhava que um ou dois troncos secos e uma lufada de vento dos foles logo fariam o fogo renascer para a vida chamejante.

Enquanto ela olhava em torno, captando tudo quanto via, Diana Parou junto à mesa, desatou a echarpe de seda e enfiou-a no bolso do casaco.

Muito bem, Loveday, agora vá, e cuide de Judith. Creio que Mary está no quarto de brinquedos. Os rapazes virão almoçar às onze, portanto, não se atrase. Esteja na sala de estar quinze minutos antes.

Em seguida, ela recolheu as cartas à sua frente e começou a afastar-se, cruzando o amplo saguão adornado por encantadoras peças polidas de mobiliário antigo, gigantescos vasos de porcelana e espelhos enfeitados. Pekoe a seguiu, junto a seus elegantes calcanhares em saltos altos. Um lânguido aceno de mão foi a despedida de Diana: — E não se esqueça de lavar as mãos...

As duas ficaram vendo Diana afastar-se. Judith a observava àquele dia na loja, ao vê-la pela primeira vez, obscuramente fascinada, parecendo enraizada no chão, de algum modo não querendo afastar os olhos. As duas permaneceram ali, até Diana alcançar a porta fechada na extremidade oposta do corredor, abri-la para um clarão de sol e desaparecer.

A saída dela, súbita, oferecia um interessante vislumbre no relacionamento das Carey-Lewis, mãe-e-filha. Loveday podia demonstrar uma íntima familiaridade e falar com a mãe como se fossem irmãs, porém o privilégio exigia seu preço. Se ela fosse tratada como contemporânea, então esperava-se um comportamento adulto de sua parte, a responsabilidade social por sua própria convidada. Esta parecia ser a norma, e Loveday a aceitava, tranqüilamente e sem discutir.

— Ela foi ler suas cartas — explicou a garota, sem necessidade. — Venha, vamos procurar Mary.

Ao falar, encaminhou-se para a escada, carregando as maletas de ambas. Judith a seguiu em passo mais vagaroso, sobrecarregada pelo peso da caixa, que começava a ficar bastante incômodo. No alto da escada havia outro comprido corredor, réplica daquele do andar de baixo, por onde Diana fizera sua pomposa saída. Loveday começou a correr de repente, as maletas batendo contra suas pernas magricelas.

— Mary!

— Estou aqui, benzinho!

Judith pouca experiência tinha de babás inglesas ou dos ingleses quartos de brinquedos para crianças. Já vira babás na praia, em Porthkerris, senhoras robustas e autoritárias, em grossos vestidos de algodão, enchapeladas e de meias compridas mesmo no tempo mais calorento, tricotando e constantemente sugerindo a seus tutelados que entrassem no mar ou saíssem dele, que pusessem um chapéu contra o sol, comessem um biscoito de gengibre ou se afastassem daquela criança desagradável, que podia estar com algo contagioso. Entretanto, para sorte sua, nunca tivera muito a ver com qualquer delas.

Quanto aos quartos de brinquedos, a expressão não evocava nada mais excitante do que o quarto-enfermaria no Santa Ursula, com seu piso de linóleo marrom, janelas sem cortinas e um estranho cheiro, mescla de menta e canela.

Conseqüentemente, entrou na sala de brinquedos de Nancherrow com certa dose de trepidação, prontamente dissipada ao constatar que todas as suas preconcebidas idéias eram de todo enganosas. Aquilo ali nada tinha de quarto para doentes ou de enfermaria. Era uma grande e ensolarada sala de estar, com uma enorme janela de sacada e um assento-janela que ocupava boa parte da parede sul, permitindo uma ampla visão do jardim e aquele distante e sedutor panorama do horizonte cintilante.

O aposento tinha uma lareira aberta e estantes entulhadas de livros, sofás e poltronas adequados, com coberturas floridas, um grosso tapete turco e uma mesa redonda com uma resistente toalha de fundo azul, estampada com pássaros e folhagens. Havia mais delícias à vista. Quadros alegres, um rádio em cima da mesa perto da lareira, uma vitrola portátil e uma pilha de discos, uma cesta com apetrechos de tricô e um monte de revistas. As únicas concessões à vida de um quarto de brinquedos eram o alto guarda-fogo com o topo em latão polido, um surrado cavalo de balanço sem a cauda e uma tábua de passar roupas.

A tábua de passar estava montada, e Mary Millyway estivera trabalhando duro nela. No chão havia uma cesta de vime cheia de roupa lavada, uma pilha de peças meticulosamente passadas repousava em cima da mesa e, sobre a tábua, Judith viu uma camisa azul já passada pela metade. Havia no ar aquele cheiro bom e tranqüilizante de algodão recém-passado, fazendo-a recordar a cozinha em Riverview House e, em conseqüência, Phyllis. Então sorriu, porque aquilo era um pouco como chegar em casa.

— Bem, aí está você...

Mary largou o ferro de passar, abandonou a camisa e abriu os braços para Loveday que, deixando as maletas caírem sobre o tapete, agarrou-se neles para um forte abraço. Foi levantada do chão como se tivesse o peso de uma pluma, e sacudida de um lado para outro, como o Pêndulo de um relógio.

Minha menina levada...

Um beijo foi impresso no topo da anelada cabeça castanha de Loveday, e então Mary a depositou no chão, com um baque, quando Judith cruzou a porta.

— Oh, então esta é a sua amiga! Carregada como uma mula! O que é isso que está trazendo?

— É a minha caixa de cedro.

— Dá a impressão de pesar uma tonelada. Deixe-a em cima da mesa, pelo amor de Deus! — O que Judith fez, agradecida — Por que a trouxe com você?

— Nós queríamos mostrar a caixa para mamãe — explicou Loveday. — É nova. Judith a ganhou no Natal. Esta é Judith, Mary.

— Foi o que pensei. Olá, Judith.

— Olá.

Mary Millyway. Não era corpulenta, nem velha ou autoritária, mas uma nativa da Cornualha, alta e magra, que não teria mais de trinta e cinco anos. Tinha espessos cabelos louros e rosto sardento, traços fortes, agradáveis, não porque fossem bonitos em qualquer sentido, mas porque todos combinavam-se entre si e, de algum modo, pareciam exatamente certos. Ela tampouco usava qualquer espécie de uniforme, e sim uma saia de tweed cinza e uma blusa branca de algodão, com um broche na gola, e um cardigan de lã azul-fumaça.

As duas observaram-se. Mary falou.

— Você parece mais velha do que pensei.

—Tenho quatorze anos.

— Ela está em uma classe mais adiantada do que a minha — explicou Loveday — mas nosso dormitório é o mesmo. E, Mary, você vai ter que dar um jeito, porque Judith não trouxe nada para vestir em casa, e minhas roupas devem ser pequenas para ela. Existe alguma coisa de Athena que possa servir?

— Você vai arranjar problemas, emprestando as coisas de Athena. —Não estou me referindo ao que Athena ainda usa, mas às roupas que ela não quer mais. Ei, você sabe o que quero dizer...

— Claro que sei. Nunca vi ninguém como ela, que usa as coisas uma vez e depois as rejeita...

—Pois bem, encontre alguma coisa. E encontre agora, para a gente poder ficar livre destes uniformes horríveis.

— E eu lhe digo — replicou Mary calmamente, tornando a empunhar com firmeza o ferro de passar — que leve Judith e mostre a ela onde vai dormir...

— Qual é o quarto?

Aquele rosa, no fim do corredor...

Oh, que bom, Judith, o quarto rosa é o mais bonito...

—... e depois, quando terminar de passar minha roupa, vou dar uma olhada na minha gaveta especial, para ver o que consigo arranjar.

Ainda tem montanhas de roupa para passar?

—Não levarei mais de cinco minutos. Agora vá, e quando voltar, já estarei pronta.

— Está bem. — Loveday sorriu para Judith. — Vamos.

Ela já tinha ido, saíra do quarto e seguia em frente. Parando apenas para pegar sua maleta, Judith precisou correr, para alcançá-la. Desceu o comprido corredor, para o qual davam portas fechadas em ambos os lados, mas cada uma delas tendo no alto clarabóias em forma de leque, de maneira que tudo estava muito claro e arejado. Na extremidade mais distante, o corredor dobrava para a direita, revelando outra ampla ala. Pela primeira vez, Judith pôde avaliar a extensão daquela casa. Ali, compridas janelas ofereciam vistas dos gramados nos fundos, os quais estendiam-se até altas sebes de escalônias. Mais além viam-se as pastagens da propriedade, cercadas por muros de pedra, onde pastavam manadas de gado Guernsey.

— Vamos!

Loveday fizera alto por um momento, esperando que Judith a alcançasse, de maneira que não havia tempo de parar, olhar e abranger tudo o que havia para ver.

— É tudo tão grande... — comentou Judith, admirada.

—Eu sei que é grande, mas não podia ser de outro modo, porque somos muitos e sempre há gente vindo ficar aqui. Esta é a ala dos hóspedes. — Agora, à medida que avançava, Loveday ia abrindo e fechando portas, desta maneira permitindo a visão dos quartos mais além. — Este é o quarto amarelo. E um banheiro. Aqui é o quarto azul... Tommy Mortimer geralmente fica nele. Sim, ele está aqui, estou reconhecendo suas escovas de cabelo. E o seu cheiro.

Qual é o cheiro dele?

Divino! Por causa do que ele põe no cabelo. Este agora é o grande quarto de casal. Não acha espetacular, a cama de quatro colunas? É terrivelmente antiga. Parece que a Rainha Elizabeth dormiu nela. Agora, mais um banheiro. E este é o quarto de vestir, mas também com uma cama, para o caso dos hóspedes terem um filho pequeno ou algo assim. Mary coloca um berço, se for mesmo um bebê. Mais um banheiro. E aqui, chegamos ao seu quarto.

Tinham alcançado a última porta. Mostrando certo orgulho, Loveday tomou a dianteira e entrou no quarto. Como qualquer outro aposento naquela casa deleitosa, este era igualmente apainelado em madeira, mas tinha duas janelas com cortinas de chintz, em toile de Jouy. O acarpetado também era rosa, e a cama, com sua alta cabeceira de latão, exibia uma coberta de linho branco, fresca como neve recém-caída, de bainhas bordadas com margaridas. Havia uma prateleira para bagagem aos pés da cama, e ali Judith depositou sua maleta, que ficou parecendo humilde, pequenina e, de algum modo, também vulnerável.

— Gostou?

— É simplesmente adorável.

Ela viu o toucador, com uma saia franzida no mesmo tecido das cortinas e provido de um espelho tríplice. Sobre ele, uma bandeja de porcelana com estampa de rosas e um pequeno vaso de louça, cheio de aveludadas primaveras-dos-jardins. Havia um enorme guarda-roupa vitoriano e uma apropriada poltrona com almofadas cor-de-rosa. Ao lado da cama, uma mesinha sustentava um abajur e uma moringa de água com o respectivo copo ajustado ao seu gargalo, bem como uma lata coberta de cretone, que Judith sabia estar cheia de gostosos biscoitos para o chá. Apenas para o caso de sentir fome no meio da noite.

— E aqui é o seu banheiro.

Simplesmente inacreditável. Ela foi inspecioná-lo e viu o piso axadrezado em ladrilhos pretos e brancos, a imensa banheira, as torneiras douradas de bocal largo, enormes toalhas brancas, frascos com óleo para banho e potes de vidro contendo talco perfumado.

— O meu banheiro?

— Bem, você o divide com o quarto do outro lado, mas como ele está vazio, então o banheiro é todo seu. — Loveday voltou ao quarto, para escancarar a janela e debruçar-se nela. — E esta é a sua vista, mas vai ter que se esforçar um pouco para avistar o mar.

Judith se juntou a ela e as duas ficaram lado a lado, os braços pousados no peitoril de pedra, e sentindo o vento fresco, com cheiro de mar, que batia em seus rostos.

Esticando o pescoço, Judith admirou devidamente a visão do mar, porém muito mais interessante era o que podia ver logo abaixo delas. Um enorme pátio lajeado, com três lados fechados por construções de um só pavimento e telhados de ardósia. No meio deste pátio erguia-se um pombal, e pombos brancos voavam por todos os lados, outros pousados, alisando as penas com os bicos ou enchendo o ar com seus arrulhos satisfeitos. A volta dos lados do pátio, ela viu gamelas de madeira plantadas com trepadeiras, tendo também percebido evidências mais mundanas de atividade doméstica: uma despensa para carne de caça, grande como um guarda-roupa, algumas latas de lixo, um varal ocupado por nevadas toalhas de chá. Além do pátio havia uma estrada de cascalho e depois relvados aparados, ondulando até uma fileira de árvores. Estas, ainda não ostentando a folhagem, inclinavam-se ao toque do vento marinho, agitando os ramos à brisa fresca.

Parecia não haver ninguém por ali, mas, enquanto observavam, uma porta se abriu e dela emergiu uma jovem com um avental de algodão malva. Judith e Loveday olharam o topo da cabeça dela. A jovem carregava uma tigela de metal com cascas de vegetais, que foram jogadas dentro de uma das latas de lixo.

— São para os porcos da sra. Mudge — sussurrou Loveday com ar importante, como se elas fossem espiãs e não devessem ser pressentidas.

A jovem de avental não olhou para cima. Fechou estrondosamente a tampa da lata de lixo, fez uma pausa para testar o grau de secagem das toalhas de chá, e depois tornou a desaparecer dentro de casa.

— Quem é ela?

— É Hetty, a nova ajudante de cozinha. Ajuda a sra. Nettlebed, nossa cozinheira. Seu marido, o sr. Nettlebed, é o nosso mordomo. Ela tem bom humor, mas ele pode ficar terrivelmente irritado. Mamãe disse que é por causa de seu estômago. O sr. Nettlebed tem uma úlcera.

Um mordomo. Aquilo estava se tornando cada vez mais grandioso. Judith debruçou-se um pouco mais e espiou para baixo.

—Aquele é o estábulo onde você guarda seu pônei?

— Não. Lá é onde estão o compartimento do boiler, o galpão de guardar lenha, o depósito de carvão, coisas assim. Também há o banheiro dos jardineiros. Os estábulos ficam um pouco mais distantes, não dá para vê-los daqui. Depois do almoço, levo você até lá para que conheça Tinkerbell. Poderá montá-la, se quiser.

— Eu nunca montei — admitiu Judith, ao mesmo tempo não admitindo que tinha medo de cavalos.

— Tinkerbell não é um cavalo, mas uma pônei. Tem um temperamento adorável, nunca morde nem dá coices. — Loveday pensou por um momento. — Hoje é sábado, portanto, talvez Walter esteja lá.

— Quem é Walter?

— Walter Mudge. O pai dele cuida das plantações Lidgey... São as plantações aqui de casa, e também ajuda papai a dirigir a propriedade. Walter é muito legal. Tem dezesseis anos. Às vezes aparece nos fins de semana para limpar os cavalos e ajudar o jardineiro. Está juntando dinheiro para comprar uma motocicleta.

— Ele também monta?

— Walter exercita o cavalo de caça de papai, quando ele está sem tempo. Quero dizer, quando tem que atuar como juiz, ir a uma reunião, coisas assim. — Loveday recuou abruptamente a cabeça. — Estou ficando com frio. Venha, vamos desfazer sua bagagem.

As duas fizeram isso juntas. Judith não tinha grande coisa como bagagem, mas tudo devia ser posto em seu correto e importante lugar. O chapéu e o casaco dela foram pendurados no guarda-roupa — o casaco em um grosso cabide forrado de veludo rosa. O interior do guarda-roupa cheirava a lavanda. Depois a camisola foi deixada sobre o travesseiro, o robe pendurado atrás da porta, o pente e a escova arrumados sobre o toucador, roupas limpas guardadas em uma gaveta, a escova de dentes e a toalha de rosto colocadas nos seus devidos lugares no enorme banheiro. O diário e a caneta-tinteiro ela deixou em cima da mesinha-de-cabeceira, juntamente com seu relógio e seu novo livro de Arthur Ransome.

Ao terminarem, Judith olhou em volta e concluiu que suas insignificantes posses pouco impacto haviam produzido no lindo e luxuoso quarto. Loveday, contudo, não tinha tempo a perder com inspeções. Impaciente como sempre, já estava entediada por tais atividades domésticas. Chutou a maleta vazia para debaixo da cama, e disse:

—Tudo pronto! Agora vamos ver se Mary encontrou alguma coisa para você vestir. Não sei a sua opinião, mas se eu não me livrar logo deste uniforme horrível, vou começar a gritar.

Ela deixou o aposento rapidamente e começou a correr de volta para o quarto de brinquedos, enchendo o corredor de atroante barulho como se desafiasse todos os regulamentos escolares que haviam sido martelados em sua cabeça indócil, porque estava em casa novamente — e em liberdade.

Mary já terminara de passar sua roupa, dobrara a tábua e pusera o ferro para esfriar. Foram encontrá-la ajoelhada diante de um armário alto — o móvel mais imponente ali dentro — com a funda gaveta inferior aberta e várias peças de roupa amontoadas em pilhas bem arrumadas, à volta dela.

Loveday não pôde esperar.

—E então, o que achou? Não é preciso que seja elegante. Qualquer coisa serve...

— O que quer dizer com "qualquer coisa serve"? Não vai querer que sua amiga fique parecendo algo saído de uma liquidação...

— Mary, essa é uma malha nova. Athena a usou nos últimos feriados. O que está fazendo nessa gaveta...?

— Boa pergunta. Athena prendeu o cotovelo da manga em um pedacinho de arame farpado. Eu fiz um cerzido, mas acha que ela usaria? Não Athena, a madaminha!

— É maravilhosa, de cashmere. Deixe-me ver...

Mary estendeu a blusa a Loveday, que a jogou para Judith. Esta a pegou no ar, e foi como segurar um pedacinho de paina, tão impalpável e macia era a lã da blusa. Cashmere. Ela nunca tivera uma blusa de cashmere. E esta era vermelho-azevinho, uma de suas cores preferidas.

—... e agora, aqui temos uma linda blusinha de algodão estampado com gola Peter Pan. Só Deus sabe por que Athena a pôs de lado! enjoou dela, sem dúvida. Encontrei também dois shorts, que ela usava no colégio para jogar hóquei. Pensei em guardá-los, achando que Poderiam ficar para Loveday.

Mary os entregou para uma inspeção geral. Eram de flanela azul-marinho, pregueados como um saiote. Loveday aprovou.

— Vieram a calhar! Acho que não vai precisar de mais nada, concorda, Judith? Oh, Mary, você é o máximo! — Inclinando-se, ela Passou os braços magricelas em torno do pescoço de Mary, quase estrangulando-a em um abraço. —Você é a melhor Mary do mundo. Agora, Judith, vá imediatamente vesti-los, porque eu quero mostrar tudo por aqui a você!

Judith levou as roupas emprestadas para o seu quarto. Entrou e trancou a porta. Depositou cerimoniosamente a blusa de cashmere, os shorts e a blusinha de algodão em cima da cama, como fazia sua mãe, quando ia trocar de roupa para uma festa. Na verdade, embora aquele fosse um sábado absolutamente comum, Judith tinha a leve sensação de que ia trocar de roupa para uma festa, porque tudo naquela casa tão agradável — a própria atmosfera do lugar — tinha um toque de festa.

Entretanto... e isto era ainda mais importante... por um momento ela se viu sozinha. Mal podia recordar a última vez em que estivera de fato sozinha, sem ninguém para falar ou fazer perguntas, que se intrometesse ou a pressionasse, que lhe dissesse para fazer algo ou que parasse de fazer algo, que tocasse uma sineta ou reclamasse sua atenção. Descobriu que este era o mais maravilhoso alívio. Sozinha! A sós consigo mesma, em seu próprio quarto, cercada de espaço e quietude, de objetos que agradavam aos olhos, de paz. Foi até a janela, abriu-a e debruçou-se no peitoril para ver os pombos brancos e ouvir seus doces arrulhos.

Sozinha. Tanta coisa tinha acontecido, e por tanto tempo... Semanas. Meses até. Natal em Plymouth, toda aquela agitação de desfazer a vida em Riverview House, das compras para o colégio e, finalmente, das despedidas. E então o Santa Ursula, onde não era possível ter uma vida privada por um só segundo.

Sozinha. Judith percebeu quanta falta lhe fizera o luxo da solidão, compreendeu que seu conforto ocasional sempre lhe seria essencial. O prazer de estar consigo mesma era não apenas espiritual, mas também sensual, como usar seda, nadar sem maiô ou caminhar ao longo de uma praia totalmente vazia, com o sol à retaguarda. A solidão revigorava uma pessoa. Renovava. Judith contemplou os pombos e, apenas por aquele momento, desejou que Loveday não viesse à sua procura. Claro está que sentia apreço por ela, em especial por estar sendo incansavelmente gentil e hospitaleira, mas agora desejava apenas um pouco de tempo para encontrar-se, para reorientar um senso pessoal de identidade.

De muito longe, de uma distante orla boscosa, chegou aos seus ouvidos um eco de tiros. Os homens da casa continuavam abatendo pombos. O som repentino, interrompendo a calmaria, fez com que os pombos brancos voassem precipitadamente de seus poleiros e dessem voltas no ar, mostrando alguma agitação até considerarem seguro uma nova retomada de pouso. Ela os espiou enquanto se ajuntavam, estufavam os peitos nevados e reiniciavam os arrulhos.

Loveday não apareceu. Com certeza estava à procura de alguma peça de roupa convenientemente maltrapilha, diferente o mais que possível da rígida disciplina do uniforme escolar. Assim, após alguns instantes, Judith fechou a janela, despiu o uniforme e, lentamente, saboreando a novidade, enfiou no corpo as peças rejeitadas por Athena Carey-Lewis. Andando para cá e para lá, lavou as mãos (sabonete Chanel) e escovou os cabelos, prendendo-os atrás da cabeça com uma nova fita azul-marinho. Somente então examinou-se diante do comprido espelho na porta do guarda-roupa. Foi algo surpreendente, porque sua aparência havia ficado inteiramente diferente. Sofisticada e dispendiosa. Era outra garota, quase adulta, totalmente nova. Judith via a própria expressão complacente, e não podia deixar de sorrir. Pensou em sua mãe, porque este parecia ser o tipo exato de experiência que ambas deveriam partilhar. Ao mesmo tempo, no entanto, tinha quase absoluta certeza de que dificilmente seria reconhecida por ela.

A porta foi aberta de repente.

—Já está pronta? — perguntou Loveday. — O que estava fazendo? Você demorou séculos! Poxa, está com ótima aparência! Deve ter algo a ver com Athena. Ela sempre parece sensacional, mesmo que vista um saco esfarrapado, fica maravilhosa. Talvez encante tudo o que usa, e a mágica permaneça. E então, o que você quer fazer agora

Judith respondeu timidamente que não fazia diferença — o que era verdade — uma vez que não conseguia pensar em mais nada para dizer. Em seu presente estado de euforia, o que quer que lhe fosse sugerido pareceria perfeito.

— Podíamos ir dar uma olhada em Tinkerbell, mas isso talvez demore muito, e logo será hora do almoço. Portanto, vamos explorar a casa e eu lhe mostrarei cômodo por cômodo, para mais tarde ficar Sabendo por onde anda.

Judith não errara sobre Loveday, que agora usava ignominiosas calças de montaria, já demasiado curtas para suas finas canelas, e uma suéter na escura tonalidade purpúrea de ameixas maduras. A cor da suéter acentuava o azul-violeta de seus olhos extraordinários, mas ela era tão despida de qualquer tipo de vaidade pessoal, que não devia ter escolhido aquela peça de roupa por este motivo, mas antes por exibir cerzidos nos cotovelos e ter sido tão usada e lavada, que se tornara confortavelmente informe.

— Tudo bem — concordou. — Vamos explorar. Por onde começamos?

— Pelo alto. Desde os sótãos.

Foi o que realmente fizeram. Os apartamentos aninhados sob o teto continuavam indefinidamente — quartos de depósito, quartos de caixas, dois pequenos banheiros e quatro dormitórios.

—Estes são os quartos das empregadas. —Loveday franziu o nariz. — Sempre têm um certo cheiro de pés e axilas suados...

— Quantas empregadas são?

—Três. Janet é a arrumadeira, Nesta a copeira, e Hetty ajuda a sra. Nettlebed na cozinha.

— Onde dorme a sra. Nettlebed?

— Oh, ela e o marido têm um pequeno apartamento em cima da garagem. Agora, vamos descer pela escada dos fundos. Como você já viu a ala dos hóspedes, podemos começar pelo quarto de mamãe...

— E a gente pode entrar lá?

— Oh, claro que sim. Mamãe não se importa, desde que ninguém mexa nas coisas e nem gaste todos os seus perfumes. — Loveday abriu a porta e passou à frente de Judith. — Não é lindo? Ela acabou de redecorá-lo — um homenzinho cheio de trejeitos veio especialmente de Londres para isso. Papai ficou furioso porque ele pintou o apainelado, mas eu achei muito bom. E você?

O que Judith achou não podia ser descrito em palavras. Ela jamais vira um quarto de dormir tão grande, tão feminino, tão cheio de objetos maravilhosos e sedutores. As paredes eram de tons claros — nem brancas, nem rosa ou pêssego, e reluziam suavemente à luz do sol. Havia reposteiros de grande espessura, inteiramente estampados com rosas e, por dentro deles, cortinas brancas finíssimas e transparentes, que oscilavam tranqüilas à brisa que vinha do mar, penetrando pela janela aberta. A cama de casal, ampla e de um branco imaculado, estava coberta pelo mesmo tecido alvo e transparente, tendo à cabeceira travesseiros rendados e bordados. Acima dela havia um dossel com uma pequena coroa dourada no centro, o que lhe dava a aparência do quarto que uma Princesa talvez escolhesse para dormir.

.Pois agora dê uma espiada no banheiro. Também foi todo reformado...

Sem palavras, Judith a seguiu e observou: lustrosos ladrilhos negros espelhos de fundo rosado, porcelanas brancas e um espesso tapete também branco. Um tapete no banheiro! Aquilo era o luxo absoluto e final.

..... e, veja, o espelho dela tem lâmpadas em toda a volta, como no camarim de uma atriz. Quando abrimos os espelhos, atrás deles há prateleiras onde ela guarda sua maquiagem, perfumes e coisas assim.

— O que é isso?

— Isso? Oh, isso é o bidê de mamãe. É francês! Serve para lavar o traseiro.

— Ou os pés.

— Papai ficou horrorizado.

As duas começaram a rir como loucas, sacudindo-se de hilaridade. Um pensamento ocorreu a Judith. Controlando o riso, voltou ao quarto florido e perfumado, olhou em torno, mas não encontrou o menor sinal de ocupação masculina.

— E onde seu pai guarda as coisas dele?

— Oh, ele não dorme aqui. Tem seu próprio quarto na outra extremidade do corredor, acima da porta da frente. Ele gosta do sol da manhã e precisa ter um quarto afastado, porque ronca muito e não deixa ninguém dormir. Vamos, quero mostrar-lhe mais...

As duas deixaram aquele quarto encantado e prosseguiram em sua inspeção.

—Este é onde Athena dorme, e o quarto de Edward fica aqui. Estes São banheiros. Agora vem o de Mary, perto do quarto de brinquedos, que antigamente era o quarto de dormir das crianças. Então, ela foi ficando por aqui mesmo. Este é o banheiro do quarto de brinquedos, com uma espécie de pequena cozinha em um recanto, para ela poder preparar chá e outras coisas. Agora vem o meu quarto...

- Eu teria adivinhado.

- Como?

— Pelas roupas no chão e quadros de pôneis na parede.

- E também todas as flâmulas do Clube do Pônei, todos os meus ursinhos de pelúcia... Eu os coleciono desde que nasci. Agora são vinte e todos eles têm nomes. Também aqui estão os meus livros e a minha antiga casa de bonecas, porque Mary disse que não a queria atravancando o quarto de brinquedos. Minha cama fica de frente para este lado, porque assim posso ver o sol nascendo de manhã... Venha, vamos indo, porque ainda há montes de coisas para ver. Aqui é o armário da arrumadeira, onde ficam as vassouras e essas coisas. Este é o quarto da roupa branca, e ao lado há mais um quartinho que só é usado quando estamos com muitos hóspedes. — A essa altura, as duas haviam feito o trajeto de um círculo completo, agora estando de volta ao topo da escadaria principal. No lado mais distante do patamar, uma última porta continuava fechada. —... e aqui é onde papai dorme.

O aposento não era muito espaçoso e, depois do esplendor do restante da casa, parecia austero e algo penumbroso. O mobiliário era pesado e vitoriano, com uma cama de solteiro, estreita e alta. Tudo estava imaculadamente ordenado. As cortinas eram de brocado escuro e, no centro exato de uma cômoda alta, perfeitamente arrumadas, jaziam escovas masculinas com acabamento em marfim. Havia também uma foto de Diana em moldura de prata, porém um pouco mais de natureza pessoal. Aquele era um quarto que nada revelava de si.

— É muito sombrio, não acha? Enfim, papai gosta assim, porque esta é a maneira como sempre foi. Ele detesta mudanças. E gosta de seu banheiro, porque é redondo... fica na torre, entenda, bem acima da entrada. Papai pode ficar em sua banheira antiga e esquisita, de onde percebe quando tem gente chegando e, ouvindo suas vozes, conclui quem são. Se não gosta delas, então continua na banheira, até ouvi-las irem embora. Como pode deduzir, ele não é muito sociável.

— Seu pai sabe que sou uma hóspede? — perguntou Judith, um tanto agitada.

— Oh, céus, claro! Mamãe contaria para ele. Não se preocupe, papai vai gostar de você. Ele só prefere evitar os amigos maçantes dela.

Depois disso desceram para o andar de baixo e deram início à última volta. Judith começava a sentir-se atordoada e confusa. Além de faminta. Pareciam ter passado horas, desde o breakfast. Loveday, entretanto, era incansável.

— Agora, o saguão que você já viu. Aqui fica o estúdio de papai e também onde os homens deixam seus agasalhos. Tem ainda este banheiro espetacular, exatamente como num clube para homens. Papai se tranca aqui durante horas pela manhã, depois do breakfast, para ficar lendo sobre cavalos e Cães de Caça. Olhe bem, não é impressionante? Mamãe diz que aqui é a sala do trono dele. Afinal, aqui também é a sala de bilhar. Às vezes, os homens vêm para cá depois do jantar e ficam horas jogando, até noite alta. De qualquer modo, é uma boa coisa para fazer, nas tardes chuvosas. E este é o estúdio de papai, e aqui está a sala de refeições... já toda pronta para o almoço, como pode ver. Esta aqui é a sala de estar, mas não costumamos usá-la, a menos que seja uma noite de inverno com frio de rachar. Não levo você à sala de visitas porque irá vê-la de qualquer modo, antes do almoço. Venha conhecer a sra. Nettlebed.

Assim, elas finalmente chegaram à cozinha, o coração de qualquer casa. Era uma cozinha semelhante à maioria das cozinhas na Cornualha, exceto por ser muito mais ampla e porque, no lugar do oblíquo fogão de uso local, havia um outro, moderno, imenso e de cor creme. Fora isso, viam-se ali a mesma e familiar porção de tinta verde-escura nas paredes, a mesma grade de secar roupas ajustada bem alto, junto ao teto, o mesmo armário entulhado de louças e a mesma enorme mesa de superfície lisa, no centro do aposento.

Ali é que se encontrava a sra. Nettlebed, ajeitando frutas glaçadas no topo de um bolo. Era uma mulher baixa e atarracada, com um grande avental rosa, e outro branco sobre ele. Uma touca de algodão branco, que não lhe assentava nem um pouco, descia até quase as sobrancelhas, escondendo sua fisionomia. O rosto dela estava corado, e seus tornozelos haviam inchado, devido à longa permanência em pé. Entretanto, quando Loveday correu em sua direção... "Olá, sra. Nettlebed, somos nós...!", não houve cenhos franzidos nem pedidos Para não atrapalhar, pelo amor de Deus, porque ela estava preparando o almoço. Em vez disso, as bochechas redondas da sra. Nettlebed inflaram-se em uma extasiada expressão de puro contentamento. a Saltava imediatamente aos olhos que Loveday era a sua queridinha e sua alegria.

Oh, minha querida! Aí está a minha garotinha! Venha cá e dê um grande beijo na sra. Nettlebed...! —Ela abriu as mãos e estendeu os braços roliços, como uma estrela-do-mar, inclinando-se para frente, a fim de receber o beijo que Loveday imprimiu em seu rosto. —Vejam só o seu tamanho! Como cresceu! Logo estará maior do que eu. Esta é a amiga que você trouxe...

— O nome dela é Judith.

— É um prazer conhecê-la, Judith.

— Como vai?

— Veio para o fim de semana? Bem, será divertido. Grandes aventuras com esta menininha levada!

— O que temos para o almoço, sra. Nettlebed?

— Ensopado de caçador, purê de batata e refogado de repolho.

— Há noz-moscada no repolho?

— Eu jamais faria repolho sem noz-moscada.

— Então, provavelmente vou comê-lo. Os homens já chegaram?

— Acabei de ouvi-los no pátio, contando o que trouxeram. Teremos torta de coelho no almoço de amanhã. Acho que eles estão na sala das armas, limpando-as. Não levarão mais que dez minutos.

— Dez minutos... — Loveday fez uma careta. — Estou morrendo de fome!

Ela foi até o armário, abriu uma lata e tirou dela dois biscoitos para o chá. Deu um para Judith e enfiou o outro na boca.

— Ouça, Loveday...

— Já sei. Vou estragar meu apetite e não provarei nada do seu saboroso almoço. Venha, Judith, vamos encontrar mamãe e ver se ela nos dará um drinque.

Encontraram Diana na sala de visitas, tranqüilamente enrodilhada no canto de um enorme sofá creme, lendo um romance. Estava fumando um fragrante cigarro turco em uma piteira de jade e, na mesinha ao seu lado, achavam-se o cinzeiro e um coquetel. Quando as duas jovens irromperam na sala, perturbando sua quietude, ela ergueu a cabeça e ofereceu um sorriso de boas-vindas.

— Queridas, por fim apareceram. Que ótimo! E então, divertiram-se?

— Sim, rodamos pela casa inteira, vimos cômodo por cômodo e depois fomos dizer olá para a sra. Nettlebed. Agora podemos ganhar um drinque?

— O que quer beber?

Encostada a uma parede, uma mesa espelhada oferecia à vista várias garrafas e copos cintilantes, tudo muito bem arrumado. Loveday foi inspecionar o que havia em oferta.

. Eu gostaria mesmo de um Orange Corona, mas aqui não há nenhum — disse ela.

Aquela horrível coisa gasosa que deixa a boca alaranjada? Talvez haja alguma na despensa. Toque para Nettlebed, e descubra se ele tem uma garrafa escondida em algum lugar.

A campainha ficava na parede, acima da mesa. Loveday apertou-a com o polegar. Diana sorriu para Judith.

— O que acha da minha querida casa?

— É linda, mas quase posso afirmar que esta sala é a parte mais bonita de todas.

Não havia dúvidas quanto a isso. Apainelada e com o chão encerado salpicado de tapetes, era um aposento cheio de luz do sol e de flores. Ali não havia humildes narcisos, e sim flores mais exóticas colhidas na estufa, todas em tons de púrpura, branco e fúcsia. A um canto, um enorme vaso de porcelana azul e branca exibia um pé de camélias, os galhos escuros e lustrosos cobertos de flores rosa-forte. Os espessos reposteiros e estofamentos eram de brocado creme, estando todos os sofás e poltronas cheios de almofadas de cetim em claros matizes verdes, rosas e azuis, o conjunto dando a impressão de imensos e deliciosos bolos cozidos. Havia revistas perfeitamente alinhadas sobre uma mesa de centro, publicações que não podiam faltar em qualquer casa digna desse nome. The Tatler, para mexericos sociais, The Sketch, para teatro e balé, The lllustrated London News, para eventos atuais, e The Sporting Dramatic, para corridas de cavalos. Havia ainda The Field, Horse & Hound, os últimos Vogue e Woman's Journal, assim como uma pilha de jornais diários, com aparência de ainda nem terem sido abertos.

Judith gostaria de permanecer sozinha, ficar contemplando aquilo por muito e muito tempo, captar cada detalhe, porque se nunca mais voltasse àquela casa, teria dela um retrato perfeito na mente. A alta platibanda da lareira era pintada de branco, tendo sobre ela uma fileira de encantadores bibelôs de porcelana — uma banda de macacos da brica Meissen. Acima da platibanda pendia um retrato de Diana, seus ombros esguios envoltos em chifon cinza-azulado, um raio de luz

transformando em dourado seus cabelos muito claros. Havia riso nos olhos azuis pintados na tela, e um fantasma de sorriso em seus lábios como se ela e o artista partilhassem o mais íntimo e interessante segredo.

Vendo-a contemplar o retrato, Diana perguntou:

— Gosta dele?

— É exatamente igual a você. Diana deu uma risada.

— Maravilhosamente lisonjeiro. Enfim, de Laszlo sempre foi um bajulador.

A vista através das janelas altas já se tornara familiar. Os formais jardins dispostos em terraços iam descendo e se fundiam com arbustos e prados relvados, pontilhados de vibrantes narcisos. A um lado ficava uma porta-janela dando para um terracinho fechado, privado como um pequeno aposento dentro do jardim. Este era fechado na parte dos fundos por uma estufa e, através dos vidros das janelas, era possível ver-se um jasmineiro-trepadeira em pleno desabrochar e numerosos grupos de vime, desejáveis e antiquados. Tudo aquilo evocava idéias de verão, de banhos de sol, de tardes ociosas e prolongadas bebidas frescas. Ou talvez chá-da-china em xícaras finíssimas e transparentes, com sanduíches de pepino.

Judith estava perdida em imagens sedutoras, quando Loveday chegou ao seu lado.

— Aquele é o lugar preferido de mamãe, não é, mamãe? Ela fica lá e toma banho de sol, sem nenhuma roupa no corpo.

— Somente quando não há ninguém por perto!

— Bem, eu já vi você tomando banho de sol.

— Você não conta.

A essa altura, a porta atrás delas abriu-se silenciosamente e uma voz grave se fez ouvir:

— A senhora chamou, madame?

O sr. Nettlebed. Loveday já contara a ela que o mordomo tinha úlceras estomacais e um ânimo imprevisível, porém nada disso preparou Judith para a aparência distinta e magnífica do homem. Ele era alto, com cabelos brancos e fisionomia simpática, mas de um modo algo melancólico. Mais ou menos como um digno agente funerário. As roupas que vestia confirmavam tal impressão, porque seu paletó, a gravata e as calças eram inteiramente negros. O rosto era pálido e com Rugas, os olhos de órbitas fundas, e tão impressionante era o seu porte, que Judith se perguntou como alguém teria a ousadia de pedir-lhe para fazer alguma coisa, muito menos de dar-lhe qualquer tipo de ordem.

- Oh, Nettlebed, obrigada — disse Diana. — Loveday quer alguma coisinha para beber...

— Eu quero Orange Corona, sr. Nettlebed, e não há nenhum na mesa.

Esta exigência foi seguida por um longo e grave silêncio. Nettlebed não se moveu, apenas fixou em Loveday seu olhar frio, como se estivesse espetando uma borboleta morta em um comprido alfinete de aço. Diana ficou calada. O silêncio prosseguiu. Tornou-se desconfortável. Virando a cabeça, Diana olhou para Loveday.

Com uma resignada expressão no rosto, a garota começou tudo outra vez.

— Por favor, sr. Nettlebed, podia ter a gentileza de ver se há algum Orange Corona na despensa?

A tensão foi imediatamente desfeita.

— Certamente — respondeu Nettlebed. — Creio que há um engradado na prateleira da despensa. Irei ver e certificar-me.

Ele começou a retirar-se, mas Diana perguntou:

— Os homens já voltaram, Nettlebed?

—Já, madame. Estão fazendo a limpeza, no quarto das armas.

— Eles tiveram uma boa manhã?

— Vários coelhos e pombos, madame. E duas lebres.

— Céus! Pobre sra. Nettlebed... Quanta coisa para preparar!

— Eu provavelmente a ajudarei, madame.

Ele saiu, fechando a porta atrás de si. Loveday fez uma careta.

— Eu provavelmente a ajudarei, madame — imitou. — Velhote Pomposo!

Loveday — disse Diana, e sua voz se tornara gélida.

— Bem,é assim que Edward o chama.

Edward devia pensar melhor antes de falar. E quanto a você, sabe Perfeitamente que nunca pediu a Nettlebed, ou a quem quer que quisesse que lhe fizesse alguma coisa sem antes dizer "por favor", e depois agradecer, quando a coisa fosse feita.

- Eu apenas esqueci.

- Pois não esqueça mais.

Diana tornou a concentrar-se em seu livro. Judith estava constrangida, intimidada e sem jeito, como se a censura tivesse sido dirigida a ela. Loveday, no entanto, continuava imperturbável. Debruçando-se nas costas do sofá, com a escura cabeça cacheada quase tocando os cabelos lustrosos e dourados da mãe, perguntou:

— O que você está lendo?

— Um romance.

— Como se chama?

— Intempéries nas Ruas.

— É sobre o quê?

— O amor. Um amor infeliz.

— Pensei que todo amor fosse feliz.

— Oh, querida, nem sempre... Nem toda mulher é feliz.

Diana estendeu a mão para seu drinque, um pequeno copo triangular de coquetel, cheio de um líquido dourado. No fundo do copo, como um curioso seixo ou alguma estranha criatura marinha, espreitava uma azeitona. Ela tomou um gole e depois deixou o copo na mesa. Nesse momento, a porta da sala de visitas se abriu novamente, porém o homem parado na soleira não era o sr. Nettlebed.

— Papai! — exclamou Loveday, abandonando o lado da mãe e voando para os braços abertos do homem.

— Olá, minha garotinha! — Os dois se abraçaram e beijaram, ele inclinando o corpo para a filha. — Sentimos sua falta. E aqui está você, de volta outra vez...

Ele lhe desmanchou os cabelos, sorrindo para a filha caçula como se ela fosse a criatura mais preciosa sobre a Terra.

(Como Loveday era amada... Por todos. Sentindo-se um tanto deslocada e observando aquela espécie de comportamento demonstrativo que ela própria nunca tinha experimentado, foi difícil para Judith não sentir uma leve pontada de inveja.)

— Diana. — Tendo Loveday pendurada a seu braço como um cachorrinho, ele cruzou a sala até onde estava sua esposa e inclinou-se para beijá-la. —Sinto muito, minha querida, estamos atrasados?

Ela voltou a cabeça, com o intuito de sorrir para o rosto dele.

—Nem um pouco. São apenas quinze para uma. Tiveram uma boa manhã?

— Esplêndida!

— Onde estão Tommy e Jeremy?

Tommy já está cuidando de si mesmo. E Jeremy se dispôs a limpar minha arma para mim...

O prestativo rapaz...

Imóvel fora daquele quadro, ouvindo o diálogo dos dois esposos, Judith assumiu deliberadamente uma expressão afável e sorridente, que escondia o choque sentido com a aparência do pai de Loveday. Porque, sendo tão velho, o Coronel Carey-Lewis era uma completa surpresa. Para si mesma, ela decidiu que ele mais parecia pai de Diana do que seu marido, podendo passar facilmente por avô de Loveday. Em realidade, ele exibia a postura ereta de um soldado, movendo-se com as passadas flexíveis e longas do homem perpetuamente ativo, mas os cabelos — ou o que restava deles — eram brancos, ao passo que os olhos, encravados fundo no rosto sulcado de rugas, tinham o tom azul-aguado dos de um idoso homem do campo. As faces castigadas pelo vento eram pálidas, o nariz longo e aquilino pairando acima de um bem aparado bigode militar. Era alto e bastante magro. Estava com um venerável paletó de tweed e calças de forte tecido de algodão, presas abaixo dos joelhos. As pernas, finas como de cegonha e calçadas em meias que chegavam aos joelhos, terminavam em rústicos borze-guins marrons, muito bem engraxados.

—Jeremy disse que era o mínimo que podia fazer.

Dito isto, ele endireitou o corpo, livrou-se do agarramento de Loveday, alisou os cabelos com as mãos e se virou para Judith.

— E você deve ser a amiga de Loveday, não?

Ela o fitou nos olhos e viu que ambos eram observadores e afáveis mas, por algum motivo, imensamente tristes. Isso tornava a ser estranho, porque o encontro dele com a esposa e a filha tinha claramente resultado em intensa alegria para os três. Entretanto, ele então sorriu, e parte da tristeza ficou apagada. Moveu-se para ela, de mão estendida.

— Foi muito bom você ter podido vir e ficar.

- O nome dela é Judith — disse Loveday.

Como vai? — disse Judith, e eles apertaram as mãos formalmente.

Os dedos do pai de Loveday, prendendo os seus, eram secos e ásperos. Judith sentiu o odor suave que emanava do paletó dele e, de maneira instintiva, percebeu que se encontrava tão acanhado quanto ela. Isto a fez sentir grande simpatia por ele, e desejar ardentemente ser capaz de deixá-lo à vontade.

— Loveday cuidou de você direitinho?

— Sim, senhor. Demos uma volta pela casa inteira.

— Ótimo. Agora, você ficará sabendo por onde anda.

Ele hesitou. Não era bom para conversar amenidades e, por sorte neste momento foram interrompidos pela chegada de um segundo cavalheiro ao mesmo tempo que Nettlebed, este muito rígido sobre os calcanhares, tendo à frente, como uma oferenda votiva, uma garrafa de Orange Corona em uma salva de prata.

— Diana... caímos todos em desgraça, por demorarmos tanto tempo?

— Oh, querido Tommy, não seja tão tolo. Bom dia?

— Muito divertido.

Tommy Mortimer ficou um momento esfregando as mãos, como que satisfeito por estar dentro de casa e não no frio lá fora, ao mesmo tempo em que ansiava por um drinque confortador. Também estava vestido para caçar, com um elegante conjunto de tweed e colete amarelo-canário. Tinha um rosto ameninado, bem-humorado e sorridente, a pele lisa, bronzeada e imaculadamente barbeada. Contudo, era difícil avaliar sua idade, porque os cabelos bastos estavam quase brancos. De algum modo, no entanto, isto servia apenas para acentuar a juvenil flexibilidade de seu passo e aquela forma inteiramente teatral de chegar. Aqui estou eu, era como se dissesse: Agora, podemos todos começar a nos divertir de verdade!

Ele cruzou a sala para depositar um beijo no rosto de Diana, e então voltou suas atenções para Loveday.

— Oh, mas eis aqui a garota levada! Tem um beijo para seu tio honorário? Como vai na escola? Eles já a transformaram em uma pequena dama?

— Oh, Tommy, não me faça perguntas tão bobas!

— Você poderia, pelo menos — disse Diana — apresentar Tommy a sua amiga.

— Oh, eu sinto muito — Visivelmente exibindo-se, Loveday começou a exagerar a importância disso. — Esta é Judith Dunbar, que está no colégio comigo, e este, ta-rá, ta-rá, é Tommy Mortimer.

Tommy riu, achando graça na impudência dela.

- Olá, Judith.

— Como vai?

O coronel, no entanto, já tivera o suficiente no capítulo de formalidades triviais. Era hora para um drinque. Empertigado junto à mesa Nettlebed preparou as bebidas. Martini seco para o sr. Mortimer, cerveja para o coronel, Orange Corona para as jovens. Bebericando preguiçosamente o seu martini, Diana recusou uma segunda dose. Com seu copo na mão, Tommy veio instalar-se no sofá ao lado dela, meio virado a fim de encará-la, com um braço graciosamente colocado ao comprido sobre as almofadas. Judith perguntou-se se ele não seria um ator. Tinha pouca experiência em peças teatrais, porém já vira filmes suficientes espremida no cinema de Porthkerris, ao lado de Heather, para identificar o estudado arranjo dos membros — o braço estendido e as pernas graciosamente cruzadas. Talvez Tommy Mortimer fosse um famoso ídolo de matinês, e ela, em sua ignorância e falta de experiência, não sabia disso. Entretanto, se ele de fato fosse um ator, Loveday certamente lhe teria contado.

Nettlebed, tendo encerrado a preparação dos drinques, retirou-se da sala.

Judith bebericou seu Orange Corona. Era delicioso, borbulhante e forte, muito doce. Esperou que o gás não a fizesse arrotar. Mantendo-se um pouco afastada dos outros, procurou engolir lenta e cuidadosamente, desta maneira evitando qualquer possível embaraço. Concentrada neste problema, não reparou que o último membro do grupo de caçadores entrava na sala.

Ele chegou silenciosamente, calçado em sapatos de sola de borracha, deste modo não sendo igualmente ouvido pelos outros. Era um homem muito mais jovem, de óculos, vestindo roupas de veludo cotelê e uma grossa suéter cor de canela. Parou logo depois de cruzar a porta aberta. Judith sentiu seus olhos sobre ela, ergueu o rosto e viu que ele fitava, como uma vez ela também o tinha olhado. Por um incrédulo estante, os dois entreolharam-se com certo espanto, e depois ele sorriu. Então não houve mais dúvida, porque tudo nele era inteiramente familiar.

O rapaz cruzou a sala e chegou perto dela.

- É você, não? — indagou. — A garota do trem?

Judith estava tão encantada, que foi incapaz de falar. Assentiu apenas.

— Que extraordinária coincidência! É colega de colégio de Loveday? Um sorriso começava a se formar no rosto dela. Podia senti-lo nascendo, sem consciente volição de sua parte. Mesmo querendo, não teria evitado sorrir. Assentiu novamente.

— Como se chama?

— Judith Dunbar.

— Eu sou Jeremy Wells.

Ela finalmente encontrou a própria voz.

— Eu sei. Tinha adivinhado.

— Jeremy! Não vi que havia chegado! — Do sofá, Diana o vira afinal. — Deve ter entrado na ponta dos pés. Fazendo sua própria apresentação a Judith?

Ele riu.

— Não é preciso. Nós já nos conhecemos. Do trem. Vindo de Plymouth.

Imediatamente eles se tornaram o centro das atenções. Todos se mostraram surpresos pela coincidência e quiseram ouvir os detalhes do encontro de ambos. Como haviam ocupado o mesmo compartimento do trem e contemplado, da ponte de Saltash, os navios de guerra lá ancorados, e finalmente a despedida em Truro.

— Como vai sua irmãzinha? Aquela com o boneco-espantalho? — perguntou Jeremy.

— Viajou. Voltou para Colombo com minha mãe.

— Oh, que pena! Eu não sabia. Irá sentir falta delas.

— A essa altura, já devem ter chegado lá. Logo em seguida, farão a mudança para Cingapura. Meu pai tem um novo trabalho.

— Pretende ir e ficar com eles?

— Não, pelo menos durante alguns anos.

A sensação era deliciosa. Era como ser adulta, vestida nas roupas caras de Athena, bebericando um drinque e deixando todos satisfeitos, porque ela possuía um amigo pessoal. Judith continuou lançando olhares disfarçados ao rosto de Jeremy Wells, apenas para certificar-se de que realmente o via ali em Nancherrow, como parte do clã Carey-Lewis, sem, no entanto, deixar de ser ele próprio. Recordou como, no trem, quando ele abriu a janela, a ponta de sua comprida echarpe poousara em seu joelho. Recordou também o momento em que falara a respeito dele com Phyllis. Era realmente simpático tinham sido mais ou menos as suas palavras, e eu gostaria de conhecer alguém como ele.

E agora, o seu desejo se tornara realidade. Ele estava ali. Agora ela o conhecia adequadamente. Aquilo tinha realmente acontecido...

O som do gongo chamando para o almoço chegou até eles, vindo Ao saguão. Diana terminou seu drinque, estendeu o copo vazio para Tommy Mortimer, levantou-se, reuniu em torno o seu pequeno grupo, e liderou a caminhada para a sala de refeições.

— Agora — disse o coronel — vai me contar como você e Jeremy se conheceram.

— Eu estava no trem que vinha de Plymouth. Logo depois do Natal. Ocupávamos o mesmo compartimento.

— E o que esteve fazendo em Plymouth?

—Passava dias com minha tia e meu tio. Ele é capitão-engenheiro em Keyham. Nós ficamos com eles durante o Natal.

— Nós... quem?

— Minha mãe, minha irmãzinha e eu. Então ele saltou em Truro, enquanto nós prosseguimos para Penmarron.

— Entendo. Percebeu que Jeremy agora é médico?

—Sim. Ele nos contou. E... esta manhã, Diana me disse que o pai dele é o seu médico.

Ela hesitou um pouco ao tratar Diana pelo primeiro nome, de maneira tão familiar, enquanto conversava com o distinto e idoso marido dela, mas o coronel pareceu nem perceber. Provavelmente, já estava por demais acostumado à atitude casual da esposa em relação às formalidades da vida.

— Ele é um bom rapaz. — O coronel olhou um pouco mais para baixo, na mesa, onde Jeremy se sentava. — Grande jogador de críquete. Capitão do time de rúgbi da Cornualha. Eu o vi jogar no ano passado. Fui a Twickenham somente para isso. Um grande acontecimento.

— Diana me falou também sobre isso.

Ele sorriu.

— Nesse caso, não devo ser enfadonho. Agora, fale-me sobre sua família. Eles estão no Oriente?

— Sim, em Colombo.

—Já morou lá?

— Foi onde nasci. Só vim para cá aos dez anos. Minha mãe ia ter Jess, que agora tem quatro anos.

— Seu pai trabalha para o Serviço Civil?

—Não. Seu ramo é a navegação. Trabalha para uma firma chamada Wilson McKinnon. Logo estará sendo transferido para Cingapura, e em breve todos eles irão para lá. —Judith acrescentou: —Na verdade, minha mãe não queria ir, mas espero que acabe gostando do lugar.

— Sim, é o que se pode desejar.

Judith pensou que o coronel estava sendo muito cortês e hospitaleiro, conversando com ela e fazendo-a sentir-se à vontade, como se fosse uma hóspede de fato importante. Ele ocupava a cabeceira da comprida mesa de jantar, com Loveday e Judith sentadas de cada lado. Diana estava na extremidade oposta, tendo Tommy à sua esquerda e Jeremy à direita. Mary Millway, que apareceu quando todos já estavam acomodados, sentou-se entre Jeremy e Loveday. Ela havia penteado os cabelos e empoado o nariz. Estava composta e perfeitamente à vontade, conversando com Jeremy — obviamente seu conhecido de sempre — a quem relatava a última bisbilhotice envolvendo a legendária Athena. Em troca, ele lhe falava de seus progressos e do trabalho no Hospital Saint Thomas.

A refeição, conforme descrita na cozinha pela sra. Nettlebed, não parecera muito interessante, mas a verdade é que estava deliciosa. O cozido do caçador era acastanhado e suculento, condimentado com cogumelos frescos e um molho avinhado; o purê de batata estava cremoso e suave... bom para acompanhar o molho espesso... e o repolho, ligeiramente polvilhado com noz-moscada ralada, estava verde, macio e crocante como nozes. Para beber havia água, ou cerveja para os homens. Após servir os vegetais e ter enchido todos os copos, Nettlebed retirara-se da sala, em passos silenciosos. Judith ficou aliviada ao vê-lo afastar-se. Era-lhe difícil ignorar a gélida presença daquele homem, e seu olhar frio era suficiente para fazer qualquer um usar o talher errado, derrubar um copo com água ou deixar cair no chão um dos guardanapos de linho.

Até então, ela não havia cometido nenhum destes deslizes e, sem Nettlebed esgueirando-se em torno de sua nuca, ela estava começando a se divertir.

,E quanto a você pessoalmente? — perguntou o coronel. — Está dando conta do recado? Consegue divertir-se no Santa Ursula?

Ela deu de ombros.

— Está tudo bem.

.E sobre os feriados escolares?

Vou ficar com minha tia Louise.

— Onde é isso?

— Em Penmarron. Perto do campo de golfe.

Foi neste momento que, em torno da mesa, houve um daqueles inexplicáveis silêncios... com todos fazendo uma pausa na conversa em geral. Assim, quando Judith acrescentou, "A casa se chama Windy-ridge", sua voz foi a única a soar na sala.

Do outro lado da mesa, Loveday começou a dar risadinhas sufocadas.

— Qual é a graça? — perguntou seu pai.

— Eu não a chamaria de Windyridge, mas de Fartyedge — "Gases-soltos"!

Depois disso, ela prorrompeu em esganiçadas gargalhadas e provavelmente teria ficado sufocada com o cozido ou espirrado o que comia, se o coronel não lhe tivesse batido nas costas e, assim, salvo, por um fio, o dia.

Judith ficou embaraçada e apreensiva ao mesmo tempo, esperando uma tempestade de reprimendas ou, na pior das hipóteses, uma ordem furiosa para deixar a sala imediatamente. Usar de semelhante linguagem, e à mesa do almoço!

Entretanto, ninguém pareceu ficar nem um pouco chocado. Todos Se divertiram à grande com aquilo, rindo com vontade em torno da mesa, como se Loveday houvesse feito algum comentário inteligentemente engraçado. Apenas Mary Millway murmurou:

— Oh, francamente, Loveday!

Mesmo assim ninguém, muito menos Loveday, deu a menor importância a Millway. Depois que parou de rir e limpou as lágrimas das faces com um lencinho de bordas rendadas, Diana observou, em voz baixa:

— Foi uma verdadeira sorte Nettlebed não estar na sala. Loveday você realmente passou dos limites, mas foi tão engraçado que, acho eu, isso não vem ao caso

O primeiro prato foi terminado e a sineta soou, chamando Nettlebed para retirar os já usados. Serviu-se então a sobremesa. Torta de ameixas (em lata) com calda e creme da Cornualha. Tendo cumprido o seu dever para com a hóspede da filha, o coronel voltou a atenção para Loveday, que tinha muito a contar-lhe sobre as iniqüidades do colégio, as injustiças de Deirdre Ledingham, a impossibilidade de aprender álgebra e a hostilidade da Inspetora.

Ele ouviu a rotina assentindo com polida atenção, sem argumentar ou interromper, e Judith adivinhou que, provavelmente, já teria ouvido tudo aquilo antes. Seu respeito por ele aumentou, porque o coronel sem dúvida sabia que, se analisasse qualquer das queixas de Loveday, nenhuma delas revelaria a menor substância. Da mesma forma, ele talvez aceitasse o fato de que sua filha caçula, fosse como fosse, era uma sobrevivente, e que se ela não conseguisse o que queria através da sedução e da lisonja, apelaria pura e simplesmente para a chantagem. Como fizera antes, fugindo de seu primeiro internato e recusando-se terminantemente a voltar para lá.

Judith espalhou uma colherada de creme sobre o caldo de sua sobremesa, enquanto voltava a atenção para outras conversas. Tommy Mortimer e Diana faziam planos para Londres; falavam da próxima temporada londrina, com a Exposição de Flores de Chelsea, Wimble-don, Henley e Ascot. Era fascinante ouvi-los.

— Tenho entradas para a Quadra Central e a Tribuna Real.

— Oh, céus! Terei de comprar alguns chapéus.

— E quanto a Henley?

— Nem me fale! Sempre adoro Henley. Todos aqueles caros velhotes excêntricos com suas gravatas cor-de-rosa...

— Podemos organizar uma reunião. Quando será sua próxima ida à cidade?

— Ainda não decidi. Talvez dentro de umas duas semanas. Irei dirigindo o Bentley. Preciso encomendar uma ou duas roupas, acessórios, coisas assim. E encontrar um decorador que faça alguma coisa em Cadogan Mews, antes que Athena volte da Suíça.

— Conheço um homem maravilhoso. Eu lhe darei seu telefone.

- É muita gentileza sua. Direi a você quando resolver ir.

poderemos ir a um teatro, e depois a levarei para cear no Savoy.

Divino! — Imediatamente, Diana ficou cônscia da presença de Judith. Sorriu. — Sinto muito, estamos sendo enfadonhos, comentando nossos planos. Afinal, este é o seu dia e ninguém está falando com você. Agora, diga-me, o que quer fazer esta tarde? — Ela alteou ligeiramente a voz, exigindo atenção. — O que todo mundo quer fazer esta tarde?

Loveday respondeu:

— Eu quero montar Tinkerbell.

— Querida, isto soa um tanto egoísta. E quanto a Judith?

—Judith não se importa em montar. Ela não gosta de cavalos.

— Nesse caso, talvez fosse mais gentil fazer alguma coisa de que ela também goste.

— Eu não me incomodo — disse Judith receando alguma espécie de discussão.

Loveday, no entanto, parecia dar pouca importância a discussões, brigas ou qualquer coisa.

—Oh, mamãe, eu realmente quero montar Tinkerbell. E você sabe que não é bom para ela deixar de ser exercitada regularmente!

— Não quero que saia por aí sozinha. Talvez papai possa ir com você.

— Ela não estará sozinha — disse o coronel. — O jovem Walter está trabalhando nos estábulos esta tarde. Mandarei um recado para ele, a fim de que tenha os cavalos encilhados e prontos.

— Ora, papai, por que você não pode ir comigo?

— Porque, minha garotinha, tenho trabalho a fazer. Cartas a escrever, telefonemas a dar e um encontro com Mudge às quatro horas.

Olhando para a outra extremidade da mesa, ele fitou indulgentemente a esposa.

— E você, como vai passar o resto do dia?

Oh, eu e Tommy já temos ocupação. Convidei os Parker-Browns Para um bridge. Entretanto, isto ainda não resolve o problema de nossa hóspede... —Judith se sentiu terrivelmente constrangida, como se, de repente, fosse um incômodo estorvo. A situação piorou, quando Diana virou para Mary Millway. — Talvez, Mary... Não obstante, foi interrompida por Jeremy Wells que, até então, Permanecera fora da conversa.

— Que tal eu mesmo incumbir-me de Judith? Vamos todos juntos aos estábulos, nós dois apanhamos os cães e descemos até a enseada. —Ele sorriu para Judith, que ficou tomada de gratidão, porque Jeremy percebera o seu apuro e, com a maior facilidade, viera em seu socorro. — Gostaria de fazer isso?

— Sim, eu adoraria, mas não precisa se preocupar comigo. Estarei muito bem sozinha.

Claramente grata por ter tudo arranjado, Diana contrariou as débeis objeções de sua hóspede:

— É claro que você não pode ficar sozinha. Acho uma ótima idéia, desde que os pais de Jeremy não se importem por ele passar o dia inteiro aqui. Afinal de contas, você veio apenas para o fim de semana, e eles estarão ansiosos por um pouco de sua companhia...

—Irei para casa depois do chá. De qualquer modo, papai hoje está de plantão, mas teremos a noite para nós. Diana ficou radiante.

— Bem, isto não é esplêndido? Tudo resolvido e todos felizes. Judith, você vai adorar a enseada, nossa querida prainha particular. Entretanto, vista um casaco ou peça a Mary que lhe arranje um blusão extra, porque junto ao mar sempre faz frio. E, Loveday, não esqueça o seu capacete. Bem, agora, podemos ir todos para a sala de estar e tomar uma xícara de café, não?

O convite, segundo parecia, não incluía as duas garotas. Depois que os adultos se foram, elas ficaram na sala de refeições, ajudando Mary e Nettlebed a tirar a mesa. Somente então subiram ao andar de cima, a fim de se prepararem para suas excursões. Pulôveres extras foram tirados das gavetas para as duas, porém as botas de montaria, as luvas e o capacete de Loveday só apareceram depois de muita procura.

— Odeio este capacete! — exclamou Loveday. — O elástico fica muito apertado debaixo do meu queixo.

Mary, no entanto, foi intransigente.

— Não é nada disso, e você vai usá-lo.

— Não sei por que deveria usá-lo. Um bando de garotas não usa.

—Você não faz parte desse bando, e não queremos vê-la espalhando os miolos em cima de uma pedra, se por acaso cair. Muito bem, aqui está o rebenque e dois toffees para colocarem no bolso.

Mary pegou um pote de vidro em cima da platibanda da lareira e distribuiu parcimoniosamente um toffee para cada uma.

E para Jeremy e Walter? — perguntou Loveday.

Mary riu e lhe deu mais dois, depois a botou para andar com um tapinha no traseiro.

— Dêem o fora daqui — disse. — E quando voltarem, terei chá pronto para as duas, aqui, junto ao fogo.

Como cachorrinhos fugindo, as duas dispararam para o andar de baixo e ao longo do corredor que levava à porta da sala de estar. Loveday fez alto diante dela.

—Não vamos entrar aí—sussurrou —pois, do contrário, seremos apanhadas. — Abrindo a porta, enfiou apenas a cabeça. — Jeremy! Estamos prontas!

— Encontrarei vocês no quarto de armas — soou a voz dele. — Dentro de um minuto. Levarei Pekoe comigo. Tiger está lá, secando-se, depois de ficar todo molhado esta manhã.

— Certo. Tenha um ótimo bridge, mamãe. Até logo mais, papai. — Fechou a porta. — Venha! Vamos passar primeiro pela cozinha e pegar alguns torrões de açúcar para Tinkerbell e Ranger. E se a sra. Nettlebed nos der doces, não conte a ela que Mary já nos deu toffees.

A sra. Nettlebed não lhes deu doces, mas pequenos e dourados bolinhos recém-saídos do forno, que acabara de preparar para o chá da sala de visitas. Estavam quentinhos, bons demais para serem guardados, de maneira que Loveday e Judith os comeram prontamente. Após um raide pelo depósito de açúcar, elas se foram.

— E agora, divirtam-se...! — flutuou atrás delas a voz da sra. Nettlebed.

O corredor dos fundos levava ao quarto de armas, que cheirava agradavelmente a graxa, óleo de linhaça, velhos impermeáveis e cães. À volta de todas as paredes havia gabinetes trancados para armas de fogo e caniços de pesca — os arpões e as botas impermeáveis de cano alto próprias para vadear, ocupavam prateleiras especiais. Tiger cochilava em sua cama, porém as ouvira chegando e já se levantara, Pronto para recebê-las e ansioso por um pouco mais de exercício. Era um enorme Labrador negro, de focinho quadrado, olhos escuros e uma cauda que se agitava como um êmbolo. - Olá, Tiger querido, como vai você? Teve uma bela manhã, encontrando coelhos mortos e pombos abatidos? — Tiger emitia ruídos satisfeitos no fundo da garganta. Mostrava-se francamente amistoso, o que era uma boa coisa, sendo ele um cão demasiado grande e forte para exibir-se de outro modo. — E agora vai dar um maravilhoso passeio?

—É claro que vai —disse Jeremy, chegando pela porta atrás delas.

Trazia Pekoe debaixo do braço, e o colocou no chão. Enquanto Jeremy vestia o paletó, que tirou de um cabide na parede, os dois cães festejaram-se, Tiger focinhando o pequenino pequinês, e este jazendo de costas e agitando as patas, como se estivesse nadando de barriga para cima. Judith riu.

— Eles juntos são tão engraçados!

—Se são! —exclamou Jeremy, sorrindo. —Vamos, meninas, nada de perder tempo. Walter deve estar esperando.

Saíram dali por uma segunda porta que levava ao pátio lajeado, onde os pombos brancos voejavam em torno do pombal. Era mais ou menos como sair para o inverno, e Judith encolheu-se ante a frialdade do ar. No interior da casa, com o aquecimento central, os cômodos cheios da claridade pálida do sol e do perfume das flores, era fácil imaginar que a cálida primavera finalmente havia chegado, mas bastavam alguns passos no ar invernal, para que imediatamente se desfizesse a ilusão. O dia ainda estava claro, porém um cortante vento leste vinha do mar, de quando em quando soprando nuvens escuras para a face do sol. Judith recordou que, afinal de contas, ainda estavam somente em meados de fevereiro. E, a despeito do agasalho extra, ela tiritava. Jeremy percebeu seus tremores e disse, procurando confortá-la:

— Não se preocupe. Assim que nos movermos, você estará tão quente como uma torrada.

Os estábulos ficavam um pouco distantes da casa, escondidos dos olhos por um pequeno bosque de carvalhos novos diretamente projetado. Uma alameda de cascalhos levava até o arvoredo e, ao se aproximarem, os estábulos surgiram à frente, especificamente construídos e em excelentes condições. Formavam os três lados de um quadrado, com um pátio no meio. Neste pátio, as duas montarias estavam encilhadas e à espera, presas aos aros de ferro incrustados na parede. Tinkerbell e Ranger. Tinkerbell era um pequeno e gracioso pônei cinza, mas Ranger era um baio grande, parecendo a Judith do tamanho de um elefante. Tinha uma aparência aterradoramente forte, com lombos potentes e músculos que estremeciam sob o pelame lustroso e escovado. Chegando ali, ela decidiu manter distância. Poderia afagar o pônei com um tapinha, até mesmo dar-lhe um torrão de açúcar para comer, mas faria uma ampla volta em torno daquele elefante que era a montaria de caça do coronel.

Um rapaz estava ao lado dos animais, ocupado em apertar a cilha do pônei cinzento. Viu que eles chegavam, terminou sua tarefa, deixou cair a aba da sela e ficou esperando, com uma das mãos pousada no pescoço do animal.

— Olá, Walter! — exclamou Loveday.

— Olá.

—Já preparou tudo! Sabia que vínhamos?

— O sr. Nettlebed mandou Kitty trazer o recado. — Ele acenou com a cabeça para Jeremy. — Olá, Jeremy. Não sabia que tinha vindo.

—Tive um fim de semana de folga. Como vão as coisas com você?

— Oh, não de todo ruins. E então, vai vir conosco?

— Não, hoje não. Vamos descer até a enseada. Levarmos os cães conosco. Esta é Judith Dunbar, amiga de Loveday.

Walter virou a cabeça ligeiramente e assentiu para Judith.

— Olá, Judith — falou.

Era um rapaz muito atraente, esguio, moreno e bronzeado de sol como um cigano. Tinha a cabeça coberta de cabelos negros e anelados, os olhos tão escuros como grãos de café. Usava calças de montaria em veludo cotelê, uma camisa grossa listrada de azul e um colete de couro. Em volta do pescoço moreno havia atado um lenço de algodão amarelo. Que idade teria? Dezesseis ou dezessete? Entretanto, parecia mais velho, totalmente amadurecido e já mostrando a sombra escura de uma barba de homem. Fez Judith recordar Heathcliff, em “O Morro dos Ventos Uivantes”, e podia entender perfeitamente por que Loveday ansiava tanto passar a tarde montando Tinkerbell. Ela própria compreenderia a sedução dos cavalos, se tivesse como acompanhante o belo Walter Mudge.

Ao lado de Jeremy, ficou observando Loveday e Walter montarem, Walter rejeitou a oferta de um apoio para o pé, antes de montar, e fez seu corpo girar para cima da sela com uma graça fácil, sugerindo que Poderia, apenas ligeiramente, estar se exibindo.

— Divirta-se — disse Judith para Loveday. Loveday ergueu o rebenque.

— Você também — respondeu.

Os cascos dos animais ecoaram no pátio e depois mudaram de som quando alcançaram a alameda de cascalhos. A fria e viva claridade, os dois cavaleiros faziam um belo quadro. Ambos iniciaram um trote e logo desapareceram por trás do minúsculo bosque de carvalhos, e o ruído dos cascos extinguindo-se.

— Para onde eles vão? — perguntou Judith.

—Provavelmente descerão a alameda para Lidgey e depois subirão até a charneca.

— Isso faz com que eu desejasse gostar de cavalos.

— A gente gosta deles ou não gosta. Venha, está frio demais para ficarmos aqui.

Os dois seguiram o caminho tomado pelos cavaleiros e depois dobraram para a direita, onde a alameda descia através dos jardins, em direção à costa. Os cães dispararam à frente e logo sumiram de vista.

— Eles não se perderão, não é mesmo? — perguntou Judith. Estava ansiosa e sentindo-se responsável pelo bem-estar dos cães.

Jeremy tranqüilizou-a.

— Eles conhecem este caminho melhor do que ninguém. Quando chegarmos à enseada estarão lá, e Tiger até já terá nadado um pouco.

Ele tomou a frente e ela o seguiu, caminhando por uma trilha serpenteante de cascalho que ia em direção ao mar. Os formais gramados e canteiros ficaram para trás. Os dois cruzaram um pequeno portão de ferro forjado; a trilha estreitou-se e mergulhou em uma selva de vegetação semitropical: camélias, hortênsias de floração atrasada, magníficos rododendros, luxuriantes e maciços grupos de bambus, e altas palmeiras de troncos envoltos no que pareciam cabelos negros muito espessos. Bem no alto, galhos pelados de olmos e faias sussurravam ao vento, ocupados por bandos de gralhas crocitantes. Então, um regato surgiu em meio ao mato rasteiro de hera trepadeira, musgos e samambaias, borbulhando e despejando-se por um leito rochoso, ao longo do qual eles caminhavam. Volta e meia a trilha cruzava e tornava a cruzar a água corrente, através de pontes ornamentais de madeira com desenhos de motivos vagamente orientais, os quais faziam Judith pensar em pratos com a estamparia de salgueiros. O rumorejar do regato e o vento nas árvores eram o único som ouvido; os passos ficavam amortecidos por uma grossa mistura de folhas mortas, e somente quando cruzavam as pontes é que as tábuas de madeira vibravam com as pisadas de ambos.

Na última ponte, Jeremy fez alto, esperando que Judith o alcançasse. Ainda não havia sinal dos cães.

— Como está se saindo?

— Muito bem.

— Isso é ótimo. Agora vamos entrar no túnel.

Ele recomeçou a caminhar. Judith olhou e viu que, à frente deles, a trilha ziguezagueante mergulhava em uma caverna de gunnera, a monstruosa planta de talos espinhosos e folhas do tamanho de um guarda-chuva. Judith já as tinha visto antes, porém nunca em tão luxuriosa profusão. Elas se erguiam ali, sinistras como criaturas de outro planeta, sendo preciso um pouco de coragem para baixar a cabeça e acompanhar seu guia, a fim de caminhar naquele túnel onde a claridade vinda do céu não podia entrar. Era como estar debaixo d'água, tão úmido era tudo aquilo, tão aquoso e verdejante.

Ela bracejava para caminhar perto dele, os pés deslizando sobre a trilha íngreme.

— Eu não gosto de gunnera — disse em voz alta. Ele olhou para trás e sorriu por sobre o ombro.

— No Brasil — respondeu — as folhas são usadas como abrigo contra a chuva.

— Eu preferiria ficar molhada.

—Já estamos quase saindo do túnel.

De fato, pouco depois emergiam da primeva obscuridade do túnel para a vívida claridade da brilhante tarde invernal. Judith viu então que tinham chegado à borda de uma pedreira em desuso. A trilha se tornou um lance de degraus em ziguezague e toscamente talhados, descendo até a base da pedreira. O regato, cujo rumorejar nunca deixara de ser ouvido, voltava a aparecer agora, para despejar-se da borda do penhasco em iridescente cascata, caindo sobre uma fissura rochosa e verde-esmeraldina pelo musgo de fetos, impregnada de umiidade. O ruído da cascata encheu os ouvidos de Judith. Mesembriântemos pendiam das paredes da pedreira; seu piso, entulhado de rochas e pedras grandes, arredondadas pela erosão, com o passar dos anos se tornara um jardim selvagem de amoreiras silvestres e samambaias, emaranhadas madressilvas, hirsutas heras-terrestres e acônitos amarelo-manteiga. O ar adocicava-se com o cheiro de amêndoa do tojo e também com o picante odor de algas marinhas, o que fez Judith perceber que, por fim, estavam perto da praia.

Com algum cuidado, eles fizeram a difícil descida pela improvisada escadaria. No final, a trilha, que agora se reduzira a um estreito caminho, seguia a corrente, contorcendo-se por entre as lúgubres formas das rochas erodidas. Por essa trilha, os dois chegaram ao lado oposto da entrada original da pedreira. Ali, uma rampa lisa e relvada levava a um portão de madeira. A corrente mergulhava em uma galeria e desaparecia; eles escalaram a rampa, chegaram ao portão e desceram para o macadame de uma estrada estreita de fazenda. No lado mais distante da estrada havia um muro baixo de pedra e depois, finalmente, os penhascos e o mar. Ao descerem os terrenos de Nancherrow, eles estavam abrigados pela vegetação, mas agora estavam expostos às fortes rajadas do vento que vinha do sudoeste. O sol surgira de trás das nuvens, o mar era intensamente azul e pontilhado de coroas brancas de espuma. Judith e Jeremy cruzaram a estrada e escalaram o muro distante por meio de um torniquete. Os penhascos não eram a prumo. Uma trilha turfosa descia para as rochas, por entre tojos espinhosos, samambaias e maciços de prímulas silvestres. A maré estava baixa, deixando à vista um encurvado crescente de areia branca. O regato amigo agora ressurgia, escorrendo pelo penhasco e dele para as areias, de onde fluía para o mar por um canal de água doce que dividia a praia em duas. O vento fustigava. Gaivotas grasnavam e revoluteavam acima deles, e o estrondo das ondas era contínuo, batendo na praia e recuando novamente, com um tremendo som sibilante.

Conforme Jeremy havia dito, os cães já estavam lá, Tiger molhado de sua investida no mar e Pekoe cavando um buraco, por ter farejado algum mefítico e sepultado despojo animal. A exceção disso, não havia ninguém à vista. Somente os cães, as gaivotas e eles dois.

— Será que alguém vem até aqui? — perguntou ela.

—Não. Acho que a maioria das pessoas nem suspeita da existência da enseada.

Ele desceu, contornando pedras erodidas e quinas aguçadas, com Judith pouco atrás, esforçando-se em segui-lo. Chegaram por fim a uma ampla prateleira rochosa que pendia sobre a areia, cujas rachaduras estavam incrustadas de cravos-marinhos e amareladas pelos liquens.

— Como pode ver, a praia vai afundando, de maneira que, quando a maré sobe, a água fica com seis metros de profundidade ou mais, transparente como vidro. É excelente para mergulhos. — Jeremy sorriu para ela. — Sabe mergulhar?

— Sei. Meu pai me ensinou, na piscina do Galle Face Hotel.

— Terá de vir aqui no verão e exibir suas proezas. Este é um lugar perfeito. Costumamos fazer piqueniques nesta rocha, sem receio de que a cesta e as garrafas térmicas sejam levadas pela maré alta. Aliás, o ponto é mais ou menos protegido do vento. Não quer sentar-se um pouco?

E foi o que ambos fizeram, mudando um pouco de lugar para encontrar um assento suportável na rocha dura. Judith não sentia mais frio, agora aquecida pela luz ofuscante do sol penetrando em sua suéter grossa, e pela presença indulgente e tranqüila de seu acompanhante.

— Não sei se você conhece a praia em Penmarron — disse ela — mas é muito diferente desta aqui. É grande como um deserto, além de também ser deserta, e quando a gente quer fugir do vento norte, tem que proteger-se nas dunas. Acho-a muito bonita, mas esta é mais... — e ela procurou a palavra adequada.

— Doméstica? — sugeriu Jeremy.

—Sim, é justamente o que eu queria dizer. Fiquei... fiquei contente por trazer-me aqui para vê-la, mas espero que não tenha se sentido na obrigação de fazer isso. Estou bastante acostumada a agir sozinha e me saio muito bem.

—Tenho certeza disso, mas não se preocupe. Eu queria vir. Sempre gostei deste lugar. Talvez por revigorar o espírito. — Ele se sentara com os cotovelos descansando nos joelhos, e contemplava o mar com os olhos apertados, através dos óculos. — Vê os cormorans naquela rocha?Às vezes, quando o tempo esquenta, aparecem focas para tomar sol. Os cães ficam como loucos, sem saber o que fazer com elas.

Os dois permaneceram em silêncio. Judith pensou em Loveday e Walter, a esta altura provavelmente cavalgando nas charnecas, porém a ligeira pontada de inveja sentida ao vê-los partindo, tão ousados e competentes em suas montarias, havia desaparecido. Era melhor estar ali, naquele lugar, na companhia de um homem tão agradável. Estar com ele era quase tão bom quanto estar sozinha. Após um momento, ela disse:

— Você conhece tudo tão bem por aqui, não é mesmo? Eu me refiro a Nancherrow. E aos Carey-Lewis. Dá a impressão de estar em sua própria casa, com sua própria família. No entanto, não está.

Jeremy virou-se e ficou reclinado sobre os cotovelos.

— Para mim, é uma espécie de segundo lar. Compreenda, há anos que freqüento esta casa. Fiquei conhecendo os Carey-Lewis porque meu pai era o médico da família. Depois, já mais velho, quando comecei a jogar rúgbi e críquete, o coronel me tomou mais ou menos sob sua proteção, dando-me todo tipo de encorajamento e de apoio. É um grande torcedor. Sempre comparece a todos os meus jogos, torcendo pela equipe local. Mais tarde, passou a convidar-me para caçar com ele, o que foi uma grande gentileza, já que meu pai nunca dispunha de tempo para entregar-se a este tipo de esporte e, portanto, jamais conseguia retribuir a hospitalidade do coronel.

— E os filhos? Quero dizer, Athena e Edward. Também são seus amigos?

— Embora bem mais novos do que eu, sim, são meus amigos. Quando Athena começou a ir às suas primeiras danças, eu costumava receber a responsabilidade de ser seu par. Não que ela chegasse a dançar comigo, mas a família me considerava uma pessoa de confiança, capaz de levá-la a festas e trazê-la de volta, sã e salva.

— E não se incomodava por ela não dançar com você?

— Não particularmente. Eu conhecia inúmeras outras garotas.

— Ela é muito bonita, não é?

— Deslumbrante. Como a mãe. Os homens a rodeiam como moscas no mel.

— E Edward?

—Nós dois nos conhecemos muito bem, porque quando eu estudava medicina, estava sempre com pouco dinheiro, de modo que o coronel me ofereceu um emprego de férias. Suponho que, na falta de palavra melhor, poderia ser um emprego de tutor. Edward nunca foi muito apegado aos estudos e precisava de um aprendizado extra que o habilitasse a passar nos exames e finalmente ir para Harrow. Também fui seu professor de tênis e críquete. Além disso, costumávamos ir até Penzance velejar com o clube de lá. Foi um período magnífico. Assim, como pode ver, passei um bocado de tempo por aqui.

— Entendo.

O que você entende?

O motivo de parecer ser parte da família.

A gente acaba sendo absorvido. E você? Tinha alguma idéia do que a esperava quando foi convidada para este fim de semana em Nancherrow?

— Em realidade, não.

— A primeira impressão é uma experiência e tanto. Entretanto, não acho que você tenha ficado confusa.

— Não. — Ela refletiu nisso. — Não fiquei, mas somente porque todos eles são muito gentis. Se não fossem, penso que seria um pouco amedrontador, porque tudo é tão... rico! Quero dizer, mordomos, pôneis, babás e reuniões para caçar. Na Inglaterra, nunca conheci alguém que tivesse um mordomo. No Ceilão é diferente, porque todo mundo tem criados, ao passo que aqui a maioria só conta com uma cozinheira geral. O Coronel Carey-Lewis é... é imensamente rico?

—Não mais do que qualquer outro grande proprietário de terras daCornualha...

— Sim, mas...

— O dinheiro é de Diana. Ela era filha única de um cavalheiro muitíssimo rico, chamado Lorde Awlíscombe. Quando ele morreu, Diana ficou muito bem de vida.

Segundo parecia, Diana havia sido abençoada em tudo.

— Ela deve ter tido uma fada-madrinha muito especial. Para ser tão bonita, tão rica e sedutora. A maioria das pessoas ficaria feliz com uma só dessas coisas. E não apenas bonita, mas ainda tão jovem. Mal se pode acreditar que já tenha filhos crescidos.

Diana só tinha dezessete anos, quando casou com Edgar. Edgar. É o nome do coronel?

Sim. Ele é muito mais velho do que Diana, claro, mas adorou-a a vida inteira e finalmente a conquistou. Tem sido um grande casamento. ».

— Se ele a ama tanto, não se importa com pessoas como Tommy Mortimer?

Jeremy deu uma risada.

Você acha que ele deveria importar-se?

Judith ficou embaraçada, como se houvesse dado a impressão de ser terrivelmente moralista.

— Não, claro que não. Apenas parece... ele parece... — Ela atrapalhou-se. — Fiquei pensando se não seria um ator.

— Por causa de todos aqueles gestos expansivos e da voz melíflua? Bem, é fácil enganar-se. Tommy Mortimer não é ator, mas joalheiro. Sua família é dona da casa Mortimer's, os negociantes de prata em Regent Street. É onde as pessoas vão comprar presentes de casamento imensamente caros, anéis de noivado e coisas assim. Minha mãe esteve lá uma vez, mas apenas para que lhe furassem as orelhas. Disse que saiu sentindo-se uma milionária.

— Ele não é casado? Tommy Mortimer, quero dizer.

—Não. Seu grande propósito é amar apenas Diana, mas acho que, na verdade, ele gosta de ser solteiro e namorar para passar o tempo, pois sempre relutou em desistir de sua liberdade. Entretanto, é um grande amigo de Diana. Cuida dela, quando ela desaparece em uma viagem a Londres, e costuma vir aqui de tempos em tempos, se tem necessidade de relaxar um pouco e de respirar um ar mais puro.

Entretanto, era difícil compreender aquilo.

— O coronel não se importa?

—Não creio que se importe. Eles planejaram suas próprias vidas, cada um tem seus interesses pessoais. Diana possui uma pequena casa em Londres, e precisa escapar para a cidade grande periodicamente. Edgar odeia Londres, só indo lá para ver seu corretor ou assistir a um jogo de críquete no Lord's. E ele nunca se hospeda na casa de Diana, preferindo ficar em seu clube. É, essencialmente, um homem do campo. Sempre foi. Sua vida é Nancherrow, isto significando as lavouras e a propriedade, suas caçadas e seus faisões, além de também gostar um pouco de pescar salmões em Devon. Aliás, sendo um magistrado, tem assento no Conselho do Condado. É um homem permanentemente ocupado. Por outro lado, como já disse, é muito mais velho do que Diana. Mesmo que quisesse, ele não conseguiria acompanhá-la no tipo de divertimentos que ela aprecia.

— E que divertimentos são esses?

— Ora, fazer compras e jogar bridge, jantar fora em Londres, ir a clubes noturnos, concertos e teatros. Ela o levou a um concerto certa vez, e ele dormiu a maior parte do tempo. A idéia do coronel sobre uma boa música é "Se você fosse a única garota no mundo" ou então "Terra de esperança e de glória". Judith deu risadas.

— Eu gosto dele — falou. — Tem um rosto tão bondoso!

Ele é bondoso. Também é terrivelmente tímido. Entretanto, você parece ter encontrado muito sobre o que falar, e quebrou o gelo com ele...

A essa altura, o tranqüilo interlúdio dos dois foi encerrado abruptamente. Parecendo já terem tido o suficiente de areia e de mar, os cães vieram à procura deles, subindo trabalhosamente pelas rochas. Tiger estava ensopado de sua segunda natação, e o pêlo de Pekoe ficara incrustado de areia úmida. O comportamento de ambos certamente indicava que estavam fartos de correr por ali e que desejavam continuar a caminhada. Ao mesmo tempo, o sol desaparecera atrás de uma grande e sinistra nuvem, o mar ficara cinzento e o vento esfriara. Sem sombra de dúvidas, chegara a hora de saírem dali.

Eles não voltaram pelo mesmo caminho da vinda, ou seja, através dos jardins. Em vez disso, seguiram pela alameda da fazenda e caminharam ao longo da praia por uns dois quilômetros ou mais, depois internando-se nas terras da propriedade. Subiram por um íngreme vale, onde carvalhos inclinados pelo vento formavam um túnel e acompanhavam o curso de um rio raso. Quando chegaram ao alto do vale, viram-se precisamente na charneca, mas a servidão de passagem os conduziu de volta a Nancherrow, através de campos cheios de gado leiteiro que pastava. Entre as pastagens, ao invés de portões havia antigos torniquetes, lajes de granito cruzando valas profundas.

— Antigas grades inglesas para o gado — comentou Jeremy, tomando a frente durante a passagem por estes obstáculos. — São muito mais eficientes do que portões, porque passantes e excursionistas o podem deixá-las abertas.

Tiger enfrentou as lajes sem a menor dificuldade, mas Pekoe estacou diante da primeira e teve que ser levado no colo sempre que Surgia alguma.

Eram quase cinco horas e a tarde ia morrendo, quando finalmente chegaram à casa. Agora as nuvens enchiam definitivamente o céu e o sol se fora, e a claridade começou a diminuir. Judith estava cansada. Quando cobriam o último trecho, perguntou:

— Será que Loveday já voltou?

— É bem provável. Walter não se arriscaria a ser apanhado pela escuridão.

A essa altura, até os cães vinham arrastando as patas, porém já estavam bem perto de casa. As árvores rareavam, o caminho encurvava-se, e a casa surgiu à vista, com luzes brilhando nas janelas e vidros da porta principal. Entretanto, não foi por ali que eles entraram, mas por onde tinham vindo, dando a volta pelos fundos e atravessando o quarto de armas.

— Norma da casa — explicou Jeremy. — Nada de cães na parte principal, enquanto não estiverem secos. Caso contrário, os sofás e tapetes ficariam em perpétuo estado de sujeira.

Ele encheu de água fresca as tigelas esmaltadas e ficou ao lado, vendo os cães beberem. Finalmente saciados, os dois animais sacudiram-se e foram instalar-se em suas cestas, satisfeitos.

— Muito bem — disse Jeremy — vamos procurar Mary. Ela deve estar à nossa espera, com sua chaleira no fogo. Quero lavar as mãos. Encontro-a no quarto de brinquedos.

Judith subiu exausta para o seu quarto. Entretanto, ele agora estava diferente. Não mais uma novidade, e sim, um ar familiar. Ela voltava para Nancherrow, não a estava vendo pela primeira vez. Era um dos ocupantes, aceita, e este era o seu quarto. Despiu a grossa suéter e a jogou sobre a cama, depois foi para o seu banheiro, onde usou o sabonete perfumado e enxugou as mãos em sua toalha de banho. Em seguida, escovou os cabelos, emaranhados pelo vento, prendendo-os com firmeza para trás. No espelho, suas faces estavam rosadas pelo exercício e o ar puro. Bocejou. Aquele fora um dia longo, e ainda não terminara. Apagando a luz, Judith saiu em busca do chá.

Jeremy chegara lá primeiro e já estava sentado à mesa com Mary e Loveday, passando manteiga em um quente bolinho de creme.

—Não sabíamos para onde vocês foram — disse Loveday, quando Judith se reuniu a eles. — Levaram séculos ausentes. Eu e Mary ja pensávamos que precisaríamos mandar um grupo de busca procurá-los. — Judith puxou uma cadeira e sentou-se à mesa. Era uma bênção sentar-se. O fogo crepitava, e Mary cerrara as cortinas contra o anoitecer. — Gostou da enseada?

— É muito bonita.

- Como quer o seu chá? — perguntou Mary. — Com leite e sem

açúcar? Vai precisar de uma xícara bem forte, depois de caminhar tanto. - Acabei de dizer a Jeremy que não devia ter levado você tão longe.

Não me importo. Até gostei. E você, divertiu-se com seu pônei, Loveday?

Sim, Loveday tivera uma tarde perfeita, com aventuras de sobra, e Trikerbell havia saltado um portão de quatro barrotes. Ranger se assustara com um saco velho, agitado pelo vento em uma sebe espinhosa, mas Walter tinha sido formidável, conseguindo controlar o pânico do animal e tranqüilizando-o novamente.

— Cheguei a pensar que íamos ter o mais terrível desastre! — E, no alto da charneca, haviam galopado por quilômetros, fora celestial, e o ar estava tão puro, que podiam avistar o infinito. E tudo tinha sido celestial, absolutamente celestial, ela mal podia esperar para sair com Walter outra vez. — Com ele é muito mais divertido, porque papai é sempre tão cauteloso!

— Espero que Walter não enfrente riscos — disse Mary, consternada.

— Oh, Mary, você se preocupa demais. Sabe muito bem que sei tomar conta de mim mesma.

Finalmente pararam de comer e beber, fartos de bolinhos quentes, bolos gelados glaçados, biscoitos amanteigados e sanduíches. Não conseguiam comer mais nada. Jeremy recostou-se na cadeira e espreguiçou-se com vontade. Judith receou que a cadeira desmontasse sob o peso dele, porém ela continuou intacta.

— Eu não queria, mas tenho que ir andando. Caso contrário, não chego em casa a tempo para o jantar.

—Pensar em comer outra refeição, depois de todos esses bolinhos, é uma coisa que não consigo imaginar — disse Loveday.

— Fale por si mesma!

Ele ficou de pé, quando então a porta se abriu e Diana entrou.

— Bem, aqui estão todos vocês, tagarelando e parecendo muito à vontade!

— Seu chá já foi servido, sra. Carey-Lewis?

- Sim, e os Parker-Browns já se foram, porque precisam comparecer a um coquetel. Os homens estão de cabeça enterrada nos jornais. Jeremy, você parece prestes a nos deixar.

— Receio que sim. Preciso ir andando.

— Foi ótimo vê-lo aqui. Recomendações minhas a seus pais...

— Bem, obrigado pelo almoço e tudo o mais. Vou enfiar a cabeça na porta e despedir-me do coronel e de Tommy.

— Faça isso. E volte logo, sem demora.

—Não sei quando vai ser possível, mas eu adoraria. Adeus, garotas. Adeus, Judith. Foi muito bom encontrar você novamente. Adeus Mary... — Ele a beijou. — E Diana... — Beijou-a também; foi até a porta, abriu-a, ergueu a mão e saiu.

— Ele nunca foi dos que perdem tempo — disse Diana com um sorriso. —Um rapaz tão cativante... —Ao falar, ela foi instalar-se no canto do sofá do quarto de brinquedos, perto do fogo. — E vocês, meninas, querem descer para o jantar ou preferem uma ceia aqui mesmo, com Mary?

— Se descermos para jantar teremos de trocar de roupa? — perguntou Loveday.

— Oh, querida, que pergunta mais tola! É claro que sim!

— Então, acho melhor ficarmos por aqui e comermos ovos estrelados ou coisa parecida.

Diana ergueu as sobrancelhas bem-feitas.

— E quanto a Judith?

— Eu adoro ovos estrelados — disse Judith — e não tenho um vestido para mudar.

— Bem, se é o que ambas preferem, direi a Nettlebed. Kitty pode trazer uma bandeja para vocês. — Ela enfiou a mão no bolso de seu cardigan verde-claro, de lá tirando os cigarros e o isqueiro dourado. Acendeu um e puxou um cinzeiro para perto. — Judith, e quanto àquela linda caixa que trouxe com você? Prometeu mostrá-la para mim depois do chá. Traga-a para cá, e nós a veremos agora.

Assim, os cerca de dez minutos seguintes foram passados em mais uma exibição dos encantos da caixa de cedro e da complexidade da pequenina fechadura. Diana se mostrou gratamente encantada, admirou cada aspecto do tesouro de Judith, abriu e fechou as gavetinhas, e prometeu-lhe uma coleção de conchas africanas para encher uma delas.

— Você poderia usá-la como caixa de jóias. Guardaria todos os seus anéis e tesouros. Ficariam tão seguros como em um cofre.

— Não tenho anéis. Nem tesouros.

— Você os adquirirá. — Diana baixou a tampa da caixa pela última vez e pressionou a tranqueta. Sorriu para Judith. — Onde vai guardá-la?

Suponho que em casa de tia Louise... Posso levá-la para lá, na metade do período letivo.

— Claro — disse Loveday. — A velha e antipática Inspetora não cede nem um canto de seu armário da Cruz Vermelha!

— Por que não a deixa aqui? —perguntou Diana.

—Aqui?

— Sim. Em Nancherrow. No seu quarto. Então, sempre que vier, a caixa estará esperando por você.

— Mas... — (Ela ia ser convidada novamente, era tudo em que podia pensar. A visita de agora não seria a única. Ia ser convidada a voltar.)

— Bem, não seria um estorvo?

— De maneira nenhuma! E da próxima vez que vier, deverá trazer algumas roupas e deixá-las aqui também, exatamente como se esta fosse sua outra casa. Assim, não terá que ficar andando por aí com as roupas rejeitadas por Athena.

— Eu adorei usá-las. Nunca tive um pulôver de cashmere.

— Então, deve ficar com ele para você. Vamos pendurá-lo em seu armário. Será o começo do seu guarda-roupa de Nancherrow.

Lavinia Boscawem, que há muito e muito tempo aceitara o fato de que pessoas demasiado idosas necessitavam de pouco sono, jazia em sua macia cama de casal, com a cabeça voltada para a janela, contemplando o céu noturno iluminar-se com o alvorecer. As cortinas estavam divididas, puxadas ao máximo para os lados, porque ela sempre acreditara que o escuro, tudo lá fora, com seu céu estrelado e os cheiros e sons noturnos, eram preciosos demais para ficarem ocultos. As cortinas eram muito velhas... não tanto quanto a própria sra. Boscawem, mas tão velhas quanto os anos vividos na Dower House — quase cinqüenta. A claridade do sol e o uso as tinham desbotado e corroído; o recheio espesso assomava aqui e ali, como a lã de uma ovelha idosa, ao passo que a trança sobre as sanefas, assim como as elaboradas fitas para prendê-las se tinham soltado e pendiam em Pequenas ondulações esfiapadas. Pouco importava. Um dia tinham sido bonitas, ela as escolhera e as amara. Aquelas cortinas a veriam ir-se deste mundo.

Nessa manhã não chovia. Lavinia era grata por isso. Chovera demais no inverno e, embora aos oitenta e cinco anos ela tivesse parado de subir e descer ladeiras até à aldeia ou de sair em prolongadas e saudáveis caminhadas, continuava sendo agradável poder ir até o jardim, e lá passar uma ou duas horas cuidando das plantas ao doce ar puro, protegendo as roseiras ou fazendo apertadas tranças com folhas de narcisos, depois que as flores douradas houvessem definhado. Para esta última tarefa, Lavinia contava com uma espécie de genuflexório de couro, idealizado por seu sobrinho Edgar e feito especialmente para ela, na serraria da propriedade. Tinha um coxim de borracha para proteger seus velhos joelhos da umidade, e robustos pegadores bons para agarrar, quando ela queria erguer-se e ficar novamente em pé. Um dispositivo tão simples e ao mesmo tempo tão prático. Mais ou menos como Edgar, a quem Lavinia sempre amara como se filho fosse, posto que nunca tinha sido abençoada com uma família própria.

O céu empalideceu. Prometia um belo dia frio. Um domingo. Ela recordou que Edgar e Diana viriam para o jantar, trazendo consigo Loveday, Tommy Mortimer e a colega de escola de Loveday. Tommy Mortimer era um velho conhecido, encontrado nas inúmeras ocasiões em que abandonava Londres e escapava para um fim de semana campestre, em Nancherrow. Sendo amigo de Diana, atencioso, afetivo e fonte de um interminável suprimento de floreados cumprimentos, a princípio Lavinia tivera fundas suspeitas dele, imaginando escabrosas intenções e, por causa de Edgar, ressentia-se da permanência daquele homem nas proximidades da esposa de seu sobrinho. Entretanto, com o passar do tempo, Lavinia chegara a conclusões próprias sobre Tommy Mortimer, percebendo que ele não significava nenhuma ameaça ao casamento de quem quer que fosse. Assim, foi capaz de achar graça nas maneiras extravagantes dele e chegara a apreciá-lo bastante. Quanto à colega de Loveday, esta ainda lhe era desconhecida, mas seria interessante descobrir que espécie de garota aquela criança travessa e mimada escolheria para passar um fim de semana em sua casa.

De qualquer modo, aquele era um acontecimento. Para o jantar, haveria dois patos novos, vegetais frescos, um suflê de limão e nectarinas em conserva. Na prateleira da despensa havia um excelente Stilton. Lavinia devia falar a Isobel para não esquecer de resfriar o vinho branco do Reno.

Isobel. Em sua velhice, Lavinia tinha poucos aborrecimentos. Na maturidade, chegara à conclusão de que era inútil preocupar-se com questões sobre as quais não tinha controle, isto chegava a incluir sua própria e eventual morte, o tempo e a maneira infeliz como as coisas pareciam estar indo na Alemanha. Desta maneira, após ler conscienciosamente os jornais, entretinha a mente em outras coisas e nada a afastava de tal decisão. Ora precisava encomendar uma nova roseira, podar a budléia, ou então eram os livros para sua biblioteca e cartas que chegavam de velhos amigos, além do que devia enviar a eles. Isto sem falar do progresso na confecção de sua tapeçaria e na conferência diária com Isobel, a respeito da boa administração geral de sua casa de poucos problemas.

Isobel, no entanto, era um certo aborrecimento. Tendo apenas dez anos menos do que Lavinia, na realidade estava ficando incapacitada para cozinhar e cuidar de tudo o que constituíra sua vida durante quarenta anos. De quando em quando, Lavinia reunia coragem e abordava o tema da aposentadoria, porém Isobel sempre ficava imensamente agitada e ofendida, como se sua patroa estivesse querendo livrar-se dela. Após tais ocorrências, eram inevitáveis um ou dois dias de convivência com certa carranca. Não obstante, alguma coisa fora providenciada, e agora a esposa do carteiro vinha da aldeia e subia a colina todas as manhãs. Empregada para fazer o "trabalho pesado", ela aos poucos fora se infiltrando além das portas da cozinha e assumira o restante do serviço da casa — encerar assoalhos, escovar as lajes do pórtico e, de um modo geral, manter tudo brilhando, cheirando bem e arrumado. A princípio, Isobel tratara esta boa alma com frio desdém, e muito podia ser dito em favor da mulher do carteiro, por haver suportado um longo período sem receber qualquer cooperação e, finalmente, ter conseguido anular a hostilidade de Isobel, além de torná-la sua amiga.

Entretanto, ela não vinha aos domingos, de modo que o jantar significaria muito trabalho para Isobel. Lavinia gostaria de poder ajudá-la um pouco — não que pudesse fazer grande coisa, pois era incapaz até mesmo de preparar um ovo cozido. O orgulho de Isobel, no entanto, estava permanentemente em jogo, de maneira que, se ninguém interferisse, no fim de contas tudo terminaria bem, em todos os sentidos.

Um melro cantou em algum lugar do jardim. No andar de baixo uma porta foi aberta e fechada. Lavinia espreguiçou-se sobre sua pilha de travesseiros com fronhas de linho, depois virou-se a fim de esticar a mão para seus óculos, que estavam em cima da mesa-de-cabeceira. Era um móvel bastante grande, do tamanho de uma pequena secretária devido ao número de pequenos, mas importantes objetos que precisavam ficar ao seu alcance. Seus óculos, um copo d'água, uma lata de biscoitos para chá, um bloquinho de papel e um lápis de ponta afiada para o caso dela ter alguma idéia brilhante no meio da noite... Havia ainda uma fotografia de Eustace Boscawen, seu falecido marido — de olhar fixo e consternado, em sua moldura de veludo azul — a Bíblia dela e o livro que estava lendo, Barchester Towers. Talvez o lesse pela sexta vez, mas Trollope era um homem tão estimulante! Lê-lo era como ter alguém nos dando a mão e guiando-nos mansamente de volta a um passado mais ameno. Ela se esforçou para pegar os óculos. Enfim, disse para si mesma, pelo menos não tenho um par de dentaduras sorrindo para mim, de dentro de um copo d'água. Lavinia orgulhava-se de seus dentes. Quantas velhas, aos oitenta e cinco anos, ainda podiam contar com os próprios dentes? Ou, de qualquer modo, com a maioria deles? E os dentes que ela havia perdido ficavam no fundo da boca, não aparecendo a falha. Lavinia ainda era capaz de sorrir e dar risadas, sem receio de embaraçar quem quer que fosse, com a careta de uma falha de dente ou uma dentadura mal ajustada.

Ela olhou para o relógio. Sete e meia. Isobel estava vindo para cima. Podia ouvir os degraus rangerem, os velhos passos cruzando o patamar. Uma batida por pura formalidade, a porta se abriu e ela apareceu, trazendo em uma bandeja o copo matinal de água quente de Lavinia, no qual boiava uma rodela de limão. Era uma antiga tradição que não devia continuar — Lavinia podia perfeitamente passar sem ela. Isobel, contudo, levara cinqüenta anos servindo o limão quente matinal, e não pretendia parar agora.

— Bom-dia — disse ela. — Está fazendo muito frio.

Arranjando espaço na mesa, depositou ali a bandeja. Suas mãos eram enrugadas e vermelhas, os nós dos dedos inchados pela artrite, e ela usava o vestido de algodão azul, tendo sobre ele um avental branco, com peitilho. Nos velhos tempos, costumava cobrir a cabeça com uma volumosa e horrenda touca de algodão branco, porém Lavinia finalmente a convencera a abandonar aquele distintivo de servilidade. Isobel ficara com aparência bem melhor sem a touca, revelando uma cabeleira ondulada e grisalha, puxada para trás em um pequeno coque, preso com enormes grampos negros.

— Oh, obrigada, Isobel.

Isobel cruzou o quarto para fechar a janela, mas, ao fazê-lo, cortou o som dos trinados do melro, expulsando-o para o exterior. Suas meias eram pretas; os tornozelos inchados sobravam acima de gastos sapatos presos com correias. Ela é que devia estar na cama, saboreando bebidas mornas e confortadoras, levadas por outra pessoa. Lavinia desejou não se sentir sempre tão culpada.

Disse, movida por um impulso:

—Espero que você não tenha que trabalhar demais hoje. Acho que devíamos parar de ter almoços para muita gente.

— Não, não comece com isso outra vez! — Isobel ajeitou as cortinas nervosamente, acrescentando em seguida: — Do jeito como fala, até parece que estou a ponto de morrer e ser enterrada.

— Longe de mim tal intenção! — exclamou Lavinia. — Quero apenas ter certeza de que você não se cansará além da conta.

Isobel deu uma risada desdenhosa.

—Não é provável que isso aconteça. De qualquer modo, está tudo encaminhado. Deixei a mesa posta ontem à noite, quando a senhora fazia sua ceia em uma bandeja, e já preparei todos os vegetais. A couve-de-bruxelas está uma beleza, com apenas um leve congelado, e um tantinho crocante. Agora vou descer para fazer o suflê. Aquela Loveday não ficaria satisfeita comigo se não houvesse suflê.

—Você a mima demais, Isobel, exatamente como todos os outros.

Isobel fungou.

— Se quer saber, todas as crianças Carey-Lewis foram mimadas, mas parece que isso não fez nenhum mal a elas. — Inclinando-se, ela recolheu o roupão de Lavinia, em lã fina, que escorregara da poltrona Para o chão. — E nunca aprovei aquilo deles mandarem Loveday para aQuela escola... Então, de que adianta ter filhos, se a gente os manda Para quilômetros de distância?

— Certamente acharam que era o melhor para ela. De qualquer modo, isso agora é passado, e ela parece dar-se bem no Santa Úrsula.

— É bom sinal ela ter trazido uma amiga para casa. Se Loveday está fazendo amigas, também não pode ser expulsa.

— Você está certa. Enfim, devemos lembrar que isso nada tem a ver conosco.

— Talvez, mas podemos ter nossas opiniões, não podemos? — Tendo firmado sua posição, Isobel caminhou para a porta. — Quer um ovo frito para o breakfasti

— Obrigada, minha boa Isobel, isso seria ótimo.

Isobel saiu. Seus passos distanciaram-se, enquanto descia cautelosamente a escada encurvada. Lavinia a imaginou pisando nos degraus, um de cada vez, com a mão firmando-se no corrimão. O senso de culpa não desaparecia, mas o que fazer? Nada podia ser feito. Bebeu a limonada quente, pensou no concorrido almoço, e decidiu usar seu vestido azul novo.

O comportamento de Loveday, na manhã seguinte, deixou perfeitamente claro que a tia-avó Lavinia era uma das poucas pessoas — ou talvez a única — com capacidade de exercer alguma espécie de influência sobre sua caprichosa personalidade. Para começar, saiu da cama bem cedo para lavar os cabelos, e depois vestiu sem nenhuma objeção as roupas que Mary já lhe preparara de véspera: um vestido de lã xadrez, com gola e punhos de um branco alvíssimo, meias-soquetes brancas e sapatos pretos de couro, com correias e botões.

Ao encontrá-la no quarto de brinquedos, onde Mary lhe secava e escovava os cabelos, Judith começou a preocupar-se com a própria aparência. Ver Loveday tão incomumente bonita e elegante fez com que se sentisse realmente patética, algo semelhante a uma parenta pobre. A suéter vermelho-papoula de cashmere era tão apropriada como sempre, mas...

— Não posso sair para almoçar de short, posso? — apelou para Mary. —E o uniforme é tão feio... Não quero ir de uniforme...

—É claro que não irá. — Mary se mostrava compreensiva e prática como sempre. — Vou dar uma olhada nas roupas de Athena e ver se encontro uma saia bonita para você. Poderá usar, de empréstimo, um par de soquetes brancas de Loveday, iguais às que ela está calçando, e lustrarei seus sapatos para você. Então, ficará tão elegante e vistosa como um penny novo... Vamos, fique quieta, Loveday, pelo amor de Deus! Do contrário, nunca vamos secar essa cabeleira.

A saia, surripiada descaradamente do armário de Athena, era do tipo escocês, com correias de couro e fivelas na cintura.

— Os saiotes escoceses são coisas adoráveis — observou Mary. — Não importa o quanto a pessoa seja gorda ou magra, sempre é possível ajustá-los ao corpo.

Ajoelhando-se, ela envolveu a saia em torno da cintura de Judith e firmou as correias. Loveday olhou-a, e deu uma risada.

— É mais ou menos como afivelar a cilha de Tinkerbell...— disse.

—Nada disso. Você bem sabe como Tinkerbell se infla toda, como um pequeno balão. Pronto! Ficou perfeito. E o comprimento também está correto. Bem no meio do joelho. E, no xadrez da saia, há um toque de vermelho que combina com o de sua blusa. — Ela sorriu e voltou a ficar em pé. — Está muito bonita. Podia passar por parenta do rei. Muito bem, agora tire os sapatos, e Mary os deixará tão reluzentes, que poderá ver seu rosto refletido neles.

Nas manhãs de domingo, o café da manhã em Nancherrow não acontecia antes das nove horas, mas, mesmo assim, quando o grupo do quarto de brinquedos surgiu na grande sala de refeições, os outros já se encontravam lá, ocupados com mingau quente e salsichas grelhadas. A sala estava banhada pela claridade matinal do sol de inverno, e havia no ar um cheiro delicioso de café fresco.

— Sinto muito estarmos atrasadas... — desculpou-se Mary.

— Já nos perguntávamos o que estariam fazendo — disse Diana, na cabeceira mais distante da mesa.

Ela usava um conjunto de saia e casaco em flanela cinza-clara, de corte tão perfeito, que a deixava esbelta como uma gata siamesa. Uma blusa de seda azul lhe transformava os olhos em safiras. Nas orelhas tinha brincos de pérola e diamantes, na base do pescoço cintilavam três fieiras de pérolas.

Levamos muito tempo para aprontar-nos.

—-Não tem importância. — Diana sorriu para as garotas. —Vendo um par tão elegante, posso compreender perfeitamente. Você se saiu com brilhantismo, Mary...

Loveday foi beijar o pai. Ele e Tommy Mortimer estavam igualmente formais, usando ternos com colete, camisas de colarinho engomado e gravatas de seda. O coronel largou o garfo, a fim de ficar com a mão livre para abraçar a filha.

— Eu mal a reconheço — falou. — Uma verdadeira lady, usando um vestido. Já começava a esquecer como eram as suas pernas...

— Oh, papai, não seja tolo! — Falando sério, mas sem conseguir esconder o ar dengoso, Loveday acrescentou: — E olhe só, seu velho guloso, tem três salsichas no prato! Espero que tenha deixado algumas para nós...

Mais tarde, ainda pela manhã, os cinco cobriram a curta distância até Rosemullion, todos confortavelmente instalados no enorme Daimler do coronel. Para a igreja, Diana colocara um chapéu de feltro cinzento com aba e um pequenino véu; como o dia, embora brilhante e ensolarado, estava frio, ela havia acrescentado uma pele de raposa prateada ao redor dos ombros.

O carro ficou estacionado junto ao muro do cemitério e eles entraram em fila no passadiço, juntamente com todas as outras pessoas da aldeia, caminhando por entre as lápides antigas e os vetustos abetos. A igreja era pequenina e muito, muito velha, ainda mais velha, pensou Judith, do que a existente em Penmarron. Devido à sua grande antigüidade, ela parecia ter afundado na própria terra, de modo que, do sol lá fora, os fiéis passaram para um ambiente de gélida penumbra, que exalava um odor de pedra úmida, de carunchos e de mofados livros de orações. Os bancos eram duros e horrorosamente desconfortáveis. Quando se sentaram no banco da frente, um sino de timbre desafinado começou a soar na torre, muito alto acima deles.

Às onze e quinze, o serviço começou. Demorou muito, porque ovigário, o sacristão e o órgão eram todos, exatamente como a igreja, extremamente idosos e quase sempre ficavam bastante desnorteados. A única pessoa que parecia saber o que fazia era o Coronel Carey-Lewis, que se dirigiu agilmente até o púlpito para ler o excerto bíblico, leu-o, e depois se dirigiu agilmente de volta a seu banco. Um divagante sermão foi devidamente proferido, cujo tema permaneceu obscuro do princípio ao fim; foram cantados três hinos; foi feita uma coleta (dez xelins de cada adulto e meia coroa de Judith e Loveday), e finalmente dada a bênção, o que encerrou tudo.

Após a friagem úmida da igreja, emergir para o sol fora uma sensação positivamente cálida. Lá fora, eles aguardaram por alguns instantes, enquanto Diana e o coronel trocavam algumas palavras com o vigário, cujos ralos cabelos brancos a brisa agitava sem cessar, e cuja batina esvoaçava e agitava-se como um lençol pendurado no varal. Outros fiéis, a caminho de casa, levavam a mão aos chapéus e cumprimentavam respeitosamente:

— Bom-dia, coronel. Bom-dia, sra. Carey-Lewis... Entediada, Loveday começou a saltar para cima e para baixo em uma lousa tumular coberta de liquens.

— Oh, vamos embora — disse, puxando a manga do pai. — Estou com fome...

— Bom-dia, coronel. Que dia agradável...

Por fim, todos partiram e chegou a hora de irem também. O coronel, entretanto, consultou seu relógio.

— Temos dez minutos de folga — anunciou. — Portanto, vamos deixar o carro aqui e caminhar. Um pouco de exercício fará bem a todos nós e abrirá o apetite para o almoço. Vamos, meninas...

Eles partiram, tomando a estreita e serpenteante estrada que, da aldeia, subia a colina. Altos muros de pedra erguiam-se de um e outro lado, cobertos de hera, com olmos elevando-se para o céu límpido, os galhos mais altos tomados por gralhas crocitantes. A ladeira empinou-se e todos ficaram um tanto resfolegantes.

— Se soubesse que íamos caminhar — disse Diana — eu não teria calçado meus sapatos de saltos mais altos.

Tommy passou um braço por sua cintura.

— Devo tomá-la nos braços e carregá-la?

— Eu dificilmente acharia tal atitude muito decorosa.

— Então, limitar-me-ei a apressá-la para continuar em frente. E Pense apenas em como a volta será esplêndida. Todos poderemos descer a ladeira correndo. Ou deslizando sobre os fundilhos, como os que escorregam em tobogãs.

— Pelo menos isso daria assunto para comentários gerais. Ignorando tais gracejos, o coronel caminhava à frente em largas passadas, abrindo caminho. A estrada dobrou novamente em ângulo reto, mas parecia que ali, na íngreme esquina, tinham chegado por fim ao seu destino. E tudo isso porque surgiu um portão aberto no muro alto, no lado direito da estrada. Além do portão, uma estreita alameda encurvava-se mais além, entre bordas relvadas de canteiros e sebes de escalônias, podadas com perfeição. Era de fato um alívio pisarem novamente em solo horizontal, apesar da trilha coberta de seixos, que tornavam ruidosa a caminhada.

Tommy Mortimer seguia em frente desajeitadamente. Exercícios físicos não eram uma de suas paixões, a menos que estivesse empunhando uma raquete de tênis ou uma arma para caçar.

— Você acha — perguntou, ansioso — que me será oferecido um gin com um pouquinho de bitter?

— Você já almoçou aqui antes — recordou-lhe Diana vivamente. —Tomou um sherry, talvez um Madeira. E nada de pedir um gim com bitter!

Ele suspirou, resignado.

— Minha cara menina. Por você, eu beberia cicuta. Admito, no entanto, que o Madeira tem toques de Jane Austen.

— Nem Jane Austen e nem o Madeira lhe farão qualquer mal.

O pequeno grupo dobrou a curva da sebe de escalônias, e a Dower House surgiu diante deles. Não era uma construção grande nem imponente, mas possuía uma certa dignidade de estilo que imediatamente causava impressão. Era uma casa quadrada, simétrica e sólida, em rebocadura rústica de cal, com janelas góticas, um teto de telhas cinzentas de ardósia e um pórtico de pedra, amenizado por clematites. Erguida ali, aconchegada no abrigo da colina, tinha o aspecto de uma propriedade que voltara as costas ao mundo, dormitando secretamente através da passagem dos anos, por um tempo mais demorado do que se pudesse recordar.

Não houve necessidade de bater à porta ou de fazer soar uma sineta. Quando o coronel aproximou-se, uma porta interna foi aberta e uma mulher idosa surgiu no pórtico. Usava um uniforme de criada de sala, com avental de musselina e uma touca do mesmo tecido firmemente colocada sobre a cabeça grisalha e rematada com fitas de veludo.

— Imaginei que viriam diretamente para cá. Estamos prontas e esperando.

— Bom-dia, Isobel.

- Dia, sra. Carey-Lewis... Um belo dia, mas ainda friorento — disse Isobel, em voz esganiçada, com forte sotaque da Cornualha

— Lembra-se do sr. Mortimer, Isobel?

— Claro que me lembro. Bom-dia, senhor. Entrem, e poderemos fechar a porta. Querem tirar seus agasalhos? Por Deus, Loveday, como está crescendo! E esta é a sua amiga? Judith? Dê-me suas peles, sra. Carey-Lewis, e as deixarei em lugar seguro...

Desabotoando o capote verde da escola, Judith olhou em torno disfarçadamente. As casas de outras pessoas eram sempre fascinantes. Assim que se cruzava a entrada pela primeira vez, podia-se captar o ambiente e descobrir algo sobre a personalidade das pessoas que ali moravam. Riverview, embora sendo uma residência provisória e mal mobiliada, significara o lar simplesmente porque sua mãe sempre estava lá, porque era onde ela brincava com Jess, porque podia estar na cozinha, anotando listas de compras para Phyllis ou fortificada em sua poltrona junto à lareira, tendo à volta todas as suas poucas e lindas posses. Windyedge, por outro lado, sempre parecia um tanto impessoal, mais semelhante a um clube de golfe, ao passo que Nancherrow, sob a influência de Diana, transformava-se em luxuoso apartamento londrino, porém em enorme escala campestre.

A Dower House, contudo, possuía um impacto que Judith nunca experimentara antes. Entrar naquela casa era, realmente, como recuar no tempo. Tão antiga —certamente pré-vitoriana — tão perfeitamente Proporcionada e de maneira tão admirável que, acima do murmúrio das vozes, era claramente audível o lento tique-taque do relógio de pé. O piso do saguão era lajeado em ardósia e coberto por tapetes, dele Partindo uma airosa escadaria circular, encurvada sob uma janela gótica com cortinas de linho cor de trigo. Havia também um cheiro fascinante, uma mistura de idade, polidor de móveis antigos e flores, um fraco subtom de pedra úmida e adegas frias. Ali não havia

aquecimento central, apenas um fogo vivo crepitando na lareira e um quadrado de luz solar, enviezado através do piso, após cruzar uma porta aberta.

—.. a sra. Boscawen está na sala de estar...

— Obrigada, Isobel.

Enquanto Isobel levava os agasalhos para o andar de cima, Diana tomou a dianteira do grupo e caminhou para a porta aberta.

— Tia Lavinia! — Sua voz era calorosa, com legítimo prazer. Aqui estamos todos nós, exaustos após caminharmos ladeira acima. Edgar quis que viéssemos a pé. A senhora é um amor, para tolerar semelhante invasão...

— Então, foram todos à igreja! Como são bondosos! Eu não fui achando que não conseguiria suportar nem mais um daqueles sermões do vigário. Loveday, sua travessa, venha dar-me um beijo... e meu caro Edgar! E Tommy! Que esplêndido, vê-lo novamente...

Judith ficou para trás, não só por estar acanhada, mas por haver tanta coisa para olhar. Uma sala de paredes claras, inundada pela dourada luz do sol, que penetrava por janelas altas dando para o sul. Cores suaves, em tons rosados, cremes e verdes, agora desbotados, porém nunca muito vivos. Uma comprida estante de livros entulhada de volumes encadernados em couro; um gabinete espelhado, em nogueira, contendo um conjunto de pratos de porcelana Meissen com estamparia de frutas; um ornado espelho veneziano acima da platiban-da branca da lareira. Nesta, crepitava um pequeno fogo de carvões, e a claridade solar diminuía o brilho das chamas, porém cintilava em brilhantes arco-íris nas gotas facetadas de um candelabro de cristal. E havia flores, muitas flores. Lírios, com seu perfume embriagador. Era tudo um deslumbramento.

—..Judith.

Com um sobressalto, percebeu que Diana já dissera o seu nome. Que horror, se a sra. Boscawen a julgasse mal-educada ou descuidada!

— Sinto muito... Diana sorriu.

—Você está parecendo hipnotizada. Aproxime-se e cumprimente. — Ela estendeu o braço, indicando a Judith que se adiantasse para juntar-se a eles. Pousou a mão em seu ombro. — Tia Lavinia, esta é a amiga de Loveday, Judith Dunbar.

De repente, ela ficou sem fala. A sra. Boscawen esperava, sentada muito ereta em uma poltrona de encosto baixo, meio virada para a claridade, com o vestido de lã azul caindo em dobras até os tornozelos. Era velha... devia ter mais de oitenta anos ou talvez mais. Abaixo da superfície empoada de talco, suas faces eram um emaranhado de rugas, e, ao lado dela, bem ao alcance, jazia uma bengala de ébano com castão de prata. Velha. Espantosamente velha. Entretanto, os desbotados olhos azuis cintilavam de interesse, não sendo difícil perceber-se que, um dia, havia sido muito bonita.

—Minha querida... —A voz dela era clara e apenas um pouquinho trêmula. Tomou a mão de Judith na sua e a segurou. — Que ótimo, você poder ter vindo com os outros! Talvez não seja muito excitante, mas eu adoro conhecer novos amigos.

Loveday disse, sem-cerimônia:

— O motivo de eu ter convidado Judith a vir e ficar, foi porque toda a sua família está em Colombo e ela não tinha nenhum outro lugar para onde ir.

Diana franziu o cenho.

— Oh, Loveday, isso dá a impressão de ter sido um convite feito com demasiada frieza. Sabe que convidou Judith por querer que ela viesse. Não me deu sossego, enquanto não telefonei para a srta. Catto.

— Bem, afinal, esse foi um dos motivos.

— É muito cortês de sua parte — tranqüilizou-a tia Lavinia. Ela sorriu para Judith. — Colombo, entretanto, parece ficar muito distante.

— Eles estão lá somente por algum tempo. O suficiente apenas para fecharem a casa e se mudarem para Cingapura. Meu pai tem um novo posto lá.

— Cingapura! Parece muito romântico. Nunca estive lá, mas um primo meu, que trabalhou na equipe do governador-geral, afirmava Ser um dos lugares mais interessantes que conhecera. Havia festas o tempo todo. Sua mãe irá divertir-se como nunca... Venha e encontre onde sentar-se. Que dia maravilhoso! Eu não suportava mais aninhar-me junto ao fogo. Edgar, quer servir os drinques? Faça com que todos tenham um sherry. Temos dez minutos de folga, antes que Isobel toque eu gongo. Diana, minha querida, que notícias tem de Athena? Ela já Voltou da Suíça?

Havia uma longa almofada na base da janela. Atenta a tudo em redor, Judith foi ajoelhar-se nela e olhou acima do fundo teto da varanda que dava para o jardim, o qual descia enladeirado e jazia mais além. Ao pé do gramado havia uma pequena mata de pinheiros de Monterey e, através de seus galhos mais altos, desenhava-se a distante linha azul do horizonte. Semelhante panorama, aquela justaposição das escuras coníferas e de um mar aparentemente estival, dava a ela a incrível, extraordinária sensação de ter aportado em terra; era como se todos do grupo tivessem sido magicamente transportados de Nancherrow para uma vila italiana, banhada pelo sol de alguma terra do sul e construída no ponto mais alto de uma colina acima do Mediterrâneo. A ilusão a encheu de estonteante prazer.

— Gosta de jardins? — Era a voz da velha senhora, dirigindo-se a ela novamente.

— Gosto especialmente deste — respondeu Judith.

— Tocou no meu ponto fraco. Depois do almoço, vestiremos agasalhos e daremos uma volta lá fora.

— Poderemos mesmo?

—Eu não irei com vocês — interrompeu Loveday. — Está muito frio e já vi esse jardim um milhão de vezes.

—Não creio que mais alguém queira vê-lo — observou gentilmente tia Lavinia. — Como você, Loveday, eles conhecem o jardim perfeitamente. Entretanto, isso não impedirá que eu e Judith arranjemos um tempinho para uma ligeira caminhada e um pouco de ar fresco. Além disso, poderemos conversar, conhecer-nos melhor. Bem, como está se saindo, Edgar? Ah, o meu sherry. Obrigada. — Ela ergueu o cálice. — E obrigada a todos vocês, muito obrigada, por estarem aqui.

—Judith. —Atrás dela, o coronel disse seu nome. Judith se virou. Ele sorriu. — Limonada.

— Oh, obrigada.

Ela estava sentada onde estivera ajoelhada, agora de costas para a janela, e esticou o braço para pegar o copo da mão dele. Do lado contrário, Loveday — que por algum motivo desejara partilhar uma larga poltrona com Tommy Mortimer e se sentara espremida ao lado dele — também recebera uma limonada. Através do pequeno espaço que as separava, ela captou o olhar de Judith e seu rosto travesso desabrochou em um sorriso. Imediatamente pareceu tão maliciosa e tão bela, que o coração de Judith, também imediatamente, transbordou de afeição. Era afeição e também gratidão, porque Loveday já partilhara tanto com ela. E agora, justamente por causa de Loveday é que estava ali.

e estes são os meus primeiros bulbos começando a brotar, acônitos, crocos precoces e galantos. Como pode ver, o lugar aqui é muito protegido, tanto que, no dia de Ano Novo, costumo vir ao jardim para descobrir como minhas plantinhas estão se saindo. Então, jogo fora todos aqueles horrendos azevinhos secos, e surpreendo um punhadinho de nada de pequeninos brotos, suficientes apenas para encher uma casca de ovo. Nesses momentos, sinto que o ano começou de fato e que a primavera está a caminho.

— Pensei que a gente devia esperar até a véspera do dia de Reis para jogar fora os azevinhos. Que flor rosada é aquela...?

— Chama-se Viburnum fragrans. Tem o perfume do verão e brota subitamente no meio do inverno. E aqui está a minha budléia, até agora parecendo meio tristonha, para no verão transformar-se em um chamariz de borboletas. Está bastante grande, não? E imagine que só a plantei há dois ou três anos...

As duas continuaram caminhando lado a lado, descendo pela alameda forrada de cascalhos. Fiel à sua palavra, tia Lavinia não esquecera o prometido e, terminado o almoço, enviara os outros de volta à sala de estar para que se distraíssem da melhor maneira que pudessem, enquanto ela e Judith deixavam a casa para uma pequena excursão ao ar livre. Para esta expedição, ela pusera um par de rústicas botas de jardinagem e uma enorme capa de tweed sem mangas, também amarrando uma echarpe sobre a cabeça. A bengala ajudava-a a manter o passo firme e era útil para apontar.

- Como você pode ver, minha terra desce até a base da colina. Bem lá no fundo fica a horta, e os pinheiros escoceses marcam as minhas divisas no lado sul. Tudo estava construído em plataformas ou terraços, quando viemos para cá, mas eu queria um jardim em compartimentos, como aposentos ao ar livre, cada um com suas próprias características, formando algo inesperado e secreto. Assim, plantamos sebes de escalônias e alfeneiros, além de trabalharmos os portais em arcos. A trilha prende a atenção, não acha? Faz a pessoa desejar explorar e descobrir o que se esconde mais além. Venha. Eu lhe mostrarei. Você vai ver. — Elas cruzaram o primeiro portal em arco. — O meu roseiral. Todas são roseiras antigas. Esta é Rosamunde, a roseira mais velha de todas. Agora parece um pouco caída, porém quando floresce, as pétalas se tingem de branco e rosa. São como menininhas em vestidos de festa.

— Há quanto tempo a senhora mora aqui?

Lavinia tornou a fazer uma pausa, e Judith concluiu que era particularmente agradável estar na companhia de um adulto que parecia não ter a menor pressa, além de sentir-se feliz em conversar, como se dispusesse de todo o tempo do mundo.

— Quase cinqüenta anos agora. Entretanto, saiba que, quando criança, o meu lar foi Nancherrow. Não a casa de Diana, mas a casa velha, a que se incendiou. Meu irmão era o pai de Edgar.

— Quer dizer que a senhora sempre viveu na Cornualha?

—Nem sempre. Meu marido era um King's Counsel e depois foi Juiz Itinerante. Moramos primeiro em Londres, depois em Exeter, mas sempre voltávamos a Nancherrow nas férias e feriados.

—A senhora também trazia seus filhos?

— Minha querida, nós nunca tivemos filhos. Edgar e Diana são os meus filhos, e os filhos deles são como netos para mim.

— Oh, céus, que pena!

— Por quê? Porque nunca tive filhos? Bem, se quer saber, toda tristeza tem a sua própria recompensa. E talvez eu fosse um desastre como mãe. De qualquer modo, não vamos lamentar o que é passado. De que estávamos falando?

— Do seu jardim. E sua casa.

— Oh, sim. A casa. (Este é o lilás rosa mais bonito. Procuro não deixar que cresça demais e fique com o talo muito fino.) A casa. Compreenda, era a Dower House de Nancherrow... Minha avó viveu aqui, quando era tão velha quanto eu. E quando meu marido aposentou-se, deixando de ser Juiz Itinerante, nós a alugamos, desligada da propriedade, e mais tarde conseguimos comprá-la. Fomos muito felizes aqui. Foi onde morreu meu marido, repousando tranqüilamente em uma espreguiçadeira no jardim, ao lado da casa. Era verão, e bastante quente.

 

Título honorífico concedido a advogados na Inglaterra. (N. da T.)

 

Bem, agora chegamos ao jardim das crianças. Acho que você vai gostar mais deste. Loveday já lhe falou sobre a Cabana?

Perplexa, Judith sacudiu a cabeça.

Não — respondeu.

—Bem, suponho que ela não falaria. Afinal, Loveday não chegou a brincar muito por aqui. A Cabana nunca foi dela do modo como foi de Athena e de Edward. Talvez por ser muito mais nova do que eles, sem nenhum irmão ou irmã com quem partilhar as brincadeiras.

—É uma casa de Wendy?

— Espere para ver. Meu marido mandou construí-la, porque Athena e Edward costumavam passar muito tempo conosco. Ficavam aqui dias inteiros e, quando mais velhos, tiveram permissão para dormir nela. Algo muito excitante e bem mais divertido do que uma tenda, se quer saber. E então, de manhã, eles preparavam o próprio café da manhã...

—A Cabana tem um fogão?

— Não, porque tínhamos pavor de incêndio e de que as crianças morressem carbonizadas. Entretanto, há uma lareira de tijolos, muito segura, que Athena e Edward usavam para fritar bacon e ferver água em chaleiras de lata. Venha, vamos dar uma olhada nela. Trouxe a chave em meu bolso, apenas para o caso de você querer vê-la por dentro...

Ela seguiu na frente e Judith acompanhou-a, tomada de ansiosa expectativa. Cruzaram a entrada para a sebe de alfeneiros, desceram um lance de degraus de pedra e chegaram a um pequeno pomar de macieiras e pereiras. Ali a relva era áspera e comprida, mas em redor dos nodosos troncos das fruteiras havia maciços de galantos e lírios azuis, enquanto os primeiros rebentos de narcisos e lilases abriam caminho através da terra fértil, como espadas verdejantes. Claramente, antes de muito pouco tempo, tudo ali se tornaria uma primaveril confusão de amarelo e de branco. Mais acima, sobre um ramo desfolhado um melro trinava a plenos pulmões. Do lado contrário do pomar via-se a cabana, erguida em um recanto abrigado. Havia sido construída como uma cabana de troncos, o teto alcatroado e com telhas de madeira, tendo duas janelas a cada lado de uma porta pintada de azul. Na frente havia uma varanda larga, com degraus de madeira e corrimão em obra de talha. Não era uma casinha de tamanho adequado a crianças, mas uma construção na qual adultos podiam entrar e sair sem precisarem baixar a cabeça e tampouco agachar-se em cadeirinhas minúsculas.

— E quem vem aqui agora? — perguntou Judith.

Tia Lavinia riu.

— Você me parece desolada.

— Bem, ela tem um ar tão agradável, tão secreto... Devia haver sempre gente brincando nela, ser bem cuidada...

— Oh, mas ela é bem cuidada. Eu faço isso. Mantenho a Cabana arejada e fresca, e todos os anos faço com que receba uma boa camada de creosoto. Ela é bem construída e, portanto, inteiramente seca.

— Não sei por que Loveday nunca me falou nela.

— Loveday nunca se interessou em brincar de casinhas. Ela prefere andar pelos estábulos e estar com seu pônei. Enfim, isso não é o pior. Aliás, de tempos em tempos há crianças por aqui. A escola dominical de Rosemullion sempre realiza seu piquenique anual neste pomar, e então a Cabana ganha vida novamente, embora sejam freqüentes as brigas mais terríveis, porque os meninos querem usá-la como uma fortaleza de peles-vermelhas, e as meninas preferem brincar de papai e mamãe. Veja, aqui está a chave. Vá abrir a porta para mim, e eu lhe mostrarei o interior.

Judith apanhou a chave e adiantou-se, mergulhando sob os galhos desordenados das macieiras. Subiu os dois degraus da varanda. A chave entrou maciamente na fechadura e girou sem esforço. Ela moveu a maçaneta e a porta se abriu para dentro. Havia o cheiro agradável de creosoto, e ela passou para o interior. Não estava de todo escuro, porque havia uma terceira janela na parede dos fundos. Judith viu os dois beliches, construídos a cada lado, sob a inclinação do teto, a mesa de madeira e as duas cadeiras; as estantes de livros, o espelho, o retrato emoldurado de um campo de campainhas azuis, o tapete gasto sobre o chão. Um caixote de acondicionar laranjas, virado ao contrário, funcionava perfeitamente como armário de cozinha e tinha prateleiras com peças variadas de louça, uma chaleira suja de fuligem e uma frigideira enegrecida. Cortinas de xadrez azul pendiam das janelas e nos beliches, havia colchas e almofadas azuis. Acima de sua cabeça, um lampião de parafina pendia de um gancho incrustado na viga mestra do telhado. Ela imaginou a Cabana no escuro, com o lampião aceso e as cortinas cerradas. Um tanto tristonha, ocorreu-lhe o pensamento de que talvez, aos quatorze anos, fosse velha demais para brincadeiras tão inocentes.

— E então, o que acha disto?

Virando-se, Judith viu tia Lavinia parada na soleira.

— É perfeito.

— Imaginei que você ficaria enfeitiçada. — A velha senhora fungou, cheirando o ar. —Nenhuma umidade. Apenas um pouco frio. Pobre casinha, precisa de visitantes. Precisamos de bebês, não é mesmo? Uma nova geração. — Ela olhou em torno. — Vê algum sinal de ratos? Esses terríveis ratos-do-campo às vezes entram aqui, fazem buracos nas colchas e constróem ninhos nos colchões.

— Quando eu era pequena — com uns dez anos —, acho que venderia minha alma por uma casa de brinquedo como esta.

— Um ninho todo seu? Outro ratinho-do-campo...

— Creio que sim. Dormiria aqui, em uma noite de verão. Sentindo o cheiro da relva úmida. Olhando para as estrelas.

— Loveday nunca sonharia em dormir aqui sozinha. Disse que haveria ruídos esquisitos e fantasmas.

—Não costumo sentir medo de ficar fora de casa. Entretanto, casas escuras às vezes podem ser bastante amedrontadoras.

— E também solitárias. Talvez seja por isso que passo tanto tempo em meu jardim. Bem... — Tia Lavinia ajustou a echarpe na cabeça e apertou as dobras da capa contra o corpo. —Acho que está esfriando demais. Talvez seja hora de voltarmos para junto dos outros. Já devem estar pensando no que aconteceu conosco... —Ela sorriu. — Consegue adivinhar o que Loveday estará fazendo enquanto nos espera? Seguramente, jogando pega-varetas com o sr. Mortimer.

— Pega-varetas? Como pode saber?

— Porque é o que ela sempre faz quando vem visitar-me. Apesar de sua indocilidade, Loveday é uma escrava da tradição. Fico contente Por você ser amiga dela. Acredito que é uma boa influência para ela. Não posso impedi-la de ser travessa na escola. Loveday está sempre levando pontos negativos por causar desordem.

- Sim, ela é muito travessa... mas encantadora. Aliás, receio que esse encanto de Loveday termine provocando a sua queda. Bem, tranque a porta e vamos embora daqui.

Colégio Santa Úrsula Domingo, 23 de fevereiro

Queridos mamãe e papai,

Sinto muito não ter escrito uma carta no último domingo, mas passei fora o fim de semana e não tive tempo. A srta. Catto foi muito gentil, dando permissão para que eu fosse à casa dos Carey-Lewis com Loveday.

Judith fez uma pausa, mastigou a ponta da caneta e enfrentou um dilema. Ela amava os pais, mas conhecia-os bem, desta maneira estando a par de suas inofensivas deficiências. Isso tornava difícil descrever-lhes Nancherrow, apenas porque fora tudo tão incrivelmente maravilhoso, e também por recear que eles não compreendessem.

Seus pais nunca haviam experimentado um estilo de vida tão glamouroso e tampouco tinham amigos donos de casas imponentes, que aceitassem o luxo e o dinheiro como coisas naturais. Residindo no Extremo Oriente e limitados pelas estritas convenções da soberania britânica na índia, eles haviam absorvido rígidas linhas de distinção de classes, condições sociais e raciais, e prioridade profissional, sendo a regra não-falada aquela de que cada um conhece o próprio lugar, alto ou baixo, nele devendo permanecer.

Assim, se terminasse exaltando a beleza e o encanto de Diana Carey-Lewis, Molly Dunbar — nunca a mais segura das mulheres — poderia desconfiar que estivessem sendo feitas comparações, que sua filha finalmente a considerava ao mesmo tempo feia e desinteressante.

Da mesma forma, se entrasse em detalhes elaborados sobre o tamanho e grandiosidade de Nancherrow, dos jardins e das terras, dos cavalos nos estábulos, do corpo de empregados, do grupo de caça e do fato de o Coronel Carey-Lewis ser um magistrado, além de juiz, então seu pai é que, à sua maneira algo rabugenta, poderia sentir-se um pouco magoado. D

E se ela incluísse a vida social que prosseguira por todo o fim de semana, os coquetéis casuais, a tarde de bridge, as refeições formais? etc, poderia dar a impressão de vangloriar-se em algum sentido, até mesmo de estar indiretamente criticando a mãe e o pai por seu sistema de vida simples e despretensioso. E a última coisa que Judith desejaria era magoá-los de alguma forma. De uma coisa, no entanto, tinha certeza. Não mencionaria Tommy Mortimer, pois do contrário eles entrariam em pânico, decidiriam que Nancherrow era um antro de iniqüidades e escreveriam para a srta. Catto, determinando que sua filha nunca mais voltasse lá. O que era inconcebível. Assim, ela precisava de algum ponto de referência, um evento que pudesse partilhar. A inspiração funcionou: Jeremy Wells, surgindo lá de maneira tão inesperada e desistindo de sua tarde para colocá-la sob sua asa e mostrar-lhe a enseada. Era mais ou menos como se ele viesse em seu socorro por uma segunda vez. Tendo-o como assunto sobre o qual escrever, o restante da carta seria fácil. Judith puxou o papel de cartas mais para perto e recomeçou sua escrita, as palavras voando pelas linhas.

A casa chama-se Nancherrow, e aconteceu a coisa mais extraordinária. Apareceu lá um rapaz, convidado para passar o dia caçando pombos com o Coronel Carey-Lewis; chamava-se Jeremy Wells, e era aquele jovem médico que conhecemos no trem de Plymouth para Truro, após termos ficado com os Somerville. Não foi muita coincidência? É um rapaz muito agradável, sendo seu pai o médico da família. No sábado de tarde, Loveday montou seu pônei Tinkerbell, de modo que ele se ofereceu gentilmente para um passeio comigo, e fomos até a costa. É um lugar muito rochoso, com praias pequeninas. Sem a menor semelhança com Penmarron.

Na manhã do domingo, fomos todos à igreja em Rosemul-lion, depois disso indo almoçar com a sra. Boscawen, que é tia do Coronel Carey-Lewis. Ela é muito idosa e a casa em que mora é antiqüíssima. Chama-se DowerHouse. É cheia de coisas fora de moda, e ela tem uma empregada chamada Isobel, que há anos trabalha lá. A casa fica no alto de uma colina, de modo que a gente pode avistar o mar, e tem um jardim descendo enladeirado, todo em terraços e sebes. Um dos terraços é um Pomar, com uma linda casinha de madeira para as crianças brincarem. Na realidade, é uma casinha de tamanho normal e com mobília adequada, mas Jess simplesmente adoraria brincar nela. A sra. Boscawen (tive de chamá-la tia Lavinia, convidou-me a vera casinha, depois do almoço. Pudemos conversar, e ela se mostrou muito simpática. Espero poder voltar lá um dia.

A sra. Carey-Lewis disse que posso voltar a Nancherrow e ficar lá, o que foi muito gentil da parte dela. Já escrevi uma carta agradecendo a hospitalidade. Semana que vem será a metade do período letivo, e vou para Windyridge.São quatro dias de folga, de sexta-feira a segunda. Recebi um postal de tia Louise. Ela virá buscar-me de carro na manhã de sexta-feira, e iremos a Porthkerris, comprar a bicicleta.

Levei minha caixa chinesa para Nancherrow, e achei melhor deixá-la lá por enquanto, já que na escola não há lugar nenhum onde guardá-la. A sra. Carey-Lewis deu-me algumas conchas de caurim para pôr em uma das gavetinhas.

Os estudos vão bem e, nas dez questões da prova de História, acertei sete. Estamos agora estudando Horace Walpole e o Tratado de Utrechet. Estou ansiosa para saber sobre a casa nova em Orchard Road, Cingapura. Vocês devem ter sentido muito não poderem levar Joseph e a Ama.

Muitas saudades minhas e beijos parajess,

Judith

Ela estava em Windyridge, em pé diante da janela de seu quarto, vendo o panorama do campo de golfe e a baía distante, porénn não conseguia enxergar nada com muita nitidez, por estar tudo afogado em uma chuva suave e insistente. Além disso, seus olhos teimavam em encher-se de lágrimas idiotas e infantis porque, de repente, sentia a mais angustiante saudade de casa.

Isso era estranho, porque estava na metade do período letivo e ainnda não passara por depressão semelhante desde que Molly dissera o último adeus, quando a deixara no Santa Úrsula. Na escola, de certo modo não houvera tempo para sentir saudades de casa, porque sempre tinha muito a fazer, muito a cumprir, muito a aprender, e a pensar e recordar; eram tantas as pessoas que se agitavam ao seu lado, tantos sinos tocando para alguma coisa, tudo intercalado por turnos de copiosos e obrigatórios exercícios que, quando afinal chegava a hora de ir para a cama, aquele clássico momento de chorar a sós, estava sempre cansada demais para fazer outra coisa além de reservar um ou dois momentos para ler, para então pegar rapidamente no sono.

Em Nancherrow, quando falara dos pais e de Jess durante alguma conversa, respondendo gentilmente a polidas perguntas, não sentira pontadas de saudade e nem carência afetiva. Na verdade, durante aquele mágico fim de semana, mal pensara nos pais, era como se eles fossem parte de um mundo desaparecido, que cessara temporariamente de existir. Ou talvez porque ela, usando as roupas de Athena Carey-Lewis, assumira alguma nova identidade que nada tinha a ver com família — tornara-se uma pessoa absorvida apenas no presente e na próxima coisa excitante que ia acontecer.

Agora, pensava em Nancherrow de maneira anelante, desejando estar lá com Loveday, naquele lugar cheio de sol, de flores e de luz, em vez de na casa sem alma de tia Louise, plantada sobre a colina, tendo por companhia apenas três mulheres de meia-idade. Era então que o senso comum vinha em seu socorro, porque toda a Cornualha estava encharcada de chuva, e Nancherrow certamente estaria sofrendo como o resto. Houvera muito pessimismo no dormitório, quando tinham acordado para enfrentar o tempo instável, de maneira que impermeáveis e botas de borracha foram considerados a indumentária do dia. As dez da manhã, as internas emergiram pela porta principal e, desviando-se das poças no chão, caminharam para os vários carros à espera de conduzi-las para os feriados de meio período letivo. Sempre Pontual, tia Louise estava lá em seu velho Rover, porém ainda não chegara nenhum carro para Loveday, e ela se tinha queixado amargamente de ser forçada a esperar, em pé, até que surgisse alguém.

(De certa forma, isso tinha sido uma boa coisa, porque Judith não sentia a menor vontade de apresentar tia Louise a Diana. As duas senhoras pouco teriam em comum e, sem dúvida, tia Louise faria comentários sarcásticos sobre a sra. Carey-Lewis, durante todo o trajeto para casa.)

apesar do tempo, no entanto, a manhã fora bastante agradável.

Elas haviam parado em Penzance para algumas compras, indo ao banco retirar algum dinheiro para o fim de semana de Judith. (Entretanto nenhum daquele dinheiro seria gasto na bicicleta, porque tia Louise prometera pagar por ela.) Depois foram à livraria, folhearam bastantes livros, e Judith comprou uma nova caneta-tinteiro, porque uma garota pedira a sua emprestada e a deixara com a pena imprestável. Em seguida, tomaram café com bolinhos em uma casa de chá, e então voltaram para casa. A viagem em meio à chuva, sentada ao lado de tia Louise, que fazia mudanças e pressionava com força o sapato bem engraxado sobre o acelerador, havia sido arrepiante, para dizer-se o mínimo. Judith fechava os olhos e esperava a morte instantânea quando tia Louise ultrapassava um pesado ônibus em uma curva ou aumentava a velocidade ao aproximar-se do cimo estreito de uma colina, sem a menor idéia do que poderia estar vindo pelo outro lado. Por fim, acabaram chegando a Penmarron, e a saudade de Riverview, de sua mãe e de Jess começara a apertar quando atravessaram a aldeia, porque lhe parecia de todo errado continuarem pela estrada principal, em vez de tomarem a curva que, através de alamedas, descia até o estuário e a estação ferroviária. Quando chegaram a Windyridge, também isso tivera um cunho de todo errado, porque lá estava a casa, erguendo-se diante delas por entre o nevoeiro em movimento, com o jardim bem cuidado, mas sem árvores, nada ali apto a oferecer qualquer espécie de boas-vindas ou de consolo.

Hilda, a empregada, viera até a porta para ajudar a carregar as malas.

— Vou levá-las para cima — anunciou.

Judith seguiu-lhe as pernas calçadas em grossas meias pretas de algodão e, embora conhecesse a casa tão bem como conhecera Riverview, esta era a primeira vez que ia ficar lá. Era uma sensação estranha e alienada, a casa parecia não ter o cheiro certo, e imediatamente ela ansiou estar em qualquer outro lugar do mundo. Menos ali.

O que ela sentia não resultava de qualquer razão prática; tudo não passava de um torvelinho emocional, um pânico de não se encontrar no lugar certo. Porque seu quarto — o antes dormitório extra de tia Louise — era muito bonito, com os seus pertences trazidos de River view perfeitamente dispostos ou guardados em armários e gavetas. Sua secretária estava ali, com seus livros em uma estante. E havia flores sobre o toucador. Nada mais, porém. No entanto, o que mais ela desejaria? O que mais poderia preencher o terrível vazio que lhe dava sensação de ter um enorme buraco no coração?

Hilda havia feito algumas observações banais sobre o tempo enfarruscado, a proximidade do banheiro, o fato de que o almoço era à uma da tarde, e então foi embora. Deixada a sós, Judith foi até a janela e sucumbiu àquelas lágrimas ridículas.

Sentia falta de Riverview, de sua mãe, de Jess e de Phyllis. Sentia falta dos panoramas, sons e cheiros familiares. Do jardim enladeirado e do pacífico estuário, enchendo e vazando com as marés, do dia rompido pelo tranqüilizante apito do trenzinho a vapor. Do modesto encanto da sala de estar cheia de flores, do barulho das panelas de phyllis na copa, enquanto ela preparava verduras para o almoço, e do perpétuo acompanhamento da voz estridente de Jess. Os cheiros eram ainda mais ansiados e nostálgicos. A asseada mistura de Vim e do sabonete de lavanda Yardley que emanava do banheiro; o cheiro adocicado da sebe de alfeneiros, perto da porta principal da casa, e o salitrado odor de algas marinhas, na maré vazante. E os cheiros que vinham da cozinha, cheiros que davam água na boca, quando se chegava em casa morrendo de fome. Um bolo no forno ou cebolas fritando...

Isso não era saudável. Não, não era. Riverview era passado agora,

a casa fora alugada a outra família. Sua mãe, seu pai e Jess tinham atravessado oceanos, estavam no outro lado do mundo. Chorar como um bebê não os traria de volta. Encontrou um lenço e assoou o nariz.

Então desfez as malas, andando de cá para lá no quarto, abrindo gavetas e portas, localizando roupas e encontrando alguma coisa para usar que não fosse uniforme. Nada de suéteres de cashmere nesta casa. APenas uma saia antiga e um pulôver de lã, lavado tantas vezes, que não dava mais urticária. Escovou os cabelos e isto a acalmou, enquanto procurava pensar em coisas agradáveis. A bicicleta nova, a ser comprada esta tarde em Porthkerris. Quatro dias de liberdade, longe do colégio. Poderia pedalar até a praia e caminhar na areia. Talvez fosse ver o sr. Willis. Telefonaria para Heather e faria alguns planos com ela. A perspectiva de rever Heather era suficiente para alegrar qualquer um. Aos poucos, sua infelicidade dissipou-se; prendeu os cabelos atrás da cabeça com um laço de fita, e desceu em busca de tia Louise.

Durante o almoço, que constou de costeletas, molho de hortelã e compota de maçãs, tia Louise mostrou certo curioso interesse pela visita de Judith aos Carey-Lewis.

— Eu nunca estive lá, mas ouvi dizer que o jardim é simplesmente espetacular.

— Sim, é mesmo, e cheio de coisas lindas. Há hortênsias aos lados da entrada para carros, seguindo a alameda até o alto. Também há camélias e outras coisas. E eles têm uma pequena praia particular.

— Como é a garota?

— Loveday? É mimada, mas ninguém parece dar grande importância. Tem uma ama muito simpática, chamada Mary, que passa a ferro toda a roupa da casa.

— Você está ficando com idéias acima do seu nível social.

— Não é nada disso. Foi diferente, mas agradável.

— O que achou da sra. Carey-Lewis? Ela é mesmo tão fútil quanto a sua reputação?

— Ela tem uma reputação?

— Se tem! Está sempre indo a Londres ou fazendo pequenas viagens ao sul da França. E possui amigos de fama um tanto duvidosa.

Judith pensou em Tommy Mortimer e, mais uma vez, decidiu que seria prudente nem mesmo mencioná-lo. Em vez disso, respondeu:

— Havia lá um homem muito simpático, chamado Jeremy Wells. É médico. Eu e mamãe o conhecemos no trem, quando voltávamos de Plymouth. Viajamos no mesmo compartimento. Ele não estava hospedado em Nancherrow, apenas passava o dia.

—Jeremy Wells?

— A senhora o conhece?

— Não, mas todos sabem quem é, por causa de suas façanhas esportivas. É capitão do time de rúgbi da Cornualha e jogou por Cambridge. Marcou três tentos em seu último jogo da Universidade. Lembro-me de ter lido a respeito no jornal. O herói do dia.

— Ele também joga críquete. O Coronel Carey-Lewis é que me contou.

—Bem, você esteve convivendo com celebridades! Espero que não ache isto aqui muito tedioso.

— Na verdade, estou muito ansiosa para comprar a bicicleta.

— Iremos comprá-la esta tarde. Disseram-me que a Pitway's é a melhor loja em Porthkerris, portanto, é lá que compraremos. Além disso, o sr. Pitway tem um furgão, e faremos com que ele a entregue aqui, o mais breve possível. Não acho que você mesma deva trazê-la para casa, pedalando pela estrada principal, enquanto não conseguir manobrá-la por completo. Poderá treinar na aldeia e aprender a esticar o braço, quando for dobrar uma esquina. Não gostaria de escrever para sua mãe, contando que se acidentou debaixo das rodas de um caminhão.

Ela riu, como se isso fosse uma grande piada, e Judith riu também, embora não achasse nem um pouco de graça.

— Quanto ao resto do fim de semana, esperemos que pare de chover, porque então você poderá sair e passear por aí. Receio que no domingo eu tenha de abandoná-la, porque passarei o dia inteiro jogando golfe. Além disso, Edna e Hilda irão lá em casa para alguma comemoração, porque parece que uma velha tia está fazendo oitenta anos, e elas precisam ajudar com o chá. Assim, você fará tudo sozinha, porém tenho certeza de que saberá como divertir-se.

A perspectiva de um dia sozinha tinha lá seus atrativos, porém seria ainda melhor passar o domingo vazio com a família Warren. Judith respondeu:

—Se a senhora não se importa, eu poderia telefonar para Heather. Talvez eu fosse à casa dela no domingo. Ou ela viria aqui.

—A pequena garota Warren? Acho uma boa idéia. Você decide. É bom rever velhos amigos. Bem, quer um pouco mais de maçã? Não? Então toque a sineta para Hilda vir tirar a mesa. Tomarei minha xícara de café e partiremos para Porthkerris pelas duas e meia. Estará pronta?

— Sim, claro — respondeu Judith, mal podendo esperar.

A chuva continuou, incessante. Através dela, tia e sobrinha rodaram para Porthkerris, cuja aparência não podia ser mais melancólica, com as sarjetas inundadas e o porto cheio de um sombrio mar cinzento. A loja de Bicicletas Pitway's ficava ao pé da colina, e tia Louise estacionou o Rover em uma aléia vizinha. As duas entraram na loja, quexalava um cheiro de borracha, de óleo e couro novo. Lá dentro havia bicicletas por todos os lados, desde as menores e próprias para crianças, de corrida, com guidons audaciosamente virados para baixo. Judith considerou estas últimas um tanto decepcionantes, porque pedalar com a cabeça enfiada entre os joelhos, sem poder olhar para mais nada além da estrada, certamente anulava por completo a finalidade do exercício.

O sr. Pitway apresentou-se, usando um enorme avental caqui, e teve início a grande decisão. Por fim, concordaram todos em uma Raleigh verde-escura com selim preto. Ela possuía um protetor de corrente, três velocidades, excelentes e grossos punhos de borracha e sua própria bomba para encher os pneus, além de uma bolsinha atrás do selim, contendo ferramentas e uma pequena lata de óleo. Custava exatamente cinco libras, e tia Louise tirou sua carteira com intrepidez, da qual foi extraindo as notas.

— E agora, sr. Pitway, quero que a bicicleta seja entregue o mais rápido possível. O que me diz nesta tarde?

— Bem, no momento estou sozinho na loja...

—Bobagem. O senhor pode pedir a sua esposa que vigie a fortaleza por meia hora. É só enfiar a bicicleta em seu furgão e entregá-la. Windyridge, Penmarron.

— Sim, sei onde a senhora mora, porém...

— Esplêndido! Tudo combinado, então. Espero-o por volta das quatro da tarde. Estaremos ansiosas por sua chegada. — Ela já fizera metade do trajeto até a porta de saída. — E obrigado pela ajuda.

— Obrigado — disse o impotente sr. Pitway — pela preferência... Ele manteve a palavra, claramente intimidado por tia Louise. A tarde o tempo havia melhorado um pouco e, embora os céus ainda continuassem carregados e o mundo encharcado, gotejante, a chuva obsequiosamente cessara e, quando às cinco para as quatro o furgão azul cruzou os portões de Windyridge, Judith, que estivera vigiando sua chegada, correu para fora e ajudou o sr. Pitway a desembarcar a preciosa carga. Tia Louise, que também ouvira o barulho do furgão, aproximou-se pisando firme, apenas para certificar-se de que tudo estava em ordem e que a bicicleta não fora amassada ou danificada durante sua curta jornada. Por uma vez, ela nada encontrou de anormal. Agradeceu ao sr. Pitway e deu-lhe meia coroa, pelo trabalho e pelo gasto de gasolina. Ele recebeu a gorjeta com ar constrangido, mas agradecido, e esperou que Judith subisse na bicicleta e desse umas duas voltas pelo caminho que circundava o gramado. Tocou então em seu boné, entrou no furgão e foi embora.

— Bem — disse tia Louise. — O que você achou?

— É absolutamente perfeita! Oh, obrigada, tia Louise! — Debru-çando-se sobre o guidom, ela plantou um beijo inesperado na face da tia. — É a bicicleta mais linda, o presente mais adorável. Vou cuidar muito bem dela, e ela é a melhor coisa que já tive!

— Lembre-se de sempre guardá-la na garagem e de nunca deixá-la na chuva.

— Oh, eu não deixarei. Nunca! E vou agora mesmo dar uma volta. Pedalar pela aldeia.

— Sabe como os freios funcionam?

— Eu sei como tudo funciona.

— Pois então, vá. Divirta-se!

E com isso, entrou em casa, de volta ao seu tricô, ao seu chá da tarde e ao romance que estava lendo.

Era o próprio paraíso, era como voar. Deslizando ladeira abaixo e pedalando através da aldeia, tornou a ver todos os pequenos estabelecimentos comerciais que tinha na memória e os chalés familiares da rua principal. Judith deixou para trás a agência dos correios e o pub, passou pela esquina que levava ao vicariato e, então, em marcha de roda livre, em tremenda velocidade, desceu a colina arborizada que levava aos mais distantes limites do estuário, onde a rodovia elevada encurvava-se até o outro lado da água. Passou para a alameda que circundava a fazenda de violetas e continuou pedalando, espargindo agua das poças por onde passava, ao longo da via acidentada que corria Paralela à pequena linha ferroviária. O lugar ali era sempre abrigado, e as margens voltadas para o sul estavam pontilhadas de prímulas silvestres. O desbotado céu acinzentado não fazia muita diferença, os grossos pneus da bicicleta pareciam apenas roçar o solo cheio de poças e ressaltos, e ela estava entregue a si mesma, inteiramente livre, transbordando de inesgotável energia como se, caso lhe pedissem, Pudesse viajar até os confins do mundo. Judith sentia vontade de Cantar, e então, não havendo ninguém que a ouvisse, ela cantou.

Os ventos estão soprando,

As neves estão nevando,

Mas posso enfrentar a tempestade...

O fim da alameda e as primeiras casas. As grandes e importantes casas de Penmarron, com seus secretos e sombreados jardins confinados por altos muros de pedra. Pinheiros assomando acima dos muros bem altos, ruidosos de gralhas grasnando. A estação da estrada de ferro. Riverview House.

Ela premiu os freios e parou, equilibrando-se com um dos pés no chão. Não fora sua intenção ir até ali, porém era como se a bicicleta houvesse decidido o próprio itinerário, à maneira de um cavalo de confiança, e a levara até o antigo lar, sem qualquer volição consciente de sua parte. Ergueu os olhos para a casa. Tudo estava bem. Era uma sensação pungente, mas não de todo insuportável. O jardim parecia bem tratado, porque os narcisos precoces estavam florindo no pomar. E alguém pendurara um balanço de criança em uma das macieiras. Era bom saber que havia crianças morando lá.

Após um momento, ela seguiu em frente, pedalando sob as árvores e deixando para trás a nascente onde água pura fluía para uma poça que sempre havia sido um bom lugar para pegar girinos e rãs. A trilha seguia para o alto e desembocava na estrada principal, perto da igreja. Por um instante Judith pensou em descer até a praia e visitar o sr. Willis, mas estava ficando tarde — o dia começava a morrer e ela não tinha faróis na bicicleta. Da próxima vez em que fosse a Porthkerris, compraria um par. Um grande farolete dianteiro e um menor, vermelho, para a traseira. Naquele momento, contudo, era hora de voltar para casa.

A estrada subia pela colina, com relvados de um lado e, do outro, o campo de golfe. Pedalando furiosamente, Judith logo descobriu que a subida era mais íngreme do que poderia imaginar, mesmo sua bicicleta dispondo das três velocidades. Por fim, ficou sem fôlego. Nas imediações da sede do clube, desistiu e desmontou, resignando-se em empurrar a bicicleta pelo restante do trajeto. Ocorreu-lhe que, talvez por isso, elas fossem conhecidas como "bicicletas de empurrar"...

— Ei, você!

Judith parou e se virou, a fim de ver quem chamara. Um homem cruzava o portão da sede do clube e descia os degraus que levavam à estrada. Estava trajado para o golfe, com calças largas que iam até abaixo dos joelhos e um pulôver amarelo. Usava um boné de tweed em um ângulo algo devasso, o que lhe conferia uma aparência ligeiramente suspeita, como a de um desonesto apostador profissional.

— Ou muito me engano — disse ele — ou você deve ser Judith.

— Sou eu mesma — respondeu ela, sem a menor idéia de quem pudesse ser ele.

— Sua tia me disse que você passaria o fim de semana aqui. Uma curta folga do colégio. — O homem tinha compleição corada, usava bigode, e seus olhos eram brilhantes e astutos. —Você não me conhece, porque nunca nos vimos. Coronel Fawcett. Billy Fawcett. Um velho amigo de Louise, da índia. Agora, sou seu vizinho mais próximo.

Judith recordou-se.

— Oh, sim, já me lembro. Ela falou a seu respeito a mamãe e a mim. Foi amigo do tio Jack.

— Exatamente. Do mesmo regimento, lá no alto da Fronteira Noroeste. — Ele olhou para a bicicleta. — É sua?

— Sim, é a minha bicicleta nova. Tia Louise a comprou hoje para mim. Tem três velocidades, mas mesmo assim não consegui pedalar ladeira acima, então resolvi empurrá-la.

—É o pior das bicicletas, mas devo dizer que é uma bela máquina. Está caminhando? Eu a acompanharei, se for possível..

Era bastante aborrecido ter sua solidão perturbada, mas ela respondeu:

— Sim, claro.

Os dois então recomeçaram a caminhada, lado a lado, ele acertando o passo com ela.

— Estava jogando golfe? — perguntou Judith.

—Apenas treinava um pouco, sozinho. Preciso melhorar meu jogo, antes de poder enfrentar sua tia em algum tipo de competição.

— Ela é muito boa, eu sei.

—Uma golfista esplêndida! Lança a bola como poucos. E tem uma pontaria espetacular. Como se sente, de volta a Penmarron...?

Continuaram conversando pelo resto do caminho, de maneira polida e afetada. Quando alcançaram a curva que levava a Windyridge e aos bangalôs que jaziam além, a alameda estava nivelada, Judith poderia ter montado em sua bicicleta e ido embora. Sim, poderia ter deixado o Coronel Fawcett para trás, mas achou tal atitude um tanto rude, de modo que continuou andando.

Na entrada de Windyridge ela parou de novo, esperando que ele se despedisse e fosse embora, porém o Coronel não parecia ansioso em encerrar aquele encontro. Agora estava bastante escuro, e a luz se infiltrava para o crepúsculo, através das cortinas fechadas da sala de estar de tia Louise. Evidentemente, o coronel Fawcett se sentia tentado por este tácito convite. Hesitante, ele fez uma demorada exibição de puxar o punho do pulôver e apertar os olhos para consultar o relógio de pulso.

— Cinco horas e quinze. Bem, como tenho alguns momentos de folga, por que não sigo com você e cumprimento Louise? Há um ou dois dias que não a vejo...

Judith não soube como objetar a isso e, por outro lado, supunha que sua tia não se incomodaria. Assim, prosseguiram juntos, cruzaram o portão e continuaram pelo caminho de cascalhos. Ela parou junto à porta da frente.

— Preciso guardar minha bicicleta na garagem — disse.

— Não se preocupe. Posso entrar sozinho.

Foi o que fez. Sem tocar a sineta e nem mesmo bater na vidraça da porta interna. Apenas a abriu e chamou, com um grito:

— Louise!

Ela devia ter dado alguma resposta, porque Fawcett entrou e fechou a porta. A sós, Judith fez uma careta para ele. Não tinha certeza de haver simpatizado com ele, e certamente não aprovava o seu comportamento arrogante. Enfim, talvez tia Louise gostasse dele, não se incomodando se irrompia em sua casa, de maneira inesperada e sem ser convidado. Pensativa, conduziu sua bicicleta para a garagem e a acomodou com certo cuidado, bem fora do alcance do Rover. Com tia Louise na direção, nunca se sabia o que podia acontecer.

Demorando-se propositadamente, ela fechou as portas da garagem e passou o ferrolho. Relutava em entrar. Tudo estaria bem, se pudesse esgueirar-se para seu quarto e lá ficar até a partida do Coronel Fawcett, mas a disposição das peças da casa não permitia a fuga. Teria que entrar pela porta da frente e deparar com eles dois, no saguão de tia Louise, de onde não seria possível retirar-se sem ser abertamente rude.

Encontrou-o já instalado junto ao fogo, como se sempre estivesse estado ali. Tia Louise, com sua bandeja do chá da tarde já recolhida por Hilda, preparava um drinque para o visitante.

—E como pretendem passar o fim de semana? —Ele havia sorvido o primeiro e grande gole, aninhando o copo amorosamente na mão, entre os dedos de pêlos eriçados. — Fizeram planos? Os criados estarão trabalhando?

Tia Louise retornou ao tricô. Não preparara um drinque para si mesma, porque era cedo demais, e o sol ainda não se pusera. Ela era severa consigo própria sobre tais regras. Vivendo sozinha, tinha que ser assim.

— Ainda não falamos muito a respeito. Estarei jogando golfe no domingo com Polly e John Richards, além de com um amigo e hóspede deles. É membro do Rye, e aparentemente um golfista muito bom...

— Então, como irá passar seu dia? — perguntou Billy Fawcett, virando os olhos para Judith.

— Provavelmente visitarei uma amiga em Porthkerris. Vou telefonar para ela.

— Não deve ser agradável, ficar andando sozinha por aí. Se precisar de um pouco de companhia, estou sempre disponível.

Judith fingiu não ter ouvido a insinuação. Tia Louise trocou de agulhas.

— Seria ótimo se a sra. Warren ficasse com Judith no domingo, porque Hilda e Edna também estarão fora. Talvez fosse um tanto monótono, ficar na casa vazia.

— Sempre posso sair de bicicleta.

— Não, se a chuva estiver caindo. Você precisa de uma daquelas capas de chuva que as pessoas usam e chegam até os tornozelos. E nesta época do ano, só Deus sabe o tempo que irá fazer!

Billy Fawcett largou seu copo e, torcendo o corpo ligeiramente, enfiou a mão no bolso da calça, em busca do maço de cigarros e do isqueiro. Acendeu um cigarro, e Judith reparou nos dedos manchados de nicotina. O bigode dele parecia algo estorricado, como se tivesse sido muito bem defumado.

— Que tal uma ida ao cinema? — sugeriu ele, de repente. — Estive em Porthkerris esta manhã, e vi que estão passando O picolino. Fred Astaire e Ginger Rogers. Deve ser um filme excelente. Por que não irem as duas comigo? Amanhã à noite. Eu convido, claro.

Tia Louise pareceu um pouco surpresa. Talvez aquela fosse a primeira vez que Billy Fawcett se oferecia para pagar alguma coisa.

— É muito gentil de sua parte, Billy. E quanto a você, Judith? Gostaria de ir ver O picolino? Ou talvez já tenha visto o filme?

Judith ainda não o tinha visto, mas há séculos ansiava assistir àquele filme. Em uma revista de cinema que Loveday contrabandeara para o dormitório vira fotos de um par glamouroso, rodopiando e deslizando numa pista de dança, ela em um esvoaçante vestido com plumas. Uma das garotas do quinto período já vira duas vezes o filme em Londres, apaixonara-se por Fred Astaire, e tinha uma jovial fotografia dele colada dentro da capa de seu grosso caderno de notas.

Por outro lado, ela preferiria ir ao cinema apenas com Heather; juntas, as duas poderiam chupar balas de hortelã e sufocariam satisfeitas na abafada escuridão.

Entretanto, não seria a mesma coisa em companhia de tia Louise e Billy Fawcett.

— Não, eu ainda não o vi.

— Gostaria de ir? — perguntou tia Louise.

— Gostaria. — Não havia muito a dizer. — Sim, eu adoraria.

— Ótimo! — Billy Fawcett deu um tapa no joelho coberto de tweed, aprovando uma bem tomada decisão. — Então, está combinado. Quando iremos? A sessão das seis da tarde? Lamento, mas você terá que bancar a motorista, Louise, porque meu calhambeque anda tossindo um pouco. Tive de deixá-lo na garagem.

— Muito bem. Se você chegar aqui às cinco e meia, estaremos prontas para ir. Foi muita gentileza sua.

— Um prazer. Acompanhar duas damas encantadoras... Quem desejaria mais?

Ao falar, ele pegou seu drinque, bebeu o uísque e empertigou-se na poltrona, fumando com o copo vazio na mão. Tia Louise ergueu as sobrancelhas.

— Mais uma dose, Billy?

— Bem... —Ele contemplou o copo vazio, como que surpreso ao vê-lo em tão triste estado. —Já que insiste...

Sirva-se você mesmo.

— E quanto a você, Louise? Ela olhou para o relógio.

— Apenas um pouquinho. Obrigada.

Assim, ele se levantou e foi até a bandeja de drinques para preparar as bebidas. Ao observá-lo, Judith refletiu que Billy Fawcett parecia assustadoramente à vontade naquela casa. Interrogou-se sobre o bangalô dele, concluindo que, sem dúvida, seria horrível, melancólico e frio. Talvez ele fosse muito pobre, não podendo sustentar chamas caras na lareira, garrafas de uísque, governantas residentes e todos os confortos da vida que solteirões solitários precisam. Talvez devido a isso é que ele parecesse insinuar-se na existência ordenada e opulenta de tia Louise. Talvez... horror dos horrores... ele estivesse, à sua maneira, cortejando sua tia, com casamento em mente.

A idéia era tão tenebrosa, que Judith mal conseguia pensar nela. No entanto, por que não? Ele era um velho conhecido de Jack Forrester, e saltava aos olhos que tia Louise apreciava sua companhia, caso contrário já o teria despachado há muito tempo. Ela não era do tipo que suportava tolos de bom grado. Assim, talvez apenas começasse sentindo pena dele e, com a passagem do tempo, o relacionamento simplesmente evoluíra. Tais coisas podiam acontecer.

—Aqui está, minha querida...

Judith observou-a cuidadosamente, mas ela aceitou o drinque à sua maneira prática de sempre, depois colocando-o na mesa ao seu lado. Nada de olhares furtivos ou de sorrisos secretos. Judith relaxou ligeiramente. Tia Louise era demasiado sensata para tomar quaisquer decisões temerárias — e o que haveria de mais temerário do que Qualquer espécie de compromisso com um velho pobretão e beberrão como Billy Fawcett?

— Obrigada, Billy.

Boa e velha tia Louise... Judith decidiu esquecer seus instintivos temores, expulsá-los da mente. Não obstante, descobriu que a idéia, uma vez plantada, havia ganho raízes, fazendo-a saber que não havia meios de ignorar suas possibilidades. Cabia-lhe apenas observar e esperar.

Na manhã seguinte, Judith ligou para Heather. A sra. Warren atendeu emitiu alguns ruídos de satisfação e boas-vindas ao perceber quem estava na linha, e então foi chamar a filha.

— Judith!

— Olá!

— O que está fazendo?

— Este é o fim de semana de metade do termo letivo. Estou com tia Louise.

— Conseguiu a bicicleta, conseguiu?

— Sim. Nós a compramos ontem, na loja do sr. Pitway. É formidável. Dei um longo passeio ontem à tarde. Estou apenas precisando de faroletes.

— Qual é a marca?

— Raleigh. É verde-escura. Três velocidades.

— Que ótimo!

— Quero ver você. Será que poderia ser amanhã? Posso ir até sua casa?

— Oh, que droga!

— O que há de errado?

— Vamos aproveitar o fim de semana para ir a Bodmin, visitar minha avó. Papai foi pegar o carro, e estaremos partindo dentro de uns cinco minutos. Só estarei de volta no domingo, já tarde da noite.

— Oh, mal posso acreditar! — O que ouvia era muito desapontador. — Por que você teria de viajar logo neste fim de semana?

—Já estava tudo planejado. E eu nem sabia que você viria em casa! Podia ter-me avisado, Judith.

— Terei também a segunda-feira de folga.

—Não vai dar. Na segunda-feira estarei de volta à escola.

- Poderia vir para o chá na segunda-feira?

—Impossível, porque tenho de voltar para o Santa Ursula às quatro da tarde.

— Oh, mas que contratempo! — exclamou Heather. — Francamente, estou angustiada. Queria tanto ver você! Saber tudo o que tem acontecido... Como é o colégio? Já fez amizades, fez?

— Sim, com uma ou duas pessoas. Não chega a ser ruim.

— Sente falta de sua mãe?

—Às vezes, mas não adianta ficar pensando.

— Será que já chegaram lá? Em Colombo, quero dizer, já recebeu alguma carta?

— Recebi várias. Eles estão bem, está tudo certo com Jess.

— Elaine perguntou por você outro dia. Agora posso dar alguma notícia a ela. Ouça, nós nos veremos nos feriados da Páscoa.

— Combinado.

— Quando é que começam os seus feriados?

— Na primeira semana de abril.

— Pois bem, ligue para mim logo que chegar, e combinaremos alguma coisa. Mamãe disse que você pode vir e dormir umas duas noites conosco.

— Diga a ela que irei, que adorarei ir.

— Tenho que me despedir agora, Judith. Papai está buzinando, mamãe já pôs o chapéu, e agora está andando de um lado para o outro.

— Tenha um bom fim de semana com sua avó.

— Você também. E não esqueça. Estaremos juntas na Páscoa!

— Não vou esquecer. —Bye

Ela desligou e, murcha, foi contar a má notícia para a tia.

— Os Warrens vão ficar dois dias em Bodmin, com a avô de Heather. Portanto, não estarão aqui amanhã.

— Oh, céus! Que desapontador! Não fique triste, vocês poderão encontrar-se nos próximos feriados. E, com um pouco de sorte, amanhã será um lindo dia sem chuva. Se for, pedirei a Edna que lhe prepare uma cesta de piquenique, e você sairá com sua bicicleta. Talvez possa ir até a praia. Ou subir até Veglos Hill. Todas as prímulas silvestres já terão desabrochado lá no alto, e então poderá trazer-me o primeiro buquê da estação.

— Sim, acho que sim...

Entretanto, ela continuava desapontada. Afundou em uma poltrona, com as pernas esticadas à frente do corpo, e passou pela boca alguns nós de cabelo que haviam escapado da fita que os prendia. Pensou no domingo vazio, e esperou que tia Louise não falasse a Billy Fawcett sobre a mudança de planos. Abriu a boca para dizer isso, pensou a respeito, decidiu o contrário e tornou a fechar a boca. Era melhor ficar calada. Era melhor não deixar escapar nenhum vislumbre de sua instintiva antipatia pelo inofensivo e velho sujeito, tão visivelmente considerado um amigo íntimo por tia Louise.

Após outra manhã chuviscando, a tarde de sábado desabrochou para um sol que aparecia e desaparecia por trás de pesadas nuvens empurradas do mar para terra. Tia Louise anunciou que faria um pouco de jardinagem, e então Judith foi ajudá-la, arrancando ervas daninhas da terra macia e encharcada, depois retirando dali, em um carrinho de mão, a madeira seca que tia Louise podara de várias roseiras e arbustos. Só entraram às quatro e meia da tarde, mas havia tempo de sobra para lavarem as mãos, arrumarem-se e tomarem uma xícara de chá, antes que Billy Fawcett cruzasse o portão e subisse o caminho de cascalhos, ansioso e pronto para a ida ao cinema.

Os três entraram no Rover, com Billy no banco dianteiro, e puseram-se a caminho.

— O que as duas estiveram fazendo hoje? — ele quis saber.

—Jardinagem — informou tia Louise.

Ele se virou no assento, sorriu para Judith e ela lhe viu os dentes amarelados, os olhinhos brilhantes.

— Não chega a ser um feriado, se a memsahib põe você para trabalhar.

— Eu gosto de jardinagem — respondeu Judith.

— E quanto a amanhã? Conseguiu falar com sua amiga? Judith olhou pela janela e fingiu não ter ouvido, então ele repetiu a pergunta.

— Chegaram a combinar alguma coisa?

"Não realmente", foi tudo quanto ela pôde pensar em dizer, rezando para que tia Louise ficasse de boca fechada e o assunto fosse esquecido. Sua tia, no entanto, desprevenida e sem desconfiar de nada, deu todo o serviço.

— Infelizmente, Heather estará fora no fim de semana. De qualquer modo, não importa muito, porque elas poderão encontrar-se nos feriados.

Judith sabia que tia Louise agira inocentemente, mas, ainda assim, sentia vontade de gritar com ela.

— Sendo assim, você mesma terá de preencher seu tempo, não? Bem, se quiser um pouco de companhia, eu moro logo abaixo, descendo a estrada.

Billy Fawcett virou-se para a frente de novo, e Judith, rude como Loveday, esticou a língua para a nuca do homem. Ele poderia tê-la visto elo retrovisor, mas, ainda que visse, ela pouco estaria ligando.

Nesse entardecer, enquanto entravam na cidadezinha após descerem a colina, Porthkerris apresentava uma face muito diferente da melancólica que exibira na manhã do dia anterior. O céu clareara e os últimos raios do sol poente banhavam todas as velhas casas de pedra orn com uma luminosidade rosa-dourada, dando-lhes um pálido toque translúcido de conchas marinhas. A brisa cessara, o mar estava prateado e imóvel, e, no grande crescente da praia, muito abaixo da estrada, um homem e uma mulher caminhavam lado a lado, deixando para trás uma linha dupla de pegadas sobre a superfície lisa e firme da areia.

Enquanto o carro descia para o labirinto de ruas estreitas, de uma porta aberta evolou-se o cheiro de batatas fritas e de peixe acabado de fritar, presente nas noites de sábado. Billy Fawcett ergueu a cabeça e farejou, dilatando as narinas, como um cão perseguindo um odor.

— Isso dá água na boca, não? Peixe e batatas fritas. Depois do cinema, talvez pudéssemos comer um peixe, o que acham?

Tia Louise, contudo, não achou uma boa idéia. Talvez por não querer nenhuma discussão sobre a conta e quem a pagaria.

— Não esta noite, Billy. Edna está esperando que eu e Judith voltemos para casa e vai servir-nos uma ceia fria. — Claramente, Billy Fawcett não foi convidado a partilhar do frugal festim. No fundo, Judith chegou a sentir certa pena dele, mas então tia Louise acrescentou: — Em outra ocasião, talvez.

Isto tornou as coisas um pouco menos rudes. Ela se perguntou o que ele teria para cear. Provavelmente um uísque com soda e um saco de batatas fritas. Pobre velhote. Ainda assim, estava contente por tia louise não o ter convidado para voltar a Windyridge. Imaginou que, quando o filme terminasse, ela já estaria farta da companhia dele.

Tia Louise estacionou o carro perto do banco, e eles atravessaram a rua até o cinema. Não havia fila, mas muitas pessoas estavam entrando. Billy Fawcett adiantou-se e parou diante da bilheteria, a fim de comprar as entradas. Tia Louise e Judith ficaram olhando as lustrosas fotos em preto-e-branco que promoviam o filme. Era evidente que ia ser muito romântico, divertido e glamouroso. Um arrepio de expectativa percorreu a espinha de Judith, mas tia Louise apenas fungou.

— Espero que não seja uma tolice.

— Aposto que irá adorar, tia Louise.

— Está bem. Enfim, apreciarei as belas melodias.

As duas afastaram-se do painel das fotografias, e notaram que Billy Fawcett desaparecera de vista.

— Onde terá ele se metido agora — exclamou tia Louise, como se ele fosse um cão em um piquenique.

Billy Fawcett apareceu quase em seguida, porque tinha ido a uma loja de jornais ao lado, comprar uma pequena caixa de bombons.

— Eu tinha que fazer a coisa com classe, certo? Lamento tê-las deixado esperando. Agora podemos entrar.

O interior do cinema — que em outros tempos havia sido um mercado de peixe — estava apinhado e abafado como sempre, exalando o forte cheiro do desinfetante que era empregado regularmente ali dentro, para o caso de possíveis pulgas. Uma jovem munida de lanterna elétrica os conduziu a seus assentos, mas não precisou acendê-la, porque as luzes ainda estavam acesas. Judith estava prestes a entrar na fila de poltronas, mas Billy Fawcett interveio:

— Suponho que primeiro a sua tia, Judith. Queremos que ela fique confortavelmente instalada.

Isso significava que ela ficaria sentada entre os dois, com tia Louise à sua esquerda e Billy Fawcett à direita. Assim que se acomodaram, já sem os agasalhos, ele abriu a caixa de bombons e os ofereceu. Os bombons tinham um sabor um pouco mofado, mas provavelmente por terem permanecido anos na prateleira da loja de jornais.

As luzes foram amortecidas. Eles viram os trailers do próximo filme... Um excitante faroeste, aparentemente na América do Sul. O forasteiro do Rio. Uma atriz loura, vestindo pitorescos andrajos, mas com a maquiagem intata, abria caminho através do capim-dos-pampas, forcejando e ofegante. O herói, em um imenso sombrero, cruzava um rio montado em seu cavalo branco enquanto girava um laço acima da cabeça. "A ser brevemente exibido neste cinema. Próxima semana. A oportunidade de sua vida. Não perca!"

— Eu o perderei — declarou tia Louise. — Parece uma droga. Depois veio o noticiário. Herr Hitler exibindo-se em seu uniforme, assistindo a um desfile. O Rei britânico falando para construtores navais após o lançamento de um navio ao mar, no norte da Inglaterra, depois alguns interessantes instantâneos de filhotes de cães, em uma exposição canina. Após o noticiário, houve uma Sinfonia Absurda sobre um esquilo americano e então, finalmente, O picolino.

— Já não era sem tempo! — exclamou tia Louise. — Pensei que nunca mais ia começar.

Judith, no entanto, mal a ouvia. Enterrada fundo em sua poltrona, de olhos grudados na tela, foi capturada pela velha e familiar magia, em uma absorção total pelo som e visão da história sendo contada. E, antes de muito tempo, lá estava Fred Astaire em um palco, rodopiando e sapateando o número de O picolino, andando, dando voltas, fazendo malabarismos com sua bengala, mas sempre dançando. Então, a trama adquiria densidade, ele conhecia Ginger Rogers, partia atrás dela e os dois cantavam "Que belo dia para apanhar chuva", tornando a dançar, só que agora juntos. Em seguida, ele e Edward Everett Horton acabavam envolvidos, ambos trajados de maneira igual e às voltas com uma pasta de executivo, enquanto Ginger Rogers pensava que Fred Astaire era Edward Everett Horton e ficava furiosa, porque Edward Everett Horton era casado com sua melhor amiga, Madge...

Foi neste momento que Judith ficou cônscia de estar acontecendo algo esquisito. Billy Fawcett parecia inquieto, remexendo-se no assento e volta e meia distraindo-lhe a atenção. Ela mudou de posição ligeiramente, a fim de dar mais espaço para as pernas dele, mas, ao fazer isso, sentiu uma coisa sobre seu joelho. E essa coisa era a mão de Billy Fawcett, que ali havia pousado como que por engano, mas que continuava no mesmo lugar, pesada e desconfortavelmente quente.

O choque desta realidade destruiu toda a sua concentração, todo o seu prazer. O picolino, com seu brilho e encanto, simplesmente deixou de existir. O diálogo, as piadas, os risos não foram mais ouvidos. Ela continuou a encarar a tela, mas nada via, porque qualquer intenção de acompanhar o enredo do filme desapareceu de sua mente, ao deparar-se com uma alarmante e totalmente inesperada crise. O que devia fazer? Saberia ele que tinha a mão sobre seu joelho? Teria Pensado que a descansava no braço estreito que dividia as apertadas poltronas de veludo? Deveria ela dizer-lhe? E se dissesse, ele retiraria a mão?

Foi então que os dedos dele se crisparam, apertaram e começaram a massagear, fazendo-a compreender que a intrusão não era acidental mas planejada. Acariciante, a mão dele moveu-se mais para cima, por baixo da saia dela, subindo em sua coxa. Em mais um instante, os dedos chegariam à sua calcinha. Na penumbra do cinema, no abafado recinto ela permaneceu em aterrorizado horror, perguntando-se até onde ele iria, o que lhe competia fazer para acabar com aquilo, por que aquele homem agia assim, e como conseguiria alertar tia Louise...

Na tela estava acontecendo algo divertido. A platéia, incluindo tia Louise, dava seguidas gargalhadas. Acobertada por este som, Judith fingiu ter deixado cair alguma coisa, deslizou para fora de seu assento e ficou de joelhos, apertada na densa escuridão entre as duas fileiras de poltronas.

— Afinal de contas — tia Louise reclamou — o que faz você aí?

— Perdi meu prendedor de cabelo.

— Não me pareceu que estivesse usando um.

— Bem, eu estava, mas agora o perdi.

— Pois esqueça-o por enquanto, poderemos encontrá-lo quando o filme terminar.

— Psst! — fez alguém, da fila traseira. —Não podem calar a boca?

— Sinto muito.

Com alguma dificuldade, ela se contorceu novamente para seu assento, desta vez tão encolhida para o lado da tia, que o braço da poltrona incrustou-se em suas costelas. Agora, certamente ele perceberia o quanto fora inconveniente e a deixaria em paz.

Não foi, porém, o que aconteceu. Mais cinco minutos, e a mão estava lá novamente, como uma criatura rastejante e nojenta, que nenhuma quantidade de jornais, enrolados apertadamente, seria capaz de matar. Acariciando, movendo-se, subindo...

Ela ficou bruscamente em pé. Tia Louise mostrou-se exasperada, o que era natural.

—Judith, por Deus!

— Preciso ir ao toalete — sussurrou Judith.

— Eu lhe disse que fosse, antes de sairmos de casa.

— Psst! Há mais gente vendo o filme; por que não se calam?

— Sinto muito. Tia Louise, deixe-me passar.

— Vá pelo outro lado. É muito mais rápido.

-— Eu quero ir por este lado.

—Bem, vá logo ou sente-se; está estragando o prazer dos outros!

— Sinto muito.

Ela foi, espremendo-se contra os joelhos de tia Louise e os joelhos de todos os outros irritados e incomodados membros da platéia que ocupavam a mesma fila de poltronas. Judith caminhou rapidamente pelo corredor escuro e chegou à cortina nos fundos que dava para o pequeno e sujo toalete feminino. Entrando, ela trancou a porta e permaneceu no malcheiroso recinto, quase chorando de desgosto e desespero. O que aquele homem horrível queria? Por que tinha de tocá-la? Por que não a deixava em paz? Ela não se importava de perder o filme. A mera idéia de voltar para a sala de projeção dava-lhe calafrios. Seu maior desejo era sair dali para o ar puro, voltar para casa e nunca, nunca mais ter de ver aquele homem ou falar com ele novamente.

"Vamos ao cinema", sugerira ele, sem pestanejar, deixando tia Louise acreditar que fazia o convite por pura generosidade. Billy Fawcett enganara sua tia, o que o tornava não só astuto, como perigoso. Era incompreensível o motivo dele haver acariciado seu joelho e deslizado os dedos odiosos por sua coxa acima, porém isso somente a fazia sentir-se mais ultrajada, porque era horrível. Desde o início não simpatizara muito com Billy Fawcett, achando-o simplesmente um ser patético e ridículo. Agora sentia-se também ridícula, ao mesmo tempo que aviltada. E aviltada a tal ponto, que sabia ser impossível algum dia poder contar para tia Louise o que acontecera. A simples idéia de fitar os olhos da tia e dizer Billy Fawcett tentou enfiar a mão em minha calcinha era suficiente para deixá-la ardendo de vergonha.

Uma coisa era certa. Ela retornaria à sala de projeção e no mesmo sentido em que saíra de lá, não sossegando enquanto tia Louise não se levantasse, ocupasse o lugar que fora seu ao lado de Billy Fawcett e a deixasse sentar-se em sua própria poltrona. Isto podia ser conseguido Se permanecesse em pé e discutindo, além de contar com a ajuda do irritado casal que se sentava atrás deles. Constrangida pela situação, tia Louise seria forçada a concordar com o seu pedido. Se depois disso ficasse aborrecida, exigindo saber o que Judith estaria pensando, que aquela não era maneira de comportar-se, etc, etc, não era caso para se preocupar. Judith fingiria não perceber a irritação da tia porque indiretamente, toda aquela situação era culpa dela própria. Afinal de contas, Billy Fawcett era seu amigo, ela poderia ter-se sentado prazerosamente ao lado dele — e Judith tinha certeza absoluta de que acontecesse o que acontecesse, ele não ousaria subir a mão até a calcinha de tia Louise.

O céu, que estivera límpido com uma brilhante lua cheia, escureceu subitamente e um vento elevou-se de nenhures, açoitando a casa e uivando em torno dela sobre a colina, com a voz de fantasmas extraviados. Ela jazia na cama. Estava aterrorizada e encarava o espaço quadrado da janela, à espera do que estava inevitavelmente para acontecer, mas ignorando o que fosse. Sabia que se saísse da cama e corresse para a porta — sua única esperança de escapar — iria encontrá-la trancada. Acima do ruído do vento podia ouvir passos sobre o cascalho e depois um som surdo, como se o topo de uma escada de mão tivesse sido encostado ao peitoril da janela. Começava a acontecer. Ele estava vindo, subindo a escada, silenciosamente como um gato. Ela fitava a janela e seu coração estrondeava, mas permanecia imóvel porque nada havia que pudesse fazer. Ele estava vindo, com suas malignas intenções, seus olhos maniacamente faiscantes e seus dedos quentes, tateantes. Estava perdida, pois ainda que gritasse, sabia que som algum lhe escaparia da boca, que ninguém a ouviria. Ninguém viria em seu socorro. Então, enquanto olhava, petrificada, a cabeça dele assomou acima do peitoril e, embora fosse escuro, ela podia distinguir-lhe cada traço do rosto, e ele estava sorrindo...

Billy Fawcett.

Judith sentou-se na cama e gritou, tornou a gritar, e ele continuava lá, mas agora já era dia, era de manhã e ela estava acordada. A terrível imagem permaneceu por apenas um segundo, então dissipou-se mise-ricordiosamente, e não havia nenhuma escada, apenas a sua janela aberta e a claridade matinal mais além.

Um sonho, ou melhor, um pesadelo. Seu coração ribombava como um tambor, pelo terror e realidade da imaginação superexcitada.

Aquietou-se pouco a pouco. Sua boca estava seca. Bebeu do copo de água junto à cama. Recostou-se nos travesseiros, trêmula e exausta.

Pensou no momento de encarar tia Louise, acima do bacon e dos ovos. Esperava que ela não continuasse aborrecida sobre a noite anterior e a desastrosa ida ao cinema. O sonho aterrador de Judith havia esmaecido, porém o problema prático de Billy Fawcett era tão real e imediato como jamais imaginara; jazia em seu coração como um peso, e ela sabia que nenhuma dose de reflexão sobre o fracasso de sua saída noturna resolveria este problema e que, considerá-lo, tampouco adiantaria coisa alguma.

"Vamos ao cinema." Tão gentil e bem-intencionado... No entanto, o tempo todo ele estivera planejando aquilo. Havia iludido as duas, isto o tornando um velhaco e, portanto, um inimigo a ser levado em conta. A violação dele era incompreensível. Judith sabia apenas que, de algum modo, tudo se mesclava a sexo, desta maneira sendo horrível.

Desde o início não o achara simpático... não como o caro sr. Willis ou mesmo o Coronel Carey-Lewis, com quem se entrosara de imediato... mas simplesmente algo de uma caricatura — ridículo. E agora, o terrível é que também ela se sentia ridícula, ao portar-se como uma idiota. Claro que havia tia Louise a ser levada em consideração. Billy Fawcett era um velho conhecido, um elo com Jack Forrester e seus dias tranqüilos na índia. Contar a ela seria destruir-lhe a confiança e terminar com a amizade dos dois. E Judith, embora angustiada, não sentia o menor desejo de ser tão cruel.

Tia Louise havia sido muito bondosa sobre a desastrosa visita ao cinema. Não dissera palavra, senão quando estavam ambas de volta a windyridge e sozinhas. Terminado o filme, e depois que a platéia Permanecera de pé para a rangente reprodução em disco de "God Save Me King", haviam saído para a fria e ventosa escuridão. Apertados no Rover, retornaram a Penmarron. Billy Fawcett mantivera uma desenvolta conversa durante todo o trajeto, repetindo e recordando trechos interessantes dos diálogos do filme, e assobiando as melodias.

"Estou pondo minha cartola E atando uma gravata branca..."

Judith olhava para a cabeça dele, sentado no banco dianteiro, e gostaria de vê-lo morto. Quando se aproximavam dos portões de Windyridge, ele disse:

— Louise, minha cara, deixe-me descer aqui e irei andando para casa. Foi ótimo ter-nos levado em seu carro. Eu me diverti muito.

— Nós também, Billy. Não concorda, Judith? — O carro parou e ele abriu a porta e desceu. — E obrigada pelo convite.

— Foi um prazer, minha cara. Até mais ver, Judith.

Ele ainda teve a audácia de enfiar a cabeça pela janela e piscar-lhe um olho. Depois a porta se fechou ruidosamente e Billy Fawcett seguiu seu caminho. Tia Louise fez a curva para cruzar o portão. Estavam em casa.

Ela não estava realmente zangada, mas apenas intrigada, sem saber o que, afinal de contas, dera em Judith.

— Você se portou como uma maluca. Pensei que estivesse como Uma pulga ou coisa assim, para pular como alguém atacado da Dança de São Vito. Perder coisas, deixar coisas caírem, para em seguida incomodar toda uma fileira de estranhos que procuravam apenas divertir-se! E todo aquele empenho em ficar na minha poltrona! Confesso que jamais vi semelhante comportamento em minha vida.

O que ela dizia era totalmente razoável. Judith procurou desculpar-se, disse que o mítico prendedor de cabelo tinha sido o seu favorito e que a ida ao toalete fora altamente essencial. Que só pedira para trocar de lugares, ao pensar que assim pouparia à tia o incômodo de ter os joelhos espremidos com sua passagem, bem como o risco de possivelmente machucar-lhe as pernas. Na realidade, havia apenas pensado no bem-estar da tia, ao fazer tal sugestão.

— Meu bem-estar!... Gostei disso, e justo com aquele casal da fila de trás dirigindo-me todo tipo de palavras ofensivas e ameaçando chamar a polícia...

— Eles não fariam tal coisa.

— A questão não é essa. Foi muito embaraçoso.

— Sinto muito.

— E eu até estava gostando bastante do filme. Não pensei que apreciasse, mas foi bem interessante.

— Achei que também foi divertido — mentiu Judith levemente porque, de fato, após iniciado o manuseio em sua coxa, não conseguia Recordar mais nada do filme. Acrescentou, esperando dissipar qualquer possível suspeita de tia Louise: — Foi muita gentileza do Coronel Fawcett levar-nos ao cinema.

— Sim, foi. Pobre coitado, sua situação é bastante desagradável. A pensão que recebe é uma ninharia...

A discussão parecia ter chegado ao fim. Após tirar o chapéu e o casaco, tia Louise preparou para si mesma um revigorante uísque com soda e, de copo na mão, encaminhou-se para a sala de refeições. Lá, Edna lhes deixara carneiro frio e beterrabas em fatias, sua idéia de uma pequena e adequada ceia para depois do cinema.

Judith, entretanto, não tinha fome. Estava simplesmente morta de cansada. Brincou com o pedaço de carneiro em seu prato e bebeu um pouco d'água.

—Você está bem? —perguntou tia Louise. —Parece terrivelmente pálida. O excitamento deve ter sido demais para você. Por que não vai para a cama?

— A senhora não se importaria?

— Nem um pouquinho.

— Sinto muito sobre tudo que aconteceu.

— Não vamos mais falar nisso.

Agora, na manhã seguinte, Judith sabia que não haveria mais comentários a respeito dos eventos da véspera. Era grata por isso mas, ainda assim, sentia-se infeliz. Não somente infeliz, mas impura, em brasa e desconfortável. Contaminada pelo inqualificável Billy Fawcett, e também fisicamente suja, como se seu corpo tivesse absorvido o cheiro de mofo do abafado cineminha e do fétido toalete para onde acudira, a fim de ficar livre daquela mão infame. E seus cabelos cheiravam a fumaça de cigarro, o que era repugnante. Na noite anterior estivera cansada demais para tomar um banho, mas não rejeitaria um agora. Decisão tomada, jogou para um lado os lençóis amarrotados e caminhou até o banheiro, para abrir as torneiras ao máximo.

Foi um banho maravilhoso, escaldando de quente e tão meticuloso quanto possível. Ela ensaboou cada pedacinho de si mesma, lavando também os cabelos. Após enxugar-se, perfumou-se com talco, escovou os dentes e sentiu-se bem melhor. De volta ao quarto, chutou para um lado toda a roupa usada na véspera — a qual mais tarde passaria aos cuidados de Hilda — e procurou outras, limpas. Roupas de baixo e meias limpas, além de uma saia bem passada. Uma blusa diferente e um pulôver cinza-rosado. Esfregou os cabelos com a toalha e depois os penteou para trás da cabeça. Calçou os sapatos, atou os cordões e foi para o andar de baixo.

Tia Louise já fazia o breakfast. Comia torradas amanteigadas com café. Estava vestida para o golfe, um traje de tweed e um cardigan abotoado sobre uma saia-calça. Os cabelos, presos em uma redinha estavam imaculados. Quando Judith chegou, ela ergueu os olhos.

— Pensei que tinha dormido demais.

— Sinto muito. Resolvi tomar um banho.

— Eu tomei o meu ontem à noite. Não sei por que, mas quando vou ao cinema sempre termino me sentindo absolutamente suja. — O comportamento estranho de Judith parecia ter sido perdoado e esquecido. Ela estava alegre, satisfeita porque ia jogar. — E então, dormiu bem? Sonhou com Fred Astaire?

— Não. Não sonhei.

— Meu favorito era o ator que fingia ser um sacerdote. —Judith serviu-se de ovos, bacon e sentou-se. — O fato de ser inglês o tornava muito divertido.

— A que horas irá jogar golfe?

— Combinei encontrá-los às dez. Provavelmente iniciaremos uma meia hora mais tarde, e depois almoçaremos no clube. E quanto a você? — Tia Louise deu uma olhada para a janela. — O dia parece bastante promissor. Quer sair em sua bicicleta ou existe algo mais que gostaria de fazer?

— Não. Acho que subirei até Veglos e procurarei prímulas para a senhora.

— Direi a Edna que lhe prepare um sanduíche e o ponha em uma mochila. Talvez uma maçã e uma garrafa de refresco de gengibre. Ela e Hilda sairão às dez e meia para o aniversário da tia. Um primo virá buscá-las em seu carro. Engraçado. Nunca pensei que elas tivessem um primo dono de um carro. Eu gostaria que esperasse até elas partirem, para levar com você a chave dos fundos. Eu levarei a chave da frente e, desta maneira, ficaremos independentes uma da outra. Antes de sair, quero certificar-me de que todas as janelas foram trancadas. A gente nunca sabe. Com pessoas tão esquisitas perambulando por aí... Antigamente, eu nem pensava em trancar as portas, mas então a sra. Battersby foi assaltada, de modo que é melhor prevenir. Aliás, seria bom você levar uma capa de chuva, para o caso de chover. E volte para casa antes do escurecer.

— Terei de voltar. A bicicleta não tem faróis.

— Que esquecimento! Devíamos ter pensado nisso, quando a compramos. — Ela encheu sua segunda xícara de café. — Bem, então está tudo resolvido, não?

Levantou-se e, levando a xícara de café, saiu da sala, foi até a cozinha e falou com Edna, a quem deu ordens sobre o piquenique de Judith.

Mais tarde, de sapatos fechados e usando uma boina, com os tacos de golfe acomodados no banco traseiro do Rover, tia Louise partiu para o clube de golfe, após trancar firmemente a porta da frente ao sair. Judith acompanhou-a até o carro e depois entrou pela cozinha. Edna e Hilda envergavam seus melhores trajes para a momentosa festa de aniversário.

Hilda usava um capote bege, inteiramente abotoado, e um chapéu de aba. Edna pusera sua roupa domingueira: capote, saia e uma boina escocesa púrpura, na qual pregara um broche. Das duas irmãs, ela era a menos favorita de Judith, com suas queixas intermináveis sobre as varizes e os pés cansados, além de possuir uma notável aptidão para sempre ver o lado mais sombrio de qualquer situação. Fazê-la dar uma risada era como extrair sangue de uma pedra. Não obstante, era uma criatura de bom coração, e o piquenique de Judith havia sido rapidamente preparado, já estando à espera em cima da mesa da cozinha, dentro de uma pequena mochila.

— Muito obrigada, Edna. Espero não ter dado muito trabalho.

— Não demorei quase nada. Sanduíche de patê de carne. Sua tia disse que você vai levar a chave da porta dos fundos. Deixe-a aberta para quando voltarmos. Chegaremos por volta de nove horas.

— Nossa! Que festa de aniversário demorada!

— Haverá muita coisa para a gente lavar e arrumar.

— Tenho certeza de que será divertido.

—Bem, espero que seja mesmo —respondeu Edna, lugubremente.

— Ora, vamos, Edna! — censurou Hilda. — Todos vão estar lá! Nós nos divertiremos como nunca!

Edna, no entanto, apenas meneou a cabeça.

— Eu sempre disse que oitenta anos são muita idade. E a tia Lily, enfiada em sua cadeira, com os tornozelos tão inchados que mal consegue ficar em pé! Ainda por cima, gorda! Precisando de duas pessoas para levá-la ao banheiro! Eu antes queria já estar debaixo da terra do que ficar em semelhante estado.

—Não temos o direito de escolha—observou Hilda. —Seja como for, ela ainda gosta de dar suas boas risadas. Disse que ficou com dor nos lados, de tanto rir, quando seu velho bode comeu toda a roupa lavada da sra. Daniel, pendurada no varal...

A discussão poderia eternizar-se, mas foi encerrada prontamente pelo primo chegando em seu carro. Como duas galinhas desorientadas as irmãs entraram em ação imediatamente, pegando suas bolsas e guarda-chuvas, a lata contendo o bolo que haviam assado e o buquê de narcisos enrolado em um pedaço de jornal.

— Até amanhã.

— Divirtam-se.

Judith ficou olhando enquanto as duas saíam, cheias de excitamento, subiam para o sacolejante veículo e partiam. Acenou para elas, e as duas acenaram de volta. O cano de descarga cuspia nuvens de fumaça negra e, logo depois, todos haviam desaparecido.

Ela estava sozinha.

E Billy Fawcett sabia disso. O espectro da presença dele, espreitando de seu bangalô logo abaixo da estrada, significava que não havia tempo a perder. Ela pegou sua capa de chuva pendurada em um cabide no vestiário, enrolou-a e a enfiou na mochila. Com a alça da mochila passada no ombro, saiu pela porta dos fundos e a fechou cerimoniosamente a chave. Na garagem, guardou a enorme chave junto com as chaves de fenda de sua bolsa de ferramentas. Depois empurrou a bicicleta para o caminho de cascalho, deu uma rápida olhada em torno para certificar-se de que ele não se encontrava à vista em nenhum lugar, montou na bicicleta e começou a pedalar velozmente.

Era mais ou menos como escapar. De maneira furtiva, rápida e sigilosa. Entretanto, o mais terrível era que, enquanto Billy Fawcett estivesse pelos arredores, assim é que sempre teria de ser. Já Veglos Hill distava pouco mais de seis quilômetros de Penmarron, sendo um ponto de referência conhecido, apesar de sua pouca altitude. Caminhos estreitos levavam ao alto da colina e ao seu redor, onde tudo era constituído de charnecas, pequenas propriedades, e carvalhos e pilriteiros de pouca altura, contorcidos e deformados pelos ventos constantes. Sobre seu topo achatado havia dólmens rochosos, enormes blocos arredondados de granito empilhados uns sobre os outros, como um coque gigantesco de cabelos. O caminho para o alto ficava além de um muro circundante de pedra. O sopé da colina era coberto de um matagal denso de fetos, sarças e giestas, com trilhas turfosas que serpenteavam para o alto, cortando essa cerrada vegetação. Havia flores silvestres em abundância. Campainhas-do-monte, celidônias e prímulas, sendo que, no verão, as valas transbordavam com as espiraladas campânulas das dedaleiras.

No entanto, aquele era um local antigo, atmosférico. Nas encostas superiores da colina, na pastagem dos dólmens, podiam ser discernidos os remanescentes de habitação, os círculos de cabanas do homem da idade da pedra. Em um dia chuvoso, com o nevoeiro elevando-se do oceano e os apitos de neblina dos barcos do Pendeen gemendo através do negrume, não era difícil imaginar-se que os fantasmas daqueles trigueiros homenzinhos ainda estivessem na posse de Veglos; apenas estavam invisíveis, mas permaneciam vigilantes.

Quando moravam em Riverview House, as Dunbars por vezes iam à colina Veglos durante a primavera, ou mesmo em setembro, quando as amoras-pretas estavam no ponto de serem colhidas. Era sempre uma expedição para um dia inteiro, e como a colina ficava longe demais para as perninhas de Jess cobrirem todo o trajeto, a mãe delas tomava coragem e as levava no pequeno Austin. Phyllis sempre ia também, e todas elas, até mesmo Jess, carregavam alguma coisa para o piquenique.

Judith recordava tais ocasiões como dias particularmente felizes.

Agora, no entanto, pela primeira vez vinha ali de bicicleta, e o trajeto era cansativo, enladeirado a maior parte do tempo. Finalmente ela chegou, e a colina estava bem à sua frente, além do muro de pedras. O acesso à trilha de subida era feito através de um apertado torniquete no topo, isto significando que a bicicleta não podia ir mais além. Assim, Judith abandonou-a naquele ponto, meio escondida pelos fetos e tojos, Passou a mochila pelo ombro e iniciou a longa caminhada colina acima.

O dia estava frio, mas de tempo firme, com nuvens velejando através do céu pálido e uma difusa cerração manchando o horizonte. A turfa estava molejada e suave sob seus pés e, enquanto subia, ela parava de quando em quando para recuperar o fôlego e ver como a região campestre se exibia, estendendo-se à sua frente como um mapa. O mar abarcava tudo no lado norte, a baía azul encurvando-se para o farol distante. No lado sul, cintilando na bruma, ficavam Mount's Bay e o Canal da Mancha.

Por fim Judith chegou ao alto, com os dólmens elevando-se acima dela. A escalada final era por essa face rochosa, tinha que procurar pontos de apoio para os dedos dos pés e das mãos, desviar-se das ravinas espinhosas, e por fim emergir no topo, ali sendo fustigada pelo vento e tendo o mundo inteiro a seus pés. Era quase uma da tarde e, agachando-se para o abrigo no solo relvado de uma rocha amarelada pelos liquens, ela sentiu o sol quente em seu rosto.

Era tudo muito tranqüilo e solitário, tendo por companhia apenas o som do vento e o trinado dos pássaros. Judith descansou e contem- plou, tomada por um senso de realização, enquanto procurava orien- tar-se. Viu a região campestre, perfeitamente dividida em propriedades e assemelhando-se a uma colcha de retalhos — fazendas pequeninas que a distância reduzia ao tamanho de brinquedos; um homem arando, atrás de um cavalo, com uma nuvem de gaivotas brancas em seus calcanhares. O Lizard esmaecera na claridade difusa, mas ela podia discernir os pálidos contornos de Penzance, a torre da igreja e a cúpula do banco. Além de Penzance, o litoral estirava-se perdendo de vista. Judith pensou na estrada que seguia ao longo dos penhascos, levando a Rosemullion e Nancherrow. Pensou em Loveday, e perguntou-se como estaria ela passando o dia. Pensou em Diana.

Desejou que Diana estivesse ali, naquele momento. Apenas Diana. Sentada ao seu lado, sem ninguém mais para ouvir, permitindo que lhe fizesse confidências, que lhe contasse sobre Billy Fawcett e solicitasse um conselho. Podia pedir a Diana que lhe dissesse o que, afinal, competia a ela fazer. Porque mesmo no topo da colina Veglos, Billy Fawcett continuava a persegui-la como um cão de caça. Parecia que ela podia pedalar e caminhar até ficar fisicamente exausta e quase morrendo de cansaço, sem que nada acalmasse as sempre presentes e incessantes ansiedades» que eram como um louco torvelinho dentro de sua cabeça.

O pior era não ter ninguém a quem contar. Durante toda a manhã, sua mente subconsciente estivera matutando sobre cada possível confidente, porém nunca encontrando uma resposta.

Mamãe. Fora de questão. Havia um mundo entre ambas. E mesmo se ela estivesse aqui, em Riverview, Judith sabia ser sua mãe basicamente ingênua demais, demasiado vulnerável para enfrentar um dilema tão chocante. Ela ficaria agitada, teria um de seus acessos histéricos, e a situação, em vez de melhorar, pioraria.

Phyllis. Agora trabalhando para a sra. Bessington, em Porthkerris. Judith, no entanto, ignorava onde morava a sra. Bessington, e não conseguia imaginar-se tocando uma sineta, encarando a mulher desconhecida e solicitando uma entrevista com sua cozinheira.

Tia Biddy, então. Tia Biddy ouviria, provavelmente teria ataques de riso e depois ficaria indignada, entraria em contato com tia Louise e precipitaria uma briga. O relacionamento entre suas duas tias nunca fora íntimo, e soltar a novidade para tia Biddy seria mais ou menos como soltar um gato entre canários. Nem era bom pensar na carnificina resultante e em suas conseqüências.

Heather. Ou Loveday. Bem, ambas eram mais novas do que ela e tinham sua mesma ingenuidade. Elas apenas ficariam boquiabertas, dariam risadinhas ou fariam um monte de perguntas irrespondíveis, que a nada de positivo levariam.

Assim sendo, toda a responsabilidade retornava a ela própria. Teria que enfrentar Billy Fawcett sozinha, fosse por que meio fosse, decente ou sujo. E se fossem confirmados os seus piores temores, se por algum motivo não imaginado tia Louise perdesse a cabeça, sucumbisse às lisonjas daquele homem e concordasse em casar com ele, então ela, Judith, deixaria Wíndyridge, faria as malas e iria para Plymouth, ficar com tia Biddy. Enquanto ele continuasse em seu bangalô, pouco mais abaixo na estrada, ela admitia que saberia mantê-lo na linha. Entretanto, à primeira suspeita de que Billy Fawcett estava prestes a tornar-se o sr. Louise Forrester e tomar posse de Windyridge, então ela desapareceria dali.

Desta maneira, fora alcançada uma espécie de decisão. Com penosa resolução, Judith tentou expulsar tudo aquilo da mente e encontrar divertimento em sua expedição solitária. Explorar os dólmens exigia um certo tempo, de maneira que ela comeu o que levara para ao piquenique e ficou sentada em meio àquele escasso calor, até algumas nuvens cobrirem a face do sol e o tempo começar a esfriar. Recolhendo a mochila, começou a descer para onde os pequenos vales turfosos estavam tomados pelas prímulas silvestres. Ela começou a colher as flores, amarrando os ramos com fios de lã, quando ficavam grossos demais para segurá-los. Agachada, começou a sentir-se rígida. Levantou-se ao completar o terceiro buquê, desta maneira aliviando as cãibras dolorosas dos ombros e joelhos. Erguendo os olhos, notou o céu negro que se movia do oeste, e decidiu que bem depressa ia começar a chover, portanto já sendo hora de tomar o rumo de casa. Abriu a mochila, retirou a capa de chuva e a vestiu. As prímulas foram colocadas lá dentro, sobre os restos de seu piquenique. Depois afivelou as correias, pendurou a mochila às costas e desceu a trilha correndo, em direção ao lugar onde deixara a bicicleta escondida.

Tinha coberto apenas metade do trajeto para a aldeia, quando o céu adquiriu uma cor de granito e a chuva desabou. O aguaceiro foi chegando pouco a pouco, mas como um dilúvio, de modo que em poucos minutos ela estava quase que inteiramente molhada. Não importava. Na realidade, era até divertido pedalar com a chuva batendo no rosto e o cabelo escorrendo água pela nuca, enquanto a bicicleta abria caminho, desajeitada, por entre as poças. Subiu a ladeira (íngreme demais para pedalar, o que a forçou a empurrar a bicicleta), depois cruzou a aldeia, em seguida ganhando a estrada principal. Foi ultrapassada por carros e pelo ônibus local que seguia com dificuldade para Porthkerris, os rostos dos passageiros esmaecidos além das vidraças embaçadas. Fazia frio e, com a chuva, levantara-se um vento cortante, porém Judith estava radiosa pelo esforço e pelo exercício, embora as mãos estivessem enre-geladas.

Windyridge, finalmente. Judith seguiu pela alameda, cruzou o portão e subiu o caminho do jardim. Na garagem, estacionou a bicicleta gotejante, tirou do porta-ferramentas a chave da porta dos fundos e correu para a casa. Agora tomaria um banho quente, penduraria as roupas no varal móvel da cozinha e prepararia uma xícara de chá.

Era bom estar dentro de casa. Havia calor na cozinha, que parecia muito quieta sem Edna e Hilda. Somente o velho relógio tiquetaqueava na parede, e as brasas quentes sussurravam no fogão, ao vento que chegava pela chaminé. Judith despiu a capa encharcada e a deixou cair sobre uma cadeira. Encontrou vidros vazios de geléia e colocou as prímulas dentro deles, para se dessedentarem e se recuperarem da viagem. Deixando os vidros de geléia e a mochila em cima da mesa da cozinha, ela então cruzou o corredor e subiu para o andar de cima.

Foi quando o telefone em cima da cômoda do corredor começou a tocar. Ela deu meia-volta e foi atender, mas antes que pudesse dizer alguma coisa, alguém falou no outro extremo do fio.

—Judith?

Ela ficou gélida.

— É você, Judith? Aqui é Billy Fawcett. Estive à sua procura, e vi quando chegou em casa. Fiquei um pouco preocupado com você neste temporal. Pensei em ir até aí saber como está. — A voz dele soava um pouco preocupada. Talvez já houvesse estado às voltas com sua garrafa de uísque. — Irei até aí e tomaremos uma xícara de chá juntos. —Ela mal ousava respirar. —Judith? Judith, está me ouvindo...?

Ela repôs suavemente o fone no gancho. A ligação foi desfeita. Judith ficou imóvel, com a calma do desespero, mas a mente em cristalina limpidez. Billy Fawcett à espreita. Entretanto, ela estava muito bem. Graças à querida, queridíssima tia Louise, a porta da frente e todas as janelas do andar de baixo encontravam-se trancadas. Somente a porta dos fundos que ela deixara no trinco...

Voltou correndo para a cozinha e a copa, recuperou a chave do lado de fora, bateu a porta e a trancou por dentro. O mecanismo antiquado, bem azeitado, encaixou-se no lugar. No térreo, agora, tudo estava bem. Sim, mas... e no andar de cima...? Judith disparou novamente pelo corredor e pela escada, subindo dois degraus ao mesmo tempo, porque não havia um segundo a perder. Na noite anterior, em seu pesadelo, ele se munira de uma escada de mão e a apoiara contra o peitoril de sua janela. O sonho mau retornou-lhe à mente, com todo o seu horror. A cabeça e os ombros dele assomando, silhuetados contra a noite, o sorriso de dentes amarelados, e aqueles olhos astutos...

As janelas estavam abertas nos quartos e no patamar. Judith correu de quarto em quarto, fechando e puxando o ferrolho de cada janela. O quarto de tia Louise foi o último e, enquanto forcejava com o ferrolho, ela viu, através da cortina de chuva, Billy Fawcett de impermeável e gotejante, cruzar o portão do jardim e avançar em passos rápidos pelo caminho de cascalho. Antes que ele pudesse vislumbrá-la, ela se jogou sobre o tapete e, como um tronco, rolou para a penumbra estreita e abafada de baixo da enorme cama de mogno de tia Louise.

Seu coração disparava, era difícil respirar.

Estive à sua procura. Vi você chegar em casa. Ela o imaginou em sua janela, segurando o copo de uísque e possivelmente um par de binóculos, como que escondido em seu forte da fronteira indiana, à procura de afegãos para matar. Espionando, ele tinha esperado. E esperando, sua paciência fora recompensada. Além disso, sabia que ela estava inteiramente sozinha.

Por entre o ruído da chuva, ela ouvia o som dos passos dele no cascalho do caminho. Depois a batida com o punho fechado, na porta da frente. O tilintar da sineta na cozinha, esganiçando-se através da casa vazia. Ela permaneceu imóvel.

—Judith! Eu sei que você está aí!

Ela tapou a boca com o punho. Recordou a janelinha da despensa, sempre aberta, e ficou um momento aterrorizada. Entretanto, o instinto comum veio em seu socorro, porque só um bebê de tenra idade poderia espremer-se através daquela abertura e, de qualquer modo, a pequenina janela era vedada por uma tela de arame fino, para impedir que vespas e moscas-varejeiras entrassem ali.

Os passos dele moveram-se em outra direção, perderam-se em torno da lateral da casa, não sendo mais ouvidos. Billy Fawcett ia tentar a porta dos fundos. Ela recordou a fechadura daquela porta, mais apropriada a uma masmorra, e isso deu-lhe coragem.

Continuou em silêncio, escutando, os ouvidos tão sensíveis quanto os de um cão desconfiado. Havia somente o tamborilar da chuva e o tiquetaquear sussurrante do relojinho de cabeceira de tia Louise. Judith esperou. Depois do que pareceu uma eternidade, Billy Fawcett retornou à porta da frente, suas pisadas fazendo o cascalho ranger.

—Judith! — O grito soara abaixo da janela, e ela quase pulou com o susto. Encharcado e frustrado, ele estava claramente perdendo a paciência e desistindo de qualquer tentativa para mostrar-se simpático ou amistoso. — Acha que isto é uma brincadeira? Pois está muito enganada. Desça e deixe-me entrar...

Ela não se moveu.

—Judith!

Ele agora renovava o assalto à porta da frente, martelando a madeira sólida com a fúria de um demente. De novo, vindo da cozinha, chegou até ela o impaciente tilintar da sineta.

Por fim cessou a estridência da peça na porta. Houve um prolongado silêncio. O vento gemeu, fustigando as janelas, sacudindo as vidraças. E ela ficou grata pelo vento, pela chuva incessante, porque certamente ele não agüentaria ficar lá fora para sempre, sem chegar a lugar algum, ficando encharcado. Sem dúvida, logo estaria molhado como uma esponja, admitiria a derrota e iria embora.

—Judith!...

Agora, entretanto, era um gemido. Um último e triste grito de apelo. Billy Fawcett estava perdendo a esperança. Ela não respondeu. Então o ouviu dizer, bem alto, para um homem que só tinha a si mesmo com quem falar:

— Oh, que droga, que merda de inferno!

Depois ouviu os passos dele arrastando-se pelo cascalho durante um momento, para em seguida as pisadas tomarem a direção do portão. Finalmente ia embora. Finalmente a deixaria em paz.

Judith esperou, até os passos se tornarem quase inaudíveis. Então rolou de debaixo da cama, engatinhou para a janela e, sob a proteção das cortinas de tia Louise, deu a mais desconfiada e cautelosa olhada. Ele já cruzava o portão e, acima do topo da sebe de escalônias, podia ver o alto da cabeça dele, enquanto caminhava pesadamente de volta ao seu bangalô.

Ele se fora. O alívio a deixou fraca como um bebê; sentia-se como um balão de gás inteiramente flácido, um pedaço de borracha colorida, franzido e frouxo. Seus joelhos bambearam, e ela afundou para o chão. Durante um momento, simplesmente deixou-se ficar na mesma posição. Tinha vencido a escaramuça, porém aquela havia sido uma amarga vitória, que a deixara por demais exaurida e amedrontada, para que pudesse sentir qualquer espécie de triunfo. E estava com frio. Continuava molhada do passeio de bicicleta e tiritava, mas suas pernas não tinham forças para sustentá-la de pé, ir ao banheiro, colocar o tampão no ralo da banheira e abrir a torneira de água quente.

Ele se fora. De repente, tudo ficou superior às suas forças, e Judith sentiu o rosto crispar-se como o de um felino. Inclinando a cabeça contra o lado duro e polido do toucador de tia Louise, ela deixou que as lágrimas deslizassem silenciosamente por suas faces abaixo.

Na tarde seguinte, tia Louise a levou de carro para o Santa Úrsula. Judith estava novamente trajando o uniforme escolar, e a folga de metade do período letivo chegara ao fim.

— Espero que você tenha se divertido.

— Oh, eu me diverti muito, obrigada.

— Foi uma pena eu ter que deixar você no domingo, mas sei que nunca foi uma garota que precise de companhia o tempo todo. Ainda bem. Não suporto crianças exigentes. Infelizmente não pôde estar com Heather Warren, mas faremos algum plano para os feriados da Páscoa.

Judith não queria pensar nos feriados da Páscoa. Limitou-se a dizer:

— Eu realmente gostei da minha bicicleta.

— Cuidarei dela para você.

Não podia pensar em mais nada para dizer porque, de fato, a bicicleta havia sido a única coisa boa que acontecera durante o fim de simana, e agora seu único desejo era voltar à normalidade, à rotina e ao ambiente familiar do colégio.

A única coisa que Judith verdadeiramente lamentava era não ter procurado o sr. Willis. Tivera tempo e oportunidade na parte damanhã, porém encontrara desculpas para não ir e deixara a chance escappar. A amizade, bem sabia, devia ser constante. De algum modo, no entanto, até mesmo isso Billy Fawcett conseguira estragar.

Colégio Santa Úrsula 8 de março de 1936

Queridos mamãe e papai,

Fiquei novamente uma semana sem escrever, porque estive com tia Louise durante os feriados de meio período letivo. Obrigada pela carta que me enviaram. Estou ansiosa por notícias de Cingapura e da casa nova em Orchard Road. Tenho certeza de que deve ser maravilhosa, e em breve vocês estarão acostumados com a temperatura um pouco mais quente. Deve ser curioso terem rostos amarelos de chineses à sua volta, em vez das faces negras dos tamis. Pelo menos, mamãe não precisará dirigir um carro, nunca mais.

O tempo no fim de semana não foi dos melhores. Tia Louise comprou a bicicleta para mim. É uma Raleigh verde. Como no domingo ela tinha se comprometido a jogar golfe com alguns amigos, fui de bicicleta a Veglos Hill, fazer um piquenique. Lá havia uma quantidade imensa de prímulas. Telefonei para Heather, mas não pude vê-la, porque ela ia a Bodmin, vera avó.

Já havia falado o suficiente sobre o fim de semana. Nada mais podia ser dito com segurança. Entretanto, a carta ainda não estava apropriadamente longa, de maneira que ela se esforçou em prosseguir.

Foi muito interessante voltar à escola e ver Loveday novamente. Athena voltou da Suíça e esteve em Nancherrow durante o fim de semana. Ela levou um amigo, mas Loveday me disse que ele era terrivelmente maçante, nem de longe tão simpático comojeremy Wells. Recebam todo o amor da

Judith Polly e John Richards, os amigos golfistas de Louise, formavam um casal que pertencera à Marinha e que, na aposentadoria, tinha voltado as costas para Alverstoke e Newton Ferrars, preferindo comprar uma sólida casa de pedra perto de Helston, com três acres de jardins e espaçosas edificações externas. O pai de Polly Richards havia sido um bem-sucedido cervejeiro, e parte de seu dinheiro certamente chegara até a filha, porque ela e o marido mantinham um estilo de vida muito menos restrito do que a maioria de seus contemporâneos reformados dispondo de meios para empregar um casal que cuidava deles, uma diarista para a limpeza e um jardineiro em tempo integral. O casal de empregados tinha o nome de Makepeace, sendo o homem um ex-contramestre chefe. O jardineiro era um indivíduo calado e taciturno, que trabalhava de manhã ao anoitecer, quando então punha as ferramentas de lado e se enfurnava na toca de texugo, que era a sua cabana, construída bem além das estufas de plantas.

Liberados das ocupações domésticas, os Richards podiam desfrutar de uma intensa vida social. Mantinham um iate em Saint Mawes, e passavam os meses de verão inteiramente ocupados em velejar pelas águas fluviais do sul da Cornualha e disputando várias regatas. Durante o resto do ano recebiam um permanente fluxo de hóspedes e, quando não estavam velejando ou recebendo visitantes, costumavam rumar para os campos e as mesas de bridge do Clube de Golfe de Penmarron. Desta maneira é que haviam conhecido Louise e se tinham tornado bons amigos, no correr de muitas disputas amistosas nos campos de golfe.

Polly telefonou para Louise. Após algumas amenidades, ela entrou no assunto.

— Sei que está terrivelmente em cima da hora, mas você poderia vir jogar bridge amanhã à noite? Isso mesmo, amanhã; quarta-feira, vinte e dois.

Louise consultou sua agenda. Além de uma ida ao cabeleireiro, tinha o resto do tempo disponível.

— É muita gentileza convidar-me. Irei com muito prazer.

— Oh, você é o máximo! Recebemos um velho colega de John, e ele está ansioso por um joguinho. Será que poderia estar aqui às seis? É um pouco cedo, mas podemos jogar uma partida antes do jantar e, assim, você não voltaria para casa muito tarde. Sei perfeitamente que o trajeto é uma droga...

A conversa vivaz de Polly combinava bem com sua vida de velejadora, sendo lendárias as pragas claramente audíveis que proferia, quando seu barco rumava para alguma bóia de balizamento, navegando de vento em popa, mareado à bolina cerrada, através das cinzentas águas picadas do estreito de Falmouth.

— Não se preocupe com isso. Estarei ansiosa por ir.

— Então, vejo você amanhã.

Sem dizer mais nada, Polly desligou.

Era uma longa distância dirigindo, mas valia a pena o esforço, como Louise bem sabia. Foi uma noite esplêndida. O amigo de John Richards era general da Marinha Real, um homem simpático, de olhar malicioso, que dizia muito sobre ele próprio. Os drinques foram pródigos. O jantar e o vinho, excelentes. Além disso, Louise esteve com boas cartas o tempo todo, e soube jogá-las impecavelmente. Disputada a última rodada, foi estabelecido o escore e pequenas quantias de dinheiro trocaram de mãos. Louise pegou sua bolsa e guardou o que havia ganho. Quando o relógio da lareira bateu dez horas, ela pressionou o fecho da bolsa com um estalo e anunciou que era hora de ir para casa. Pediram-lhe para ficar e jogar mais uma rodada — uma para o trajeto — mas, embora tentada, ela estava decidida a ir e recusou gentilmente os convites.

No saguão, John ajudou-a a vestir seu casaco de peles e, após as despedidas, acompanhou-a na noite escura e úmida, até vê-la seguramente acomodada atrás do volante de seu carro.

— Está tudo bem com você, Louise?

— Melhor do que nunca.

— Dirija com cuidado.

— Muito obrigada. Foi uma noite esplêndida.

Ela começou a dirigir, com os limpadores de pára-brisa indo e vindo, a estrada à frente cintilando liquidamente à claridade dos faróis, negra como cetim. Dirigiu via Marazion, em direção a Penzance, mas ao aproximar-se da curva que a levaria à auto-estrada principal para Porthkerris, decidiu impulsivamente que em uma noite tão desagradável e com um trajeto tão longo pela frente, seria preferível ir pelo caminho mais curto, a estrada estreita que subia para a charneca. Era uma estrada desconfortável, serpenteante e marginada por sebes altas, com curvas fechadas e subidas bruscas mas ela a conhecia bem, não haveria trânsito e sua jornada encurtaria em pelo menos oito quilômetros.

Tomada a decisão, Louise dobrou para a esquerda, em vez de para a direita, e momentos mais tarde tornava a dobrar, iniciando a íngreme subida pelo bosque que levava às charnecas solitárias. O céu estava negro e não se via uma só estrela.

Seis quilômetros à frente de Louise, e viajando na mesma direção, Jimmy Jelks seguia para Pendeen, ao volante de um desengonçado caminhão. Seu pai, Dick Jelks, ganhava a vida em uma castigada e pequena propriedade arrendada naquela vizinhança, criando porcos e galinhas, cultivando batatas e brócolis, e sendo conhecido como o dono da fazenda mais sórdida do distrito. Jimmy estava com vinte e um anos, morava na fazenda e era oprimido pelos pais, além de ser o alvo predileto de cada piada cruel, mas como carecia de inteligência ou de aptidão para namorar, parecia improvável que um dia escapasse àquela vida.

Nessa tarde viajara bem cedo para Penzance, levando um carregamento de brócolis que seria vendido no mercado. Deveria voltar para casa assim que encerrasse sua incumbência a contento, mas seu pai andava com ânimo irascível e, por isso, além de estar com dinheiro no bolso, ele foi tentado a matar o tempo vagando pelo mercado e conversando com qualquer pessoa que se desse ao trabalho de dirigir-lhe a palavra. Eventualmente, e ansiando por companhia, cedera à tentação da porta aberta da taberna "Cabeça do Sarraceno", e lá ficara até a hora de fechar.

Seu progresso, agora, não era acelerado. Abaixo dele, o velho caminhão chocalhava e gemia. Dick Jelks o comprara de um negociante de carvão, já em quarta mão, e desde o início o veículo tinha sofrido todo tipo de achaque mecânico. Uma vez abertas, as portas recusavam-se a fechar direito, as maçanetas não se mantinham no lugar e caíam, os pára-lamas haviam sucumbido à ferrugem, e a grade do radiador estava firmada com voltas e voltas de arame. Dar partida no motor era uma recorrente batalha de vontades, envolvendo uma alavanca a ser girada, um enorme esforço físico e freqüentemente dolorosos machucados, como polegares torcidos ou agonizantes pancadas sobre o joelho. Mesmo quando afinal estrebuchava para a vida, o caminhão permanecia decididamente inamistoso, recusava-se a aceitar uma mudança de marcha além da segunda, fervia constantemente, estourava os pneus antigos e soltava descargas com tão explosiva força, que qualquer pessoa azarada o bastante para estar nas proximidades arriscava-se a ser vítima de um instantâneo ataque cardíaco.

Nessa noite, como passara a tarde inteira na chuva, o caminhão tinha um comportamento ainda mais teimoso que de costume. Os faróis, nunca muito brilhantes, pareciam estar perdendo força e exibiam apenas uma luminosidade de vela para clarear o caminho à frente. Além disso, o motor tossia constantemente, como um tuberculoso, sufocando e ameaçando parar de todo. Ranger dolorosamente, enquanto subia e descia o terreno ondulante da charneca, era uma tarefa quase demasiada para ele. Após conseguir escalar uma íngreme ladeira e chegar ao solo nivelado mais além, o veículo finalmente expirou. Os faróis morreram, o motor tossiu seu último alento e as rodas, exaustas, giraram para a parada derradeira.

Jimmy puxou o freio de mão e xingou. No exterior, tudo era negrume e chuva. Ele ouviu a pouca intensidade do vento, viu o ponto de luz em uma distante casa de fazenda, e concluiu que estava longe demais para ser-lhe de alguma utilidade. Erguendo a gola do paletó, ele pegou a manivela de arranque, desceu para a estrada, foi até a frente do caminhão e preparou-se para a batalha. Foi somente depois de ter girado a manivela por cinco minutos, de machucar o osso da canela e arrancar sangue dos nós dos dedos, que a verdade aflorou ao seu cérebro aturdido. A bateria tinha arriado, e o maldito caminhão não ia entrar em movimento novamente. Quase chorando de raiva e de frustração, ele jogou a manivela de arranque dentro da cabine, bateu a porta com força para fechá-la e, de mãos enfiadas nos bolsos, os ombros encurvados contra a chuva, preparou-se para caminhar os mais de quatro quilômetros até Pendeen.

satisfeita por haver escolhido este trajeto, gostava do desafio da jornada, do solitário isolamento daquela estrada campestre sem iluminação, e era gratificante saber-se a única pessoa fora de casa tão tarde e em uma noite tão inconveniente. Além do mais, ela adorava dirigir, e sempre ficava estimulada pela sensação de estar no controle, dona da situação, por trás do volante de seu carro potente. Acelerando, ficou fisicamente inebriada pela reação do motor, e experimentou excitamento de um homem jovem, ao manobrar o Rover em curvas estreitas e apertadas, sem ao menos reduzir a velocidade. Tudo isso a deixava eufórica. Pensou na canção, mas como não se lembrava da letra, decidiu improvisar por conta própria:

Você me dá euforia, Dirigindo tão acelerado, Com minha vida no passado...

"Estou me portando tão voluvelmente", disse para si mesma, "como aquela frívola criatura, Biddy Somerville". Entretanto, esta havia sido uma agradável noite. A estimulante jornada para casa através das charnecas vazias era uma das formas ideais de encerrar o dia. Um esplendor. Ela nunca fora mulher de fazer as coisas pela metade.

A estrada mergulhou à sua frente, descendo para um pequeno vale em cujo fundo ela cruzou uma pequena ponte arqueada de pedra, para em seguida recomeçar a subir. Louise engrenou uma terceira marcha e, com os faróis apontando para o céu, o poderoso carro enfrentou a ladeira e logo alcançou o topo, como um cavalo em corrida de obstáculos.

O pé dela ainda pisava com força o acelerador. Louise viu o caminhão, às escuras e abandonado, mas somente numa fração de segundo antes de bater contra ele. O ruído ensurdecedor do choque do metal que se rasgava e dos vidros estilhaçando-se foi horrendo, porém ela não teve consciência de nada. O impacto a jogou para diante, arrancando-a do assento e lançando-a contra e através do pára-brisa.Na conseqüente autópsia, o médico da polícia emitiu a opinião de que a sra. Forrester tivera morte instantânea.

Entretanto, era impossível ter certeza. Isto porque, talvez durante meio minuto após o choque, não muito acontecera. Apenas estilhaços de vidro espargidos na margem da estrada e uma roda, enviezada no ar, cessando lentamente de girar. Na escuridão, na chuva e no isolamento não houvera testemunhas do desastre, portanto ninguém tinha ido buscar socorro e tampouco o trouxera. Os destroços, sem iluminação, dilacerados e retorcidos a ponto de ser quase impossível identificá-los, simplesmente estavam lá, insuspeitados — dois veículos destroçados, entrelaçados como um casal de cães copulando.

E então, com alarmante brusquidão e um estrondo que ribombou pela noite escura como estentórea trovoada, o tanque de gasolina do Rover incendiou-se e explodiu, as chamas irrompendo, consumindo e manchando de escarlate o negrume dos céus. Como um farol de alerta, a conflagração iluminou o mundo, e uma nuvem escura de malcheirosa fumaça se lançou através do céu, contaminando o suave ar molhado com o fedor de borracha queimada.

Deirdre Ledingham abriu a porta da biblioteca.

— Oh, então aí está você... — disse ela.

Judith ergueu os olhos. Era uma tarde de quinta-feira e, tendo um período livre, ela fora à biblioteca ler alguma coisa que a auxiliasse no ensaio de literatura inglesa que devia escrever sobre Elizabeth Barrett Browning. Entretanto, sua atenção fora desviada para o último exemplar do The Illustrated London News, que a srta. Catto considerava educativo e todas as semanas era entregue no Santa Ursula. Suas páginas abrangiam uma grande diversidade de temas, assim como de notícias: arqueologia, horticultura e artigos sobre a natureza, cobrindo o estilo de vida de criaturas trepadoras em árvores e pássaros de nomes como o maçarico-de-bico-torto, de cauda-raiada. Judith, contudo, não era das mais fervorosas em zoologia, e tinha estado absorta por um perturbador relato da criação e desenvolvimento da Juventude Hitlerista na Alemanha. Segundo parecia, tal movimento pouco tinha em comum com os Escoteiros, que aparentemente nada faziam de mais sinistro além de montar tendas, acender fogueiras e cantar ”Debaixo do frondoso castanheiro”. Pelo contrário, os jovens alemães assemelhavam-se a soldados, usavam calções curtos, casquetes militares e nos braços ostentavam faixas com a suástica. Suas atividades, inclusive pareciam arrogantes e belicosas. Havia a foto de um grupo de atraemtes jovens louros que despertara um especial pressentimento em Judith. Sim, porque todos eles deviam estar jogando críquete, futebol e subindo em árvores, mas, ao invés disso, marchavam em alguma cerimônia cívica, compenetrados e bem treinados como um pelotão de soldados profissionais. Ela tentou imaginar como se sentiria, caso tal parada desfilasse em passo-de-ganso pela Market Jew Street. A perspectiva era inconcebivelmente terrível. Entretanto, os rostos fotografados da multidão que assistia ao desfile dos jovens mostravam apenas prazer e orgulho. Tudo indicava, portanto, que era isso o que as pessoas comuns da Alemanha queriam...

— Estive procurando você em toda parte. Judith fechou a Illustrated London News.

— Por quê? — perguntou.

A medida que as semanas do período letivo passavam, a rotina escolar se tornava tão familiar como um lar, sua confiança aumentara, e ela perdera parte do temor respeitoso que sentia em relação a Deirdre Ledingham. Encorajada por Loveday, que não temia ninguém, Judith decidira que a mandona auto-importância de Deirdre às vezes chegava a ser ridícula. Como observava Loveday freqüentemente, ela não passava de uma aluna a mais, apesar de todo o seu ar de autoridade, de seus distintivos e de seu busto farto.

— Por quê? — perguntou novamente.

— A srta. Catto quer vê-la em seu estúdio.

— De que se trata?

— Não faço a menor idéia, mas é melhor que não a deixe esperando.

Depois daquela primeira entrevista, Judith não sentia mais temor da srta-Catto, mas, ainda assim, respeitava-a o suficiente para fazer o que lhe era dito. Empilhou os livros, colocou a tampa em sua caneta-tinteiro então foi ao lavatório lavar as mãos e pentear o cabelo. Pronta, e somente ligeiramente apreensiva, ela bateu à porta do estúdio da srta. Catto.

— Entre.

Ela estava lá, sentada à sua mesa, exatamente como antes. A diferença era que hoje o dia se mostrava sombrio e nublado, não havia sol e as flores na mesa dela eram anêmonas, em vez de prímulas. Judith gostava de anêmonas, com seus tons rosados, purpúreos e verde-mar. Todas as fortes cores frias do espectro.

—Judith...

— Deirdre me disse que queria falar comigo, srta. Catto.

— Sim, minha querida. Aproxime-se e sente-se.

Uma cadeira a esperava. Judith sentou-se, de frente para a srta. Catto. Desta vez não houve preliminares. A diretora foi direta ao assunto.

— O motivo de ter mandado chamá-la nada tem a ver com a escola e nem com seu trabalho. Trata-se de algo bem diferente. No entanto, receando que possa ser uma espécie de choque para você, gostaria de prepará-la... Compreenda... É sobre sua tia Louise..

Judith parou de ouvir. Soube imediatamente o que a srta. Catto pretendia dizer-lhe. Tia Louise ia casar-se com Billy Fawcett. Suas palmas ficaram pegajosas, e ela quase podia sentir o sangue fugindo do rosto. O pesadelo ia tornar-se realidade. A coisa que rezara para que nunca acontecesse, estava acontecendo...

A voz da srta. Catto continuou. Falta de atenção era um pecado capital. Judith procurou controlar-se, tentou concentrar-se no que dizia sua diretora. Era algo sobre a noite anterior.

—.. dirigindo para casa, por volta de onze da noite, ela estava sozinha... não havia ninguém por perto...

A verdade aflorou. Ela falava sobre tia Louise e seu carro. Nada tinha a ver com Billy Fawcett. Tia Louise, dirigindo a toda velocidade como sempre, os pneus chiando nas curvas, afugentando ovelhas ou galinhas com um aperto de sua buzina. Só que agora, segundo parecia, sua sorte falhara.

— Ela está bem, não está, srta. Catto? — Tia Louise no hospital local, com uma atadura na cabeça e o braço na tipóia. Isso era tudo. APenas ferida. — Ela está bem?

— Oh, Judith, não... Lamento, mas ela não está bem. Houve um acidente fatal. Sua tia teve morte instantânea.

Judith ficou olhando para a srta. Catto, seu rosto tomado por desafiante descrença, por saber que algo tão violento e fatal, simplesmente não podia ser verdade. Então viu a dor e a compaixão nos olhos da srta. Catto, e soube que, de fato, era verdade.

— Era o que eu tinha para dizer-lhe, minha querida. Sua tia Louise está morta.

Morta. Acabada. Para sempre. Morta era uma palavra terrível Como a última batida de um relógio ou o estalo de uma tesoura cortando um fio.

Tia Louise.

Ouviu-se respirando fundo, e sua respiração parecia um estremecimento. Perguntou muito calmamente, querendo saber:

— Como foi que aconteceu?

—Já lhe disse. Uma colisão.

— Onde?

— No alto da estrada velha que passa pela charneca. Havia um caminhão avariado na estrada. Estava parado e abandonado. De luzes apagadas. Ela se chocou contra a carroceria do caminhão.

— Estava dirigindo muito depressa?

— Não sei.

— Ela sempre foi uma motorista terrível. Gostava de dirigir depressa. De ultrapassar coisas.

— Creio que, provavelmente, este acidente não foi culpa dela.

— Quem a encontrou?

— Houve um incêndio. Foi visto e alertaram a polícia.

— Morreu mais alguém?

— Não. Sua tia estava sozinha.

— De onde ela estava vindo?

— Parece que tinha ido jantar com amigos. Perto de Helston.

— Com o comandante e a sra. Richards. Ela costumava jogar golfe com eles. — Judith pensou em tia Louise dirigindo para casa através da escuridão, da maneira como havia dirigido vezes incontáveis antes. Olhou para a srta. Catto. — Quem contou para a senhora?

— O sr. Baines.

Judith não identificou o nome.

— Quem é o sr. Baines?

—É o procurador de sua tia em Penzance. Creio que também cuida dos assuntos de sua mãe.

Ela recordou-se, então, do sr. Baines.

— Mamãe sabe que tia Louise foi morta?

— O sr. Baines telegrafou para seu pai. Naturalmente, escreverá uma carta em seguida. E eu, claro está, escreverei para sua mãe.

— E quanto a Edna e Hilda? — perguntou Judith, pela primeira vez mostrando aflição na voz.

— Quem são elas?

— A cozinheira e a arrumadeira de tia Louise. As duas são irmãs. Estavam com ela há anos... ficarão muito abaladas.

— Sim, acredito que estejam. Nenhuma delas percebeu que sua tia não havia voltado para casa. A primeira suspeita foi quando uma das duas subiu, levando a bandeja com o chá da manhã, e descobriu que a cama não tinha sido desfeita.

— O que elas fizeram?

— Muito sensatamente telefonaram para o vigário. Então, o chefe de polícia local foi vê-las e comunicou a triste notícia. Naturalmente, as duas ficaram muito angustiadas, mas resolveram continuar juntas em casa de sua tia, pelo menos por enquanto.

A idéia de Hilda e Edna, sozinhas e chorosas na casa vazia, uma consolando a outra e bebendo xícaras de chá, era mais triste do que qualquer outra coisa. Sem tia Louise, a vida delas não teria rumo nem propósito. Sim, porque seria difícil conseguirem outros empregos, não sendo elas jovens nem animadas como Phyllis, mas de meia-idade e solteironas, sem qualquer meio de sustento próprio. E se não conseguissem novos empregos, onde iriam viver? O que fariam? As duas eram inseparáveis. Jamais se separariam.

— Haverá um funeral? — perguntou.

— Claro — respondeu a srta. Catto. — No devido tempo.

— Eu terei de ir?

— Somente se quiser. Entretanto, acho que deveria ir. E, naturalmente, eu a acompanharei, estarei ao seu lado o tempo todo.

— Nunca estive em um funeral.

A srta. Catto ficou em silêncio. Depois levantou-se, saiu de trás de Sua mesa e caminhou até a janela, diante da qual ficou parada, como que em busca de conforto, a beca negra em torno de seu corpo, Parecendo um xale. Por um momento olhou pela janela, para o jardim úmido e nevoento, uma visão que, concluiu Judith, não oferecia qualquer espécie de consolo.

Parecia que a srta. Catto era da mesma opinião.

— Que dia mais triste — comentou ela. Virou-se da janela e sorriu — Os funerais fazem parte da morte, Judith, assim como a morte faz parte da vida. É algo desolado para alguém de sua idade enfrentar, mas que acontece a todos nós. E você não estará só, porque estou aqui para ajudá-la a suportar semelhante provação. A aceitar o fato. Porque a morte é realmente parte da vida; aliás, a única coisa da vida sobre a qual podemos ter certeza absoluta. Entretanto, tais palavras de consolo soam demasiado banais, quando a tragédia nos ataca tão de perto e tão subitamente. Você está sendo muito corajosa e desprendida. Pensando nos outros. Entretanto, não se sinta constrangida. Não guarde seu pesar para si mesma. Sei que sou sua diretora, mas neste momento sou uma amiga sua. Pode dizer o que quiser, o que estiver pensando. E não se envergonhe de chorar.

As lágrimas, no entanto, assim como seu alívio, jamais haviam estado tão distantes.

— Eu estou bem.

— Boa garota! Sabe o que acho? Acho que seria agradável tomarmos uma xícara de chá. Você gostaria?

Judith assentiu. A srta. Catto foi até o lado da lareira e fez soar uma sineta.

— É o clássico remédio para tudo, não? — disse. — Uma boa xícara de chá quente. Nem sei como não pensei nisso antes. —Em vez de voltar a sentar-se atrás de sua mesa, ela preferiu uma pequena poltrona junto à lareira. O fogo estava preparado, mas não aceso e, sem dizer palavra, a srta. Catto pegou uma caixa de fósforos, inclinou-se para diante e acendeu um deles, que aproximou do jornal amassado e dos gravetos secos. Recostando-se no assento, espiou as chamas se firmarem e lamberem os carvões. Então acrescentou: —Vi sua tia apenas umas duas vezes, porém gostei muito dela. Não era mulher de evasivas. Sabia preocupar-se, ser capaz. Uma pessoa de fato. Senti-me inteiramente despreocupada, sabendo que você estava sob os cuidados dela.

Isso, de modo inteiramente natural, conduziu a conversa à pergunta vital. Judith olhou para fora, através da janela, e tentou dar à voz o tom mais casual que pôde.

— E para onde eu irei agora?

— Precisamos conversar a respeito.

— Tenho a tia Biddy.

— É claro. A sra. Somerville, que mora em Plymouth. Sua mãe me falou tudo sobre os Somervilles, de maneira que tenho o endereço e telefone deles. Compreenda, Judith, quando os pais residem no estrangeiro, precisamos ter contato com todos os parentes próximos. Do contrário, nossa responsabilidade realmente seria demasiada.

—Tia Biddy sempre disse que eu poderia ficar com ela, se quisesse. Ela já sabe sobre tia Louise?

—Ainda não. Eu quis falar primeiro com você, mas comunicarei a ela.

Houve uma batida à porta.

— Entre — disse a srta. Catto.

Uma das copeiras assomou com a cabeça.

— Oh, Edith, que bom ter vindo. Poderia trazer-nos uma bandeja com chá? Duas xícaras, e talvez alguns biscoitos.

A jovem disse que voltaria num segundo e retirou-se. A srta. Catto continuou, como se não tivesse havido qualquer interrupção.

— Gostaria de passar os feriados com sua tia Biddy?

— Sim, claro que sim. Gosto demais dela e do tio Bob. Eles são muito agradáveis e bondosos, mas o fato é que não ficarão para sempre em Plymouth. Cedo ou tarde deixarão Keyham, e tio Bob provavelmente voltará para o mar. Tia Biddy falou sobre comprar uma casinha. Eles nunca tiveram uma casa que considerassem sua de verdade...

A voz de Judith calou-se, e a srta. Catto perguntou:

— Existe mais alguém?

— Sim, a sra. Warren. Heather Warren foi minha melhor amiga na Escola de Porthkerris. O sr. Warren é merceeiro, e minha mãe apreciava muito todos eles. Tenho certeza de que, um dia, poderia visitá-los e ficar com eles.

— Bem, seja como for. — A srta. Catto sorriu. — Estudaremos alguma coisa. Lembre-se apenas de que está cercada de amigos. Ah, aí está a nossa bandeja! Obrigada, Edith; deixe-a em cima da mesa... E agora, Judith, por que não abandona essa cadeira desconfortável e vem sentar-se aqui, perto do fogo...?

Bem, disse Muriel Catto para si mesma, o pior está feito, foi comuni- cada a triste notícia e a menina pareceu tê-la aceitado, manteve a compostura. Por duas vezes, em sua carreira de diretora, ela tivera que desempenhar tão ingrata tarefa — comunicar a uma de suas meninas o falecimento de um pai ou de uma mãe, algo que sempre a deixava sentindo-se uma assassina. Sim, porque o mensageiro torna-se o assassino. Enquanto as palavras fatais não são pronunciadas, o ente querido em questão continua vivo, acordando, dormindo, cuidando de si, de sua vida, dando telefonemas, escrevendo cartas, caminhando, respirando, enxergando. O que matava era dar a notícia.

Desde o início da carreira, ela estabelecera normas rígidas para si mesma: imparcialidade e nem sombra de favoritismos. Judith, no entanto, de maneira inconsciente derrubara tais defesas e, mesmo sendo uma pessoa estritamente não-maternal, a srta. Catto achava difícil ignorar este especial interesse e voltar as costas ao apelo da menina. Judith estava bem ajustada no Santa Ursula e parecia popular com as colegas, apesar de sua criação e antecedentes muito diferentes. Era uma estudante consistente e satisfatória, além de mostrar boa atuação nos jogos. A conexão Carey-Lewis havia sido um prêmio, e a própria inspetora não encontrara motivos para queixar-se de seu comportamento.

E agora a morte da tia. Um trauma que poderia muito bem fazer o barco naufragar, provocar um fundo retraimento, uma terrível perturbação interior. Enquanto permanecia sentada à sua mesa, externamente composta, mas interiormente tomada de apreensão, à espera de que a menina batesse à porta do estúdio, Muriel Catto ficara mortificada ao ver-se quase desejando que tão dolorosa tragédia tivesse acontecido a qualquer outra aluna do colégio.

Não se tratava apenas do fato de Judith estar tão isolada, com a família no estrangeiro e sem irmãos para consolo ou companhia. Era algo que tinha a ver com ela. Com sua estóica aceitação da longa separação (nem uma só vez se entregara a lágrimas ou teimosias). Pelo contrário, era de uma desarmante franqueza, além de mostrar certa doçura de ânimo que devia ser nata, pois, como bem sabia a srta. Catto, esta era uma qualidade que não podia ser ensinada.

Ao mesmo tempo, ela achava encantadora a aparência de Judith. Claro que a menina possuía todas as desvantagens naturais da meia adolescência, como as pernas compridas e desajeitadas, os ombros ossudos, as sardas, e orelhas muito grandes. De algum um modo, no entanto, tais fatores nela não eram desgraciosos, ao contrário, acentavam-lhe o ar juvenil. E ainda havia mais. Olhos que eram realmente belos. Cinza-azulados e enormes, orlados de cílios cheios e escuros, as pupilas límpidas como água cristalina. E, como acontecia a muitas meninas mais novas, cada pensamento íntimo espelhava-se em seu rosto expressivo, como se ela nunca tivesse aprendido a arte do despistamento. E a srta. Catto rezava para que jamais aprendesse.

As duas tomaram o chá quente e confortador, enquanto conversavam, não sobre tia Louise, mas sobre Oxford, onde a srta. Catto havia passado a infância.

—.. um lugar maravilhoso para a gente ser criada. Uma cidade de torres sonhadoras, sinos, bicicletas, jovens e infinito saber. Tínhamos uma velha casa na Banbury Road, muito grande e confortável, com um jardim murado e uma amoreira. Meu pai era professor de Filosofia. Minha mãe também era acadêmica, vivia escrevendo, trabalhando ou mergulhada em pesquisas. Durante o período letivo, a casa era invadida por um fluxo permanente de estudantes, indo e vindo em busca de preceptores, e sempre me lembro da porta da frente como perpetuamente aberta, a fim de que ninguém precisasse tocar a sineta. Em conseqüência, cada aposento era varrido por correntes de ar. — Ela sorriu. — Há um certo cheiro, claro que há... um cheiro ambiental, na casa onde moramos quando crianças. E às vezes tornamos a sentir esse cheiro, de maneira inconsciente —livros velhos, polidor e móveis antigos, o bolor úmido de pedra vetusta; de repente, sem saber como, estamos de volta àquela casa, temos novamente oito anos de idade...

Judith tentou imaginar a srta. Catto com oito anos de idade, mas foi impossível. Respondeu:

—Sei o que a senhora quer dizer. Em Colombo, nossa casa cheirava a mar, porque vivíamos à beira do oceano, no jardim havia uma árvore de flor-do-templo e, à noite, ela espalhava um perfume muito doce e forte. No entanto, também havia outros cheiros. De desinfetante e de falos, além da coisa que a ama costumava esguichar para matar insetos.

— Insetos? Que horror! Odeio insetos. E lá havia muitos?

— Oh, sim! Mosquitos, aranhas e formigas vermelhas. Às vezes, cobras, também. Certa ocasião apareceu uma no jardim, e papai a matou com um tiro de rifle. E tik polongas, que se escondiam no banheiro. Vinham pelos ralos. Precisávamos tomar o máximo cuidado porque são serpentes muito venenosas.

— Realmente assustador. Não sou muito corajosa no tocante a cobras...

— Havia encantadores de serpentes no Pettah, quando íamos fazer compras. Eles ficam sentados de pernas cruzadas na grama e tocam flautas. As serpentes costumavam empinar-se para o alto, saindo de suas cestas. Mamãe os odiava, mas eu adorava vê-los. —Judith pegou outro biscoito e o comeu pensativamente. Depois disse: — Nunca estive em Oxford.

—Eu acho que você deveria ir lá. Para a Universidade, quero dizer. Isto significaria permanecer aqui e matricular-se, mas, conhecendo suas aptidões escolásticas, creio que não teria dificuldades em passar no exame e conseguir entrar para Oxford.

— Quanto tempo terei de ficar lá?

— Três anos. No entanto, que oportunidade seria para você! Não consigo pensar em nada mais mágico do que dispor de três anos para imergir-se em conhecimentos... mas nada de álgebra ou zoologia, matérias pelas quais você parece não sentir muito interesse... mas talvez de literatura inglesa e filosofia.

— Isso ficaria muito caro?

— Ficaria, sim; porém nenhuma das melhores coisas da vida custa barato.

— Não me agrada pedir uma coisa que estaria fora das posses de meus pais...

A srta. Catto sorriu. Disse:

— Foi apenas uma sugestão. Uma idéia. Temos tempo de sobra para fazer planos. E agora, gostaria de mais uma xícara de chá?

— Não, muito obrigada. Foi tudo ótimo. Houve um silêncio. Agora, muito mais relaxado. O chá havia sido uma boa idéia. As cores naturais de Judith haviam voltado, o pior do choque estava superado. Chegara o momento de falar. De, aos poucos conduzir a conversa para a pergunta que a srta. Catto sabia ter de ser feita.

— Se você quiser — disse — sempre poderá usar meu telefone daqui, para falar com qualquer de suas amizades. Apenas dê-me algum tempo de ligar para a sra. Somerville e deixá-la a par da situação, mas talvez você queira falar com Edna, com Hilda ou alguma de suas amigas em Penmarron.

Com o rosto voltado para as chamas na lareira, Judith vacilou por um instante, mas depois meneou a cabeça.

— Não, acho que não quero. Pelo menos, por enquanto. De qualquer modo, foi muita gentileza sua.

— Creio que provavelmente o sr. Baines desejará vê-la e falar com você, mas isso será para daqui a um dia ou mais. Então, já estaremos a par dos preparativos que foram feitos para o funeral.

Judith inalou uma respiração funda, depois a expeliu. Respondeu, vacilante:

— Está bem.

A srta. Catto recostou-se em sua poltrona.

— Preciso perguntar-lhe mais uma coisa — disse. — Por favor, não pense que estou me intrometendo, e não precisará responder, se não quiser. Bem, eu tive a impressão de que, ao começar a contar-lhe o que tinha acontecido... você... você pensava que fosse algo completamente diferente. Claro que posso estar enganada. — Houve um longo silêncio. Judith continuou olhando fixamente para o fogo. Então ergueu a mão e começou a torcer uma mecha de cabelo que escapara da fita para prendê-lo. — Havia alguma coisa que a preocupava? O que a fez parecer tão amedrontada?

Judith mordeu o lábio, depois murmurou algo.

— Desculpe-me — disse a srta. Catto — mas não ouvi direito.

— Eu pensei que ela ia casar.

Apanhada inteiramente de surpresa, a srta. Catto mal podia acreditar no que ouvira.

— Casar? Você pensou que a sra. Forrester ia casar? Com quem imagina que ela ia casar?

— Com o Coronel Fawcett.

— E quem é o Coronel Fawcett?

— É um vizinho dela. — De maneira tocante, Judith emendou-se. -Era um vizinho dela. Um velho amigo dos tempos da índia.

— E você, talvez, não quisesse que sua tia casasse com ele.

— Não.

— Você não gosta dele.

—Eu o odeio. — Desviando a cabeça do fogo, ela fitou diretamente os olhos da diretora. — Ele era horrível. Se casasse com tia Louise iria morar na casa dela. Eu sei. Eu não o queria lá.

Compreendendo prontamente a situação, a srta. Catto permaneceu fria. Aquele não era um momento para simpatia emocional.

— Ele a incomodou?

— Sim.

— O que foi que ele fez?

— Ele nos levou ao cinema e botou a mão no meu joelho.

— Oh, entendo.

— Fez isso duas vezes. E a mão dele ficou subindo pela minha perna.

— Você contou para a sra. Forrester?

— Não. — Judith negou com a cabeça. — Eu não podia contar para ela.

— Em seu lugar, acho que eu também não poderia contar. É uma situação muito difícil. —A srta. Catto sorriu, de algum modo mascarando sua fúria íntima contra o mundo desagradável e repugnante dos velhos lúbricos. Acrescentou: — Em Cambridge, costumávamos chamá-los de bolinadores ou puxadores de ligas.

Judith arregalou os olhos.

— Está querendo dizer... está dizendo que aconteceu com a senhorita?

— Todas nós, alunas novas, éramos consideradas presa fácil. Aprendemos rapidamente a evitar táticas e a desenvolver nossas próprias defesas. Claro está que éramos muitas, havia a segurança dos números e o conforto de termos confidentes. Em seu caso, contudo, não havendo essa segurança, deve ter sido muito pior.

— Eu não sabia o que fazer.

— Sim, imagino que não soubesse mesmo.

— Não acredito que ela teria casado com ele, mas depois que a idéia me entrou na cabeça, não consegui livrar-me dela. Estava sempre lá. Não sabia como agir.

—Bem, aí está uma coisa com a qual não terá mais de preocupar-se. De maneira muito drástica e trágica, seu problema foi resolvido. Dizem que de qualquer situação, por mais devastadora que seja, sempre resulta algum bem. E foi uma boa coisa você ter contado para mim. Agora, poderá colocar em perspectiva todo esse lamentável episódio.

Se formos ao funeral, é certo que ele estará lá.

—Não tenho dúvidas quanto a isso. E você irá apontá-lo para mim. Dirá: "Aquele é o Coronel Fawcett", e eu terei o prazer de atingi-lo na cabeça com a minha sombrinha.

Faria isso de verdade

— Provavelmente não. Imagine as manchetes no Western Morning lews: "Diretora local ataca coronel reformado." Não seria uma publicidade das melhores para o Santa Úrsula, concorda? — Não se tratava bem de uma piada, mas, pela primeira vez, ela viu Judith sorrir e dar uma risada, espontaneamente. —Já está melhor. E agora — ela olhou para seu relógio —você precisa ir andando e eu devo prosseguir com tudo que tenho para fazer. Está em cima da hora para os jogos. Penso que você gostaria de conversar um pouco com Loveday. Pedirei a Deirdre para dizer à srta. Fansahw que vocês duas podem faltar ao hóquei, para ficarem juntas por algum tempo. Dêem uma volta pelos jardins, subam em uma árvore ou sentem-se no solário. Você se sentirá melhor, depois que contar tudo para Loveday.

— Não vou contar a ela sobre o Coronel Fawcett.

— Não. Creio que devemos guardar isso conosco. — Ela se levantou da poltrona e, no mesmo instante, Judith levantou-se também. — Agora, está terminado. Sinto muito sobre sua tia, mas você soube como aceitar o golpe. E não fique apreensiva sobre seu futuro, porque isso é responsabilidade minha. Posso garantir-lhe que está em boas mãos.

— Sim, srta. Catto. E obrigada. Obrigada também pelo chá.

— Pode ir agora... — Entretanto, quando Judith cruzou a porta, ela voltou ao de sempre. Era novamente a Diretora —... e lembre-se de não correr no corredor.

Sábado, 28 de março

Residência do capitão-engenheiro

Keyham Terrace

Keyham

Plymouth

Minha querida, pobre Judith

Acabei de falar longamente ao telefone com a simpática srta. Catto, que me pareceu muito amiga e solidária. Minha querida, estou sofrendo com você — o que aconteceu à pobre Louise foi algo absolutamente terrível; ela sempre dirigiu como um cocheiro furioso, mas nunca imaginei que algum mal pudesse resultar disso. Louise me parecia uma criatura indestrutível e, embora eu nunca tivesse dito palavras muito gentis sobre ela, sei que era uma boa pessoa, apesar de, às vezes, ter uma língua ferina. Disse-me a srta. Catto que seus pais já foram informados e que irá escrever para sua mãe. Ela também quis saber se eu e Bob podíamos ficar com você nos feriados da Páscoa, mas acontece que estamos às voltas com problemas. Seus dois avós adoeceram e venho tentando ficar de olho neles. Além disso, também estou procurando casa em Devon para comprar, a fim de podermos ter alguma espécie de permanência em nossas vidas. Creio ter encontrado uma, porém precisará ser reformada antes de nos mudarmos para lá. Afinal, seu tio Bob deixará Keyham em junho e se juntará ao HMS Resolve, que está baseado em Invergordon, no Cromarty Firth, a mais de mil e quinhentos quilômetros no distante norte. Lá só há chuva, saiotes escoceses e as bolsas de peles que eles usam diante dos saiotes. Como não se trata de um serviço no litoral, terei de viajar para lá e procurar uma outra casa — agora alugada — para poder estar com seu tio.

Com toda essa confusão, você verá que não nos será possível tê-la conosco durante os feriados da Páscoa, mas no verão já estaremos mais ou menos estabelecidos e, por favor—por favor — venha ficar conosco então. A srta. Catto assegurou-me que cuidará bem de você, e parecia tão sensata ao falar, que me deixou despreocupada sobre seus feriados, mas muitíssimo ansiosa para vê-la no verão.

Minha queridinha, lamento tanto que isto tenha acontecido! Mande dizer-me quando será o funeral, embora não seja muito provável o meu comparecimento. Meu pai está doente de novo, e minha mãe tem-se esforçado demais para cuidar dele. Ela chora o tempo todo por alguém que a ajude, isto me levando a tentar encontrar alguma espécie de governanta residente que cuide dos dois velhos.

Tio Bob junta-se a mim, quando lhe enviamos a nossa amizade. Ele diz para você manter-se de queixo erguido.

Muitos beijos,

Tia Biddy

Domingo, 5 de abril

Queridos mamãe e papai,

Sei que receberam um telegrama, e que tanto a srta. Catto como o sr. Baynes escreverão para vocês. Foi muitíssimo triste o que aconteceu com tia Louise e sentirei uma enorme falta dela, por ter-se mostrado tão gentil comigo. Durante a metade do período letivo, quando fui para Windyridge pela primeira vez, senti uma saudade imensa de vocês, porém isso logo passou, porque tia Louise foi demasiado bondosa comigo, nunca se exasperando com coisa alguma. Sei o quanto ela era imprudente como motorista, mas a srta. Catto disse que não foi a culpada pelo acidente, porque o caminhão contra o qual se chocou estava simplesmente abandonado, bem no alto da ladeira.

Em relação a mim, por favor, não se preocupem. Eu poderia ter ido passar os feriados da Páscoa com a tia Biddy, mas ela atualmente está muito ocupada com a casa nova que comprou e, além disso, o avô Evans está doente. Entretanto, estou certa de que poderia ficar alguns dias com os Warrens, de Porthkerris e, por outro lado, a srta. Catto sugeriu-me ir a Oxford e ficar no casarão em que vivem os seus pais. Eu gostaria muito de ir, porque a srta. Catto acha que tenho possibilidade de prestar exames e conseguir vaga na Universidade de Oxford, de modo que seria interessante ver a cidade. Então, poderei ficar com tia Biddy durante os feriados do verão.

Lamento muito por Edna e Hilda, mas talvez elas encontrem outro emprego em que possam estar juntas. Foi horrível ser informada sobre tia Louise, porque um desastre de carro é algo tão violento e, além disso, ela não era muito idosa. A srta. Catto disse que a morte faz parte da vida, mas, ainda assim, a gente não quer que ela chegue com tanta rapidez.

O funeral foi na quinta-feira passada. A srta. Catto me disse que eu não precisaria ir, se não quisesse, mas decidi que seria melhor ir. Fui de uniforme, e a inspetora fez uma faixa de luto para eu colocar no braço. A srta. Catto disse que me levaria, mas o sr. Baines chegou em seu carro e levou nós duas. Ele foi muito gentil conosco, e eu me sentei no banco da frente, ao seu lado. O serviço foi celebrado na igreja de Penmarron. Havia muita gente lá, a maioria desconhecida para mim. Entretanto, chegamos juntamente com os Warrens. A sra. Warrens deu-me um forte abraço, apresentou-se à srta. Catto e disse que eu poderia ficar com eles nos feriados, sempre que quisesse. Não acham que, realmente, foi muita gentileza dela?

Na igreja, cantamos "Chegou ao fim, Senhor, o dia que Tu deste", e havia muitas flores por todos os lados. O vigário falou coisas lindas sobre tia Louise. Hilda e Edna se sentaram logo atrás de nós e choraram, mas o primo delas estava lá, com seu carro, e as levou embora quando o serviço terminou. As duas vestiam-se de preto e pareciam sentir imensamente a falta de tia Louise.

Depois do serviço, saímos todos acompanhando o ataúde. Era um dia muito frio, mas de céu azul, com um vento gelado do norte vindo do mar. No cemitério, toda a relva nascida no alto dos muros era sacudida pelo vento, podia-se sentir o cheiro do mar e ouvir as ondas. Ainda bem que não estava chovendo.

Foi terrível ver o ataúde baixará terra e saber que tia Louise estava nele. O vigário deu-me um pouco de terra para deixar cair na sepultura, a srta. Catto jogou um buquê de prímulas, e o sr. Baines uma rosa. Achei um gesto delicado da parte dele;

devia saber o quanto tia Louise gostava de rosas. Só então eu compreendi que ela realmente estava morta, para sempre. Em seguida, nós nos despedimos de todos os presentes e voltamos a Penzance. O sr. Baines nos levou —a mim e à srta. Catto — para almoçar no The Mitre, porém fiquei pensando no dia em que nós duas almoçamos lá, mamãe, isto me fez sentir sua falta e desejar que você estivesse lá.

A maioria dos moradores da aldeia compareceu ao funeral, e eu falei com a sra. Berry. Também falei com a sra. Southey, e ela me beijou, ou melhor, espetou-me o rosto, com aqueles pêlos que tem em cima do lábio.

Judith parou aqui, um pouco atrapalhada. As lembranças do funeral eram confusas. Outros rostos conhecidos surgiam de quando em quando diante de seus olhos, mas era difícil dar-lhes um nome. Billy Fawcett também comparecera, porém ela não desejava nem mesmo escrever-lhe o nome. Tinha-o observado, no final do serviço, quando saíra para o corredor central seguida pela srta. Catto, a caminho da porta principal. Ele estava em pé, bem no fundo da igreja. Judith o olhou, e viu que ele também a olhava. Com uma nova coragem, garantida pela presença de sua diretora, ela o encarou, fazendo com que baixasse os olhos. Antes dele fazer isso, no entanto, Judith percebeu-lhe no rosto uma expressão de puro ódio, dirigida a ela. As portas aferrolhadas de Windyridge não tinham sido perdoadas e nem esquecida a humilhante retirada dele. Entretanto, ela pouco se importava. No cemitério, Billy Fawcett não estava entre os que se achavam à beira da sepultura. Ofendido e truculento, ele fora embora, e Judith ficou grata por esse pequeno favor. Aquele homem, no entanto, era um espectro insistente, que ainda assombrava os seus sonhos. Agora, sem tia Louise para animá-lo, para fazer-lhe companhia e despejar uísque grátis em sua garganta sedenta, ele talvez caísse em Si, talvez fosse embora da Cornualha e encontrasse outro lugar onde Passar seus anos crepusculares. Quem sabe a Escócia? Lá havia montes de campos de golfe. Judith gostaria que ele fosse para a Escócia, e que nunca, nunca mais tornasse a vê-lo novamente. Enfim, talvez ele não conhecesse ninguém na Escócia; em realidade, era um ser tão horrível que ela não conseguia imaginá-lo tendo um só amigo em algum lugar. Assim, o mais provável era que continuasse exatamente onde estava enfiado no seu bangalô alugado, perambulando pela sede do clube em Penmarrom como um cão perdido e, de quando em quando, indo em seu carro a Porthkerris, a fim de fazer as compras essenciais às necessidades da vida. Billy Fawcett sempre estaria por ali, e Judith tinha o pressentimento de que jamais se libertaria inteiramente de sua odiosa figura, até chegar o dia em que ele esticasse as canelas e morresse. Tiritando no vento do cemitério, encontrou tempo para desejar que tinha que ser ele quem devia estar baixando para sempre naquela sepultura, e não tia Louise. Era tudo tão terrivelmente injusto! Por que tia Louise tinha sido levada para a eternidade quando ainda no auge de sua existência útil e ocupada, enquanto aquele velho e repugnante bolinador continuava vivo, poupado para prosseguir com suas nefan-das atividades?

Eram pensamentos inadequados para uma ocasião tão triste, tão desalentadora. Foi então que viu o sr. Willis, e ficou de tal modo satisfeita em vê-lo ali, que expulsou Billy Fawcett de sua mente. O sr. Willis se mantinha respeitosamente a alguns passos de distância, não desejando invadir a tristeza pessoal de quem quer que fosse. Barbeado e limpo, usava um reluzente terno azul um tanto apertado e um colarinho que parecia prestes a sufocá-lo. Segurava seu chapéu-coco, e Judith, que permanecera de olhos secos durante todo o funeral, ficou comovida até as lágrimas, percebendo a evidente trabalheira a que ele se entregara. Antes de sair do cemitério, ela deixou a srta. Catto e o sr. Baines, que trocavam algumas palavras com o vigário, e abriu caminho através dos tufos relvosos entre as lápides antigas, a fim de cumprimentar o velho amigo.

— Sr. Willis...

— Oh, minha querida! — Ele colocou o chapéu, para tirá-lo do caminho, e tomou as duas mãos dela nas suas. — Que coisa mais terrível foi acontecer! Você está bem, não está?

— Sim, estou bem. Muito obrigada por ter vindo.

— Foi um enorme choque saber do ocorrido. Estive no pub, no anoitecer de quinta-feira, e foi quando Ted Barney me contou. Mal pude acreditar... aquele retardado, o Jimmy Jelks...

— Sr. Willis... não fui vê-lo nos feriados de meio período letivo, não sabe o quanto lamento. Eu queria ir... mas... de algum modo... acabei não indo. Espero que não fique aborrecido...

— Em absoluto. Reconheço que você tinha muito o que fazer, e é um longo trajeto até o ferry.

— Prometo ir, da próxima vez em que for a Penmarron. Tenho muita coisa para contar ao senhor.

— Como vão sua mãe e Jess?

— Que eu saiba, perfeitamente bem.

— Quem cuidará de você agora?

— Oh, a tia Biddy, em Plymouth, segundo espero. Ficarei bem.

— A tragédia já é ruim o bastante, porém esta foi uma sina cruel para você. Mesmo assim, a Morte ataca, e não há muito o que possamos fazer, há?

— Não. Não há muito. Agora preciso ir, sr. Willis. Eles estão esperando. Fiquei muito contente em vê-lo.

Ainda estavam de mãos dadas. Ela olhou para o sr. Willis e viu os olhos dele se encherem de lágrimas subitamente. Inclinando-se, beijou a face áspera, que cheirava a sabonete Lifebuoy e a tabaco, tudo misturado.

— Adeus, sr. Willis.

— Adeus, minha garota.

Recordar tudo isso era bastante triste, porque ela talvez nunca mais voltasse a Penmarron, e aquela despedida no funeral bem poderia ser para sempre. Judith recordou fatos ainda mais recuados no tempo, evocou as muitas tardes roubadas e felizes, passadas na companhia dele. Eram dias magníficos, quando ele se recostava contra o casco apodrecido de um barco a remo, fumava seu cachimbo e contava casos amigavelmente, enquanto esperava que a maré subisse e os barcos de carvão se movessem sobre os bancos de areia. Também havia os dias chuvosos e frios de inverno, ainda melhores, porque então eles iam Para a pequena cabana e bebiam chá, feito na velha estufa bojuda.

Bem, este não era o momento para ficar entregue a recordações, Porque precisava terminar sua carta.

Por um ou dois momentos, ficou indecisa, quanto a mencionar ou não a presença do sr. Willis no funeral. Sua amizade com ele sempre fora mantida oculta de sua mãe, como um segredo, em parte por não querer interferências, mas também por causa da duvidosa condição social da chamada sra. Willis. Então pensou — oh, bolas! — afinal de contas, nas atuais circunstâncias, o sr. Willis e sua vida particular não eram mais importantes do que uma tempestade em copo d'água. Ele era seu amigo e assim continuaria sendo. Se sua mãe lesse nas entrelinhas e chegasse a alguma conclusão oculta e sinistra, somente dentro de seis semanas Judith receberia a resposta desta carta. E, até lá, o mundo inteiro poderia ter mudado.

Por outro lado, ela queria escrever sobre o sr. Willis.

O sr. Willis também esteve lá. Lembra-se dele? É o homem que manobra o ferry e trabalha para a Superintendência do Porto. Estava muito elegante e usava chapéu coco. Perguntou por você e porjess. Achei que foi muita bondade dele ir ao funeral, de barba feita, bem vestido e tudo isso.

Amanhã à tarde o sr. Baines virá ao colégio, falar comigo sobre o que ele chama "assuntos de família". Penso que deve ter a ver com o colégio e coisas assim, embora nem de longe imagine o que isto signifique. Espero que ele não use palavras compridas que eu não entenderia, e só desejo que seja capaz de ajudar Edna e Hilda a encontrarem outro emprego.

Desejo que você esteja bem, e que papai não se entristeça demais com a morte de tia Louise. A srta. Catto me disse que a morte foi tão rápida, que ela nem chegou a perceber o que aconteceu. Disse também que ela adorava dirigir, porém isso não consola muito, quando você agora está tão longe e as duas se queriam tanto. Por favor, não fique preocupada comigo. Entraremos em férias na sexta-feira, 10 de abril.

Um monte de beijos,

Judith

- Oh, aí está você, Judith...

Presumivelmente com a permissão da srta. Catto, o sr. Baines já se instalara atrás da mesa dela, a qual tinha ocupado com sua pasta e um monte de documentos. Era um homem muito alto, de cabelos mos-queados como um terrier de pelame áspero, e enormes óculos com aros de chifre. Em seu terno de tweed e camisa xadrez, era o próprio epítome de um bem-sucedido procurador rural. Sua firma, da qual era um dos sócios mais antigos, há muito fora estabelecida em Penzance e tinha escritórios em uma invejável casa no estilo Regência, em Alver-ton. Judith sabia disso, porque todos os domingos a fila de alunas do Santa Ursula passava por ali a caminho da igreja e, além disso, sabedora também de que a firma era dos advogados da família Dunbar, ela sempre encontrara tempo para admirar as encantadoras proporções da casinha e para ler os nomes antigos — Tregarthen, Opie &c Baines — na incrivelmente polida placa de latão ao lado da porta de entrada. Não obstante, só ficara conhecendo o sr. Baines no dia do funeral de sua tia Louise, quando então ele se mostrara extremamente cortês e gentil, levando-as em seu carro, depois convidando-as a almoçar no The Mitre e, de um modo geral, tornando aquele dia melancólico o mais suportável que lhe fora possível. Em vista disso, ela agora tinha a sensação de que o gelo social já fora rompido, o que era uma boa coisa. Judith não fazia idéia do que ele tinha para dizer-lhe, mas, pelo menos, não precisariam iniciar um conhecimento, podendo dispensar as polidas formalidades consumidoras de tempo que, segundo imaginava, seriam a norma em tais ocasiões.

— Como tem passado?

Ela respondeu que muito bem, e ele saiu de trás da mesa, para puxar-lhe uma cadeira para que se sentasse. Depois o sr. Baines tornou a ocupar o trono atrás da mesa da srta. Catto e a ficar novamente com seus papéis.

— Em primeiro lugar, e antes de mais nada, quero deixá-la despreocupada quanto a Edna e Hilda. Creio ter encontrado uma colocação para elas com uma velha cliente minha que mora perto de Truro. Providenciarei uma entrevista para as duas irmãs e acho que, se ficarem nesse emprego, sentir-se-ão muito felizes e com conforto. Trata-se de uma senhora sozinha, mais ou menos da idade da sra. Forrester, sendo as condições de trabalho bastante agradáveis. — Ele sorriu. Quando sorria parecia muito mais jovem, inclusive até mesmo atraente. — Assim sendo, não precisará mais preocupar-se com elas.

— Oh, muito obrigada! — exclamou Judith, sentindo-se imensamente grata. — O senhor foi perspicaz. Esta parece a solução perfeita para elas. E sei que as duas desejariam continuar juntas.

—Assim, já temos um problema resolvido. E agora, sabe que passei um cabograma para seu pai, comunicando-lhe o ocorrido com a sra. Forrester? Bem, faz uns dois dias recebi um cabo de volta, e ele lhe manda lembranças. Disse que escreverá para você. Já escreveu para seus pais?

— Sim, e contei a eles tudo sobre o funeral.

— Fez bem. Deve ter sido triste escrever essa carta. — Ele moveu um ou dois papéis, colocando-os em ordem. Por um momento, deu a impressão de não saber como começar. — Bem, apenas para eu ficar sabendo. Quantos anos tem? Quatorze? Quinze?

Era uma pergunta singular.

— Farei quinze em junho.

— Oh, sim. Minha filha mais velha tem apenas oito. Começará a estudar no Santa Ursula o ano que vem. É uma sorte você já estar matriculada aqui. Obterá uma excelente educação. Eu e a srta. Catto estivemos conversando, e ela a considera uma promissora candidata para a universidade. — Ele sorriu. — Gostaria de ir para a universidade?

— Na verdade, não pensei nisso ainda. Receio que seja terrivelmente caro.

— Sim — respondeu o sr. Baines. — Eu compreendo. — Houve um silêncio, mas antes que se tornasse desconfortável, ele readquiriu o domínio próprio, puxou uma pasta em sua direção, pegou sua caneta-tinteiro, e disse: — Muito bem, vamos aos negócios.

Judith esperou polidamente.

— Antes de morrer, sua tia redigiu um testamento completo. Providenciou generosos donativos para Hilda e Edna. Tudo o mais, todos os seus bens, ela deixou para você.

Judith continuou esperando.

O sr. Baines tirou os óculos. Sem eles, seus olhos se franziram, de um modo perscrutador.

—Todas as suas posses mundanas — acrescentou. Judith recuperou a voz.

- Isso dá a impressão de muita coisa.

E é muita coisa — disse gentilmente o sr. Baines.

Tudo para mim?

Tudo para você.

Mas... — Ela sabia que se portava idiotamente, porém o sr. Baines estava sendo muito paciente. Ele esperou, observando-a. — Bem, mas por que eu? Por que não meu pai? É o irmão dela.

— Seu pai tem um emprego sólido, uma carreira, com um salário regular, uma promoção recente, e segurança futura.

—Sei, mas eu... bem, pensei que pessoas como tia Louise, senhoras sozinhas, costumassem deixar seu dinheiro para obras de caridade ou lares de gatos. Ou para o clube de golfe. O clube de golfe estava sempre tendo partidas de whist ou tardes de bridge, a fim de custear um novo aquecimento central, vestiários ou coisas assim.

O sr. Baines permitiu-se um sorriso.

— Talvez sua tia Louise houvesse decidido que os vestiários eram perfeitamente adequados.

Era quase como se ela não entendesse.

— Mas, por que eu...

— Ela não tinha descendência própria, Judith. Não teve filhos. Não possuía dependentes. Nem família. No correr dos anos, sua tia me contou muito sobre si mesma. No seu tempo de jovem, as moças não tinham empregos ou carreiras e bem poucas eram estimuladas a freqüentar uma universidade. Se a moça fosse bonita e rica, isso na verdade não importava, mas para as filhas da classe média, as jovens comuns, a única perspectiva de qualquer espécie de vida era o casamento. Sua tia não era rica nem bonita. Ela mesma me contou isso. Na Inglaterra fazia pouco sucesso com os rapazes, de maneira que, eventualmente, os pais a embarcaram para a índia, a fim de encontrar um marido. Ela recordava este episódio sem rancor, mas também como uma espécie de humilhação. Sua tia foi somente uma das muitas Jovens... sem compromisso com algum rapaz, inúmeras delas até atraentes, que cruzaram o mundo com uma idéia em mente.

— O senhor quer dizer, casarem-se?

— O pior era serem conhecidas, coletivamente, como a Frota Pesqueira, porque estavam partindo para pescar maridos.

— Tia Louise odiaria isso.

— No caso dela, a história teve um final feliz, porque terminou casando-se com Jack Forrester e partilhou com ele muitos anos felizes. Ela teve sorte, mas conheceu outras que não se saíram tão bem.

— O senhor acha que tia Louise lamentava não ter tido filhos?

— Não, não creio nisso.

— Então, o que está tentando dizer-me?

— Oh, céus, parece que não estou me saindo muito bem, não é mesmo? O que estou tentando dizer-lhe é que sua tia Louise a estimava muito. Penso que via um grande potencial em você. Não a queria passando pelo mesmo que havia passado. Desejava que você tivesse o que ela nunca teve. A independência de ser uma pessoa independente de tomar as próprias decisões, de fazer essas coisas quando jovem tendo ainda a vida inteira pela frente.

— Oh, mas ela conseguiu. Casou com Jack Forrester e viveu tempos maravilhosos na índia.

— Sem dúvida. Para ela, deu certo. Entretanto, sua tia não queria que você, jamais na vida, tivesse que enfrentar esse risco.

— Estou compreendendo.

Tudo aquilo começava a parecer um tanto assoberbante, algo como uma responsabilidade. Inclusive, preocupante.

— O senhor poderia repetir tudo novamente? Sobre as posses mundanas, quero dizer.

— Claro. Sua tia Louise deixou para você a casa e tudo quanto ela contém. Entretanto, mais importante ainda, os investimentos de seu capital.

— Oh, mas o que farei com a casa dela?

— Penso que deve ser posta no mercado e investida a soma de dinheiro resultante. Procure entender que sua tia Louise era uma senhora de posses. E estou querendo dizer muitas posses.

— Rica

— Usemos a palavra "abastada". "De recursos" seria outro bom termo. Ela a deixou substancialmente provida. Você provavelmente não tem idéia do quanto sua tia possuía, pois, embora levasse uma vida confortável, era sem qualquer espécie de ostentação:

— Sim, mas... —Aquilo era intrigante. — Os Dunbar nunca foram ricos. Mamãe e papai viviam falando em economizar, e sei que m enxoval escolar foi terrivelmente caro...

— A fortuna da sra. Forrester não provinha de dinheiro dos Dunbar. Jack Forrester foi um militar, mas também um homem de consideráveis posses particulares. Não tinha irmãos nem irmãs, de maneira que deixou tudo para a esposa. Sua tia. E ela, por seu turno, deixou para você.

— O senhor acha que, quando casou, tia Louise sabia que ele era rico?

O sr. Baines riu.

— Se quer saber, acho que ela não fazia a mais remota idéia.

— Então, deve ter sido uma agradável surpresa para ela.

— Foi uma agradável surpresa para você?

— Eu não sei. É difícil imaginar o que, exatamente, tudo isso significa. — Ela franziu a testa. —Sr. Baines, papai sabe a respeito disso tudo?

—Ainda não. Eu queria contar primeiro a você. Naturalmente, eu o farei conhecedor da situação, assim que voltar ao meu escritório. Enviarei um cabograma a seu pai. E, quanto ao significado de tudo isso, eu lhe direi agora. — Ele falava com certo alívio. — Significa segurança e independência pelo resto de sua vida. Você poderá cursar a universidade e, se casar, não precisará ficar dependente de seu marido. A Lei sobre a Propriedade da Mulher Casada garante que você estará sempre no controle de seus próprios negócios, que será capaz para lidar com eles e manejá-los pessoalmente, da maneira como lhe convier. A perspectiva a deixa alarmada?

— Um pouco.

— Não há necessidade. O dinheiro é bom, mas somente tanto quanto a pessoa que o possui. Ele pode ser desperdiçado e gasto ou pode ser usado prudentemente, para valorizar e aumentar. Entretanto, por ora você não terá de preocupar-se com responsabilidades. Até completar vinte e um anos, a herança será deixada sob custódia e administrada por curadores. Eu serei um deles, e pensei que poderíamos pedir ao Capitão Somerville que se juntasse ao time.

— O tioBob?

—Não parece uma boa idéia?

— Sim. — Obviamente, o sr. Baines tinha feito muito bem o seu dever de casa. — É claro.

— Redigirei uma minuta. Nesse meio tempo, providenciarei uma espécie de mesada para você. Agora que está por conta própria precisará comprar roupas, livros, presentes de aniversário para amigos... todas as pequenas despesas que os pais ou tutores normalmente fazem. Você é jovem demais para ter um talão de cheques, porém em mais um ano poderá solicitar um. Então, talvez uma conta de poupança postal. Deixe por minha conta.

— Fico muito grata ao senhor.

— Você poderá fazer compras. Todas as mulheres querem ir às compras. Tenho certeza de que deve estar ansiosa por alguma coisa.

— Levei séculos querendo uma bicicleta, mas tia Louise me comprou uma.

— Não há mais nada?

— Bem... estou economizando para comprar uma vitrola, mas ainda não consegui juntar grande coisa.

—Você poderá comprar uma vitrola—disse o sr. Baines. — E uma pilha de discos.

Ela ficou fascinada.

— Poderei mesmo? Seria permitido? O senhor deixaria?

— Por que não? Afinal, é um pedido bastante modesto. Não haveria alguma coisa na casa da sra. Forrester que quisesse conservar? Ainda é muito nova para que fique sobrecarregada com imóveis ou um punhado de móveis, mas talvez alguma pequena peça de porcelana ou um belo relógio...?

— Não. — Já tinha a sua escrivaninha, seus livros e sua bicicleta (em Windyridge). Sua caixa chinesa (em Nancherrow). Bens extras podiam apenas tornar-se uma carga. Ela pensou no porta-guarda-chuvas de pata de elefante, no tapete de pele de tigre, nos chifres da corça, nos troféus de golfe do tio Jack, e soube que não desejava nenhum deles. Windyridge fora uma casa cheia das memórias de outra pessoa. Nada lá dentro tinha qualquer significado para ela. — Não. Lá não existe nada que eu queira conservar.

— Muito bem. — Ele começou a juntar seus documentos. — Tudo certo. Nenhuma pergunta mais?

- Acho que não.

— Se pensar em alguma coisa, pode telefonar para mim. De qualquer modo, certamente ainda teremos outro encontro, e eu poderei fornecer-lhe detalhes...

A porta do estúdio foi aberta nesse momento, e a srta. Catto se juntou a eles, seu manto negro esvoaçando, tendo sob o braço a pilha costumeira de cadernos de exercícios. Judith ficou em pé instintivamente. A srta. Catto olhou para ela, depois para o sr. Baines.

— Estarei interrompendo? Dei-lhe tempo suficiente?

O sr. Baines tanbém ficou em pé, muito mais alto do que elas duas.

— Houve tempo de sobra. Ficou tudo explicado, embora não discutido. Poderá tomar posse novamente de seu estúdio. E obrigado por permitir que o usássemos.

— O que me diz de uma xícara de chá?

— Obrigado, mas devo retornar a meu escritório.

— Muito bem. Judith, não se vá ainda. Quero falar com você.

O sr. Baines guardara os documentos em sua pasta e agora afivelava a correia. Depois saiu de trás da mesa.

—Adeus então Judith—disse ele, inclinando-se benevolentemente para ela. — Por enquanto.

— Adeus, sr. Banes.

— E obrigado mais uma vez, srta. Catto.

Judith foi abrir a porta, e o sr. Baines saiu. Ela tornou a fechá-la e se virou para sua diretora. Houve um momento de pausa.

— E então? — perguntou depois a srta. Catto.

— Então, o que, srta. Catto?

— Como se sente, sabendo que a universidade não é mais um problema financeiro, porque a segurança simplifica tanto a vida?

- Eu nunca soube que tia Louise fosse uma mulher abastada.

— Aí estava uma de suas maiores qualidades. Uma total falta de pretensão. —- A srta Catto deixou os cadernos sobre sua mesa, depois inclinou-se contra ela, os olhos ficando nivelados aos de Judith. — Creio que sua tia lhe fez um grande cumprimento. Ela sabia que você não é, que nunca será uma tola.

"- O sr. Baines disse que eu posso comprar uma vitrola.

- É o que você quer?

— Estou juntando dinheiro para comprar uma. E uma coleção de discos, como os do tio Bob.

- Você está certa. Ouvir música só perde para a leitura. — Ela rriu. — Tenho mais novidades para você. Acho que, esta noite, irá escrever em seu diário, "Hoje foi o meu dia de sorte". Falei com minha mãe ao telefone e ela ficou encantada com a idéia de você passar um dos feriados da Páscoa — ou mesmo todos eles — em nossa casa em Oxford. Entretanto, você recebeu outro convite e deverá sentir-se inteiramente à vontade para aceitá-lo, se quiser. Tive uma conversa, de novo por telefone, com a sra. Carey-Lewis. Ela ficou muito chocada ao saber da morte da sra. Forrester... leu a notícia do relato do funeral no The Cornish Guardian, e ligou para mim e seguida. Disse que, naturalmente, você deve passar os feriados da Páscoa, todos eles, em Nancherrow. Sua casa tem espaço de sobra. E ela gostou muito de você e para eles seria uma grande honra se aceitasse seu convite. — A srta. Catto fez uma pausa, e então sorriu. — Você parece tão surpresa! Também está contente?

— Estou. Estou, mas, sua mãe...

— Oh, minha querida, você seria muito bem-vinda em Oxford. A qualquer momento. Entretanto, penso que Nancherrow provavelmente será mais divertido. Sei o prazer que você e Loveday sentem na companhia uma da outra. Assim, por uma vez, não pense em mais ninguém, além de em si mesma. Faça o que quiser fazer. De fato.

Nancherrow. Um mês em Nancherrow, com os Carey-Lewis. Era como ser convidada para férias no Paraíso, algo impensado e jamais imaginado, porém ao mesmo tempo Judith sentiu pavor de comportar-se de modo ingrato ou rude.

— Eu... eu não sei o que dizer...

Reconhecendo seu angustiante dilema, a srta. Catto tomou o assunto em suas eficientes mãos. Risonha, falou:

— Que decisão para tomar! Neste caso, por que não a tomo em seu lugar? Vá a Nancherrow durante a Páscoa e, mais tarde, talvez possa passar alguns dias com todos nós em Oxford. Pronto! É um compromisso. A vida é feita de compromissos. E não se censure nem um pouco por querer tanto ir a Nancherrow. Aquele é um lugar de sonhos e, tenho certeza, o coronel e a sra. Carey-Lewis são os mais gentis e generosos dos anfitriões.

— Sim. — Pronto, estava dito. — Sim, eu gostaria de ir.

— Pois então vá. Falarei com a sra. Carey-Lewis e aceitarei em seu nome, condicionalmente.

Judith franziu a testa.

— Condicionalmente?

- Preciso acertar as coisas com sua mãe. Obter a permissão dela. Entretanto, posso enviar um cabograma e obter a resposta em um dia ou pouco mais.

Tenho certeza de que ela permitirá.

— Eu também. —Judith, entretanto, continuava de testa franzida.

- Há algo mais que a preocupa?

Não, é apenas que... todas as minhas coisas... Tudo o que tenho está na casa de tia Louise.

— Mencionei isto para a sra. Carey-Lewis, e ela respondeu que eles cuidarão do assunto. O coronel enviará um dos caminhões da propriedade à casa da sra. Forrester, no qual seus pertences irão para Nancherrow. A sra. Carey-Lewis me disse que você já tem seu quarto lá, inclusive uma ou duas coisas suas, e jura que existe espaço de sobra para qualquer coisa mais.

— Inclusive minha secretária e minha bicicleta?

— Inclusive sua secretária e sua bicicleta.

— É como se eu estivesse indo morar com eles.

— Para onde quer que vá, Judith, precisará ter uma base, o que não significa que ficará impedida de aceitar outros convites. Quer apenas dizer que, enquanto estiver crescendo, sempre terá um lar para onde voltar.

— Não sei como alguém possa ser tão generoso.

— As pessoas são generosas.

— Eu realmente quero ir a Oxford. Um dia.

— Você irá. Apenas uma coisa mais. Devido à generosidade de sua tia, e porque um dia você será uma mulher de recursos, jamais deverá pensar que, ao aceitar generosidade e hospitalidade, ao mesmo tempo está aceitando caridade. Você é totalmente independente. Dispor de segurança financeira, na realidade é um engrandecimento de vida, pois trata-se de algo que lubrifica suavemente as rodas da existência. Lembre-se, no entanto, de uma coisa: falar de dinheiro, comentar seu excesso ou sua falta, é de extrema vulgaridade. A pessoa se vangloria ou selamenta, o que não predispõe a uma boa conversa. Compreende o que estou querendo dizer?

Compreendo, srta. Catto.

—Boa garota. A coisa mais importante a lembrar, e pela qual deve ser grata, é que sua tia lhe legou não apenas os seus bens mundanos, mas um privilégio concedido a poucos. Esse privilégio é o direito de ser você mesma. Uma entidade. Uma pessoa. Alguém capaz de viver a vida segundo os próprios termos, sem precisar dar satisfações a quem quer que seja. Você provavelmente só avaliará isto quando for mais velha, mas garanto que um dia perceberá a importância do que eu lhe estou dizendo. Bem, agora tenho deveres de história para corrigir, e você precisa cuidar de suas obrigações. —A srta. Catto consultou seu relógio de pulso. — Três e quinze. Perdeu sua última aula, mas ainda não está na hora dos jogos, de modo que pode dispor de algum tempo livre. Vá até a biblioteca e leia um pouco...

A mera idéia de ir à biblioteca já era claustrofóbica; a sala abafada e meio escura, com a claridade infiltrando-se pelas janelas fechadas, o cheiro de livros antigos, o pesado silêncio... (Falar era proibido.) Se ela tivesse que ir para a biblioteca e ficar lá dentro, certamente sufocaria. Com a coragem do desespero, disse:

— Srta. Catto...

— O que é?

— Em vez de ir para a biblioteca... o que eu gostaria mesmo, mais do que qualquer outra coisa, é ir a algum lugar, apenas ficar sozinha. Quero dizer, sem a companhia de mais ninguém. Eu gostaria de ir ver o mar, pensar, acostumar-me a tudo o que aconteceu. Somente por uma hora, até a hora do chá. Se eu pudesse descer até o mar...?

Apesar de toda a sua compostura, a srta. Catto sobressaltou-se visivelmente com um pedido tão audacioso e insólito.

— Ir até o mar? Sozinha? Bem, isso quer dizer caminhar através da cidade.

— Sei que não temos permissão para isso, mas eu não poderia... só esta vez? Por favor, não falarei com ninguém, não comerei doces nem nada assim. Quero apenas ter um pouco de... — Ela ia dizer paz, mas achou a palavra um tanto banal, de modo que a substituiu por "tempo comigo mesma". — Por favor! — repetiu.

Contra todo o instinto, a srta. Catto sabia reconhecer um grito do coração. Entretanto, ainda assim ela vacilava. Isto significava infringir uma de suas normas escolares mais estritas. A menina seria vista, as pessoas comentariam...

— Por favor.

Com muita relutância, a srta. Catto acabou cedendo.

- Está bem, mas será apenas esta vez e nunca mais! E só concordo porque você tem muito em que pensar, e acho que precisa de tempo, sim, para refletir sobre os acontecimentos. Entretanto, não conte para ninguém, nem mesmo para Loveday Carey-Lewis que lhe dei essa permissão. E deverá estar de volta antes da hora do chá. E nada de entrar em cafés para comprar sorvetes!

Eu prometo.

A srta. Catto suspirou fundo.

Pois então vá, mas acho que devo estar louca.

Não, não está louca, srta. Catto — disse Judith.

E escapou do estúdio de sua diretora, antes que ela mudasse de idéia.

Judith cruzou os portões do colégio, saindo para uma tarde pálida e tranqüila, não muito clara, mas com as nuvens de certo modo iluminadas pelo sol oculto. Não havia vento, porém do sul vinha uma aragem branda, sem forças até mesmo para mover os ramos das árvores. A maioria das árvores mostrava rebentos, mas algumas continuavam peladas, e a quietude era tamanha, que um cão latindo ou o som do motor de um carro sacudiam o entardecer como um eco. Ela caminhou, e a cidadezinha estava deserta. Mais tarde, quando as « escolas ficassem vazias, o ar se encheria com os chilreios, a tagarelice das crianças indo para casa, correndo pelas calçadas e chutando pedras Para as sarjetas. A esta hora, no entanto, havia apenas alguns retardatários fazendo compras, esperando ônibus ou espiando na vitrine dos açougueiros, procurando decidir o que comprar para a refeição da noite. No assento de pedra à entrada do banco, dois velhos estavam Sentados em silenciosa comunhão, apoiados em suas bengalas. Quando relógio do banco deu a meia hora, um bando de pombos ergueu-se nos ares e revoluteou agitadamente por alguns momentos, antes de voltarem todos e acomodar-se, para se empertigarem e ficarem alisan-do as penas.

Os pombos a fizeram pensar em Nancherrow, e o melhor de tudo era saber que tornaria a ir lá, desta vez para passar todos os feriados da Páscoa; e agora ia não porque Loveday pedira aos pais, mas porque Diana e o Coronel Carey-Lewis a tinham convidado, tinham gostado dela, tinham desejado a sua volta. Ela tornaria a ocupar o quarto rosa que — Diana prometera — sempre seria seu, com janelas dando para o pátio e os pombos, um quarto onde sua caixa chinesa a esperava, e ela usaria as roupas de Athena, de novo tornando-se aquela outra pessoa.

O estranho, no entanto, era que mesmo agora ela se sentia como aquela outra pessoa, porque tudo estava diferente. Nas ruas quietas sem nenhuma criança ou adolescente à vista, sua solidão mudava o ambiente e o senso de tudo. Prédios familiares apresentavam-se sob uma luz inteiramente nova, como se ela jamais houvesse estado antes na pequena cidade, e davam-lhe a sensação de estar explorando uma localidade estrangeira pela primeira vez. Era como possuir um terceiro olho, capaz de perceber luz, sombra, pedra e forma; uma alameda inesperada, o salto de um gato negro em disparada. Nas vitrines, via-se passando vestida com o casaco de tweed verde-garrafa e o horrível chapéu que a proclamavam uma aluna do Santa Ursula. Interiormente, no entanto, sentia-se aquela pessoa real, aquele esguio ser adulto que usava blusas de casimere e que um dia emergeria, como uma borboleta escapando de sua crisálida.

Ela dobrou a esquina da Chapei Street, ao lado das lojas de antigüidades, do TheMitre Hotel e da loja de tapetes, em cujo exterior eram vistos rolos em pé de tapetes e linóleos. O homem que vendia móveis de segunda mão estava sentado em uma poltrona junto à porta de sua loja, fumando um cachimbo e esperando clientes que, hoje, evidentemente não apareceriam. Quando Judith passou, ele tirou o cachimbo da boca, inclinou a cabeça para ela, disse "Olá", e ela teria parado para um dedo de prosa, se não se lembrasse da promessa feita à srta. Catto.

No final da Chapei Street, uma rampa com piso de lajes descia para o porto. A maré oleosa estava alta, e os barcos pesqueiros moviam-se suavemente, como que respirando, seus mastros em nível com a estrada. Havia um forte cheiro de peixe, de plantas lançadas à praia e de maresia. Nas docas, homens trabalhavam, preparando linhas para a pesca noturna.

Judith observou-os por um momento. Pensou em tia Louise e tentou sentir-se sinceramente grata, embora triste, mas era incapaz de sentir alguma coisa em profundidade. Pensou no que significava ser rica. Não, não. O sr. Baines condenara essa palavra vulgar. Muito abastada, ele havia dito. Eu sou muito abastada. Se quisesse, poderia comprar... provavelmente aquele barco de pesca. Entretanto, Judith não desejava um barco de pesca mais do que desejaria um cavalo. Em vista disso, o que desejaria, acima de tudo? Raízes, talvez. Um lar, uma família, um lugar para onde ir, que fosse permanente. Ela desejava o senso de pertencer. Não de apenas hospedar-se com os Carey-Lewis, a tia Biddy, srta. Catto ou mesmo a jovial família Warren. Entretanto, nem todo o dinheiro do mundo poderia comprar raízes, e Judith sabia disso — se é que sabia de alguma coisa — e então procurou imaginar outras loucas extravagâncias. Um carro. Quando tivesse idade suficiente, compraria um carro. Ou uma casa, o que era uma nova e sedutora fantasia. Não Windyridge, com a qual, enfim, nunca simpatizara muito, mas um celeiro de granito ou um chalé de pedra, com uma palmeira no jardim. Teria a frente para o mar e uma escada externa, com gerânios marginando todos os degraus. Gerânios em vasos de cerâmica. E gatos. E um ou dois cachorros. E, no interior, um fogão-estufa como o do sr. Willis, onde ela cozinharia coisas.

Isso, contudo, estava no futuro. O que seria, no momento? Ela poderia comprar uma vitrola, mas certamente haveria outros desejos caros a serem realizados. Por fim, terminou decidindo que talvez mandaria cortar o cabelo, em um estilo parecido ao de Ginger Rogers. E compraria meias verdes até os joelhos para usar no colégio, em vez das grossas meias compridas de algodão. Ainda teria oportunidade de ir à Casa Medways e comprar as meias, ela mesma. Com o seu dinheiro. Judith deixou para trás o porto e os barcos. Caminhou ao longo do mar, passou perto da piscina ao ar livre e chegou ao passeio público. Ali havia abrigos onde, protegidas do vento, as pessoas podiam sentar-Se e dar de comer crostas de pão às gaivotas esfomeadas. No lado mais distante da estrada havia hotéis, brancos como bolos de casamento, Cujas janelas vazias encaravam o mar fixamente. Debruçando-se na enfeitada balaustrada de ferro, ela contemplou a praia pedregosa mais abaixo e as águas prateadas do mar represado. Pequeninas ondas vinham quebrar-se na praia e eram novamente sugadas, arrastando em sua esteira um punhado de seixos. Era uma praia desinteressante, nem por sombras tão espetacular como Penmarron ou tão bonita como a enseada em Nancherrow, mas o mar era constante e imutável, como o melhor e mais confiável tipo de amigo. Aquela visão a fazia sentir-se forte o bastante para tentar esclarecer parte da imensa confusão daquele dia.

O direito de ser você mesma, uma entidade, uma pessoa. Esta er a srta. Catto, com seu diploma de M.A. pela Universidade de Cambridge, Inglaterra, e sua auto-suficiência, sua ardorosa independência. Talvez ela seguisse o exemplo da srta. Catto. Cursaria a universidade com brilhantismo, conquistaria um diploma pela maneira regular ou então com honra, e tornar-se-ia uma diretora. No fundo, contudo ela não desejava ser diretora. Da mesma forma como não desejava ser uma esposa.

Se se casar, nunca preste contas de nada a seu marido. Este era o sr. Baines, que presumivelmente sabia tudo sobre tais assuntos. Entretanto, o casamento e suas complicações eram algo que, no momento, não entravam nos pensamentos de Judith. Ela estava certa de que isso envolvia coisas tendo a ver com uma cama de casal, e a recordação das mãos rastejantes de Billy Fawcett (embora o episódio tivesse sido colocado em enérgica perspectiva pela própria srta. Catto) ainda permanecia vívida o suficiente para impedi-la de pensar em qualquer espécie de contato físico com homens. Naturalmente, quando uma mulher se casa, é claro que o homem deve ser muito especial, porém mesmo assim, nada no casamento — oculto na própria e total incompreensão dela — apresentava a menor probabilidade de prazer.

Talvez jamais se casasse, porém não sendo isso um problema imediato, pouco adiantaria preocupar-se muito a respeito. Por ora, tudo consistia em analisar uma coisa de cada vez. Os feriados da Páscoa em Nancherrow, e depois o retorno ao colégio. Estudos durante mais dois anos e, após isso, com um pouco de sorte, uma viagem a Cingapura. De novo a família — mamãe, papai e Jess — mais o adorável e ofuscante sol do Oriente, os cheiros das ruas e os perfumes da noite, o aveludado escuro dos céus, que pareciam estojos de jóias repletos de estrelas de diamantes... Após Cingapura, talvez a Inglaterra novamente. Oxford ou Cambridge.

 

Sistema voluntário de normas escolares, permitindo que o aluno realize provas sen vigilância, confiando os examinadores no sentimento de honra dos examinados-(N.daT.)

 

Pedalando sua bicicleta nos lugares bonitos ou passeando nos barcos impelidos por uma vara, no rio que passava nos fundos de algumas faculdades da universidade. Sua imaginação ficou escassa de imagens. Ela se viu bocejando. Estava exausta. Cansada de ser adulta, com todas as decisões e dilemas dos adultos. Sentia falta de Loveday. Queria dar risadinhas sufocadas e cochichar com ela, combinar planos para quando estivessem juntas em Nancherrow. Além do mais, também estava com fome, de modo que foi um alívio ouvir, às suas costas e vindo do alto da cidadezinha, o som do relógio do banco batendo as quatro da tarde. Era hora de voltar, caso quisesse tomar seu chá. Pão com manteiga, geléia, se tivesse sorte, e bastante bolo. De repente, o chá em companhia de Loveday pareceu muitíssimo tentador. Dando as costas para o mar, ela cruzou a estrada e iniciou uma caminhada rápida pelo comprido passeio público, de volta ao colégio.

Acima de todas as coisas, Diana Carey-Lewis odiava escrever cartas. Até mesmo garatujar um cartão em agradecimento a um convite para jantar ou para um fim de semana era uma tarefa que ela habitualmente adiava o máximo possível, sendo quase todos os seus negócios do dia-a-dia levados a efeito através daquela admirável invenção —o telefone. Edgar, no entanto, insistia que ela simplesmente tinha que escrever à mãe de Judith, Molly Dunbar.

— Por que tenho de escrever a ela?

— Porque você tem de oferecer suas condolências pela morte da sra. Forrester, e porque seria apenas cortês e polido garantir a ela que cuidaremos de sua filha.

— Tenho certeza de que ela não precisa de nenhuma garantia minha. A srta. Catto já fez tudo o que era correto, ao seu modo costumeiro e sem falhas.

—Não é essa a questão, Diana querida. Você mesma deve escrever. Tenho certeza de que a sra. Dunbar está aguardando alguma espécie de contato, e cabe a você tomar a iniciativa.

— Por que não posso telefonar para ela?

— Em Cingapura? Porque não pode!

— Eu poderia mandar um cabograma. — Ela pensou a respeito e começou a dar risadinhas. — O que acha de "Sua filha está bem cuidada, Nada receie, portanto. Com doces alimentada, E aquecida, eu lhe garanto...?”

Edgar, contudo, não achou divertido.

— Não seja ridícula, Diana.

— Por que você não escreve? Sabe muito bem que odeio escrever cartas.

— Porque é você que deve fazer isso. Escreva esta manhã, encerre logo o assunto e procure agir com tato, ser gentil e solidária.

Assim, ali estava ela, pobre mártir, sentada à sua secretária e reunindo energias para executar a tediosa tarefa. Com relutância, estendeu a mão para uma folha de seu papel de cartas, espesso, azul e gravado em relevo, depois pegou sua caneta-tinteiro de pena larga e começou a escrever. Após começar, e com uma crescente sensação de virtuosidade, ela foi cobrindo folha após folha de papel com sua caligrafia enorme e quase ilegível. Afinal de contas, não adiantava fazer as coisas pela metade.

Nancherrow, Rosemullion, Cornualha, sexta-feira, 10 de abril

Prezada sra. Dunbar

Lamentei profundamente, quando li no jornal a notícia da morte de sua cunhada, a sra. Forrester. Não a conheci pessoalmente, mas posso bem compreender o seu choque e a sua tristeza, ao ser informada do fato. Para mim é difícil escrever sobre tais assuntos, uma vez que não fomos apresentadas formalmente, mas saiba que eu e meu marido enviamos à senhora e ao sr. Dunbar a nossa mais sincera solidariedade por sua trágica perda.

Nós já nos encontramos, contudo. Apenas uma vez, quando estivemos comprando o enxoval escolar para nossas filhas, na Medways, em Penzance. Lembro-me bem da ocasião, e espero que a senhora não se imagine recebendo uma carta enviada por uma total estranha.

Convidei Judith a vir passar as férias da Páscoa conosco. Já a tivemos em nossa casa durante um fim de semana, e ela foi uma hóspede encantadora, além de companhia perfeita para a minha travessa Loveday. Nossa casa é grande, com muitos quartos de hóspedes, e Judith já se sente à vontade em meu simpático quarto rosa, que de agora em diante passará a ser seu, pelo tempo que quiser. Edgar, meu marido, já tomou providências para que os pertences de Judith sejam trazidos de Windyridge para cá. Um dos homens irá até lá com um caminhão da propriedade, e tenho certeza de que as empregadas da sra. Forrester, que ainda estão na casa, ajudarão a embalar as roupas dela e o que mais for preciso.

Eu lhe prometo que sua filha será muito querida e tratada com afeição. Entretanto, não a reteremos conosco, pois sei que ela tem parentes em Plymouth, bem como avós em Devon, os quais provavelmente desejará visitar. Há também uma antiga amiga de escola em Porthkerris, e sei que igualmente a srta. Catto ficaria feliz recebendo-a em sua casa, em Oxford, em qualquer ocasião. Entretanto, é bom para Judith saber que tem alguma espécie de segurança, e Edgar e eu faremos o possível para que ela se sinta assim.

Por favor, não pense que, pelo fato de estar aqui, Judith nos cause problemas ou trabalhos a mais. Temos empregados suficientes, e Mary Millyway, que foi ama de Loveday, ainda vive conosco. Ela fica de olho nas meninas, além de cuidar de seu bem-estar, e se estou em Londres, o que acontece freqüentemente, então a minha querida Mary Millyway é muito mais responsável do que eu jamais poderia ser.

Se estou em Londres, o que acontece freqüentemente...

A concentração de Diana dispersou-se. Largando a caneta, recostou-se na cadeira e, através da janela, contemplou o brumoso jardim de abril, os narcisos agitados pelo vento, o verdor recente das árvores, o mar enevoado. Com os feriados da Páscoa quase em cima dela, precisamente agora não era o momento mais indicado para escapar,a porém ela levara muito tempo sem ir a Londres e, de repente, como uma droga, Diana simplesmente ansiava pela partida.

Londres significava sofisticação, excitamento, velhos amigos, lojas, teatros, galerias de arte, música. Jantar no Berkeley e no Ritz, ir de carro a Ascot, no Dia da Taça de Ouro, almoçar de maneira clandestina no The White Tower com o marido de alguma outra mulher ou dançar pela madrugada no Mirabel, no Bagatelle ou no Four Hundred.

A Cornualha era, naturalmente, o lar. Nancherrow, no entanto pertencia a Edgar. A Cornualha era a família, filhos, criados, convidados. Londres, ao contrário, era dela própria, de mais ninguém. Diana havia sido filha única, com uma fortuna imensa e pais idosos. Quando seu pai morreu, a propriedade dele em Gloucestershire e a casa alta em Berkeley Square foram herdadas, juntamente com seu título, Lorde Awliscombe, por um primo afastado. Entretanto, por ocasião do casamento aos dezessete anos com Edgar Carey-Lewis, parte do considerável dote de Diana incluíra o chalé de Cadogan Square. "Você irá morar na Cornualha", havia dito seu pai, "mas imóveis são sempre um bom investimento. E, às vezes, faz sentido possuir um canto só seu." Ela não questionou o raciocínio por trás de tal declaração, mas nunca deixara de ser grata pela previsão e percepção do pai. Por vezes ela costumava perguntar-se se teria sobrevivido sem isso, porque somente lá, dentro dos muros miniaturais de sua casinha, é que conseguia realmente sentir que pertencia a si mesma.

Um trecho de música deslizou por sua mente. Uma anelante canção de Noel Coward, a cujo som ela e Tommy Mortimer haviam dançado durante sua última noite, no Quaglio's.

- Eu acredito

Que quanto mais você amar um homem,

Mais dará seu coração

E mais terá a perder...

Diana suspirou. Quando os feriados da Páscoa terminarem, prometeu a si mesma, eu irei. Levarei Pekoe e irei a Londres, dirigindo o meu Bentley. Aí está algo para pensar. Algo com que sonhar. A vida não tem sentido, se não houver algo por que ansiarmos. Animada pela perspectiva, ela tornou a pegar a caneta e acomodou-se para terminar sua carta a Molly Dunbar.

Por favor, não se preocupe nem um pouco. Judith será feliz, tenho certeza. Durante os feriados mais prolongados, a casa está sempre cheia de amigos e com a família; se ela adoecer ou acontecer algum imprevisto, eu lhe comunicarei o fato imediatamente.

Espero que esteja gostando de Cingapura e de sua nova casa. Deve ser maravilhoso um clima quente o tempo todo.

Com os meus melhores votos de felicidades,

Cordialmente,

Diana Carey-Lewis

Pronto, tarefa encerrada. Ela passou o mata-borrão sobre sua assinatura, releu as folhas escritas, depois as dobrou em um grosso maço e as envelopou. Passou a língua na aba gomada e a colou pressionando com o punho. Em seguida escreveu o endereço que a srta. Catto lhe havia ditado pelo telefone.

Tudo feito. Dever cumprido. Edgar ficaria deliciado com ela. Diana levantou-se da secretária, Pekoe desenovelou-se de seus pés e, juntos, os dois saíram do quarto, desceram o comprido corredor e chegaram ao saguão. Ali, na mesa redonda no centro do piso, havia uma salva de prata expressamente para recolher correspondência. Diana jogou a carta na salva. Cedo ou tarde alguém, provavelmente Nettlebed ou Edgar, veria a carta, colocaria um selo e a poria no correio.

Eu acredito

Que quanto mais você amar um homem,

Mais dará seu coração

E mais terá a perder.

Tudo feito. E, dentro de um mês, ela estaria seguindo para Londres. Subitamente de coração leve, ela inclinou-se, tomou Pekoe nos braços e lhe beijou o topo da cabeça lisa e suave.

— E você irá comigo — prometeu a ele.

Dito isto, ambos cruzaram a porta da frente e saíram para o frio e úmido frescor da manhã de abril.

Colégio Santa Úrsula Sábado, 11 de abril de 1936

Queridos mamãe e papai,

Obrigada por enviarem o cabograma à srta. Catto, dizendo que posso passar a Páscoa com os Carey-Lewis. Como eu já lhes contei, a srta Catto foi muito gentil ao sugerir que eu poderia ficar com seus pais em Oxford, porém preferiu adiar o convite, dizendo que poderei ir lá em outra ocasião, que ela não ficaria ofendida. Em realidade, foi a própria srta. Catto quem tomou a decisão por mim.

Hoje é o primeiro dia dos feriados da Páscoa, são dez e meia da manhã e continuo aqui, mas alguém de Nancherrow virá apanhar-me às onze. Minha bagagem já está toda do lado de fora da porta principal, mas como não chove, então está tudo bem. É curioso a gente ficar na escola com apenas algumas pessoas da equipe; o ambiente se transforma, e estou escrevendo esta carta na Sala de Estar das Alunas, e soua única pessoa aqui dentro. Estar por conta própria torna tudo muito mais agradável, como se eu fosse uma pessoa crescida, e não apenas uma garota. O curioso é que tudo fica também com um cheiro muito diferente — não aquele das pessoas ou do pó de giz — exceto o fedor do cachimbo do homem dos serviços gerais. Ele aparafusa maçanetas nas portas, conserta janelas e fuma seu fedorento cachimbo o tempo todo.

Não fui ontem para casa, com Loveday, porque o sr. Baines quis levar-me a Truro para comprar uma vitrola. Ele me disse que já comunicou a vocês a grande gentileza de tia Louise, deixando-me um legado em seu testamento. Ainda nem consigo acreditar que seja verdade, e vou demorar algum tempo para acostumar-me a isso. Sinto um pouco porjess, mas acho que, no momento, ela ainda é pequena demais para ficar contrariada a respeito de algo assim. De qualquer modo, o sr. Baines veio ontem à tarde e me levou de carro a Truro. Nunca estive lá antes. É uma cidade bonita e muito antiga, com uma catedral e inúmeras ruazinhas estreitas, o final do rio formando curvas, com barcos ancorados. Muitas árvores descem até a beira da água, e vi lá o palácio do Bispo. Depois de fazermos as compras (a vitrola e três discos), fomos tomar chá no "Leão Vermelho", e ele explicou que preciso ter uma mesada. Então, abriu uma conta de poupança postal para mim, na qual irá depositar cinco libras a cada mês.

Parece-me uma quantia exorbitante, e acho que não a gastarei, em vez disso poupando-a para ganhar os juros. O sr. Baines explicou-me tudo isso. É um homem muito educado, de modo que não me sinto nem um pouco acanhada em sua companhia. Depois disso voltamos a Penzance, ele me levou até sua casa e conheci sua família. Havia um bando de crianças pequenas fazendo o barulho mais terrível, e o bebê cuspia o pão com manteiga, além de derrubar seu leite. Ainda pior do que Jess, em suas maiores pirraças. Ele acha que Windyridge deve ser vendida. Já encontrou outro emprego para Edna e Hilda, e...

Judith! — chamou a inspetora, em sua costumeira e mandona agitação. — Pelo amor de Deus! Estive à sua procura em todo canto. que está fazendo? O carro de Nancherrow já chegou e eles estão esperando. Vamos, apresse-se!

Tão rudemente interrompida, Judith levantou-se de súbito, procurando juntar as folhas de sua carta e enroscar a tampa da caneta-tinteiro ao mesmo tempo.

Sinto muito, inspetora. Eu escrevia para minha mãe...

Nunca vi ninguém assim. Não há tempo para terminar, então.

Adie a carta e venha comigo. Já pegou seu capote e o chapéu? Todos os seus pertences...

A impaciência dela era contagiosa. Judith enfiou de qualquer modo a carta inacabada dentro de sua pasta, guardou a caneta-tinteiro e ocupou-se com os fechos. A inspetora juntou tudo, quase antes da pasta estar fechada. E quando Judith vestiu o capote e enfiou o chapéu na cabeça, ela já estava a caminho, uma azáfama de avental engomado cruzando a porta e descendo o comprido corredor encerado. Judith precisou andar depressa, a fim de emparelhar com ela. Desceram a escada, cruzaram o refeitório, o vestíbulo, e saíram pela porta da frente

Houve apenas uma fração de segundo para Judith admitir que fazia uma bela manhã, com o céu de um azul límpido e nuvens velejando além do cheiro suave da chuva que caíra durante a noite. Sua bagagem já fora acomodada no carro, que esperava no centro do caminho de cascalhos, em esplêndido isolamento. Não o Daimler e nem o Bentley, mas um velho furgão de enormes proporções, apainelado em madeira e de chassi bem acima do chão, como um ônibus. Ao lado dele, encostados ao capô e conversando em boa camaradagem, duas figuras masculinas. Uma era Palmer, um dos jardineiros de Nancherrow, usando suas velhas roupas de trabalho e, em deferência à ocasião, um desgastado quepe de motorista. O outro era um estranho, jovem e louro, vestindo um pulôver branco de gola pólo e calças de veludo cotelê. Um estranho. Entretanto, ao ver a inspetora e Judith emergindo através da porta, ele afastou o corpo do furgão e cruzou o caminho de cascalho para encontrá-las. Quando chegou perto, Judith percebeu que não era um estranho, em absoluto, porque o reconheceu pelas muitas fotos que o retratavam, em Nancherrow. Aquele era Edward. O irmão de Loveday. Edward Carey-Lewis.

— Olá — disse ele, estendendo a mão. — Você é Judith. Como vai? Eu sou Edward.

Ele tinha os olhos azuis da mãe e traços fortes, atarracados. Estatura de adulto, ombros largos, mas ainda com um rosto juvenil de garoto, porque a pele era bronzeada, muito lisa e de compleição viçosa, o sorriso amistoso revelando espontaneamente os dentes alvos e regulares. A despeito da informalidade de suas roupas, dos velhos e cambaios sapatos de couro, ele exalava uma encantadora limpeza, tipo uma camisa lavada e pendurada ao sol para secar. Seu aparecimento ali era tão inesperado e tão glamourosamente adulto, que Judith desejou não ter enfiado seu hediondo chapéu com tanta pressa e dispor de tempo para pentear o cabelo. Entretanto, polidamente, apertou a mão dele.

—Olá.

Pensávamos que você tinha esquecido de vir. Chegamos muito cedo eu sei, mas temos que fazer algumas coisas em Penzance. Muito bem, está tudo no carro. Podemos ir?

Sim, naturalmente. Adeus, inspetora.

Adeus, meu bem. — Por trás dos óculos, os olhos da inspetora cintilaram com o excitamento despertado por um fugidio contato com a vida da classe superior; o furgão, o motorista, o rapazinho simpático e seguro de si. — Bem, tenha boas férias.

— Sim, eu terei, e desejo o mesmo para a senhora...

— Obrigado por encontrá-la, inspetora... —Desenvolto, Edward incumbiu-se da situação, aliviando a inspetora da pasta de Judith, que ela ainda segurava, e depois, com um toque de mão nas costas, indicando à jovem que entrasse no furgão. — E — acrescentou ele, por sobre o ombro — diga à srta. Catto que tomaremos conta dela direitinho.

Entretanto, a inspetora não voltou logo para dentro. Ficou parada à porta, o avental e o véu agitando-se à brisa, olhando enquanto eles subiam para o furgão, batiam as portas com força e iam embora. Olhando para trás, enquanto desciam sacolejando pela alameda mar-ginada de rododendros, Judith ainda a viu lá, esperando, até que o volumoso veículo finalmente desaparecesse de vista.

Acomodando-se em seu lugar, ela tirou o chapéu.

—Nunca vi a inspetora tão amistosa.

— Pobre velhota... Provavelmente, será a coisa mais excitante que irá acontecer-lhe durante todo o dia. —Uma mecha de cabelos louros lhe caiu na testa, ele ergueu a mão e a jogou para trás. —Desculpe por sermos nós que fomos apanhá-la, mas papai tinha uma reunião ou coisa assim, e mamãe levou Loveday a um acampamento do clube de pôneis. Levamos um tempo incrível embarcando aquele infeliz pônei, mas walter Mudge foi com elas, de modo que mamãe não terá nada demasiado árduo para fazer, quando chegarem lá.

—- Onde é que eles foram?

— Oh, eu não sei. Parece-me que é uma grande propriedade, lá do outro lado de Falmouth. Você gosta de cavalos?

— Não particularmente.

— Ainda bem! Um na família já é mais do que suficiente. Pessoalmente, gosto mais de ficar longe deles. Uma extremidade morde e outra escoiceia, e eles são tremendamente desconfortáveis no meio. Por isso é que eu e Palmer estamos aqui. Você conhece Palmer, não?

Judith olhou para a nuca vermelha de Palmer.

— Já o vi em Nancherrow, mas acho que nem mesmo fomos apresentados.

— Acertou — disse Palmer, por sobre o ombro. — Sei tudo a seu respeito. Veio para ficar um pouco?

— Sim. Durante os feriados da Páscoa.

— Vai ser muito bom. Junte-se à multidão, é o que sempre digo.

— Dentro de mais um mês — explicou Edward — eu mesmo poderei ir buscá-la, porque então já estarei dirigindo. Legalmente, quero dizer. Já dirijo por Nancherrow, mas só poderei sair para a auto-estrada quando tiver dezessete anos. É um tremendo tédio, mas nada posso fazer, especialmente tendo um pai respeitador da lei, que ainda por cima é magistrado. Assim, tive que convocar Palmer para essa pequena excursão e deixar que ele fizesse o que fosse preciso.

— Eu não conhecia este furgão.

— É, acho que não conhecia mesmo. Ele só aparece em emergências ou ocasiões especiais. Tem uns trinta anos de idade, mas papai não se desfará dele, porque o acha duplamente conveniente como lugar para almoçar, durante suas caçadas em dias chuvosos. Ele também é bom para apanhar gente nas estações e carregar suprimentos, quando a casa está cheia. Você se incomoda, se não formos logo para casa. Preciso ir à Medways tirar medidas para um novo tweed e pareceu-me uma boa idéia matar dois coelhos de uma só cajadada. Importa-se de ficar perambulando um pouco?

— Não.

De fato, ela até ia gostar muito, porque perambular um pouco significava mais tempo passado na companhia daquele sedutor jovem-

— Não vai demorar muito, Você pode fazer algumas compras. Papai me deu uma nota de cinco libras e disse que eu poderia levá-la para almoçar. Ele falou qualquer coisa sobre The Mitre, mas eu acho este restaurante velho e formal. Além disso, fico um pouco aborrecido com rosbife e molho, de maneira que pensei se poderíamos escolher utro lugar. — Ele inclinou o corpo para diante. — Palmer, como é o nome daquele pub, em Lower Lane?

Não pode levar a garota para um pub, Edward. Ela é menor de idade.

Podemos fingir que é mais velha.

Não nesse uniforme de colégio, você não pode fazer isso.

Edward olhou para Judith. Ela desejou não enrubescer. Entretanto, ele disse apenas:

— Tem razão, acho que não posso mesmo.

Sentiu-se um animal, sendo examinado detidamente e considerado ainda impróprio para participar de uma corrida.

—Você pode ir a um pub, se quiser — replicou. — Eu comeria um sanduíche dentro do carro.

Ao ouvi-la, ele riu.

—Que garota acomodada você é! Bem, evidentemente não irá ficar sentada no carro. Encontraremos algum lugar formidável, que não seja The Mitre.

Judith nada respondeu. The Mitre sempre fora sua idéia de um lugar realmente caro e especial, aonde ser levada para almoçar. Agora, no entanto, parecia não apenas maçante, mas formal, ao passo que Edward tinha outras e certamente mais animadas idéias. Enfim, a qualquer lugar que fossem, ela esperava ser capaz de lidar com a situação, pedindo a bebida adequada, não deixando o guardanapo cair ou tendo que ir ao toalete no meio da refeição. Ser convidada para almoçar com Edward Carey-Lewis, sem dúvida era bem diferente de ser convidada para almoçar com o sr. Baines, mas, apesar de todas estas íntimas ansiedades, era impossível não se sentir excitada.

A essa altura estavam no centro da cidade, rodando ao longo da Alverton, em direção à Greenmarket.

-Eu gostaria que nos deixasse perto do banco, Palmer. Poderia voltar para apanhar-nos no mesmo lugar, dentro de duas horas.

Está bom para mim. Tenho duas incumbências a fazer para o coronel.

E também irá comer alguma coisa? almer pareceu divertir-se com a sugestão.

— Não se preocupe comigo.

—Está bem. E de uma coisa tenho certeza: você não é novo demais para o pub.

— Eu nunca bebo quando estou trabalhando.

—Bem, eu acredito, mas a maioria, não. Aqui está perfeito, Palmer. Deixe-nos descer.

Edward inclinou-se diante de Judith e abriu a porta. Por um momento, ela hesitou entre colocar ou não o chapéu outra vez. Usar um chapéu com o uniforme da escola era uma regra inquebrável, e jamais ousaria ficar de cabeça descoberta em época de aulas. Agora, entretanto, já estava em férias, sentia-se irresponsável e temerária. Por outro lado, quem a veria, e quem — chegada a hora de cuidar do que importava — se incomodaria? Assim, o odioso chapéu foi abandonado e deixado no piso do furgão. O imponente veículo começou a rodar, afastando-se rua abaixo. Judith e Edward ficaram espiando, depois deram meia-volta e caminharam juntos pela calçada movimentada e cheia de sol, em direção à Casa Medways.

Era curioso voltar lá. O mesmo interior sombrio, os balcões polidos, as empregadas de golas altas. Entretanto, estava diferente. Porque da vez anterior, ela entrara ali com sua mãe, ambas embrenhan-do-se às apalpadelas pelo caminho que levava a uma nova vida de separação e ao Colégio Santa Ursula. E, naquele dia, ela vira Diana e Loveday Carey-Lewis pela primeira vez. Sem ao menos saber seus nomes, observara-as disfarçadamente, atônita pelo companheirismo das duas e pela beleza, pelo encanto de Diana. Na ocasião, não houvera a menor intuição, a mais remota idéia de como se tornaria íntima daquelas duas intrigantes e borboleteantes personalidades.

No entanto, acontecera. E aqui estava ela, menos de um ano mais tarde, entrando casualmente na loja com o glorioso irmão mais velho de Loveday, e já aceita como membro do clã Carey-Lewis. O crédito, contudo, não era todo seu, e ela sabia disso. De um modo extraordinário, as circunstâncias tinham assumido o controle de sua vida. Ha bem pouco tempo atrás, o futuro nada mais prometia além de despedir-se da família e conformar-se submissamente com quatro anos de colégio interno e tia Louise. Não obstante, tia Louise tinha morrido e sua ausência abrira as portas de Nancherrow para sua sobrinha, permitindo-lhe perspectivas de oportunidades e possibilidades que pareciam estender-se para sempre.

— Bom-dia, Edward.

Suas profundas e um tanto perturbadoras reflexões foram interrompidas, de modo bastante oportuno, pelo aparecimento do alfaiate saindo de um penumbroso aposento dos fundos. Alertado, o homem já estava preparado para entregar-se ao trabalho, com sua fita métrica pendendo do pescoço e a cabeça calva reluzíndo como que polida.

— Bom-dia, sr. Tuckett.

Ele e Edward apertaram-se as mãos. Pelo visto, a ocasião era de tradicional formalidade. Os olhos do sr. Tuckett foram até Judith. Ele franziu a testa.

— Esta não é a jovem Loveday, pois não?

— Céus, não! É sua amiga, Judith Dunbar. Está hospedada em Nancherrow.

—Bem, isso explica. Achei que não podia ser Loveday. Muito bem. O coronel falou comigo esta manhã pelo telefone, e disse que você estava a caminho. Tweeds para caçar, disse ele.

— Correto. Minhas roupas infelizmente não me cabem mais.

O sr. Tuckett olhou para Edward e permitiu-se a sombra de um sorriso.

—Sim, percebo o que quer dizer. Devem estar alimentando-o bem, no lugar em que você se encontra. E agora, quer escolher o tweed primeiro ou tiramos logo as medidas?

— Vamos primeiro às medidas. Para terminar de uma vez.

— Perfeitamente. Se quiser acompanhar-me...

— Você ficará bem, Judith?

— Claro. Estarei esperando.

— Encontre uma cadeira.

Entretanto, quando eles desapareceram no santuário do sr. Tuckett, discretamente situado por trás de uma cortina preta, ela subiu ao andar de cima, ao departamento escolar, e comprou três pares de meias terminando nos joelhos, para que nunca mais, a menos que ordenada, tivesse que usar novamente as grossas meias compridas de algodão marrom. Por algum motivo, este pequeno gesto de desafiadora independência a deixou muito mais segura de si. Satisfeita, desceu prontamente para o andar de baixo, encontrou uma cadeira e acomodou-se nela, a fim de esperar por Edward.

Foi uma longa espera, mas, eventualmente, os dois apareceram de trás da cortina, Edward ainda vestindo o suéter.

— Lamento ter demorado — desculpou-se ele. —Está tudo bem.

O sr. Tuckett apressou-se em explicar:

— Precisei refazer todas as medidas anteriores. Agora, as medidas são para um homem. Este traje de Edward para caçada irá durar-lhe um bom tempo.

Em seguida foi a vez de escolherem o tweed, o que durou quase que o mesmo tempo das medidas. Surpreendentemente, Edward era bastante exigente. Foram trazidos grossos livros de amostras, empilhados em cima do balcão e devidamente folheados. Houve muita discussão sobre as relativas vantagens do tweed Harris e do tweed Yorkshire. O padrão seria em dentículo, espinha de peixe ou ele preferia um tecido liso? As amostras foram folheadas, estudadas e novamente folheadas. Por fim, Edward fez sua escolha — um tecido escocês à prova de espinheiros, em um tom verde-lama, com um pálido axadrezado vermelho-fulvo. Considerando a escolha, Judith aprovou-a.

—A cor se confundirá com você, tornando-o praticamente invisível no matagal rasteiro, sendo também perfeita para comparecer a um almoço ou ir à igreja.

O sr. Tuckett ficou radiante.

— Exatamente, senhorita. — Ele dobrou a ponta da amostra do tweed escolhido, prendendo-a com um alfinete. — Farei o pedido imediatamente e começarei a trabalhar assim que o tecido chegar. Teremos o seu traje de caça pronto antes que os feriados terminem. E agora, há mais alguma coisa de que esteja precisando? Camisas? Gravatas? Meias? — Ele baixou a voz discretamente. — Roupas de baixo?

Edward estava bem abastecido. Chegara o momento de ir embora. O sr. Tuckett acompanhou-os até a porta, com tantos floreios e dignidade como o próprio Nettlebed. Depois despediu-se deles.

A salvo na calçada, Edward soltou um suspiro de alívio.

— Ufa! Terminou! Agora, vamos tomar um drinque e comer alguma coisa.

— Pensei que você se divertisse escolhendo a roupa.

— Até certo ponto, mas demora muito.

— Eu adorei o tweed.

— De qualquer modo, melhor que o padrão denticulado. Pelo menos não ficarei com a aparência de um corretor de segunda categoria. Venha, vamos indo...

Ele colocou a mão sob o cotovelo de Judith e a guiou através da rua, escapando por pouco de dois carros e uma bicicleta.

— Para onde vamos? — perguntou Judith, caminhando mais depressa para emparelhar com ele, ao seguirem pela calçada.

— Não sei. Encontraremos algum lugar.

O que ele encontrou foi um pub, mas com um jardim, de modo que Judith não precisou entrar no bar. Era um jardim muito pequeno, com um muro baixo de pedra, por cima do qual se tinha uma boa visão do porto e do além-mar. Havia algumas mesas e cadeiras ao acaso, sendo o lugar razoavelmente abrigado do vento e, portanto, não muito frio. Edward acomodou sua acompanhante em uma das mesas e perguntou-lhe o que queria beber. Ela preferiu Orange Corona, que continuava sendo a sua favorita. Edward riu e entrou no prédio, inclinando a cabeça para não esbarrar no portal baixo. Voltou pouco depois, com o refrigerante de laranja para ela, uma caneca de cerveja para ele e um cardápio de almoço, escrito a mão em uma cartolina surrada pelo uso.

— Receio que isto aqui não seja tão sofisticado como The Mitre, mas, pelo menos, ficamos livres daqueles sussurros insuportáveis, rompidos apenas pelo som de arrotos ou, pior ainda, pelo raspar de leve dos talheres nos pratos. Ele franziu a testa para a lista de pratos e baixou os cantos da boca em uma careta exagerada. — Carne recheada com massa. Salsichas e purê. Pastelões da Cornualha feitos em casa. Vamos aos pastelões!

— Tudo bem.

— Você gosta de pastelão?

— Adoro.

— Para sobremesa, poderá pedir bolo de amêndoas, geléia ou um sorvete. Também feitos em casa.

-— Não haverá espaço, quando eu terminar a massa.

— Provavelmente não.

Ele ergueu os olhos, quando uma mulher de avental saiu do pub para saber o que eles iam comer. Edward fez o pedido com ares de grande importância, que desmentiam seus dezesseis anos. Maravilhada, Judith o achou, de fato, extraordinariamente sofisticado.

— Queremos os pastelões.

— Num momentinho. — Ele sorriu para a mulher, e ela acrescentou: — Meu bem.

Ali era um bom lugar para ficar. Edward tinha razão. Muito melhor do que The Mitre. Judith não sentia frio, porque estava de capote, e era divertido sentar-se ao ar livre, com o céu acima da cabeça, as nuvens arrastando-se e as gaivotas revoluteando, deslizando, fazendo sua ronda interminável em torno dos mastros e conveses dos barcos pesqueiros. A maré estava alta e, na extremidade mais distante da baía, o Monte de São Miguel parecia flutuar sobre o mar azul, as ameias do castelo tão nítidas, como que recortadas no ar transparente.

Recostando-se em sua cadeira, ela bebericou o refrigerante. Perguntou:

— Quando foi que você chegou?

— Há dois ou três dias. Athena continua na Suíça. Só Deus sabe se ou quando ela virá para casa.

— Eu não sabia que você tinha voltado.

— Por que deveria saber?

— Loveday podia ter-me contado.

—Vã esperança! Ela não pensa em mais nada além daquele infeliz Tinkerbell. —No outro lado da mesa de madeira, ele sorriu de repente. —Você gosta da perspectiva de passar um mês inteiro em Nancherrow ou isso a deixa deprimida?

Judith teve a perspicácia de perceber que estava sendo espicaçada.

— Não. Nada de ficar deprimida.

O sorriso dele desapareceu. Subitamente sério, falou:

— Mamãe me contou sobre sua tia ter perdido a vida daquela maneira. Um horror. Eu sinto muito. Deve ter sido um choque e tanto para você.

—Sim, foi, mas infelizmente ela nunca dirigiu com muito cuidado.

— Eu fui à casa dela• — disse ele.

— Você foi lá?

— Fui. Eu e Palmer fomos incumbidos de pegar o caminhão da propriedade e trazer nele todas as suas coisas. Era o meu primeiro dia de liberdade, e trabalhei como um cão.

— Foi muito gentil de sua parte.

— Não tive muita opção.

— Como... como Windyridge parecia?

— Um tanto ermo.

— Edna e Hilda estavam lá?

— Está falando das duas empregadas? Sim, estavam ainda no controle e nos ajudaram a carregar suas coisas. Encontramos tudo pronto e embalado. Trabalho bem feito.

— Aquela sempre foi uma casa erma... — Judith gostaria de perguntar-lhe se vira Billy Fawcett rondando por lá, espiando tudo o que acontecia, mas decidiu ser melhor não fazer perguntas. Coçou o nariz. —... e cheia das curiosas relíquias da vida de tia Louise na índia. Peles, patas de elefante e tambores de cobre.

— Não cheguei a entrar nessa parte da casa, de modo que não posso comentar as preferências dela.

— E as minhas coisas?

— Creio que Mary Millyway cuidou delas. Arrumou seus pertences, provavelmente tirou suas roupas das malas... Mamãe me disse, muito firmemente, que o quarto rosa agora é seu.

— Ela tem sido gentil demais.

— Mamãe nem liga. Além do que, ela gosta de muita gente em casa. — Ele ergueu os olhos. — Oh, viva, aí vêm os nossos pastelões! A fome já começava a me deixar fraco.

— Pois aí está, meu bem. — Os pratos foram deixados diante dos dois. — Acabe com eles e não haverá muita coisa errada com você.

De fato, os pastelões eram enormes, fumegantes e cheirosos. Judith pegou uma faca e cortou o seu em dois. Pedaços fervilhantes de carne e batata escorregaram para fora, por entre as dobras do pastelão. Ela sentiu o cheiro de cebola e ficou com água na boca. Uma brisa levantou-se do mar e lhe jogou o cabelo no rosto. Atirando-o para trás, Judith sorriu para seu acompanhante.

— Estou muito contente — falou, em um surto de alegria que era quase felicidade — por não termos ido comer no The Mitre.

Quando voltavam para Nancherrow, descendo rapidamente a ladeira que levava a Rosemullion, Edward teve outra de suas brilhantes idéias

— Vamos visitar a tia Lavinia — disse. — Ainda não a vi, e talvez possamos convencer Isobel a dar-nos uma xícara de chá.

— Ainda estou entupida de pastelão.

—Eu também, mas que diferença faz? —Inclinando-se para frente ele bateu no ombro sólido de Palmer. — Ei, Palmer, você não vai ter que voltar ao trabalho, vai?

— Trago aqui as coisas que o coronel pediu. Ele está esperando. Eu disse que viria direto para cá.

—Nesse caso, você pode subir a ladeira e desembarcar-nos. Depois voltaremos para casa a pé.

— Você manda.

— Certo. Então, vamos. — Edward jogou para trás o cabelo que lhe caía na testa. —Você gostaria de ir lá, não, Judith? Tia Lavinia está sempre disposta a uma conversa.

— Se é o que você quer, sim, naturalmente, mas... Será que tia Lavinia não se incomoda, se aparecermos lá sem avisar?

— Ela não se incomoda. Sempre adorou boas surpresas.

— São apenas três e meia. Talvez esteja descansando.

— Ela nunca descansa — informou Edward, laconicamente.

De fato, tinha toda razão, porque tia Lavinia não estava descansando. Foram entrando na casa, sem nada mais do que um "Com licença!” e a encontraram em sua sala de estar banhada de sol, sentada diante da secretária e pondo a correspondência em dia. Na lareira crepitava uma pequena chama e, como antes, o encantado aposento brilhava e cintilava de claridade refletida. Quando a porta foi aberta de súbito, ela se virou na cadeira, erguendo a mão para tirar os óculos. Ao ser tão rudemente perturbada, sua expressão foi de uma leve surpresa, porém durou apenas um segundo. Reconhecer Edward em pé diante dela fez suas feições se encherem de contentamento.

— Meu querido! — exclamou, largando a caneta. — Que esplêndida surpresa! Edward! Não sabia que você estava em casa.

Ela estendeu um braço, ele aproximou-se para abraçá-la e beijá-la. Judith reparou que ela agora estava vestida bem menos formalmente do que para aquele almoço de domingo, usando uma saia encorpada de tweed, meias grossas e sapatos esportivos. Um comprido cardigan abotoava-se sobre uma blusa de seda creme, revelando um brilho de corrente de ouro e de um fio de pérolas.

— Resolvemos dar uma chegadinha aqui. Estamos vindo de Penzance, a caminho de Nancherrow. Pedimos a Palmer que nos deixasse aqui e depois voltaremos andando para casa.

— Céus, que energia! E Judith também... Melhor ainda! Em seu uniforme do colégio. Acabou de chegar? Que agradável surpresa para mim! Bem, agora sentem-se os dois e fiquem à vontade. Edward, conte-me tudo o que andou fazendo... Há quanto tempo voltou?

A velha senhora recostou-se em sua cadeira, Edward puxou uma banquetinha baixa e Judith foi sentar-se na janela, de onde ficou contemplando os dois e ouvindo, ficando a par da vida em Harrow e da possibilidade dele tornar-se Chefe do Internato, e da vitória ou da derrota do time de rúgbi. Ela o interrogou sobre resultados de exames e a possibilidade de ir para Oxford ou Cambridge. Depois falaram de amigos comuns, e do rapaz que Edward trouxera para passar os feriados de verão em casa, deixando Judith maravilhada com o fato de uma criatura daquela idade ser tão astuta e interessada. Era incrível como uma pessoa que nunca tivera família própria pudesse ser tão perceptiva em relação à geração mais jovem, tão a par dos aspectos realmente importantes na vida dessa geração. Concluiu que talvez fosse por ela ter estado sempre profundamente envolvida com os filhos dos Carey-Lewis, e também porque eles nunca lhe haviam permitido que ficasse fora de contato.

Finalmente ela já tinha ouvido tudo, estava contente e precisava apenas ficar atualizada.

—E vocês dois, o que andaram fazendo hoje?

Edward lhe contou. Sobre terem ido apanhar Judith no Santa Úrsula, comentou a ida ao alfaiate, a fim de tirar medidas para o novo traje, e falou dos pastelões comidos no jardim do pequeno pub.

— Oh, como os invejo! Nada mais delicioso do que um bom pastelão comido ao ar livre. Bem, imagino que estejam com fome novamente... — Ela ergueu o punho do cardigan e consultou o pequeno relógio de ouro. — Quase quatro da tarde. Por que não dá um pulo até a cozinha, Edward querido, e pede a Isobel para trazer-nos uma bandeja de chá? Com alguma sorte, ela pode ter um resto de bolo amanteigado para nós. Ou talvez torradas quentes e outros quitutes quem sabe?

— Excelente idéia. Eu já me perguntava quando é que a senhora tocaria no tema do chá...

Edward ficou em pé, espreguiçou-se com vontade e partiu em busca de Isobel. Assim que a porta se fechou atrás dele, tia Lavinia se virou para Judith.

—Agora posso falar com você. — Ela pôs os óculos e inspecionou detidamente sua visitante. Tinha ficado séria outra vez. — Eu não queria falar na frente de Edward, mas fiquei muito chocada, quando soube que sua tia havia perdido a vida naquele terrível acidente de carro. Você está bem?

— Sim, estou.

—Por que tinha de acontecer uma coisa tão trágica, principalmente com você, que tem a família no estrangeiro...?

—Teria sido bem pior se todos não tivessem sido tão gentis. A srta. Catto, o sr. Baines, e Diana. Todo mundo, enfim.

— Diana tem um espírito muito generoso. E o mais importante é você ter-se tornado tão bem-vinda em Nancherrow. Foi um grande consolo para mim, quando ela me falou dos planos que tinha a seu respeito. Então, parei de me preocupar com você. Isso significa que conta com um lar amoroso para quando aqui vier, e que nada é insuportável se tiver uma espécie de família, ainda que não seja a sua própria.

Judith achou que era necessário explicar.

— Na realidade, eu tenho alguns parentes neste país: minha tia Biddy e o tio Bob. São excelentes criaturas, mas justamente agora ela está bastante ocupada com uma nova casa, sem falar que tanto meu tio Bob quanto meu primo Ned estão na Marinha. Entretanto, sempre vão em casa e sei que também sempre posso estar com eles. Contudo, mesmo assim, estar em Nancherrow torna tudo diferente.

— E que casa tão aconchegante! Há sempre coisas acontecendo por lá. Às vezes penso que o pobre Edgar fica bastante confuso. Tenho certeza de que será feliz lá, querida Judith. E lembre-se: se por algum motivo sentir-se um pouco triste, deprimida ou solitária, se quiser falar sobre coisas ou apenas discutir problemas, estou sempre aqui. Na Dower House. Aliás, depois de anos casada com um advogado, tornei-me excelente ouvinte. Você não vai esquecer, não é mesmo?

Não, senhora. Não vou esquecer.

— Bem, posso ouvir Edward voltando. Eu o mandei à cozinha porque Isobel o adora e, como geralmente só tenho o meu chá depois das quatro e meia, não desejaria que houvesse um rosto rabugento matutando na cozinha. Para Edward, no entanto, ela preparará torradas e petiscos ligeiros. E, no resto do dia, ficará exibindo sorrisos de felicidade.

Nancherrow,

No mesmo dia, porém mais tarde.

Agora posso terminar a carta. Como vêem, estou aqui, de volta ao meu mesmo quarto, só que agora é meu de verdade, porque tenho nele todas as minhas coisas. Elas me parecem inteiramente à vontade, e Mary Millyways moveu a cama, a fim de ganhar espaço para minha secretária e meus livros. São seis da tarde, temos um belo anoitecer e, além da minha janela, posso ouvir os pombos no pátio. Se esticar a cabeça bem para fora da janela, posso até ouvir o mar.

Foi uma surpresa e tanto. Edward, o irmão de Loveday, apareceu no colégio para trazer-me, com um dos jardineiros dirigindo o furgão do Coronel Carey-Lewis. Fomos a Penzance e à Medways, porque ele precisava tirar medidas para um novo traje, e depois saímos para almoçar. Na volta, visitamos tia Lavinia —a sra. Boscawen, na Dower House —tendo tomado chá com ela. Comemos torradas quentes com o chá, e depois fomos para casa caminhando, a distância sendo bem maior do que me lembrava, de modo que foi um alívio finalmente chegar. Edward é muito simpático. Tem quase dezessete anos, estuda em Harrow e irá para Oxford, creio, quando deixar a escola. Ele é que foi a Windyridge apanhar todas as minhas coisas. Viu Edna e Hilda, que continuam lá, mas já tendo um novo emprego providenciado.

Ainda não estive com Loveday e Diana, porque foram a uma reunião em um clube de pôneis e ainda não voltaram. Também não vi o Coronel Carey-Lewis. Estive apenas com Mary Milly-ways, que me ajudou a desembalar todas as minhas roupas e a colocá-las nos lugares. Mais tarde, quando descer para jantar, verei todos eles.

Por favor, mamãe, escreva logo e me conte tudo o que tem feito, a fim de que eu possa imaginar. Peça também a papai que tire alguns instantâneos de Jess, para que eu veja se ela está crescendo. Quero saber se está indo para a escola ou tendo aulas. Mande contar também se o boneco-espantalho continua vivo ou se já foi comido por alguma serpente!

Esta carta parece um tanto confusa, mas é porque há muito para contar. As coisas têm mudado tão depressa, que às vezes fica bastante difícil memorizá-las, e de tempos em tempos me vejo pensando se não teria esquecido de contar-lhes alguma coisa. Eu gostaria de estar aí e poder falar a respeito de tudo isso. Suponho que crescer sempre envolve um pouco de solidão.

Recebam muitos beijos e, por favor, não se preocupem. Eu estou bem.

Judith

 

                         1938

Em Cingapura, no bangalô da Orchard Road, Molly Dunbar acordou com um sobressalto, suada de pânico, consumida por algum medo incompreensível e inominável. Quase em lágrimas, perguntou-se, O que há de errado? O que aconteceu? Era ridículo, porque ainda nem escurecera. A tarde ia pelo meio, e o enorme mosquiteiro continuava dobrado e preso ao teto alto. Sesta. Nada de espíritos maléficos, de serpentes ou intrusos noturnos. Não obstante, seus dentes estavam cerrados, a respiração curta e irregular, o coração disparado como nas batidas de um tambor. Por um ou dois momentos, ela simplesmente permaneceu rígida, esperando ocorrer fosse-o-que-fosse. Entretanto, nada ocorreu. O pânico amainou lentamente. Um pesadelo, (( talvez, porém qualquer sonho — caso tivesse havido um — fugira-lhe da mente. De maneira deliberada, ela procurou normalizar a respiração, forçou os músculos tensos ao relaxamento. Após um pouco, o terror irracional evaporou-se, e o abismo por ele deixado se foi enchendo lentamente com uma espécie de passivo e exausto alívio.

Então, não era nada. Apenas sua própria imaginação, voando em todas as direções, como de hábito, mesmo quando ela descansava, na segurança de seu próprio quarto de dormir, com o marido ao lado. Seus olhos moveram-se pelo ambiente familiar, buscando tranqüilidade e alguma sorte como consolo. Paredes brancas, piso de mármore; Seu toucador, vestido de musselina branca e franzida, o elaborado guarda-roupa de teca, maravilhosamente trabalhado e esculpido. Poltronas de ratan e uma cômoda de cedro. Após esta, uma porta aberta dava para o quarto de vestir de Bruce e, no teto alto, revolviam-se as Pas do ventilador de madeira, sacudindo o ar pesado para uma Semelhança de frescura. Duas lagartixas encolhiam-se na parede oposta, quietas e inanimadas como broches bizarros espetados em uma lapela.

Molly olhou para seu relógio. Três horas de uma tarde de abril, e o calor era tão úmido, tão intenso, que se tornava quase insuportável. Ela estava nua por baixo de um fino penhoar de linho, e suas faces, seu pescoço, os cabelos e o final das costas encontravam-se salpicados de suor. No lado oposto da cama, Bruce dormia, ressonando levemente. Virando a cabeça, ela o fitou e invejou-lhe a capacidade de dormir, sem dar importância ao calor sufocante da tarde tropical. Molly sabia, no entanto, que ele acordaria às quatro em ponto, sairia da cama, tomaria uma ducha e, de roupas limpas, voltaria para o escritório, para trabalhar por mais duas ou três horas.

Ela espreguiçou-se, fechou os olhos, mas tornou a abri-los quase imediatamente. Era impossível ficar mais um só segundo deitada ali, acordada. Cautelosamente, para não acordar o marido, sentou-se e girou as pernas sobre o lado da cama, aconchegando ao corpo o leve penteador e enfiando os pés nos chinelos de tiras finas. Pisando suavemente, cruzou o quarto e passou pelas portas de persianas que davam para a varanda. Esta era ampla e sombreada, contornando todo o perímetro do bangalô, e seu teto inclinado impedia que os raios do sol passassem para o interior. Também ali, os oblíquos ventiladores giravam mais acima. Na extremidade mais distante, ao lado das portas abertas da sala de estar, agrupavam-se mesas e cadeiras. Era uma sala de descanso ao ar livre, onde Molly passava muito do seu tempo. Vasos pintados de azul e branco estavam cheios de hibiscos e laranjeiras em flor. Além da sombra da varanda, o jardim ardia sob um céu que o calor esbranquiçava. Nem uma só brisa agitava a palmeira, o frangipani ou a flor-da-floresta, mas enquanto ela esteve ali, um rato trepador escalou a haste de uma buganvília, provocando um chuveiro de flores. As pétalas flutuaram no ar e pousaram lentamente nos degraus da varanda.

Tudo estava profundamente silencioso. Jess, os criados e os cães continuavam dormindo. Molly caminhou ao longo da varanda, as solas de couro dos chinelos batendo contra o piso de madeira. Lá, ela afundou em uma das poltronas compridas de ratan, e deixou os pés pousados no banquinho apropriado para descansá-los. Ao longo desta poltrona havia uma mesa de junco, onde se reuniam todas as pequenas necessidades de sua vida ociosamente sedentária: seu livro, o estojo de costura, revistas, correspondência, a agenda (muito importante) e seu bordado. Naquele dia, como sempre, ali havia um exemplar do Times londrino, publicado três semanas atrás, que Bruce providenciara para que lhe fosse enviado da Inglaterra, em uma base regular. Ele dizia gostar de ler o que considerava "um noticiário adequado", embora Molly desconfiasse de que tudo quanto seu marido lesse, em qualquer profundidade, fossem os resultados do rúgbi e os escores do críquete.

Normalmente, ela não lia The Times. Agora, no entanto, por falta de algo melhor a fazer, apanhou jornal, desdobrou-o e o abriu. A data era quinze de março, e as manchetes saltaram diante de seus olhos como um espectro no escuro, porque, a doze de março, a Alemanha Nazista ocupara a Áustria.

Era uma notícia velha, naturalmente, porque eles já tinham sabido da ocupação através do rádio, três semanas antes, quase assim quando tivera lugar o chocante evento. Bruce, no entanto, embora taciturno, não comentara muito sobre o assunto, e Molly lhe ficara grata por isso, pois significava que podia, simplesmente, eliminá-lo da cabeça. De nada adiantava ficar pessimista. Talvez acontecesse alguma coisa que fizesse tudo voltar ao normal. Por outro lado, sempre havia muito mais em que ocupar seus pensamentos, como providenciar para que Jess tivesse suas aulas, elaborar cardápios com a cozinheira e manter atualizados os seus compromissos sociais. Estes últimos, em particular, ela considerava por demais exigentes.

Agora, no entanto... sozinha e sem ser observada, não havendo ninguém para comentar suas reações, ela reuniu coragem e resistiu à tentação de jogar para um lado as terríveis notícias. Havia uma foto. Hitler passando de carro com toda pompa pelas ruas de Viena, o veículo flanqueado por tropas germânicas, as calçadas tomadas pelas multidões. Ela estudou os rostos naquelas multidões e ficou perplexa Porque, embora alguns espelhassem claramente o horror do que finalmente acontecera, muitos se mostravam jubilosos, aplaudindo o novo líder e erguendo bandeiras com a negra suástica do nazismo. Era compreensível. Como algum patriota poderia receber bem semelhante invasão? Buscando alguma resposta a esta pergunta, ela começou a ler o relato de como tudo acontecera e, uma vez iniciada a leitura, não conseguiu mais interrompê-la, porque as palavras sombrias e a Prosa comedida lhe prenderam a atenção, desenhando um quadro extraordinariamente vivido da ultrajante sujeição. Era fato consumado.

E Molly perguntou-se, "se fora permitido que isto acontecesse, o que poderia, então, acontecer em seguida?"

Nada muito bom. Em Londres, no Parlamento, os ânimos eram sombrios. Winston Churchill discursara na Câmara dos Comuns. Durante anos ele havia sido tratado como uma espécie de Cassandra pregando a ruína e a destruição, enquanto outros cuidavam diligentemente dos próprios negócios. Agora, no entanto, parecia que tivera razão o tempo todo, e seus avisos tangiam como dobre de finados: "... a Europa é confrontada com um programa de agressão... a única escolha em aberto... submeterem-se ou adotarem-se medidas eficazes..."

Já era o bastante. Ela dobrou o jornal e o deixou cair no chão, ao seu lado. Medidas eficazes significavam guerra. Até uma tola como ela podia compreender a implicação. As nuvens tempestuosas que tinham surgido acima do horizonte da vida singela de Molly, ainda antes dela deixar a Inglaterra e zarpar para Colombo, não se tinham dissipado nem desaparecido, mas aumentado, acumulado. E agora ameaçavam escurecer a Europa inteira. E a Inglaterra? E Judith?

Judith. Molly sabia que devia envergonhar-se. Ela podia pensar nos outros, em nações já violadas e pessoas suprimidas, porém, acima de tudo, em sua mente estava a segurança de sua filha. Se houvesse uma guerra na Europa, se a Inglaterra fosse envolvida, então o que aconteceria a Judith? Não deveriam mandar buscá-la, imediatamente? Esquecer o colégio, abandonar todos os planos que haviam feito para ela e trazê-la para Cingapura, com toda a conveniente rapidez? A guerra jamais os alcançaria ali. Ficariam todos juntos novamente, e Judith estaria salva.

Contudo, ainda quando a idéia lhe ocorria, ela já estava certa de que Bruce não concordaria. Ardoroso defensor do Governo, Conservador fanático e leal patriota, ele não imaginaria nenhuma situação em que a Inglaterra pudesse ficar em perigo mortal, invadida ou subjugada. Se ela argumentasse, seu marido lhe lembraria a inexpugnabilidade da linha Maginot, a esmagadora superioridade da Marinha Britânica e o poder global do Império Britânico. Judith estaria perfeitamente a salvo. Era ridículo sentir pânico. Devia parar de ser tão tola.

Ela sabia de tudo isso, por já tê-lo ouvido antes. Quando Louise Forrester perdera a vida naquele terrível desastre automobilístico e tinham recebido o cabograma do sr. Baines, comunicando o trágico evento, o primeiro instinto de Molly não fora prantear Louise, mas preocupar-se com Judith. Sentira-se decidida a comprar passagem no primeiro navio para a Inglaterra, a fim de estar com a filha abandonada. Bruce, no entanto, embora transtornado pela notícia da morte da irmã, tivera uma postura intensamente britânica, guardando para si mesmo o que sentia, sem perder a coragem e com os pés bem firmes no chão. pior ainda, ele insistira com sua angustiada esposa, que não adiantava agir precipitadamente. Judith estava em um colégio interno, a srta. Catto tinha o controle da situação e Biddy Somerville encontrava-se ao alcance, se houvesse necessidade. O retorno emocional da mãe não tornaria as coisas mais fáceis para Judith. Seria melhor deixá-la em paz, prosseguindo com seus estudos, e que os eventos seguissem seu curso natural.

— Oh, mas ela não tem um lar! Não tem para onde ir!

Molly debulhara-se em lágrimas, porém Bruce permanecera inflexível.

— Que bem você lhe faria? — interrogou ele, perdendo a paciência.

— Eu estaria com ela...

—Quando finalmente chegasse lá, esta crise teria terminado e você ficaria de mãos abanando.

— Você não compreende...

—Não. Não compreendo. Portanto, acalme-se. Escreva uma carta para ela. E não mostre uma ansiedade exagerada. Os filhos odeiam pais que agem assim em relação a eles.

Nada houve que ela pudesse fazer, porque não dispunha de dinheiro próprio, e Bruce não iria à companhia de navegação reservar sua passagem e pagar por ela. Assim, Molly estava impotente. Esforçou-se ao máximo para enfrentar a situação, mas as duas ou três semanas seguintes foram um período de angústia, de ânsia pelo contato físico com Judith, de vontade de ver-lhe o rosto suave, de abraçá-la, ouvir sua voz, consolá-la e aconselhá-la.

Por fim, Molly acabou percebendo que seu marido estivera espantosamente certo. Se ela tivesse viajado, somente em cinco ou seis semanas estaria ao lado da filha e, durante esse período, todos os Problemas se resolveriam miraculosamente por si mesmos, o vácuo deixado pela morte de Louise tendo sido preenchido por esta bondosa, embora desconhecida família chamada Carey-Lewis.

A virtual adoção de Judith foi cumprida de maneira metódica e diligente. A srta. Catto escreveu, fornecendo em essência uma excelente referência sobre o coronel e a sra. Carey-Lewis, acrescentando que, em sua opinião, a hospitalidade proposta por aquele casal só poderia ser benéfica para Judith. Ela havia feito boa amizade com a jovem Loveday Carey-Lewis, a família estava radicada havia muito no lugar, desfrutava de grande respeito no campo, e a sra. Carey-Lewis havia manifestado, com profunda sinceridade, o desejo de ter Judith em sua casa.

Então, na esteira da carta da srta. Catto chegara outra, da própria sra. Carey-Lewis, escrita em uma caligrafia enorme e quase ilegível, porém no mais caro, timbrado e espesso papel de cartas azul. Molly não deixou de ficar impressionada e lisonjeada; após decifrar o manuscrito, sentiu-se comovida e desarmada. E, estava bem claro, Judith havia provocado uma excelente impressão. Molly permitiu-se uma boa dose de orgulho. Tudo que poderia fazer agora era apenas desejar que sua filha não ficasse deslumbrada pela magnificência do que, evidentemente, era uma propriedade de endinheirados aristocratas rurais.

Nancherrow. Ela recordou aquele dia na Casa Medways, quando vira Diana Carey-Lewis pela primeira e única vez. As vidas de ambas haviam-se tocado apenas por um momento —navios passando na noite — porém ela ainda retinha uma vívida imagem da mãe bonita e jovem, da filha de rosto radioso e roupas surradas, e do pequinês com sua coleira escarlate. Ao perguntar quem era aquela mulher, tinham-lhe respondido, "É a sra. Carey-Lewis. Sra. Carey-Lewis, de Nancherrow".

Tudo ficaria bem. Não se tratava de vacilar, não havia motivo para reservas. Molly escreveu em resposta, agradecida e aquiescendo, esforçando-se ao máximo para sufocar a indigna sensação de estar abrindo mão de Judith.

Bruce ficou presunçoso.

— Eu não lhe disse que tudo se resolveria?

Molly considerou sumamente irritante a atitude do marido. —Agora é fácil falar assim. O que teríamos feito, se os Carey-Lewis não surgissem em cena?

— Para que fazer suposições? Está tudo acertado. Eu sempre achei que Judith poderia cuidar de si mesma.

— De que modo saberia? Você ficou cinco anos sem vê- la!

Irritada com ele, Molly tornou-se mordaz. — Aliás, não acho que Judith deva passar todo o seu tempo em Nancherrow. Afinal de contas, Biddy ainda mora lá e adoraria recebê-la, em qualquer ocasião.

— Eles precisam organizar a própria vida.

Molly ficou amuada por um momento, não querendo que ele tivesse a última palavra.

—Acontece apenas que não posso deixar de sentir que a perdi para estranhos.

— Oh, pelo amor de Deus, pare de angustiar-se! Procure ser grata! Assim, ela havia suprimido seus leves toques de ressentimento e inveja. Afirmava resolutamente para si mesma que tivera muita sorte, e procurava concentrar-se em ser grata, em escrever cartas para a filha. Isso fora dois anos antes — Judith faria dezessete anos agora, no próximo junho — mas, durante todo esse tempo, rara era a semana em que não chegava a Orchard Road um grosso envelope, sobrescri-tado com a letra dela. Eram cartas longas, amorosas, muito queridas, contendo todas as notícias que qualquer mãe desejaria ouvir. Cada uma delas era lida e relida, saboreada, para finalmente ser arquivada em uma grande caixa de papelão marrom, no fundo do guarda-roupa de Molly. Nada menos do que a vida de Judith estava contida naquela caixa; um virtual registro de tudo quanto lhe acontecera, desde aquele dia inesquecível em que ela e sua mãe se tinham dito o último adeus.

As primeiras cartas eram todas sobre o colégio, as aulas, a bicicleta nova e a vida em Windyridge. Depois, o choque da morte de Louise; seu funeral, a primeira menção ao sr. Baines e a surpreendente notícia da herança de Judith. (Nenhum deles jamais percebera a extensão das posses de Louise. Entretanto, era bastante satisfatório saber que Judith jamais teria que pedir dinheiro a um marido, um dos aspectos menos agradáveis da vida conjugal.

Depois, foram as primeiras visitas a Nancherrow, a gradual absorção de Judith pelo clã Carey-Lewis. Aquilo eqüivalia mais ou menos à leitura de uma novela, repleta de personagens... filhos, amigos e Parentes, não se falando em mordomos, cozinheiras e babás. Pouco a Pouco, no entanto, Molly classificou todos os vários indivíduos e, depois disso, não ficou tão difícil acompanhar o enredo.

A seguir, novamente mais notícias escolares. Concertos e peças, Partidas de hóquei, resultados de provas e uma branda epidemia de sarampo. Um Natal com Biddy e Bob em sua nova casa em Dartmoor. Feriados de metade do período letivo com os Warrens, em Porthker-ris. (Molly ficou satisfeita em saber que Judith continuava amiga de Heather. Seria triste se ela ficasse importante demais para os velhos amigos.) Então, uma viagem de verão a Londres com Diana Carey-Lewis e Loveday. Ficaram na casinha de Diana e houve uma positiva rodada de compras e almoços, culminando com uma ida a Covent Garden, para verem Tatiana Riabouchinska dançar com o Ballet Russo.

Todas as experiências e divertimentos de uma jovem comum, em crescimento. E Molly, sua mãe, estava perdendo tudo isso. Era tão injusto, disse para si mesma, com uma pontada de ressentimento. Tudo estava errado. Não obstante, sabia que não se achava isolada. Sua angústia era partilhada por milhares de outras esposas e mães britânicas. Fosse em Cingapura ou na Inglaterra, a pessoa nunca se sentia no lugar certo, estava sempre ansiando pelo outro. Detestando o frio e as chuvas da Pátria e sonhando com o sol; ou então, como ela agora, contemplando os jardins de Orchard Road torrando-se ao sol, mas vendo apenas a alameda em Riverview em um entardecer nevoento, com Judith voltando para casa, após descer na pequena estação ferroviária. Caminhando, depois avistando a mãe, pressionando o rosto contra o dela e dizendo seu nome. Tocar. Às vezes, Molly encostava ao rosto as folhas das cartas de Judith, porque as mãos de sua filha haviam tocado o papel; era o mais perto dela que já conseguira chegar.

Ela suspirou. Às suas costas, dentro de casa, o bangalô começava a despertar para a vida. A voz doce da amah no quarto de Jess, despertando a criança. A sesta chegara ao fim. No lado contrário do gramado, surgiu o rapaz que cuidava do jardim, trazendo diligentemente um regador transbordante. Logo Bruce emergiria, pronto para retornar ao escritório, e mais tarde seria a hora do chá. O bule de prata, os sanduíches de pepino, as finas meias rodelas de limão. Que vergonha, se Ah Lin, o mordomo, encontrasse sua senhora sentada ali vestida apenas com seu penhoar! Ela devia fazer sua parte, retornar ao quarto, tomar uma ducha, vestir-se, pentear-se e então apresentar-se novamente como uma respeitável mensahib.

Entretanto, antes que pudesse fazer este esforço inaudito, Jess veio ao seu encontro, fresca e limpa em um vestidinho sem mangas, os cabelos muito louros e lisos como seda, em resultado das ministrações da Amah com a escova.

— Mamãe!

— Oh, querida!

Molly estendeu um braço para envolver a filha caçula em um abraço e plantar-lhe um beijo no alto da cabeça. Agora com seis anos, Jess tinha crescido, ficara alta e esguia no calor de Cingapura, como uma flor que aprecia o calor e a umidade. O rostinho tinha perdido algumas de suas curvas de bebê, porém os olhos continuavam redondos e muito azuis, as bochechas, os braços nus e as pernas exibindo um leve bronzeado, com a tonalidade deliciosa de ovos castanhos, postos pouco antes.

Sua chegada fez Molly sentir uma pontada de culpa, pois estivera tão concentrada pensando em Judith que, por um ou dois momentos, a filha menor lhe escapara inteiramente da mente.

— Como está você? — A culpa tornava sua voz especialmente amorosa. — Parece tão bonita e fresquinha!

— Por que está com essa roupa de dormir?

— Porque estive deitada e ainda não me vesti.

— Nós vamos ao clube para nadar?

Reunindo seus pensamentos, Molly recordou planos já feitos.

— Sim, é claro que vamos. Eu tinha esquecido.

— E depois podemos jogar croqué?

— Não esta tarde, benzinho. Não haverá tempo. Tenho de voltar Para casa e aprontar-me para jantar fora.

Jess aceitou tal informação totalmente imperturbável. A essa altura Ja se conformara com o fato de seus pais saírem na maioria das noites. Quando não saíam, eles recebiam visitantes em casa. Mal havia uma noite em que ficassem sozinhos.

—Aonde você vai?

—A uma Noite de Convidados, no Quartel de Selaring. O coronel convidou-nos.

O que você vai usar?

— Acho que o meu vestido novo de voai lilás. Aquele que a costureira terminou semana passada. O que você acha?

— E se eu for olhar no seu guarda-roupa e ajudar você a escolher um vestido?

Jess sentia um grande interesse por roupas, e passava muito tempo andando pela casa com os sapatos de salto alto da mãe ou envolvendo-se em colares.

— Que excelente idéia! Venha, vamos logo, antes que Ah Lin me pegue nestes trajes.

Ela girou as pernas por sobre o lado da comprida poltrona apertando o penhoar modestamente contra o corpo. Jess segurou-lhe a outra mão e seguiu em frente saltitando, ao longo da varanda. O pequeno rato trepador ainda estava ocupado nos galhos da buganvília de maneira que as pétalas continuavam planando para o chão, indo empilhar-se onde haviam caído antes, em uma profusão de magenta.

Houvera uma época em que Judith tinha ficado desiludida com o Natal. Isto acontecera durante os anos em Riverview, quando a falta de entusiasmo de Molly Dunbar pela festividade anual, sua relutância em enfeitar a casa com azevinho e até mesmo o desinteresse pela comida tradicional haviam gerado uma desagradável sensação de anticlímax. Em vista disso, por volta de quatro da tarde do dia de Natal, Judith estava pronta para retirar-se com seu novo livro, e contente porque o dia já quase chegara ao fim.

Claro está que a culpa não cabia inteiramente a Molly. As circunstâncias eram difíceis para ela. Não tendo facilidade para fazer amizades, e sem parentes jovens para encher a casa, ficava difícil organizar um torvelinho social de alegria para suas duas filhas pequenas. Sem o apoio moral de um marido que se vestisse de Papai Noel, recheasse meias e trinchasse perus, sua natureza passiva levava a melhor, e ela terminava adotando a linha de menor resistência.

Entretanto, juntamente com muitas outras coisas, agora tudo isso mudara. Três Natais tinham chegado e ido embora, desde aquelas épocas singularmente sem festividades, em Riverview; cada um diferente do outro e, em retrospectiva, cada um ainda melhor do que o anterior. Primeiro, aquelas duas semanas em Keyham com tia Biddy e tio Bob. Haviam sido feriados que muito tinham contribuído para devolver a confiança de Judith na magia da comemoração. Depois, o primeiro Natal em Nancherrow, com a casa cintilante de enfeites e entulhada de presentes. Todos os Carey-Lewis reuniram-se, além de mais um bom número de outras pessoas, sem que a alegria jamais fosse interrompida, a partir da véspera de Natal e do Serviço de Meia-noite, na igreja, até a longa caminhada para casa, após a ida à reunião da Caçada local, no feriado do dia 26. E Diana tinha dado a Judith seu primeiro vestido longo, em tafetá azul-pálido, que ela usara no jantar de Natal, depois valsando com o coronel, em giros e giros pelo piso da sala de estar.

No ano anterior, 1937, ela fora ficar com os Somervilles, não em Keyham, mas em sua nova casa de Dartmoor. Ned e um amigo, um jovem subtenente do seu navio, haviam estado lá. Caíra bastante neve, eles tinham passeado de trenó e, certa noite, foram de carro a Ply-mouth, para uma festa memorável no Salão dos Oficiais, em um dos cruzadores de Sua Majestade.

Agora, seria novamente a vez de Nancherrow e, aos dezessete anos, Judith estava tão excitada ante a perspectiva como uma criança de pouca idade, contando os dias que faltavam para o encerramento do período letivo. Através de Loveday, que continuava indo para casa todos os fins de semana, ela recolhia, nas manhãs de segunda-feira, migalhas de adoráveis informações referentes a planos concebidos, festas programadas e hóspedes a serem convidados.

— Vamos ter a casa mais cheia do que nunca. Mary Millyways está contando lençóis como louca, e a sra. Nettlebed enterrou-se até o pescoço em tortas, pudins e bolos. Nem sei dizer como é delicioso o cheiro da cozinha! Ela cheira a temperos, parece embriagada com brandy... E Athena está vindo de Londres, e Edward vai para Arosa esquiar, mas prometeu estar de volta a tempo.

Esta última parte causou um leve tremor de ansiedade no coração de Judith, porque seria terrível ele não estar presente. Edward era um adulto agora, tinha deixado Harrow e cursara seu primeiro período letivo de calouro em Cambridge. Tornar a vê-lo era parte do excitamento e da ansiedade que ela experimentava. De fato, era uma grande Parte. Judith não o amava, claro. Amor era algo que se sentia por atores de cinema, ídolos de matinê ou outros entes seguramente inatingíveis. A presença dele, no entanto, adicionava tanta vida e encanto a qualquer ocasião, que era difícil imaginar qualquer espécie de comemoração sendo completa em sua ausência.

— Espero que ele esteja. E quanto a Jeremy Wells?

— Mamãe não disse. Ele provavelmente estará trabalhando ou ficará com os pais. Entretanto, aposto como aparecerá em casa a qualquer momento. Ele sempre faz isso. E mamãe convidou os Pear-sons, de Londres. São uma espécie de primos em segundo grau de papai, mas bem jovens... Acho que terão uns trinta anos. Chamam-se Jane e Alistair, fui dama-de-honra deles, quando se casaram. Na capela de Santa Margarida, Westminster. Foi chiquérrimo. Eles agora têm dois filhos, que também virão, com sua ama.

— Como se chamam as crianças?

— Camilla e Roddy. — Loveday coçou o nariz. — Não é odioso o nome Camilla? Soa como roupas íntimas. Os dois são bem pequenos. Deus queira que não fiquem berrando o tempo todo!

— O mais provável é que sejam bonzinhos.

—De uma coisa estou certa: nenhum deles entrará em meu quarto.

— Eu não me importaria. A ama ficará de olho neles.

— Mary disse que se ela começar a deixar a sala de brinquedos de pernas para o ar, saberá como agir. Oh, e no sábado, eu e papai fomos até as plantações, escolher uma árvore...

Uma sineta tocou e não houve tempo para mais conversas. Judith seguiu para sua aula de francês transbordando de contentamento porque, em realidade, tudo fazia prever que aquele seria o melhor Natal de todos.

Nesse ínterim, e com a chegada do Advento, no Santa Ursula o Natal assumiu uma nota convenientemente religiosa. Na reunião da manhã, as alunas cantaram hinos próprios da data.

"Oh, vinde, oh, vinde, Emanuel,

Resgatar a cativa Israel..."

e no exterior os dias eram curtos, e longas as noites escuras. Nas aulas de arte foram desenhados cartões de Natal e feitas decorações de papel-No período de música, eram praticadas canções natalinas, o coro lutando com as variações melódicas terrivelmente difíceis de "The First Nowell" e "O Come Ali Ye Faithful". Houve então a festa anual, com um tema diferente a cada ano. O deste ano era ”Fantasias”, os trajes sendo feitos de papel e não custando mais do que cinco xelins. Na máquina de costura da inspetora, Judith costurou alguns babados de papel crepom em uma roupa de cigana e, com fios, pendurou aros de cortina em suas orelhas, à maneira de brincos. Loveday limitou-se a unir com cola um monte de jornais, colocou seu boné de montar e anunciou-se como o jornal The RacingNews. Sua fantasia dilacerou-se durante os animados jogos que disputaram, de maneira que passou o resto do anoitecer vestida com o calção azul-marinho e a camisa velha que tinha usado por baixo de todas as camadas do The Daily Telegraph.

Até o tempo maquinou para somar-se ao estabelecimento da estação, tornando-se cortantemente frio, algo incomum para aquela temperada garra da Inglaterra, cercada pelo mar. Ainda não nevara, porém a geada transformava os gramados em prata e endurecia a tal ponto os campos de jogos, que todos os esportes foram cancelados. Nos jardins, palmeiras e arbustos semitropicais congelados pendiam lastimosamente, sendo difícil imaginar que pudessem recuperar-se de sua cruel experiência.

Não obstante, surgiram coisas mais importantes em que pensar. Por fim, a derradeira manhã do período letivo, o anual Serviço de Canções Natalinas na capela, e depois, a ida para casa. Na camada de cascalho espalhada diante da porta principal, já havia um conjunto de carros, táxis e ônibus, nos quais partiria o tagarela grupo de estudantes. Após despedirem-se da srta. Catto e lhe desejarem um Feliz Natal, Judith e Loveday, com os braços cheios de livros e oscilantes sacolas de sapatos, escaparam para o frio cortante, para a liberdade. Palmer estava lá, com o furgão já carregado. As duas entraram, e o veículo começou a rodar.

Em Nancherrow, encontraram os preparativos já em pleno andamento: lareiras acesas por todos os lados e o enorme pinheiro erigido no saguão. Elas ainda cruzavam a porta principal, e Diana já estava à espera, descendo apressadamente a escada para recebê-las, tendo uma guirlanda de azevinho em uma das mãos e um comprido festão de uropel na outra.

— Oh, minhas queridinhas, aí estão vocês, sãs e salvas! Não está um frio de matar? Fechem a porta e deixem a friagem lá fora. Não pensei que fossem chegar tão depressa. Judith, meu bem, que prazer vê-la! Meu Deus, acho que você cresceu!

— Quem está aqui? — perguntou Loveday.

— Até agora, somente Athena, e ainda nem uma palavra de Edward. De qualquer modo, isso apenas significa que ele está se divertindo. Os Pearsons chegam esta noite. Virão dirigindo de Londres coitadinhos. Espero que não haja muita neblina nas estradas.

— E sobre Nenny, Camilla e Roddy?

— Querida, não a chame de "Nenny". Essa é uma piada particular. Todos virão amanhã, de trem. Tommy Mortimer chegará no dia seguinte; está sendo sensato, porque também preferiu o trem. É um bocado de gente a esperar na estação.

— Certo, mas onde está todo mundo?

—Papai e Walter Mudge levaram o trator e o trailer. Foram buscar mais azevinhos para mim. Athena está escrevendo cartões de Natal.

— Ela ainda não mandou seus cartões de Natal? Eles nunca chegarão em tempo aos destinatários!

— Oh, sei lá! Talvez ela apenas escreva Feliz Ano Novo. — Diana pensou nisto e deu uma risadinha. — Ou até mesmo, Feliz Páscoa! E agora, queridas, eu preciso continuar. O que mesmo estava fazendo? — Como que em busca de inspiração, ela olhou para o azevinho e o ouropel que segurava. — Enfeitando corredores, acho eu. Tanta coisa a fazer! Por que não vão procurar Mary? — Ela já tomava a direção da sala de estar. —.. desfaçam as bagagens. Instalem-se. Eu as verei na hora do almoço...

Sozinha em seu quarto rosa, após ter-se orientado, checado seus pertences e passado alguns momentos gelados pendurada para fora da janela aberta, a primeira coisa que Judith fez foi mudar de roupa, tirar o uniforme e vestir roupas adequadas e confortáveis de adulto. Uma vez feito isto, dispôs-se a desfazer as malas, e estava de joelhos ao lado de uma maleta aberta, procurando uma escova de cabelo, quando ouviu a voz de Athena chamando seu nome.

— Estou aqui!

Ela parou de procurar a escova e virou o rosto para a porta aberta. Ouviu os passos rápidos e leves. Athena surgiu em seguida.

—Apenas passei para dizer “olá, seja bem-vinda, e tudo o mais." Ela entrou no quarto e atirou-se languidamente sobre a cama de Judith-Sorriu. —Acabei de ver Loveday, portanto, sabia que você tinha vindo. Como está tudo?

Judith ficou de cócoras.

— Muito bem — respondeu.

De todos os membros da família Carey-Lewis, Athena era quem Judith conhecia menos e, em resultado, nos primeiros encontros sempre ficava ligeiramente contida e um pouco acanhada. Não que ela não fosse amistosa, divertida ou de convívio fácil, porque Athena era tudo isso. Entretanto, era uma criatura tão sensacionalmente sedutora e sofisticada, que o impacto de sua presença era atordoante. Por outro lado, nem sempre ela estava em Nancherrow. Após seus bailes de debutante e idas à Suíça, tornara-se agora inteiramente adulta e ficava a maior parte do tempo em Londres, aninhada na casinha da mãe em Codogan Mews, e levando a vida de prazeres de um sibarita. Ela nem ao menos tinha um emprego adequado (dizia que um emprego interferiria com arranjos adoráveis e imprevistos) e, quando questionada sobre sua ociosidade, limitava-se a sorrir de maneira encantadora e murmurava algo sobre um baile de caridade que estava ajudando a organizar ou uma exposição para lançar algum pintor ou escultor escrofuloso, cuja obra incompreendida ela declarava admirar.

Sua vida social parecia ser "nunca parar". Os homens zumbiam à sua volta, eram as proverbiais abelhas em torno do pote de mel, e sempre que estava em Nancherrow, Athena passava grande parte do tempo ao telefone, acalmando pretendentes apaixonados, prometendo entrar em contato assim que retornasse a Londres ou então inventando alguma improvável história sobre o motivo de, no momento, não estar disponível. Certa vez, o coronel se vira forçado a comentar que ela já o pusera doente e de cama tantas vezes, que era espantoso ainda não ter morrido.

Judith, no entanto, era solidária. De certo modo, devia significar uma terrível responsabilidade possuir tanta beleza. Compridos cabelos louros, uma pele sem mácula e enormes olhos azuis, franjados de cílios negros. Athena era alta como a mãe, esguia e de pernas compridas. Usava batom muito vermelho e unhas também muito vermelhas, estando sempre vestida com maravilhosas roupas novas, na última moda. Agora, como estava no campo, usava calças compridas de corte Masculino, uma blusa de seda e um casaco de pêlo de camelo, de enchimento nos ombros e com um broche de diamantes cintilando na lapela. Judith não tinha visto aquele broche antes, e imaginou que devia ser o último presente de algum apaixonado. Aí estava outro detalhe sobre Athena. Ela vivia ganhando presentes. Não somente no Natal e aniversários, mas o tempo todo. E não apenas flores e livros, mas jóias e berloques para seu bracelete de ouro, além de pequenas e caras peles de marta e vison. Sentada ali na cama, ela enchia o quarto com a romântica fragrância de seu perfume, e Judith imaginou o enorme frasco de vidro talhado, pressionado na mão dela por algum homem enlouquecido para tê-la, e descuidadamente colocado em seu toucador, ao lado das dúzias ou mais de outros frascos.

Entretanto, apesar de tudo isso, ela era muito simpática, muito generosa quanto a emprestar roupas ou dar conselhos sobre cabelos e, por alguma razão, de maneira alguma presunçosa. Os homens — Athena dava a entender, sem realmente dizer isso —na realidade eram tediosos, e ela sempre ficava satisfeita em escapar às atenções deles, para passar algum tempo (mas não muito) com a família.

Agora, ela dobrava as pernas e ficava bem acomodada para uma conversa.

— Estou adorando a cor dessa blusa de malha. Onde foi que a conseguiu?

— Em Plymouth, no Natal passado.

— Claro. Você não esteve conosco, não é mesmo? Sentimos sua falta. E como vai no colégio? Não fica francamente repugnada com tudo aquilo? Eu quase enlouqueci de tédio quando tinha dezessete anos. E todos aqueles regulamentos horrorosos! Não importa, você logo estará livre e poderá escapar para Cingapura. Edward disse que só percebeu o quanto Harrow era ridículo, após sair de lá. Acho que Cambridge abriu todo um mundo novo para ele.

— Vo... você o tem visto ultimamente?

— Sim. Ele foi a Londres e passou uma noite comigo, antes de partir para Arosa. Tivemos momentos ótimos, com bifes, champanha e muitas novidades para serem postas em dia. Sabe o que ele esta fazendo? Nem vai acreditar. Meu irmão se juntou ao Clube de Aviação Universitário e está aprendendo a pilotar um avião. Não acha que é terrivelmente corajoso e heróico da parte dele?

— Sim, acho — respondeu Judith.

Era absolutamente sincera. A mera idéia de aprender a pilotar um avião chegava a ser aterradora.

.— Ele adora voar. Disse que é a coisa mais mágica do mundo. Flutuar no céu como uma gaivota e poder contemplar todos os pequenos campos de cultivo...

.— Você acha que ele virá para o Natal?

.— Por que não? Acabará aparecendo por aqui quando a gente menos esperar. O que vai usar para as comemorações do Natal? Tem alguma coisa nova?

— Bem... sim, tenho. Não é exatamente um traje novo, porém ainda não o usei.

— Se não o usou, então é novo. Diga-me como é.

—É um modelo de sari. Mamãe o mandou para o meu aniversário, e sua mãe ajudou-me a fazer um desenho de como ficaria. Depois o levamos à costureira de Diana, e ela o aprontou.

Judith sentia-se desinibida, discutindo roupas com Athena em um jeito tão adulto. Loveday nunca falava sobre roupas, assunto que a entediava, além de pouco estar ligando para a aparência. Athena, pelo contrário, imediatamente ficou interessada.

— Parece sensacional. Posso vê-lo? Está aqui?

— Está. No guarda-roupa.

— Oh, mostre-me!

Judith ficou em pé e foi abrir o guarda-roupa. Então procurou o cabide acolchoado em que pendurara o precioso vestido, envolto em papel de seda negro.

— O papel é para impedir que o fio dourado escureça. Não sei bem por quê — explicou, enquanto removia o papel de seda. — Foi muitíssimo difícil desenhar, porque queríamos usar o bordado nas orlas do vestido, mas Diana deu um jeito...

A última folha de papel de seda voou para o chão e o vestido foi revelado. Judith o suspendeu diante do corpo, abrindo as saias para mostrar sua largura. Era uma seda tão fina que não tinha peso, parecia leve como o ar. Em torno da bainha e dos punhos das pequeninas mangas, a orla dourada do motivo bordado cintilava com a luz refletida. Athena ficou boquiaberta.

— Querida, é divino! — exclamou. — E que cor! Não é turquesa e nem azul. Absolutamente perfeito! — Judith sentiu-se corar de satisfação. Era tranqüilizador ver Athena, particularmente ela, mostrar tão legítimo entusiasmo. — E quanto aos sapatos? — perguntou ela — São dourados ou azuis?

— Dourados. Uma espécie de sandálias.

—É claro. E você deve usar jóias de ouro. Brincos enormes. Tenho exatamente os tipos que lhe servem e vou emprestá-los. Deus do céu você vai entontecer cada homem na sala. Sua roupa é simplesmente espetacular, e estou morta de inveja. Agora, enrole seu vestido outra vez nos papéis de seda e guarde-o, antes que os bordados comecem a escurecer ou seja o que for.

Ela ficou sentada e espiando, enquanto Judith, com certa dificuldade, ia envolvendo o sari em camadas de papel de seda e o guardava na segurança do guarda-roupa. Athena deu um enorme bocejo e olhou para o relógio de pulso.

— Céus, quinze para uma! — exclamou. —Não sei quanto a você, mas eu estou morrendo de fome. Vamos descer, antes que Nettlebed comece a bater seu gongo. — Levantando-se graciosamente da cama, ela correu a mão pelos cabelos lustrosos, deu-se por pronta e esperou.

— Você não adiantou muito o trabalho de guardar suas coisas. Eu sou a culpada, por interrompê-la. Não importa. Poderá terminar mais tarde. Não é maravilhoso, saber que temos feriados pela frente, dias e dias de feriados? E todo o tempo do mundo!...

Judith foi despertada pelo vento, um vendaval que se formara durante a noite e agora gemia, vindo do mar, fustigando a janela e fazendo-a chocalhar. Ainda estava escuro. Antes de ir para a cama, ela abrira apenas um pouquinho da janela, mas agora a ventania sacudia as cortinas, fazendo-as dançar como espectros, de modo que um momento depois Judith saiu da cama e, tiritando com o ar gélido, fechou a janela e puxou o ferrolho. Ainda assim o madeirame chocalhava, mas as cortinas estavam imóveis. Ligando o abajur de cabeceira, viu que eram sete da manhã. O alvorecer ainda não começara a clarear a manhã tempestuosa, de maneira que ela tornou a saltar para a cama quente e puxou o edredom por sobre os ombros. A essa altura, acordada de todo, ficou quieta, pensando com ansiedade no dia que tinha pela frente, e recordando a noite anterior. Nancherrow ia se enchendo aos poucos. Os últimos convidados, Jane e Alistair Pearson, tinham chegado em tempo para o jantar, após sobreviverem a uma longa e friorenta viagem de carro desde Londres. Toda a família afluíra ao vestíbulo para recebê-los, e houve abraços e beijos sob os ramos nevados da cintilante e feericamente iluminada árvore de Natal. Os recém-chegados formavam um atraente par, parecendo mais novos do que realmente eram, e trazendo consigo um toque de sofisticação londrina — ele em seu sobretudo azul-marinho e cachecol de foulard, ela em um traje escarlate, com gola branca de pele. Havia amarrado um lenço de seda sobre os cabelos, mas no ambiente aquecido da casa desatou-o e, ao tirá-lo, os cabelos caíram escuros e soltos contra a pele suave da gola.

— Oh, querida... — Diana estava visivelmente eufórica. —.. que bom tornar a vê-la! Foi uma viagem muito difícil?

— A estrada estava terrivelmente derrapante, mas Alistair nem pestanejou. Pensamos que fosse nevar. Graças a Deus não trouxemos as crianças e a babá conosco. Ela ficaria morta de medo.

— Onde está sua bagagem? No carro?

— Sim, e trouxemos também um milhão de embrulhos para serem colocados debaixo da árvore...

— Traremos tudo para dentro. Onde está Nettlebed? Nettlebed! Nettlebed, contudo, já estava por perto, tendo chegado da cozinha.

— Não se preocupe, senhora. Eu cuidarei de tudo.

E foi, evidentemente, o que ele fez, e os Pearsons foram devidamente instalados no enorme quarto com a cama de casal de quatro colunas, onde, neste momento, presumivelmente continuavam dormindo. A menos que, como Judith, houvessem sido perturbados pela tempestade.

Esta não mostrava o menor sinal de amainar. Outra súbita rajada assaltou a casa, com a chuva salpicando e deslizando pelas vidraças. Judith esperava que não continuasse assim pelo resto do dia, porém o tempo era a menor de suas preocupações. Muito pior era o fato de que, embora os embrulhos já estivessem se acumulando sob a árvore, ela ainda não comprara um só presente para ninguém. Agora, entretanto, bem desperta e quieta, levou algum tempo matutando no assunto. Então saiu da cama, vestiu o robe e foi sentar-se à sua secretária, onde iniciou uma lista. Em uma comprida fileira, escreveu dezessete nomes. Dezessete presentes a comprar e somente três dias pela frente, antes do grande dia. Não havia tempo a perder. Elaborou um plano rapidamente, escovou os dentes e lavou o rosto, passou a escova nos cabelos, vestiu-se, e desceu para o andar de baixo.

Agora eram oito da manhã. Em Nancherrow, o breakfast começava às oito e meia, porém ela sabia que o Coronel Carey-Lewis, desejando um pouco de tranqüilidade, costumava levantar-se cedo, a fim de comer seus ovos e bacon em silêncio e ler a miscelânea do jornal da véspera que, no dia anterior, não tivera tempo nem oportunidade para examinar.

Abriu a porta da sala de refeições, e lá estava ele, sentado em sua cadeira à cabeceira da mesa. Sobressaltado, o coronel baixou o jornal e ergueu os óculos, a expressão claramente aborrecida pela interrupção. No entanto, ao ver Judith, seu semblante modificou-se polidamente, mostrando um ar de satisfação. Ela pensou, não pela primeira vez, que o Coronel Carey-Lewis era, provavelmente, o homem mais cortês que já conhecera

—Judith...

— Sinto muito. — Ela fechou a porta. Havia um fogo de gravetos aceso na lareira, e as brasas desprendiam um cheiro acre, amargo. — Sei que estou interrompendo sua leitura e que o senhor não gostaria de conversar agora, mas estou com um problema, e achei que talvez pudesse ajudar-me.

— Oh, mas é claro! De que se trata?

— Bem, acontece que...

— Não, não me diga nada, enquanto não tiver comido alguma coisa. Então discutiremos o seu problema. Nunca se deve tomar decisões com o estômago vazio.

Ela sorriu, sentindo-se tomada de afeição por ele. Naqueles anos em que vinha freqüentando Nancherrow, Judith passara a estimar profundamente o coronel, e o relacionamento dos dois em pouco tempo perdera a timidez inicial para tornar-se, se não íntimo, pelo menos bastante agradável. Quanto a ele, se não a tratava como uma das próprias filhas, então certamente a considerava uma sobrinha favorita. E, assim, ela foi obedientemente até o aparador, onde se serviu de um ovo cozido e uma xícara de chá, em seguida retornando à mesa, para sentar-se ao lado dele. 1

— Muito bem. O que há?

Ela explicou.

São os presentes de Natal. Não comprei nenhum. No colégio era impossível, e antes de eu vir para cá não houve chance. Enviei os de minha família há meses, claro, porque é a única maneira de chegarem em Cingapura a tempo, mas isso foi tudo. Então, acabei de fazer agora há pouco uma lista, e preciso de dezessete presentes para todos daqui.

—Dezessete? — Ele pareceu um tanto surpreso. — Somos mesmo tantos assim?

— Bem, seremos, no dia de Natal.

— E o que deseja que eu faça?

— Bem, nada, realmente. Eu só queria saber se algum carro irá a Penzance, porque assim eu aproveitaria a viagem e faria minhas compras. Não quis falar nada para Diana, porque ela já está tão ocupada aqui, com seus convidados chegando e tudo o mais... Entretanto, imaginei que o senhor talvez pudesse dar um jeito.

— Fez muito bem em procurar-me. Diana está girando como um pião. É impossível conseguir-se uma palavra sensata da parte dela. — Ele sorriu. — Por que não irmos nós dois a Penzance, esta manhã?

— Oh, mas eu não estava sugerindo que o senhor me levasse...

— Eu sei disso, mas como tenho mesmo de ir ao banco, posso perfeitamente ir esta manhã, em vez de em qualquer outra. — Ele ergueu a cabeça, a fim de observar pela janela mais um assalto de chuva e vento, vindos do mar. —Não há muita coisa mais que se possa fazer em um dia como este.

— O senhor precisa realmente ir ao banco?

— Sim, eu realmente preciso ir. Como você sabe, não sou muito amigo de fazer compras, de modo que todos os meus entes queridos recebem como presente de Natal um envelope com uma quantia em dinheiro. É algo tão falho de imaginação, que tento tornar a coisa mais excitante, pedindo ao banco que as notas sejam recentes, estalando de novas. São as que deverei apanhar esta manhã.

— Oh, mas o senhor levaria apenas uns minutos fazendo isso, enquanto eu precisarei de pelo menos duas horas! Não gostaria de vê-lo parado, esperando por mim...

—Posso dar uma chegada ao clube, ler os jornais, ver alguns amigos e, chegado o momento, tomar um drinque. — Ele ergueu o punho e olhou o relógio.

— Se não quisermos perder tempo, poderemos estar em Penzance por volta de dez horas, o que nos daria tranqüilidade para, sem muita pressa, estarmos de volta a tempo para o almoço. Temos que combinar um ponto de encontro. Sugiro o The Mitre Hotel ao meio-dia e meia. Assim, você terá duas horas e meia para fazer suas compras. Quando Diana tem que comprar alguma coisa, duas horas não bastam. Nem para começar. Ela precisa de meio dia para escolher um chapéu.

Era tão raro ele fazer qualquer tipo de piada, que Judith sentiu vontade de abraçá-lo, mas se conteve.

— Oh, o senhor é muito gentil — disse para ele. — Fico muito agradecida. Resolveu um problema e tanto para mim.

—Você nunca deve guardar os problemas consigo mesma. Prometa-me isso. E fique certa de que apreciarei sua companhia. Agora, seja uma boa menina e ponha-me mais uma xícara de café...

Em Penzance, o tempo não estava melhor. Aliás, parecia até pior. As ruas estavam praticamente alagadas e os bueiros transbordavam, entupidos com restos de lixo e pequenos ramos quebrados das árvores.

Compradores em apuros lutavam com guarda-chuvas, somente para tê-los virados pelo avesso, enquanto chapéus eram arrancados das cabeças e rolavam para longe, levados pelo vento. De vez em quando, telhas desalojadas dos tetos escorregavam para baixo e estilhaçavam-se nas calçadas, e tão escura era a manhã, que no interior das lojas e escritórios havia luzes acesas em pleno dia. Era possível ouvir-se distintamente o súbito estrondo das ondas da maré alta rebentando na praia, e qualquer conversa girava em torno de desastres: casas inundadas, árvores caídas e a vulnerabilidade da piscina, da calçada de tábuas junto à praia, e do porto.

A sensação era de estar-se sitiado, porém não deixava de ser excitante. Calçada com botas de borracha, envolta em uma capa negra de oleado e com um gorro de lã puxado até as orelhas, Judith arrastava-se de loja em loja, aos poucos ficando mais e mais carregada de embrulhos, pacotes e sacolas.

Às onze e meia, viu-se na WH. Smiths, a papelaria, onde comprou presentes para todos, menos para Edward. Deixara-o por último, por dois motivos: não conseguia imaginar o que comprar para ele e não tinha certeza absoluta de que Edward realmente passasse o Natal em Nancherrow. Ele virá de Arosa, prometera Diana, porém nunca se podia ter certeza, e Judith ansiava tanto tornar a vê-lo, que havia ficado profundamente supersticiosa sobre tudo aquilo. Era mais ou menos como levar uma sombrinha a um piquenique, como proteção na hipótese de uma chuvarada. Se ela não lhe comprasse um presente, então o mais provável era que Edward chegasse e não houvesse nada para dar-lhe como lembrança do Natal. Entretanto, se comprasse, talvez estivesse tentando a Providência e, tão certo como dois e dois são quatro, no último momento ele decidiria ficar em Arosa com os amigos. Podia imaginar o telegrama da Suíça sendo entregue em Nancherrow; Diana abriria o envelope e leria a mensagem em voz alta: LAMENTO MUITÍSSIMO, MAS PASSAREI NATAL AQUI. VEJO VOCÊS ANO NOVO. Ou algo parecido. Talvez...

— Quer me deixar passar, por favor?

Suas morosas reflexões foram perturbadas por uma irritada senhora que, com uma caixa de papel de cartas, tentava chegar ao balcão.

— Sinto muito...

Judith juntou seus pacotes e moveu-se para um lado, mas o pequeno incidente a trouxe de volta à realidade. Claro que devia comprar um presente para Edward. Se ele não viesse para o Natal, poderia dar-lhe a lembrança mais tarde. Cercada por pilhas de maravilhosos livros novos, pensou em comprar-lhe um, mas depois decidiu contrário. Ao invés disso... Sentindo-se mais forte e decidida, tornou a mergulhar no vento e na chuva, rumando para a Market Jew Street, na direção da Casa Medways.

Até mesmo esta loja antiquada, em geral tranqüila e um tanto Vacante, havia sido tocada pelo entusiasmo da data. Sinos de papel Pendiam das luzes e havia mais fregueses que de costume — donas de Casa comprando sensatas meias de lã cinzenta para os maridos ou indecisas quanto ao tamanho do colarinho de uma nova camisa. Judith, contudo, não pretendia comprar meias para Edward e tinha certeza de que ele possuía camisas de sobra. Debatendo o problema, com água gotejando de sua capa de chuva em uma pequena poça no meio do piso encerado, ela poderia ter ficado ali para sempre, se o mais idoso dos vendedores não se aproximasse. Então, vendo-o à sua frente, Judith foi forçada a decidir-se.

— Um cachecol?

— É para um presente de Natal?

— Sim. — Ela pensou a respeito. — Quero alguma coisa de cor viva. Nada de azul-marinho ou cinza. Vermelho, talvez.

— O que me diz de xadrez? Temos alguns bonitos cachecóis de xadrez. Entretanto, são de cashmere e bastante caros.

Cashmere. Um cachecol de cashmere xadrez. Imaginou Edward com esse artigo de luxo em torno do pescoço, preso por um nó descuidado.

— Não me importo se for um pouco caro — disse.

— Bem, então podemos dar uma espiada, não?

Ela escolheu o cachecol mais vivo, vermelho e verde, com um toque de amarelo. O vendedor afastou-se a fim de embrulhá-lo, e ela pegou seu talão de cheques e a caneta, à espera de que ele voltasse. Em pé junto ao balcão, olhou em torno com certa afeição, embora aquela loja antiga, de ambiente penumbroso, fosse o mais improvável local com recordações importantes. No entanto, ali é que pusera os olhos pela primeira vez em Diana Carey-Lewis e Loveday; ali é que estivera naquele dia tão especial com Edward, ajudando-o a escolher seu traje de tweed — e depois ele a levara para almoçar.

—... pronto, senhorita, aqui está.

— Obrigada.

O vendedor havia embrulhado o cachecol em papel de presente.

— E aqui tem a sua nota...

Judith preencheu o cheque. Enquanto fazia isso, a porta da rua se abriu às suas costas. Houve uma rajada de vento momentânea, depois a porta foi novamente fechada. Ela assinou seu nome, destacou o cheque e o entregou.

Uma voz pronunciou o seu nome, atrás dela. Sobressaltada, deu meia volta e se viu face a face com Edward.

O silêncio provocado pelo choque durou apenas um instante, para ser quase imediatamente substituído por um salto jubiloso de seü coração. Ela podia sentir o sorriso que se espalhava no rosto, o queixo caído, em estupefação.

—Edward!

— Surpresa, surpresa!

—Oh, mas o que você está fazendo... Como foi que conseguiu... O que está fazendo aqui?

— Vim procurar você.

— Pensei que ainda estivesse em Arosa.

—Voltei esta manhã. Cheguei de Londres no trem noturno.

— Mas...

— Escute — ele pousou a mão no braço dela e deu uma leve sacudida —não podemos falar aqui. Vamos sair. —Edward olhou para a enormidade de sacolas e embrulhos que a rodeavam. — Tudo isto é seu? — perguntou, incrédulo.

- São compras de Natal.

—Já terminou?

—Terminei agora.

— Então, vamos.

Para onde?

—Para The Mitre. Para onde mais? Não foi lá que combinou encontrar-se com papai?

Ela franziu a testa.

— Foi, mas...

— Tudo será explicado.

Ele já reunia os embrulhos e, com as duas mãos cheias, abriu caminho para a porta. Rápida, ela recolheu os poucos pacotes deixados no balcão, e apressou-se em alcançá-lo. Edward empurrou com o ombro a pesada porta envidraçada e ficou esperando Judith passar. Então, viram-se nas ruas castigadas pela chuva, de cabeças agachadas contra o vento, cruzando a avenida com a costumeira falta de atenção e cuidado da parte dele, e descendo Chapei Street com pressa, diretos para o calor e abrigo do velho The Mitre Hotel. Uma vez no interior, ele a guiou para o saguão, que cheirava a cerveja e cigarros da noite anterior, mas onde havia um fogo bem-vindo e nem uma viva alma Para perturbá-los.

Começaram a acomodar-se. Edward reuniu todos os pacotes dela em uma arrumada pilha no chão e, feito isso, disse:

— Vamos, tire essa capa encharcada e aqueça-se. Devo pedir café?

Provavelmente terá um gosto horrível mas, com um pouco de sorte estará quente.

Olhando em torno, ele encontrou um botão ao lado da lareira e foi apertá-lo. Judith desabotoou a capa e, na falta de melhor lugar deixou-a nas costas de uma cadeira de espaldar reto, onde permaneceu pingando lentamente, como uma torneira avariada, sobre o desbotado tapete turco. Tirando o gorro de lã, ela sacudiu a cabeça, para soltar os cabelos úmidos.

Um garçom muito idoso surgiu à porta.

— Nós gostaríamos de beber café, por favor — disse Edward. Bastante café. Talvez dois bules. E biscoitos.

Judith encontrou um pente na bolsa e tentou dar um jeito nos cabelos. Havia um espelho acima da lareira e, ficando na ponta dos pés, ela conseguiu ver sua imagem refletida. Viu seu rosto, as faces rosadas pelo vento e os olhos que cintilavam como estrelas. A felicidade transparece, pensou. Largando o pente, virou-se para Edward.

Ele tinha uma aparência maravilhosa; não barbeado, mas maravilhoso. Muito queimado de sol, o corpo rijo e em forma. Após pedir o café, Edward se livrara do encharcado casaco de esquiar, sob o qual usava calças de veludo canelado e uma suéter azul-marinho, de gola enrolada no pescoço. As calças estavam escuras, devido ao molhado, e quando ele se aproximou do fogo crepitante, começaram a fumegar suavemente com o calor.

— Você está ótimo — disse ela.

— Você também.

— Não sabíamos que estava vindo para casa.

— Oh, não passei telegrama ou coisa assim, mas é claro que viria. Não perderia o Natal nem por todo o esqui do mundo. E se anunciasse quando ia chegar, mamãe armaria uma confusão e tanto sobre esperar na estação, etc, etc, etc. É melhor dar as caras sem prazo de chegada, em especial quando a gente vem da Europa. Nunca se sabe se pegaremos o trem ou se a barca fará a travessia.

Judith compreendeu o ponto de vista dele e decidiu que era uma excelente filosofia. Entretanto, perguntou:

— E quando foi que chegou aqui?

Ele enfiou a mão no bolso da calça para pegar os cigarros e isqueiro. Judith precisou esperar a resposta, fornecida depois do cigarro aceso. Edward soprou uma nuvem de fumaça e sorriu para ela.

Já lhe disse. Pelo trem noturno. Cheguei às sete desta manhã.

.— Sem ninguém para esperá-lo na estação.

Ele olhou em torno, procurando onde sentar-se. Escolheu uma antiga cadeira de braços que empurrou através do tapete, a fim de ficar bem perto do fogo. Depois deixou o corpo arriar nela.

— E então, o que você fez?

— Achei que era um tanto cedo para começar a ligar para casa, exigindo transporte. Como sou sovina demais para pagar um táxi, deixei toda a minha bagagem na estação e caminhei até o clube de papai, onde fiquei batendo na porta até alguém me deixar entrar.

— Não sabia que era membro do clube de seu pai.

— Não sou, mas eles me conhecem, e depois que contei uma história lacrimosa, deixaram-me entrar. E quando expliquei que levara dois dias viajando, que estava exausto e sujo, permitiram que usasse um banheiro e lá fiquei mergulhado em água quente por uma hora. Mais tarde, uma simpática senhora preparou-me um breakfast.

Judith estava francamente admirada.

— Edward, que temeridade a sua!

— Para mim, foi antes um plano inteligente. Tive um lauto café da manhã. Bacon, ovos, salsichas e chá muito quente, escaldante. E, para meu espanto, justamente quando terminava meu pantagruélico festim — fazia doze horas que não comia — quem haveria de aparecer, senão papai?

— Ele ficou tão surpreso quanto você?

— Exatamente.

— Você é terrível. Ele podia ter tido um ataque do coração.

— Oh, não diga tolices. Papai ficou contentíssimo em me ver. Sentou-se, tomamos mais chá juntos, ele me contou que trouxera você a cidade para suas compras de Natal e que a encontraria às doze e meia. Assim, fui procurá-la e apressá-la.

— Por que pensou na Medways?

— Bem, você não estava em nenhuma outra loja, de modo que acabei chegando lá. — Ele sorriu. — E acertei.

Ao pensar nele, em meio a um tempo tão rigoroso, andando por Penzance à sua procura, Judith ficou profundamente comovida, afo-gueada por uma cálida excitação.

— Podia muito bem ter continuado no aconchego do clube, lendo um jornal.

— Eu não sentia vontade de ficar no aconchego de mais nada. Já tinha passado tempo demais sentado em trens abafados. E agora fale-me de você...

Antes que ela pudesse responder, no entanto, o idoso garçom surgiu, trazendo uma bandeja com bules, xícaras e pires, e dois biscoitos extraordinariamente pequeninos em um prato. Edward tornou a meter a mão no bolso da calça e conseguiu um punhado de moedas que entregou a ele.

— Fique com o troco.

— Obrigado, senhor.

Depois que ele se foi, Judith ficou de joelhos no surrado tapete da lareira e serviu o café nas xícaras. Era forte, tinha um cheiro curioso, mas pelo menos estava quente.

—.. o que andou fazendo consigo mesma? — insistiu ele.

— Não muita coisa. Apenas estudando.

— Céus, lamento por você! Não importa, logo terá terminado e ficará surpresa, perguntando-se como conseguiu suportar. E Nancherrow?

— Ainda no mesmo lugar.

— Garota desmiolada, quero saber o que está acontecendo. Quem está lá?

— Todo mundo, imagino, agora que você chegou.

— E quanto a amigos e parentes?

— Os Pearsons, de Londres. Chegaram ontem à noite.

—Jane e Alistair? Ótimo, eles são boa gente.

—Parece que os filhos deles e a babá chegam ao anoitecer, de trem-

— Oh, bem, creio que não podemos fugir disso; todos nós temos que carregar uma pequena cruz.

— Tommy Mortimer também vem para o Natal, mas não tenho certeza de quando.

— Ele é inevitável. — Edward imitou a voz melíflua de Tommy Mortimer: — Diana, minha queridinha, um martinizinho?

— Oh, vamos, ele não é tão ruim assim!

— Se quer saber, simpatizo bastante com o velhote excêntrico. E Athena, não exibiu nenhum afogueado pretendente?

— Não desta vez.

— Isso, pelo menos, é motivo de comemoração. Como está tia Lavinia?

— Ainda não a vi. Só ontem é que voltei do Santa Ursula. Entretanto, sei que ela irá para o jantar de Natal.

— Majestosa em veludo negro, a querida velhinha... — Ele bebeu um pouco de café e coçou o rosto. — Céus, que café horroroso!

— Fale-me sobre Arosa.

Ele deixou a xícara no pires com um gesto desdenhoso, barulhento, ficando claro que não beberia mais.

— Formidável —respondeu. —Todos os reboques trabalhando e sem gente demais. Uma neve fantástica e sol o dia inteiro. Esquiávamos durante o dia e dançávamos a maior parte da noite... há um novo bar, o Die Drei Husaren, que todos freqüentam. Em geral, saíamos de lá às quatro da madrugada. — Ele cantarolou: — "As garotas foram feitas para o amor e os beijos, e quem sou eu para discordar?" Fazíamos a banda tocar esta música todas as noites.

Fazíamos. Nós. Quem seria "nós"? Judith conteve uma indigna pontada de inveja.

— Quem estava com você? — perguntou.

— Oh, apenas amigos de Cambridge.

— Deve ter sido formidável.

—Você nunca esquiou? Ela negou com a cabeça.

— Nunca — respondeu.

— Eu lhe ensinarei.

—Athena me disse que você está aprendendo a voar.

—Já aprendi. Já tenho meu brevê de piloto.

— Dá medo?

—Não. É pura beatitude. Sentimo-nos invioláveis. Super-humanos.

— É difícil?

—Fácil como dirigif um carro, e milhões de vezes mais fascinante.

— Mesmo assim, acho que você é incrivelmente corajoso.

— Oh, claro — implicou ele — o intrépido homem-pássaro original. — De repente, afastou o punho da suéter e deu uma olhada no relógio de pulso. — Meio-dia e quinze. Papai logo estará aqui a fim de levar-nos para casa. O sol já cruzou o meio do céu, portanto tomemos uma taça de borbulhante.

— Champanha?

— Por que não?

— Não seria melhor esperarmos seu pai chegar?

— Por quê? Ele detesta champanha. E você, também não gosta?

— Nunca bebi champanha.

— Então, este é um bom momento para começar.

E antes que Judith fizesse alguma objeção, ele ficou em pé e foi novamente apertar o botão junto à lareira, chamando o garçom.

— Oh, mas... no meio do dia, Edward?

— Naturalmente! Um dos encantos do champanha é que pode ser bebido a qualquer hora do dia ou da noite. Meu avô costumava chamá-lo de Eno dos ricos. Por outro lado, conhece algum modo melhor de nós dois começarmos o Natal?

Sentada em seu toucador, inclinada ansiosamente para o espelho, Judith aplicou rimel aos cílios. Era a primeira vez que usava rimel, porém seu presente de Athena no Natal havia sido um belo estojo de cosméticos Elizabeth Arden, de maneira que o mínimo que poderia fazer, em agradecimento, era tentar lidar com as complexidades da maquiagem. Havia um pequeno pincel na caixa do rimel, o qual ela havia molhado na torneira, em seguida fazendo uma espécie de pasta. A sugestão de Athena tinha sido a de que cuspisse sobre o rimel — isso o faria durar mais tempo, justificou ela — mas cuspir parecia demasiado repugnante, de modo que Judith preferira a torneira.

Eram sete horas do anoitecer do Natal, e agora ela se vestia para o clímax do jantar natalino. Tinha enrolado o cabelo com grampos que a deixaram com cachinhos em toda a cabeça, limpado o rosto com o novo creme de limpeza e passado base. Finalizara com um pó-de-arroz deliciosamente perfumado. O rouge estava fora de discussão, porém o rimel era um desafio; por sorte conseguiu manejá-lo a contento, sem espetar o pincel no olho, com conseqüências possivelmente fatais. Ao terminar, recostou-se no assento, procurando não piscar, e esperou que o rimel secasse. Seu reflexo a encarava, de olhos arregalados como uma boneca, porém maravilhosamente melhorado. Judith ficou pensando por que ainda não havia experimentado o rimel.

Enquanto esperava, ela ouvia. Além da porta fechada, a casa estava cheia de diminutos e distantes sons. Um chocalhar de pratos, vindo da cozinha, e a voz mais alta da sra. Nettlebed, chamando o marido. Mais longe ainda, os fracos compassos de uma valsa. O Conde de Luxemburgo. Devia ser Edward, testando a vitrola, para o caso de sua mãe resolver que dançariam após o jantar. E então, bem mais próximo dela, ruídos de água correndo e esganiçadas vozes infantis vindo do banheiro, onde a babá dos Pearsons devia estar preparando para a cama as crianças aos seus cuidados. Os dois pequeninos estavam exaustos, superexcitados após o longo dia e, de quando em quando, as vozes infantis passavam para choros e gemidos, quando implicavam e brigavam um com o outro, provavelmente a poder de tapas. Judith permitiu-se uma pontada de solidariedade com a babá dos Pearsons, que estivera atrás daquelas crianças o dia inteiro. A essa altura devia estar ansiosa para que ambas caíssem inconscientes em suas camas, a fim de que ela pudesse ir para o quarto de brinquedos, pôr para o alto os tornozelos inchados e mexericar com Mary Millyway.

O rimel parecia seco. Judith tirou os grampos, escovou o cabelo e ajeitou as extremidades em um brilhante estilo pagem. Agora, o vestido. Despiu o robe e foi para a cama, onde estendera o traje azul-borboleta, à espera deste exato momento. Ergueu-o, sentiu-o tão leve como o ar, passou-o por cima da cabeça, enfiou as mãos nas mangas e então a seda fina assentou-se sobre o corpo. Abotoou o botãozinho atrás do pescoço e fechou o zíper da cintura. Era um pouco comprido, mas assim que calçou as novas sandálias de salto, o problema ficou resolvido. Ou quase. Aparafusou nos lóbulos das orelhas os brincos de ouro que Athena tivera a gentileza de emprestar-lhe. Passou o novo batom — Coral Rose — o novo perfume, e estava pronta.

Judith ficou em pé e, pela primeira vez, examinou-se no comprido espelho no centro do guarda-roupa. Estava tudo bem. Aliás, estava tudo maravilhoso, porque sua aparência era de fato ótima. Alta, esguia e mais importante de tudo, adulta. Dezoito anos, finalmente. E o vestido era um sonho. Ela deu uma volta, e as saias flutuaram ao seu redor, exatamente como as de Ginger Rogers; exatamente da maneira como flutuariam, se Edward a convidasse para dançar. Judith rezou para que ele a convidasse.

Hora de ir. Desligando as luzes, ela saiu do quarto, avançou pelo corredor, e o tapete espesso estava macio sob as solas finas de suas sandálias. Pela porta do banheiro evolavam-se odores vaporosos de sabonete Pears, e ela ouviu a voz da babá, censurando, "De que adianta serem tão tolos?" Pensou em dar uma olhada para dizer boa-noite, mas resolveu em contrário, pois Roddy e Camilla poderiam começar o berreiro novamente. Desceu pela escada dos fundos e caminhou para a sala de estar. A porta permanecia aberta. Judith respirou fundo e entrou. Tinha a sensação de dirigir-se para o palco, em uma peça do colégio. O enorme aposento de cores pálidas dançava com a luz do fogo na lareira, das lâmpadas e dos cintilantes enfeites de Natal. Viu tia Lavinia, majestática em veludo negro e diamantes, já acomodada em uma cadeira de braços ao lado da lareira, com o coronel, Tommy Mortimer e Edward em pé à sua volta. Eles seguravam copos e conversavam, de modo que não perceberam a sua chegada. Tia Lavinia, no entanto, avistou-a imediatamente, e ergueu a mão em um breve gesto de boas-vindas, isto fazendo com que os três homens se virassem, querendo ver quem os interrompera.

A conversa cessou. Por um instante, houve silêncio. Hesitante, ainda na porta, foi Judith quem o rompeu.

— Fui a primeira a descer?

— Santo Deus, é Judith! — exclamou o coronel, sacudindo a cabeça, admirado. — Minha querida, eu nem a reconheci!

— Que aparição simplesmente encantadora! — exclamou Tommy Mortimer por sua vez.

— Não sei por que todos parecem tão surpresos — censurou tia Lavinia. — Claro que ela está bonita... e essa cor, Judith! Exata a de um martim-pescador.

Edward, contudo, nada disse. Apenas largou o copo, cruzou a sala até ela e tomou-lhe a mão na sua. Judith ergueu os olhos, fitou o rosto dele e soube que Edward não precisaria dizer nada, porque seus olhos já haviam dito tudo. Por fim ele falou:

— Estávamos bebendo champanha.

— De novo — implicou ela, e ele riu.

— Venha e junte-se a nós.

Mais tarde, nos anos vindouros, sempre que Judith recordava aquele jantar de Natal de 1938, em Nancherrow, era mais ou menos como olhar para uma pintura impressionista: todas as arestas agudas diluíam-se na suavidade da luz das velas e da vertigem do champanha ligeiramente além da conta. O fogo estava aceso; troncos chamejavam e crepitavam, mas esbatendo móveis, paredes apaineladas e escuros retratos, que recuavam e se fundiam, tornando-se não mais do que um penumbroso pano de fundo para a mesa festiva. Candelabros de prata enfileiravam-se no centro da mesa, juntamente com ramos de azevinho, estalos escarlates, pratos de nozes, de frutas e chocolates. Sobre o mogno escuro haviam sido dispostos serviços individuais e guardanapos de linho branco, a prataria mais elaborada da família e copos de cristal, finos e transparentes como bolhas de sabão.

No tocante às dez pessoas em torno da mesa, Judith jamais esqueceria como haviam sido exatamente colocadas e como estavam vestidas. Os homens, naturalmente, em trajes a rigor, dinnerjackets, camisas engomadas e alvas como neve, e gravatas-borboleta pretas. O coronel preferira um colarinho alto, que o fazia parecer como que saído diretamente da moldura dourada de alguma tela vitoriana. Quanto às mulheres, havia a sensação de que todas haviam combinado antecipadamente, como na realeza, para terem certeza de que nenhuma cor destoaria e que nenhuma dama presente sobrepujaria as demais.

O coronel ocupava a cabeceira, em sua costumeira e enorme cadeira Carver, com Nettlebed pairando às suas costas, e tia Lavinia à sua direita. Judith sentava-se entre ela e Alistair Pearson; além dele estava Athena, parecendo uma deusa do verão, em um vestido branco sem mangas, de tecido lustroso. Do outro lado do coronel estava Jane Pearson, brilhante como um periquito, em sua cor vermelha predileta, com Edward ao seu lado esquerdo. Isto significava que Edward sentava-se de frente para Judith. De tempos em tempos, quando erguia o rosto ela captava o olhar dele, e Edward sorria como se ambos dividissem algum esplêndido segredo, enquanto erguia a taça para ela e bebia champanha.

Junto dele estava sua irmã mais nova. Aos dezesseis anos, Loveday Vivia a transição de ser adolescente e tornar-se adulta, mas, por algum Motivo, esse incômodo estado não a perturbava nem um pouco. Ela continuava voltada para a equitação e passava muito de seus dias nos estábulos, mexendo com uma coisa e outra, cuidando da limpeza e da alimentação dos animais, na companhia de Walter Mudge. As roupas eram tão sem importância para ela como sempre tinham sido; calças de montaria manchadas e amarrotadas constituíam o seu traje habitual juntamente com qualquer suéter velha encontrada no armário de roupas em desuso que havia no quarto de brinquedos. Esta noite, Loveday não usava qualquer jóia; os anelados cabelos escuros continuavam à vontade como sempre, e o rosto expressivo, com aqueles admiráveis olhos violeta, mostrava-se inocente de maquiagem. Seu vestido, no entanto — seu primeiro vestido longo, escolhido por Diana em Londres e dado a ela como um dos seus presentes de Natal — era puro encantamento. Em organdi, no vívido tom verde das folhas novas da faia, de cava bem funda nos ombros, era fartamente franzido à volta do pescoço e da bainha da saia. A própria Loveday ficara seduzida por ele e o vestiu sem uma palavra de queixa, o que constituiu um enorme alívio para todos, em particular Mary Millyway, que conhecia melhor do que ninguém a teimosia de sua "menina".

Tommy Mortimer sentava-se ao lado de Loveday, e então, na extremidade oposta da mesa, estava Diana, em um justo vestido de cetim cor de aço. Quando ela se movia ou a luz incidia nas dobras do tecido, este tom alterava-se sutilmente, de modo que às vezes parecia azul e, em outras, cinzento. Com este traje, ela usava pérolas e diamantes, sendo o único toque de cor o oferecido por suas unhas e o batom escarlates.

Havia o zumbido das conversas, depois as vozes elevando-se, à medida que o vinho e o delicioso festim se prolongavam. Primeiro, róseas fatias de salmão defumado, finas como papel; depois peru, bacon, salsichas, batatas assadas, brotos e cenoura na manteiga, molho de pão, geléia de uva-do-njtonte, caldo de carne, espesso e escuro, enriquecido com vinho. -Quando os pratos foram levados da mesa, o vestido de Judith começava a parecer desconfortavelmente apertado, porém é claro que ainda havia mais por vir. O pudim de Natal da sra. Nettlebed, sua manteiga com conhaque, seus pastéis com recheio de frutas cristalizadas e pratos de grosso creme da Cornualha. Em seguida, nozes a serem partidas, tangerinas doces e pequenas para serem descascadas e ruidosos estalinhos a serem puxados e detonados. O jantar formal degenerou em festa de crianças, com chapéus de papel que não assentavam bem e colocados tortos na cabeça, piadas sofríveis e adivinhações a serem lidas em voz alta.

Finalmente tudo terminou, e chegou o momento em que as damas se retirariam. Levantando-se da mesa, agora entulhada de papel rasgado, embalagens de chocolate, cinzeiros e cascas quebradas de nozes, elas encaminharam-se para a sala de estar, onde tomariam o café. Diana seguiu na frente. Antes de deixar a sala, contudo, parou junto do marido e inclinou-se para beijá-lo.

— Dez minutos — disse a ele. — É todo o tempo de que dispõe para o seu vinho do Porto. Caso contrário, a noite ficará em pedaços.

— E como passaremos o resto dela?

— Dançaremos o tempo todo, claro. O que mais faríamos?

E, de fato, quando os homens se juntaram a elas, Diana já organizara tudo: sofás e poltronas puxados para um lado, os tapetes enrolados e a vitrola provida com seus discos dançantes prediletos.

A música era outra coisa que Judith sempre lembraria; as melodias daquela noite, daquele ano. Smoke Gets in YourEyes, You're the Cream in My Coffee, Deep Purple e D'Lovely.

A lua nasceu,

O firmamento brilha,

E se quiser ir andando, meu bem,

Será formidável, muito bom, maravilhoso...

Esta, Judith dançou com Tommy Mortimer, um tão excelente dançarino, que ela nem teve de pensar no que seus pés deveriam fazer. Então foi a vez de Alistair Pearson, agora sendo muito diferente, porque tudo quanto ele fez foi marchar animadamente com ela em torno da sala, como se estivesse usando um aspirador de pó. Depois desta música houve uma valsa, em homenagem a Lavinia, que a dançou com o coronel. Foram o melhor par a exibirem-se para os demais, por serem os únicos que sabiam como inverter os rodopios adequadamente. A velha senhora ergueu com uma das mãos as pesadas saias de veludo de seu vestido, revelando sapatos com fivelas de diamantes, os Pés movendo-se e girando com a leveza e vitalidade da jovem que ela um dia fora.

Valsar era uma atividade que deixava os participantes sequiosos. Judith serviu-se de um suco de laranja e, ao afastar-se da mesa, encontrou Edward ao seu lado.

— Deixei o melhor por último — disse ele. — Já cumpri minha obrigação com todos os amigos e parentes. Agora, venha e dance comigo.

Ela largou o copo e foi para os braços dele.

Só olhei para você E mais nada eu fiz Mas meu coração parou.

O coração dela, contudo, não havia parado, como dizia a letra da música. Batia tão forte, que Judith tinha a impressão de que Edward podia ouvi-lo. Ele a mantinha abraçada bem junto do corpo e cantava suavemente as palavras da canção em seu ouvido. Ela desejou que a música continuasse para sempre, nunca parando. Entretanto, teria que chegar ao fim, e então os dois separaram-se.

— Agora você pode beber seu suco de laranja — disse Edward, e foi buscar a bebida para ela.

Por um momento houve uma espécie de parada, como se todos estivessem começando a sentir-se um pouco cansados e ansiosos por uma pausa. Exceto Diana. Na opinião dela, todos os instantes deviam ser preenchidos e, quando a música recomeçou, foi com aquele velho clássico Jealousy. Ela prontamente foi até a cadeira de braços onde Tommy Mortimer estava reclinado e, tomando-o pela mão, fez com que se levantasse. Prestimoso como sempre, ele a puxou para si e os dois, sozinhos no piso, dançaram o tango.

Fizeram isto com a eficiência de profissionais, mas também de modo bastante satírico, com os corpos muito juntos e os braços rígidos, espichados para o alto. Cada passo, cada pausa ou volteio eram exagerados e, sem sorrir, eles se fitavam intensamente, olhos nos olhos. Foi uma extraordináriáTperformance mas igualmente muito engraçada e, nos acordes finais de plangentes guitarras, o par encerrou seu número de maneira triunfante, com Diana inclinada para trás e sustentada pelo braço de Tommy, ele debruçado apaixonadamente para ela, cuja loura cabeça quase tocava o chão. Só então, quando Tommy a deixou ereta sobre os próprios pés, em meio a uma tempestade de aplausos, é que Diana desatou em gargalhadas. Foi sentar-se ao lado de tiaLavinia, que enxugava as lágrimas de hilaridade que lhe tinham brotado dos olhos.

— Diana, minha querida, seu tango foi brilhante, mas manter-se tão séria foi o melhor de tudo. Você devia estar no palco. Oh, céus, nem me lembro de quando me diverti tanto, mas já é quase meia-noite. De fato, eu devia dizer que está amanhecendo e voltar para casa.

Tentando não parecer muito ansioso, o coronel adiantou-se prontamente.

— Eu a levarei de carro.

— Odeio interromper a reunião — ela deixou que o coronel a ajudasse a levantar-se da poltrona — mas o melhor momento de retirar-se é quando estamos nos divertindo de fato! Agora o meu xale, por favor, acho que está no saguão... — A velha senhora fez a volta do salão, beijando e dizendo boa-noite. A porta, virou-se. — Diana querida... — Soprou um último beijo. — Que noite perfeita! Telefonarei de manhã.

— Durma bem, tia Lavinia, e tenha um bom descanso.

— Também é o meu desejo. Boa noite para todos. Boa noite! Ela se foi, escoltada pelo coronel. A porta se fechou atrás deles.

Diana esperou um momento, depois virou-se e inclinou o corpo para acender um cigarro. Por um momento, a atmosfera ficou estranha, como se todos eles fossem crianças e deixados por conta própria, sem adultos que estragassem seu divertimento.

De cigarro aceso, Diana olhou para seus convidados.

— O que faremos agora? Ninguém pareceu ter qualquer sugestão inteligente.

— Já sei! — De repente, o sorriso dela foi radioso. — Vamos brincar de Sardinhas!

Ainda bebericando champanha, Athena soltou um resmungo.

— Oh, mamãe! Cresça!

— Por que não Sardinhas? Não brincamos disso há séculos. Todos sabem como é, não sabem?

Alistair Pearson disse que brincara de Sardinhas anos antes, mas que esquecera as normas. Será que alguém poderia...? Foi Edward quem explicou.

— Uma pessoa se esconde. Contamos até cem e então todos vão procurá-la. Quem a encontrar fica calado. Apenas ocupa o mesmo esconderijo e fica lá, até que todos se comprimam em uma cesta de lavanderia, um guarda-roupa ou seja qual for o esconderijo. O último a esconder-se é o pateta.

— Oh, sim — disse Alistair não parecendo muito entusiasmado. — Lembro-me agora.

— A única regra é que devemos todos ficar no andar de baixo declarou Diana. — Há espaço de sobra e, se subirmos, alguém poderá acordar as crianças...

— Ou enfiar-se na cama com a babá...

— Oh, Edward!

— Por engano, é claro.

— Tudo bem, mas como — perguntou Alistair, teimosamente decidido a receber amplas explicações — escolheremos a pessoa que se esconderá primeiro?

— Escolheremos por cartas. As mais altas serão de espadas, e a carta de maior valor ganha.

Diana foi até sua mesa de bridge, abriu uma gaveta e pegou um baralho. Em seguida arrumou as cartas com as faces voltadas para baixo, em um desajeitado leque, e foi parando diante de cada pessoa, a fim de que todos escolhessem suas cartas. Judith virou a face da sua para cima. Era o ás de espadas.

— Sou eu — disse ela.

Loveday foi incumbida por Diana de apagar todas as luzes.

— Todas as luzes acesas na casa? — perguntou ela.

— Não, querida, esqueça a do patamar do andar de cima. Caso contrário, a babá pode entrar em pânico e haverá gente caindo escada abaixo.

— Bem, mas isso quer dizer que podemos enxergar.

— Muito pouco. Depressa, vá apagar as luzes!

— Bem — disçe Edward. — Daremos a você uma dianteira, enquanto contamos até cem, Judith. Depois iremos à sua procura.

— Em qualquer lugar no andar térreo?

— Excetuando-se as cozinhas, creio. Acho que os Nettlebeds ainda não terminaram por lá. Fora isso, esconda-se onde quiser.

Loveday voltou para junto deles.

— Está tudo escuro e fantasmagórico — anunciou, com certa satisfação. — Mal se enxerga alguma coisa.

Judith sentiu-se invadida por um tremor de ansioso medo. Era ridículo, mas desejaria que a carta mais alta tivesse sido escolhida por qualquer dos outros. Jamais admitira para alguém o quanto ficava nervosa com esse tipo de jogo, e sempre achara uma espécie de provação a brincadeira de esconde-esconde no jardim, porque em geral levava a maior parte do tempo querendo ir ao banheiro.

Entretanto, nada havia que pudesse fazer, além de tomar coragem e seguir em frente.

— Muito bem, vamos começar! Atenção, Judith. Preparada? Vá! Eles já tinham iniciado a contagem, antes mesmo dela cruzar a porta.

Um, dois, três... Judith fechou a porta às suas costas e ficou espantada ante a escuridão absoluta que a envolveu. Era como estar com a cabeça dentro de um saco de veludo grosso. Sentiu pânico, enquanto sua mente procurava algum esconderijo onde agachar-se, antes que todos viessem, como sabujos, latindo em sua busca. Estremeceu, mas, do outro lado da porta, eles ainda contavam. Treze, quatorze, quinze... Aos poucos, no entanto, seus olhos foram ficando acostumados ao escuro, conseguiam distinguir, no outro extremo do saguão, a débil claridade que se filtrava do alto da escada, vinda da lâmpada acesa no andar de cima, perto da porta do quarto de brinquedos.

Isso já melhorava a situação. E não havia tempo a perder. Ela avançou, cautelosa como se fosse cega, vacilante e temendo esbarrar em alguma cadeira ou mesa. Onde esconder-se? Queria orientar-se, avaliar distâncias. Conhecia tudo ali perfeitamente, mas agora o ambiente era de todo confuso. Deu os primeiros passos temerosos e calculou sua posição. A direita ficava a pequena sala de estar e, mais além, a sala de refeições. No lado oposto, estavam a sala de bilhar e o estúdio do coronel. A medida que cruzava o saguão, a luminosidade pálida que vinha do andar de cima a guiava para a frente. Judith moveu-se para a esquerda, sua mão tocou a parede, e ela deixou que o ornamento da cornija a guiasse. Tropeçou em uma mesa, sentiu o roçar frio de folhas contra seu braço nu. Então, a moldura de uma Porta. Seus dedos tatearam o apainelado maciço, encontraram a maçaneta e a torceram. Então, empurrando a porta, esgueirou-se para o interior.

A sala de bilhar. Escuríssima agora. Suavemente, fechou a porta após entrar. Captou o odor familiar, de rapés antigo e cheirando a mofo mesclado a fumaça de charuto. Trapaceando, tateou pelo interruptor elétrico e o ligou. A mesa de bilhar, coberta por seus protetores de poeira, ficou imediatamente banhada em luz. Tudo estava arrumado e em ordem; os tacos dispostos de pé em seus suportes, prontos para o próximo jogo. Não havia fogo na lareira, mas os pesados reposteiros de brocado estavam bem cerrados. Caindo em si, Judith apagou a luz e cruzou rapidamente o amplo aposento, seus pés não produzindo nenhum som sobre o espesso tapete turco.

As janelas altas da sala tinham um peitoril alto e fundo, onde às vezes, em uma tarde chuvosa, ela e Loveday encarapitavam-se para assistir a algum jogo em andamento, enquanto tentavam registrar os resultados. Não era um esconderijo muito imaginativo, porém não conseguia pensar em outro, e os segundos corriam velozes. Empurrou um reposteiro para o lado, recolheu as saias compridas e acomodou-se no peitoril. Então, rapidamente, tornou a puxar as cortinas, fechan-do-as bem e ajeitando-lhes as dobras, a fim de recuperarem a aparência natural de antes e impedirem que qualquer fugidio raio de luz denunciasse sua presença ali.

Pronto. Conseguira. Estava escondida. Movendo-se de lado, recostou os ombros contra as persianas. O frio era terrível, como se estivesse num compartimento diminuto e gélido, porque as vidraças estavam geladas, e os reposteiros espessos não deixavam passar calor algum dos radiadores. Lá fora, o céu estava escuro, pontilhado de nuvens cinzentas que se separavam de vez em quando, revelando o piscar das estrelas. Judith olhou para a escuridão do exterior e viu as silhuetas das árvores invernais, inquietas, sacudindo as copas ao vento. Não reparara no vento antes, mas, agora, tiritando, estava bem cônscia dele, que espreitava na borda das janelas, como algo pedindo licença para entrar.

Um som. Judith ergueu a cabeça para ouvir. Muito além, uma porta se abriu e uma voz soou mais alto:

— Estamos indo! Logo chegaremos!

Tinham encerrado a contagem. Agora, estavam no seu encalço, farejando-a, caçando-a. Ela pensou em ir ao banheiro, mas então, com firmeza, decidiu expulsar tal idéia da mente. Queria que todos a encontrassem, antes que morresse de frio.

Esperou. A espera parecia eternizar-se. Mais vozes. Passos. Uma risada feminina. Os minutos passavam. Então, muito suavemente, uma porta se abriu e voltou a fechar-se. A porta da sala de bilhar. Judith ficou intensamente cônscia da presença indefinida de outra pessoa, o que de pronto a aterrorizou. Entretanto, não houve nenhum som. O tapete grosso abafaria qualquer som, porém ela teve a súbita certeza de que os passos vinham em sua direção. Conteve a respiração, não querendo trair-se. Então, um reposteiro foi puxado suavemente, e Edward sussurrou:

—Judith?

— Oh! — Foi um involuntário suspiro de alívio, porque a espera e a tensão haviam terminado. — Estou aqui — sussurrou de volta.

Ele se içou levemente para o fundo peitoril, tornando a cerrar as cortinas. Edward estava ali, alto, sólido e muito próximo. Além de quente.

— Sabe como a encontrei?

— Não deve falar. Eles ouviriam.

— Sabe?

—Não.

— Eu a farejei.

Judith sufocou uma risadinha nervosa.

— Que horror!

— Não. Formidável. Seu perfume.

— Estou congelando.

— Está um frio danado. Aqui, neste lugar. — Ele a puxou para si e começou a esfregar-lhe rapidamente os braços arrepiados, como se enxugasse um cão. — Meu Deus, você está gelada! E agora? Sente-se melhor?

— Sim. Estou melhor.

— É como estar em uma casinha, não? Com uma parede, uma janela e apenas espaço suficiente entre ambas.

— Está ventando lá fora. Eu não sabia que havia vento esta noite.

— Sempre venta à noite. É um presente do mar. Esta noite é um presente de Natal.

Ao dizer isso, e sem acrescentar mais nada, ele passou os braços em torno dela, apertou-a bem contra o corpo e a beijou. Judith sempre imaginara que ser beijada pela primeira vez, adequadamente, por um homem, seria algo espantoso, estranho, além de uma experiência com a qual precisaria ficar acostumada. O beijo de Edward, no entanto, era firme e competente, de maneira alguma estranho, apenas maravilhosamente confortador e, de um modo obscuro, aquilo com que ela estivera sonhando durante meses.

Ele parou de beijá-la, mas continuou a abraçá-la, apertando-a contra o peito esfregando a face na dela, sussurrando-lhe ao ouvido.

—Fiquei a noite inteira querendo fazer isso. Desde que você surgiu à porta, parecendo... aquilo que tia Lavinia disse... um lindo martim-pescador.

Afastando-se, Edward baixou os olhos para ela.

— Como é que um patinho engraçado transformou-se em um belo cisne?

Ele sorriu, e havia claridade suficiente para ver seu sorriso. Judith sentiu a mão cálida mover-se de seu ombro, descer-lhe pelas costas, acariciar-lhe a cintura e as coxas, através das dobras finas do vestido de seda azul. Então, Edward tornou a beijá-la, mas foi diferente desta vez, porque ele tinha aberto a boca, a língua a forçava a entreabrir os lábios, e agora aquelas mãos abarcavam seus seios, pressionavam sua carne macia...

E tudo retornou. Misericordiosamente esquecido durante tanto tempo, o horror retornou, e ela estava outra vez no cinema, naquele cineminha escuro e sujo, com a mão de Billy Fawcett em seu joelho, tateando, violando sua privacidade, abrindo caminho...

A reação de pânico foi puramente instintiva. O que tinha sido agradável e delicioso, de repente ficou ameaçador, de nada adiantando dizer a si mesma que este era Edward, porque não fazia diferença quem fosse; ela apenas sabia que não poderia lidar com esta intrusão sexual. Não a queria agora, como não a quisera e nem fora capaz de lidar com ela quando tinha quatorze anos. Mesmo querendo, seria impossível conter-se agora e, erguendo os braços bruscamente, empurrou o peito de Edward com força.

—Não!

—Judith!

Ela sentiu a perplexidade na voz dele; encarou-o e viu o cenho franzido de espanto. Repetiu:

— Não, Edward! —Sacudiu a cabeça violentamente. —Não!

— Por que o medo? Sou eu, Judith!

— Eu não quero. Você não devia...

Ela o empurrou, ele a soltou. Judith recuou, de maneira que seus ombros estavam novamente pressionados contra a dureza das persianas. Por um momento, nenhum deles falou. O silêncio pairou entre ambos, acompanhado somente pelo uivo do vento. Aos poucos, o pânico idiota e irracional que ela sentia foi cedendo, e percebeu que as pancadas velozes de seu coração recuperavam o ritmo normal. O que foi que eu fiz?, perguntou a si mesma, cheia de vergonha, porque quisera tanto ser adulta, e agora mostrava o comportamento de uma desajeitada e aturdida imbecil. Billy Fawcett. De repente, sentiu vontade de gritar com raiva de si mesma. Pensou em tentar explicar tudo a Edward, mas compreendeu que jamais diria alguma coisa.

— Eu sinto muito — disse afinal, de um modo pateticamente inadequado.

— Não gostou de ser beijada?

Era evidente que Edward ficara absolutamente confuso. Judith encontrou tempo para pensar se alguma garota já o tratara daquela maneira. Edward Carey-Lewis, o jovem privilegiado e rico, a quem provavelmente nunca, em toda a sua vida, alguma pessoa já dissera não.

— A culpa foi toda minha — disse ela tristemente.

— Pensei que fosse o que você queria.

— Eu queria... quero dizer... Oh, não sei!

—Não suporto vê-la tão tristonha... —Edward deu um passo para ela, mas, movida por algum desespero, Judith ergueu as mãos, impedindo a aproximação dele. — O que foi?

— Oh, nada. Não tem nada a ver com você.

— Então...

Ele parou. Virou a cabeça para ouvir. Além das cortinas, a porta da sala de bilhar fora aberta e fechada suavemente. Estavam prestes a ser descobertos, e agora era tarde demais para qualquer explicação. Desesperada, Judith ergueu os olhos para o perfil de Edward, dizendo a si mesma que o havia perdido para sempre. Não houve tempo de pronunciar uma só palavra. A cortina foi puxada para um lado.

— Achei que vocês só podiam estar aqui — sussurrou Loveday. Edward inclinou-se para ajudá-la a encarapitar-se no peitoril da janela e juntar-se a eles.

Nessa noite, o antigo sonho repetiu-se. O pesadelo que ela imaginara sepultado e esquecido para sempre. Estava no seu quarto em Windy-ridge, com a janela aberta, as cortinas agitadas pelo vento, e Billy Fawcett subia pela escada de mão, a fim de atacá-la. Novamente paralisada pelo terror, ela observava e esperava que a cabeça dele assomasse acima do peitoril, com os olhinhos brilhantes e sagazes, o sorriso de dentes amarelados. E quando ele chegou, ela despertou sobressaltada, suando de medo, para em seguida sentar-se bruscamente na cama, com a boca aberta em um grito silencioso.

Era como se ele tivesse triunfado. Billy Fawcett estragara tudo para ela. De algum modo fantástico e horripilante, confundira-o com Edward, cujas mãos se tinham tornado as daquele homem, assim ressuscitando todas as suas básicas inibições — e ela era demasiado jovem e demasiado inexperiente para saber como manejá-las.

Judith jazia em seu quarto escuro de Nancherrow, e chorou contra o travesseiro, porque amava muito Edward e agora havia arruinado tudo. Nada voltaria a ser como antes outra vez.

Entretanto, ela havia esquecido como era Edward. Pela manhã, ainda dormindo, foi acordada por ele. Ouviu a batida suave, e a porta se abriu.

—Judith?

Estava escuro, porém a luz do teto foi subitamente acesa, ofuscan-do-lhe os olhos com seu intenso clarão. Isto a despertou de todo e sentou-se na cama, pestanejando e confusa.

—Judith.

Era Edward. Ela o encarou entorpecidamente. Viu-o de barba feita, vestido, olhar límpido, disposto para o novo dia, nem parecendo que tinha ido para a cama às três da madrugada.

— O que foi?

— Não fique tão assustada.

— Que horas são?

— Nove.

Ele foi até a janela, puxou as cortinas para os lados, e o quarto inundou-se com a claridade cinzenta daquela manhã de fins de dezembro.

— Dormi além da conta.

—Não tem importância. Todos estão dormindo além da conta esta manhã.

Ele caminhou até a porta para apagar a luz e depois, sem a menor cerimônia, sentou-se na beira da cama dela.

Precisamos conversar — falou

As recordações da véspera afluíram vivamente.

— Oh, Edward...

Judith tinha a impressão de que tornaria a sucumbir a lágrimas incontroláveis.

— Não fique tão angustiada. Tome... — Inclinando-se, Edward pegou no chão o robe que tinha escorregado da cama. — Vista-o, do contrário morrerá de frio. — Ela assim fez, enfiando os braços nas mangas e apertando o robe à volta do corpo. — Dormiu bem?

Ela recordou o sonho horrivelmente familiar.

— Muito bem — mentiu.

—Fico contente em saber. Agora, ouça: fiquei rememorando tudo o que houve, e por isso é que estou aqui. O que aconteceu ontem à noite...

— A culpa foi minha.

— Ninguém teve culpa. Talvez eu tenha julgado mal a situação, porém não vou desculpar-me porque, segundo penso, não tenho motivos para pedir desculpas. Exceto, talvez, por esquecer o quanto você ainda é jovem. Vestida como adulta e com aparência tão sedutora, tive a impressão de que havia crescido de todo em um minuto. Entretanto, claro está, isso não pode acontecer com ninguém. É apenas aparência, nada mais. Não houve mudança interior.

— Está enganado. — Judith baixara os olhos e fitava seus dedos, que dobravam a aba do lençol. —Eu quis que me beijasse. Quis dançar com você, depois quis que me beijasse. E então, estraguei tudo.

— Quer dizer que não me odeia?

Ela ergueu o rosto e fitou os francos olhos azuis de Edward.

— Não — respondeu. — Gosto demais de você para odiá-lo.

—Sendo assim, vamos esquecer o que houve, certo?

—Foi por isso que veio aqui e me acordou?

— Não de todo. Eu queria apenas ter certeza de que nos entenderíamos. Porque nunca deverá haver qualquer tensão ou desentendimento entre nós. Não por sua causa ou por mim, mas em consideração a todos os demais na casa. Ainda ficaremos todos juntos por alguns dias, e nada seria mais incômodo do que qualquer espécie diferente de atmosfera, de silêncios forçados, comentários importunos ou expressões sombrias. Compreendeu o que estou dizendo?

— Compreendi, Edward.

— Minha mãe é muitíssimo perspicaz no que diz respeito ao relacionamento dos outros. Não a quero lançando longos olhares desconfiados para você ou me forçando a dar respostas. Não vai ficar tristonha pelos cantos, fazendo uma imitação de Lady de Shallot

— Não, Edward.

— Boa menina!

Judith não respondeu a isso, porque não conseguia pensar em algo para dizer. Apenas ficou quieta na cama, estremecida por desencontradas emoções.

Seu alívio era imenso. Alívio porque Edward não pretendia ignorá-la e desprezá-la pelo resto da vida; por ele ainda querer falar com ela e permanecerem amigos. E por ele não a considerar uma assanhadinha de duas caras. (Judith aprendera esta sofisticada frase com Heather Warren, que a aprendera com seu irmão Paddy. Paddy tinha uma namorada por quem era apaixonado, mas de quem jamais conseguira alguma coisa, apesar dela tingir o cabelo, usar saias muito curtas e ter modos provocantes. Ela é uma maldita assanhadinha, ele finalmente tinha dito à irmã, para em seguida entregar-se a um acesso de fúria. Na primeira oportunidade, Heather havia transmitido tão fascinante informação a Judith, deixando perfeitamente claro que, para os homens, tal comportamento significava menos do que nada.)

Portanto, um alívio. De qualquer modo, ela também se sentia tocada pelo bom senso de Edward. Ele fora movido principalmente pela preocupação com a mãe e seus convidados para as festividades do Natal, mas, sem dúvida, também pensando um pouquinho nela, Judith.

— Você tem toda razão, é claro — disse.

— Ótimo — replicou ele. — Lealdades de família?

— Eles não são minha família.

— São quase...

 

Título de um poema de Tennyson. A sina da dama em questão é similar a Elaine, donzela dos tempos do rei Artur, que definha e morre de amor por Lancelot. (N. da T.)

 

Tais palavras a encheram de amor por ele. Erguendo os braços, puxou-o para bem perto e beijou-lhe a face escanhoada. Ele cheirava a colônia e essência de limão. O pesadelo com Billy Fawcett evolara-se novamente, afugentado por Edward e pela claridade da manhã, tendo o amor voltado para o lugar ao qual pertencia. Judith recostou-se nos travesseiros.

—Já fez seu breakfast?

— Ainda não. Esclarecer assuntos pareceu-me mais importante.

— Estou faminta — disse Judith e, um tanto para sua surpresa, verificou que era verdade.

—Você fala como Athena. — Edward levantou-se da cama. — Vou descer. Quanto tempo vai demorar?

— Dez minutos.

— Estarei esperando.

 

                                                                                CONTINUA 

 

                      

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