Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O REI DO INVERNO
Primeira Parte
Uma Criança no Inverno
Há muito, muito tempo, numa terra chamada Grã-Bretanha, estas coisas aconteceram. O bispo Sansum, que Deus abençoe acima de todos os santos vivos ou mortos, diz que estas memórias deviam arder no fogo do inferno com toda a restante podridão da humanidade decadente, pois estas são as histórias dos dias que antecederam a descida das grandes trevas sobre a luz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Estas são as histórias das terras a que chamamos Lloegyr, que significa Terras Perdidas, do país que outrora foi nosso, mas ao qual os nossos inimigos chamam agora Inglaterra. Estas são as histórias de Artur, o Senhor da Guerra, o Rei que Nunca Existiu, o Inimigo de Deus e, que o Cristo Vivo me perdoe, o melhor homem que jamais conheci. Como eu chorei por Artur.
Hoje faz frio. As montanhas cobrem-se de uma palidez de morte e são negras as nuvens. Deve nevar antes do cair da noite, mas Sansum vai com certeza recusar-nos a bênção de uma fogueira. O frio é bom, diz o santo, para mortificar a carne. Eu já sou velho, mas Sansum, que Deus lhe dê muitos anos, é ainda mais velho e, por isso, não posso valer-me da idade para abrir a arrecadação da lenha. Sansum vai limitar-se a dizer que o nosso sofrimento é uma oferenda a Deus que sofreu mais do que todos nós. E assim, nós, os seis Irmãos, nada podemos fazer senão passar a noite mal dormida a tiritar de frio. E amanhã o poço estará gelado e o Irmão Maelgwyn terá de descer a corrente e partir o gelo com uma pedra para podermos beber.
No entanto, o frio não é o pior tormento do nosso Inverno. O pior é que os caminhos gelados vão impedir Igraine de visitar o mosteiro. Igraine é a nossa rainha, casada com o rei Brochvael. É esbelta e morena, muito nova e dona de uma energia que é como o calor do sol num dia de Inverno. Vem cá rezar para que lhe seja concedida a bênção de um filho. Porém, passa mais tempo a conversar comigo do que a rezar a Nossa Senhora ou ao Seu abençoado Filho. Conversa comigo, porque gosta de ouvir as histórias sobre o rei Artur. No Verão passado contei-lhe tudo de que me lembrava e, quando já não me lembrava de mais nada, trouxe-me um monte de pergaminhos, um tinteiro feito de chifre e um punhado de penas de ganso para escrever. Artur usava penas de ganso no elmo. Estas penas não são tão grandes nem tão brancas, mas ontem, ao segurar no ar o feixe de penas contra o céu de Inverno, por um glorioso momento de remorso pareceu-me ver a cara dele abaixo da pluma. Por esse instante apenas o dragão e o urso rugiram por toda a Grã-Bretanha para aterrorizar de novo os pagãos, mas de repente espirrei e vi que nada mais segurava do que uma mão-cheia de penas cobertas de excrementos de ganso que quase nem serviam para escrever. A tinta é tão má como as penas uma mera mistura de resíduos de lamparina com resina de macieira. Os pergaminhos sempre são melhores. São feitos de peles de cordeiro deixados pelos Romanos e tempos houve em que estavam cobertos de inscrições que nenhum de nós conseguia ler, mas as aias de Igraine rasparam as peles até ficarem totalmente brancas. Diz Sansum que seria melhor utilizar tanta pele de cordeiro para fazer sapatos, mas as peles agora raspadas estão finas demais para isso e, além disso, Sansum não se atreve a ofender Igraine e assim perder a amizade do rei Brochvael. Este mosteiro encontra-se a meio dia de viagem dos lanceiros inimigos e mesmo a nossa pequena arrecadação poderia atrair esses inimigos levando-os a atravessar o rio Negro e subir as montanhas até ao vale de Dinnewrac se os guerreiros de Brochvael não tivessem ordens para nos proteger. Todavia, penso que nem sequer a amizade de Brochvael poderia convencer Sansum a aceitar a ideia do Irmão Derfel escrever as histórias dos feitos de Artur, o Inimigo de Deus e, por isso, Igraine e eu mentimos ao santo homem dizendo-lhe que estou a fazer uma tradução do Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo para a língua dos Saxões. O santo homem não fala a língua inimiga, nem sequer sabe ler e, por isso, devemos conseguir enganá-lo durante o tempo necessário para esta história ser escrita. Vamos mesmo ter de o enganar, pois pouco depois de eu ter começado a escrever nesta mesma pele, o sagrado Sansum entrou na sala. Aproximou-se da janela, observou o céu amortalhado e esfregou as mãos esquálidas.
Agrada-me este frio disse ele, sabendo que a mim não me agradava nada.
Sinto-o com mais intensidade na mão que me falta respondi mansamente. A mão que me falta é a esquerda e uso o coto do pulso para segurar o pergaminho enquanto escrevo.
Todas as dores são lembranças abençoadas da Paixão do nosso adorado Senhor disse o bispo, tal como eu esperava e depois encostou-se à mesa para ver o que eu tinha escrito. Diz-me o que significam as palavras, Derfel pediu ele.
Estou a escrever a história do nascimento do Deus Menino menti. Olhou fixamente para a pele e colocou uma unha imunda sobre o seu próprio nome. Ele consegue decifrar algumas letras e o seu nome deve ter ressaltado tão nitidamente do pergaminho como um corvo na neve. Depois resmungou como uma criança perversa e enrolou nos dedos uma madeixa do meu cabelo branco.
Eu não estava presente no nascimento de Nosso Senhor, Derfel, e, no entanto, este é o meu nome. Estás a escrever heresia, ó meu sapo do inferno?
Senhor disse eu, submisso, enquanto ele me mantinha a cara em cima do trabalho comecei o Evangelho dizendo que é apenas pela graça de Nosso Senhor Jesus Cristo e com a permissão do Seu mais sagrado santo, Sansum aqui percorri o seu nome com o dedo que me é possível escrever a boa nova sobre Jesus Cristo.
Ele deu-me um puxão ao cabelo, arrancando algum, e afastou-se.
És um filho de uma puta saxónica disse ainda, e nunca nenhum Saxão foi de fiar. Tem cuidado, Saxão! Não me ofendas.
Generoso Mestre comecei, mas ele já lá não estava.
Tempos houve em que ele, de joelho em terra, me beijava a espada, mas agora ele é um santo e eu sou apenas o mais miserável dos pecadores. E por sinal um pecador cheio de frio, pois lá fora o dia está inerte, cinzento e ameaçador. O primeiro nevão não tarda a cair.
E também nevava quando a história de Artur começou. Foi há muito tempo, no último ano do reinado do Rei Supremo Uther. Segundo a forma como os Romanos calculavam o tempo, estava-se no ano 1233 depois da fundação da sua cidade, se bem que nós na Grã-Bretanha datemos normalmente os nossos anos a partir do Ano Negro, quando os Romanos acabaram com os druidas em Ynys Mon. Por esse cálculo a história de Artur começa no ano
420, embora Sansum, que Deus o abençoe, conte os anos da nossa era a partir da data do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, que ele acredita ter acontecido 480 Invernos antes destas coisas começarem. Mas, seja como for que se contem os anos, foi há muito tempo, há muito, muito tempo, numa terra chamada Grã-Bretanha e eu estava lá.
E foi assim que aconteceu.
Começou com um nascimento.
Numa noite gélida, quando o reino jazia branco e silencioso sob uma Lua em quarto minguante.
E, no aposento, Norwenna gritou.
E voltou a gritar.
Era meia-noite. O céu estava limpo, seco e estrelado. A terra estava gelada como o ferro e os rios congelados. A lua em quarto minguante era um mau presságio e sob a sua luz lúgubre as extensas terras do lado ocidental pareciam tremeluzir com um brilho mortiço e gélido. Havia três dias que não nevava, mas também não houvera degelo, por isso o mundo cobria-se todo de branco excepto onde o vento tinha libertado da neve as árvores, que agora estavam negras e emaranhadas contra a terra fustigada pelo Inverno. A respiração embaciava, mas não se agitava, pois não havia vento naquela noite clara. A terra parecia inerte, completamente sem vida, como se tivesse sido abandonada por Belenos, o Rei do Sol e deixada a flutuar no frio eterno do vazio entre os mundos. E estava mesmo frio, um frio cortante de morte. Eram longos os pingentes de gelo suspensos dos beirais da ampla entrada de Caer Cadarn e do portão em arco por onde bem cedo naquele dia o séquito do Rei Supremo tinha passado, lutando contra a neve acumulada, para trazer a nossa princesa para aquele edifício digno de reis. Caer Cadarn era onde estava a pedra real, era o local da aclamação e por isso, insistia o Rei Supremo, era o único local onde o seu herdeiro poderia nascer.
Norwenna gritou outra vez.
Nunca vi uma criança a nascer e, se Deus quiser, nunca hei-de ver. Já vi uma égua parir e bezerros a chegar a este mundo, já ouvi o choro brando de um cachorrinho e já senti os estremecimentos de um gato recém-nascido, mas nunca vi o sangue e a mucosidade que acompanha os gritos de uma mulher. E como Norwenna gritava, embora o tentasse evitar, pelo menos foi o que disseram as aias mais tarde. Às vezes os gritos estridentes paravam de repente e o silêncio ficava a pairar por todo o forte e o Rei Supremo levantava a cabeça enorme do meio das peles e escutava atento como se estivesse num bosque e os Saxões andassem por perto, mas fazia-o agora na esperança de que aquele súbito silêncio marcasse o momento do nascimento de um novo herdeiro para o seu reino. Ele escutava, e no silêncio que reinava naquele compartimento ouvíamos o som desagradável da respiração medonha da sua nora. Por um momento, um momento apenas, ouviu-se o vagido e o Rei Supremo virou-se como se fosse dizer alguma coisa, mas depois os gritos recomeçaram e de novo a sua cabeça se afundou nas pesadas peles, vendo-se apenas os olhos a reluzir na gruta ensombrada formada pela gola e pelo capuz de pêlo.
Não devíeis estar aí fora na muralha, Senhor Supremo! disse o bispo Bedwin.
Uther acenou com uma mão enluvada, como que sugerindo que Bedwin podia ir para dentro, onde ardiam as fogueiras, mas ele, Uther, o Rei Supremo, o Pendragon da Grã-Bretanha, dali não sairia. Queria estar na muralha de Caer Cadarn para poder espraiar o olhar pela terra gelada a meia altura, onde os demónios estavam à espreita. Mas Bedwin estava certo, o Rei Supremo não devia ter estado de sentinela contra os demónios naquela noite agreste. Apesar de Uther estar velho e doente, a segurança do reino dependia do seu corpo cansado e da sua mente lenta e triste. Seis meses antes ele era ainda um homem robusto, mas entretanto chegara a notícia da morte do seu herdeiro. Mordred, o mais amado dos seus filhos e o único que sobrevivera aos que a sua mulher legítima lhe dera, fora atingido por um machado saxão e esvaíra-se em sangue por trás do monte do Cavalo Branco. Aquela morte deixara o reino sem um herdeiro e um reino'"sem herdeiro é um reino amaldiçoado, mas naquela noite, se os Deuses quisessem, o herdeiro de Uther nasceria da viúva de Mordred. A não ser, claro, que a criança fosse uma menina e nesse caso toda a dor teria sido em vão e o reino estaria condenado.
A cabeça enorme de Uther levantou-se de entre as peles cobertas de gelo nos sítios tocados pela respiração.
Está a ser feito tudo o que é possível, Bedwin? perguntou Uther.
Tudo, Senhor Supremo, tudo respondeu Bedwin. Era o conselheiro de maior confiança do rei e, tal como a princesa Norwenna, era cristão. Norwenna protestando por ter de sair da sua confortável casa romana perto de Lindinis, tinha dito aos gritos ao sogro que só iria para Caer Cadarn se ele prometesse manter afastadas as velhas feiticeiras dos Deuses. Ela insistira num nascimento cristão e Uther, desesperado por um herdeiro, concordara com as suas exigências. Naquele momento os padres de Bedwin entoavam as suas preces numa câmara ao lado do aposento onde se tinha espalhado água benta, onde uma cruz tinha sido pendurada sobre a cama onde Norwenna daria à luz e uma outra colocada por baixo do seu corpo.
Rezamos à abençoada Virgem Maria explicou Bedwin que sem macular o Seu corpo sagrado com conhecimentos carnais, se tornou a santa mãe de Cristo e...
Chega resmungou Uther. O Rei Supremo não era cristão e não gostava que o tentassem converter, embora aceitasse que o Deus cristão tinha provavelmente tanto poder como os outros Deuses. Os acontecimentos daquela noite testavam essa tolerância até ao limite.
E era por isso que eu ali estava. Era uma criança quase a tornar-me um homem, um imberbe errante encolhido devido ao gelo ao lado da cadeira do rei nas muralhas de Caer Cadarn. Viera de Ynys Wydryn, a casa de Merlim, que ficava na linha do horizonte, a norte. A minha tarefa, caso ma ordenassem, era ir buscar Morgana e as suas ajudantes que esperavam numa pocilga de porcos cheia de lama no sopé da encosta do lado ocidental de Caer Cadarn. A princesa Norwenna podia querer a Mãe de Cristo como sua parteira, mas Uther tinha preparado os velhos Deuses para o caso daquele novo Deus falhar.
E o Deus cristão falhou mesmo. Os gritos de Norwenna diminuíram, mas as suas lamúrias tornaram-se mais desesperadas até que, finalmente, a mulher do bispo Bedwin saiu do quarto e se ajoelhou a tremer ao lado da cadeira do Rei Supremo. Ellin disse que o bebé não queria sair e que temia que a mãe estivesse a morrer. Uther afastou com a mão este último comentário. A mãe nada valia, só a criança importava, e isso se fosse um rapaz.
Senhor Supremo... começou nervosa Ellin, mas Uther já não a ouvia. Bateu-me levemente na cabeça.
Vai, rapaz disse ele e eu desenrosquei-me e, saindo da sua sombra, saltei para o interior do forte e corri pelo meio dos edifícios batidos pela luz pálida da Lua. Os guardas no portão oeste viram-me passar a correr e pouco depois descia aos escorregões e trambolhões a gelada estrada de oeste. Arrastei-me pela neve, rasguei o casaco no cepo de uma árvore e caí pesadamente sobre uns espinheiros cobertos pela neve, mas não sentia nada, excepto o grande peso do destino de um reino sobre os meus ombros.
Lady Morgana! gritei quando me aproximava da cabana. Lady Morgana!
Ela devia estar à espera, pois a porta da cabana abriu-se imediatamente e a máscara de ouro que lhe cobria o rosto brilhou ao luar.
Vai guinchou-me ela vai!
Dei meia volta e comecei novamente a subir o monte com um bando de órfãos de Merlim à minha volta a tentarem trepar pela neve. Levavam potes de cozinha que batiam uns nos outros enquanto eles corriam, se bem que quando a encosta se tornou mais íngreme e traiçoeira eles foram obrigados a atirar os potes para a frente e trepar atrás deles. Morgana seguia mais devagar, ajudada pela escrava Sebile que levava todas as ervas e objectos de feitiço necessários.
Acende as fogueiras, Derfel! gritou Morgana cá para cima.
As fogueiras! gritei sem fôlego enquanto atravessava a toda a pressa o portão. Acendam as fogueiras nas muralhas! As fogueiras!
O bispo Bedwin protestou contra a chegada de Morgana, mas o Rei Supremo virou-se para o seu conselheiro com tanta cólera que o bispo se entregou com resignação à sua velha fé. Ordenou aos padres e monges que saíssem da capela provisória e disse-lhes para levarem os tições para todas as muralhas e acenderem fogueiras com os tições e a madeira e os ramos arrancados das choupanas que se amontoavam dentro do forte do lado norte. As fogueiras crepitaram, as chamas ergueram-se na noite e o fumo pairou suspenso no ar formando um dossel que iria confundir os espíritos do mal e afastá-los daquele lugar onde uma princesa e o seu bebé estavam quase a morrer. Nós, os mais novos, corríamos à volta das muralhas a bater com os potes, fazendo grande algazarra para os maus espíritos ficarem ainda mais desorientados.
Gritem ordenei às crianças de Ynys Wydryn, e a nós juntaram-se mais crianças das cabanas da fortaleza que ajudavam a fazer barulho. Os guardas batiam com as hastes das lanças contra os escudos e os padres amontoavam mais madeira nas piras em chamas enquanto os restantes desafiávamos aos berros os fantasmas do mal que se arrastavam pela noite para amaldiçoar o parto de Norwenna.
Morgana, Sebile, Nimue e uma rapariga entraram no quarto. Norwenna gritou. Não se sabe se chorava alto em protesto contra a vinda das mulheres de Merlim ou se chorava porque aquela criança teimosa estava a dilacerar o seu corpo. Ouviram-se mais gritos quando Morgana expulsou as criadas cristãs. Morgana atirou as duas cruzes para a neve e lançou um punhado de artemísia, a erva da mulher, para a fogueira. Mais tarde, Nimue disse-me que punham pepitas de ferro na cama húmida para assustar os espíritos do mal que já lá estivessem e que colocavam sete pedras-d'águia à volta da cabeça da mulher, que não parava de estremecer, para chamar os espíritos do bem que vinham dos Deuses.
Sebile, a escrava de Morgana, colocou um ramo de vidoeiro por cima da porta e agitou outro sobre o corpo da princesa, contorcido pela dor. Nimue acocorou-se e urinou na soleira da porta para afastar daquele quarto as fadas malvadas, posto o que salpicou a palha da cama de Norwenna com alguma dessa urina, como mais uma precaução contra o roubo da alma da criança no momento em que nascesse. Morgana, com a máscara de ouro a brilhar à luz das chamas, afastou as mãos de Norwenna com uma sapatada para poder enfiar um feitiço feito com um âmbar raro entre os seios da princesa. A rapariguinha, uma das crianças abandonadas de Merlim, esperava aterrorizada ao fundo da cama.
O fumo das fogueiras acabadas de acender ofuscava as estrelas. Havia criaturas alerta nos bosques, aos pés de Caer Cadarn, que uivavam devido ao barulho que pairava sobre elas, enquanto Uther, o Rei Supremo levantava os olhos para a lua prestes a desaparecer e rezava para que não tivesse mandado buscar Morgana tarde de mais. Morgana era filha natural de Uther, a primeira dos quatro bastardos que o Rei Supremo tinha dado a Igraine de Gwynedd. Uther preferiria sem dúvida que ali estivesse Merlim, mas ele tinha partido há muitos meses, partido para lado nenhum, apenas ido. Por vezes parecia-nos que se tinha ido embora para sempre e Morgana, que tinha aprendido tudo o que sabia com Merlim, teve de o substituir naquela noite fria em que nós batíamos com os potes e gritávamos até ficarmos roucos para afastar os demónios malévolos de Caer Cadarn. Até Uther fazia barulho, apesar de o som do seu bastão a bater na beira da muralha ser muito fraco. O bispo Bedwin estava de joelhos, a rezar, enquanto a sua mulher, expulsa do quarto, chorava, gemia e pedia ao Deus cristão que perdoasse as bruxas pagãs.
Mas a feitiçaria funcionou, pois a criança nasceu viva.
O grito que Norwenna deu no momento em que a criança nasceu foi pior do que qualquer dos anteriores. Foi o guincho de um animal atormentado, um lamento para fazer a noite soluçar. Mais tarde Nimue disse-me que Morgana tinha causado aquela dor introduzindo a mão no canal por onde nascem as crianças e puxando com toda a força o bebé para este mundo. A criança saiu toda ensanguentada daquela mãe em suplício e Morgana gritou para a rapariguinha assustada que pegasse na criança enquanto Nimue cortava o cordão. Era importante que o bebé fosse pegado pela primeira vez por uma virgem, razão pela qual a rapariga fora levada para o quarto, mas ela estava assustada e não se aproximava da palha ensanguentada onde Norwenna respirava agora com esforço e onde a criança recém-nascida e manchada de sangue jazia como se tivesse nascido morta.
Pega nele! gritou Morgana, mas a rapariga fugiu banhada em lágrimas e, por isso, Nimue arrancou o bebé da cama e limpou-lhe a boca para ele poder apanhar a primeira golfada de ar.
Todos os presságios eram maus. A lua aureolada estava pálida e a virgem tinha fugido a correr do bebé, que nesse momento começou a chorar bem alto. Uther ouviu o barulho e eu vi-o fechar os olhos e rezar aos Deuses para que aquela criança fosse um rapaz.
Devo lá ir? perguntou, hesitante, o bispo Bedwin.
Vai disse Uther com brusquidão e o bispo desceu com dificuldade a escada de madeira e, arregaçando a batina, correu pela neve já pisada até à porta do quarto. Ali chegado, quedou-se por alguns segundos e, depois, voltou a correr para a muralha a abanar os braços no ar.
Boas notícias, Grande Senhor, boas notícias! gritava Bedwin enquanto trepava desastradamente as escadas. Excelentes notícias, até!
Um rapaz! Uther antecipou as notícias pronunciando as palavras muito devagar.
Um rapaz! confirmou Bedwin. Um belo rapaz!
Eu estava anichado perto do Rei Supremo e vi lágrimas aflorarem aos seus olhos que olhavam fixamente para o céu.
Um herdeiro disse Uther num tom de admiração como se não ousasse acreditar que os Deuses o tinham favorecido. Limpou as lágrimas com a mão coberta por uma luva de pele. O reino está salvo, Bedwin disse ele.
Graças a Deus, Senhor Supremo, está salvo concordou Bedwin.
Um rapaz disse Uther e, então, de repente, o seu corpo foi sacudido por uma tosse violenta, que o deixou quase sem fôlego. Um rapaz disse outra vez quando a respiração estava já mais regular.
Algum tempo depois chegou Morgana. Subiu a escada e prostrou o seu corpo atarracado frente ao Rei Supremo. A máscara de ouro reluzia, escondendo o horror estampado no seu rosto. Uther tocou-lhe no ombro com o bastão.
Levanta-te, Morgana disse ele e, depois, procurou desajeitadamente por baixo da capa por um pregador de ouro para a recompensar.
Mas Morgana não o aceitou.
O rapaz disse ela de um modo sinistro está estropiado. Tem um pé torcido.
Vi Bedwin fazer o sinal da cruz, pois um príncipe estropiado era o pior de todos os presságios daquela gélida noite.
É muito mau? perguntou Uther.
É só o pé disse Morgana na sua voz áspera. A perna está perfeita, Grande Senhor, mas o príncipe nunca irá correr.
Uther deu uma sonora gargalhada, das profundezas do manto de peles que o envolvia.
Norwenna e a criança vieram para a nossa casa em Ynys Wydryn. Foram trazidos num carro de bois pela ponte do lado leste até ao sopé do Tor e lá, do cume ventoso, eu vi a mãe doente e a criança aleijada a serem tirados da cama de peles e a serem levados numa padiola de tecido pelo atalho acima até à paliçada. Estava muito frio naquele dia, um frio cortante de neve que penetrava até aos pulmões, gretava a pele e fazia Norwenna chorar enquanto era carregada com o seu bebé enfaixado e passava pelo portão do Tor em Ynys Wydryn.
E foi assim que Mordred, Príncipe Herdeiro de Dumnónia entrou no reino de Merlim.
Ynys Wydryn, apesar do seu nome que significa Ilha de Vidro, não era uma verdadeira ilha. Era mais um alto promontório que avançava sobre uma desolada enseada pantanosa e lodaçais rodeados por salgueiros onde cresciam juncas e juncos em abundância. Era um lugar rico devido aos patos, aos peixes, à argila e à pedra de cal que podiam facilmente ser apanhadas nos montes à volta do pântano com ondas, atravessado por carreiros de madeira onde alguns visitantes descuidados se afogavam quando soprava um vento forte de oeste que formava ondas altas que se espraiavam pelas extensas e verdejantes terras pantanosas. Para oeste, onde o terreno se elevava, havia pomares de maçãs e campos de trigo, e para norte, onde montes brancos orlavam os pântanos, havia rebanhos de vacas e carneiros. Toda aquela terra era boa, e no seu coração estava Ynys Wydryn.
E todo aquele território pertencia a Lorde Merlim. Chamava-se Avalon e tinha sido governado pelo seu pai e pelo pai do seu pai e todos os servos e escravos que se viam do cume do Tor trabalhavam para Merlim. Fora aquela terra com os seus produtos apanhados com rede ou com armadilhas na enseada com ondas ou cultivados no solo fértil dos vales do rio que dera a Merlim a riqueza e a liberdade para ser um druida. A Grã-Bretanha já tinha sido a terra dos druidas, mas os Romanos primeiro trucidaram-nos e depois subjugaram a religião, pelo que, mesmo nesta altura, depois de duas gerações sem o governo de Roma, persiste apenas uma mão-cheia dos velhos sacerdotes. Os cristãos tornaram-lhes o lugar e a Cristandade envolve agora a velha fé como uma imensa onda conduzida pelo vento a esparrinhar-se pelos canaviais de Avalon infestados pelos demónios.
A ilha de Avalon, Ynys Wydryn, era composta por um grupo de montes cobertos de erva, mas todos desnudos, excepto o Tor que era o mais alto e o mais íngreme. No cume foi construída a casa de Merlim e, por trás deste, havia alguns edifícios mais pequenos protegidos por uma paliçada de madeira precariamente colocada no topo das íngremes encostas do Tor cobertas de erva, dispostos em terraços vindos já dos Velhos Tempos, antes dos Romanos chegarem. Um caminho estreito acompanhava os velhos terraços serpenteando em direcção ao cocuruto, e aqueles que visitavam o Tor em busca da cura ou de profecias eram obrigados a seguir esse caminho que servia para confundir os espíritos do mal que, de outra forma, trariam a desarmonia à fortaleza de Merlim. Havia mais dois caminhos que desciam a direito as encostas do Tor: um para leste onde a ponte levava a Ynys Wydryn; o outro, a oeste do portão que dava para o mar, conduzia à aldeia no sopé do Tor onde viviam pescadores, caçadores de patos, cesteiros e pastores. Eram essas as entradas habituais para o Tor e Morgana mantinha-as livres dos espíritos do mal graças a rezas e feitiçarias constantes.
Morgana dispensava uma atenção especial ao caminho de oeste, pois este levava não só à aldeia como também ao santuário cristão de Ynys Wydryn. O bisavô de Merlim deixara os cristãos vir para a ilha durante os tempos romanos e nada os conseguira expulsar de lá desde então. Nós, as crianças do Tor, éramos encorajadas a atirar pedras aos monges e a lançar excrementos de animais por cima da sua cerca de madeira ou a rir dos peregrinos que passavam a correr pelo pequeno portão para venerar um espinheiro que crescera junto à impressionante igreja de pedra construída pelos Romanos e que ainda dominava o agregado cristão. Houve um ano em que Merlim mandou erguer um espinheiro idêntico no Tor e todos nós o venerámos com cânticos, danças e vénias. Os cristãos da aldeia disseram que seríamos abatidos pelo seu Deus, mas nada aconteceu. No fim queimámos o nosso espinheiro e misturámos as cinzas com a comida dos porcos, mas mesmo assim o Deus cristão ignorou-nos. Os cristãos apregoavam que o seu espinheiro era mágico e que tinha sido trazido para Ynys Wydryn por um estrangeiro que vira o Deus cristão pregado numa árvore. Que Deus me perdoe, mas nesses tempos já tão distantes eu escarnecia dessas histórias. Nessa altura eu não entendia o que tinha o espinheiro a ver com a morte de um Deus, mas agora entendo, embora possa afirmar que o Espinheiro Sagrado, se é que ainda existe em Ynys Wydryn, não é a árvore que brotou do bastão de José de Arimateia. Sei que é assim porque, numa noite escura de Inverno em que Merlim me mandou buscar um frasco de água limpa à nascente sagrada que ficava no sopé do Tor do lado sul, eu vi os monges cristãos a enterrar um pequeno arbusto de espinheiro para substituir a árvore que tinha morrido dentro da cerca deles. O Espinheiro Sagrado estava sempre a morrer, embora eu não saiba se era por causa dos excrementos de vaca que nós lhe atirávamos ou simplesmente porque a pobre árvore ficava soterrada pelas tiras de tecido que os peregrinos lhe amarravam. De qualquer forma, os monges do Espinheiro Sagrado ficaram ricos à custa das generosas ofertas dos peregrinos.
Os monges de Ynys Wydryn ficaram muito satisfeitos por Norwenna ter vindo para o nosso terreiro, pois agora tinham uma razão para subir a íngreme ladeira e trazer as suas rezas para o seio da fortaleza de Merlim. Apesar do desaire da Virgem Maria em dar-lhe o filho, a princesa Norwenna era ainda uma cristã irredutível e de língua afiada e exigiu que os monges fossem autorizados a lá entrar todas as manhãs. Não sei se Merlim os autorizaria, e certamente que Nimue amaldiçoou Morgana por ter dado permissão, mas Merlim nessa altura não estava em Ynys Wydryn. Não víamos o nosso mestre há mais de um ano, mas a vida no seu estranho baluarte continuava, mesmo sem ele.
E era mesmo estranho esse baluarte. Merlim era o mais excêntrico de todos os habitantes de Ynys Wydryn, mas à sua volta, e para seu prazer, juntou uma tribo de criaturas mutiladas, desfiguradas, retorcidas e meio dementes. O capitão deste conjunto de pessoas e comandante da sua guarda era Druidan, um anão. Não era mais alto do que uma criança de cinco anos, mas tinha a fúria de um guerreiro adulto e todos os dias se equipava com caneleiras, couraça, elmo, capa e armas. Queixava-se do destino que lhe tinha tolhido o crescimento e vingava-se nas únicas criaturas ainda mais pequenas do que ele: os órfãos que Merlim acolhia tão descuidadamente. Poucas eram as raparigas de Merlim que Druidan não perseguia fanaticamente, apesar de ter levado uma grande sova quando tentou levar Nímue à força para a cama. Merlim batera-lhe na cabeça partindo-lhe as orelhas, rebentando-lhe os lábios e deixando-o com os olhos todos pisados, enquanto as crianças e os guardas da paliçada aplaudiam. Os guardas que Druidan comandava eram todos coxos, cegos ou loucos, alguns eram até isso tudo ao mesmo tempo, mas nenhum era louco o bastante para gostar de Druidan.
Nimue, minha amiga e companheira de infância, era irlandesa. Os Irlandeses eram Bretões, mas nunca tinham sido governados pelos Romanos e por essa razão consideravam-se melhores do que os Bretões da ilha maior que por eles tinham sido assaltados, saqueados, escravizados e colonizados. Se os Saxões não tivessem sido inimigos tão terríveis, os Irlandeses seriam considerados as piores das criaturas de Deus, embora, de vez em quando se fizessem alianças com eles contra outras tribos bretãs. Nimue tinha sido capturada e levada da família durante um ataque que Uther levara a cabo contra os grupos de colonos irlandeses fixados em Demétia, que se estendia ao longo do extenso mar e era banhada pelo rio Severn. Nesse ataque foram feitos dezasseis cativos que foram mandados como escravos para Dumnónia, mas quando os navios atravessavam o mar Severn foram atingidos por uma grande tempestade que fez naufragar em Ynys Wair o navio que carregava os cativos. Apenas Nimue se salvou e dizia-se que saíra do mar sem sequer se molhar. Merlim apregoava que isso era um sinal de que Nimue era amada por Manawydan, o Deus do Mar, apesar de a própria Nimue insistir que fora Don, a mais poderosa das Deusas, que lhe salvara a vida. Merlim quis chamá-la Vivien, um nome dedicado a Manawydan, mas Nimue ignorou-o e manteve o seu próprio nome. Nimue conseguia quase sempre o que pretendia. Cresceu no asilo de loucos de Merlim, dona de uma curiosidade aguçada e de uma grande autoconfiança e quando, com treze ou catorze anos, Merlim a chamou para a sua própria cama, ela foi, como se sempre tivesse sabido que o seu destino seria tornar-se amante dele e, desta forma e por esta ordem das coisas, a segunda pessoa mais importante de toda Ynys Wydryn.
Todavia, Morgana não abdicou deste posto sem luta. De todas as estranhas criaturas que habitavam a casa de Merlim, Morgana era a mais grotesca. Era viúva e tinha trinta anos quando se tornou protectora de Norwenna e de Mordred, e a nomeação era apropriada pois ela própria era também de alta linhagem. Era a primeira de quatro bastardos, três raparigas e um rapaz, que Igraine de Gwynedd tivera do Rei Supremo Uther. O seu irmão era Artur e com tal linhagem e tal irmão pensar-se-ia que alguns homens ambiciosos tudo fariam para pedir a mão da viúva, embora, quando era ainda uma jovem noiva, Morgana tenha ficado presa numa casa a arder, o que lhe matou o marido e a deixou marcada por horríveis cicatrizes. A chamas consumiram-lhe a orelha esquerda, cegaram-lhe o olho esquerdo, crestaram-lhe o cabelo do lado esquerdo, mutilaram-lhe a perna esquerda e deformaram-lhe o braço esquerdo. Nimue disse-me que quando Morgana estava nua toda a parte esquerda do seu corpo aparecia enrugada, esfoliada e desfigurada, engelhada em certos sítios, esticada noutros, mas horrível toda ela. Nimue disse-me que era como uma maçã podre, mas ainda pior. Morgana era uma criatura de pesadelo, mas para Merlim era a senhora certa para a sua casa e treinou-a para ser a sua profetisa. Ordenou a um dos ourives do Rei Supremo que lhe fizesse uma máscara que lhe assentasse como um elmo na cabeça devastada. A máscara de ouro tinha um orifício para o seu único olho e uma ranhura para a boca retorcida. Era feita de ouro muito fino gravado com espirais e dragões, e, na frente, tinha uma imagem de Cernunnos, o Deus com Chifres, protector de Merlim. Morgana, com o rosto dourado, vestia sempre de preto, usava uma luva na mão esquerda atrofiada e era muito conhecida por ter o dom da cura e da profecia. Era também a mulher com o pior génio que jamais conheci.
Sebile era a escrava e companheira de Morgana. Sebile era uma raridade, uma beldade de cabelos cor de ouro. Era uma saxónica capturada num ataque que, depois de uma temporada durante a qual foi violada por quase todo o exército, chegou em estado de choque a Ynys Wydryn onde Morgana lhe curou a mente. Mesmo assim, ela era ainda demente não uma doida perversa, apenas uma louca para além das fantasias da loucura. Deitava-se com todos os homens, não porque quisesse, mas porque receava não querer, e nada do que Morgana fizesse a poderia impedir. Dava à luz ano após ano, apesar de sobreviverem poucas dessas crianças de cabelo louro. As que sobreviviam Merlim vendia-as como escravas a homens que apreciavam crianças com o cabelo cor de ouro. Ele divertia-se com Sebile, apesar de nada na sua loucura falar dos Deuses.
Eu gostava de Sebile pois também eu era saxão e Sebile falava comigo na minha língua materna e, por isso, eu cresci em Ynys Wydryn a falar tanto o saxónico como a língua dos Bretões. Eu também devia ter sido escravo, mas quando era criança, ainda mais pequeno do que o anão Druidan, um destacamento atacou Silúria, na costa norte de Dumnónia, e levou o aglomerado onde a minha mãe estava escravizada. O rei Gundleus de Silúria comandava o ataque. A minha mãe, que eu achava parecida com Sebile, foi violada enquanto eu fui levado para o poço da morte onde Tanaburs, o druida de Silúria, estava a sacrificar uma dúzia de cativos para agradecer ao Grande Deus Bei o avultado saque que tinham conseguido com aquele ataque. Meu Deus, como me lembro dessa noite. As fogueiras, os gritos, os estupros embriagados, as danças selváticas e o momento em que Tanaburs me empurrou violentamente com a sua vara afiada para dentro do poço escuro. Sobrevivi, e saí do poço da morte tão calmamente como Nimue saíra do mar assassino. Quando Merlim me encontrou disse que eu era uma criança do Deus Bei. Pôs-me o nome de Derfel, deu-me abrigo e deixou-me crescer livre.
O Tor estava cheio de crianças assim, que foram arrebatadas aos Deuses. Merlim acreditava que éramos especiais e que devíamos crescer numa nova ordem de druidas e sacerdotisas que o poderiam ajudar a restabelecer a verdadeira religião numa Grã-Bretanha a sofrer da influência maligna de Roma. Ele, porém, nunca tinha tempo para nos ensinar e, por isso, a maior parte de nós cresceu para se tornar agricultor, pescador ou dona de casa. Durante o tempo que passei no Tor só Nimue parecia marcada pelos Deuses e estava a tornar-se uma sacerdotisa. Eu nada mais queria senão ser um guerreiro.
Pellinore fez-me ambicionar sê-lo. Pellinore era a minha preferida de todas as criaturas de Merlim. Ele era um rei, mas os Saxões tiraram-lhe as terras e os olhos e os Deuses tiraram-lhe a razão. Devia ter sido mandado para a Ilha dos Mortos, para onde eram mandados os loucos perigosos, mas Merlim ordenou que ficasse no Tor, fechado num pequeno compartimento parecido com aquele onde Druidan tinha os seus porcos. Andava sempre nu, com uma longa cabeleira branca que lhe chegava aos joelhos e, apesar das cavidades dos olhos estarem vazias, ele chorava. Estava sempre a delirar, acusando o universo da sua desdita e Merlim escutava essa loucura e dela retirava mensagens dos Deuses. Todos temiam Pellinore. Ele era completamente doido e desabridamente selvagem. Uma vez cozinhou um dos filhos de Sebile na fogueira. No entanto, por estranho que pareça e eu não perceba porquê, Pellinore gostava de mim. Eu deslizava por entre as barras do seu cárcere e ele acarinhava-me e contava-me histórias de combates e caçadas selvagens. A mim nunca me pareceu louco nem me fez mal nenhum e também nunca fez mal a Nimue, mas, tal como Merlim dizia sempre, nós os dois éramos especialmente amados pelo Deus Bei.
Bei podia ter-nos amado, mas Guendoloen odiava-nos. Era a mulher de Merlim e já estava velha e desdentada. Tal como Morgana, tinha muito jeito para as ervas e feitiçarias, mas Merlim rejeitara-a quando a doença lhe desfigurara a cara. Isso acontecera muito antes de eu chegar ao Tor, durante um período a que todos chamavam os Maus Tempos, quando Merlim voltara do Norte louco e choroso. Mas mesmo quando recuperou a sua capacidade mental não aceitou Guendoloen de volta, apesar de a ter autorizado a viver numa pequena cabana ao lado da paliçada, onde ela passava os dias a lançar feitiços contra o marido e a insultar-nos a todos aos gritos. Odiava Druidan acima de tudo. Às vezes atacava-o com línguas de fogo e Druidan corria ligeiro por entre as cabanas com ela a correr atrás dele. Nós, as crianças, estávamos sempre a instigá-la, gritando e pedindo o sangue do anão, mas ele conseguia sempre fugir.
Foi, então, para este estranho lugar que Norwenna veio com o Príncipe Herdeiro Mordred, e apesar de eu ter dado a entender que era um lugar horroroso, ele era na verdade um bom refúgio. Nós éramos as crianças privilegiadas de Lorde Merlim, vivíamos livres, trabalhávamos pouco, ríamos e Ynys Wydryn, a Ilha de Vidro, era um lugar alegre.
Norwenna chegou no Inverno, quando os pântanos de Avalon estavam cobertos de gelo. Havia um carpinteiro em Ynys Wydryn chamado Gwlyddyn cuja mulher tinha um filho com a mesma idade de Mordred, que nos fez trenós e, quando descíamos as encostas nevadas do Tor, enchíamos o ar de gritos estridentes. Ralla, a mulher de Gwlyddyn, foi nomeada ama de leite de Mordred e o príncipe, apesar do pé aleijado, cresceu forte com o leite dela. Até a saúde de Norwenna melhorou, quando o frio penetrante começou a diminuir e as primeiras campânulas brancas de Inverno floresceram nos bosques de abrolhos em volta da Primavera sagrada que já despontava no sopé do Tor. A princesa nunca mais se fortalecia, mas Morgana e Guendoloen davam-lhe ervas, os monges rezavam e parecia que, finalmente, a doença estava a passar. Todas as semanas um mensageiro levava notícias ao avô, o Rei Supremo, e cada boa notícia era recompensada com alguma peça em ouro ou talvez um frasco de chifre cheio de sal ou uma garrafa de um vinho raro que Druidan roubava.
Esperávamos o regresso de Merlim, mas ele não voltava e o Tor parecia vazio sem ele, ainda que a nossa vida quotidiana mal tivesse mudado.
Tínhamos de manter as despensas cheias, matar as ratazanas e trazer água da nascente pelo monte acima três vezes ao dia. Gudovan, o escriba de Merlim, mantinha um registo dos pagamentos dos inquilinos enquanto Hywel, o administrador, percorria todas as propriedades para ter a certeza de que nenhuma família enganava o seu senhor ausente. Tanto Gudovan como Hywel eram homens sóbrios, práticos e trabalhadores; a prova disso, segundo Nimue me disse, é que as excentricidades de Merlim acabavam onde os rendimentos começavam. Foi Gudovan quem me ensinou a ler e a escrever. Eu não queria aprender essas coisas que nada tinham a ver com ser guerreiro, mas Nimue insistira comigo.
Tu és órfão de pai disse-me ela e tens de avançar pelos teus próprios méritos.
Quero ser soldado.
E serás prometeu-me ela. Mas só se aprenderes a ler e a escrever. E foi tal o peso da sua jovem autoridade sobre mim que acreditei nela e aprendi a ler e a escrever muito antes de descobrir que nenhum soldado precisava disso.
Assim Gudovan ensinou-me as letras e Hywel, o administrador, ensinou-me a lutar. Treinou-me com o bastão, o cacete do aldeão que podia abrir o crânio a uma pessoa, mas que também podia imitar o golpe de uma espada ou a estocada de uma lança. Antes de perder a perna com um golpe de um machado saxão, Hywel tinha sido um guerreiro famoso do exército de Uther e ele obrigou-me a treinar até os meus braços estarem suficientemente fortes para brandir uma pesada espada com a mesma velocidade com que brandia um bastão. Hywel disse-me que muitos guerreiros apostavam na força bruta e na bebida em vez de apostarem na habilidade. Disse-me também que eu enfrentaria homens a cair de bêbados, capazes de matar um touro só com o hálito, mas um homem sóbrio que conhecesse os nove golpes da espada conseguiria sempre vencer tamanhos brutamontes.
Eu estava bêbado admitiu ele quando Octha, o Saxão, me arrancou a perna. Agora, mais depressa, rapaz, mais depressa! A tua espada tem de confundi-los! Mais depressa!
Ele ensinou-me bem e os primeiros a sabê-lo foram os filhos dos monges de uma das aldeolas do vale, em Ynys Wydryn. Eles ressentiam-se de nós, as crianças privilegiadas do Tor, pois nós passávamos o tempo sem fazer nada, a correr livremente de um lado para o outro, enquanto eles trabalhavam, e, para se vingarem, perseguiam-nos e tentavam bater-nos. Um dia, levei o meu bastão para a aldeia e deixei três cristãos a sangrar. Sempre fui alto para a minha idade e os Deuses fizeram-me forte como um touro. Assim, atribuí-lhes a minha vitória apesar de Hywel me castigar por isso. "Os privilegiados", disse ele, "nunca devem tirar vantagem dos seus inferiores", mas acho que mesmo assim ficou contente, pois levou-me à caça no dia seguinte e eu matei o meu primeiro javali com a lança de um adulto. Foi num bosque brumoso perto do rio Cam e eu tinha apenas doze anos. Hywel untou o meu rosto com o sangue do javali, deu-me os dentes para eu usar como um colar e depois levou a carcaça para o seu Templo de Mitra, onde deu uma festa para todos os velhos guerreiros que prestavam culto àqueles soldados de Deus. Não me deixaram participar nessa festa, mas Hywel prometeu-me que um dia, quando eu tivesse a barba grande e tivesse matado um saxão em combate, ele me iniciaria nos mistérios de Mitra.
Três anos mais tarde eu ainda sonhava em matar saxões. Algumas pessoas deviam achar estranho que eu, um jovem saxão, com o cabelo da cor dos saxões, fosse tão fervorosamente britânico na minha fidelidade, mas desde a primeira infância eu fora criado entre os Bretões e os meus amigos, os meus amores, a língua que usava todos os dias, as histórias, as inimizades e os sonhos eram todos britânicos. E nem a cor do meu cabelo era assim tão invulgar. Os Romanos tinham deixado a Grã-Bretanha povoada com toda a espécie de seres estranhos. De facto, o louco Pellinore falara-me uma vez de dois irmãos que eram pretos como o carvão e até eu conhecer Sagramor, o comandante númida de Artur, eu pensava que as palavras dele não passavam de histórias tecidas pela sua loucura.
O Tor ficou cheio de gente quando Mordred e a mãe chegaram, pois Norwenna trouxe não só as suas servas como também um exército de guerreiros cuja tarefa era proteger a vida do Príncipe Herdeiro. Dormíamos quatro ou cinco em cada cabana, posto que nenhum de nós, a não ser Nimue e Morgana, tinha autorização para entrar nos aposentos interiores da casa. Pertenciam a Merlim e só Nimue podia lá dormir. Norwenna e a sua corte viviam na própria casa, que ficava cheia de fumo por causa das duas fogueiras acesas dia e noite. A casa era suportada por vinte postes de carvalho, tinha paredes de vime e gesso e um telhado de colmo. O chão era de terra coberto com junco que às vezes começava a arder e provocava o pânico até as chamas serem apagadas. Os aposentos de Merlim eram separados do resto da casa por uma parede interna também feita de vime e gesso e que tinha apenas uma pequena porta de madeira. Todos nós sabíamos que Merlim dormia, estudava e sonhava naqueles aposentos que culminavam numa torre de madeira construída no ponto mais alto do Tor. O que acontecia dentro da torre era um mistério para todos excepto para Merlim, Morgana e Nimue, e nenhum deles alguma vez desvendaria esse mistério. Mas as pessoas da região, que conseguiam ver a Torre de Merlim a quilómetros de distância, juravam que a torre estava repleta de tesouros roubados dos túmulos do Povo Antigo.
O chefe da guarda de Mordred era um cristão chamado Ligessac, um homem alto, delgado, muito ambicioso e muito hábil com o arco. Conseguia quebrar um galho a cinquenta passos de distância quando estava sóbrio, ainda que raramente o estivesse. Ensinou-me um pouco da sua destreza, mas rapidamente ficava aborrecido com a companhia de um rapaz e preferia jogar com os seus homens. No entanto, contou-me a verdadeira história da morte do Príncipe Mordred e a razão pela qual o Rei Supremo Uther amaldiçoara Artur.
A culpa não foi de Artur disse Ligessac enquanto atirava uma pedra para o seu tabuleiro. Todos os soldados tinham o seu próprio tabuleiro, alguns muito bonitos feitos de osso.
Um seis disse ele enquanto eu esperava para ouvir o resto da história de Artur.
Dobro disse Menw, um dos guardas do príncipe, e depois fez rolar a sua própria pedra. A pedra bateu nas arestas do tabuleiro e decidiu-se pelo um. Ele só precisava de um dois para ganhar, por isso recolhia agora as suas pedras, não parando de praguejar.
Ligessac mandou Menw ir buscar a bolsa para lhe pagar o que tinha ganho e, depois, disse-me como Uther tinha mandado chamar Artur a Armórica para o ajudar a vencer um grande exército de saxões que tinha entrado muito dentro do nosso território. Ligessac disse que Artur trouxera os seus guerreiros, mas nenhum dos seus famosos cavalos, pois o chamamento fora urgente e não houvera tempo para arranjar barcos suficientes para os homens e para os cavalos.
Não que os cavalos lhe fizessem falta disse Ligessac com espanto, porque apanhou os filhos da puta dos saxões numa armadilha no vale do Cavalo Branco. Depois Mordred decidiu que sabia mais do que Artur. Ele queria as honras todas, percebes? Ligessac limpou o nariz à manga e olhou em redor para ter a certeza de que ninguém o estava a ouvir.
Nessa altura, Mordred estava bêbado continuou ele, falando mais baixo e metade dos seus homens deliravam, completamente nus, e juravam que conseguiriam matar um número de homens dez vezes superior ao seu. Devíamos ter esperado por Artur, mas o príncipe ordenou que atacássemos.
Estava lá? perguntei com espanto de adolescente. Ele assentiu com um aceno.
Com Mordred. Santo Deus, mas como eles lutaram. Cercaram-nos e, de repente, éramos cinquenta bretões a cair como tordos ou a ficar rapidamente sóbrios. Eu atirava setas o mais depressa que podia, os nossos lanceiros tentaram fazer uma muralha de escudos, mas os guerreiros deles avançavam sobre nós dizimando-nos com as espadas e os machados. Os seus tambores continuavam a rufar, os seus feiticeiros a gritar e eu já me considerava um homem morto. Acabaram-se-me as setas e mudei para a lança. Não ficaram mais do que vinte de nós vivos e todos no limite das nossas forças. O estandarte com o dragão tinha sido capturado, Mordred esvaía-se em sangue e nós, os que sobrávamos, juntámo-nos todos à espera do fim e foi então que chegaram os homens de Artur. Fez uma pausa e, depois, abanou a cabeça com pesar. Sabes, meu rapaz, os bardos dizem que, naquele dia, Mordred inundou o chão com sangue saxão, mas não foi Mordred, foi Artur. Ele matou e tornou a matar. Recuperou o estandarte, chacinou os feiticeiros, queimou os tambores de guerra, perseguiu os sobreviventes até ao anoitecer e matou o seu chefe militar em Edwy's Hangstone à luz do luar. E é por isso que agora os Saxões são vizinhos cautelosos, meu rapaz, não porque Mordred os derrotou, mas porque pensam que Artur voltou para a Grã-Bretanha.
Mas não voltou disse eu tristemente.
O Rei Supremo não permitirá que ele volte. O Rei Supremo culpa-o. Ligessac fez uma pausa e olhou novamente à sua volta, para o caso de estar a ser ouvido. O Rei Supremo considera que Artur queria que Mordred morresse para ele próprio ser o rei, mas não é verdade. Artur não é assim.
Como é ele? perguntei.
Ligessac encolheu os ombros como que sugerindo que a resposta era difícil, mas, então, antes que pudesse dizer fosse o que fosse, viu Menw regressar. Nem uma palavra, rapaz avisou-me ele. Nem uma palavra.
Todos nós ouvíramos histórias semelhantes, apesar de Ligessac ser o primeiro homem que conheci que afirmou ter estado na batalha do Monte do Cavalo Branco. Mais tarde cheguei à conclusão de que ele nunca lá estivera e que estava apenas a inventar uma história para conseguir a admiração de um rapaz crédulo, ainda que a sua narrativa fosse suficientemente exacta. Mordred fora um louco bêbado, Artur fora o vencedor, mas mesmo assim Uther desterrara-o. Ambos eram filhos de Uther, mas Mordred era o herdeiro amado e Artur o bastardo arrogante. No entanto, o desterro de Artur não podia pôr fim às crenças que existiam em Dumnónia de que o bastardo era a maior esperança do seu país; o jovem guerreiro de além-mar que nos salvaria dos Saxões e recuperaria as Terras Perdidas de Lloegyr.
A segunda parte do Inverno foi moderada. Foram vistos lobos do outro lado do paredão de terra que protegia a ponte de terra de Ynys Wydryn, mas nenhum se aproximou do Tor, apesar de algumas das crianças mais novas fazerem feitiços com patas de lobos que escondiam debaixo da cabana de Druidan, na esperança de que uma dessas feras saltasse a paliçada de dentes arreganhados e a babar-se e levasse o anão para lhe servir de jantar. Os feitiços não resultaram e, quando o Inverno começou a afastar-se começámos a preparar-nos para o grande festival da Primavera de Beltain com as suas grandes fogueiras e os festejos da meia-noite, mas eis que uma excitação ainda maior atinge o Tor.
Chegou Gundleus da Silúria.
O bispo Bedwin chegou primeiro. Era o conselheiro de maior confiança de Uther e a sua chegada prometia grande agitação. As criadas de Norwenna saíram do quarto e foram colocados tapetes fiados sobre o junco, sinal indubitável de que alguém muito importante vinha de visita. Todos pensávamos que devia ser o próprio Uther, mas o estandarte que apareceu na ponte de terra uma semana antes de Beltain exibia a raposa de Gundleus e não o dragão de Uther. Estava uma manhã resplandecente quando vi os cavaleiros desmontar no sopé do Tor. O vento batia-lhes nas capas e fustigava o estandarte já puído onde vi a máscara de raposa, que eu odiava, o que me fez gritar em protesto e fazer o sinal para afastar o mal.
O que é? perguntou Nimue. Ela estava ao meu lado na plataforma de guarda do lado leste.
É o estandarte de Gundleus disse eu.
Vi a surpresa nos olhos de Nimue, pois Gundleus era o rei da Silúria e era aliado do rei Gorfyddyd de Powys, inimigo declarado de Dumnónia.
Tens a certeza? perguntou-me ela.
Ele levou a minha mãe disse eu e o seu druida atirou-me para o poço da morte.
Cuspi por cima da paliçada na direcção daquele punhado de homens que começara a subir o Tor, que era íngreme demais para os cavalos. Entre eles lá estava Tanaburs, o druida de Gundleus e o meu espírito do mal. Era um velho alto com uma barba entrançada e longa cabeleira branca, com a parte da frente do crânio rapada, num corte adoptado pelos druidas e pelos padres cristãos. A meio do monte atirou a capa para o lado e iniciou uma dança de protecção não fosse Merlim ter deixado espíritos a guardar o portão. Nimue ao ver o velhote a saltar numa perna só e sem firmeza na encosta íngreme, cuspiu para o ar e correu para os aposentos de Merlim. Corri atrás dela, mas ela empurrou-me para o lado e disse que eu não perceberia o perigo.
Perigo? perguntei, mas ela já tinha desaparecido. Parecia não haver perigo, pois Bedwin ordenara que o portão fosse todo aberto e tentava agora organizar as boas-vindas no meio daquele caos de excitação que era o topo do Tor. Nesse dia Morgana estava fora, a meditar no templo dos sonhos nos montes de leste, mas todos os outros habitantes do Tor se apressaram para ver os visitantes. Druidan e Ligessac dispuseram em filas os seus homens, Pellinore latia nu, olhando as nuvens. Guendoloen, desdentada, cuspia pragas contra o bispo Bedwin enquanto algumas crianças lutavam para conseguir ver melhor os visitantes. A recepção deveria ter sido digna, mas Lunete, uma criança irlandesa abandonada pelos pais e um ano mais nova do que Nimue, abriu a pocilga de Druidan e assim Tanaburs, o primeiro a entrar pelo portão da paliçada, foi recebido por um frenesim de guinchos.
Era preciso mais do que bácoros em pânico para assustar um druida. Tanaburs, vestido com uma túnica cinzenta imunda bordada com lebres e quartos crescentes, ficou na entrada e ergueu as duas mãos acima da cabeça tosquiada. Trazia um bastão com a ponta em forma de lua que rodou três vezes no ar, no sentido percorrido pelo sol, posto o que, uivou na direcção da Torre de Merlim. Um dos bácoros cambaleou, tentou equilibrar-se na entrada enlameada acabou por se precipitar monte abaixo. Tanaburs, imóvel, uivou outra vez, verificando se no Tor não existiam inimigos ocultos.
Durante alguns segundos reinou o silêncio quebrado apenas pelo sacudir do estandarte ao vento e pela respiração pesada dos guerreiros que subiram o monte atrás do druida. Gudovan, o escriba de Merlim, viera pôr-se ao meu lado, com as mãos embrulhadas em tiras de pano sujas de tinta para se proteger do frio.
Quem é? perguntou e, depois, estremeceu ao ouvir um grito penetrante e choroso a responder ao desafio de Tanaburs. O grito veio de dentro da casa e eu sabia que era Nimue.
Tanaburs pareceu ficar furioso. Ladrou como uma raposa, tocou nos órgãos genitais, fez o sinal para afastar o mal e começou a saltar só numa perna em direcção à casa. Parou ao fim de cinco passos, uivou de novo em tom de desafio, mas desta vez, de lá de dentro, não veio nenhum grito como resposta, por isso ele pôs a outra perna no chão e acenou para o seu senhor.
É seguro! disse Tanaburs. Vinde, meu Rei e Senhor, vinde!
Rei? perguntou-me Gudovan.
Disse-lhe quem eram os visitantes e depois perguntei porque razão Gundleus, um inimigo, tinha vindo ao Tor. Gudovan catou um piolho por baixo da camisa e encolheu os ombros.
Política, rapaz, política.
Conta-me pedi-lhe.
Gudovan suspirou como se a minha pergunta fosse a prova da mais crassa estupidez. Esta era a sua reacção a qualquer pergunta, mas depois deu-me resposta.
Norwenna está em condições de contrair matrimónio, Mordred é um bebé que precisa de ser protegido, e quem pode proteger melhor um bebé do que um rei? E quem melhor do que um rei inimigo que se pode tornar amigo de Dumnónia? É, na realidade, muito simples, meu rapaz. Se pensasses durante um minuto terias conseguido encontrar a resposta sem me teres feito perder tempo. Soprou-me levemente no ouvido como retribuição. E não te esqueças cacarejou, ele vai ter de desistir de Ladwys durante algum tempo.
Ladwys? perguntei.
A amante dele, seu estúpido. Julgas que algum rei dorme sozinho? Mas há quem diga que Gundleus está tão apaixonado por Ladwys que até casou com ela! Dizem que a levou para Lleu's Mound e mandou o seu druida uni-los, mas eu não acredito que ele fosse assim tão tolo. Ela não é de alta linhagem. Não devias ir hoje contar as rendas que Hywel pediu?
Ignorei a pergunta e olhei para Gundleus e os seus guardas, que transpunham cuidadosamente a traiçoeira entrada escorregadia devido à lama.
O rei da Silúria era um homem alto e bem feito, talvez com trinta anos. Era ainda um jovem quando os seus bandidos capturaram a minha mãe e me atiraram para o poço da morte, mas aqueles cerca de doze anos que passaram desde essa noite escura e sangrenta tinham sido generosos para com ele, pois estava ainda atraente, com um longo cabelo negro e uma barba bifurcada que ainda nada tinha de grisalha. Trazia uma capa de pele de raposa, botas de couro que lhe chegavam aos joelhos, uma túnica castanho-avermelhada e uma espada numa bainha vermelha. Os seus guardas vestiam-se de maneira idêntica e eram todos homens altos que se elevavam acima da miserável colecção de portadores de lanças estropiados de Druidan. Os silurianos usavam espadas, mas nenhum trazia lanças ou escudos, prova de que tinham vindo em paz.
Afastei-me quando Tanaburs passou. Eu era uma criança que ainda mal sabia andar, quando ele me atirara para o poço e não havia qualquer hipótese de o velho reconhecer em mim o rapaz que enganara a morte, nem eu tinha razão para o temer depois de ele não ter conseguido matar-me. Mesmo assim afastei-me do druida siluriano. Tinha olhos azuis, um nariz adunco e uma boca descaída pingando baba. Trazia pequenos ossos pendurados nas pontas do cabelo branco longo e liso, que batiam uns nos outros enquanto caminhava arrastando os pés à frente do seu rei. O bispo Bedwin aproximou-se de Gundleus, proclamando as boas-vindas e dizendo quão honrado Tor estava com a sua visita real. Dois dos guardas silurianos carregavam uma pesada caixa que devia conter presentes para Norwenna.
A delegação desapareceu no interior da casa. O estandarte com a raposa estava enterrado na terra fora da porta onde os homens de Ligessac barravam a entrada a qualquer outra pessoa, mas nós, os que crescemos no Tor, sabíamos como entrar sorrateiramente na casa de Merlim. Corri para o lado sul, trepei a pilha de toros e afastei uma das cortinas de couro que protegiam as janelas. Depois saltei para o chão e escondi-me por detrás das arcas de verga que continham os panos para os dias de festa. Uma das escravas de Norwenna viu-me entrar e provavelmente alguns dos homens de Gundleus também, mas ninguém se deu ao trabalho de me expulsar.
Norwenna estava sentada numa cadeira de madeira no centro do aposento. A princesa viúva não era bonita: tinha um rosto redondo como a lua, uns olhos vorazes e pequenos, uma boca carrancuda e uma pele marcada por alguma doença de infância, mas nada disso importava. Os grandes homens não casam com as princesas pelo seu aspecto, mas sim pelo poder que trazem nos seus dotes. Contudo, Norwenna tinha-se preparado cuidadosamente para esta visita. As suas criadas tinham-lhe vestido uma capa de lã tingida de um azul pálido que caía no chão à sua volta. Tinham-lhe entrançado o cabelo negro e enrolado as tranças à volta da cabeça antes de lhes colocarem rebentos de abrunhos. Usava um pesado colar de ouro à volta do pescoço, três pulseiras douradas no pulso e uma cruz de madeira maciça entre os seios. Estava muito nervosa, pois a sua mão livre estava sempre a mexer na cruz de madeira, enquanto no outro braço, enfaixado em fino linho e embrulhado numa capa tingida de uma rara cor dourada repousava o Príncipe Herdeiro de Dumnónia, Mordred.
O rei Gundleus mal olhou para Norwenna. Refastelou-se na cadeira em frente a ela e parecia extremamente entediado com aquele processo. Tanaburs andava apressadamente de um pilar para o outro, murmurando feitiçarias por entre os dentes e a cuspir. Quando passou perto do meu esconderijo, encolhi-me até o cheiro dele ter desaparecido. As chamas crepitavam nas lareiras nas duas extremidades do aposento, com o fumo a misturar-se e a agitar-se até ao tecto enegrecido pela fuligem. Não havia sinal de Nimue.
Foi servido aos visitantes vinho, peixe fumado e bolos de aveia. Depois o bispo Bedwin fez um discurso explicando a Norwenna que Gundleus, rei da Silúria, em missão de paz com o Rei Supremo, passara por acaso perto de Ynys Wydryn e achara que seria cortês fazer essa visita ao Príncipe Mordred e à sua mãe. O rei trouxera alguns presentes para o príncipe, disse Bedwin, depois do que Gundleus acenou descuidadamente para que os homens que traziam a caixa se aproximassem. Os dois guardas levaram a arca para junto de Norwenna. A princesa ainda não tinha dito nada, e nem sequer agora, que os presentes estavam a ser colocados no tapete a seus pés, disse uma palavra. Havia uma fina pele de lobo, mais duas peles, uma outra de castor e uma pele curtida de veado, um pequeno colar de ouro, alguns pregadores, um copo feito de chifre adornado com fios de prata encanastrados, um frasco romano de vidro verde pálido com um bico maravilhosamente delicado e uma asa em forma de coroa. A arca vazia foi dali levada e seguiu-se um silêncio incómodo, ninguém sabendo muito bem o que dizer. Gundleus fez um gesto descuidado na direcção dos presentes, o bispo Bedwin irradiava felicidade, Tanaburs escarrou ruidosamente como protecção para um pilar enquanto Norwenna olhava hesitante para os presentes do rei que, afinal, nem eram muito generosos. A pele de veado devia dar para fazer um bom par de luvas, as outras peles eram boas, apesar de Norwenna ter provavelmente muitas e melhores nos seus cestos de vime, e o colar que usava era quatro vezes mais pesado do que o que estava a seus pés. Os pregadores de Gundleus eram feitos de ouro fino e o copo de chifre estava lascado. Apenas o frasco romano era verdadeiramente precioso.
Bedwin quebrou aquele silêncio embaraçoso.
Os presentes são magníficos! Raros e magníficos. Fostes verdadeiramente generoso, Senhor.
Norwenna concordou e assentiu obedientemente com a cabeça. O menino começou a chorar e Ralla, a ama de leite, pegou nele e levou-o para a sombra atrás dos pilares, onde lhe deu o peito, silenciando-o.
O Príncipe Herdeiro está bem? perguntou Gundleus, falando pela primeira vez desde que entrara no aposento.
Graças a Deus e a todos os Seus Santos está respondeu Norwenna.
O pé esquerdo? perguntou Gundleus sem tacto nenhum. Poderá melhorar?
O pé não o vai impedir de montar a cavalo, empunhar uma espada ou sentar-se num trono respondeu Norwenna com firmeza.
Claro que não, claro que não disse Gundleus, lançando um olhar na direcção da criança esfomeada. Sorriu, esticou os seus longos braços e olhou em volta do aposento. Nada dissera sobre casamento, mas também não o faria naquele momento nem ali. Se quisesse casar com Norwenna pediria a sua mão a Uther, não a ela. Aquela visita era apenas uma oportunidade para inspeccionar a noiva. Lançou a Norwenna um breve olhar desinteressado e, depois, olhou mais uma vez fixamente em redor do aposento mergulhado na penumbra. Com que então é esta a toca de Merlim? perguntou Gundleus. Onde está ele?
Ninguém respondeu. Tanaburs estava a esgaravatar debaixo de um dos tapetes e eu supus que estivesse a enterrar algum feitiço no chão do aposento. Mais tarde, quando a delegação siluriana já tinha partido, fui procurar e encontrei um pequeno osso de javali esculpido que atirei para a fogueira. As chamas ficaram azuis e crepitaram furiosamente e Nimue disse que eu agira acertadamente.
Pensamos que Lorde Merlim está na Irlanda respondeu, finalmente, o bispo Bedwin. Ou talvez nas regiões selvagens do Norte acrescentou de forma vaga.
Ou talvez morto? sugeriu Gundleus.
Peço a Deus que não disse o bispo fervorosamente.
Ai pedis? Gundleus virou-se na cadeira para encarar o rosto idoso de Bedwin. Aprovais Merlim, Eminência?
Ele é um amigo, Senhor disse Bedwin. Era um homem digno e categórico, sempre ansioso por manter a paz entre as religiões.
Lorde Merlim é um druida, Eminência, e odeia cristãos Gundleus estava a tentar provocar Bedwin.
Agora há muitos cristãos na Grã-Bretanha disse Bedwin e poucos druidas. Acho que nós, os da verdadeira fé, nada temos a temer.
Ouviste isto, Tanaburs? Gundleus chamou o seu druida. O bispo não tem medo de ti!
Tanaburs não respondeu. Na sua busca pelo aposento tinha chegado à barreira-fantasma que guardava a porta dos aposentos de Merlim. A vedação era uma coisa simples: apenas duas caveiras colocadas uma de cada lado da porta, mas apenas um druida se atreveria a transpor a barreira invisível e mesmo um druida recearia uma barreira-fantasma colocada por Merlim.
Vão pernoitar aqui? perguntou o bispo Bedwin a Gundleus, tentando desviar o assunto de Merlim.
Não respondeu Gundleus rudemente, levantando-se. Pensei que se preparava para sair, mas em vez disso passou o olhar por Norwenna e fixou-o na porta pequena e escura guardada pelas caveiras, à frente da qual Tanaburs tremia como um cão de caça a farejar um javali invisível.
O que há para lá desta porta? perguntou o rei.
Os aposentos de Lorde Merlim, Senhor disse Bedwin.
O antro dos segredos? perguntou Gundleus cruelmente.
Quartos, nada mais disse Bedwin desdenhosamente. Tanaburs levantou o seu bastão com a ponta em forma de lua e segurou-o,
a tremer, na direcção da barreira-fantasma. O rei Gundleus observava a actuação do seu druida e, depois, bebeu o vinho e atirou o copo de chifre para o chão.
Afinal, acho que se calhar, vou dormir cá disse o rei. Mas primeiro vamos inspeccionar os quartos.
Fez um gesto com a mão para que Tanaburs avançasse, mas o druida estava nervoso. Merlim era o maior druida da Grã-Bretanha, temido mesmo para lá do mar da Irlanda, e ninguém se intrometia, por pouco que fosse, na sua vida. Contudo o grande homem já não era visto há muito tempo e algumas pessoas diziam à boca pequena que a morte do príncipe Mordred fora um sinal de que o poder de Merlim estava a diminuir. E Tanaburs, tal como o seu senhor, estava certamente fascinado com o que estava por detrás da porta, pois podia haver lá segredos que tornariam Tanaburs tão poderoso e sábio como o próprio grande Merlim.
Abre a porta! ordenou Gundleus a Tanaburs.
A extremidade do bastão-lua moveu-se receosamente na direcção de uma das caveiras, hesitante, e depois tocou a cabeça de osso amarelado. Nada aconteceu. Tanaburs cuspiu na caveira e derrubou-a antes de a espetar e puxar para trás o bastão como se estivesse a espicaçar uma cobra em hibernação. Mais uma vez nada aconteceu. Tentou, então, chegar com a mão livre ao trinco da porta de madeira.
Nisto parou aterrorizado.
Um grito ecoara na escuridão esfumada do aposento. Um grito penetrante e pavoroso como o de uma donzela a ser torturada, e esse som horrível arremessou o druida para trás. Norwenna gritou de pavor e fez o sinal da cruz. Mordred começou a chorar e nada do que Ralla fizesse o sossegava. Gundleus hesitou perante aquele barulho, mas depois, quando terminou, desatou a rir às gargalhadas.
Um guerreiro anunciou a todos os que ali estavam não se assusta com o grito de uma donzela. Caminhou em direcção à porta, ignorando o bispo Bedwin que gesticulava como se tentasse impedir o avanço do rei, mas sem o tocar realmente.
Um barulho de coisas partidas soou vindo da porta guardada por um fantasma. Foi um violento som de estilhaços e foi tão repentino que todos saltaram alarmados. No início pensei que a porta tinha caído perante o avanço do rei, depois vi que uma lança tinha trespassado a porta. A cabeça prateada da lança aparecia, orgulhosa por ter passado através do velho carvalho enegrecido pelo fumo, e eu tentei imaginar que força brutal fora necessária para fazer aquele ferro aguçado penetrar tão espessa barreira.
O aparecimento repentino da lança fez que até mesmo Gundleus hesitasse, mas o seu orgulho estava ameaçado e ele não iria recuar à frente dos seus guerreiros. Fez o sinal para afastar o mal, cuspiu na lança, avançou para a porta, levantou o trinco e empurrou-a, abrindo-a.
Mas logo recuou com o horror estampado no rosto. Eu estava a olhar para ele e vi o medo vivo nos seus olhos. Afastou-se mais um passo da porta aberta e depois ouvi o chorar penetrante de Nimue enquanto ela entrava no aposento. Tanaburs fazia movimentos insistentes com o bastão, Bedwin rezava e o menino chorava enquanto Norwenna se virara na cadeira com a angústia no olhar.
Nimue atravessou a porta e, ao ver a minha amiga, até eu estremeci. Estava nua e o seu magro corpo de pele clara estava coberto de sangue que gotejava do cabelo e escorria em arroios, descendo pelos seios pequenos até às coxas. A cabeça estava coroada por uma máscara da morte, a pele morena do rosto de um homem imolado, acima do seu próprio rosto como um elmo com relevos e que se segurava porque a pele dos braços do homem morto estava amarrada à volta do pescoço delicado de Nimue. A máscara parecia ter uma medonha vida própria, pois contraía-se à medida que ela caminhava na direcção do rei da Silúria. A pele amarelada e seca do corpo do homem morto caía solta pelas costas de Nimue abaixo enquanto ela avançava com passo irregular. Só se via o branco dos olhos no seu rosto ensanguentado e, enquanto avançava contorcendo-se, ia lançando pragas numa linguagem mais indecorosa do que o linguajar de qualquer soldado. Nas mãos empunhava duas víboras com os corpos negros reluzentes e as cabeças frementes buscando o rei.
Gundleus recuou, fazendo o sinal para afastar o mal, mas depois lembrou-se que era um homem, um rei e um guerreiro e, por isso, levou a mão aos copos da espada. Foi então que Nimue sacudiu a cabeça e a máscara da morte lhe escorregou do cabelo, preso ao alto. Só então vimos que não era o cabelo dela, mas sim um morcego que, subitamente, estendeu as asas pretas enrugadas e mostrou, rosnando, a boca vermelha a Gundleus.
O morcego fez Norwenna gritar e correr a buscar o menino enquanto todos nós olhávamos com horror para a criatura presa ao cabelo de Nimue. Sacudia-se e agitava as asas tentando voar, rosnava e estrebuchava. As cobras contorciam-se e, de repente, o aposento ficou vazio. Norwenna foi a primeira a fugir, seguiu-se Tanaburs, e depois todos, incluindo o rei, correram para os alvores da manhã pela porta do lado leste.
Nimue ficou imóvel enquanto eles fugiam, depois os seus olhos giraram e ela pestanejou. Avançou até à lareira e, descuidadamente, atirou as duas cobras para as chamas onde sibilaram, chicoteando e chiando antes de morrer. Libertou o morcego, que voou para as traves do tecto e, depois, desamarrou a máscara de morte do pescoço e enrolou-a num feixe antes de pegar no delicado frasco romano de entre os presentes que Gundleus trouxera. Olhou fixamente para o frasco e o seu corpo hirsuto contorceu-se ao atirar violentamente o tesouro contra um pilar de carvalho, onde se despedaçou em cacos verde pálidos.
Derfel? disse ela, quebrando o silêncio que se seguira. Sei que estás aqui.
Nimue? disse eu nervoso e depois levantei-me e saí de trás do meu esconderijo de verga. Estava aterrorizado. A gordura de cobra sibilava na fogueira e o morcego rumorejava no tecto.
Nimue sorriu-me.
Preciso de água, Derfel disse ela.
Água? perguntei estupidamente.
Para me lavar e tirar o sangue de galinha explicou Nimue.
Galinha?
Agua disse de novo. Há um jarro perto da porta. Traz-me alguma água.
Dali? perguntei atónito, porque o gesto dela parecia implicar que eu teria de trazer a água dos aposentos de Merlim.
Por que não? perguntou ela, depois passou pela porta ainda empalada com a grande lança e eu peguei no pesado jarro e segui-a, encontrando-a em pé diante de uma chapa de cobre que reflectia o seu corpo nu. Não parecia estar com vergonha, talvez porque todos tínhamos corrido nus quando crianças, mas eu estava desconfortavelmente ciente de que já não éramos crianças.
Aqui? perguntei.
Nimue acenou afirmativamente. Pousei o jarro no chão e dirigi-me de novo para a porta.
Fica disse ela por favor, fica. E fecha a porta.
Tive de arrancar a lança da porta antes de a poder fechar. Preferi não perguntar como tinha conseguido fazer penetrar a cabeça da lança no carvalho, pois ela não estava disposta a responder a perguntas, por isso fiquei em silêncio enquanto libertava a arma e Nimue limpava o sangue da sua pele clara. Depois embrulhou-se num manto preto.
Anda cá disse ela, quando acabou.
Atravessei obedientemente o quarto até um leito de peles e cobertores de lã em cima de um pequeno estrado de madeira onde evidentemente ela dormia. A cama tinha um sobrecéu de um tecido escuro e bolorento e foi nessa escuridão que me sentei e a aconcheguei nos meus braços. Podia sentir-lhe as costelas através da suavidade do manto de lã. Ela chorava. Eu não sabia porquê e limitei-me, por isso, a abraçá-la desajeitadamente e a olhar em volta do aposento de Merlim.
Era um lugar extraordinário. Havia muitas arcas de madeira e cestos de vime empilhados para formar recantos e corredores por onde espreitava uma tribo de gatinhos escanzelados. Em alguns lugares as pilhas de cestos tinham caído como se alguém tivesse andado à procura de um objecto que estivesse numa das caixas de baixo e não se preocupando em desmanchar a pilha, tivesse apenas derrubado todo o monte de cestos. Havia pó por todo o lado. Duvidava que os juncos do chão tivessem sido mudados nos últimos anos, apesar de em alguns lugares terem sido cobertos com tapetes ou cobertores que se tinham definhado. O fedor no quarto era excessivo: um cheiro a pó, mijo de gato, humidade, coisas apodrecidas e bolor misturava-se com os mais subtis aromas das ervas penduradas nas vigas do telhado. Havia uma mesa ao lado da porta cheia de pergaminhos enrolados e a desfazerem-se. Numa prateleira coberta de pó, por cima da mesa, havia caveiras de animais e, quando os meus olhos se habituaram àquela escuridão sepulcral, vi que entre elas estavam pelo menos duas caveiras humanas. Escudos desmerecidos estavam amontoados contra um grande vaso de argila onde estava enterrado um feixe de lanças cheio de teias de aranha. Havia uma espada pendurada na parede. Havia também um fogareiro fumegante em cima de um monte de cinzas junto ao grande espelho de cobre onde, por incrível que pareça, estava pendurado o símbolo dos cristãos, a cruz com a figura retorcida do seu Deus morto aí pregado. A cruz estava envolvida em visco branco como precaução contra o seu mal inerente. Um grande emaranhado de chifres de veado estava pendurado numa trave do tecto ao lado de ramos de visco branco seco e de uma ninhada pendente de morcegos empoleirados cujos excrementos formavam pequenos montículos no chão. Morcegos numa casa era o pior dos presságios, mas suponho que pessoas tão poderosas como Merlim e Nimue não precisavam de se preocupar com tão prosaicas ameaças. Havia uma segunda mesa cheia de bacias, almofarizes, pilões, uma balança de metal, frascos e boiões selados com cera que mais tarde descobri que continham orvalho colhido dos túmulos de homens assassinados, o pó de crânios esmagados e infusões de beladona, mandrágora e pilrito, enquanto numa curiosa urna de pedra junto à mesa se acumulava uma amálgama de pedras-d'águia, pães de fada, dardos de gnomos, amotites e pedras de bruxa velha, tudo misturado com penas, conchas do mar e pinhas. Nunca vira um quarto tão repleto, tão imundo ou tão fascinante e perguntava-me se o aposento para lá da porta, a Torre de Merlim, seria tão horrivelmente espantoso.
Nimue parara de chorar e estava agora imóvel nos meus braços. Devia ter sentido a minha admiração e a minha reacção súbita ao observar o quarto.
Ele não deita nada fora disse ela com uma voz cansada, nada. Eu não falei, apenas a acalmei acariciando-a. Ela quedou-se por um momento, exausta, mas quando a minha mão tocou no manto sobre um dos seus pequenos seios, afastou-se zangada.
Se é isso que queres disse ela vai procurar Sebile. Apertou o manto à sua volta quando desceu da cama em cima do estrado e atravessou o quarto aproximando-se da mesa atravancada com os instrumentos de Merlim.
Balbuciei uma desculpa embaraçada.
Não quero saber disse, rejeitando as minhas desculpas. Ouviam-se vozes lá fora no Tor e mais vozes no grande aposento ao lado, mas ninguém ousou perturbar-nos. Nimue procurava alguma coisa por entre as bacias, os boiões e as grandes colheres espalhadas por cima da mesa e encontrou o que queria. Era uma faca de pedra preta, com uma lâmina de dois gumes tão afiados que eram quase brancos como osso. Voltou para junto da cama bolorenta e ajoelhou-se no estrado de forma a poder olhar directamente para o meu rosto. O manto tinha-se aberto e eu estava nervosamente consciente do seu corpo nu semioculto nas sombras, mas ela olhava-me fixamente nos olhos e eu nada podia fazer senão retribuir aquele olhar.
Não falou durante muito tempo e, no silêncio, eu quase podia ouvir o meu coração a bater. Ela parecia estar a tomar uma decisão, uma dessas decisões tão ameaçadoras que mudariam para sempre o equilíbrio de uma vida e, por isso, esperei temeroso e impossibilitado de me mexer da minha posição incómoda. O seu cabelo negro estava todo despenteado, emoldurando-lhe o rosto em forma de cunha. Nimue não era bonita nem feia, mas o seu rosto possuía uma vivacidade e uma energia que dispensavam qualquer beleza formal. Tinha a testa alta e larga, os olhos negros e ferozes, o nariz pontiagudo, a boca grande e o queixo fino. Era a mulher mais inteligente que alguma vez conheci, mas, mesmo nessa altura em que pouco mais era do que uma criança, invadia-a uma tristeza gerada por essa inteligência. Ela sabia demais. Já nascera a saber ou então os Deuses haviam-lhe dado esses conhecimentos quando evitaram que se afogasse. Quando criança tinha feito muitos disparates e travessuras. Agora, porém, privada da orientação de Merlim, mas tendo sobre os seus ombros as responsabilidades dele, ela estava a mudar. É claro que eu também estava a mudar, mas a minha mudança era previsível: um rapaz ossudo a tornar-se num jovem alto e espadaúdo. Nimue estava a passar da infância para a autoridade. Essa autoridade brotava do seu sonho, um sonho que partilhava com Merlim, mas com o qual ela nunca se conseguiria comprometer da forma que Merlim o fazia. Nimue era de extremos, com ela era tudo ou nada. Preferiria ver toda a terra morrer num vácuo gelado sem Deuses, a entregar-se àqueles que apagariam a sua imagem de britânica perfeita devotada aos seus Deuses britânicos. Naquele momento, ajoelhada à minha frente, eu sabia que ela estava a decidir se eu merecia fazer parte desse fervoroso sonho.
Ela tomou a sua decisão e aproximou-se mais de mim.
Dá-me a tua mão esquerda disse. Eu ergui a mão.
Ela levantou-me a palma da mão com a sua mão esquerda e depois disse uma fórmula mágica. Reconheci os nomes de Camulos, o Deus da Guerra; de Manawydan fab Llyr; o próprio Deus do Mar de Nimue; de Agrona, a Deusa da Mortandade e de Aranrhod a Dourada, a Deusa da Aurora, mas a maior parte das palavras e dos nomes eram-me estranhos e eram ditos numa voz tão hipnótica que fiquei muito calmo e reconfortado sem dar muita importância ao que Nimue dizia ou fazia, até que, de repente, ela me golpeou a mão e eu, surpreendido, gritei. Ela mandou-me calar. Por um segundo, apenas via na minha mão um fino corte de faca, depois o sangue começou a brotar.
Ela cortou a sua própria palma da mão esquerda da mesma maneira que tinha cortado a minha e pôs o seu corte sobre o meu, entrelaçando os meus dedos inertes nos seus próprios dedos. Deixou cair a faca e puxou a ponta do manto que enrolou com força à volta das duas mãos a sangrar.
Derfel disse suavemente enquanto a tua mão e a minha mão estiverem marcadas pelas cicatrizes nós seremos um só. Concordas?
Olhei-a nos olhos e percebi que aquilo não era uma coisa sem significado, não era nenhum jogo de crianças, mas um juramento que me prenderia durante toda esta vida, e talvez durante a próxima. Por um instante fiquei aterrorizado com tudo o que viria a acontecer, mas depois assenti com um aceno de cabeça e, nem sei como, consegui falar.
Concordo articulei.
E enquanto tiveres essa cicatriz, Derfel, a tua vida pertence-me disse ela, e enquanto eu tiver esta cicatriz a minha vida pertence-te. Compreendes o que eu disse?
Sim respondi.
A minha mão latejava. Naquele sangrento aperto de mão, sentia a minha mão quente e inchada e sentia a dela pequena e fria.
Um dia, Derfel, disse Nimue chamar-te-ei e, se tu não vieres, a cicatriz vai marcar-te perante os Deuses como um falso amigo, um traidor e um inimigo.
Sim disse eu.
Olhou para mim em silêncio durante alguns segundos e, depois, subiu para o monte de peles e cobertores onde se enrolou nos meus braços. Era incómodo deitar-nos ali juntos, pois as nossas mãos esquerdas ainda estavam presas uma à outra, mas conseguimos arranjar uma posição confortável e ali ficámos deitados e quietos. Ouviam-se vozes lá fora e o pó flutuava naquele quarto alto e escuro onde os morcegos dormiam e os gatos caçavam. Estava frio, mas Nimue puxou uma pele para cima de nós e adormeceu com o seu corpo magro entorpecendo o meu braço direito. Eu fiquei acordado, receoso e confuso com o que a faca tinha originado entre nós. Ela acordou a meio da tarde.
Gundleus já se foi embora disse ela com sonolência, apesar de eu não saber como ela o sabia.
Depois soltou-se do meu abraço e das peles emaranhadas antes de desembrulhar o manto que estava ainda enrolado à volta das nossas mãos. O sangue tinha formado uma crosta que saiu das nossas feridas, provocando dor, quando separámos as mãos. Nimue dirigiu-se ao vaso com as lanças e trouxe uma mão-cheia de teias de aranha que colocou por cima da minha palma da mão ensanguentada.
Vai sarar depressa disse descuidadamente e, mantendo a sua própria mão embrulhada num pedaço de tecido, procurou algum pão e um pedaço de queijo.
Não tens fome? perguntou ela.
Sempre.
Partilhámos a refeição. O pão estava seco e duro e o queijo tinha sido mordiscado pelos ratos. Pelo menos Nimue pensava que tivessem sido os ratos.
Talvez os morcegos tenham cortado o queijo com os dentes disse ela. Os morcegos comem queijo?
Não sei respondi, mas depois hesitei. Era um morcego domesticado?
Eu referia-me ao animal que ela prendera ao cabelo. É claro que eu já tinha visto coisas assim antes, mas nem Merlim nem os seus acólitos falavam delas, mas eu tinha a impressão de que a estranha cerimónia com as nossas mãos ensanguentadas me faria merecer a confiança de Nimue.
E assim foi, pois ela abanou a cabeça.
É um velho truque para assustar os tolos disse ela desdenhosamente. Foi Merlim quem mo ensinou. Põem-se peias nos pés do morcego, peias como as dos falcões, depois ata-se as peias ao cabelo. Passou a mão pelo cabelo negro e depois riu-se. E assustou Tanaburs! Imagina só! E é ele um druida!
Eu não fiquei nada divertido. Queria acreditar na magia dela e não vê-la explicada como um truque feito com trelas de falcões.
E as cobras? perguntei.
Merlim guarda-as num cesto e eu tenho de as alimentar. Ela encolheu os ombros, depois viu o meu desapontamento. O que foi?
Foi tudo uma aldrabice? perguntei.
Ela franziu as sobrancelhas e quedou-se em silêncio durante muito tempo. Pensei que nem sequer fosse responder, mas, finalmente, explicou-se e, à medida que a ouvia, ia percebendo que estava a ouvir as coisas que Merlim lhe ensinara. Ela disse que a magia acontecia nos momentos em que as vidas dos Deuses e dos homens se tocavam, mas que esses momentos não eram comandados pelo homem.
Eu não posso estalar os dedos e encher o quarto de brumas disse ela. Mas já vi isso acontecer. Não posso fazer os mortos levantarem-se, se bem que Merlim diga que já viu isso ser feito. Não posso ordenar que um raio de luz mate Gundleus, apesar de desejar poder fazê-lo, porque só os Deuses o podem fazer. Mas houve um tempo, Derfel, em que podíamos fazer essas coisas, quando vivíamos com os Deuses, lhes agradávamos e podíamos usar o seu poder para manter a Grã-Bretanha da forma que eles queriam. Nós cumpríamos as suas ordens, percebes, mas as suas ordens eram os nossos desejos.
Apertou as duas mãos uma contra a outra para demonstrar o que dizia, mas estremeceu, pois a pressão magoou-lhe a palma da mão esquerda por causa do corte.
Mas, então, vieram os Romanos e quebraram o pacto disse ela.
Porquê? interrompi-a impaciente, pois já tinha ouvido de mais sobre aquele assunto.
Merlim estava sempre a dizer como Roma tinha quebrado o laço entre a Grã-Bretanha e os seus Deuses, mas nunca explicara como isso poderia ter acontecido se os Deuses tinham tanto poder.
Porque é que não derrotámos os Romanos? perguntei a Nimue.
Porque os Deuses não quiseram que assim fosse. Alguns Deuses são maus, Derfel. Além disso, eles não têm qualquer dever para connosco, só nós é que temos para com eles. Talvez isso os divertisse. Ou talvez os nossos antepassados tenham quebrado o pacto e os Deuses tenham mandado os Romanos para puni-los. Não sabemos, o que sabemos é que os Romanos se foram embora e Merlim diz que temos uma oportunidade, apenas uma oportunidade de restaurar a Grã-Bretanha. Ela falava com a voz baixa, mas intensa. Temos de refazer a velha Grã-Bretanha, a verdadeira Grã-Bretanha, a terra dos Deuses e dos homens, e, se o fizermos, Derfel, se o fizermos, então teremos de novo o poder dos Deuses.
Eu queria acreditar nela. Como eu queria acreditar que as nossas curtas vidas, dominadas pelas doenças e perseguidas pela morte, poderiam receber uma nova esperança graças à boa vontade de criaturas sobrenaturais possuidoras de uma força gloriosa.
- Mas tens de fazer aldrabices para o conseguires? - perguntei não escondendo a minha desilusão.
- Oh, Derfel. - Nimue deixou descair os ombros. - Repara! Nem todas as pessoas conseguem sentir a presença dos Deuses. Por isso, aquelas que o conseguem têm um dever especial. Se eu mostrar fraqueza, se mostrar um momento de descrença, então que esperança há para as pessoas que querem acreditar? Não são mesmo truques, são... fez uma pausa, procurando a palavra certa ... insígnias. Tal e qual como a coroa de Uther, os seus colares, o seu estandarte e a sua pedra em Caer Cadarn Essas coisas dizem-nos que Uther é o Rei Supremo e como tal o tratamos. Quando Merlim anda por entre o seu povo, também tem que usar as suas insígnias. As insígnias dizem às pessoas que ele toca os Deuses e as pessoas temem-no por isso. Apontou para a porta estilhaçada com o buraco da lança. Quando atravessei aquela porta, nua, com duas cobras e um morcego escondido por debaixo da pele de um homem morto, eu estava a enfrentar um rei, o seu druida e os seus guerreiros. Uma rapariga, Derfel, contra um rei, um druida e um exército real. Quem ganhou?
Tu.
Então, o truque funcionou, mas não foi o meu poder que o fez funcionar. Foi o poder dos Deuses. Mas eu tinha de acreditar nesse poder para o fazer funcionar. E acreditar, Derfel, é aquilo a que deves dedicar a tua vida. Falava agora com uma rara e intensa paixão Em todos os minutos de todos os dias e em todos os momentos de todas as noites deves estar aberto para os Deuses, e se estiveres, então eles virão. É claro que não virão sempre que tu os queiras, mas se nunca os chamares eles nunca responderão. Porém, quando respondem, Derfel, oh, quando respondem, é tão espantoso e tão aterrador. É como ter asas que te fazem voar alto até à glória.
Os olhos dela brilhavam enquanto falava. Nunca a ouvira falar destas coisas. Ainda não há muito tempo ela fora uma criança, mas agora que se deitara na cama de Merlim e aceitara os seus ensinamentos e o seu poder, eu ressentia-me disso. Tinha ciúmes, estava zangado e não compreendia. Ela estava a crescer e a afastar-se de mim e eu nada podia fazer para o evitar.
Eu estou aberto para os Deuses disse eu com ressentimento. Acredito neles. Quero a sua ajuda.
Ela tocou o meu rosto com a mão ligada.
Vais ser um guerreiro, Derfel, um grande guerreiro. És uma boa pessoa, honesto, firme como a Torre de Merlim e não há em ti qualquer sinal de loucura. Nem o mais pequeno traço de loucura, nem sequer um pingo desesperado de loucura. Achas que eu quero seguir Merlim?
Acho disse eu, magoado. Sei que é isso que queres' É claro que eu estava magoado por ela não se querer dedicar a mim.
Ela respirou fundo e olhou para o tecto coberto de sombras onde dois pombos que tinham entrado por um dos buracos do fumo se passeavam agora ao longo de uma trave.
Às vezes disse ela penso que gostaria de casar, ter filhos, vê-los crescer, eu própria envelhecer e morrer, mas de todas estas coisas, Derfel olhou outra vez para mim só vou ter a última. Não suporto pensar no que me acontecerá. Não suporto pensar em suportar as Três Chagas da Sabedoria, mas eu tenho de o fazer. Devo fazê-lo!
As Três Chagas? perguntei, nunca tendo ouvido falar delas.
A Chaga do Corpo explicou Nimue, a Chaga do Orgulho e tocou entre as suas pernas e a Chaga da Mente, que é a loucura. Fez uma pausa e um olhar de terror perpassou-lhe o rosto. Merlim sofreu as três, por isso ele é um homem tão sábio. Morgana teve a pior Chaga do Corpo que alguém possa imaginar, mas nunca sofreu as outras duas chagas e é por essa razão que nunca vai pertencer realmente aos Deuses. Eu não sofri nenhuma das três, mas vou sofrer. Tenho de sofrer! Falava agora arrebatadamente. Tenho de sofrer, porque fui escolhida.
Porque é que eu não fui escolhido? perguntei eu. Ela abanou a cabeça.
Tu não entendes, Derfel. Ninguém me escolheu, senão eu. Tu próprio tens de escolher. Podia acontecer com qualquer um de nós aqui. É por isso que Merlim recolhe crianças abandonadas, porque acredita que as crianças órfãs poderão ter poderes especiais, mas muito poucas os têm.
E tu tens disse eu.
Eu vejo os Deuses por todo o lado disse Nimue simplesmente. E eles vêem-me.
Eu nunca vi um Deus disse eu teimosamente. Ela sorriu do meu ressentimento.
Mas hás-de ver disse ela. Porque deves pensar na Grã-Bretanha, Derfel, como se ela estivesse atada com as fitas de uma bruma delicada. Apenas uns fios ténues aqui e ali, arrastados pelo vento e a enfraquecer, mas esses fios são os Deuses e, se os conseguirmos encontrar, agradar-lhes e fazer esta terra pertencer-lhes de novo, então os fios vão ficar mais grossos e vão juntar-se para formar uma grande e maravilhosa bruma que cobrirá toda a terra e nos protegerá do que existe lá fora. É por isso que vivemos aqui no Tor. Merlim sabe que os Deuses adoram este lugar e aqui a bruma sagrada é espessa, mas a nossa tarefa é espalhá-la.
É isso que Merlim está a fazer? Ela sorriu.
Neste preciso momento, Derfel, Merlim está a dormir. E eu também tenho de dormir. Não tens trabalho para fazer?
As rendas para contar disse eu, contrafeito.
Os armazéns mais de baixo estavam cheios de peixe fumado, enguias fumadas, jarros de sal, cestos de vime, tecidos de lã, lingotes de chumbo, barris de carvão e até pedaços de âmbar e âmbar negro. Eram as rendas de Inverno pagas em Beltain que Hywel tinha de verificar, registar e depois dividir em duas partes: a parte de Merlim e o quinhão que seria entregue aos cobradores de impostos do Rei Supremo.
Então, vai contá-las disse Nimue, como se nada de estranho tivesse acontecido entre nós, apesar de se ter aproximado e me ter dado um beijo fraternal.
Vai repetiu ela e eu saí aos tropeções dos aposentos de Merlim tendo de enfrentar os olhares curiosos e ressentidos das criadas de Norwenna que tinham voltado para o grande quarto.
Chegou o equinócio. Os cristãos celebraram a festa da morte do seu Deus enquanto nós acendíamos as grandes fogueiras de Beltain. As nossas chamas troavam na escuridão para trazer vida nova ao mundo que renascia. Viram-se os primeiros assaltantes saxões ao longe, a leste, mas nenhum se aproximou de Ynys Wydryn. Também nunca mais vimos Gundleus da Silúria. Gudovan, o escrivão, supunha que a proposta de casamento dera em nada e, melancolicamente, previa uma nova guerra contra os reinos do Norte.
Merlim não regressou nem tivemos notícias dele.
Começaram a nascer os dentes ao príncipe Mordred. O primeiro a aparecer foi na gengiva inferior, um bom presságio de uma longa vida. Mordred usava os dentes novos para morder os mamilos de Ralla até os pôr a sangrar, se bem que ela continuasse a amamentá-lo para que o seu filho rechonchudo sugasse sangue do príncipe juntamente com o leite da sua mãe. Os espíritos de Nimue iluminavam-se à medida que os dias cresciam. As cicatrizes nas nossas mãos passaram de cor de rosa a brancas e, depois, a linhas que pareciam sombras. Nimue nunca falou delas.
O Rei Supremo passou uma semana em Caer Cadarn e o Príncipe Herdeiro foi levado lá para ser inspeccionado pelo avô. Uther deve ter aprovado o que viu e os presságios da Primavera foram todos favoráveis, pois três semanas depois de Beltain soube-se que o futuro do reino, o futuro de Norwenna e o futuro de Mordred seriam decididos num grande Conselho Supremo, o primeiro a ser realizado na Grã-Bretanha desde há mais de sessenta anos.
Estávamos na Primavera, as folhas vestiam-se de verde e brotavam grandes esperanças da terra renovada.
O Conselho Supremo teve lugar em Glevum, uma cidade romana que se estendia na margem do rio Severn, mesmo do outro lado da fronteira do norte entre Dumnónia e Gwent. Uther foi levado até lá numa carroça puxada por quatro bois, cada animal enfeitado com raminhos de mimosas, os tradicionais raminhos de Maio e selados com tecidos verdes. O Rei Supremo desfrutava da lenta viagem pelo seu reino em início de Verão, talvez porque soubesse que esta seria a última vez que veria a beleza da Grã-Bretanha antes de partir para a Gruta de Cruachan e passar sob a ponte da espada para o Outro Mundo. As sebes de arbustos, por entre as quais os seus bois marchavam lentamente, estavam salpicadas de branco com os pilriteiros, os bosques estavam carregados de campainhas enquanto as papoilas resplandeciam por entre o trigo, o centeio e a cevada e pelos campos de feno quase pronto a ser colhido onde os pintos-bravos não paravam de piar. O Rei Supremo viajava devagar, parando frequentemente em aldeolas e quintas onde inspeccionava os terrenos e a casa da quinta e dava conselhos a homens que sabiam melhor do que ele como construir um tanque de pisoar ou como capar um porco. Tomou banho nas nascentes de água quente em Aquae Sulis e sentia-se tão recuperado da viagem quando saiu da cidade que andou mais de um quilómetro e meio a pé antes de o ajudarem a subir de novo para a carroça revestida de peles. Acompanhavam-no os seus bardos, os seus conselheiros, o seu médico, o seu coro, uma comitiva de servos e uma escolta de guerreiros comandados por Owain, o seu campeão e chefe da guarda. Todos traziam flores e os guerreiros mantinham os escudos virados de pernas para o ar para mostrar que marchavam em paz, apesar de Uther estar velho de mais e ser cauteloso de mais para não deixar de se certificar de que, todos os dias, os seus lanceiros se mantinham bem alerta.
Eu fui a Glevum. Não tinha nada para lá fazer, mas Uther convocara Morgana para o Conselho Supremo. Normalmente as mulheres não eram bem aceites em nenhum Conselho, supremo ou não, mas Uther achava que ninguém falava tão bem por Merlim como Morgana e, então, no seu desespero perante a ausência de Merlim, convocou-a. Além disso, ela era filha natural de Uther, e o Rei Supremo gostava de dizer que havia mais inteligência na cabeça dourada de Morgana do que em todos os cérebros juntos de metade dos seus conselheiros. Morgana era também responsável pela saúde de Norwenna e era o futuro de Norwenna que estava a ser decidido, ainda que a própria Norwenna não tivesse sido convocada nem consultada. Ela ficara em Ynys Wydryn sob os cuidados de Gundoloen, a mulher de Merlim. Morgana não levaria ninguém a Glevum, excepto a sua escrava Sebile, mas, no último instante, Nimue, calmamente, anunciou que também ela viajaria para Glevum e que eu a acompanharia.
É claro que Morgana provocou um grande reboliço, mas Nimue enfrentou a indignação da mulher mais velha com uma calma irritante.
Recebi instruções disse ela a Morgana e quando Morgana, com uma voz esganiçada, lhe perguntou de quem, Nimue limitou-se a sorrir.
Morgana tinha o dobro do tamanho e o dobro da idade de Nimue, mas quando Merlim levara Nimue para a sua cama todo o poder de Ynys Wydryn passara para ela e, face a essa autoridade, a mulher mais velha ficava sem nada poder fazer. Ainda se opôs à minha ida. Exigiu saber por que razão Nimue não levava Lunete, a outra rapariga irlandesa, uma das crianças abandonadas de Merlim. Morgana dizia que um rapaz como eu não era boa companhia para uma jovem, e quando Nimue nada mais fez do que sorrir de novo, Morgana, a transbordar de cólera, disse que iria contar a Merlim do afecto de Nimue por mim e que isso seria o fim dela. Perante esta ameaça idiota Nimue limitou-se a rir e a afastar-se.
Eu não me preocupei com a discussão. Só queria ir a Glevum para ver o torneio, ouvir os bardos, ver as danças e, acima de tudo, estar com Nimue.
E lá fomos nós, um quarteto mal afinado, para Glevum. Morgana, com o bastão de espinheiro negro na mão e a máscara de ouro a luzir ao sol de Verão, caminhava pesada e ruidosamente à frente e o seu coxear fazia de cada passo um enfático gesto de desaprovação perante a companhia de Nimue. Sebile, a escrava saxónica, caminhava depressa, dois passos atrás da sua ama dobrada sob o fardo de mantas para as camas, ervas secas e potes. Nimue e eu caminhávamos atrás, descalços, de cabeça descoberta e sem nenhuma carga. Nimue levava uma longa capa preta sobre uma túnica branca amarrada na cintura com uma corda, das usadas pelos escravos. Tinha o longo cabelo negro apanhado ao alto com ganchos e não usava nenhuma jóia, nem sequer um alfinete de osso para apertar a capa. Morgana tinha à volta do pescoço um pesado colar de ouro e a sua capa castanho-escura estava apertada sobre o peito com dois pregadores de ouro, um com a forma de um veado com três chifres e o outro era o pesado ornamento em forma de dragão que Uther lhe dera em Caer Cadarn.
Gostei muito da viagem. Demorámos três dias; seguíamos em passo lento, pois Morgana caminhava de forma desastrada, mas o sol iluminava-nos e a estrada romana facilitou a nossa viagem. Quando escurecia procurávamos a casa de um chefe mais próxima e dormíamos como convidados de honra nos seus celeiros cheios de palha. Havia poucos viajantes e todos davam lugar ao brasão brilhante da máscara dourada de Morgana, pois esse era o símbolo da sua alta condição social. Avisaram-nos sobre homens sem dono e sem terra que assaltavam os mercadores nas estradas, mas nenhum nos ameaçou, talvez porque os soldados de Uther se tenham preparado para o Conselho Supremo, esquadrinhando os bosques e os montes à procura de salteadores. Nós passámos por mais de uma dúzia de corpos já em decomposição espetados em estacas nas bermas das estradas como avisos. Os servos e escravos que encontrávamos ajoelhavam-se perante Morgana, os mercadores davam-lhe o lugar e apenas um viajante ousou desafiar a nossa autoridade. Foi um padre de longa barba e olhar feroz, com o seu séquito andrajoso de mulheres despenteadas. O grupo cristão dançava rua abaixo, glorificando o seu Deus pregado na cruz, mas quando o padre viu a máscara dourada a cobrir o rosto de Morgana e os três chifres do veado e o dragão de asas amplas dos pregadores dela, começou a falar em tom declamatório dizendo que ela era a criatura do Diabo. O padre deve ter pensado que uma criatura tão desfigurada e a coxear tanto seria presa fácil para o seu escárnio, mas um pregador errante acompanhado pela mulher e por prostitutas sagradas não era desafio para a filha de Igraine, protegida de Merlim e irmã de Artur. Morgana limitou-se a desferir-lhe um golpe na orelha com o seu pesado bastão, um golpe que o atirou para o lado, fazendo-o cair numa vala cheia de urtigas, e depois seguiu o seu caminho sem sequer olhar para trás. As mulheres do padre fugiram a gritar. Algumas rezavam, outras lançavam-lhe pragas, mas Nimue deslizou por entre a sua malevolência como um espírito.
Eu não levava nenhuma arma, excepto um bastão e uma faca considerados como acessórios indispensáveis de todo o guerreiro. Eu queria levar uma espada e uma lança, para parecer um adulto, mas Hywel, zombando de mim, dissera que um homem não se faz pelos seus quereres, mas sim pelos seus feitos. Para minha protecção deu-me um colar grosso de bronze rematado com a figura do Deus chifrudo de Merlim, dizendo que ninguém ousaria desafiar Merlim. Mesmo assim, sem as armas de um homem, eu sentia-me inútil. Perguntei a Nimue por que razão estava eu ali.
Porque tu és o meu amigo jurado, pequeno disse Nimue. Eu já era mais alto do que ela, mas ela usava essa palavra afectuosamente. E porque tu e eu somos os escolhidos de Bei e, se Ele nos escolheu, então temos de nos escolher um ao outro.
Então porque vamos os dois para Glevum? quis saber.
Porque Merlim quer-nos lá, claro.
Ele vai lá estar? perguntei ansioso. Merlim estava ausente há já muito tempo e, sem ele, Ynys Wydryn era como um céu sem sol.
Não disse ela calmamente, apesar de eu não saber como é que ela conhecia a vontade de Merlim em relação a este assunto, pois Merlim estava muito longe e a convocação do Conselho Supremo tinha sido feita muito depois de ele ter partido.
E o que vamos fazer quando chegarmos a Glevum?
Logo saberemos quando lá chegarmos disse ela de forma misteriosa, não explicando mais nada.
Visto que eu crescera habituado ao cheiro pestilento e excessivo da água das fossas, Glevum parecia-me maravilhosamente estranha. Além de algumas quintas que eram parte das propriedades de Merlim, era a primeira vez que eu ia a um local verdadeiramente romano e fiquei de boca aberta como um pintainho acabado de sair do ovo perante o que via. As estradas eram pavimentadas com pedras calibradas e, apesar de algumas se terem soltado ao longo dos anos após a partida dos Romanos, os homens do rei Tewdric fizeram o seu melhor para reparar os estragos arrancando as ervas daninhas e limpando a sujidade, fazendo as nove estradas da cidade parecerem rios de pedra na estação seca. Era difícil andar nessas estradas e ver os cavalos a tentar galgar aquelas pedras traiçoeiras fez-me rir, a mim e à Nimue. Os edifícios eram tão esquisitos como as estradas. Nós fazíamos as nossas casas com madeira, colmo, argila e vimes, mas estes edifícios romanos estavam todos juntos e eram feitos de pedra e pequenos tijolos muito estranhos, apesar de, ao longo dos anos alguns terem caído, deixando buracos nas longas filas de casas baixinhas que, curiosamente, eram cobertas com telhas de argila cozida. Dentro da cidade rodeada por muralhas podia fazer-se a travessia do rio Severn. Esta cidade ficava entre dois reinos e perto de um terceiro e, por isso, era um famoso entreposto comercial. Havia oleiros a trabalhar nas casas, ourives inclinados sobre as suas mesas de trabalho e vitelos a mugir no matadouro por detrás do mercado cheio de aldeões a vender manteiga, nozes, couro, peixe fumado, mel, tecidos tingidos e lã acabada de tosquiar. O melhor de tudo, pelo menos para os meus olhos deslumbrados, eram os soldados do rei Tewdric. Nimue disse-me que eles eram romanos, ou pelo menos bretões ensinados à maneira romana. Todos tinham a barba curta e usavam como os Romanos robustas sandálias de couro e calções de lã por baixo de um saio de couro curto. Os soldados de categoria superior tinham placas de bronze cosidas nos saios e, quando andavam, as placas da armadura faziam um barulho parecido com as campainhas das vacas. Cada homem trazia uma couraça muito bem polida, uma capa comprida castanho-avermelhada e um elmo de couro cosido em cima. Alguns dos elmos tinham penas tingidas de várias cores. Os soldados traziam espadas curtas, mas com lâmina larga, lanças compridas com as hastes bem polidas e escudos rectangulares feitos de madeira e couro e com um touro, o símbolo de Tewdric, pintado. Os escudos eram todos do mesmo tamanho, as lanças todas do mesmo comprimento e os soldados marchavam todos a passo certo, o que a princípio me fez rir, apesar de, depois, acabar por me habituar.
No centro da cidade, onde as quatro estradas que vinham dos quatro portões da cidade se encontravam formando uma grande praça, havia um edifício enorme, verdadeiramente incrível. Até mesmo Nimue ficou de boca aberta, pois certamente nenhuma pessoa conseguia construir tal edifício: assim tão alto, tão branco e com as esquinas tão bem delineadas. O telhado muito alto era sustentado por colunas e em todo o espaço triangular entre o cimo do telhado e o topo das colunas havia figuras fantásticas esculpidas em pedra branca que mostravam homens prodigiosos esmagando os inimigos sob os cascos dos seus cavalos. Os homens de pedra traziam lanças de pedra e usavam elmos de pedra com plumas de pedra altaneiras. Algumas das figuras tinham desaparecido ou tinham rachado com a geada. Mesmo assim, aquilo, para mim, era um milagre, se bem que Nimue, depois de ter olhado fixamente para o edifício, cuspisse para afastar o mal.
Não gostas? perguntei-lhe com ressentimento.
Os Romanos tentaram ser deuses disse ela, e é por isso que os Deuses os humilharam. O Conselho não se devia realizar aqui.
No entanto, o Conselho Supremo fora convocado para Glevum e Nimue nada podia fazer. Ali, rodeado por muralhas romanas de terra e madeira, seria decidido o destino do reino de Uther.
Quando chegámos à cidade, o Rei Supremo já lá estava. Estava alojado num outro edifício alto que ficava em frente ao edifício das colunas. Não se mostrou nem surpreso nem aborrecido com a vinda de Nimue, talvez por pensar que ela viera apenas acompanhar Morgana, e disponibilizou apenas um quarto para todos nós nas traseiras da casa onde vinha parar o fumo das cozinhas e onde os escravos se engalfinhavam em constantes brigas. Os soldados do Rei Supremo pareciam imundos ao lado dos homens reluzentes de Tewdric. Os nossos soldados usavam o cabelo comprido e a barba cortada à toa, tinham as capas todas de cores diferentes, puídas e remendadas e traziam espadas pesadas e compridas, lanças com hastes irregulares e escudos redondos com o dragão de Uther, que era um símbolo tosco ao lado dos touros de Tewdric cuidadosamente pintados.
Durante os primeiros dois dias sucederam-se os festejos. Campeões dos dois reinos fizeram simulacros de combates fora das muralhas, se bem que quando Owain, o campeão de Uther, entrou na arena, o rei Tewdric teve de obrigar dois dos seus melhores homens a lutar com ele. O famoso herói de Dumnónia tinha a reputação de ser invencível, e parecia sê-lo quando estava no meio da arena com o sol de Verão a reluzir na sua longa espada. Era um homem enorme com os braços cheios de tatuagens, um peito nu muito peludo e uma barba hirsuta decorada com anéis de guerreiro feitos das armas dos inimigos que vencera. A sua luta contra os dois campeões de Tewdric era para ser uma simulação, mas não se vislumbrava qualquer simulação quando os heróis de Gwent se revezavam para o atacar. Os três homens lutavam como se estivessem cheios de ódio e trocavam golpes de espada que se deviam ter ouvido na distante Powys e, depois de alguns minutos, o suor misturava-se com o sangue, as lâminas das espadas estavam amolgadas e todos três coxeavam, mas Owain ainda ganhava a luta. Apesar do seu tamanho, era rápido com a espada e os seus golpes eram bastante pesados. A multidão que se tinha juntado vinda dos arredores e que não pertencia nem ao reino de Uther nem ao de Tewdric, ululava como bestas selvagens para incitar os homens ao massacre, e Tewdric, ao ver aquele entusiasmo, atirou o seu bastão para acabar o combate.
Lembrem-se de que somos amigos disse ele aos três homens, e Uther, sentado um degrau acima de Tewdric como convinha ao Rei Supremo, meneou a cabeça, em sinal de assentimento.
Uther tinha um ar pesado e doente. Tinha o corpo inchado pelo excesso de líquidos, o rosto amarelado e apático e respirava com esforço. Fora levado para o campo de batalha numa liteira e estava sentado no seu trono envolvido num manto muito pesado que escondia o seu cinto cravejado de pedras preciosas e o seu colar cintilante. O rei Tewdric vestia-se como um romano, na verdade o seu avô fora mesmo romano, o que talvez explicasse o seu nome que parecia estrangeiro. O rei usava o cabelo cortado muito curto, não tinha barba e usava uma toga branca amarrada de forma confusa num ombro. Era alto, magro e gracioso nos movimentos e, apesar de ser ainda um homem novo, o aspecto triste e circunspecto do seu rosto faziam-no parecer muito mais velho. A sua rainha, Enid, usava o cabelo entrançado, formando uma estranha espiral precariamente segura no cimo da cabeça, obrigando-a a caminhar com a inépcia angular de um potro recém-nascido. Tinha o rosto coberto com uma pasta branca que lhe dava uma expressão vaga de perplexo aborrecimento. O seu filho Meurig, o Príncipe Herdeiro de Gwent, era uma endiabrada criança de dez anos que se sentava aos pés da mãe e que apanhava uma bofetada do pai cada vez que metia o dedo no nariz.
Depois da luta houve um concurso de harpistas e bardos. Cynyr, o bardo de Gwent, cantou a notável história da vitória de Uther sobre os Saxões em Caer Idern. Mais tarde percebi que Tewdric deve tê-lo mandado cantar em homenagem ao Rei Supremo, e certamente que a actuação agradou a Uther que sorria à medida que os versos se iam desenrolando e assentia com a cabeça cada vez que um determinado guerreiro era louvado. Cynyr declamava a vitória numa voz vibrante e quando chegou aos versos que diziam como Owain tinha matado mais de mil saxões, virou-se para o cansado lutador e um dos campeões de Tewdric, que apenas uma hora antes tentara derrubar o homenzarrão, levantou-se e ergueu o braço de Owain que segurava a espada. A multidão berrou e depois começou a rir quando Cynyr começou a falar como uma mulher para descrever os Saxões a implorar por piedade. Cynyr começou a correr à volta do campo com pequenos passos apavorados, inclinando-se como se se estivesse a esconder, e a multidão adorou. Eu também gostei, pois quase se podiam ver os odiados Saxões a encolher-se aterrorizados, sentir o cheiro pestilento do seu sangue e ouvir as asas dos corvos que vinham, vorazes, comer-lhes a carne. Depois Cynyr endireitou-se e deixou cair o manto, revelando o seu corpo nu pintado de azul e cantou a música de homenagem dos Deuses que viram o seu campeão, Uther, o Rei Supremo de Dumnónia, o Pendragon da Grã-Bretanha, derrotar reis, chefes e campeões inimigos. Depois, ainda nu, o bardo ajoelhou-se ante o trono de Uther.
Uther procurou desajeitadamente por baixo da sua capa de peles até encontrar um colar de ouro amarelo que atirou na direcção de Cynyr. Atirou-o com pouca força e o colar caiu na beira do estrado de madeira onde estavam sentados os dois reis. Nimue empalideceu perante o mau presságio, mas Tewdric apanhou calmamente o colar e levou-o ao bardo de cabelo branco, fazendo-o levantar com as próprias mãos.
Depois dos bardos terem cantado, e precisamente na altura em que o sol se estava a pôr por detrás do escuro veio de montes baixos do lado ocidental, que marcava o início dos domínios silurianos, uma procissão de donzelas trouxe flores para as rainhas, mas só havia uma rainha no estrado, Enid. Durante alguns segundos as raparigas que traziam os ramos de flores destinados à rainha de Uther ficaram sem saber o que fazer, mas Uther moveu-se e apontou para Morgana, que ocupava o seu lugar ao lado do estrado. Então as raparigas desviaram-se para o lado e colocaram as íris, as ulmárias e as orquídeas em frente dela.
Ela parece uma tarte coroada com salsa disse-me Nimue ao ouvido com uma voz sibilante.
Na noite anterior ao Conselho Supremo houve um serviço cristão no salão do grandioso edifício do centro da cidade. Tewdric era um cristão entusiasta e os seus seguidores encheram o salão iluminado por tochas chamejantes colocadas em argolas de ferro nas paredes. Chovera nessa noite e o salão cheio de gente tresandava a suor, lã húmida e fumo de lenha. As mulheres ficavam no lado esquerdo do salão e os homens no lado direito, mas Nimue ignorou muito calmamente aquela disposição e subiu para um pedestal que ficava por trás da escura multidão de homens com capas e sem chapéus. Havia outros pedestais, a maior parte deles com estátuas, mas o nosso plinto estava vazio e tinha espaço suficiente para nos sentarmos os dois a assistir aos rituais cristãos. Ao princípio eu estava mais admirado com o amplo interior do salão, que era mais alto, mais largo e mais comprido do que todos os salões de festas que eu já vira; era tão grande que viviam lá dentro pardais que deviam considerar o edifício romano um verdadeiro mundo. O céu dos pardais era um telhado curvo suportado por colunas baixas de tijolo outrora revestidas com camadas de estuque onde tinham sido pintadas algumas figuras. Ainda restavam alguns fragmentos das pinturas: conseguia ver o contorno vermelho de um veado a correr, uma criatura do mar com chifres e uma cauda bifurcada e duas mulheres a segurar uma taça com duas asas iguais. Uther não estava no salão, mas os guerreiros cristãos assistiram e o bispo Bedwin, conselheiro do Rei Supremo, ajudou nas cerimónias, a que Nimue e eu assistíamos do nosso ninho altaneiro como duas crianças travessas a escutar atrás das portas as conversas das pessoas mais velhas. O rei Tewdric estava lá e com ele alguns dos reis e príncipes que estariam presentes no Conselho Supremo do dia seguinte. Essas pessoas importantes tinham assento na parte da frente do salão, mas a luz do fogo brilhava não à volta deles, mas sim à volta dos padres cristãos reunidos ao redor de uma mesa. Foi a primeira vez que vi tais criaturas nos seus ritos.
O que é exactamente um bispo? perguntei a Nimue.
É como um druida disse ela, e, na realidade, os padres cristãos usavam o cabelo rapado à frente. Só que eles não têm formação e não sabem nada acrescentou Nimue com ironia.
Eles são todos bispos? perguntei, pois havia muitos homens de cabelo rapado a andar de um lado para o outro, para cima e para baixo e à volta da mesa iluminada ao fundo do salão.
Não. Alguns são só padres. Sabem ainda menos do que os bispos. Ela riu-se.
Não há sacerdotisas? perguntei.
Na religião deles disse com desdém, as mulheres têm de obedecer aos homens.
Cuspiu para afugentar esse mal e alguns dos guerreiros ali à volta lançaram-lhe olhares desaprovadores. Nimue ignorou-os. Estava envolta no seu manto negro com os braços à volta dos joelhos dobrados. Morgana proibira-nos de assistir às cerimónias cristãs, mas Nimue já não obedecia às ordens de Morgana. À luz do fogo, o seu rosto magro ensombrava-se e os seus olhos faiscavam.
Os padres estranhos entoavam cânticos na língua grega que a nós nada dizia. Estavam sempre a inclinar-se e, perante isso, a multidão ajoelhava-se e levantava-se de novo com esforço. Cada movimento para baixo era marcado no lado direito do salão por um barulho desleixado, quando cem ou mais espadas batiam no chão coberto com ladrilhos. Os padres, tal como os druidas, levantavam muito os braços quando rezavam. Usavam umas túnicas estranhas, algo parecidas com a toga de Tewdric e cobertas com umas capas curtas decoradas. Cantavam e a multidão cantava em resposta e algumas das mulheres atrás da frágil rainha Enid de rosto branco começaram a soltar gritos agudos e a tremer em êxtase, mas os padres ignoravam a agitação e continuavam a entoar os cânticos. Havia uma cruz muito simples em cima da mesa, diante da qual se inclinavam e à qual Nimue fez o sinal para afastar o mal enquanto murmurava por entre dentes uma reza protectora. Rapidamente nos aborrecemos com tudo aquilo e eu só queria escapulir-me para ter a certeza de que arranjaríamos um bom lugar para conseguir comer alguma coisa do grande banquete que teria lugar depois da cerimónia, em casa de Uther. Mas, depois, a linguagem da noite mudou para a língua falada na Grã-Bretanha quando um jovem padre se dirigiu à multidão.
O jovem padre era Sansum, e aquela noite foi a primeira vez que eu vi o santo. Era muito novo, muito mais novo do que os bispos, mas era considerado um homem de futuro, a esperança do porvir cristão, e os bispos deram-lhe deliberadamente a honra de pregar aquele sermão, como forma de o ajudarem a progredir na carreira.
Sansum foi sempre um homem magro, baixo, com um queixo sem barba e aguçado e uma testa recolhida, acima da qual o seu cabelo tonsurado se elevava hirsuto e negro como uma sebe de espinheiros, apesar da sebe ter sido mais aparada em cima do que nos lados, deixando-o assim com uns tufos de cabelo negro e espetado mesmo em cima das orelhas.
Parece Lughtigern murmurou Nimue e eu ri-me alto, pois Lughtigern é o Lorde Rato das histórias das crianças, uma criatura com muita garganta, mas que foge sempre que o gato aparece. No entanto, este Lorde Rato tonsurado sabia mesmo pregar. Eu nunca tinha ouvido o Evangelho sagrado de Nosso Senhor Jesus Cristo e, por vezes estremeço, quando penso quão mal recebi aquele primeiro sermão. Porém, jamais esquecerei o modo como ele o pronunciou. Sansum estava em cima de uma plataforma para que pudesse ver e ser visto, e, às vezes, no entusiasmo da sua pregação, quase caía e tinha de ser segurado pelos outros padres. Eu estava à espera que ele caísse, no entanto ele conseguia sempre recuperar o equilíbrio.
A sua pregação começou de uma forma muito convencional. Agradeceu a Deus a presença dos grandes reis e dos poderosos príncipes que tinham vindo escutar o Evangelho, depois teceu alguns elogios ao rei Tewdric antes de se lançar numa censura que expunha a visão cristã do estado em que estava a Grã-Bretanha. Mais tarde percebi que se tratava mais de um discurso político do que de um sermão.
Sansum disse que a ilha da Grã-Bretanha era amada por Deus. Era uma terra especial, separada de outras terras e rodeada por um mar resplandecente para a defender das pestes, das heresias e dos inimigos. E continuou, dizendo que a Grã-Bretanha também era abençoada por grandes governantes e guerreiros poderosos. Todavia, ultimamente a ilha fora despedaçada por estranhos, e os seus campos, celeiros e aldeias foram devastados pela espada. Os Sais pagãos, os Saxões, estavam a apoderar-se da terra dos nossos antepassados e a transformá-la em lixo. Sansum declarava que os terríveis Sais profanavam os túmulos dos nossos pais, violavam as nossas mulheres e assassinavam as nossas crianças e que coisas como estas não podiam acontecer, a não ser que fossem a vontade de Deus, e perguntava por que razão viraria Deus as costas aos seus filhos, tão amados e tão especiais.
Porque, dizia ele, os seus filhos recusaram-se a ouvir a Sua mensagem sagrada. Os seus filhos da Grã-Bretanha ainda se inclinavam perante um pedaço de madeira ou uma pedra. Ainda existiam as chamadas matas sagradas e os seus santuários ainda tinham as caveiras dos mortos e eram lavados com o sangue dos sacrifícios. Sansum dizia que estas coisas poderiam não ser vistas nas cidades, pois a maior parte delas estava cheia de cristãos, mas avisou-nos de que as aldeias estavam infestadas de pagãos. Já deviam ser poucos os druidas na Grã-Bretanha, no entanto em todos os vales e quintas havia homens e mulheres que agiam como druidas, que sacrificavam seres vivos a uma pedra morta e que usavam feitiçarias e amuletos para iludir os simplórios. Até os cristãos e neste momento Sansum lançou um olhar carrancudo à sua congregação levavam as suas doenças a bruxas idólatras e os seus sonhos a profetisas pagãs, e enquanto estas práticas do mal fossem encorajadas Deus amaldiçoaria a Grã-Bretanha com violações, assassínios e Saxões. Fez uma pausa para respirar e eu toquei no colar que trazia à volta do pescoço porque sabia que aquele Lorde Rato palavroso era inimigo do meu mestre Merlim e da minha amiga Nimue. Pecámos! gritou Sansum de repente, abrindo os braços e baloiçando na beira da plataforma; e todos tínhamos de nos arrepender. E continuou, dizendo que os reis da Grã-Bretanha deviam amar Cristo e a sua abençoada Mãe, e que só quando toda a raça britânica estivesse unida em Deus é que Deus uniria toda a Grã-Bretanha. Por esta altura já a multidão respondia ao seu sermão, concordando e implorando misericórdia ao seu Deus, gritando e pedindo a morte dos druidas e dos seus seguidores. Era terrífico.
Vamos murmurou Nimue, já ouvi o suficiente.
Descemos do pedestal e abrimos caminho por entre a multidão que enchia o vestíbulo por baixo dos pilares exteriores do salão. Para minha vergonha segurei a capa junto ao queixo sem barba para que ninguém visse o meu colar, enquanto seguia Nimue pelas escadas que levavam a praça batida pelo vento e iluminada com tochas a toda a volta. Caía uma chuva miudinha de Oeste que fazia as pedras da praça brilhar à luz dos archotes. Os guardas uniformizados de Tewdric estavam imóveis à volta da praça quando Nimue me levou mesmo até ao centro daquele espaço amplo, onde parou e, de repente, desatou a rir. A princípio era um riso abafado, depois um riso de zombaria que logo se tornou em gargalhadas ferozes de escárnio, que depois se transformaram em gritos de provocação que vibravam pelos telhados de Glevum, ecoavam pelos céus e acabavam num grito louco e furioso, tão feroz como o grito de morte de um animal apanhado numa armadilha. Ela descrevia círculos enquanto gritava, seguindo a rota do Sol, de Norte para Este, para Sul e para Oeste e de novo para Norte, e nem um só soldado se moveu. Alguns dos cristãos no pórtico do grande edifício olharam para nós enfurecidos, mas não interferiram. Até os cristãos reconheciam alguém tocado pelos Deuses e nenhum se atreveu a pôr a mão em Nimue.
Quando já não tinha fôlego, Nimue deixou-se cair nas pedras, em silêncio, uma figura minúscula anichada por baixo da capa preta, uma coisa sem forma a tremer a meus pés.
Oh, pequeno disse finalmente numa voz cansada oh, meu pequenino.
O que foi? perguntei.
Confesso que estava mais tentado pelo cheirinho a porco assado que vinha da casa de Uther do que por qualquer tipo de transe que tanto cansara Nimue.
Ela levantou a mão esquerda com a cicatriz e eu ajudei-a a pôr-se de pé.
Temos uma oportunidade disse ela em voz baixa e assustada apenas uma oportunidade e, se a perdermos, os Deuses deixam-nos. Seremos abandonados pelos Deuses e deixados às feras. E aqueles malucos, o Lorde Rato e os seus seguidores, vão arruinar essa oportunidade, a não ser que lutemos contra eles. E eles são tantos e nós tão poucos. Olhava para o meu rosto, gritando de desespero.
Eu não sabia o que dizer. Não tinha muitos conhecimentos do mundo espiritual apesar de ser uma das crianças enjeitadas de Merlim e o filho dilecto de Bei.
Bei vai ajudar-nos, não vai? perguntei, sem saber o que fazer. Ele ama-nos, não ama?
Ama-nos! Ela arrancou a sua mão da minha. Ama-nos! repetiu com desprezo. Não é tarefa dos Deuses amar-nos. Tu amas os porcos do Druidan? Por que razão, em nome de Bei, deveria um Deus amar-nos. O que sabes tu do amor, Derfel, filho de um saxão?
Sei que te amo disse eu.
Ainda agora coro quando penso num jovem desesperado à procura do afecto de uma mulher. Precisei de toda a força do meu corpo para dizer aquilo, de todos os bocadinhos de coragem que eu esperava ter e, depois de ter deixado escapar aquelas palavras, corei à luz do fogo varrido pela chuva e desejei ter ficado calado.
Nimue sorriu-me.
Eu sei disse ela eu sei. Agora vamos. Temos um banquete para a ceia.
Nestes dias, nestes dias que me restam e que eu passo a escrever neste mosteiro nos montes de Powys, às vezes fecho os olhos e vejo Nimue. Não aquilo em que ela se tornou, mas como era na altura: tão cheia de fogo, tão viva, tão confiante. Sei que ganhei Cristo e que através da Sua bênção ganhei o mundo todo, mas não tem conta tudo o que perdi, tudo o que todos nós perdemos. Perdemos tudo. O banquete foi magnífico.
O Conselho Supremo começou a meio da manhã, depois dos cristãos realizarem mais uma cerimónia. Eu achava que realizavam cerimónias de mais, pois todas as horas do dia pareciam exigir uma nova adoração da cruz, mas o atraso serviu para dar tempo aos príncipes e aos guerreiros para se recomporem da noite de bebida, gabarolice e lutas. O Conselho Supremo teve lugar no grande salão que estava de novo iluminado por tochas, pois apesar do sol da Primavera brilhar, as poucas janelas do salão eram pequenas e estavam muito altas, menos apropriadas para deixar o sol entrar do que para deixar o fumo sair, apesar de nem para isso serem muito boas.
Uther, o Rei Supremo, estava sentado numa tribuna acima do estrado reservado aos reis, príncipes herdeiros e príncipes. Tewdric de Gwent, o anfitrião do Conselho, sentava-se abaixo de Uther e do outro lado do trono de Tewdric havia uma dúzia de outros tronos, ocupados nesse dia por reis ou príncipes que pagavam tributo a Uther ou a Tewdric. Estavam lá o príncipe Cadwy de Isca, o rei Melwas de Belgae e o príncipe Gereint, Senhor das Pedras, enquanto o distante Kernow, o reino selvagem da extremidade ocidental da Grã-Bretanha, enviara o seu Príncipe Herdeiro, o príncipe Tristan, que se sentava enrolado em peles de lobo na extremidade do estrado ao lado de dois tronos vazios.
Na verdade, os tronos nada mais eram do que cadeiras trazidas da sala do banquete disfarçadas com xairéis, e no chão à frente de cada cadeira e encostados ao estrado estavam os escudos dos reinos. Tempos houvera em que eram trinta e três os escudos encostados ao estrado, mas agora as tribos da Grã-Bretanha lutavam umas contra as outras e alguns dos reinos tinham sido enterrados em Loegyr pelas lâminas saxónicas. Um dos objectivos deste Conselho Supremo era estabelecer a paz entre os restantes reinos britânicos, uma paz que já estava ameaçada pois Powys e Silúria não compareceram ao Conselho. Os seus tronos estavam vazios, testemunho mudo de que continuava a existir a hostilidade destes reinos em relação a Gwent e a Dumnónia.
Mesmo em frente aos reis e aos príncipes, e para lá de um pequeno espaço aberto deixado para os discursos, estavam sentados os conselheiros e os magistrados-chefes dos reinos. Alguns dos grupos de conselheiros, como os de Gwent e os de Dumnónia, eram enormes, enquanto outros se reduziam a uma mão-cheia de homens. Os magistrados e os conselheiros sentavam-se no chão, que estava decorado com milhares de minúsculas pedrinhas coloridas ordenadas de modo a formar uma imagem enorme que aparecia por entre os corpos sentados. Todos os conselheiros tinham trazido cobertores para fazerem de almofadas, pois sabiam que as deliberações do Conselho Supremo podiam durar até depois do anoitecer. Além dos conselheiros e presentes apenas como observadores estavam os guerreiros armados, alguns com os seus cães de caça favoritos ao lado, presos com as trelas. Eu fiquei ao lado desses guerreiros armados. O meu colar de bronze com a figura da cabeça de Cernunnos dava-me toda a autoridade de que eu precisava para estar presente.
Estavam duas mulheres no Conselho, apenas duas, e mesmo assim a sua presença causara rumores de protesto entre os homens que aguardavam, até que um pestanejar de olhos de Uther acalmou o murmúrio de descontentamento.
Morgana estava sentada mesmo à frente de Uther. Os conselheiros afastaram-se cautelosamente dela e assim ela estava sentada sozinha até Nimue entrar com ousadia pela porta do salão e abrir caminho através de todos aqueles homens sentados para arranjar um lugar ao lado dela. Nimue entrara com tanta calma e tanta firmeza que ninguém tentou impedi-la. Depois de se sentar olhou para Uther, o Rei Supremo, como que a desafiá-lo a expulsá-la, mas o rei ignorou a sua chegada. Morgana também ignorou a sua jovem rival que se sentou muito quieta e muito direita. Vestia a sua túnica branca de linho com o cinto de escrava de couro muito fino e, entre aqueles homens de cabelo grisalho e grossas capas parecia delicada e vulnerável.
O Conselho Supremo começou, tal como começam todos os conselhos, com uma oração. Se Merlim estivesse presente invocaria os Deuses, mas em vez disso o bispo Conrad de Gwent ofereceu uma oração ao Deus cristão. Vi Sansum sentado entre as fileiras dos conselheiros de Gwent e notei o feroz olhar de ódio que lançou às duas mulheres, quando elas não inclinaram a cabeça enquanto o bispo rezava. Sansum sabia que as mulheres tinham vindo no lugar de Merlim.
Depois da oração foi lançado um desafio por Owain, o campeão de Dumnónia que tinha lutado com os dois melhores homens de Tewdric dois dias antes. Merlim sempre chamara a Owain animal, e realmente ele parecia mesmo um animal, ali de pé em frente ao Rei Supremo, ainda com crostas de sangue na cara por causa da luta, com a espada na mão e uma capa grossa de pele de lobo enrolada à volta dos músculos dos seus ombros espadaúdos.
Há aqui algum homem rosnou ele que dispute o direito de Uther ao Trono Supremo?
Ninguém disputava. Owain, de alguma forma desapontado por lhe ser negada a oportunidade de matar alguém que o desafiasse, embainhou a espada e sentou-se desconfortavelmente entre os conselheiros, pois preferia ficar em pé ao lado dos seus guerreiros.
Em seguida foram dadas notícias da Grã-Bretanha. O bispo Bedwin, falando em nome do Rei Supremo, informou que a ameaça saxónica a Leste de Dumnónia fora cerceada, se bem que por um preço alto de mais para ser contemplado. O príncipe Mordred, Príncipe Herdeiro de Dumnónia e um guerreiro cuja fama alcançara os confins da terra, fora morto na hora da vitória. O rosto de Uther não demonstrou a mais pequena emoção ao escutar a já tão contada e recontada história da morte do seu filho. O nome de Artur não foi mencionado, apesar de ter sido Artur quem arrebatara a vitória ao inepto comando de Mordred e todos naquela sala o sabiam. Bedwin informou que os saxões vencidos vieram dos territórios outrora governados pela tribo Catuvelane e que, apesar de não terem sido expulsos de todo aquele velho território, eles tinham concordado em pagar um tributo anual em ouro, trigo e bois ao Rei Supremo. Acrescentou ainda que se rezasse a Deus para que a paz fosse duradoura.
Rezemos a Deus interveio o rei Tewdric para que os Saxões sejam expulsos daquelas terras!
As suas palavras levaram os guerreiros na parte de trás e nos lados do salão a bater com as hastes das lanças no pavimento e pelo menos uma lança partiu os pequenos ladrilhos. Os cães uivaram.
Quando os ruidosos aplausos terminaram, Bedwin continuou calmamente dizendo que a norte de Dumnónia reinava a paz graças ao sensato tratado de amizade entre o rei Supremo e o nobre Rei Tewdric. A Oeste, e aqui Bedwin fez uma pausa para conceder um sorriso ao jovem e atraente príncipe Tristan, também havia paz.
O reino de Kernow disse Bedwin fecha-se sobre si próprio. Soubemos que o rei Mark tem uma nova mulher e rezamos para que ela, tal como as suas distintas antecessoras, mantenha o seu senhor completamente ocupado.
Este comentário provocou um burburinho de risos.
Qual é esta mulher? perguntou Uther de repente. A quarta ou a quinta?
Creio que até mesmo o meu pai já perdeu a conta, Senhor Supremo disse Tristan e o salão retumbou com gargalhadas.
Partiram-se mais ladrilhos sob os batimentos das lanças e um dos pequenos fragmentos deslizou pelo chão e cravou-se no meu pé.
Depois falou Agrícola. O seu nome era romano e era famoso pela sua adesão aos métodos romanos. Agrícola era o comandante de Tewdric e, apesar de já estar velho, era temido pela sua destreza no campo de batalha. A idade não fizera vergar a sua figura alta apesar de lhe ter deixado o cabelo curto tão cinzento como a lâmina de uma espada. O seu rosto cheio de cicatrizes estava muito bem barbeado, usava um uniforme romano e debaixo do braço trazia um elmo prateado ornamentado com crina de cavalo tingida que formava uma crista escarlate. Também ele informou que os Saxões a Leste do reino do seu Senhor tinham sido vencidos, mas as notícias que vinham das Terras Perdidas de Lloegyr eram inquietantes, pois ouvira dizer que tinham chegado mais barcos vindos dos territórios saxões pelo mar germânico e acrescentou em tom de aviso que mais barcos na costa saxónica significavam mais guerreiros a pressionar para Oeste e a entrar na Grã-Bretanha. Agrícola também nos avisou sobre um novo chefe saxão chamado Aelle que lutava pelo poder entre os Sais. Foi a primeira vez que ouvi o nome de Aelle e só os Deuses sabiam então o quanto ele nos viria assombrar no decorrer dos anos.
Agrícola continuou dizendo que os Saxões podiam estar temporariamente calmos, mas que isso não trouxera paz ao reino de Gwent. Grupos guerreiros tinham vindo de Powys para Sul enquanto outros tinham marchado da Silúria para Oeste para atacar o território de Tewdric. Tinham sido enviados mensageiros a esses dois reinos, convidando os seus monarcas a comparecer ao Conselho, mas, e aqui Agrícola fez um gesto na direcção das duas cadeiras vazias no estrado real, nem Gorfyddyd de Powys nem Gundleus da Silúria tinham aceitado o convite. Tewdric não conseguia esconder o seu desapontamento, pois tinha esperado sinceramente que Gwent e Dumnónia pudessem celebrar a paz com os seus dois vizinhos do Norte. Eu supunha que aquela esperança de paz tinha também sido o motivo do convite de Uther a Gundleus para visitar Norwenna na Primavera, mas os tronos vazios pareciam falar apenas da continuação das hostilidades. Se fosse para não haver paz, avisou Agrícola severamente, então o rei de Gwent não teria outra alternativa senão lutar contra Gorfyddyd de Powys e o seu aliado, Gundleus da Silúria. Uther assentiu com um meneio de cabeça, dando o seu consentimento à ameaça.
Agrícola continuou o seu relatório dizendo que de algures mais a norte, haviam chegado notícias de que Leodegan, rei de Henis Wyren, tinha sido afastado do seu reino por Diwrnach, o invasor irlandês que dera o nome de Lleyn aos seus territórios recém-conquistados. Agrícola acrescentou que o desalojado Leodegan se tinha refugiado junto do rei Gorfyddyd de Powys, porque Cadwallon de Gwynedd não o aceitara. Soaram mais risos com esta notícia, pois o rei Leodegan era famoso pela sua tolice.
Também ouvi continuou Agrícola quando as gargalhadas abrandaram que estão a entrar mais invasores irlandeses por Demétia e que estão a pressionar bastante as fronteiras ocidentais de Powys e da Silúria.
Só eu falarei por Silúria interveio uma voz forte vinda da porta e mais ninguém.
Houve um grande reboliço quando todos os homens da sala se viraram para olhar para a porta. Gundleus viera.
O rei da Silúria entrou na sala como um herói. Não havia hesitação nem pedidos de desculpa no seu comportamento, apesar dos seus guerreiros terem atacado muitas vezes as terras de Tewdric, tal como tinham atacado mais para Sul, atravessando o mar Severn para perturbar o país de Uther.
Tinha um ar tão confiante que tive de fazer um esforço para me lembrar como tinha fugido de Nimue em casa de Merlim. Atrás de Gundleus, a arrastar os pés e a babar-se todo, vinha Tanaburs, o Druida, e mais uma vez escondi-me quando me lembrei do poço da morte. Merlim dissera-me uma vez que o insucesso de Tanaburs em matar-me tinha colocado a sua alma nas minhas mãos, mas mesmo assim tremi de medo quando vi o velho entrar na sala com o cabelo a dar estalidos por causa dos pequenos ossos que tinha amarrados aos rabichos.
Atrás de Tanaburs, com as espadas enfiadas nas bainhas de tecido vermelho, entrou a passos largos o séquito de Gundleus. Usavam o cabelo e os bigodes entrançados e a barba comprida. Ficaram em pé com os outros guerreiros, afastando-os para o lado para formarem uma frente de batalha de homens orgulhosos no Conselho Supremo dos seus inimigos, enquanto Tanaburs, enrolado na sua imunda túnica cinzenta enfeitada com quartos crescentes e lebres a correr, encontrou um espaço entre os conselheiros. Owain, farejando sangue, levantou-se para barrar o caminho a Gundleus, mas Gundleus ofereceu ao campeão do Rei Supremo os copos da sua espada para mostrar que viera em paz, depois prostrou-se no chão de mosaico em frente ao trono de Uther.
Levanta-te, Gundleus Meilyr, rei da Silúria ordenou Uther, erguendo a mão em seguida num gesto de boas-vindas. Gundleus subiu o estrado e beijou-lhe a mão antes de tirar de trás das costas o escudo com o seu brasão, a máscara de uma raposa. Colocou-o junto aos outros escudos, sentou-se no seu trono e olhou a toda a volta do salão como se estivesse muito contente por estar presente. Acenou com a cabeça a conhecidos, fez esgares de surpresa ao ver alguns e sorriu a outros. Todos os homens que cumprimentou eram seus inimigos, mesmo assim sentou-se na cadeira com uma atitude desleixada, como se estivesse sentado em sua própria casa. Até pôs uma perna por cima do braço da cadeira. Ergueu o sobrolho quando viu as duas mulheres e penso ter detectado um olhar carrancudo quando ele reconheceu Nimue, mas esse olhar desapareceu quando pestanejou e continuou a olhar para a multidão. Tewdric convidou-o cordialmente a dar notícias do seu reino ao Conselho Supremo, mas Gundleus limitou-se a sorrir e a dizer que tudo estava bem na Silúria.
Não vos aborreço mais com outros assuntos tratados nesse dia. Formaram-se nuvens sobre Glevum enquanto se resolviam disputas, se arranjavam casamentos e se ditavam sentenças. Gundleus, apesar de nunca admitir as suas transgressões, consentiu em pagar a Tewdric um feudo de vacas, ovelhas e ouro, com a mesma compensação para o Rei Supremo, e foram resolvidas de forma idêntica muitas outras queixas menores. As argumentações eram longas e as defesas complicadas, mas um a um os assuntos foram sendo resolvidos. Tewdric fez a maior parte do trabalho, apesar de nunca deixar de olhar de lado para o Rei Supremo para detectar qualquer gesto que deixasse entrever a decisão de Uther. Além destes gestos Uther quase não se mexia, a não ser quando um escravo lhe trazia água, pão ou um remédio que Morgana fizera com pata de potro embebido em hidromel para lhe acalmar a tosse. Saiu do estrado apenas uma vez para mijar contra a parede das traseiras enquanto Tewdric, sempre paciente e sempre cuidadoso, considerava uma disputa de fronteiras entre dois chefes do seu próprio reino. Uther cuspiu na sua urina para afastar o mal, depois subiu de novo para o estrado enquanto Tewdric ditava a sua sentença, que, tal como todas as outras, foi registada em pergaminhos por três escribas sentados a uma mesa atrás do estrado.
Uther estava a guardar a pouca energia que lhe restava para a questão mais importante do dia, que veio já depois do escurecer. Como estava escuro, os servos de Tewdric trouxeram mais uma dúzia de tochas para o salão. Tinha também começado a chover muito e o salão ficou gelado, pois a água entrava pelos buracos do tecto, pingando para o chão ou correndo em arroios pelas paredes de tijolo abaixo. De repente, o frio era tanto que se encheu uma braseira, uma grande bacia de ferro, com cepos de madeira e que foi colocada acesa aos pés do Rei Supremo. Removeram-se os escudos reais e deslocou-se o trono de Tewdric para o lado para que o calor da braseira chegasse até Uther. O fumo da lenha espalhou-se pela sala, formando redemoinhos nas sombras do tecto alto como se procurasse uma saída que o levasse para a chuva forte que caía lá fora.
Finalmente Uther levantou-se para falar ao Conselho Supremo. Como tinha dificuldade em manter-se em pé, encostou-se a uma grande lança enquanto falava com franqueza sobre o seu reino. Disse que Dumnónia tinha um novo Príncipe Herdeiro e que se devia agradecer aos Deuses por essa graça, mas o Príncipe Herdeiro era débil, ainda um bebé e tinha um pé defeituoso. Levantaram-se murmúrios que se faziam eco da confirmação dos rumores sobre esse mau presságio, mas que abrandaram quando Uther levantou a mão pedindo silêncio. O fumo envolvia-o, dando-lhe um aspecto espectral, como se a sua alma já estivesse revestida pelo corpo-sombra do Outro Mundo. O ouro brilhava em volta do seu pescoço e dos pulsos, e uma pequena fita de ouro, a coroa do Rei Supremo, cingia os seus ralos cabelos brancos.
Estou velho disse ele, e não vou viver muito tempo. Acalmou os protestos com outro débil aceno da mão.
Eu não digo que o meu reino esteja acima de qualquer outro deste país, mas digo que se Dumnónia cai nas mãos dos Saxões, então toda a Grã-Bretanha cairá. Se Dumnónia cair perdemos os nossos laços com Armórica e com os nossos irmãos de além-mar. Se Dumnónia cair, então os Saxões terão dividido a Grã-Bretanha e um país dividido não consegue sobreviver.
Fez uma pausa e, por um momento, pensei que estivesse cansado de mais para continuar; mas depois, a grande cabeça de touro ergueu-se e ele voltou a falar.
Os Saxões não podem chegar ao mar Severn! disse, clamando em alta voz aquele credo que durante tantos anos tinha estado bem no centro das suas ambições.
Enquanto os Saxões estivessem rodeados por Bretões havia sempre a possibilidade de algum dia serem empurrados de volta para o mar Germânico, mas se chegassem à nossa costa ocidental então teriam separado Dumnónia de Gwent e os Bretões do Sul dos Bretões do Norte.
Os homens de Gwent continuou Uther são os nossos melhores guerreiros e aqui acenou com a cabeça em honra de Agrícola, mas não é segredo para ninguém que Gwent vive do pão que Dumnónia lhe envia. Dumnónia tem de ser mantida ou a Grã-Bretanha estará perdida. Eu tenho um neto e o reino pertence-lhe! O reino será governado por Mordred quando eu morrer. É esta a minha lei.
Nesse momento bateu com a lança no estrado e por um momento a antiga força do Pendragon brilhou-lhe nos olhos. Independentemente do que mais ali ficasse decidido o reino não sairia da família de Uther, pois aquela era a lei de Uther e todos os presentes o sabiam. Faltava apenas decidir como seria protegida a criança estropiada até ter idade suficiente para assumir a realeza.
E assim começaram as conversações, embora já toda a gente soubesse o que fora decidido. Por que outra razão estaria Gundleus sentado no seu trono daquela forma tão desleixada e tão seguro de si? No entanto, alguns homens ainda avançaram o nome de outros candidatos à mão de Norwenna. O príncipe Gereint, o Senhor das Pedras, que defendia as terras da fronteira entre Dumnónia e os Saxões, propôs Meurig Tewdric, o Príncipe Herdeiro de Gwent, mas todos os presentes sabiam que a proposta era apenas uma forma de lisonjear Tewdric e que nunca seria aceite, porque Meurig era apenas uma criança sempre com o dedo no nariz e sem qualquer hipótese de defender Dumnónia dos Saxões. Gereint, tendo cumprido o seu dever, sentou-se e escutou com atenção enquanto um dos conselheiros de Tewdric propunha o príncipe Cuneglas, o filho mais velho de Gorfyddyd e, por isso, o Príncipe Herdeiro de Powys. O conselheiro afirmava que um casamento com o Príncipe Herdeiro do inimigo forjaria a paz entre Powys e Dumnónia, os dois reinos britânicos mais poderosos. Mas esta sugestão foi implacavelmente rejeitada pelo bispo Bedwin que sabia que o seu senhor nunca legaria o seu reino ao filho do pior inimigo de Tewdric.
Tristan, príncipe de Kernow, era outro candidato, mas ele colocou objecções pois sabia muito bem que ninguém em Dumnónia confiaria em seu pai, o rei Mark. Foi então sugerido Meriadoc, príncipe de Stronggore, mas Stronggore já estava meio perdido para os Saxões e se um homem não conseguia defender o seu próprio reino, como poderia defender ainda outro? Alguém perguntou porque não alguém das casas reais de Armórica, mas ninguém sabia se os príncipes do outro lado do mar abandonariam as suas novas terras da Bretanha para defender Dumnónia.
Gundleus. E voltou-se a Gundleus.
Mas, então, Agrícola proferiu o nome que quase todos os homens no salão tanto queriam como temiam ouvir. O velho soldado levantou-se, com a sua armadura romana a brilhar e os ombros firmes, e olhou directamente nos olhos remelosos de Uther, o Pendragon.
Artur disse Agrícola. Proponho Artur.
Artur. O nome ressoou pelo salão e, depois, o eco moribundo foi abafado pelo barulho repentino de bordões a bater no chão. Os lanceiros que aplaudiam eram guerreiros de Dumnónia, homens que tinham seguido Artur na batalha e que conheciam o seu valor, mas a rebelião foi breve.
Uther, o Pendragon, Rei Supremo de Grã-Bretanha, levantou a sua própria lança e baixou-a de uma só vez. Fez-se imediatamente silêncio, no qual apenas Agrícola ainda se atreveu a desafiar o Rei Supremo.
Proponho que Artur case com Norwenna disse respeitosamente, e até mesmo eu, novo como era, sabia que Agrícola devia estar a falar pelo seu senhor, o rei Tewdric, e isso baralhou-me pois pensara que Gundleus era o candidato de Tewdric.
Se Gundleus pudesse ser separado da sua amizade com Powys, então a nova aliança entre Dumnónia, Gwent e Silúria defenderia todas as terras das duas margens do mar Severn e essa tripla aliança seria um Baluarte contra Powys e contra os Saxões. Eu deveria saber, claro, que Tewdric, ao sugerir Artur estava à espera de uma recusa que teria de ser recompensada com um favor.
Artur Neb disse Uther, e esta última palavra foi pronunciada com um suspiro de surpresa e horror não é de alta linhagem.
Não podia haver argumento contra tal decreto e Agrícola, aceitando a sua derrota, fez uma vénia e sentou-se. Neb significava "ninguém", e Uther estava a negar ser o pai de Artur, declarando desse modo que Artur não tinha sangue real e que, portanto, não podia casar com Norwenna. Um bispo de Belgae argumentou por Artur protestando que os reis já tinham sido escolhidos de entre a nobreza e que os costumes que tinham servido para o passado deviam servir para o futuro, mas a sua objecção impertinente foi mitigada por um olhar feroz de Uther. A chuva entrava em turbilhões por uma das altas janelas e sibilava no fogo.
O bispo Bedwin levantou-se de novo. Parecia que até àquele momento toda a conversa sobre o futuro de Norwenna tinha sido tempo perdido, pelo menos nenhuma das alternativas tinha fundamento e qualquer homem de bom senso podia assim entender o raciocínio por detrás da anunciação que Bedwin então fez.
Gundleus da Silúria, disse Bedwin suavemente, era um homem sem mulher. Houve murmúrios na sala quando aqueles homens se lembraram dos rumores do casamento escandaloso de Gundleus com a sua amada de baixa linhagem, Ladwys, mas Bedwin ignorou os distúrbios com jovialidade. E continuou, dizendo que algumas semanas antes Gundleus visitara Uther e fizera as pazes com o Rei Supremo e era agora do gosto de Uther que Gundleus casasse com Norwenna e se tornasse o protector, e repetiu a palavra, o protector do reino de Mordred. Como garantia da sua boa fé Gundleus pagara já um preço em ouro ao rei Uther e esse preço fora aceite como apropriado. Poderia haver alguém, admitiu o bispo Bedwin com desenvoltura, que não confiasse num homem que até há tão pouco tempo fora um inimigo, mas, como mais uma garantia da sua mudança de atitude, Gundleus da Silúria concordara em abandonar a sua antiga reivindicação em relação ao reino de Gwent, e, mais ainda, converter-se-ia ao cristianismo e seria publicamente baptizado na manhã seguinte no rio Severn sob as muralhas de Glevum. Todos os cristãos presentes gritaram aleluia, mas eu não tirava os olhos do Druida Tanaburs, imaginando por que razão aquele velho louco malvado não dava sinais de desaprovação enquanto o seu mestre repudiava publicamente a antiga religião.
Também me perguntava por que os adultos recebiam tão rapidamente um antigo inimigo, mas era óbvio que estavam desesperados. Um reino estava a ser passado para uma criança estropiada e Gundleus, apesar do seu passado traiçoeiro, era um guerreiro famoso. Se ele provasse ser verdadeiro, então a paz de Dumnónia e Gwent estava assegurada. No entanto, Uther não era tolo e, por isso, fez o melhor que pôde para proteger o seu neto, caso Gundleus provasse ser falso. Uther decretou que Dumnónia seria governada por um conselho até Mordred ter idade para empunhar a espada. Gundleus presidiria ao conselho e teria como conselheiros meia dúzia de homens que teriam como chefe o bispo Bedwin. Tewdric de Gwent, um aliado firme de Dumnónia, foi convidado a enviar dois dos seus homens, e o conselho, assim composto, teria a última palavra sobre o governo do reino. Gundleus não ficou satisfeito com esta decisão. Ele não tinha pago dois cestos de ouro para se sentar num conselho de velhos, mas era esperto de mais para protestar. Calou-se enquanto o reino da sua noiva e do seu enteado era rodeado de regras.
E foram estabelecidas ainda mais regras. Uther disse que Mordred teria três protectores ajuramentados; homens obrigados por juramentos de morte a defender com a própria vida a vida do rapaz. Se algum homem ofendesse Mordred, então os ajuramentados vingariam a ofensa ou sacrificariam as suas próprias vidas. Gundleus manteve-se sentado e imóvel enquanto o édito era lavrado, mas moveu-se desconfortavelmente quando os ajuramentados foram nomeados. Um era o rei Tewdric de Gwent, o segundo era Owain, o Campeão de Dumnónia e o terceiro era Merlim, Lorde de Avalon.
Merlim. As pessoas naquela sala estiveram à espera de ouvir aquele nome tal como tinham estado à espera de ouvir o nome de Artur. Normalmente Uther não tomava grandes decisões sem o conselho de Merlim. No entanto, Merlim não estava presente. Havia meses que Merlim não era visto em Dumnónia. Pelo que se sabia, Merlim até podia estar morto.
Foi então que Uther olhou para Morgana pela primeira vez. Ela deve ter-se contorcido toda, quando a paternidade do seu irmão foi negada e, consequentemente, a dela própria, mas fora convocada para o Conselho Supremo não como filha bastarda de Uther, mas sim como profetisa da confiança de Merlim. Depois de Tewdric e Owain terem feito os seus juramentos de morte, Uther olhou para a mulher estropiada e só com um olho. Os cristãos presentes na sala fizeram o sinal da cruz, que era a forma de se protegerem contra os maus espíritos.
Então? incitou-a Uther.
Morgana estava nervosa. O que precisavam dela era uma garantia de que Merlim, o seu companheiro nos mistérios, aceitasse o grande encargo imposto pelo juramento. Ela estava ali como sacerdotisa, não como conselheira, e devia ter respondido como sacerdotisa. Mas não o fez e a sua resposta foi insuficiente.
O meu Mestre, Merlim, ficará honrado com a nomeação, Senhor Supremo disse ela.
Nimue gritou. O som foi tão repentino e arrepiante que por toda a sala os homens estremeceram e agarraram as lanças com firmeza e até os pêlos dos dorsos dos cães de caça se eriçaram. Depois o grito extinguiu-se deixando o silêncio entre os homens. O fumo arrastava-se furiosamente pelo tecto escuro do salão cujas telhas eram fustigadas pela chuva e, depois, na esteira do grito e bem longe naquela noite abalada pela tempestade, ouviu-se o som de trovões.
Trovões! Os cristãos fizeram outra vez o sinal da cruz, mas ninguém ali duvidava do sinal. Taranis, o Deus do Trovão, falara, prova de que os Deuses tinham entrado no Conselho Supremo e, além disso, tinham vindo por ordem de uma rapariga que, apesar do frio que obrigou os homens a vestirem as capas, nada mais usava além de uma túnica branca e uma correia de escravos.
Ninguém se mexeu, ninguém falou, ninguém ficou sequer inquieto. Os copos de chifre com hidromel estavam pousados e os homens deixaram de catar os piolhos. Ali já não havia reis nem guerreiros. Não havia bispos nem padres tonsurados nem sábios. Havia apenas uma multidão muda e apavorada que olhava com receio para a jovem que se levantou e soltou o cabelo, deixando-o cair longo e negro pelas costas magras abaixo. Morgana baixou os olhos para o chão, Tanaburs estava boquiaberto e o bispo Bedwin declamava orações em voz baixa enquanto Nimue caminhava para o espaço reservado aos discursos, ao lado da braseira. Ergueu os braços ao alto e começou a andar à roda muito devagar, seguindo a rota do Sol, para que todos os homens vissem o seu rosto. Era um rosto marcado pelo horror. Só se via o branco dos olhos, nada mais, e a língua pendia de uma boca distorcida. Ela rodou uma e outra vez, cada vez mais depressa, e juro que a multidão foi atravessada por um arrepio comunal. Ela tremia agora enquanto girava, aproximando-se cada vez mais da grande fogueira até quase cair em cima das chamas, mas, de repente, elevou-se no ar e gritou antes de cair no chão, em cima dos ladrilhos. Depois, como um animal, começou a correr de gatas, buscando o seu caminho para trás e para a frente ao longo da linha de escudos que fora dividida para deixar o calor do fogo aquecer as pernas do Rei Supremo e, quando chegou ao escudo com uma raposa de Gundleus, empinou-se qual cobra admirável e cuspiu uma vez.
O cuspo atingiu a raposa.
Gundleus tentou levantar-se do trono, mas Tewdric impediu-o. Tanaburs levantou-se também com grande esforço, mas Nimue virou-se para ele, ainda com os olhos em alvo, e soltou um grito. Apontou para ele, o grito ainda ululava e ecoava pelo grande salão romano e o poder da sua magia fez Tanaburs afundar-se outra vez no chão.
Depois Nimue estremeceu, os olhos rolaram e já se podiam ver outra vez as suas pupilas castanhas. Pestanejou perante a sala cheia de gente como se estivesse surpresa de se encontrar ali e, depois, com as costas voltadas para o Rei Supremo ficou completamente imóvel. Aquela quietude mostrava que ela estava possuída pelos Deuses e que, quando falasse, falaria por eles.
Merlim está vivo? perguntou Tewdric respeitosamente.
É claro que está vivo a voz de Nimue estava cheia de desprezo e não deu nenhum título ao rei que a tinha questionado. Ela estava com os Deuses e não precisava de mostrar respeito por meros mortais.
Onde está ele?
Partiu disse Nimue, virando-se para fitar o rei que usava toga, em cima do estrado.
Partiu para onde?
Foi procurar a Sabedoria da Grã-Bretanha disse Nimue. Todos tentavam escutar o que ela dizia, pois, finalmente, ouviam-se notícias reais. Pude ver Sansum, o Lorde Rato, a contorcer-se na sua necessidade desesperada de protestar contra aquela interferência pagã no Conselho Supremo, mas enquanto o rei Tewdric estivesse a interrogar a rapariga um simples padre não podia interferir.
O que é a Sabedoria da Grã-Bretanha? perguntou o rei Uther.
Nimue rodou de novo, dando uma volta completa, mas rodou apenas para poder ordenar os pensamentos pois a resposta foi dada numa voz cantada e hipnótica.
A Sabedoria da Grã-Bretanha é o saber dos nossos antepassados, as ofertas dos nossos Deuses, as Treze Riquezas dos Treze Tesouros que, quando reunidos, nos darão o poder de reclamar a nossa terra.
Fez uma pausa e quando falou de novo a voz voltara ao seu timbre normal.
Merlim luta para unir de novo esta terra, uma terra britânica e aqui Nimue rodopiou para fitar directamente os olhos pequenos, brilhantes e indignados de Sansum com Deuses britânicos. Voltou-se de novo para o Rei Supremo. E se Lorde Merlim falhar, Uther de Dumnónia, morreremos todos.
Levantaram-se murmúrios por todo o salão. Sansum e os cristãos começaram a protestar, mas Tewdric, o rei cristão, fez-lhes sinal para que se calassem.
Essas palavras são de Merlim? perguntou ele a Nimue. Nimue encolheu os ombros, como se aquela pergunta fosse irrelevante.
Não, são minhas respondeu com insolência.
Uther não tinha dúvidas de que Nimue, apenas uma criança a entrar na idade adulta, não falava por si, mas sim pelo seu mestre e, por isso, inclinou-se para a frente e mostrou-lhe um semblante severo.
Pergunta a Merlim se ele aceita o meu juramento. Pergunta-lhe! Ele protegerá o meu neto?
Nimue fez uma longa pausa. Penso que ela sentiu a verdade da Grã-Bretanha antes de qualquer um de nós, antes mesmo de Merlim e certamente muito antes de Artur, se é que Artur alguma vez conheceu essa verdade. Mas algum instinto não a deixou dizer essa verdade àquele homem velho, teimoso e prestes a morrer.
Merlim, meu Senhor disse ela finalmente com uma voz cansada que indicava que cumprira um dever necessário, mas que era perda de tempo, promete neste momento, pela vida da sua alma, que aceitará o juramento de morte para proteger o teu neto.
Desde que... Morgana deixou-nos a todos atónitos com a sua interjeição. Pôs-se de pé, com um aspecto atarracado e soturno ao lado de Nimue. A luz do fogo fazia brilhar o seu elmo de ouro.
Desde que... gritou de novo e, depois, pôs-se a balançar de um lado para o outro no meio do fumo da braseira como se a sugerir que os Deuses estavam a tomar conta do seu corpo.
Desde que, diz Merlim, Artur partilhe o juramento. Artur e os seus homens devem ser os protectores do teu neto. Merlim falou! Ela proferiu aquelas palavras com a dignidade de alguém acostumado a ser oráculo e profetisa, mas eu, e não sei se mais alguém, não ouvi nenhum trovão na noite batida pela chuva.
Gundleus levantou-se, protestando contra a declaração de Morgana. Já tinha suportado que um conselho de seis homens e um trio de ajuramentados fossem impostos ao seu poder, mas agora fora proposto que o seu novo reino suportasse um bando de guerreiros possivelmente inimigos.
Não gritou de novo, mas Tewdric ignorou o protesto descendo do estrado para se colocar ao lado de Morgana e encarar o Rei Supremo. Assim, ficou claro para a maior parte dos presentes que Morgana, mesmo que tivesse falado pela voz de Merlim, dissera o que Tewdric queria que ela dissesse. O rei Tewdric de Gwent podia ser um bom cristão, mas era melhor político e sabia exactamente quando ter os velhos Deuses a apoiar os seus pedidos.
Artur Neb e os seus guerreiros disse Tewdric ao Rei Supremo representarão uma maior segurança para a vida do teu neto do que qualquer juramento meu, ainda que, e Deus sabe-o, o meu juramento seja solene.
O príncipe Gereint, sobrinho de Uther e, depois de Owain, o segundo mais poderoso senhor da guerra de Dumnónia, podia protestar contra a nomeação de Artur, mas o Senhor das Pedras era um homem honesto de ambição limitada que duvidava da sua habilidade para chefiar todos os exércitos de Dumnónia. Por isso, ficou de pé ao lado de Tewdric e deu-lhe também o seu apoio. Owain, chefe da Guarda Real de Uther e campeão do Rei Supremo, parecia menos satisfeito com a nomeação de um rival, mas, mesmo assim, também ele se pôs ao lado de Tewdric e rosnou o seu assentimento.
Uther ainda hesitava. Três era um número da sorte e três ajuramentados deviam chegar; acrescentar um quarto podia desagradar aos Deuses, mas Uther devia um favor a Tewdric por ter rejeitado a sua proposta de Artur para marido de Norwenna e, nesse momento, o Rei Supremo pagava a sua dívida.
Artur deve aceitar o juramento concordou, e só os Deuses sabiam como foi duro para ele nomear assim o homem que acreditava ter sido o responsável pela morte do seu amado filho, mas nomeou-o e todo o salão aclamou. Apenas os silurianos de Gundleus ficaram em silêncio enquanto as lanças estilhaçavam o pavimento e os vivas dos guerreiros ecoavam na escuridão fumarenta e cavernosa.
E, assim, chegado ao fim o Conselho Supremo, Artur, filho de ninguém, foi escolhido para ser um dos protectores ajuramentados de Mordred Norwenna e Gundleus casaram duas semanas após o Conselho Supremo ter terminado. A cerimónia teve lugar numa capela cristã em Abona, uma cidade portuária na nossa costa norte junto ao mar Severn, em frente a Silúria, e não pode ter sido uma ocasião especial pois Norwenna regressou a Ynys Wydryn nessa mesma noite. Ninguém do Tor esteve presente na cerimónia, apesar de alguns monges de Ynys Wydryn e as respectivas mulheres terem acompanhado a princesa. Voltou para nós como rainha Norwenna da Silúria, se bem que essa honra não lhe trouxesse nem novos guardas nem mais aias. Gundleus fez-se de novo ao mar rumo ao seu próprio país onde, segundo ouvimos, havia escaramuças contra Ui Liatháin, o Blackshieid irlandês que colonizara o antigo reino britânico de Dyfed que os Blackshields chamavam Demétia.
Termos uma rainha entre nós não alterou em quase nada a nossa vida. Podia parecer que nós, os do Tor, comparados com as gentes do sopé do monte, não tínhamos nada para fazer, mas ainda tínhamos os nossos deveres. Cortávamos feno e espalhávamo-lo em camadas para secar, acabávamos de tosquiar as ovelhas e colocávamos o linho acabado de cortar em tanques de maceração malcheirosos para fazer o linho propriamente dito. Todas as mulheres de Ynys Wydryn tinham roca e fuso onde fiavam a lã recém-tosquiada e apenas a rainha, Morgana e Nimue eram poupadas a esta interminável tarefa. Druidan capava porcos, Pellinore comandava exércitos imaginários e Hywel, o administrador, preparava as suas varas para marcar e contabilizar as rendas de Verão. Merlim não regressou a Avalon, nem recebemos notícias dele. Uther descansava no seu palácio em Durnovária, enquanto Mordred, o seu herdeiro, crescia sob os cuidados de Morgana e Guendoloen.
Artur estava na Armórica. Disseram-nos que, acabaria por vir para Dumnónia, mas só depois de cumprir o seu dever para com Ban, cujo reino de Benoic era vizinho de Broceliande, o reino do rei Budic que era casado com Anna, irmã de Artur. Aqueles reinos da Bretanha eram um mistério para nós, pois ninguém de Ynys Wydryn tinha jamais atravessado o mar para explorar os lugares onde tantos bretões se tinham refugiado dos Saxões. Sabíamos que Artur era o senhor da guerra de Ban e que tinha devastado o país a ocidente de Benoic para não dar tréguas ao inimigo, pois as nossas noites de Inverno eram animadas pelas histórias das proezas de Artur contadas pelos viajantes, tal como eles ficavam roídos de inveja com as histórias do rei Ban. O rei de Benoic era casado com uma rainha chamada Elaine e ambos construíram um reino espantoso onde a justiça era rápida e certeira e onde, em tempo de Inverno, até mesmo o servo mais pobre era alimentado com produtos dos armazéns reais. Tudo parecia bom de mais para ser verdade. Mas, mais tarde, eu visitei o reino de Ban e descobri que as histórias não eram exageradas. Ban edificara a sua capital numa ilha-fortaleza, Ynys Trebes, famosa pelos seus bardos. O rei esbanjava afecto e dinheiro na cidade que tinha a reputação de ser mais bonita do que a própria Roma. Dizia-se que havia nascentes de água em Ynys Trebes a partir das quais Ban mandou fazer canais e diques para que todos os chefes de família tivesse água limpa não muito longe da porta, as balanças dos mercadores eram testadas para haver exactidão, o palácio do rei estava dia e noite aberto para alguém que viesse em busca da reparação de alguma injustiça, e todas as religiões foram ordenadas a viver em paz ou então os seus templos e igrejas seriam destruídos e transformados em pó. Ynys Trebes era um refúgio de paz, mas apenas enquanto os soldados de Ban mantivessem o inimigo afastado das suas muralhas. E essa era a razão pela qual o rei Ban se mostrava tão relutante em deixar Artur partir para a Grã-Bretanha. E talvez Artur também não quisesse vir para Dumnónia enquanto Uther fosse vivo.
Em Dumnónia aquele Verão foi ditoso. Juntámos o feno seco em grandes medas que erguemos sobre grossas camadas de fetos que impediriam a humidade de subir e manteriam as ratazanas em apuros. O centeio e a cevada amadureceram nos campos que cobriam toda a terra entre os charcos de Avalon e Caer Cadarn, as maçãs cresciam bastas nos pomares de leste, enquanto as enguias e os lúcios engordavam nos nossos lagos e enseadas. Não houve epidemias nem lobos e foram poucos os saxões. De vez em quando viam-se piras de fumo distantes no horizonte a Sudeste e supunha-se que um ataque de piratas saxões apoiado por barcos tinha incendiado alguma aldeia, mas depois do terceiro fogo o príncipe Gereint conduziu um grupo guerreiro para vingar Dumnónia e os ataques pararam. O chefe saxão até pagou o seu tributo pontualmente, apesar daquele ter sido o último tributo que recebemos de um saxão em mais de um ano e sem dúvida que a maior parte desse pagamento fora pilhado das aldeias das nossas próprias fronteiras. Mesmo assim esse Verão foi um bom período e, diziam os homens, Artur morreria de tédio se trouxesse os seus famosos soldados a cavalo para a pacífica Dumnónia. Até Powys estava calma. O rei Gorfyddyd perdera a aliança da Silúria, mas em vez de se virar contra Gundleus ignorou o casamento dumnoniano e concentrou as suas lanças contra os Saxões que ameaçavam o seu território a Norte. Gwynedd, o reino a norte de Powys, estava enredado com os terríveis soldados irlandeses de Diwrnach de Lleyn, mas em Dumnónia, o mais abençoado dos reinos da Grã-Bretanha, havia paz e céus cálidos.
No entanto, foi nesse Verão, nesse idílico Verão quente que matei o meu primeiro inimigo e me tornei, assim, um homem.
É que a paz não dura para sempre e a nossa foi quebrada da forma mais cruel. Uther, o Rei Supremo e Pendragon da Grã-Bretanha, morreu. Nós sabíamos que ele estava doente, sabíamos que em breve morreria, até sabíamos que ele fizera tudo o que pudera para preparar a sua própria morte, no entanto, ainda, pensávamos que esse momento nunca chegaria. Ele fora rei durante tanto tempo e sob o seu governo Dumnónia prosperara; parecera-nos que nada mudaria. Mas eis que mesmo antes das colheitas, o Pendragon morreu. Nimue disse que ouviu o grito de uma lebre ao sol do meio-dia no preciso momento da morte, enquanto Morgana, privada do pai, se fechou na sua cabana e chorou como uma criança.
O corpo de Uther foi cremado à maneira antiga. Bedwin preferia dar ao Rei Supremo um enterro cristão, mas o resto do conselho recusou aprovar tal sacrilégio e, por isso, o seu corpo inchado foi colocado numa pira funerária no cume de Caer Mães e aí incendiado. A sua espada foi derretida pelo ferreiro Ystrwth e o aço derretido foi lançado num lago para que Gofannon, o Deus ferreiro do Outro Mundo, pudesse de novo forjar a espada para a alma renascida de Uther. O metal ardente sibilava ao bater na água e o vapor pairava em nuvem espessa enquanto as videntes se inclinavam sobre o lago para predizer o futuro do reino através das tortuosas formas adoptadas pelo metal ao arrefecer. Deram boas notícias, mas apesar disso o bispo Bedwin foi cuidadoso ao mandar os seus mais velozes mensageiros para Sul até à Armórica para convocarem Artur e homens mais lentos para Norte até à Silúria, para dizerem a Gundleus que o reino do seu enteado estava agora a precisar do seu protector oficial.
A pira funerária de Uther ardeu durante três noites. Só depois se permitiu que as chamas morressem, um processo acelerado por uma poderosa tempestade que varreu a terra vinda do mar Ocidental. No Céu amontoaram-se grandes nuvens, os relâmpagos devastaram a terra do homem morto e chuvas pesadas castigaram as amplas colheitas que cresciam. Em Ynys Wydryn escondemo-nos nas cabanas a ouvir a chuva barulhenta e os trovões a retumbar e a ver a água que caía em cascatas dos telhados de colmo. Foi durante essa tempestade que o mensageiro do bispo Bedwin trouxe a Mordred o estandarte maior com o dragão do reino. O mensageiro teve de gritar como um louco para atrair a atenção de alguém do lado de dentro da paliçada, mas finalmente Hywel e eu abrimos o portão e assim que a tempestade passou e o vento amainou colocámos a bandeira em frente à casa de Merlim como sinal de que Mordred era agora rei de Dumnónia. O bebé não era o Rei Supremo, claro, pois essa era uma honra apenas concedida a um rei reconhecido por outros reis como estando acima de todos eles, nem era o Pendragon pois esse título pertencia apenas a um Rei Supremo que tivesse ganho a sua posição durante uma batalha. Na realidade, Mordred ainda nem era o verdadeiro rei de Dumnónia, nem o seria até ser levado até Caer Cadarn e aí proclamado rei com a espada, entre vivas, sobre a pedra real do reino, mas era o dono do estandarte e, por isso, o dragão vermelho tremulava ao vento em frente à casa de Merlim.
O estandarte era um quadrado de linho branco que, tanto de altura como de largura, tinha o tamanho da lança de um guerreiro. Mantinha-se esticado entre ramos de salgueiro enfiados nas bainhas e presos a um bastão de elmo coroado com a figura dourada de um dragão. O dragão bordado no estandarte era feito de lã vermelha que com a chuva desbotou, manchando o linho de cor-de-rosa. A chegada do estandarte foi seguida, alguns dias depois, pela Guarda do Rei, cem homens chefiados por Owain, o campeão, cuja tarefa era proteger Mordred, rei de Dumnónia. Owain trouxe a sugestão do bispo Bedwin de que Norwenna e Mordred se deviam mudar para Sul, para Durnovária, uma sugestão que Norwenna aceitou avidamente, pois preferia criar o filho numa comunidade cristã em vez de no ambiente evidentemente pagão do Tor, mas antes que se pudessem fazer os preparativos chegaram más notícias do norte do país. Gorfyddyd de Powys, sabendo da notícia da morte do Rei Supremo, mandara os seus lanceiros atacar Gwent e os homens de Powys andavam agora a queimar, a pilhar e a capturar pessoas mesmo no interior do território de Tewdric. Agrícola, o comandante romano de Tewdric, respondia aos ataques, mas os saxões traiçoeiros, sem dúvida aliados a Gorfyddyd, trouxeram os seus próprios grupos guerreiros para Gwent e, de repente, o nosso velho aliado viu-se a lutar pela própria existência do seu reino. Owain, devia escoltar Norwenna e o menino até Durnovária, mas em vez disso levou os seus guerreiros para norte para ajudar o rei Tewdric. Ligessac, que era mais uma vez o comandante da guarda de Mordred, insistiu que o menino estaria mais seguro por detrás da ponte de terra de Ynys Wydryn facilmente defendida do que em Caer Cadarn ou Durnovária, e assim Norwenna permaneceu relutantemente no Tor.
Retivemos o fôlego para ver que lado Gundleus da Silúria escolheria e a resposta não se fez tardar. Lutaria por Tewdric contra o seu antigo aliado Gorfyddyd. Gundleus mandou uma mensagem a Norwenna dizendo que as suas tropas atravessariam a montanha para atacar os homens de Gorfyddyd pela retaguarda e que assim que os grupos guerreiros de Powys fossem vencidos ele viria para Sul para proteger a sua noiva e o seu real filho.
Aguardámos notícias, observando os montes distantes dia e noite, em busca de sinais que nos diriam se houvera algum desastre ou se os inimigos se estavam a aproximar. No entanto, e apesar das incertezas da guerra, aqueles foram dias felizes. O Sol curava a terra fustigada pela tempestade e secava os cereais, enquanto Norwenna, mesmo estando presa no Tor pagão, parecia mais confiante agora que o seu filho era rei. Mordred foi sempre uma criança terrível, de cabelo ruivo e um coração teimoso, mas naqueles dias amenos ele parecia bem feliz quando brincava com a mãe ou com Ralla, a sua ama de leite e o seu filho de cabelo negro. O marido de Ralla, Gwlyddyn, o carpinteiro, fez para Mordred um conjunto de animais: patos, porcos, vacas e veados, e o rei adorava brincar com eles mesmo sendo ainda muito novo para saber o que eram. Norwenna estava feliz quando o filho estava feliz. Eu costumava vê-la a fazer cócegas a Mordred para o fazer rir, a embalá-lo quando ele se magoava e a dar-lhe sempre o seu amor. Ela chamava-o o seu pequenino rei, o seu mais-que-tudo, o seu milagre e Mordred ria-se e aquecia o coração infeliz da mãe. Ele gatinhava nu ao sol e todos podíamos ver como o seu pé esquerdo estava deformado e crescia virado para dentro como um punho fechado, mas tirando isso ele crescia forte com o leite de Ralla e o amor da sua mãe. Foi baptizado na igreja de pedra ao lado do Espinheiro Sagrado.
Chegaram notícias da guerra e eram boas. O príncipe Gereint tinha dizimado um grupo guerreiro saxão na fronteira leste de Dumnónia, enquanto mais ao norte Tewdric destruíra uma outra força de assaltantes saxões. Agrícola, chefiando o resto do exército de Gwent e aliado a Owain de Dumnónia rechaçara os invasores de Gorfyddyd de novo para os montes de Powys. Depois veio um mensageiro de Gundleus que disse que Gorfyddyd de Powys queria a paz e o mensageiro atirou duas espadas capturadas powysianas aos pés de Norwenna como sinal da vitória do seu marido. E o melhor, informou o homem, é que Gundleus de Silúria vinha agora para Sul para vir buscar a sua noiva e o seu precioso filho. Gundleus dizia que era tempo de Mordred ser proclamado rei em Caer Cadarn. Nada podia ser mais doce aos ouvidos de Norwenna e, na sua alegria, deu ao mensageiro uma grossa pulseira de ouro antes de o mandar para Sul, para levar a mensagem do seu marido a Bedwin e ao conselho.
Diz a Bedwin ordenou ela ao mensageiro que devemos aclamar Mordred antes das colheitas. Que Deus dê asas ao teu cavalo!
O mensageiro cavalgou para Sul e Norwenna começou a preparar-se para a cerimónia de aclamação em Caer Cadarn. Ordenou aos monges do Espinheiro Sagrado para se prepararem para viajar com ela, embora tivesse terminantemente proibido Morgana e Nimue de comparecerem porque, como ela própria afirmou, daquele dia em diante Dumnónia seria um reino cristão e as bruxas pagãs seriam afastadas do trono de seu filho. A vitória de Gundleus animara Norwenna, encorajando-a a exercer uma autoridade que Uther nunca lhe teria permitido.
Esperámos que Morgana e Nimue protestassem contra a sua exclusão da cerimónia de aclamação, mas ambas aceitaram a proibição com uma calma surpreendente. Na realidade Morgana apenas encolheu os ombros negros, embora nessa noite levasse um caldeirão de bronze para os aposentos de Merlim e aí se isolasse com Nimue. Norwenna, que convidara o monge principal do Espinheiro Sagrado e a sua mulher para jantar no Tor, comentou que as bruxas estavam a preparar o mal e todos os presentes na sala se riram. Os cristãos sentiam-se vitoriosos.
Eu não estava certo da sua vitória. Nimue e Morgana não gostavam uma da outra, mas agora estavam fechadas juntas e eu suspeitava que só um assunto da mais extrema gravidade podia provocar tal reconciliação. Mas Norwenna não tinha dúvidas. A morte de Uther e a vitória do seu marido traziam-lhe uma liberdade abençoada e em breve deixaria o Tor e assumiria o seu lugar de direito como mãe do rei numa corte cristã onde o seu filho cresceria à imagem de Cristo. Nunca estivera tão feliz como estava nessa noite em que governava de forma suprema: uma cristã dentro da casa pagã de Merlim.
Mas, entretanto, Morgana e Nimue reapareceram.
Fez-se silêncio na sala quando as duas mulheres se dirigiram à cadeira de Norwenna, junto à qual, com a devida humildade, elas se ajoelharam. O monge, um homem pequeno, mas de ar severo e barba eriçada, que fora curtidor antes de se converter a Cristo e que ainda tresandava a excremento de animal, de que precisava na sua antiga actividade, perguntou ao que vinham. A mulher dele defendeu-se do mal fazendo o sinal da cruz, apesar de também cuspir, para jogar pelo seguro.
Morgana respondeu ao monge de trás da sua máscara de ouro. Falou com uma deferência não usual, dizendo que o mensageiro de Gundleus mentira. Morgana continuou dizendo que ela e Nimue tinham espreitado para o caldeirão e tinham visto a verdade reflectida no espelho de água. Não havia vitória nenhuma no Norte nem nenhuma derrota, mas Morgana avisou que o inimigo estava mais próximo de Ynys Wydryn do que algum de nós podia imaginar e que todos devíamos estar prontos para deixar o Tor ao amanhecer e procurar segurança no interior de Dumnónia. Morgana falou calma e profundamente e quando terminou fez uma vénia à rainha e depois inclinou-se desajeitadamente para a frente para beijar a bainha do vestido azul de Norwenna.
Norwenna agarrou no vestido a afastou-o. Ouvira em silêncio a severa profecia, mas depois começou a chorar e com as lágrimas repentinas veio a cólera.
Não passas de uma bruxa estropiada gritou para Morgana e queres que o teu irmão bastardo seja rei. Isso não acontecerá! Ouviste? Isso não vai acontecer. O meu menino é o rei!
Senhora Nimue tentou intervir, mas foi imediatamente interrompida.
Tu não és nada! Norwenna virou-se furiosa para Nimue. Não passas de uma filha do diabo, histérica e perversa. Rogaste uma praga ao meu filho! Sei que rogaste! Ele nasceu com o pé torto porque tu assististe ao nascimento. Oh, meu Deus! O meu filho!
Ela gritava, chorava e batia com os punhos na mesa enquanto lançava todo o seu ódio sobre Nimue e Morgana.
Agora, saiam! As duas! Saiam!
Fez-se silêncio na sala, quando Nimue e Morgana saíram para a noite.
E na manhã seguinte parecia que Norwenna estava certa, pois não havia sinais de fogo nos montes a norte. Na verdade, era o mais bonito dia daquele bonito Verão. A terra estava pesada com o aproximar das colheitas, os montes cobertos pelo calor sonolento e o céu quase sem nuvens. Centáureas azuis e papoilas cresciam nos matagais de espinheiros no sopé do Tor e as borboletas brancas deslocavam-se suavemente com as correntes de ar quente que subiam as nossas encostas verdejantes. Norwenna, absorta da beleza do dia, entoou as suas orações matinais com os monges visitantes e, depois, decretou que se mudaria do Tor e esperaria a chegada do marido nos aposentos dos peregrinos na capela do Espinheiro Sagrado.
Vivi tempo de mais no meio do mal anunciou de modo imponente, ao mesmo tempo que o guarda da muralha de leste gritava um aviso.
Cavaleiros! gritou o guarda. Cavaleiros!
Norwenna correu para a cerca onde se juntava uma multidão para ver um grande número de homens armados a atravessar a ponte de terra que fazia a ligação entre a estrada romana e os montes verdejantes de Ynys Wydryn. Ligessac, comandante da guarda de Mordred, parecia saber quem estava a chegar, pois deu ordens aos seus homens para que deixassem entrar os cavaleiros pela muralha de terra. Os cavaleiros entraram pelo portão da muralha e dirigiram-se para nós atrás de um brilhante estandarte que mostrava a divisa vermelha da raposa. Era o próprio Gundleus e Norwenna riu de alegria ao ver o marido cavalgar vitorioso da guerra, com o despontar de um novo reino cristão a brilhar na ponta da sua lança.
Vês! ela virou-se para Morgana. Vês, o teu caldeirão mentiu. Há mesmo vitória!
Mordred começou a chorar com toda aquela agitação e Norwenna ordenou bruscamente que o entregassem a Ralla. Em seguida mandou buscar a sua melhor capa e que lhe fosse colocado o aro de ouro na cabeça, e assim, vestida como uma rainha, ficou à espera do seu rei em frente à porta da casa de Merlim.
Ligessac abriu o portão do Tor. A decrépita guarda de Druidan formou uma linha bastante torta enquanto o pobre Pellinore, completamente doido, guinchava na sua jaula à espera de notícias. Nimue correu para os aposentos de Merlim enquanto eu fui buscar Hywel, o administrador de Merlim, que eu sabia ia querer dar as boas-vindas ao rei.
Os vinte cavaleiros silurianos desmontaram no sopé do Tor. Vinham da guerra e, por isso, traziam lanças, escudos e espadas. Hywel, só com uma perna, apoiado na sua própria grande espada, franziu as sobrancelhas quando viu que o druida Tanaburs fazia parte do grupo siluriano.
Pensei que Gundleus tinha abandonado a velha fé! disse o administrador.
E eu pensei que ele tinha abandonado Ladwys! resmungou Gudovan, o escriba, que depois apontou com o queixo para os cavaleiros que tinham começado a subir u estreito e íngreme caminho do Tor. Vês? disse Gudovan, e havia mesmo uma mulher entre os homens com armaduras de couro. A mulher estava vestida de homem, mas trazia soltos os longos cabelos negros. Trazia uma espada, mas não trazia escudo e Gudovan soltou uma risada abafada ao vê-la. A nossa rainha vai ter a sua tarefa reduzida competindo com este diabinho de Satã.
Quem é Satã? perguntei e Gudovan deu-me uma sapatada na cabeça por fazê-lo perder tempo com perguntas estúpidas.
Hywel tinha o semblante carregado e a mão apertava os copos da espada enquanto os guerreiros silurianos se aproximavam dos últimos degraus íngremes que conduziam ao portão onde os nossos guardas tão diferentes uns dos outros esperavam em duas filas irregulares. Depois o instinto de Hywel, ainda tão aguçado como quando ele era guerreiro, acendeu-lhe o receio.
Ligessac! gritou ele. Fecha o portão! Fecha-o! Já!
Mas, em vez disso Ligessac puxou da espada. Depois voltou-se e pôs a mão no ouvido como se não tivesse ouvido bem Hywel.
Fecha o portão! gritou Hywel.
Um dos homens de Ligessac moveu-se para obedecer à ordem, mas Ligessac impediu o homem e olhou para Norwenna à espera de ordens.
Norwenna virou-se para Hywel lançando-lhe um olhar carregado e mostrando o seu descontentamento pela ordem dada.
É o meu marido que está a chegar disse ela não um inimigo.
Olhou de novo para Ligessac. Deixa o portão aberto ordenou autoritariamente, e Ligessac fez uma vénia obedecendo.
Hywel praguejou e, depois, desceu desajeitadamente da muralha e foi aos saltos e apoiando-se na muleta até à cabana de Morgana enquanto eu me limitei a olhar para o portão vazio e iluminado pelo sol, imaginando o que iria acontecer. Hywel sentira algo de anormal no ar de Verão, mas como, nunca o descobri.
Gundleus chegou ao portão aberto. Cuspiu na soleira, depois sorriu para Norwenna que o esperava a alguns passos do portão. Ela levantou os braços rechonchudos para saudar o seu Senhor que estava a transpirar e sem fôlego, e não admirava, pois tinha subido o íngreme Tor vestido com todo o seu equipamento de guerra. Envergava uma couraça de couro, polainas almofadadas, botas, um elmo de ferro ornamentado com uma cauda de raposa e uma grossa capa vermelha à volta dos ombros. Trazia o escudo com o brasão da raposa do lado esquerdo, a espada à ilharga e uma pesada lança de combate na mão direita. Ligessac ajoelhou-se e ofereceu ao rei os copos da sua espada desembainhada e Gundleus deu um passo em frente para tocar o punho da espada com a mão coberta com uma luva de couro.
Hywel tinha ido à cabana de Morgana, mas nesse preciso momento Sebile saiu a correr da cabana segurando Mordred nos braços. Sebile? Não era Ralla? Fiquei baralhado, e Norwenna também deve ter ficado baralhada quando a escrava saxónica correu para o lado dela com o pequeno Mordred envolvido no seu rico vestido de tecido dourado. Norwenna, porém, não teve tempo para interrogar Sebile, pois Gundleus caminhava agora a passos largos para ela.
Ofereço-te a minha espada, querida rainha! disse ele numa voz sonora, e Norwenna sorriu, feliz, talvez porque ainda não tivesse reparado nem em Tanaburs nem em Ladwys que entraram pelo portão aberto de Merlim juntamente com os guerreiros de Gundleus.
Gundleus enterrou a lança na erva e desembainhou a espada, mas em vez de a oferecer a Norwenna com os copos virados para ela, elevou a ponta da lâmina afiada até ao seu rosto. Norwenna, sem saber o que fazer, tentou tocar na ponta brilhante da espada.
Alegro-me com o vosso regresso, meu Senhor disse ela respeitosamente e, depois, ajoelhou-se aos pés dele como mandava a tradição.
Beija a espada que defenderá o reino do teu filho ordenou Gundleus, e Norwenna inclinou-se acanhadamente para a frente para tocar o aço oferecido com os seus lábios finos.
Beijou a espada como lhe tinha sido ordenado, e assim que os seus lábios tocaram o aço cinzento Gundleus enterrou a lança bem fundo. Ele ria-se enquanto matava a noiva, ria-se enquanto fazia a espada deslizar pelo queixo dela e penetrar na cavidade da garganta e continuava a rir-se enquanto empurrava a longa lâmina, atravessando a resistência sufocante do seu corpo contorcido. Norwenna não teve tempo de gritar nem voz para gritar quando a lâmina lhe rasgou a garganta e se enterrou no coração. Gundleus grunhia enquanto enterrava a espada. Atirara o pesado escudo de guerra para o chão para ter as duas mãos enluvadas livres para empurrar a espada para baixo, torcendo a lâmina. Havia sangue na espada, sangue na erva, sangue na capa azul da rainha moribunda e ainda mais sangue quando Gundleus puxou brusca e violentamente a longa lâmina. O corpo de Norwenna, privado do apoio da espada, tombou para o lado, estremeceu por alguns segundos e depois ficou completamente imóvel.
Sebile deixou cair a criança e fugiu a gritar. Mordred chorava alto, mas a espada de Gundleus cortou abruptamente o choro do bebé. Apunhalou-o apenas uma vez com a lâmina vermelha de sangue e rapidamente o tecido vermelho ficou totalmente manchado de escarlate. Tanto sangue de uma criança tão pequena.
Aconteceu tudo tão depressa. Gudovan, ao meu lado, estava de boca aberta, sem poder acreditar no que via, enquanto Ladwys, que era uma bela mulher alta, de longos cabelos, olhos negros e um rosto nitidamente arrogante, se ria com a vitória do seu amante. Tanaburs, com um olho fechado e uma mão levantada para o céu, saltava numa perna só, sinais de que estava em comunhão sagrada com os Deuses enquanto lançava os seus feitiços da morte. Os guardas de Gundleus espalhavam-se por todo o lado com as lanças na horizontal para transformar esses feitiços da morte em realidade. Ligessac juntara-se aos soldados silurianos e ajudava os lanceiros a massacrar os seus próprios homens. Alguns dumnonianos tentaram lutar, mas tinham sido mobilizados para respeitar Gundleus e não para se oporem a ele e, por isso, os lanceiros silurianos acabaram rapidamente com os guardas de Mordred e ainda mais rapidamente com os miseráveis soldados de Druidan. Pela primeira vez na minha vida adulta vi homens a morrer nas pontas das lanças e ouvi os gritos terríveis dados por um homem quando a sua alma é mandada por uma lança para o Outro Mundo.
Durante alguns segundos fiquei sem saber o que fazer, completamente em pânico. Norwenna e Mordred estavam mortos, o Tor gritava e o inimigo corria em direcção à casa e à Torre de Merlim. Morgana e Hywel apareceram ao lado da torre, mas enquanto Hywel saltou para a frente empunhando a espada, Morgana fugiu pelo portão que dava para o mar. Uma multidão de mulheres, crianças e escravos fugiram com ela; um enorme e aterrorizado grupo de pessoas que Gundleus pareceu contente em deixar escapar. Ralla, Sebile e os deformados guardas de Druidan que conseguiram evitar os cruéis guerreiros silurianos também fugiram com eles. Pellinore, completamente nu, saltava na sua jaula dando gargalhadas e delirando com todo aquele horror.
Eu saltei das muralhas e corri para a casa. Não era a coragem que me levara a fazê-lo, era o amor que sentia por Nimue. Queria ter a certeza de que ela estava a salvo antes de eu próprio fugir do Tor. Os guardas de Ligessac estavam mortos e os homens de Gundleus começavam a pilhar as cabanas quando eu passei pela porta e corri em direcção aos aposentos de Merlim. Porém, antes de conseguir chegar à pequena porta preta tropecei no cabo de uma lança, caí pesadamente no chão e, depois, uma pequena mão agarrou-me pelo colarinho e, com uma força impressionante, arrastou-me para o meu antigo esconderijo, por detrás dos cestos com os panos para as festas.
Não a podes ajudar, seu tolo disse a voz de Druidan ao meu ouvido. Agora, fica calado e quieto!
Passados alguns segundos, Gundleus e Tanaburs entraram na sala e eu nada mais podia fazer senão ver o rei, o seu druida e três homens com um elmo a encaminharem-se para a porta de Merlim. Sabia o que ia acontecer e não o podia evitar, pois Druidan tapou-me a boca com a sua pequena, mas pesada mão para que eu não gritasse. Duvidava que Druidan tivesse corrido para a casa para salvar Nimue. Provavelmente tinha vindo para deitar a mão a todo o ouro que pudesse antes de fugir com o resto dos seus homens, mas a sua presença tinha, pelo menos, salvado a minha vida. Mas não salvou Nimue,
Tanaburs deu um pontapé na barreira-fantasma e, depois, empurrou a porta, abrindo-a. Gundleus meteu-se lá dentro, seguido pelos seus lanceiros.
Ouvi Nimue gritar. Não sei se estava a usar truques para defender o quarto de Merlim ou se já tinha abandonado toda a esperança. Mas sei que o orgulho e o poder a fizeram ficar para proteger os segredos do seu mestre e agora estava a pagar por esse orgulho. Ouvi Gundleus a rir-se, depois pouco mais ouvi excepto o som dos silurianos a mexer nas caixas, nos pacotes e nos cestos de Merlim. Nimue choramingava, Gundleus deu um grito de triunfo e, depois, de repente, ouvi Nimue gritar de dor.
Isto vai ensinar-te a cuspir no meu escudo, rapariga disse Gundleus a Nimue que soluçava indefesa.
Já foi violada disse Druidan ao meu ouvido com um prazer perverso.
Mais lanceiros de Gundleus passaram a correr pela sala e entraram no quarto de Merlim. Druidan tinha aberto um buraco na parede de vimes com a sua lança e agora ordenava-me que passasse pelo buraco e o seguisse pelo monte abaixo, mas eu não iria enquanto Nimue ainda vivesse.
Não tarda nada vão remexer nestes cestos avisou-me o anão, mas mesmo assim eu disse que não ia com ele.
És ainda mais tolo do que eu pensava, rapaz disse Druidan. Depois passou pelo buraco e desatou a correr na direcção de um espaço
escondido entre uma cabana e uma capoeira.
Eu fui salvo por Ligessac. Não por ele me ter visto, mas porque disse aos silurianos que não havia nada nos cestos que me escondiam excepto panos para banquetes.
Todo o tesouro está lá dentro disse ele aos seus novos aliados, e eu encolhi-me, não me atrevendo a mexer, enquanto os soldados vitoriosos de Gundleus saqueavam os aposentos de Merlim. Só os Deuses sabem o que eles encontraram: peles de homens mortos, ossos velhos, feitiçarias novas e antigos dardos de gnomos, mas que constituíam um precioso tesouro. E só os Deuses sabiam o que eles tinham feito a Nimue, pois ela nunca o diria, embora nem precisasse. Fizeram o que os soldados sempre fazem às mulheres que capturam e, quando terminaram, deixaram-na a sangrar e meio louca.
Deixaram-na também para morrer, pois após terem saqueado o quarto do tesouro e o terem encontrado cheio de porcarias bolorentas e apenas um pouco de ouro, agarraram num tição da lareira e atiraram-no para os cestos partidos. O fumo começou a sair por debaixo da porta. Atiraram outro tição a arder para os cestos onde eu estava escondido, depois os homens de Gundleus fugiram dali para fora. Alguns levavam ouro, outros tinham encontrado alguns objectos de prata, mas a maioria fugiu com as mãos vazias. Quando o último homem saiu, tapei a boca com uma ponta do meu colete de couro e corri por entre a fumarada sufocante para a porta de Merlim, e encontrei Nimue dentro do quarto.
Anda disse-lhe desesperado.
O ar estava cheio de fumo enquanto as chamas consumiam selvaticamente os cestos onde havia gatos a gritar e morcegos a esvoaçar dum lado para o outro em pânico.
Nimue não se mexia. Estava deitada de barriga para baixo, com as mãos a cobrir o rosto, nua e cheia de sangue nas pernas. Estava a chorar.
Corri para a porta que levava à Torre de Merlim, pensando que podíamos fugir por ali, mas quando abri a porta vi que nas paredes não havia nenhuma porta nem nenhuma janela. Também descobri que a torre, longe de ser uma sala do tesouro, estava praticamente vazia. O chão era de terra completamente vazio, as paredes de vimes e não tinha telhado. Era um aposento aberto para o céu, mas a metade da altura daquele funil, apoiada num par de vigas e para onde se subia por uma resistente escada, havia uma plataforma que o fumo obscurecia rapidamente. A torre era um aposento dos sonhos, um lugar sagrado onde chegariam em forma de eco os murmúrios dos Deuses. Olhei para a plataforma dos sonhos durante um segundo, mas logo apareceu mais fumo por trás de mim, subindo pela torre dos sonhos e eu corri outra vez para onde estava Nimue, agarrei na capa preta dela que estava em cima da cama em desalinho e enrolei o tecido de lã à volta dela como se fosse um animal ferido. Agarrei nas pontas da capa e, segurando o seu pequeno corpo como se fosse uma trouxa, atravessei com muito esforço o quarto dirigindo-me para a porta que parecia tão distante. O fogo rugia, com as labaredas esfomeadas a regalar-se com a madeira seca e eu sentia os olhos a chorar e os pulmões inflamados pelo fumo cerrado que se espraiava até à porta principal dos aposentos. Por isso arrastei Nimue com o corpo a bater no chão de terra atrás de mim, até onde Druidan tinha feito o buraco na parede. O meu coração batia forte por causa do terror que sentia quando espreitei pelo buraco da parede, mas não vi nenhum inimigo. Alarguei mais o buraco a pontapé, dobrando os ramos de salgueiro e partindo pedaços da cobertura de estuque e, depois, fiz um esforço sobre-humano para passar pelo buraco arrastando Nimue atrás de mim. Ela protestou quase sem se ouvir, quando a puxei bruscamente pelo tosco buraco, mas o ar fresco pareceu fazê-la voltar à vida, pois, finalmente fez um esforço para se recompor. Foi então que eu vi, quando ela tirou as mãos do rosto, porque é que o seu último grito fora tão terrível. Gundleus arrancara-lhe um dos olhos. A cavidade do olho era um poço de sangue sobre o qual ela colocou de novo a mão ensanguentada. A luta para passar no buraco defeituoso deixara-a nua. Arranquei, por isso, a capa que ficara presa num ramo quebrado e enrolei-lha à volta dos ombros antes de lhe segurar com força a mão, livre e correr para a cabana mais próxima. Um dos homens de Gundleus viu-nos e, depois, o próprio Gundleus reconheceu Nimue e gritou que a bruxa devia ser atirada viva para as chamas. O grito de perseguição foi ficando cada vez mais alto, transformando-se numa grande algazarra que parecia o som de caçadores a perseguir até à morte um javali ferido, e teríamos certamente sido apanhados se alguns dos outros fugitivos não tivessem rasgado uma abertura na paliçada do lado sul do Tor. Corri para o novo buraco, dando de caras com Hywel, o bom Hywel, que ali jazia morto com a muleta ao lado, com a cabeça cortada e a espada ainda na mão. Arranquei-lhe a espada da mão e continuei a puxar Nimue. Chegámos à íngreme encosta do lado sul e atirámo-nos para o chão, começando os dois a gritar enquanto escorregávamos pela erva em precipício. Nimue estava cega de um olho e completamente enlouquecida pela dor que sentia e eu estava completamente aterrorizado. No entanto, sem saber como, consegui agarrar na espada de guerra de Hywel e ajudar Nimue a levantar-se ao chegarmos ao sopé do Tor. Passámos a correr aos tropeções pelo poço sagrado, pelo pomar dos cristãos, por um matagal de amieiros e descemos até ao local onde eu sabia que estava atracado, ao lado da cabana de um pescador, o barco dos pântanos de Hywel. Atirei Nimue para o pequeno barco feito de feixes de juncos, cortei o cabo com a minha nova espada e empurrei o barco afastando-o da plataforma de madeira, só então me apercebendo de que não tinha a vara para guiar o tosco barco pelo complexo labirinto de canais e lagos que compunham o pântano. Usei então a espada. A lâmina de Hywel era uma péssima vara, mas era tudo o que eu tinha, até o primeiro perseguidor de Gundleus chegar à margem de canaviais e, incapaz de nos seguir pela água devido à glutinosa lama do pântano, nos ter atirado a lança.
A lança sibilou ao passar por mim. Durante um segundo não me consegui mexer, trespassado pela visão daquela pesada vara com a sua cabeça brilhante a ser lançada contra nós, mas depois a arma passou ao meu lado enterrando a lâmina na borda de cana do barco. Agarrei na haste da lança que abanava e usei-a como vara para conduzir rapidamente o barco em direcção aos cursos de água. Ali estávamos seguros. Alguns dos homens de Gundleus corriam por um passadiço de madeira paralelo ao curso que seguíamos, mas afastei-me rapidamente deles. Outros saltaram para pequenos botes só para uma pessoa, servindo-se das espadas como remos, mas nenhum bote daquele tipo conseguia igualar em velocidade um barco de juncos, pelo que os deixámos muito para trás. Ligessac lançou uma seta a arder, mas já estávamos fora do alcance dele e o seu míssil mergulhou sem ruído na água escura. Para trás dos nossos perseguidores frustrados, no cimo do verde Tor, as chamas devoravam as cabanas, a casa e a torre, fazendo elevar-se no céu azul de Verão colunas de fumo cinzento.
Duas chagas Nimue falou pela primeira vez desde que a tinha arrebatado das chamas.
O quê? perguntei, virando-me para ela.
Estava enroscada na proa, com a capa preta enrolada à volta do corpo franzino e com uma mão sobre o olho vazio.
Já sofri duas Chagas da Sabedoria, Derfel disse ela numa voz de assombro enlouquecido. A Chaga do Corpo e a Chaga do Orgulho. Agora tenho de enfrentar a loucura e, então, serei tão sábia como Merlim.
Tentou sorrir, mas havia uma ferocidade histérica na sua voz, o que me fez pensar se ela não estaria já sob o feitiço da loucura.
Mordred está morto disse-lhe eu, assim como Norwenna e Hywel. O Tor está a arder.
Todo o nosso mundo estava a ser destruído. No entanto, Nimue parecia estranhamente inabalável com aquela calamidade. Pelo contrário, ela quase parecia exultar por ter já suportado dois dos três testes da sabedoria.
Passei por uma linha de armadilhas para peixes e, depois, virei para o lago de Lissa, um grande lago escuro na ponta sul dos pântanos. Dirigia-me para a Aldeia de Ermid, uma aldeola de casebres de madeira onde Ermid, o chefe de uma tribo local, tinha a sua família. Eu sabia que Ermid não estava na povoação, pois tinha ido para Norte com Owain, mas o seu povo ajudar-nos-ia e eu também sabia que o nosso barco chegaria à povoação muito antes dos cavaleiros mais velozes de Gundleus conseguirem contornar, mesmo que a galopar, o lago, os canaviais e os pântanos. Teriam de ir quase até à estrada
Fosse, a grande estrada romana que saía do Tor para Leste, antes de contornarem a extremidade leste do lago e galoparem até à Aldeia de Ermid. Por essa altura já nós teríamos fugido para Sul. Eu via outros barcos à minha frente no lago e supus que os fugitivos do Tor estavam a ser levados para um lugar seguro pelos pescadores de Ynys Wydryn.
Contei a Nimue o meu plano de alcançar a Aldeia de Ermid e depois continuar para Sul até ao cair da noite ou até encontrarmos amigos.
Muito bem disse ela completamente indiferente, apesar de eu não estar certo de que ela tivesse entendido o que eu dissera. Meu bom Derfel acrescentou ela. Agora sei por que razão os Deuses me fizeram confiar em ti.
Tu confias em mim disse eu amargamente, e empurrei a lança até ao fundo do lago lamacento para impelir o barco para a frente porque eu te amo e isso dá-te poder sobre mim.
Muito bem disse ela outra vez, e nada mais disse até o nosso barco de canas deslizar até ao cais de desembarque sombreado pelas árvores, abaixo da paliçada de Ermid, onde, enquanto puxava ainda mais o barco para as sombras do ancoradouro, vi os outros fugitivos do Tor. Estava lá Morgana com Sebile, e também, Ralla que chorava com o seu filho a salvo nos braços ao lado de Gwlyddyn, o marido. Também lá estava Lunete, a rapariga irlandesa que correu a chorar para a margem para ajudar Nimue. Contei a Morgana da morte de Hywel e ela disse que vira Guendoloen, a mulher de Merlim, a ser retalhada por um siluriano. Gudovan estava salvo, mas ninguém sabia o que acontecera ao pobre Pellinore ou a Druidan. Nenhum dos guardas de Norwenna tinha sobrevivido, apesar de uma mão-cheia dos miseráveis soldados de Druidan ter alcançado a segurança incerta da Aldeia de Ermid, tal como três das aias de Norwenna, que não paravam de chorar, e uma dúzia das crianças abandonadas de Merlim.
Temos de partir imediatamente disse eu a Morgana. Eles andam atrás de Nimue.
As servas de Ermid puseram uma ligadura no olho de Nimue e deram-lhe roupa para vestir.
Não é atrás de Nimue que eles andam, idiota disse-me Morgana com brusquidão, mas sim de Mordred.
Mordred morreu! protestei, mas Morgana respondeu virando-se e pegando no bebé que Ralla tinha nos braços. Puxou o tecido castanho do corpo da criança e eu vi o pé torcido.
Por acaso achas, meu idiota disse-me Morgana que eu permitiria que matassem o nosso rei?
Olhei para Ralla e Gwlyddyn, perguntando-me como podiam ter deixado morrer o próprio filho. Foi Gwlyddyn quem respondeu ao meu olhar mudo.
Ele é um rei explicou ele simplesmente, apontando para Mordred ao passo que o nosso menino era apenas o filho de um carpinteiro.
E não tarda disse Morgana furiosa Gundleus vai descobrir que a criança que matou tem os dois pés perfeitos, e, então, vai trazer todos os homens que puder para nos procurar. Vamos para Sul.
Não estávamos em segurança na Aldeia de Ermid. O chefe e os seus guerreiros tinham ido para a guerra, deixando apenas uma mão-cheia de servos e de crianças na aldeola.
Partimos pouco depois do meio-dia, mergulhando nos bosques verdes a sul da povoação de Ermid. Um dos batedores de Ermid conduziu-nos por carreiros estreitos e caminhos secretos. Éramos um grupo de trinta pessoas, a maior parte mulheres e crianças, só com meia dúzia de homens capazes de carregar armas e desses apenas Gwlyddyn já tinha matado homens numa batalha. Os poucos loucos sobreviventes de Druidan não serviriam para nada e eu nunca tinha lutado com fúria, se bem que fosse agora a guardar a retaguarda com a espada de Hywel enfiada no meu cinto de corda e a pesada lança siluriana apertada na mão direita.
Passámos devagar pelos carvalhos e aveleiras. Da Aldeia de Ermid até Caer Cadarn não eram mais do que quatro horas a pé, se bem que nos fosse levar muito mais tempo, pois viajávamos em segredo, por caminhos indirectos e as crianças obrigavam-nos a abrandar. Morgana não dissera que tentaria chegar até Caer Cadarn, mas eu sabia que o santuário real era o seu provável destino, pois lá podíamos encontrar soldados dumnonianos. Mas Gundleus chegara sem dúvida à mesma conclusão e ele estava tão desesperado como nós. Morgana, que possuía uma sagaz capacidade de compreensão da maldade deste mundo, supunha que o rei siluriano estivera a preparar-se para esta guerra desde o Conselho Supremo, esperando apenas a morte de Uther para atacar, aliando-se a Gorfyddyd. Fôramos todos enganados. Considerávamos Gundleus um amigo e, por isso, ninguém tinha mantido guarda nas suas fronteiras e, agora, Gundleus procurava chegar a nada menos do que ao próprio trono de Dumnónia. Mas, disse-nos Morgana, para ele ganhar esse trono precisaria de mais do que um monte de cavaleiros, razão pela qual os seus lanceiros deviam estar a vir apressadamente pela comprida estrada romana que partia da costa norte de Dumnónia, para se encontrar com o seu rei. Os silurianos andavam à solta pelo nosso país, mas antes de Gundleus estar certo da sua vitória tinha de matar Mordred. Ele tinha de nos encontrar ou então todo o seu audacioso plano falharia.
O grande bosque amortecia os nossos passos. De vez em quando um pombo fazia barulho por entre as folhas das árvores, outras vezes, não muito longe, um pica-pau matraqueava um tronco de árvore. A determinada altura ouviu-se um grande barulho e o som de passadas por entre a vegetação rasteira, ali bem perto. Parámos todos, completamente imóveis, temendo um cavaleiro siluriano, mas era apenas um javali de longas presas que andava por ali aos tropeções, que olhou para nós e depois se foi embora. Mordred chorava e não aceitava o peito de Ralla. Algumas das crianças mais pequenas também choravam de medo e cansaço, mas calaram-se quando Morgana ameaçou transformá-los em sapos fedorentos.
Nimue coxeava à minha frente. Eu sabia que ela estava a sofrer, mas que não se queixaria. Às vezes chorava baixinho e nada do que Lunete dissesse a confortava. Lunete era uma rapariga magra e morena, da mesma idade de Nimue e até parecida com ela na aparência, mas não tinha os conhecimentos de Nimue nem o seu espírito visionário. Nimue conseguia olhar para um regato e vê-lo como a casa dos espíritos da água, enquanto Lunete o veria apenas como um bom lugar para lavar roupa. Algum tempo depois Lunete deixou-se ficar para trás para caminhar a meu lado.
O que nos vai acontecer agora, Derfel? perguntou.
Não sei.
Será que Merlim vai voltar?
Espero bem que sim disse eu. Ou talvez Artur volte. Falei com uma esperança fervorosa, mas incrédula, porque o que nós precisávamos era de um milagre. Mas, em vez disso, parecia que estávamos a viver um pesadelo em pleno dia, pois quando, ao fim de duas horas de caminhada, fomos obrigados a sair do bosque para atravessar um ribeiro profundo e sinuoso que corria por entre pastagens salpicadas de flores, vimos mais piras fumegantes no horizonte distante, para leste, embora não soubéssemos se os fogos tinham sido ateados por assaltantes silurianos ou por saxões que podiam estar a tirar vantagem da nossa fraqueza.
Um veado saiu a correr do bosque alguns metros para leste do sítio onde nos encontrávamos.
Para baixo sibilou a voz do batedor e todos nos afundámos na erva, na orla do bosque. Ralla obrigou Mordred a mamar para o silenciar e ele retaliou mordendo-a com tanta força que o sangue lhe pingou até à cintura, mas nem ela nem Mordred fizeram barulho quando o cavaleiro que assustara o veado apareceu no limiar do arvoredo. O cavaleiro estava também a leste, mas muito mais perto do que as piras, tão perto que se podia ver a máscara de raposa no seu escudo redondo. Trazia uma longa lança e uma corneta que fez soar depois de ter estado a olhar durante muito tempo na nossa direcção. Todos temíamos que aquele sinal significasse que o cavaleiro nos tinha visto e que num instante aparecesse um grande grupo de cavaleiros silurianos, mas quando o homem conduziu de novo o cavalo para o meio das árvores, percebemos que aquele lento sinal da corneta significava que não nos tinha visto. Lá ao longe soou outra corneta e, depois, fez-se silêncio.
Esperámos longos minutos. As abelhas zumbiam por entre os pastos que guarneciam o rio. Todos olhávamos para a linha de árvores, temendo ver mais cavaleiros armados, mas não apareceu nenhum inimigo e, passado algum tempo, o nosso guia disse em surdina que teríamos de rastejar até ao ribeiro, atravessá-lo e rastejar outra vez até às árvores da margem oposta.
Foi difícil e lenta a deslocação, principalmente para Morgana com a sua perna esquerda torcida, mas pelo menos tivemos a oportunidade de beber água enquanto atravessávamos o ribeiro, chapinhando. Já no bosque do outro lado do ribeiro, prosseguimos com as roupas encharcadas, mas também com um sentimento de alívio de que talvez tivéssemos deixado os nossos inimigos para trás. Mas não as nossas preocupações.
Será que nos vão transformar em escravos? perguntou-me Lunete.
Tal como muitos de nós, ela tinha sido inicialmente capturada para o mercado de escravos de Dumnónia e só a intervenção de Merlim a tinha mantido em liberdade. Agora temia que a perda da protecção de Merlim a levasse à morte.
Acho que não disse eu. Só se Gundleus ou os Saxões nos capturarem. Tu serias levada como escrava, mas a mim provavelmente matavam-me. Senti-me muito corajoso ao dizer aquilo.
Lunete meteu o braço no meu, buscando conforto, e eu senti-me lisonjeado com o gesto dela. Era uma rapariga bonita e até àquele dia tinha-me sempre tratado com desdém, preferindo a companhia dos jovens pescadores estouvados de Ynys Wydryn.
Eu quero que Merlim volte disse ela. Não quero deixar o Tor.
Lá, agora, já não há nada respondi. Vamos ter de encontrar um novo lugar para viver. Ou então voltar e reconstruir o Tor, se pudermos.
Mas só, pensei eu, se Dumnónia sobreviver. Talvez, naquele preciso momento, naquela tarde infestada pelo fumo, o reino estivesse a morrer. Perguntava-me como pudera ser tão cego que não vira os horrores que a morte de Uther traria. Os reinos precisam de reis e sem eles nada mais são do que terras vazias convidando as lanças dos conquistadores.
A meio da tarde atravessámos um ribeiro mais largo, quase um rio, tão profundo que a água me chegava ao peito enquanto a atravessava com dificuldade. Já na outra margem, sequei a espada de Hywel o melhor que pude. Era uma bela espada, feita pelos famosos ferreiros de Gwent e decorada com desenhos ondulados e círculos interligados. A lâmina era direita e estendia-se da minha garganta até às pontas dos dedos quando eu esticava o braço. A peça em cruz era feita de ferro grosso com remates redondos, enquanto os copos eram de madeira de macieira, fixados ao espigão e depois envolvidos em longas tiras de couro fino que tinham sido oleadas para ficarem mais suaves. O botão do punho era uma bola redonda envolvida em arame de prata que se estava sempre a soltar. Acabei por tirar o arame e fazer uma tosca pulseira para Lunete.
A sul do rio havia mais um vasto pasto, onde bois castrados andavam a pastar, deslocando-se pesadamente enquanto observavam a nossa passagem. Se calhar foi o movimento dos bois que atraiu os problemas, pois pouco tempo depois de termos entrado no bosque para lá do pasto ouvi cascos soar bem alto atrás de nós. Mandei um aviso para a frente e, depois, voltei-me, com a espada e a lança nas mãos, para observar o carreiro.
Naquele lugar os ramos das árvores cresciam muito baixos, tão baixos que um cavaleiro não podia cavalgar pelo carreiro. Fosse quem fosse que nos perseguisse teria de abandonar os cavalos e seguir-nos a pé. Nós não seguíamos pelos caminhos mais largos do bosque, mas sim pelos trilhos mais escondidos que abriam carreiros estreitos por entre as árvores, tão estreitos que os nossos perseguidores, tal como nós, teriam de seguir em fila. Eu temia que fossem batedores silurianos mandados à frente do pequeno batalhão de Gundleus. Quem mais estaria interessado em saber o que teria levado os bois da margem do rio a moverem-se naquela tarde indolente? Gwlyddyn chegou ao pé de mim e tirou-me a pesada lança da mão. Ouviu as passadas distantes, depois acenou com a cabeça como se estivesse satisfeito.
São só dois disse calmamente. Deixaram os cavalos e vêm a pé. Eu fico com o primeiro e tu aguentas o segundo até eu o poder matar. Falava de uma forma tão extraordinariamente calma que ajudou a abrandar o meu medo.
E lembra-te, Derfel acrescentou, eles também estão assustados. Empurrou-me para as sombras e, depois, agachou-se no carreiro, por detrás da massa de raízes de uma faia tombada.
Baixa-te disse-me com uma voz sibilante. Esconde-te! Baixei-me e, de repente, todo o terror brotou de novo dentro de mim.
Tinha as mãos a transpirar, a perna direita a tremer, a garganta seca, queria vomitar e sentia as entranhas a desfazer-se. Hywel ensinara-me bem, mas eu nunca enfrentara um homem que me quisesse matar. Ouvia os homens a aproximar-se, mas não os conseguia ver e o meu mais forte instinto era virar-me e correr atrás das mulheres. Mas fiquei ali. Não tinha escolha. Desde a infância que ouvia histórias de guerreiros e sempre me tinham ensinado que um homem nunca dava meia volta e desatava a correr. Um homem lutava pelo seu Senhor, um homem enfrentava corajosamente o seu inimigo e um homem nunca fugia. Agora o meu Senhor estava a mamar no peito de Ralla e eu enfrentava os seus inimigos, mas como eu queria ser uma criança e desatar a correr! E se houvesse mais do que dois lanceiros inimigos? E mesmo que só fossem dois seriam obrigatoriamente guerreiros experientes, habilidosos, insensíveis e que não temiam a própria morte.
Calma, rapaz, calma disse Gwlyddyn suavemente.
Ele lutara nas batalhas de Uther. Enfrentara os Saxões e erguera a sua lança contra os homens de Powys. Agora, no interior da sua terra natal, estava inclinado sobre um emaranhado de raízes com um meio sorriso no rosto e a minha longa lança nas suas mãos morenas e robustas.
Esta é a vingança pelo meu filho disse-me de modo sinistro e os Deuses estão do nosso lado.
Eu estava acocorado atrás de espinheiros e flanqueado por fetos. As minhas roupas molhadas estavam pesadas e eram desconfortáveis. Olhei para as árvores cobertas de líquenes e emaranhadas de folhas. Um pica-pau matraqueou perto dali e eu dei um salto, assustado. O meu esconderijo era melhor do que o de Gwlyddyn, mas mesmo assim sentia-me exposto, e muito mais me senti quando, finalmente, os nossos dois perseguidores apareceram a apenas uma dúzia de passos do meu abrigo de folhagem.
Eram dois lanceiros ágeis, ainda novos, com couraças de couro, polainas às tiras e longas capas castanho-avermelhadas atiradas sobre os ombros. Usavam a barba entrançada bem longa e o cabelo negro amarrado atrás com tiras de couro. Ambos traziam longas lanças e o segundo tinha também uma espada à cinta, apesar de ainda não a ter desembainhado. Sustive a respiração.
O homem da frente levantou um braço e ambos estacaram, ficando durante algum tempo à escuta antes de continuarem. O rosto do homem mais próximo estava coberto de cicatrizes de uma antiga luta e tinha a boca aberta, revelando as falhas nos dentes amarelados. Parecia imensamente forte, experiente e assustador e, de repente, senti-me completamente dominado por um desejo terrível de fugir, mas, depois, a cicatriz da minha mão esquerda, a cicatriz que Nimue fizera, latejou e aquela pulsação quente incutiu-me uma grande coragem.
O que ouvimos foi um veado disse o segundo homem depreciativamente.
Os dois avançavam em passo furtivo, pousando os pés com cuidado e observando as folhas à sua frente à espera do menor movimento.
Não, o que ouvimos foi uma criança insistiu o primeiro homem. Estava dois passos à frente do outro que, aos meus olhos assustados, parecia ainda mais alto e mais ameaçador do que o companheiro.
Os filhos da puta desapareceram disse o segundo homem. Vi o suor a escorrer-lhe do rosto e reparei que apertava repetidamente a haste de freixo da sua lança, percebendo que ele estava nervoso. Eu repetia vezes sem conta o nome de Bei na minha cabeça, pedindo coragem ao Deus e pedindo-lhe que fizesse de mim um homem. O inimigo estava agora a meia dúzia de passos, continuando a avançar, e à nossa volta o bosque verde estava quente e esbaforido e eu conseguia sentir o cheiro dos dois homens, o cheiro do couro e o cheiro que vinha dos seus cavalos enquanto o suor me escorria para os olhos e eu quase gritava de terror. Mas, nisto, Gwlyddyn saltou do seu esconderijo e deu um grito de guerra precipitando-se sobre eles.
Eu precipitei-me com ele e, de repente, libertei-me completamente do medo quando a louca alegria da batalha, conferida por Deus, me invadiu pela primeira vez. Mais tarde, muito mais tarde, aprendi que a alegria e o medo são exactamente a mesma coisa e que é a acção que faz passar do medo à alegria, mas naquela tarde de Verão senti-me subitamente exaltado. Que Deus e os seus anjos me perdoem, mas nesse dia descobri a alegria que existe na batalha e durante muito tempo ansiei por ela tal como um homem sequioso anseia por água. Corri para a frente, a gritar como Gwlyddyn, mas não estava louco ao ponto de o seguir às cegas. Desviei-me para o lado direito do estreito caminho para poder passar por ele quando ele atingiu o siluriano que estava mais próximo.
O homem tentou esquivar-se à lança de Gwlyddyn, mas o carpinteiro esperava o golpe baixo da haste de freixo e levantou a sua própria arma acima dela empurrando-a. Aconteceu tudo num ápice! Num momento o siluriano era uma figura ameaçadora vestido para a guerra e, no momento seguinte, estava a arquejar e a contrair-se enquanto Gwlyddyn enterrava profundamente a pesada lança no seu peito, trespassando a armadura de couro. E eu já tinha passado por ele, gritando e agitando no ar a espada de Hywel. Nesse momento não sentia medo, talvez porque a alma de Hywel morto tivesse voltado do Outro Mundo para me possuir, porque, de repente, eu sabia exactamente o que tinha de fazer e o meu grito de guerra era um grito de triunfo.
O segundo homem era de mais rija têmpera do que o companheiro moribundo e, por isso, tinha-se colocado na posição característica de um lanceiro, o que lhe permitiria saltar para a frente com um ímpeto mortal. Eu saltei sobre ele e, quando a lança se dirigiu a mim sob a forma de uma brilhante estocada de aço batida pelo sol, enrolei-me para o lado e desviei o golpe com a minha espada, não com muita força para não perder o controlo do aço, mas o suficiente para fazer a arma do homem passar ao meu lado direito enquanto eu fazia rodar a espada. "Está tudo nos pulsos, rapaz, tudo nos pulsos", ouvi Hywel dizer e gritei o seu nome quando enfiei com força a espada no lado do pescoço do siluriano.
Foi tudo muito rápido, muito rápido. O pulso manobra a espada, mas o braço dá-lhe força e, nessa tarde, o meu braço possuía a força portentosa de Hywel. O aço da minha espada enterrou-se no pescoço do siluriano como machado em madeira apodrecida. Como eu era inexperiente, a princípio pensei que o homem não tinha morrido e puxei a espada para o golpear de novo. Dei o segundo golpe e vi o sangue avivar o dia e o homem cair para o lado, ao mesmo tempo que ouvia a sua respiração ofegante e o seu esforço moribundo para puxar a lança para um segundo golpe, mas, nessa altura, a vida sumiu-se-lhe na garganta e o sangue jorrou de novo em torrente pelo seu peito envolto na armadura de couro e ele afundou-se no solo coberto de folhas.
E eu fiquei ali a tremer. De repente quis chorar. Não fazia ideia do que tinha feito. Não sentia a vitória, só culpa, e fiquei completamente imóvel, em estado de choque, com a espada ainda cravada na garganta do homem onde já pousavam as primeiras moscas. Não me conseguia mexer.
Um pássaro piou alto nos ramos das árvores e, depois, Gwlyddyn pôs o seu braço forte à volta dos meus ombros e as lágrimas correram-me pela cara abaixo.
És um bom homem disse Gwlyddyn e eu virei-me para ele e abracei-o como uma criança se agarra ao pai.
Muito bem repetia ele sem parar, muito bem.
Ele afagou-me desajeitadamente até que, por fim, funguei para parar de chorar.
Desculpa ouvi-me dizer.
Desculpa? e riu-se. Porquê? Hywel sempre disse que tu eras o melhor de todos os que ele treinou e eu devia ter acreditado. És rápido. Agora vamos, temos de ver o que ganhámos.
Peguei na bainha da espada da minha vítima feita de couro esticado com varas de salgueiro e vi que servia mais ou menos para a espada de Hywel, depois revistámos os dois corpos e conseguimos um pequeno saque: uma maçã verde, uma velha moeda já lisa de tanto uso, duas capas, as armas, algumas tiras de couro e uma faca com cabo de osso. Gwlyddyn não sabia se devíamos voltar atrás para ir buscar os dois cavalos, mas depois decidiu que não tínhamos tempo. Eu não me importei. A minha visão podia estar embaciada pelas lágrimas, mas eu estava vivo, tinha morto um homem, tinha defendido o meu rei e, subitamente, senti-me muito contente, quase delirante, enquanto Gwlyddyn me guiou até aos fugitivos assustados e me levantou o braço em sinal de que tinha lutado bem
Fizeram barulho que se fartaram, os dois disse Morgana com rispidez. Não tarda nada teremos metade da Silúria no nosso encalço. Agora vamos! Mexam-se!
Nimue não parecia interessada na minha vitória, mas Lunete quis que eu lhe contasse tudo e eu, ao contar, exagerei tanto no inimigo como na luta, e a admiração de Lunete gerou ainda mais exagero. Estava outra vez de braço dado comigo e eu olhei para o seu rosto de olhos negros e pensei como é que nunca tinha realmente notado como ela era bonita. Tal como Nimue tinha um rosto em forma de cunha, mas enquanto Nimue possuía uma sabedoria circunspecta, Lunete era agradável e possuía uma excitação traquina. A sua proximidade deu-me nova confiança enquanto continuávamos a andar naquela longa tarde até que, finalmente, virámos para Leste na direcção dos montes sobre os quais a fortaleza de Caer Cadarn se erguia como um garboso cavaleiro.
Uma hora mais tarde estávamos no limiar do bosque em frente a Caer Cadarn. Já era tarde, mas estávamos em pleno Verão e o Sol ainda ia alto no céu, banhando com a sua luz suave as muralhas oeste de Caer Cadarn, tingindo-as de um brilho esverdeado. Estávamos a pouco mais de um quilómetro da fortaleza, mas ainda assim suficientemente perto para ver as paliçadas amarelas no cimo das muralhas, suficientemente perto para ver que não havia guardas nessas muralhas e que não saía fumo da pequena aldeia que existia lá dentro.
Mas também não havia nenhum inimigo à vista, pelo que Morgana decidiu atravessar a terra aberta e subir o caminho oeste até à fortaleza do rei. Gwlyddyn argumentou que devíamos ficar na floresta até ao cair da noite, ou então ir para Lindinis, a povoação mais próxima, mas Gwlyddyn era um carpinteiro e Morgana uma senhora de alta linhagem, pelo que ele se rendeu aos desejos dela.
Saímos para a terra de pastagens e as nossas sombras espalharam-se à nossa frente. A erva fora comida por veados ou pelos bois, mas à medida que caminhávamos sentíamos que era macia e fresca. Nimue, que parecia estar ainda naquele transe provocado pela dor, tirara os sapatos emprestados e caminhava descalça. Um falcão voou por cima de nós e, depois, uma lebre, assustada com o nosso súbito aparecimento, saltou de um buraco de erva e fugiu com ligeireza.
Seguimos um caminho ladeado por centáureas azuis, margaridas, tasneiras e cornisos. Atrás de nós, ensombrados pela obliquidade do Sol sobre o Oeste, os bosques pareciam escuros. Estávamos cansados e esfarrapados, mas o fim da viagem estava à vista e alguns de nós até parecíamos alegres. Trazíamos Mordred para o local onde nascera, para o monte real de Dumnónia, mas antes de chegarmos a meio daquele glorioso refúgio de verdura, o inimigo apareceu por trás de nós.
O bando de guerreiros de Gundleus apareceu. Não apenas os cavaleiros que tinham atacado Ynys Wydryn nessa manhã, mas também os lanceiros. Gundleus sempre soubera para onde nós vínhamos e, por isso, trouxera os cavaleiros sobreviventes e mais de cem lanceiros para aquele lugar sagrado dos reis de Dumnónia. E, mesmo que não fosse obrigado a seguir o rei menino, ainda assim Gundleus viria a Caer Cadarn, pois não queria nada menos do que a coroa de Dumnónia, e era em Caer Cadarn que essa coroa era outorgada ao governante. Quem reinasse em Caer Cadarn, reinava em Dumnónia, e o velho ditado continuava, e quem reinasse em Dumnónia reinava na Grã-Bretanha.
Os cavaleiros silurianos cavalgavam à frente dos lanceiros. Levariam apenas alguns minutos a chegar até nós e eu sabia que nenhum de nós, nem mesmo os corredores mais velozes, podia chegar às longas encostas da fortaleza antes daqueles cavaleiros se precipitarem sobre nós com as suas espadas contundentes e as lanças penetrantes. Fui para o lado de Nimue e vi que o seu rosto magro estava cansado e contorcido e que o olho que ainda lhe restava estava ferido e cheio de lágrimas.
Nimue disse eu.
Está tudo bem, Derfel Ela parecia aborrecida por eu querer tomar conta dela.
Cheguei à conclusão de que estava mesmo louca. De todos os seres vivos que sobreviveram àquele dia terrível, ela tinha sobrevivido à pior experiência de todas e isso levara-a para um lugar que eu não conseguia alcançar nem compreender.
Eu amo-te disse-lhe eu, tentando tocar-lhe a alma com ternura
A mim? Não é à Lunete? disse Nimue furiosa.
Não olhava para mim, mas sim na direcção da fortaleza. Virei-me para olhar para os cavaleiros que se aproximavam e que haviam formado uma longa fila como que decididos a fazer uma limpeza geral. Traziam as capas nas garupas dos cavalos, as espadas embainhadas penduradas ao lado das botas que balouçavam, e o sol reflectia-se nas pontas das lanças e iluminava o estandarte da raposa. Gundleus cavalgava atrás do estandarte, trazendo na cabeça o elmo de ferro com a cauda de raposa ao alto. Ladwys vinha ao lado dele, com uma espada na mão, enquanto Tanaburs, com a longa túnica a adejar ao vento, montava um cavalo cinzento mesmo ao lado do seu rei. Eu ia morrer, pensei, justamente no dia em que me tornara homem e aperceber-me disso pareceu-me por demais cruel.
Corram! gritou Morgana de repente. Corram!
Pensei que ela tinha entrado em pânico e não lhe queria obedecer, pois achava que seria mais nobre ficar e morrer como um homem do que ser golpeado por trás como um fugitivo. Depois vi que ela não estava em pânico e que, afinal, Caer Cadarn não estava deserta, mas sim que os portões se tinham aberto e que uma torrente de homens corria e cavalgava pelo caminho abaixo. Os cavaleiros estavam vestidos como os de Gundleus, mas estes traziam nos braços os escudos com o dragão de Mordred.
Corremos. Puxei Nimue pelo braço enquanto os cavalos dumnonianos cavalgavam velozmente na nossa direcção. Havia uma dúzia de cavaleiros não eram muitos, mas eram suficientes para dificultar o avanço dos homens de Gundleus enquanto atrás dos cavaleiros vinha um bando de lanceiros dumnonianos.
Cinquenta lanças disse Gwlyddyn. Estivera a contar os homens do grupo de salvamento. Não os podemos vencer com cinquenta acrescentou de forma sinistra, mas talvez nos possamos proteger.
Gundleus chegava à mesma conclusão e chefiava agora os seus cavaleiros conduzindo-os de maneira a formarem uma curva larga que os levaria a flanquear os lanceiros dumnonianos que se aproximavam. Queria cortar-nos a retirada, pois assim que juntasse os seus inimigos num só espaço, podia matar-nos a todos quer fôssemos sete ou setenta. Gundleus estava em vantagem numérica e, tendo saído da fortaleza, os dumnonianos tinham sacrificado a sua vantagem em altura.
Os cavaleiros dumnonianos passaram por nós atroadores, arrancando os cascos dos cavalos pedaços de erva do pasto viçoso. Estes não eram os fabulosos cavaleiros de Artur, os homens blindados que, como meteoritos, atingiam em cheio o seu objectivo, mas batedores pouco armados, que normalmente desmontariam antes de entrar na batalha, mas que agora formavam um escudo protector entre nós e os lanceiros silurianos. Momentos depois chegaram os nossos lanceiros e fizeram a sua muralha de escudos.
Aquela muralha deu-nos a todos uma nova confiança, uma confiança que quase tocou as raias da imprudência quando vimos quem chefiava o grupo de salvamento. Era Owain, o poderoso Owain, o campeão do rei e o maior lutador de toda a Grã-Bretanha. Tínhamos pensado que Owain estava longe, no Norte, a lutar ao lado dos homens de Gwent nas montanhas de Powys, mas, afinal ele estava ali em Caer Cadarn.
No entanto, a verdade é que Gundleus ainda mantinha a vantagem. Éramos doze cavaleiros, cinquenta lanceiros e trinta fugitivos cansados, todos juntos num espaço aberto onde Gundleus tinha reunido quase o dobro de cavaleiros e o dobro de lanceiros.
O sol ainda brilhava. Deviam faltar duas horas para o crepúsculo e quatro para ser noite fechada, o que dava a Gundleus tempo mais do que suficiente para acabar a sua carnificina, se bem que primeiro tivesse tentado persuadir-nos com palavras. Chegou-se mais à frente, esplêndido no seu cavalo que espumava de cansaço e com o escudo virado em sinal de tréguas.
Homens de Dumnónia disse ele, entregai-me a criança e eu vou-me embora!
Ninguém respondeu. Owain escondera-se no centro da nossa muralha de escudos para que Gundleus, não vendo um chefe, se dirigisse a todos nós.
É uma criança estropiada disse o rei siluriano. Amaldiçoada pelos Deuses. Acham que um país governado por um rei coxo pode ser bafejado pela sorte? Querem as colheitas atacadas pelo míldio? Querem que os vossos filhos nasçam doentes? Querem o gado a morrer com as epidemias? Querem que os Saxões sejam os senhores desta terra? O que mais poderá trazer um rei estropiado senão má sorte?
Ninguém respondeu. No entanto, sabe Deus quantos homens nas nossas fileiras alinhadas à pressa não terão temido que Gundleus estivesse a falar verdade.
O rei siluriano tirou o elmo da cabeça e sorriu perante o nosso estado lamentável.
Todos viverão prometeu ele, desde que me entreguem a criança Esperou por uma resposta que não veio. Quem vos chefia? perguntou por fim.
Eu! Owain, finalmente, passou por entre as fileiras para ocupar o seu lugar à frente da nossa linha de escudos.
Owain Gundleus reconheceu-o, e pareceu-me detectar um brilho de medo nos olhos de Gundleus.
Tal como nós ele não sabia que Owain tinha regressado ao coração de Dumnónia. No entanto, Gundleus estava ainda confiante na sua vitória, mesmo sabendo que com Owain entre os seus inimigos essa vitória seria muito mais difícil.
Lorde Owain disse Gundleus dando a Owain o título apropriado, filho de Eilynon e neto de Culvas. Eu vos saúdo! Gundleus ergueu a ponta da lança para o Sol. Vós tendes um filho, Lorde Owain.
Muitos homens têm filhos respondeu Owain descuidadamente. O que tendes vós com isso?
Quereis que o vosso filho fique órfão de pai? perguntou Gundleus. Quereis ver as vossas terras devastadas? A vossa casa queimada? Quereis que a vossa mulher sirva de brinquedo para os meus homens?
A minha mulher disse Owain era capaz de levar a melhor sobre todos os teus homens e sobre ti também. Queres brinquedos, Gundleus? Volta para a tua puta apontou com o queixo na direcção de Ladwys e se tu não partilhas a tua puta com os teus homens então Dumnónia pode dispensar à Silúria algumas ovelhas que se sintam solitárias a provocação de Owain animou-nos.
Ele parecia indomado com a sua longa espada massiva e o seu escudo revestido a ferro. Lutava sempre de cabeça descoberta, desdenhando do elmo, e os seus braços cheios de músculos estavam tatuados com o dragão de Dumnónia e o seu próprio símbolo que era um javali com longas presas.
Entregai-me a criança! Gundleus ignorou os insultos, sabendo que eram apenas provocações de um homem prestes a enfrentar uma batalha. Dai-me o rei estropiado!
Dá-me a tua puta, Gundleus retrucou Owain. Não és homem que chegue para ela. Dá-ma e podes ir em paz.
Gundleus cuspiu.
Os bardos hão-de cantar a tua morte, Owain. A canção do sangrar do porco.
Owain enterrou a sua pesada espada no solo com o cabo para baixo.
O porco vai ficar aqui, Gundleus Meilyr, rei da Silúria gritou ele e aqui o porco ou morre ou mija sobre o teu cadáver. Agora vai-te embora!
Gundleus sorriu, encolheu os ombros e virou o cavalo. Também virou o seu escudo, mostrando que teríamos luta.
Foi a minha primeira batalha.
Os cavaleiros dumnonianos cerraram fileiras atrás da nossa linha de lanças para proteger as mulheres e as crianças enquanto pudessem. Nós, os restantes, dispusemo-nos na linha de batalha, observando enquanto os nossos inimigos faziam o mesmo. Ligessac, o traidor, estava entre as fileiras silurianas. Tanaburs executava os rituais, saltando numa perna, com uma mão levantada e um olho fechado à frente da muralha de escudos de Gundleus enquanto esta avançava lentamente sobre a erva. Só depois de Tanaburs ter terminado o seu feitiço protector é que os silurianos começaram a lançar-nos insultos. Avisaram-nos do massacre que estava para acontecer e alardearam quantos de nós iam matar. Contudo, reparei que avançavam devagar e que todos pararam quando estavam apenas a cinquenta passos de distância. Alguns dos nossos homens escarneceram da cobardia deles, mas Owain resmungou que nos calássemos.
As duas frentes de batalha encaravam-se. Nenhuma se moveu.
Era necessária muita coragem para atacar uma linha de escudos e lanças. Era por isso que tantos homens bebiam antes da luta. Eu já vira exércitos parados durante horas enquanto reuniam coragem para atacar, e quanto mais velho é o guerreiro mais coragem é precisa. As tropas jovens atacam e morrem, mas os homens mais velhos sabem quão terrível uma muralha de escudos inimiga pode ser. Eu não tinha escudo, mas estava protegido pelos escudos dos que estavam ao meu lado e os escudos deles tocavam outros e assim sucessivamente, de forma a que cada atacante fosse recebido por uma muralha de madeira revestida a couro, mas com lanças de pontas afiadas bem levantadas.
Os silurianos começaram a bater com as hastes das lanças nos escudos. O som matraqueado tinha a intenção de nos perturbar e conseguiu-o, se bem que nenhum dos do nosso lado mostrasse medo. Limitámo-nos a amontoar-nos em desordem à espera do ataque.
Primeiro vai haver falsos ataques, rapaz avisou-me o meu vizinho, e mal ele tinha acabado de falar um grupo de silurianos correu, saindo aos gritos da sua linha e lançando com violência as longas lanças para o centro da nossa defesa. Os nossos homens inclinaram-se, as lanças bateram nos nossos escudos e, de repente, toda a linha siluriana começou a avançar, mas Owain ordenou imediatamente que a nossa linha se levantasse e marchasse também e esse movimento deliberado travou o ataque ameaçador do inimigo. Os nossos homens, cujos escudos tinham sido atingidos pelas lanças inimigas, soltaram as armas e, depois, voltaram à muralha de escudos.
Recuar! ordenou Owain.
Ele estava a tentar recuar vagarosamente, procurando atravessar o resto do pasto que faltava até Caer Cadarn, esperando que os silurianos não conseguissem ganhar coragem para atacar enquanto nós completávamos aquela longa e lastimável jornada. Para nos dar mais coragem, Owain deu largos passos à frente da nossa linha e gritou para Gundleus para que lutasse com ele de homem para homem.
Acaso és uma mulher, Gundleus? perguntou o campeão do nosso rei. Perdeste a coragem? Hidromel a mais? Por que não voltas para o teu tear, mulher? Volta para os teus bordados! Volta para a tua roca!
Nós fomos recuando, recuando, recuando cada vez mais, mas de repente um ataque dos nossos inimigos obrigou-nos a parar e a esconder-nos por detrás dos nossos escudos quando as lanças foram atiradas. Uma delas passou mesmo por cima da minha cabeça, como uma súbita rajada de vento, mas mais uma vez o ataque não passara de uma simulação, para nos provocar o pânico. Ligessac disparava setas, mas devia estar bêbado, pois os seus disparos passavam bem acima das nossas cabeças. Owain serviu de alvo para uma dúzia de setas, mas a maior parte não acertou e as outras ele desviou-as desdenhosamente com a sua própria lança ou com o escudo, antes de zombar dos atiradores.
Quem vos ensinou a ser lanceiros? As vossas mães? E cuspiu na direcção do inimigo. Anda Gundleus! Luta comigo! Mostra aos teus moços de cozinha que és um rei e não um rato!
Os silurianos batiam com as hastes das lanças nos escudos para abafar os insultos de Owain. Ele virou-lhes as costas, mostrando o seu desprezo e recuou devagar para a nossa linha de escudos.
Para trás disse-nos suavemente para trás.
Depois dois dos silurianos atiraram as armas e os escudos para o chão e rasgaram as roupas para lutar nus. O meu vizinho cuspiu.
Agora vai haver problemas avisou-me de modo sinistro.
Os homens nus deviam estar bêbados ou então estavam tão inebriados pelos Deuses que acreditavam que nenhuma espada inimiga os poderia ferir. Eu já ouvira falar desse tipo de homens e sabia que o seu exemplo suicida era normalmente o sinal de um ataque a sério. Agarrei na minha espada e tentei fazer um juramento de que morreria com dignidade, mas na verdade apetecia-me mais chorar com pena de tudo o que estava a acontecer. Tinha-me tornado homem nesse dia e agora ia morrer. Ia juntar-me a Uther e a Hywel no Outro Mundo e ali esperar durante anos de trevas até a minha alma encontrar outro corpo humano no qual pudesse regressar a este mundo verdejante.
Os dois homens desamarraram o cabelo, pegaram nas lanças e nas espadas e começaram a dançar na frente da linha siluriana. Uivavam enquanto se preparavam para o delírio da batalha, naquele estado de êxtase descuidado que levava um homem a tentar qualquer façanha. Gundleus montado no cavalo por detrás do estandarte sorria para os homens que tinham o corpo todo tatuado com figuras azuis. As crianças choravam atrás de nós e as mulheres rezavam aos Deuses enquanto os homens dançavam cada vez mais perto, com as lanças e as espadas a rodopiar à luz do sol daquele fim de tarde. Homens como aqueles não precisavam de escudos nem de roupas nem de armaduras. Os Deuses eram a sua protecção e a glória a sua recompensa e, se conseguissem matar Owain, os bardos cantariam a sua vitória durante longos anos. Avançaram um de cada lado do nosso campeão que equilibrava a sua lança enquanto se preparava para enfrentar o ataque enlouquecido que marcaria também o início do ataque de toda a linha inimiga.
E foi então que a corneta soou.
A corneta soltou uma nota clara e fria como eu nunca tinha ouvido. Havia pureza naquela corneta, uma pureza fria e firme como não existia em toda a terra. Soou a primeira vez, soou a segunda, e o segundo toque foi suficiente para fazer parar até os homens nus e fazê-los olhar para leste, de onde viera o som.
Eu também olhei.
E fiquei deslumbrado. Era como se um novo sol se tivesse levantado naquele dia já a chegar ao fim. A luz espalhava-se pelas pastagens, cegando-nos, confundindo-nos, mas depois a luz deslocou-se suavemente e vi que era apenas o reflexo do verdadeiro sol num escudo tão polido que parecia um espelho. Mas aquele escudo era segurado por um homem como eu nunca tinha visto antes: um homem magnificente, um homem montado num cavalo magnífico e acompanhado por outros homens como ele. Uma horda, de homens surpreendentes, homens emplumados, homens vestidos de armaduras, homens saídos dos sonhos dos Deuses para virem para aquele campo assassino, e sobre as cabeças emplumadas desses homens flutuava ao vento um estandarte que eu viria a amar mais do que qualquer outro em toda a terra de Deus. Era o estandarte do urso.
A corneta soou uma terceira vez e, de súbito, eu senti que ia viver e comecei a chorar de alegria. Todos os nossos lanceiros choravam e gritavam ao mesmo tempo e a terra estremecia sob os cascos dos cavalos daqueles homens que pareciam deuses e que vinham para nos salvar.
Artur tinha, finalmente, chegado.
O Noivado da Princesa
Igraine não está satisfeita. Ela quer histórias sobre a infância de Artur. Ouviu falar de uma espada numa pedra e quer que eu escreva sobre isso. Diz-me que ele foi gerado numa rainha por um espírito e que na noite do seu nascimento os céus ribombaram com os trovões. Talvez ela tenha razão, talvez os céus tivessem troado, mas todas as pessoas com quem eu falara não tinham ouvido nada. Quanto à espada na pedra, bem, havia uma espada e havia uma pedra, mas o seu lugar na história é muito mais recente. A espada chamava-se Caledfwlch, que significa "raio forte" apesar de Igraine preferir chamar-lhe Excalibur e é assim que eu também a chamarei, porque Artur nunca se importou com o nome da sua longa espada. Também nunca se importou com a sua infância, pois eu nunca o ouvi falar nela. Uma vez fiz-lhe perguntas sobre os seus tempos de criança e ele não respondeu.
O que significa o ovo para a águia? perguntou-me e, depois, disse-me que nascera, vivera e se tornara soldado e que isso era tudo o que eu precisava de saber.
Mas por Igraine, minha justa e generosa protectora, vou escrever o pouco que fiquei a saber a seu respeito. Artur, apesar do desmentido de Uther em Glevum, era filho do Rei Supremo, se bem que poucas vantagens isso lhe trouxesse, pois Uther concebeu tantos bastardos como um gato faz gatinhos. A mãe de Artur chamava-se Igraine, como a minha preciosa rainha. Ela veio de Caer Gei em Gwynedd e diz-se que era filha de Cunedda, rei de Gwynedd e Rei Supremo antes de Uther, mas Igraine não era princesa, pois a sua mãe não era a mulher de Cunedda, sendo sim casada com um chefe militar de Henis Wyren. Tudo o que Artur alguma vez disse de Igraine de Gwynedd, que morreu quando ele começava a tornar-se um homem, é que ela era a mãe mais bonita, mais inteligente e mais maravilhosa que algum rapaz podia desejar. Mas, e segundo Cei, que conhecia bem Igraine, a beleza dela era aguçada por um talento cheio de rancor. Cei é o filho de Ector Ednywain, o chefe de Caer Gei, que levou Igraine e os seus quatro bastardos para sua casa, quando Uther os rejeitou. Essa rejeição aconteceu no ano em que Artur nasceu e Igraine nunca perdoou ao filho por isso. Costumava dizer que Artur era um filho a mais e que estava convencida de que teria sido a amante de Uther para sempre se Artur não tivesse nascido.
Artur era o quarto filho de Igraine a sobreviver à infância. As outras três crianças eram todas raparigas e é evidente que Uther gostava que os seus bastardos fossem raparigas, pois eram menos capazes de fazer exigências sobre o seu património quando crescessem. Cei e Artur cresceram juntos e Cei diz, mas sempre sem Artur ouvir, que tanto ele como Artur tinham medo de Igraine. Disse-me que Artur era um rapaz obediente e esforçado que sempre lutara para ser o melhor em tudo, desde a leitura até à luta com a espada, mas nada do que conseguia alcançar agradava à mãe, embora Artur sempre a tivesse adorado e defendido e tivesse chorado, inconsolável, quando ela morreu de uma febre. Artur tinha então treze anos e Ector, o seu protector, apelou a Uther para que ajudasse os quatro pobres órfãos de Igraine. Uther levou-os para Caer Cadarn, provavelmente porque pensou que as filhas seriam peças úteis no jogo dos casamentos dinásticos. O casamento de Morgana com um príncipe de Kernow durou pouco devido ao fogo, mas Morgause casou com o rei Lot de Lothian e Anna desposou o rei Budic Camran da Bretanha. Estes dois últimos não eram casamentos importantes, pois nenhum dos reis estava suficientemente perto para enviar reforços para Dumnónia em tempo de guerra, mas ambos serviram os seus pequenos propósitos. Artur, sendo rapaz, não tinha essa utilidade, pelo que foi para a corte de Uther e aprendeu a usar a espada e a lança. Também conheceu Merlim, embora nunca nenhum deles tivesse falado muito sobre o que se passara entre ambos naqueles meses antes de Artur, sem esperança de receber qualquer nomeação de Uther, seguir a sua irmã Anna até à Bretanha. Aí, durante o tumulto de Gaul, Artur mostrou-se um grande soldado e Anna, sempre consciente de que um irmão guerreiro era um parente valioso, informou Uther das suas proezas. E foi por isso que Uther trouxe Artur de novo para a Grã-Bretanha para a campanha que acabou com a morte do seu filho. O resto já todos sabem.
Agora já contei a Igraine tudo o que sabia sobre a infância de Artur e sem dúvida que ela vai embelezar a história com as lendas que as pessoas contam sobre ele. Igraine leva estas peles uma a uma e Dafydd Gruffud, o oficial de justiça, que fala a língua saxónica, transcreve-as para a língua própria da Grã-Bretanha. Não acredito que quer ele quer Igraine deixem de alterar estas palavras com as suas próprias fantasias. Há alturas em que gostaria de me atrever a contar esta história na língua britânica, mas o bispo Sansum, a quem Deus estima acima de todos os santos, ainda suspeita do que escrevo. Às vezes tenta acabar com este meu trabalho, quando não manda mesmo os descendentes de Satanás para me estorvarem. Um dia foram as minhas penas que desapareceram todas, num outro dia encontrei urina no tinteiro, mas Igraine repõe sempre tudo e Sansum, a não ser que aprenda a ler e a dominar a língua saxónica, não pode confirmar as suas suspeitas de que este trabalho não é, na verdade, um Evangelho em saxão.
Igraine insiste para que eu escreva mais e mais depressa, e roga-me que conte a verdade sobre Artur, mas depois queixa-se, quando essa verdade não corresponde aos contos de fadas que ouve na cozinha de Caer ou no seu quarto de vestir. O que ela quer é ouvir falar das caçadas a monstros que mudam de forma, mas eu não posso inventar o que não vi. É verdade, que Deus me perdoe, que mudei algumas coisas, mas nada de importante. Assim, quando Artur nos salvou na batalha em frente a Caer Cadarn, apercebi-me que ele viria muito antes de ele aparecer, pois Owain e os seus homens sempre souberam que Artur e os seus cavaleiros, acabados de chegar da Bretanha, estavam escondidos nos bosques a norte de Caer Cadarn, tal como sabiam que o bando de guerreiros de Gundleus se estava a aproximar. O erro de Gundleus foi incendiar o Tor, pois o fumo serviu de sinal de aviso para a parte sul do país e os batedores armados de Owain estavam já a observar os movimentos dos homens de Gundleus desde o meio-dia. Owain, tendo ajudado Agrícola a superar a invasão de Gorfyddyd, tinha regressado rapidamente para Sul para saudar Artur, não só pela amizade que os unia, mas sobretudo para estar presente quando um senhor da guerra rival chegasse ao reino, e foi uma sorte para nós que Owain tivesse regressado. Ainda assim, a batalha nunca poderia ter acontecido da forma como a descrevi. Se Owain não tivesse sabido que Artur estava perto, teria entregue Mordred ao seu cavaleiro mais veloz para levar a criança para um lugar seguro, mesmo que todos nós morrêssemos sob as lanças de Gundleus. É claro que eu podia ter escrito essa verdade, mas os bardos mostraram-me como moldar uma história de forma a manter os ouvintes à espera da parte que mais querem ouvir, e acho que a história só tem a ganhar se guardarmos a notícia da chegada de Artur até ao último minuto. É um pequeno pecado, este de moldar as histórias, mas Deus sabe que Sansum nunca me perdoaria.
Continua o Inverno aqui em Dinnewrac e o frio é cada vez mais cortante, mas o rei Brochvael ordenou que Sansum acendesse as lareiras depois de o irmão Aron ter sido encontrado morto pelo frio na sua cela. O santo recusou, até que o rei mandou lenha do seu Caer e, por isso, agora temos lareiras, apesar de não serem muitas nem muito grandes. Todavia, mesmo uma pequena fogueira torna a escrita mais fácil e ultimamente o abençoado santo Sansum tem sido menos metediço. Dois noviços juntaram-se ao nosso pequeno rebanho, dois rapazolas que não paravam de falar, e Sansum tomara a seu cargo a tarefa de os treinar à maneira do Nosso Mais Precioso Salvador. É tal o cuidado do santo com as suas almas imortais que até insiste para os rapazes partilharem da sua cela e parece um homem mais feliz na companhia deles. Agradeço a Deus que assim seja, e também a dádiva do fogo e a força que me dá para continuar esta história de Artur, o Rei que Nunca Existiu, o Inimigo de Deus e o nosso Senhor das Batalhas.
Não quero tornar-me aborrecido com os pormenores da luta em frente a Caer Cadarn. Foi um tumulto, não uma batalha, e só escapou uma mão-cheia de silurianos. Ligessac, o traidor, foi um dos que escapou, mas a maior parte dos homens de Gundleus foi capturada. Morreram muitos inimigos, incluindo os dois lutadores nus que tombaram sob a lança de Owain. Gundleus, Ladwys e Tanaburs foram todos apanhados vivos. Eu não matei ninguém. Nem sequer amolguei a minha espada.
Também não me lembro de muito do que se passou naquele tumulto, pois tudo o que queria fazer era olhar para Artur.
Ele montava Llamrei, a sua égua, um animal enorme e negro com topetes felpudos e ferraduras de ferro apertadas aos cascos com tiras de couro. Todos os homens de Artur cavalgavam animais igualmente corpulentos e de narinas rasgadas para poderem respirar com mais facilidade. Os animais pareciam ainda mais assustadores devido aos extraordinários escudos de couro rígido pendurados à frente para lhes proteger o peito dos golpes das lanças. Os escudos eram tão espessos e incómodos que os cavalos não podiam baixar as cabeças para pastar no fim da batalha e Artur ordenou a um dos seus lacaios que tirasse o escudo para que Llamrei pudesse comer. Cada um dos cavalos precisava de dois lacaios: um para tratar do escudo do cavalo, do tecido que o cobria e da sela, e o outro para guiar o cavalo pelo freio, enquanto um terceiro servo carregava a lança e o escudo do guerreiro. Artur tinha uma longa e pesada lança chamada Rhongomyniad enquanto o escudo, o Wynebgwrthucher, era feito de tábuas de salgueiro cobertas com uma camada de prata batida, tão polida que ofuscava. Pendurada à ilharga trazia a faca chamada Carnwenhau e a famosa espada Excalibur na sua bainha preta adornada com fios de ouro cruzados.
De início não conseguia ver-lhe o rosto, pois tinha a cabeça coberta por um elmo com grandes peças de protecção das faces que lhe ensombravam as feições. O elmo com as fendas para os olhos e o buraco escuro para a boca, era feito de ferro polido decorado com espirais em prata e tinha ao alto uma grande pluma de penas brancas de ganso. Havia naquele elmo lívido alguma coisa que lembrava a morte. Era em forma de uma caveira e o seu aspecto terrível deixava adivinhar que quem o usava era um morto-vivo. A sua capa era branca, tal como a pluma. Trazia a capa, que ele exigia sempre limpa, sobre os ombros para afastar o sol da sua cota com armadura de lâminas metálicas em forma de escamas. Eu nunca tinha visto armaduras daquelas, embora Hywel me tivesse falado delas e, ao ver Artur, senti um desejo irresistível de ter uma cota assim. A armadura era romana, feita de centenas de placas de ferro que não eram maiores do que a ponta do polegar, cosidas em filas sobrepostas por cima de uma cota de couro até ao joelho. As placas eram quadradas em cima, com dois buracos para o fio de coser, e pontiagudas em baixo e as escamas eram sobrepostas de forma a que uma lança encontrasse sempre duas camadas de ferro antes de bater no couro resistente por trás das escamas. A rígida armadura tilintava quando Artur se mexia, e não era apenas som de ferro, pois os seus ferreiros tinham acrescentado uma fila de placas de ouro à volta do pescoço e espalhado escamas de prata por entre o ferro polido, para que toda a cota parecesse cintilar. Exigia horas de polimento diariamente para evitar que o ferro enferrujasse e depois de cada batalha faltavam sempre algumas placas que teriam de ser reforjadas. Eram poucos os ferreiros que conseguiam fazer uma cota daquelas e muito poucos homens tinham possibilidade de comprar uma, mas Artur tinha tirado a sua a um chefe militar franco que matara na Armórica. Além do elmo, da capa e da cota de escamas, usava botas de couro, luvas de couro e cinto de couro onde estava suspensa a Excalibur na sua bainha adornada com a cruz que, supostamente, protegia de todos os males quem a usava. Para mim, deslumbrado com a sua chegada, ele parecia um deus branco e reluzente a descer à terra, e não conseguia tirar os olhos dele.
Abraçou Owain e ouvi-os rir. Owain era um homem alto, mas Artur conseguia olhá-lo nos olhos, apesar de não ser avantajado como Owain. Owain era só músculos e corpulência, enquanto Artur era um homem magro, mas de rija têmpera. Owain deu fortes palmadas nas costas de Artur e este retribuiu o gesto de afecto antes de se dirigirem, cada um com o braço nas costas do outro, para onde Ralla estava com Mordred ao colo.
Artur ajoelhou-se perante o seu rei e, com uma delicadeza surpreendente para um homem com tão pesada armadura, levantou uma mão enluvada para segurar a bainha do manto do bebé, e empurrando para trás as peças protectoras do rosto, beijou o manto. Mordred reagiu gritando e debatendo-se.
Artur levantou-se e estendeu os braços na direcção de Morgana. Ela era mais velha do que o irmão, que ainda só tinha vinte e cinco ou vinte e seis anos, mas, quando ele lhe estendeu os braços, começou a chorar por detrás da sua máscara de ouro que tocou ao de leve no elmo de Artur quando se abraçaram. Ele apertou-a contra o peito e deu-lhe palmadinhas nas costas.
Querida Morgana ouvi-o dizer, doce e querida Morgana. Nunca me tinha apercebido de como Morgana se sentia sozinha até a ver chorar nos braços do irmão.
Ele afastou-a com delicadeza e, depois, com as duas mãos, tirou o elmo cinza-prateado da cabeça.
Tenho um presente para ti disse ele a Morgana, pelo menos penso que tenho, a não ser que Hygwydd o tenha roubado. Onde estás, Hygwydd?
O servo Hygwydd correu para ele e pegou no elmo com a pluma branca, entregando ao seu senhor um colar de dentes de urso, embutidos em encaixes de ouro presos a uma corrente também de ouro que Artur colocou no pescoço da irmã.
Uma coisa bonita para a minha adorável irmã disse.
Depois insistiu em saber quem era Ralla e, quando lhe contaram a história da morte do seu filho, o rosto dele mostrou tanta dor e simpatia que Ralla começou a chorar e Artur a abraçou num impulso, quase esmagando o rei menino contra o peito protegido pela armadura. A seguir Gwlyddyn foi-lhe apresentado e contou a Artur como eu tinha morto um siluriano para proteger Mordred. Então, Artur virou-se para me agradecer.
E, pela primeira vez, olhei directamente para o seu rosto.
Era um rosto que irradiava bondade. Essa foi a minha primeira impressão. Não, isso é o que Igraine quer que eu escreva. Na verdade, a primeira coisa em que reparei foi que ele suava muito, suava de mais por estar metido naquela armadura de metal num dia de Verão, mas depois do suor reparei como ele tinha um ar bondoso. Confiava-se em Artur à primeira vista. Era por isso que as mulheres sempre gostaram de Artur, não por ele ser bonito, pois não era assim tão belo, mas porque olhava para as pessoas com um interesse genuíno e uma clara benevolência. Tinha um rosto forte e ossudo cheio de entusiasmo e um vasto cabelo castanho-escuro que, na primeira vez que o vi, estava empastado e colado à cabeça devido ao revestimento de couro do elmo. Tinha olhos castanhos, um nariz comprido e um maxilar firme e sem barba, mas a sua característica mais notável era a boca, invulgarmente grande e adornada por uma dentadura sem falhas. Ele orgulhava-se dos seus dentes e todos os dias os limpava com sal, quando o conseguia encontrar, ou só com água quando não conseguia. Era um rosto grande e vigoroso, no entanto o que mais me impressionou nele foi aquele olhar bondoso e o humor endiabrado do seu olhar. Havia um ar de satisfação em Artur, alguma coisa no seu rosto irradiava uma felicidade que nos abrangia na sua aura. Naquele momento, e também mais tarde, reparei como homens e mulheres ficavam mais alegres quando Artur estava perto deles. Todos ficavam mais optimistas, ouviam-se mais risos e, quando ele partia, seguia-se um profundo marasmo. No entanto Artur não era um homem de espírito nem um contador de histórias, era simplesmente Artur, um bom homem com uma confiança contagiante, uma vontade impaciente e uma determinação de ferro. A princípio não se notava essa solidez e o próprio Artur fingia que ela não existia, mas existia. Os túmulos nos campos de batalha testemunhavam essa solidez.
Gwlyddyn disse-me que eras saxão! disse ele, trocista.
Meu senhor foi tudo o que consegui dizer, caindo de joelhos. Ele inclinou-se e levantou-me pelos ombros. O seu toque era firme.
Eu não sou rei, Derfel disse, não te ajoelhes perante mim, eu é que devia ajoelhar-me perante ti por teres arriscado a tua vida para salvar o nosso rei. Sorriu. Por isso, eu te agradeço.
Ele tinha a capacidade de nos fazer sentir que ninguém no mundo era tão importante para ele como nós. Comecei a adorá-lo a partir desse instante.
Quantos anos tens? perguntou-me.
Quinze, acho eu.
Mas já pareces ter vinte. Sorriu. Quem te ensinou a lutar?
Hywel respondi. O administrador de Merlim.
Ah! O melhor professor de todos! Também fui ensinado por ele. E como está o bom Hywel? A pergunta foi feita com ansiedade, mas eu não tive nem palavras nem coragem para responder.
Morto. Morgana respondeu por mim. Assassinado por Gundleus. E cuspiu pelo orifício da boca da sua máscara na direcção do rei capturado e bem guardado a alguns passos dela.
Hywel morto? Artur dirigiu-me a pergunta, olhos nos olhos, e eu assenti inclinando a cabeça, mas tive de pestanejar para as lágrimas não correrem. Nesse instante, Artur abraçou-me. És um bom homem, Derfel, e eu devo-te uma recompensa por teres salvo a vida do nosso rei. O que queres?
Ser um guerreiro, Senhor disse eu. Ele sorriu e afastou-se de mim.
És um homem de sorte, Derfel, porque és aquilo que queres ser. Lorde Owain? Virou-se para o corpulento campeão cheio de tatuagens.
Tens serventia para este bom guerreiro saxão?
Tenho, sim concordou Owain de imediato.
Então, aqui tens o teu homem disse Artur. Mas deve ter sentido o meu desapontamento, pois virou-se para trás e pôs-me a mão no ombro.
Por agora, Derfel disse suavemente, eu emprego cavaleiros e não lanceiros. Deixa que Owain seja o teu senhor, pois não há ninguém melhor para te ensinar o ofício de soldado.
Apertou-me o ombro com a mão enluvada e, depois, virou-se e acenou com a mão para que os dois guardas ao lado de Gundleus se afastassem. Juntara-se uma multidão à volta do rei capturado que estava sob os estandartes dos vencedores. Os cavaleiros de Artur, com elmos de ferro, armaduras de couro revestidas a ferro e capas de linho ou lã, misturados com os lanceiros de Owain e com os fugitivos do Tor, todos espalhados pelo espaço verde das pastagens, onde agora Artur encarava Gundleus.
Gundleus endireitou as costas. Estava desarmado, mas não abandonava o seu orgulho e nem sequer estremeceu quando Artur se aproximou.
Artur caminhou em silêncio, parando a dois passos do rei capturado. A multidão conteve a respiração. Gundleus estava coberto pela sombra do estandarte de Artur que ostentava um urso preto sobre um fundo branco.
O urso flutuava ao vento entre o estandarte do dragão de Mordred, que fora recuperado, e o estandarte do javali de Owain, enquanto aos pés de Gundleus estava caído o seu próprio estandarte da raposa. Os vencedores tinham-no pisado, cuspido e urinado sobre ele. Gundleus viu Artur desembainhar a Excalibur. O aço da lâmina era de um tom azulado e estava tão polido como a cota de escamas, o elmo e o escudo.
Esperávamos o golpe fatal, mas, em vez disso, Artur pôs um joelho em terra e levantou os copos da Excalibur para Gundleus.
Senhor disse ele humildemente, e a multidão, que antecipara a morte de Gundleus, sobressaltou-se.
Gundleus hesitou por um momento, depois tocou no botão do punho da espada. Não disse uma palavra. Talvez estivesse atónito de mais para falar. Artur levantou-se e embainhou a espada.
Eu fiz um juramento para proteger o meu rei disse ele não para matar reis. O que vos vai acontecer, Gundleus Meilyr, não me cabe a mim decidir, mas sereis mantido como cativo até a decisão ser tomada.
Quem tomará essa decisão? perguntou Gundleus.
Artur hesitou, claramente indeciso quanto à resposta. Muitos dos nossos guerreiros gritavam pedindo a morte de Gundleus, Morgana instigava o irmão a vingar Norwenna enquanto Nimue gritava que lhe desse o rei cativo para ela se vingar, mas Artur abanou a cabeça. Muito mais tarde explicou-me que Gundleus era primo de Gorfyddyd, rei de Powys, e esse facto fazia da morte de Gundleus um assunto de estado, não de vingança.
Eu queria paz e a paz raramente surge da vingança admitiu ele, mas se calhar devia tê-lo morto. Não que isso fizesse muita diferença.
Mas agora, enfrentando Gundleus, à luz do sol em declínio às portas de Caer Cadarn, limitou-se a dizer que o destino de Gundleus estava nas mãos do conselho de Dumnónia.
E quanto a Ladwys? perguntou Gundleus, fazendo um gesto na direcção da mulher alta, de rosto pálido de morte que estava perto dele com o terror estampado no olhar. Peço-vos que permitam que ela fique comigo acrescentou ele.
Essa puta é minha disse Owain bruscamente. Ladwys sacudiu a cabeça e aproximou-se mais de Gundleus.
Ela é minha mulher! protestou Gundleus a Artur, confirmando assim os velhos rumores de que tinha realmente casado com a sua amada de baixa linhagem. Isso também significava que ele casara falsamente com Norwenna, embora esse pecado, comparado com o resto que lhe fizera, fosse muito pequeno.
Mulher ou não insistiu Owain ela é minha. Ele viu a hesitação de Artur. Até que o conselho decida de outro modo acrescentou, fazendo deliberadamente eco da invocação de Artur dessa autoridade superior.
Artur pareceu perturbado com a reivindicação de Owain, mas a sua posição em Dumnónia era ainda incerta, pois apesar de ter sido nomeado protector de Mordred e um dos senhores da guerra do reino, isso só lhe conferia autoridade igual à de Owain. Todos nós havíamos notado como Artur tomara o comando durante o tumulto siluriano, mas Owain, ao exigir Ladwys para sua escrava, estava a lembrar a Artur que possuía um poder igual ao seu. O momento foi embaraçoso até que Artur sacrificou Ladwys à unidade dumnoniana.
Owain já decidiu a questão disse ele a Gundleus, virando-se em seguida para não testemunhar o efeito das suas palavras nos amantes.
Ladwys gritou, protestando, mas depois quedou-se em silêncio enquanto um dos homens de Owain a arrastava dali.
Tanaburs ria-se da angústia de Ladwys. Visto que era um druida, nenhum mal lhe seria infligido. Era prisioneiro, mas livre para partir, embora tivesse de deixar o campo sem comida nem bênção e completamente sozinho. Porém, encorajado pelos acontecimentos do dia, não o podia deixar partir sem falar e, por isso, segui-o pelo pasto por onde estavam espalhados os mortos silurianos.
Tanaburs! chamei-o.
O druida virou-se e viu-me desembainhar a espada.
Cuidado, rapaz disse ele e fez um sinal de aviso com o seu bastão com a ponta em forma de lua.
Eu devia ter sentido medo, mas senti um novo espírito de guerreiro a crescer dentro de mim enquanto me aproximava mais dele e encostava a espada à sua barba branca emaranhada. Ele inclinou a cabeça para trás, quando sentiu o toque do aço, fazendo chocalhar os ossos amarelos amarrados ao cabelo. O seu rosto era moreno e crivado de rugas e manchas, os olhos eram vermelhos e o nariz torcido.
Eu devia matar-te disse eu.
E serás perseguido pela maldição da Grã-Bretanha. A tua alma nunca chegará ao Outro Mundo, sofrerás tormentos ocultos sem conta e esses tormentos serão da minha autoria.
Cuspiu na minha direcção e depois, tentou afastar a lâmina da barba, mas eu segurei com firmeza os copos da espada e ele, subitamente, pareceu assustado ao aperceber-se da a força que eu tinha.
Alguns espectadores curiosos tinham-me seguido e tentaram avisar-me do destino terrível que me atormentaria se eu matasse um druida, mas eu não tencionava matar o velho. Queria apenas assustá-lo.
Há dez anos ou mais disse eu entraste na herdade de Madog. Madog era o homem que escravizara a minha mãe e cuja herdade fora atacada pelo jovem Gundleus.
Tanaburs acenou afirmativamente, quando se lembrou desse ataque.
Pois foi, pois foi. Um bom dia, esse! Pilhámos muito ouro disse e muitos escravos!
E tu fizeste um poço da morte disse eu.
E então? Encolheu os ombros e olhou-me de soslaio. Tinha de agradecer aos Deuses pela boa sorte.
Eu sorri e deixei a ponta da espada tocar-lhe a garganta.
E então, Druida, é que eu sobrevivi, eu sobrevivi.
Tanaburs demorou alguns segundos a entender o que eu acabara de dizer, mas depois empalideceu e estremeceu, pois sabia que eu era a única pessoa de toda a Grã-Bretanha que tinha o poder de o matar. Ele sacrificara-me aos Deuses, mas o seu descuido em não se certificar do destino da oferenda que lhes tinha feito significava que os Deuses tinham deixado à minha guarda o poder sobre a sua vida. Gritou aterrorizado, pensando que a minha espada se ia enterrar na sua garganta, mas eu afastei o aço da sua barba imunda e ri-me dele. Ele virou-se e fugiu aos tropeções, correndo pelos campos fora. Estava desesperado para me escapar, mas mesmo antes de chegar ao bosque, para onde tinha fugido o punhado de sobreviventes silurianos, ele virou-se e apontou-me uma mão ossuda.
A tua mãe está viva, rapaz! gritou ele. Ela está viva! Depois desapareceu.
Eu fiquei ali de boca aberta, com a espada na mão. Não fui assaltado por nenhuma emoção em particular, pois quase não me lembrava da minha mãe e não tinha qualquer recordação de ter existido amor entre nós. Porém, só o pensar que ela estava viva abalou todo o meu mundo tão violentamente como o tinha abalado a destruição da casa de Merlim, nessa manhã. Abanei a cabeça. Como podia Tanaburs lembrar-se de uma escrava entre tantas? O que ele dissera era com certeza falso, apenas palavras para me perturbar, nada mais. Embainhei por isso a espada e dirigi-me vagarosamente para a fortaleza
Gundleus foi colocado sob vigilância num dos aposentos fora da casa principal em Caer Cadarn. Houve uma grande festa nessa noite, mas, como havia muita gente na fortaleza, as porções de carne eram poucas e foram cozinhadas à pressa. Durante a maior parte da noite, velhos amigos trocaram notícias sobre a Grã-Bretanha e a Bretanha, pois muitos dos seguidores de Artur eram originários de Dumnónia ou de outros reinos britânicos. Os nomes dos homens de Artur baralhavam-se-me na mente, pois havia mais de setenta cavaleiros no seu bando, e ainda lacaios, servos, mulheres e um grupo de crianças. Houve tempos em que os nomes dos guerreiros de Artur se tornaram familiares, mas nessa noite nada significavam para mim Dagonet, Aglaval, Cei, Lanval, os irmãos Balan e Balin, Gawain e Agravam, Blaise, Illtyd, Eiddilig e Bedwyr. Reparei em Morfans porque era o homem mais feio que eu já vira, tão feio que até tinha orgulho no seu olhar vesgo, no pescoço flácido e inchado, nos lábios leporinos e no queixo que não chegava a existir. Também reparei em Sagramor, pois era negro e eu nunca tinha visto, nem sequer imaginado, homens assim. Era um homem alto, magro e amargamente lacónico. No entanto, quando o persuadiam a contar uma história e ele a contava em britânico, mas com um sotaque horrível, conseguia enfeitiçar toda a sala.
E é claro que também reparei em Ailleann. Era uma mulher esbelta e de cabelo negro, alguns anos mais velha do que Artur, com um rosto fino, sério e afável que lhe dava um ar de grande sabedoria. Nessa noite usava jóias reais e uma túnica de linho tingido de vermelho-ferrugem, com um pesado cinto de prata e mangas largas e compridas debruadas com pele de lontra. Trazia um colar de ouro pesado e reluzente em redor do seu longo pescoço, pulseiras de ouro nos pulsos e, ao peito, um pregador esmaltado em forma de urso, o símbolo de Artur. Movimentava-se graciosamente, falava pouco e olhava para Artur com um olhar protector. Tudo me fazia crer que devia ser uma rainha, ou, pelo menos, uma princesa, excepto o facto de transportar tigelas de comida e copos de hidromel como uma simples serva.
Ailleann é uma escrava, meu rapaz disse Morfans, o Feio.
Ele estava acocorado à minha frente no chão da sala e vira-me a observar aquela mulher alta deslocando-se de um local iluminado para as sombras tremeluzentes da sala.
Escrava de quem? perguntei.
De quem achas que é? E em seguida meteu uma costeleta de porco na boca e separou a suculenta carne do osso com os dois dentes que lhe restavam. De Artur continuou ele depois de ter atirado o osso a um dos muitos cães que ali estavam. E, claro, que além de escrava é também sua amante. Arrotou e, depois, bebeu de um copo de chifre. Ela foi-lhe oferecida pelo cunhado, o rei Budic. Já faz muito tempo. Ela é bem mais velha do que Artur e acho que Budic pensava que ele não a manteria por muito tempo, mas quando Artur se afeiçoa a alguém parece durar para sempre. Aqueles rapazes gémeos são filhos dela e apontou com a barba engordurada para o fundo da sala onde dois rapazes com cerca de nove anos e ar macambúzio estavam sentados no chão imundo com as respectivas tigelas de comida à sua frente.
São filhos de Artur? perguntei.
E de mais ninguém disse Morfans com ironia. Amhar e Loholt é como se chamam e o pai adora-os. Nada é bom demais para aqueles bastardos daqueles filhos da puta, e é exactamente isso que eles são, meu rapaz, uns bastardos, uns filhos da puta. Uns filhos da puta que não servem para nada. Havia puro ódio na sua voz. Há que dizê-lo, meu filho, Artur Uther é um grande homem. É o melhor soldado que já conheci, o homem mais generoso e o senhor mais justo, mas quando se trata de educar os filhos, eu era capaz de fazer melhor, mesmo tendo uma porca como mãe.
Olhei outra vez para Ailleann.
São casados?
Morfans deu uma gargalhada.
Claro que não! Mas ela tem-no feito feliz durante estes dez anos Lembra-te que chegará o dia em que ele a mandará embora tal como o seu pai fez com a sua mãe. Artur casará com qualquer coisa que venha da realeza, que não terá metade da amabilidade de Ailleann, mas é isso que os homens como Artur têm de fazer. Têm de casar bem. Não é como tu e eu, rapaz. Nós podemos casar com o que quisermos, desde que não seja da realeza. Ouve o que te digo!
Sorriu com ironia quando, lá fora, um grito de mulher rasgou a noite. Owain deixara a sala e Ladwys estava evidentemente a aprender os seus novos deveres. Artur estremeceu com esse som e Ailleann levantou a elegante cabeça e olhou-o com o semblante carregado; mas, além deles, a única pessoa que se apercebeu da angústia de Ladwys foi Nimue. O seu rosto coberto com a ligadura estava triste e deformado, mas o grito fê-la sorrir por causa do tormento que sabia que o som provocaria em Gundleus. Nimue não sentia piedade, nem uma só gota. Ela já tinha pedido permissão a Artur e a Owain para ser ela própria a matar Gundleus e eles haviam recusado. Porém, enquanto Nimue vivesse, Gundleus saberia o que era o medo.
No dia seguinte, Artur levou um grupo de cavaleiros a Ynys Wydryn e regressou nessa noite informando que a casa e todas as cabanas do Tor tinham desaparecido consumidas pelas chamas. Os cavaleiros também regressaram trazendo o pobre louco Pellinore e um druidan indignado que se abrigara num poço que pertencia aos monges do Espinheiro Sagrado. Artur anunciou a sua intenção de reconstruir a casa de Merlim, embora não soubéssemos como o faria sem dinheiro e sem um exército de trabalhadores, e Gwlyddyn foi formalmente nomeado construtor real de Mordred e foram-lhe dadas instruções para começar a cortar árvores para refazer os edifícios do Tor. Pellinore foi fechado num armazém feito de pedra, vazio, junto à vivenda romana em Lindinis, que era a aldeia mais próxima de Caer Cadarn e o local onde se abrigaram as mulheres, as crianças e os escravos que seguiam os homens de Artur. Artur organizou tudo. Foi sempre um homem inquieto que detestava estar sem fazer nada e, naqueles primeiros dias após a captura de Gundleus, trabalhou desde o amanhecer até muito depois do Sol pôr. Passou a maior parte do tempo a preparar o sustento dos seus seguidores; as terras reais tinham de ser distribuídas por eles e as casas tinham de ser alargadas para as suas famílias, tudo sem provocar o desagrado das pessoas que já viviam em Lindinis. A própria vivenda pertencera a Uther e, agora, Artur ficara com ela para si. Para ele nenhuma tarefa era demasiado banal e, uma manhã, cheguei a encontrá-lo a tentar levantar uma chapa de chumbo.
Dá-me uma ajuda, Derfel! pediu. Senti-me lisonjeado por ele se lembrar do meu nome e corri a ajudá-lo a levantar o pesado objecto. Bom material, este! disse ele alegremente. Ele estava de tronco nu e ficou com a pele suja por causa do chumbo que tencionava cortar em tiras para revestir a calha de pedra que outrora transportara água de uma nascente até ao interior da vivenda. Os Romanos levaram o chumbo todo quando se foram embora explicou e é por isso que as condutas de água não funcionam. Devíamos pôr as minas a funcionar de novo. Pousou a sua ponta da chapa de chumbo e limpou a testa. Pôr as minas a funcionar, reconstruir as pontes, calcetar os vaus, cavar represas e descobrir uma forma de convencer os Sais a voltar para casa. É trabalho suficiente para a vida de um homem, não achas?
Sim, meu Senhor respondi nervoso, sem entender por que razão um senhor da guerra se ocupava a reparar condutas de água. O conselho ia reunir-se mais tarde, nesse mesmo dia, e eu pensava que Artur estaria ocupado de mais com esse assunto, mas ele parecia mais preocupado com o chumbo do que com assuntos de Estado.
Não sei se o chumbo é serrado ou se é cortado com uma faca disse ele pesaroso. Tenho de saber. Vou perguntar a Gwlyddyn. Ele parece saber tudo. Sabias que se quisermos usar troncos de árvores como colunas temos de os colocar de pernas para o ar?
Não, meu Senhor.
Evita que a humidade suba, percebes, e que a madeira apodreça. É o que Gwlyddyn diz. Eu gosto deste tipo de conhecimentos. São conhecimentos bons, práticos, o tipo de conhecimentos que faz andar o mundo. Sorriu-me de esguelha. E então, estás a gostar de Owain? perguntou ele.
Ele é bom para mim respondi, embaraçado com a pergunta. Na verdade eu ainda me sentia nervoso em relação a Owain, apesar de ele nunca ter sido rude comigo.
Ele tem de te tratar bem disse Artur. A reputação de todos os chefes depende de terem bons homens ou não.
Mas eu preferia servir-vos a vós, Senhor disse eu abruptamente, com a indiscrição da juventude.
Ele sorriu.
Servirás, Derfel, servirás. Na devida altura. Se passares a prova da luta. Fez esta observação casualmente, mas mais tarde pensei se ele não estaria a prever o que estava para vir.
Na devida altura passei o exame de Owain, mas foi difícil e talvez Artur quisesse que eu aprendesse essa lição antes de me juntar ao seu bando de guerreiros. Inclinou-se outra vez para a chapa de chumbo, mas depois endireitou-se, quando se ouviu um grito que atravessou o velho edifício. Era Pellinore, protestando contra a sua prisão.
Owain diz que devíamos mandar o pobre Pellinore para a ilha dos Mortos disse Artur, referindo-se à ilha para onde eram mandados os loucos violentos. O que achas?
Fiquei tão admirado por ele me ter perguntado aquilo que a princípio não respondi. Depois balbuciei que Pellinore era amado por Merlim, que Merlim o queria entre os vivos e que eu pensava que os desejos de Merlim deviam ser respeitados. Artur escutou-me muito sério e pareceu até grato pelo meu conselho. Claro que ele não precisava do meu conselho; estava apenas a tentar fazer que eu me sentisse com valor. Então, Pellinore pode ficar aqui, rapaz disse ele. Agora pega no outro lado. Levanta!
No dia seguinte Lindinis ficou vazia. Morgana e Nimue regressaram a Ynys Wydryn onde planeavam reconstruir o Tor. Nimue ignorou a minha despedida. O olho ainda a fazia sofrer, estava mais amarga e não queria nada da vida senão vingar-se de Gundleus, o que lhe tinha sido negado. Artur foi para Norte para ajudar Tewdric a reforçar a fronteira norte de Gwent enquanto eu fiquei com Owain, que fixara residência na casa principal de Caer Cadarn. Eu podia ser um guerreiro, mas naquela altura do Verão era mais importante juntar-me aos que faziam a colheita do que ficar de guarda nas muralhas da fortaleza. Por isso, durante dias pus de parte a minha espada, o elmo, o escudo e a couraça de couro que herdara de um siluriano morto e fui para os campos do rei ajudar os servos a colher o centeio, a cevada e o trigo. Era um trabalho árduo feito com uma foice de cabo curto que precisava de ser constantemente afiada num objecto próprio para tal: era um bastão de madeira que, primeiro, era mergulhado em banha de porco e depois revestido com areia fina que servia para afiar a lâmina da foice, que para mim nunca estava suficientemente afiada e, na condição física em que eu me encontrava, ter de estar sempre a dobrar-me a puxar os cereais com força fez-me ficar com dores nas costas e com os músculos doridos. Eu nunca tinha trabalhado tanto e tão duramente no Tor, mas agora tinha deixado o mundo privilegiado de Merlim e fazia parte das tropas de Owain.
Fizemos medas com os cereais cortados nos campos. Depois, transportámos vários montes de palha de centeio em carroças para Caer Cadarn e para Lindinis. A palha foi usada para reparar os telhados de colmo e encher de novo os colchões. Assim, durante alguns ditosos dias as nossas camas estiveram livres dos piolhos e das pulgas, apesar dessa bênção não durar muito. Foi nessa altura que cresceu a minha primeira barba, meia dúzia de pêlos dourados dos quais eu me sentia excessivamente orgulhoso. Passava os dias a fazer trabalhos nos campos que me deixavam as costas partidas e ainda tinha de aguentar duas horas de treino militar todas as noites. Hywel ensinara-me bem, mas Owain queria melhor.
Aquele siluriano que mataste disse-me Owain uma noite em que eu, nas muralhas de Caer Cadarn, transpirava depois de uma luta de bastão com um guerreiro chamado Mapon, aposto o soldo de um mês contra um rato morto em como o mataste com o gume da espada.
Não aceitei a aposta, mas confirmei que tinha realmente dado um golpe com a espada como se fosse um machado. Owain riu-se, depois dispensou Mapon com um aceno de mão.
Hywel ensinava sempre a lutar com o gume da espada disse Owain. Observa Artur na próxima vez que ele lutar. Golpeia, golpeia, como um homem a ceifar o feno. E, dizendo isto, desembainhou a sua própria espada. Usa a ponta, rapaz disse ele. Usa sempre a ponta. Mata mais depressa. E lançou-se na minha direcção, fazendo-me desviar desesperado. Se usas a orla da espada disse ele significa que estás em campo aberto. A muralha de escudos desfez-se e, se foi a tua muralha de escudos que se desfez, então és um homem morto, por mais hábil que sejas. Mas, se a muralha de escudos se mantém firme, isso significa que estás ombro com ombro e não tens espaço para fazer girar a espada, apenas para dar uma estocada. Impeliu de novo a espada na minha direcção, fazendo-me desviar. Porque pensas que os Romanos tinham espadas pequenas? perguntou-me.
Não sei, meu Senhor.
Porque uma espada pequena apunhala melhor do que uma comprida, só por isso disse ele. Não que eu te queira convencer a mudar de espada, mas lembra-te de apunhalar. A ponta ganha sempre, sempre.
Virou-se para se afastar, mas, de repente, voltou-se de novo para me dar uma estocada e, não sei como, consegui afastar a lâmina da espada com o tosco bastão.
És rápido disse ele e isso é bom. Vais conseguir rapaz, desde que te mantenhas sóbrio.
Embainhou a espada e olhou para Leste. Fixava as manchas de fumo cinzentas e distantes que traíam a presença de grupos de ataque, mas estávamos na época das colheitas, tanto para os Saxões como para nós, e os soldados deles tinham coisas melhores para fazer do que atravessar a nossa distante fronteira.
Então o que achas de Artur, rapaz? perguntou Owain de repente.
Gosto dele respondi acanhado, tão nervoso com esta pergunta como tinha ficado com a de Artur sobre Owain.
A grande cabeça desgrenhada de Owain, tão parecida com a do seu velho amigo Uther, virou-se para mim.
Sim, ele é muito simpático disse de má vontade. Eu sempre gostei de Artur. Todos gostam de Artur, mas só os Deuses sabem se alguém o entende. Excepto Merlim. Achas que Merlim está vivo?
Eu sei que está respondi fervorosamente, nada sabendo na verdade.
Ainda bem disse Owain.
Eu viera do Tor e Owain supôs que eu tinha algum tipo de conhecimento mágico negado a outros homens. Também se tinha espalhado entre os seus guerreiros que eu escapara do poço da morte de um druida e, por isso, aos olhos deles, eu era alguém com uma sorte favorável.
Eu gosto de Merlim continuou Owain mesmo apesar de ele ter dado aquela espada a Artur.
A Caledfwlch? perguntei, usando o verdadeiro nome da Excalibur.
Não sabias? perguntou Owain, atónito.
Ele captara a surpresa na minha voz e não era de admirar, pois Merlim nunca falara de ter feito tal oferta. Às vezes falava de Artur, que conhecera no pouco tempo em que Artur estivera na corte de Uther, mas Merlim usava sempre um tom terno, mas depreciativo, como se Artur fosse um pupilo lento, mas com muita vontade, cujas façanhas posteriores foram maiores do que Merlim alguma vez esperara. No entanto, o facto de ele ter dado a Artur a famosa espada mostrava que a opinião de Merlim sobre ele era muito mais importante do que queria dar a entender.
A Caledfwlch explicou-me Owain foi forjada no Outro Mundo por Gofannon. Gofannon era o Deus Ferreiro. Merlim encontrou-a na Irlanda continuou Owain onde a espada se chamava Cadalcholg. Ganhou-a numa luta de sonhos com um outro druida. Os druidas irlandeses dizem que, quando aquele que usa a Cadalchog se encontra em graves dificuldades, pode enterrar a espada no chão e Gofannon deixará o Outro Mundo e virá em seu auxílio. Sacudiu a cabeça, não por descrédito, mas por espanto. Agora pergunto, porque é que Merlim fez tal oferta a Artur?
E porque não? perguntei cautelosamente, pois senti inveja na pergunta de Owain.
Porque Artur não acredita nos Deuses disse Owain, é por isso. Nem sequer acredita no Deus maricas que os cristãos adoram. Pelo que sei, Artur não acredita em nada a não ser em grandes cavalos, e só os Deuses sabem para que é que eles servem.
Eles assustam disse eu, querendo ser leal a Artur.
Sim, eles assustam concordou Owain, mas só se nunca se viu nenhum antes. Mas também são lentos, comem o dobro ou o triplo de um cavalo normal, precisam de dois lacaios, os cascos fendem como manteiga aquecida se não se lhes amarrarem aquelas ferraduras toscas e também nunca atacarão uma muralha de escudos.
Não?
Nenhum cavalo o faz! disse Owain desdenhosamente. Mantém firme a tua guarda e verás que qualquer cavalo do mundo se afastará de uma linha de lanças firmes. Os cavalos não são precisos na guerra, rapaz, excepto para levar os batedores bem longe.
Então porque... comecei.
Porque Owain antecipou a minha pergunta o ponto fulcral de uma batalha, rapaz, é desfazer a muralha de escudos do inimigo. Tudo o resto é fácil e os cavalos de Artur assustam as linhas de batalha. Mas lá virá o dia em que um inimigo aguentará firme e, então, que os Deuses ajudem esses cavalos. E que os Deuses ajudem também Artur, se ele abandonar o seu monte de carne de cavalo e tentar lutar a pé usando aquela cota de malha de peixe. O único metal que um guerreiro precisa é a sua espada e o pedaço de ferro na ponta da lança, o resto é só peso, rapaz, peso morto.
Olhou para o anexo do forte onde Ladwys estava agarrada à cerca que rodeava a prisão de Gundleus.
Artur não vai ficar aqui muito tempo disse ele confiante. Uma derrota e volta para Armórica onde eles se impressionam com grandes cavalos, fatos de peixe e espadas invulgares.
Cuspiu e eu soube que, apesar de Owain dizer que gostava de Artur, havia ali mais qualquer coisa, alguma coisa mais profunda do que inveja. Owain sabia que tinha um rival, mas ele, tal como Artur, estava à espera da sua vez e aquela inimizade mútua preocupava-me, pois eu gostava dos dois. Owain riu-se da angústia de Ladwys.
Eu diria que ela é uma cabra leal disse o homenzarrão mas eu ainda a domo. Aquela é a tua mulher? e apontou com a cabeça na direcção de Lunete que carregava uma vasilha de água para as cabanas dos guerreiros.
É disse eu, corando ante a confissão.
Lunete, tal como a minha nova barba, era um sinal de virilidade e eu sentia-me pouco à vontade em relação às duas coisas. Lunete decidira ficar comigo em vez de regressar com Nimue ao que sobrara de Ynys Wydryn. A decisão fora inteiramente de Lunete e eu ainda me sentia nervoso com tudo o que rodeava a nossa relação, apesar de Lunete parecer não ter qualquer dúvida. Ela ocupara um canto da cabana, varrera-o, dividira-o com uma armação de vimes e, agora, falava com confiança sobre o nosso futuro em conjunto. Eu tinha pensado que ela quereria ficar com Nimue, mas desde a violação Nimue estava sempre muito calada e afastada de todos. Na verdade, tornara-se hostil, não falando com ninguém senão para recusar as conversas. Morgana estava a cuidar do olho dela e o mesmo ourives que fizera a máscara de Morgana oferecera-se para fazer uma bola de ouro para substituir o olho perdido. Lunete, tal como todos nós, começara a ter um pouco de medo dessa nova e amarga Nimue.
É uma rapariga bonita disse Owain mesquinhamente, referindo-se a Lunete. Mas as raparigas vivem com os guerreiros apenas por uma razão, rapaz, para ficarem ricas. Por isso, assegura-te de que a fazes feliz ou ela vai tornar a tua vida num inferno. Tão certo como dois e dois serem quatro.
Owain procurou nos bolsos do casaco e encontrou um pequeno anel de ouro.
Dá-lhe isto disse ele. Agradeci, gaguejando. Os chefes dos guerreiros costumavam dar presentes aos seus seguidores, mas este anel era um presente generoso de mais, pois eu ainda nem sequer tinha lutado por Owain. Lunete gostou do anel que, juntamente com o fio de prata que eu tirara do botão do punho da minha espada, constituiu o princípio do seu tesouro. Ela gravou uma cruz num dos lados do anel, não porque fosse cristã, mas porque a cruz fazia do anel um anel do amor e mostrava que ela passara de rapariga a mulher. Alguns homens também usavam anéis do amor, mas eu suspirava pelos simples aros de arame de ferro que os guerreiros vitoriosos faziam das pontas das lanças dos inimigos derrotados. Owain tinha bastantes anéis desses pendurados na barba e os dedos também cheios deles. Eu já reparara que Artur não usava nenhum.
Quando acabámos a nossa colheita nos campos em redor de Caer Cadarn, fomos por toda a Dumnónia para recolher os impostos, que eram pagos em cereais. Visitávamos reis e chefes que pagavam tributo e éramos sempre acompanhados por um empregado da tesouraria de Mordred que marcava na talha os rendimentos. Era estranho pensar que agora Mordred é que era o rei e que já não era o erário de Uther que nós enchíamos, mas até mesmo um rei menino precisava de dinheiro para pagar às tropas de Artur e aos outros soldados que mantinham as fronteiras de Dumnónia protegidas. Alguns dos homens de Owain foram enviados para reforçar a guarda permanente da fortaleza-fronteira de Gereint, em Durocobrivis, enquanto alguns de nós se tornavam colectores de impostos durante algum tempo.
Eu estava admirado por Owain, o famoso amante de uma boa batalha, não ter ido para Durocobrivis nem para Gwent e que tivesse preferido ficar com a banal tarefa de colectar impostos. A mim, aquele trabalho parecia-me trabalho de subalterno, mas eu era apenas um rapaz que quase nem barba tinha e que não entendia a cabeça de Owain.
Para Owain os impostos eram mais importantes do que qualquer saxão. Os impostos, como eu viria a aprender, eram a melhor fonte de riqueza para homens que não queriam trabalhar, e aquela época dos impostos, agora que Uther tinha morrido, era a oportunidade de Owain. Em cada casa ele fazia um relatório de más colheitas, lançando por isso um imposto baixo, ao mesmo tempo que ia enchendo a sua própria bolsa com os subornos que lhe iam sendo oferecidos em troca desses falsos relatórios. Pelo menos isso ele não escondia.
Uther nunca me deixaria escapar por isto disse-me um dia em que seguíamos ao longo da costa sul em direcção à cidade romana de Isca. Falava com afecto do rei já morto. Uther era um velho espertalhão e fazia sempre um cálculo sólido de quanto devia receber, mas o que é que Mordred sabe disso?
Olhou para o seu lado esquerdo, íamos a atravessar uma extensa charneca no cimo de um grande monte e a Sul víamos o mar reluzente e sem barcos onde soprava um vento forte que salpicava de branco as ondas cinzentas. A Leste, onde terminava um extenso banco de seixos, estendia-se um enorme cabo onde as ondas se quebravam em espuma. O cabo era quase uma ilha, apenas ligado à terra por uma passagem estreita de pedras e seixos.
Sabes o que é aquilo? perguntou-me Owain, apontando com o queixo para o cabo.
Não, meu Senhor.
A ilha dos Mortos disse, cuspindo para afastar a má sorte. Parei e olhei para aquele local horrível que era o centro dos pesadelos dumnonianos. O cabo era a ilha dos loucos, o lugar a que Pellinore pertencia, assim como todas as outras almas doidas e violentas que, depois de terem atravessado a passagem guardada eram consideradas pessoas já mortas. A ilha estava sob a protecção de Crom Dubh, o Deus negro estropiado, e havia quem dissesse que a Gruta de Cruachan, a boca do Outro Mundo, ficava na extremidade da ilha. Fiquei parado a contemplar a ilha com pavor, até que Owain me bateu no ombro.
Tu nunca vais precisar de te preocupar com a ilha dos Mortos, rapaz disse ele. Tens uma excelente cabeça em cima dos ombros.
Depois, virou-se para oeste.
Onde vamos ficar esta noite? perguntou a Lwellwyn, o empregado da tesouraria, cuja mula levava os registos falsificados do ano.
Em casa do príncipe Cadwy de Isca respondeu Lwellwyn.
Ah, Cadwy! Gosto dele. O que é que levámos desse tratante no ano passado?
Lwellwyn nem precisou consultar as varas com os registos, começou a referir sem parar uma lista de couro, lã, escravos, lingotes de estanho, peixe seco, sal e milho moído.
No entanto, a maior parte dos impostos foi paga em ouro acrescentou ele.
Agora, ainda gosto mais dele! disse Owain. Quanto é que ele vai pagar, Lwellwyn?
Lwellwyn estimou uma quantia que correspondia a metade do que Cadwy pagara no ano anterior e foi precisamente esse o montante combinado antes da refeição da noite em casa do príncipe Cadwy. Era uma casa imponente construída pelos Romanos, com um pórtico sustentado por colunas virado para um extenso vale arborizado, que se estendia até à foz do rio Exe. Cadwy era um príncipe dos Dumnonii, a tribo que dera o nome ao nosso país, e o principado de Cadwy permitia-lhe pertencer à segunda categoria na hierarquia do reino. Os reis pertenciam à primeira categoria, os príncipes como Gereint e Cadwy e os reis que pagavam tributo como Melwas de Belgae vinham a seguir e, depois deles, vinham os chefes como Merlim, mas como Merlim de Avalon era também druida não pertencia à hierarquia. Cadwy era príncipe e um chefe e governava uma tribo que se espalhava pelo território entre Isca e a fronteira de Kernow. Tempos houvera em que todas as tribos da Grã-Bretanha estavam separadas e em que um homem de Catuvellani teria um aspecto muito diferente de um homem de Belgae, mas os Romanos deixaram-nos todos muito parecidos. Apenas algumas tribos, como a de Cadwy, mantinham ainda o seu aspecto distinto. A tribo de Cadwy julgava-se superior aos outros bretões e para marcar a diferença tatuavam-se no rosto com os símbolos da sua tribo e do seu clã. Em cada vale existia um clã que normalmente não tinha mais de doze famílias. Era grande a rivalidade entre os clãs, mas insignificante comparada com a rivalidade entre a tribo do príncipe Cadwy e o resto da Grã-Bretanha. A capital da tribo era Isca, a cidade romana, cercada de boas muralhas e com edifícios de pedra tão grandiosos como os de Glevum, se bem que Cadwy preferisse viver fora da cidade nas sua próprias terras. A maioria das pessoas da cidade seguiam os modelos romanos e renunciavam às tatuagens, mas, para lá das muralhas, nos vales das terras de Cadwy onde as regras romanas não tinham conseguido implantar-se, todos os homens, mulheres e crianças ostentavam nas faces as tatuagens azuis. Era também uma terra muito rica, mas o príncipe Cadwy tinha vontade de a tornar ainda mais rica.
Andastes ultimamente pelo brejo? perguntou ele a Owain nessa noite.
Estava uma noite quente e agradável e o jantar tinha sido servido no pórtico aberto de onde se viam as propriedades de Cadwy.
Não respondeu Owain.
Cadwy resmungou. Eu vira-o no Conselho Supremo de Uther, mas aquela era a minha primeira oportunidade de ver de perto o homem que tinha a responsabilidade de defender Dumnónia de ataques de Kernow ou da distante Irlanda. O príncipe era um homem de meia-idade, careca, baixo, gordo e com as marcas tribais nas bochechas, braços e pernas. Usava roupa britânica, mas gostava da sua vivenda romana com a sua pavimentação típica, as colunas e a água canalizada que corria por calhas de pedra através do pátio central até ao pórtico, onde formava um pequeno lava-pés antes de correr por um dique de mármore até ao regato que ficava ao longe, no vale. Cheguei à conclusão de que Cadwy tinha uma boa vida. As colheitas eram abundantes, as ovelhas e as vacas estavam gordas e as muitas mulheres que tinha estavam felizes. Estava também longe da ameaça dos Saxões, mas mesmo assim mostrava-se descontente.
Há dinheiro no brejo disse ele a Owain. Estanho.
Estanho? disse Owain com uma voz de escárnio.
Cadwy assentiu solenemente com a cabeça. Estava bastante bêbado, mas também o estavam a maioria dos homens à volta da mesa baixa onde a refeição tinha sido servida. Eram todos guerreiros, homens de Cadwy ou de Owain, mas eu, como era mais novo, tinha de ficar de pé atrás do divã de Owain, como seu escudeiro.
Estanho disse Cadwy de novo e talvez ouro. Mas muito estanho.
A conversa era privada, pois a refeição estava a chegar ao fim e Cadwy providenciara escravas para os guerreiros. Ninguém prestava atenção aos dois chefes, excepto eu e o escudeiro de Cadwy, que era um rapaz meio apalermado que olhava de boca aberta e expressão pouco inteligente para as palhaçadas das escravas. Eu estava a ouvir o que Owain e Cadwy diziam, mas estava tão quieto e tão direito que eles, provavelmente, se esqueceram da minha presença.
Podeis não querer estanho disse Cadwy a Owain, mas há muita gente que quer. Não se pode fazer bronze sem estanho e pagam um bom preço por ele na Armórica, já para não falar no Norte do país.
Fez um movimento seco e brusco com a mão na direcção do resto de Dumnónia e, depois, deu um arroto que pareceu surpreendê-lo. Acalmou a barriga com uma golada de bom vinho e franziu as sobrancelhas como se não se lembrasse do que estava a falar.
Estanho disse, por fim, lembrando-se.
Então falai-me disso disse Owain.
Estava a observar um dos seus homens que tinha despido uma das escravas e que, agora, lhe untava a barriga com manteiga.
O estanho não é meu disse Cadwy energicamente.
Deve ser de alguém disse Owain. Quereis que pergunte a Lwellwyn? É um filho da puta muito esperto no que toca a dinheiro e a posses.
O homem de Owain batia com força com a mão na barriga da rapariga, espalhando manteiga por toda a mesa baixa e provocando ataques de risos. A rapariga queixou-se, mas o homem mandou-a calar e começou a vazar manteiga e gordura de porco pelo resto do corpo dela.
O caso é que disse Cadwy energicamente, para desviar a atenção de Owain da rapariga nua, Uther permitiu que aqui entrasse um bando de homens vindos de Kernow. Vieram para trabalhar nas velhas minas romanas, porque nenhum dos nossos homens o sabia fazer. Esses filhos da puta deviam, notai bem, deviam mandar o aluguer para a vossa tesouraria, mas os gajos estão a mandar o estanho para Kernow. Sei que isso é mesmo verdade.
Nesse momento Owain começou a prestar atenção.
Kernow?
A tirar dinheiro da nossa terra, é o que eles estão a fazer. Da nossa terra! disse Cadwy com indignação.
Kernow era um reino afastado, um local misterioso mesmo na extremidade da península, a oeste de Dumnónia, que nunca fora governado pelos Romanos. A maior parte do tempo estavam em paz connosco, mas de vez em quando o rei Mark agitava-se e saía da cama da sua última mulher para enviar um grupo de ataque, atravessando o rio Tamar.
O que é que os homens de Kernow estão a fazer aqui? perguntou Owain com uma voz tão indignada como o seu anfitrião.
Já vos disse. A roubar o nosso dinheiro. E não só. Desapareceram-me algumas vacas, ovelhas e até escravos. Esses mineiros estão a ficar muito petulantes e não pagam o que deviam pagar. Mas não se pode provar nada disso. Nem mesmo o seu Lwellwyn, que é tão esperto, pode olhar para um buraco no meio do brejo e dizer-me que quantidade de estanho dali deve ser extraído num ano. Cadwy matou uma traça com uma forte palmada e, depois, abanou a cabeça taciturno. Eles pensam que estão acima da lei. Esse é que é o problema. Só porque Uther os protegia, pensam que estão acima da lei.
Owain encolheu os ombros. A sua atenção voltou-se de novo para a rapariga besuntada com manteiga que era agora perseguida pelo terraço, mais abaixo, por meia dúzia de homens completamente bêbados. A gordura que tinha espalhada pelo corpo tornava difícil apanhá-la e aquela caça ridícula fazia os outros homens rirem até mais não. Eu tinha de fazer um grande esforço para não me rir. Owain olhou de novo para Cadwy.
Então ide lá e matai alguns desses filhos da puta, meu Príncipe e Senhor disse, como se essa fosse a solução mais fácil do mundo.
Não posso disse Cadwy.
E porque não?
Uther dava-lhes protecção. Se eu os atacar, eles vão queixar-se ao conselho e ao rei Mark e eu serei obrigado a pagar o sarhaed.
Sarhaed era o preço de sangue imposto a um homem pela lei. O sarhaed de um rei era impossível de se pagar, o de um escravo era barato, mas um bom mineiro devia ter um preço suficientemente alto para causar dano até a um príncipe rico como Cadwy.
E como é que eles iam saber que fostes vós quem os atacou? perguntou Owain com desdém.
Como resposta, Cadwy limitou-se a tocar na bochecha, sugerindo que as tatuagens azuis trairiam os seus homens.
Owain concordou com um aceno. A rapariga coberta de manteiga tinha, por fim, sido apanhada e estava agora rodeada pelos seus captores no meio de alguns arbustos que cresciam no terraço mais abaixo. Owain esmigalhou um pedaço de pão, depois olhou de novo para Cadwy.
Então?
Então disse Cadwy manhosamente se eu conseguisse encontrar um bando de homens que pudesse desbastar um pouco esses filhos da puta, seria uma boa ajuda. Isso ia levá-los a procurarem a minha protecção, percebeis? E o meu preço seria o estanho que eles mandam para o rei Mark. E o vosso preço... fez uma pausa para ter a certeza de que Owain não estava surpreso com a sugestão seria metade do valor desse estanho.
Quanto? perguntou Owain rapidamente.
Os dois homens falavam baixo e eu tinha de me concentrar para ouvir o que diziam no meio de toda aquela algazarra de risadas e gritos dos guerreiros.
Cinquenta peças de ouro por ano. Como esta disse Cadwy, tirando de uma bolsa um lingote de ouro do tamanho do punho de uma espada e atirando-o por cima da mesa.
Tanto? até Owain ficou admirado.
O brejo é um local de riqueza disse Cadwy de um modo sinistro. Muita riqueza.
Owain espraiou o olhar pelo vale de Cadwy até onde a lua se reflectia no rio distante, tão uniforme e prateado como a lâmina de uma espada.
Quantos mineiros há? perguntou finalmente ao príncipe.
A povoação mais próxima disse Cadwy deve ter setenta ou oitenta homens. E, claro que também há alguns escravos e mulheres.
E quantas povoações?
Três, mas as outras duas estão muito afastadas. Estou só preocupado com esta.
Apenas vinte soldados disse Owain cautelosamente.
Durante a noite? sugeriu Cadwy. Eles nunca foram atacados, por isso não vão estar de vigia.
Owain beberricou o vinho do seu copo de chifre.
Setenta peças de ouro disse, determinado, não cinquenta.
O príncipe Cadwy pensou durante um segundo e, depois, assentiu com a cabeça, aceitando o preço. Owain sorriu ironicamente.
Porque não, hem?
Escondeu na mão o lingote de ouro e, rápido como uma cobra, virou-se para olhar para mim. Eu não me mexi nem tirei os olhos de uma das raparigas que, nua, se enrolava à volta de um dos guerreiros tatuados de Cadwy.
Estás acordado, Derfel? disse Owain com brusquidão. Dei um salto como se me tivesse sobressaltado.
Senhor? respondi, fingindo que a minha mente tinha andado a vaguear durante os últimos minutos.
Lindo menino disse Owain, satisfeito por eu não ter ouvido nada. Queres uma daquelas raparigas, não queres?
Corei.
Não, meu Senhor.
Owain soltou uma gargalhada.
Ele acabou de arranjar uma linda irlandesa disse, virando-se para Cadwy. Por isso está a ser-lhe fiel. Mas depressa aprende. Quando chegares ao Outro Mundo, meu rapaz virou-se outra vez para mim não vais lamentar os homens que não mataste, mas vais lamentar as mulheres a que renunciaste disse com suavidade.
Durante os meus primeiros dias ao seu serviço eu tinha medo dele, mas Owain, sabe-se lá porquê, gostava de mim e tratava-me bem. Olhou de novo para Cadwy e disse brandamente:
Amanhã à noite, amanhã à noite.
Eu tinha ido do Tor de Merlim para o grupo de guerreiros de Owain e isso era como passar deste mundo para o outro. Olhei para a lua e pensei nos homens de cabelo comprido de Gundleus a massacrar os guardas no Tor e nos habitantes do brejo que, na noite seguinte, iam sofrer a mesma barbaridade e sabia que nada podia fazer para o evitar, sabendo embora que o massacre devia ser evitado. Mas o destino, tal como Merlim sempre nos ensinara, é inflexível. Merlim gostava de afirmar que a vida é uma brincadeira dos Deuses e que não existia justiça. Uma vez disse-me que eu tinha de aprender a rir, senão ia matar-me a chorar.
Os nossos escudos foram untados com pez para se confundirem com os escudos pretos dos assaltantes irlandeses de Oengus Mac Airem, cujos barcos de proa pontiaguda atacavam a costa norte de Dumnónia. Um guia local de bochechas tatuadas guiou-nos durante toda a tarde por entre vales profundos e exuberantes que subiam suavemente em direcção ao grande vulto ermo do brejo que, de vez em quando, se vislumbrava através de alguma falha entre as pesadas árvores. Eram bosques muito agradáveis cheios de veados e cortados por ribeiros que corriam rápidos e gelados do alto planalto do brejo em direcção ao mar.
Ao cair da noite estávamos já muito perto e, depois de escurecer, seguimos por um trilho de cabras até ao ponto mais elevado. Era um local misterioso. O Povo Antigo vivera ali e deixara os seus círculos de pedras sagrados nos vales enquanto os cumes estavam coroados por amontoados de rochas cinzentas enquanto nos lugares mais baixos abundavam os charcos traiçoeiros por entre os quais o nosso guia nos levou sem cometer falhas.
Owain disse-nos que as pessoas do brejo andavam a fomentar rebeliões contra o rei Mordred e que a religião deles os tinha ensinado a temer homens com escudos pretos. Era uma boa mentira e eu era capaz de ter acreditado se não tivesse ouvido a conversa dele com o príncipe Cadwy na noite anterior. Além disso, Owain prometeu-nos ouro se cumpríssemos convenientemente a nossa tarefa e, depois, avisou-nos que a matança daquela noite tinha de ser mantida em segredo, pois não tínhamos ordens do conselho para aplicar tal castigo. A caminho do brejo, bem no interior do denso bosque e construído debaixo de uns carvalhos, encontrámos um velho santuário, em cuja parede existiam nichos com caveiras cobertas de musgo, em frente às quais Owain nos obrigou a fazer um juramento de morte de que guardaríamos o segredo. Por toda a Grã-Bretanha existiam daqueles santuários antigos e escondidos, que provavam o quanto os druidas se tinham espalhado antes da chegada dos Romanos, e onde as pessoas das aldeias ainda iam procurar a ajuda dos Deuses. Nessa tarde, sob os enormes carvalhos cobertos de líquenes, ajoelhámo-nos frente às caveiras e tocámos os copos da espada de Owain e aqueles que se estavam a iniciar nos segredos de Mitra receberam o beijo de Owain. Assim, abençoados pelos Deuses e depois de termos feito o juramento sobre a matança, continuámos a nossa marcha, esperando que a noite caísse.
Chegámos a um local imundo. Fogueiras enormes de fundição vomitavam faúlhas e fumo para os céus. Havia um punhado de cabanas espalhadas entre as fogueiras e à volta de uma abertura escura que indicava o sítio onde os homens escavavam a terra. Viam-se também grandes montes de carvão vegetal que pareciam picos rochosos e negros, enquanto pelo vale se espalhava um cheiro que eu nunca tinha sentido. Na verdade, na minha fértil imaginação, a aldeia mineira daquela montanha mais parecia o reino de Annawn, o Outro Mundo, do que uma povoação humana.
Quando nos aproximámos, os cães ladraram, mas ninguém da povoação fez caso do barulho. Não havia qualquer vedação, nem sequer um banco de terra para proteger o local. Havia cavalos de raça pequena presos a estacas, perto de várias carroças, que começaram a relinchar quando nos aproximámos. Mesmo assim, ninguém saiu das cabanas baixas para averiguar a causa da agitação. As cabanas eram circulares, feitas de pedra e com telhados de erva, mas no centro da povoação havia dois velhos edifícios romanos altos, quadrados e sólidos.
Dois homens para cada um, se não mais disse Owain com a voz sibilante, relembrando-nos quantos homens cada um de nós tinha de matar. E não estou a contar os escravos e as mulheres. Avancem rápido, matem rápido e estejam sempre atentos à vossa retaguarda. E mantenham-se juntos!
Dividimo-nos em dois grupos. Eu estava com Owain, cuja barba reluzia com a luz das fogueiras que se reflectia nos seus anéis de ferro de guerreiro. Os cães ladraram, os cavalos relincharam até que, por fim, um galispo cantou e um homem saiu devagar de dentro de uma cabana para ver o que podia ter perturbado o gado, mas já era tarde demais. A matança tinha começado.
Assisti a muitas matanças como esta. Nas aldeias saxónicas teríamos incendiado as cabanas antes de começar a carnificina, mas aquelas cabanas de pedra e erva não pegariam fogo, sendo por isso obrigados a entrar nelas armados com as lanças e as espadas. Agarrámos em toros de madeira a arder de uma fogueira e atirámo-los para dentro das cabanas antes de entrarmos, para haver luz suficiente para a chacina. Às vezes as chamas eram suficientes para fazer os habitantes saírem das cabanas. Cá fora, as espadas aguardavam-nos e cortavam como machados de carniceiro. Se o fogo não obrigasse a família a sair, Owain ordenava que dois de nós entrássemos enquanto os outros ficavam de guarda à porta. Eu receava a minha vez, mas sabia que ela havia de chegar e sabia também que não me atreveria a desobedecer à ordem. Estava ligado por um juramento àquele trabalho sangrento e, se recusasse, teria a minha morte garantida.
Os gritos começaram. Nas primeiras cabanas o trabalho foi fácil, pois as pessoas estavam a dormir ou mal acordadas, mas à medida que fomos penetrando mais no interior da povoação a resistência tornou-se mais feroz. Dois homens atacaram-nos com machados, mas foram fácil e displicentemente mortos pelos nossos lanceiros. As mulheres fugiam com as crianças nos braços. Um cão atacou Owain e morreu, ganindo, com a espinha partida. Vi uma mulher a correr com uma criança num braço e segurando a mão a sangrar de outra criança e, de repente, lembrei-me de Tanaburs a gritar que a minha mãe ainda estava viva. Estremeci quando percebi que o velho druida devia ter-me rogado uma praga quando ameacei a sua vida, e que, apesar da minha boa sorte manter a praga à distância, eu sentia a sua malevolência a rodear-me como um inimigo oculto. Toquei na cicatriz da minha mão esquerda e supliquei a Bei que aniquilasse a praga de Tanaburs.
Derfel! Licat! gritou Owain e eu, como bom soldado obedeci às suas ordens.
Baixei o escudo, atirei um tição de fogo para dentro da cabana e dobrei-me para passar pela pequena porta. Quando entrei, as crianças gritavam e um homem seminu saltou na minha direcção empunhando uma faca e obrigando-me a desviar bruscamente para o lado. Caí sobre uma criança quando tentei lançar uma estocada com a minha lança sobre o pai dela. A lâmina roçou nas costelas do homem e ele teria caído em cima de mim e enterrado a faca na minha garganta se Licat não o tivesse morto. O homem dobrou-se para a frente, apertando a barriga e, depois, arquejou quando Licat arrancou a ponta da lança e puxou da sua própria faca para começar a matar as crianças que gritavam desesperadas. Esquivei-me lá para fora, com a ponta da minha lança manchada de sangue, para dizer a Owain que só havia um homem lá dentro.
Vamos! gritou Owain Demetia! Demetia! esse era o nosso grito de guerra da noite, o nome do reino do irlandês Oengus Mac Airem, a oeste da Silúria.
As cabanas estavam já todas vazias e começámos a perseguir os mineiros pelos recantos sem luz da povoação. Os fugitivos corriam por todo o lado, mas alguns homens ficaram para trás e tentaram lutar contra nós. Um grupo corajoso formou até uma defeituosa linha de batalha e atacou-nos com lanças, picaretas e machados, mas os homens de Owain enfrentaram aquele ataque obtuso com uma terrível eficiência, deixando os escudos pretos absorver o ataque e usando depois as lanças e as espadas para abater os atacantes. Eu fui um desses homens eficientes. Que Deus me perdoe, mas nessa noite matei o meu segundo homem e talvez até o terceiro. Ao primeiro espetei a lança na garganta, ao segundo na virilha. Não usei a espada, pois achei que a lâmina de Hywel não era um instrumento apropriado para o desígnio dessa noite.
Tudo terminou rapidamente. De repente tudo desapareceu da povoação excepto os mortos, os moribundos e alguns homens, mulheres e crianças que se tentavam esconder. Matámos tudo o que encontrámos. Matámos os animais, queimámos as carroças que usavam para ir buscar o carvão vegetal aos vales, destruímos os telhados das cabanas, pisámos as hortas e, por fim, saqueámos a aldeia à procura de tesouros. Alguém atirou algumas setas vindas da linha do horizonte, mas nenhum de nós foi atingido.
Havia um barril de moedas romanas, lingotes de ouro e barras de prata na cabana do chefe. Era a cabana maior, com aproximadamente seis metros de um lado ao outro, e dentro da cabana, à luz dos nossos tições, vimos o chefe morto, estatelado no chão com a cara amarelada e de barriga aberta. Uma das suas mulheres e dois dos seus filhos jaziam mortos no meio do sangue dele. Uma terceira criança, uma rapariga, estava debaixo de uma pele de animal ensopada em sangue e pareceu-me ver a sua mão a mexer quando um dos nossos homens tropeçou nela, mas fingi que estava morta e deixei-a em paz. Um grito de outra criança ecoou na noite quando o seu esconderijo foi descoberto e uma espada a trespassou.
Que Deus me perdoe, que Deus e os seus anjos me perdoem, mas só confessei o crime dessa noite a uma pessoa, uma pessoa que não era padre nem tinha o poder de me conceder o perdão de Cristo. Eu sei que, no purgatório ou talvez no inferno, vou encontrar essas crianças assassinadas. A minha alma será dada aos seus pais e às suas mães e nas mãos deles servirá de joguete. Mas eu merecerei o castigo.
Porém, que escolha tinha eu? Era jovem, queria viver, tinha feito o juramento e seguia o meu chefe. Não matei ninguém que não me tivesse atacado, mas que desculpa é essa face a tão grandes pecados? Para os meus companheiros não parecia pecado algum: estavam apenas a matar criaturas de uma outra tribo, de uma outra nação, na verdade, e, para eles, essa era justificação suficiente. Mas eu fora criado no Tor, onde existiam pessoas de todas as tribos e de todas as raças, e embora o próprio Merlim fosse um chefe de tribo e um protector atroz de quem se podia vangloriar de ser bretão, nunca ensinou a odiar as outras tribos. Os seus ensinamentos tornaram-me incapaz dos assassinatos irracionais de pessoas estranhas pela simples razão de serem estranhas.
No entanto, incapaz ou não, o certo é que matei e que Deus me perdoe por isso e por todos os outros pecados, numerosos de mais para me lembrar.
Partimos antes do amanhecer. O vale ficou cheio de fumo, encharcado em sangue e com um aspecto terrível. O brejo tresandava a morte, assombrado pelos prantos das viúvas e dos órfãos. Owain deu-me um lingote de ouro, duas barras de prata e uma mão-cheia de moedas e, que Deus me perdoe, eu aceitei e guardei tudo o que ele me deu.
O Outono traz mais batalhas, pois durante toda a Primavera e o Verão os barcos trazem novos saxões até à nossa costa leste, e é durante o Outono que esses recém-chegados tentam encontrar as suas novas terras. É o último lanço da guerra antes do Inverno aferrolhar a terra.
E foi no Outono do ano da morte de Uther que eu lutei pela primeira vez contra os Saxões, pois assim que voltámos do ocidente, depois da colecta dos impostos, soubemos dos ataques saxões a leste. Owain colocou-nos sob o comando do seu capitão, um homem chamado Griffid Annan e enviou-nos para ajudar Melwas, o rei de Belgae, um monarca que pagava tributos a Dumnónia. A tarefa de Melwas era defender a nossa costa sul contra os invasores sais que, nesse terrível ano da morte de Uther, haviam decidido voltar a entrar em guerra. Owain ficou em Caer Cadarn, pois estava a decorrer uma severa disputa no conselho do reino sobre quem seria responsável pela educação de Mordred. O bispo Bedwin queria criar o rei em sua casa, mas os não cristãos, em maioria no conselho, não queriam que Mordred crescesse cristão, tal como Bedwin e o seu grupo não queriam que o rei menino crescesse pagão. Owain, que afirmava venerar de igual forma todos os Deuses, propôs-se como um meio-termo.
Não interessa em que Deus um rei acredita disse-nos ele antes de partirmos, porque um rei tem de ser ensinado a lutar não a rezar.
Deixámo-lo a defender a sua causa enquanto nós fomos matar saxões.
Griffid Annan, o nosso capitão, era um homem magro e lúgubre que considerava que o que Owain queria na realidade era evitar que Artur educasse Mordred.
Não é que Owain não goste de Artur apressou-se a acrescentar, mas se o rei pertencer a Artur, então Dumnónia também pertence.
E isso é assim tão mau? perguntei.
É melhor para ti e para mim, meu rapaz, que a terra pertença a Owain.
Griffid enrolou nos dedos um dos colares de ouro que trazia ao pescoço, para mostrar o que queria dizer. Todos me chamavam rapaz, mas só porque eu era o mais novo do exército e ainda não tinha sido ferido numa batalha a sério contra outros guerreiros. Também acreditavam que a minha presença nas suas fileiras lhes trazia boa sorte por eu ter escapado ao poço da morte de um druida. Todos os homens de Owain, como todos os soldados em geral, eram extremamente supersticiosos. Prestavam atenção a todos os presságios, traziam todos uma pata de coelho ou uma pedra de relâmpago; e todas as suas acções obedeciam a um ritual. Por isso, nenhum homem calçava a bota direita antes da esquerda ou afiava uma lança à sua própria sombra. Havia uma mão-cheia de cristãos nas nossas fileiras e eu pensara que não temeriam tanto os Deuses, os espíritos e os fantasmas, mas afinal mostraram ser tão supersticiosos como todos nós.
Venta, a capital do rei Melwas, era uma cidade pobre de fronteira. As oficinas da cidade tinham fechado há muito e as paredes dos grandes edifícios romanos estavam marcadas pelas vezes em que a cidade fora atacada e saqueada pelos Saxões. O rei Melwas vivia aterrorizado, pois temia que a cidade estivesse para ser saqueada de novo. Disse-nos que os Saxões tinham um novo chefe ávido de terras e terrível nas batalhas.
Porque é que Owain não veio perguntou com petulância. Ou então Artur? Eles querem destruir-me, é isso?
Era um homem gordo, muito desconfiado e com o pior hálito do mundo. Era mais o rei de uma tribo do que de um país, o que o fazia pertencer à segunda categoria na hierarquia, se bem que, ao olhar para ele, se pensasse que Melwas era apenas um servo e um servo rezingão.
Vocês não são muitos, pois não? queixou-se a Griffid. Ainda bem que aumentei o recrutamento de soldados.
O grupo de soldados recrutados formava o exército de cidadãos do rei Melwas e todos os homens robustos da sua tribo deviam integrá-lo, mas alguns escapuliram-se e a maioria dos homens mais ricos da tribo mandaram escravos como substitutos. Todavia Melwas tinha conseguido reunir uma força de mais de trezentos homens, trazendo cada um a sua própria comida e as suas próprias armas. Alguns dos soldados recrutados já tinham sido guerreiros e vinham equipados com boas lanças de guerra e escudos cuidadosamente conservados, mas a maioria não tinha armadura e alguns não tinham nada senão simples bastões ou picaretas afiadas como armas. Muitas mulheres e crianças acompanhavam o grupo de soldados, não querendo ficar sozinhas em casa quando pairava a ameaça de os Saxões atacarem.
Melwas insistiu em que ele e os seus guerreiros ficariam para defender as muralhas esboroadas de Venta, o que significava que Griffid teria de chefiar aquele grupo de soldados contra o inimigo. Melwas não fazia ideia de onde estavam os Saxões e, por isso, Griffid, sem poder fazer nada, levou-nos às cegas para o interior dos bosques a leste de Venta. Parecíamos mais uma simples multidão do que um grupo guerreiro. Só a visão de um veado provocava uma perseguição louca e uma algazarra que alertaria qualquer inimigo num raio de quinze quilómetros, e a perseguição terminava sempre com o grupo de soldados espalhado por todo o bosque. Perdemos quase cinquenta homens dessa forma, ou porque a sua perseguição descuidada os fazia cair nas mãos dos Saxões ou porque se perdiam e decidiam voltar para casa.
Havia muitos saxões nos bosques, ainda que a princípio não víssemos nenhum. Às vezes encontrávamos as fogueiras dos seus acampamentos ainda quentes e encontrámos também uma pequena povoação pertencente a Belgae que fora atacada e incendiada. Os homens e os velhos ainda lá estavam, todos mortos, mas os jovens e as mulheres tinham sido levados como escravos. O cheiro dos mortos fez diminuir a coragem dos restantes soldados e manteve-os juntos enquanto Griffid nos fazia avançar para leste.
Defrontámos o nosso primeiro grupo guerreiro saxão num vasto vale de um rio onde um grupo dos invasores estava a construir uma povoação. Quando chegámos, tinham já construído metade de uma paliçada de madeira e assentado as colunas de madeira do seu edifício principal, mas o nosso aparecimento à entrada do bosque fê-los largar as ferramentas e pegar nas lanças. Nós éramos mais do que eles, três para um, mas mesmo assim Griffid não nos podia persuadir a atacar a linha de escudos bem preparada e protegida por lanças bem afiadas. Nós, os mais novos, sentíamo-nos muito fortes e até provocávamos os saxões como se fôssemos maluquinhos, mas nunca éramos em número suficiente para atacar e eles ignoravam os nossos insultos, enquanto o resto dos homens de Griffid bebia hidromel e amaldiçoava a nossa impaciência. Para mim, que estava ansioso por ter um anel de guerreiro feito de ferro saxão, parecia uma loucura não atacar, mas eu tinha ainda de experimentar a carnificina provocada pelo ataque a duas muralhas de escudos impenetráveis e também ainda não tinha aprendido como é difícil persuadir homens a oferecer os seus corpos àquele trabalho medonho. Griffid fez, sem grande empenho, alguns esforços para encorajar um ataque, mas logo se contentava em beber o seu hidromel e lançar insultos, e assim enfrentámos o inimigo durante três horas ou mais sem avançar mais do que alguns passos.
O receio de Griffid deu-me pelo menos oportunidade para observar os Saxões que, na verdade, não eram assim tão diferentes de nós. Tinham o cabelo mais loiro, os olhos de um azul pálido, a pele mais áspera do que a nossa e gostavam de usar muitas peles por cima das roupas, mas, tirando isso, vestiam-se como nós. As únicas diferenças em relação às armas é que a maior parte deles tinha uma faca com uma grande lâmina que podia ser cruel nas lutas em espaços reduzidos e muitos deles usavam machados com amplas lâminas que, com um golpe, rachavam um escudo. Alguns dos nossos homens andavam tão impressionados com os machados que eles próprios traziam armas dessas, mas tanto Owain como Artur desdenhavam dessas armas dizendo que eram toscas. Owain costumava dizer que com um machado não se consegue desviar um golpe e, aos seus olhos, uma arma não prestava se não servisse tanto para atacar como para defender. Os sacerdotes saxões eram muito diferentes dos nossos homens sagrados, pois esses feiticeiros estrangeiros usavam peles de animais e estrume de vaca para espetar o cabelo. Nesse dia, no vale do rio, um desses sacerdotes Sais sacrificou uma cabra para tentar descobrir se deviam ou não lutar contra nós. Primeiro o sacerdote partiu uma das patas traseiras do animal, depois apunhalou-o no pescoço e deixou-o fugir a arrastar a perna partida. O animal lá foi a cambalear, sangrando e guinchando ao longo da linha de batalha deles e, depois, virou-se na nossa direcção antes de cair na erva. Aquele era evidentemente um mau presságio, pois a linha de escudos saxónica perdeu o seu ar de desafio e bateram simplesmente em retirada, passando pelos edifícios meio-construídos, atravessando um baixio e fugindo para o meio do bosque. Levaram as mulheres, as crianças, os escravos, os porcos e as ovelhas. Considerámos aquilo uma vitória, comemos a cabra e saltámos a paliçada. Não havia nada para pilhar.
O nosso grupo de soldados estava agora esfomeado, pois, tal como todos os grupos de soldados, tinham comido todas as provisões durante os primeiros dias e agora nada tinham para comer a não ser as avelãs que arrancavam das árvores do bosque. A falta de comida significava que não tínhamos outra escolha senão regressar. O grupo de soldados esfomeados, ansiosos por chegar a casa, seguia destacado na dianteira enquanto nós, os guerreiros, seguíamos mais devagar. Griffid ia relutante, pois regressava sem ouro nem escravos, apesar de, na verdade, ter conseguido tanto como a maior parte dos grupos guerreiros que deambulavam pelas terras em disputa. E é então que, quando estávamos quase a chegar ao país já nosso conhecido, nos defrontámos com um grupo guerreiro saxão que vinha do lado oposto. Deviam ter defrontado uma parte do nosso grupo de soldados, pois iam carregados de armas e levavam as mulheres que tinham capturado.
O encontro foi uma surpresa para ambos os lados. Eu estava na retaguarda da coluna de Griffid e só ouvi o início da luta que começou quando a nossa vanguarda saiu do arvoredo e encontrou meia dúzia de saxões a atravessar um regato. Os nossos homens atacaram e, depois, os lanceiros de ambos os lados apressaram-se a juntar-se àquela luta acidental. Não havia nenhuma muralha de escudos, apenas uma rixa sangrenta num regato pouco profundo e, mais uma vez, tal como naquele dia em que matara o meu primeiro inimigo nos bosques a sul de Ynys Wydryn, senti o júbilo da batalha a invadir-me. Concluí que devia ser também aquilo que Nimue sentia quando os Deuses entravam nela. Ela dissera que era como ter asas que nos elevavam à glória e foi exactamente isso que eu senti naquele dia de Outono. Enfrentei o meu primeiro saxão correndo directamente para ele com a lança na horizontal. Vi o medo estampado nos seus olhos e soube que ele era um homem morto. A minha lança penetrou rapidamente na sua barriga. Então, desembainhei a espada de Hywel, a que eu agora chamava Hywelbane, e acabei com ele com um golpe lateral. Depois entrei regato adentro e matei mais dois. Gritava como um espírito do mal, bradando aos saxões, na sua própria língua, para virem provar a morte. Nisto, um guerreiro enorme aceitou o meu convite e atacou-me com um dos terríveis machados descomunais. Só que um machado era peso morto a mais. Quando se lançava um golpe, não se podia retroceder para lançar mais golpes, e eu venci aquele homem enorme com um só golpe de espada de que Owain se orgulharia. Só daquele homem do machado tirei eu três colares de ouro, quatro pregadores e uma faca com o cabo cravejado de pedras preciosas e guardei a lâmina do seu machado para fazer os meus primeiros anéis de batalha.
Os saxões fugiram, deixando atrás de si oito mortos e outros tantos feridos. Eu matara nada menos do que quatro inimigos, uma proeza notada pelos meus companheiros. Exultei com o respeito neles infundido, embora mais tarde, quando já era mais velho e mais sensato, atribuísse a matança desproporcionada daquele dia à mera estupidez da juventude. Os jovens precipitam-se muitas vezes enquanto os mais sensatos actuam com perseverança. Perdemos três homens, um deles foi Licat, o homem que me salvara a vida no brejo. Recuperei a minha lança, tirei mais dois colares de prata do pescoço do homem que eu matara no regato e depois fiquei a ver os feridos serem despachados para o Outro Mundo onde se tornariam escravos dos nossos lutadores mortos. Encontrámos seis cativas britânicas apinhadas no meio das árvores. Eram mulheres que tinham acompanhado o nosso grupo de soldados para a guerra e que tinham sido capturadas por aqueles saxões. Foi uma dessas mulheres que descobriu o último guerreiro inimigo ainda escondido no meio de uns espinheiros na beira do regato. Ela gritou-lhe e tentou apunhalá-lo com uma faca, mas ele fugiu para o regato, onde eu o capturei. Era apenas um jovem imberbe, talvez da minha idade, e tremia de medo.
Como te chamas? perguntei-lhe, com a lâmina da minha espada coberta de sangue encostada à sua garganta.
Ele estava estatelado na água.
Wlenca respondeu ele.
Depois contou-me que viera para a Grã-Bretanha apenas algumas semanas antes, se bem que, quando lhe perguntei de onde tinha vindo, não soubesse dizer senão que tinha vindo de casa. A língua que falava não era bem igual à minha, mas as diferenças eram pequenas e eu entendia-o bem. Disse-me que o rei do seu povo era um grande chefe chamado Cerdic que andava agora a conquistar terras na costa sul da Grã-Bretanha. Continuou dizendo que Cerdic, para estabelecer a sua nova colónia, precisara de lutar contra Aesc, um rei saxão que governava as terras de Kentish. Essa foi a primeira vez que percebi que, tal como nós britânicos, os Saxões também lutavam entre si. Parece que Cerdic ganhara essa guerra contra Aesc e que agora andava a sondar Dumnónia.
A mulher que descobrira Wlenca estava acocorada ali perto e sibilava ameaças contra ele, mas uma das outras mulheres declarou que Wlenca não participara nas violações que se seguiram à captura. Griffid, sentindo-se aliviado por ter alguma pilhagem para levar, declarou que Wlenca viveria. Assim, o saxão foi despido, posto sob a guarda de uma mulher e começou a caminhar para oeste em direcção à escravatura.
Aquela foi a última expedição do ano e, apesar de nós a termos proclamado como uma grande vitória, nada era comparada com as proezas de Artur. Ele tinha não só afastado os Saxões de Aelle do norte de Gwent, como também tinha derrotado as forças de Powys, tendo, durante essa batalha, decepado o braço do rei Gorfyddyd que segurava o escudo. O rei inimigo escapara, mas, mesmo assim, fora uma grande vitória e todos em Gwent e Dumnónia enalteciam Artur. Owain não ficou muito satisfeito.
Lunete, pelo contrário, ficou delirante. Eu trouxera-lhe ouro e prata, o suficiente para poder usar uma túnica de pele de urso no Inverno e ter a sua própria escrava, uma criança de Kernow que Lunete comprou a Owain. A criança trabalhava do nascer até ao pôr do Sol e passava a noite a chorar num canto da cabana a que agora chamávamos casa. Quando a criança chorava de mais, Lunete batia-lhe e, quando eu tentava defender a rapariga, Lunete batia-me a mim. Os homens de Owain tinham saído todos dos pequenos abrigos dos guerreiros em Caer Cadarn e tinham-se mudado para a povoação mais confortável de Lindinis, onde Lunete e eu tínhamos uma cabana de paredes de vime e telhado de colmo dentro das pequenas muralhas de terra construídas pelos Romanos. Caer Cadarn ficava a aproximadamente dez quilómetros e era ocupada apenas quando algum inimigo se aproximava demasiado ou quando se celebrava alguma importante ocasião real. Tivemos uma dessas ocasiões nesse Inverno, no dia em que Mordred fez um ano e quando, por acaso, os problemas de Dumnónia lhe caíram sobre os ombros. Ou talvez não fosse por acaso, pois Mordred sempre fora de mau presságio e a sua aclamação estava condenada a ser atingida pela tragédia
A cerimónia teve lugar logo depois do Solstício. Mordred ia ser aclamado rei e todos os homens importantes de Dumnónia se juntaram em Caer Cadarn para a ocasião. Nimue chegou um dia mais cedo e visitou a nossa cabana, que Lunete decorara com azevinho e heras para o solstício. Nimue transpôs a soleira da cabana que tinha uns traços riscados para manter os espíritos do mal afastados, e sentou-se junto à nossa lareira, puxando para trás o capuz da capa.
Sorri, ao ver que ela tinha um olho de ouro.
Estou a gostar disse eu.
É oco disse ela, batendo no olho com uma unha.
Lunete gritava com a escrava por ter deixado queimar a sopa de semente de cevada e Nimue estremeceu perante tal manifestação de cólera.
Tu não és feliz disse-me ela.
Sou, sou insisti, pois os jovens detestam admitir quando erram. Nimue deu uma vista de olhos pelo interior desarrumado e escurecido
pelo fumo da nossa cabana, como se estivesse a sentir os estados de espírito dos seus habitantes.
A Lunete não é a mulher certa para ti disse ela calmamente enquanto apanhava indolentemente do chão pejado de lixo metade de uma casca de ovo e a esmagava para que nenhum espírito do mal se pudesse ali esconder. A tua cabeça anda sempre nas nuvens, Derfel continuou, atirando os fragmentos da casca de ovo para as chamas enquanto Lunete tem os pés bem assentes na terra. Ela quer ser rica, tu queres ser honrado. É impossível associar as duas coisas.
Encolheu os ombros, como se isso não fosse importante e contou-me as novidades de Ynys Wydryn. Merlim ainda não tinha voltado e ninguém sabia onde estava, mas Artur mandara o dinheiro capturado, quando derrotara o rei Gorfyddyd, para pagar a reconstrução do Tor e Gwlyddyn estava a dirigir a construção de uma casa maior. Pellmore estava vivo, tal como Druidan e Gudovan, o Escrivão. Nimue disse-me também que Norwenna fora enterrada num túmulo junto ao Espinheiro Sagrado, onde era venerada como uma santa.
O que é um santo? perguntei.
Um cristão morto disse ela sem mais explicações. Todos devem ser santos.
E tu? perguntei-lhe.
Estou viva respondeu, com uma voz inexpressiva.
Estás feliz?
Lá estás tu sempre a perguntar essas coisas estúpidas. Se eu quisesse ser feliz, Derfel, estaria aqui contigo, a coser-te o pão e a lavar-te a roupa da cama.
Então porque não estás?
Ela cuspiu para o fogo para afastar a minha estupidez.
Gundleus está vivo disse apaticamente, mudando de assunto.
Está preso em Corinium disse eu, como se ela não soubesse já onde estava o seu inimigo.
Gravei o nome dele numa pedra disse ela e, depois, lançou-me um olhar dourado. Ele engravidou-me quando me violou, mas eu matei aquela coisa má com morrão.
Morrão era um pulgão preto que crescia no centeio e que as mulheres usavam para abortar. Merlim também o usava como meio para entrar num estado de sonho e falar com os Deuses. Uma vez experimentei e fiquei doente vários dias.
Lunete insistiu em mostrar a Nimue todas as suas coisas novas: a trempe, o caldeirão e a peneira, as jóias e a capa, a camisa de linho fino e o jarro de prata batida com a imagem de um cavaleiro romano nu a caçar um veado. Nimue fingiu ficar impressionada e pediu-me para a acompanhar até Caer Cadarn onde ia pernoitar.
A Lunete é uma tola disse.
Caminhávamos ao longo da margem do ribeiro que corria para o rio Cam. As folhas acastanhadas e quebradiças estalavam debaixo dos nossos pés. Tinha havido geada e o dia estava muito frio. Nimue parecia mais irritada do que nunca e, por isso mesmo, parecia também mais bonita. A tragédia condizia com Nimue, ela sabia-o e procurava-a.
Estás a tornar-te conhecido disse, fixando os anéis de ferro de guerreiro que eu trazia na mão esquerda.
Eu não usava anéis na mão direita para poder agarrar bem a espada e a lança, mas agora usava quatro anéis de ferro na mão esquerda.
Pura sorte expliquei-lhe.
Não, não é sorte. Ela levantou a mão esquerda para eu ver a cicatriz. Quando tu lutas, Derfel, eu luto contigo. Vais ser um grande guerreiro e vais precisar de sê-lo.
Vou?
Ela tremeu. O céu estava cinzento, tinha a mesma cor de uma espada não polida, embora o horizonte a oeste estivesse raiado com uma luz acre e amarelada. As árvores ostentavam a cor escura do Inverno e também a erva estava taciturnamente escura. O fumo das fogueiras das aldeias mantinha-se rente ao chão como se temesse o céu frio e vazio.
Sabes porque razão Merlim deixou Ynys Wydryn? perguntou-me ela, de repente, surpreendendo-me com a pergunta.
Para encontrar a Sabedoria da Grã-Bretanha respondi, repetindo o que ela dissera no Conselho Supremo em Glevum.
Mas porquê agora? Porque não há dez anos? perguntou-me Nimue, respondendo em seguida à sua própria pergunta: Ele partiu agora, Derfel, porque estamos a entrar em tempos ruins. Tudo o que é bom vai ser mau, tudo o que é mau vai piorar. Todos na Grã-Bretanha estão a reunir forças, porque sabem que a grande luta está para vir. Às vezes penso que os Deuses estão a brincar connosco. Estão a lançar todos os dados ao mesmo tempo para ver como o jogo vai acabar. Os Saxões estão cada vez mais fortes e em breve vão atacar em guerrilhas, não em grupos de guerra. Os cristãos cuspiu para o regato para afastar o mal dizem que, muito em breve, fará quinhentos anos que o seu miserável Deus nasceu e afirmam que o seu tempo de triunfo está a chegar. Cuspiu outra vez. E para nós, os Bretões? Andamos a lutar uns contra os outros, a roubar-nos uns aos outros, a construir salões de festas quando devíamos estar a forjar espadas e lanças. Vamos ser postos à prova, Derfel, e é por isso que Merlim está a reunir todas as suas forças, pois se os reis não nos salvarem, então Merlim terá de persuadir os Deuses a virem ajudar-nos.
Ela parou ao lado de um pequeno lago do regato e olhou para a água escura onde já se sentia aquela quietude gélida que sobrevêm à congelação. A água nas pegadas dos animais deixadas à beira do lago já tinha gelado.
E Artur? perguntei. Ele não nos vai salvar? Ela esboçou um sorriso.
Artur é para Merlim o que tu és para mim. Artur é a espada de Merlim, mas nenhum de nós vos pode controlar. Nós damo-vos poder estendeu a mão esquerda, a da cicatriz, e tocou o botão do punho da minha espada e depois deixamo-vos ir. Temos de confiar em que farão o que estiver certo.
Podes confiar em mim disse eu.
Ela suspirou, tal como sempre acontecia, quando eu fazia afirmações deste género, depois sacudiu a cabeça.
Quando a Prova da Grã-Bretanha chegar, Derfel... e ela chegará... nenhum de nós saberá o quão forte se mostrará a nossa espada.
Virou-se e contemplou as muralhas de Caer Cadarn que brilhavam com os estandartes de todos os senhores e chefes que tinham vindo para testemunhar a aclamação de Mordred no dia seguinte.
Loucos disse ela amargamente. Todos loucos.
Artur chegou no dia seguinte. Chegou pouco depois do amanhecer, tendo vindo a cavalo de Ynys Wydryn com Morgana. Vinha acompanhado apenas por dois guerreiros, montados os três nos seus grandes cavalos, apesar de não trazerem nem armadura nem escudos. Artur nem sequer trazia o seu estandarte. Mostrava-se muito descontraído, quase como se para ele aquela cerimónia não fosse objecto de interesse, mas apenas de curiosidade. Agrícola, o senhor da guerra romano de Tewdric, viera no lugar do seu senhor, que tinha sido acometido de febres, e também ele parecia manter-se à parte da cerimónia, mas todas as outras pessoas em Caer Cadarn estavam tensas, preocupadas que os presságios do dia se revelassem mesmo maus. O príncipe Cadwy de Isca estava presente, com as tatuagens azuis nas bochechas. O príncipe Gereint, Senhor das Pedras, viera da fronteira saxónica e o rei Melwas da arruinada Venta. Toda a nobreza de Dumnónia, mais de cem homens, esperava no forte. Saraivara durante a noite, deixando Caer Cadarn coberto de lama e escorregadio, mas a primeira luz do dia trouxe um vento vivificante vindo de oeste e, na altura em que Owain saiu do salão com o infante real, o sol já brilhava nos montes que circundavam os acessos leste a Caer Cadarn.
Morgana decidira qual seria a hora da cerimónia, lendo-a nos prenúncios do fogo, da água e da terra. Segundo as profecias, seria uma cerimônia matinal, pois nada de bom advém de diligências feitas quando o Sol já está em declínio, mas a multidão tinha de esperar até Morgana estar segura de que a hora exacta estava iminente antes do processo poder ter início no círculo de pedras que coroava o cimo de Caer Cadarn. As pedras do círculo não eram grandes, nenhuma delas era maior do que uma criança dobrada, enquanto, mesmo no centro, onde Morgana se afadigava a calcular a incidência dos pálidos raios de sol, se erguia a pedra real de Dumnónia. Era um seixo cinzento liso, indiferenciável de muitos outros. No entanto, e segundo o que nos ensinaram, fora nessa pedra que o Deus Bei tinha ungido o seu filho humano Beli Mawr, antepassado de todos os reis de Dumnónia. Quando Morgana terminou os seus cálculos, Balise foi levado ao centro do círculo. Balise era um antigo druida que vivia no bosque a oeste de Caer Cadarn e que, na ausência de Merlim, fora persuadido a comparecer e a invocar as bênçãos dos Deuses. Era uma criatura toda curvada e cheia de piolhos, embrulhada em trapos e peles de cabra, tão sujo que era impossível dizer onde acabava a barba e começavam os trapos. Contudo, tinham-me dito, que fora Balise quem ensinara a Merlim muitas das suas habilidades. O velhote levantou o seu bastão para o sol pálido, resmungou algumas rezas e cuspiu, andando em círculo no sentido da rota do Sol antes de sucumbir a um terrível ataque de tosse. Foi aos tropeções até uma cadeira perto do círculo, sentando-se ofegante enquanto a sua companheira, uma anciã que, no aspecto, quase não se distinguia do próprio Balise, lhe esfregava debilmente as costas.
O bispo Bedwin rezou uma oração ao Deus cristão e em seguida o rei menino foi exibido à volta da parte exterior do círculo. Mordred fora colocado num escudo de guerra e envolvido em peles e, desta forma, foi exibido perante todos os guerreiros, chefes e príncipes que, à medida que o menino ia passando se iam ajoelhando para lhe prestar homenagem. Um rei adulto teria andado à volta do círculo, mas, neste caso, eram dois guerreiros dumnonianos que carregavam Mordred. Atrás da criança, com a sua longa espada desembainhada, caminhava Owain, o campeão do rei. Mordred era levado contra o Sol, a única altura na vida de um rei em que ele andava contra a ordem natural das coisas, mas essa desditosa direcção era deliberadamente escolhida para mostrar que um rei que descendia dos Deuses estava acima dessas regras insignificantes como, por exemplo, andar em círculo seguindo sempre a rota do Sol.
Mordred foi depois colocado no seu escudo em cima da pedra central enquanto lhe eram trazidas ofertas. Uma criança colocou um pão em frente dele, símbolo do seu dever de alimentar o povo, uma segunda criança trouxe-lhe um chicote para mostrar que ele tinha de ser um magistrado para o seu país e, por último, foi colocada uma espada a seus pés para simbolizar o seu papel de defensor de Dumnónia. Mordred chorou do princípio ao fim da cerimónia e dava tantos pontapés que quase tombava do escudo. Os pontapés desnudaram o seu pé aleijado e isso, pensei eu, tinha de ser um mau presságio, mas os celebrantes ignoraram o membro aleijado enquanto os homens importantes do reino se aproximavam um a um para depositarem as suas ofertas. Traziam ouro e prata, pedras preciosas, moedas, âmbar negro e âmbar. Artur ofereceu à criança uma estátua dourada de um falcão, presente este que fez os espectadores abrir a boca de espanto perante tanta beleza, mas Agrícola trouxe o presente mais valioso de todos, colocando a armadura de guerra real do rei Gorfyddyd de Powys aos pés do menino. Artur capturara a armadura ornamentada com ouro depois de ter expulsado Gorfyddyd do seu acampamento e, no regresso, presenteara o rei Tewdric com a armadura; e, agora, o rei Tewdric, através do seu senhor da guerra, devolvia o tesouro a Dumnónia.
O bebé rabugento foi finalmente levantado da pedra e entregue à sua nova ama, uma escrava da casa de Owain. Era chegado o momento de Owain. Todos os outros homens importantes traziam capas e peles por causa do frio do dia, mas Owain avançou envergando apenas as calças e as botas. O seu peito e os seus braços tatuados estavam tão nus como a espada desembainhada que, com o devido cerimonial, pousou em cima da pedra real. Depois, deliberadamente e com o desdém estampado no rosto, andou à volta do círculo cuspindo na direcção de todos os presentes. Era um desafio. Se algum homem julgasse que Mordred não devia ser rei, então tudo o que tinha a fazer era avançar e arrancar a espada desembainhada da pedra. Depois tinha de lutar contra Owain. Owain pavoneou-se, escarneceu e convidou ao desafio, mas ninguém se mexeu. Só depois de ter dado duas voltas ao circuito é que Owain voltou para junto da pedra e pegou na espada.
Todos aplaudiram, pois Dumnónia tinha de novo um rei. Os guerreiros que rodeavam as muralhas de Caer Cadarn batiam com as hastes das lanças nos escudos.
Era necessário um último ritual. O bispo Bedwin tentara proibi-lo, mas o conselho ignorara-o. Reparei que Artur se afastou, mas todos os outros, até o bispo Bedwin, ficaram ali a ver um cativo, nu e assustado, ser levado até à pedra real. Era Wlenca, o rapaz saxão que eu capturara. Duvido que ele soubesse o que estava a acontecer, mas devia temer o pior.
Morgana tentou fazer despertar Balise, mas o velho druida estava fraco demais para representar o seu papel, pelo que a própria Morgana se dirigiu a Wlenca, que não parava de tremer. O saxão estava desamarrado e podia ter tentado fugir, apesar de os Deuses saberem que não havia fuga possível por entre a multidão armada que o rodeava, mas ele optou por ficar parado enquanto Morgana se aproximava. Talvez a máscara de ouro e o coxear dela o tenham imobilizado, e ele não se mexeu até ela ter mergulhado a mão esquerda aleijada e enluvada numa taça e, depois de um momento de deliberação, o ter tocado um pouco acima da barriga. Ao sentir esse toque Wlenca deu um salto de susto, mas depois ficou outra vez quieto. Morgana mergulhara a mão numa taça de sangue de cabra que agora deixava a sua marca vermelha na barriga magra e pálida de Wlenca.
Morgana afastou-se. A multidão estava muito quieta, silenciosa e apreensiva, pois aquele era um pavoroso momento de verdade. Os Deuses iam falar a Dumnónia.
Owain entrou no círculo. Tinha-se descartado da espada e, em vez dela, trazia a sua lança de haste negra. Olhava fixamente para o rapaz saxão aterrorizado, que parecia estar a rezar aos seus próprios Deuses, mas eles não tinham qualquer poder em Caer Cadarn.
Owain movia-se devagar. Desviou os olhos do olhar de Wlenca por apenas um segundo, exactamente o tempo que precisou para colocar a ponta da lança mesmo sobre a marca na barriga do saxão, voltando a fixar os olhos do cativo. Estavam ambos imóveis. Havia lágrimas nos olhos de Wlenca, que sacudiu levemente a cabeça num apelo mudo por misericórdia, mas Owain ignorou o apelo. Esperou até que Wlenca ficasse quieto de novo. A ponta da lança permanecia em cima da marca de sangue e nenhum dos dois homens, se mexia. O vento revolvia-lhes o cabelo e levantava as capas húmidas dos espectadores.
Owain enterrou a lança. Deu uma só, mas vigorosa estocada que fez a lança penetrar profundamente no corpo de Wlenca. Depois puxou a lâmina e correu para trás para deixar o saxão a sangrar sozinho no círculo real.
Wlenca gritou. A ferida era terrível, feita deliberadamente para provocar uma morte lenta e com tanta dor que levava à loucura, mas a partir das convulsões de morte do moribundo, um adivinho experimentado como Balise ou Morgana podia predizer o futuro do reino. Balise despertou do seu torpor e observou atento enquanto o saxão cambaleava com uma mão agarrada à barriga, flectindo o corpo para a frente, para tentar combater a dor terrível. Nimue inclinava-se avidamente para a frente, pois aquela era a primeira vez que testemunhava a mais poderosa de todas as adivinhações e queria aprender o segredo. Confesso que eu não pude conter um esgar, não pelo horror da cerimónia, mas porque tinha simpatizado com Wlenca e vira no seu rosto largo de olhos azuis uma imagem de como eu próprio era. No entanto conformei-me, pois sabia que o seu sacrifício significava que ele seria oferecido a um guerreiro no Outro Mundo onde, um dia, eu e ele nos encontraríamos de novo.
Os gritos de Wlenca calaram-se, transformando-se numa palpitação violenta. O seu rosto ficara amarelo, trémulo, mas ele conseguiu manter-se de pé, cambaleando na direcção leste. Chegou ao círculo de pedras e, por um segundo, pareceu que ia cair, mas um espasmo de dor fê-lo arquear-se, andando ainda para a frente. Rodou em círculo, salpicando tudo de sangue, e deu alguns passos para norte. Por fim, tombou. Sacudia-se todo em agonia e cada espasmo significava alguma coisa para Balise e Morgana. Morgana correu para a frente para o observar mais de perto enquanto ele se torcia, contraía e estremecia. Por alguns segundos as pernas agitaram-se e, depois, as entranhas rebentaram-lhe, atirou a cabeça para trás e da garganta saiu-lhe um som sufocante. Ao morrer o saxão derramou uma grande quantidade de sangue que quase chegou aos pés de Morgana.
Alguma coisa na atitude de Morgana nos disse que o augúrio era mau e o seu estado de espírito amargo espalhou-se pela multidão que esperava pela tão receada declaração. Morgana recuou, para se inclinar ao lado de Belise, que pairou rouca e irreverentemente. Nimue fora inspeccionar o rasto de sangue e o corpo e, depois, juntou-se a Morgana e a Balise enquanto a multidão esperava. E a multidão esperou.
Finalmente Morgana aproximou-se de novo do corpo. Dirigiu as suas palavras a Owain, o campeão do rei que estava ao lado do rei menino, mas todos se inclinaram para ouvir o que ela tinha a dizer.
O rei Mordred disse ela terá uma vida longa. Será um chefe guerreiro e conhecerá a vitória.
A multidão suspirou de alívio. O augúrio podia ser traduzido como favorável, embora eu pense que todos soubessem o que tinha ficado por dizer e alguns dos presentes ainda se lembravam da aclamação de Uther, quando o rasto de sangue e as contorções do homem moribundo previram com exactidão um reinado de glória. Contudo, mesmo sem glória, havia alguma esperança no augúrio da morte de Wlenca.
Com esta morte terminou a aclamação de Mordred. Pobre Norwenna, enterrada debaixo do Espinheiro Sagrado de Ynys Wydryn; teria feito tudo de forma tão diferente. No entanto, mesmo com mil bispos e uma infinidade de santos a rezar para que Mordred subisse ao trono, os augúrios teriam sido os mesmos. Pois Mordred, o nosso rei, era aleijado e nenhum druida nem nenhum bispo podia mudar essa realidade.
Tristan de Kernow chegou nessa tarde. Estávamos no salão grande, na festa de Mordred, um acontecimento notável pela sua falta de alegria, mas a chegada de Tristan ainda o deixou menos animado. Ninguém reparara na sua chegada até ele se aproximar da grande lareira central e as chamas se reflectirem na sua couraça de couro e no elmo de ferro. O príncipe era conhecido como um amigo de Dumnónia e o bispo Bedwin saudou-o como tal, mas à única resposta de Tristan foi desembainhar a espada.
O gesto congregou todas as atenções, pois nenhum homem devia entrar armado num salão de festas, e muito menos num salão onde se celebrava a aclamação de um rei. Alguns homens já estavam bêbados, mas até esses fitavam em silêncio o jovem príncipe de cabelo negro.
Bedwin tentou ignorar a espada desembainhada.
Viestes para a aclamação, Senhor? Atrasaste-vos, sem dúvida. É difícil viajar no Inverno. Vinde, sentai-vos aqui. Ao lado de Agrícola de Gwent. Há carne de veado.
Venho para resolver uma disputa disse Tristan, muito alto. Deixara os seus seis guardas à porta do salão por onde se via cair uma saraiva gelada. Os guardas eram homens de ar ameaçador com as armaduras molhadas e as capas a gotejar, com os escudos na posição correcta e as lanças afiadas.
Uma disputa? disse Bedwin como se até essa ideia fosse impensável. Certamente não neste dia auspicioso!
Alguns dos guerreiros presentes no salão rosnaram desafios. Estavam suficientemente bêbados para se divertirem com uma boa disputa, mas Tristan ignorou-os.
Quem fala por Dumnónia? perguntou ele.
Houve um momento de hesitação. Owain, Artur, Gereint e Bedwin tinham todos autoridade, mas nenhum era hierarquicamente superior aos outros. O príncipe Gereint, um homem que nunca tomava a iniciativa, afastou a questão encolhendo os ombros. Owain olhava de modo sinistro para Tristan, enquanto Artur respeitosamente diferiu para Bedwin que, muito acanhadamente, lembrou que ele, como conselheiro chefe do reino, podia falar como qualquer homem em nome do rei Mordred.
Então, dizei ao rei Mordred disse Tristan que haverá sangue entre o meu e o seu país, a não ser que eu receba justiça.
Bedwin ficou alarmado e as suas mãos agitavam-se em movimentos lentos enquanto tentava pensar no que dizer. Nada lhe ocorreu e acabou por ser Owain a responder.
Dizei o que tendes a dizer disse ele terminantemente.
O Rei Supremo Uther disse Tristan deu protecção a um grupo de pessoas pertencentes ao povo de meu pai. Eles vieram para este país a pedido de Uther para trabalhar nas minas e para viver em paz com os seus vizinhos. No entanto, no fim do Verão passado alguns desses vizinhos foram às minas e o que lhes ofereceram foi a espada, o fogo e a carnificina. Dizei ao vosso rei que foram cinquenta e oito mortos e que o sarhaed deles será o valor da vida deles mais a vida do homem que ordenou que os matassem, senão viremos nós com as nossas espadas e os nossos escudos para receber a paga devida.
Owain soltou uma gargalhada.
Um país pequeno como Kernow? Estamos tão assustados!
Os guerreiros à minha volta gritaram com desdém. Kernow era um país pequeno incapaz de fazer frente às forças de Dumnónia. O bispo Bedwin tentou fazer parar a algazarra, mas a sala estava cheia de homens bêbados e gabarolas que se recusaram a acalmar até ao momento em que o próprio Owain pediu silêncio.
Eu soube, príncipe disse Owain que foram os Irlandeses, os Blackshield de Oengus Mac Airem quem lançou o ataque ao brejo.
Tristan cuspiu para o chão.
Se foram eles, então voaram para atravessar o país e fazer isso, pois ninguém os viu passar e não roubaram nem um só ovo de um dumnoniano.
Isso é porque eles temem Dumnónia, mas não temem Kernow disse Owain e toda a sala irrompeu novamente em gargalhadas.
Artur esperou até o riso esmorecer.
Sabeis de algum homem além de Oengus Mac Airem que possa ter atacado o teu povo? perguntou com cortesia.
Tristan virou-se e procurou entre os homens acocorados no chão do salão. Viu a cabeça careca do príncipe Cadwy de Isca e apontou para ele com a espada.
Perguntai àquele. Melhor ainda elevou a voz para aquietar o escárnio perguntai à testemunha que eu tenho lá fora.
Cadwy levantou-se gritando que lhe permitissem ir buscar a sua espada enquanto os seus guerreiros tatuados ameaçavam todo o país de Kernow com um massacre.
Artur bateu com a mão na mesa de honra. O som ecoou pelo salão, conseguindo que se fizesse silêncio. Agrícola de Gwent, sentado ao lado de Artur, mantinha os olhos baixos, pois aquela disputa não lhe dizia respeito, mas duvido que um só pormenor daquele confronto escapasse ao seu espírito subtil.
Se algum homem derramar sangue esta noite disse Artur será declarado meu inimigo. Esperou que Cadwy e os seus homens se calassem e olhou de novo para Tristan. Trazei a testemunha, Senhor.
Isto é um tribunal? objectou Owain.
Deixai a testemunha entrar insistiu Artur.
Isto é uma festa! protestou Owain.
Deixai a testemunha entrar, deixem-no vir, o bispo Bedwin queria que toda aquela desagradável questão terminasse e concordar com Artur parecia ser a forma mais rápida de a resolver.
Os homens que estavam nos cantos da sala aproximaram-se para assistir a todo aquele teatro, mas começaram a rir-se quando a testemunha de Tristan apareceu, pois tratava-se apenas de uma rapariguinha, talvez com nove anos, que se encaminhou calmamente e com as costas muito direitas até ao seu príncipe, que lhe pôs um braço em redor dos ombros.
Sarlinna ferch Edain. Ele disse o nome da criança e, depois, apertou-lhe o ombro, tranquilizando-a. Fala.
Sarlinna molhou os lábios. Escolheu falar directamente para Artur, talvez porque ele tivesse o rosto mais amável de todos os homens sentados na mesa de honra.
O meu pai foi morto, a minha mãe foi morta, os meus irmãos e irmãs foram mortos... ela falava como se tivesse decorado as palavras, embora nenhum dos presentes duvidasse da sua veracidade. A minha irmã bebé foi morta continuou ela e o meu gatinho foi morto apareceu uma primeira lágrima e eu vi tudo.
Artur abanou a cabeça mostrando simpatia. Agrícola de Gwent passou a mão pelo cabelo curto e grisalho e, depois, olhou para as vigas enegrecidas pela fuligem. Owain reclinou-se na cadeira e levou à boca uma taça de chifre enquanto o bispo Bedwin parecia preocupado.
Viste mesmo os assassinos? perguntou o bispo à criança.
Sim, Senhor. Sarlina, agora que já não estava a dizer palavras que preparara e treinara, mostrava-se mais nervosa.
Mas era de noite, minha filha objectou Bedwin. O ataque não foi de noite, Senhor? perguntou ele a Tristan.
Todos os senhores de Dumnónia tinham ouvido falar do ataque no brejo, mas tinham acreditado na alegação de Owain de que o massacre fora obra dos irlandeses Blackshield de Oengus.
Como podia a criança ver de noite? perguntou Bedwin. Tristan encorajou a criança dando-lhe palmadinhas nas costas.
Diz ao senhor bispo o que aconteceu instruiu-a ele.
Os homens atiraram fogo para dentro da nossa cabana, Senhor disse Sarlina em voz baixa.
Mas não foi fogo suficiente resmungou um homem do meio das sombras e a sala riu-se.
Como sobreviveste, Sarlinna? perguntou-lhe Artur com suavidade quando os risos se extinguiram.
Escondi-me debaixo de uma pele de animal, Senhor. Artur sorriu.
Fizeste muito bem. Mas viste o homem que matou a tua mãe e o teu pai? Fez uma pausa. E o teu gatinho?
Ela assentiu com a cabeça. Os seus olhos brilhavam, cheios de lágrimas, na sala pouco iluminada.
Eu vi-o, Senhor disse ela serenamente.
Então diz-nos como ele era pediu Artur.
Sarlinna trazia um vestidinho cinzento por baixo de uma capa preta e, então, arregaçou as mangas do vestido descobrindo a pele clara dos braços.
Os braços do homem tinham desenhos de um dragão, Senhor. E de um javali. Aqui. E mostrou nos seus pequenos braços os locais das tatuagens. Depois olhou para Owain. E tinha anéis na barba acrescentou a miúda.
Depois calou-se, mas também não precisava dizer mais nada. Só um homem usava anéis de guerreiro na barba e todos os presentes tinham visto os braços de Owain a enterrar a lança no diafragma de Wlenca nessa manhã, e todos sabiam que esses braços tinham tatuagens do dragão de Dumnónia e do seu próprio símbolo, um javali de longas presas.
Fez-se silêncio. Um toro estalou na fogueira, soltando uma baforada de fumo para as traves do tecto. Uma lufada de vento fez a saraiva vergastar o colmo espesso do telhado e agitou as chamas das velas espalhadas pela sala. Agrícola olhava para o suporte de prata do seu copo de chifre como se nunca tivesse visto um objecto desses. Algures na sala um homem arrotou, e esse som pareceu incitar Owain a virar a sua grande cabeça desgrenhada para a criança.
Ela mente disse ele bruscamente e crianças que mentem deviam apanhar uma boa sova até ficarem a sangrar.
Sarlinna começou a chorar e, depois, enterrou o rosto na capa húmida de Tristan. O bispo Bedwin franziu o sobrolho.
Owain, é verdade que visitaste o príncipe Cadwy no fim do Verão, não é?
E então? Owain irritou-se. E então? rugiu de novo, desta vez como um desafio para toda a sala. Aqui estão os meus guerreiros! Fez um sinal na nossa direcção, sentados todos juntos no flanco direito da sala. Perguntem-lhes! Perguntem-lhes! A criança está a mentir! Juro que mente!
Gerou-se um certo reboliço na sala enquanto os homens desafiavam Tristan cuspindo para o chão. Sarlinna chorava tanto que o príncipe se inclinou e lhe pegou ao colo, abraçando-a enquanto Bedwin tentava recuperar o controlo da assistência.
Se Owain jura que não o fez gritou o bispo então a criança mente.
Os guerreiros resmungaram, concordando.
Reparei que Artur me observava. Baixei os olhos para a minha tigela de carne de veado.
O bispo Bedwin já desejava não ter convidado a criança a entrar na sala. Passou a mão pela barba e abanou a cabeça com lassidão.
A palavra de uma criança não tem qualquer peso perante a lei disse ele lamentosamente.
Uma criança não se encontra entre os que têm o Dom da Palavra.
Quem tinha o Dom da Palavra eram as nove testemunhas cuja palavra tinha o peso da verdade perante a lei; um Lorde, um druida, um padre, um pai a falar dos seus filhos, um magistrado, o dador de uma oferta falando da sua oferta, uma donzela a falar da sua virgindade, um pastor a falar dos seus animais e um condenado a dizer as suas últimas palavras. Em parte alguma da lista aparecia mencionada uma criança a falar do massacre da sua família.
Lorde Owain disse o bispo Bedwin a Tristan é um dos que têm o Dom da Palavra.
Tristan empalideceu, mas não recuava.
Eu acredito na criança disse ele e amanhã, depois do nascer do Sol, virei buscar a resposta de Dumnónia e, se essa resposta negar a justiça a Kernow, o meu pai fará justiça pelas suas próprias mãos.
O que se passa com o vosso pai? troçou Owain. Perdeu o interesse na sua última mulher, foi? Por isso quer ser vencido numa batalha, é?
Tristan saiu da sala entre gargalhadas, gargalhadas essas que aumentaram quando os homens começaram a imaginar um país tão pequeno como Kernow a declarar guerra à toda poderosa Dumnónia. Eu não me juntei ao coro de gargalhadas, e preferi terminar o meu estufado, dizendo a mim próprio que precisava da comida se me queria manter quente durante o meu turno de guarda que teria início no final da festa. Também não bebi hidromel, pelo que ainda estava sóbrio quando fui buscar a minha capa, a lança, a espada e o elmo e fui para a muralha do lado norte. Já não saraivava e as nuvens afastavam-se, revelando uma brilhante meia-lua por entre o tremeluzir das estrelas, mas havia mais nuvens a amontoar-se a Oeste, por cima do mar Severn. Eu tremia de frio enquanto andava de um lado para o outro da muralha.
E foi onde Artur me encontrou.
Sabia que ele viria. Desejava que ele viesse, mas senti medo quando o vi atravessar o recinto e subir o pequeno conjunto de escadas de madeira que levavam à muralha de terra e pedra mais baixa. No início ele não disse nada, limitando-se a debruçar-se nos parapeitos de madeira a olhar para a pequena mancha de luz que iluminava Ynys Wydryn. Trazia a sua capa branca, puxando-a para cima para que a bainha não arrastasse pela lama. Amarrara as pontas da capa à volta da cinta, mesmo acima da bainha da espada ornamentada com losangos.
Não te vou perguntar falou por fim, a respiração a condensar com o ar da noite o que se passou naquele brejo, porque não quero levar nenhum homem, muito menos um homem que eu prezo, a quebrar um juramento de morte.
Sim, meu Senhor disse eu, perguntando-me como é que ele sabia que tínhamos feito um juramento de morte naquela noite de breu.
Por isso, vamos antes conversar. Sorriu-me e fez um gesto em direcção à muralha. Uma sentinela que anda de um lado para o outro mantém-se quente disse ele. Tenho ouvido dizer que és um bom soldado.
Tento, Senhor.
E também tenho ouvido que és bem sucedido. Muito bem. Calou-se quando passámos por um dos meus companheiros que estava encostado ao parapeito. O homem olhou para mim, quando passei, e o seu
rosto mostrou receio de que eu pudesse trair as tropas de Owain. Artur afastou o capuz do rosto. Andava com passos largos e firmes e eu tinha de me apressar para conseguir acompanhá-lo.
Qual pensas que é o trabalho de um soldado, Derfel? perguntou-me daquela forma íntima que nos fazia sentir que ele estava mais interessado em nós do que em qualquer outra pessoa do mundo.
Combater em batalhas, meu Senhor respondi. Ele abanou a cabeça.
Combater em batalhas, Derfel corrigiu-me em nome das pessoas que não podem lutar por elas próprias. Aprendi isso na Bretanha. Este mundo miserável está cheio de pessoas fracas, pessoas sem força, pessoas esfomeadas, pessoas tristes, pessoas doentes, pessoas pobres e a coisa mais fácil do mundo é desprezar os fracos, especialmente quando se é soldado. Se fores um guerreiro e quiseres a filha de um homem, apoderas-te dela; se quiseres a terra desse homem, mata-lo. Afinal tu és um soldado e tens uma lança e uma espada e ele é apenas um homem fraco e pobre, com uma charrua partida e um boi doente... sim, o que é que te pode impedir?
Não esperava resposta para a pergunta, limitou-se a continuar a andar em silêncio. Tínhamos chegado ao portão oeste e as escadas de toros rachados que levavam à plataforma sobre o portão estavam a ficar brancas com a geada. Subimo-las lado a lado.
Mas a verdade, Derfel disse Artur quando chegámos à alta plataforma é que nós só somos soldados, porque o homem fraco nos faz soldados. Ele cultiva o cereal que nos alimenta, ele curte o couro que nos protege e ele corta os freixos com que se fazem as hastes das nossas lanças. Devemos-lhe o nosso serviço.
Sim, meu Senhor disse eu, olhando com ele para a interminável extensão de planície à nossa frente. A noite não estava tão gélida como a noite em que Mordred nascera, mas estava muito fria e o vento tornava-a ainda pior.
Todas as coisas têm um propósito disse Artur até mesmo o ser-se soldado.
Sorriu-me, como se pedindo desculpas por ser tão sincero; no entanto não precisava de se desculpar, pois eu aprendia muito com as suas palavras. Eu sonhara ser um soldado por causa da alta posição social de um guerreiro e porque sempre me parecera que era melhor pegar numa lança do que num ancinho, mas eu nunca pensara em mais nada senão nessas ambições egoístas. Artur pensara muito mais e trouxe para Dumnónia uma visão clara de onde a sua espada e a sua lança o deviam levar.
Temos uma oportunidade disse Artur encostando-se à alta muralha enquanto falava de construir uma Dumnónia onde podemos servir o nosso povo. Não lhes podemos dar alegria e eu não sei como garantir-lhes uma boa colheita que os faça enriquecer, mas sei que os podemos manter em segurança, e um homem em segurança, um homem que saiba que os seus filhos vão crescer sem serem capturados como escravos e que o valor da sua filha como noiva não vai ser arruinado pela violação de um soldado, é um homem com mais possibilidades de ser feliz do que um homem que viva sob a ameaça da guerra. Não achas que é justo?
Sim, meu Senhor disse eu.
Esfregou as mãos enluvadas para combater o frio. As minhas mãos estavam embrulhadas em trapos, que tornavam mais difícil segurar a lança, principalmente porque também estava a tentar aquecê-las por baixo da capa. Atrás de nós, no salão da festa, ouviam-se as sonoras gargalhadas dos homens. A comida fora tão má como qualquer outra comida nas festas feitas no Inverno, mas correra hidromel e vinho com fartura, se bem que Artur estivesse tão sóbrio como eu próprio. Observei o seu perfil enquanto ele olhava para as nuvens. A lua ensombrava-lhe os maxilares chupados e fazia o seu rosto parecer mais ossudo.
Odeio a guerra disse Artur de repente.
Odiais? O meu tom era de surpresa, mas eu era ainda suficientemente jovem para me divertir com a guerra.
Claro que sim! Sorriu-me. Por acaso sou bom na guerra e talvez tu também sejas, mas isso só significa que temos de saber utilizar a nossa habilidade de forma sensata. Sabes o que aconteceu em Gwent no Outono passado?
Feristes Gorfyddyd disse eu avidamente arrancando-lhe o braço.
Pois foi disse ele, quase num tom de surpresa. Os meus cavalos não são de muita utilidade num país montanhoso e não servem mesmo para nada em bosques, por isso os levei para o norte para as planícies de cultivo de Powys. Gorfyddyd estava a tentar deitar abaixo as muralhas de Tewdric e eu comecei a incendiar as medas de feno e os celeiros de Gorfyddyd. Queimámos e matámos. Fizemos tudo bem, não porque quiséssemos, mas porque tinha de ser feito. E funcionou. Afastei Gorfyddyd das muralhas de Tewdric e fi-lo regressar às planícies de cultivo onde os meus cavalos o podiam vencer. E venceram. Atacámo-lo ao amanhecer e ele lutou bem, mas perdeu a batalha assim como o braço esquerdo e aí, Derfel, foi o fim da matança. Serviu o seu propósito, entendes? O propósito da matança era convencer Powys de que era melhor para eles estarem em paz com Dumnónia do que em guerra. E agora haverá paz.
Haverá mesmo? perguntei com hesitação.
A maior parte de nós estava plenamente convencida de que o degelo da Primavera só traria um novo ataque do irritado rei Gorfyddyd de Powys.
O filho de Gorfyddyd é um homem sensato disse Artur. Chama-se Cuneglas e quer a paz, e nós temos de dar ao príncipe Cuneglas tempo para convencer o pai de que perderá mais do que um braço se voltar a entrar em guerra connosco. E quando Gorfyddyd estiver convencido de que a paz é melhor do que a guerra, ele irá convocar um conselho e nós comparecemos, fazemos muito barulho e no fim, Derfel, eu caso com Ceinwyn, a filha de Gorfyddyd. Lançou-me um olhar rápido, mas um tanto embaraçado. Chamam-lhe Seren, a estrela! A estrela de Powys. Dizem que é muito bonita. Ele mostrava-se satisfeito com essa perspectiva e, de alguma forma, o seu agrado surpreendeu-me, mas até aí eu ainda não tinha admitido que Artur fosse vaidoso. Esperemos que ela seja tão bonita como uma estrela continuou. Mas bonita ou não, casarei com ela e pacificaremos a Silúria. Então os Saxões enfrentarão uma Grã-Bretanha unida. Powys, Gwent, Dumnónia e Silúria: os países todos juntos, todos a lutar contra o mesmo inimigo e todos em paz entre si.
Ri-me, não para ele, mas com ele, pela sua profecia ambiciosa ser já tão real.
Como sabeis? perguntei.
Porque Cuneglas ofereceu os termos da paz, claro, e tu não podes dizer isto a ninguém, Derfel, senão pode não acontecer. Nem mesmo o pai dele o sabe ainda. Por isso, isto é um segredo que fica só entre nós dois.
Sim, meu Senhor disse eu.
Senti-me imensamente privilegiado por me ter sido contado um segredo tão importante, mas claro que era exactamente assim que Artur queria que eu me sentisse. Ele sabia sempre como manipular os homens, e sabia principalmente como manipular homens jovens e idealistas.
Mas para que serve a paz perguntou-me Artur se andamos a lutar entre nós? A nossa tarefa é dar a Mordred um reino rico e pacífico, e para isso temos de construir um reino bom e justo. Olhava agora para mim e havia sinceridade na sua voz afável e profunda. Não podemos ter paz se rompermos os nossos tratados, e o tratado que permitia aos homens de Kernow explorar as nossas minas de estanho era um bom tratado. Não tenho dúvidas de que nos estavam a enganar, todos os homens enganam, quando têm de entregar o seu dinheiro aos reis, mas será que isso era razão para os matar, matar os filhos deles e até os gatinhos dos filhos deles? Por isso, Derfel, a não ser que acabemos com estes disparates agora mesmo, na próxima Primavera teremos guerra em vez de paz. O rei Mark vai atacar. Não vencerá, mas o seu orgulho levará a que os seus homens matem muitos dos nossos agricultores e nós teremos de enviar um grupo de guerreiros para Kernow. Kernow é um péssimo território para a luta, péssimo, mas, no fim, ganharemos. O nosso orgulho ficará satisfeito, mas a que preço? Trezentos agricultores mortos? Quantas cabeças de gado perdidas? E se Gorfyddyd vir que estamos a travar uma guerra na nossa costa ocidental, sentir-se-á tentado a tirar vantagem da nossa fraqueza atacando ao norte. Podemos fazer a paz, Derfel, mas só se formos suficientemente fortes para fazer a guerra. Se parecermos fracos, então os nossos inimigos vão atacar-nos como abutres. E quantos saxões vamos enfrentar no próximo ano? Será que podemos mesmo dispensar homens que vão atravessar o Tamar para matar alguns agricultores em Kernow?
Senhor comecei e estava quase a confessar a verdade, mas Artur calou-me.
Os homens no salão estavam a cantar o Canto de Guerra de Beli Mawr e a bater com os pés no chão de terra aclamando a grande matança, antecipando sem dúvida outra carnificina em Kernow.
Não deves dizer uma palavra do que se passou no brejo avisou-me Artur. Os juramentos são sagrados, mesmo para aqueles que se perguntam se realmente existe algum Deus que se preocupe em fazê-los valer. Suponhamos apenas, Derfel, que a rapariguita de Tristan estava a dizer a verdade. O que é que isso significa?
Eu olhei para a noite gelada.
Guerra com Kernow disse tristemente.
Não disse Artur. Significa que amanhã de manhã, quando Tristan regressar, alguém tem de ser desafiado para se chegar à verdade. As pessoas dizem que, nestes confrontos, os Deuses favorecem sempre os honestos.
Eu sabia o que ele estava a dizer e abanei a cabeça.
Tristan não vai desafiar Owain disse eu.
Não se ele tiver o bom senso que parece ter concordou Artur. Até para os Deuses seria difícil fazer com que Tristan vencesse a espada de Owain. Por isso, se queremos paz e todas as coisas boas que se seguirão à paz, outra pessoa terá de ser o campeão de Tristan. Não te parece certo?
Olhei para ele, horrorizado com o que pensei que ele estava a tentar dizer.
Vós? perguntei, por fim.
Ele encolheu os ombros sob a capa branca.
Não sei quem mais poderia ser disse suavemente. Mas há uma coisa que podes fazer por mim.
Qualquer coisa, meu Senhor disse eu. Qualquer coisa. Nesse momento pensei que até teria concordado em lutar contra Owain por ele.
Quando um homem vai para uma batalha, Derfel disse ele com cuidado deve saber se a sua causa é correcta. Talvez os Blackshield irlandeses tivessem levado os seus escudos por terra sem que ninguém os tivesse visto. Ou talvez os seus druidas os tenham feito voar. Ou talvez amanhã os Deuses, se tiverem algum interesse, pensem que eu luto por uma boa causa. O que achas?
Ele fez a pergunta tão inocentemente como se estivesse a perguntar sobre o tempo. Eu olhei para ele, completamente dominado e desejando desesperadamente que evitasse aquele desafio contra o melhor espadachim de Dumnónia.
Então? incitou-me ele.
Os Deuses... comecei, mas depois senti que era difícil para mim falar, porque Owain fora bom para mim. O campeão não era um homem honesto, mas podia contar pelos dedos quantos homens honestos eu tinha conhecido e, apesar das suas trapaças, gostava dele. No entanto, gostava muito mais daquele homem honesto que tinha diante de mim. Fiz a pausa também para determinar se as minhas palavras quebrariam ou não o juramento, depois decidi que não quebravam. Os Deuses irão apoiar-vos, Senhor disse eu, por fim.
Ele sorriu tristemente.
Obrigado, Derfel.
Mas porquê? perguntei abruptamente.
Ele suspirou e olhou de novo para a terra iluminada pela lua.
Quando Uther morreu disse ele, depois de um longo tempo a terra mergulhou num caos. Isso acontece a uma terra sem rei e nós estamos sem rei neste momento. Temos Mordred, mas ele é uma criança, por isso alguém tem de exercer o poder até ele chegar à idade de o poder fazer. Só um homem tem de exercer o poder, Derfel, não três ou quatro ou dez, só um. Quem me dera que assim não fosse. Eu preferia envelhecer tendo Owain como o meu amigo dilecto, mas não pode ser. Pelo rei Mordred, o poder tem de ser devida e justamente exercido e, depois, ser-lhe entregue intacto. Isso significa que não podemos permitir eternas disputas entre homens que querem o poder do rei para si próprios. Um homem tem de ser um rei sem o ser e esse homem tem de renunciar aos poderes do reino, quando Mordred chegar à idade certa. E isso é o que fazem os soldados, lembras-te? Eles lutam nas batalhas pelas pessoas que são fracas de mais para lutar por si próprias. E, sorrindo, acrescentou: Eles também se apoderam daquilo que querem, e amanhã eu vou querer uma coisa de Owain. Eu quero a sua honra e, por isso, vou tê-la. Encolheu os ombros. Amanhã lutarei por Mordred e por aquela criança. E tu, Derfel bateu-me com força no peito vais arranjar-lhe um gatinho. Bateu com os pés no chão para combater o frio e olhou para Oeste. Achas que, de manhã, aquelas nuvens vão trazer chuva ou neve? perguntou ele.
Não sei, meu Senhor.
Esperemos que sim. É verdade, soube que conversaste com aquele pobre saxão que mataram para ver o futuro. Pois então diz-me tudo o que ele te disse. Quanto mais soubermos dos nossos inimigos, melhor.
Acompanhou-me de volta ao meu posto, ouviu tudo o que eu tinha a dizer sobre Cerdic, o novo chefe saxão na costa sul e, depois, foi deitar-se. Parecia pouco preocupado com o que poderia acontecer na manhã seguinte, mas eu estava aterrorizado por ele. Lembrei-me de Owain a vencer o ataque combinado dos dois campeões de Tewdric e tentei rezar às estrelas, que são as casas dos Deuses, mas não as conseguia ver, porque os meus olhos estavam rasos de lágrimas.
A noite foi longa e gélida. Mas eu desejava que a madrugada não chegasse.
O desejo de Artur realizou-se, pois ao amanhecer começou a chover. Rapidamente se transformou num terrível temporal de chuva torrencial e persistente que, sob a forma de véus cinzentos, atravessava tempestuosamente o extenso vale entre Caer Cadarn e Ynys Wydryn. As valas transbordavam. A água caía em torrentes das muralhas e formava grandes poças sob os beirais do edifício principal. Saía fumo pelos buracos dos telhados de colmo húmidos e as sentinelas encolhiam-se debaixo das capas encharcadas.
Tristan, que passara a noite na pequena aldeia a leste de Caer Cadarn, subia com dificuldade o caminho enlameado que conduzia ao forte. Os seus seis guardas e a pequena órfã acompanhavam-no. Escorregavam na lama sempre que não conseguiam encontrar apoios para os pés nos tufos de erva que cresciam na beira do caminho. O portão estava aberto e nenhuma sentinela se mexeu para obstruir a passagem ao príncipe de Kernow, quando ele passou a chapinar na lama em direcção à porta do salão principal, onde não havia ninguém para o receber.
O interior do salão era um autêntico caos: homens a dormir curando as bebedeiras da noite, restos de comida, cães a comer a carne podre, brasas cinzentas encharcadas e o vomitado a congelar sobre os juncos do chão. Tristan deu um pontapé num dos homens que estavam a dormir, acordando-o e mandando-o chamar o bispo Bedwin ou alguma outra pessoa com autoridade.
Se é que alguém tem autoridade neste país disse ele. Bedwin, envergando uma pesada capa para se proteger da chuva forte, lá conseguiu passar, a cambalear e a escorregar na lama traiçoeira.
Meu Senhor disse ele, arfando, ao entrar no duvidoso abrigo proporcionado pelo salão, apresento-vos as minhas desculpas. Não vos esperava tão cedo. Um tempo inclemente, este, não é? Torceu a água das abas da capa. Ainda assim, é melhor a chuva do que a neve, não vos parece?
Tristan não respondeu.
Bedwin ficou perturbado com o silêncio do seu convidado.
Talvez um pouco de pão? Ou vinho quente? Tenho a certeza de que haverá papas de aveia.
Olhou à volta procurando alguém que levasse as ordens à cozinha, mas ali só havia homens a dormir e a ressonar, completamente imóveis.
Minha pequenina Bedwin retraiu-se por causa da dor de cabeça, quando se inclinou junto a Sarlinna, deves estar com fome, não deves?
Viemos à procura de justiça e não de comida disse Tristan bruscamente.
Ah, sim. Claro. Claro.
Bedwin tirou o capuz da cabeça de cabelo tonsurado e coçou a barba por causa de um piolho incómodo.
Justiça disse ele com um ar vago, depois assentiu vigorosamente com a cabeça. Pensei no assunto, Senhor, realmente pensei, e cheguei à Conclusão de que a guerra não é desejável. Não concordais? Esperou, mas o rosto de Tristan não mostrou nenhuma reacção. É um desperdício disse Bedwin e embora não possa considerar Lorde Owain culpado, confesso que falhámos no nosso dever de proteger os vossos conterrâneos no brejo. Falhámos redondamente. Falhámos de forma bem triste e, por isso, Príncipe e Senhor, se agradar a vosso pai, vamos, com certeza, fazer o pagamento do sarhaed, mas não pelo gatinho. E Bedwin soltou uma risada abafada.
Tristan fez uma careta.
E quanto ao homem que ordenou a matança? Bedwin encolheu os ombros.
Que homem? Não sei de homem nenhum.
Owain disse Tristan. Que quase de certeza aceitou ouro de Cadwy.
Bedwin sacudiu a cabeça.
Não! Não! Não! Não pode ser. Não. Juro, Senhor, que não sei da culpa de nenhum homem. Lançou a Tristan um olhar de súplica. Meu Príncipe e Senhor, magoar-me-ia muito ver os nossos países em guerra. Já ofereci o que posso oferecer e rezarei pelos vossos mortos, mas não posso anular o juramento de inocência de um homem.
Eu posso disse Artur.
Ele mantivera-se à espera atrás da divisória de madeira da cozinha, ao fundo do salão. Eu estava com ele, quando entrou no salão onde a sua capa branca parecia brilhar na obscuridade.
Bedwin pestanejou.
Lorde Artur?
Artur avançou por entre os corpos que se mexiam e gemiam.
Se o homem que matou os mineiros de Kernow não for punido, Bedwin, ele pode voltar a matar. Não concordais?
Bedwin encolheu os ombros, abriu os braços e voltou a encolher os ombros. Tristan franziu o sobrolho, sem estar certo do desfecho a que levariam as palavras de Artur.
Artur deteve-se junto a uma das colunas centrais do salão.
E por que razão deve o reino pagar sarhaed quando não foi o reino quem provocou a carnificina? perguntou. Por que razão deve o tesouro do meu Senhor Mordred ser esvaziado por causa da ofensa de um outro homem?
Bedwin fez um gesto a Artur para que se calasse.
Nós não sabemos quem é o assassino insistiu ele.
Então temos de provar a sua identidade disse Artur simplesmente.
Não podemos! protestou Bedwin irritado. A criança não possui o Dom da Palavra! E Lorde Owain, se é a ele que vos referis, jurou que está inocente. Ele tem o Dom da Palavra. Por isso, porquê levar a cabo a farsa de um julgamento? A sua palavra é suficiente.
Num tribunal de palavras, sim disse Artur. Mas também há o tribunal de espadas e, pela minha espada, Bedwin aqui ele fez uma pausa e desembainhou a Excalibur, que brilhou na penumbra eu mantenho que Owain, Campeão de Dumnónia, causou danos aos nossos primos de Kernow e que ele, e mais ninguém, deve pagar o preço.
Enterrou a ponta da Excalibur na terra através dos juncos imundos e ali a deixou a abanar. Por um segundo pensei se os Deuses do Outro Mundo apareceriam de repente para ajudar Artur, mas só se ouvia o som do vento e da chuva e dos homens acabados de acordar a respirar com dificuldade.
Bedwin também mal podia respirar. Durante alguns segundos ficou completamente sem fala.
Vós... conseguiu finalmente dizer, mas depois nada mais disse. Tristan, com o seu belo rosto pálido batido pela luz descorada, abanou a cabeça.
Se alguém tem de competir num tribunal de espadas disse ele a Artur deixai que seja eu.
Artur sorriu.
Eu pedi primeiro, Tristan disse ele, suavemente.
Não! Bedwin encontrou as palavras. Não pode ser! Artur fez um gesto na direcção da espada.
Quereis arrancá-la, Bedwin?
Não!
Bedwin estava muito aflito, antevendo a morte da melhor esperança do reino, mas antes de poder dizer mais alguma coisa o próprio Owain entrou de rompante pela porta do salão. Tinha o cabelo comprido e a barba espessa molhados e o peito nu reluzia por causa da chuva.
Balançou o olhar de Bedwin para Tristan e para Artur e, depois, para a espada enterrada no chão. Parecia confuso.
Estais louco? perguntou ele a Artur.
A minha espada disse Artur brandamente mantém a vossa culpa no caso entre Kernow e Dumnónia.
Ele está louco disse Owain para os seus guerreiros que se estavam a amontoar atrás dele.
O campeão tinha os olhos vermelhos e um ar cansado. Tinha bebido demais durante a noite, tinha dormido mal, mas o desafio pareceu dar-lhe uma nova energia. Cuspiu na direcção de Artur.
Vou voltar para a cama daquela puta siluriana disse ele e, quando acordar, quero que isto tenha sido apenas um sonho.
Sois um cobarde, um assassino e um mentiroso disse Artur calmamente, quando Owain se virou para sair e essas palavras fizeram os homens no salão arfar mais uma vez.
Owain voltou a entrar no salão.
E tu não passas de uma cria de urso disse ele a Artur. Caminhou a passos largos até à Excalibur e derrubou-a, mostrando formalmente que aceitava o desafio. Pois a tua morte, filho dum urso, fará parte do meu sonho. Lá fora.
Fez um movimento brusco com a cabeça, apontando para a chuva. O combate não se podia realizar dentro de casa, pois o salão de festas ficaria amaldiçoado por uma sorte abominável. Os homens tinham, por isso, de lutar sob a chuva de Inverno.
Todo o forte estava agora em reboliço. Muitas das pessoas que viviam em Lindinis tinham dormido em Caer Cadarn nessa noite e toda a fortaleza entrou em ebulição quando as pessoas começaram a acordar para assistir ao combate. Lunete, Nimue e Morgana estavam lá; na verdade toda a gente de Caer Cadarn se apressava para ver a luta que, tal como exigia a tradição, teve lugar dentro do círculo de pedras real. Agrícola, com uma capa vermelha sobre a sua esplêndida armadura romana, estava entre Bedwin e o príncipe Gereint enquanto o rei Melwas, com um pedaço de pão na mão, assistia de olhos bem abertos no meio dos seus guardas. Tristan colocou-se do lado mais afastado do círculo, onde eu também ocupei o meu lugar. Owain viu-me ali e supôs que eu o tinha traído. Vociferou que a minha vida seguiria a de Artur para o Outro Mundo, mas Artur declarou que a minha vida estava sob a sua responsabilidade.
Ele quebrou o juramento! gritou Owain, apontando para mim.
Juro disse Artur que ele não quebrou juramento nenhum. Tirou a sua capa branca, dobrou-a cuidadosamente e pô-la em cima de uma das pedras. Usava calças, botas e um fino colete de couro sobre uma camisola de lã. Owain estava nu da cintura para cima. As calças tinham linhas cruzadas de couro e usava botas ferradas. Artur sentou-se na pedra e tirou as botas, preferindo lutar descalço.
Isso não é necessário disse-lhe Tristan.
Lamentavelmente, é disse Artur. Depois, levantou-se e desembainhou a Excalibur.
Vais usar a tua espada mágica? zombou Owain. Tens medo de lutar com uma arma mortal?
Artur embainhou de novo a espada e colocou-a sobre a capa.
Derfel! E, virando-se para mim, perguntou: Essa é a espada de Hywel?
Sim, meu Senhor.
Emprestas-ma? perguntou. Prometo que ta devolvo.
Vede se viveis para manter a promessa, Senhor disse eu, puxando a Hywelbane da sua bainha e entregando-lha com os copos virados para ele.
Ele agarrou na espada, depois pediu-me para ir a correr ao salão buscar um punhado de cinzas arenosas com as quais, quando regressei, esfregou o couro oleado dos copos. Virou-se para Owain.
Lorde Owain disse ele cortesmente se preferis lutar quando estiveres mais descansado, eu posso esperar.
Filho dum urso! Owain cuspiu. Tens a certeza que não queres vestir a tua armadura de peixe?
Enferruja com a chuva respondeu Artur calmamente.
Um soldado leal ao tempo escarneceu Owain e, depois, para praticar, fez sibilar o ar com dois golpes da sua longa espada. Na linha de escudos ele preferia lutar com uma espada curta; mas, fosse qual fosse o comprimento da lâmina, Owain era um homem a temer. Estou pronto, filho dum urso disse, em tom de desafio.
Eu fiquei ao lado de Tristan e dos seus guardas, enquanto Bedwin fazia um último e inútil esforço para evitar o combate. Ninguém tinha dúvidas sobre qual seria o resultado. Artur era um homem alto, mas muito magro, comparado com a corpulência musculada de Owain e nunca ninguém vira Owain perder um combate. No entanto Artur parecia notavelmente calmo, quando ocupou o seu lugar na parte do círculo virada a Oeste e encarou Owain, que se fora colocar na parte este, mais acima na encosta.
Submetem-se ao julgamento do tribunal de espadas? perguntou Bedwin aos dois homens, e os dois assentiram com a cabeça.
Então que Deus vos abençoe e dê a vitória à verdade disse Bedwin.
Fez o sinal da cruz e, depois, saiu do círculo com o seu rosto de velho denotando apreensão.
Owain, como se esperava, lançou-se sobre Artur, mas a meio caminho do círculo, mesmo ao lado da pedra do rei, escorregou na lama e, de repente, era Artur quem atacava. Eu esperara que Artur lutasse calmamente, usando os conhecimentos que Hywel lhe ensinara, mas nessa manhã, enquanto a chuva desabava torrencial do céu de Inverno, vi como Artur se transfigurava ao combater. Transformava-se num demónio. A sua energia fluía numa só direcção a morte enquanto ele lançava sobre Owain golpes rápidos e pesados que faziam o homenzarrão recuar e voltar a recuar. As espadas ressoavam com fragor. Artur cuspia na direcção de Owain, amaldiçoando-o, insultando-o, não parando de golpear com o gume da espada e nunca dando a Owain uma oportunidade de recuperar de um ataque.
Owain lutava com valentia. Nenhum outro homem conseguiria aguentar aquele ataque aberto e mortífero. As botas escorregavam-lhe na lama e mais de uma vez teve de se defender dos ataques de Artur de joelhos, mas conseguia sempre levantar-se, mesmo estando ainda a ser empurrado para trás. Quando Owain escorregou pela quarta vez, compreendi, em parte, a confiança de Artur. Ele desejara chuva para tornar o piso traiçoeiro e acho que sabia que Owain estaria cansado da festa que entrara pela noite dentro. Mesmo assim, não conseguia quebrar aquela guarda persistente, ainda que tivesse conseguido empurrar o campeão até ao local onde o sangue de Wlenca era ainda bem visível, como uma mancha mais escura de lama encharcada.
E ali, ao lado do sangue do saxão, a sorte de Owain mudou. Artur escorregou e, apesar de recuperar de imediato, aquele momento de vacilação, foi a abertura que Owain precisava, desferindo uma estocada com a rapidez de um chicote. Artur desviou-se, mas a espada de Owain deslizou pelo colete de couro, fazendo brotar da cintura de Artur o primeiro sangue do combate. Artur desviou-se mais uma vez, depois outra e desta vez recuou perante as estocadas firmes e rápidas que perfurariam, sem dúvida, o coração de um boi. Os homens de Owain berravam, apoiando-o enquanto o campeão, farejando a vitória, tentou atirar todo o seu corpanzil para cima de Artur, para derrubar na lama o seu oponente, muito mais leve do que ele. Mas Artur estava pronto para essa manobra e deu um passo para o lado, subindo para a pedra real e desferindo um golpe com a parte de trás da sua espada, fendendo a nuca de Owain. A ferida, tal como todas as feridas na cabeça, sangrava copiosamente e o sangue, ensopando o cabelo de Owain, começou a escorrer-lhe pelas costas abaixo diluindo-se com a chuva. Os seus homens calaram-se.
Artur saltou da pedra, atacando de novo e, mais uma vez, Owain se colocou na defensiva. Ambos os homens estavam ofegantes, salpicados de lama, a sangrar e cansados de mais para lançarem mais insultos um ao outro. A chuva soltou-lhes o cabelo, deixando-o solto e ensopado, enquanto Artur desferia golpes para a direita e para a esquerda com o mesmo ritmo rápido com que tinha iniciado o combate. Eram tão rápidos que Owain nada mais podia fazer do que contar os ataques. Lembrei-me da descrição desdenhosa que Owain fizera do estilo de combate de Artur. Nas suas palavras, Artur a lutar parecia um ceifador de feno a dar cutiladas apressadas para escapar ao mau tempo. Uma vez uma vez apenas é que Artur conseguiu fazer a sua lâmina atravessar a guarda de Owain, mas o golpe foi semidesviado, retirando-lhe força, e a espada foi parada pelos anéis de ferro pendurados na barba de Owain. Owain desviou a lâmina e tentou de novo atirar Artur ao chão com todo o peso do seu corpo. Caíram os dois e, por um segundo, pareceu que Owain apanhara Artur, mas, não sei como, Artur conseguiu escapar e pôr-se de pé.
Artur esperou que Owain se levantasse. Ambos respiravam com dificuldade e entreolharam-se durante alguns segundos, avaliando as suas possibilidades. Depois, Artur avançou, atacando de novo. Golpeava e voltava a golpear, tal como tinha feito antes, e Owain continuava a desviar os golpes selváticos. Artur escorregou uma segunda vez. Gritou de medo enquanto caía, e ao seu grito respondeu um berro de triunfo, quando Owain puxou o braço para trás para desferir o golpe mortal. Mas Owain viu de imediato que Artur não tinha escorregado, mas apenas fingido, para que Owain abrisse a guarda. E, então, foi Artur quem deu a estocada. Foi a sua primeira estocada do combate e a última. Owain estava de costas para mim e eu estava com os olhos meio tapados para não ver a morte de Artur. Mas, em vez disso, mesmo à minha frente, vi a ponta brilhante da Hywelbane a sair pelas costas molhadas e raiadas de sangue de Owain. A estocada de Artur tinha trespassado o corpo do campeão. Owain pareceu ficar congelado e o braço da espada, de repente, ficou frouxo, sem força. Depois a espada caiu da mão inerte para cima da lama.
Durante um segundo, o tempo de uma pulsação, Artur deixou a Hywelbane na barriga de Owain. Depois, com um esforço tremendo que exigia a força de todos os músculos do seu corpo, torceu a lâmina e arrancou-a. E ele gritava enquanto arrancava o aço do corpo de Owain, gritava enquanto a lâmina vencia a sucção da carne e dilacerava as entranhas, os músculos, a pele e a carne, e gritava ainda enquanto puxava a espada para a luz cinzenta do dia. A força necessária para arrancar o aço do pesado corpo de Owain denotava que a espada efectuava um movimento para trás, espalhando o sangue por todo o círculo enlameado.
Owain, com a descrença estampada no rosto e as tripas a espalharem-se pela lama, tombou finalmente.
Depois, a Hywelbane foi mais uma vez enterrada no pescoço do campeão.
Abateu-se o silêncio em Caer Cadarn.
Artur afastou-se do corpo. Virou-se, seguindo a rota do Sol, para olhar para os rostos de todos os homens à volta do círculo. O rosto do próprio Artur ostentava uma expressão dura como pedra. Não havia nele um rasto sequer de bondade, só o rosto de um lutador que triunfara. Era um rosto terrível, com os fortes maxilares crispados de ódio. Nós, aqueles que só conhecíamos Artur como um homem avassaladoramente atencioso, estávamos chocados com a mudança.
Algum homem aqui presente disse ele em voz alta quer disputar o julgamento?
Ninguém quis. A chuva escorria das capas e diluía o sangue de Owain. Artur dirigiu-se aos lanceiros do campeão morto.
Agora é a vossa oportunidade cuspiu na direcção deles de vingar o vosso Senhor. Se o não fizerdes, pertenceis-me.
Posto que nenhum o conseguiu encarar nos olhos, ele afastou-se, passou por cima do senhor da guerra que jazia morto e encarou Tristan.
Kernow aceita o julgamento, Príncipe e Senhor? Tristan, lívido, assentiu com a cabeça.
Aceita, meu Senhor.
O sarhaed decretou Artur será pago com os bens de Owain. Virou-se de novo, para olhar para os guerreiros. Quem comanda agora os homens de Owain?
Griffid Annan avançou nervoso.
Sou eu, Senhor.
Daqui a uma hora vens ter comigo, para eu te dar algumas ordens. E se algum de vós tocar em Derfel, o meu companheiro, arderá numa pira funerária.
Todos baixaram os olhos, não conseguindo encará-lo. Artur pegou numa mão-cheia de lama para limpar o sangue da espada e depois entregou-ma.
Limpa-a bem, Derfel.
Sim, meu Senhor.
E obrigado. É uma boa espada. De repente, fechou os olhos. Que Deus me perdoe disse ele mas eu gostei disto. Agora abriu os olhos já fiz a minha parte, e tu? Já fizeste a tua?
Eu? Olhei para ele de boca aberta.
Um gatinho disse ele pacientemente para Sarlinna.
Já tenho um, Senhor disse eu.
Então vai buscá-lo disse ele e vem ter ao salão para tomares o pequeno-almoço. Tens mulher?
Tenho, Senhor.
Diz-lhe que partimos amanhã, quando o conselho tiver terminado de resolver esta questão.
Olhei para ele, mal acreditando na minha sorte.
Quereis dizer... comecei eu.
Quero dizer interrompeu-me ele impacientemente que de agora em diante me serves a mim.
Sim, meu Senhor! disse eu. Sim, meu Senhor!
Ele pegou na Excalibur, na capa e nas botas e, com Sarlinna pela mão, afastou-se do rival que acabara de matar. E eu tinha encontrado o meu Senhor.
Lunete não queria viajar para Norte, para Corinium, onde Artur ia passar o Inverno com os seus homens. Não queria deixar os amigos e, além disso, disse-me ainda, como se só naquele momento se tivesse lembrado, que estava grávida. Eu recebi a notícia com um silêncio incrédulo.
Ouviste? disse ela com brusquidão. Estou grávida. Não posso ir. E porque é que temos de ir? Éramos felizes aqui. Owain era um bom amo e tu tinhas de estragar tudo. Porque não vais sozinho? Estava acocorada junto à lareira da nossa cabana, tentando receber todo o calor que podia das chamas fracas. Odeio-te disse por fim, e tentou, em vão, tirar do dedo o nosso anel do amor.
Grávida? perguntei abalado.
Mas se calhar nem é teu! gritou Lunete.
Depois desistiu de tentar arrancar o anel do dedo inchado e, em vez disso, atirou-me violentamente uma acha da fogueira. A nossa escrava gemia de angústia ao fundo da cabana e Lunete atirou-lhe também um toro de lenha.
Mas eu tenho de ir insisti. Tenho de ir com Artur.
E abandonas-me? guinchou ela. Queres que eu me transforme numa puta? É isso que queres?
Atirou-me outro pedaço de madeira e eu abandonei a luta. Estávamos no dia seguinte ao combate de Artur com Owain e tínhamos todos voltado a Lindinis, onde o conselho de Dumnónia estava reunido na vivenda de Artur, que, consequentemente, estava rodeada por suplicantes com a família e os amigos. Aquela gente ávida esperava junto aos portões da frente. Nas traseiras, onde antigamente existira o jardim, havia agora um amontoado de depósitos de armas e armazéns. Os antigos guerreiros de Owain esperavam ali por mim. Escolheram bem o sítio para a emboscada, pois aquele era um local que não se via dos edifícios, por causa dos arbustos de azevinho. Lunete ainda gritava comigo enquanto eu subia o carreiro, chamando-me traidor e cobarde.
Ela sabe bem o que tu és, saxão disse Griffid Annan, cuspindo na minha direcção.
Os seus homens bloquearam-me o caminho. Estavam ali cerca de doze lanceiros, todos meus antigos companheiros, mas que agora me encaravam com implacáveis rostos de hostilidade. Artur podia ter colocado a minha vida sob a sua protecção, mas ali, escondido das janelas da vivenda, nunca ninguém saberia como eu tinha acabado morto no meio da lama.
Quebraste o teu juramento acusou-me Griffid.
Não quebrei nada afirmei eu.
Minac, um velho guerreiro com bastante ouro dado por Owain à volta do pescoço e dos pulsos, colocou a lança na horizontal.
Não te preocupes com a tua rapariga disse ele num tom obsceno
muitos de nós sabem como cuidar das jovens viúvas.
Desembainhei a Hywelbane. Atrás de mim estavam as mulheres que tinham saído das cabanas para ver os seus homens vingar a morte do seu amo. Lunete estava entre elas, insultando-me como todas as outras.
Fizemos um novo juramento disse Minac e, ao contrário de ti, nós mantemos os nossos juramentos. Avançou pelo carreiro abaixo com Griffid a seu lado. Os outros lanceiros juntaram-se atrás dos seus chefes, enquanto, atrás de mim, as mulheres se aproximavam cada vez mais. Algumas até puseram de lado os sempre presentes fuso e roca e começaram a apedrejar-me, empurrando-me para a lança de Griffid. Segurei com firmeza a Hywelbane, que ainda estava com a lâmina amolgada por causa da luta de Artur com Owain e rezei aos Deuses para que me dessem uma morte com dignidade.
Seu saxão! disse Griffid, usando o pior insulto que conseguiu encontrar. Avançava com grandes cautelas, pois conhecia a minha habilidade com a espada. Traidor saxão! disse ele e, depois, recuou quando uma pesada pedra caiu entre nós na lama do caminho, salpicando tudo. Olhou para trás de mim e eu vi o medo aflorar ao seu rosto ao mesmo tempo que baixava a espada.
Os vossos nomes a voz de Nimue sibilou atrás de mim estão gravados na pedra. Griffid Annan, Mapon Ellchyd, Minac Cadan...
e enumerou os nomes dos lanceiros um a um e, cada vez que pronunciava um nome, cuspia na direcção da pedra amaldiçoada que atirara para o caminho. As lanças caíram.
Afastei-me para deixar passar Nimue. Estava envolvida numa capa preta com um capuz que mantinha o seu rosto na sombra onde brilhava malevolente o seu olho dourado. Parou ao meu lado e, de repente, virou-se e apontou um bastão com um ramo de visco branco amarrado na direcção das mulheres que me tinham atirado pedras.
Querem os vossos filhos transformados em ratos? perguntou Nimue às mirones. Querem que o vosso leite seque e que a vossa urina arda como fogo? Então vão embora!
As mulheres agarraram nas crianças e fugiram, indo esconder-se nas cabanas.
Griffid sabia que Nimue era a amada de Merlim e possuía o poder do druida, e tremia de medo ante as pragas dela.
Por misericórdia disse ele, quando Nimue se virou para o encarar Ela passou diante da ponta da lança dele, agora virada para baixo,
e bateu-lhe com força na face com o bastão.
Para baixo disse ela. Todos vós! Para baixo! Deitados! Caras no chão! Deitados! Deu com o bastão em Minac. Deita-te no chão.
Eles deitaram-se na lama, de barriga para baixo, e ela passou por cima das costas de cada um deles. As pisadas eram leves, mas as pragas eram pesadas.
As vossas mortes estão nas minhas mãos disse-lhes ela. As vossas vidas pertencem-me. Vou usar as vossas almas como joguetes. A cada madrugada que acordarem vivos vão agradecer a minha misericórdia, e a cada crepúsculo vão rezar para que eu não veja as vossas caras imundas nos meus sonhos. Griffid Annan, jura fidelidade a Derfel. Beija a espada dele. De joelhos, cão! De joelhos!
Eu protestei dizendo que aqueles homens não me deviam fidelidade, mas Nimue virou-se para mim furiosa e ordenou-me que estendesse a minha espada. Depois, um a um, com os rostos cheios de lama e terror, os meus antigos companheiros ajoelharam-se e beijaram a ponta da Hywelbane. O juramento não me dava direitos de suberania sobre aqueles homens, mas tornava impossível que algum deles me atacasse sem pôr em perigo a sua alma, pois Nimue disse-lhes que, se quebrassem o juramento, as suas almas estariam condenadas a ficar para sempre na escuridão do Outro Mundo, nunca mais encontrando outros corpos nesta verdejante terra iluminada pelo Sol. Um dos lanceiros, um cristão, desafiou Nimue dizendo que o juramento não tinha qualquer significado. No entanto, a sua coragem desapareceu quando ela arrancou o olho de ouro e o segurou virado para ele, sibilando uma praga. Assaltado por um terror abjecto, o homem caiu de joelhos e beijou a minha espada como todos os outros. Depois de proferidos os juramentos, Nimue ordenou-lhes que se deitassem de novo na lama. Voltou a meter a bola de ouro no orifício e afastámo-nos, deixando-os ali estendidos na lama.
Nimue desatou a rir quando eles já não nos podiam ver.
Diverti-me à grande com isto! disse ela, notando-se na sua voz alguma da antiga travessura de criança. Diverti-me mesmo! Como eu odeio os homens, Derfel.
Todos os homens?
Os homens vestidos de couro e com lanças. Encolheu os ombros. A ti não. Mas aos outros, odeio-os a todos. Virou-se e cuspiu para o carreiro que deixávamos para trás. Como os Deuses se devem rir desses homens que se pavoneiam todos. Puxou para trás o capuz e olhou para mim. Queres que a Lunete vá contigo para Cornium?
Eu jurei protegê-la respondi tristemente e ela diz que está grávida.
Isso significa que queres que ela te acompanhe?
Sim disse eu mas querendo dizer não.
Acho que estás a ser tolo disse Nimue, mas a Lunete fará aquilo que eu mandar. Mas sempre te digo, Derfel, que se não a deixares agora, ela vai deixar-te quando lhe der mais jeito.
Pôs-me a mão no braço para que eu parasse. Tínhamo-nos aproximado do átrio da vivenda onde a multidão de suplicantes esperava para ver Artur.
Sabias perguntou-me Nimue em voz baixa que Artur está a pensar libertar Gundleus?
Não! Fiquei chocado com a novidade.
Pois está. Acha que, agora, Gundleus vai honrar a paz e acha que ele é o melhor homem para governar Silúria. Artur não o libertará sem o acordo de Tewdric. Por isso, não vai ser já. Mas quando isso acontecer, Derfel, eu vou matar Gundleus.
Ela falou com a terrível simplicidade da verdade e eu pensei como a ferocidade lhe dava a beleza que a natureza lhe negara. Depois, espraiou o olhar pela terra fria e molhada na direcção do distante talude de Caer Cadarn.
Artur disse ela sonha com a paz, mas nunca haverá paz. Nunca! A Grã-Bretanha, Derfel, é um caldeirão e Artur vai agitá-lo até aos limites do horror.
Estás enganada disse eu, lealmente.
Nimue escarneceu do que eu dissera com uma careta e, depois, sem mais nenhuma palavra, virou-se e meteu pelo carreiro abaixo em direcção às cabanas dos soldados.
Abri caminho através dos suplicantes até à vivenda. Artur ergueu os olhos quando entrei e acenou-me com a mão, num gesto informal de boas-vindas, voltando a dar atenção a um homem que se queixava de que o vizinho tinha deslocado as pedras que marcavam os limites entre as suas terras. Bedwin e Gereint estavam sentados à mesa com Artur, enquanto ao lado dele, e em pé, estavam Agrícola e o príncipe Tristan, mais parecendo dois guardas. Alguns conselheiros e magistrados do reino estavam sentados no chão, que, curiosamente, estava quente graças aos espaços que os Romanos deixavam por baixo do chão das suas vivendas e que se podiam encher com ar quente de uma caldeira de aquecimento. Alguns ladrilhos rachados deixavam que algum fumo se espalhasse pela grande sala. Os suplicantes eram recebidos um a um e a justiça era proferida. Quase todos os casos podiam ter sido tratados no tribunal dos magistrados de Lindinis, que ficava a apenas alguns metros da vivenda, mas muitas pessoas, principalmente os habitantes pagãos da aldeia, consideravam que uma decisão tomada em Conselho Real era mais segura do que um julgamento feito num tribunal estabelecido pelos Romanos. Por isso guardavam os seus ressentimentos e as suas contendas até um conselho estar reunido convenientemente perto.
Artur, representando Mordred, o rei menino, lidava com todos eles com paciência. E estava muito calmo quando a verdadeira questão do dia começou. Essa questão era solucionar as emaranhadas sequelas deixadas pela luta do dia anterior. Os guerreiros de Owain foram dados ao príncipe Gereint, com a recomendação de Artur de que fossem divididos por vários grupos de soldados. Um dos capitães de Gereint, um homem chamado Llywarch, foi nomeado para o lugar de Owain, como comandante da guarda do rei. Depois, um magistrado foi encarregue da tarefa de fazer um registo de toda a fortuna de Owain e enviar para Kernow a quantia correspondente ao sarhaed em dívida. Notei como Artur tratava das questões com brusquidão, não deixando, no entanto, de dar a cada homem presente uma oportunidade de dizer o que pensava. Esse tipo de consulta podia levar a discussões intermináveis, mas Artur possuía o feliz talento de entender rapidamente as questões complicadas e propor acordos que agradavam a todos. Também notei como Gereint e Bedwin estavam satisfeitos por deixarem Artur ocupar o primeiro lugar. Bedwin depositara todas as suas esperanças no futuro de Dumnónia na espada de Artur e era, assim, a pessoa que mais apoiava Artur. Gereint, por seu lado, como era sobrinho de Uther, podia ter-se oposto, mas o príncipe não tinha nenhuma da ambição do tio e estava satisfeito por Artur querer tomar a responsabilidade do governo. Dumnónia tinha um novo campeão do rei. Era Artur Uther. E pôde, finalmente, sentir-se o alívio na sala.
Ao príncipe Cadwy de Isca foi ordenado que contribuísse para o sarhaed devido a Kernow. Ele protestou contra esta decisão, mas recuou perante a fúria de Artur e concordou resignado em pagar um quarto do preço de Kernow. Suspeito de que Artur teria preferido impor-lhe um castigo mais severo, mas eu estava obrigado por juramento a não revelar a parte de Cadwy no ataque ao brejo e não havia mais provas da cumplicidade dele, pelo que Cadwy escapou a uma sentença mais pesada. O príncipe Tristan aprovou as decisões de Artur com um aceno de cabeça.
A questão seguinte era tratar do futuro do nosso rei. Mordred estava a viver em casa de Owain e agora precisava de um novo lar. Bedwin propôs um homem chamado Nabur, que era o chefe dos magistrados de Durnovária. Um outro conselheiro protestou imediatamente, condenando Nabur por ser cristão.
Artur bateu ao de leve na mesa para acabar com uma cáustica discussão antes mesmo de ela começar.
Nabur está presente? perguntou ele.
Um homem alto levantou-se ao fundo da sala.
Eu sou Nabur. Tinha a barba bem aparada e usava uma toga romana. Nabur Lwyd apresentou-se formalmente.
Era um jovem com um rosto esguio e sério e com o cabelo recuado na testa o que lhe dava um ar de bispo ou de druida.
Tendes filhos, Nabur?
Três vivos, Senhor. Dois rapazes e uma rapariga. A rapariga é da idade do nosso rei Mordred.
E existe algum druida ou algum bardo em Durnovária? Nabur assentiu com a cabeça.
Derella, o Bardo.
Artur falou em privado com Bedwin, que acenou com a cabeça em sinal de assentimento e, depois, Artur sorriu para Nabur.
Tomaríeis o rei ao vosso cuidado?
Com todo o prazer, Senhor.
Podeis ensinar-lhe a vossa religião, Nabur Lwyd, mas apenas quando Derella estiver presente, e Derella deve tornar-se o tutor do rapaz quando este tiver cinco anos. Recebereis do erário régio metade do rendimento de um rei e serão sempre necessários vinte guardas junto do rei Mordred. O preço da sua vida é a vossa alma e a alma de toda a vossa família. Concordais?
Nabur empalideceu quando lhe disseram que a mulher e os filhos morreriam se ele deixasse que matassem Mordred, mas mesmo assim concordou com um aceno. E não admira. Ser o tutor do rei dava a Nabur um lugar muito próximo do centro do poder de Dumnónia.
Concordo, Senhor disse ele.
A última questão do conselho era sobre o destino de Ladwys, a mulher amante de Gundleus e escrava de Owain. Ela foi trazida para a sala onde permaneceu de pé com um ar de desafio diante de Artur.
Hoje disse-lhe Artur vou para Norte, para Corinium onde o vosso marido é nosso cativo. Quereis vir?
Para me humilhardes ainda mais? perguntou Ladwys. Owain, apesar de toda a sua brutalidade, nunca conseguira quebrar a sua forte personalidade.
Artur franziu o sobrolho perante o tom hostil da voz dela.
Para poderdes estar com ele, Senhora disse com suavidade. A prisão do vosso marido não é rigorosa, ele tem uma casa como esta, ainda que esteja publicamente sob guarda. Mas podeis viver com ele em privado e em paz, se assim o desejardes.
As lágrimas brotaram dos olhos de Ladwys.
Ele se calhar não me quer. Fui manchada. Artur encolheu os ombros.
Não posso falar por Gundleus, quero apenas a vossa decisão. Se escolherdes ficar aqui, podeis ficar. A morte de Owain significa que sois livre.
Ela pareceu ficar perplexa com a generosidade de Artur, mas conseguiu acenar, aquiescente.
Irei, Senhor.
Muito bem!
Artur levantou-se e levou a cadeira para um lado da sala onde delicadamente, convidou Ladwys a sentar-se. Depois encarou os conselheiros, os lanceiros e os chefes reunidos.
Tenho uma coisa a dizer-vos, apenas uma coisa, mas todos deveis compreender o que tenho a dizer e deveis repeti-lo aos vossos homens, às vossas famílias, às vossas tribos e aos vossos clãs. O nosso rei é Mordred, nenhum outro senão Mordred, e é a Mordred que devemos a nossa fidelidade e as nossas espadas. Mas nos próximos anos o reino vai enfrentar inimigos, como acontece a todos os reinos, e serão necessárias, como sempre, decisões firmes. Quando essas decisões forem tomadas, alguns de entre vós dirão que eu estou a usurpar o poder do rei. Por isso, agora, perante vós e perante os nossos amigos de Gwent e Kernow, aqui Artur fez um gesto cortês na direcção de Agrícola e Tristan vou jurar pelo que vós achais mais sagrado que só usarei o poder que me outorgais com um único objectivo, e esse único objectivo é ver Mordred tirar-me o reino, quando atingir a idade certa. Juro. E calou-se abruptamente.
Houve um reboliço na sala. Até àquele momento ninguém tinha percebido com que rapidez Artur tinha tomado o poder em Dumnónia. O facto de ele se sentar à mesa com Bedwin e o príncipe Gereint sugeria que os três homens tinham poder igual, mas o discurso de Artur anunciava publicamente que só havia um homem a comandar, e Bedwin e Gereint, com o seu silêncio, apoiavam a proclamação de Artur. Nem Bedwin nem Gereint ficavam privados do seu poder, mas exerciam-no segundo a vontade de Artur. E a vontade de Artur decretou que Bedwin ficaria para servir de árbitro nas disputas dentro do reino, Gereint guardaria a fronteira saxónica enquanto Artur ia para Norte para enfrentar as forças de Powys. Eu sabia, e talvez Bedwin também soubesse, que Artur depositava grandes esperanças na paz com o reino de Gorfyddyd, mas até essa paz ser acordada ele continuaria a manter uma situação de guerra.
Um grande grupo partiu para Norte nessa tarde. Artur, com os seus dois guerreiros e o seu servo Hygwydd, seguiam na dianteira com Agrícola e os seus homens. Morgana, Ladwys e Lunete iam numa carroça enquanto eu ia a pé com Nimue. Lunete sujeitou-se a ir, completamente dominada pela fúria de Nimue. Passámos a noite no Tor onde tive oportunidade de ver o bom trabalho que Gwlyddyn estava a fazer. A nova paliçada já estava pronta e uma nova torre estava a ser erguida sobre os alicerces da antiga.
Ralla estava grávida. Pellinore não me reconheceu, limitava-se a andar às voltas na sua jaula como se estivesse de guarda e a rosnar ordens para lanceiros invisíveis. Druidan comia Ladwys com os olhos. Gudovan, o escriba, mostrou-me o túmulo de Hywel na parte norte do Tor, e depois levou Artur à capela do Espinheiro Sagrado onde Santa Norwenna estava enterrada mesmo ao lado da árvore milagrosa.
Na manhã seguinte despedi-me de Morgana e de Nimue. O Céu estava de novo azul, o vento era frio e eu segui rumo ao Norte com Artur.
O meu filho nasceu na Primavera. Morreu três dias depois. Durante vários dias depois disso via constantemente o seu pequeno rosto vermelho e enrugado e, com a lembrança, vinham-me as lágrimas aos olhos. Ele parecia saudável, mas uma manhã, suspenso pelas suas fraldas da parede da cozinha, para que nem os cães nem os porcos lhe chegassem, morreu. Tal como eu, Lunete chorou, mas também me culpou pela morte do seu bebé, dizendo que o ar de Corinium era pestilento, embora ela até se desse bem na cidade. Gostava dos edifícios romanos, muito limpos, e da sua pequena casa de tijolos numa rua pavimentada com pedras. Deu início a uma inverosímil amizade com Ailleann, a amante de Artur, e com os gémeos dela, Amhar e Loholt. Eu gostava muito de Ailleann, mas os dois rapazes eram uns verdadeiros demónios. Artur fazia-lhes todas as vontades, talvez porque se sentisse culpado por eles, tal como ele próprio, não serem filhos legítimos, nascidos para herdar, mas apenas filhos bastardos que teriam de singrar na vida a pulso num mundo demasiado cruel. Nunca os vi receber nenhuma disciplina, excepto uma vez em que os encontrei a arrancar os olhos de um cachorrinho com uma faca e lhes bati com força. O cachorrinho ficou cego e eu, por clemência, abati-o rapidamente. Artur compreendeu o meu gesto, mas disse que não me competia bater nos filhos dele. Os seus guerreiros aplaudiram-me e acho que Ailleann também aprovou.
Ela era uma mulher triste. Sabia que os seus dias como companheira de Artur estavam contados, pois o seu homem tornara-se o governante efectivo do reino mais forte da Grã-Bretanha e precisava de casar com uma noiva que servisse de apoio ao poder agora conseguido. Eu sabia que essa noiva era Ceinwyn, a estrela e princesa de Powys, e suspeitava que Ailleann também o soubesse. Ela queria regressar a Benoic, mas Artur não permitiria que os seus preciosos filhos deixassem o país. Ailleann sabia que Artur nunca a deixaria passar fome, mas também não iria humilhar a sua real esposa mantendo a amante por perto. À medida que a Primavera cobria as árvores de folhas e espalhava flores pelas terras mais aumentava a tristeza dela.
Os Saxões atacaram na Primavera, mas Artur não foi para a guerra. O rei Melwas defendia a fronteira sul da sua capital Venta enquanto os
Grupos guerreiros do príncipe Gereint abandonavam Durocobrivis para enfrentar os grupos de soldados saxões do terrível rei
Aelle.
Gereint passava por um mau bocado e Artur enviou-lhe reforços, mandando Sagramor com trinta cavaleiros, e a intervenção de Sagramor fez inclinar a balança para o nosso lado. Disseram-nos que os Saxões de Aelle acreditavam que o rosto negro de Sagramor fazia dele um monstro enviado do Reino das Trevas e eles não tinham feiticeiros nem espadas que lhe pudessem fazer frente. O Númida empurrou os homens de Aelle para tão longe que estabeleceu uma nova fronteira a um dia inteiro de caminho para lá da antiga fronteira e marcou os seus novos limites com uma fila de cabeças cortadas de saxões. Entrou muito dentro de Lloegyr e entregou-se à pilhagem, chegando a levar uma vez os seus cavaleiros até Londres, uma cidade que fora a maior de todas as cidades na Grã-Bretanha romana, mas que agora era a imagem da decadência por trás das muralhas em ruínas. Sagramor contou-nos que os bretões sobreviventes que a habitavam eram muito acanhados e lhe suplicaram que não perturbasse a frágil paz que tinham feito com os seus suberanos saxões
E nós continuávamos sem notícias de Merlim.
Em Gwent esperava-se que Gorfyddyd de Powys atacasse, mas não houve nenhum ataque. Em vez disso, um mensageiro partiu para sul da capital de Gorfyddyd, Caer Sws, e duas semanas mais tarde Artur partiu para Norte para se encontrar com o rei inimigo. Eu fui com ele. Era um dos doze guerreiros que marchavam com espadas, mas sem escudos nem lanças de guerra, íamos em missão de paz e Artur estava entusiasmado com essa perspectiva. Levámos Gundleus da Silúria connosco e, primeiro, marchámos para Burrium, a capital de Tewdric, que era uma cidade romana com muralhas, cheia de depósitos de armas e de fumo, empestada do cheiro desagradável dos fornos dos ferreiros e, dali, fomos para Norte, acompanhados por Tewdric e os seus servidores. Agrícola estava a defender a fronteira saxónica de Gwent, e Tewdric, tal como Artur, levava apenas uma mão-cheia de guardas, ainda que fosse acompanhado por três padres, entre eles Sansum, o pequeno padre de ar colérico e cabelo negro tonsurado a quem Nimue tinha dado a alcunha de Lughtigern, isto é, Lorde Rato.
Formávamos um colorido grupo. Os homens de Tewdric usavam capas vermelhas por cima dos uniformes romanos enquanto Artur tinha equipado cada um dos seus guerreiros com capas novas de cor verde. Viajávamos sob quatro estandartes: o dragão de Mordred por Dumnónia, o urso de Artur, a raposa de Gundleus e o touro de Tewdric. Ao lado de Gundleus cavalgava Ladwys, a única mulher do grupo. Ela estava de novo feliz e Gundleus parecia satisfeito por tê-la outra vez a seu lado. Ele ainda era prisioneiro, mas já voltara a usar uma espada e cavalgava num lugar de honra, ao lado de Artur e de Tewdric. Tewdric ainda desconfiava de Gundleus, mas Artur tratava-o como a um velho amigo. Afinal, Gundleus fazia parte do seu plano de estabelecer a paz entre os Bretões, uma paz que permitiria a Artur virar as espadas e as lanças contra os Saxões.
Na fronteira de Powys fomos recebidos por uma escolta que nos viera homenagear. Foram espalhados juncos pelo chão e um bardo cantava a vitória de Artur sobre os Saxões no Vale do Cavalo Branco. O rei Gorfyddyd não nos tinha vindo receber, mas, em seu lugar, mandara Leodegan, o rei de Henis Wyren, cujas terras lhe tinham sido usurpadas pelos Irlandeses e que era agora um exilado na corte de Gorfyddyd. Leodegan fora escolhido, porque a sua linha de soldados nos prestava honras, apesar de ele próprio ser um toleirão já bem conhecido. Era um homem extraordinariamente alto, muito magro e com um pescoço comprido, cabelo negro muito fino e uma boca descaída. Não conseguia estar quieto. Passava o tempo a andar de um lado para o outro aos sacões, a piscar os olhos, a coçar-se e a fazer barulho.
O rei era para vir disse-nos ele, era para vir, na realidade, mas não pôde. Entendem? Mas, de qualquer forma, saudações de Gorfyddyd.
Olhou com inveja, quando Tewdric compensou o bardo com ouro. Depois soubemos que Leodegan era um homem muito empobrecido e passava a maior parte dos seus dias a tentar compensar os grandes prejuízos que lhe tinham sido infligidos quando Diwrnach, o conquistador irlandês, tomou conta das suas terras.
Vamos lá? Há alojamento em... Leodegan fez uma pausa. Valha-me Deus, esqueci-me, mas o comandante da guarda sabe. Onde está ele? Ali. Qual é mesmo o nome dele? Bem, não interessa, havemos de lá chegar.
A bandeira da águia de Powys e o estandarte de Leodegan, com um veado, juntaram-se aos nossos. Seguimos por uma estrada romana que atravessava a direito uma bela região, a mesma região que Artur deixara devastada no Outono passado, se bem que só Leodegan tivesse a falta de tacto para mencionar essa campanha.
É claro que já estivestes aqui disse ele a Artur.
Leodegan não tinha cavalo e por isso foi obrigado a seguir apeado ao lado do grupo real.
Artur franziu as sobrancelhas.
Não sei bem se conheço estas terras disse, diplomaticamente.
É claro que conheceis, é claro que sim. Não vos lembrais? A quinta a arder? Foi obra vossa! Leodegan sorriu para Artur. Eles subestimaram-vos, não foi? E foi isso mesmo que eu disse a Gorfyddyd, mesmo na cara dele. O jovem Artur é bom, disse-lhe eu, mas Gorfyddyd não é homem de dar ouvidos ao bom senso. Lutador, sim, mas pensador, não. O filho é melhor, penso eu. Cuneglas é definitivamente melhor. Eu tinha esperanças de que o jovem Cuneglas casasse com uma das minhas filhas, mas Gorfyddyd nem quer ouvir falar disso. Não interessa.
Tropeçou num tufo de erva. A estrada, tal como a Estrada de Fosse perto de Ynys Wydryn, elevava-se em talude para que a água da superfície escorresse para as valas que a ladeavam, mas os anos tinham enchido as valas e espalhado terra pelas pedras da estrada, que estavam agora cheias de ervas. Leodegan insistia em referir outros lugares que Artur deixara devastados, mas depois de algum tempo desistiu de tentar provocar alguma reacção e deixou-se ficar para trás, para onde nós, os guardas, caminhávamos atrás dos três padres de Tewdric. Leodegan tentou falar com Agravain, o comandante da guarda de Artur, mas Agravain estava de mau humor e Leodegan finalmente decidiu que eu era o mais simpático do séquito de Artur e, por isso, começou avidamente a fazer-me perguntas sobre a nobreza de Dumnónia. Estava a tentar descobrir quem era e quem não era casado.
Então é o príncipe Gereint? É casado? É?
É sim, meu Senhor.
E ela está de boa saúde?
Que eu saiba, está.
E o rei Melwas? Tem rainha?
Morreu, meu Senhor.
Ah! Animou-se imediatamente. É que eu tenho filhas, sabes? explicou ele muito sério. Duas filhas, e as filhas têm de casar, não têm? Filhas não casadas não servem para nada. Bem, para dizer a verdade, uma das minhas duas flores vai casar. Guinevere já está apalavrada. Vai casar com Valerin. Conheces Valerin?
Não, meu Senhor.
Um bom homem, um bom homem, um bom homem, deveras, mas sem... fez uma pausa, escolhendo a palavra certa. Sem riqueza! Não tem terras que se vejam, percebes? Uns pedacitos de terra insignificantes a Oeste, penso eu, mas sem dinheiro que valha a pena contar. Não tem rendas, não tem ouro e um homem não vai longe sem rendas e sem ouro. E Guinevere é uma princesa! E depois há a Gwenhwyvach, a irmã, e essa não tem mesmo nenhum casamento à vista. Vive às custas da minha bolsa e os Deuses sabem que ela já está magra demais. Mas Melwas tem uma cama vazia, não é? É uma ideia! No entanto, é uma pena não poder ser Cuneglas.
Porquê, Senhor?
Ele parece não querer casar com nenhuma das raparigas! disse Leodegan, com indignação. Sugeri-o ao pai dele. Uma sólida aliança, disse eu, a juntar os dois reinos, um arranjo ideal! Mas não. Cuneglas está com os olhos postos em Helledd de Elmet e Artur, segundo ouvimos dizer, vai casar com Ceinwyn.
Não sei, meu Senhor disse eu, com um ar inocente.
Ceinwyn é uma rapariga bonita! É sim senhor! Mas também o é a minha Guinevere, só que ela vai casar com Valerin. Valha-me Deus. Que desperdício! Nada de rendas, nem de ouro, nem de dinheiro, nada a não ser um pasto ensopado e uma mão-cheia de vacas doentes. Ela não vai gostar disso. Ela gosta das suas comodidades, a Guinevere gosta mesmo das suas comodidades, mas Valerin não sabe o que isso significa! Que eu saiba, vive numa cabana de porcos. Mesmo assim, é um chefe. Lembra-te que quanto mais fores para o interior de Powys mais homens vais encontrar que se autodenominam chefes. Suspirou. Mas ela é uma princesa! Pensei que um dos rapazes de Cadwallon de Gwynedd pudesse casar com ela, mas Cadwallon é um tipo esquisito. Nunca gostou muito de mim. Nem me ajudou quando vieram os Irlandeses.
Ficou em silêncio matutando naquela grande injustiça. Já tínhamos andado o bastante para Norte para os nomes das pessoas e das terras serem desconhecidos. Em Dumnónia estávamos rodeados por Gwent, Silúria, Kernow e os Saxões, mas ali os homens falavam de Gwynedd e Elmet, de Lleyn e Ynys Mon. Lleyn fora outrora Henis Wyren, o reino de Leodegan, do qual Ynys Mon, a ilha de Mona, fizera parte. Ambos eram agora governados por Diwrnach, um dos Lordes irlandeses de Além-Mar que estavam a construir reinos para si próprios na Grã-Bretanha. Imaginei que Leodegan devia ter sido presa fácil para um homem terrível como Diwrnach, conhecido pela sua crueldade. Até mesmo em Dumnónia tínhamos ouvido contar como ele pintava os escudos dos seus grupos de guerra com o sangue dos homens que matavam nas batalhas. Todos diziam que era melhor combater os Saxões do que apanhar Diwrnach pela frente.
Mas nós viajámos para Caer Sws para estabelecer a paz e não para falar de guerra. Caer Sws revelou-se uma pequena cidade lamacenta à volta de um grande forte romano, situada num vale plano e extenso ao lado de um profundo vau que atravessava o Severn, que ali era conhecido por rio Hafren. A verdadeira capital de Powys era Caer Dolforwyn, um monte aprazível que tinha no cimo uma pedra real, mas Caer Dolforwyn, tal como Caer Cadarn, não tinha água nem espaço suficiente para acomodar o tribunal, a tesouraria, os depósitos de armas, as cozinhas e os armazéns de um reino. Assim, tal como os assuntos do dia-a-dia de Dumnónia eram conduzidos de Lindinis, também o governo de Powys funcionava a partir de Caer Sws e só em tempo de perigo ou de grandes festejos reais é que a corte de Gorfyddyd descia o rio e subia até ao cume do comando em Caer Dolforwyn.
Os edifícios romanos de Caer Sws tinham praticamente desaparecido, se bem que o salão de festas de Gorfyddyd tivesse sido construído sobre os alicerces de um desses antigos edifícios. A sala tinha sido flanqueada com duas novas salas construídas especialmente para Artur e Tewdric. Gorfyddyd saudou-nos dentro da sua própria sala. O rei powysiano era um homem amargo cuja manga esquerda estava suspensa e vazia graças à Excalibur. Era um homem de meia-idade, de constituição forte e com um rosto desconfiado e uns olhos pequenos que não mostravam qualquer cordialidade, quando abraçou Tewdric e resmungou relutante as boas-vindas. Avançou carrancudo e silencioso enquanto Artur, que não era rei, se ajoelhava perante ele. Os seus chefes e guerreiros tinham todos grandes bigodes entrançados e pesadas capas a pingar, devido à chuva que caíra durante todo o dia. A sala cheirava a cães molhados. Não havia mulheres presentes, excepto duas escravas que carregavam jarros com hidromel com que Gorfyddyd enchia muitas vezes o copo de chifre. Mais tarde soubemos que ele se começara a embriagar nas longas semanas que se seguiram a ter perdido o braço graças à Excalibur, semanas durante as quais tinha estado com febre, muita gente duvidando que sobrevivesse. O hidromel fermentara até ficar espesso e forte e o seu efeito fora transferir o poder de Powys do irritado e confuso Gorfyddyd para os ombros do seu filho Cuneglas, o Príncipe Herdeiro de Powys.
Cuneglas era um jovem com um rosto redondo e esperto e com longos bigodes pretos. Ria com facilidade, era descontraído e amável. Era óbvio que ele e Artur eram almas gémeas. Durante três dias caçaram veados nas montanhas e à noite divertiam-se e ouviam os bardos. Havia poucos cristãos em Powys, mas assim que Cuneglas soube que Tewdric era cristão transformou um armazém numa igreja e convidou os padres a pregar. Até o próprio Cuneglas ouviu um dos sermões, se bem que mais tarde tenha abanado a cabeça e dito que preferia os seus próprios Deuses. O rei Gorfyddyd disse que a igreja era um disparate, mas não proibiu o filho de honrar a religião de Tewdric. No entanto Gorfyddyd teve o cuidado de mandar os seus druidas rodear a igreja provisória com feitiçarias.
Gorfyddyd não está totalmente convencido de que pretendamos manter a paz avisou-nos Artur na segunda noite. Mas Cuneglas convenceu-o. Por isso, pelo amor de Deus, mantenham-se sóbrios, mantenham as espadas embainhadas e não provoquem zaragatas. Uma faísca que seja e Gorfyddyd expulsa-nos imediatamente e volta a entrar em guerra.
No quarto dia o conselho de Powys reuniu-se no grande salão. A principal questão do dia era estabelecer a paz, e isso, apesar das reservas de Gorfyddyd, foi feito rapidamente. O rei powysiano sentou-se desleixadamente na cadeira e observou o filho a fazer a declaração pública. Cuneglas disse que Powys, Gwent e Dumnónia seriam aliados, uns sangue dos outros, e um ataque a um desses países seria interpretado como um ataque aos outros dois. Gorfyddyd assentiu com a cabeça, apesar de o ter feito sem entusiasmo. Cuneglas continuou dizendo que melhor ainda seria quando ele próprio casasse com Helledd de Elmet, pois também Elmet se juntaria ao pacto e os Saxões ficariam cercados por uma frente de reinos britânicos unidos. A aliança era a grande vantagem que Gorfyddyd recebia por fazer a pazes com Dumnónia, seria a oportunidade de combater os Saxões, e o preço de Gorfyddyd por essa paz era o reconhecimento de que Powys seria o país a liderar essa guerra.
Ele quer ser Rei Supremo disse-nos Agravain, rosnando do fundo da sala.
Gorfyddyd também exigiu a reintegração de seu primo, Gundleus da Silúria. Tewdric, que sofrera mais do que qualquer outro os ataques da Silúria, estava relutante em deixar Gundleus ocupar de novo o seu trono e nós, os de Dumnónia, não o queríamos perdoar pelo assassinato de Norwenna, e eu odiava esse homem pelo que ele tinha feito a Nimue, mas Artur persuadira-nos de que a libertação de Gundleus era um preço bastante razoável a pagar pela paz e, então, o traiçoeiro Gundleus foi devidamente reabilitado. Gorfyddyd podia ter parecido relutante em concluir o tratado, mas deve ter sido persuadido das suas vantagens, pois estava disposto a pagar o preço mais alto de todos pela conclusão com sucesso do mesmo.
Estava disposto a deixar a sua filha Ceinwyn, a estrela de Powys, casar com Artur. Gorfyddyd era um homem amargo, desconfiado e severo, mas amava a sua filha de dezassete anos e dedicava-lhe todos os restos de afecto e simpatia que ainda sobravam na sua alma. O facto de estar disposto a deixá-la casar com Artur, que não era rei nem sequer possuía o título de príncipe, era prova da convicção de Gorfyddyd de que os seus guerreiros tinham de deixar de combater os guerreiros bretões. Os esponsais eram também prova de que Gorfyddyd, tal como o seu filho Cuneglas, reconhecia que Artur representava o verdadeiro poder em Dumnónia e, por isso, no grande banquete que se seguiu ao conselho, Ceinwyn e Artur foram formalmente prometidos em casamento.
A cerimónia dos esponsais foi considerada suficientemente importante para fazer toda a assembleia mudar-se de Caer Sws para um salão de festas mais auspicioso de Caer Dolforwyn, a que fora dado o nome de Dolforwyn, um prado no sopé do monte que, bastante apropriadamente, significava o Prado da Donzela. Chegámos ao pôr do Sol, quando o cume do monte se cobria do fumo das grandes fogueiras onde eram assados veados e porcos. Ao longe e abaixo de nós, o Severn prateado serpenteava pelo vale, enquanto para Norte as cordilheiras dos grandes montes se estendiam obscuras até Gwynedd, onde começava já a escurecer. Disseram-nos que num dia claro se podia ver Cadair Idris do topo de Caer Dolforwyn, mas nessa noite o horizonte estava enevoado devido à chuva distante. A parte mais baixa das encostas estava coberta de grandes carvalhos de entre os quais saiu um par de papagaios vermelhos, quando o Sol pintou de escarlate as nuvens a Oeste. Todos concordámos que ver os dois pássaros a voar tão tarde no dia quase a terminar era um prodigioso presságio para o que estava para acontecer. Dentro do salão os bardos cantavam a história de Hafren, a donzela que dera o nome a Dolforwyn e que se tinha transformado numa deusa quando a madrasta a tentara afogar no rio que corria no sopé do monte. E os cantares prolongaram-se até o Sol se esconder.
Os esponsais foram realizados à noite, para que a Deusa Lua abençoasse o par. Artur preparou-se para a cerimónia primeiro, deixando a sala durante uma hora antes de regressar em toda a sua glória. Até os guerreiros mais endurecidos ficaram boquiabertos quando ele reentrou na sala, pois trazia a sua armadura completa. A cota de escamas, com as placas de ouro e prata, brilhava com a luz das chamas e as penas de ganso no cimo do seu grande elmo com prata embutida, que parecia a cabeça de um morto, roçaram nas vigas do telhado quando ele atravessou a passos largos o corredor central. O seu escudo recoberto de prata ofuscava com a luz que reflectia enquanto a capa branca varria o chão atrás de si. Os homens não deviam levar armas para um salão de festa, mas, nessa noite, Artur decidiu usar a Excalibur e dirigiu-se com passos imponentes à mesa de honra como um conquistador que vai estabelecer a paz, e até Gorfyddyd de Powys abriu a boca de admiração à medida que o seu antigo inimigo avançava em direcção ao estrado. Até então Artur tinha sido um pacificador, mas nessa noite queria recordar ao seu futuro sogro o poder que detinha.
Ceinwyn entrou na sala alguns momentos mais tarde. Desde a nossa chegada a Caer Sws ela estivera escondida nos aposentos das mulheres e aquele retiro tinha apenas aumentado a expectativa entre os que nunca tinham visto a filha de Gorfyddyd. Confesso que a maioria esperava ficar desapontado com a estrela de Powys, mas, na verdade, ela brilhava mais do que qualquer estrela. Entrou na sala com as suas aias e, ao ver a princesa, ! os homens ficaram sem fôlego. Até eu fiquei. Tinha uma tez clara, mais comum entre os Saxões, mas em Ceinwyn essa brancura transformava-se numa beleza pálida e delicada. Parecia muito nova, com um rosto tímido e uma maneira de ser reservada. Usava uma túnica de linho tingida de amarelo dourado com goma de abelha e o vestido tinha estrelas brancas bordadas à volta do pescoço e da bainha. O cabelo cor de ouro era tão claro que parecia brilhar tanto como a armadura de Artur. E era tão magra, que Agravain, sentado ao meu lado no chão do salão, comentou que ela não prestaria para ter filhos.
Qualquer bebé aceitável morreria ao tentar passar com esforço por aquelas ancas disse ele amargamente; mesmo assim tive pena de Ailleann que, com certeza, tinha esperanças de que a mulher de Artur nada mais fosse do que uma conveniência dinástica.
A Lua pairava alto sobre o cume de Caer Dolforwyn enquanto Ceinwyn caminhava lenta e envergonhadamente em direcção a Artur. Nas mãos trazia um cabresto, o presente que trouxe para o seu futuro marido como símbolo de que passava da autoridade do pai para a dele. Artur atrapalhou-se e quase deixou cair o cabresto, quando Ceinwyn lho deu, e esse era certamente um mau presságio, mas todos, inclusive Gorfyddyd, se riram desse momento e, depois, lorweth, o druida de Powys, prometeu formalmente o casal em casamento.
As tochas tremeluziram quando as mãos de ambos foram unidas e cingidas por uma corrente de erva entrelaçada com nós. O rosto de Artur estava escondido atrás do elmo cinza-prateado, mas Ceinwyn, a doce Ceinwyn, parecia transbordante de alegria! O druida deu a sua bênção invocando Gwydion, o Deus da Luz e Aranrhod, a Deusa Dourada da Madrugada, para que estas fossem as divindades especiais de Artur e Ceinwyn e para abençoar toda a Grã-Bretanha com a sua paz. Havia um harpista a tocar, homens a aplaudir e Ceinwyn, a amorosa Ceinwyn de prata, chorava e ria ao mesmo tempo, tal era a alegria que lhe invadia a alma. Nessa noite apaixonei-me por Ceinwyn. Foram muitos os homens que se apaixonaram. Ela parecia extraordinariamente feliz, e não era de admirar, pois com Artur escapava ao pesadelo de todas as princesas, que era casar pelo seu país em vez de casar pelo seu coração. Uma princesa teria de dormir com um velho gordo e malcheiroso se isso assegurasse uma fronteira ou estabelecesse uma aliança, mas Ceinwyn encontrara Artur e, sem dúvida nenhuma, ela viu na juventude e na simpatia dele a cura para os seus medos.
Leodegan, o rei exilado de Henis Wyren, chegou ao salão no clímax da cerimónia. O rei exilado não tinha estado connosco desde o dia em que chegáramos, tendo, em vez disso, ido para a sua própria casa a norte de Caer Sws. Agora, ávido por compartilhar da generosidade que sempre se seguia a uma cerimónia de esponsais, ficou no fundo da sala e juntou-se ao aplauso que felicitava a distribuição do ouro e da prata de Artur. Artur conseguira também a permissão do conselho de Dumnónia para trazer o equipamento de guerra de Gorfyddyd que capturara no ano anterior, mas esse tesouro fora devolvido em privado, pois nenhum dos presentes precisava de se lembrar da derrota powysiana.
Depois dos presentes terem sido oferecidos, Artur tirou o elmo e sentou-se ao lado de Ceinwyn. Falou com ela, inclinando-se para ficar mais perto, tal como sempre fazia, para que ela se sentisse, sem sombra de dúvida, a pessoa mais importante em todo o firmamento. Na verdade, ela tinha o direito de se sentir assim. Muitos de nós ali presentes tínhamos inveja de um amor assim, que parecia tão perfeito, e até mesmo Gorfyddyd, que devia ter-se sentido relutante em perder a filha para um homem que o tinha combatido e estropiado, parecia feliz com a alegria de Ceinwyn.
Mas foi nessa noite feliz, em que a paz tinha finalmente chegado, que Artur separou a Grã-Bretanha.
Nenhum de nós o sabia ainda. A distribuição dos presentes dos esponsais foi seguida de cantares e libações. Assistimos a malabarismos, ouvimos o bardo real de Gorfyddyd e berrámos as nossas próprias canções. Um dos nossos homens esqueceu-se do aviso de Artur e envolveu-se numa luta com um guerreiro powysiano. Os dois bêbados foram arrastados para fora do salão, levaram um banho de água gelada e meia hora mais tarde estavam agarrados um ao outro jurando amizade eterna. A certa altura, quando as fogueiras crepitavam alto e a bebida fluía veloz, vi Artur olhar fixamente para o fundo da sala e, curioso, virei-me para ver o que atraíra o seu olhar.
Virei-me e vi uma jovem de pé, com a cabeça e os ombros acima da multidão e com um corajoso olhar de desafio estampado no rosto. Esse olhar parecia dizer: se me conseguires dominar, então conseguirás dominar tudo o que existe neste mundo perverso. Parece que ainda a estou a ver, de pé, entre os seus galgos escoceses que tinham o mesmo corpo magro e esguio, o mesmo nariz comprido e os mesmos olhos caçadores da sua dona. Ela tinha uns olhos verdes com laivos de crueldade bem no fundo. Não tinha um rosto delicado, como também não era delicado o seu corpo. Era uma mulher de linhas fortes e bem pronunciadas, o que tornava o seu rosto belo, mas duro, mesmo muito duro. O que a fazia bonita era o cabelo e o porte, pois caminhava direita como uma lança e o cabelo caía-lhe sobre os ombros numa cascata de madeixas ruivas. Aquele cabelo ruivo suavizava-lhe o olhar enquanto as suas risadas apanhavam os homens tal como o salmão era apanhado nas armadilhas dos cestos. Havia muitas mulheres bonitas e milhares bem mais bonitas, mas duvido que, desde a criação do Mundo, tenha havido muitas tão inesquecíveis como Guinevere, a filha mais velha de Leodegan, o rei exilado de Henis Wyren.
E teria sido bem melhor, como Merlim sempre dizia, que ela tivesse sido afogada à nascença.
O grupo real foi caçar veados no dia seguinte. Os galgos de Guinevere abateram um jovem veado ainda sem chifres, se bem que quem ouvisse Artur a elogiar os cães pudesse pensar que eles tinham caçado o próprio Veado Selvagem de Dyfed.
Os bardos cantavam o amor, e homens e mulheres ansiavam por ele, mas ninguém sabe o que é o amor até ao momento em que, como uma espada atirada do escuro, ele nos atinge. Artur, por mais que tentasse, não conseguia tirar os olhos de Guinevere. Nos dias que se seguiram à festa dos esponsais, quando já tínhamos voltado a Caer Sws, ele passeava e falava com Ceinwyn, mas mal podia esperar para ver Guinevere e ela, sabendo exactamente o jogo que estava a fazer, atormentava-o. O prometido dela, Valerin, estava na corte e ela andava de braço dado com ele, rindo, mas depois olhava de soslaio, timidamente, para Artur, para quem o mundo parava subitamente de girar. Ele ansiava por Guinevere.
Teria feito diferença se Bedwin lá tivesse estado? Penso que não. Nem sequer Merlim poderia ter evitado o que aconteceu. Tentar seria o mesmo que chamar a chuva de volta às nuvens ou ordenar a um rio que corresse de novo para a sua nascente.
Na segunda noite após a festa, Guinevere, veio às escuras até aos aposentos de Artur e eu, que estava de guarda, ouvi o som dos risos e o murmúrio da conversa deles. Conversaram durante toda a noite e talvez tenham feito mais do que apenas falar não sei, mas conversar, conversaram, e isso eu sei-o bem, porque estava à porta do aposento e não podia deixar de os ouvir. Às vezes falavam baixo de mais, mas outras vezes eu ouvia Artur a explicar, a adular, a pedir e a insistir. Devem ter falado de amor, mas isso eu não ouvi. O que ouvi foi Artur a falar da Grã-Bretanha e do sonho que o fizera atravessar o mar e o trouxera da Armórica. Falou dos Saxões, dizendo que eles eram uma praga que tinha de ser exterminada se aquela terra algum dia quisesse ser feliz. Falou da guerra e da alegria tremenda que era montar num cavalo com armadura numa batalha. Falava como me falara nas muralhas geladas de Caer Cadarn, descrevendo uma terra em paz onde as pessoas não temessem a vinda de lanceiros pela madrugada. Falava apaixonada e insistentemente. Guinevere escutava-o com prazer e garantia-lhe que o seu sonho era inspirado. Artur tecia um futuro a partir do seu sonho e Guinevere era uma parte muito importante do fio que usava para o tecer. Pobre Ceinwyn! Tinha apenas a sua beleza e a sua juventude, ao passo que Guinevere descobrira a solidão da alma de Artur e prometia curá-lo. Partiu antes do amanhecer, deslizando a sua sombra por Caer Sws com uma lua em forma de foice agarrada ao cabelo solto.
No dia seguinte, Artur, cheio de remorsos, foi passear com Ceinwyn e o irmão. Nesse dia, Guinevere usava um novo e pesado colar de ouro e alguns de nós sentimos pena de Ceinwyn, mas Ceinwyn era quase uma criança e Guinevere uma mulher, e Artur não sabia o que fazer.
Aquele amor era uma loucura. Uma loucura como a de Pellinore. Uma loucura suficiente para condenar Artur à ilha dos Mortos. Tudo se varreu da mente de Artur: a Grã-Bretanha, os Saxões, a nova aliança, toda aquela grande, melindrosa e equilibrada estrutura de paz pela qual tinha trabalhado desde que chegara da Armórica entrava agora num redemoinho de destruição pela posse daquela princesa de cabelo ruivo sem terras e sem dinheiro. Sabia o que estava a fazer, mas não conseguia evitá-lo, tal como não conseguia evitar que o Sol nascesse. Estava completamente endemoninhado: pensava nela, falava dela, sonhava com ela, não conseguia viver sem ela. No entanto, de alguma forma, mas com muita angústia, mantinha a farsa do seu noivado com Ceinwyn. Os preparativos para o casamento estavam a ser feitos. Como símbolo do contributo de Tewdric para o tratado de paz, o casamento devia ser celebrado em Glevum e Artur viajaria para lá mais cedo, para preparar tudo. O casamento não podia ter lugar até a Lua aumentar de tamanho. Agora estava a diminuir e não se podia arriscar nenhum casamento num tempo de tão maus presságios; mas dentro de duas semanas os augúrios seriam bons e Ceinwyn iria para Sul com flores no cabelo.
Mas era o cabelo de Guinevere que Artur usava em redor do pescoço. Era uma trança estreita de cabelo ruivo que ele escondia por dentro da gola, mas que eu vi numa manhã em que lhe fui levar água. Estava de tronco nu a afiar a navalha de barbear numa pedra e encolheu os ombros quando viu que eu reparara na trança.
Achas que o cabelo ruivo traz má sorte, Derfel? perguntou-me ao ver a minha expressão.
Todos dizem que sim, meu Senhor.
Mas será que toda a gente tem razão? perguntou virado para o espelho de bronze. Para endurecer a lâmina de uma espada, Derfel, não se mergulha na água, mas sim na urina de um rapaz de cabelo ruivo. E isso deve trazer sorte, não deve. E se o cabelo ruivo der má sorte? Fez uma pausa, cuspiu na pedra e manejou a navalha para trás e para a frente. A nossa tarefa, Derfel, é mudar as coisas, não deixá-las ficar como estão. Por que razão não havemos de fazer que o cabelo ruivo passe a significar boa sorte.
Vós podeis fazer qualquer coisa, meu Senhor. Ele suspirou.
Espero que tenhas razão, Derfel. Espero bem que tenhas razão. Olhou com atenção para o espelho de bronze, depois estremeceu ao encostar a lâmina à bochecha. A paz é mais do que um casamento, Derfel. Tem de ser! Não se entra em guerra por causa de uma princesa. Se a paz é tão desejada, e é mesmo muito desejada, então não se abandona a paz só porque não se realiza um casamento, pois não?
Não sei, meu Senhor disse eu.
Eu só sabia que o meu amo estava a ensaiar alguns argumentos mentalmente, repetindo-os vezes sem conta até acreditar neles. Estava louco de amor, tão louco que o norte era sul e o calor era frio. Para mim, aquele era um Artur que eu nunca tinha visto, um homem de paixões e, atrevo-me a dizer, de grande egoísmo. Artur subira tão rapidamente! É verdade que nascera com o sangue de um rei nas veias, mas não lhe fora dado o seu património e por isso considerava que todos os seus sucessos se deviam só a ele. Orgulhava-se disso e estava convencido de que, devido a esses sucessos, sabia mais do que qualquer outro homem, excepto talvez Merlim, e porque esses conhecimentos eram muitas vezes o que outros homens desejavam incoerentemente, as suas ambições egoístas eram outras tantas vezes consideradas nobres e com grande amplitude de visão, mas em Caer Sws as suas ambições chocaram com o que outros homens queriam.
Deixei-o a barbear-se e saí para fora, para o Sol acabado de nascer, onde Agravain estava a afiar uma lança.
Então? perguntou-me ele.
Ele não vai casar com Ceinwyn disse eu.
Onde estávamos não podíamos ser ouvidos dentro dos aposentos, mas mesmo que estivéssemos mais perto Artur não nos teria ouvido. Estava a cantar.
Agravain cuspiu para o chão.
Ele vai casar com quem disseram que ele devia casar disse ele e, depois, atirou a lança para a erva com a ponta para baixo e encaminhou-se com passos imponentes na direcção dos aposentos de Tewdric.
Eu não sabia se Gorfyddyd e Cuneglas sabiam o que se estava a passar com Artur, pois eles não estavam, como nós, em contacto permanente com Artur. Se Gorfyddyd suspeitasse, pensaria provavelmente que não era caso para preocupação. Sem dúvida acreditava, se é que acreditava em alguma coisa, que Artur tomaria Guinevere como amante e Ceinwyn como esposa. É claro que era falta de educação chegar a tal acordo na semana dos esponsais, mas a má educação nunca preocupara Gorfyddyd de Powys. Ele próprio não tinha educação nenhuma e sabia, tal como todos os reis sabem, que as mulheres servem para constituir dinastias e que as amantes servem para dar prazer. A sua mulher tinha morrido há muito, mas uma sucessão de escravas mantinha a sua cama quente e, para ele, a empobrecida Guinevere nunca seria muito mais do que uma escrava e, por isso, não constituía qualquer ameaça para a sua amada filha. Cuneglas era mais perspicaz e tenho a certeza de que esse pressentira problemas, mas tinha investido todas as suas energias nesta nova paz e devia ter esperanças de que a obsessão de Artur por Guinevere se dissipasse como uma tempestade de Verão. Ou talvez nem Gorfyddyd nem Cuneglas suspeitassem de nada, pois não tinham mandado Guinevere embora de Caer Sws, se bem que isso, e os Deuses sabem-no bem, não tivesse servido para nada. Agravain pensava que esta loucura passaria. Disse-me que uma vez Artur estivera assim obcecado.
Era uma rapariga de Ynys Trebes disse-me Agravain não me lembro do nome. Mella? Messa? Qualquer coisa assim. Uma coisinha muito linda. Artur ficou embasbacado, arrastando-se atrás dela como um cão atrás de uma carreta funerária. Mas lembra-te, nessa altura ele era um jovem, tão jovem que o pai dela considerava que ele nunca faria alguma coisa que se visse e mandou a sua Mella-Messa para Broceliande, casando-a rapidamente com um magistrado cinquenta anos mais velho do que ela. Ela morreu ao dar à luz, mas por essa altura já Artur a tinha esquecido. E essas coisas passam, Derfel. Tewdric vai enfiar algum juízo na cabeça de Artur, vais ver.
Tewdric passou toda a manhã fechado com Artur e eu pensei que talvez ele tivesse conseguido meter algum bom senso na cabeça do meu amo, pois Artur parecia recuperado durante o resto do dia. Não olhou nem uma só vez para Guinevere e obrigou-se a ser atencioso para com Ceinwyn e, nessa noite, talvez para agradar a Tewdric, ele e Ceinwyn foram ouvir o sermão de Sansum na pequena igreja provisória. Pensei que Artur tivesse gostado do sermão do Lorde Rato, pois convidou Sansum a ir aos seus aposentos mais tarde e esteve fechado com o padre durante muito tempo.
Na manhã seguinte, Artur apareceu com um rosto duro e severo e anunciou que partiríamos todos nessa mesma manhã. Na verdade, nessa mesma hora. O combinado era partirmos apenas dentro de dois dias e Gorfyddyd, Cuneglas e Ceinwyn devem ter ficado surpresos, mas Artur convenceu-os de que precisava de mais tempo para preparar o casamento e Gorfyddyd aceitou a desculpa sem reparos. Cuneglas deve ter pensado que Artur se ia mais cedo embora para se afastar da tentação de Guinevere e, por isso, também não protestou. Ordenou até que preparassem pão, queijo, mel e hidromel para a viagem. Ceinwyn, a bela Ceinwyn, despediu-se começando por nós, os guardas. Estávamos todos apaixonados por ela, o que nos fez sentir remorsos pela loucura de Artur, se bem que muito poucos pudessem fazer alguma coisa para o evitar. Ceinwyn deu a cada um de nós um pequeno presente de ouro e cada um de nós tentou recusar o presente, mas ela insistiu. A mim deu-me um pregador com desenhos entrelaçados, que eu tentei devolver, mas ela limitou-se a sorrir e cruzou-me os dedos sobre o ouro.
Tende cuidado, Senhor disse ela, muito séria.
E vós também, Senhora respondi fervorosamente.
Ela sorriu e dirigiu-se a Artur, presenteando-o com um pequeno ramo de botões de pilriteiro que lhe proporcionaria uma viagem rápida e segura. Artur prendeu os botões ao cinto da espada e beijou a mão da sua prometida antes de subir para o dorso de Llamrei. Cuneglas queria mandar guardas para nos escoltar, mas Artur recusou essa honra.
Deixai-nos partir, Senhor disse ele o mais rápido possível para preparar a nossa felicidade.
Ceinwyn ficou contente com as palavras de Artur e Cuneglas, sempre atencioso, ordenou que abrissem os portões. Artur, como um homem libertado de uma prova difícil, fez Llamrei galopar como um louco, saindo de Caer Sws e atravessando o profundo vau do Severn. Nós os guardas, que seguíamos a pé, encontrámos um ramo de pilriteiro caído na margem mais distante do rio. Agravain apanhou o ramo para que Ceinwyn não o encontrasse.
Sansum veio connosco. A sua presença não foi explicada, ainda que Agravain supusesse que Tewdric dera ordens ao padre para aconselhar Artur a dominar a sua loucura, uma loucura que todos rezávamos para que passasse. Estávamos, porém, muito enganados. A loucura tornara-se irremediável no momento em que Artur olhara para o fundo da sala de Gorfyddyd e vira o cabelo ruivo de Guinevere. Sagramor costumava contar-nos uma história antiga sobre uma batalha no velho mundo, uma batalha numa grande cidade de torres, palácios e templos e, o mais triste, é que essa batalha começara por causa de uma mulher e, por essa mulher, dez mil guerreiros com armaduras de bronze morreram no meio do pó.
Afinal a história não era assim tão antiga.
Pois tinham-se passado apenas duas horas desde que deixáramos Caer Sws, quando, numa área coberta apenas por bosques, onde não existiam quintas, mas apenas montes escarpados, cursos de água muito rápidos e árvores enormes, encontrámos Leodegan de Henis Wyren à nossa espera ao lado da vereda. Sem uma palavra, levou-nos por um caminho que descia serpenteante por entre as raízes dos grandes carvalhos até uma clareira ao lado de um lago formado pelo dique construído por um castor. Os bosques estavam carregados de mercuriais vivazes e lírios enquanto as últimas campainhas dançavam tremeluzentes nas sombras. A luz do sol iluminava a erva por entre a qual cresciam primaveras, jarros e violetas e onde, com um brilho mais intenso do que qualquer flor, Guinevere esperava, vestida com uma túnica de linho creme. Tinha primaveras entrançadas nos cabelos ruivos. Usava o colar de ouro de Artur, pulseiras de prata e uma capa curta de lã lilás. Só vê-la deixava qualquer homem sem fôlego. Agravain praguejou em voz baixa.
Artur desmontou e correu para Guinevere. Tomou-a nos braços e nós ouvimo-la rir enquanto ele a fazia rodopiar no ar.
As flores! gritou ela, levando uma mão à cabeça. Artur pousou-a no chão devagar e, depois, ajoelhou-se para lhe beijar a bainha da túnica.
Em seguida levantou-se, virando-se.
Sansum!
Senhor?
Podeis casar-nos agora.
Sansum recusou-se. Cruzou os braços sobre a túnica preta e imunda e empinou o rosto de rato teimoso.
Estais prometido, meu Senhor insistiu, nervoso.
Eu pensei que Sansum se mostrava uma pessoa nobre, mas, na verdade, tudo tinha sido combinado. Sansum não viera connosco por ordem de Tewdric, mas sim por ordem de Artur e agora o rosto de Artur era a imagem da fúria perante a mudança de opinião do padre.
Mas nós combinámos! disse Artur e, quando Sansum se limitou a sacudir com veemência a cabeça tonsurada, Artur tocou nos copos da Excalibur. Posso arrancar-te a cabeça, padreco.
Os mártires são sempre feitos por tiranos, meu Senhor disse Sansum, caindo de joelhos na erva florida e inclinando a cabeça para pôr à mostra a nuca imunda. Estou a chegar junto de ti, Senhor berrou para a erva. O Teu servo! A chegar à Tua glória, e que para sempre sejas louvado! Vejo os portões do céu a abrirem-se! Vejo os anjos à minha espera! Recebe-me, Senhor Jesus, no teu peito abençoado! Estou a chegar! Estou a chegar!
Cala-te e levanta-te disse Artur, já cansado daquela ladainha.
Sansum lançou a Artur um olhar manhoso, de soslaio.
Não me ides dar a bem-aventurança do céu, Senhor?
Ontem à noite disse Artur concordaste em casar-nos. Por que razão te recusas agora?
Sansum encolheu os ombros.
Tive de lutar com a minha consciência, Senhor.
Artur entendeu onde ele queria chegar e suspirou.
Então, qual é o teu preço, padre?
Um bispado disse Sansum apressadamente, levantando-se a custo
Pensei que tinham um Papa que concedesse bispados disse Artur. Simplicius? É esse o nome dele, não é?
O sagrado e abençoado Simplicius, que Deus o tenha vivo e de perfeita saúde concordou Sansum. Mas, Senhor, se me derdes uma igreja e um trono nessa igreja as pessoas chamar-me-ão bispo.
Uma igreja e uma cadeira? perguntou Artur. Nada mais?
E a nomeação para ser o capelão do rei Mordred. Tenho de sê-lo. O seu capelão único e particular, percebeis? Com um rendimento do erário suficiente para eu ter o meu próprio administrador, o meu porteiro, o meu cozinheiro e um homem para acender as velas. Sacudiu a erva da batina preta. E uma lavadeira acrescentou, apressado.
É tudo? perguntou Artur com sarcasmo.
E um lugar no conselho de Dumnónia disse ainda Sansum como se fosse uma coisa trivial. Agora é tudo.
Concedido disse Artur displicentemente. Então, o que é que temos de fazer para casar?
Enquanto aquelas negociações se consumavam, eu observava Guinevere Havia um olhar de triunfo no seu rosto e não era para admirar, pois estava a casar muito acima das expectativas do seu pobre pai. O seu pai que, com a boca descaída e a tremer, assistia a tudo aquilo com um terror abjecto estampado no rosto, pois Sansum podia recusar-se a celebrar a cerimónia. Atrás de Leodegan estava uma rapariga atarracada que parecia ter a seu cargo o quarteto de galgos escoceses presos com trela de Guinevere e da pouca bagagem que a família real exilada possuía. A rapariga atarracada era Gwenhwyvach, a irmã mais nova de Guinevere. Também tinham um irmão, se bem que há muito se tivesse retirado para um mosteiro na costa mais bravia de Strath Clota onde eremitas cristãos muito estranhos competiam para ver quem deixava crescer o cabelo mais comprido, alimentando-se apenas de ovas de peixe e pregando às focas.
A cerimónia do casamento foi muito curta. Artur e Guinevere colocaram-se de pé por baixo do estandarte enquanto Sansum, de braços estendidos, disse algumas orações em grego. Depois, Leodegan desembainhou a sua espada e tocou as costas da sua filha com a lâmina antes de entregar a arma a Artur como sinal de que Guinevere passara da autoridade do pai para a do marido. Em seguida Sansum borrifou Artur e Guinevere com alguma água do rio, dizendo que desse modo estava a purificá-los do pecado e a recebê-los na família da Sagrada Igreja que por aquele meio reconhecia a união deles como una e indissolúvel, sagrada perante Deus e dedicada à procriação de filhos. Depois, olhou para cada um de nós, os guardas, e pediu que declarássemos que tínhamos testemunhado aquela cerimónia solene. Todos fizemos a declaração e Artur estava tão feliz que nem percebeu a relutância patente nas nossas vozes; mas ela não passou despercebida a Guinevere. Nada escapava a Guinevere.
Agora disse Sansum depois de dar por terminado aquele mesquinho ritual estais casado, meu Senhor.
Guinevere riu-se. Artur beijou-a. Ela era tão alta como ele, talvez até um pouco mais alta e confesso que, depois de os observar com atenção, me pareciam fazer um par magnífico. Mais do que magnífico, pois Guinevere era realmente atraente. Ceinwyn era bela, mas na presença de Guinevere até o Sol parecia menos brilhante. Nós, os guardas, estávamos em estado de choque. Não havia nada que pudéssemos ter feito para impedir a consumação da loucura do nosso amo, mas toda aquela pressa nos pareceu tão indecente quanto traiçoeira. Sabíamos que Artur era um homem impulsivo e cheio de entusiasmo, mas deixara-nos completamente atónitos com a rapidez daquela decisão. Pelo contrário, Leodegan não podia estar mais alegre, tagarelando com a filha mais nova, dizendo como agora as finanças da família iam recuperar e como, mais cedo do que alguém podia imaginar, os guerreiros de Artur iam expulsar Diwrnach, o usurpador irlandês, de Henis Wyren. Artur ouviu-o vangloriar-se e virou-se rapidamente.
Duvido que isso seja possível, Pai disse ele.
Possível! É claro que é possível! interveio Guinevere. Esse pode ser o meu presente de casamento, meu Senhor, a restituição do reino ao meu querido pai.
Agravain cuspiu, mostrando a sua desaprovação, mas Guinevere preferiu ignorar o gesto e caminhou ao longo da fileira de guardas, dando a cada um de nós uma primavera do diadema que lhe adornara o cabelo. Depois, como criminosos a fugir da justiça de um Senhor, apressámo-nos a ir para Sul, para deixar o reino de Powys antes que chegasse a vingança de Gorfyddyd.
O destino, tal como Merlim sempre dizia, é inexorável, e muitas foram as consequências daquela cerimónia apressada na clareira salpicada de flores na margem do rio. E muita gente morreu. Seguiram-se tanta dor e tanta angústia, tanto sangue e tantas lágrimas que formariam um grande rio; no entanto, na devida altura, os turbilhões acalmaram, novos rios se lhes juntaram e as lágrimas correram para o mar imenso, e algumas pessoas até esqueceram como tudo aquilo começara. O tempo de glória acabou por chegar, mas o que devia ter acontecido nunca aconteceu e, de todos aqueles que sofreram por causa desse momento iluminado pelo Sol, Artur foi o que mais sofreu.
Mas nesse dia ele estava feliz e apressámo-nos para chegar a casa.
A notícia do casamento espalhou-se por toda a Grã-Bretanha como o som da lança de um deus a bater no escudo. No início, o som deixou todos atordoados e, nesse período de calmaria, enquanto todos tentavam entender as consequências, chegou uma embaixada de Powys. Entre as várias pessoas da embaixada veio Valerin, o chefe que fora prometido a Guinevere. Desafiou Artur para um duelo, mas Artur recusou e, quando Valerin tentou desembainhar a espada, nós, os guardas, tivemos de o expulsar de Lindinis. Valerin era um homem alto e forte, de barba e cabelo preto, olhar determinado e um nariz partido. A sua dor era terrível, a fúria era ainda pior e sentia-se frustrado pela sua tentativa de vingança não ter resultado.
lorweth, o druida, era o chefe da delegação de Powys, que fora enviada por Cuneglas e não por Gorfyddyd. Gorfyddyd estava embriagado pelo hidromel e pela raiva, mas o filho ainda tinha esperanças de restaurar a paz depois daquela calamidade. O druida lorweth era um homem sério e sensato e conversou largamente com Artur. O casamento, disse o druida, não era válido, pois tinha sido celebrado por um padre cristão e os Deuses da Grã-Bretanha não reconheciam a nova religião. Tomai Guinevere como vossa amante, insistiu lorweth com Artur, e Ceinwyn como vossa esposa.
Guinevere é minha mulher! Todos nós ouvimos Artur gritar esta frase.
O bispo Bedwin deu o seu apoio a lorweth, mas Bedwin também não conseguiu levar Artur a mudar de ideias. Nem a perspectiva de uma guerra faria Artur mudar de ideias. lorweth aventou essa possibilidade, dizendo que Dumnónia tinha insultado Powys e que esse insulto teria de ser lavado com sangue, se Artur não mudasse de ideias. Tewdric de Gwent enviara o bispo Conrad para implorar pela paz, suplicando a Artur que renunciasse a Guinevere e casasse com Ceinwyn. Conrad até ameaçou que Tewdric poderia estabelecer um tratado de paz separado com Powys.
O meu Senhor não lutará contra Dumnónia. Ouvi Conrad assegurar a Bedwin enquanto os dois bispos caminhavam para cima e para baixo no terraço em frente à vivenda de Lindinis. Mas também não lutará por essa meretriz de Henis Wyren.
Meretriz? perguntou Bedwin, alarmado e chocado com a palavra.
Talvez não admitiu Conrad. Mas digo-vos uma coisa, meu irmão, Guinevere nunca teve ninguém que lhe pusesse o jugo. Nunca!
Bedwin abanou a cabeça perante tamanha falta de firmeza de Leodegan. Depois os dois homens afastaram-se e eu já não os conseguia ouvir. No dia seguinte tanto o bispo Conrad como a embaixada powysiana partiram, e não eram portadores de boas notícias.
Mas Artur acreditava que o tempo da sua felicidade chegara. Insistia em que não haveria guerra, pois Gorfyddyd já perdera um braço e não arriscaria o outro. Afirmava também que o bom senso de Cuneglas asseguraria a paz. Durante algum tempo, dizia ele, haveria ressentimentos e desconfianças, mas tudo acabaria por passar. Ele pensava que a sua felicidade tinha, de abranger toda a terra.
Foram contratados trabalhadores para aumentar e restaurar a vivenda de Lindinis, transformando-a num palácio digno de uma princesa. Artur mandou um mensageiro a Ban de Benoic, pedindo ao seu antigo senhor que lhe enviasse pedreiros e estucadores que soubessem restaurar edifícios romanos. Queria um pomar, um jardim, um lago com peixes; queria termas com água quente; queria um pátio onde os harpistas tocariam. Artur queria um paraíso na terra para a sua noiva, mas outros homens queriam vingança. Nesse Verão soubemos que Tewdric de Gwent se encontrara com Cuneglas e que tinham selado um tratado de paz. Soubemos também que uma parte desse tratado dizia respeito a um acordo que permitia aos exércitos de Powys marchar livremente pelas estradas romanas que atravessavam Gwent. Essas estradas conduziam a um só local Dumnónia.
No entanto, o Verão foi passando e não houve nenhum ataque. Sagramor mantinha os Saxões de Aelle afastados enquanto Artur passava um Verão apaixonado. Eu fazia parte da sua guarda e, por isso, estava com ele dia após dia. Eu devia andar equipado com a espada, o escudo e a lança, mas muitas vezes me vi a carregar jarros de vinho e cestas de comida, pois Guinevere gostava de tomar as suas refeições em clareiras escondidas ou junto a regatos secretos, e nós, os lanceiros, éramos mandados levar pratos de prata, copos de chifre, comida e vinho para o local designado. Ela juntou um grupo de senhoras para formarem a sua corte e, assim Deus me ajude, a minha Lunete era uma delas. Lunete tinha resmungado bastante por ter de abandonar a casa de tijolo em Corinium, mas levou apenas alguns dias a decidir que um futuro melhor a esperava ao lado de Guinevere. Lunete era bonita e Guinevere afirmava que só se rodearia de pessoas e coisas belas e, por isso, ela e as suas damas vestiam-se com os melhores linhos enfeitados a ouro, prata, âmbar e âmbar negro. Além disso pagava a harpistas, cantores, dançarinos e poetas para entreterem a sua corte. Faziam jogos nos bosques, onde caçavam umas às outras e se escondiam; e pagavam multas se quebrassem uma das complicadas regras que Guinevere inventava. O dinheiro para esses jogos, assim como o dinheiro que estava a ser gasto na vivenda de Lindinis, era fornecido por Leodegan que fora nomeado tesoureiro da casa de Artur.
Leodegan jurava que o dinheiro vinha todo das rendas e talvez Artur acreditasse no seu sogro, se bem que todos nós tivéssemos já ouvido histórias pouco claras de que o erário de Mordred estava a ser esvaziado de ouro e a ser cheio das inúteis promessas de pagamento de Leodegan. Artur parecia não se importar. Para ele aquele Verão representava o usufruto antecipado da Grã-Bretanha a viver em paz, mas para nós, os restantes, não passava de um paraíso ilusório.
Amhar e Loholt foram trazidos para Lindinis, ainda que sua mãe não tivesse sido chamada. Os gémeos foram apresentados a Guinevere e Artur, penso eu, esperava que eles vivessem no palácio com coluna que estava a ser construído em redor da antiga vivenda. Guinevere aguentou a companhia dos gémeos por um dia, mas depois disse que a presença deles a incomodava. Não eram divertidos. Disse também que não eram bonitos, tal como a sua irmã Gwenhwyvach também não era bonita e, se não eram bonitos nem divertidos, não tinham lugar na vida de Guinevere. Disse ainda que, além do mais, os gémeos pertenciam à antiga vida de Artur e que essa vida estava morta. Ela não os queria e não se importava de o dizer isso publicamente. E, apertando a bochecha de Artur, disse:
Se queremos filhos, meu Príncipe, devemos fazer os nossos próprios filhos.
Guinevere chamava sempre Artur de príncipe. A princípio, Artur reclamava, dizendo que não era príncipe, mas Guinevere insistia que ele era filho de Uther e que, por essa razão, pertencia à realeza. Artur, para não a contrariar, permitiu que ela o chamasse pelo título, mas, em breve, todos nós fomos obrigados a usar também o título. Guinevere ordenou-nos que o fizéssemos e nós obedecemos.
Nunca ninguém desafiara Artur no tocante a Amhar ou Loholt e conseguira sair vencedor da discussão, mas Guinevere conseguiu-o e, por isso, os gémeos foram recambiados para junto da mãe, em Corinium. As colheitas foram pobres nesse ano, pois as searas ganharam míldio por causa das chuvas tardias que as deixaram murchas e enegrecidas. Corriam rumores de que as colheitas dos Saxões tinham sido melhores, pois as chuvas tinham poupado as terras deles. Por isso Artur levou um grupo guerreiro para Este, para lá de Durocobrivis, para localizar e roubar os cereais dos seus armazéns. Penso que ficou contente por escapar às canções e danças de Caer Cadarn, e nós ficámos contentes por ele nos estar a chefiar outra vez e por estarmos a carregar lanças em vez de panos para festas. Foi um ataque bem sucedido, enchemos Dumnónia com os cereais que capturámos, o ouro que pilhámos e com os escravos saxões. Leodegan, que agora era membro do conselho de Dumnónia, ficou com a tarefa de distribuir gratuitamente os cereais por todas as partes do reino, mas começaram a correr terríveis rumores de que a maior parte dos cereais estava a ser vendida e que o ouro que conseguíramos fora direitinho para a nova casa que Leodegan estava a construir do outro lado do rio, em frente ao palácio de Guinevere.
Por vezes a loucura acaba. São os Deuses quem o ordenam, não os homens. Artur estivera louco de amor durante todo o Verão, que, apesar das nossas ocupações servis, foi um bom Verão, pois um Artur feliz era um senhor iludido e generoso. Mas quando o Outono trouxe o vento, a chuva e as folhas douradas, ele pareceu acordar do seu sonho de Verão. Ainda estava apaixonado na verdade, acho que nunca deixou de estar apaixonado por Guinevere, mas nesse Outono apercebeu-se do mal que tinha causado à Grã-Bretanha. Em vez de paz havia uma trégua soturna que ele sabia não poder durar muito.
Cortámos ramos de freixo para as nossas lanças e as cabanas dos ferreiros retiniam com o som dos martelos nas bigornas. Sagramor foi chamado da fronteira saxónica para estar perto do centro do reino. Artur mandou um mensageiro ao rei Gorfyddyd, reconhecendo o mal que tinha feito ao rei e à sua filha e pedindo desculpas, mas implorando que devia haver paz na Grã-Bretanha. Mandou um colar de ouro e pérolas para Ceinwyn, mas Gorfyddyd devolveu o colar enrolado à volta da cabeça cortada do mensageiro. Soubemos que Gorfyddyd tinha deixado de beber e recuperado as rédeas do reino das mãos do seu filho Cuneglas. Essa notícia veio confirmar que nunca haveria paz até que o insulto feito a Ceinwyn fosse vingado pelas longas lanças de Powys.
Os viajantes traziam histórias de mortes por todo o lado. Os Senhores de Além-Mar traziam novos guerreiros irlandeses para os seus reinos costeiros. Os Francos reuniam grupos guerreiros junto às fronteiras da Bretanha. As colheitas de Powys foram armazenadas e os soldados estavam a ser treinados para lutar com lanças em vez de cortar milho com foices. Cuneglas casara com Helledd de Elmet e estavam a chegar homens desse país do norte para engrossar as fileiras dos exércitos de Powys. Gundleus, de novo rei da Silúria forjava espadas e lanças nos profundos vales do seu país, enquanto a este, nas costas já capturadas pelos Saxões, os barcos não paravam de chegar.
Artur vestiu a sua armadura de escamas. Era apenas a terceira vez que eu a via desde o seu regresso da Bretanha. Depois, com duas vintenas dos seus cavaleiros blindados, cavalgou por toda a Dumnónia. Queria mostrar ao reino o seu poder e queria que os viajantes que levavam os seus produtos de um reino para o outro levassem também as histórias do seu heroísmo. Depois, regressou a Lindinís onde Hygwydd, o seu servo, poliu a armadura de escamas, libertando-a de toda a ferrugem.
A primeira derrota deu-se nesse Outono. Houvera uma epidemia em Venta que deixara os homens do rei Melwas enfraquecidos. Cerdic, o novo chefe saxão derrotou o grupo guerreiro de Belgae e capturou um bom pedaço de terra junto ao rio. O rei Melwas implorou por reforços, mas Artur considerava Cerdic o último dos seus problemas. Os tambores de guerra ressoavam por toda Lloegyr ocupada pelos Saxões e pelos reinos britânicos do norte e não se podiam dispensar lanças a Melwas. Além disso, Cerdic parecia muito ocupado com as suas novas terras e não ameaçaria mais Dumnónia, pelo que Artur, por agora, deixaria o saxão ali ficar.
Vamos dar uma oportunidade à paz disse ele ao conselho.
Mas não havia paz.
No fim do Outono, numa altura em que a maioria dos exércitos estavam já a pensar untar as armas e guardá-las durante os meses mais frios, a força de Powys avançou. A Grã-Bretanha estava em guerra.
O Regresso de Merlim
Igraine fala-me de amor. É Primavera aqui em Dinnewrac e o Sol enche o mosteiro de um calor ainda débil. Há carneiros a pastar nas encostas do lado sul apesar de ontem um lobo ter matado três deles e deixado um rasto de sangue à saída do nosso portão. Os pedintes amontoam-se ao portão à espera de comida e estendem as mãos enfermas quando Igraine vem de visita. Um dos pedintes roubou aos corvos os restos bichosos da carcaça de um cordeiro e estava ali sentado a roer a pele do animal quando Igraine chegou esta manhã.
Ela perguntou-me se Guinevere era mesmo bonita. Não, respondi, mas muitas mulheres trocariam a sua beleza pelo aspecto de Guinevere. É claro que Igraine queria saber se ela própria era bonita e eu assegurei-lhe que era, mas ela disse que os espelhos no Caer do seu marido estavam tão velhos e gastos que era muito difícil saber.
Não seria maravilhoso disse ela vermo-nos exactamente como somos?
Só Deus pode fazê-lo disse eu. Apenas Ele. Ela contraiu o rosto.
Detesto quando me fazes sermões, Derfel. Não condiz contigo. Se Guinevere não era bonita, então como é que Artur se apaixonou por ela?
O amor não olha só à beleza disse eu num tom reprovador.
E eu disse que assim era? perguntou Igraine, indignada. Mas disseste que Artur se sentiu atraído por Guinevere desde o primeiro momento e, se não foi pela beleza, então foi por quê?
Só de vê-la respondi eu o sangue dele esfumava-se. Igraine gostou e sorriu.
Então ela era bonita?
Ela desafiou-o respondi e ele pensou que seria menos homem se não a conseguisse capturar. Ou talvez os Deuses estivessem a brincar connosco. Encolhi os ombros, incapaz de arranjar mais razões. E, além disso acrescentei, eu nunca quis dizer que ela não era bonita, só que ela era mais do que apenas bonita. Era a mulher mais atraente que eu já vi.
Incluindo eu? perguntou de imediato a minha Rainha.
Ai de mim! disse eu. Estou a ficar mal da vista, com a idade. Ela riu-se com o meu subterfúgio.
Guinevere amava Artur? perguntou.
Ela amava a ideia que tinha dele respondi. Ela amava a ideia dele ser o campeão de Dumnónia e amava-o como ele estava na primeira vez que o viu. Usava a sua armadura, era o grande Artur, o notável Artur, o senhor da guerra, a espada mais temida em toda a Grã-Bretanha e em toda a Armórica.
Igraine passou o cordão tarjado da sua túnica branca pelas mãos. Ficou pensativa por um momento.
Achas que eu esfumo o sangue de Brochvael? perguntou ela, ansiosa.
À noite disse eu.
Oh, Derfel ela suspirou e afastou-se do peitoril da janela, dirigindo-se à porta de onde podia olhar para a nossa pequena sala.
Alguma vez estiveste assim apaixonado? perguntou ela.
Sim admiti.
Por quem perguntou ela de imediato.
Não interessa disse eu.
Interessa, sim! Insisto. Foi por Nimue? perguntou.
Não, não foi por Nimue disse eu com firmeza. Com Nimue era diferente. Eu amava-a, mas não estava louco de desejo por ela. Eu só achava que ela era infinitamente... fiz uma pausa, tentando encontrar a palavra, mas não o conseguindo. ... maravilhosa disse, por fim, num tom pouco convincente e não olhando para Igraine para que não visse as minhas lágrimas
Ela esperou por um momento.
Então por quem estiveste apaixonado? Por Lunete?
Não! Não!
Então por quem? insistiu ela.
A história virá no seu devido tempo disse eu, se eu ainda viver
É claro que viverás. Vamos mandar-te comida especial do Caer.
Comida que Sansum, o meu Senhor, me tirará por ser comida indigna para um simples irmão disse-lhe eu, não querendo que ela desperdiçasse os seus esforços.
Então, anda viver no Caer disse ela avidamente. Por favor! Eu sorri-lhe.
Eu faria isso de boa vontade, Senhora, mas, ai de mim, fiz um juramento em como ficava aqui.
Pobre Derfel.
Ela voltou para perto da janela e observou o irmão Maelgwyn a cavar. Tinha a seu lado o nosso noviço que sobrevivera, o irmão Tudwal. O outro noviço morreu de uma febre no fim do Inverno, mas Tudwal ainda vive e compartilha da cela do santo. O santo quer que o rapaz aprenda as letras, principalmente, penso eu, para poder descobrir se eu estou mesmo a traduzir o Evangelho para a língua saxónica, mas o rapaz não é muito inteligente e parece que é melhor a cavar do que a ler. Já era altura de termos verdadeiros sábios aqui em Dinnewrac, pois esta débil Primavera reacendeu as nossas habituais discussões cheias de rancor sobre a data da Páscoa e não teremos paz enquanto a discussão não acabar.
Sansum casou mesmo Artur e Guinevere? perguntou Igraine, interrompendo os meus pensamentos sombrios.
Sim respondi, casou-os mesmo.
E não foi numa grande igreja? Com as trombetas a tocar?
Foi numa clareira perto de um rio disse eu com as rãs a coaxar e candeias dos salgueiros a amontoar-se por trás do dique do castor.
Nós casámo-nos num salão de festas disse Igraine e o fumo fazia os meus olhos lacrimejarem. Encolheu os ombros. Então o que é que mudaste na última parte? perguntou num tom acusador. Que novos moldes deste à história?
Abanei a cabeça.
Nenhum.
Mas na aclamação de Mordred perguntou ela desapontada a espada estava só pousada na pedra? Não estava enterrada? Tens a certeza?
Estava pousada em cima da pedra. Juro fiz o sinal da cruz pelo sangue de Cristo, Senhora minha.
Ela encolheu os ombros.
Dafydd Gruffud vai traduzir a história da forma que eu quiser e eu gosto da ideia de uma espada enterrada na pedra. Fico contente por teres sido simpático com Cuneglas.
Ele era um bom homem disse eu. Era também o avô do marido de Igraine.
Ceinwyn era mesmo bonita? perguntou Igraine. Eu assenti, meneando a cabeça.
Era, era verdadeiramente bonita. Tinha os olhos azuis.
Olhos azuis? Igraine encolheu os ombros perante características tão saxónicas. O que aconteceu ao pregador que ela te deu?
Quem me dera saber respondi, mentindo.
O pregador está na minha cela, bem escondido e a salvo até mesmo das aturadas buscas de Sansum. O santo, que Deus exaltará certamente acima de todos os homens vivos ou mortos, não permite que nós tenhamos qualquer tesouro. Todos os nossos bens devem ser-lhe entregues, é essa a regra. Apesar de eu lhe ter dado tudo, incluindo a Hywelbane, ainda tenho, que Deus ne perdoe, o pregador de Ceinwyn. O ouro foi sendo polido pelos anos, mesmo assim ainda vejo Ceinwyn, quando, na escuridão, tiro o pregador do seu esconderijo e deixo a luz do luar dar brilho aos seus desenhos interligados. Às vezes não, sempre toco-lhe com os lábios. Que velho tolo me tornei. Talvez venha a dar o pregador a Igraine, pois sei que ela o apreciará, mas vou mantê-lo durante mais algum tempo, pois o ouro é como um pedaço de sol neste lugar cinzento e gelado. É claro que, quando Igraine ler isto, vai saber que o pregador existe, mas se ela for tão simpática como sei que é, vai deixar-me ficar com ele como uma pequena lembrança de uma vida de pecador.
Não gosto de Guinevere disse Igraine.
Então, não me saí bem disse eu.
Fá-la parecer muito dura disse Igraine.
Quedei-me em silêncio durante um momento, ouvindo apenas os balidos das ovelhas.
Ela podia ser maravilhosamente simpática disse eu depois da pausa. Ela sabia como fazer as pessoas tristes ficarem alegres, mas não tinha paciência para o trivial. Tinha uma visão do mundo que não abrangia estropiados nem aborrecimentos nem coisas feias, e ela queria construir um mundo real banindo esses inconvenientes. Artur também tinha uma visão do mundo, só que a sua visão oferecia ajuda aos estropiados e também ele queria tornar a sua visão num mundo real.
Ele queria Camelote disse Igraine com ar sonhador.
Nós chamávamos-lhe Dumnónia disse eu severamente.
Tu tentas sugar toda a alegria da história, Derfel disse Igraine de mau humor, se bem que nunca ficasse realmente zangada comigo. Eu quero que seja a Camelote do poeta: erva verdejante, torres altas, damas vestidas com togas e guerreiros espalhando flores pelos caminhos por onde elas passavam. Quero menestréis e gargalhadas! Não foi sempre assim?
Mais ou menos disse eu se bem que não me lembre de muitos caminhos juncados de flores. Lembro-me dos guerreiros a chegarem coxos das batalhas, alguns mesmo a rastejar e a chorar, arrastando as tripas pelo pó do caminho.
Pára! disse Igraine. Então por que é que os bardos lhe chamam Camelote? disse ela, desafiando-me.
Porque os poetas sempre foram uns alienados disse eu. Senão por que seriam poetas?
Não, Derfel! Por que é que Camelote era especial? Diz-me.
Era especial respondi porque Artur fez justiça nessa terra. Igraine franziu as sobrancelhas.
É só isso?
E isto, minha filha disse eu é muito mais do que a maioria dos governantes sequer sonha fazer, quanto mais fazê-lo mesmo.
Ela mudou de assunto, encolhendo os ombros.
Guinevere era inteligente? perguntou ela.
Muito respondi.
Igraine brincava com a cruz que usava ao pescoço.
Fala-me de Lancelote.
Esperai!
Quando é que Merlim chega?
Em breve.
O santo Sansum tem sido desagradável contigo?
O santo tem o destino das nossas almas imortais na consciência. Ele faz o que tem de fazer.
Mas ele caiu mesmo de joelhos e gritou por martírio antes de casar Artur e Guinevere?
Sim, caiu mesmo de joelhos disse eu e não pude deixar de sorrir com a lembrança.
Igraine riu-se.
Vou pedir a Brochvael para transformar o Lorde Rato num verdadeiro mártir disse ela e depois podes ficar a mandar em Dinnewrac. Isso agradar-te-ia, irmão Derfel?
Agradar-me-ia ter alguma paz para continuar com a minha história disse eu, ralhando.
Então o que é que acontece em seguida? perguntou Igraine avidamente.
Em seguida vem a Armórica. A terra de Além-Mar. A bonita Ynys Trebes, o rei Ban, Lancelote, Galaad e Merlim. Meu Deus, que homens eles eram, que dias tivemos, que lutas travámos e que sonhos quebrámos. Em Armórica.
Mais tarde, muito mais tarde, quando olhávamos para trás, limitávamo-nos a chamar a esses tempos os "maus anos", mas raramente falávamos deles. Artur detestava que lhe lembrassem esses primeiros tempos em Dumnónia em que a sua paixão por Guinevere dilacerou a terra, transformando-a num caos. Os seus esponsais com Ceinwyn tinham sido como um pregador muito trabalhado preso a uma túnica de um tecido muito fino que, quando se arrancava do vestido, o pano se desfazia em farrapos. Artur culpava-se e não gostava de falar sobre os maus anos.
Durante algum tempo, Tewdric recusou-se a lutar por qualquer dos lados. Culpava Artur pela paz quebrada e, como castigo, permitiu que Gorfyddyd e Gundleus levassem os seus grupos guerreiros até Dumnónia atravessando Gwent. Os Saxões pressionavam do lado este, os Irlandeses atacavam vindos do mar Ocidental e, como se estes inimigos não fossem já o suficiente, o príncipe Cadwy de Isca revoltou-se contra o governo de Artur. Tewdric tentou ficar longe de tudo isto, mas quando os saxões chefiados por Aelle começaram a atacar ferozmente a sua fronteira, os únicos amigos a quem podia pedir ajuda eram os Dumnonianos e, sendo assim, ele viu-se obrigado a entrar na guerra pelo lado de Artur. Mas por essa altura os lanceiros de Powys e da Silúria tinham já usado as estradas de Tewdric para capturar os montes a norte de Ynys Wydryn e, quando Tewdric declarou estar do lado de Dumnónia, ocuparam também Glevum.
Eu cresci durante esses anos. Perdi a conta dos homens que matei e dos anéis de guerreiro que forjei. Puseram-me uma alcunha, Cadarn, que significa "o poderoso". Derfel Cadarn, sempre sóbrio nas batalhas e com uma espada terrivelmente rápida. Houve uma altura em que Artur me convidou para ser um dos seus cavaleiros, mas eu preferi ficar em terra firme e assim continuei a ser lanceiro. Observei Artur durante todo esse tempo e comecei a compreender por que razão ele era visto como um grande soldado. Não era apenas a sua coragem, se bem que fosse muito corajoso, era mais a forma astuciosa como ele expulsava os inimigos. Os nossos exércitos eram instrumentos toscos que marchavam e mudavam de direcção com muita lentidão Mas Artur forjou um pequeno grupo de homens que aprendeu a deslocar-se com rapidez. E ele conduzia esses homens, alguns a pé e outros a cavalo, em longas marchas à volta dos flancos inimigos, pelo que apareciam sempre quando não eram esperados. Gostávamos de atacar de madrugada, quando os inimigos estavam ainda bêbados depois de uma noite de orgia, ou então enganávamo-los com falsas retiradas e, depois, entrávamos a matar pelos flancos não protegidos. Depois de um ano destas batalhas, quando já tínhamos afastado, pelo menos, as forças de Gorfyddyd e de Gundleus de Glevum e do norte de Dumnónia, Artur nomeou-me capitão e comecei a poder dar ouro aos meus próprios seguidores. Dois anos mais tarde até mereci a honra máxima que um guerreiro pode receber, um convite para desertar para o lado inimigo. De todas as pessoas no mundo, ele veio de Ligessac, o traidor comandante da guarda de Norwenna, que me falou num templo de Mitra onde a sua vida estava protegida, e me ofereceu uma fortuna se eu servisse Gundleus como ele servia. Recusei. Graças a Deus sempre fui fiel a Artur
Sagramor também era fiel e foi ele quem me iniciou no serviço de Mitra. Mitra era um Deus que os Romanos tinham trazido para a Grã-Bretanha e que deve ter gostado do nosso clima, pois ainda tem poder. É um Deus dos soldados e nenhuma mulher pode ser iniciada nos seus mistérios. A minha iniciação teve lugar no fim do Inverno, quando os soldados têm tempo disponível. Teve lugar nos montes. Sagramor levou-me sozinho para um vale tão profundo que mesmo ao fim da tarde a geada da manhã ainda cobria a erva. Parámos na entrada de uma gruta onde Sagramor me deu instruções para pousar as armas e me despir. Eu fiquei ali a tremer enquanto o númida me amarrava um pano grosso à volta dos olhos e me dizia que, agora, eu devia obedecer a todas as instruções e que, se hesitasse ou falasse uma vez que fosse, me traria de volta às minhas roupas e às minhas armas e me mandaria embora.
A iniciação consiste num ataque aos sentidos de um homem e, para sobreviver, só pode lembrar-se de uma coisa: obedecer. É por isso que os soldados gostam de Mitra. A batalha ataca os sentidos e o ataque fermenta o medo e a obediência constituía o único fio que levaria do caos do medo à sobrevivência. Na devida altura eu próprio iniciei muitos homens no serviço de Mitra e conheci muito bem os truques, mas nessa primeira vez, quando entrei na gruta não tinha ideia do que me seria infligido. Quando entrei na gruta, Sagramor, ou talvez um outro homem, fez-me girar e voltar a girar, no sentido da rota do sol, com tanta força e tanta violência que até fiquei tonto e, depois, ordenaram-me que andasse para a frente. O fumo sufocava-me, mas eu continuei, seguindo a vertente inclinada do chão de pedra. Uma voz gritou-me que parasse, outra ordenou-me que me virasse e uma terceira que me ajoelhasse. Enfiaram-me qualquer coisa na boca e eu recuei perante o fedor de excrementos humanos que me fez a cabeça andar à roda.
Come! soou de súbito uma voz, e eu quase vomitei o que tinha na boca até que percebi que estava apenas a mastigar peixe seco.
Bebi um líquido qualquer intragável que me deixou a cabeça mais leve. Devia ser sumo de pilrito misturado com mandrágora ou amanita, porque apesar de ter os olhos bem tapados tive visões de criaturas brilhantes com asas enrugadas e bicos que me vinham picar a carne. Senti as chamas tocarem-me na pele, queimando-me os pêlos das pernas e dos braços. Ordenaram-me que andasse outra vez para a frente, depois que parasse e, então, vi toros a serem amontoados numa fogueira e senti o calor a aumentar à minha frente. O fogo rugia, as chamas queimavam-me a pele nua e a minha virilidade e, depois, a voz ordenou-me que avançasse para a fogueira e eu obedeci, mas afinal enfiei o pé num lago de água gelada que quase me fez gritar pois temia ter entrado num tanque de metal fundido.
Apontaram a ponta de uma espada à minha virilidade, fizeram pressão e ordenaram-me que andasse e, quando o fiz, a ponta da espada desapareceu. Tudo aquilo eram truques, claro, mas as ervas e os fungos misturados na bebida eram o suficiente para intensificar os truques transformando-os em milagres. Na altura em que tinha já seguido todo aquele tortuoso percurso e chegado à câmara quente, cheia de fumo e de ecos, mesmo no coração da cerimónia, já estava completamente em transe devido ao terror e à exaltação. Fui levado até uma pedra da altura de uma mesa e colocaram-me uma faca na mão direita, enquanto a minha mão esquerda foi colocada com a palma virada para baixo sobre uma barriga nua.
Tens uma criança debaixo da mão, sapo miserável disse a voz, e uma mão deslocou a minha mão direita até a lâmina ficar encostada à garganta da criança uma criança inocente que não fez mal a ninguém continuou a voz uma criança que nada mais merece do que a vida, e tu vais matá-la. Mata-a!
A criança gritou alto quando enterrei a faca e senti o sangue quente a esguichar para a minha mão. A pulsação da barriga sob a minha mão esquerda deu um último espasmo e ficou completamente parada. Uma fogueira crepitava perto e o fumo entupia-me as narinas.
Fizeram-me ajoelhar e beber um líquido quente e enjoativo que me abafou a garganta e ardeu no estômago. Só depois, quando aquele copo de chifre de sangue de touro já estava vazio, é que me tiraram a venda dos olhos e vi que tinha matado um cordeiro com a barriga rapada. Amigos e inimigos agruparam-se à minha volta, congratulando-me, pois agora já tinha entrado ao serviço do Deus dos soldados. Tornara-me, assim, membro de uma sociedade secreta que se espalhava por todo o mundo romano e mesmo para lá das suas fronteiras; uma sociedade de homens que tinham provado nas batalhas que eram, não meros soldados, mas verdadeiros guerreiros. Tornar-se membro do serviço de Mitra era uma verdadeira honra, pois qualquer membro do culto podia proibir a iniciação de outro homem. Alguns homens chefiavam exércitos inteiros e nunca eram seleccionados, outros havia que nunca tinham saído das fileiras e eram membros honrados
Agora, que eu era um dos eleitos, trouxeram-me as minhas roupas e as armas. Vesti-me e, depois, disseram-me as palavras secretas do culto que me permitiriam identificar os meus camaradas numa batalha. Se descobrisse que estava a lutar com um outro membro de Mitra era obrigado a matá-lo rapidamente por misericórdia e, se um homem desses se tornasse meu prisioneiro, teria de lhe prestar homenagem. Depois de terminadas as formalidades, fomos para uma segunda gruta, enorme, iluminada por tochas fumegantes e por uma grande fogueira onde estava a ser assada a carcaça de um touro. As fileiras de homens que tinham vindo para a festa prestaram-me grandes homenagens. A maioria dos iniciados deviam contentar-se com os seus camaradas, mas por Derfel Cadarn tinham vindo àquela gruta de Inverno os poderosos de ambos os lados. Estava lá Agrícola de Gwent e, com ele, dois dos seus inimigos da Silúria, Ligessac e um lanceiro chamado Nasiens, o campeão de Gundleus. Estavam também presentes alguns dos guerreiros de Artur, alguns dos meus homens e até o bispo Bedwin, o conselheiro de Artur, que não me parecia nada familiar com aquela couraça enferrujada, o cinturão da espada e a capa de guerreiro.
Já fui guerreiro explicou e também fui iniciado... oh... quando? Há trinta anos. Foi muito antes de me tornar cristão, claro.
E isto fiz um gesto com a mão abrangendo toda a gruta onde a cabeça cortada do touro tinha sido levantada num tripé de lanças para pingar sangue para o chão da gruta não é contra a vossa religião?
Bedwin encolheu os ombros.
Claro que é disse ele, mas se não viesse perderia este convívio. Inclinou-se na minha direcção e baixou a voz, falando num tom de conspiração. Acredito que não vais dizer ao bispo Sansum que eu estou aqui.
Ri-me só de pensar em alguma vez confiar um segredo ao sempre mal humorado Sansum que zumbia por toda a Dumnónia, completamente chupada pela guerra, como uma abelha-obreira. Ele condenava os seus inimigos para sempre e não tinha amigos.
O jovem Mestre Sansum disse Bedwin, com a boca cheia de carne e a barba a pingar o suco ensanguentado quer tomar o meu lugar e eu acho que vai conseguir.
Vai? perguntei aterrado.
Porque o quer com toda a força disse Bedwin e trabalha afincadamente. Meu Deus, como aquele homem trabalha! Sabes o que descobri há uns dias atrás? Ele não sabe ler! Nem uma palavra! Mas para se ser um eclesiástico de categoria superior tem de se saber ler. E sabes o que é que Sansum faz? Manda um escravo ler-lhe em voz alta e decora tudo. Bedwin acotovelou-me para ter a certeza de que eu me apercebera da extraordinária memória de Sansum. Decora tudo! Salmos, orações, liturgias, os escritos dos nossos avós, tudo de cor! Meu Deus. Sacudiu a cabeça. Não és cristão, pois não?
- Não.
Devias ter isso em consideração. Podemos não oferecer muitos prazeres terrenos, mas as nossas vidas para lá da morte valem com certeza a pena. Não que eu tivesse conseguido convencer Uther, mas tenho esperanças com Artur.
Percorri o olhar pela festa.
Artur não disse eu, desapontado pelo meu Senhor não participar no culto.
Ele foi iniciado disse Bedwin.
Mas ele não acredita nos Deuses disse eu, repetindo a afirmação de Owain.
Bedwin abanou a cabeça.
Artur acredita, sim. Como pode um homem não acreditar em Deus ou nos Deuses? Achas que Artur acredita que nos fizemos a nós próprios? Ou que o Mundo apareceu por acaso? Artur não é nenhum tolo, Derfel Cadarn. Artur acredita, mas mantém as suas crenças em silêncio. Na forma de pensar dos cristãos ele é um deles, ou pode ser, e os pagãos acreditam no mesmo e, por isso, todos o servem com a maior das boas vontades. E lembra-te, Derfel, Artur é amado por Merlim e Merlim, podes crer, não ama os não crentes.
Tenho saudades de Merlim.
Todos temos disse Bedwin calmamente, mas podemos sentir algum alívio na sua ausência, pois ele não estaria em nenhum outro lugar senão aqui se a Grã-Bretanha estivesse ameaçada pela destruição. Merlim virá quando for preciso.
Achais então que ele não é preciso agora? perguntei irritado. Bedwin limpou a barba com a manga do casaco e bebeu algum vinho.
Há quem diga disse, baixando a voz que estaríamos melhor sem Artur. Que sem Artur estaríamos em paz. Mas, se não houver Artur quem protege Mordred? Eu? A ideia fê-lo sorrir. Gereint? É um bom homem, há poucos melhores do que ele, mas não é muito esperto e é incapaz de tomar uma decisão e, além disso, não quer governar Dumnónia. Ou é Artur ou mais ninguém, Derfel. Ou melhor, ou é Artur ou Gorfyddyd. E esta guerra não está perdida. Os nossos inimigos temem Artur e enquanto ele viver, Dumnónia está a salvo. Não, acho que Merlim ainda não é preciso.
Ligessac, o traidor, que era outro cristão que não via nenhum conflito entre a sua religião confessa e os rituais secretos de Mitra, falou comigo no fim da festa. Fui frio com ele, apesar de ele ser um companheiro no serviço de Mitra, mas ele ignorou a minha hostilidade e puxou-me pelo braço para um canto escuro da gruta.
Artur vai perder. Sabes isso, não sabes? disse ele.
Não.
Ligessac tirou um bocado de carne do meio dos dentes.
Vão chegar mais homens de Elmet para a guerra disse ele. Powys, Elmet e Silúria contou os nomes pelos dedos unidos contra Gwent e Dumnónia. Gorfyddyd será o próximo Pendragon. Primeiro expulsamos os Saxões das terras a leste de Ratae, depois vimos para sul acabar com Dumnónia. Dois anos, talvez.
O vinho da festa subiu-te à cabeça, Ligessac disse-lhe eu.
E o meu Senhor pagará pelos serviços de um homem como tu. Ligessac estava a trazer-me um recado. O meu Senhor, o rei Gundleus é generoso, Derfel, muito generoso.
Diz ao teu Rei e Senhor respondi-lhe que Nimue de Ynys Wydryn há-de ter a caveira dele para lhe servir de copo e que sou eu que lha hei-de levar. Afastei-me.
Nessa Primavera a guerra reacendeu-se de novo, se bem que, a princípio, com menos destruição. Artur dera ouro a Oengus Mac Airem, o rei irlandês de Demétia, para atacar os limites ocidentais de Powys e da Silúria e esses ataques escoaram os inimigos das nossas fronteiras a norte. O próprio Artur levou um grupo guerreiro para pacificar o ocidente de Dumnónia, onde Cadwy declarara as suas terras tribais um reino independente. Mas, enquanto ele lá estava, os Saxões comandados por Aelle lançaram um poderoso ataque contra as terras de Gereint. Mais tarde soubemos que Gorfyddyd tinha pago aos Saxões tal como nós tínhamos pago aos Irlandeses. O dinheiro de Powys foi melhor empregue, pois os Saxões atacaram com uma força que obrigou Artur a voltar rapidamente do ocidente onde deixou Cei, o seu companheiro de infância, à frente da luta contra as tribos tatuadas de Cadwy. Foi então que, com o exército saxão de Aelle a ameaçar capturar Durocobrivis, com os exércitos de Gwent ocupados contra Powys e contra os saxões do norte e com a rebelião não debelada de Cadwy a ser encorajada pelo rei Mark de Kernow, Ban de Benoic enviou a sua convocação.
Todos sabíamos que o rei Ban só permitira que Artur viesse para Dumnónia na condição de regressar a Armórica se Benoic estivesse em perigo Agora, reivindicava o mensageiro de Ban, Benoic estava em perigo e o rei Ban, insistindo para que Artur cumprisse o seu juramento, exigia o seu regresso.
A notícia chegou-nos quando estávamos em Durocobrivis. A cidade fora outrora um próspero aglomerado romano com sumptuosas termas, um tribunal construído em mármore e um bom mercado, mas agora era um empobrecido forte de fronteira, a olhar para leste sempre por entre os Saxões. Os edifícios para lá da muralha de terra da cidade tinham sido queimados pelos bandidos de Aelle e nunca mais tinham sido reconstruídos, enquanto dentro da muralha as grandiosas estruturas romanas estavam em ruínas. O mensageiro de Ban veio ter connosco ao que restava do átrio com arcadas das termas romanas. Era noite e havia uma fogueira acesa no poço da antiga piscina de mergulhos. O fumo agitava-se pelo tecto arqueado onde batia o vento, sugando o fumo por uma pequena janela. Tínhamos estado a comer a nossa refeição da noite, sentados em círculo no chão frio. Artur levou o mensageiro de Ban para o centro do círculo onde rabiscou um mapa de Dumnónia no meio da imundície. Depois espalhou pedaços de mosaico brancos e vermelhos para mostrar onde estavam colocados os nossos amigos e os nossos inimigos. Por todo o lado os ladrilhos vermelhos de Dumnónia estavam a ser espremidos pelos pedaços de pedra brancos. Tínhamos lutado nesse dia e Artur tinha sofrido um golpe de lança num dos malares. Não era uma ferida perigosa, mas suficientemente profunda para lhe formar uma crosta de sangue no rosto. Tinha combatido sem o elmo, dizendo que via melhor sem a viseira de metal, mas se o saxão tivesse dado o golpe dois centímetros acima e um pouco mais para o lado teria enterrado o aço nos miolos de Artur. Combatera apeado, como normalmente fazia, porque estava a poupar os pesados cavalos para batalhas mais violentas. Meia dúzia dos seus cavaleiros montavam-nos todos os dias, mas a maior parte desses cavalos de guerra raros e dispendiosos estavam guardados bem no interior de Dumnónia, a salvo dos ataques inimigos. Nesse dia, depois de Artur ter sido ferido, o nosso punhado de pesados cavaleiros tinha derrotado a linha saxónica, matando o chefe e escorraçando os sobreviventes de volta para Leste, mas vermos Artur escapar por pouco deixara-nos muito inquietos. E agora, o mensageiro do Rei Ban, um chefe chamado Bleiddig, vinha apenas aumentar esse pessimismo.
Compreendes disse Artur a Bleiddig por que é que não posso partir? Fez um gesto na direcção dos bocados de mosaico vermelhos e brancos.
Um juramento é um juramento respondeu Bleiddig rudemente.
Se o príncipe deixar Dumnónia interveio o príncipe Gereint Dumnónia cai.
Gereint era um homem pesadão e não muito inteligente, mas fiel e honesto. Como sobrinho de Uther, podia reclamar o trono de Dumnónia, mas nunca o fez e sempre foi fiel a Artur, o seu primo bastardo.
É melhor que caia Dumnónia do que Benoic disse Bleiddig, ignorando os murmúrios de fúria que se seguiram.
Eu fiz um juramento que defenderia Mordred realçou Artur.
Fizestes um juramento que defenderíeis Benoic respondeu Bleiddig, afastando a objecção de Artur com um encolher de ombros. Trazei a criança convosco.
Eu tenho de devolver a Mordred o seu reino insistiu Artur. Se ele partir, o reino perde o seu rei e o seu coração. Mordred fica aqui.
E quem ameaça tirar-lhe o reino? perguntou Bleiddig irado. O chefe militar de Benoic era um homem enorme, não muito diferente de Owain e evidenciava muita da força bruta de Owain. Vós! Apontou com desdém para Artur. Se vós tivésseis casado com Ceinwyn não haveria guerra! Se vós tivésseis casado com Ceinwyn, então, não apenas Dumnónia, mas também Gwent e Powys, estariam a enviar tropas para ajudar o meu Rei!
Os homens começaram a berrar e desembainharam as espadas, mas Artur berrou ainda mais alto pedindo silêncio. Um fio de sangue escorreu-lhe da cicatriz da ferida pela face alongada.
Quanto tempo temos antes de Benoic cair? perguntou ele a Bleiddig. Bleiddig franziu as sobrancelhas. Era óbvio que não podia adivinhar a resposta, mas sugeriu seis meses ou talvez um ano. Disse que os Francos tinham trazido novos exércitos para leste de Benoic e Ban não os podia combater a todos. O próprio exército de Ban, comandado pelo seu campeão, Bors, estava a defender a fronteira do norte enquanto os homens que Artur deixara, comandados pelo seu primo Culhwch, defendiam a fronteira do sul. Artur olhava para o mapa que fizera com ladrilhos brancos e vermelhos.
Três meses disse ele e eu irei. Se puder! Três meses. Mas entretanto, Bleiddig, vou mandar-vos um grupo guerreiro de bons homens.
Bleiddig protestou, argumentando que o juramento de Artur exigia a sua presença imediata em Armórica, mas Artur não foi demovido. Três meses, disse ele, ou então que não iria de maneira nenhuma e Bleiddig teve de aceitar o compromisso.
Artur fez-me um gesto para que eu fosse com ele até ao pátio com uma colunata que ficava ao lado da sala onde nos encontrávamos. Havia tinas no pequeno pátio que cheiravam mal como retretes, mas ele pareceu nem notar o fedor.
Deus sabe, Derfel... disse, e eu percebi que ele tinha de estar sob uma grande tensão para usar a palavra "Deus", tal como notei que usou a palavra cristã no singular, se bem que se apressasse a corrigir: ... os Deuses sabem que não te quero perder, mas preciso mandar alguém que não tenha medo de avançar sobre uma muralha de escudos. Preciso mandar-te a ti.
Príncipe... comecei.
Não me chames príncipe interrompeu zangado. Eu não sou príncipe. E não discutas comigo. Todos discutem comigo. Todos sabem como ganhar esta guerra, menos eu. Melwas grita por mim, Tewdric quer-me no Norte, Cei diz que precisa de mais um cento de lanças e, agora, Ban quer-me lá! Se gastasse mais dinheiro com o exército e menos com os poetas não estaria agora em apuros.
Poetas?
Ynys Trebes é um abrigo de poetas disse ele amargamente, referindo-se à ilha-capital do rei Ban. Poetas! Nós precisamos de lanceiros, não de poetas.
Parou e encostou-se a uma coluna. Nunca o tinha visto tão cansado.
Não consigo chegar a lado nenhum disse ele enquanto não pararmos de lutar. Se pelo menos pudesse falar com Cuneglas frente a frente, talvez houvesse esperança.
Não enquanto Gorfyddyd viver disse eu.
Não enquanto Gorfyddyd viver concordou ele e, depois, quedou-se em silêncio e eu sabia que ele estava a pensar em Ceinwyn e Guinevere.
O luar entrou por um buraco no telhado e tocou-lhe como um raio prateado no rosto ossudo. Ele fechou os olhos e eu sabia que se culpava pela guerra, mas o que estava feito estava feito. Teria de se criar uma nova paz e só havia um homem capaz de impor essa paz à Grã-Bretanha e esse homem era o próprio Artur. Abriu os olhos e fez uma careta.
Que cheiro é este? perguntou, notando-o finalmente.
Eles branqueiam os tecidos aqui, Senhor expliquei e apontei para as tinas de madeira cheias de urina e excrementos de galinha para produzir os preciosos tecidos brancos das capas que o próprio Artur preferia.
Em condições normais Artur sentir-se-ia encorajado com tal prova da indústria duma cidade decadente como Durocobrivis, mas nessa noite limitou-se a encolher os ombros para afastar a ideia do cheiro e tocou no sangue vivo da bochecha.
Mais uma cicatriz disse, com pesar. Não tarda terei tantas como tu, Derfel.
Devíeis usar o elmo, Senhor.
Quando o uso não vejo nem para a esquerda nem para a direita disse ele com enfado. Desencostou-se da coluna e fez-me sinal para que caminhasse com ele em redor da arcada. Agora, ouve com atenção, Derfel. Lutar contra os Francos é tal e qual como lutar contra os Saxões. São todos germânicos e os Francos não têm nada de especial a não ser gostarem de usar lanças de arremesso a par das armas normais. Por isso, mantém a cabeça baixa quando eles atacarem pela primeira vez, mas depois é só muralha de escudos contra muralha de escudos. São lutadores severos, mas bebem de mais, pelo que normalmente é possível vencê-los com razoável facilidade. É por isso que te mando a ti. És novo, mas sabes pensar, o que é mais do que a maioria dos nossos soldados conseguem fazer. Eles acham que é suficiente embebedarem-se e esquartejarem tudo o que lhes aparecer pela frente, mas ninguém ganha batalhas assim. Fez uma pausa e tentou esconder um bocejo. Desculpa. E pelo que sei, Derfel, Benoic não corre qualquer perigo. Ban é um homem emotivo descreveu-o amargamente e entra facilmente em pânico, mas se ele perder Ynys Trebes vai ficar com o coração destroçado e eu terei de viver com essa culpa para sempre. Podes confiar em Culhwch, é um bom homem. Bors é um homem competente.
Mas traiçoeiro Sagramor falou de entre as sombras ao lado das tinas de branqueamento. Tinha vindo da sala para tomar conta de Artur,
Isso é injusto disse Artur.
Ele é traiçoeiro insistiu Sagramor no seu sotaque desagradável porque é um dos homens de Lancelote.
Artur encolheu os ombros.
Lancelote pode ser uma pessoa difícil admitiu ele. É o herdeiro de Ban e gosta das coisas feitas à sua maneira, mas... e depois?... Eu também gosto. Sorriu e olhou para mim. Sabes escrever, não sabes?
Sei, sim, meu Senhor.
Tínhamos passado por Sagramor que se mantinha nas sombras, não tirando os olhos de Artur. Havia gatos a passar furtivamente por nós e morcegos a revolutear na parte mais alta da grande sala, cheia de fumo. Tentei imaginar aquele lugar fedorento cheio de romanos vestidos com túnicas e iluminados por candeeiros a petróleo, mas essa parecia uma ideia impossível.
Tens de me escrever a dizer o que está a acontecer pediu Artur para eu não ter de confiar na imaginação de Ban. Como está a tua mulher?
A minha mulher? sobressaltei-me com a pergunta e, por um momento, pensei que Artur se referia a Canna, uma escrava saxónica que me fazia companhia e que me estava a ensinar o seu dialecto, que diferia um pouco do saxão que a minha mãe falava, mas depois percebi que Artur só se podia estar a referir a Lunete.
Não sei nada dela, Senhor.
E também não queres saber, hem? Dirigiu-me um sorriso irónico, mas divertido e, depois, suspirou.
Lunete estava com Guinevere que, por sua vez, tinha ido para a distante Durnovária ocupar o antigo palácio de Inverno de Uther. Guinevere não queria deixar o seu belo palácio perto de Caer Cadarn, mas Artur insistira para que fosse mais para o interior do país, para estar a salvo de ataques inimigos.
Sansum disse-me que Guinevere e todas as suas damas veneram ísis disse Artur.
Quem? perguntei.
Exactamente ele sorriu. ísis é uma deusa estrangeira, Derfel, com os seus próprios mistérios, tem alguma coisa a ver com a Lua, acho eu. Pelo menos foi o que Sansum me disse. Acho que ele também não sabe, mas, mesmo assim, diz que eu tenho de acabar com o culto. Diz que os mistérios de ísis são inqualificáveis, mas quando lhe pergunto do que se trata, ele não sabe. Ou então não diz. Não ouviste nada a esse respeito?
Nada, meu Senhor.
Mas claro que disse Artur energicamente se Guinevere encontra conforto em ísis, é porque não é uma coisa má. Estou preocupado com ela. Prometi-lhe tanto, percebes, e não lhe estou a dar nada. Queria colocar de novo o pai dela no seu trono, e vamos conseguir, vamos, mas vai demorar mais tempo do que pensamos.
Quereis lutar contra Diwrnach? perguntei, aterrado com a ideia.
Ele é apenas um homem, Derfel, e pode ser morto. Um dia vamos conseguir. Virou-se e dirigiu-se para a sala. Vais para Sul. Não te posso dispensar mais do que sessenta homens, Deus sabe que não serão suficientes, se Ban estiver realmente com problemas, mas leva-os, Derfel, atravessem o mar e coloca-te sob o comando de Culhwch. Talvez possas ir por Durnovária. Mandas-me notícias da minha querida Guinevere?
Sim, meu Senhor respondi.
Vou dar-te um presente para lhe levares. Talvez aquele colar cravejado de pedras que o chefe saxão trazia. Achas que ela vai gostar? perguntou ansioso.
Qualquer mulher gostaria respondi.
O colar era trabalho feito por saxões, imperfeito e pesado, mas, ainda assim, era bonito. Era um colar de placas douradas, abertas obliquamente como raios de sol e ornamentado com pedras preciosas.
Muito bem! Leva-o para Durnovária por mim, Derfel, e depois vai salvar Benoic.
Se eu conseguir disse eu de modo sinistro.
Se conseguires ecoou Artur é por uma questão de consciência.
Acrescentou estas últimas palavras serenamente e deu um pontapé num pedaço de telha de argila que deslizou pelo chão, assustando um gato que arqueou as costas, eriçou o pêlo e sibilou na nossa direcção.
Há três anos disse ele suavemente tudo parecia tão fácil.
Mas depois apareceu Guinevere.
No dia seguinte, fui para Sul com sessenta homens.
Ele mandou-te para me vigiares? perguntou Guinevere com um sorriso.
Não, minha Senhora.
Querido Derfel escarneceu ela tão parecido com o meu marido. Aquilo surpreendeu-me.
Sou?
Sim, Derfel, és. Só que ele é muito mais esperto. Gostas deste lugar? Fez um gesto abrangendo todo o pátio.
É bonito disse eu.
A vivenda de Durnovária era, claro, romana, ainda que no tempo de Uther lhe tivesse servido de palácio de Inverno. Deus sabe que quando ele o ocupava não era bonito, mas Guinevere tinha restaurado o edifício, devolvendo-lhe alguma da sua antiga elegância. O pátio, tal como o de Durocobrivis, tinha uma colunata, mas este tinha todas as telhas no lugar e as colunas estavam caiadas. O símbolo de Guinevere estava pintado nas paredes no interior da arcada num padrão repetido de veados coroados com quartos crescentes. O veado era o símbolo de seu pai, a Lua era um suplemento da sua autoria e os medalhões pintados acrescentavam-lhe beleza. Rosas brancas cresciam em canteiros onde existiam também pequenos canais cobertos com azulejos por onde corria água. Dois falcões de caça estavam nos poleiros, virando as cabeças encapuçadas enquanto nós andávamos em redor da arcada romana. Havia estátuas por todo o pátio, todas de homens nus ou mulheres nuas, e em cima de plintos, debaixo da colunata, havia cabeças de bronze com grinaldas de flores. O pesado colar saxão que eu trouxera em nome de Artur estava agora pendurado à volta do pescoço de uma dessas cabeças de bronze. Guinevere brincara com o presente durante algum tempo e, depois, franzira as sobrancelhas.
É uma peça tosca, não é? perguntara-me.
O príncipe Artur acha que é bonito, Senhora, e digno de vós.
Meu querido Artur dissera descuidadamente.
Depois escolhera a horrível cabeça de bronze de um homem de olhar carrancudo e colocara-lhe o colar à volta do pescoço.
Isto vai melhorar um pouco o aspecto dele disse ela, referindo-se à cabeça de bronze. Eu chamo-lhe Gorfyddyd. É parecido com Gorfyddyd, não achas?
Acho, sim, Senhora minha respondi.
O busto tinha mesmo alguma coisa do rosto amargo e infeliz de Gorfyddyd.
Gorfyddyd é um animal disse Guinevere. Tentou tirar-me a virgindade.
Tentou? Consegui dizer, depois de me recuperar do choque provocado por aquela revelação.
Tentou e falhou disse ela com firmeza. Estava bêbado. Babou-se todo por cima de mim. Fiquei cheia de baba até aqui. E indicou, tocando nos seus seios. Ela vestia apenas uma túnica branca de linho que caía em pregas direitas dos ombros até aos pés. O linho devia ter sido caríssimo, pois o tecido era tão desesperadamente transparente que se eu olhasse para ela, o que tentava evitar, podia ver traços da sua nudez por baixo daquele tecido tão fino. Trazia ao pescoço uma imagem dourada do veado coroado com a lua, os brincos eram de âmbar em forma de gotas e com pontas em ouro enquanto na mão esquerda trazia um anel de ouro coroado com o urso de Artur e com uma cruz do amor gravada. Baba e mais baba disse ela com prazer. Por isso, quando ele acabou, ou para ser mais exacta, quando acabou de tentar começar e não parava de falar e de se babar, dizendo como pretendia fazer-me sua rainha e como me ia tornar a rainha mais rica da Grã-Bretanha, eu fui ter com lorweth e pedi-lhe para fazer um feitiço contra um apaixonado que eu não queria. É claro que não disse ao druida que se tratava do rei, se bem que se calhar ele não se importasse se eu dissesse, pois lorweth faria qualquer coisa por um sorriso. Assim, fez-me o feitiço e eu enterrei-o e depois obriguei o meu pai a dizer a Gorfyddyd que eu tinha enterrado um feitiço de morte contra a filha de um homem que me tinha tentado violar. Gorfyddyd sabia a quem eu me referia e como ele ama loucamente aquela sonsa da Ceinwyn, passou a evitar-me desde então. Riu-se e acrescentou: Os homens são tão idiotas!
Não o príncipe Artur disse eu com firmeza, tendo o cuidado de usar o título no qual Guinevere insistia.
É idiota no que toca a jóias, dissera ela mordaz e, depois, perguntou-me se Artur me tinha mandado vigiá-la.
Continuávamos a andar em volta da colunata. Estávamos sozinhos. Um guerreiro de nome Lanval era o comandante da guarda da princesa e quisera deixar os seus homens dentro do pátio, mas Guinevere insistira para que saíssem.
Deixa-os falar sobre nós os dois disse ela alegremente, mas depois franziu as sobrancelhas. Às vezes penso que Lanval tem ordens para me vigiar.
Lanval limita-se a olhar por vós, Senhora disse-lhe eu, pois da vossa segurança depende a felicidade do príncipe Artur e sobre a felicidade dele apoia-se todo um reino.
Isso é bonito, Derfel. Gostei. E disse-o num tom meio zombeteiro. Continuámos a andar. Uma taça com pétalas de rosa embebidas em água espalhava um aroma agradável pela colunata, que oferecia uma sombra de boas-vindas a quem vinha do sol quente.
Queres ver Lunete? perguntou-me Guinevere de repente.
Duvido que ela me queira ver.
Provavelmente não. Mas vocês não são casados, pois não?
Não, Senhora, nós nunca casámos.
Então, não importa, pois não? perguntou ela, mas não disse o que é que não importava e eu também não perguntei. Eu queria ver-te, Derfel disse Guinevere, muito séria.
Sinto-me lisonjeado, Senhora disse eu.
As tuas palavras estão cada vez mais bonitas! Bateu palmas e, depois, franziu o nariz. Diz-me, Derfel, costumas tomar banho?
Corei.
Costumo, Senhora.
Tresandas a couro, sangue, suor e pó. Pode ser um aroma agradável, mas não hoje. Está quente de mais. Queres que as minhas damas te dêem um banho? Fazemo-lo à maneira romana, com muito suor e muita raspadela. É bastante cansativo.
Afastei-me deliberadamente dela.
Eu procuro um riacho, Senhora.
Mas eu queria mesmo ver-te disse ela. Tornou a aproximar-se mais de mim e até meteu o braço no meu. Fala-me de Nimue.
Nimue? Fiquei surpreendido com a pergunta.
Ela sabe mesmo fazer magia? perguntou Guinevere avidamente. A princesa era tão alta como eu e o rosto dela, tão belo e tão altivo,
estava próximo do meu. A proximidade de Guinevere era avassaladora, era como aquela grande perturbação dos sentidos provocada pela bebida de Mitra. O seu cabelo ruivo cheirava a perfume e os seus surpreendentes olhos verdes tinham sido delineados com um risco preto para parecerem maiores.
Ela sabe fazer magia? perguntou Guinevere de novo.
Acho que sim.
Achas?! Afastou-se de mim desapontada. Só achas?
A cicatriz na minha mão esquerda latejou e eu não sabia o que dizer. Guinevere riu-se.
Diz-me a verdade, Derfel. Preciso de saber! Meteu de novo o braço no meu e conduziu-me para debaixo da sombra da arcada. Aquele homem horrível, o bispo Sansum, está a tentar converter-nos a todos ao Cristianismo e eu não vou tolerar isso! Ele quer fazer-nos sentir sempre culpados e eu estou sempre a dizer-lhe que não tenho nada do que me sentir culpada, mas os cristãos estão a ficar mais poderosos. Estão a construir uma nova igreja aqui! Não, estão a fazer pior do que isso. Vem!
Virou-se impulsivamente e bateu as palmas. Escravos entraram a correr no pátio e Guinevere ordenou que lhe trouxessem a capa e os cães.
Vou mostrar-te uma coisa, Derfel, para veres por ti próprio o que aquele bispo miserável está a fazer ao nosso reino.
Pôs uma capa de lã cor de malva para esconder a túnica de linho transparente e pegou nas trelas de uma parelha de galgos escoceses que arfavam ao lado dela com as longas línguas a pender por entre os dentes aguçados. Os portões da vivenda foram abertos e, com dois escravos atrás e um quarteto dos homens de Lanval formados à pressa de cada um dos nossos lados, descemos a rua principal de Durnovária elegantemente pavimentada com pedras largas e com valetas para levar a água da chuva até ao rio que corria a leste da cidade. As lojas abertas à frente estavam cheias de mercadorias: sapatos, um açougue, sal, um oleiro. Algumas casas tinham caído, mas a maioria estava em bom estado de conservação, talvez porque a presença de Mordred e Guinevere trouxera uma nova prosperidade à cidade. Havia pedintes, claro, que se arrastavam até muito perto de nós, arriscando-se mesmo às hastes das lanças dos guardas, para apanharem as moedas de cobre distribuídas pelos dois escravos de Guinevere. Guinevere, com o cabelo a descoberto batido pelo sol, caminhava a passos largos pelo monte abaixo quase sem ligar à agitação que a sua presença causava.
Vês aquela casa? Guinevere apontou para um belo edifício de dois andares do lado norte da rua. É ali que vive Nabur e onde o nosso pequeno rei vomita e dá puns. Encolheu os ombros. Mordred é uma criança particularmente desagradável. Coxeia e nunca pára de gritar. Aí tens! Estás a ouvir?
Realmente eu ouvia uma criança a chorar, se bem que não soubesse se era mesmo Mordred.
Agora, vem por aqui ordenou Guinevere, passando pelo meio de uma pequena multidão que a observava da berma da rua. Depois passou por cima de um monte de pedra partida que estava ao lado da bela casa de Nabur.
Segui-a, e descobri que tínhamos chegado a um terreno para construção, ou melhor, a um lugar onde estavam a deitar abaixo um edifício e a construir um outro a partir das ruínas. O edifício que estava a ser destruído fora um templo romano.
Era aqui que as pessoas veneravam Mercúrio disse Guinevere. Mas agora, em vez disso, vamos ter um santuário para um carpinteiro morto. E agora, és capaz de me dizer como é que um carpinteiro morto nos vai dar boas colheitas!
Estas últimas palavras, manifestamente ditas para mim, foram proferidas num tom suficientemente alto para perturbar o punhado de cristãos que estavam a trabalhar na sua nova igreja. Alguns estavam a assentar pedra, outros a aplainar os umbrais das portadas, enquanto outros deitavam abaixo as paredes antigas para arranjar material para o novo edifício.
Se queres um casebre para o teu carpinteiro disse Guinevere com voz vibrante então por que não tomar conta do antigo edifício? Foi isto mesmo que perguntei a Sansum, mas ele diz que tudo tem de ser novo para que os seus preciosos cristãos não tenham de respirar o ar outrora usado por pagãos. E, baseados nessa crença disparatada, deitamos abaixo o antigo, que era requintado, e levantamos um edifício nojento cheio de pedras mal aparelhadas e sem elegância nenhuma! Cuspiu para o pó para afastar o mal.
Ele diz que é uma capela para Mordred! Acreditas? Está decidido a transformar a desditosa criança num cristão lamurioso e é nesta abominação que ele o vai fazer.
Querida Senhora minha! O bispo Sansum apareceu, vindo de trás de uma das novas paredes que eram realmente defeituosas comparadas com a cuidadosa maçonaria das ruínas do antigo templo. Sansum usava uma toga preta que, tal como o seu cabelo rigorosamente tonsurado, estava esbranquiçada por causa do pó das pedras.
Sentimo-nos admiravelmente honrados com a vossa graciosa presença, Senhora disse ele, inclinando-se perante Guinevere.
Não estou aqui para te honrar, verme. Vim aqui para mostrar a Derfel o morticínio que estás a fazer. Como podem adorar alguém aí dentro?
Fez um gesto na direcção da igreja meio-construída. Já agora podiam ter ocupado um estábulo!
O nosso querido Senhor nasceu num estábulo, Senhora, pelo que me alegro que a nossa humilde igreja vos faça lembrar um. Fez-lhe outra vénia.
Alguns dos seus trabalhadores juntaram-se ao fundo do seu novo edifício onde começaram a cantar um dos seus cânticos sagrados para afastar a presença maligna dos pagãos.
Parece mesmo um estábulo disse Guinevere em tom mordaz. Depois, empurrou o padre ao passar por ele e encaminhou-se a passos largos pelo chão pejado de pedras para uma cabana de madeira encostada à parede de pedra e tijolo da casa de Nabur. Soltou as trelas dos galgos, deixando-os correr livremente.
Onde está aquela estátua, Sansum? fez a pergunta por cima do ombro enquanto dava um pontapé à porta, abrindo-a.
Ai de mim, graciosa Senhora, apesar de eu a ter tentado guardar para vós, o nosso abençoado Senhor ordenou que fosse fundida. Compreendei, Senhora, é para os pobres.
Ela virou-se para o bispo, furiosa.
Bronze! Para que serve o bronze para os pobres? Eles comem-no? Olhou para mim. Uma estátua de Mercúrio, Derfel, do tamanho de um homem alto. Era um trabalho lindo! Lindo! Era trabalho romano, não britânico, mas que agora desapareceu, fundida num forno cristão, porque vocês olhou de novo para Sansum com a repugnância que sentia estampada no seu rosto forte não suportam a beleza. Têm medo dela. São como vermes a abater árvores e não fazem ideia do que estão a fazer.
Ela enfiou-se na cabana onde, evidentemente, Sansum guardava os objectos de valor que encontrava nas ruínas do templo. Saiu de lá com uma estatueta de bronze que atirou para um dos seus guardas.
Não é muito disse ela, mas, pelo menos, fica a salvo de um carpinteiro verme que nasceu num estábulo.
Sansum, ainda a sorrir apesar de todos os insultos, perguntou-me como iam as lutas no Norte.
Vamos ganhando devagar disse eu.
Diz ao meu Senhor, o príncipe Artur, que rezo por ele.
Reza antes pelos inimigos dele, sapo disse Guinevere e talvez ganhemos mais depressa. Olhou para os dois cães que estavam a urinar contra as paredes da nova igreja e acrescentou: O mês passado Cadwy tentou atacar para estes lados e aproximou-se muito.
Graças a Deus que fomos poupados acrescentou Sansum devotamente.
Não graças a ti, verme miserável disse Guinevere. Os cristãos fugiram. Arregaçaram as saias e abalaram para Leste. Nós, os outros, ficámos e Lanval, graças aos Deuses, conseguiu expulsar Cadwy. Cuspiu na direcção da nova igreja. Na altura certa vamos ficar livres de inimigos e, quando isso acontecer, Derfel, vou deitar abaixo aquele telheiro e construir um templo digno de um verdadeiro Deus.
Para ísis? perguntou Sansum com um ar dissimulado.
Tem cuidado, sapo avisou-o ela, pois a minha Deusa governa a noite e pode arrebatar a tua alma para se divertir com ela, se bem que só os Deuses saibam para que serviria a tua miserável alma a alguém. Vem, Derfel.
Recolheu os dois galgos e subimos de novo o monte. Guinevere tremia, enfurecida.
Vês o que ele está a fazer? A deitar abaixo o antigo! Porquê? Para poder impor-nos as suas superstições espalhafatosas? Porque não pode deixar o que é antigo em paz? Nós não nos importamos que aqueles idiotas adorem um carpinteiro, por que é que, então, ele se importa com o que nós adoramos? Quantos mais Deuses melhor, é o que eu sempre digo. Porquê ofender alguns Deuses exaltando só o teu? Não faz sentido.
O que é ísis? perguntei-lhe, quando virámos no portão da vivenda. Ela lançou-me um olhar divertido.
Por acaso essa não será uma pergunta do meu adorado esposo?
É respondi. Riu-se.
Muito bem, Derfel. A verdade é sempre surpreendente. Então Artur está preocupado com a minha Deusa?
Ele está preocupado disse eu, porque Sansum o preocupa com histórias de mistérios.
Ela sacudiu os ombros, deixando cair a capa nos ladrilhos do pátio para ser apanhada por um escravo.
Diz a Artur disse ela que ele não tem nada com o que se preocupar. Duvidará ele por acaso do meu afecto?
Ele adora-vos disse eu, com tacto.
E eu a ele. Sorriu-me. Diz-lhe isso, Derfel acrescentou de modo caloroso.
Direi, Senhora.
E diz-lhe que ele não tem nada com o que se preocupar em relação a ísis. Agarrou-me impulsivamente na mão. Vem disse ela, tal como tinha feito quando me levara ao novo santuário cristão, mas desta vez puxou-me, fazendo-me atravessar o pátio, saltar os pequenos canais de água até uma pequena porta na arcada mais afastada. Isto disse ela, largando-me a mão e empurrando a porta, abrindo-a é o santuário de ísis que tanto preocupa o meu querido Senhor.
Hesitei.
É permitido aos homens entrarem?
De dia, sim. De noite? Não. Ela passou pela porta e afastou uma pesada cortina de lã que estava pendurada logo a seguir à porta. Segui-a, afastando a cortina e entrando numa sala preta e sem luz. Pára! Não te mexas! avisou-me ela.
A princípio, pensei que estava a obedecer a alguma regra de ísis, mas à medida que os meus olhos se foram acostumando à densa obscuridade, vi que ela me mandara parar para que eu não caísse numa piscina de água que havia ali no chão mesmo à minha frente. A única luz do santuário entrava pelos lados da cortina da porta, mas enquanto esperava apercebi-me de uma luz cinzenta a infiltrar-se ao fundo da sala. Depois vi que Guinevere estava a baixar, uma a uma, várias tapeçarias de parede, todas negras, cada uma delas suspensa numa vara com a ajuda de suportes. As tapeçarias eram tão grossas que não passava luz alguma através dos fios sobrepostos em camadas. Por detrás das tapeçarias, que agora estavam todas amarrotadas no chão, havia persianas que Guinevere abriu, deixando entrar uma torrente de luz ofuscante.
Eis os mistérios! disse ela, junto à grande janela em arco. Estava a escarnecer dos medos de Sansum, mas, na verdade, a sala era verdadeiramente misteriosa, pois era toda negra. O chão era de pedra preta, as paredes e o tecto abobadado estavam pintados com piche. No centro do chão negro estava a piscina, pouco funda, cheia de água negra e entre a piscina e a janela que tinha acabado de ser aberta estava um trono baixo e negro feito de pedra.
Então o que achas, Derfel? perguntou-me Guinevere.
Não vejo deusa nenhuma disse eu, procurando uma estátua de ísis.
Ela vem com a Lua disse Guinevere e eu tentei imaginar a luz da lua cheia a entrar em torrentes pela janela dando brilho à água da piscina e tremeluzindo nas paredes negras.
Fala-me de Nimue mandou Guinevere e eu falo-te de ísis.
Nimue é a sacerdotisa de Merlim disse eu e ouvi o eco surdo da minha voz provocado pelas pedras pintadas de negro e está a aprender os segredos dele.
Que segredos?
Os segredos dos Deuses antigos, Senhora. Ela franziu as sobrancelhas.
Mas como é que ele encontra tais segredos? Pensava que os antigos druidas não escreviam nada. Eles estavam proibidos de escrever, não estavam?
Estavam, Senhora, mas, mesmo assim, Merlim procura a sabedoria deles.
Guinevere meneou a cabeça como sinal de que tinha compreendido.
Eu sabia que tínhamos perdido alguma sabedoria. E Merlim vai encontrá-la? Ainda bem. Isso deve fazer calar aquele sapo do Sansum.
Ela tinha avançado até ao centro da janela e espraiava agora o olhar para lá dos telhados de telhas e colmo de Durnovária e sobre a fortaleza do lado sul e dos outeiros cobertos de erva do anfiteatro que ficava do outro lado, na direcção das vastas muralhas de terra de Mai Dun que se erguiam no horizonte. Nuvens brancas amontoavam-se no céu azul, mas o que me tirava o fôlego era ver o Sol a trespassar a túnica branca de linho de Guinevere. Era como se a Senhora do meu Senhor, aquela princesa de Henis Wyren, estivesse nua, e durante esses momentos, com o sangue a latejar nos ouvidos, senti ciúmes do meu Senhor. Será que Guinevere estava ciente da traição do sol? Eu achava que não, mas devia estar errado. Ela estava de costas, mas, de repente, virou-se um pouco para poder olhar para mim.
Lunete é mágica?
Não, Senhora disse eu.
Mas ela aprendeu com Nimue, não aprendeu?
Não respondi. Ela nunca teve permissão para entrar nos aposentos de Merlim. Ela não tinha interesse.
Mas tu estiveste nos aposentos de Merlim?
Só duas vezes respondi.
Eu conseguia ver-lhe os seios e deliberadamente baixei os olhos para a piscina escura, mas a piscina reflectia a beleza dela e acrescentava um resplendor malicioso e misterioso ao seu corpo longo e flexível. Seguiu-se um silêncio pesado e, ao pensar na nossa última troca de palavras, apercebi-me de que Lunete devia ter dito conhecer a magia de Merlim e que, sem dúvida, eu acabara de estragar tudo.
Talvez Lunete saiba mais do que alguma vez me disse disse eu debilmente.
Guinevere encolheu os ombros e virou-se. Levantei de novo os olhos.
Mas achas que Nimue tem mais conhecimentos do que Lunete? perguntou-me ela.
Infinitamente, Senhora.
Já pedi duas vezes a Nimue para vir aqui disse Guinevere com rispidez e ela recusou das duas vezes. Como é que eu faço para ela vir ter comigo?
A melhor maneira de obrigar Nimue a fazer alguma coisa disse eu é proibindo-a de fazê-lo.
Fez-se novamente silêncio. Ouvia-se perfeitamente os barulhos da cidade: os pregões dos vendedores ambulantes no mercado, o ruído das rodas das carroças nas pedras, o ladrar dos cães, o chocalhar de potes numa cozinha ali perto, mas naquela sala havia silêncio.
Um dia disse Guinevere, quebrando o nosso silêncio vou construir um templo para ísis ali em cima. E apontou para as muralhas de Mai Dun que enchiam o céu do sul. Achas que é um lugar sagrado?
Muito.
Que bom. Virou-se de novo para mim, o sol enchia-lhe o cabelo ruivo e iluminava-lhe a pele macia por baixo da túnica. Eu não quero fazer jogos infantis, Derfel, tentando adivinhar o que Nimue quer. Eu quero-a aqui. Preciso de uma sacerdotisa com poder. Preciso de uma amiga dos antigos Deuses se quero lutar contra aquele verme do Sansum. Preciso de Nimue, Derfel. Por isso, pelo amor que tens a Artur, diz-me que mensagem traria Nimue até aqui. Diz-me isso e eu digo-te por que adoro ísis.
Fiz uma pausa, pensando que isca atrairia Nimue.
Dizei-lhe disse eu finalmente que Artur lhe dará Gundleus se ela vos obedecer. Mas certificai-vos de que ele o fará mesmo acrescentei.
Obrigada, Derfel. Ela sorriu e, depois, sentou-se no trono de pedra preta polida. ísis disse ela é uma deusa das mulheres e o trono é o símbolo dela. Um homem pode sentar-se no trono de um reino, mas ísis pode determinar quem esse homem é. É por isso que eu a adoro.
Senti o cheiro da traição nas suas palavras.
O trono deste reino, Senhora disse eu, repetindo o que Artur afirmava tantas vezes está preenchido por Mordred.
Guinevere sorriu de escárnio perante tal afirmação.
Mordred nem é capaz de encher um penico! Mordred é um coxo! Mordred é uma criança mal-educada que já fareja o poder como um porco a fungar uma porca com o cio. A voz dela era desdenhosa e soava como o estalar de um chicote. E desde quando, Derfel, é que o trono é passado de pai para filho? Nunca foi assim nos tempos antigos! O melhor homem da tribo ficava com o poder e assim é que devia ser hoje. Ela fechou os olhos como se, de repente, se arrependesse da explosão. És amigo do meu marido? perguntou algum tempo depois, já com os olhos abertos.
Sabeis que sim, Senhora.
Então tu e eu somos amigos, Derfel. Nós somos um, porque ambos amamos Artur. E tu, meu amigo Derfel Cadarn, achas que Mordred será um rei melhor do que Artur?
Hesitei, pois ela convidava-me a dizer palavras de traição, mas ao mesmo tempo convidava-me a falar com honestidade num local sagrado e, por isso, disse-lhe a verdade.
Não, minha Senhora. O príncipe Artur seria o melhor rei.
Muito bem. Ela sorriu-me. Então, diz a Artur que ele não tem nada a temer e muito a ganhar por eu adorar ísis. Diz-lhe que é pelo seu futuro que eu estou aqui a adorar ísis e que nada do que acontece nesta sala lhe pode causar danos. Está claro?
Dir-lhe-ei, Senhora.
Ela fitou-me longamente. Eu fiquei muito direito como um soldado com a capa a tocar no chão negro, com a barba cor de ouro por causa do sol que entrava no santuário.
Vamos ganhar esta guerra? perguntou Guinevere depois de algum tempo.
Vamos, Senhora.
Ela sorriu perante a minha confiança.
Diz-me porquê.
Porque Gwent aguenta firme como um rochedo a norte disse eu. Porque os Saxões lutam entre eles como nós e, por isso, nunca se coligarão para nos combater. Porque Gundleus da Silúria está apavorado, temendo mais uma derrota. Porque Cadwy é uma lesma que será esmagada quando tivermos tempo de sobra. Porque Gorfyddyd sabe lutar, mas não sabe chefiar exércitos. E, acima de tudo, Senhora, porque temos o príncipe Artur.
Muito bem disse ela de novo. Depois levantou-se deixando o Sol trespassar a túnica branca de linho transparente. Deves partir, Derfel. Já viste de mais. Corei e ela riu-se. E procura um ribeiro! disse ela quando eu passei pela cortina da porta. Porque tresandas como um saxão!
Procurei um ribeiro e lavei-me. Depois conduzi os meus homens para Sul em direcção ao mar.
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