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SÉCULO DEZESSETE, VELHO MUNDO
— Vida longa ao Rei.
Ao som da voz grave e profunda, Wrath, filho de Wrath, instintivamente olhou em volta procurando por seu pai... Com uma centelha de esperança de que sua morte fosse um engano e que o grande governante ainda estivesse com eles.
Mas é claro, seu amado pai tinha mesmo ido para o Fade.
Mas quanto tempo esta triste procura duraria? Ele se perguntava. Era uma ilusão inútil, especialmente porque as vestes sagradas do Rei dos vampiros estavam sobre o seu corpo, as faixas bordadas em pedrarias, o manto de seda e as adagas cerimoniais adornavam seu próprio corpo. Mas sua mente não ligava para estas provas de sua recente coroação... Ou talvez fosse apenas seu coração recusando-se a ser influenciado por tudo aquilo que agora o definia.
Querida Virgem Escriba, sem seu pai, ele estava tão sozinho, mesmo quando cercado de pessoas para servi-lo.
— Meu senhor?
Recompondo sua expressão, ele virou. Parado no umbral da sala de recepção real, seu conselheiro de confiança era como uma coluna de fumaça, comprido e magro, vestindo uma túnica escura.
— Minha honra em saudá-lo, – o macho murmurou, fazendo uma reverência. — Está pronto para receber a fêmea?
Não. — Certamente.
— Iniciemos a procissão?
— Sim.
O conselheiro fez outra reverência e saiu, Wrath perambulou ao redor da sala revestida de painéis de carvalho. Velas ondulavam com o vento que, de alguma forma, se infiltrara pelas paredes de pedra do castelo, e o fogo que crepitava na enorme lareira parecia fornecer somente luz, e não calor.
Na verdade, ele não desejava uma shellan... Ou melhor, uma companheira, como inevitavelmente acabaria acontecendo. Inicialmente era necessário amor, e ele não tinha nenhum para oferecer a ninguém.
Pelo canto dos olhos, vislumbrou um brilho fugaz, e para passar o tempo antes do assustador encontro, ele se aproximou para observar os conjuntos de pedras preciosas dispostos sobre a mesa esculpida. Diamantes, safiras, esmeraldas, pérolas... A beleza da natureza capturada e ancorada por ouro trabalhado.
Os mais valiosos eram os rubis.
Esticando a mão para tocar as pedras vermelho sangue, ele pensou que era cedo demais para tudo aquilo. Ser rei, emparelhamento arranjado por conveniência, milhares de exigências que pesavam agora sobre ele, das quais ainda compreendia tão pouco...
Ele precisava de mais tempo para aprender com seu pai...
A primeira de três batidas na porta reverberou pela sala, e Wrath ficou agradecido de não haver ninguém ali para vê-lo hesitar.
A segunda foi tão alta quanto à primeira.
A terceira exigiria sua resposta.
Fechando os olhos, ele achou difícil respirar através da dor em seu peito. Ele queria que seu pai estivesse com ele... Isto devia acontecer mais tarde, quando ele fosse mais velho, e não guiado por um cortesão, mas por seu próprio pai. Mas, o destino, tinha roubado o grande macho dos anos que tinha à sua frente, e em troca, inscrevera o filho em uma espécie de afogamento, mesmo que houvesse ar suficiente para respirar.
Eu não posso fazer isto, Wrath pensou.
E ainda assim, quando o som da terceira batida na porta se desvaneceu, ele endireitou os ombros e tentou fazer um tom de voz parecido a do pai. — Entre.
Ao seu comando, a pesada porta se escancarou, e seus olhos foram saudados pela visão de uma multidão de cortesãos, de túnicas cinzentas idênticas à do conselheiro à frente deles. Mas aquilo não foi o que registrou. Atrás do grupo de aristocratas, havia outros, de estaturas extraordinárias, olhos semicerrados... E aqueles foram os que começaram a entoar um cântico em tom concentrado.
Na verdade, ele temia a Irmandade da Adaga Negra.
Seguindo a tradição, o conselheiro falou de forma alta e clara, — Meu senhor, tenho uma oferenda a fazer diante do senhor. Posso proceder a apresentação?
Como se a filha de um nobre fosse um objeto. Mas também, tradição e normas sociais regiam que o propósito dela era a reprodução, e na corte, ela seria tratada tão bem quanto o seria uma égua parideira.
Mas ele iria mesmo fazer aquilo? Ele não sabia nada do ato sexual, e ainda assim, se a aprovasse, estaria praticando o ato com ela a qualquer momento após o cair da noite e o amanhecer.
— Sim, – ele ouviu-se responder.
Os cortesãos se enfileiravam através do umbral da porta aos pares, dividindo-se e formando um círculo em volta do perímetro da sala. E então o cântico soou mais alto.
Os guerreiros magníficos da Irmandade entraram marchando, seus corpos extraordinários vestidos em couro negro e carregados de armas, a cadência de suas vozes e movimentos de suas formas tão sincronizados, como se fossem um só.
Ao contrário dos membros da glymera, eles não se dividiram, mas permaneceram juntos ombro-a-ombro, peito-a-peito em formação fechada. Ele não conseguia ver o que estava no centro deles.
Mas podia sentir o cheiro.
E a mudança em si foi instantânea e imutável. Em uma única batida de coração, a natureza pesada da vida foi varrida por uma consciência formigante... Uma, que, enquanto os Irmãos se aproximavam, evoluiu para uma agressividade a qual ele não estava familiarizado, totalmente incapaz de ignorar.
Respirando fundo novamente, mais daquela fragrância penetrou seus pulmões, seu sangue, sua alma... E não eram os óleos com os quais ela tinha sido massageada ou os perfumes que haviam sido aplicados sobre o que cobria seu corpo. Era a pele embaixo de tudo aquilo, a delicada combinação de elementos femininos que ele sabia serem única e exclusivamente dela.
A Irmandade parou diante dele, e pela primeira vez, não sentiu admiração pelas suas auras mortais. Não. Quando suas presas se alongaram dentro da boca, percebeu seu lábio superior formar um rosnado.
Deu até um passo a frente, preparado para abrir o caminho entre os machos a dentadas, para chegar até o que eles escondiam.
O conselheiro pigarreou como se buscando lembrar a todos de sua importância. — Senhor, esta fêmea está sendo oferecida pela sua linhagem, para sua avaliação para fins de procriação. O senhor não deseja inspecionar...
— Deixem-nos, – Wrath grunhiu. — Agora.
O silêncio chocado que se seguiu foi facilmente ignorado por ele.
O conselheiro baixou a voz. — Meu senhor, se me permite finalizar a apresentação...
O corpo de Wrath se moveu por conta própria, girando em seu próprio eixo até encontrar o olhar do macho. — Saiam. Agora.
Atrás dele, um riso abafado se ergueu da Irmandade, como se aprovassem o almofadinha sendo colocado em seu lugar pelo governante. O conselheiro, no entanto, não achou nada engraçado. E Wrath não se importava.
Não havia mais nada a ser dito: o cortesão tinha muito poder, mas ele não era Rei.
Os machos vestidos de cinza saíram da sala, fazendo reverências, e então ele foi deixado com os Irmãos. De uma só vez, eles deram um passo para o lado e...
Revelada o que traziam entre si, havia uma forma magra encoberta por um manto negro da cabeça aos pés. Em comparação com os guerreiros, a pretendida era pequena de tamanho, de ossos mais finos, ainda mais baixa de altura... E ainda assim, uma presença que o afetou profundamente.
— Meu senhor, – um dos Irmãos disse, respeitosamente, — Esta é Anha.
Com aquela simples e mais adequada apresentação, os guerreiros desapareceram, deixando-o sozinho com a fêmea.
O corpo de Wrath tomou controle novamente, enredando seus sentidos caóticos em volta dela, observando-a mesmo sem ela se mover. Querida Virgem Escriba, ele não tinha sido feito para nada daquilo, não para aquela reação à presença dela, nem à necessidade revolvendo suas entranhas, nem à agressividade que lhe tinha vindo à tona.
Mas, mais do que tudo, ele jamais pensara...
Minha.
Era um relâmpago vindo do céu noturno, mudando sua paisagem, esculpindo uma vulnerabilidade profunda em seu peito. E ainda assim, com aquilo, ele pensou, sim, era certo. O conselheiro antigo de seu pai tivera a melhor das intenções. Esta fêmea era o que ele precisava para ampará-lo através da solidão: mesmo sem ver seu rosto, ela o fazia sentir a força em seu sexo, a forma menor, mais delicada dela preenchia sua pele por dentro, a urgência de protegê-la dava a ele a prioridade e foco que ultimamente lhe vinha faltando.
— Anha, – ele suspirou ao parar em frente a ela. — Fale comigo.
Houve um longo silêncio. E então, a voz dela, suave e doce, mas trêmula, penetrou em seus ouvidos. Fechando os olhos, ele ondulou sobre os pés, o som ecoando dentro de seu sangue e ossos, mais adorável do que qualquer coisa que jamais tinha ouvido.
Só que então, ele franziu o cenho ao perceber que não fazia ideia o que ela tinha falado. — O que você disse?
Por um momento, as palavras que vieram por debaixo da cobertura de véus não fez sentido. Mas então as definições das sílabas foram compreendidas por seu cérebro:
— Você deseja ver outra?
Wrath franziu o cenho em confusão. Por que ele...
— Você não removeu o manto para me olhar, – ele ouviu-a responder como se tivesse perguntado em voz alta.
De repente, ele percebeu que ela tremia, seu manto revelava o movimento... E de fato, havia um pesado toque de medo em sua essência.
Sua excitação tinha enevoado toda sua consciência a respeito dela, mas aquilo exigia retificação.
Agarrando o trono, ele arrastou a vasta cadeira esculpida através da sala, sua necessidade de prover conforto à fêmea, lhe dando força superior. — Sente-se.
Ela praticamente desabou sobre o assento de couro cor de vinho – e enquanto as mãos cobertas se agarravam aos apoios de braço, ele imaginava os nós dos seus dedos ficando brancos enquanto ela se agarrava à própria vida.
Wrath caiu de joelhos diante dela. Olhando para cima, seu único pensamento, além da intenção de possuí-la, era que ele jamais queria vê-la amedrontada.
Jamais.
Por baixo das camadas pesadas de mantos, Anha sufocava de calor. Ou talvez fosse terror o que lhe apertava a garganta.
Ela não desejara este destino para ela. Não procurara por nada daquilo. Dá-lo-ia para qualquer uma das jovens fêmeas que a tinham invejado ao longo dos anos. Desde o momento em que nascera, fora prometida para o filho do Rei, como a primeira fêmea... E por causa desta suposta honra, tinha sido isolada pelos outros, afastada, renegada de todo contato. Crescera em solitário confinamento, sem conhecer o carinho de uma mãe, ou a proteção de um pai... Estivera à deriva em um mar de estranhos suplicantes, tratada como um objeto precioso, não uma coisa viva.
E agora, no evento crucial, no momento para o qual fora criada e prometida... Todos aqueles anos de preparação pareceram servir para nada.
O Rei não estava feliz: ele tinha mandado todo mundo sair da sala onde estavam. Ele não tinha removido nem um único tecido dos que a cobriam, como o faria se desejasse aceitá-la de alguma forma. Ao invés disto, ficara observando-a, com sua agressividade inundando o ar.
Ela provavelmente o irritara ainda mais com sua temeridade. Ninguém deveria oferecer sugestões ao Rei...
— Sente-se.
Anha obedeceu à ordem deixando seus joelhos fracos cederem sob seu corpo. Esperava cair no chão gelado e duro, mas havia um assento estofado de grande tamanho para ampará-la.
Ruídos no chão a informaram que ele estava novamente andando a sua volta, com passos pesados, sua presença tão grande que ela podia sentir o tamanho dele. Mesmo que não conseguisse enxergar nada. Coração trovejando, suor escorrendo pelo seu pescoço e entre os seios, esperou pelo próximo movimento dele... E temeu que fosse violento. Pela lei, ele poderia fazer com ela qualquer coisa que quisesse. Podia assassiná-la ou entrega-la para que a Irmandade a usasse. Podia desnudá-la, tomar sua virgindade, e então rejeitá-la... Deixando-a arruinada.
Ou ele podia simplesmente tirar sua roupa e aprovar sua aparência, preservando sua virtude para depois da cerimônia, na noite seguinte. Ou talvez até... Como ela tinha imaginado em seus sonhos mais fúteis... Podia olhá-la rapidamente e voltar a cobri-la com presentes de tecidos especiais, sinalizando sua intenção de elevá-la entre suas shellans... De modo que sua vida na corte pudesse ser mais fácil.
Ela sabia demais a respeito dos cortesãos para esperar gentileza deles. E ela tinha bastante consciência de que, embora fosse emparelhar com o Rei, estava sozinha. Mas se ela tivesse um pouco de poder, talvez pudesse se distanciar de tudo aquilo, deixando as maquinações da corte e do reinado para fêmeas com maiores ambições e ganâncias.
Os passos pararam subitamente e houve um ruído de protesto do chão diretamente à sua frente, como se ele tivesse mudado de posição.
Aquele era o momento, e seu coração congelou como se não quisesse atrair a atenção da lâmina de Sua Majestade...
Em um momento rápido, o capuz foi retirado de sua cabeça, e grandes ondas de ar frio entraram livres em seus pulmões.
Anha engasgou-se com o que viu à sua frente.
O Rei, o governante, o supremo representante da raça vampírica... Estava de joelhos na frente da cadeira que tinha lhe trazido. Aquilo já era chocante o bastante, mas de fato, a súplica aparente dele foi o que menos lhe espantou.
Ele era totalmente belo... E de todas as coisas para as quais ela tinha se preparado, esta primeira e magnífica impressão dele jamais passou pela sua cabeça.
Os olhos dele eram da cor de pálidas folhas de primavera, e brilhavam tanto quanto a lua sobre um lago, ao olhar para ela. E o rosto dele era o mais bonito que já vira, embora isto não fosse elogio suficiente, dado que nunca lhe fora permitido olhar para um macho antes. E os cabelos dele eram tão negros quanto as asas de um corvo, caindo pelas costas largas.
Só que mesmo isto não foi o que mais penetrou sua consciência.
Foi a preocupação na expressão dele.
— Não tenha medo, – ele disse em uma voz que era veludo e pedriscos. — Ninguém jamais te fará mal, pois estou aqui.
Lágrimas afloraram em seus olhos. E então a boca dela se abriu, as palavras escapando. — Meu senhor, não devia se ajoelhar.
— De que outra forma eu reverenciaria uma fêmea como você?
Anha tentou responder, mas ficou presa no olhar dele, sua mente se tornou confusa... Ele não parecia real, este macho poderoso que curvava sua honra diante dela. Para ter certeza de uma vez por todas, suas mãos se ergueram e se moveram para diminuir a distância entre eles...
O que ela estava fazendo? — Perdoe-me, meu senhor...
Ele pegou sua mão e o impacto da carne sobre a carne fê-la engasgar. Ou foram ambos que se engasgaram?
— Toque-me, – ele ordenou — Em qualquer lugar.
Quando ele soltou sua mão, ela pousou-a trêmula na face dele. Morna. Suave de um barbear recente.
O Rei fechou seus olhos e se inclinou, seu grande corpo estremecendo.
Quando ele se manteve parado onde estava, ela sentiu uma onda de poder – não de uma forma arrogante, nem com qualquer ambição de recompensa. Era simplesmente por ter conseguido se firmar em um inegável caminho escorregadio.
Como era possível?
— Anha... – ele respirou, como se o nome dela fosse um encantamento mágico.
Nada mais foi dito, mas a linguagem era desnecessária, todo o discurso e vocabulário pareciam inúteis em expressar uma mera nuance, muito menos definição, do vínculo que estava se formando e atraindo um para o outro.
Ela finalmente baixou os olhos. — Você não tem interesse em me ver inteira?
O Rei soltou um ronronar baixo. — Eu te veria inteira... E ver não seria nem metade do que gostaria de fazer.
O aroma da excitação masculina se elevou espesso no ar, e inacreditavelmente, seu próprio corpo respondeu ao chamado. Mas também, aquela agressão sensual dele estava profunda e verdadeiramente vinculada ao desejo singular dele: ele não ia tomá-la agora. Não, parece que ele ia preservar sua virtude até ter lhe rendido as honras e respeito ao emparelhar-se apropriadamente com ela.
— A Virgem Escriba respondeu às minhas preces com um milagre, – ela suspirou ao piscar por entre lágrimas. Todos aqueles anos de preocupação e espera, aquela espada apontada, por três décadas, pronta para cortar sua cabeça...
O Rei sorriu. — Se eu soubesse que uma fêmea como você poderia existir, eu mesmo teria procurado pela mãe da raça. Mas nunca tive fantasias... E era suficiente. Eu me contentaria em sentar e ficar esperando por anos até você cruzar o meu destino.
Com aquilo, ele se levantou e andou ao longo de uma exibição de túnicas. As cores do arco-íris estavam todas representadas, e ela aprendera muito nova a saber o que cada matiz significava na hierarquia das cores.
Ele escolheu vermelho para ela. A mais valiosa de todas, o sinal de que ela seria a favorita dentre todas suas fêmeas.
A rainha.
E aquela honra devia ser suficiente. Só que, quando ela imaginou as fêmeas que ele teria, a dor inundou seu coração.
Quando ele olhou para ela, deve ter sentido sua tristeza. — O que te aflige, leelan?
Anha meneou a cabeça, e disse a si mesma que compartilhá-lo não era algo que ela tivesse o direito de lamentar. Ela...
O Rei balançou a cabeça. — Não. Haverá somente você.
Anha recuou. — Meu senhor, esta não é a tradição...
— Eu não sou o governante de tudo? Não posso decretar vida e morte sobre as questões? – Quando ela anuiu, uma expressão dura desceu sobre as feições dele... E fê-la sentir pena de quem tentasse negá-lo. — Então eu devo determinar o que é e o que não é tradição. E só haverá você para mim.
Lágrimas afloraram novamente aos olhos de Anha. Ela queria acreditar nele, e ainda que parecesse impossível... Mesmo enquanto ele envolvia sua forma ainda coberta com o manto com a seda cor de sangue.
— Você me honra, – ela disse, olhando-o no rosto.
— Não o suficiente. – Com uma volta rápida, ele olhou pela mesa onde as pedras preciosas estavam dispostas.
A grandiosidade das joias tinha sido a última coisa em sua mente ao tirar o capuz, mas agora, seus olhos se arregalaram diante da vitrine de riquezas. Certamente ela não merecia tais coisas. Não até lhe dar um herdeiro.
O que, subitamente não parecia mais uma obrigação.
Quando ele voltou para ela, ela ficou com a respiração suspensa. Rubis, tantos que ela não podia contar... De fato, uma bandeja inteira... Incluindo o anel Saturnino que ela sabia sempre ornar a mão da rainha.
— Aceite-os e saiba minha verdade, – ele disse, ao se abaixar novamente diante dos pés dela.
Anha sentiu a cabeça girar. — Não, não, eles são para a cerimônia...
— Que será aqui e agora. – Ele estendeu a mão. — Me dê sua mão.
Cada osso de Anha tremia ao obedecê-lo, e ela deixou escapar um engasgo quando a pedra Saturnina foi colocada em seu dedo médio da mão direita. Ao olhar para a pedra preciosa, a luz das velas refletidas entre suas facetas, chamejando com beleza tão certa quanto o amor verdadeiro que acendia o coração de dentro para fora.
— Anha, você me aceita como seu Rei e companheiro, até que as portas do Fade se abram diante de ti?
— Sim, – ela se ouviu responder com força surpreendente.
— Então eu, Wrath, filho de Wrath, realmente te tomo como minha shellan, para te proteger e cuidar de você e dos filhos que possamos ter, tão certo quanto farei, e meu reinado, e meus cidadãos. Você será minha para sempre... Seus inimigos são agora meus, sua linhagem se misturará à minha própria, seus crepúsculos e alvoreceres serão compartilhados somente comigo. Este vínculo jamais será quebrado por forças internas ou externas... E... – aqui ele pausou – ...Haverá somente uma única fêmea para os meus dias, e você será esta única rainha.
Com aquilo, ele ergueu sua outra mão e entrelaçou seus dedos. — Ninguém nos separará. Nunca.
Embora Anha não tivesse conhecimento disto na ocasião, nos anos que se seguiram, enquanto o destino continuava a se desenrolar, transformando este momento presente em história passada, ela reviveria este instante muitas e muitas vezes. Mais tarde, ela refletiria que ambos tinham se perdido naquela noite, e a visão um do outro tinha lhes dado a base sólida que ambos precisavam.
Mais tarde, quando dormindo próxima a seu companheiro em seu leito nupcial e ouvindo-o gentilmente roncar, ela saberia que o que parecera um sonho era na realidade um milagre puro e simples.
Mais tarde, na noite em que ela e seu amado foram assassinados, quando seus olhos se fixaram no pequeno depósito a altura do chão onde ela tinha escondido o herdeiro deles, o futuro deles, a única coisa que era maior do que os dois... Ela teria o que seria o seu último pensamento antes de morrer: tudo aquilo estava escrito. Tanto a tragédia quanto a sorte, tudo aquilo tinha sido predeterminado, e tinha começado aqui, neste instante, enquanto os dedos do Rei se entrelaçaram aos dela e os dois se tornaram vinculados um ao outro, por toda eternidade.
— Quem a atenderá esta noite e neste dia antes da cerimônia pública? – ele perguntou.
Ela odiava deixá-lo. — Eu devia voltar às minhas acomodações.
Ele franziu profundamente o cenho. Mas então soltou-a e passou um doce tempo adornando-a com os rubis até se dependurarem de suas orelhas, pescoço e ambos os pulsos.
O Rei tocou a maior das pedras, a que se estava sobre o seu coração. Quando as pálpebras dele baixaram, ela achou que sua mente tinha se desviado para um lado mais carnal... Talvez ele estivesse imaginando-a sem as roupas, com nada além de pele para emoldurar o conjunto dourado com os detalhes em diamante e aquelas incríveis pedras vermelhas.
A última peça era a coroa propriamente dita, e ele retirou-a do estojo de veludo, colocou-a em sua cabeça, e então recuou para observá-la.
— Você brilha mais que todas elas, – ele disse.
Anha olhou para si mesma. Vermelho, vermelho, em todos os lugares, a cor do sangue, a cor da própria vida. De fato, ela não conseguia nem imaginar o valor das pedras, mas não foi aquilo que a emocionou. A honra que ele estava prestando a ela naquele momento era lendária... E ela desejava que pudesse ficar somente entre eles para sempre.
Mas aquilo não podia ser. E os cortesãos não iriam gostar disto, ela pensou.
— Eu vou levá-la para seus aposentos.
— Oh, meu senhor, não devia se incomodar...
— Não tem nada mais que eu queira fazer esta noite, te garanto.
Ela não conseguiu evitar o sorriso. — Como desejar, meu senhor.
Só que ela não tinha certeza de conseguir ficar em pé com toda a...
Anha não fez o caminho com seus próprios pés. O Rei pegou-a no colo e levou-a nos braços, abraçando-a acima do chão como se ela não pesasse mais do que uma pomba.
E com aquilo, ele marchou, chutou a porta para abri-la e seguiu pelo corredor: eles estavam todos lá, o salão cheio de aristocratas e membros da Irmandade da Adaga Negra... E instintivamente ela afundou o rosto no pescoço de Wrath.
Embora tenha sido criada especialmente para o Rei, ela sempre se sentira como um objeto, só que aquilo desaparecia quando estava sozinha com o macho. Agora, exposta aos olhares invasivos dos outros, ela se via de novo naquele papel, relegada a uma posse ao invés de uma igual.
— Aonde vocês vão? – um dos aristocratas perguntou ao ver o Rei passar por eles sem reparar em suas presenças.
Wrath continuou andando... Mas claramente este cortesão não aceitaria ser ignorado no que não era assunto seu. O macho se colocou no caminho deles. — Meu senhor, é de costume...
— Ela ficará em meus próprios aposentos nesta noite e em todas as outras.
Surpresa flamejou no rosto magro e contraído. — Meu senhor, esta deve ser honra somente da rainha, e mesmo que você já tivesse a fêmea, não seria oficial até...
— Nós estamos devidamente emparelhados. Eu mesmo oficiei a cerimônia. Ela é minha e eu sou dela, e você não vai querer se interpor no caminho de um macho vinculado com sua fêmea... Muito menos no do Rei com sua rainha. Vai?
Houve um som contrafeito de dentes se cerrando, como se a mandíbula de alguém tivesse caído aberta para então ser fechada com violência.
Olhando por cima dos ombros de Wrath, ela viu sorrisos nos rostos da Irmandade, como se os guerreiros aprovassem a agressividade. Os das túnicas? Não havia aprovação em suas feições. Impotência. Súplica. Raiva súbita.
Eles sabiam quem tinha o poder, e não eram eles.
— Você devia ser acompanhado, meu senhor, – um dos Irmãos disse. — Não por ser tradição, mas por causa dos perigos atuais. Mesmo nesta fortaleza, é apropriado que a Primeira Família seja protegida.
O Rei anuiu após um momento. — Está bem. Sigam-me, mas... – sua voz caiu para um grunhido — Você não a toca de maneira nenhuma ou vou arrancar a parte de seu corpo que a tocar.
Verdadeiro respeito e um tipo de afeição aqueceu a voz do Irmão: — Como desejar, meu senhor. Irmandade, agora!
Simultaneamente, adagas foram retiradas dos suportes no peito, lâminas negras brilhando sob as tochas que se alinhavam no salão. Enquanto os dedos de Anha se afundavam nas vestes preciosas do Rei, os Irmãos soltaram um grito de batalha ondulante, com aquelas armas acima de suas cabeças.
Em uma coordenação nascida de longas horas na companhia um do outro, cada um dos grandes guerreiros caíram de joelhos em um círculo e enterraram a ponta de suas adagas no chão.
Curvando as cabeças, e em uma só voz, eles disseram algo que ela não compreendeu.
E ainda que fosse dirigido a ela: Eles estavam jurando lealdade a ela como a rainha deles. Era o que teria acontecido ao cair da noite de amanhã, na frente da glymera. Mas ela, de longe, preferia aqui, e quando os olhos deles se ergueram, respeito brilhava neles... Respeito por ela.
— Minha gratidão a vocês, – ela ouviu-se dizendo. — E toda minha honra ao nosso Rei.
No piscar de um olho, ela e seu companheiro foram cercados por guerreiros extraordinários, o voto que tinha sido dado fora aceito, o trabalho começara. Flanqueados de ambos os lados, do jeito que ela intuía que havia sido trazida ali, Wrath voltou a caminhar, totalmente protegido pela Irmandade.
Além dos ombros do seu companheiro, através de uma montanha de Irmãos, Anha observou a multidão de cortesãos retroceder conforme eles avançavam pelo corredor.
O conselheiro na frente de todos eles, aquele com as mãos nos quadris e as sobrancelhas bem baixas... Não estava nem um pouco satisfeito.
Um arrepio de medo percorreu-a.
— Shhh, – Wrath sussurrou em seu ouvido. — Não se preocupe. Eu serei gentil com você.
Anha enrubesceu e enterrou a cabeça de volta no pescoço musculoso dele. Ele iria tomá-la assim que chegassem ao lugar para onde iam, seu corpo sagrado invadiria o dela, selando o emparelhamento de forma visceral.
Ela ficou chocada ao perceber que ela também queria aquilo. Naquela hora. Rápido e forte...
E ainda assim, quando eles ficaram sozinhos novamente, quando eles deitaram em um leito fantástico de dossel de seda... Ela se sentiu grata por ele ser paciente, gentil e carinhoso, como prometeu a ela que seria.
Era a primeira das muitas, muitas vezes que seu hellren não a decepcionaria.
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— Me dê sua boca, – Wrath exigiu.
Beth virou a cabeça e inclinou-se para os braços de seu macho. — Você quer? Então tome.
O rugido que saiu daquele peito enorme foi um lembrete que seu homem não era, de fato, um homem. Ele era o último vampiro de sangue puro do planeta – e quando se tratava dela e sexo, ele era totalmente capaz de bancar a bola de demolição para chegar até ela.
E não do jeito pseudo-sexy da estúpida da Miley Cyrus... E desde que Beth também quisesse, é claro. Mas, realmente, uma mulher que tivesse a oportunidade de se ver a sós com alguém com dois metros de um traseiro durinho vestido de couro negro, que só por acaso tinha pálidos olhos verdes que brilhavam como a lua, e cabelos negros que desciam costas abaixo até o já mencionado atributo posterior?
A palavra não, não estava somente fora de seu vocabulário, mas era um conceito estrangeiro.
O beijo que veio a ela foi brutal bem do jeito que ela queria, a língua de Wrath raspando contra a sua enquanto ele a empurrava de costas pelas portas abertas de seu esconderijo secreto.
Bum!
Melhor som do mundo. Bem, tá certo, o segundo melhor... O número um era aquele que seu macho fazia quando gozava dentro dela.
Só de pensar nisto, seu núcleo se abria ainda mais.
— Oh, porra, – ele disse em sua boca enquanto uma de suas mãos deslizava entre suas coxas. — Eu quero... Sim... Você está molhada para mim, leelan.
Não era uma pergunta. Porque ele sabia a resposta, não sabia?!
— Eu posso sentir o cheiro, – ele grunhiu contra seu ouvido enquanto corria as presas pela sua garganta acima. — A coisa mais linda do mundo... Só perde para seu gosto.
Aquela rouquidão na voz dele, a tensão em seus quadris, aquele volume duro pressionando contra ela... Ela gozou ali mesmo.
— Caralho, precisamos fazer isto mais vezes, – ele resmungou por entre dentes, enquanto ela se esfregava contra sua mão, remexendo os quadris. — Por que caralhos a gente não vem aqui todas as noites?
O pensamento da bagunça que os aguardava de volta em Caldwell drenou um pouco do calor de dentro dela. Mas então ele começou a massageá-la com os dedos, trabalhando a costura de seus jeans contra seu lugar mais sensível, enquanto sua língua provava sua boca do jeito que ele fazia quando estava... Uh, isso.
Gezuis, quem diria, surpresa, surpresa... Tudo sobre ele ser Rei e o atentado contra sua vida e o Bando de Bastardos simplesmente se escafederam.
Ele estava certo. Porque infernos eles não encontravam mais tempo para este pedacinho de paraíso com mais frequência?
Rendendo-se ao sexo, as mãos dela agarraram os cabelos dele, compridos até a cintura, sua suavidade tão contrastante com a dureza de seu rosto, a força em seu corpo incrível, aquele núcleo de aço de seu caráter. Ela jamais fora uma dessas garotas idiotas que sonhavam com um Príncipe Encantado ou um casamento de contos de fadas ou qualquer outra merda musical da Disney. Mas mesmo para alguém que não acalentara ilusões e não tivera intenção de assinar uma certidão de casamento, não havia jeito de ela ter se imaginado com Wrath, filho de Wrath, Rei de uma raça que, pelo que lhe constava na época, não passava de um mito de Halloween.
Apesar disto, aqui estava ela, completamente apaixonada por um matador certeiro que tinha um linguajar de caminhoneiro, linhagem real tão longa quanto o braço, e atitude suficiente para fazer Kanye West parecer um rejeitado com autoestima baixa.
Ok, ele não era tão egocêntrico assim... Embora, sim, ele provavelmente rejeitaria Taylor Swift sem pensar duas vezes, mas isto porque rap e hip-hop eram suas músicas favoritas e não por ele ser um hater.[1]
Conclusão, seu hellren era um tipo “dá-ou-desce” de cara, e o trono em que se sentava mostrava que o defeito de personalidade era aceito de joelhos como a lei da terra.
Falando em tempestade perfeita[2]. O lado bom da coisa? Ela era a única exceção, a única pessoa que conseguia enfiar um pouco de bom-senso na cabeça dele quando ele realmente perdia a cabeça. Era assim com todos os Irmãos e suas companheiras. Membros da Irmandade da Adaga Negra, grupo de guerreiro de elite da raça e marombados, não eram famosos por sua calma e tranquilidade. Mas também, ninguém ia querer covardes na linha de frente de qualquer guerra, especialmente quando os caras malvados eram da laia da Sociedade Lessening.
E aqueles malditos Bastardos.
— Eu não vou conseguir chegar à cama, – Wrath gemeu. — Eu tenho de estar em você agora.
— Então me possua no chão, – ela sugou o lábio inferior dele. — Você sabe fazer isto, não sabe?
Mais rugidos, e uma grande virada no eixo do planeta quando ela foi jogada ao chão e deitada no assoalho polido. O loft que era o apartamento de solteiro de Wrath parecia um cenário de filme: tinha um telhado em forma de catedral, decoração de um depósito vazio, e a pintura preta fosca de uma Uzi. Não era nada parecido com a mansão da Irmandade, onde eles viviam, e aquele era exatamente o ponto.
Mesmo sendo um lugar tão bonito, todo aquele ouro, candelabros de cristal e móveis antigos podiam ser um pouco sufocantes.
Raaaaaaaaaaasgo.
Com aquele barulho feliz, ela perdeu outra peça de seu guarda-roupa... O que deixava Wrath muito orgulhoso de si mesmo: expondo presas tão longas quanto adagas e tão brancas quanto a neve que caía, ele prosseguiu em transformar sua camisa de botões de seda em um pano de chão, rasgando a coisa para expor seus seios nus, botões voando para todo lado.
— Agora, era disto que eu estava falando. – Wrath arrancou seus óculos escuros e sorriu, expondo a bela dentição. — Nada no caminho...
Caindo sobre ela, ele atracou-se com um mamilo enquanto suas mãos iam para a cintura de seus jeans pretos. Levando tudo em conta, ele foi até educado ao liberar o botão e baixar o zíper, mas ela sabia o que estava por vir...
Com um puxão violento, ele arruinou o que era um par de Levi's com somente duas semanas de uso.
Ela não se importava. Nem ele.
Oh, Deus, ela precisava disto.
— Você tem razão, já faz muito tempo, – ela sibilou quando ele foi direto para seu próprio zíper, abrindo os botões, liberando uma ereção que ainda conseguia tirar seu fôlego.
— Desculpe, – ele pediu enquanto agarrava-a pela nuca e a montava.
Quando ela abriu bem as coxas para ele, ela soube exatamente pelo que ele estava se desculpando. — Não peça descul... Jesus!
A posse violenta era exatamente o que ela queria... E também era a violenta cavalgada que ele executou, o peso dele esmagando-a, seu traseiro nu esfregando no chão enquanto ele bombeava em uma cavalgada erótica que ficava mais rápida e mais intensa.
Mas tão bom quanto já estava, ela soube como levar as coisas a um próximo nível. — Você ainda não tem sede? – provocou.
Total. Interrupção. Molecular.
Como se ele tivesse sido atingido com um raio de gelo. Ou talvez um caminhão.
Quando ele ergueu a cabeça, seus olhos se acenderam tão brilhantemente, ela soube que, se olhasse para o chão perto a sua volta, veria sua própria sombra.
Enterrando as unhas nos ombros dele, ela se arqueou para ele e inclinou a cabeça para o lado. — Que tal algo para beber?
Os lábios dele se retraíram expondo as presas e ele sibilou como uma cobra.
A mordida foi como uma punhalada, mas a dor apagou-se em um doce delírio que a levou para outra dimensão. Flutuando, ainda que grudada ao chão ao mesmo tempo, ela gemeu e enfiou os dedos no cabelo dele, puxando-o ainda mais perto enquanto ele sugava em sua garganta e se enterrava em seu sexo.
Ela gozou – ele também.
Dã.
Deus, depois de uma seca de quanto tempo? Pelo menos um mês... O que era inédito para eles... Ela percebeu o quanto eles precisavam disto. Muita interferência de todas as exigências que os cercavam. Muito estresse poluindo as horas. Muita merda tóxica que eles não tinham tempo de resolver um com o outro.
Por exemplo, depois de ser atingido por uma bala no pescoço, eles tinham realmente conversado sobre aquilo? Claro, tinha havido um Oh, meu Deus, você está vivo, você conseguiu, merdas como essa... Mas ela ainda se encolhia cada vez que um doggen abria uma garrafa de vinho na sala de jantar ou um dos Irmãos jogava bilhar até tarde.
Quem diria que um taco de bilhar batendo numa mesa soaria exatamente como o disparo de uma arma? Ela não sabia. Não até Xcor decidir enfiar uma bala na jugular de Wrath.
Dificilmente o tipo de lição que ela desejaria aprender.
Por nenhuma boa razão, lágrimas inundaram seus olhos e correram livres, transbordando pelos seus cílios e escorrendo pelas faces mesmo enquanto uma nova onda de prazer tomava seu corpo.
E então a imagem do ferimento à bala de Wrath ocupou toda sua visão.
Sangue vermelho no colete a prova de balas que ele usava. Sangue vermelho em sua camiseta. Sangue vermelho em sua pele. Os tempos perigosos começaram, a feiura da realidade não mais um bicho-papão hipotético em seu armário mental, mas um grito em sua alma.
Vermelho era a cor da morte para ela.
Wrath congelou pela segunda vez e ergueu sua cabeça. — Leelan?
Ao abrir os olhos, ela teve um pânico súbito de não conseguir vê-lo direito, que aquele rosto que ela buscava em cada quarto, não importava as horas, tinha desaparecido, que aquela confirmação visual da vida dele, não estaria lá para ser conferida.
Tudo o que ela podia fazer era piscar. Piscar, piscar, piscar... E ele estava de volta com ela, claro como o dia.
E aquilo a fez chorar mais. Porque seu forte e amado homem estava cego... E embora aquilo não o tornasse defeituoso na opinião dela, o chateava em alguns princípios, e aquilo não parecia justo.
— Ah, caralho, eu te machuquei...
— Não, não... – ela tomou o rosto dele entre as mãos. — Não pare.
— Eu devia ter te levado até a cama...
A maneira certa de fazê-lo voltar a se concentrar era se arquear sob ele, e ela o fez, ondulando e remexendo os quadris para que seu núcleo o acariciasse. E olá, garotão, a fricção foi notada, calou sua boca e deixou-o louco. — Não pare, – ela voltou a dizer, tentando trazê-lo de volta a sua veia. — Nunca...
Mas Wrath se segurou, afastando uma mecha de cabelo do rosto dela. — Não pense nisto.
— Não estou pensando.
— Você está.
Não havia motivo para definir o que era “nisto”. Tramas de traição. Wrath naquela mesa decorada, sufocado pela sua posição. O futuro incerto e não de uma maneira boa.
— Eu não vou a lugar nenhum, leelan. Não precisa se preocupar com coisa alguma. Entendeu?
Beth queria acreditar nele. Precisava. Mas temia que fosse uma promessa muito mais difícil de cumprir do que fazer.
— Beth?
— Faça amor comigo. – Era a única verdade que ela conseguiria dizer que não cortaria o barato deles. — Por favor.
Ele a beijou novamente. Duas vezes. E então voltou a se mover. — Sempre, leelan. Sempre.
Ao se retirar de sua shellan uma hora mais tarde, Wrath não conseguia respirar, estava sangrando na garganta, e seu pau Homem de Aço tinha finalmente amolecido.
Embora conhecendo a disposição do maldito? Ele teria somente cinco, talvez, dez minutos antes do Sr. Feliz ficar no ponto de novo.
A cama grande no centro do vasto espaço do loft tinha sido melhorada desde que emparelhara com sua Beth, e enquanto se deitava de costas, teve de admitir que fazer sexo nela era muito melhor do que no chão. Isto posto, enquanto se recuperava, os lençóis eram desnecessários já que ele poderia fritar um ovo em seu peito de tanto exercício. Cobertores seriam um grande e absoluto: “Diabos, não!” Travesseiros tinham sido perdidos rapidamente porque não havia cabeceira na cama, mas a vantagem era a alavancagem a partir de qualquer ponto de apoio.
Às vezes ele gostava de por um pé no chão e realmente se afundar nela.
Beth soltou um suspiro que foi mais longo e mais satisfatório do que um soneto de Shakespeare... E por falar em um “Diabos, sim”? O peito de Wrath se inflou como um balão de ar quente.
— Tudo bem aí? – ele balbuciou.
— Deus. Sim.
Mais sorrisos. Era O Máskara de novo, nada além de Jim Carrey, sorriso Colgate em toda extensão. E ela estava certa: o sexo tinha sido mais que fantástico. Eles foderam no chão até chegarem ao alcance do colchão. Então, como o cavalheiro que era, ele a colocou na cama... E fizeram de novo mais três vezes. Quatro?
E ele conseguiria continuar a noite inteira...
Certo como um eclipse que apagava a nuvem, seu relaxamento cósmico desapareceu e levou consigo todo o calor.
Não haveria uma noite inteira para ele, não mais. Não quando se tratasse de sexo com sua fêmea.
— Wrath?
— Estou bem aqui, leelan, – ele murmurou.
Quando ela se deitou de lado, ele pôde senti-la encarando-o, e mesmo que sua visão tivesse finalmente se desvanecido e entrado em pane inteiramente, ele pôde imaginar os cabelos longos e pesados e os olhos azuis dela e seu rosto lindo.
— Não está.
— Estou bem.
Merda, que horas eram? Já se tinham passado mais do que as quatro horas que ele achava? Provavelmente. Quando se tratava de sexo com Beth, ele podia perder fodidos dias.
— É uma e pouco, – ela disse suavemente.
— Porra.
— Ajudaria conversar? Wrath... Pode me dizer onde é que está?
Ah, inferno, ela estava certa. Ele vinha divagando muito ultimamente, recuando para um lugar em sua mente onde o caos não pudesse atingi-lo... Não era uma coisa ruim, mas era uma viagem para um só.
— Só não estou pronto para voltar ao trabalho.
— Eu não te culpo. – Ela buscou sua boca e esfregou seus lábios contra os dele. — Podemos ficar um pouquinho mais?
— Sim. – Mas não tempo suficiente...
Um alarme súbito soou em seu pulso.
— Maldição. – Colocando o antebraço sobre o rosto, ele meneou a cabeça. — O tempo voa, huh.
E responsabilidades o aguardavam. Ele tinha de revisar petições. Proclamações para elaborar. E havia os e-mails em sua caixa de correio eletrônico, aqueles e-mails fodidos que a glymera tinha começado a cagar praticamente todas as noites... Embora ultimamente eles estivessem diminuindo de volume... Provavelmente um sinal que aquele bando de lunáticos estavam conspirando. O que não era boa notícia.
Wrath amaldiçoou de novo. — Eu não sei como meu pai conseguia fazer isto. Noite após noite. Ano após ano.
Tudo para acabar assassinado tão jovem.
Pelo menos quando o Wrath pai estava no trono, as coisas eram estáveis: os cidadãos o amavam e ele os amava. Não havia tramas de traição sendo arquitetadas em saletas escondidas. O inimigo vinha de fora, não de dentro.
— Eu sinto tanto, – Beth disse. — Tem certeza que não há coisas que você possa delegar para outras pessoas?
Wrath sentou-se, escovando seus cabelos longos. Ao olhar para longe, sem nada ver, ele quis estar na rua, lutando.
Não era uma opção. De fato, a única coisa em seu roteiro era voltar para Caldie e voltar a colar o rabo naquela cadeira. Seu destino tinha sido selado muitos, muitos, muitos anos atrás, quando sua mãe tinha entrado em seu período de necessidade, e seu pai tinha feito o que um hellren devia fazer... E contra todas as probabilidades, o herdeiro fora concebido, nascera, e então havia sido criado por tempo o bastante para que pudesse testemunhar ambos serem assassinados por lessers bem na frente de seus olhos pretrans ainda funcionais.
As lembranças tinham a clareza de um cristal.
O defeito ocular não havia se manifestado até sua transformação. Mas aquela fraqueza era, como o trono, parte de sua herança hereditária. A Virgem Escriba tinha então um plano de criação predeterminado, um que era amplificar as qualidades mais desejáveis em machos, e fêmeas e criar um sistema de casta de hierarquia social. Um bom plano, até certo ponto. Como também acontecia com a Mãe Natureza, a lei de consequências imprevisíveis tinha decidido dar uma rasteira neles... E foi assim que o Rei da raça, com sua linhagem... Perfeita... Tinha acabado cego.
Frustrado, ele saltou da cama... E naturalmente pisou em um dos travesseiros ao invés do chão. Quando seu pé falseou e seu equilíbrio se perdeu, ele esticou as mãos para se segurar, mas não fazia ideia de onde estava no espaço...
Wrath tombou no chão, a dor explodindo em seu lado esquerdo, mas esta não era a pior parte. Ele podia ouvir Beth se levantando da cama para chegar a ele.
— Não! – ele gritou, afastando-se dela. — Eu consigo.
Quando sua voz ricocheteou em volta do espaço aberto do loft, ele quis enfiar a cabeça numa janela quebrada. — Desculpe, – ele murmurou, jogando o cabelo para trás.
— Está tudo bem.
— Eu não quis te atacar.
— Você está sob muita tensão. Acontece.
Cristo, eles estavam falando sobre ele ter pegado leve no sexo?
Deus, quando ele começou com esta merda de Rei, ele tinha feito aquela besteira de resolução interna se comprometendo a dominar aquela coroa, ser um cara proativo, seguir os passos do pai, bla bla bla. Mas a realidade infeliz era que aquela era uma maratona que iria durar toda a sua vida... E ele já vinha sucumbindo após somente dois anos. Três. Tanto fazia.
Afinal, em que porra de ano eles estavam?
A merda era que todos sabiam que ele tinha o pavio curto, mas ficar trancado na meia-noite de sua cegueira com nada além de exigências pelas quais ele não ansiava, estava tornando-o vulcânico.
Não, espere, isto ainda era um pouco mais temperado do que o que ele sentia agora... E o assunto subliminar era sua personalidade. Lutar era seu primeiro e melhor talento, não governar atrás de uma mesa.
O pai tinha sido um homem de caneta; o filho era um homem da espada.
— Wrath?
— Desculpe, o quê?
— Eu perguntei se você queria algo para comer antes de partir.
Ele se imaginou voltando à mansão, doggen por toda parte, Irmãos entrando e saindo, shellans por todo lado... E sentiu como se não conseguisse respirar. Ele os amava, mas maldição, não havia privacidade por lá.
— Obrigado, mas eu só vou comer qualquer coisa no estúdio mesmo.
Houve um longo silêncio. — Tudo bem.
Wrath ficou no chão enquanto ela se vestia, o suave ruído de seus jeans subindo pelas suas longas e deliciosas pernas como uma canção fúnebre.
— Tudo bem se eu vestir sua camiseta? – ela perguntou. — Minha blusa está arruinada.
— Sim. Absolutamente.
A tristeza dela cheirava como chuva de outono e parecia tão fria quanto o ar para ele.
Cara, pensar que havia pessoas lá fora desejando ser Rei, ele pensou enquanto se erguia. Horda de Malucos.
Se não fosse pelo legado de seu pai, e todos aqueles vampiros que tinham verdadeira e profundamente amado seu pai, ele teria mandado tudo a merda sem pensar duas vezes. Mas desistir? Ele não podia fazer isto. Seu pai tinha sido um Rei digno de livros de história, um macho que tinha, não somente exercido autoridade pela virtude do trono onde se sentava, mas inspirado honesta devoção.
Se Wrath perdesse a coroa? Seria como urinar no túmulo de seu pai.
Quando a palma da mão de sua shellan se juntou à sua, ele se sobressaltou. — Aqui estão suas roupas, – ela disse, colocando-as nas mãos dele. — E eu peguei seus óculos escuros.
Com um puxão rápido, ele tomou-a nos braços, abraçou-a apertado contra seu corpo nu. Ela era uma fêmea alta, mas ainda assim, mal chegava a seu peito, e ao fechar os olhos, ele se curvou para ela.
— Quero que saiba de algo, – ele disse afundado nos cabelos dela.
— O que, – ela murmurou.
— Você é tudo para mim.
Era tão incrível e totalmente pouco... E ainda assim ela suspirou e se derreteu nele como se fosse tudo o que quisesse ouvir. Para tudo ser perfeito.
Às vezes você dá sorte.
E enquanto continuava a abraçá-la, ele soube que seria melhor não esquecer disto. Enquanto tivesse esta fêmea ao seu lado?
Ele poderia enfrentar qualquer coisa.
CALDWELL, NOVA YORK
— Vida longa ao Rei.
Enquanto Abalone, filho de Abalone, proferia as palavras, ele tentava avaliar a resposta dos três machos que tinham batido à sua porta, marchando sua porta adentro e estavam agora em pé, em sua biblioteca, encarando-o como se o medissem para sua mortalha.
Na realidade não. Ele sondava somente uma expressão... A do guerreiro desfigurado que estava em pé, bem atrás dos outros, encostado no papel de parede de seda, coturnos solidamente pousados no tapete persa.
Os olhos do macho estavam escondidos abaixo do volume de sobrancelhas espessas, as íris escuras o suficiente para que não desse para distinguir qual a cor deles, azul, castanhos ou verdes. Seu corpo era enorme, e mesmo em descanso, era uma evidente ameaça, uma granada com pino instável. E sua resposta para o que havia sido dito?
Não houve mudança em suas feições, aquele lábio leporino um mero talho, o cenho franzido, mesma coisa. Não demonstrava nenhuma emoção.
Mas a mão da adaga se abriu totalmente e então se fechou em um punho.
Claramente, o aristocrata Ichan e o advogado Tyhm, que trouxeram este guerreiro para cá, tinham mentido. Isto não era uma “conversa sobre o futuro”... Não, algo assim sugeriria que Abalone tinha uma opção no assunto.
Isto era um tiro de advertência por entre sua árvore genealógica, uma convocação compulsória que não poderia ser negada.
E ainda assim, as palavras saíram de sua boca do jeito que saíram, e ele não podia mudá-las.
— Está certo de sua resposta? – Ichan perguntou, arqueando uma sobrancelha.
Ichan era típico de sua linhagem e rede de negócios, refinado ao ponto da feminilidade a despeito de seu gênero, vestido em um terno combinando com a gravata e cada fio de cabelo de sua cabeça no lugar. Ao seu lado, Tyhm, o procurador, era o mesmo, mas ainda mais magro, como se sua proeza mental satisfizesse sua necessidade diária de calorias.
E ambos, além do guerreiro, estavam preparados para esperar pela resposta que estava tendo a chance de mudar.
Os olhos de Abalone foram para o pergaminho ancestral que tinha sido emoldurado e pendurado na parede próximo às portas duplas. Ele não conseguia ler os pequenos caracteres no Idioma Antigo dali do outro lado da sala, mas não havia necessidade de se aproximar. Ele os sabia de cor.
— Eu não sabia que havia uma pergunta a ser respondida, – Abalone disse.
Ichan sorriu falsamente e começou a andar em volta, passando os dedos por uma baixela de prata cheia de maçãs vermelhas, a coleção de relógios Cartier de mesa em uma mesinha lateral, o busto de bronze de Napoleão na escrivaninha perto da janela.
— Nós estamos, é claro, interessados em sua opinião. – O aristocrata parou em frente a um retrato feito à pena e tinta em uma cômoda. — Acredito que esta seja sua filha?
O peito de Abalone se contraiu.
— Ela está a ponto de debutar, não é mesmo? – Ichan olhou por cima dos ombros. — Sim?
Abalone queria empurrar o macho para longe do retrato.
De todas as coisas que eram consideradas “dele”, sua filha preciosa, o único rebento que ele e sua shellan tinham tido, era a lua em seu céu noturno, a alegria que marcava o passar das horas, sua bússola para o futuro. E ele queria tantas coisas para ela... Mas não em termos da glymera. Não, ele desejava para ela o que sua mahmen e ele tinham encontrado... Pelo menos nos anos juntos antes que a fêmea fosse chamada ao Fade.
Ele desejava para sua filha um amor duradouro com um macho de valor que fosse cuidar dela.
Se ela não pudesse ser apresentada à sociedade? Aquilo poderia jamais acontecer.
— Sinto muito, – Ichan falou pausadamente. — Você respondeu e eu perdi a resposta?
— Ela está para debutar sim.
— Sim. – O aristocrata sorriu de novo. — Eu sei que você se preocupa adequadamente com o futuro dela. Eu também sou pai, eu sei como é... Com filhas, a gente precisa ter certeza de que irão se emparelhar bem.
Abalone não soltou o fôlego até que o macho voltasse seu caminhar lânguido em volta da sala. — Não te dá um grau de segurança pensar que existem claras demarcações dentro de nossa sociedade? Procriação corretiva resultou em um grupo superior de indivíduos, e é necessária por tradição e por senso comum para preservar nossas ligações com os membros de nossa raça. Pode imaginar sua filha casada com um plebeu?
Esta última palavra demorou, carregando a pronúncia de um palavrão e a ameaça de uma arma engatilhada.
— Não, você não pensou, – Ichan mesmo respondeu.
Na verdade, Abalone não tinha tanta certeza. Se o macho a amasse o suficiente? Mas não era este o ponto de tudo aquilo, era?
Ichan parou para dar uma olhada nas pinturas a óleo que estavam penduradas sobre as prateleiras da vasta coleção de primeiras edições da família. As pinturas eram, naturalmente, de ancestrais, com o mais proeminente deles pendurado acima da lareira de mármore.
Um macho famoso na história da raça, e da linhagem de Abalone. O Nobre Redentor, como era conhecido entre a família.
O pai de Abalone.
Ichan gesticulou com a mão ao redor, incluindo não somente a sala, mas a casa, todo o seu conteúdo, e todas as pessoas sob seu teto. — Isto deve ser conservado, e a única maneira disto acontecer é se as Tradições Antigas forem mantidas. Os dogmas que nós, da glymera, mantemos, são a base do que você espera prover para sua filha... Sem eles, quem sabe o que poderia acontecer?
Abalone fechou brevemente os olhos.
E aquilo fez o aristocrata assumir uma voz mais gentil e carinhosa. — Aquele Rei de quem você falou com tanta reverência... Se emparelhou com uma mestiça.
As pálpebras de Abalone se abriram. Como todos os membros do Conselho, ele havia sido informado da união real, e somente disto. — Eu pensei que ele estava emparelhado com Marissa, filha de Wallen.
— Na verdade, não. A cerimônia ocorreu somente um ano antes dos ataques, e a suposição era de que o Rei tinha prosseguido com o compromisso com a irmã de Havers... Mas a suspeita nasceu quando Marissa logo em seguida se uniu a um Irmão. Mais tarde, a notícia chegou a nós através de Tyhm... – Ele acenou para o advogado — Que Wrath tinha tomado outra fêmea... Que não é de nossa raça.
Houve uma pausa, como se a Abalone estivesse sendo dada a chance de engasgar com a revelação. Como ele não ficou tonto de choque, Ichan se inclinou e falou lentamente... Como se estivesse falando com um deficiente mental. — Se eles tiverem descendência, o herdeiro do trono será um quarto humano.
— Ninguém é de sangue verdadeiramente puro, – Abalone murmurou.
— Pior ainda. Você há de concordar, no entanto, que há uma enorme diferença entre relações humanas distantes... E um Rei que é substancialmente desta raça horrenda. Mas mesmo que você não se ofenda... E certamente não é este o caso... As Antigas Leis fornecem os ditames. O Rei deve ser um macho puro da raça... E Wrath, filho de Wrath, não pode nos prover um herdeiro assim.
— Supondo que isto seja verdade...
— É.
— O que vocês esperam de mim?
— Estou simplesmente te deixando a par da situação. Não sou nada além de um cidadão preocupado.
Então para que vir com um capanga? — Bem, eu agradeço as informações...
— O Conselho terá de tomar uma atitude.
— De que forma?
— Haverá uma votação. Logo.
— Para destronar os herdeiros?
— Para remover o Rei. A autoridade dele é tal que ele pode mudar as leis a qualquer momento, vetando a provisão e enfraquecendo ainda mais a raça. Ele deve ser deposto dentro das leis, o mais rápido possível. – O aristocrata relanceou a pintura da filha de Abalone. — Acredito que na sessão especial do Conselho, sua linhagem será bem representada pelo seu selo e suas cores.
Abalone olhou para o guerreiro recostado na parede. O macho mal parecia respirar, mas estava longe de adormecido.
Quanto tempo até a ruína cair sobre esta casa se ele negar seu voto? E que forma assumiria?
Ele imaginou sua filha lamentando a perda de seu pai e sendo rejeitada pelo resto de seu futuro. Ele mesmo torturado e então morto de alguma forma horrível.
Querida Virgem Escriba, os olhos cerrados daquele guerreiro estavam fixados nele como se fosse um alvo.
— Vida longa ao Rei adequado, – Ichan disse, — Mais ou menos isso.
Dito isto, o elegante “cidadão preocupado” finalizou sua visita, saindo da sala com o advogado. O coração de Abalone ribombava ao ser deixado a sós com o guerreiro... E após um momento de silêncio gritante, o macho desencostou-se da parede e se dirigiu à baixela de maçãs.
Com um sotaque baixo e carregado, ele disse, — Estão aqui para serem pegas, não estão.
Abalone abriu a boca, mas só o que saiu foi um ruído.
— Isto foi um sim? – veio um murmúrio.
— De fato. Sim.
O guerreiro levou a mão ao peito e desembainhou uma adaga, cuja lâmina prateada parecia tão longa quanto o braço de um homem adulto. Com um gesto rápido, ele puxou a arma, ergueu-a, a luz se refletindo na lâmina afiada... E com igual segurança, fincou-a em uma das maçãs.
Tudo sem romper contato visual com Abalone.
Removendo a maçã da tigela, seus olhos duros se desviaram para a pintura. — Ela é bem bonita. Por enquanto.
Abalone se postou entre o guerreiro e o retrato, preparado para sacrificar-se se fosse necessário: ele não queria o guerreiro nem olhando para a pintura, muito menos falando sobre ela... Ou fazendo algo pior.
— Até breve, então. – o guerreiro disse.
Ele saiu levando a maçã apunhalada em seu centro.
Quando Abalone ouviu a porta da frente se fechar à distância, ele praticamente colapsou, caindo no sofá estofado de seda verde com membros trêmulos e coração acelerado. Mesmo que suas mãos estivessem trêmulas, ele conseguiu pegar um cigarro de uma caixa de cristal e acendê-lo com um pesado isqueiro de cristal.
Tragando, ele fitou o retrato de sua filha e sentiu terror pela primeira vez em sua vida.
— Querida Virgem Escriba...
Houve sinais de inquietude no último ano: rumores e falatórios indicando que o Rei estava caindo em desgosto entre certos quadrantes da aristocracia; fofocas que uma tentativa de assassinato ocorrera: insinuações que um motim estava se formando e se preparava para agir. E então, ocorrera aquela reunião do Conselho, quando Wrath tinha vindo com a Irmandade, e dirigira uma ameaça aberta aos ali reunidos.
Fora a primeira vez que as pessoas viram o Rei por... Bem, mais tempo do que Abalone podia se lembrar. De fato, ele não conseguia lembrar de quando alguém tivera uma audiência com o governante. Proclamações eram divulgadas, claro... E decretos que eram esparsos e, na opinião de Abalone, muito atrasados.
Mas alguns não concordavam.
E estavam obviamente preparados para forçar as mãos daqueles que não concordavam com eles.
Desviando o olhar para o retrato de seu pai, ele tentou encontrar alguma coragem em seu íntimo, algum tipo de pedra fundamental onde fincar seu pé e manter-se na luta pelo que ele sabia ser certo: Se Wrath tinha se emparelhado com uma mestiça, e daí, se ele a amava? Muitas das Antigas Leis que ele andava reformulando eram discriminatórias, e pelo menos, a shellan escolhida pelo Rei mostrava que suas ações estavam de acordo com suas modernas palavras.
Mas havia algo de tradição no Rei: dois aristocratas haviam sido assassinados recentemente. Montrag. Elan. Ambos violentamente e em suas casas. E ambos tinham associação com os dissidentes.
Claramente, Wrath não ia ficar sentado inerte enquanto tramas eram urdidas contra ele. As notícias ruins eram que seus inimigos na corte estavam apostando alto, e se envolvendo pessoalmente no motim.
Abalone remexeu no bolso de seu paletó e tirou seu iPhone. Escolheu um número de seus contatos, e iniciou a ligação, ouvindo o toque ao longe.
Quando uma voz de macho atendeu, ele teve de limpar a garganta. — Eu preciso saber se você foi visitado.
Seu primo não hesitou nem por um momento. — Sim. Fui.
Abalone praguejou. — Eu não quero tomar parte disto.
— Ninguém quer. Mas este aspecto legal que eles trouxeram? – seu primo respirou fundo. — Sobre o herdeiro? Pessoas estão concordando.
— Não é certo. Wrath tem feito coisas boas, nos guiando no caminho do mundo moderno. Ele aboliu a escravidão de sangue e montou aquele lar para fêmeas abusadas e seus filhos. Ele é justo e tem feito suas proclamações...
— Eles o pegaram nesta, Abalone. Eles vão vencê-lo nisto... Porque, a maioria repudia a ideia de uma rainha mestiça e um herdeiro seriamente diluído. – A voz de seu primo baixou mais. — Não fique do lado errado disto, meu sangue. Eles estão prontos para fazer qualquer coisa que seja necessária para assegurar a unanimidade dos votos quando chegar a hora. E a lei é o que ela é.
— Ele pode mudá-la. Estou surpreso que não o tenha feito.
— Sem dúvida, ele tem em sua mente, assuntos mais urgentes do que alguns livros velhos e empoeirados. E francamente, mesmo se ele modificasse a lei? Não sei se haveria apoio suficiente para ele nisto.
— Ele podia retaliar contra a aristocracia.
— O que ele vai fazer... Matar a todos nós? E então?
Quando Abalone finalmente desligou, ele fitou os olhos de seu pai. Seu coração lhe dizia que a raça estava em boas mãos com Wrath, mesmo que o Rei se isolasse de tantas maneiras. Mas seu primo tinha razão.
Depois de um longo momento, ele fez outra ligação que o deixou de estômago embrulhado. Quando foi atendido, não se preocupou com preâmbulos. — Você tem meu voto, – disse roucamente.
Antes de Ichan poder elogiar seu bom senso, encerrou a chamada. E prontamente puxou um cesto de papéis para vomitar.
A única coisa pior do que não ter nenhum legado... Era não viver pelo legado que lhe foi dado.
Ao sair da casa do aristocrata, Xcor se irritou ao ver que Ichan, o representante do Conselho, e Tyhm, o advogado o esperavam sob o luar.
— Eu acho que o persuadimos o suficiente, – Ichan declarou.
Tanto orgulho naquela voz altiva... Como se o macho já tivesse sentado seu rabo murcho no trono.
Xcor olhou de volta para a mansão estilo Tudor. Através das janelas em formato de diamante, o macho que tinham confrontado estava ao telefone, fumando um cigarro como se seus pulmões requeressem mais nicotina do que oxigênio. Então, ele parou e olhou para alguma coisa mais acima. Um momento depois, ombros caídos em derrota, ele voltou a levar o celular ao ouvido.
O telefone de Ichan tocou e ele sorriu ao tirá-lo do bolso. — Alô? Que maravilha você ter ligado – houve uma pausa. — Oh, eu acho que isto é tão sábio da sua parte... Alô? Alô?
Ichan afastou o aparelho com um dar de ombros. — Eu não devia nem ficar ofendido por ele ter desligado na minha cara.
Obrigado por enunciar o óbvio.
Xcor pegou sua maçã roubada e retirou-a da lâmina. Com gestos seguros, começou a descascar a pele sangrenta da polpa carnuda e clara, girando-a uma e outra vez até que uma faixa espiralada se formou abaixo de sua arma.
Ao contrário de sua postura favorável ao assassinato, esta nova abordagem quanto a uma renúncia forçada, estava indo bem. Eles tinham mais seis membros das Primeiras Famílias para encontrar e convencer, e então seria hora de tornar a coisa oficial no nível do Conselho. Depois daquilo? As matanças teriam de ocorrer... Sem dúvida um ou todos os aristocratas com quem andavam lidando nutriam ilusões de variedade coroísticas.
O que era facilmente curável, e então ele teria o que queria.
— ...refeição de sua escolha?
Enquanto Ichan e Tyhm olhavam para ele, ele percebeu que tinham acabado de convidá-lo para jantar.
Xcor deixou a faixa de casca cair na neve a seus pés. Sem dúvida, o almofadinha lá dentro tinha empregados para recolhê-la, embora dada a inquietação que o garotão lá demonstrava, talvez ele mesmo se aventurasse a uma caminhada entre suas fodidas topearias e a recolheria ele mesmo.
As melhores ameaças eram feitas em múltiplos níveis.
— Tenho de ir a campo agora, – Xcor disse enquanto mordia a maçã com as presas expostas, trazendo a faca até a boca com o pedaço.
O ruído da mordida teve o efeito desejado.
— Sim, bem, é claro, de fato, verdade, – Ichan disse, suas palavras como uma bailarina, rodopiando seus pés apontados em direção ao poço da orquestra.
Que fofo.
Então houve uma pausa, como se a despedida tivesse de ser proferida. Quando Xcor somente ergueu uma sobrancelha, os dois se desmaterializaram como se houvessem emergências em suas respectivas casas para cuidar.
Tão irrelevantes estes peões eram... Ele já tinha utilizado alguns e, sem dúvida, um ou os dois que tinham acabado de sair, iriam para o túmulo a seu serviço.
Dentro da grande casa, o membro do Conselho que tinham vindo visitar ainda mantinha a cabeça baixa... Mas não por muito tempo. Alguém entrou na sala, e fosse quem fosse, o aristocrata não queria que notasse seu aborrecimento. Ele se recompôs, sorrindo e esticando o braço. Quando uma jovem fêmea foi até ele, Xcor percebeu que devia ser a filha.
Ela era bonita, era verdade... O retrato era acurado.
Mas ela não chegava nem aos pés de outra.
Espontaneamente, lembranças inundaram sua mente, imagens de pele e cabelos claros, e olhos que eram capazes de tirá-lo dos trilhos como um tiro, emaranharam seus pensamentos até que agora era ele viajando em suas botas mesmo que continuasse parado, em pé.
Não, não importa quão bela fosse aquela filha, ela não passava de um eco distante do encanto se comparada com sua inatingível Escolhida.
— Você precisa parar com isto, – ele disse sob o frio da brisa noturna. — Pare com isto imediatamente.
Uma ordem razoável, de fato... E ainda assim passaram-se muitos minutos até que ele pudesse se acalmar o suficiente para recuperar o foco e se desmaterializar do gramado frontal.
Um piscar de olhos mais tarde e Xcor estava finalmente em seu elemento: o beco à sua frente era um ponto isolado e esquecido, a neve imunda dos restos de incontáveis lixeiras e caminhões de entrega que tinham passado em cima deste pedaço de chão que ficava na parte de trás de inúmeros restaurantes baratos. Apesar do dezembro gélido, o fedor de comida estragada e podridão era suficiente para fazer o interior de seu nariz formigar.
Inalando, ele buscou pela doçura nauseante do inimigo.
Ele nascera deformado e fora afastado do mundo pela fêmea que o trouxera ao mundo, assim que saiu do útero. Criado no campo de guerra do Bloodletter, ele fora forjado como uma lâmina naquela fornalha de agressividade e dor, toda e qualquer fraqueza extraída dele até que fosse tão mortal quanto uma adaga.
Este cenário de combate era aonde ele pertencia.
E ele não estaria sozinho por muito tempo.
Olhando ao redor, apoiou seu peso nas coxas. Um grupo de homens apareceu, virando a esquina, andando em bando. Quando o viram, pararam e olharam um para o outro.
Xcor revirou os olhos e virou-se para a direção oposta...
— Oqueporratutáfazendo, – veio o grito.
Virando-se novamente, ele olhou para os cinco. Estavam vestindo um tipo de roupa combinada de humanos durões: jaquetas de couro, toucas escuras, bandanas amarradas embaixo do rosto.
Eles claramente esperavam encontrar outra pessoa, ou pessoas, ali.
Não o tipo de inimigo com quem ele se incomodava. Primeiro, porque humanos eram tão inferiores fisicamente, que era quase como morder aquela maçã. Depois, era certeza eles envolverem outros de sua espécie, fosse de propósito através do medonho telefonema para a emergência, ou sem querer, fazendo barulho que alertavam transeuntes.
— Oqueporratutáfazendo!
Se ele ficasse em silêncio, talvez aquilo evoluísse para um coordenado número de música e dança? Que assustador.
— Continue com sua noite, – ele disse, em uma voz baixa.
— Continue com sua... Quecaralhosdecoisaestrangeiraéessa?
Ou algo do tipo. A pronúncia deles era difícil de decifrar... Mais ainda, ele não tinha interesse em fazer muito esforço naquele sentido...
Do nada, um carro parou naquela esquina, seus pneus perdendo tração quando o motorista pisou no freio.
Tiros soaram, ecoando pela noite, dispersando o grupo, incluindo ele.
— Lugar errado, hora errada. – Xcor pensou, ao levar uma bala no ombro, a dor estourando em sua cabeça – e tornando impossível para ele desmaterializar-se.
Ele não queria nada com esta briga idiota dos ratos sem rabo. Mas parece que teria de se envolver.
Ele não ia morrer pela arma de um humano.
I-87, CONHECIDA POR THE NORTHWAY[3]
Oh, aquele cheirinho de carro novo.
Uma combinação de estofamento novo, ainda viscoso de óleo, e cola só superficialmente seca.
Sola Morte adorava carros novos, que era o motivo de seus Audi A4s serem sempre alugados. A cada três anos ela pegava um novo... Às vezes, em menos tempo, se o pacote permitisse troca mensal ou bimestral.
Então, sim, este era um território familiar... Exceto o fato de ela estar sentindo este cheiro de paraíso de dentro do porta-malas de um sedan desconhecido, para onde fora empurrada.
Não exatamente a maneira que ela tinha planejado passar seu fim de sua noite, mas às vezes, o livre arbítrio saía de férias quando mais necessitado.
A questão agora era como sobreviver ao sequestro e voltar para casa.
Como sua linha de trabalho era roubos, ela estava acostumada a improvisar em situações perigosas. Não tinha exatamente o talento de um MacGyver; não era como se pudesse construir uma automática 9mm usando somente fita isolante, um tubo de pasta de dentes, doze centavos e um isqueiro Bic. Mas era esperta o bastante para explorar o ambiente, procurando por um macaco, uma maleta de ferramentas... Uma esquecida lata de refrigerante. Qualquer coisa que pudesse usar como arma.
Ao ser raptada de sua casa, não trazia nada além da parka que vestia e uma esperança desesperada de que fosse quem fosse, a levasse antes que sua avó descesse as escadas e fosse arrastada para tudo isso. Infelizmente não trazia seu celular consigo.
E até agora, a exploração feita com as mãos pelo porta-malas resultara em um grande e gordo nada.
Ela também não fazia ideia para onde estava sendo levada. Dado o ronronar do motor e a ausência de solavancos? Deviam estar em uma rodovia... E já há um bom tempo.
Cara, sua cabeça doía.
Com que infernos a atacaram? Uma marreta?
Esticando a espinha, tateou por baixo do espaço às suas costas, pensando que podia estar deitada sobre o compartimento de guardar o estepe... E ferramentas. Mas, não sentiu nenhuma irregularidade no carpete. Talvez fosse preciso levantar a coisa toda? Merda.
Ergueu um pouco a cabeça, voltou a verificar as paredes laterais, sentindo o suave arranhar do carpete e o recôncavo do espaço acima dos pneus... Então o compartimento de tela que servia para manter as compras no lugar... Um papel dobrado, que podia ser um mapa, um recibo de algum tipo de compra ou uma lista “das dez melhores maneiras de torturar uma prisioneira”...
Puxou os joelhos até o peito, tentou se virar para outro lado no espaço apertado, brigando com as mãos e os pés, entortando a cabeça em um ângulo desesperador.
— Jeeesus... – ela gemeu ao parar para tomar fôlego. — Cirque du Soleil nunca poderia ser uma segunda carreira para mim.
Voltando a se contorcer e retorcer, ela finalmente conseguiu seu objetivo – a possibilidade de verificar o outro lado...
— Bom, olá...
Enfiou as pontas dos dedos em um furo no carpete, tateou o recorte quadrado até encontrar os trincos de ambos os lados. Desencaixou a tampa de um compartimento, abriu o painel e achou...
Caixa de ferramentas? Estojo de Primeiros socorros?
A sorte tão grande quanto ganhar na loteria de achar uma Smith & Wesson?
Ao se guiar somente pelo tato, tentando decifrar o formato e sentir o que havia dentro, ela se lembrou do quanto estimava sua visão.
— Peguei, – ela sibilou, enterrando as unhas na caixa e lutando com o fecho para liberá-lo.
Quando a mão escorregou, ela percebeu que havia uma maçaneta na beirada. Burra.
O trinco era fácil de abrir, e dentro...
O cilindro tinha cerca de vinte e dois centímetros de comprimento por seis centímetros de largura. Em uma extremidade havia um lacre com uma etiqueta áspera no topo, e dentro? Hora da festa.
Seria sua única chance.
Agarrou a coisa com força, voltando a se concentrar em tentar descobrir aonde ia acabar... Além do necrotério, é claro. O problema era que ela não fazia ideia de quanto tempo eles estavam na estrada... Mas se estivessem levando-a para a casa de Benloise? Então deviam estar quase no destino. West Point não era tão longe assim de Caldie.
E isto era coisa do Benloise.
Vingança do distribuidor de drogas pela invasãozinha para redecoração que ela fizera. Que por sua vez tinha sido o seu jeito de dizer para ele se foder a respeito do assunto do pagamento.
Que tinha envolvido Assail.
Fechando os olhos... Mesmo sem enxergar merda nenhuma... Ela imaginou aquele homem, tudo desde seus brilhantes cabelos negros, seu belo par de olhos profundos, àquele corpo que devia pertencer a um atleta... Ao invés de um traficante de drogas que provavelmente estava a caminho de tomar toda a costa leste como seu território.
Por um segundo de insanidade, ela tinha cultivado a fantasia de que ele viria atrás dela e a salvaria desta confusão. E sim, aquilo era estranho em mais de uma maneira... Primeiro, ela nunca tinha confiado em ninguém antes, e depois, a merda toda de “salve-me-homenzão” era o suficiente para fazer seus princípios gritarem.
Mas seu orgulho estava em segundo plano nisto: ela sabia coisas demais sobre Benloise. Seria necessário um milagre para libertá-la, e Assail era a coisa mais próxima de um milagre que conhecia. Infelizmente ele demoraria a perceber sua ausência. Eles se conheceram somente porque ela tinha sido paga... Parcialmente... Por Benloise para vigiá-lo. Assail não tinha gostado daquilo e tinha virado o jogo contra ela.
O que tinha levado a… Outras coisas.
Balançando a cabeça até a dor fazer as coisas girarem, ela pensou sobre tudo o que tinha sido importante antes dela ser emboscada em sua própria cozinha: o gato e rato entre os dois, a ameaça sedutora que ele exalava, a carga erótica que ela sentia só de estar na presença dele.
Tudo isto tinha sido tão fodidamente importante.
O atual rolar dos dados tinha apagado tudo isto. Agora ela estava em modo de sobrevivência... E se aquilo não desse certo, ela só esperava que restasse algo para sua avó enterrar.
Porque ela não ia mentir para si mesma. Benloise não pegaria leve com ela só porque ela uma vez tinha sido, por um tempo, quase como uma filha para ele, em certo nível. Ela não devia tê-lo pressionado. Temperamento, temperamento, temperamento; sua raiva tinha sido sua ruína.
Deus, sua avó.
Lágrimas afloraram, fazendo seus olhos arder, fazendo-a fechar as pálpebras e piscar para impedi-las de cair.
Tantas perdas na vida de sua vovó. Tantas coisas difíceis. E esta, provavelmente, seria a pior de todas.
A menos que Sola conseguisse sair desta.
Enquanto sentimentos grandes e complicados demais para segurar invadiam seu cérebro, ela lutou para contê-los... E a solução eventual para aquilo foi uma surpresa. Ela se rendeu ao impulso, no entanto... Do mesmo jeito que tinha feito para conseguir encontrar o cilindro no porta-malas.
Pousou a única arma que tinha perto do quadril, para juntar as mãos acima, e baixou a cabeça, em oração, o queixo encostado no peito.
Abriu a boca, esperou que as repetitivas passagens de sua infância católica aflorassem em seu cérebro e mostrassem à sua língua o que fazer.
E foi o que aconteceu. — Ave Maria, cheia de graça...
As palavras formavam uma cadência, uma batida como a de um coração, o ritmo chegando a ela trazendo uma imensidão de domingos em seu passado distante.
Quando terminou, esperou por algum alívio ou força ou... Qualquer coisa que se pudesse sentir após este ritual ancestral.
Nada. — Maldição.
Palavras... Não passavam de palavras.
Jogou a cabeça para trás em frustração, e acabou batendo no teto do porta-malas... No lugar errado. — Porra!
Hora de cair na realidade, disse a si mesma, enquanto tentava tocar o ponto dolorido.
Conclusão? Ninguém viria salvá-la. Como sempre, ela só tinha a si mesma para contar, e se isso não fosse suficiente para tirá-la desta situação? Então ela ia morrer de uma maneira realmente horrível... E sua avó ia sofrer. De novo.
Por falar em orações? Sola daria qualquer coisa só para voltar e rebobinar aquela noite, congelando a cena no momento em que tinha voltado para casa e não tinha percebido o desconhecido sedan estacionado do outro lado da rua. Em seu mundo perfeito e consertável, ela teria pegado sua arma e ajustado o silenciador antes de subir pela varanda. Ela teria matado os dois, e então teria subido e dito a sua avó que ia mudar os móveis de lugar do jeito que sua vovó tinha lhe pedido para fazer uma semana antes.
Escondida pela noite, ela levaria os dois homens para a garagem, ligaria o carro, colocaria os dois no porta-malas. Ou... Talvez os colocasse no porta-malas do carro deles.
Dali era só achar um local isolado e se desfazer dos corpos. Tchau-tchau.
Depois disto, ela empacotaria suas coisas e de sua avó, e elas fugiriam sem demora... Mesmo que no meio da noite.
Sua avó não faria perguntas. Ela sacaria o que tinha acontecido. Vida dura, mente prática.
Desapareceriam ao nascer do sol, por assim dizer, para jamais serem vistas novamente.
Vê? Muito melhor imaginar um final assim... E talvez aquilo pudesse se tornar realidade também, se Sola cuidasse do negócio quando os homens de Benloise parassem o carro e viessem tirá-la do porta-malas.
Agarrando o extintor, ela começou a se preparar. Que ângulo usaria. Como atacá-los.
Era só masturbação mental, não era... Tudo ia depender da uma fração de segundo que seria totalmente imprevisível.
Enquanto sua mente flutuava, sua respiração diminuiu ao mesmo tempo em que seus sentidos se aguçaram. Esperar deixou de ser um problema; o tempo deixou de ter medidas. Pensamentos deixaram de ser um fator. Exaustão deixou de existir.
Era como se ela estivesse presa naquele submundo entre o momento que antecede a chegada de algo realmente transformador.
Ela viu, claro como o dia, uma fotografia de sua avó. Tinha sido tirada no Brasil quando ela tinha dezenove anos. Seu rosto sem rugas, era cheio do jeito certo, a juventude brilhava em seus olhos, os cabelos caíam pelos ombros, soltos.
Se na época ela soubesse o que a esperava na fase adulta, ela não teria sorrido.
Seu filho morto. Sua filha morta. Seu marido morto. E sua neta, a única que restara?
Não. Sola pensou. Isto tinha de acabar bem. Era a única opção.
Sola não falou em voz alta desta vez... Não houve frases repetitivas ou mãos juntas. E ela nem sabia se tinha mais fé nesta prece do que na que haviam lhe ensinado. Mas por alguma razão, se viu suplicando diretamente no ouvido de Deus.
Eu prometo, Senhor, se sair desta, vou largar esta vida. Eu vou pegar vovó e vamos deixar Caldwell. Eu nunca mais voltarei a me arriscar, roubarei de outrem, ou cometerei qualquer mau ato. Esta é minha promessa solene ao Senhor, pelo coração de minha vovó.
— Amem, – ela suspirou alto.
O IRON MASK, CALDWELL, NOVA YORK
— Oh-Deus-oh-Deus-oh-Deus...
Enquanto Trez mantinha a universitária loira acima do chão, tinha uma boa pegada atrás das pernas dela... Mas sentia-se dolorosamente tentado a largá-la como um Hot Pocket[4]. O sexo estava adequado... Do tipo pizza fria: Mesmo quando fria, ainda era pizza.
Mas não era nenhuma Bella Napoli na Sétima Avenida, em Manhattan.
E esta baboseira a-ponto-de-ver-Deus? Totalmente broxante, e não que ele fosse religioso ao modo humano ou estivesse com inveja dela estar se divertindo, enquanto ele pensava em pizza. A performance tipo YouPorn[5], de cabeça jogada para trás que a todo instante esfregava os apliques de cabelo no rosto dele, começava a irritá-lo.
Fechou os olhos e tentou se concentrar na sensação de seu pau entrando e saindo dela. A mulher tinha grandes e falsos peitos, tão duros quanto bolas de basquete, e uma barriga que balançava ligeiramente, e ele não conseguia se decidir o que era pior: o fato de ele não se sentir nem vagamente atraído por ela; a realidade de ele estar comendo esta vagabunda no banheiro da frente da sua própria casa noturna... De modo que sua equipe irá flagrá-lo na caminhada da vergonha logo que terminassem; ou a chance, ainda que pequena, de que seu irmão pudesse ouvir sobre isso de alguém.
Merda, iAm. O macho tinha um olhar que podia fazer um jogador de futebol americano, vestindo uniforme completo, se sentir nu, com o traseiro ao vento.
Não era o que Trez estava precisando.
— Deus, oh, Deus, oh, Deus...
Pelo amor da porra, se ela pudesse alternar com uns JC[6], pelo menos , ou algo assim.
— OHDEUSOHDEUSOHDEUS...
Levou a mão para o meio dos dois, decidido a acabar com seu sofrimento. Esfregando o clitóris, ajudou-a a atravessar o limiar bem a tempo de sua ereção murchar totalmente e sair dela.
Colocando-a sobre os próprios pés, ele imediatamente teve de ampará-la, porque os joelhos dela falharam.
— Oh... Deus... Você é incrível... Você é o...
Uh-hu, obrigado, benzinho. A única coisa que lhe importava era quanto tempo levaria para fazê-la se vestir de novo. — Você também, linda.
Trez inclinou-se para o lado e pegou o... Aquilo era um sutiã que ela usava como top? Ou uma calcinha? Ou...
— Oh, eu não preciso de minhas calças legging ainda... Preciso?
Aquilo era para as pernas? Ele pensou, enquanto segurava alto a faixa de tecido negro. Difícil imaginar aquela coisa cobrindo mais do que uma mão, ou talvez um daqueles peitos do tamanho de tigelas.
Quem tinha tirado aquelas pseudo-calças? Não tinha sido ele, achava que não, mas não conseguia se lembrar, e não porque estivesse bêbado. Aquela sessão inteira, igual aos últimos anos de sua vida amorosa, não estava apenas completamente, mas propositalmente esquecida.
Então porque ele insistia em continuar fazendo esta merda...
Certo, não havia motivo para bancar o iAm. Seu irmão era mais do que capaz de trilhar toda aquela retórica. Cada. Fodida. Vez. em que eles estavam juntos.
— Papai, eu te amo, – a garota disse, enquanto agarrava os bíceps e se dependurava nele como um poste de stripper. — Eu adoro isto.
— Eu também.
— Você me ama também, certo?
— Sempre. – ele olhou para a porta e desejou ter combinado com alguém para que batesse para interromper. — Deixa seu número, ok? Agora tenho de voltar ao trabalho.
Ela fez beicinho... E aquilo lhe deu vontade de expor as presas e abrir seu caminho para fora daquele banheiro a dentadas.
— A gente podia fazer de novo, – ela provocou, ficando nas pontas dos pés para acariciar o pescoço dele com o nariz.
Garotinha, eu mal consegui dar a primeira, ele pensou. Um repeteco seria anatomicamente impossível.
— Por favooooooooor, papai... – Mais carinhos. Então ela recuou. — Por favor?
Trez abriu a boca, sentindo a frustração azedar seu temperamento e sua língua...
Foi quando fitou os olhos dela, viu neles uma emoção honesta, e quase recuou. Por falar em espelhos... Ele sentiu como se estivesse olhando para si mesmo: Triste. Vazio. Desenraizado.
Ela era uma mulher incompleta.
Ele era um macho incompleto.
Somente naquele quesito, eles formavam um par perfeito, dois filhos da puta quebrados, se debatendo em volta daquele mar de sexo, tentando se conectar de uma maneira que só fazia seu isolamento aumentar.
— Por favor...? – ela implorou, como se estivesse se preparando para mais uma de uma série de perdas.
Encarando-a, ele percebeu que tinha julgado a garota pelo seu lado externo, mas como com todos os desconhecidos, havia toda uma estória por trás do fato dela ter acabado em um banheiro, balbuciando sobre amor com um homem que não era nem um homem.
Inferno, ele nem mesmo era um vampiro normal.
Trez acariciou a bochecha dela com o nó dos dedos, e quando ela inclinou a cabeça contra sua mão, ele suspirou, — Feche os olhos...
Soou uma única batida à porta, e considerando a altura e força? Não era como se fosse haver uma segunda.
— Chefe? Temos problemas, – ele ouviu atrás da porta.
A voz de Big Rob. Então era um problema de segurança... E já que o cara não tinha ido a Xhex para resolvê-lo? Ela devia estar fora por algum motivo... Ou mais provavelmente, ela mesma tinha mandado chamar o Trez.
Os cílios postiços da loira se ergueram, mas ele não os queria abertos. — Só um minuto, B.R.
— Ok, chefe.
— Feche os olhos, – ele disse de novo. Quando a loira obedeceu, ele se acalmou, o trovejar abafado da música do clube foi baixando, o cheiro muito forte do perfume dela suavizou, a dor no centro do peito dele... Bem, aquilo continuou onde estava, mas o resto de tudo diminuiu.
Buscando a mente dela, fez o que o irmão o desafiava a fazer. Ao contrário das tantas outras mulheres, ele apagou da memória da loira eles terem estado juntos, da conversa insossa que ela tinha iniciado no bar ao que se sucedeu no banheiro, a experiência religiosa que ela tinha acabado de ter.
iAm estava certo. Se Trez tivesse se colocado em ordem todo o tempo? Ele não teria tido problemas com aquela outra garota. E ele e seu irmão não teriam acabado indo morar na mansão da Irmandade. E aquela fêmea Selena não teria entrado ainda mais dentro dele...
Voltando a se concentrar na loira, decidiu não se limitar ao número de apagação. Ao invés de deixar os vinte minutos como uma zona em branco, lhe deu a fantasia que ela tanto desejava... Que ela tinha encontrado um cara que ficou de olhos arregalados por ela, eles tinham tido o melhor sexo de suas vidas, cinco vezes neste banheiro, antes dela concluir que era areia demais para o caminhãozinho dele.
O que, na nova configuração mental dela, ia ser algo bem recorrente dali em diante.
Finalmente, ele inseriu o pensamento de que ela deveria se vestir e retocar a maquiagem. E como um bônus de último minuto, enfiou na cabeça dela que ela teria o melhor ano... Não, década... De sua vida.
Um minuto depois, Trez saiu, zíper fechado, camisa arrumada, máscara de “tudo bem” de volta no devido lugar. Big Rob estava escondido nas sombras, tão discreto quanto qualquer cara do tamanho de uma montanha conseguia ser.
Se juntando ao cara, Trez cruzou os braços no peito e se inclinou contra a parede coberta de tecido. Ele geralmente não falava de negócios na boate, mas a música estava alta o bastante, a multidão distraída de um jeito que só a bebida e o desespero conseguiam fazer, e por último, mas não menos importante, ele se sentiu compelido a ficar de olho na loira. Certificar-se que ninguém tentasse entrar ali antes que ela saísse.
Além disto, ele queria uma confirmação de que tinha deixado ela numa situação melhor do que a tinha encontrado.
Pelo menos um deles podia ser consertado.
— Então, o que há? – Trez escaneou o clube escuro e mal-humorado, a vigilância tanto uma segunda natureza quanto uma questão de treinamento: Sombras tendiam a ser observadores, mas depois de trabalhar com Rehv, e agora sendo o chefe deste poço de iniquidades, a merda tinha virado sua interface primária.
Big Rob estalou os dedos. — Há mais ou menos uma hora, Alex separou uma briga entre dois clientes não regulares. Os dois homens foram expulsos, mas o agressor voltou e está zanzando na calçada lá fora.
A loira saiu do banheiro, devidamente vestida, maquiagem retocada, cabelo preso, ao invés de emaranhado... E o principal, seu queixo estava erguido, os olhos calmos e focados... E aquele sorriso secreto nos lábios dela elevavam sua aparência normalzinha a um nível sedutor.
Enquanto ela caminhava para a multidão, os olhos de Big Rob a seguiram, assim como os de outros homens. Mas ela não parecia perceber, sua confiança parecia ser tudo o que necessitava como companhia.
Trez esfregou o centro de seu corpo e desejou que pudesse hipnotizar a si próprio e arrumar suas coisas do mesmo jeito. Mas também, todo o conserto do mundo não mudaria o fato de que os s'Hibe queriam-no de volta como garanhão reprodutor para o resto de sua vida natural.
— Chefe?
— Desculpe, o quê?
— Você quer a gente suma com o cara?
Trez esfregou o rosto. — Eu vou lidar com ele. Como ele é?
— Garoto branco, roupas pretas, cabelo estilo Keith Richards.
— Isso o destaca muito, – Trez resmungou.
— Você o verá logo na frente. Ele está fora da fila.
Trez anuiu e cortou caminho entre a multidão, indo até a porta. No caminho, olhou para as pessoas, inconscientemente buscando por sinais de conflito que pudesse evoluir da baboseira poser a um confronto no beco.
Mesmo Góticos podiam virar valentões de fraternidade se estivessem drogados o suficiente.
No meio do caminho da saída, captou o brilho de algo metálico vindo da direita, mas ao parar para analisar com seus outros sentidos além da visão, não enxergou nada. Retomando seu passo, abriu caminho para fora de seu clube, acenando para Ivan e o cara novo, que controlavam a entrada, e caminhou ao longo da fila de espera, cheia dos suspeitos habituais.
Embora não do tipo Kevin Spacey, é claro. E pior ainda... Ele adorava o cara naquele filme.
Ninguém na calçada se encaixava na descrição feita por B.R.
Fosse quem fosse, provavelmente tinha saído para uma caminhada.
Ao voltar a olhar para a porta, Trez foi atingido no rosto pelos faróis de um carro, e a dor fê-lo bancar o vampiro tímido e se proteger da luz. Piscando para clarear sua visão, ele, de alguma forma conseguiu chegar à frente da fila e...
— Que caralho... Ele furou a fila! Por que está deixando-o entrar?
Quando Trez percebeu que era ele o assunto da discussão, parou e olhou por cima do ombro. O bocudo valentão tinha cerca de um metro e oitenta de altura, cinquenta e dois quilos... Sem ser uma garota. Claramente, o filho da puta sofria da síndrome de terrier, seus pequenos olhos flamejavam ao encarar Trez, seu Stampy McStampy[7] fazia-o respirar pesadamente.
Provavelmente jogara muito World of Warcraft ou outro jogo... E isto o fazia esquecer se você fosse ser um fanático linguarudo, seria melhor estar preparado para aguentar quando a merda se voltasse contra você.
Trez se aproximou do cara e lhe deu um momento para absorver a diferença de altura entre eles... E sabe o que mais?, O valentão calou a boca, e continuou calado.
— Eu sou o dono deste lugar, – Trez disse em voz baixa. — Então a questão é, porque caralhos eu deixaria você entrar. – Ele olhou para Ivan. — Ele não é bem-vindo aqui. Nunca.
Houve uma discussão naquele ponto, mas para ele já bastava. Como Sombra, ele estava acostumado a ser encarado... Vampiros normais não faziam ideia de como era para sua espécie, e francamente, ele não se importava com eles também. De fato, ele tinha passado a acreditar que as duas espécies não se misturavam... Pelo menos até Rehvenge tomar a frente para ajudar a ele e a seu irmão em seu exílio. De início ele não tinha confiado no cara... Até reconhecer que Rehv era como eles: um estrangeiro em um clube fechado, cheio de caras que não o respeitavam.
Oh, e quanto ao mundo humano? Todo mundo assumia que ele era negro e isso trazia consigo suas próprias associações raciais, boas e ruins... Mas lá estava a ironia. Ele não era nem “Africano” nem “Americano,” então nenhuma daquela merda se aplicava a ele apesar do fato de sua pele, por acaso, ser escura.
Assim eram os humanos, absortos em si mesmos a ponto de se verem em todas as situações. Enquanto isso, havia uma porção de outras espécies caminhando entre eles, e eles não faziam nem ideia.
Se bem que... Se algum imbecil desinformado tentasse trazer a merda racial à tona em sua própria porta? Então o idiota poderia se foder.
Novamente dentro do clube, as luzes estroboscópicas e o barulho o atingiu como uma parede de tijolos e ele teve de forçar-se a atravessar a resistência. Os flashes eram brilhantes demais e o som era pior, ricocheteando ao redor de seu crânio até o que soava se tornar uma confusão ininteligível.
O que diabos sua equipe estava pensando? Quem aumentou tanto o volume...
Oh... Merda.
Esfregando os olhos, ele piscou algumas vezes e... Sim, lá estava, no quadrante direito: uma série de linhas denteadas que brilhavam como o sol através do vidro.
— Porra...
Por causa da sessão de sexo no banheiro, a loira tinha conseguido para si mesma uma nova configuração emocional... E a ele só restavam de oito a dez horas de vômito, diarreia, e dor de cabeça excruciante.
Como todos os que sofriam de enxaqueca, ele olhou para o relógio. Tinha cerca de vinte minutos antes de a festa começar, e ele não podia se dar ao luxo de desperdiçá-los.
Caminhando mais rápido, ele passou pelos corpos, acenando para as garotas de programa e sua equipe de segurança como se tudo estivesse bem. Então, ele foi para a área restrita, passou pelo seu escritório para pegar a jaqueta e as chaves, e saiu pela porta lateral que dava para o estacionamento. Sua BMW o esperava, e ao entrar, ele cruzou o cinto de segurança sobre o peito e ligou o carro, desejando como o inferno ainda viver no Commodore... Porque ele então poderia pedir para um de seus seguranças levá-lo até lá.
Agora que estavam morando na mansão da Irmandade? Motoristas terceirizados estavam totalmente fora de questão.
É claro, ele podia chamar o irmão. Mas iAm ofereceria seu tratamento de comentários silenciosos o caminho inteiro, e não havia necessidade de sujeitar-se àquela barulheira: iAm era a única pessoa que conhecia que podia fazer o silêncio mais violento do que a decolagem de um avião a jato.
Quando seu telefone tocou, ele pensou, merda, era melhor ele ter ligado para avisar a todos que ele já tinha encerrado por hoje.
Pegou o celular e olhou para o, — Ótimo.
Mas não era como se ele pudesse deixar a ligação de iAm tocar até cair no correio de voz. Varrendo a tela com o dedo, levou a coisa ao ouvido mesmo que no Estado de Nova York fosse proibido falar ao celular no trânsito.
Seu irmão não lhe deu nem chance de dizer “olá”. — Você está com enxaqueca.
— Não era para você ser vidente.
— Eu não sou. Eu cheguei assim que você saiu. Estou bem atrás de você... E só tem uma razão para você sair do trabalho à uma da manhã.
Trez olhou pelo retrovisor, e teve orgulho de si mesmo... Se ele erguesse a cabeça de uma determinada forma, ele realmente podia ver o par de faróis.
— Encoste.
— Eu...
— Encoste essa porra. Eu volto para buscar o carro assim que te deixar em casa.
Trez continuou a dirigir, pegando a Northway, pensando, não, ele podia fazer isso.
Bom plano. Pelo menos até um carro se aproximar pela via oposta... Enquanto ele chegou perto, ficou totalmente cego e não teve escolha além desacelerar. Piscando depois, com toda intenção de pisar no acelerador e continuar a dirigir, só que a realidade se fez presente: seu tempo estava acabando, e não só em relação à enxaqueca.
Os s’Hisbe só estavam se armando para levá-lo de volta ao território, só Deus sabia qual seria seu próximo movimento. Então, o que esta situação não precisava era de iAm vendo seu irmão morrer, bem à sua frente.
Trez já tinha causado muito dano ao cara.
Um carro em chamas não era uma boa marca em sua trajetória.
Se rendendo, ele jogou o carro para a lateral, pisou no freio, e encostou a cabeça no volante. Mesmo fechando os olhos, a aura continuava em seu caminho, se expandindo e movendo gradualmente pelo canto superior direito. Quando desaparecesse? A festa começaria... E não seria divertido.
Enquanto esperava que iAm estacionasse perto dele, pensou ser irônico o modo como fazer a coisa certa, às vezes podia parecer uma total derrota.
Ok, o que temos aqui...?
Melhor perguntar o que eles não tinham, Beth pensou, enquanto se inclinava para dentro de um freezer totalmente cheio de sorvetes.
Aparentemente mulheres grávidas gostavam daquela doçura gelada. Ok, a Escolhida grávida, Layla, gostava... E Beth pontualmente todas as noites, levava-lhe o mesmo tipo, já fazia... Quanto tempo mesmo desde a necessidade da fêmea?
Deus, o tempo voava.
E enquanto contava os dias, estava bem consciente de não estar pensando na evolução de Layla. O que estava realmente contando, eram quantas horas tinha passado naquele quarto, sentada perto dela... Esperando que, daquela vez, a superstição das velhas viúvas, se tornasse realidade.
Ela não tinha ficado por lá só para ser uma boa vizinha ou amiga consoladora.
Não. Embora, por que infernos ela pensava que ela e Wrath precisavam de um bebê, em meio a todo este drama, era um mistério. Mas a Mãe Natureza tinha meio que encostado ela contra a parede, e agora não havia retorno, não havia racionalização, nem discussão com aquela ânsia.
Não que ultimamente, ela sequer tenha conversado com Wrath sobre isto. Como se ele já não tivesse o suficiente de problemas para lidar. Mas vamos lá, se ela conseguisse espontaneamente desencadear sua necessidade...
Ela só queria ter um pedacinho dela e de Wrath... E quanto mais perigosas as coisas ficavam com o Bando de Bastardos, mais desesperada aquela necessidade se tornava.
De certa forma, isto era o mais triste da situação na qual se encontravam.
Pelo menos algo dele sobreviveria, se o Bando de Bastardos conseguisse matá-lo.
A onda de dor que acompanhou este pensamento foi tão grande, que ela se apoiou contra o freezer e levou um tempo até conseguir concentrar sua atenção no carregamento de Breyers, Bem & Jerry’s, Häagen-Dazs e Klondikes.
Era tão mais seguro se preocupar com o sabor do sorvete da noite. Layla preferia creme... Era o único sabor que conseguia manter no estômago. Mas Beth era mais aberta à experimentação, e, graças ao apetite infame de Rhage, havia um zilhão de sabores para escolher.
Enquanto procurava uma inspiração, o dilema foi um pedacinho diretamente tirado de sua infância, um eco dos dias em que ela pegaria um de seus dólares arduamente ganhos, andaria um quilômetro até o Mercadinho do Mac, e levaria vinte minutos para conseguir o mesmo pote de chocolate Hershey’s Dixie que ela sempre tomava. Engraçado, ela ainda podia lembrar como o lugar cheirava àquelas casquinhas crocantes. E a caixa registradora, daquelas antiquadas, tinha uma alavanca do lado.
Quando saía, Mac sempre lhe dava uma colher vermelha de plástico, um guardanapo e um sorriso... Junto com seu troco de vinte e seis centavos.
Ele era especialmente gentil com os órfãos que viviam no Nossa Senhora. Naquela época, um monte de gente era gentil com ela e as outras crianças indesejadas ou azaradas.
— Chocomenta, – ela disse, se inclinando para alcançá-lo e esticando o outro braço para trás.
Ao sentir o ar gelado se elevar, sentiu-se parando de suar. — Oh, sim...
Mesmo que ainda estivessem no maldito dezembro, ela ansiava pelo frio, os poros de sua pele arrepiando-se, os poros de seu rosto se fechando, suas entranhas chiando de tanta secura.
Todo aquele sexo devia ainda estar deixando-a turbinada.
Fechou os olhos e voltou ao momento em que Wrath a possuiu no chão, rasgando suas roupas. Tão bom. Bem o que eles precisavam.
Só que agora ela odiava o jeito que se sentia.
Ele estava tão distante, mesmo com seu corpo no andar de cima, naquele escritório.
Talvez este fosse outro motivo para ela querer um filho.
Concentre-se, concentre-se. — Creme, creme... Cadê você?
Quando descobriu que os de creme tinham acabado, procurou por um napolitano, que era 1/3 creme. Nada mal. Com extração cirúrgica adequada, conseguiria tirar somente o de creme, sem contaminar a tigela de Layla com nenhum dos outros sabores.
Saiu da despensa em direção à cozinha, o cheiro doce e terroso de cebolas sautés e cogumelos misturados com manjericão e orégano foi o paraíso em seu nariz. Mas a ambrósia não era para a Última Refeição, e não era um doggen quem cozinhava.
Não. Era iAm... De novo. Parece que ele cozinhava quando estava nervoso, e isso indicava que alguém mais estava na merda.
O Sombra e seu irmão eram as mais recentes adições à casa da Irmandade, e como dono e cozinheiro principal do ultra-tradicional Restaurante Salvatore, iAm tinha mais do que provado seu talento com linguine... Embora não se pudesse dizer que Fritz aprovasse o cara mexendo nas panelas. Como de costume, o mordomo estava por perto, apoplético porque um dos convidados da casa ousasse cozinhar.
— Que cheiro delicioso, – ela disse ao colocar os potes na ilha de granito da cozinha.
Ela não teve chance de pegar tigelas ou talheres. Fritz se pôs em ação, abrindo armários e gavetas – e ela não teve coragem de dizer-lhe que não precisava.
— Então o que é desta vez? – ela perguntou ao Sombra.
— Bolonhesa. – iAm abriu outro vidro de tempero, e pareceu saber exatamente a quantidade a colocar sem precisar usar medidas.
Encontrando seus olhos escuros amendoados, Beth ergueu um pouco mais sua gola rolê para esconder as marcas de mordidas em seu pescoço. Não que ele parecesse ter notado. — Onde está seu irmão?
— Lá em cima, – veio a resposta curta.
Ah. Assunto encerrado. — Bem, acho que te vejo na Última Refeição?
— Eu tenho um encontro, mas há carneiro para o resto de vocês, pelo que ouvi.
— Oh, eu pensei que você estava cozinhando para...
— Isto é só terapia, – ele disse, batendo a colher de pau na beira da panela para tirar o excesso de molho. — E é só por isto que Fritz me deixa usar seu fogão.
Ela baixou a voz. — Eu pensei que você tinha poderes especiais sobre ele.
— Acredite, se eu tivesse, eu usaria. – Ele apagou o fogo. — Com licença. Tenho de ver como Trez está.
— Ele está ferido?
— Mais ou menos. – Ele lhe fez uma curta reverência e saiu da cozinha. — Até mais.
Com sua saída, o ar pareceu mudar, as moléculas da cozinha se acalmando, como se o humor sombrio dele tivesse eletrificado o ar em volta. Assustador, mas ela gostava dele e do irmão: outro par de matadores treinados na casa não era nada mal.
— Senhora, eu acho que aqui tem tudo o que precisa. – O mordomo lhe entregou em uma bandeja de prata, tudo o que era necessário para a batalha com os Breyers. — Para você e para a Escolhida.
— Oh, Fritz, que amor – mas, na realidade, eu só preciso de uma tigela. Eu vou comer o meu direto do pote, por mais melequento que pareça. Mas é melhor usar uma — Obrigada. – Ela sorriu quando o mordomo lhe estendeu uma colher. — Você lê pensamentos?
O doggen enrubesceu, seu rosto idoso e enrugado se acendendo com um sorriso. — Não, senhora. Mas ocasionalmente eu adivinho bem.
Tirando a tampa da embalagem do napolitano, ela escavou cuidadosamente, para retirar somente a parte de creme. — Ocasionalmente nada, sempre.
Quando ele corou e arregalou seus olhos já extremamente abertos, ela quis abraçá-lo. Mas na última vez que fez aquilo, ele quase desmaiou pela impropriedade do ato. Os Doggens viviam sob um código rígido de comportamento, e embora seu maior desejo fosse servir bem, eles simplesmente não conseguiam aguentar elogios.
E iAm já tinha estressado muito o pobrezinho.
— Tem certeza que não quer que eu lhe sirva? – o mordomo disse ansiosamente.
— Você sabe que eu prefiro fazer eu mesma.
— Posso carregar a bandeja então?
— Não, já peguei. – Quando ele pareceu implodir, ela terminou de encher a tigela de Layla e recolocou a tampa no pote. — Você poderia guardar o sorvete para mim?
— Sim, claro, senhora. E a colher. Deixe tudo comigo.
Enquanto ele saía como um ladrão de banco carregando a pilhagem, ela meneou a cabeça, pegou a bandeja e foi para a sala de jantar. Ao chegar ao vestíbulo, teve de parar para admirá-lo. Mesmo vendo aqueles três andares diariamente, pelos últimos dois anos, o espaço assombroso ainda era como um mundo diferente: do revestimento de ouro, ao chão brilhante de mosaico, do teto murado tão alto, a todas aquelas colunas de malaquita e mármore, eram mágica pura.
E digno da realeza.
De fato, a mansão inteira era uma obra de arte, cada espaço um novo sabor de luxo, inspirado em assombro, um tom diferente de perfeição em cada cômodo.
Ela não vivia daquele jeito antes de Wrath entrar em sua vida... Ou sequer tinha imaginado. Santo Deus, ela podia lembrar depois dos dois terem se mudado para cá. De mãos dadas, eles passaram por todas as alas e andares, do porão catacumbático ao sótão cheio de vigas. Quantos cômodos havia lá? Tinha parado de contar em cinquenta.
Loucura, loucura.
E pensar que não tinha sido só aquilo que tinha herdado do pai. Dinheiro... Havia tanto dinheiro também.
Ao ponto de, mesmo que tivesse dividido igualmente com John Matthew depois que ele tinha entrado em suas vidas? Não tinha feito diferença, mesmo com o meio-irmão ficando com milhões e milhões.
Loucura total.
Passando sobre a imagem da macieira em flor, ela chegou à escada forrada de carpete vermelho e foi para o segundo andar. Sendo órfã a vida inteira, tinha sido um choque descobrir que seu pai a tinha conhecido, olhado por ela, cuidado dela. Mas então, de tudo o que ela tinha ouvido, Darius tinha sido assim. Não se esquivava do dever.
Deus, ela queria tanto tê-lo conhecido.
Especialmente agora.
Ao chegar ao topo da escada, encontrou as portas do escritório abertas, e seu homem estava onde devia estar... Curvado sobre toneladas de papelada em Braille, os ombros imensos bloqueavam quase inteiramente a visão do trono esculpido, seus dedos talentosos traçando linha por linha, as sobrancelhas profundamente baixas por trás daqueles óculos escuros.
Ambos, seu homem e George, seu adorado cão guia, olharam para cima como se tivessem captado seu cheiro.
— Leelan, – Wrath disse exalando.
Num salto, o Golden retriever saiu de sua posição enrodilhada no chão, cauda abanando, focinho se esticando em um sorriso que o fez espirrar.
Ela era a única a quem ele sorria... Embora mesmo amando-a, ele não abandonasse o lado do Wrath.
Ela deixou a bandeja de sorvete em uma mesinha do corredor, entrou e acenou para Saxton, em seu lugar habitual no sofá francês azulado. — Como vai a equipe mais trabalhadora do planeta?
O advogado das Leis Antigas se levantou de sua própria pilha de papéis e fez uma reverência a ela, o elegante terno permitindo o movimento fluido. — Você está com uma aparência ótima.
É, bem, nada como um amorzinho.
— Obrigada. – Ela rodeou a imensa mesa e tomou o rosto do marido entre as mãos. — Ei.
— Estou tão contente que esteja aqui, – ele suspirou... Como se fizesse anos desde a última vez que tinham se visto.
Inclinou-se para beijá-lo na boca, e soube que ele tinha os olhos fechados mesmo que não pudesse vê-los por trás das lentes escuras.
E então ela teve de cuidar do cão.
— Como você está, George? – Igual ao marido, deu uma beijoca naquele rosto peludo. — Está cuidando do nosso Rei?
O ruído e o som da cauda batendo na beirada do trono expressava um grandessíssimo sim, se é que era possível.
— Então, no que estão trabalhando? – perguntou, enquanto Wrath puxava-a para seu colo e acariciava suas costas.
Era tão estranho. Antes de conhecê-lo, odiava aquela melação, pseudo-carinhosa que os casais insistiam em fazer. Mas quem diria, os tempos mudam.
— Só petições. – Ou seja: merda que eu preferia tacar fogo a ter de lidar.
— E temos mais duas dúzias para avaliar. – Saxton esticou o braço rígido como se tivesse com câimbras. — E então resoluções sobre disputas e anúncios de nascimentos e falecimentos.
Wrath tombou a cabeça para trás. — Eu continuo achando que deve haver uma maneira melhor de lidar com isto. Eu odeio transformá-lo numa secretária, Saxton.
O macho deu de ombros para sua papelada legal. — Eu não me importo. Faço qualquer coisa para ver o trabalho feito.
— A propósito, o que temos em seguida?
Saxton tirou uma folha de papel de um arquivo grosso. — Certo. Então este cavalheiro quer tomar outra shellan...
Beth revirou os olhos. — O que, como Sisters Wives[8], versão vampiro?
— A lei permite. – Saxton balançou a cabeça. — Embora, francamente, como macho gay, eu juro que não entendo o que leva um macho querer uma, muito menos múltiplas... Oh, quer dizer, exceto por você, minha rainha. Você seria digna de exceção.
— Olha a boca, advogado, – Wrath grunhiu.
— Brincadeira, – o advogado replicou.
Beth sorriu ao ver o quão confortáveis eles se sentiam, um com o outro. — Espere, então a coisa de ter duas esposas é comum?
Saxton ergueu um ombro em um gesto elegante. — Era mais prevalente quando a população era maior. Agora, temos menos de tudo: emparelhamentos, nascimentos, mortes.
Wrath encostou a boca no ouvido dela. — Você pode ficar comigo durante meu intervalo?
Um rolar de seus quadris sugeriu que seu cérebro tinha enveredado para terreno horizontal. Ou vertical... Deus sabia que ele era forte o bastante para segurá-la pelo tempo que quisesse.
Sentiu o corpo começar a esquentar... E lembrou do sorvete que tinha deixado no corredor. — Pode me dar uma hora? Tenho de...
Um barulhão no segundo andar fez todos virarem a cabeça.
— Que porra é essa? – Wrath perguntou entredentes.
No beco do centro da cidade, Xcor se abaixou e cobriu seu ferimento, enquanto tiros pipocavam a sua volta e pneus cantando anunciavam a chegada de mais membros da gangue.
Abrigo. Ele precisava de um abrigo – agora. Estes humanos não se importavam com ele, mas a munição era de grosso calibre, como uma chuva torrencial e tão imprevisível e indiscriminada quanto uma debandada de touros.
Pulando para trás, jogou seu corpo contra o prédio, e a dor em seu ombro foi agradável. Mas não havia tempo para aproveitá-la. Olhou para a esquerda... Para a direita...
Foi quando viu uma porta, cerca de cinco metros adiante, então se jogou no chão e rolou naquela direção, sacando sua própria arma ao fazê-lo. Disparou dois tiros no mecanismo de tranca de aço, deu um chute forte e se enfiou na escuridão que havia atrás.
O ar lá dentro era fétido... E doce.
Doentiamente doce. Como a podridão da morte.
Rançoso... Como um lesser.
Ao se fechar lá dentro, os tiros continuaram a espocar, e não levaria muito tempo até sirenes começarem a soar. A questão era, quantos morreriam, quantos estariam feridos, e quantos, daquele bando de ratos sem cauda, conseguiriam se enfiar ali também?
Ai de mim, aquelas perguntas bobas teriam que ficar para depois quando ele descobrisse o motivo deste lugar feder com o cheiro do inimigo.
Retirou sua lanterna, iluminou o chão sujo em volta. A cozinha industrial estava claramente abandonada, teias de aranha pendiam de um ventilador industrial acima do fogão e as prateleiras vazias acima dos balcões... Totalmente cobertas de poeira... Os detritos de uma mudança feita às pressas, espalhavam-se pelo caminho até a porta.
Pondo-se a andar, Xcor apontou a lanterna em círculos grandes. Baldes vazios, que certa vez guardaram porções comerciais de molhos e iogurtes virados de ponta cabeça desordenadamente em uma estação de preparo, e tubos ainda cheios de mostarda e ketchup, sem tampa, revelavam conteúdos endurecidos, muito além do apodrecimento, a um estado de mumificação. Mais para dentro, uma fila de bandejas de uma lavadora industrial, continha um talher errante, e o vidro opaco, meio quebrado, parecia esperar por um lavador fantasma a empurrá-los e iniciar o funcionamento.
Arrastando-se através de pratos de cerâmica em cacos, seguiu o cheiro que exigia sua atenção.
A Sociedade Lessening era composta de humanos recrutados em uma guerra contra vampiros, seres fracos resgatados de seu estado lamentável pelo Ômega – com o efeito colateral do fedor permanente, algo parecido com um cervo morto há dois dias e leite azedo.
Era sempre possível localizar o inimigo pelo nariz...
A câmara refrigerada da cozinha ficava do outro lado, sua porta estilo porta de prisão entreaberta, o interior, outro pedaço de breu, tornando impossível antever o conteúdo.
Ao segurar o tranco, sua pele brilhou branca, sob a luz da lanterna, e o ruído da porta se abrindo foi alto o bastante para fazer seus ouvidos zumbirem. Um desordenado amontoado de marcas de patas sugeriam que havia ratos de verdade por ali e ele sentiu-os passar por cima de seus coturnos.
O fedor era tanto que seus olhos lacrimejaram.
O feixe de luz entrou primeiro.
E lá estava.
Pendurado no centro da unidade de armazenamento, suspenso por um gancho na nuca, um macho humano fazia a imitação perfeita de um bovino.
Ao menos, Xcor achava que era um macho, pelas calças e jaqueta de couro. Identificação facial era impossível: Os ratos o tinham devorado da testa para baixo, usando a corrente que o mantinha suspenso como ponte para chegar até à refeição cheirosa.
Então este, infelizmente, não era o inimigo, mas somente um corpo morto de verdade.
Que decepção. Ele tinha esperado por algo mais ao seu estilo. Ao invés, era só mais um humano.
O som despedaçante de algo irrompendo na escuridão, o fez direcionar a luz, e seus sentidos entraram em alerta máximo.
Mesmo com a fedentina do amigo da gravata de gancho e corrente ali, o cheiro metálico de sangue fresco precedia quem tinha entrado.
Awww. Alguém fez dodói.
A ação continuou, com as sirenes que anunciaram a chegada da polícia de Caldwell... Mas os sons estavam abafados, indicando que a criatura que acabara de entrar na cozinha, tinha fechado a porta ao entrar.
— Porra!
O visitante derrubou alguns dos containers plásticos ao esbarrar no balcão. Então houve mais xingamentos. Um grunhido como se estivesse se abaixando, provavelmente naquela bancada de aço inoxidável. Então ouviu-se arfadas entrecortadas.
Perdendo a paciência com todo aquele drama, Xcor saiu da câmara refrigerada. Ao contrário do cara da gangue ferido, ele tinha uma ideia do layout, e conseguiu focar o cara, graças à sua audição e a lembrança de onde a ilha central estava.
Mas, as coisas seriam muito mais fáceis se conseguisse enxergar. Tirando o óbvio benefício da orientação, ele não gostava da sensação suspensa que acompanhava a cegueira, nem de ter de confiar em seus ouvidos e olfato para se locomover. Havia também a realidade de que qualquer coisa podia estar a frente de seus pés, pronto para atacá-lo.
Mas ele conseguiu se aproximar do humano ferido.
— Você não está sozinho, – Xcor falou na escuridão.
— O que! Oh, Deus! Quem...
— Eu pareço da sua espécie? – Ele cuidadosamente alongou um pouquinho mais o R, mais do que geralmente faria, só em caso de seu sotaque do Idioma Antigo não fosse perfeitamente claro.
Mais respiração. Pesada, muito pesada. Acompanhada pelo cheiro acre de verdadeiro terror.
— Vocês humanos... – Xcor deu mais uns passos a frente, não mais se importando em abafar o som de suas botas. — O problema com vocês é que não têm inimigos verdadeiros. Vocês lutam contra vocês mesmos nestes becos da cidade ou nas fronteiras dos países, porque não há nada externo que os unam. Já a minha espécie? Temos um inimigo que exige um mínimo de coesão.
Mas não suficiente para diminuir suas ambições quanto à coroa.
A este ponto, o humano começou a falar atabalhoadamente. Ou talvez fosse algum tipo de oração?
Que fraqueza. Era deplorável – e explorável como um imperativo moral.
Xcor acendeu sua lanterna.
Sob o feixe de luz, o cara da gangue trepou no balcão, o corpo manchado de sangue varrendo a poeira de um pedaço do balcão.
Plasma... Tão bom quanto Lustra Móveis, evidentemente.
Olhos arregalados saltaram das órbitas, e a respiração pesada assobiou pela boca aberta, o cara anteriormente durão perdeu vários pontos enquanto a dor e o medo acabavam com sua bravura, tornando-a não mais que uma lembrança.
— Você precisa saber que há outros vivendo entre vocês, – Xcor disse em voz baixa. — Parecidos, mas não da sua espécie. E nós sempre vigiamos.
O homem recuou, não que houvesse muito lugar para onde ir. O balcão era uma bancada para corte, não um colchão para um homem adulto.
Mais daquilo e ele acabaria caindo no chão.
— Quem... Quem é você?
— Talvez seja melhor mostrar do que falar.
Expondo as presas, Xcor apontou o feixe de luz para seu próprio rosto.
O grito alto foi agudo, e não durou muito. Graças à resposta das glândulas de adrenalina, o homem desmaiou, o cheiro de urina deixando claro que ele tinha perdido o controle de suas funções.
Bem engraçado, realmente.
Xcor se moveu rápido, se movendo com facilidade até a porta, graças à lanterna. Se posicionou contra a parede, apagou a lanterna e deixou aquele grito chamar a devida atenção.
O Departamento de Polícia de Caldwell respondeu com eficiência admirável, um número de oficiais arrombou a porta, lanternas perfurando a densa escuridão.
No instante em que viram o cara da gangue, correram para a frente, e foi esta a deixa para Xcor sair.
Ao atravessar a porta, ele ouviu a palavra vampiro se erguer do caos da conversa... E foi com um sorriso que se desmaterializou para longe da multidão.
Lá no Continente Antigo, ele e seu Bando de Bastardos faziam questão de manter vivas as especulações e mitos, ao se exibirem de tempos em tempos, sempre para indivíduos sozinhos, e sempre de modo que se encaixassem nos conceitos equivocados que os humanos tinham da sua espécie.
Defloramento de virgens. Fontes do mal que dormiam em caixões. Monstros noturnos.
Que nojo... Embora o último realmente se encaixasse nele.
E na verdade, era bom fazer algo semelhante aqui em Caldwell, tipo como um cão que demarcava o território. Agradável também, dar para a irrelevância naquela ilha de cozinha algo para assombrar sua memória durante seus dias na prisão.
A gente tinha de encontrar diversão onde conseguisse.
Quando John Matthew chegou à magnífica escada da mansão, a última coisa em seus pensamentos era o passado.
Conforme subia, estava focalizado, por ordem de importância: ter sua shellan nua antes da Última Refeição; tê-la nua no quarto deles; eeeee ter sua shellan nua e sob ele no quarto deles antes da Última Refeição.
Importando ou não se ele estivesse totalmente vestido? Não era um grande problema, exceto pela parte abaixo da cintura. E se precisasse, ele deixaria totalmente de lado a parte do “chegar ao quarto”... Desde que, acabassem em um lugar com um mínimo de privacidade.
Então, sim, em seu caminho para o segundo andar, ele estava muito ligado ao presente e à presença de Xhex... Que, segundo o plano, teria saído do Iron Mask há cerca de quinze minutos e estava agora providenciando as partes “nua” e “quarto” das prioridades dele.
Mas o destino o desviou.
Quando chegou ao topo da escada, as portas duplas do escritório de Wrath estavam abertas, e através delas, avistou o quadro familiar: o Rei sentado atrás de sua grande mesa ornamentada; a rainha em seu colo; George, o golden retriever, aos pés deles; Saxton, o ex de Blay e atual procurador de Wrath, sentado no sofá lateral. Como sempre, a imensa mesa estava atulhada de papelada, e o humor de Wrath parecia péssimo.
De fato, aquela expressão sombria dele parecia fazer parte do cômodo, da mesma forma que a mobília antiquada em estilo francês que mal aguentava os Irmãos durante as reuniões, e as paredes azuis claras, que combinariam mais com o quarto de alguma garota chamada Lisette ou Louisa.
Mas o que ele sabia de Extreme Home Makeover[9].
Diminuiu o passo para cumprimentá-los de longe, com intenção de continuar seu caminho até seu próprio quarto, encontrar sua companheira, fodê-la em posições variadas... E então tomar uma ducha e descer para a última refeição do dia.
Ao invés disto... Bem antes de se afastar... Seus olhos cruzaram com os de sua meio-irmã, Beth.
No instante em que a conexão foi feita, alguma combinação de neurônios explodiu em seu cérebro, e a descarga elétrica foi grande demais para sua placa-mãe: sem aviso, ele caiu, seu peso se entortando para trás quando a convulsão tomou seus músculos, tornando-os primeiro espasmódicos e então totalmente rígidos.
Ele apagou antes de chegar ao chão...
…E quando recobrou a consciência, a primeira coisa que registrou foi a dor em sua cabeça e seu traseiro.
Piscando lentamente, descobriu, pelo menos, que podia enxergar, primeiro o teto acima entrou em foco com nitidez, antes que uma fileira de rostos preocupados fossem registrados. Xhex estava bem ao seu lado, com as mãos enlaçando sua mão da adaga, a sobrancelha tão baixa como se quisesse invadir a meia-noite de seu desmaio para arrastá-lo de volta para ela.
Como parcialmente sympath, talvez ela pudesse. Talvez esta fosse a razão dele ter retornado tão rápido? Ou tinha apagado por horas?
A Dra. Jane estava perto dela, e do outro lado, estavam Qhuinn e Blay. Wrath logo atrás, com Beth...
No momento em que registrou a presença da irmã, a atividade elétrica recomeçou, e como um segundo turno de desmaio, tudo o que pode pensar foi, maldição, faz tanto tempo que isto não acontece.
Ele tinha achado que tinha acabado.
Convulsões nunca tinham sido um problema para ele, até encontrar Beth pela primeira vez... E depois, tinham havido outros episódios, sempre de repente, nunca com nenhum tipo de padrão perceptível. O lado bom? Nunca tinha acontecido durante as lutas e nunca tinha arriscado sua vida.
Desenfreado, seu corpo empinou para frente, o torso se erguendo do carpete como se houvesse uma corda amarrada em volta do tórax e alguém lá em cima o puxasse.
— John? – Xhex disse, — John, volte a deitar.
Algo brotou em seu peito, um tipo de emoção crescente, ao mesmo tempo totalmente fora de seu alcance. Ainda assim, completamente visceral. Esticando a mão na direção de Beth, ele desejou tomar sua mão... Enquanto ela se abaixava para tocá-lo, sua boca começou a se mover, os lábios e língua encontrando padrões desconhecidos repetidas vezes... Mesmo que, nenhum som quebrasse sua mudez.
— O que ele está tentando dizer? – Beth perguntou. — Xhex? Blay?
A expressão de Xhex tornou-se inescrutável. — Nada. Não é nada.
John franziu o cenho e pensou, Mentira. E ainda assim, não sabia mais do que Beth o que tinha sido... Só sabia que parecia não ser capaz de interromper a comunicação.
— John, seja lá o que for, está tudo bem. – A irmã apertou sua mão. — Você está bem.
Pairando acima de sua shellan, o rosto de Wrath se transformou em uma máscara implacável... Como se tivesse captado um clima do qual não tinha gostado.
De repente, John sentiu sua boca se mover em um padrão diferente, agora expressando outras coisas; mas, maldito fosse se fizesse ideia do que era. Enquanto isso, Beth franzia o cenho... Assim como Wrath.
E foi só.
Quando seu cérebro começou novamente a entrar em pane, fixou o olhar em Beth até não conseguir ver nada, além de seu rosto.
Sem nenhum motivo, sentiu como se não a visse há um ano ou dois. E a importância de suas feições, os grandes olhos azuis, os cílios escuros, o cabelo longo e escuro... Ressoou em seu peito.
Não de um modo romântico, não.
Era algo inteiramente diferente... E ainda assim tão poderoso quanto.
Que pena ele não conseguir se apegar à consciência por tempo o suficiente para descobrir o que era.
— Estamos prontos.
Ao terminar sua segunda carreira de cocaína, Assail se endireitou do balcão de granito e olhou para os primos: do outro lado da cozinha de sua casa de vidro no Rio Hudson, os dois estavam vestidos de preto da cabeça aos pés. Mesmo suas armas e facas não refletiam luz.
Perfeito para o que ele planejava.
Assail rosqueou a tampa do vidrinho e guardou o que restava no bolso de sua jaqueta de couro. — Vamos então.
Ao saírem pela porta da garagem, se lembrou do motivo de tê-los trazido do Antigo Continente para Caldwell: Sempre estavam prontos, nunca faziam perguntas.
Naquele quesito, eles eram exatamente como as armas automáticas que carregavam junto ao corpo noite e dia.
— Vamos para o sul, – ele ordenou. — Sigam meu sinal.
Os gêmeos concordaram com a cabeça, seus rostos perfeitamente idênticos compostos e sombrios, os corpos poderosos preparados para agir e levar a cabo tudo o que fosse preciso, em qualquer situação. Na verdade, eles eram os únicos em quem ele confiava... E mesmo aquela confiança, nascida no sangue compartilhado, não era absoluta.
Quando Assail puxou uma máscara negra sobre o rosto, eles fizeram o mesmo... E então era hora de desmaterializar. Fechando os olhos para se concentrar, se arrependeu da cocaína. Ele não precisava mesmo da fissura... Considerando que para onde estavam indo, já estava suficientemente alerta. Mas ultimamente, cheirar o pó era tão habitual quanto colocar seu casaco, ou fixar o coldre da 40mm sob o braço.
Hábito.
Foco... Foco... Foco...
Intenção e força de vontade venceram um segundo depois, e sua forma física se fragmentou em uma associação esparsa de moléculas. Mentalizando seu destino, ele avançou, sentindo seus primos viajarem pelo céu noturno com ele.
No fundo de sua mente, ele reconhecia que esta excursão era injustificada. Como homem de negócios, a vida para ele era calculada na base de retorno de investimento: tudo o que ele fazia era visando algum tipo de lucro ou recompensa. Que era o motivo dele estar no ramo das drogas. Impossível ter maior margem de lucro, do que vendendo produtos químicos para humanos no mercado negro.
Então, não, ele não era um salvador; ele era totalmente o oposto de um Bom Samaritano. E em se tratando de vingança? Qualquer uma que ele levasse a cabo seria em seu próprio proveito, nunca de outro.
Mas neste caso, faria uma exceção.
Seu destino era uma propriedade em West Point, Nova York, uma venerável e antiga casa de pedra, construída em hectares de gramado. Assail já tinha estado na propriedade anteriormente... Quando seguia uma certa ladra... Observando-a, não apenas quebrar um confiável sistema de segurança para entrar, mas também perambular pela mansão, sem roubar maldita coisa alguma.
Mas ela tinha, tirado uma das esculturas de Degas de sua posição original, movendo-a alguns centímetros.
E as consequências para ela, tinham sido horríveis.
O que estava para ser revertido.
Violentamente.
Retomando forma no canto inferior do imenso gramado frontal, ele se escondeu na fila de árvores que delimitavam os limites da propriedade. Enquanto os primos se materializavam ali perto, se lembrou de sua primeira ida àquele lugar, quando viu Sola na neve, com a parka branca camuflada, enquanto deslizava de esqui rumo ao seu alvo.
Simplesmente extraordinário. Era o único modo de descrever qualquer coisinha sobre a mulher.
Um grunhido de posse subiu-lhe pela garganta... Outra coisa da qual ele não estava gostando. Raramente se importava com qualquer coisa além de dinheiro... Certamente não se importava com fêmeas, e nunca, jamais com mulheres humanas.
Mas Sola tinha sido diferente desde o momento em que tinha captado seu cheiro, quando ela invadiu sua propriedade... E a ideia de que Benloise a tinha capturado? Na própria casa dela? Onde sua avó dormia?
Inaceitável.
Benloise não viveria para ver as consequências de suas escolhas.
Assail começou a avançar, medindo a paisagem com olhos atentos. Graças à brilhante lua de inverno, bem podia ser dia ao invés de duas da manhã... Tudo, das calhas da casa, contornos dos terraços, ao anexo dos fundos, estava claramente visível à sua frente.
Nada se movia. Nem no exterior, nem por trás das janelas obscurecidas da casa. Tudo cheirava a dinheiro antigo, pensou. Tão acima de qualquer suspeita. Pelo menos tanto quanto um distribuidor de drogas podia ser.
Talvez Benloise não tivesse orgulho de seu ganha pão.
— Entramos aqui, – Assail disse suavemente, apontando para as janelas de vidro de uma varanda.
Desmaterializou-se por entre elas, e retomou forma no interior, ficando imóvel enquanto tentava escutar passos, gritos, movimentos ou o barulho de uma porta batendo.
O brilho de uma luz vermelha, no alto de um corredor lhe indicou que o sistema de segurança estava ligado e operante... E os detectores de movimento não tinham sido acionados ainda, por sua aparição súbita. No instante em que se mexessem o inferno se libertaria.
O que era exatamente o plano.
Assail primeiro desligou as câmeras de segurança. Então acionou o alarme ao enfiar a mão no bolso para tirar um charuto cubano... Em resposta, aquela luz imediatamente começou a piscar. E enquanto o alarme fazia seu papel, ele calmamente acendeu o charuto e esperou que, a qualquer momento, alguns vigias entrassem correndo.
Quando aquilo não ocorreu, exalou por cima do ombro, e se pôs em movimento, perambulando por todo o primeiro andar, com os primos em seus calcanhares. Displicentemente, deixou as cinzas do charuto caírem no tapete oriental e no piso de mármore italiano.
Um recadinho para o caso de não encontrarem ninguém: Considerando a retaliação que o homem arquitetou pela simples movimentação de uma estátua, sujeira de charuto deixaria o bastardo puto da vida.
Quando não encontrou nada nas áreas comuns da casa, se dirigiu à ala de serviço e descobriu uma cozinha vazia, moderna e completamente desinteressante. Deus, que enfadonho... O esquema de cores cinza e cromado era como a palidez de um idoso, e a mobília esparsa sugeria que a decoração não era prioridade em espaços que Benloise não frequentava pessoalmente. Mas mais que tudo, assim como na área que já tinha passado, ele não sentia o cheiro de Sola, nem de pólvora recém-disparada, ou sangue fresco. Também não havia pratos em nenhuma das três profundas cubas da pia, e quando ele abriu a geladeira, só porque podia, viu seis garrafas verdes de Perrier na prateleira de cima e nada mais.
Um par de faróis penetrou pelas janelas, iluminando seu rosto, e lançou sombras nítidas entre as pernas da mesa e encostos das cadeiras e armários de cozinha.
Assail soprou uma nuvem de fumaça e sorriu. — Vamos sair e dar as boas-vindas.
Só que o veículo passou pela casa e foi diretamente para o anexo... Sugerindo que, fosse quem fosse, não tinha vindo verificar o alarme acionado.
— Sola... – ele suspirou, ao se desmaterializar para o gramado coberto de neve.
Emoções vinham à tona, no entanto, ele certificou-se de desativar as câmeras de monitoramento externo... Para só então tirar a máscara e poder respirar melhor.
O sedan sem identificação estacionou de frente para a garagem, e dois humanos brancos saíram, batendo as portas e dando a volta para o...
— Saudações, meus amigos, – Assail anunciou ao erguer sua ponto 40.
Ah, olhe. Eles viraram imediatamente bons ouvintes, cada um congelando no lugar, ao se sobressaltar na direção de sua voz.
Aproximando-se, Assail mirou o homem da direita, sabendo que os gêmeos julgariam corretamente seu foco e cuidaria do outro. Ao diminuir a distância, ele se inclinou e espiou através da janela do banco de trás, preparando-se para ver Sola em algum tipo de perigo.
Nada. Não havia ninguém atrás, ninguém amarrado e amordaçado, apagado, ou encolhido em submissão aguardando o espancamento que logo viria.
— Abra o porta-malas, – Assail ordenou. — Só um de vocês... Você. Agora.
Ao seguir o homem para o outro lado, Assail manteve sua arma bem na nuca do fodido, com o dedo coçando no gatilho, pronto para apertar.
Pop!
A tranca do porta-malas se abriu e a porta subiu silenciosamente, as luzes internas se acenderam...
Para iluminar duas mochilas. Só. Nada além de duas mochilas de nylon.
Assail levou o charuto à boca. — Maldição... Onde ela está?
— Onde está quem? – o homem perguntou. — Quem é você...
Em uma onda de puro ódio, a raiva dominou sua mente, e tomou o controle de tudo.
O segundo — Pop! — foi o som da bala que saiu da arma de Assail e penetrou o lobo frontal do cara. E o impacto fez o sangue respingar sobre as mochilas, o carro, e a garagem.
— Jesus Cristo! – o outro cara gritou. — O que...
Ira, imaculada por qualquer pensamento racional, fez Assail rugir um som terrível e feio – ao mesmo tempo em que o gatilho era acionado de novo. Por assim dizer.
O terceiro “Pop!” derrubou o motorista, a bala entrou bem entre as sobrancelhas, o corpo caiu para trás, como em uma narcoléptica queda livre.
Quando os braços e pernas moles bateram na neve, a voz seca de Ehric soou. — Você sabe que devíamos ter interrogado eles, não sabe?
Assail levou novamente o charuto à boca, deu um longo trago, e se segurou para não fazer algo de que se arrependesse, contra sua própria linhagem. — Pegue as mochilas e leve para a propriedade.
No fim da rua, um carro virou saído da estrada principal e se aproximou em alta velocidade. — Finalmente, – Assail reclamou. — Era de se esperar uma resposta mais rápida.
O carro embicou na casa... Pelo menos até o motorista enxergar Assail, o sedan e os primos. Então, os pneus voltaram a girar no monte de neve, quando o carro voltou a ser acelerado.
— Pegue as mochilas, – sibilou para os gêmeos. — Agora.
Exposto pelos faróis, Assail baixou a arma até a coxa para escondê-la nos bolsos de seu casaco de couro... E o manteve lá. Por mais que o enfurecesse ainda mais admitir, Ehric estava certo. Ele tinha acabado de matar duas fontes de informações.
Mais uma evidência de que estava perdendo a cabeça nisto tudo. E ele não podia voltar a cometer novamente aquele erro básico.
Quando o sedan parou, três homens saltaram, e tinham vindo preparados. Múltiplas armas estavam firmemente apontadas para sua direção: Estes garotos sabiam o que estavam fazendo, e ele até mesmo reconheceu dois deles.
O guarda-costas da frente chegou mesmo a baixar sua automática. — Assail?
— Onde ela está? – ele exigiu.
— O quê?
De verdade, ele já estava ficando cansado daquelas expressões de confusão.
O dedo no gatilho voltou a coçar. — Seu chefe tem algo que quero de volta.
Os olhos argutos do executor se dirigiram para o primeiro sedan com o porta-malas aberto... E pelo erguer das sobrancelhas, parece ter notado os sapatos de seus antecessores no asfalto.
— Eles se recusaram a me dar uma resposta, – Assail informou. — Talvez você deva tentar?
Instantaneamente, aquela arma voltou à posição. — O que caralhos é você?
De repente, os gêmeos apareceram e cercaram o trio... E com mais poder de fogo, trazendo armas em todas as quatro mãos.
Assail manteve sua arma onde estava, temporariamente fora de ação. — Eu sugiro que largue sua arma. Se não eles vão te matar.
Houve uma breve pausa... Demorada demais para o gosto de Assail.
Num piscar de olhos, seu braço se ergueu e “pop!” ele atirou no guarda mais próximo, metendo uma bala em seu ouvido, em uma trajetória que imobilizou os dois homens restantes.
Enquanto outro peso morto ia ao chão, ele pensou, Vê? Havia ainda muitos sobreviventes para lidar.
Assail baixou o braço e soltou outra nuvem de fumaça que flutuou pelos faróis, tornando a iluminação azulada. Dirigiu-se aos dois que continuavam vivos, dizendo em voz calma, — Vou perguntar de novo. Onde ela está?
Embora tenha havido uma porção de falatório por parte deles, nenhum deles incluiu a palavra mulher, sequestro ou prisioneira.
— Vocês estão me cansando, – ele disse, apontando novamente a arma. — Sugiro que um dos dois comece a falar agora.
— Ele está vivo?
Beth percebeu as palavras saírem de sua boca, mas estava só parcialmente consciente de tê-las pronunciado. Era assustador demais quando um cara tão forte quanto John Matthew caía daquele jeito... E pior? Ele tinha recobrado a consciência por um minuto e meio, tinha tentado comunicar algo a ela, e desmaiou de novo.
— Bom, – Dra. Jane disse ao posicionar o estetoscópio no coração dele. — Ok, eu preciso do aparelho de pressão.
Blay entregou a braçadeira estofada na mão da doutora, e a mulher trabalhou rápido, envolvendo o braço forte de John e bombeando a pera na extremidade. Houve um longo ruído, tão alto que fez Beth voltar a se inclinar contra seu hellren, mal aguentando esperar pelo resultado.
Pareceu levar uma eternidade. Enquanto isso, Xhex aninhava a cabeça de John em seu colo... E Deus, era difícil de ver aquilo: o ser amado caído e apagado, sem ter ideia do que aconteceria em seguida.
— Um pouquinho baixa, – Jane murmurou ao soltar a tira de velcro. — Mas nada catastrófico.
Os olhos de John começaram a se abrir, as pálpebras batendo.
— John? – Xhex disse roucamente. — Está voltando para mim?
Ele aparentemente estava. Virou-se na direção da voz de sua companheira e ergueu uma mão trêmula para apertar a dela, enquanto fitava profundamente seus olhos. Um tipo de troca de energia pareceu acontecer, e um momento depois, John se sentou. Ficou em pé. Ele só vacilou um pouco para o lado, quando se abraçaram ficaram alma com alma, por um longo momento.
Quando seu irmão finalmente se virou para ela, Beth se libertou de Wrath e abraçou ferozmente o macho mais novo. — Eu sinto muito.
John se afastou e gesticulou, Por quê?
— Eu não sei. Eu só não quero... Eu não sei.
Quando ela ergueu as mãos, ele balançou a cabeça. Você não fez nada errado. Beth... Ssério. Estou bem, tudo está bem.
Buscando seus olhos azuis, ela perscrutou-os como se estivesse neles a resposta para o que tinha acontecido e o que ele tinha tentado falar. — O que você estava tentando me dizer? – ela suspirou em voz alta.
No instante em que ouviu o que tinha dito, praguejou. Agora não era o momento certo. — Desculpe, não era minha intenção perguntar.
Eu disse alguma coisa?
— Vamos lhe dar um pouco de espaço, – Wrath disse. — Xhex, você quer levar seu homem para o quarto?
— Amém a isso, – A fêmea de ombros largos se adiantou, enganchando um braço na cintura de John e marchou com ele pelo corredor de estátuas.
Dra. Jane guardou de volta seu equipamento em uma maleta preta. — É hora de descobrir o que está causando isso.
Wrath amaldiçoou em voz baixa. — Ele está liberado para ir a campo?
Ela se ergueu, estreitando seus olhos inteligentes. — Ele vai me odiar, mas não. Antes quero fazer uma Ressonância Magnética nele. Para isto, infelizmente teremos de fazer alguns arranjos.
— Como posso ajudar? – Beth perguntou.
— Vou falar com Manny agora. Havers não tem este tipo de equipamento, e nem nós. – Dra. Jane varreu uma mão pelos cabelos loiros curtos. — Eu não faço ideia de como vamos levá-lo ao St. Francis, mas é o que precisamos fazer.
— O que você acha que pode estar errado? – Beth perguntou.
— Sem ofensa, mas você não vai querer saber. Neste momento, deixe-me começar a mexer uns pauzinhos e...
— Eu vou com ele, – Beth olhava tão duramente para a shellan de V, que era de se espantar que não queimasse um buraco na cabeça da mulher. — Se ele tiver de fazer este exame, eu vou com ele.
— Está bem, mas vamos levar o mínimo possível de gente. Já vai ser difícil o bastante fazer funcionar, não precisamos levar um exército conosco.
A companheira de Vishous se virou e correu escada abaixo, e ao se afastar, ela gradualmente perdeu sua forma, o peso de seu corpo e presença se dissipou até ela não passar de uma presença fantasmal flutuando sobre o tapete.
Fantasma ou sólida, não importava, Beth pensou. Ela preferia ser tratada por aquela mulher a qualquer outra pessoa no planeta.
Oh, Deus... John.
Beth se virou para Blay e Qhuinn. — Algum de vocês sabe o que ele estava tentando dizer?
Ambos olharam para Wrath. E prontamente, balançaram a cabeça.
— Mentirosos, – ela murmurou. — Porque não me dizem.
Wrath começou a massagear os ombros dela, como se quisesse acalmar o ataque de mulherzinha... E aquilo sugeria que, embora as particularidades lhe fossem desconhecidas por causa de sua cegueira, que ele tinha captado as emoções. Ele era assim. Ele sabia algo.
— Deixe para lá, leelan.
— Não banquem o Clube do Bolinha para cima de mim, – ela disse, se afastando e olhando para a Brigada Testosterônica. — É o meu irmão... E ele estava tentando falar comigo. Eu mereço participar disto.
Blay e Qhuinn se ocuparam olhando para o carpete. Para o espelho ao lado da mesinha de apoio lateral, que ficava perto da porta aberta do escritório. Para as próprias unhas.
Claramente, eles esperavam que uma fenda espacial se abrisse sob seus coturnos.
Bem, péssimas notícias, garotos... A vida não era um episódio de Doctor Who[10]. E sabe o que mais? A ideia de que aqueles dois... Da mesma forma que todos os outros machos na casa... Sempre poriam Wrath a sua frente, deixou-a ainda mais puta da vida. Mas ao invés de bater o pé e bancar a megera, ela não teve escolha a não ser guardar a luta para mais tarde, quando estivesse a sós com seu companheiro.
— Leelan...
— Meu sorvete está derretendo, – ela murmurou, ao sair e pegar a bandeja. — Eu ficaria muito feliz se vocês três resolvessem se abrir comigo. Mas não devia nem esperar por isso, não é mesmo?
Enquanto marchava para fora, a sensação que a acompanhou não era nada nova... Sempre, desde que Wrath tinha sido atacado, era como se outra desgraça fosse acontecer a qualquer momento, e Jesus, ver seu irmão caído no chão não fazia nada para diminuir aquela paranoia.
Não.
Alcançando a porta do quarto que tinha sido de Blay antes que se mudasse para junto de Qhuinn, ela tentou se recompor.
Não funcionou, mas bateu à porta assim mesmo. — Layla?
— Entre, – veio a resposta abafada.
Apoiando a bandeja desconfortavelmente no quadril, estava difícil girar a maçaneta.
Payne, a irmã de V, abriu a porta com um sorriso. E, cara, ela era uma presença impressionante, especialmente toda vestida de couro preto. Ela era a única fêmea em turno para lutar com os Irmãos... E ela devia ter acabado de chegar de sua ronda.
— Boa noite, minha rainha.
— Oh, obrigada. – Beth ergueu sua carga e entrou no quarto lilás. — Trago provisões.
Payne balançou a cabeça. — Eu acho que não vai ser necessário. Acho que não há mais nada no estômago dela... De fato, acredito que ela devolveu toda a comida que comeu na última semana também.
Enquanto sons de ânsia vinham do banheiro. Ambas piscaram.
Beth olhou a tigela de Breyers. — Acho melhor voltar mais tarde.
— Não se atreva, – a Escolhida gritou. — Eu estou bem!
— Não parece.
— Estou faminta! Não se atreva a ir embora.
Payne deu de ombros. — Ela tem um humor admirável. Eu venho aqui para me sentir inspirada... Embora não queira desencadear minha necessidade, é por isso que tenho de ir agora.
Enquanto a irmã de V dava novamente de ombros, como se o ciclo feminino e toda aquela coisa de bebê não a interessasse, Beth colocou a bandeja em cima de um móvel antigo. — Bem, na verdade... É pelo que eu estou esperando.
A cara de espanto de Payne a fez praguejar. — Quero dizer... Umm...
Sim, como tirá-la desta.
— Você e Wrath vão ter um bebê?
— Não, não, não... Espere. – quando ela ergueu as mãos, tentou inventar um plano de fuga. — Ah...
O abraço de Payne foi rápido como uma rajada e tão forte quanto o de um homem, cortando a respiração dos pulmões de Beth. — Estas são notícias maravilhosas.
Beth se libertou daquele abraço de urso. — Na verdade, não chegamos lá ainda. Eu só... Veja, não diga a Wrath que estou pensando nisso, ok?
— Então você quer surpreendê-lo! Que romântico!
— Sim, ele ficará bem surpreso. – Quando Payne lhe deu um olhar estranho, Beth balançou a cabeça. — Olhe, para ser honesta, eu nem sei se minha necessidade será bem recebida.
— Um herdeiro para o trono poderia realmente ajudá-lo. Se pensar pelo lado político.
— Eu não penso. E não pensarei. – Beth colocou a mão sobre a barriga e tentou imaginar algo mais além de três refeições e algumas sobremesas lá dentro. — Eu só... Realmente quero um bebê, e não tenho certeza se ele também quer. Mas se acontecer... Bem, talvez seja uma coisa boa.
Na verdade, ele lhe disse uma vez que não via filhos no futuro deles. Mas já fazia tempo e...
Payne deu-lhe um apertão no ombro. — Fico feliz por você, e espero que funcione. Mas como eu disse, melhor eu ir, porque se a velha superstição for verdadeira, eu não quero me meter em problemas. – Ela se virou para a porta parcialmente fechada do banheiro. — Layla! Tenho que ir!
— Obrigada por ter vindo! Beth? Você vai ficar, né?
— Sim. Vou ficar aqui um tempinho.
Após a saída de Payne, Beth se sentia com energia demais para se sentar, a ideia de que escondia algo de Wrath a incomodava. Eles precisavam conversar sobre aquilo, era uma questão de encontrar o momento certo para isto.
E a coisa da necessidade/bebê não era a única coisa que pesava sobre si. Aquele confronto com Wrath e os garotos ainda a incomodava. Homens. Ela amava a Irmandade... Todos eles dariam a própria vida por ela e sempre arriscavam carne e sangue quando era necessário defender Wrath. Mas às vezes, aquele lance de – um por todos e todos por um – a deixava louca...
Mais ânsia de vômito. A ponto de Beth titubear e levar as mãos ao rosto.
Prepare-se para isto, disse a si mesma. É lindo e maravilhoso ter ilusões sobre bonecas e ursinhos de pelúcia, arrulhos e afagos, mas havia um outro aspecto na maternidade... E na gravidez... Que era melhor ela se preparar para enfrentar.
Mas, a esta altura, sua necessidade não parecia estar com pressa de vir à tona. Ela estava vindo aqui todas as noites, já há quanto tempo? E sim, ela andava se sentindo meio hormonal... Ou talvez a vida só estivesse realmente difícil.
Sim, pois estes são simplesmente os momentos mais perfeitos para tentar ter um bebê.
Ela devia estar doida.
Foi para a cama, esticou as pernas e começou a atacar o pote de Ben & Jerry com a colher. Revolveu a embalagem, cavoucou os pedaços de chocolate e esmagou-os com os molares, praticamente sem sentir o gosto.
Ela nunca tinha estado tão emocional, mas ultimamente? Comia mesmo sem ter fome, e isto agora estava começando a ficar evidente.
Ao pensar nisto, ela ergueu a camiseta e abriu o botão e zíper de suas calças jeans.
Recostando-se contra os travesseiros, ela se perguntou como era possível ir tão rápido das alturas da paixão e cumplicidade a esta morosidade depressiva: Neste instante, ela tinha certeza de que nunca passaria pela sua necessidade, muito menos engravidaria... E que ela estava casada com um verdadeiro cabeça de bagre.
Voltou a atacar o sorvete, tentando atingir o veio central, fonte dos pedaços de chocolate e disse a si mesma para esfriar a cabeça. Ou... Pelo menos, esperar todo aquele chocolate bater em seu organismo e melhorar seu humor.
A vida seria melhor com Ben & Jerry.
Deveria ser o slogan da companhia.
Eventualmente, ouviu uma descarga no banheiro seguido pelo som de água corrente. Quando a Escolhida saiu, o rosto de Layla estava tão pálido quanto a túnica solta que vestia... E seu sorriso resplandecia como o sol.
— Desculpe-me por isto! – a fêmea disse, animadamente. — Como você está?
— O mais importante é saber como você está.
— Estou fantástica! – ela disse ao pegar seu sorvete. — Oh, isto é lindo. Bem o que eu precisava para acalmar o estômago.
— Eu tive de tirar a parte de mor...
Layla ergueu uma mão. Cobriu a boca com a outra. Balançou a cabeça.
De respiração presa, murmurou, — Não posso nem ouvir a palavra.
Beth tranquilizou-a. — Não se preocupe, não se preocupe. Nós nem mesmo temos em casa o Sabor Que Não Deve Ser Nomeado.
— Tenho certeza que é mentira, mas vou relevar, muito obrigada.
Quando a Escolhida foi para a cama com seu sorvete, olhou para Beth. — Você é tão boa para mim.
Beth sorriu. — Depois de tudo que você passou, isso não parece suficiente.
Quase perdeu o bebê... Então o aborto foi interrompido como mágica. Ninguém sabia realmente o que tinha dado errado, ou como tinha sido consertado, mas...
— Beth? Tem alguma coisa te incomodando?
— Não, por quê?
— Você não parece bem.
Beth exalou e se perguntou se poderia escapar disto com uma mentira. Provavelmente não.
— Sinto muito. – Ela cavoucou no pote de sorvete, retirando a última porção do sorvete de menta. — Eu estou toda... Confusa na minha cabeça neste momento.
— Quer falar sobre isto?
— Eu só estou sobrecarregada com tudo isto. – Ela colocou a embalagem de lado e deixou a cabeça cair para trás. — Sinto como se tivesse este peso sobre mim.
— Dada a situação de Wrath, não sei como você aguenta as noites...
Houve uma batida na porta, e quando Layla respondeu, não foi surpresa que Blay e Qhuinn entrassem. Os dois guerreiros pareciam desconfortáveis... E não por causa da Escolhida.
Beth xingou a si mesma. — Posso só me desculpar com vocês dois agora?
Quando Blay atravessou o quarto para se sentar perto de Layla, Qhuinn se endireitou e balançou a cabeça. — Você não tem que pedir desculpas para nós.
— Então eu fui a única a ter achado que acabaria pulando em suas gargantas? Ah fala sério. – E agora que ela tinha se acalmado e estava adequadamente chocolatizada, precisava se desculpar com o marido... Além de fazê-lo falar. — Eu não queria agir como uma megera.
— Tempos difíceis. – Qhuinn deu de ombros. — E eu não gosto de santos.
— Sério? Você se apaixonou por um, – Layla provocou.
Quando Qhuinn olhou para Blay, seus olhos desiguais se cerraram. — Maldição, me apaixonei mesmo, – ele disse, suavemente.
Quando o ruivo enrubesceu... Naturalmente... Aquela conexão entre os dois machos se tornou positivamente tangível.
O amor era uma coisa tão linda.
Beth esfregou o centro do peito, e teve de redirecionar as coisas antes de começar a chorar. — Eu só queria saber o que John tinha dito.
Qhuinn fechou a cara. — Pergunte ao maridão.
— Eu vou. – E uma parte dela quis encurtar a visita à Escolhida e ir diretamente ao escritório de Wrath. Mas então, ela pensou em todas aquelas petições nas quais ele e Saxton estavam trabalhando. Parecia egoísmo demais invadir lá e interromper os dois.
Além disto, ela estava a ponto de chorar... E não seriam lágrimas de comercial de telefone. Seriam mais como o que tinha acontecido com ela no final de Marley e eu.
Fechou os olhos, vasculhou os últimos dois anos e lembrou como era entre ela e Wrath no início. Paixão ardente. Conexão de corpo e alma. Nada além dos dois, mesmo quando estavam entre uma multidão.
Tudo aquilo ainda estava lá, disse a si mesma. Mas a vida, tinha um jeito de encobrir as coisas. Agora, se ela quisesse estar com seu homem, tinha de entrar na fila e aquilo estava ok... Ela compreendia a pressão do trabalho. O problema era que, ultimamente com muita frequência, quando eles finalmente ficavam sozinhos, Wrath trazia aquela expressão no rosto.
Aquela que dizia que ele só estava lá de corpo. Não de mente. Talvez nem mesmo de alma.
Aquela viagem a Manhattan tinha servido para lembra-los de como as coisas eram. Mas era só uma folga, um intervalo da real natureza de suas vidas.
Pousou as mãos sobre o ventre ligeiramente inchado e, desejou que estivesse perdendo suas roupas pela mesma razão de Layla.
Talvez este fosse outro aspecto deste assunto de bebê para ela. Talvez ela estivesse buscando retomar aquela conexão visceral que tinha com Wrath.
— Beth?
Voltando a si, olhou para Layla. — Desculpe-me, o quê?
— O que você quer assistir? – Layla perguntou.
Oh, uau, Blay e Qhuinn tinham saído. — Hum... Quem vomitou por último tem de escolher.
— Não é assim tão ruim.
— Você é uma verdadeira guerreira, sabia?
— Na verdade, não. Mas posso dizer que eu queria para você a mesma oportunidade de... Como você diria, enfeitar?
— Enfrentar. É enfrentar.
— Certo. – A Escolhida pegou o controle remoto e colocou no guia da Time Warner na tela. — Eu estou determinada a aprender a falar corretamente. Vamos ver... Millionaire Matchmaker?
— Eu adoro a Patti.
— Eu também. Sabe, este sorvete realmente saiu bem...
— Caiu. Quer mais? Eu posso descer e...
— Não, vamos ver se ele fica. – A Escolhida colocou a mão na própria barriga. — Sabe, eu realmente desejo isto para você e o Rei.
Beth olhou para seu corpo, desejando que ele também concordasse. — Posso ser honesta?
— Por favor.
— E se eu não for fértil? – Quando as palavras saíram, seu peito queimou com um medo tão profundo, que teve certeza que deixaria uma cicatriz.
Layla estendeu a mão. — Não diga isso. É claro que você é.
— Eu sou mestiça, certo? Minha menstruação nunca foi regulada quando eu era... Você sabe, antes da minha transição. Eu ficava anos sem menstruar, e então, quando vinha, não parecia certo. – Não havia motivo para detalhar para a Escolhida, mas o que descia para ela era muito pouco... Não parecia em nada o que as outras garotas descreviam. — E depois de minha transição, parou de vez.
— Bem, eu não estou familiarizada em como são os ciclos aqui em baixo, mas acho que cinco anos após a transição você vai passar pela sua primeira necessidade. Quanto tempo já passou?
— Dois anos e meio. – Eeeee agora ela se sentiu realmente maluca. Por que ela estava se preocupando com algo que não apareceria em seu horizonte em menos de três anos? — Antes que você diga, Eu sei, eu sei... Seria totalmente precoce se eu passasse por minha necessidade agora. Um milagre. Mas a única regra para as mestiças é não haver regra alguma, e eu tenho esperanças... – Esfregou os olhos. — Desculpe, eu vou parar. Quanto mais eu falo em voz alta, mais percebo que estou ficando louca.
— Ao contrário, eu entendo perfeitamente como se sente. Não se desculpe por desejar um filho, ou por fazer tudo o que estiver ao seu alcance para conseguir. É perfeitamente normal.
Beth não teve a intenção abraçar a Escolhida. Só que... Um minuto ela estava de costas nos travesseiros; no segundo, ela estava abraçando Layla.
— Obrigada, – Beth disse.
— Querida Virgem no Fade. – Layla correspondeu ao abraço. — Agradece por quê?
— Eu precisava saber que alguém compreende. Às vezes, me sinto só.
Layla respirou fundo. — Eu sei como é.
Beth se afastou. — Mas Blay e Qhuinn estão totalmente com você nisto tudo.
A Escolhida balançou a cabeça, uma expressão estranha comprimindo sua expressão. — Não é sobre eles.
Beth esperou que a outra fêmea explicasse o que queria dizer. Quando ela continuou em silêncio, Beth não quis pressionar. Mas talvez... Só talvez, as coisas não fossem tão descomplicadas quanto pareciam. Todos sabiam que a fêmea tinha sido apaixonada por Qhuinn antes – mas parece que tinha se conformado com o fato dele estar destinado a outro.
Com certeza ela era melhor em esconder seus sentimentos do que as pessoas achavam.
— Você sabe por que eu te compreendo perfeitamente? – Layla disse, quando ambas voltaram a se recostar nos respectivos travesseiros.
— Diga-me. Por favor.
— Eu precisava de algo que fosse meu. E Qhuinn também. – Desviou o olhar. — E é por isto que eu te invejo. Você vai fazer isto junto com seu companheiro. Isto é... Extraordinário.
Deus, o que ela poderia dizer em resposta? “Qhuinn te ama de um jeito especial?” Era como tentar tratar a dor de uma fratura exposta somente com aspirinas.
Quando os claros olhos verdes da Escolhida se fixaram na TV, ela pareceu bem mais velha do que sua idade.
Era um bom lembrete, Beth pensou consigo mesma. As coisas não eram 100% perfeitas para ninguém... E por mais que Beth estivesse lutando, pelo menos ela não carregava o bebê do homem que ela amava... Enquanto ele estava sendo feliz com outra pessoa.
— Eu não consigo imaginar como é difícil para você, – ela se ouviu dizendo. — Amar alguém com quem não pode ficar.
Olhos arregalados se fixaram nos seus... E houve um eco de algo que não pôde decifrar neles.
— Qhuinn é um bom macho, – Beth disse. — Posso entender porque você gosta tanto dele.
Momento desconfortável. E então a Escolhida pigarreou. — Sim. De fato. Então... Patti parece descontente com este cavalheiro.
Grande, Beth pensou. Até agora ela fez o irmão desmaiar, se meteu no trabalho do marido... E agora estava evidentemente irritando Layla.
— Eu não vou contar a ninguém, – ela disse, esperando consertar as coisas.
— Obrigada, – a Escolhida respondeu após um momento. — Eu serei eternamente grata por isto.
Forçando-se a se concentrar, Beth descobriu que, sim, Patti Stranger estava repreendendo um conquistador de cabelo oleoso.
Eles provavelmente violaram a regra dela de “Nada aqui, aqui ou aqui”. Ou isso ou ele tinha arruinado grandemente o encontro.
Beth tentou prestar atenção no programa, mas a animação tinha saído do quarto, tão certo como se fosse outra presença no quarto com elas, um espectro ou um fantasma, e não no sentido da Dra. Jane.
Não, um peso tinha se instalado no próprio ar.
Quando acabou o episódio, Beth olhou para o relógio mesmo que a TV mostrasse as horas. — Eu acho que vou ver como Wrath está. Talvez seja hora do intervalo dele.
— Oh sim, e eu estou cansada. Acho que vou dormir.
Beth saiu da cama e recolheu a tigela e o pote vazio de sorvete, devolvendo-os à bandeja de Fritz. Perto da porta, olhou para trás.
Layla estava sentada, apoiada naqueles travesseiros, olhos fixos na TV como se prestasse atenção. Mas Beth não acreditou. A fêmea não parava de falar quando assistia à TV, pronta para discutir sobre qualquer coisa, desde sobre o que as pessoas vestiam ou como se expressavam diante de qualquer drama que considerasse chocante.
Mas naquele momento, estava dando uma de Wrath... Aqui, mas não aqui, presente e ausente ao mesmo tempo.
— Durma bem, – Beth disse.
Não houve resposta. E também não parece que haveria sono para a fêmea.
Beth saiu para o corredor de estátuas... E parou.
De fato, ela não ia ver Wrath. Não confiava em si mesma naquele momento. Estava muito desequilibrada emocionalmente... E ela não tinha completa certeza de conseguir evitar mencionar o bebê no momento em que estivessem a sós.
Não, antes de vê-lo, precisava de um pouco de equilíbrio.
Era do seu máximo interesse.
E também no de todo mundo.
Assail matou seu quarto humano um momento após derrubar o número três.
E que o ajudasse a Virgem Escriba, estava ansioso por matar o último do trio que tinha chegado com tanta vivacidade. Ele queria pisar em cima dos mortos e respirar o aroma do sangue fresco e da dor. Daí, queria chutar o corpo quando acabasse. Talvez atear fogo.
Mas Ehric estava certo. Quem iriam interrogar se fizesse isso?
— Mantenha-o, – ele ordenou, apontando para o último macho humano que tinha restado.
O irmão de Ehric ficou mais do que feliz em obedecer, deu um passo à frente, e deu uma chave de braço naquele pescoço. Com um puxão violento, fez o homem curvar para trás.
Assail se aproximou de sua presa, tragou seu Cubano e soltou a fumaça na cara do guarda-costas. — Eu quero entrar naquela garagem. – Apontou para o anexo, pensando que talvez eles a tivessem mantendo lá. — Você vai fazer isto acontecer. Seja me dando a chave, ou com meus sócios te usando como aríete.
— Eu não sei porra nenhuma! Que caralho! Cacete! – Ou algo do tipo. As palavras saíam estranguladas.
Que linguagem brutal. Mas também, dado o aspecto Cro-Magnon[11] daquele cenho, era de supor que estivesse lidando com muito pouco, em termos de raciocínio elevado.
Era fácil ignorar todo aquele balbuciar. — Agora, vamos usar uma chave ou dispositivo eletrônico de abertura... Ou alguma parte de sua anatomia?
— Eu não sei, porra!
Bem, eu preciso responder a isto, Assail pensou.
Virando o charuto, encarou a brilhante ponta alaranjada por um momento. Então, aproximou-se mais e colocou aquela ponta ardente a poucos milímetros do rosto do cara.
Assail sorriu. — Que bom que meu sócio esteja te segurando tão firme. Um movimento na direção errada e...
Ele apertou as brasas na pele do homem. Imediatamente, um grito ressoou na noite, espantando um animal no mato, penetrando os ouvidos de Assail a ponto da dor.
Assail retirou o charuto. — Vamos tentar novamente uma resposta? Quer usar a chave? Ou outra coisa?
A resposta abafada foi ininteligível, enquanto o cheiro de carne queimada invadia o ar. — Mais oxigênio, – Assail murmurou para o primo. — Para ele poder se comunicar, por favor.
Quando o irmão de Ehric aliviou um pouco o apertão, a resposta do homem explodiu de sua boca. — Dispositivo. No Visor. Lado do Passageiro.
— Ajude este homem a pegá-lo para mim, por favor.
O irmão de Ehric foi gentil como uma marreta na cabeça de um prego, ao arrastar seu prisioneiro, sem se preocupar com os contornos do carro... Na verdade, ele parecia usar o corpo do homem para testar a integridade estrutural daquela lataria.
Mas o dispositivo foi encontrado e oferecido por uma mão trêmula... E Assail era esperto demais para acionar ele próprio a coisa. Armadilhas lhe eram muito familiares, e era melhor deixar outra pessoa apertar aquele botão.
— Abra para mim, por favor.
O gêmeo de Ehric empurrou o homem na direção da garagem, mantendo a arma a centímetros de distância da lateral da cabeça. Houve um bocado de tropeços e quedas, mas tirando os passos em falso, o guarda-costas conseguiu cruzar a distância.
As mãos do cara tremiam tanto que levou muitas tentativas para apertar o botão certo, mas logo duas das quatro portas se ergueram. Então, os faróis do sedan iluminaram tudo lá dentro.
Nada. Só um Bentley Flying Spur de um lado e um Rolls Royce Ghost do outro.
Praguejando, Assail correu na direção do prédio. Sem dúvidas, algum tipo de alarme silencioso estava acionado, mas não se preocupou muito com isso. A primeira cavalaria já tinha chegado. Haveria um intervalo até que o segundo esquadrão viesse.
A construção tinha dois andares, e dada suas janelas com painéis térmicos e proporções historicamente incorretas, só se podia assumir que tinha sido construído neste século. E ao entrar na baia à esquerda, ele não se surpreendeu que tudo fosse imaculado, o chão de concreto pintado de cinza, as paredes suaves como gesso e branco como papel. Não havia cortadores de grama lá dentro, ceifadeiras ou ancinhos. Sem dúvida, havia um serviço para aquele tipo de coisa, e ninguém ia querer aquele tipo de equipamento sujo e fedido em volta dos queridos automóveis.
Ao se mover rapidamente em volta da luz direta, os cadarços de suas botas marcavam nitidamente seus passos, os sons ecoavam em volta. Não parecia haver um subsolo. E em cima, não havia nada além de um escritório pequeno que era usado para armazenar pneus sobressalentes, capotas de conversíveis e outros acessórios de automóveis.
Voltando ao térreo, Assail saiu do lugar em passos rápidos. Ao se aproximar do guarda-costas, podia sentir suas presas alongarem, suas próprias mãos tremendo, a mente zumbindo de um jeito que o fazia pensar em carros voando pela Autobahn. — Onde ela está?
— Onde... Está... Quem...?
— Me dê sua faca, Ehric. – Quando o primo desembainhou uma lâmina de vinte centímetros, Assail guardou sua pistola no coldre. — Obrigado.
Ao pegar a faca, Assail encostou a ponta na garganta do cara, exercendo tamanha pressão que pôde sentir o cheiro do medo porejando no suor, além do calor da respiração que aquela boca aberta exalava.
Claramente, estava fazendo a pergunta errada. — Onde mais Benloise mantém prisioneiros? – Antes do homem conseguir falar, ele cortou, — Te aconselho a ter cuidado na resposta. Se mentir? Eu saberei. Mentiras tem um fedor próprio.
Os olhos do homem varreram o local como se fizesse um inventário das chances de sobrevivência. — Eu não sei eu não sei eu não sei...
Assail enfiou a faca até penetrar a superfície da pele, e o sangue vermelho manchar a lâmina. — Está não é a resposta correta, meu amigo. Agora me diga, onde mais ele esconde pessoas?
— Eu não sei! Juro! Eu juro!
Isto se manteve por algum tempo, e tragicamente, não houve sinal perceptível de mentira.
— Maldição, – Assail murmurou.
Com um movimento rápido, ele silenciou a baboseira... E o quinto inútil humano foi ao chão. Virando-se, olhou para a casa. Contra o pano de fundo dos telhados angulosos e chaminés, pelas árvores esqueléticas do outro lado... Um brilho gentil tinha aparecido no céu a leste.
Um prenúncio de condenação.
— Temos de ir, – Ehric disse em voz baixa. — Retomamos a busca pela sua fêmea à noite.
Assail não se incomodou em corrigir as palavras do primo. Ele também estava distraído pelo fato de que o tremor de suas mãos estava subindo, uma semente se espalhando por toda sua carne, até que mesmo os seus músculos formigavam.
Levou um momento para diagnosticar a causa, e quando o fez, a maior parte dele se recusou a aceitar a definição.
Mas o fato era que... Pela primeira vez em sua vida adulta, ele estava com medo.
— Onde diabos fica este lugar? Na porra do Canadá?
Atrás do volante do Crown Vic, Duas Toneladas sentia vontade de atirar na própria boca diante daquela reclamação incessante. A viagem de cinco horas, dirigindo pelo meio da noite era ruim o bastante, mas o desperdício de pele ao seu lado, no banco de passageiro?
Se quisesse fazer um favor ao mundo, ele apontaria a arma para aquela direção, não para si mesmo.
Ah, seria uma satisfação enorme apagar a luz piloto daquele fodido, mas na organização, o papel de supervisor só te permitia ir até um ponto... E o direito de matar um bastardo falador estava bem além.
— Quero dizer, onde caralhos a gente tá?
Duas Toneladas cerrou os dentes. — Estamos quase chegando.
Como se o Filho da Puta tivesse cinco anos de idade e os dois estivessem indo para a casa da vovó? Jesus Cristo.
Enquanto se aprofundava ainda mais naqueles cafundós, os faróis do sedã iluminavam a distância imediata à frente, as fileiras de pinheiros e as duas pistas que se curvavam ao redor da base de uma montanha fora da noite. Mas, o amanhecer estava chegando, uma luz tênue cor de pêssego lá no leste.
Grandes fodidas notícias. Mais cedo ou mais tarde, eles finalmente estariam fora da estrada, e então poderiam finalizar os negócios, e conseguir descansar um pouco.
Fechando os olhos, ele se inclinou sobre o volante. Ele tinha a sensação de que estavam chegando no desvio...
Duzentos metros depois, uma estrada de terra não demarcada apareceu à direita.
Não havia motivo para sinalizar com a seta... Ou diminuir a velocidade. Pisou no freio, e girou o volante, ouvindo sua carga bater no porta-malas.
Se ela estivesse adormecida, teria acordado a esta altura.
A descida foi íngreme e muito lenta: Dezembro significava um monte da merda de neve que já se amontoava no chão, no norte a esta época.
Ele só tinha estado nesta propriedade uma vez antes... E pelo mesmo motivo. O chefe gostava de ser provocado, e quem o fizesse, era capturado e trazido para cá, onde jamais seria encontrado.
Ele não fazia ideia do que aquela mulher tinha feito para provocá-lo, mas não era problema seu. Seu trabalho era desaparecer com ela... E mantê-la presa até receber mais instruções.
Ainda assim, ele tinha de imaginar. O último imbecil que ele tinha trazido a este lugar escondido tinha desviado quinhentos mil dólares e doze quilos de cocaína. O que caralhos ela tinha aprontado? E merda, ele esperava não ter de ficar aqui tanto tempo quanto aquele outro trabalho tinha exigido.
Ele também tinha sido ferido naquele trabalho.
O chefe não gostava de torturar pessoalmente. Ele preferia assistir.
Difícil processar o Estado de Nova York por acidente de trabalho pela merda que tinha feito ao cara.
Mas, que seja, Duas Toneladas não se importava com esta parte do trabalho. Ele não era como alguns caras, que não gostavam nem um pouco do chefe, que não gostava de colocar as mãos na massa. Não, ele se sentia integrado, satisfeito por cuidar das coisas desde que fosse bem pago por aquilo.
— Quanto tempo mais temos?
— Mais meio quilômetro.
— Está fodidamente frio aqui.
Vai ser mais frio quando você estiver morto, filho da puta.
O chefe tinha contratado este imbecil há cerca de seis meses, e Duas Toneladas tinha sido posto em turno com ele algumas vezes. Ele continuava esperando que o babaca fosse despedido do modo antiquado, mas até agora, não teve sorte.
O bastardo daria um ótimo flutuador no Rio Hudson.
Ou em um buraco. De fato, o nome dele não era Phil[12]?
Por falar em inspiração.
Depois de uma última virada na estrada, o objetivo despretensioso foi atingido: a — cabana de caça — térrea se camuflava perfeitamente na paisagem, a construção rebaixada meio que desaparecendo no meio dos arbustos cobertos de neve e da vegetação fofa. De fato, o exterior tinha sido deliberadamente construído para parecer precário. Mas por dentro, era uma fortaleza com um montão de fodidos segredos sombrios.
E o que estava no porta-malas ia ser adicionado àquele cálculo.
Ele nunca soube de uma fêmea já ter sido trazida para cá. Se perguntava se ela era gostosa? Impossível avaliar quando carregaram desmaiada para fora daquela casa.
Talvez ele pudesse se divertir um pouco para passar o tempo.
— Que porra de lugar é este? Parece um fodido depósito. Tem sistema de aquecimento?
Duas Toneladas fechou as pálpebras e repassou um número de fantasias que envolviam carnificina. Então, abriu sua porta e saiu do carro, esticando as articulações. Cara, ele tinha de mijar.
Indo para a porta, murmurou. — Esvazie o porta-malas, sim?
Não precisava se preocupar com chaves. O acesso era feito por digitais.
Ao se adiantar, usou uma lanterna para poder enxergar a entrada pseudo-decrépita. Ele estava a meio caminho do objetivo quando se virou, algum instinto gritando alto dentro dele.
— Tenha cuidado ao abrir, – ele gritou.
— É. Que seja. – Phil circulou o carro. — Que porra ela pode fazer comigo?
Duas toneladas balançou a cabeça e murmurou. — Seu funeral. Com algum caralho de sorte...
No instante em que a tranca foi liberada, o inferno se libertou: A prisioneira explodiu para fora como se seu traseiro estivesse em chamas... E ela tinha achado uma arma. O brilho avermelhado de um sinalizador penetrou a escuridão, iluminando o desastre total que ela causou, ao enfiar aquela ponta acesa no rosto do ajudante do Dois Toneladas.
O berro de dor de Phil assustou uma coruja do tamanho de uma criança de dez anos de uma árvore próxima ao Duas Toneladas, e ele foi forçado a se jogar no chão, para não perder a própria cabeça.
Mas então ele teve de voltar a ficar em pé.
Aquela mulher caiu numa carreira desabalada... Provando, como aquela merda de sinalizador não tinha provado, que ao contrário de Phil ela não era idiota.
— Filha da puta! – Duas Toneladas disparou atrás dela, seguindo os barulhos de galhos e folhas secas enquanto ela desaparecia dentro do mato. Mudando a lanterna para a mão esquerda, ele se atrapalhou para sacar arma.
Não era como devia acontecer. Nem um pouco.
A cadela era rápida como o inferno, e enquanto ele corria pesadamente atrás dela, sabia que ela ia vencê-lo... E a última ligação telefônica que ele queria fazer ao chefe era, — Oh, ei, eu perdi seu projeto.
Ele podia acabar sendo a próxima pessoa levada para a “cabana”.
Descarregar sua arma era a única chance que ele tinha. Ha-ha.
Escorregando ao parar, ele se segurou no tronco de uma árvore, ergueu a mira, e começou a atirar, os tiros ecoando pelo alvorecer.
Houve uma maldição em voz alta... E então os sons da corrida cessaram. Em seu lugar? Um rastejar concentrado, como se ela estivesse se arrastando no chão.
— Isso, – ele arfou ao correr para frente.
Se fosse um ferimento mortal, ele estava quase tão ferrado quanto se tivesse deixado-a fugir.
A lanterna varreu a paisagem enquanto se aproximava, revelando troncos e galhos, arbustos, o chão alto de neve.
E então lá ela estava. De cara nos espinhos, segurando um joelho junto ao peito. Só que ele não acreditava. Só Deus sabia o que mais ela podia ter na manga.
— Levante-se, ou vou atirar de novo. – Ele carregou a arma com mais munição. — Levanta, porra.
Gemendo. Rolando.
Ele puxou o gatilho e enfiou uma bala no chão à direita da cabeça dela. — Levante-se ou o próximo será na cabeça.
A mulher se ergueu do chão. Sujeira se dependurava de suas roupas pretas e da parka, e seu cabelo escuro estava emaranhado. Ele não se importou em analisar se ela era gostosa ou não. Primeiro e mais importante era trancafiá-la em um local seguro.
— Mãos para cima, – ele ordenou, mirando no meio do peito dela. — Ande.
Ela mancava violentamente, e ele pôde sentir o cheiro de sangue fresco ao seguir atrás dela. Nada mais de corrida para ela. Levaram quatro vezes o tempo da ida para voltarem ao carro, e quando chegaram, ele viu Phil ainda no chão e imóvel. Mas respirando pela boca aberta, os ruídos sutis de assovio sugerindo a dor que o consumia.
Ao passar por ele, Duas Toneladas verificou seu rosto. Oh... Merda... Queimaduras de terceiro grau por todo lado, e um daqueles olhos tinha desaparecido. Só que o bastardo provavelmente ia sobreviver.
Certo?
Puta Merda. Mas ele lidaria com aquilo mais tarde.
Quando os dois chegaram a porta, soube que precisaria tomar controle da situação.
Com um movimento rápido, agarrou-a pelo pescoço e bateu a cabeça dela nos painéis da porta.
Desta vez, quando ela caiu no chão, ele sabia que levaria um tempo até ela recobrar a consciência. Mas ainda esperou algum movimento súbito dela, só então baixou a arma, pressionou o dedão no leitor de digitais, e abriu a porta.
Acendendo as luzes, ele pegou-a pelas axilas e arrastou-a para dentro. Depois de voltar a trancar a porta, puxou-a pelo concreto até a escada... E então carregou-a para o porão.
Havia três celas alinhadas no nível inferior, iguais às da TV com barras de aço, chão de concreto, e plataformas de aço inoxidável como cama. Os banheiros funcionavam, não visando o conforto dos prisioneiros, mas por causa do nariz sensível do chefe. Não havia janelas.
Duas Toneladas não respirou fundo até trancá-la na primeira das celas.
Antes de subir para confirmar a captura para o chefe, cobrir o carro com uma capa camuflada e dar um jeito em Phil, ele foi para a cela ao lado e urinou pelo que pareceu uma hora e meia. Subiu o ziper, saiu e olhou para a parede manchada do outro lado.
O par de algemas que se dependurava de dois jogos de correntes de aço seriam brevemente usadas.
Complicações com Phil à parte, ele quase sentiu pena da cadela.
Mais tarde, naquela manhã, um golpe de baixo veio voando para o queixo de Wrath, e apesar do ruído de assovio que fez ao cortar pelo ar, ele não conseguiu responder a tempo: os nós dos dedos o atingiram certeiramente na mandíbula e o ruído fez sentir-se idiota, a cabeça girou, o sangue voou de sua boca.
A sensação foi boa para caralho.
Depois de outra sessão pesadelesca do trabalho no trono com Saxton – mais sete ou dez horas de sua vida que jamais recuperaria – ele tinha ido para os aposentos que dividia com Beth. Em sua mente só havia sexo, a única liberação que salvaria o planeta de seu humor corrosivo.
Sua companheira não estava só adormecida, estava desmaiada.
Passou cerca de uma hora olhando para o teto antes de ligar para Payne e pedir-lhe que o encontrasse no centro de treinamento.
Como Rhage sempre dizia, sexo ou briga era o que apagava o fogo. Sexo estava fora de questão, então lá ia ele.
Aproveitando a energia do impacto, usou o impulso para redirecioná-lo em um chute que atingiu sua oponente pela lateral, desequilibrando-a e fazendo-a cambalear. Mas irmã de V não foi ao chão. Ela tocou o chão levemente, pulou como uma gata, e ele soube que ela tinha planos para ele.
Triangulando o sentido do vento, o cheiro da fêmea guerreira e o som dos pés descalços dela que vinham em sua direção numa cadência elevada, ele soube que ela aproximava de frente. Preparou-se, apoiou-se nas coxas e adorou a sensação dos músculos se contraindo e suportando seu corpo de cento e vinte quilos em posição vertical. Flexionou os cotovelos e ele esperou-a estar ao seu alcance, quando então deu um golpe para frente. Com os reflexos e a vantagem da visão, ela esquivou-se do golpe e mergulhou, para então se erguer de novo e segurá-lo pela cintura.
Payne não lutava como uma garota, fosse com os punhos, pés ou com o corpo inteiro. Ela parecia um SUV, e por mais que suas bolas preferissem o contrário, ela o atingiu de jeito.
Praguejando, ele acotovelou para trás e caiu de costas como uma cadelinha. Mas não por muito tempo.
E foi o que se tornou um problema.
Ao cair, se lembrou do jeito que tinha caído da cama naquele loft... E sua ignição interna foi acionada: A verdadeira agressão sobrepujou tudo o mais... Num piscar de olhos, aquilo deixou de ser um treinamento ou somente um jogo para manter suas habilidades e se exercitar. O instinto de guerra foi desencadeado entre ele e sua oponente.
Com um rugido que reverberou pelo ambiente, ele pegou os braços de Payne em um aperto de punição e virou-a de costas, forçando-a cair de cara no chão nos tatames.
Ela era uma fêmea sólida, musculosa e mortal... Mas não era páreo para a força e tamanho dele... Especialmente quando ele montou-a e passou um braço ao redor de seu pescoço. Com a garganta presa na curva de seu cotovelo, ele travou a mão livre no pulso grosso e se inclinou para trás em um golpe de enforcamento.
Lessers. Inimigos. Mortes trágicas que mudaram o curso de sua vida... E dos outros.
Distanciamento de sua companheira. Frustração sexual. A suspeita de Beth estar escondendo algo dele.
Frustração crônica que submergiu rapidamente em uma carga de ansiedade que nunca o abandonava.
Medo. Não reconhecido, enterrado e venenoso.
Ódio de si mesmo.
Contra o pano de fundo de sua cegueira, tudo se tornou branco, a raiva dominando tudo ao não ter para onde fugir. E o efeito foi lhe dar mais poder do que seus músculos e ossos já tinham: mesmo ao sentir as unhas de Payne se enterrando em seu antebraço como numa contração mortal, não percebeu.
Ele queria matar. E ele ia...
— Wrath!
Do mesmo modo que a defesa de Payne, quem gritava seu nome não lhe importou. Ele estava fixo em seu caminho mortal, todo o sentido do que acontecia perdido para...
Alguém mais chegou e começou a puxá-lo ao mesmo tempo em que os gritos de nome se intensificaram.
Por baixo dele, Payne estava desistindo, a luta lentamente abandonando seu corpo, a inexorável inércia, exatamente o que a ira dentro dele demandava. Um pouquinho mais e tudo acabaria. Um pouco mais de pressão. Um pouco...
Um barulho alto e repetitivo soou à frente de seu rosto. Repetidamente, como um bumbo, as batidas perfeitamente espaçadas. A única coisa que mudou foi o volume.
Aumentou.
Ou talvez estivesse gradualmente penetrando sua fúria.
Wrath franziu o cenho diante do barulho que continuava. Erguendo a cabeça, afrouxou o golpe por um momento.
George.
Seu amado e dócil golden retriever estava na frente de seu rosto, latindo tão alto quanto um tiro, como se exigisse que Wrath parasse e desistisse naquele momento.
De uma só vez, a realidade do que estava fazendo o assolou.
O que caralhos estava errado com ele?
Wrath afrouxou o golpe, mas não teve chance de soltar. Alguém que empurrava seus ombros, tomou controle, afastando seu pesado peso da guerreira.
Enquanto caía no tatame de costas, a respiração sufocando e pesada de sua oponente se misturava com os palavrões de quem estava com eles... Bem como um suave soluçar.
— O que porra você estava pensando! – Agora alguém gritava na sua cara. — Você quase a matou!
Ele colocou as mãos na cabeça, sentindo o suor frio brotar de cada poro. — Eu não sabia... – ele se ouviu dizendo. — Não fazia ideia...
— Você achou que ela estava conseguindo respirar daquele jeito! – era a Dra. Jane. É claro... Ela estava na clínica e deve ter ouvido os latidos ou…
E iAm estava com eles. Ele podia sentir a presença do Sombra mesmo que, como sempre, o cara não falasse muito.
— Sinto muito... Payne... Sinto muito.
Santo Deus, o que ele tinha feito?
Ele abominava violência contra fêmeas. O problema era que, quando treinava com Payne, não pensava nela como uma fêmea. Ela era um oponente, nada mais, nada menos... E ele tinha hematomas e mesmo um osso quebrado para mostrar que, quando se tratava dela, nenhuma clemência era pedida ou ofertada.
— Merda. Payne... – Ele buscou no ar vazio, e sentiu o cheiro dos resquícios do medo dela, além do cheiro indiscutível de morte iminente. — Payne...
— Tudo bem, – a fêmea disse roucamente. — Juro.
Dra. Jane murmurou umas palavras ininteligíveis.
— Isto é entre ele e eu, – Payne falou para a cunhada. — Isto não é...
Quando foi interrompida por uma rodada de tosse, Jane falou bruscamente, — Ele quase te estrangulou, é claro que é problema meu!
— Ele ia me soltar.
— É por isto que você estava ficando azul?
— Eu não estava.
— O braço dele está sangrando no tatame. Vai me dizer que suas unhas não fizeram aquilo?
Payne recobrou o fôlego. — Estávamos lutando, não pescando!
Dra. Jane baixou a voz. — Seu irmão sabe o quão longe isto está indo?
Quando Wrath juntou seus próprios palavrões à salada de impropérios do ambiente, Payne rosnou, — Você não vai contar a Vishous sobre isto...
— Me dê uma maldita boa razão e talvez eu considere. De outra forma, ninguém me diz o que eu posso ou o que não posso contar ao meu próprio marido. Nem você, nem ele...
Wrath teve certeza de que ela tinha olhado para ele naquele momento.
— ...E certamente nunca em algo que diga respeito à porra da segurança de um membro de sua família!
O silêncio que se seguiu foi marcado de agressão crescente. E então Payne gritou, — Quantos ossos você já teve que consertar no Rei? Quantos pontos? Na semana passada você achou que eu tinha deslocado a clavícula dele... E em momento nenhum você sentiu que precisava correr para dedurar à shellan dele. Sentiu? Sentiu?
— Isto é diferente.
— Por que eu sou uma fêmea? Me desculpe... Talvez queira me olhar nos olhos quando admitir esta discriminação, Dra.?
Cristo, era como se o mau-humor dele tivesse infectado a ambas. Mas então, suas ações tinham desencadeado tudo aquilo. Porra...
Esfregou o rosto e ouviu ambas retrucarem. — Ela está certa.
Aquilo calou a ambas.
— Eu não ia parar. – Ele se levantou. — Então eu mesmo contarei a V e não voltaremos a fazer isto...
— Não se atreva, – a guerreira soltou antes de cair em outro acesso de tosse. Assim que se recuperou, ela voltou a ficar de frente a ele. — Não se atreva a me desrespeitar... Eu venho aqui lutar com você, para manter minhas próprias habilidades treinadas. Se você tomou vantagem de minha fraqueza, a culpa é minha, não sua.
— Então você acha que eu só estava pegando pesado com você? – ele perguntou sombriamente.
— É claro. E eu não tinha ainda sinalizado para parar.
— Você acha, por um segundo, que isto teria me feito parar?
Uma fissura de medo mudou as moléculas em volta da fêmea.
— E é por isto que nunca mais faremos isto. – ele se virou na direção da Dra. Jane. — Mas ela também tem razão. Isto não é problema seu, então fique fora disto.
— O inferno que eu...
— Não é um pedido, Jane. É uma ordem. E eu irei ver V tão logo eu saia do chuveiro.
— Você pode ser um verdadeiro cuzão, sabe disto, vossa Majestade.
— E um assassino. Não se esqueça disto.
Se dirigiu à porta, sem se importar em segurar a guia de George. Quando sua trajetória desviou, o cão o corrigiu se pondo no caminho e levando-o à saída adequada.
— Vestiário, – ele grunhiu, ao chegarem ao corredor de concreto.
George, familiarizado com a palavra ou o ritual pós-treino, ajudou-o a navegar pelo corredor, as patas batendo no chão de concreto.
Graças a Deus o centro de treinamento era uma cidade fantasma àquela hora do dia. A última coisa que queria era encontrar alguém.
Com os Irmãos dormindo, o extenso complexo subterrâneo estava vazio, da academia e sala de equipamentos, à sala de tiros e salas de aula, à piscina olímpica e o escritório que fazia tudo aquilo funcionar... Além da clínica da Dra. Jane e Manny, e quartos de recuperação.
Contudo Payne quase tinha se tornado uma paciente.
Merda.
Correndo a mão pela parede, parou na entrada de uma porta. — Quer esperar aqui? – perguntou a George.
Pelo ruído da coleira e pesado bater da cauda no chão, o golden tinha decidido se sentar e esperar ali fora pela chuveirada, o que era típico... Não era um grande fã de ar úmido e quente, por causa daquele casaco de pelos dele.
Ao empurrar a porta e entrar, Wrath conseguiu se orientar bem. Graças à acústica fechada e todos os azulejos, era fácil se orientar pelo som... E pelo hábito. Também, espaços onde ele tinha passado muito tempo na época em que ainda tinha um pouco de visão, eram muito mais fáceis de lidar sozinho.
Porra. Se o cão não o tivesse parado, o que teria acontecido?
Wrath se apoiou nas paredes úmidas, baixando a cabeça. Jesus Cristo.
Esfregou o rosto, o cérebro pregando-lhe peças, espocando imagens das consequências que poderiam ter ocorrido.
O gemido que se ergueu de sua garganta soou como uma sirene. A irmã de seu irmão. Uma guerreira respeitada. Arruinada.
O cão o tinha salvo. Como sempre.
Tirou a camiseta regata suada que vestia e deixou-a cair no chão, enquanto tirava os shorts de nylon. Usando a mão na parede mais uma vez, caminhou para a frente e soube quando chegou no espaço dos chuveiros pela forma como o chão se inclinava. As torneiras alinhavam-se em três lados e ele foi até uma delas, sentindo os ralos úmidos sob os pés descalços.
Escolheu um aleatoriamente, ligou o chuveiro e aguentou o jato frio que o atingiu no meio da cara.
Deus, aquele jorro de raiva. Era um combustível familiar... Mas não algo que quisesse de volta em sua vida. Aquela chama profana que o tinha sustentado por todos aqueles anos entre o assassinato de seus pais e o emparelhamento com Beth. Ele pensou que tinha acabado para sempre.
— Caralho, – ele exclamou.
Fechou os olhos, apoiou as mãos de ambos os lados do jato d’água e se inclinou nos pesados cordões de seus braços. Seu péssimo humor fazia sua cabeça parecer ter um par de hélices de helicóptero dentro dela... À duas rotações de separar seu crânio do resto de seu corpo.
Maldição...
Ele nunca tinha pensado nisso antes, mas a... Loucura... Era em grande parte, um conceito hipotético para os sãos; uma palavra pejorativa para ofender alguém por quem você não nutria respeito; uma descrição aplicada a um comportamento inapropriado.
Ali embaixo do chuveiro, ele percebeu que a verdadeira loucura não tinha nada a ver com TPM ou... Socar a parede... Ou entrar em surto e destruir um quarto de hotel antes de desmaiar. Não era enlouquecer ou roubar um banco ou temporariamente descontar seu mau-humor em um objeto inanimado.
Era sentir-se fora mundo a sua volta, uma ausência de sentidos e consciência que era como uma manipulação de vídeo câmera... Sua merda interna entrava em foco e tudo o mais, sua companheira, seu emprego, sua comunidade, sua saúde e bem-estar, saía não só de alcance... Mas de toda existência.
E o mais assustador? Este limiar quando você tem o pé na realidade e o outro em seu purgatório particular... E você pode sentir o primeiro deslize, deslize...
De repente, o equilíbrio de Wrath deu errado, o mundo inteiro girou no eixo a ponto de não saber ao certo se estava caindo para trás ou não.
Mas então, sentiu uma lâmina afiada embaixo de seu queixo, e percebeu que alguém tinha agarrado seu cabelo.
— Neste exato momento, – veio o sibilo em seu ouvido, — sabemos duas coisas. Mas só uma delas é realmente importante.
Era uma enxaqueca das bravas.
Ao abrir a porta do quarto do irmão, iAm sentia no próprio ar o sofrimento do pobre bastardo, tornando difícil respirar... E até mesmo enxergar apropriadamente.
Mas também, a decoração era toda escura.
— Trez?
A resposta gemida não era nada boa, uma combinação de animal ferido e garganta dolorida de tanto vomitar. iAm ergueu seu pulso para a luz fraca que incidia de trás e praguejou para o relógio. Àquela altura, o filho da puta já devia estar em plena recuperação, seu corpo erigindo daquele buraco de dor de cabeça no qual tinha se afundado.
Não era o caso.
— Quer algo para o estômago?
Resmungo, resmungo, grunhido, resmungo?
— Ok, tenho certeza que consigo alguns.
Resmungo, gemido, gemido, murmúrio, murmúrio.
— Sim, isto também. Quer alguns Milanos?
Mmmmmmgemidos.
— Ok, entendido.
iAm fechou a porta e voltou a descer as escadas que o levaram para baixo, para a junção entre o corredor de estátuas e o saguão de pé direito alto. Como o resto da casa, tudo estava tão silencioso quanto um túmulo, mas ao chegar à escadaria principal, seu nariz de chef captou o aroma sutil da Primeira Refeição sendo preparada na ala da cozinha.
Quanto mais se aproximava do território dos doggen, mais seu próprio estômago falava. Lógico. Depois de terminar o Bolonhesa, ele tinha ido verificar seu irmão e então se enfiara por horas na academia.
Onde tinha visto infernalmente mais do que somente o interior da sala de levantamento de pesos.
A última coisa que queria, então, era ter de tentar tirar o Rei de cima daquela guerreira. Ele estava terminando o seu treino quando ouviu alguém gritar e tinha ido checar... Onde ele encontrou, olá, o Rei emboscando aquela fêmea.
Desnecessário dizer que ele tinha adquirido um novo respeito por aquele vampiro cego. Havia poucas coisas que iAm não conseguia mover em sua vida adulta. Ele já tinha trocado um pneu sem usar um macaco. Era conhecido por carregar barris de molho tão grandes quanto máquinas de lavar em volta da cozinha. Inferno, ele tinha até mesmo mudado de lugar uma lavadora e secadora sem pensar duas vezes.
E então ele tinha tido de erguer aquele caminhão de cima de seu irmão há cerca de dois anos.
Outro exemplo do descontrole da vida amorosa de Trez.
Mas lá embaixo, no centro de treinamento, com Wrath? Não tinha conseguido mover aquele fodido. O Rei tinha um golpe animalesco... E a expressão de seu rosto? Sem emoções, nem mesmo uma careta de esforço. E aquele corpo... Violentamente forte.
iAm balançou a cabeça ao cruzar aquela macieira em flor.
Tentar mover Wrath tinha sido como empurrar uma árvore. Nada se movia; nada cedia.
Mas aquele cão tinha conseguido. Graças a Deus.
Geralmente, iAm não gostava de animais em casa... E ele definitivamente não era uma pessoa canina. Eles eram grandes demais, dependentes demais, destruíam tudo... Demais. Mas ele respeitava o golden estivesse onde estivesse agora...
Miiiiiiaaaaauuuuuuu.
— Porra!
Falando do diabo. Enquanto o gato preto da rainha se punha entre seus pés, ele se viu forçado a dar uma de Michael Jackson para não pisar nele.
— Maldição, gato!
O felino o seguiu o caminho todo até a cozinha, sempre ziguezagueando em seus tornozelos... Quase como se soubesse que ele tinha estado a pesar os benefícios do cão e estivesse estabelecendo sua dominância.
Só que gatos não liam mentes, claro.
Ele parou e olhou para a coisa. — O que diabos você quer.
Não era realmente uma questão, já que ele não esperava que o felino respondesse.
Uma pata preta se levantou e então...
A próxima coisa que viu, o maldito gato estava subindo em seus braços, rolando pelas suas costas... E ronronando como uma Ferrari.
— Tá de brincadeira comigo, – ele murmurou. — Eu não gosto de você. Maldito.
— Mestre, posso ajudar?
Quando Fritz se agigantou a sua frente como um cartaz, iAm levou um momento para voltar ao seu lugar feliz. O que, infelizmente, parecia um pouco o filme Jogos Mortais... Com partes de corpos para todos os lados.
Mas aquela era somente uma fantasia induzida por estresse. Como se ele conseguisse lembrar-se de uma única vez, há muuuuito tempo, que ele não tivesse sido ranzinza com tudo e todos. Realmente. Era verdade.
Pata, pata, pata. Em sua camisa.
— Que inferno. – Ele cedeu e acariciou aquela barriga preta. — E não, eu não preciso de nada.
O ronronar ficou tão alto, que teve de se aproximar do mordomo. — O que disse?
— Estou aqui para servi-lo.
— Sim. Eu sei. Mas agora vou cuidar de meu irmão. Ninguém mais. Estamos entendidos.
O gato agora esfregava a cabeça em seu peito. Então se esticou sob o carinho.
Oh, Deus, isto era horrível... Especialmente quando o rosto já caído do mordomo baixou para o que, sem dúvida, eram joelhos ossudos.
— Ah, merda, Fritz...
— Ele está doente?
iAm fechou os olhos brevemente ao ouvir a voz feminina. Fantástico. Mais um convidado para a festa.
— Ele está bem, – iAm disse sem olhar para a Escolhida Selena.
Deixando os espectadores para lá, se dirigiu à despensa com o gato intrometido e...
Certo. Como ele ia conseguir pegar a carga de produtos pós-enxaqueca das prateleiras com os braços cheios de...
Qual era o mesmo nome dele?
Certo. Seria Gato Maldito, então.
Olhando para baixo, para aqueles olhos grandes e contidos, iAm apertou os lábios ao esfregar a parte de baixo do queixo. Atrás da orelha.
— Ok, chega disto. – Ele brincou com uma das patas. — Vou te por no chão agora.
Assumindo o controle, ele tirou o gato da posição e se abaixou para colocá-lo no...
De alguma forma, a coisa conseguiu arranhar seu caminho nas próprias fibras de sua roupa e se pendurou a sua frente como uma gravata.
— Está de brincadeira.
Mais ronronos. Um piscar daqueles olhos luminosos. Uma expressão de auto-possessividade que deu a iAm entender que aquilo seria do jeito que o gato quisesse, e de nenhum outro.
— Talvez eu possa ajudar? – Selena perguntou suavemente.
IAm abafou uma maldição e olhou para o gato. Então para a Escolhida. Mas era melhor que tirar sua blusa. O Gato Maldito estava grudado nele.
— Eu preciso de um daqueles Milanos, ali em cima? – A Escolhida se esticou e pegou um pacote dos salgadinhos. — E ele vai precisar de algumas destas tortillas também.
— Tradicional ou sabor limão?
— Tradicional. – iAm desistiu de resistir e voltou a acariciar o Maldito... E o gato imediatamente voltou a bancar o garoto preguiçoso novamente. — Ele vai querer um dos bolinhos Entenmann. E vamos levar três cocas geladas, duas Poland Springs grandes, em temperatura ambiente.
Após uma de suas dores-de-cabeça, Trez necessitava de hidratação, açúcar e cafeína. Fazia sentido. Doze horas sem comer eram notícias ruins. E então havia o enjoo com o qual ele tinha de lidar.
Cinco minutos depois, ele, a Escolhida e o Gato Maldito se dirigiam ao terceiro andar. E pelo menos iAm conseguiu ajudar a carregar as coisas, enfiando as grandes garrafas de água embaixo dos braços. Fritz também tinha providenciado umas sacolas para carregar o restante.
Cristo, ele preferia fazer isto sozinho.
— Ele gosta muito de você, – a fêmea comentou enquanto subiam.
— Ele é meu irmão. É bom que goste.
— Ah não... Eu quis dizer o gato. Boo adora você.
— O sentimento não é recíproco.
iAm tinha toda intenção de soltar um “Eu assumo daqui” para a fêmea quando finalmente chegaram à porta do quarto... Mas o Maldito ainda não parecia dar sinais de querer descer.
Que foi o porquê da Escolhida Selena ter acabado nos aposentos de Trez.
Exatamente a situação que ele não precisava.
Obrigado, gato.
Ao abrir das portas, a luz invadiu o ambiente, e – claro que a sorte não ajudava – iluminou em cheio, o grande e feio Trez se sobressaltando na cama.
Alguém tinha captado o aroma da fêmea.
Oh, pelo amor da porra.
E a propósito, porque o fodido não podia aparentar estar pior? Seu irmão devia estar horrivelmente acabado depois do jeito que passara as horas do dia.
— Onde colocamos isto? – a Escolhida perguntou para ambos.
— Em cima da mesa, – iAm murmurou. Era o ponto mais longe da cama.
— Deixe-nos, – veio um grunhido do paciente.
Ok, graças a Deus Trez estava finalmente tendo um momento de clareza. A Escolhida podia continuar cuidando de seus negócios, e ele e seu irmão podiam tentar aquela coisa de seja-um-bom-menino de novo...
iAm ficou extremamente consciente de que ninguém se movia. Trez, no entanto, continuava meio sentado e a Escolhida estava congelada. E ambos olhavam para ele.
— O quê? – ele disse.
Quando percebeu o que era, iAm entrecerrou os olhos para seu irmão. — Tá falando sério?
— Saia, – foi tudo o que o bastardo disse de novo.
O Gato Maldito parou de ronronar em seus braços, como se o animal soubesse que algo estranho estava rolando no quarto.
Mas eis a questão: era impossível lidar com a estupidez... E iAm estava a ponto de parar de tentar.
Virando-se para a Escolhida, ele disse em voz baixa. — Cuidado.
Depois disto, ele levou o Maldito e seu próprio traseiro miserável para fora dali.
Sem dúvida era melhor. Ele sentia como se fosse dar uma de Wrath em cima do irmão, e nada bom ia resultar daquilo.
Caminhando para a escada, ele retraçou seus passos. Em algum ponto do caminho, voltou a acariciar o animal em seus braços de novo, as pontas dos dedos achando aquele queixinho e fazendo movimentos circulares.
De volta à cozinha, que agora estava cheia da equipe de novo, era hora de se separar daquela sombra.
— Fritz.
O mordomo se agitou do arranjo que estava fazendo. — Sim, mestre! No que posso ajudá-lo.
— Tome. – iAm arrancou o gato ele mesmo, desgrudando ambas as patas de sua blusa. — Faça lá o que costuma fazer com ele.
Ao se virar, sentiu vontade de olhar de novo e se certificar que o Maldito estava bem. Mas porque caralhos faria isso?
Ele tinha de ir ao Sal e verificar sua equipe. Normalmente, ia ao restaurante no início da tarde, mas a merda não tinha sido normal com aquelas enxaquecas: Cada vez que seu irmão tinha uma, ambos tinham dor-de-cabeça. Agora, com Trez se recuperando e sem dúvida logo trepando com aquela Escolhida, era hora de se por a caminho.
Se ao menos aquilo o impedisse de se tornar psicótico.
Jesus Cristo, Trez ia agora foder aquela fêmea. E só Deus sabia onde aquilo os levaria.
Ao chegar à saída, falou por sobre o ombro, — Fritz.
Através dos preparativos da Primeira Refeição, o doggen respondeu, — Sim, mestre?
— Eu nunca vi peixes aqui na casa. Por quê?
— O Rei não gosta de frutos do mar.
— Mas ele permite que tenha?
— Sim, sim mestre. Só não à sua mesa. E certamente não em seu prato.
iAm encarou para os painéis da porta a sua frente. — Eu quero que compre salmão fresco e prepare. Esta noite.
— Mas é claro. Não dá tempo de prepará-lo para a Primeira Refeição para você...
— Não para mim. Eu odeio peixe. É para o Gato Maldito. Eu quero que ele coma salmão regularmente. – Ele abriu a porta. — E lhe dê alguns vegetais frescos. Que tipo de comida ele come?
— A melhor. Hill's Science Diet.
— Descubra do que é feito... E então eu quero que seja preparada manualmente. Não quero que ele coma nada que venha dentro de sacos, de agora em diante.
A voz do doggen expressava aprovação: — Tenho certeza que Mestre Boo apreciará seu interesse especial...
— Não estou interessado neste saco de pelos.
Totalmente irritado consigo mesmo e com todo mundo no planeta, ele saiu não só da cozinha, mas da mansão inteira. Na hora certa. O sol tinha se posto e a luz se esvaía do céu.
Ele amava a noite e levou um momento para respirá-la fundo. O ar gelado de inverno fez suas narinas chiarem.
Se ele fosse dono de sua vida, livre do laço de seu irmão e a prisão imposta a Trez pelos seus pais, teria escolhido uma existência diferente. Se enfiaria em algum lugar do oeste, viveria da terra e longe de todo mundo.
Não que fosse um recluso por natureza. Ele só não via valor no que tantos outros viam. Em sua mente, o mundo simplesmente não precisava de outro iPhone, ou serviço mais rápido de internet, ou mais um reality show de milhões de dólares. Inferno, quem caralhos se importava se o vizinho tinha uma casa maior, um carro maior, um barco maior ou um trailer maior. Por que ele se importaria se alguém tinha um relógio/anel/celular/tv/bilhete de loteria melhor. Sem mencionar sapatos e moda no geral. Propaganda de maquiagem, dramas de celebridades, compras compulsivas e drones humanos sem cérebros, que realmente acreditavam no que seus pastores enfiavam-lhe garganta abaixo.
E não, não eram só humanos que eram levados a toda aquela merda.
Vampiros eram igualmente culpados... Eles só disfarçavam mentalmente com uma suposta superioridade sobre aqueles ratos sem caudas.
Tanta sublimação de quem eles realmente eram aos ditames do que lhe disseram para querer, precisar, procurar, comprar.
Mas também, ele não tinha conseguido se libertar do drama de seu irmão, então quem era ele para...
Quando seu celular tocou no bolso da roupa, ele enfiou uma mão e pegou-o. Ele sabia quem era mesmo antes de olhar para a tela, aceitou a ligação e levou o celular ao ouvido.
Aquela pequena parte dele que tinha voltado a se acender para a vida, morreu no centro de seu peito de novo.
— Vossa Excelência, – ele cumprimentou o sumo sacerdote. — A que devo esta honra.
Ao perambular pela cozinha, Assail checou o relógio. Virou na frente da pia. Voltou para o bar. Olhou para o relógio de novo.
Ehric tinha saído há vinte e um... Não, vinte e dois minutos... E a viagem para a qual tinha sido enviado demandaria vinte e cinco minutos, no máximo.
O coração de Assail trombejava. Ele tinha planejado a noite, e esta primeira parte era crítica para a conclusão.
Ele pegou o celular e discou...
O bip duplo que soou indicou que havia um veículo entrando na garagem.
Assail correu para o vestíbulo, abriu a porta reforçada, e tentou enxergar pelas janelas pintadas de preto de seu Range Rover blindado. Será que os primos tinha conseguido...
O protocolo rezava que deveria esperar que tudo estivesse novamente fechado antes de se sair de um veículo, mas a impaciência e o medo que o assaltava jogou aquela regra sensata pela janela, correndo rápido pelo chão de concreto nu, foi em direção ao SUV enquanto Ehric desligava o motor e saía com o irmão.
Antes de Assail conseguir avaliar a expressão dos primos, ou começar a exigir por explicações, a porta traseira se abriu lentamente.
Ehric e seu irmão congelaram. Talvez, como se não tivessem muito controle sobre sua carga... E soubessem que, qualquer coisa poderia acontecer em seguida.
A fêmea humana idosa que emergiu, tinha um metro e meio de altura e era atarracada como uma cômoda. Seu cabelo era grosso, branco e cacheado, mantidos presos e afastados de seu rosto enrugado, e seus olhos escuros encaravam, brilhantes e inteligentes sob uma massa pesada de cílios. Por baixo de um casaco puído de lã preta, seu vestido azul era simples, solto e florido, mas seus sapatos de salto baixo e bolsa combinando, eram de couro legítimo... Como se tivesse tentado vestir-se o melhor que pudesse, e aquilo fosse só o que tinha no closet.
Ele lhe fez uma reverência. — Senhora, bem-vinda.
A avó de Sola segurava a pequena bolsa embaixo do peito. — Minhas coisas. Eu trouxe.
Seu sotaque português era pesado, e ele teve de dissecar as palavras para traduzir.
— Bom. – Ele acenou para os primos e ao seu comando, eles foram para a traseira do SUV e tiraram três maletas modestas. — Seu quarto está pronto.
Ela anuiu brevemente. — Prossiga.
Quando Ehric se aproximou com a bagagem, ergueu uma sobrancelha e tinha razão de ficar chocado. Assail não gostava que lhe dessem ordens.
Mas, exceções teriam de ser feitas com ela.
— Mas é claro. – Assail deu um passo para trás e se curvou de novo, indicando a porta pela qual tinha saído.
Régia como uma rainha, a pequena idosa avançou pelo chão, em direção aos três degraus baixos que levavam à casa.
Assail pulou para a frente, para abrir a porta. — Esta é nossa área de serviço. Ali é a cozinha.
Ele ficou atrás dela, engolindo sua impaciência. Não havia motivo para apressá-la. Ele tinha de ter certeza de que a verdadeira face do império de Benloise estaria vazia de seus negociantes de arte e trabalhadores do escritório, antes de ir para lá. E isto levaria pelo menos uma hora.
Ele continuou a turnê. — Ali atrás, a sala de jantar e sala de estar. – Ao andar adiante pelo enorme espaço aberto que dava vista ao rio Hudson, ele observou sua mobília esparsa com novos olhos. — Não que eu use muito este espaço.
Não havia nada pessoal na casa. Só a encenação que tinha sido instalada para vender a propriedade, vasos e tapetes e sofás neutros e poltronas anônimas. O mesmo para os quartos, quatro no térreo e um no segundo andar.
— Meu escritório é bem ali...
Ele parou. Franziu o cenho. Olhou em volta.
Teve de voltar para a cozinha para encontrar os outros.
A avó de Sola tinha a cabeça enfiada na geladeira, como se fosse um gnomo procurando um lugar gelado para passar o verão.
— Senhora? – Assail chamou.
Ela fechou a porta e se moveu para os armários que iam do chão ao teto. — Não há nada aqui. Nada. O que vocês comem?
— Ah... – Assail se pegou olhando para os primos, buscando ajuda. — Geralmente nós comemos na cidade.
O som de zombaria parecia ser o equivalente da idosa para Foda-se. — Eu preciso de grampos.
Ela girou em seus sapatinhos brilhantes e colocou as mãos nos quadris. — Quem vai me levar ao supermercado.
Não era uma pergunta.
E enquanto ela olhava para os três, parecia que Ehric e seu gêmeo assassino violento se sentiam tão perplexos quanto Assail.
A noite tinha sido planejada minuto a minuto... E uma viagem ao mercado local não estava na lista.
— Vocês dois são magros demais, – ela anunciou, abanando a mão na direção dos gêmeos. — Precisam comer.
Assail pigarreou. — Senhora, foi trazida aqui para sua segurança. – Ele não permitiria que Benloise se adiantasse... E então teve de cobrir potenciais efeitos colaterais. — Não para cozinhar.
— Vocês já recusaram o dinheiro. Eu não vou ficar aqui de graça. Vou trabalhar para pagar minha estadia aqui. Vai ter de ser assim.
Assail exalou longa e lentamente. Agora ele sabia de onde Sola tinha herdado seu lado independente.
— Bem? – ela exigiu. — Eu não sei dirigir. Quem me leva?
— Senhora, não prefere descansar pri...
— Descansarei o corpo quando estiver morta. Quem.
— De fato, temos uma hora, – Ehric apontou.
Quando Assail lançou um olhar para o outro vampiro, a pequena idosa pendurou a bolsa no braço e acenou. — Então ele me leva.
Assail encarou a avó de Sola diretamente nos olhos e baixou sua voz para esclarecer um ponto que deveria ser respeitado. — Eu pago. Estamos claros... A senhora não vai gastar nem um centavo.
Ela abriu a boca como se fosse discutir, mas era cabeça-dura, não burra. — Então eu costuro.
— Nossas roupas estão boas o bastante...
Ehric pigarreou. — Na verdade, eu tenho alguns botões frouxos. E a faixa de Velcro na jaqueta de aviador dele está...
Assail olhou por cima do ombro e expôs as presas para o idiota... Fora das vistas da avó de Sola, é claro.
Recompondo a expressão, ele se virou e...
Soube que tinha perdido. A avó tinha uma daquelas sobrancelhas levantadas, os olhos escuros tão firmes quanto qualquer inimigo que ele já tivesse encarado.
Assail balançou a cabeça. — Não acredito que estou negociando com a senhora.
— E você concorda com meus termos.
— Senhora...
— Então estamos entendidos.
Assail ergueu as mãos. — Está bem. Vocês tem quarenta e cinco minutos. Só isto.
— Voltaremos em trinta.
Com isto, ela se virou e foi para a porta. Atrás de sua forma diminuta, os três vampiros jogavam pingue-pongue ocular.
— Vão, – Assail falou por entre dentes cerrados. — Ambos.
Os primos se encaminharam para a porta da garagem... Mas não chegaram até lá. A avó de Sola se virou e colocou as mãos nos quadris.
— Onde estão seus crucifixos?
Assail estremeceu. — Desculpe, não entendi.
— Você não é católico?
Minha querida doce senhora, não somos nem humanos, ele pensou.
— Não, receio que não.
Olhos de feixes de laser se travaram nos seus. Ehric. O irmão de Ehric. — Vamos mudar isto. Se for o desejo de Deus.
E lá se foi ela, marchando pelo vestíbulo, abrindo a porta, e desaparecendo na garagem.
Quando a barreira de aço pesado se fechou automaticamente, tudo o que Assail pôde fazer foi piscar.
Os outros dois estavam igualmente estupefatos. Em seu mundo, domínio era estabelecido por meio de força e manipulação, por indivíduos de persuasão masculina. Posição era merecida ou perdida por disputas de vontade, geralmente sangrentas e que resultavam em esquartejamento.
Quando alguém vinha deste território, certamente não esperaria ser castrado em seu próprio território, por uma mulher que não trazia nem mesmo uma faca. E que, provavelmente, teria de usar uma escada para dar um soco na cara de alguém.
— Não fiquem parados aí, – ele brigou. — É capaz dela sair dirigindo sozinha.
— ...Só uma delas é realmente importante.
Enquanto o chuveiro continuava ligado como se nada estivesse acontecendo, o agradável som da água corrente reverberava pelo vestiário... E a cabeça de Wrath continuava travada naquela posição presa por trás: Com uma adaga em sua jugular e uma mão pesada na trança que caía pelas suas costas, ele não ia a lugar algum.
Cerrando os dentes, não sabia se devia se sentir impressionado ou se devia tentar afastar aquela lâmina.
Mas ele não era suicida. — E quais são estas coisas, Payne, – ele falou por entre dentes.
A voz da fêmea foi um rosnado baixo em seu ouvido. — Nós dois sabemos que você pode sair disto se quiser. Num piscar de olhos, você pode me vencer... Você mais do que provou isso lá no ginásio.
— E a segunda?
— Se eu cheguei a você uma vez, posso fazê-lo de novo. E talvez da próxima vez eu não perca meu fôlego tentando provar o fato de eu ser igual a você.
— Eu sou o Rei, sabe?
— E eu sou a filha de uma deusa, filho da puta.
Com isto, ela o libertou e se afastou.
Cobrindo os genitais com as mãos, ele se virou para encará-la. Ele não sabia qual a aparência de Payne, mas já tinham lhe dito que ela era parecida com o irmão, alta e poderosa. Aparentemente, tinha o mesmo cabelo preto brilhante e aqueles olhos pálidos, gélidos também... E a inteligência era algo que ele podia perceber sozinho.
Ela também, evidentemente, tinha culhões.
— Eu posso matá-lo, – ela disse, sombriamente. — A qualquer momento que eu queira. E eu não preciso de uma arma convencional para isto. Você é mais forte, sim... Admito isto. Mas há coisas das quais sou capaz, que você nem imagina.
— Então por que você não as utiliza.
— Porque eu não quero te matar. Você é necessário aqui. Você é primordial para a raça.
Maldito trono. — Então o que está tentando dizer é que, você se permitiria morrer lá no ginásio?
— Você não ia me matar.
Oh sim, eu ia, ele pensou com auto-desprezo. — Ouça, Payne, podemos continuar em círculos, discutindo isso pelo próximo ano e meio, e ainda não nos levaria a lugar algum. Eu não vou mais treinar com você. Nunca mais.
— Você, honestamente, não espera que eu aceite este argumento baseado em meu sexo.
— Não, eu espero que você respeite minha relação com seu irmão.
— Não me venha com esta baboseira antiquada comigo. Eu sou adulta, e devidamente emparelhada. Não está escrito em lugar algum que meu irmão tem algum tipo de domínio sobre mim.
Ele se soltou com um impulso dos quadris para a frente. — Foda-se. Vishous é meu irmão. Você faz ideia do que aconteceria a ele se eu te matasse? – Gesticulou com uma mão para a própria cabeça. — Pode parar por um segundo e considerar isto? Mesmo que eu não ligasse a mínima para você, você acha que eu faria isto com ele?
Houve uma pausa, e ele pressentiu que ela ia responder. Mas quando nada veio, ele praguejou.
— E sim, você tem razão, – ele continuou. — Você luta bem o suficiente para ser um Irmão... E eu treinei com eles por anos, então eu saberia julgar. Eu não estou parando porque você é a porra de uma menina. É pela mesma razão que Qhuinn e Blay não saem a campo juntos, e porque Xhex, se algum dia decidir voltar a lutar conosco, não será colocada na mesma equipe que John. E porque Dra. Jane não poderia operar seu irmão ou você. Algumas coisas são íntimas demais, entende?
Contra o jato de água corrente, ele ouviu-a caminhando, os pés descalços quase sem fazer barulhos nos pisos.
— Se você fosse irmão dele, ao invés de irmã, – Wrath disse, — Seria o mesmo. O problema sou eu, não você... Então faça a você mesma um favor e desça deste palanque feminista onde você se meteu. Está me aborrecendo.
Um pouco ríspido, talvez. Mas ele sabia que, naquele momento, ser civilizado estava fora de seu alcance.
Mais silêncio. Até Wrath quase jogar as mãos para o alto de frustração... Mas lembrou que suas bolas não precisavam estar em foco. — Vamos, Payne. Eu sinto muito por seu orgulho estar sendo ferido. Só que eu te quero viva e saudável, nem que para isto, eu tenha de ferir seus sentimentos.
Houve outro longo espaço de silêncio. Mas ela não tinha saído... Ele podia sentir-lhe a presença quase como se pudesse vê-la: Ela estava do outro lado do cômodo de azulejos, entre ele e a saída.
— Você acha que não teria parado, – ela disse roucamente.
— Não. – Ele fechou os olhos, o arrependimento ardendo em seu peito. — Eu sei. E como eu disse, esta parte não tem nada a ver com você. Então por favor, pelo amor de Deus, acabe com isso e me deixe terminar meu banho.
Quando não houve mais resposta, Wrath sentiu seu temperamento começar a ferver de novo. — O quê...
— Me deixe perguntar algo.
— Mal posso esperar até...
— Os Irmãos treinam juntos, certo?
— Não. Eles são ocupados demais fazendo aulas noturnas de tricô.
— Então por que eles não treinam com você? – a voz dela baixou. — Por que você não mantém sua forma com eles? Isso mudou depois de você assumir o trono?
— Depois de eu ficar totalmente cego, – ele respondeu bruscamente. — Mudou aí. Você quer uma data exata?
— Eu me pergunto se eles pensam o mesmo.
— Está sugerindo que na verdade, eu posso ver? – ele expôs suas presas. — Sério?
— Não. Estou questionando se seus irmãos iriam ao tatame com você e essa sua coroa enfiada na cabeça. Eu tenho a impressão de que a resposta seria não.
— Quer me explicar qual a relevância disto, – ele cortou. — Porque sua outra opção é me ver perder a cabeça de novo... E ambos sabemos como foi divertido na primeira vez.
Quando ela falou em seguida, sua voz estava mais distante, e ele teve a impressão de que ela tinha se dirigido para a arcada que levava aos armários.
— Eu acho que a única razão pela qual nós treinamos é eu ser uma fêmea. – Quando ele abriu a boca, ela o cortou. — E eu acho que você continuaria a lutar comigo, se eu fosse um macho. Você pode continuar dizendo a si próprio que é por causa de meu irmão, tudo bem. Mas eu acho que você é mais machista do que pensa.
— Foda-se, Payne. De verdade.
— Eu não vou discutir com você. Mas por que não pergunta a sua shellan?
— O quê?
— Pergunte-lhe como ela se sente ao lidar com você.
Ele socou o ar entre eles. — Saia. Antes que você me dê um motivo para te enforcar de novo.
— Por que ela não quer que você saiba aonde ela vai enquanto você trabalha?
— Como é que é?
— Fêmeas não guardam segredos de seus companheiros quando os respeitam. E isto é só o que direi. Mas cego ou não, você precisa fazer uma imagem mais clara de si mesmo.
Wrath caminhou pesadamente pelo chão molhado. — Payne. Payne! Volte aqui agora mesmo, caralho!
Mas estava falando sozinho.
A fêmea tinha-o deixado sozinho.
— Pooooooorra! – ele gritou a plenos pulmões.
Pooooorra, Trez pensou ao respirar novamente.
Recuperar-se de uma enxaqueca era como uma questão um pouso suave para seu retorno à consciência. Geralmente a receita era comida e repouso... Porque a merda sabia que, mesmo embora você estivesse em um quarto escuro, com nada além de música ambiente soando em seu iPhone, não se conseguia entrar em acordo com o mestre dos sonhos.
Mas, naquele momento, ele estava seriamente reconsiderando os anos de tentativa e erro em voltar-se ao normal: Quando a porta se fechou atrás de seu irmão, e Trez foi deixado a sós com a Escolhida Selena, cada célula de seu corpo começou a formigar.
Oh, cara, ele tinha de acender uma luz, embora ainda fosse cedo para provocar suas retinas com qualquer tipo de luz de verdade.
Olá, deusa.
Selena era alta, e embora vestisse a túnica tradicional branca de sua classe, era evidente que ela tinha a compleição perfeita que uma fêmea devia ter: Nada tolhia aquelas curvas dela, nem mesmo todo aquele tecido drapeado. E falando em rostos lindos. Ela era toda lábios rosados e olhos pálidos azuis, suas feições perfeitamente simétricas e construídas para capturar e cativar o olhar de um homem. Então havia o cabelo. Longo, grosso e da cor da meia-noite, ela o mantinha ao estilo das Escolhidas, todo preso no alto da cabeça.
De forma que dava vontade de soltá-lo e passar os dedos em todo comprimento.
Ela era perfeita em todas as maneiras.
E era simplesmente areia demais para o caminhãozinho dele.
O que tornava a aparição dela ali em cima, com aquele saco de coisas, ainda mais admirável.
— Você está muito doente, – ela disse suavemente.
Trez revirou os olhos. Aquela voz. Merda, aquela voz.
Espere, ela tinha feito uma pergunta, não? O que ela tinha... — Não. Estou bem. Muito bem.
E ficando duro como uma rocha, fodido ele fosse. Deus, ele esperava que ela não percebesse o aroma de sua excitação.
— O que posso fazer para ajudá-lo?
Ummm... Que tal baixar aquela túnica e pular na minha cama. Depois você poderia me cavalgar como um pônei até eu desmaiar.
— Quer um pouco desta comida?
— Que comida? – ele murmurou.
— Seu irmão preparou esta sacola para você.
O bastardo sequer tinha estado ali? Ele se perguntou.
— Você acabou de pedir para ele sair?
Achava que sim. — Ah sim. Certo.
Trez se encostou contra os travesseiros e estremeceu. Quando foi esfregar as têmporas, ele sentiu-a se aproximando da cama... E com um movimento rápido, ele puxou o pesado edredom mais para cima em sua barriga.
Algumas vezes “nu” significava muito mais do que somente “sem roupa alguma sobre o corpo”.
Cara, a expressão no rosto dela era tão preocupada. A ponto de ele ter de forçar-se a se lembrar que ela o tinha rejeitado antes. O que ela tinha mesmo.
Sim, por mais falha que sua memória recente fosse – pelo menos quando se tratava do irmão ter estado no quarto – ele podia se lembrar do que se passara entre ele e aquela fêmea antes... Além da resposta menos que entusiasmada dela para ele.
Ele também se lembrava precisamente como tomara conhecimento dela. Ele tinha ouvido o seu nome assim que Phury tinha libertado as Escolhidas do Santuário da Virgem Escriba e Selena, junto com as outras, tinha começado a viver no Grande Acampamento de Rehvenge, nos Adirondacks. Ele até mesmo a via, rapidamente, de vez em quando, mas a merda tinha degringolado com Rehv e ele tinha se distraído.
Mas aquilo tinha passado. E ele e iAm tinha sido chamados à casa de Rehv recentemente... E foi aí que a tinha conhecido cara a cara.
Ok, iAm estava com ele na ocasião, mas ele tinha afastado o cara da cabeça. Então de novo, no momento em que tinha visto aquela fêmea, tinha se esquecido de seu próprio nome, a maior parte do vocabulário inglês, e setenta e cinco por cento de seu equilíbrio.
Instantânea. Atração. Cósmica.
Pelo menos por parte dele.
Ela tinha sido menos estupidamente afetada, é claro... Embora ele tivesse tido esperanças. E tendências de perseguidor. Pela semana inteira, vagou em volta da mansão por tantas noites seguidas, esperando vê-la no meio de uma de suas visitas à sede da Irmandade. Porque, ei, nada expressa melhor — Quero sair com você, – como uma ordem de restrição.
Eventualmente, ele tinha tido sorte e conseguiu – esbarrar – com ela. Como o pateta que era, tinha lhe dito que ela era linda... E não tinha sido nem um xaveco. Ele tinha sido sincero. Infelizmente, e ao contrário das incontáveis mulheres que ele tinha xavecado, ela não tinha se impressionado.
Então, de novo, a que se devia esta visita agora?
Não que esta fosse uma questão que estivesse ansioso demais por investigar.
— O que posso te oferecer? – ela disse. E cara, aquela preocupação sincera dela o deixava envergonhado.
— Ah... Na verdade, uma dessas Cocas, por favor?
Oh, sim, o jeito que ela se moveu para ir até a sacola. Tão fluida e equilibrada, os quadris se movendo por baixo da túnica, os ombros contrabalançando, seu...
Ele desviou o olhar de seu traseiro.
Mas, caraca.
Quando ela voltou para a cama, ele se moveu mais para o meio do colchão, esperando que ela se sentasse. Ela não se sentou. Se inclinou e lhe estendeu a garrafa de plástico. Então recuou, mantendo uma distância respeitosa.
O refrigerante soltou um chiado quando desrosqueou a tampa.
— Por favor, me diga o que lhe aflige.
As mãos dela se contorciam a sua frente, torcendo, torcendo.
— Só uma enxaqueca. – ele deu um longo gole no gargalo. — Uau, isso é bom.
A vista era melhor.
— O que é isto?
— Coca-cola. – Trez parou antes do segundo gole, percebendo que ela não estava perguntando sobre o “é isso aí’. — Uma enxaqueca é um tipo de dor de cabeça. Não é nada demais.
Bem, exceto pelo fato de que a sua última tinha durado mais de doze horas e o tinha deixado à beira da morte.
Os lindos olhos dela se cerraram. — Se não é preocupante, porque seu irmão estava tão preocupado?
— Ele é assim. Um histérico. – Trez baixou as pálpebras e bebeeeeeu. Mais uma vez. — Néctar dos deuses, de verdade.
— Eu nunca pensei nele deste jeito. Mas é claro, você o conhece melhor.
Enquanto ela pairava, ele desejou que ela estivesse um pouco mais interessada em seu peito seminu: Ele não era arrogante, mas geralmente, as fêmeas olhavam para ele e não desviavam o olhar.
— Não se preocupe, ele ficará bem, – ele resmungou. — E eu também.
— Mas você esteve aqui o dia inteiro... Desde que voltou para casa ontem a noite.
Ele estava a ponto de ficar verdadeiramente chateado consigo mesmo quando pensou... Espere um minuto. — Como você sabe disto?
O fato dela desviar o olhar rapidamente o fez sentar novamente.
— Seu irmão mencionou algo sobre isto lá embaixo.
Duvide-o-dó. iAm raramente falava com pessoas a menos que fosse obrigado.
Então ela deve ter andado procurando por ele. Certo?
Trez baixou ainda mais as pálpebras. — Ei, você se importa de se sentar aqui... Estou achando difícil ficar olhando para cima, para você.
Mentira.
— Oh, mas é claro.
Beleeeeeza.
Quando ela se encostou na cama e arrumou a túnica, ele soube que estava forçando a barra, mas vamos lá. Ele tinha passado um considerável tempo deitado no piso em frente a privada a meras horas atrás.
— Tem certeza que não precisa de um médico? – ela perguntou, seus olhos hipnotizando-o a ponto dele só ficar vendo-a piscar, aquelas longas pestanas para cima e para baixo. — E fale a verdade desta vez.
Oh, ele queria dizer-lhe outro tipo de verdade, tá certo. Mas não havia motivo para bancar o tolo.
— É só uma dor de cabeça que dura muito tempo. Sério. E eu tive isto por toda minha vida adulta... Meu irmão não tem, mas ouvi dizer que meu pai também tinha. Não é uma festa, mas nada que vá me matar.
— Seu pai morreu?
Trez comprimiu o rosto para ter certeza de que não demonstrava nada. — Ele ainda vive e respira. Mas está morto para mim.
— Por quê?
— É uma longa história.
— E...?
— Não. Longa demais, complicada demais.
— Você tem outros planos para a noite então? – isto foi dito numa espécie de desafio calmo.
— Está se oferecendo para ficar comigo?
Ela olhou para as mãos. — Esta... Longa estória de seus pais. É por isto que você tem um sobrenome?
Como ela sabia...?
Trez começou a sorrir, e era uma coisa boa que ela estivesse de olhos baixos ou teria visto muito de seus dentes brancos.
Alguém tinha de fato checado ele... E aquilo era muito interessante.
E quanto ao sobrenome? — É inventado. Eu trabalho no mundo humano e preciso de um disfarce.
— Em que tipo de trabalho você está envolvido?
Trez franziu o cenho, pensando no interior de seu clube... E então o interior do banheiro que ele tinha usado como palácio de transa quantas vezes?
— Nada importante.
— Então porque o faz?
Ele deu um longo gole final em sua Coca e olhou ao longe. — Todo mundo tem de fazer alguma coisa.
Deus, ele realmente não queria entrar naquela parte de sua vida... A ponto de que fingiria estar passando mal para ela sair: em um flash, imagens dele fazendo sexo com aquela longa sucessão de mulheres humanas espocaram em frente a seus olhos, tomando o lugar de Selena até ele não mais poder nem mesmo sentir o cheiro dela.
Para os Sombras, o corpo físico era uma extensão da alma... Uma realidade talvez óbvia, mas de fato, muito mais complicada do jeito que os s'Hisbe viam. Conclusão, o que você fazia com seu corpo, o modo como o tratava e cuidava dele – ou não cuidava – era diretamente transmutado ao seu próprio núcleo. E como sexo era, por sua própria natureza, o ato mais sagrado da forma física, jamais era subestimado ou encarado de forma leviana, e certamente nunca, nunca com humanos sujos e fedidos – particularmente os de pele clara.
Para os Sombras, pele pálida significava doença.
Mas as regras não paravam às portas dos Homo Sapiens. Fazer amor era completamente ritualizado no Território. Sexo era agendado entre os casais, ou metades, como eram conhecidos, pergaminhos formais trocados em corredores de mármores, requerendo consentimento através de uma série de diretivas prescritas. E quando estava tudo acordado? O ato não podia ser realizado durante as horas do dia, e nunca, nunca antes de um banho ritual. E também era anunciado para toda a população, um estandarte especial era dependurado em uma porta de quarto, não havia perturbação até que uma ou ambas partes saíssem.
A compensação para todas essas barreiras? Quando duas metades copulavam, podiam durar dias.
Oh, a propósito, masturbação também não era aceita. Era considerada um desperdício de comunhão.
Então sim, sua gente não teria somente careteado sobre sua vida sexual; eles só o tocariam com um espeto de churrasco enquanto vestiam uma roupa de proteção para manejo de materiais perigosos e capacete de solda: Ele tinha trepado com mulheres às onze da manhã e às três da tarde e muuuuito antes do jantar. Ele tomara-as em locais públicos e sob pontes, em boates e restaurantes, em banheiros e quartos sujos de hotel... E em seu escritório. Em somente talvez metade dos casos ele sabia seus nomes, e daquele grupo sortudo, ele podia se lembrar de somente umas dez.
E só porque elas eram estranhas ou tinham lhe lembrado outra coisa.
E pela coisa da pele pálida? Ele não discriminava. Topava toda a raça humana, até mesmo mais de uma raça ao mesmo tempo. O único setor com o qual não tinha se metido ou chupado, tinha sido machos, mas só porque não se sentia nem um pouco atraído por eles.
Se sentisse, teria ido por ali também.
Ele achava que nem tudo estava perdido. Sombras acreditavam em remediação, e ele tinha ouvido de rituais de purificação... Mas havia pouco que um cara pudesse fazer para reparar os danos.
A ironia, é claro, era que ele tinha tido um orgulho doentio em arruinar-se aquele ponto. Infantil, claro, mas tinha sido como mostrar o dedo do meio para toda a tribo e aquela merda ridícula... Especialmente a filha da rainha, com quem todos eles pensavam que ele deveria ter uma pressa imensa em foder, regularmente, para o resto de sua vida.
Apesar de nunca tê-la visto, não estava interessado em ser um brinquedo sexual, e não tinha intenção de se enfiar voluntariamente em uma gaiola dourada.
Mas era engraçado. Apesar de tudo o que ele odiava sobre as tradições sob as quais tinha nascido, se pegava – finalmente – meio que vendo sentido nelas: Aqui estava ele, na viagem pós enxaqueca, a distância de um beijo de uma fêmea que morria de vontade de idolatrar com seu corpo. E adivinhe o que. Toda aquela rebeldia da qual ele tinha gostado tanto, fazia-o sentir-se nojento e totalmente desmerecedor.
Não que o ato de verdade jamais fosse acontecer com Selena... Ele era um vadio, mas não era maluco.
Merda.
Com um rosnado, ele deixou-se cair de novo contra os travesseiros. Apesar da Coca com seu soco de açúcar e cafeína, ele se sentiu repentinamente morto de exaustão.
— Desculpe-me, – a Escolhida murmurou.
Não diga que vai embora, ele pensou. Mesmo que eu não te mereça de maneira nenhuma, por favor, não me deixe...
— Você precisa se alimentar? – ela perguntou depressa.
Trez sentiu sua boca se escancarar. De todas as coisas que tinha estado esperando ouvir... Nem. Ao menos. Tinha. Passado. Pela. Cabeça.
— Talvez eu esteja indo rápido demais, – ela disse, baixando os olhos. — É só que, você parece muito cansado... E às vezes, isso é o que ajuda mais.
Puta... Merda.
Ele não sabia dizer se tinha ganhado na loteria... Ou se tinha sido condenado à morte.
Mas ao sentir seu pau estremecer com a demanda, e seu sangue rugir, a parte decente dele, que há tempos jazia enterrada falou alto de um jeito lento e persistente.
Não. Ela disse. Agora não. Nem nunca.
A questão era... Quem ia ganhar, o anjo ou o demônio dentro dele?
Wrath atravessou o túnel subterrâneo do complexo, pisando forte, as botas trovejando tão alto, que ecoava ao redor, até ele parecer sua própria fanfarra. Ao seu lado, George trotava, a coleira balançava e as patas mal tocavam o chão de concreto em seu passo ligeiro.
A volta do centro de treinamento à mansão levava pelo menos dois minutos, três ou quatro, se durante uma conversa, e andando devagar. Mas não desta vez: George parou-o à frente da porta de segurança, meros trinta segundos após deixarem o escritório que ficava atrás da despensa de suprimentos.
Wrath tateou pelo teclado de segurança e digitou o código. O mecanismo destravou com um ruído igual ao de um cofre de banco sendo destrancado, e eles prosseguiram através de uma passagem, até a próxima porta. Abrindo-a, emergiram no saguão cavernoso, e a primeira coisa que Wrath fez, foi farejar o ar.
Cordeiro, para a Primeira Refeição. Lareira acesa na biblioteca. Vishous fumando um cigarro enrolado à mão, na sala de jogos. Merda. Ele tinha de esclarecer com o irmão o ocorrido com Payne no ginásio. Inferno, tecnicamente, ele devia um rhytos ao cara.
Mas tudo aquilo podia esperar.
— Beth, – ele disse ao cão. — Procure.
Ambos, ele e o animal testaram e voltaram a testar o ar.
— Lá em cima, – ele ordenou, ao mesmo tempo em que o cão começava a subir.
Ao chegarem ao andar de cima, o cheiro dela ficou mais forte... O que confirmava estarem na direção correta. O lado ruim? Vinha da esquerda.
Wrath seguiu pelo corredor de estátuas, passando pelo quarto de John e Xhex, e o quarto que Blay dividia com Qhuinn.
Eles pararam antes de chegar ao quarto de Zsadist e Bella.
Não precisava do cão para lhe dizer que chegaram ao destino – e ele sabia exatamente na frente de qual quarto estavam: mesmo no corredor ali fora, os hormônios de gravidez espessavam o ar de tal modo, que era como se deparar com uma cortina de veludo.
Que era exatamente o motivo pelo qual a sua Beth estava ali, não era.
Fêmeas não escondem segredos dos machos a quem respeitam.
Maldição. Não lhe diga que sua companheira queria tanto um bebê, que estava fazendo algo a respeito, sem nem mesmo falar com ele.
Cerrando os dentes, ergueu a mão para bater... E acabou socando aquela porta. Uma vez. Duas vezes.
— Entre, – a Escolhida Layla disse.
Wrath abriu a porta e soube exatamente quando sua shellan o viu: O cheiro pestilento da culpa e da fraude flutuou pelo ar até chegar a ele.
— Precisamos conversar, – ele disse. E então, acenou para o que esperava ser a direção onde Layla estava. — Por favor, nos desculpe, Escolhida.
Houve uma troca de palavras entre as fêmeas, afetada por parte de Beth, e nervosa por parte de Layla. E então, sua companheira saiu da cama e atravessou o quarto, para sua direção.
Eles não trocaram nem uma palavra. Nem quando ela fechou a porta atrás deles. Nem ao caminharem lado a lado pelo corredor. Ao chegarem à porta de seu escritório, ele disse a George para ficar do lado de fora, e fechou a porta.
Embora estivesse intimamente familiarizado com o arranjo dos móveis franceses afrescalhados, ele estendeu as mãos, tocando o encosto das cadeiras revestidas de seda e um sofá delicado... E então o canto da mesa de seu pai.
Quando contornou e se sentou no trono, ele pôs as mãos nos braços entalhados da cadeira... E apertou tão forte que a madeira estalou em protesto. — Há quanto tempo está indo ficar lá com ela.
— Com quem?
— Não se faça de burra. Não combina com você.
O ar se revolveu na sala, e ele ouviu seus passos sobre o tapete Aubusson. Enquanto andava, ele podia até mesmo imaginá-la, as sobrancelhas bem baixas, a boca apertada, os braços cruzados sobre o peito.
A culpa tinha sumido agora. Em seu lugar, ela estava tão puta da vida quanto ele.
— Por que infernos você se importa? – ela murmurou.
— É meu direito saber onde você anda.
— Como é que é?
Ele apontou um dedo para a direção que achava que ela estava. — Ela está grávida.
— Eu percebi.
O punho dele bateu na mesa tão forte que o telefone caiu da base. — Você está tentando iniciar sua necessidade!
— Sim! – ela gritou de volta. — Eu estou! Isso é um crime assim tão grande?
Wrath exalou, sentindo-se como se atropelado por um carro. De novo.
Era incrível como podia ser tão devastador ouvir seu maior medo ser verbalizado em voz alta.
Respirou fundo algumas vezes, e soube que tinha de escolher bem as palavras... Apesar de sua glândula de adrenalina estar a mil, e bombeando tanto “oh meu Deus” em seu sistema, que ele se sentia afogando em terror.
Em silêncio, o tom de discagem do telefone, e então meep-meep-meep-reconecte-me foi tão alto quanto os xingamentos que percorriam suas mentes.
Com a mão trêmula, tateou em volta até devolver o fone ao gancho. Reposicioná-lo custou-lhe algumas tentativas, mas conseguiu fazê-lo sem quebrar nada.
Santo Deus, estava quieto no cômodo. E por alguma razão, ele se tornou sobrenaturalmente consciente da cadeira na qual estava sentado, tudo, de seu assento estofado em couro, aos símbolos entalhados sob seus braços, ao modo como sua coluna lombar era apoiada pelo encosto que se erguia às suas costas.
— Eu preciso que você ouça uma coisa, – ele disse, em um tom de voz morto, — E saiba que estou jurando por Deus. Eu nunca te servirei em sua necessidade. Jamais.
Agora foi ela que respirou como se tivesse levado um soco no estômago. — Eu não... Eu não acredito que disse isso.
— Isto nunca vai acontecer, eu nunca vou te engravidar.
Havia poucas coisas que ele sabia com grande certeza na vida. A única outra, que lhe vinha à mente, era o quanto a amava.
— Não irá, – ela disse asperamente. — Ou não pode.
— Não irei. Como em não vou querer.
— Wrath isto não é justo. Você não pode simplesmente determinar isto como faz com suas proclamações.
— Então eu devo mentir sobre meus sentimentos?
— Não, mas podemos conversar sobre isto, pelo amor de Deus. Somos parceiros e isto afeta a nós dois.
— Discutir o assunto não vai mudar o que eu sinto. Se você quiser continuar perdendo tempo com aquela Escolhida, é sua decisão. Mas se os rumores forem reais, e isto realmente despertar a sua necessidade, saiba que será drogada até ela passar. Eu não vou servi-la.
— Jesus... Como se eu fosse um tipo de animal que precisa ir ao veterinário?
— Você não tem ideia de como são aqueles hormônios.
— Isto. Vindo de um macho.
Ele deu de ombros. — É um fato biológico provado. Quando Layla passou pela dela, todos nós na casa, sentimos... Mesmo uma noite e meia depois que já tinha terminado para ela. Marissa se drogou por anos. É o que deve ser feito.
— Sim, quando uma fêmea não é casada. Mas pelo que me consta, meu nome ainda está escrito em suas costas.
— Só porque você é emparelhada, não significa que deve ter filhos.
Ela ficou em silêncio por um tempo. — Não lhe ocorre nem por um momento que isso possa ser importante para mim? E não como em “Oh, eu preciso de um carro novo”, ou… ”Eu quero voltar a estudar” ou mesmo, “que tal termos uma porra de um encontro antes de você ser baleado cumprindo o dever que você odeia”. Wrath, isto é a base da vida.
E a porta de entrada para a morte – para ela. Tantas fêmeas morriam na mesa de parto, e se ele a perdesse...
Caralho. Ele não conseguia nem imaginar. — Eu não vou ter filhos. Posso adoçar esta verdade com uma porção de besteiras sem sentido, junto com palavras confortadoras, mas cedo ou tarde você vai ter de aceitar...
— Aceitar? Como se eu tivesse pegado gripe de alguém que espirrou perto de mim e só tenha de me resignar a tossir por uns dias? – O espanto em sua voz soou tão claro quanto a sua raiva. — Você ao menos ouviu o que acabou de dizer?
— Eu estou fodidamente consciente de cada palavra que escolhi. Acredite-me.
— Ok. Está bem. Por que não nos colocamos no lugar um do outro. Que tal se eu disser... Que tal isto... Você vai me dar o filho que eu quero, e isto é algo que você vai ter de se acostumar. Ponto.
Ele deu de ombros novamente. — Você não pode me forçar a ficar com você.
Quando Beth engasgou, ele teve consciência de que tinham entrado em uma nova dimensão em seu relacionamento... E não uma boa. Mas não havia retorno.
Praguejando silenciosamente, ele balançou a cabeça. — Faça-se um favor, e pare de se sentar perto daquela fêmea todas as noites. Se tiver sorte, não vai ter funcionado e poderemos esquecer tudo isto...
— Esquecer sobre... Espere. Você... Você... Perdeu a porra da sua cabeça?
Merda. Sua shellan não costumava gaguejar ou cambalear, e ela raramente dizia palavrões. Que recorde.
Mas isso não mudava nada. — Quando você ia me contar? – ele exigiu.
— Contar o quê? Que você pode ser um verdadeiro imbecil? Que tal agora.
— Não, que você estava deliberadamente tentando despertar sua necessidade. Contar coisas que afetam a nós dois.
O que teria acontecido se ela tivesse subitamente chegado à sua hora enquanto estivessem juntos durante o dia? Ele podia ter cedido e então...
Nada bom. Especialmente, se ele mais tarde descobrisse que ela tinha passado as horas com aquela Escolhida, para justamente aquele propósito específico.
Ele olhou para ela. — Sim, quando exatamente este assunto seria trazido à baila? Não ia ser hoje, certo? Você estava segurando para amanhã? Não? – ele se inclinou na mesa. — Você sabia que eu não queria isto. Eu te disse.
Mais passos: ele podia ouvir cada passo dela. Levou um tempo até pararem.
— Sabe, eu tenho de sair agora, – ela disse, — E não só porque eu tenho um compromisso para esta noite. Eu preciso sair de perto de você por um tempo. E então, quando eu voltar, vamos conversar sobre isto... Os dois lados desta questão... Não! – ela ordenou ao vê-lo abrir a boca. — Você não diz mais uma maldita palavra. Se disser, tenho a impressão que vou fazer as malas e sair para sempre.
— Para aonde você vai?
— Ao contrário da opinião geral, você não tem direito de saber onde estou em cada minuto do dia e noite. Especialmente depois desta briga.
Praguejando de novo, ele arrancou os óculos escuros e esfregou a ponte do nariz. — Beth, ouça, eu só estou...
— Oh, eu ouvi o suficiente de você por ora. Então nos faça um favor e fique bem onde está. A esta altura, esta mesa e a cadeira dura é só o que lhe restará, de qualquer forma. É melhor se acostumar com elas.
Ele fechou a boca. Ouviu-a sair. Ouviu-a bater a porta.
Faltou pouco para ele levantar e correr atrás dela, mas ele se lembrou da Dra. Jane dizer algo sobre a ressonância magnética que John Matthew ia fazer em um hospital humano. Devia ser para lá que ela estava indo... Ela tinha dito que lhe era importante ir junto com ele.
De repente, ele se lembrou da convulsão, e o que tinha acontecido no meio daquilo. Depois, ele tinha confrontado Qhuinn sobre o que John tinha tentado comunicar a Beth... Se algo tinha sido dito para sua shellan, ele ia querer saber detalhes, muito obrigado.
Eu te protegerei. Eu cuidarei de você.
Ok, arquive aquilo na pasta de — Mas que porra é essa? – Normalmente, Wrath não tinha problemas com John Matthew. De fato, ele sempre tinha gostado do garoto... A ponto de ser meio assustador o modo fácil que o guerreiro mudo tinha entrado na vida deles... E permanecido.
Grande soldado. Boa cabeça acima dos ombros. E a falta de voz não era um problema, exceto com Wrath que, obviamente, não podia ler a linguagem de sinais.
Oh, e quanto ao resultado de exame de sangue que dizia que ele era filho de Darius? Quanto mais tempo se passava perto do garoto, mais óbvia ficava a conexão.
Mas ultrapassava a linha qualquer macho tentar se interpor entre ele e sua companheira, parente ou não. Ele era quem protegeria Beth e que cuidaria dela. Ninguém mais. E ele teria confrontado John depois daquilo... Só que a coisa mais estranha era que o garoto não parecia saber o que tinha dito: John não conhecia Antigo Idioma suficiente para manter uma conversa, e ainda assim, Blay e Qhuinn tinham ambos confirmado que era o que ele parecia estar murmurando.
Mas que seja. John ia para algum tratamento, e pelo lado de Beth, ele não seria um problema. Mas este assunto do bebê...
Passou-se um longo tempo até Wrath arrancar as mãos em garra dos braços do trono, e enquanto movimentava os dedos, as juntas ardiam.
Pelo andar da carruagem, esta mesa e cadeira dura serão tudo o que lhe restará.
Que bagunça. Mas a conclusão e verdade primordial eram que... Ele simplesmente não podia perdê-la na gravidez. E por pior que fosse esta briga entre eles, pelo menos ambos estavam vivos e assim continuariam: Não havia jeito nenhum no inferno que ele fosse voluntariamente arriscar a vida dela, só por um hipotético filho ou filha... Quem, a propósito, assumindo que sobrevivesse até a idade adulta, seria candidato a sofrer sob este legado régio tanto quanto ele sofria.
E aquela era a outra grande parte dele. Ele não tinha pressa nenhuma em condenar um inocente a toda esta merda de Reinado. Tinha arruinado sua vida... E não era uma herança que ele quisesse dividir com alguém que, indubitavelmente, amaria quase tanto quanto sua shellan...
Mudando de posição no trono, ele olhou para baixo, para si mesmo... E franziu o cenho.
Mesmo sem poder ver nada, ele percebeu... Que tinha uma ereção. Uma pulsante, e comprimida ereção se erguia contra o zíper de suas calças de couro.
Como se tivesse algum lugar para ir. Tipo, agora.
Colocou as mãos na cabeça, e soube exatamente o que significava.
— Oh... Deus... Não...
— Você gostaria de se alimentar?
Enquanto a Escolhida Selena esperava por uma resposta, fez o possível para ignorar o fato de que o incrível macho de pele escura na cama diante dela, estava nu. Ele tinha de estar. Com as cobertas puxadas até a cintura, o peito estava nu, os peitorais esculturais e ombros largos iluminados pela luz suave do corredor.
Era difícil imaginar porque ele se incomodaria em esconder qualquer coisa abaixo de seus quadris.
Querida Virgem Escriba, que visão ele era. E uma revelação... Embora não por ela ser ignorante ou ingênua. Ela pode ter vivido isolada no Santuário desde seu nascimento, um século atrás, mas como uma ehros, estava familiarizada com as mecânicas do sexo.
Mas sem nenhum conhecimento prático. O ato não tinha sido ainda seu destino. O Primale anterior tinha sido assassinado nos ataques bem antes dela amadurecer, e seu substituto tinha demorado décadas e décadas e décadas para ser nomeado. Então, quando Phury tinha assumido o título, ele tinha mudado tudo e libertado todas elas, ao tomar uma shellan à qual era monogâmico.
Ela sempre tinha se perguntado como o sexo era. E agora, olhando para Trez, sabia visceralmente porque as fêmeas se submetiam. Porque suas irmãs se enfeitavam e se preparavam para sua “tarefa”. Por que elas voltavam ao dormitório depois, com uma incandescência em suas peles, seus cabelos, seus sorrisos, suas almas.
Era arrebatador experimentar isto em primeira mão...
Subitamente, ela percebeu que ele não tinha respondido.
Quando ele continuou somente olhando para ela, ela se perguntou se o tinha ofendido. Mas como? Era de seu entendimento que ele não tinha uma companheira: ele tinha vindo a esta casa com o irmão, não uma shellan, e nunca havia uma fêmea aqui nestes aposentos.
Não que andasse vigiando todos os movimentos dele.
Só a maioria deles.
Quando suas bochechas ruborizaram, ela disse a si mesma que, certamente, ele precisava de uma veia depois de tudo o que tinha sofrido? De fato, a carga de sua doença era aparente no rosto dele... Seu rosto bonito e forte, com olhos escuros amendoados, lábios salientes e esculpidos, malares altos e mandíbula forte e bem marcada...
Selena perdeu o fio do pensamento.
— Você não pode estar falando sério, – ele disse secamente.
As palavras dele saíram mais profundas do que o normal, e tiveram um efeito estranho sobre ela. De uma só vez, aquele rubor em seu rosto irradiou-se por todo seu corpo, esquentando-a de seu núcleo para fora, soltando-a de uma forma que a fez temer um pouco menos pelo seu futuro.
— Estou sim, – ela se ouviu dizendo.
E isto não seria uma tarefa. Não, neste espaço escuro e silencioso entre eles, ela o queria... Em seu pescoço, não no pulso.
Loucura, uma voz interior a alertou. Inapropriado, e não somente porque maculava o trabalho que fazia aqui nesta casa.
Fechando os olhos, ela odiou o fato de que, por tudo o que era razoável, ela devia se virar e sair daquele quarto naquele momento mesmo. Este macho, este macho resplandecente que era capaz de derreter até mesmo a rigidez de seus membros, não estava em seu futuro. Não mais do que o Primale estava... Ou qualquer outro macho, a propósito.
Seu futuro tinha sido determinado bem antes dela ter vestido sua primeira túnica de Escolhida.
Depois de um longo momento, ele balançou a cabeça. — Não. Mas obrigado.
A rejeição a deixou nauseada. Talvez ele tenha pressentido desejos inadequados de sua parte? E ainda assim... Ela juraria que ele sentia o mesmo. Ele tinha-a parado às escadas naquela vez, e ela tinha tido certeza que ele queria...
Bem, pelo menos ela tinha agido certo ao afastá-lo.
Mas depois que se separaram, de modo desconfortável, o jeito que ele tinha olhado para ela tinha permanecido, e foi quando ela tinha começado a vigiá-lo das sombras.
Mas ele agora não olhava para ela daquele jeito.
E tudo tinha mudado para ele com sua oferta. Por quê?
— É melhor você ir. – Ele acenou para a porta. — Eu só preciso comer alguma coisa, e ficarei bem.
— Eu te ofendi?
— Oh, Deus, não. – Ele fechou os olhos e balançou a cabeça. — Eu só não quero...
Ela não conseguiu captar o resto do que ele disse, porque ele esfregou o rosto e abafou as palavras.
Subitamente, Selena pensou nos livros que tinha lido na biblioteca sagrada do Santuário. Tantos detalhes de vidas vividas aqui embaixo, na Terra. Noites e dias tão ricos e surpreendentes. Histórias tão vívidas, até que pareciam ser tudo o que ela podia alcançar e tocar neste outro plano de existência. Ela tinha se tornado faminta por este outro lado, desenvolvendo um vício pelas suas estórias, em toda sua glória e tristeza: ao contrário de suas irmãs, que só recordavam do que lhes eram mostrados nas vasilhas de premonição, ela tinha sido voraz em seu tempo livre, estudando o mundo moderno, as palavras que usavam, a maneira como as pessoas se conduziam.
Ela sempre soubera que aquilo era o mais próximo que ela teria de ter liberdade de escolha, e qualquer tipo de destino.
E aquilo ainda era verdade, mesmo após a liberdade dada por Phury.
— Maldição, fêmea, não me olhe assim, – Trez grunhiu.
— Assim como?
Ele pareceu ondular os quadris, e quando murmurou algo que ela não conseguiu entender, ela respirou fundo... E, querida Virgem Escriba, o aroma que vinha dele era como ambrosia em seu nariz.
— Selena, você tem que ir, garota. Por favor.
Ele arqueou de volta nos travesseiros, seu magnífico peito se comprimindo, as veias em seu pescoço saltando.
— Por favor.
Ele obviamente estava sentindo dor... E ela, de alguma forma, era a causa.
Ao se levantar, Selena lutou com a túnica para mantê-la no lugar. Com uma reverência incômoda, ela baixou a cabeça. — Mas é claro.
Ela não se lembrava de ter saído do quarto ou fechado a porta, mas deve ter feito: Acabou no corredor, parada no meio do caminho entre a porta trancada que levava aos aposentos da Primeira Família e a escada que a levaria de volta ao andar de baixo...
A próxima coisa que soube, foi estar no Santuário.
Um pouco surpreendente, na verdade. Geralmente, quando terminava seu serviço na Terra, se desmaterializava para o Grande Acampamento do Rehvenge. Ela gostava da biblioteca lá... Os romances e biografias eram envolventes, e de alguma forma, menos intrusivos que os volumes do Santuário.
Mas algo nela tinha-a levado para seu antigo lar.
Que diferença, ela pensou ao olhar em volta. Não mais um bastião de monocromáticos... Agora só as construções, de mármores primitivos, eram brancas. Tudo o mais brilhava com cores, do verde esmeralda da grama ao amarelo e cor de rosa e roxo das tulipas ao azul pálido dos banhos. Mas o formato era o mesmo. O templo particular do Primale continuava próximo a ambos os claustros de escrita e a biblioteca imensa de mármore além da entrada trancada dos aposentos da Virgem Escriba. Não muito distante, os dormitórios onde as Escolhidas faziam tanto seu repouso quanto suas refeições eram adjacentes aos banhos e piscina de reflexão. E então, oposto a tudo isto ficava o vasto tesouro com seus objetos, antiguidades e arcas de pedras preciosas.
Ah, mas a ironia. Agora que havia tantas cores para agradar aos olhos? Tudo estava vazio de vida, as Escolhidas tinham dado no pé e batido suas asas.
Ninguém fazia ideia de onde a Virgem Escriba estava – ninguém se atrevia a perguntar também.
A ausência era estranha e desconcertante. E ainda assim, bem-vinda.
Quando os pés de Selena se puseram a andar, ficou claro que ela tinha algum tipo de destino em mente, mas não sabia conscientemente qual. Pelo menos não era incomum. Ela sempre andava com a cabeça nas nuvens, geralmente por estar pensando sobre o que tinha visto nas vasilhas de premonição, ou lido entre as espinhas daqueles volumes encapados em couro.
Mas agora, ela não estava considerando as vidas dos outros.
Aquele macho de pele escura era... Bem, não parecia haver palavras suficiente para descrevê-lo, apesar de seu extenso vocabulário. E as imagens lembradas de agora a pouco no quarto dele eram como as cores recém-chegadas aqui... Uma revelação de beleza.
Perdida nos pensamentos sobre ele, ela continuou a caminhar, seguindo pelo centro de escrita, descendo o gramado para os dormitórios, e então mais além até se aproximar da fronteira cheia de árvores que, caso alguém entrasse, magicamente era cuspido de volta, no exato local onde tinha entrado.
Não foi até ser tarde demais que ela percebeu onde seus pés a tinham levado.
O cemitério escondido era margeado por todos os lados por um bosque, o cimo propositalmente escondido da vista por um ninho de folhas verdes e grossas como um gramado vertical. A entrada era igualmente obstruída por um arco entremeado com videiras e o caminho de pedregulhos que serpenteava no interior, era tão estreito que mal cabia uma única pessoa.
Selena não tinha intenção de entrar...
Seus pés se rebelaram contra sua própria vontade, movendo-se a frente como se obedecendo a um propósito maior.
Com as árvores que cercavam o local, o ar ali era sempre temperado, e ainda assim, um arrepio a transpassou.
Passando os braços ao redor do corpo, ela odiou tudo naquele lugar... Mas, mais ainda a imobilidade das estátuas: postadas em frontões de pedras brancas, as formas femininas, em várias poses, braços e pernas graciosos em ângulo sobre seus corpos nus. As expressões das estátuas eram serenas, os olhos imóveis encarando o pós-morte no Fade, lábios encurvados em sorrisos idênticos e saudosos.
Ela pensou de novo no macho naquela cama. Tão vivo. Tão vital.
Por que ela tinha vindo ali. Por que, por que, por que... Ao cemitério.
Seus joelhos cederam ao mesmo tempo em que lágrimas brotavam de seu coração, o choro levando-a ao chão macio, os soluços rascantes que faziam sua garganta doer.
Era aos pés de suas irmãs que ela sentia mais intensamente o destino de sua morte precoce.
Durante toda sua vida, ela tinha suposto que todos os ângulos de seu fim próximo já tinha sido explorado.
Estar perto de Trez Latimer lhe mostrou que estava errada sobre isso.
A Galeria de Arte Benloise era localizada no centro de Caldwell, há cerca de dez quarteirões dos arranha-céus e há apenas dois, das margens do Hudson. O prédio simples e despretensioso tinha três andares, o espaço de galeria com pé direito duplo, no primeiro andar, escritórios de funcionários aos fundos, e o escritório de Benloise que parecia uma pista de boliche sob o teto liso.
Ao estacionar seu Range Rover no beco de trás, Assail respirou fundo. Ele não tinha cheirado nenhuma fileira antes de sair de casa, porque queria se manter alerta. Infelizmente, seu corpo formigava pela falta de estímulo, e uma preocupação viciosa sobre o que não tinha feito, estava deixando sua mente confusa.
— Você quer que a gente entre com você? – Ehric perguntou, do banco traseiro.
— Somente um.
Assail saiu e esperou que eles decidissem. Maldição, suas mãos tremiam, e apesar de estar caindo uma nova rodada de neve do céu, ele começava a suar.
Ele devia cheirar? Estava quase inútil assim.
Ehric se juntou a ele, vindo de trás do SUV. — O que te aflige?
— Nada.
Mentira de tantas formas diferentes.
Enquanto se aproximavam da porta de trás, Assail se rendeu. Procurou no bolso do peito de seu casaco Tom Ford, e tirou o vidrinho marrom escuro. Desrosqueou a tampa preta, e encheu a colherzinha interior com uma porção de pó branco.
Sniff.
Repetiu do outro lado, e então deu uma única cafungada dupla que fez tudo ir para o caminho certo.
O fato de ele ter voltado ao “normal” imediatamente, era outro sinal de alerta que escolheu ignorar. Calma e foco não era o que ele devia estar sentindo após duas cheiradas... Mas ele não ia perder tempo analisando aquilo. Algumas pessoas tinham café. Outros tinham outro tipo de estimulante.
Tudo se resumia ao que te movia.
Ao se deparar com uma porta de aço pesada – uma medida de segurança disfarçada de crítica ao industrialismo do mercado de arte – não houve razão alguma para tocar a campainha, e certamente não houve motivo para bater. O monstro de três polegadas de grossura dificilmente seria algo no que alguém gastaria os nós dos dedos.
E ainda assim, ela foi prontamente aberta.
— Assail? O que cê tá fazeno? – o Neandertal do outro lado perguntou.
Um uso tão inspirador da gramática. E o cumprimento também demonstrava que Benloise e seus homens não faziam ideia de quem era o responsável pelos assassinatos no West Point na noite anterior... De outra forma, era de se esperar que este titã de inteligência não estivesse tão relaxado.
Aquelas máscaras pretas tinham sido muito úteis. E desabilitar aquelas câmeras de segurança, uma tática crítica.
Assail sorriu sem expor as presas. — Tenho algo para entregar ao seu chefe.
— Ele tá te esperando?
— Não, ele não está.
— Está bem. Vamos.
— Este é meu sócio, a propósito, – Assail murmurou ao entrar na área de escritórios. — Ehric.
— Sim, eu imaginei. Vamos.
Caminharam pelo espaço de teto alto, os passos no chão de concreto ecoando até o encanamento e fiação expostos acima. Uma espécie de caos organizados. Uma fileira de mesas úteis, armários de arquivos, e peças aleatórias de arte tamanho gigante sufocava o espaço imenso. Nada de funcionários. Nada de telefones tocando. A face legítima do negócio de distribuição de drogas de Benloise estava no encerramento noturno.
Como esperado.
No espaço da galeria propriamente dito, ele lançou um rápido olhar ao redor, enquanto o guarda que os levara até ali desaparecia por uma porta escondida para o segundo andar.
Somente um par de guardas em pé vigiavam o escritório de Benloise.
Assail observou os homens. Seus olhares estavam mais alertas do que o habitual, seus pesos mudando incessantemente de pé, as mãos se moviam ao redor, como se sentissem necessidade constante de certificarem-se de estarem armados.
— Adorável noite, não é? – Assail comentou ao acenar sutilmente ao Ehric.
Quando os guardas congelaram, seu primo aproveitou a deixa para partir para um passeiozinho, o vampiro andando em volta de uma exibição de peças feitas de papel de jornal retalhado, moldadas em formatos fálicos.
— Um pouco frio lá fora, é claro. Mas a neve até que é pitoresca. – Assail sorriu e tirou um charuto cubano. — Posso acendê-lo aqui?
O guarda à direita apontou a um aviso laminado na parede. — Proibido fumar.
— Certamente em meu caso poderia ter uma exceção? – Ele cortou a ponta do charuto e deixou-a cair no chão. — Sim?
Os olhos castanhos turvos do cara baixaram levemente. Voltaram a subir. — Nada de fumar.
— Não há ninguém aqui, além de nós. – Ele tirou o isqueiro. Deu um peteleco na tampa.
— Nada de fumar aqui.
Talvez Benloise os escolhesse especificamente pela falta de vocabulário? — Na escada, então?
O gênio relanceou para o parceiro. Então deu de ombros. — Acho que tudo bem.
Assail sorriu de novo e acionou a chama. — Deixe-me entrar, então.
Tudo aconteceu muito rápido. Aquele que tinha falado virou-se e liberou a tranca para abrir a porta... Ao mesmo tempo em que o outro escolheu se espreguiçar, alongando os braços para além do corpo.
Ehric se materializou diretamente a frente do cara que se espreguiçava, batendo as mãos de ambos os lados de seu rosto atônito e girando o pescoço para trás. Sem querer ser espetaculoso demais, Assail golpeou para frente com uma faca que tinha disfarçadamente tirado do suporte, acertando o guarda que tinha reforçado as regras, diretamente nas entranhas. O próximo movimento foi desaparecer com seu isqueiro e cobrir a boca do cara com sua mão... Abafando os ruídos que ameaçavam delatá-los.
Para finalizar as coisas, retirou a lâmina dele com um puxão e a moveu para cima.
A segunda punhalada pegou entre as costelas, diretamente no coração.
O homem caiu ao chão em um bamboleio frouxo.
— Diga a seu irmão para preparar o Rover, – Assail sussurrou. — E tire isto daqui. Ele vai levar um minuto ou dois para sangrar e a respiração pesada é audível.
Ehric entrou em modo de limpeza, agarrando os grossos tornozelos e puxando o moribundo para trás das vitrines verticais.
Enquanto isto, Assail deslizou para a escada escondida e acendeu o charuto, soprando nuvens de fumaça ao mover a mão do guarda com o pescoço quebrado, de um jeito que a porta ficasse aberta. Ehric se juntou a ele momentos depois, aceitando seu próprio Cubano e acendendo-o também, enquanto deixavam a porta se fechar às suas costas.
O linguista que tinha entrado para avisar Benloise de sua visita, olhou por cima do corrimão. — Que cê tá fazeno?
Então aquela frase podia ser tanto um cumprimento quanto uma inquisição. Ele devia anotar aquilo, Assail pensou.
Ele soprou uma corrente azul e indicou as portas fechadas. — Eles disseram que não podíamos fumar na galeria.
— Não podem fumar aqui também. – O homem olhou por cima dos ombros como se seu nome tivesse sido chamado. — Sim, está bem. – Ele virou de novo. — Ele disse que levará um minuto.
— Acho que vamos com você então.
O guarda-costas não estava no ápice de sua inteligência esta noite, estava? Ao invés de controlar a situação, ele simplesmente deu de ombros e permitiu que o inimigo se aproximasse dele e de seu chefe.
Que competência.
Assail geralmente tomava seu maldito tempo, mas não esta noite. Ele e Ehric subiram os degraus de metal em um passo apressado.
Ele estava a meio caminho do objetivo quando percebeu ter cometido um erro. Provavelmente por causa da coca: Havia câmeras de vídeo por todo o interior da construção... E ele não tinha feito nada sobre elas.
— Mais rápido, – sibilou sob o fôlego para o primo.
Alcançaram o andar superior e Assail fez uma reverência ao guarda. — Onde você quer que eu apague isto?
— Eu não sei porra. Não devia nem ter acendido.
— Oh, bem, então.
Ehric se desmaterializou de novo, aparecendo atrás do guarda. Com um golpe, cobriu aquela boca, e puxou o guarda para trás.
Apresentando a Assail o alvo cativo perfeito.
Com um movimento violento, golpeou aquela garganta com lâmina, fácil e rápido como tossir. Então, foi novamente caso de arrastar para esconder.
Assail entrou pela porta do escritório e abriu-a totalmente. Do outro lado do espaço, Benloise estava sentado sozinho atrás de sua mesa modernista, o brilho de uma luminária ao seu lado destacando sua expressão da escuridão, de forma que ele rivalizava com alguns dos melhores retratos de Goya.
— Eu vou para o norte. – Benloise parou de repente, sua visão se tornando instantaneamente impassível. — Já te ligo de volta.
O distribuidor de drogas de Caldwell desligou o telefone tão rápido que o receptor bateu no suporte. — Eu acho que te disse para esperar, Assail.
— Foi mesmo? – Assail olhou por sobre o ombro. — Talvez você devesse ser mais claro com seus subordinados. Embora só Deus saiba como é difícil achar bons empregados, não é?
O elegante homenzinho se sentou de volta em sua cadeira estilo trono, a expressão imutável. O terno de hoje era de um azul marinho profundo que enfatizava seu bronzeado permanente e olhos escuros, e como sempre, seus cabelos ralos estavam penteados para trás de sua testa. Dava para sentir o cheiro de sua colônia do outro lado do escritório.
— Me desculpe apressá-lo, – o cavalheiro disse naquela pronúncia educada de não-sou-um-traficante-de-drogas dele. — Mas eu tenho outro compromisso.
— Eu certamente não te deteria.
— E qual o seu propósito?
Assail acenou uma vez, e foi só o que Ehric precisou para se materializar atrás daquela enorme mesa e agarrar o distribuidor, arrastando-o pela cabeça, para fora de sua cadeira pesada. Um golpe de Taser mais tarde, e Benloise virou uma marionete frouxa naquele lindo terno azul marinho de excelente caimento.
Quando o primo jogou o homem por sobre o ombro, ao modo dos bombeiros, não houve troca de palavras. Não era necessário... Eles tinham combinado tudo antecipadamente: a invasão, a segurança, a remoção.
É claro, teria sido muito mais satisfatório encenar um confronto de filme de Hollywood onde Assail respondesse a pergunta do distribuidor de drogas quanto ao propósito em detalhes violentos. O mundo real do sequestro e intimidação, no entanto, raramente permitia gratificação imediata.
Não se você quiser chegar ao homem e mantê-lo.
Com Ehric em seus calcanhares, Assail começou a correr, cruzando o chão preto brilhante e descendo as escadas velozmente. Ao chegarem ao espaço da galeria, houve uma pausa momentânea, uma checagem rápida por sons de confronto iminente.
Nenhum. Somente o arfar abafado da respiração mortal do guarda esfaqueado e o cheiro metálico do sangue de seu ferimento na barriga.
Saíram pela porta exclusiva de funcionários. Passaram pelas mesas e pelos móbiles dependurados feitos de partes de carros desmontados.
O Range Rover estava estacionado tão perto da saída traseira, que estava praticamente dentro do prédio, e com movimentos certeiros, Assail abriu a porta traseira e Ehric jogou Benloise lá dentro como uma sacola de roupa suja. Então foi caso de bater, bater, arranhar.
Eles partiram e rodaram no limite de velocidade por um tempo, Assail no banco do carona, Ehric sentado atrás dele com a carga.
Assail verificou o relógio de pulso. O total de tempo gasto foi onze minutos, trinta e dois segundos e eles tinham um bom número de horas até o nascer do sol.
Ehric pegou um jogo de algemas e encaixou-as nos pulsos do negociante de arte. Então foi um caso de bater no filho da puta até ele acordar.
Quando os olhos de Benloise se abriram, ele recuou como se estivesse em um sonho ruim.
Em tons sombrios, Assail finalmente respondeu à pergunta que tinha sido feita. — Você tem algo que é meu. E você vai devolver antes do amanhecer... Ou eu te farei desejar nunca ter nascido.
Uma hora e meia depois do confronto épico com seu marido, Beth estava no banco traseiro do Mercedes S600 da Irmandade com o meio-irmão ao seu lado e Fritz ao volante. O sedan era novinho em folha, o cheiro maravilhoso de couro novo e verniz era como aromaterapia para gente rica.
Que pena que o cheirinho bom não melhorasse em nada o seu humor.
Enquanto olhava pela janela filmada, a descida da montanha cheia de neve até a estrada rural em sua base, parecia em câmera lenta... Embora, talvez, isto fosse porque a trilha sonora da viagem, que deveria ter sido Vivaldi ou Mozart se estivesse em um comercial de carro, era aquela partidinha de tênis tóxica que tinha virado aquela conversinha com Wrath.
Merda. Seu hellren sempre tinha sido autocrático... E de novo, aquilo não tinha nada a ver com seu trabalho: foda-se a coroa, era a personalidade dele. E nos últimos anos, ela tinha observado-o manter aquela atitude diante de diversas situações, fosse com os Irmãos, a glymera, os empregados... Inferno, até com o controle remoto da TV. Mas com ela, ele sempre tinha sido... Bem, não subserviente. Nunca isto. Mas ela sempre tinha tido a impressão, que ele faria tudo por ela. Qualquer coisa que ela quisesse, quando quisesse... E Deus ajudasse ao tolo que ficasse no caminho.
Então sim, ela assumia que a coisa de filho seria o mesmo... Que ele cederia, já que ter um bebê era tão importante para ela.
Ao invés disto? Oposto total.
Um toque suave em seu cotovelo a lembrou de duas coisas: Uma, ela não estava sozinha no vasto banco traseiro do sedan. E dois, ela não era a única pessoa com problemas ali.
— Desculpe, – ela disse ao baixar mãos que não tinha tido consciência de levar ao rosto. — Estou sendo rude, não estou?
Você está bem? John gesticulou levemente iluminado.
— Oh, sim, absolutamente. – Ela deu um tapinha nos ombros pesados dele, sabendo que toda aquela coisa das convulsões tinham de estar pesando sobre ele: a ida à cidade, a ressonância, os resultados que se seguiriam. — Mais importante, como você está?
Eu acho que a Dra. Jane conseguiu arranjar tudo no centro médico.
— Sim. – Beth teve de balançar a cabeça, sua gratidão à Jane e ao parceiro humano dela, Manny Manello, a sufocando. — Aqueles dois são incríveis. Equipamentos de saúde são caros e difíceis de lidar. Como eles conseguiram arranjar tudo, não faço ideia.
Pessoalmente, acho que é uma perda de tempo. Ele virou a cabeça para o outro lado. Digo, vamos lá. Eu tenho tido isto há quanto tempo? Nunca aconteceu nada.
— É mais seguro fazer uma checagem.
O celular de John tocou com um bing! E ele virou a ela para conseguir ver. É Xhex.
— Então ela já chegou lá?
Sim. Ele exalou um fôlego pesado. Esta coisa toda de ir de carro é ridículo. Eu podia chegar lá em um piscar de olhos.
— Sim, mas se você é só um humano normal, você chega de carro. Mais fácil de manter o disfarce, você sabe.
Melhor ainda; podíamos ter pulado toda essa baboseira. Ele riu um pouco. Eu te digo, sinto muito por qualquer um que cruze com Xhex a porta. Ela estava preparada para varrer o complexo hospitalar inteiro... E quando ela fica assim? É melhor não contrariá-la.
O respeito brilhando nos olhos dele foi um golpe. Considerando o ponto onde ela e Wrath estavam.
— Xhex é uma fêmea de sorte, – Beth disse asperamente.
Acho que é o contrário. Acredite-me... Por que está com essa cara?
— Que cara?
Ele pareceu corar. Como se fosse chorar.
Ela afastou a preocupação. — Alergias. Eu sempre fico com olhos lacrimejantes nesta época do ano. Talvez eu compre uns antialérgicos antes de voltarmos.
Em dezembro? Jura?
Aí foi ela que desviou os olhos, Fritz tomou a saída para a rodovia. Diminuiu a velocidade em uma curva. Voltou a acelerar quando chegaram ao outro lado. O Mercedes fluiu facilmente, o assento ultra-acolchoado absorvia os solavancos, o gentil ar morno soprando em seus pés.
Eles deviam ter colocado a etiqueta “Edição Ambiente” no carro.
Mas também, qualquer cantiga de ninar do Benz seria perda de tempo com ela daquele jeito.
Ela tinha a sensação de que não haveria sono para ela até que ela e Wrath resolvessem as coisas, ou...
Outro tapinha em seu braço. Sabe, pode falar comigo sobre qualquer coisa.
Beth afastou o cabelo para trás... Só para voltar a colocá-lo sobre os ombros de novo. Aonde infernos iria com aquilo. Havia tantas escolhas... Mas John já tinha tido o suficiente em sua própria vida recentemente.
Beth. De verdade.
— Que tal resolvermos isso tudo com você e...
Me dará algo mais no que pensar, e eu preciso disto agora. Quando ela não respondeu, ele gesticulou, Vamos, por favor. Estou preocupado com você.
— Você é um amor, sabia?
E você não está falando, está.
Ela ficou quieta por um tempo. Mais a frente uma placa para a Northway apareceu, o “I-87” brilhando com a luz dos faróis. Se eles continuassem em frente, ao invés de pegar a primeira saída para o centro de Caldwell, chegariam a Manhattan em menos de uma hora. Mais ainda ao sul e estariam na Pennsylvania, e então à Maryland e...
— Você já desejou poder fugir tudo, às vezes? – ela se ouviu perguntar.
Antes de conhecer Xhex? Claro. Mas agora...
Deus, pensar que era de Wrath que ela queria se afastar. Nunca tinha imaginado que isto iria acontecer.
O que está acontecendo, Beth?
Houve outro silêncio longo, durante o qual ela soube que ele estava esperando que ela juntasse uns pronomes e verbos para facilitar a conversa.
— Oh, você sabe, só uma crise conjugal.
Ele balançou a cabeça. Já passei por isto. É um saco.
— Verdade.
Finalmente, ele gesticulou, Você pode usar a casa de Darius, sabe. Se precisar de um pouco de espaço. Você a deu para mim, o que foi ótimo... Mas eu sempre penso nela como metade sua também.
Ela imaginou a mansão estilo federal profundamente no território humano, e seu peito ardeu. — Obrigada, mas eu ficarei bem.
E mesmo que não ficasse, o último lugar onde gostaria de estar era onde ela e Wrath tinham se apaixonado.
Às vezes, as boas lembranças eram piores de se aguentar do que as más.
Você pode ao menos lançar um assunto? Minha cabeça está a mil em todos os tipos de direção.
Eles ainda teriam mais quinze, vinte minutos para chegar ao complexo médico St. Francis. Tempo demais para ficar sentado num silêncio desconfortável. E ainda assim, parecia violação da privacidade dela e de Wrath falar sobre a coisa do bebê... Ou talvez fosse apenas uma desculpa para esconder o fato de que ela não queria explodir em lágrimas.
— Você se lembra de alguma coisa sobre suas convulsões. Digo, quando você está tendo elas?
Eu achei que estávamos falando de você.
— Estamos. – Quando ele relanceou para ela, ela encarou-o nos olhos. — Você estava me dizendo algo. No meio de sua convulsão, você olhou para mim... E estava murmurando alguma coisa. Consegue se lembrar o que era?
Ele franziu o cenho como se estivesse checando os arquivos de memória, o olhar desfocado. Eu realmente não consigo... Eu só... Eu cheguei no topo das escadas, olhei para o escritório de Wrath, vi você... E então não foi até Xhex me levar do corredor ao nosso quarto que minhas luzes realmente voltaram.
— Eles disseram que foi no Idioma Antigo.
John sacudiu a cabeça. Impossível. Digo, eu consigo ler e entender um pouquinho se alguém falar comigo. Mas não sei falar.
Ela inspecionou as pontas do cabelo, mesmo que soubesse que não havia pontas duplas; um dos doggen os tinha aparado na semana anterior.
— Bem, há algo que queira me dizer, de alguma forma? – Ela olhou em volta. — Pode ser honesto comigo sobre qualquer coisa. Wrath tem, tipo, uma dúzia de Irmãos. Eu só tenho você.
John franziu o cenho de novo. Não, eu...
Um tremor súbito tomou as mãos dele, cortando o que ele gesticulava – e então ele caiu contra o encosto do carro, com o corpo rígido.
— John! – Beth estendeu a mão para o irmão. — John... Oh, meu Deus...
Quando os olhos dele rolaram, a parte branca ficou a mostra como se estivesse morrendo. — John... Volte...!
Inclinando-se para a frente, ela bateu na partição do motorista. — Fritz!
Quando o mordomo baixou o vidro escuro, ela gritou, — Acelera... Ele está tendo outra convulsão!
Os olhos chocados de Fritz voaram para o retrovisor. — Sim, senhora. Agora mesmo!
O velho mordomo acelerou, e quando o Mercedes torpedeou à rampa de entrada da Northway, ela tentou ajudar John. Mas a convulsão tinha tomado-o completamente, as costas duras e inflexíveis como uma vareta, as mãos curvadas no peito como garras de Drácula.
— John, – ela implorou em uma voz partida. — Fique comigo, John...
— Diga que ele está voltando de novo.
Ao falar, Assail olhou pelo para brisa do Rover, o punho de uma adaga seguramente presa em sua mão direita. Eles estavam afundados para além das fronteiras florestais do código postal de Caldwell, onde não havia luzes de habitações piscando pelas árvores alinhadas, nenhum outro veículo vindo ou indo ao longo da estrada rural coberta de gelo.
Benloise tinha voltado brevemente à consciência, somente para... Desmaiar... De novo. O que bem podia ser mentira.
— Ainda não, – Ehric murmurou. — Mas ele está vivo.
Não por muito tempo.
— E nu, – o lutador completou.
Assail se afastou quando o primo soltou a faca de caça. Nu, de fato. O terno elegante de Benloise tinha sido despedaçado, o fino tecido azul marinho jazia em tiras, a seda da roupa de baixo, inútil até para pano de chão. Todas as joias foram removidas, do relógio de diamante Chopard ao anel de sinete de ouro, da pulseira à corrente de ouro.
O botim fora jogado em um suporte de copos, junto com o celular do qual tinha sido removida a bateria, de forma que nenhum sinal de GPS pudesse ser rastreado. A roupa tinha sido deixada onde caíram.
Talvez ele estivesse mesmo inconsciente. Difícil imaginar o homem não lutar contra tudo aquilo.
— Quanto tempo mais? – Assail exigiu.
— A esta altura já deve ser suficiente, – Ehric disse.
O irmão do macho pisou no freio, engatou ponto morto para estacionar, e desligou o motor. Imediatamente, Assail saiu, olhou em volta e reconfirmou seu isolamento. Não havia luz alguma piscando. Nenhum som de tráfego. Ninguém, em lugar algum.
— Apague os faróis.
Como a neve tinha parado de cair e a lua tinha aparecido por entre nuvens, havia iluminação mais do que suficiente vinda por entre os pinheiros.
Assail guardou sua adaga e estalou os dedos. — Pegue-o e tire-o do carro.
Ehric manuseou o peso morto com admirável facilidade, uma vez que Benloise estava nu e desmaiado, um verdadeiro mala sem alça, por assim dizer.
O distribuidor de drogas recobrou a consciência ao ser colocado contra os contornos gélidos do Rover, e o movimento que anunciou seu despertar foi carregado através de todos os seus membros, seus braços e pernas balançaram como os de uma marionete.
Os primos seguraram o homem contra o SUV... E o grande Ricardo Benloise não mais parecia poderoso: Ele sempre parecia em posição de comando em seus elegantes ternos, mas sem aquelas jaquetas e calças cuidadosamente construídas, ele era somente um amontoado de cavidades encolhidas, as costelas saltavam em relevo acentuado, a barriga saliente sobre os quadris ossudos, joelhos mais largos que coxas e panturrilhas.
— Não vamos mais perder tempo, – Assail disse em voz baixa. — Me diga onde ela está.
Não houve resposta. O corpo de Benloise podia estar fraco, mas a cabeça e os olhos estavam alertas como sempre: embora o homem estivesse em uma desvantagem mortal, seu orgulho não se curvava.
Isso não ia durar.
Assail atingiu o rosto do homem com as costas da mão. — Onde ela está?
A cabela de Benloise caiu para o lado quando o som do tapa soou, sangue espirrou na jaqueta de Ehric.
— Onde ela está! – Assail bateu no distribuidor de novo, os nós dos dedos atingindo forte o bastante para latejar. — Onde ela está?
Os primos prenderam o prisioneiro mais alto quando ele começou a cair.
Assail agarrou a garganta do cara e ajudou no esforço, até os pés de Benloise pairarem a quinze centímetros acima da neve. — Eu vou matá-lo. Aqui e agora. Se não me disser onde ela está.
Os olhos de Benloise rolaram, mas eventualmente ele encontrou os de Assail. E ainda assim, não disse absolutamente nada.
Assail apertou mais, cortando a passagem de ar. — Marisol. Me diz onde a levou.
A boca de Benloise se abriu como se lutasse para buscar oxigênio, os braços finos lutaram contra o que os mantinham presos, as pernas chutando, de forma que os calcanhares batiam no painel do carro.
— Marisol. Onde ela está.
Aqueles olhos não deixaram os de Assail... A ponto de que, sob outras circunstâncias, fosse de se respeitar a obstinação do cara. Agora era um para-raios de frustração.
— Onde ela está!
Com a mão livre, Assail buscou entre as pernas do homem e girou as bolas encolhidas contra o torso.
O grito que se ergueu foi retido na garganta, Assail silenciou o som. E ele queria fazer tanta coisa mais, mas não podia matar o bastardo. Não ainda. Ordenou que sua mão liberasse um pouco a passagem de ar, mas levou um momento até os dedos obedecerem.
Benloise tossiu e se afogou, o sangue de sua cuspida escorrendo em seu peito nu.
— Onde ela está!
Nenhuma palavra como resposta.
O bastardo não ia quebrar. Não deste jeito, de maneira nenhuma... E enquanto a palma de Assail coçava por sua adaga, ele não confiou em si mesmo com uma lâmina tão afiada em mãos.
Esquartejar o filho da puta não era o que mais queria.
Assail se aproximou. — Eu quero que você preste atenção agora. Está comigo?
A cabeça de Benloise rolou, mas os olhos continuaram abertos... Então Assail contornou a traseira do SUV. Abriu o porta malas e revelou o homem preso e amordaçado que tinha sequestrado antes de irem à galeria.
O irmão de Benloise não tinha oposto nenhuma resistência. Mas também, Ehric tinha se colocado atrás de Eduardo em sua casa e tinha aplicado uma seringa cheia de heroína na veia grossa de seu pescoço. O homem também estava nu, e sua melhor forma física, sugeria que ele era mais jovem e mais vaidoso... Tinha um bronzeamento artificial e algum condicionamento físico.
Assail o jogou aos pés de Benloise.
Ele não esperava que surpresa virasse o jogo. Mas o que viria em seguida sim.
Enquanto o Benloise mais velho assistia, Assail rolou o homem inconsciente de costas, removeu a mordaça, e tirou uma segunda seringa. Seu conteúdo, Naloxone, o antídoto usado comumente em salas de emergência, para reverter overdose de drogas, era um líquido claro... E quando enfiou a agulha na veia do braço de Eduardo, não demorou muito até a luz piloto do cara voltar a se acender.
Eduardo acordou depressa, o torso pulando da neve.
Assail pegou a mandíbula do homem em um aperto forte. Virando a cabeça, grunhiu, — Diga olá ao seu irmão... Vamos ser educados.
De olhos arregalados, Eduardo imediatamente disparou a falar em espanhol, e Assail cortou-lhe este impulso apontando a adaga em seu rosto.
— Seu irmão tem um lugar onde leva pessoas para matar. Onde fica?
— Eu não sei o que você está...
Assail montou no homem e agarrou o cabelo no alto da cabeça... Como Eduardo usava um grande quantidade de produtos, estava uma gosma melequenta, mas ele conseguiu um agarre firme. Colocou a lâmina sob o queixo do homem, certificou-se de falar de forma baixa e claramente.
— Onde ele leva pessoas. Eu sei que há um lugar, reservado e seguro. Não é em sua casa. Não é no centro.
O Benloise mais velho finalmente falou de forma rápida, as palavras para seu irmão guturais e pontuadas de respiração entrecortada. Em resposta, os olhos de Eduardo se arregalaram ainda mais, e não era preciso saber espanhol para entender: Diga qualquer coisa e eu mesmo te mato.
Assail colocou seu corpo entre os dois e ficou olho a olho com Eduardo. — Eu vou te machucar agora.
Escolha um lugar, qualquer lugar.
Assail decidiu começar com os ombros. Com um golpe rápido, enfiou a lâmina profundamente na carne abaixo da clavícula... Doloroso, mas nem de longe fatal.
Quando seus ouvidos zumbiram devido ao grito, ele manteve a lâmina no lugar. E continuou a segurar o cabo da faca.
— Onde é? – Quando ele teve uma resposta imediata, torceu a faca. — Onde ele os leva?
Mais torções. Mais gritos.
Foi quando Ricardo falou alto de novo, a voz atravessando o drama para reforçar sua mensagem. Mas a agonia ia vencer... Assail se certificaria disto.
Recuou e deu ao querido garoto Eddie um momento para descansar e se recuperar, observou o cabo da adaga se mover para cima e para baixo, no compasso de sua respiração entrecortada.
Oh, como os poderosos decaíram. Eduardo sempre tinha sido o gerente financeiro elegantemente vestido. Mas ali estava ele, o cabelo uma bagunça, olhos vermelhos, neve suja cobrindo toda sua pele nua.
Assail observou-o com a compaixão que alguém teria por um atropelamento de estrada. — Não lhe dê ouvidos ou te matarei lentamente. A única maneira de se salvar, é me dizendo o que preciso saber.
Ricardo latiu algo acentuadamente.
— Não lhe dê ouvidos. – Assail manteve seu olhar travado no de Eduardo. — Fale comigo. Salve-se.
Eduardo continuou tentando enxergar o irmão, mas Assail mudou de posição com aquele olhar de pânico, até Eduardo gemer, seus olhos escondidos entre as rugas de seu rosto.
Assail lhe deu mais um tempo, até que perdeu a paciência. Buscando pela adaga, ele anunciou, — Eu vou te machucar de novo.
— Fica no norte! – Eduardo gritou. — Na Northway! Norte! Do lado sudeste da Montanha Iroquois! A estrada para a propriedade parte da base! Dirija por oitocentos metros e verá a entrada!
Contra o SUV, Ricardo explodiu, a fúria evidente em cada sílaba, mesmo que os detalhes das frases se perdessem na tradução.
Assail respirou fundo pelo nariz. Não havia cheiro de mentira vindo de Eduardo. Sangue fresco, é claro, e o cheiro acre do terror. Também uma vergonha um pouco tocante, que relembrava a Assail a raiz de vegetais frescos recém colhidos.
O homem tinha falado a verdade, pelo que percebia.
— Coloque Ricardo de volta no carro, – Assail disse rispidamente.
— Espere, – ele gritou, quando os primos obedeceram. — Vire-o de costas.
Assail contornou até se colocar por trás de Eduardo, e ergueu o torso molenga do homem. Encarando pela distância entre Ricardo e ele mesmo, disse sombriamente. — Você tirou de mim. Eu tiro de você.
Libertou a adaga da carne do ombro, puxou a lâmina diretamente pela garganta de Eduardo.
Ricardo tentou desviar os olhos, seu torso se debateu entre os primos.
— Isto é só o começo, Ricardo. – Asail tirou o homem sangrento e resfolegante do caminho, como o lixo que era. — Nós estamos apenas começando agora.
Ele se aproximou de Benloise. — Eu acredito, no entanto, que é importante para você ter uma última lembrança da fraqueza de seu irmão. Só pense, se ele fosse tão forte quanto você, poderia ter morrido de forma honrosa. Ai, não era o destino dele.
Assail entrou no assento do passageiro da frente. Retirou seu vidrinho de coca.
Ao inalar duas medidas cheias em cada narina, os primos colocaram Ricardo no compartimento traseiro, e o ruído de fita isolante sendo usada, demonstrava o modo como estavam cuidando da segurança.
Assail esticou a mão, acendeu uma luz do teto e desdobrou um mapa do estado de Nova York marcado com três As vermelhos... E não fazia ideia de onde deveria olhar.
Ehric se pôs atrás do volante e colocou o iPhone na cara de Assail. — é uma viagem de cinco horas.
A cabeça de Assail começou a zumbir. Mesmo com Benloise sob sua custódia, ele estava aterrorizado sobre o que estava sendo feito a Marisol. Cinco horas era muito. Demais, à luz das últimas vinte quatro que já fazia que ela tinha sido levada.
Maldição, porque Benloise tinha de ser tão estrategista?
— Então temos de nos por a caminho, – Assail murmurou entre dentes.
O Commodore era discutivelmente o lugar para se viver no centro de Caldwell. Erguendo-se mais de vinte andares de altura, o prédio de apartamentos dava vista ao Rio Hudson e era formado de blocos largos de apartamentos com abundância de metros quadrados e obras-de-arte como cozinhas e banheiros. Janelas de vidros do chão ao teto que forneciam vista em todas as quatro direções eram tanto uma parte da decoração, quanto a que qualquer um dos donos poderia distribuir pelos espaços, e havia rumores sobre celebridades, que procurando por um descanso de Manhattan, usavam-no como estadia ocasional.
Falando disto, havia até mesmo uma pista de pouso de helicóptero no telhado.
iAm saltou no décimo oitavo andar e dobrou à direita. Cerca de trinta metros adiante, parou em frente a uma porta marcada 18A e acionou a fechadura de cobre que seu irmão tinha insistido em instalar cinco anos atrás, quando se mudaram para cá.
Ao caminhar pelo apartamento de cem metros quadrados, seus Merrells não fizeram muito barulho, mesmo que sobre o chão polido, não houvesse tapetes e os móveis modernistas fossem mínimos, não só em termos de estilo, mas em quantidade.
Maldição... Aquela vista continuava incrível. Especialmente assim, de noite e com as luzes internas apagadas: A cidade ostentava sua face noturna, tudo brilhava, da colcha de retalhos das luzes dos arranha-céus, aos arcos duplos das pontes gêmeas, às tiras de faróis traseiros vermelhos e dianteiros brancos, que se moviam próximas à costa lá embaixo.
Tão fácil esquecer que o coração de Caldie era um local sujo, com tanta pobreza quanto riqueza... Se não mais: aqui em cima, isolado da realidade, com o gemido das sirenes e o cheiro do lixo tão distantes, era tentador acreditar na versão higienizada de Nova York.
Mas ele não era bobo.
Do outro lado, havia portas de vidro deslizantes que levavam para fora do terraço, e após acender as luzes, ele atravessou e abriu uma delas, um vento gelado invadiu o ambiente e agitou o ar saturado do interior. Seu visitante chegaria antes de uma hora, mas ele queria se certificar que o local parecesse habitado. Voltando à cozinha aberta, fez uma bagunça discreta ao colocar um par de pratos já limpos na prateleira abaixo da pia e bagunçando o balcão com... Vamos ver... Uma colher ou duas. Um pacote meio comido de batatinhas Cape Cod, já meio murchas. Um exemplar da revista GQ que ele tinha folheado e tinha largado aberta em uma página com uma jaqueta que Trez iria gostar.
Daí ele começou a fazer o café.
Ele e o irmão não tinham intenção de voltar ali, mas ele tinha de manter o local, pois era importante que os s'Hisbe não fizessem ideia de que eles tinham se mudado. Uma equipe de busca em Caldwell não ia ser uma adição interessante. Especialmente se, de alguma forma culminasse em uma visitinha à mansão da Irmandade...
iAm virou para a porta de vidro. Do lado de fora no terraço, uma figura se materializou da noite, negra como um espectro, sua vestimenta golpeando ao vento contra o lado liso do prédio.
— Bem-vindo, – iAm disse ao sumo sacerdote, em tom neutro. — Você está adiantado.
Ok, qual dos dois tinha perdido a noção do tempo?
A figura se aproximou do umbral da porta, caminhando de maneira tão calma e controlada, que era de se jurar que estava em uma esteira rolante.
— Estou convidado a entrar? – veio a voz seca.
O coração de iAm falhou uma batida.
Porra, aquele não era o sumo sacerdote.
Com aquele manto que o cobria inteiro, da cabeça aos pés, ele tinha assumido que sabia quem tinha vindo a ele.
Isto era pior. Muito pior.
O capuz do executor devia lhe ter dado a dica.
— Bem, estou, iAm? – Dava praticamente para ouvir o sorriso nojento. — Que trocadilho[13].
— Sim, entre, – iAm disse, sutilmente enfiando uma mão sob a jaqueta. Com um gesto, soltou a tira do coldre onde sua Glock estava aninhada. — Nunca esperei tê-lo em minha casa.
— Interessante. Eu não achei que você fosse tão ingênuo. – O macho teve de se abaixar para entrar. — E a casa também não é de seu irmão? – Cristo, tudo o que iAm conseguia pensar era no Grim Reaper[14].
Mas também, s'Ex, como o executor da Rainha dos Sombras tinha matado coisas suficientes para encher um cemitério ou dois. E ele tinha sido construído para trazer a morte. O macho tinha dois metros e treze de altura e mais de cento e trinta quilos... Fácil, fácil. E aquela voz, vinda sob o capuz? Pura maldade.
— Eu fiquei sabendo que você nunca deixou AnsLai entrar, – ele disse ao fechar a porta. Estou... Emocionado.
— Não fique. Na verdade, o sumo sacerdote pensou que este lugar estava contaminado demais por nossos contatos com humanos. Café?
— Como se fosse um encontro? – Ao contrário do sumo sacerdote, s'Ex não tinha nenhuma paciência para regras de corte ou a formalidade observada entre membros do s'Hisbe. De novo, a rainha suprema não o mantinha ao seu lado devido ao seu charme. — E sim, porque não. Eu gosto da ideia de você me servindo.
iAm cerrou os dentes, mas não ia se permitir demonstrar irritação. Os s'Hisbe tinham aumentado as apostas em pelo menos cem vezes ao enviar este cara ao invés do sumo sacerdote, então as coisas já estavam começando com o pé errado.
Contornou o balcão de granito, pegou duas canecas do armário envidraçado e esperou que o bastardo não pedisse leite junto com o café. Enquanto esperava que a cafeteira borbulhasse e chiasse ao final de seu ciclo, a última coisa que esperava, era que s'Ex se aproximasse e se sentasse em um banco... Normalmente o executor teria vasculhado o local.
Infelizmente, isto provavelmente significava que o cara já o tinha feito.
— Então, você e seu irmão andaram ocupados ultimamente. – s'Ex colocou seus antebraços enormes no balcão e se inclinou. — Bem, estiveram?
— Se importa de tirar este manto. – iAm olhou fixamente para o tecido que cobria aquele rosto. — Eu quero ver seus olhos.
— Que romântico.
— Nem um pouco.
— Você sabe, não tem nenhum direito de exigir nada.
— Você odeia vestir este maldito capuz. Não negue.
— Ao contrário de algumas pessoas, o dever não enche meu saco.
— Baboseira.
A pausa curta lhe mostrou que atingira algum ponto certo. Mas não durou. — O café está pronto. Traga o meu, por favor.
iAm se virou e se afastou, de forma que sua mandíbula cerrada não ficasse evidente. — Açúcar?
— Eu sou doce o suficiente.
É. Certo.
iAm trouxe as duas canecas. — Se quiser um canudo para isto, não temos nenhum. Desculpe.
s'Ex revelou-se com um rápido e objetivo gesto da cabeça – apesar do fato daquela coisa provavelmente pesar uns treze quilos.
E sim, por baixo ele era exatamente como iAm se lembrava. Pele escura, muito escura. Olhos pretos inteligentes. Cabeça raspada com os padrões cerimoniais. Tatuagens brancas garganta abaixo que continuavam em cada centímetro de pele.
E a propósito, aquelas tatuagens não eram feitas de tinta. Era veneno, injetado na pele em um padrão tal, que quando a derme morria, ela... Descoloria. A maioria dos machos, para provar sua masculinidade, tinham uma pequena em seu braço... E ficavam doentes por dias. Ninguém, mas ninguém tinha-as como s'Ex.
O bastardo era um monstro. Especialmente quando sorria... Por alguma razão, provavelmente o excesso de testosterona, suas presas estavam sempre alongadas.
— Satisfeito agora? – ele falou.
— Não a palavra que eu usaria. – iAm tomou um gole da borda de sua caneca. — Então, a que devo a honra.
Ou o pé no saco, como era o caso.
s'Ex sorriu um pouco... O que era pior do que seu riso aberto. — Então você e seu irmão estiveram ocupados.
— Você já disse isso.
— Eu visitei vocês aqui, algumas vezes. Nada especial... Só uma voadinha ou outra. Os dois não têm passado muito tempo por aqui, ultimamente. Ocupados com as fêmeas?
— Trabalho.
— Dia e noite, então. Uau... Preocupados com dinheiro? Precisam de um empréstimo?
— Não de você. Não aguentaria as taxas.
— Está certo. – Olhos pretos se fixaram nos seus. — Então, onde vocês estão.
— Por aí. Aqui agora, obviamente.
— Eu não acredito que continuem morando aqui.
— Então por que você está sentado sobre algo que me pertence.
— Eu aposto que se for no seu quarto, não encontrarei roupa alguma.
— E eu suponho que invasão e arrombamento faça parte de suas visitas... A menos que você tenha mudado seu estilo.
s'Ex se recostou e cruzou os braços por baixo do manto. — Agora, quão rude seria, se eu fizesse algo como entrar e farejar por aqui. Isso seria impensável.
— Está dizendo que não o fez. – iAm revirou os olhos. — Sério.
— Não. Ou eu estaria mentindo. Tipo você, quando diz que continua morando aqui.
— Talvez você tenha vindo somente nos momentos em que estamos fora.
— Ok, vejamos esta noite. Por que está vestindo casaco? Porque as colheres no balcão limpo? Oh, e a revista? Do mês passado. E ainda assim, está aberta como se você estivesse “lendo”. Ele até fez as aspas no ar. — E um saco de salgadinhos aberto não se passa por comida.
Maldição. — A GQ não é considerada contrabando no Território?
s'Ex sorriu de novo. — Vossa Alteza Real gosta de me manter feliz. O que posso dizer.
Ou isso ou a própria rainha tinha medo do cara.
iAm baixou as pálpebras a um entrecerrar. — Fale comigo.
— Eu pensei que estava. Ou estávamos usando linguagem de sinais até agora e eu não percebi?
Só que o executor ficou sério, franzindo o cenho sobre sua caneca, tenso.
E quanto mais o silêncio durava, mais estranhas as coisas ficavam. s'Ex não perdia tempo, e ele não tinha paciência... Geralmente, o fodido era tão decidido quanto uma serra elétrica.
iAm esperou por dois motivos: um, que outra chance ele teria. E dois, ele estava acostumado.
Graças à merda do Trez, ele era graduado em — nada que eu possa fazer.
Os olhos de s'Ex voltaram a se fixar nele. — O sumo sacerdote está vindo para te dizer que o tempo de Trez está se esgotando. A rainha quer o que lhe prometeram, e a filha está pronta para recebê-lo. Qualquer atraso terá repercussões desastrosas. Então, chega de mentiras, se você tiver algum jeito de colocar seu irmão na linha, faça. Agora.
— Ela vai fazer você matar ele, não vai, – iAm disse sombriamente.
O enforcer balançou a cabeça. — Ainda não. Eu devo começar pelos seus pais. Sua mãe primeiro. Então seu pai. E não vai ser bonito. – O olhar do macho não desviou. — Eu fui ordenado a amarrá-la e raspar a cabeça dela primeiro... Depois estuprá-la e cortá-la de modo que sangre vagarosamente. Seu pai vai assistir a tudo, e então o que farei com ele será ainda pior. Se você os honra de qualquer maneira, converse com seu irmão. Leve-o ao Território. Faça-o fazer a coisa certa. Ela não vai parar até tê-lo... E só para ficar tudo claro, eu não hesitarei em fazer meu trabalho.
iAm apoiou as mãos no balcão de granito e se apoiou nos braços. A situação com o pai deles era... Complicada, para usar um termo do Facebook. Mas isso não significava que ele queria que eles morressem ou fossem profanados.
Quando s'Ex se levantou e atirou seu capuz de executor nos ombros, iAm se ouviu dizer, — Você nem tocou no café.
— Você pode ter envenenado. – o executor deu de ombros. — Eu não arrisco com ninguém... Desculpe.
— Esperto. – iAm mediu o macho. — Mas então, você é um verdadeiro profissional.
— E tenho minha reputação por um bom motivo, iAm.
— Eu sei. – Ele praguejou sob o fôlego. — Eu estou bem consciente de seu trabalho.
— Não me pressione. Eu não tive pais, e eu queria ter tido. Não estou ansioso para fazer isto.
— Maldição, não cabe a mim. – iAm curvou ambos os punhos. — E eu não sei se Trez vai se importar, para ser honesto. Ele os odeia.
s'Ex sacudiu a cabeça. — Essas não são boas notícias. Para nenhum dos dois.
— Por que infernos ela não escolhe outro?
— Não é uma pergunta que eu faria, se fosse você. – s'Ex olhou em volta pelo apartamento. — Bonito lugar, a propósito. Bem do meu estilo... E eu aproveitei a vista quando estive aqui.
iAm cerrou os olhos ante o tom estranho naquela voz profunda. Filho da puta... — Você entende, não entende.
— Entendo o que? Como alguém desejaria fugir do Território. Ser livre para viver a própria vida. – Subitamente, o rosto de s'Ex se tornou uma máscara. — Não sei do que está falando.
O executor se virou e caminhou para a porta de correr. Ao se mover, seu manto flutuou atrás dele, seu corpo se moveu com a graça de um predador.
— s'Ex,
O macho olhou por sobre o ombro. — Sim?
iAm pegou a caneca de café que tinha preparado para o convidado. Levou-a aos lábios e tomou um longo gole, terminando a coisa de uma só vez até senti-la queimar o caminho abaixo de sua entranha.
Ao colocar a caneca vazia sobre o balcão, o executor fez uma reverência. — Você tem mais honra do que a maioria, iAm. E foi por isto que eu vim até você. Eu, na verdade, gosto de você... Não que isto vá ajudá-lo muito, depois desta noite.
— Muito obrigado.
O executor olhou em volta, como se estivesse armazenando memórias para mais tarde. — De volta ao s'Hisbe, farei o que puder para atrasar as coisas, mas isto é com você. Pode ser o pescoço de seu irmão na guilhotina... Mas você é o cara que vai ter de levá-lo aonde ele precisa ir.
— Ele não está limpo, você sabe.
— Como assim?
— Ele tem trepado com humanas. Muitas delas.
s'Ex jogou a cabeça para trás e gargalhou. — Eu devia mesmo malditamente esperar por isto. Se eu estivesse do outro lado, eu também faria.
— Aposto que sua rainha não pensa o mesmo.
— Ela é sua rainha também... E eu não apostaria nisto se fosse você.— s'Ex apontou seu indicador pela distância. — Ela o colocará num ritual de purificação, e se ele sobreviver... O que não é uma conclusão precipitada... Ele jamais será o mesmo. Você precisa calar a sua boca quanto à vida amorosa dele, acredite. Oh, e AnsLai não sabe que eu vim. Vamos manter isso como nosso segredinho, está bem.
Depois do executor sair e desaparecer no ar, iAm se adiantou e fechou a porta. Então ele prosseguiu diretamente ao bar do outro lado do espaço aberto e serviu-se de um Bourbon.
Aparentemente o passe para fora da prisão de Trez tinha um buraco: seu vício sexual não ia lhe garantir a saída que ele tinha esperado.
Ótimo.
E se s'Ex não tivesse aparecido aqui e lhe dito para manter em segredo toda aquela estória de sexo? Só Deus sabia o que poderia acontecer.
Ele não tinha nem mesmo ouvido sobre a purificação, mas podia adivinhar.
Uma coisa era certa: ele nunca tinha pensado, nem em um milhão de anos, que um dia deveria algo àquele executor de coração frio. Mas também, parecia que Trez não era o único se revoltando ante as restrições do Território.
A questão era... E agora. E ele tinha cerca de dez minutos para descobrir a merda, antes que o sumo sacerdote chegasse.
— Eu não esperava vê-lo de novo. Disseram que você tinha saído da cidade.
Enquanto o encarregado pelo departamento de neurologia do St. Francis se inclinava para a tela do computador, o cara parecia falar sozinho. E quando Manny Manello não lhe respondeu, ele não pareceu se importar.
Beth se aproximou um pouquinho dar uma olhada... Embora, vamos lá, não era como se as múltiplas imagens do cérebro de seu irmão naquele monitor fosse significar alguma coisa para ela. Ainda bem que aquele cara de jaleco branco com credenciais impressionantes via as coisas de um ângulo diferente.
A antessala semi-obscurecida onde todos estavam apertados, era como algo saído de um episódio de Star Trek, com equipamentos de alta tecnologia zumbindo e piscando e a enorme máquina de ressonância na parte de trás, mantida separada por uma parede de vidro. E na verdade, o neurologista, sentado na frente daquela bancada, era um pouco como o Tenente Sulu enquanto encarava as telas de computador, os teclados, um telefone ou dois e outro notebook.
— Quanto tempo durou a convulsão mais recente? – o neurologista perguntou distraidamente.
— Cerca de quinze minutos, – Beth respondeu, quando John olhou para ela.
— Sentiu algum entorpecimento ou formigamento?
Quando John balançou a cabeça, Beth disse, — Não. Nada.
John tinha saído da máquina há cerca de dez minutos, e tinha trocado o pijama do hospital por suas roupas relativamente inócuas: jeans e camiseta do Giants. O acesso intravenoso que tinha bombeado o contraste em seu corpo já tinha sido retirado de seu braço, um pequeno Band-Aid branco no lugar de sua agulha, e suas botas estavam novamente calçadas.
Ele tinha deixado as armas em casa.
Xhex, no entanto, estava totalmente armada e próxima a ele, com um boné preto da Nike sombreando seus olhos. Payne era o outro reforço, a guerreira vestida de preto e usando o mesmo tipo de casaco solto que usava a esposa de John.
Beth deu uma arrumada em seu próprio boné Bos Sox. Já fazia um tempo desde que ninguém a via no mundo humano, e ela não conhecia ninguém em particular naquele hospital... Mas não havia motivo para adicionar mais uma camada de complicação a esta viagem.
Oh, Deus, permita que esteja tudo bem, ela pensou, enquanto o doutor rolava as imagens na tela novamente.
Bem ao seu lado, não que o homem a visse, a doutora Jane também olhava por sobre os ombros dele, para as imagens em preto e branco... Em modo fantasma total.
Quanto mais olhos, melhor.
— O que você vê? – Manny perguntou.
Para seu crédito, o neurologista não desgrudou os olhos da tela até analisar tudo – e se dirigiu a John quando finalmente encarou a multidão.
— Não há nada anormal que eu possa ver.
Todos suspiraram aliviados. E a primeira coisa que John fez foi agarrar o corpo firme de Xhex e puxá-la para perto, o mundo obviamente desaparecendo para os dois.
Ao observá-los, Beth soube que devia estar focada nas boas notícias. Em vez disto, tudo o que podia pensar era como ela não estava somente sozinha, enquanto esperava ouvir se o irmão tinha algum tipo de embolismo ou tumor, ou sabe deus lá o que mais de horror em seu cérebro... Mas, que também havia um imenso e metafórico elefante rosa entre ela e seu marido, que tão cedo, não iria para lugar algum.
Rosa. Como da cor de bebezinhas.
Ou talvez não. Talvez fosse azul-bebê.
— Toda a estrutura cerebral está normal...
O médico lançou uma porção de jargão técnico médico que, felizmente significava algo para Manny, já que ele anuía. Mas os pombinhos ignoravam tudo aquilo, e sua auto-absorção era realmente bonita de se ver.
Pelo menos até que lágrimas de alívio se misturaram com lágrimas de tristeza, e tudo ficou embaçado para Beth.
Hora de pedir licença.
Murmurando algo sobre fazer um telefonema, ela foi para o corredor. A instalação de exames por imagens ficava isolada no porão, em um dos muitos prédios do St. Francis, e do lado de fora, havia uma porção de nada acontecendo: não havia pacientes sendo transportados, nem carrinhos de suprimentos sendo empurrados, nem equipes correndo em volta, em sapatos de solado de borracha.
Colocou a cabeça entre as mãos, encostou a bunda contra a parede e deslizou para o chão. Graças a Deus John parecia estar bem. Então, pelo menos, uma parte de sua família estava bem...
Eu preciso que você ouça uma coisa, e saiba que estou jurando por Deus. Eu não vou servi-la em sua necessidade. Nunca...
Merda, ela pensou ao esfregar os olhos. Agora tinha de voltar para casa e resolver aquilo.
Um pouquinho mais tarde, o grupo emergiu do comando central, e ela levantou, tentando não parecer nada além de aliviada pelos resultados dos exames de John.
O neurologista olhava para um cheque em suas mãos e balançou a cabeça. — Jesus Cristo, Manello. Você ganhou na loteria?
Mais ou menos. Graças aos investimentos de Darius, uma doação de cinquenta mil dólares para o departamento de neurologia, não era grande coisa.
E pensar que todo o ato médico que o cara fez, tinha sido enfiar seu irmão na máquina que fazia ping, por cerca de meia hora.
— Eu só estou agradecido por ter nos deixado entrar, – Manello murmurou.
O médico se virou para John ao dobrar o cheque e colocá-lo no bolso. — Então, sim, eu ainda recomendo a medicação anticonvulsiva, mas se você for totalmente contra, a única coisa que posso dizer é, tente manter um registro de “quando” e “onde”. Veja se descobre um padrão... Talvez haja, talvez não haja. E saiba que estarei aqui, se precisarem de mim. Lembrem-se do que eu disse... Só porque não vi nada, não quer dizer que não haja nada a ser visto. Os episódios estão acontecendo porque há algo errado. Ponto.
— Obrigado, cara. – Manello ofereceu a mão. — Você é o cara.
Os antigos colegas se cumprimentaram batendo as mãos. — A qualquer momento... A qualquer mesmo. E... Sabe, se algum dia você voltar para cá, eles te recontratam num piscar de olhos. Sentimos sua falta aqui.
Os olhos de Manny se voltaram para Payne, e o sorriso secreto que seus lábios exprimiram foi outra fonte de awwwwww.
— Não. Eu estou bem agora, mas obrigado.
Papo. Papo. Bons e velhos tempos. Tchau. Obrigado de novo.
E então a contingência vampírica se dividiu de novo da humana, Manny guiando-os para fora de um labirinto de corredores de azulejos nus, que pareciam exatamente iguais... A ponto dela começar a achar que tinham se perdido. Errado. Ou o homem que os guiava tinha uma bússola implantada no cérebro, ou ele se lembrava bem de sua década trabalhando no lugar... Porque eventualmente chegaram ao térreo e atravessaram as portas reversíveis pelas quais tinham entrado.
Fritz estava esperando no meio-fio, aquele enorme Mercedes preto que parecia pertencer a um diplomata. Que era outra razão pela qual o carro era tão útil: pessoas tendiam a desviar para o lado para não mexer com ele, como se seus passageiros fossem realmente importantes ou estivessem fortemente armados. Fritz recebia mais passagens em semáforos e estacionamentos do que ela jamais vira. Mas também, ele dirigia da maneira exato oposta ao modo como se movia.
O mordomo idoso não tinha pé de chumbo. A maldita coisa era feita de tungstênio.
Vamos voltar agora? John gesticulou na frente de seu rosto... Como se, talvez, estivesse tentando chamar sua atenção.
— O q.. Qu, desculpe. – Ela jogou o cabelo para trás. — Não prefere ir com Xhex?
— Eu tenho que ir ao clube, – a fêmea disse. — Com Trez afastado, tenho de ficar de olho na segurança.
E aquela foi uma boa, e plausível desculpa... Só que era impossível ignorar os olhares trocados entre o grupo.
— Isso não é sobre mim, – ela murmurou.
É claro que não é, Jonh gesticulou. Você está fazendo um favor em voltar comigo. Sabe, para me fazer companhia.
Fritz ficou feliz demais ao saltar do carro e abrir a porta para ela, e enquanto ela entrava na traseira do sedan, ela vislumbrou Manny dar uma beijoca em Payne, e John beijar Xhex.
Quando uma onda de terror caiu sobre ela, pensou que seria melhor se embebedar ao invés de confrontar o marido. O único problema era que aquilo não ia resolver nada, e além do mais, ela sempre tinha desprezado mulheres que bebiam. Nada mais feio e mais patético.
John entrou pelo outro lado, e então o Mercedes andou, seguindo a alameda para além da cancela e para a pista que contornava o centro médico. Com placas como EMERGÊNCIA, REABILITAÇÃO FARNSWORTH, e CENTRO DE COLUNA YARDLEY, era como uma rodovia com saídas para cidades que você realmente não desejaria visitar.
Próximo a ela, seu irmão continuou olhando de longe, como se ela fosse uma banana de dinamite e ele estivesse medindo o quanto de pavio ainda restava, antes que a merda toda fosse pelos ares.
— Eu estou bem.
Ok, não vou pressionar. Mas aqui.
— Huh? – Ele respondeu à sua questão entregando-lhe um lenço. — Por que eu preciso...
Fantástico. Ela começou a chorar.
Realmente, verdadeiramente fantástico.
Quando ela limpou as lágrimas que não tinha tido consciência de derramar, balançou a cabeça e deixou tudo sair: — Eu quero um bebê.
Puta merda... Isso é incrível, seu irmão gesticulou. Isto é...
— Um pesadelo, na verdade. Wrath não quer.
Oh, seu irmão murmurou.
— É. Mais ou menos isso. E eu descobri antes de sairmos.
Meu Deus, você não devia ter vindo.
— Eu precisava sair daquela casa. E eu queria te ajudar.
Bem... Wrath provavelmente só está preocupado com você. É uma coisa assustadora para as fêmeas. Com isso, seu rosto se contraiu. Quero dizer, Xhex não é muito chegada a crianças, e eu devo admitir, isso para mim é um alívio.
Apertando o quadrado de algodão nas mãos, ela deixou a cabeça cair contra o descanso do assento. — Mas se eu estou disposta a assumir os riscos, eu sinto que ele devia aceitar. E a propósito, não é como se ele tivesse exposto seus argumentos em termos de preocupação com minha saúde. Foi só, “eu não vou servi-la”. Ponto.
John soltou o ar que mantinha preso.
— Eu sei. Não foi nosso melhor momento. – Ela olhou de novo para o irmão. — Eu invejo tanto você e Xhex. Vocês tem tanta sincronia.
Ha! Você devia ter visto a gente há um ano. John encolheu os ombros. Eu achei que não íamos superar.
— Sério?
Merda, sim. Ela queria sair para campo, e tipo, tava tudo certo para mim... Até eu realmente perceber que ela podia se machucar. Ele descreveu um círculo com o dedo próximo a cabeça. Fodeu direitinho com minha cabeça. Digo, como macho, sua mulher é coisa sua de um jeito que eu acho que vocês fêmeas não conseguem apreciar ou entender. Quando se trata de Xhex, eu, literalmente, não tenho controle de minhas emoções, meus pensamentos, minhas ações relacionadas a sua segurança. É uma espécie de psicose.
Quando ela não respondeu, ele tocou seu braço para se certificar que estava prestando atenção. Parece muito com o que você e Wrath estão lidando agora. Sim, para você pode ser 'É só um bebê', mas diante das taxas de mortalidade das fêmeas? Na mente dele, provavelmente é questão de sua sobrevivência... E ele está considerando isso acima de qualquer tipo de filho ou filha.
Deus, talvez aquilo a tornasse uma megera, mas... Ela realmente não queria ver o lado de Wrath nesta questão. Especialmente não dito assim, tão racionalmente... Desde que aquilo, de fato, fosse o que um homem sentia.
Ela ainda estava tão ferida e irada.
— Ok, bem, talvez seja verdade. Mas deixe-me te perguntar uma coisa... Você negaria a Xhex uma criança se ela quisesse uma? – Quando ele não respondeu, Beth disse. — Vê? Você não negaria.
Tecnicamente, eu não respondi.
— Está em seu rosto.
Sim, mas, é fácil para mim teorizar sobre isto... Porque eu sei que ela não quer um. Talvez eu me sentisse diferente se ela quisesse. Os riscos são reais, e há pouca coisa que os médicos podem fazer.
— Eu ainda acho que é meu corpo, minha decisão.
Mas você é o interesse principal dele. Então ele tem um voto nisso.
— Um voto é uma coisa. Um veto real é outra. – Ela balançou a cabeça de novo. — Além, disto, se você pode articular a posição de um macho vinculado? Ele também deveria conseguir. Ele não é isento disto só por ser o Rei. – Ela ficou nauseada ao se lembrar da discussão. — A solução dele é me drogar. Como se eu fosse um tipo de animal. Eu só... Eu não sei se posso superar isto.
Talvez você devesse dar um tempo. Tipo... Se afastar até não estar tão irritada. Daí voltar e conversar sobre isto.
Ela colocou a mão sobre o estômago, e enquanto sentia a capa de gordura que havia se acumulado ali, ela se sentiu tão malditamente burra por ficar sentada comendo sorvete com Layla. Ela não estava nem perto de sua necessidade... Se um dia ela viesse, obviamente seria em seu próprio tempo. Tudo o que tinha conseguido era fazer suas calças ficarem apertadas e construir um abismo entre ela e o marido.
Nas palavras do Dr. Phil[15], Como isto está funcionando para você?
Bem, Phil. Maravilhoso.
Inferno, talvez ela devesse assistir ao programa da Oprah mais vezes. As reprises de Dr. Phil passavam por pelo menos cinco horas todas as manhãs, de Segunda a Sexta. Sem dúvidas, ele tinha algum programa sobre discordâncias de casais no assunto bebê.
Por que não passa um tempo na casa de nosso pai, John gesticulou.
Ela pensou na mansão. — Sim, não. Não quero nem pensar naquele lugar.
De repente, imagens do início dela com Wrath, atingiram-na com intensidade... Especialmente a lembrança de seu primeiro encontro oficial. Deus, as coisas eram tão perfeitas naquelas época, os dois se apaixonaram com tanta facilidade. Wrath tinha levado ela para a casa e vestido um terno da Brook Brothers pela primeira e única vez em sua relação. Eles se sentaram na sala de jantar e Fritz tinha servido a mesa.
Foi quando Wrath tinha dito que ela tinha gosto de...
Com um grunhido, ela colocou a cabeça entre as mãos e tentou respirar com calma. Não funcionou. Seu cérebro parecia estar tendo o equivalente a uma arritmia, pensamentos e lembranças de um passado feliz misturadas às preocupações sobre o futuro sombrio, em uma confusão espasmódica e nervosa.
A única coisa de que tinha certeza?
John estava certo. Ela não podia voltar para casa ainda: no instante em que visse Wrath, ela se irritaria com ele, e aquilo novamente não os levaria a lugar algum.
Deus sabia que eles já tinham tido aquela conversa uma vez. Um repeteco só ia dificultar ainda mais as coisas.
— Ok, – ela se ouviu dizendo. — Tudo bem. Mas preciso comer algo antes.
Fechado, John gesticulou.
Ao retomar forma na clínica médica da raça, Wrath sentiu Vishous se materializando logo atrás dele... E se ressentiu de precisar de uma babá. Mas pelo menos o conhecimento médico de V seria um recurso valioso.
— Quatro metros e meio adiante, – seu irmão anunciou. — Um metro e meio de asfalto regular a sua frente. E então só chão coberto de neve.
Wrath deu um passo e chegou ao asfalto. Com seus próximos passos, a neve absorveu seus passos.
Não dava para enfiar George nisto. A cegueira não era uma virtude para um governante nos tempos de paz. Durante a guerra? Era uma fraqueza crítica... E nada delatava mais a cegueira que um cão guia.
Naturalmente, o retriever tinha ficado apoplético por ter sido deixado para trás... Mas com Beth já irritada com ele, é claro que ele tinha de irritar também o cão. A próxima coisa que devia fazer? A Irmandade. Se bem que aquele bando de filhos da puta eram fortes demais para serem abalados por qualquer coisa menor que uma bomba H.
— Pare, – V disse.
Wrath parou, mesmo que tivesse de cerrar os dentes. Mas era melhor do que dar de cara com a parede do prédio.
Houve uma pausa, na qual V digitou o código, que era mudado todas as noites, e eles entraram em um saguão vazio, com aquele cheiro característico antisséptico de hospital, anunciando estarem, de fato, no lugar certo.
E a merda sabia que ele se sentia doente: Seu peito doía, a cabeça latejava, e sua pele parecia pequena demais para seus ossos.
Claramente um caso de imbecilite.
E provavelmente terminal.
— Saudações, meus senhores, – Ouviu-se uma voz feminina metálica... E mesmo pelo comunicador, cheia de reverência. — Vamos mandar o elevador para vocês neste momento.
— Obrigado, – V disse.
Sim, o irmão odiava Havers por vários motivos. Mas até aí, Wrath também.
E pensar que, quando o bom doutor tinha tentado matá-lo há alguns anos, tinha sido uma grande coisa. Agora? Comparado aos da laia de Xcor e o Bando de Bastardos, um jaleco branco com gravata borboleta e óculos de tartaruga vindo atrás dele era uma maldita moleza.
Merda, ele desejava poder voltar à era de seu pai, quando as pessoas respeitavam o trono.
Ouviu-se o som de um elevador se abrindo e então V tocou o braço de Wrath. Juntos, entraram no compartimento, e após um som de campainha e um deslizar de portas, a característica sensação de afundamento confirmou que eles estavam indo para baixo.
Quando as portas voltaram a se abrir, Vishous se tornou mais cuidadoso ao guiá-lo: se aproximou até ficar ombro-a-ombro e assim permaneceu, sem dúvidas parecendo, aos observadores casuais, um guarda-costas fazendo o seu trabalho para o Rei da raça.
Ao invés de um par de olhos substitutos.
Um murmúrio súbito na sala de espera foi o sinal certeiro de que tinham entrado em espaço público. E a recepção na Recepção foi igualmente elétrica.
— Meu senhor, – algumas fêmeas disseram, quando soou um ruído, como se uma cadeira tivesse sido empurrada para trás. — Por aqui. Por favor.
Wrath virou a cabeça para a voz e anuiu. — Obrigado por nos deixar entrar.
— É claro, meu senhor. É uma honra rara ter sua presença em nosso...
Bla-bla-bla
O lado bom era ser levado rapidamente para uma área privada, com interrupção mínima. E então foi questão de esperar. Mas não levaria muito tempo. Ele apostava que Havers calçaria seus tênis de corrida para chegar imediatamente onde estavam.
Não que aquele almofadinha pedante soubesse para que serviam os Nikes.
— Tipo, todos os hospitais precisam ter Monets nas paredes? – Vishous reclamou.
— Acho que os pôsteres são baratos.
— É uma pintura de verdade.
Ah. Sim. Evidentemente, eles estavam em uma suíte vip. — A cara do Havers... Um clichê mesmo na Sotheby's.
— Ele deve ter trazido do Continente Antigo. Idiota de mau-gosto. Uma vez que se viu um nenúfar, viu-se todos. E eu odeio cor de rosa. Eu realmente odeio cor de rosa. Mas acho que lilás é pior.
Quando Wrath esticou as mãos para tatear o ambiente, pensou nas pinturas impressionistas que tinha visto quando sua visão funcionava um pouquinho. Por falar em visão embaçada... Nada como o trabalho de um pintor meio-cego sendo visto por um idiota meio-cego.
Surrealistas com seus contornos bem definidos eram melhores em sua opinião.
— Há uma maca de exames diretamente a sua frente.
— Eu não vou ser examinado, – Wrath murmurou.
— Está bem, tem um sofá de seda da avó de alguém bem à sua direita.
Quando ele mudou a direção e foi para o sofá, pensou no quanto adorava seus médicos domiciliares. Que pena que a Dra. Jane e Manny não pudessem responder às suas perguntas neste caso. E sim, ele achava que podia obter a informação de outro modo... Tipo, Fritz vir aqui fazer perguntas. Mas algumas vezes, pessoalmente era a única maneira de ter certeza da verdade.
— Vai me dizer de que se trata tudo isto, – V perguntou.
Um som raspado foi seguido por um arranhar, e um momento mais tarde, o aroma de tabaco turco sobrepujou o cheiro de antisséptico e desinfetante do local.
Quando Wrath não disse merda alguma, V praguejou. — Você sabe, Jane pode fazer isto, seja lá o que for.
— Ela sabe sobre a necessidade de vampiras? Não? Achei mesmo que não.
Aquilo calou o irmão por um minuto.
No silêncio, Wrath teve uma necessidade incontrolável de andar... Mas era impossível, já que ele não queria esbarrar com toda a mobília chiquetosa de Havers.
— Fale comigo.
Wrath balançou a cabeça. — Não tenho nada a dizer.
— Como se isto já tivesse te impedido antes, certo?
Felizmente, Havers escolheu aquele momento para entrar... Só para parar de supetão dentro da sala de exames.
— Me perdoe... – ele disse a Vishous. — Mas não pode fumar aqui.
O tom de voz de V soou aborrecido. — Nossa espécie não tem câncer... Ou isso é uma novidade para você.
— É por causa dos cilindros de oxigênio.
— Há algum aqui?
— Ah... Não.
— Bem, então eu não vou procurar um.
Wrath cortou qualquer discussão adicional. — Feche a porta. – Seu idiota fodido. — Eu só tenho de te fazer algumas perguntas. E diga a sua enfermeira para sair, por favor.
— É... Claro.
O medo permeou o ar quando a enfermeira saiu e a porta foi fechada, e Wrath não culpava o cara por estar nervoso.
— Em que posso servi-lo, meu senhor?
Wrath visualizou o macho de memória, imaginando que Havers ainda trazia no rosto aqueles óculos de Ivy-League, e o jaleco branco com o nome bordado próximo à lapela. Como se pudesse haver alguma confusão em sua clínica sobre quem ele era.
— Eu quero saber o que se pode fazer para impedir a necessidade de uma fêmea.
Grilos. Muitos grilos.
Bem, exceto por V murmurando algo que provavelmente começava com P e terminava com O-R-R-A.
Depois de um momento, houve um estalo, como se o bom doutor tivesse se sentado próximo ao sofá de Wrath. — Eu, ah, eu não sei bem como responder a isto, meu senhor.
— Tente, – Wrath disse secamente. — E rápido. Eu não tenho a noite inteira.
Sons surdos sugeriram que o macho estava mexendo em coisas. Uma caneta? Talvez um estetoscópio? — Ela já... Ela, ah, a fêmea... Já iniciou a necessidade?
— Não.
O silêncio que seguiu fê-lo desejar não ter vindo. Mas ele não ia sair agora, e não só porque ele já não lembrava a direção onde a porta estaria. — Não é a minha shellan, a propósito. É uma amiga.
Jesus Cristo, como se ele tivesse uma DST ou merda assim.
Mas pelo menos aquilo tinha relaxado o médico. Instantaneamente, a aura do macho acalmou e sua boca se pôs a trabalho. — Eu não tenho uma boa resposta para dar, infelizmente. Até agora, não encontrei uma forma de impedir que o período de necessidade se inicie. Tentei várias drogas, mesmo aquelas disponíveis no mercado humano... A questão é que as fêmeas vampiras tem hormônios a mais, que quando disparados, cria uma resposta incontrolável do organismo. Como resultado, pílulas anticoncepcionais humanas ou injeções, não tem efeito nenhum em nossas fêmeas.
Wrath balançou a cabeça. Ele devia saber – nada sobre o ciclo reprodutivo de uma fêmea vampira era fácil.
Virgem Escriba Idiota. Oh, claro, vá em frente e crie uma raça de pessoas... E enquanto fizer isso, porque não aproveita para bagunçar um pouco com eles com algumas coisas realmente difíceis. Perfeito.
Havers continuou, seu assento estalando de novo como se estivesse mudando de posição. — Acalmar a fêmea durante seu sofrimento é o único método em que tive sucesso. Gostaria de levar um kit para sua amiga, meu senhor?
— Kit, como em...
— Para o tratamento da necessidade.
Ele pensou em Beth sentada naquele quarto com Layla. Só Deus sabia há quanto tempo aquilo vinha acontecendo... Mas, mais ao ponto, ele receava que tivesse funcionado: Ele totalmente tinha ficado ereto na presença de sua shellan. E sim, aquilo não era incomum, exceto pelo fato deles terem discutido e sexo ter sido a última porra de coisa que estava em sua cabeça.
Os hormônios dela já deviam estar em fluxo.
Ou aquilo, ou ele estava paranoico.
Também uma possibilidade.
— Sim, – ele se ouviu dizendo. — Eu quero um.
Houve o som de algo sendo escrito. — Agora, eu vou precisar que o macho responsável por ela assine isto, ou o hellren, o pai dela, ou o macho mais velho de sua casa. Eu não me sinto confortável em enviar estes narcóticos para o mundo lá fora sem supervisão... E é claro, alguém precisará administrá-los. Não só porque ela estará totalmente comprometida pela necessidade, mas sejamos honestos. Fêmeas não tem as melhores cabeças nestas coisas, de qualquer forma.
Por alguma razão, Wrath lembrou de Payne acusando-o de ser um misógino.
Pelo menos Havers o superava totalmente naquilo.
Oh, merda, como ele ia assinar qualquer coisa? Lá na casa, Saxton sempre marcava o local da assinatura com uma série de relevos.
— Eu assino por ela, – V interrompeu com simplicidade. — E minha shellan que é uma médica, igual a você, tomará conta de todo o resto.
— Você, emparelhado? – o médico balbuciou. Como se houvesse uma chance maior de um meteoro atingir a clínica. — Digo...
— Me dê o papel, – Vishous disse. — E sua caneta.
Daí mais ruídos e mais daquele silêncio incômodo.
— Qual é o peso dela? – Havers perguntou, enquanto folheava como se estivesse colocando algo em um arquivo.
— Eu não sei, – Wrath disse.
— Você quer que eu veja a fêmea em questão, meu senhor? Ela pode vir aqui a qualquer momento que seja conveniente, ou eu poderia fazer uma visita domiciliar...
— Sessenta e um quilos, – V disse. — E chega de conversa. Nos dê as drogas para que possamos dar o fora daqui.
Quando Havers saiu da sala, Wrath se inclinou até sua cabeça atingir a parede de gesso que ele não tinha consciência de estar atrás dele.
— Você quer me dizer de que caralhos se trata isso? – seu irmão exigiu. — Porque, neste momento, estou tirando uma porção de conclusões e nenhum de nós precisa disto... Quando você pode simplesmente responder a porra da pergunta.
— Beth tem andado com Layla.
— Porque ela quer...
— Um filho.
Uma rajada fresca de tabaco turco atingiu o nariz de Wrath, sugerindo que o irmão tinha dado um trago profundo. — Então você fala sério sobre não querer um filho?
— Nunca. O que “nunca” lhe parece?
— Que assim seja. – Subitamente, as botas de V soaram ao redor da sala, e cara, aqueles passos eram algo a invejar. — Não que eu não respeite Z e seu núcleo familiar. Graças àquelas duas fêmeas dele, ele parece quase normal agora... O que é um milagre por si só. Então que ótimo para ele, certo? Mas aquela merda não é para mim. Graças a Deus, Jane sente o mesmo.
— É. Graças a Deus.
— Beth não está neste trem?
— Não. Ela não está nem nesta estação, cidade ou qualquer parte da cidade que sua metáfora residir.
Wrath esfregou a testa. Por um lado, era ótimo ter alguém que concordasse com ele sobre o assunto de não ter bebês... Fazia-o sentir menos como que fazendo algo errado, ou sendo cruel com sua Beth. Por outro lado, aquela concordância entre Vishous e Jane? Não que ele quisesse que o irmão passasse por toda aquela merda também. Nem de longe. Mas caralho, ele adoraria estar naquela posição tão confortável com sua shellan, muito obrigado.
Enquanto seu irmão caminhava e fumava, e ambos aguardavam o retorno de Havers com as drogas... Por alguma razão, ele pensou em seus pais.
As lembranças que tinha de sua mãe e pai eram meio Norman Rockwell[16]... Bem, dublado na linguagem do Antigo Continente e em um cenário diferente de castelo medieval. Mas sim, aqueles dois tinham a relação perfeita. Não havia discussão, não havia raiva, só amor.
Nada jamais se interpusera entre eles. Nem o trabalho de seu pai, nem a corte onde viviam, nem os cidadãos que governavam.
Harmonia perfeita.
Este era outro padrão do passado que ele não conseguia manter.
V soltou um som estranho, parte engasgo, parte xingamento.
— Engasgou com a fumaça? – Wrath perguntou secamente.
Bem perto dele, a cadeira onde Havers tinha se sentado rangeu tão alto quanto uma maldição... Como se V tivesse jogado seu peso inteiro na coisa.
— V?
Quando o irmão finalmente respondeu, sua voz era baixa, muito baixa. — Eu vejo você...
— Não, não, não. – Wrath explodiu. — Eu não quero saber, V. Se estiver tendo uma de suas visões, não me diga o que é...
— ...Em pé em um campo em branco. Branco, branco é tudo o que o cerca...
O Fade? Oh maldito inferno. — Vishous.
— ...E você está falando com...
— Ei, imbecil! Eu te disse o tempo inteiro que não quero saber quando vou morrer. Você me ouviu? Eu não quero saber.
— ... O rosto nos céus.
— Sua mãe? – Cristo sabia que a Virgem Escriba estava desaparecida já há algum tempo. — É sua mãe?
Merda, ele não queria encorajar aquilo. — Ouça, V, você tem de voltar. Não aguento isso, cara.
Houve uma maldição baixa, como se o irmão estivesse se recompondo. — Desculpe, quando me atinge forte deste jeito, é difícil parar.
— Tudo bem. – Mesmo que não estivesse. Nem de longe.
Porque o problema com as premonições de Vishous... Além de serem sempre sobre a morte das pessoas? Não havia linha do tempo. Aquela coisa podia recair sobre Wrath na semana seguinte. Ano seguinte. Setecentos séculos no futuro.
Se Beth morresse... Ele não ia querer viver.
— Tudo o que posso dizer é, – V exalou de novo, — Eu vejo que o futuro está em suas mãos.
Bem, pelo menos aquilo era genérico e óbvio, como uma previsão astrológica em uma revista... O tipo de coisa que qualquer um poderia ler e sentir como se aplicasse a ele.
— Me faça um favor, V.
— O que.
— Não veja mais nada sobre mim.
— Não tenho controle sobre isto, ok?
Era verdade. Como ver seu próprio futuro.
Mas o lado bom era... Ele não teria de se preocupar com a necessidade de Beth. Graças a esta visitinha miserável, ele ia estar preparado para cuidar dela quando acontecesse.
Sem correr o risco de uma gravidez.
O ANO 1664
— Leelan?
Quando não houve resposta, Wrath, filho de Wrath, bateu de novo na porta do aposento: — Lellan, posso entrar?
Como Rei, ele não precisava esperar pela autorização de ninguém, e não havia ninguém que o impedisse de fazer algo.
Exceto sua preciosa companheira.
E como nesta noite, quando havia uma festa, ela desejava embelezar-se em privacidade, permitindo seu acesso, somente quando estivesse preparada para sua observação e adoração. Era completamente encantadora... Como era encantadora a maneira que o quarto que dividiam cheirava, por causa de seus óleos e loções. Assim como era, mesmo um ano após sua união, que ela ainda baixasse os olhos e sorrisse secretamente quando ele a cortejava. Assim como acordar cada anoitecer com ela junto a ele, para então se deitar para descansar ao amanhecer, ao lado de seu corpo lindo e cálido.
Mas havia uma nuance diferente em tudo isto agora.
Quando a espera terminaria... E não a espera pela autorização para entrar em seu quarto.
— Entre, meu amor, – veio através dos painéis de carvalho maciço.
O coração de Wrath pulou. Virando o trinco pesado, ele abriu a porta... E lá estava ela. Sua adorada.
Anha estava do outro lado do quarto, perto da lareira que era grande o bastante para caber um macho adulto. Sentada à sua penteadeira, que ele tinha movido para perto do fogo para mantê-la aquecida, suas costas estavam viradas para ele, o cabelo longo e preto caíam em espirais pelos ombros até a cintura.
Wrath respirou fundo o aroma dela, mais importante do que o oxigênio que enchia seus pulmões. — Oh, você está adorável.
— Você ainda não me viu inteira...
Wrath franziu o cenho diante da tensão na voz dela. — O que lhe aflige?
Sua shellan se virou para encará-lo. — Nada. Por que pergunta?
Ela estava mentindo. Seu sorriso era uma versão apagada de sua radiância normal, sua pele parecia pálida demais, seus olhos repuxavam nos cantos.
Quando ele atravessou sobre os tapetes de pele, o medo o atingiu. Quantas noites desde que a necessidade dela tinha começado e terminado? Quatorze? Vinte e uma?
Apesar do risco para ela, eles realmente rezavam por uma concepção – e não simplesmente por um herdeiro, mas por um filho ou filha para amar e criar.
Wrath caiu de joelhos diante de sua leelan, e de fato, ele se lembrou da primeira vez que tinha feito aquilo. Ele tinha agido certo ao emparelhar com esta fêmea, e mais certo ainda de depositar seu coração e alma em suas mãos gentis.
Ele só tinha a ela em quem confiar.
— Anha, seja sincera comigo. – Ele esticou a mão e tocou seu rosto – e imediatamente retirou sua mão. — Você está gelada!
— Não estou. – Ela o afastou, largou sua escova e levantou-se. — Estou usando o vestido de veludo vermelho que você adora. Como poderia estar gelada?
Por um momento, ele quase esqueceu suas preocupações. Ela era uma visão, na cor rica e profunda, o bordado dourado no corpete que captava a luz do fogo, da mesma forma que os rubis: de fato, ela estava usando o conjunto completo de joias naquela noite, as pedras brilhavam em suas orelhas, pescoço, pulsos, mãos.
E ainda assim, tão resplandecente como ela estava, algo não estava certo.
— Levante-se, meu hellren, – ela mandou. — E vamos para a recepção. Há uma multidão nos aguardando.
— Eles podem esperar mais. – Ele não tinha intenção de se mexer. — Anha, fale comigo. O que está errado?
— Você se preocupa demais.
— Você sangrou? – ele perguntou diretamente. O que significaria não ter concebido um filho.
Ela colocou uma mão magra sobre a barriga. — Não. E eu me sinto... Perfeitamente bem. Honestamente.
Wrath semicerrou os olhos. Havia, é claro, outro assunto que pesava sobre seu coração. — Alguém foi cruel com você?
— Nunca.
Naquilo ela estava mentindo com certeza. — Anha, você acha que algo escapa ao meu conhecimento? Eu estou bem consciente do que transpira na corte.
— Não se preocupe com essas fofocas. Eu não me importo.
Ele amava sua força. Mas esta coragem era desnecessária... Se somente ele conseguisse descobrir o que a atormentava, ele cuidaria do assunto. — Acho que deveria acabar com essas fofocas.
— Não diga nada, meu amor. O que está feito, está feito... Não dá para desfazer a apresentação. Tentar silenciar toda e qualquer crítica ou comentário sobre mim, seria liderar uma corte vazia.
Tudo tinha começado na noite em que ela tinha sido trazida a ele. Ele não tinha seguido o protocolo adequado, e apesar dos desejos do Rei reinarem sobre e além da terra e todos os seus vampiros, havia os que desaprovavam intensamente: Que ele não a tivesse despido. Que ele tivesse lhe dado o conjunto de joias de rubis e o anel da rainha... E então tivesse conduzido o emparelhamento sozinho. Que ele tivesse imediatamente levado ela para seus aposentos particulares.
Seus críticos não tinham se acalmado nem um pouco quando ele tinha consentido uma cerimônia pública. Nem tinham, um ano depois, acolhido sua companheira. Eles nunca eram abertamente rudes com ela, em sua presença, é claro... E Anha se recusava a dizer uma palavra do que acontecia às suas costas.
Mas o aroma da ansiedade e depressão dela eram muito familiares a ele.
Na verdade, o tratamento da corte para sua amada o irritava a ponto de torná-lo violento... E criou uma fenda entre ele e todos os que o cercavam. Ele sentia como se não pudesse confiar em ninguém. Mesmo a Irmandade, que supostamente devia ser sua guarda privativa e aqueles em quem ele deveria confiar acima de todos os demais, mesmo aqueles machos lhe suscitavam suspeitas.
Anha era tudo o que ele tinha.
Inclinando-se para ele, suas mãos aninharam seu rosto. — Wrath, meu amor. – Ela pressionou seus lábios nos dele. — Vamos descer para a festa.
Ele agarrou seus braços. Os olhos dela eram lagos onde se afogar, e o único terror que ele conhecia nesta sina mortal, era que algum dia eles poderiam não estar ali para ele se afogar.
— Detenha seus pensamentos, – sua shellan implorou. — Não acontecerá nada comigo agora ou nunca.
Puxou-a para junto de si, encostou a cabeça em sua barriga. Quando as mãos dela correram pelo seu cabelo; ele observou a penteadeira dela. Escovas, pentes, potes quadradas de maquiagem para seus lábios e olhos, uma caneca de chá ao lado de seu bule, um pedaço de pão que tinha sido beliscado.
Coisas tão prosaicas, mas por ter sido ela a juntá-las, tocá-las, consumi-los, eram elevadas em valor: Ela era a alquimia que transformava tudo aquilo, e ele mesmo, em ouro.
— Wrath, temos que ir.
— Eu não quero. Quero ficar aqui.
— Mas sua corte o aguarda.
Ele proferiu algo vil que esperava ter sido abafado nas dobras do veludo. Mas como ela riu suavemente, achou que tinha ouvido.
No entanto, ela estava certa. Muitos os esperavam na recepção.
Malditos.
Levantando-se, ele lhe ofereceu o braço, e quando ela enganchou o dela na curva de seu cotovelo, ele guiou-os para fora de seus aposentos, passando pelos guardas do palácio que se alinhavam no corredor. Alguma distância depois, desceram uma escadaria curva, os sons da aristocracia reunida ficando cada vez mais alto.
Ao se aproximarem no grande salão, ela se apoiou ainda mais nele, e ele estufou o peito, o corpo crescendo em estatura como resultado da confiança que ela lhe depositava. Ao contrário de tantos cortesãs, que ansiavam por serem dependentes, sua Anha sempre tinha mantido um certo decoro orgulhoso consigo mesma... Então quando, em uma ocasião, ela requeria sua força de alguma forma, era um presente especial para seu lado mais masculino.
Não havia nada que o fizesse sentir seu sexo masculino mais sutilmente.
Quando a cacofonia se tornou tão alta que engolia os sons de seus passos, ele se inclinou para o ouvido dela. — A gente devia cumprimentá-los bem rapidamente.
— Wrath, você deve aproveitar...
— Você, – ele disse ao se aproximarem da última curva. — É quem eu devo aproveitar.
Quando ela corou lindamente, ele riu... E se viu fervendo de antecipação pela sua privacidade de mais tarde.
Saindo da última curva, ele e sua shellan atravessaram um par de portas duplas para seu uso exclusivo, e dois Irmãos deram um passo à frente para saudá-los de maneira formal.
Querida Virgem Escriba no Fade, ele detestava estas recepções da aristocracia.
Quando trompetes anunciaram sua chegada, os portais se abriram e as centenas ali reunidas se silenciaram, os vestidos coloridos e joias brilhantes rivalizando com o teto pintado acima de suas cabeças e o chão de mosaico abaixo de seus sapatos de seda.
Em certo ponto, quando seu pai ainda era vivo, ele podia lembrar de ficar impressionado pelo grande salão e elegância da aristocracia. Agora? Mesmo que os limites da construção fossem tão grandes quanto um campo de caça, e suas lareiras duplas do tamanho de habitações civis, ele não nutria ilusões de grandeza e honra.
Um terceiro membro da Irmandade falou em voz trovejante. — Vossas Altezas Reais, Wrath, filho de Wrath, governante de tudo o que há entre os territórios da raça, e Rainha Anha, amada filha de Tristh, filho de Tristh.
Em um crescendo, o aplauso obrigatório se ergueu e repetiu-se, o de cada indivíduo se perdendo nos da multidão. E então, era hora da resposta real. De acordo com a tradição, o Rei nunca devia baixar a cabeça a nenhum ser vivente, da mesma forma que era dever da rainha agradecer aos reunidos com uma reverência.
Sua Anha desempenhou com graça e perfeição.
Então foi a vez dos reunidos reconhecerem sua fidelidade com curvas para os machos e reverência para as fêmeas.
E agora, com o grupo de formalidade trocada, ele tinha de se aproximar da fila de cortesãos e cumprimentar um a um.
Caminhando a frente, ele não conseguia se lembrar o que estavam festejando, qual virada de página do calendário ou fase da lua esta recepção marcava. A glymera podia pensar em incontáveis razões para se reunir, a maioria das quais parecia sem sentido, considerando que os mesmos indivíduos apareciam nos mesmos locais.
As roupas eram sempre diferentes, é claro. E as joias nas fêmeas.
E enquanto isto, banquetes gourmet eram preparados e saboreados, e alfinetadas e ofensas eram trocadas a cada respiração, havia assuntos de importância a serem tratados: sofrimento dos plebeus devido à recente seca; invasão por parte dos humanos, agressão da Sociedade Lesser. Mas a aristocracia não se preocupava com tais coisas, porque, na opinião deles, aqueles eram os problemas enfrentados em grande parte pelos... Canalhas sem nome e sem rosto.
Na direção contrária das leis mais básicas da sobrevivência, a glymera via pouco valor na população que colhia o alimento que eles consumiam, construía as estruturas onde eles viviam e costuravam a roupa que cobriam seus traseiros.
— Venha, meu amor, – sua Anha sussurrou. — Vamos cumprimentá-los.
Eis que parecia que ele tinha parado sem perceber.
Voltando a andar, seus olhos se focaram em Enoch, que estava como sempre na frente da fila de machos vestidos de mantos cinzentos.
— Saudações, Vossa Alteza, – Disse o cavalheiro... Em um tom como se somente ele fosse o mestre de cerimônias. — E a senhora, minha rainha.
— Enoch. – Wrath olhou para os cortesãos. Os doze machos estavam dispostos pela virtude de hierarquia, e como tais, o último na fila mal tinha acabado de passar por sua transição, de uma família de grande linhagem mas pouca importância. — Como estão.
Não que lhe importasse. Ele estava muito mais interessado em quem dentre eles tinha aborrecido a sua amada. Certamente tinha de ser um deles, senão todos: Ela não tinha criadas, a seu próprio pedido, então estas eram as únicas figuras que ela tinha qualquer contato na corte.
O que tinha sido dito. Quem tinha dito.
Não foi com pouca agressividade que ele passou pela fila e cumprimentou um a um, de acordo com o protocolo. De fato, esta ancestral sequência de cumprimentos particulares no meio de uma recepção pública era um modo de reconhecer e reafirmar a posição dos conselheiros com a corte, uma declaração da importância deles.
Ele podia lembrar de seu pai fazendo exatamente isto. Exceto que o macho parecia realmente prezar as relações com seus cortesãos.
Especialmente nesta noite, o filho não estava exatamente sentindo o mesmo que o pai.
Quem tinha...
De início, ele supôs que sua amada tinha tropeçado e então exigia mais da força de seu braço. Aí, no entanto, não foi um passo em falso. Ela perdeu o equilíbrio...
Todo ele...
A sensação de estar sendo puxado pelo braço o fez virar a cabeça, e foi quando ele viu acontecer, a forma vital de sua shellan ficando frouxa e caindo para a frente.
Com um grito, ele esticou a mão para segurá-la, mas não foi rápido o bastante.
Enquanto a multidão ofegava, Anha caiu no chão; seus olhos vidrados olhando para cima, para ele, mas sem nada ver, sua expressão tão impassível quanto um espelho vazio, sua pele ainda mais pálida do que estava no quarto.
— Anha! – ele gritou ao cair ao chão para perto dela. — Anha...!
Sola acordou com um arranque, seu rosto golpeando um chão de concreto gelado, o corpo estendido de forma não natural. Mudando de posição, seu corpo processou sua localização em uma fração de segundo: cela com três paredes sólidas e uma com barras. Sem aquecimento, sem janela, luz embutida no teto, privada de aço inox.
Sem companheiro de cela, sem vigilância à vista.
A próxima checagem foi em seu corpo: A cabeça tinha dores lancinantes na nuca e na testa, mas não estava tão mal quanto o que ocorria em sua coxa. Aquele bastardo com a marca de nascença escura cobrindo metade do rosto tinha atirado nela uns quinze centímetros abaixo do joelho... O fato dela poder erguer sua panturrilha do chão indicava que não tinha atingido um osso, mas a dor era imensa. A sensação de ardor aliada ao latejamento era suficiente para deixá-la nauseada.
Silêncio.
Do outro lado do porão, em uma parede, havia um par de correntes soldadas na parede, e as amarras dos pulsos que pendiam nas extremidades eram uma promessa de horror.
Bem, aquilo e as manchas entre o chão e a corrente.
Não havia câmeras de segurança que pudesse ver. Mas também, Benloise era cauteloso. Talvez ele usasse a câmera de um celular para filmar sua versão de filmes amadores?
Sem fazer ideia de quanto tempo tinha, ficou em pé.
— Caralho.
Colocar o peso na perna direita era como pegar um atiçador em chamas e enfiar na ferida. E bancar o Chubby Checker[17] dançando twist.
Melhor evitar aquilo.
Ao olhar a privada, a um bom metro e meio de distância, praguejou de novo. Esta perna dela ia ser uma enorme desvantagem técnica... Porque era difícil andar sem arrastar o pé como um zumbi... O que fazia barulho, ao mesmo tempo em que a atrasava.
Tentando abafar seus ruídos pelo caminho, ao invés de criar distúrbios maiores e audíveis, ela usou a privada, mas não deu descarga. Então voltou para onde tinha começado. Não sentiu necessidade de testar as barras ou verificar se porta estava trancada.
Benloise não era chegado a construções mal feitas e não contrataria alguém tão estúpido.
Sua única chance era tentar subjugar o guarda com a arma, e como isto aconteceria em sua situação atual, ela não fazia ideia. A menos...
Voltou a se acomodar no chão, esticou-se na posição exata em que estava quando acordou. Fechou os olhos, e ficou momentaneamente distraída pelas batidas de seu próprio coração.
Alto. Real e fodidadamente alto.
Especialmente ao pensar em sua avó.
Oh, Deus, ela não podia acabar ali. E não daquele jeito... Não era uma doença ou um acidente em uma estrada. Isto envolveria sofrimento deliberadamente infligido, e depois? Benloise era exatamente o tipo de doente fodido que enviaria um pedaço dela para ser enterrado.
Mesmo que o destinatário fosse uma pessoa inocente a toda aquela feiura.
Ao imaginar sua avó com somente uma mão ou pé para colocar dentro de um caixão, ela sentiu seus lábios se moverem.
Deus, por favor, me deixe sair desta viva. Pelo amor de vovó. Deixe-me sobreviver a isto, e eu prometo que largo esta vida. Eu a pegarei e a levarei para algum lugar seguro, e eu nunca, nunca mais vou fazer algo errado de novo.
A distância, ela ouviu um ruído de porta sendo destrancada, e então murmúrios.
Forçando-se a respirar de modo controlado, ela observou através do véu de seus cabelos, ouvindo os passos se aproximarem.
O homem que desceu a escada era aquele que tinha a imensa marca de nascença no rosto. Vestia calças de combate pretas e uma camiseta sem mangas, ele era sombrio, peludo e louco.
— ...Maldito idiota, morrer assim. Pelo menos isto calou a porra da boca dele.
Ela fechou os olhos... E houve outro ruído.
Abruptamente, a voz dele estava bem mais próxima. — Acorde, cadela.
Mãos rudes agarraram seu braço e a rolaram de costas e custou-lhe todo o autocontrole para não ofegar da dor agônica de sua cabeça e perna. — Cadela! Acorde!
Ele estapeou seu rosto, e quando sentiu o gosto de sangue na boca, ela descobriu que ele tinha cortado seus lábios... Mas qualquer dor seria somente uma gota no balde de agonia de sua coxa.
— Cadela! – Outro tapa, ainda mais forte. — Não brinca comigo, porra!
O peito dela se ergueu quando ele agarrou a frente da parka e puxou forte para abrir... E quando sua cabeça ralou no concreto, não conseguiu evitar um gemido.
— Isso mesmo... Eu vou te acordar porra. – Ele ergueu a camiseta dela, e houve uma pequena pausa. — Legal.
O sutiã dela tinha fecho frontal e ele soltou, o ar gélido atingiu sua pele.
— Oh... Isso... É...
Ela cerrou os dentes quando ele a tocou, e teve de forçar seus membros a ficarem imóveis quando ele começou a mexer na cintura de suas calças. Do mesmo jeito que o sinalizador que tinha encontrado no porta malas, ela só tinha uma chance nisso, e ela precisava que ele estivesse bem e adequadamente distraído.
Mesmo que sentisse de novo como se fosse vomitar.
O guarda arrancou seus jeans, junto com as calcinhas em uma série de puxões fortes, ela sentiu o traseiro nu golpeando o chão áspero e gelado, quando ele puxou e arrancou.
— Você me deve isto, cadela... Agora eu tenho de contar a ele sobre aquele merdinha que você matou... Que porra, suas botas!
Ele freneticamente puxou os cadarços e puxou uma bota após a outra. E enquanto ele trabalhava nela, houve a tentação de tentar chutá-lo na cara, mas ela não teria como causar um dano real daquele ângulo... Se ela golpeasse cedo demais e errasse, ele sem dúvida ia acorrentá-la naquela fodida parede.
Quando as mãos dele foram para o meio de suas pernas, ela não conseguiu conter o pânico de seu corpo diante da invasão... Não importava o quanto seu cérebro comandasse, suas coxas se apertaram em volta dos pulsos dele.
— Está acordada agora? – ele murmurou. — Você quer isto, não quer.
Relaxe, ela disse a si mesma. Você está esperando por uma coisa e somente uma coisa.
Ele retirou a mão. E então o som de um zíper sendo baixado deu a ela incentivo extra para abrir as pernas. Ela precisava dele tentando montá-la.
E quem diria, ele tentou.
Abrindo ainda mais as pernas dela, ele ficou apoiado nas mãos e joelhos e tentou se colocar em posição, por cima dela.
Uma chance. E ela aproveitou.
Com um súbito jorro de energia, ela se impulsionou e acertou um golpe nas bolas do filho da puta como se quisesse castrá-lo. E gezuis, aquele foi exatamente seu passe para a liberdade.
Torcendo o mais forte que podia, ela ignorou os gritos de dor de sua coxa e cabeça e girou com cada pingo de força que tinha. O guarda soltou um urro agudo, como um cachorrinho que tivesse caído em uma frigideira grande, e caiu de lado.
Foi tudo o que ela precisou. Empurrando-o para longe dela, ela pulou para ficar em pé enquanto ele colocava a mão sobre os genitais e se encurvava como uma bola.
Olhando em volta rapidamente, ela precisava...
Mancando em suas meias, ela soltou uma das correntes reservadas a ela e arrastou-a pelo chão. Enrodilhou-a em seu punho, as correntes pesadas formando uma gaiola em volta de sua mão apertada.
Ela atravessou e montou a cabeça e o ombro do homem. — Você queria uma boa trepada, imbecil? Que tal isto?
Ergueu o braço bem acima da cabeça, e trouxe o peso para baixo com tanta força quanto pode, atingindo o crânio dele. O homem imediatamente soltou um rugido e tentou se cobrir, com os braços tentando formar uma barreira para o crânio.
Legal. Lobotomia mais tarde.
Ela atacou abaixo das costelas, para o suave monte de carne que protegia os rins e o pâncreas. Repetidamente, até ele tentar outra defesa. De volta a cabeça... Mais forte esta vez. Até que ela estava ensopada de suor mesmo que estivesse quase nua e o ar da cela fosse gelado.
Repetidas.
Vezes.
Sem parar.
Golpeava em qualquer lugar que pudesse achar vulnerabilidade.
E esta foi a coisa mais estranha: Ela tinha toda a força do mundo durante os golpes; era como se estivesse possuída, seus ferimentos ficaram em plano de fundo em deferência da necessidade superior de assegurar sua sobrevivência.
Ela nunca tinha matado uma pessoa antes. Já tinha roubado muito. Desde que tinha onze anos, certamente. Mentia quando precisava. Invadia todo tipo de lugar onde não era bem-vinda. Com certeza.
Mas morte sempre a tinha atingido em um nível que não queria chegar. Como heroína para um fumador de maconha, era o avô de tudo... E uma vez cruzada a linha? Bem, então você realmente era um criminoso.
Mas, apesar de tudo aquilo, alguns minutos, ou horas ou dias depois... Ela se levantou de uma bagunça de corpo ensanguentado.
Prendeu a respiração nos pulmões, deixou o braço cair ao lado do corpo. Enquanto juntava força, seu aperto na corrente se afrouxou e os elos se desenrolaram de seu punho, caindo no chão com um ruído.
— Mexa-se, – ela arfou. — Você precisa se mexer.
Jesus... Quando ela tinha rezado pela sobrevivência, ela não tinha considerado que Deus poderia lhe dar o poder de quebrar um de seus Dez Mandamentos.
— Mexa-se, Sola. Você tem que se mexer.
Tontura, náusea, com uma dor de cabeça que era tão forte que sua visão sumiu e voltou, ela tentou pensar.
Botas. Ela ia precisar de botas... Na neve, elas seriam mais importantes do que as calças. Procurando em volta, pegou a primeira que encontrou, só para deixá-la escorregar e cair de novo.
Sangue. Ela estava coberta de sangue, principalmente sua mão direita.
Secando as mãos na parka rasgada, ela voltou ao trabalho. Uma bota. Então a outra. Cadarços frouxos, mas amarrados com nós duplos.
De volta à sua vítima.
Ela parou por um momento para olhar a bagunça.
Merda, esta visão jamais deixaria de assombrá-la.
Supondo que sobrevivesse.
Fez o sinal da cruz sobre o peito, ajoelhou perto do homem e tateou em volta. A arma que encontrou foi um presente de Deus; assim como o iPhone que estava... merda, protegido por senha. Além do que, ela não conseguiria um sinal, embora talvez houvesse no andar de cima.
Tudo o que ela precisava, era a função de chamada de emergência e então poderia jogar a coisa fora.
Ao guardar o celular, ela deslizou as barras atrás de si. Ela tinha certeza absoluta que o bastardo estava morto, mas filmes de terror e todos os filmes da franquia Batman sugeria certificar-se duplamente era uma boa pedida quando se tratava de vilões.
Pesquisa rápida. Havia mais duas celas iguais às que ela estava. Ambas vazias. E só.
Do lado de fora, na área aberta, havia um corredor curto e então uma escada, e levou-lhe uma eternidade para chegar lá. Malditas pernas. Parou antes de subir, e ouviu. Não havia sons de movimento lá em cima, mas havia um cheiro distinto de hambúrguer frito.
Provavelmente da última refeição do sequestrador.
Sola colou-se à parede lateral dos degraus, com a arma a sua frente, o manquejar de sua bota direita mantido a um mínimo, mesmo que ela tivesse de parar duas vezes recuperar o fôlego.
O primeiro andar tinha muitas luzes acesas e nada mais: Havia um par de catres no canto, uma cozinha embutida com pratos sujos na pia rasa.
Havia alguém deitado em um terceiro catre perto do banheiro.
Que seja o outro cara morto, ela pensou... E merda, que tipo de noite era aquela que a fazia desejar aquilo?
A pergunta retórica foi respondida quando se aproximou para olhar de perto.
— Oh. – Colocou uma mão sobre a boca, e virou de costas.
Ela tinha feito aquilo com o sinalizador? Jesus... E o cheiro não era do hambúrguer de alguém. Era carne humana queimada até criar uma casca.
Concentração, ela precisava de concentração.
As únicas janelas do lugar eram as do porão, que não se abriam totalmente, somente para cima, e ficavam tão acima do chão que ninguém de fora conseguia ver. E só havia três portas: a que ela tinha usado para vir do porão, a outra estava aberta e mostrava uma privada, e a última... Que certamente parecia reforçada.
Tinha uma barra de empurrar do lado de dentro.
Ela não se incomodou em procurar mais armas. A ponto 40 que tinha na mão era suficiente, mas ela pegou munição extra no balcão da cozinha.
Olá, bilhete premiado Power Ball.
Chaves de carro tinha sido casualmente jogadas ao lado da munição, e se ela não temesse tanto por sua vida, ela teria tomado um momento para chorar como uma garotinha.
É, claro, sem dúvida qualquer carro por ali teria um rastreador de GPS, igual ao celular.
Mas comparada a opção de fugir a pé?
Ela aceitaria sem pensar duas vezes.
Mancando para a porta, com a visão vacilante, ela empurrou a barra...
E a porta não se moveu.
Tentou mais vezes, e viu que a porta estava trancada por fora. Maldição! E no chaveiro do carro, não havia mais chaves. Nada de...
Oh, certo, ela pensou.
Instalado ao lado da porta, havia um pequeno sensor quadrado.
A porta podia ser aberta pela impressão digital, por dentro e por fora.
Olhando por sobre o ombro, ela olhou para o corpo do outro lado do cômodo... Especificamente para a mão que estava pendurada para fora do catre, quase tocando o chão.
— Caralho.
Voltando ao cara morto, ela sabia que arrastá-lo não ia ser fácil. Especialmente com sua perna ruim. Mas que outra escolha ela teria?
Olhando em volta, ela...
No canto, em uma bancada de trabalho, havia uma cadeira de rodinhas, que melhor se encaixaria em um escritório. Tinha até braços estofados.
Melhor do que arrastá-lo pelo chão, né?
Errado. Tentar mover o cara do sinalizador enfiado na cara para a cadeira foi mais difícil do que pensou... E não porque a rigidez cadavérica já estava a todo vapor, já que devia ter morrido assim que ela o atacou. O problema era a cadeira... Ela ficava deslizando cada vez que ela conseguia erguer o peso morto... Haha... Para qualquer local perto do assento estofado.
Não ia funcionar. E a propósito, o fedor daquela carne era como um treinador de futebol exortando seu estômago a vomitar.
Desistiu do corpo, que estava agora metade fora do catre, e cambaleou para o banheiro, e a ânsia seca foi muito útil: Antes de tudo, não havia nada dentro de se estômago para vomitar, e segundo, se ela achava que sua concussão estava forte antes?
De volta ao lado do cara morto, ela contornou os ombros dele, agarrou-o pelas axilas, e puxou com sua perna boa. As botas dele bateram no chão uma de cada vez quando o tirou totalmente da cama improvisada, e aqueles saltos Timberland arranharam seu caminho até a porta. Felizmente, o guarda tinha braços longos o suficiente para ser um centroavante dos Knicks, então ela não precisou arrastá-lo até a porta, parando alguns centímetros antes.
Os cotovelos dele até estavam curvados na direção correta.
O dedão estava bem onde precisava estar, e a luz na base do leitor piscou de vermelha para um laranja piscante.
No instante em que saísse dali, ela ia pular naquele maldito carro e acelerar.
Vermelho.
O leitor voltou a ficar vermelho. Então a digital dele não funcionou.
Largou a mão dele, caiu em si e baixou a cabeça. Quando uma onda de desmaio ameaçou, ela respirou fundo algumas vezes.
O outro guarda estava agora trancado na cela do outro lado do porão... E ela mal tinha conseguido se arrastar até ali. Como diabos ia arrastar o cara que tinha matado até aqui?
Aliás, outro cara que tinha matado.
E merda... Ela tinha trancado ele lá embaixo. Se a cela fosse protegida por digitais também? Era capaz de ela acabar morrendo de fome primeiro.
A menos que Benloise chegasse antes.
Apoiou-se na parede, e apoiou as mãos em seu joelho bom, tentou pensar, pensar, pensar...
Aparentemente, Deus tinha tomado suas preces de forma literal: Ela tinha saído do porta-malas após seu primeiro “Me ajude, Pai.”, o segundo “Querido Deus, me liberte.”, só tinha libertado ela da cela, mas não da casa.
Em sua terceira prece, ela foi realmente específica.
Oh, Deus, eu prometo sair desta vida se me deixar ver o rosto de minha avó mais uma vez. Espere, aquilo poderia acontecer se ela estivesse a beira da morte e de alguma forma, vovó viesse visitá-la no hospital. Querido Deus, se eu puder só olhar nos olhos dela e saber que estou em casa, a salvo com ela... Eu juro que a levarei para algum lugar longe e nunca mais arriscarei minha vida.
— Amém, – ela disse, ao lutar para se endireitar.
Buscando bem lá no fundo, encontrou forças para virar o rosto para a escada e...
Sola parou. Virou para o balcão onde tinha encontrado as chaves do carro e a munição. Bateu os olhos na solução que era ao mesmo tempo, completamente repugnante, e prova, indiscutível de que Deus estava ouvindo.
Parecia que as coisas estavam melhorando.
De um jeito bem doentio.
— Lá está, – Assail disse, apontando pelo para-brisa. — O desvio.
Ele tinha esperado uma eternidade pela quase escondida pista, sufocada por pinheiros, que finalmente achou por bem fazer uma aparição cerca de cinquenta metros adiante.
Como o celular de Ehric tinha previsto, eles tinham seguido a Northway todo o caminho pelo Parque Adirondack, passou por um lugar chamado Lago Plácido, bem como alguma montanha que, considerando o que eles tinham às costas, se encaixava bem.
Montanha Gore[18]
E não tinha ouvido falar de um resort de ski chamado Killington?[19] Seu tipo de diversão, a propósito.
Tinha sido uma longa viagem. Horas e horas, cada milha embaixo dos pneus do Range Rover como uma infinita sucessão de obstáculos a serem superados.
— Graças à Porra, – Ehric murmurou enquanto girava o volante e eles entraram em um miserável pedaço de terra.
A descida que se seguiu combinaria melhor com bodes, e felizmente a tração superior do Rover aliada à versão do pneu Goodyear que havia no carro, transformava os solavancos em aceitáveis. Era, no entanto, outro atraso infernal, a ponto de Assail se convencer de que eles tinham escolhido o caminho errado: embora o próprio Benloise estivesse com eles, era de se supor que tivesse algum acordo para o caso de não contatar a tempo os sequestradores dentro de certos parâmetros, de forma que, quem estivesse sob custódia fosse eliminado.
Assail encostou o cotovelo na porta e pousou o rosto na palma da mão. O fato de sua Marisol ser uma fêmea o deixava doente. Machos podiam ser fortes o suficiente com membros de seu próprio sexo... Pensar em todas as coisas que podiam ser feitas para uma mulher era um pesadelo que ele rezava não ter de ver realizado.
— Mais rápido, – ele murmurou.
— E correr o risco de perder um amortecedor? Temos de descer desta pilha de rocha.
Quando Assail já estava a ponto de gritar, o fim da viagem se apresentou abruptamente e sem aviso: uma estrutura térrea de concreto com todo o charme de um canil foi avistada, e antes de eles se aproximarem, ele destravou a porta e começou a descer do carro...
No momento em que a porta do lugar se abriu.
E pelo resto de sua vida, ele jamais esqueceria o que saiu de lá.
Marisol, nua da cintura para baixo, uma parka que ele reconheceu esvoaçando selvagemente atrás dela ao se lançar na noite. Iluminada em cheio pelos faróis, ela brilhava em vermelho, sangue corria de suas pernas e de seu torso fantasmagórico, seu rosto sombrio como a morte enquanto apontava uma arma bem a sua frente.
— Marisol! – ele gritou. — Não atire! É Assail!
Ele ergueu as mãos, mas não era como se ela pudesse vê-lo. — É Assail!
Ela cambaleou e parou, mas como uma boa garota ela manteve a arma apontada, enquanto piscava repetidas vezes, procurando enxergar. — Assail?...
A voz dela se partia de um desespero que o transformou para sempre: Como a visão, ele podia ouvir aquele tom de voz pronunciando as duas sílabas de seu nome pelos anos seguintes.
Em seus pesadelos.
— Marisol, querida Marisol... Eu vim por você.
Ele queria dizer a Ehric para apagar aquelas luzes, mas não sabia quem mais poderia estar lá com ela e se alguém estaria atrás dela.
— Marisol, venha para mim.
O jeito que as mãos dela tremeram quando as levou até a cabeça, o fez querer ajudá-la. Mas ela parecia incerta do que era realidade e o que podia ser um fantasma de sua imaginação. E com aquela arma, ela era tão perigosa quanto vulnerável.
— Marisol, eu prometi a sua avó que te salvaria. Venha para mim, querida. Siga a minha voz.
Ele abriu os braços na escuridão.
— Assail... – ao dar um passo adiante, ele percebeu que ela estava mancando. Terrivelmente. Mas então, é claro, um pouco daquele sangue devia ser dela.
— Ela vai precisar de tratamento médico, – ele disse em voz alta. Maldição, como ele conseguiria tratamento para ela?
Se ela morresse no caminho...
Quanto daquele sangue era dela?
Quando ela deu outro passo e mais um, e ainda ninguém surgiu atrás dela, ele teve alguma esperança de que nem todo aquele sangue fosse dela.
— Venha para mim. – quando ouviu sua própria voz partir, ele conseguiu sentir Ehric lançar-lhe um olhar do SUV. — Minha querida...
Marisol moveu aquela mão trêmula para abrigar os olhos, e por alguma razão, aquilo trouxe o fato de que ela estava nua em foco total.
Sua garganta inchou tão completamente que ele não conseguia engolir.
Foda-se.
Assail enfiou sua arma no cinto e correu para encontrá-la no meio do caminho.
— Assail... É você mesmo? – ela suspirou quando ele se aproximou.
— Sim. Por favor, não atire... Venha para mim, querida.
Quando ela deixou escapar um soluço, ele agarrou-a e segurou-a junto ao peito, o cano daquela arma se enfiando bem no seu esterno. Se ela puxasse aquele gatilho, ela o mataria.
Mas ela não puxou.
Com um soluço, ela se rendeu à sua força, e ele a segurou acima do chão quando ela vacilou. Ela pesava quase nada contra ele, por alguma razão que o aterrorizava ainda mais.
Portanto, ele permitiu apenas um momento de comunhão... E então ele precisava mantê-la a salvo.
Com ela no colo, ele se virou e correu para o Rover blindado, correu para aqueles faróis como se fossem uma celestial zona de segurança.
Ehric e seu irmão anteciparam o que ele queria com perfeição. Eles pularam do Rover e abriram as portas traseiras... Ao mesmo tempo em que tiraram Benloise do porta malas e mantiveram o homem fora da vista.
Marisol não precisava saber de sua presença.
Posicionou a fêmea no banco de trás, Assail abriu o saco de dormir, junto com água e barras de cereais que tinha trazido para ela. Cobrindo sua nudez, ele ficou com ela enquanto ela disparava a tremer.
— Marisol, – ele disse ao fazê-la encostar. — Coma. Beba. Ehric, meu primo, vai te levar...
As unhas dela se enfiaram em seus braços mesmo através do pesado suéter que ele vestia. — Não me deixe!
Ele tocou o lindo rosto dela. — Eu preciso fazer algo aqui por um momento. Coisas que devo cuidar. Te encontro na estrada. – Ele se inclinou para fora. — Ehric! Evale!
Os dois machos se aproximaram... E por um momento, ele considerou levá-la ele mesmo dali.
Mas não, vingança precisava ser executada, e ele era o que devia equilibrar a balança.
— Minha querida, olhe para meus parentes. – Ele se afastou para os primos poderem mostrar seus rostos, e ficou feliz deles parecerem bastante com ele. De fato, os três podiam se passar por irmãos. — Eles vão te levar daqui em segurança, e a protegerão com suas próprias vidas. Eu me juntarei a vocês logo. Não demorará muito. Prometo.
Seus olhos frenéticos e assustados foram para frente e para trás como se ela estivesse desesperadamente tentando se controlar.
— Vão, – Assail sibilou, olhando para a instalação. — Vão agora!
E ainda assim, achou impossível se afastar de sua Marisol. Ela tinha sido abusada e seu estado de nudez sugeria que...
Ehric agarrou seu antebraço. — Fique tranquilo, meu primo. Ela será tratada como uma irmã preciosa.
Mesmo Evale falou. — Ela estará em boas mãos, primo.
Assail teve um momento de conexão com os machos, sentindo palavras de gratidão entaladas em sua garganta. No final, tudo o que pode fazer, foi se curvar para eles.
Então, teve de se abaixar de volta para o SUV. — Não vou demorar.
Por instinto, sem estar consciente de decidir fazê-lo... Ele beijou Marisol na boca.
Minha, ele pensou.
Forçando-se a se concentrar, ele agarrou sua mochila, fechou a porta do SUV, e se afastou. Ehric, abençoado fosse, foi cuidadoso ao virar o veículo para que Benloise não fosse iluminado pelos faróis... E então o Rover tomou velocidade no terreno irregular.
Oh, agora ele desejava que a pista fosse asfaltada. Ele queria que fosse uma rodovia com um limite de velocidade de cem quilômetros por hora. Ou melhor ainda, que eles tivessem vindo de helicóptero.
Depois que os faróis desapareceram, ele tirou um capacete de mineração e colocou, acendendo a luz. Então ele foi até Benloise, agarrou-o pelas faixas de fita isolante em seus tornozelos, e puxou-o pelo terreno coberto de neve até a porta aberta.
Largando as pernas, segurou a arma e apontou para o homem.
— Só para me certificar de que você fique parado, – Assail disse.
Pop!
Benloise se encolheu, tentando proteger suas entranhas... Tarde demais. A bala já estava lá e lentamente fazia seu trabalho: Embora doloroso e debilitante, ferimentos intestinais levavam um tempo docemente longo para atingir seu objetivo.
Embora Assail não planejasse manter o bastardo esperando muito pela morte.
Entrou na habitação, de arma apontada e olhos alertas.
O que viu lá dentro o fez parar.
Junto a porta aberta, uma mão humana decepada jazia descartada, como se seu propósito tivesse sido servido e não tivesse mais valor. O corpo ao qual tinha estado grudada também estava lá... Não, aquele corpo tinha duas mãos... Embora não tivesse rosto que se pudesse distinguir.
Então havia pelo menos um morto ali dentro.
Sua Marisol tinha claramente lutado pela sua liberdade como um demônio.
Caminhando para o espaço aberto, ele não viu nada de valor ou interesse... Ou algo que pudesse esconder um indivíduo. Mas no canto mais distante, haviam escadas que desciam ao andar de baixo.
Ele olhou de novo seu cativo. Benloise continuava se contorcendo na neve logo após a porta principal, seus olhos escuros abertos e piscando descontroladamente, seu lábio superior descarnado, seus dentes de porcelana brilhando na luz ambiente.
Melhor levá-lo junto.
Assail foi até lá e tentou por o cara de pé. Quando Benloise falhou em conseguir ficar em pé sozinho, foi o trabalho do momento arrastar seus sessenta e três quilos para o interior. Então, juntos, seguiram para a escada.
Para o subterrâneo, os pés inúteis de Benloise balançavam atrás deles como bolas.
E lá estava o mal.
O piso inferior era feito de um grande espaço aberto com três celas e uma parede de horror. Uma das celas não estava vazia. Havia um homem com o rosto e pescoço brutalizados, deitado de costas, encarando o que ele só podia esperar que fosse o Inferno. Seu braço direito tinha sido puxado pelas barras de aço, e a poça de sangue anunciava que era dele a mão tinha sido arrancada.
Por um momento, Assail sentiu seu coração doer com um orgulho desolado. Marisol tinha se libertado. Não importava o que eles tinham feito a ela, ou quão poucos fossem seus recursos, ela tinha triunfado sobre os captores, não somente ferindo-os, mas matando-os...
Foi naquele momento que ele soube que tinha perdido para ela.
Ele amava aquela mulher... E de fato, era doentio sentir aquela profundidade de sentimentos em meio a esta carnificina e violência, mas o coração estava onde ele estava.
E enquanto Assail imaginava sua Marisol acorrentada àquele pedaço estreito de parede de concreto, ficou irado a ponto da insanidade, uma manada de touros correndo pelo seu corpo, milhares de chifres levando-o à loucura.
Voltando-se para Benloise, alongou as presas e sibilou como o vampiro que ele era.
Apesar de estar ferido, o distribuidor de drogas recuou. — Madre de Dios!
Assail abaixou, ficando cara a cara com o homem. — Isto mesmo! Eu sou o seu pesadelo!
Havia apenas uma corrente dependurada na parede. A outra estava caída no chão dentro da cela trancada, o sangue que tingia os elos provando que tinha sido a arma que Marisol tinha usado.
Seria bom colocá-la em uso novamente.
Assail se desmaterializou pelas barras e pegou os elos melecados e cheirando a cobre.
Oh, Marisol, como eu queria que você não tivesse de ser tão corajosa.
Quando Assail se desmaterializou de volta, Benloise não era mais o executivo controlado que costumava dar as cartas. Ao contrário dos corpos mortos e do sangue, ou mesmo da perda de seu irmão e a ameaça contra sua própria vida... Diante de tudo o que tinha conseguido manter sua compostura... Ver a identidade verdadeira de Assail, o tirou do sério.
Implorando, chorando, rezando, o homem perdeu o controle da bexiga, a urina jorrou de seu pinto encolhido no chão de concreto.
Assail olhou para a parede e prendeu novamente a corrente. Felizmente não havia nada fresco na superfície manchada. Mas ia haver.
Movendo o corpo resfolegante, balouçante e todo mijado para fora do chão, Assail mordeu as fitas isolantes que prendiam os pulsos do homem, e algemou-o à parede de braços abertos, encurtando as pontas até que o peito murcho dele ficasse esticado.
Assail pegou a mochila e abriu. Enquanto olhava para o monte de explosivos que tinha trazido com ele, soube que era mais do que suficiente para explodir a construção. Ele olhava para Benloise. O homem estava chorando, balançando a cabeça como se esperasse acordar.
— De fato, você está totalmente consciente, – Assail murmurou. — Mas não por muito tempo.
Virou-se para olhar a cela, imaginou sua Marisol lá, aterrorizada... E pior.
Seu coração disparou no peito. Se ele explodisse este lugar... Benloise seria libertado, morto e acabado... Talvez para o Inferno, mas como não se podia ter certeza da vida eterna até se estar lá, parecia mais prudente garantir o sofrimento deste lado mesmo.
Sua intenção era matar o distribuidor primeiro. Então armar os explosivos e detoná-los à distância.
Mas não parecia suficiente. Marisol tinha sofrido.
Um grunhido vibrou em seu peito... Como se seu próprio corpo estivesse protestando diante da possibilidade de ser enganado pela morte.
— Não, – ele disse a si mesmo. — Melhor assim.
Que pena que só parte dele acreditasse nisso.
Assail voltou a fechar a mochila e pendurou-a de novo. Foi à primeira e depois a outra corrente, e inspecionou-a por segurança. De fato, elas estavam bem fixadas. O mesmo se podia dizer das algemas daqueles pulsos.
Agarrou fortemente o queixo de Benloise e forçou a cabeça do homem para trás.
Com outro sibilo, atacou a carne da carótida, arrancando um pedaço e cuspiu-o no chão. O sangue era saboroso em sua boca e seus caninos formigaram de antecipação por mais. Só que não teriam.
A mordida era um símbolo do que um macho era levado a fazer por instinto e por hábito, para proteger sua fêmea. E ele teria despedaçado o pescoço completamente se Benloise não mesmo não fosse um torturador.
Quando sua presa disparou a falar em uma língua estrangeira, Assail lutou uma batalha para deixar o homem vivo. Crueldade ia requerer um autocontrole nestas circunstâncias... E geralmente aquilo não era um problema.
Mas nada que envolvesse Marisol era comum.
Assail bateu no homem em silêncio. Correndo seu dedo naquele rosto, ele grunhiu, — Ela não era sua para levá-la. Me ouviu? Não era sua. Ela é minha.
Antes que ele perdesse as estribeiras, ele foi para as escadas, deixando as luzes acesas de modo que Benloise tivesse plena consciência de onde estava: uma prisão que ele mesmo construiu com nada além de restos de um de seus guarda-costas para lhe fazer companhia.
Subiu as escadas dois degraus por vez, soube que havia uma possibilidade de que alguém viesse e libertasse o distribuidor, mas era remota. Benloise era notoriamente discreto, e com a morte de Eduardo, as únicas pessoas que sentiriam sua falta eram os guardas e equipe... E dada a maneira discreta que o homem operava, levaria um tempo até as tropas se reunirem para conversar e descobrirem que cada indivíduo estava tão fora do circuito que não houve contato de seu superior com qualquer pessoa da equipe por um tempo.
Depois disto? Era uma pergunta aberta onde qualquer um deles poderia realmente ir a procura do chefe. Pessoas que operavam no submundo se dispersavam quando se tratava de complicações como esta... Ninguém ia arriscar a ser assassinado ou algemado por autoridades humanas só para salvar a pele de alguém.
Benloise ia morrer, lentamente.
E quando alguém encontrasse os corpos dentro da instalação? Este ano... O próximo... Daqui uma década?
A cobertura que Benloise tinha construído ia ser explodida.
Lá em cima, Assail fez uma varredura no cômodo aberto. Encontrou dois telefones, que desligou, removeu as baterias, e guardou na mochila. Deixou armas e munição, e foi cuidadoso ao fechar a porta e testar se estava bem trancada.
Estava.
Ao sair da construção quadrada, ele encontrou um tanque de petróleo na parte de trás. Localizou a válvula e viu que só estava um quarto cheio. Dado o frio que fazia nesta altura, ele supôs que o suprimento acabaria em um dia ou dois.
Os corpos então ficariam armazenados em um ambiente gelado. Bom para manter o cheiro baixo, não que fosse haver muito cheiro emanando dali, devido às janelas pequenas, todas fechadas.
Ele estava a ponto de sair de lá quando notou um carro estacionado na lateral.
Se adiantando, ele ergueu a capa de camuflagem e testou uma das portas. Trancada.
Se ele explodisse o local, a bola de fogo atrairia atenção, e aquilo não era desejável, ele deixou a capa cair de volta no lugar.
Fechou os olhos em preparação para se desmaterializar, e visualizou sua Marisol saindo por aquela porta. E foi ao estremecer que ele se tornou um com o ar da noite, enviando suas moléculas para o sul, para uma área de descanso aproximadamente trinta quilômetros abaixo da Northway.
Retomou forma, tirou o celular e discou para Ehric.
Um toque. Dois. Três.
— Ela está bem, – seu primo disse ao invés de cumprimentar. — Ela acabou de comer e bebeu água. E está ansiosa para te ver.
Assail se encolheu na própria pele. — Bom trabalho. Eu estou no local combinado.
— Conseguiu dar conta do trabalho?
— Sim. Há alguém por perto de você?
— Nem na frente, nem atrás, e estamos a cerca de três quilômetros de você.
— Vou aguardar aqui.
Desligou e observou seu aparelho celular. Seu primeiro instinto era chegar em casa, mas ela ia precisar de cuidados médicos... E ela iria querer estar limpa e vestida para encontrar a avó.
A próxima chamada de Assail foi para sua própria casa, e quando a voz feminina de sotaque carregado atendeu, ele se pegou piscando para afastar as lágrimas.
— Minha senhora, – ele disse asperamente. — Ela...
— Não está morta, – a idosa gemeu. — Meu Deus, não me diga que ela...
— Ela está viva. Eu a resgatei.
— O quê? Repita, por favor.
— Viva. – Embora ele não tivesse certeza da parte do “bem”. — Ela está viva e sob meus cuidados.
Discurso frenético agora, na língua nativa. E embora Assail não conhecesse nenhuma das palavras, o sentido não era só claro, mas algo com o que ele concordava.
Obrigado, Virgem Escriba, ele pensou, mesmo que não fosse religioso.
— Estamos longe de Caldwell, – ele lhe disse. — Não vamos conseguir chegar até o amanhecer, de forma que só chegaremos aí após o anoitecer.
— Falar com ela? Posso?
— É claro, senhora. – Adiante, um par de faróis se aproximava pela rodovia. — Eu preciso de um momento, e já coloco ela na linha.
O Range Rover veio exatamente em sua direção, subiu a rampa da área de descanso, e os faróis traseiros brilharam quando Ehric freou.
— Ela está aqui, senhora, – ele disse ao abrir a porta traseira.
Marisol estava enrolada naquele saco de dormir, e sua cor estava melhor – pelo menos até ela olhar para ele e o pouco de cor que lhe sobrava nas faces desaparecer imediatamente.
Assail ficou confuso, Ehric se virou, olhou para ele... E recuou. Com um círculo rápido, ele indicou o próprio rosto.
Oh, merda. Assail devia estar com sangue na boca.
— Sua avó, – ele murmurou, esticando o celular para Marisol.
Certeiramente, aquilo fez sua magia e redirecionou a atenção da fêmea... E quando ela agarrou o celular como se segurando à própria vida, ele voltou a fechar a porta.
Virou e se dirigiu a instalação pública atrás dele em uma corrida, entrou no banheiro masculino e viu uma fileira de urinóis e privadas.
Por cima das pias, havia um painel de aço inoxidável que servia como espelho.
— Caralho.
Não era o que qualquer fêmea quisesse ver, especialmente depois de ter sido sequestrada: O rosto dele estava totalmente coberto de sangue, seu queixo e lábios marcados com as manchas... E suas presas... As pontas das presas estavam expostas.
Com sorte, a reação dela era só pelo sangue do rosto.
Se encurvou e ligou a torneira, juntou as mãos, mas as torneiras eram do tipo que tinha de pressionar para manter ligada. O processo levou tempo demais, encher uma única mão e trazer ao rosto vez após vez. E então não havia nada no que se secar.
Esfregou as mãos no rosto, passou-as pelo cabelo, os quais, graças a Paul Mitchell ainda retinham algum tipo de semelhança atrativa.
Ele estava mesmo tentando parecer bonito naquela situação? Que ridículo.
Ao correr de volta ao Range Rover, ele soube que teria de fazer uma terceira ligação quando sua Marisol terminasse com a avó: sua fêmea ia precisar de um médico.
Aonde ir? No Antigo Continente, não havia médicos da raça disponíveis para ele e seus primos. Felizmente, no entanto, ele e seus parentes tinham conseguido um humano ou dois de confiança para vir em altas horas, sem fazer perguntas.
Mas ele não tinha este acordo aqui no Novo Mundo.
Portanto, só havia uma pessoa que poderia contatar... E esperançosamente haveria uma solução dentro dos seus padrões.
Marisol merecia o melhor. E ele não lhe ofereceria nada menos.
Sentado no banco traseiro do Mercedes, John Matthews observava pelo para-brisa sua irmã hesitar no umbral da porta da casa de seu pai. As portas duplas da mansão estavam abertas, e ele tinha entrado e ligado a luz do saguão da frente para ela.
A silhueta dela cortava o brilho que se derramava na noite, a forma preta como um jogo de sombra.
Jesus... Se ela tivesse um filho, seria o futuro Rei ou rainha. E aquilo adicionava outra faceta a questão do ter-ou-não-ter.
— Podemos seguir, senhor? – Fritz perguntou, da frente.
John assobiou num tom ascendente, então esfregou seu rosto e se reclinou no assento. Ele estava fodidamente exausto. O contraste que tinham lhe injetado no braço o tinha deixado estranho, e então houve a ansiedade rascante que sentira dentro da máquina de ressonância enquanto ela fazia ping ao seu redor. Ressonância aberta, seu cu. Sim, claro, era melhor do que ser enfiado naquele tubo imenso e ser trancado apertado como pasta de dente, mas estava longe de uma situação confortável.
Oh, além disto, tinha aquele machado feliz pendurado sobre sua cabeça do talvez você tenhaaa um tumoooooor. Parafraseando Arnold.
Pelo menos, aparentemente ele não tinha de se preocupar com aquilo. E fodam-se os medicamentos anticonvulsivos. Ele ia ficar bem. Ele era forte. Sim. Totalmente.
Merda. Se ele tivesse um episódio daqueles enquanto estivesse em campo?
Que fosse. Ele não podia se preocupar com aquilo.
Com um bing! Seu celular anunciou que uma mensagem de texto tinha chegado. Pegou a coisa, franziu o cenho ao que Tohr tinha enviado a todos. Precisamos de reforços na clínica. Visitantes de fora em 55 minutos. Confirmar posições, imediatamente.
John digitou uma resposta rápida: Estou a caminho. Disponí...
Não sabia como terminar as coisas. Assim que chegassem em casa, ele iria pedir a Fritz para empacotar algumas coisas que Beth tinha pedido... E então encontraria Wrath. Falaria sobre coisas difíceis. Dizer ao Rei que sua companheira não iria voltar para casa hoje iria ser tão divertido quanto ter uma daquelas convulsões, mas alguém teria que contar ao macho sobre os planos dela... E evidentemente não iria ser Beth.
Ela lhe disse claramente que não estava com grande pressa de falar com o marido.
Ou estar perto dele, evidentemente.
Depois de deixar o centro médico, ela tinha pedido ao Fritz para dirigir por aí enquanto ela se acalmava, com a sugestão de John, em um restaurante chinês 24 h na Trade... Que por coincidência acontecia de ser, oh, ei, bem no fim da rua do Iron Mask: não era como se John não pudesse tomar conta de sua irmã... Mas era bom saber que tinha bastante reforço disponível alguns quarteirões adiante graças a sua companheira e seu esquadrão de gigantes.
Enquanto comiam, Beth tinha ficado a maior parte do tempo quieta, embora estivesse com bastante apetite... Ela terminou seu bife com brócolis e então detonou seu KPC junto com sua quase meia dúzia de biscoitos da sorte. Quando eles terminaram, a vontade dele era voltar para o carro, para vagarem pela Rua Trade por um tempo até que não houvesse mais tempo.
Obviamente, ela tinha ficado dividida entre ficar na cidade e ir para casa.
Cara, ele sentia por ela. Que bagunça.
E era engraçado, por mais que detestasse ficar no meio das coisas, não havia nada que ele não fizesse por ela. Nada.
Deus, o que ele tinha murmurado durante a convulsão...?
Cerca de vinte minutos depois, Fritz tinha trazido-os em segurança para a instalação secreta da Irmandade. Circulando a fonte no meio do gramado da frente, ele estacionou em um espaço entre o GTO roxo de Rhage e o R8 preto novinho de V.
O Irmão ainda tinha o Escalade, é claro. Só que era uma versão mais nova dele.
Saltando, John caminhou com o mordomo à grande entrada. Ao contrário do outro lugar de seu pai na cidade, esta mansão era mais uma fortaleza do que uma habitação, suas grandes paredes de pedra se erguiam da terra, tão indestrutível quanto a montanha em cima da qual foi construída.
Se explodisse uma bomba atômica em algum lugar? Este lugar, Twinkies e baratas. Seriam só o que restaria.
John deu um tapinha no braço do mordomo quando Fritz começou a abrir a maçaneta de bronze. Você pega as coisas dela?
— Mas é claro. – O doggen parecia preocupado. — Do jeito que ela pediu.
As implicações da rainha estar em algum lugar além de seu próprio quarto, com seu companheiro, não passou despercebido a Fritz... Mas ele era discreto demais para fazer perguntas ou estardalhaço. Em vez disto, ele só irradiava ansiedade... A ponto de dar para torrar marshmallows na aura do doggen.
Entrando no vestíbulo, John colocou a cara na câmera de segurança e esperou por uma reposta. Desde que a Primeira Família se mudou para ali, nunca tinha havido chaves para a casa, não havia jeito de conseguir entrar a menos que fosse liberado por alguém do interior.
E um momento depois, a tranca foi liberada, e eles foram admitidos a entrarem no majestoso vestíbulo central. Todo folheado a ouro, cristais, e aquelas colunas de mármore coloridas? Era um palácio de czar transferido para os arredores de Caldwell.
Quando seu pai o tinha construído? John se perguntava. Talvez em 1914?
Não fazia ideia. E ainda mais impressionante? Por quase um século, Darius tinha conseguido, de alguma forma, manter os olhos humanos fora da propriedade particular, os lessers por fora... E os sympaths sem fazer ideia de suas coordenadas: Esta localidade, e seu centro de treinamento subterrâneo, não tinha sido encontrada durante toda sua história. Mesmo durante os ataques.
Que proeza. Que legado.
Deus, ele queria ter conhecido o pai. Queria que o Irmão ainda estivesse por ali... Porque ele tinha certeza absoluta que precisava de uns conselhos de pai, sobre como falar com Wrath a respeito do que estava rolando.
Parando em cima da figura de uma macieira em flor, John deixou Fritz entrar na frente, o mordomo correu pela escada digna do Palácio de Buckingham.
Wrath estava indubitavelmente lá em cima, em seu escritório... Mas primeiro, ele precisava de um tradutor.
Porra.
Quem ele ia pedir para...
— Onde ela está?
John fechou os olhos diante da exigência... E levou um minuto até se virar para a sala de jogos. Claro, embaixo do arco, o Rei estava vestido em couro negro, as mãos nos quadris, a mandíbula levantada agressivamente.
Mesmo sendo cego, e com os olhos escondidos pelos óculos escuros, John sentiu como se o macho olhasse fixamente. Porra. Para ele.
De uma só vez, o barulho do ambiente, que John não tinha tido consciência de estar ouvindo, ficou mortalmente quieto: Os Irmãos que estavam jogando sinuca atrás de Wrath pararam de se mover e conversar, até que somente as faixas do The Marshall Mathers LP 2 do Eminem continuasse soando ao fundo.
— John. Onde está a minha companheira.
Diante daquele olhar, John andou para frente. Sim, quase todos os Irmãos estavam lá com Wrath... Sem dúvida, eles tinham se rendido ao seu humor e tinham ficado na defensiva.
Passando por entre os grandes corpos, ele travou os olhos com V e gesticulou, Eu preciso de você.
Vishous anuiu e estendeu seu taco de sinuca para Butch. Apagou o cigarro em um cinzeiro de cristal e se aproximou.
Wrath alongou as presas. — John, pelo amor de Deus, eu vou te cortar se não...
— Calma aí, garotão, – V murmurou. — Eu vou traduzir. Vamos para a biblioteca onde podemos...
— Não, eu quero saber agora onde caralhos minha shellan está! – Wrath berrou.
John começou a gesticular, e embora a maior parte das pessoas traduzissem palavra por palavra, V esperou ele terminar todo o relato.
Alguns Irmãos murmuraram ao fundo enquanto balançavam a cabeça.
— Na biblioteca, – V ordenou ao Rei de um jeito que John jamais teria feito. — Você vai preferir fazer isto na biblioteca.
Coisa errada a dizer.
Wrath voou para o Irmão com tanta velocidade e acuidade que ninguém estava preparado. Um minuto V estava parado próximo ao Rei; no próximo ele se defendia contra um ataque tão aleatório quanto… Bem... Violento.
E foi quando a merda bateu no ventilador.
Como se Wrath soubesse que estava a ponto de perder o controle, largou V e deu uma de bola de demolição na sala de jogos. A primeira coisa que destruiu foi a mesa de sinuca onde Butch ainda estava... E mal houve tempo para tirar o cinzeiro de cristal do apoio lateral: Wrath agarrou os cantos e ergueu a coisa como se fosse uma mesinha de carteado, o gigante de mogno e feltro voou tão alto, que arrancou a luminária pendurada no teto, o peso tão grande que estilhaçou o chão de mármore onde aterrissou.
Sem parar para respirar, o Rei disparou como um tornado para sua próxima vítima... O pesado sofá de couro do qual Rhage tinha acabado de se levantar.
Mais um que sofa-copterizou[20].
A coisa toda caiu no chão, a um metro e meio de distância de John, as extremidades mudando de lugar ao girar, girar, girar, almofadas voando em todas as direções. Ele não tomou como pessoal... Especialmente, quando o viu fazer o mesmo com o bar, quebrando as garrafas das prateleiras do alto, bebida jorrando pelas paredes, o chão, o fogo que estava aceso na lareira.
Wrath não tinha terminado.
O Rei pegou uma mesinha lateral, ergueu-a acima da cabeça e jogou-a na direção da TV. Errou a tela de plasma, mas conseguiu quebrar um espelho antiquado... Embora a Sony não tenha durado muito. A mesa de centro que tinha estado entre dois sofás fez o trabalho, matando a imagem muda de dois caras de Boston e o velho de Southie com o taco de beisebol transmitido pela DirectTV.
Os Irmãos só deixaram Wrath fazer o que queria fazer. Não que tivessem medo de se machucar. Inferno, Rhage deu um passo a frente e segurou o primeiro sofá antes que arrancasse um pedaço do gesso da arcada. Eles só não eram estúpidos.
Wrath – Beth x Dormir fora = Monstro Psicótico
Melhor deixá-lo extravasar destruindo o lugar. Mas cara, era doloroso olhar.
John pulou para o lado quando um barril veio voando para sua cabeça. Felizmente, Vishous conseguiu agarrá-lo antes da coisa atingir o chão de mosaico do vestíbulo... Que teria sido uma merda consertar.
— Temos de contê-lo, – alguém murmurou.
— Amém, – alguém mais respondeu. — Se ele partir para o resto da casa, será uma merda que nem mesmo Fritz não saberá limpar.
— Eu cuidarei disto.
Todo mundo se virou e olhou para Lassiter. O anjo caído de mau comportamento e gosto por tudo ainda pior, tinha aparecido do nada... E parecia sério, pela primeira vez.
— Que porra é essa? – V perguntou quando o anjo levou uma caneta dourada à própria boca.
Só que não era uma Bic elegante. Com um sopro rápido, Lassiter descarregou um pequeno dardo pela sala... E quando atingiu Wrath no ombro, o impacto foi como se o Rei tivesse sido ferido por uma bala no peito.
Ele caiu pesadamente, seu corpo endurecendo e então tombando como um carvalho.
— O que caralhos você fez! – V bancou o Wrath para cima do anjo. Mas Lassiter enfrentou o Irmão.
— Ele ia se machucar, destruir a casa, ou um de vocês, imbecis! E não precisa esquentar suas calcinhas. Ele só vai tirar um cochilo.
Wrath soltou um ronco.
Movendo-se cuidadosamente, a Irmandade se aproximou como se estivessem verificando um urso e John foi com eles. Quando um círculo se formou em torno da Bela Adormecida, houve uma porção de maldições sussurradas.
— Se você o matou...
Lassiter guardou seu dispositivo dourado. — Ele parece morto?
Não, na verdade, o pobre bastardo parecia estar em paz consigo mesmo e com o mundo, suas cores fortes, seu corpo tão relaxado que suas botas estavam caídas para o lado.
— Querida... Virgem... Escriba...
Todos olharam para a arcada. Fritz estava parado lá com uma maleta Louis Vuitton em uma mão e a expressão de alguém testemunhando um acidente de carro a sua frente.
John fechou os olhos
Ele esperou como o inferno que Beth tivesse entrado naquela casa e trancado a porta como ela tinha prometido, e deitado para dormir durante o dia.
Um dos dois estava nocauteado. Não era necessário o outro também estar.
Depois que Fritz e John saíram, Beth finalmente entrou na casa do pai... E enquanto entrava, o movimento crescente do tempo pareceu ser revertido. De uma hora para outra, minutos, horas, dias... Então semanas e meses... Desapareceram.
De repente, ela era quem tinha sido antes de conhecer Wrath... Uma mulher humana, de vinte e poucos anos, que vivia com seu gato em um apartamento studio atulhado, tentando ganhar a vida em um mundo, com nada e ninguém às suas costas. Certo, ela tinha amado partes de seu trabalho, mas seu patrão, Dick o Imbecil, tinha sido um pesadelo absoluto e misógino. E sim, ela era adequadamente paga, só que não restava muito após pagar o aluguel... Ou oportunidade de avanço de carreira no Caldwell Courier Jornal. Oh, e romance de qualquer tipo tinha sido tão fictício e fora do horizonte, quanto para o Cavaleiro Solitário.
Não que ela estivesse interessada em homens, realmente. Ou mulheres, afinal.
Mas então nesta única vez, no acampamento...
Fechou a porta e foi cuidadosa em trancar a porta. Fritz tinha uma chave, então quando ele chegasse com suas coisas, conseguiria entrar... Mas ninguém mais.
Quando o silêncio na casa a cercou, parecia barras em uma gaiola. Como inferno ela tinha acabado ali? Passar um dia inteiro longe de Wrath? Ontem mesmo, no lugar deles na cidade de Nova York, a separação seria impensável.
Entrou na sala de estar, e perambulou ao redor, se lembrando como, quando ela tinha vindo aqui pela primeira vez, estava convencida que Wrath era um traficante, um criminoso, um assassino. Pelo menos tinha se enganado com os dois primeiros... E ele tinha provado o último quando quase tinha matado Butch O'Neal na frente dela, no beco.
Seguindo-se àquele pequeno horror, eles tinham vindo para cá... Onde encontraram Rhage no banheiro do térreo, costurando seus ferimentos. Foi depois daquilo que Wrath a tinha levado pela colorida e iluminada escadaria para o subterrâneo... Ao covil escondido.
Onde lhe foi dito quem ela realmente era.
O que ela realmente era.
Por falar em entrar na toca do coelho. Só que tinha feito tanto sentido, que a tinha deixado confusa... A desconexão das pessoas ao seu redor, sua sensação de que não pertencer, sua inquietação que tinha aumentado, ao se aproximar de sua transição.
E pensar que ela supôs que tudo o que precisava era sair de Caldwell.
Não. Sua transformação estava vindo, e sem Wrath, ela teria morrido. Sem dúvidas.
Ele a tinha salvo de tantas maneiras. Amara-a com seu corpo e alma. Tinha lhe dado um futuro que ela jamais teria sonhado.
Naquele momento? Tudo o que ela queria era voltar para aquele início. As coisas tinham sido tão mais fáceis...
Aproximou-se do retrato de um rei francês que ia do chão ao teto, e apertou o comutador escondido que liberava a pintura a óleo em sua moldura de ouro. Quando as coisas se abriram, ela meio que esperou que estivesse tudo escuro por lá – afinal, ninguém vivia ali há quanto tempo? Mas do jeito que tudo estava aspirado e polido e limpo, as lanternas a gás acenderam em suas gaiolas de metal, os degraus de pedra áspera e paredes descendo em curva para o porão.
Jesus, ainda tinha o mesmo cheiro. Um pouco de mofo e umidade, mas não sujeira.
Correndo a mão pela pedra irregular, ela desceu para o subterrâneo. Os dois quartos de suítes no fundo lhe deu uma escolha para a esquerda ou para a direita, e ela escolheu o da esquerda.
O que tinha sido o abrigo de seu pai contra o sol.
As fotografias dela ainda estavam onde ele as tinha pendurado, todos os tipos de fotografias em tantas molduras diferentes cobrindo a escrivaninha, as mesas de cabeceira perto da cama, a cornija da lareira.
A imagem específica que procurava estava perto do despertador.
Era a única de sua mãe, e sim... Só um rápido relance da mulher lhe diziam ter sido de quem tinha herdado os cabelos negros e grossos e o formato do rosto e o formato dos ombros.
Sua mãe.
Que tipo de vida a mulher tinha vivido? Como Darius apareceu em sua vida? Do que Wrath tinha dito no início, os dois não ficaram juntos por muito tempo antes dela descobrir o que Darius realmente era... E fugir. Não foi até descobrir estar grávida que ela voltou a vê-lo, assustada pelo que traria ao mundo.
Ela tinha morrido no parto.
E Darius tinha permanecido afastado depois daquilo, esperando que a filha deles não herdasse o lado vampírico dele.
Alguns mestiços nunca passavam pela transição. Alguns não sobreviviam à transição. E os que conseguiam, estavam sujeitos à leis biológicas imprevisíveis. Beth, por exemplo, podia ficar à luz do dia desde que usasse protetor solar e óculos escuros. Butch, por outro lado, não conseguia desmaterializar-se.
Então só Deus sabia sobre a coisa da gravidez. Mas se ela tivesse sorte, ela entraria em sua necessidade, e Wrath de alguma forma viria e ela daria a luz a...
Bem, de novo, tinha sido o que matara sua mãe, não é?
— Bosta.
Sentou-se no colchão e colocou a cabeça entre as mãos. Talvez Wrath tivesse razão. Talvez toda a coisa da concepção fosse realmente muito perigosa de se mexer. Mas aquilo não desculpava o modo como ele a tratara, e isso não encerrava a discussão.
Cristo, enquanto ela se sentava ali, cercada pelas fotos que Darius tinha dela, ficava ainda mais convencida de que queria um filho.
Baixando os braços, tirou seu Black Berry, digitou a senha, e verificou se tinha chegado alguma mensagem que não tivesse ouvido. Não. Brincou com a coisa em suas mãos, e tolamente desejou que fosse um iPhone. Mas V, não era somente anti-Apple; ele estava convencido que o legado de Steve Jobs era a raiz de todo o mal no planeta...
Algumas vezes os casais se davam melhor pelo telefone.
E uma vez que Wrath não tinha sido razoável, isso não significava que ela tinha de agir do mesmo modo. Se ela queria ter algum espaço pelas próximas doze horas ou mais, ela realmente precisava lhe dar a cortesia de dizer-lhe isso ela mesma... E não usar seu irmão como mensageiro.
O problema era que Wrath não tinha mais um telefone. Não precisava... Quando ele oficialmente assumiu a função de Rei, tinha sido aposentado da Irmandade, como mandava o costume, a lei e a porra do bom sentido. Não que isso tenha impedido-o de levar um tiro.
Mas existiam vários telefones na mansão.
Seis da manhã. Ele provavelmente ainda estaria trabalhando no escritório.
Discou os números, ouviu um toque. O próximo. Um terceiro.
Não havia correio de voz para Wrath porque a glymera tinha totalmente abusado do número que lhes tinham dado. Que era porque ele acabou com uma conta de e-mail do inferno.
O próximo número que tentou foi do aparelho de seu quarto, o que era tão impublicável, que ela nunca tinha realmente ligado para lá. Ninguém respondeu.
Ela tinha várias escolhas àquele momento. A clínica do centro de treinamento... Para o caso dele ter sido ferido. Mas como aquilo aconteceria? Ele não saía mais da casa. A cozinha... Só que a Última Refeição estava quase à mesa e Wrath provavelmente estaria em todo aquele caos sem ela: Mesmo que nunca tenha dito, ela tinha a sensação de que ambientes cheios e barulhentos o deixavam desconfortável por sobrecarregarem seus sentidos de audição e olfato, tornando difícil para ele posicionar as pessoas no espaço.
Havia só mais um número para tentar.
Quando ela escolheu a pessoa de seus contatos, outro pedaço de seu passado voltou a ela.
Ela visualizou Tohr passando pelas portas de vidro deslizantes de seu antigo apartamento, o Irmão tão grande quanto qualquer pesadelo. Mas ele tinha sido, e sempre fora, um aliado. Aquela noite eles dividiram biscoitos de cereais Sam Adams e Godzilla tinha sido o início de uma amizade verdadeira.
Ele estava em um lugar totalmente diferente agora. Perdeu Wellsie. Encontrou Autumn.
E Beth também não era mais a mesma.
Quando fez a chamada, houve apenas um toque antes de ser atendida: — Beth.
Ela franziu o cenho diante do som estranho da voz de Tohr. — Você está bem?
— Oh, sim. Definitivamente. Que bom que você ligou.
— Ah... Por quê? – Será que Wrath tinha dito à Irmandade que ela não iria voltar para casa? Provavelmente não. — Não importa. Eu só... Estou procurando Wrath. Sabe onde ele está? Tentei o escritório e nosso quarto e ele não atendeu.
— Oh, é... Definitivamente.
Que porra é essa? — Tohr. O que aconteceu?
Um medo real se alojou no meio de seu peito, sua mente se afastou dela. E se...
— Nada. Verdade... Bem, temos visitas importantes inesperadas vindo para a clínica, então estou tentando obter reforços.
Ah, droga. Ela estava sendo paranoica. Melhor do que ter razão, então.
— Quanto a Wrath, a última vez que o vi, ele estava... – houve uma pausa. Então um ruído como se o cara estivesse trocando o celular para a outra orelha. — Ele estava tirando um pequeno descanso.
— Descanso como?
— Ele estava dormindo.
Beth sentiu sua boca abrir. — Dormindo?
— É. Descansando.
— Verdade?
Lá estava ela, se sentindo como se estivesse passando por um espremedor, confusa sobre o que pensar e sentir, revendo toda a relação deles de frente para trás, de trás para frente, ensaiando conversas, amarrando-se em nós. Enquanto isso, ele estava só, sabe... Curtindo uma siesta.
— Bem, que bom, – ela ouviu-se dizer. — Eu fico feliz por ele.
— Beth...
— Escute, eu tenho que ir. – Sim, ela estava ocupada, ocupada, ocupada. — Se ele acordar, diga-lhe...
Não, não que ela ligou. Homens não eram os únicos a quem era permitido manter o orgulho; mulheres não tinha, de ser o “sexo frágil”.
— Na verdade, eu mesmo lhe digo. Estou na casa do meu pai, fazendo uma arrumação. – Sim, pois a casa estava mesmo uma bagunça. — Mas volto à noite.
O alívio honesto que veio pela linha foi atordoante. — Oh, que boa notícia. Fico feliz.
— Ok, bem... – De alguma forma ela não conseguiu forçar-se a desligar.
— Beth? Ainda está aí?
— Sim. Estou. – Ela se pegou esfregando a coxa para cima e para baixo. — Ouça, posso perguntar uma coisa?
— Sim. Claro.
Afinal, Wellsie e Tohr tinham tido suas discussões... Algumas das quais Beth tinha ouvido em primeira mão bem antes da linda ruiva ser levada tão cedo. Cara, Wellsie tinha sido destemida para dizer exatamente o que pensava a qualquer um, inclusive seu hellren. Ela nunca ficava brava sem um bom motivo, é claro, mas você não quereria ficar no caminho dela se não precisasse.
As pessoas a respeitavam.
O que eles pensam de mim, Beth se perguntou.
— Beth?
Certamente, se houvesse alguém que pudesse ajudá-la com Wrath, e manter segredo, seria Tohr. De fato, ele era o único que era enviado quando pessoas precisavam de ajuda com o Rei.
— Beth, o que está acontecendo?
Abrindo a boca, ela quis falar, mas havia outro problema. A pessoa com que precisava falar era Wrath. Qualquer outra pessoa era só enrolação.
— Você ainda torce pelo monstro?
Houve uma pausa. Então, o Irmão riu em seu costumeiro tom barítono. — Está me dizendo que há outra maratona do Godzilla passando?
Beth ficou feliz de estar sozinha. Porque teve a impressão de que o sorriso que deu parecia mais triste do que qualquer lágrima.
Ela só queria voltar para quando as coisas eram mais simples. Mais fáceis. Mais próximas.
— Só pensando nos bons tempos, – ela desabafou.
Instantaneamente, o tom de voz de Tohr ficou tenso. — Sim. Eles eram... Bons.
Oh, merda. Mesmo que ele estivesse apaixonado e emparelhado com Autumn, devia doer lembrar de sua primeira esposa... E do bebê que ela carregava.
— Sinto muito, eu...
Ele se recuperou mais rápido que ela. — Não se sinta mal. O passado é o que é... Bom e ruim, está escrito e não pode ser mudado. E há consolo nisto também.
As lágrimas pinicaram seus olhos. — O que quer dizer?
Houve uma longa pausa. — As partes boas são mais luminosas porque você pode confiar nelas. E as partes ruins não podem ficar mais trágicas pela mesma razão. O passado é seguro porque é indelével.
Subitamente, ela pensou de novo naquele primeiro encontro que teve com Wrath lá em cima. Como a retrospectiva pintava tudo com um brilho rosado, não tinha sido exatamente daquele jeito, tinha?
Pensando bem, ele tinha estado nervoso quando ela chegara aquela noite. A ponto de ela ter considerado ir embora.
Dificilmente a perfeição que a nostalgia retrata.
— Você tem razão, Tohr.
— Sim. – Ele pigarreou. — Sabe, não é tarde demais. Você ainda pode voltar se sair agora.
— Eu não preciso me preocupar com o sol, lembra.
Ela pode praticamente sentir o estremecimento dele pelo celular. — Eu não posso responder a isso. Realmente não posso.
Com pena dele, ela mudou de assunto, prometendo cuidar de si mesma e voltar ao anoitecer.
Depois de desligar, ela se esticou na cama do pai. Olhando para o teto, imaginou Darius fazendo a mesma coisa durante o dia... Algumas vezes com Wrath no outro quarto do final do corredor.
Wrath era um verdadeiro recluso antes de conhecê-la. Ele lutava sozinho, dormia sozinho, e com toda certeza não queria nada com toda a coisa do trono. Até se emparelhar com ela, ele se recusava a reinar.
Ela não podia contar a quantidade de vezes que as pessoas tinham lhe agradecido por trazê-lo para o reinado... Como se o amor fosse alguma espécie de poção mágica que transformava um monstro em… Bem, não em um cara totalmente civilizado, mas pelo menos em alguém que estava disposto a assumir suas responsabilidades.
Ele tinha realmente caído no sono?
Mas também, quando tinha sido a última vez que ele realmente tinha dormido durante o dia? Não desde antes de ser ferido.
Bem antes de seus olhos se fecharem, ela se sentou e ligou o alarme de segurança que estava instalado perto da cabeceira da cama. Digitou o código apropriado, armou as coisas e deitou de novo.
Os números? A data de seu nascimento. Mês, dia e ano.
Outro exemplo do quanto, bem antes de ela entrar neste mundo vampírico, seu pai tinha pensado nela: V pode ter sido o que instalou o equipamento obra de arte e mantinha-o atualizado, mas Darius tinha escolhido o código há anos.
Estendeu a mão e apagou as luzes, reacomodando-se sobre o edredom.
Momentos depois, ela voltou à lâmpada, acendendo-a de novo.
Quando se estava sem o marido, perfeitamente seguro era relativo.
Sola jamais tinha sentido tanto frio.
Enrolada em um saco de dormir, com a ventilação jogando BTUs[21] em seu rosto, não conseguia parar de tremer no banco de trás do Range Rover.
Havia ao menos meia dúzia de bons motivos para estar em choque, daquele tipo que começava na cabeça e então colocava o corpo em um entorpecimento profundamente congelante.
Ao mudar de posição, sua coxa deu um grito... Lembrando-a de que também havia um fator físico imperativo ali. Quanto sangue teria perdido?
— Estamos quase chegando.
Sua cabeça se voltou para o som carregado daquela voz. Mesmo que quase não houvesse luz dentro do SUV, ela conseguia imaginar o rosto de Assail, como se estivesse sob um holofote: olhos profundos da cor da luz da lua, espessas sobrancelhas escuras, lábios carnudos, maxilar forte. O pico de viúva e o cabelo preto azulado.
Ao piscar os olhos, viu sangue na parte de baixo daquele rosto... E dentes muito afiados.
Ou teria sido um pesadelo? Estava tendo problemas em distinguir o que era realidade.
Ela abriu a boca para falar, mas nada saiu. — Minha cabeça... Não está funcionando direito.
— Está tudo bem. – Como que por impulso, ele estendeu a mão em sua direção, mas então a deixou cair como se não soubesse o que fazer.
Sola lutou para engolir, sentindo a boca seca. — Mais água, por favor?
Ele se moveu tão rápido que foi como se estivesse só esperando uma chance de se por em movimento. Enquanto ele abria outra garrafa de água mineral, ela começou a empurrar o saco de dormir para liberar as mãos... E não conseguiu. O tecido de nylon parecia pesar mais do que uma camada de asfalto.
— Fique parada, – disse ele suavemente. — Deixe que eu te dou.
— Minhas mãos não funcionam.
— Eu sei. – Ele trouxe a garrafa perto de sua boca. — Beba.
Mais fácil falar do que fazer. Seus dentes começaram a bater. — Desculpe, – ela murmurou ao derrubar boa parte da água.
— Ehric, quanto falta? – ele gritou.
O Range Rover parou subitamente. — Eu acho que é aqui... Ou algum lugar aqui perto.
Sola franziu o cenho ao olhar por cima do ombro do motorista a sua frente. A cerca frágil à frente dos faróis parecia algo condizente com uma fazenda de gados... Abandonada. Metade dela estava pendurada, as placas de madeira antigas e arames enferrujados, mais emaranhados que alinhados.
— Onde estamos indo? – ela perguntou roucamente. — Eu pensei... De volta para casa.
— Precisamos tratar de você antes. – Assail repetiu aquilo de estender a mão e então deixá-la cair antes de tocá-la. — Você precisa... Está ferida e não podemos deixar sua avó te ver assim.
— Oh. Certo. – Jesus, ela tinha se esquecido que estava seminua, ferida, e precisando de um bom e longo banho. — Obrigada.
— Não pode ser aqui, – o motorista murmurou.
Assail olhou fixamente pelo para-brisa... Como se as coisas também não fossem o que ele esperava. — Vá até aquela caixa.
Ao se aproximarem de algo que parecia uma casa de passarinho de madeira sobre uma estaca, o motorista baixou o vidro...
Uma voz incorpórea veio de dentro coisa: — Te achamos. Passem pelos portões.
Como mágica, o “frágil” sistema de segurança se abriu ao meio, se movendo suave e silenciosamente.
A estrada do outro lado estava coberta de neve, mas ainda trafegável. Alguma distância depois, eles chegaram à outra barreira. Esta era menos descuidada, e também mais alta, feita de correntes enferrujadas, e ainda assim parecendo firmemente afixadas em suas estacas. Desta vez, não tiveram de parar... A cerca se abriu diante deles, deixando-os atravessar.
E assim foi.
Enquanto prosseguiam, viram os sistemas de segurança se tornarem mais modernos e mais imponentes, até chegarem a algo que parecia pertencer a uma instalação do governo. Postes de concreto, tão grandes quanto os que haviam sob a ponte de Caldwell, ancoravam um painel sólido de metal, do tamanho de um outdoor. E descortinando-se em ambas as direções? Uma muralha de mais de seis metros com arame farpado no topo e avisos de não ultrapassar a cada três metros.
Tipo Jurassic Park, Sola pensou.
— Impressionante – o motorista murmurou.
Como as outras, aquela se abriu antes que pudessem parar na entrada óbvia, com seu teclado, comunicador e equipamento de monitoramento.
— Isto é... Uma base do exército? – Sola murmurou.
Talvez Assail fosse um policial disfarçado... Neste caso... — Eu preciso de um advogado? – ela perguntou.
— Para o quê? – Assail permanecia concentrado no caminho, olhando para fora pelo para-brisa como se fosse ele que dirigia o veículo.
— Você vai me prender?
A cabeça dele se voltou para trás, as sobrancelhas bem baixas. — Do que está falando?
Sola relaxou de novo no banco. Se ele estivesse mentindo, merecia um Oscar. E se não estivesse... Bem, talvez fosse o jeito de Deus responder à sua prece. Uma solução para mantê-la fora da vida do crime, era jogá-la no sistema carcerário.
O túnel subterrâneo onde entraram era digno de um Lincoln ou Holland com suas luzes fluorescentes e linhas amarelas no meio, e a descida inclinou o Range Rover para a frente com um ângulo agressivo.
— Estamos em Caldwell? – ela perguntou.
— Sim.
Assail se recostou, e agora, sob a luz abundante, ela o viu enfiar a mão direita sob o casaco.
Sola franziu o cenho. — Você... Por que está pegando sua arma?
— Eu não confio em ninguém além de mim mesmo. – Ele se virou para ela. — E eu prometi à sua avó. Você voltará ilesa, e eu sou um homem de palavra. Pelo menos nisto.
Ao cruzar seu olhar com o dele, ela teve a sensação mais estranha em seu peito. Parte dela era medo, e a confundiu. Com a situação na qual tinha estado, era melhor seu salvador estar carregando uma Ponto 40, preparado para usá-la.
A outra parte disto era... Nada que ela quisesse analisar mais profundamente.
O túnel terminava em um estacionamento que a lembrava daquele sob a Arena Caldwell: tetos baixos, muito espaço, a elevação ascendente que desaparecia em um canto sugerindo múltiplos andares.
— Onde estamos? – ela perguntou ao passarem por uma porta fechada.
A guisa de resposta, a coisa se abriu e uma equipe médica saiu, médicos, enfermeiras, maca e tudo o mais.
— Graças à Virgem Escriba, – Assail murmurou.
Oh... Merda. Os jalecos brancos não estavam sozinhos... Estavam acompanhados por três homens imensos: um loiro com um rosto saído do cinema, um cara com aspecto militar com um cabelo à escovinha e uma expressão mais dura que uma tábua de corte de açougueiro, e então um cara verdadeiramente aterrorizante que tinha o crânio raspado e uma cicatriz que lhe atravessava a bochecha e fazia uma curva ao lado da boca.
Não, este não era o governo dos Estados Unidos.
A menos que fosse uma divisão secreta de valentões.
Assail levou a mão à trava da porta. — Fique no carro.
— Não vá, – Sola pediu.
Ele olhou de volta para ela. — Não tenha medo. Eles me devem uma.
Seu salvador estendeu a mão de novo e desta vez, não conseguiu se conter. Acariciou sua bochecha tão levemente que se não tivesse visto, não teria percebido.
— Fique.
E então ele se foi, fechando solidamente a porta. Através dos vidros escuros, ela observou um quarto homem sair do corredor fortemente iluminado. Sim, ele obviamente não era um contador... Com um casaco tão comprido que se arrastava no chão e uma bengala, estava vestido como um cafetão antiquado, seu moicano cortado baixo e sorriso sardônico se encaixando na imagem à perfeição.
O homem e Assail estenderam as mãos exatamente ao mesmo tempo. E ficaram de mão dadas enquanto trocavam algumas palavras...
Algo estava errado. Assail começou a franzir o cenho; então pareceu positivamente emputecido. Mas quando o homem de moicano ergueu os ombros e pareceu irredutível, Assail finalmente entregou sua arma e foi revistado pelos outros. E somente depois de seus homens descerem e se sujeitarem ao mesmo tratamento foi que o cafetão acenou para o time de médicos e enfermeiras se aproximarem do veículo.
Quando chegaram perto para abrir sua porta, uma pontada de medo fez Sola puxar o saco de dormir até a altura do queixo.
A mulher que enfiou a cabeça pela porta era atraente, com cabelos loiros curtos e olhos verdes escuros. — Oi, eu sou a Dra. Jane. Gostaria de dar uma olhada em você, tudo bem?
Sua voz era nivelada. Gentil. Calma.
Ainda assim, Sola não conseguiu se mover ou responder.
Pelo menos não até Assail aparecer atrás da médica. — Está tudo bem, Marisol. Ela vai cuidar de você.
Sola se pegou olhando nos olhos dele por um longo tempo. Quando pareceu satisfeita com o que viu, suspirou. — Está bem. Está bem...
E foi quando seus tremores finalmente pararam.
Assail não estava contente com seus coldres vazios, mas Rehv tinha sido bem claro: Ou ele e seus primos entregavam as armas, ou a fêmea humana não seria tratada.
Somente assim para Assail consentir em ficar tão vulnerável e ele odiava. Mas as prioridades vinham primeiro.
— E o nome dela é Marisol, – ele se ouviu dizer quando a médica loira começou a falar em voz baixa. — Sola.
De uma distância à esquerda, pôde sentir Rehv encará-lo, e o leahdyre do Conselho não foi o único. Os três Irmãos em guarda eram profissionais demais para demonstrar, mas podia jurar que estavam se perguntando por que ele aparecia em sua porta com uma mulher humana. Que estava ferida. Por quem ele estava disposto a entregar suas armas.
— Não, fique aí, Marisol. Vamos dar a volta. – A doutora saiu e acenou para a equipe. — Os sinais vitais estão baixos, mas estáveis. Ferimento a arma de fogo na coxa direita. Possível concussão. Talvez esteja em choque. Pode ter sofrido outros traumas que não quis me falar.
Assail sentiu o sangue deixar sua cabeça, mas não permitiu que a vontade de desmaiar o dominasse...
— Você, – ele chamou asperamente. — Afaste-se.
O macho – ou, Deus, aquele era realmente um homem humano? – parou imediatamente.
O médico principal, a fêmea, falou alto — Este é meu parceiro. Dr. Manello. Ele é...
— Ele não vai chegar perto dela. – Assail expôs as presas. — Ela está nua da cintura para baixo.
Ele teve vaga consciência de todo mundo ter congelado e olhado em sua direção. Estava também consciente de um aroma que tinha subitamente entrado em cena. Ele não disse mais nada enquanto olhava aquele homem de cima, preparado para cair sobre sua garganta se ele continuasse a se aproximar do Rover.
O cara ergueu as mãos como se estivesse sendo ameaçado por uma arma. — Está bem, está bem. Vamos relaxar. Você me quer longe. Estou fora.
Recuando, ele ficou perto dos Irmãos, balançando a cabeça, mas sem dizer nada.
A médica colocou a mão sobre o antebraço de Assail. — Nós só vamos colocá-la na maca. Porque não vem comigo. Pode observar e ficar por perto.
Assail abafou seu grunhido e pigarreou. — Farei isso. Obrigado.
Na verdade, ele fez mais.
Quando a médica abriu a porta de Marisol, ele odiou o jeito que sua mulher se encolheu antes de conseguir se impedir. E então o olhou fixamente.
— Quer que eu te ajude a sair? – ele perguntou roucamente, antes que qualquer um da equipe médica pudesse se aproximar.
— Sim. Por favor.
Parecia tão correto empurrar todo mundo para longe e ser o macho a cuidar dela: Inclinando-se para o interior do SUV, passou os braços sob ela, sendo cuidadoso em trazer o saco de dormir junto, para que não ficasse exposta.
O sibilo que ela tentou segurar o fez sentir náuseas, mas ele tinha de tirá-la dali... E uma vez endireitado, ela pareceu encontrar posição cômoda em seus braços.
A cabeça dela caiu contra o ombro dele e lá ficou.
— Eu vou carregá-la para dentro, – ele informou à medica.
— É provavelmente melhor que... Ah, está bem, tudo bem.— A curadora loura ergueu as mãos quando ele expôs as presas de novo. — Está bem. Só me siga.
O Irmão Rhage era o primeiro no corredor, e os outros dois guerreiros vieram atrás, vigiando a retaguarda junto aos primos.
Assail caminhava o mais suavemente que podia, cada vez que Marisol se enrijecia em seus braços ou respirava fundo expressando sua dor, atingindo-o diretamente em seu próprio peito até que fossem os seus pulmões a queimarem, a sua respiração a se entrecortar, a sua perna a doer.
Avançando, eles passaram por um número aparentemente infinito de salas, para algumas das quais ele olhou, mas para a maioria ele nem se deu ao trabalho de virar a cabeça para observar. Do pouco que pôde notar, eram apenas salas de aula, um escritório vazio... Algo que parecia uma sala de interrogatório. Bem quando se convenceu de que estavam entrando em outro código postal, a fêmea doutora finalmente parou e indicou o caminho até uma sala de exames.
A maca ao centro ficava diretamente sob um conjunto de lâmpadas penduradas, e ao se inclinar e transferir Marisol para a superfície acolchoada e coberta de lençol, ele ficou feliz que a médica não acendeu a luz. Parecia claro demais na sala azulejada, o aço inoxidável e prateleiras de vidro brilhantes demais para ele, a mesinha rolante com os instrumentos pareciam uma ameaça, mesmo que nas mãos certas, aquelas ferramentas fossem supostamente para ajudar.
Queria Virgem Escriba no Fade, o rosto de Sola estava cinzento de dor e exaustão ao se sentar, com os joelhos apertados contra o peito, o saco de dormir azul marinho enrolado a sua volta como uma segunda pele.
— Vou pedir a todos os não-essenciais, que fiquem lá fora, – a médica disse, expulsando os Irmãos, os primos e o médico. — Não, não... Ficaremos bem. Certo, tchau tchau. – Então em um tom de voz mais baixo, ela sibilou, — Ele é um macho vinculado. Quer lidar com isso se tiver de fazer um exame interno nela?
Macho... Vinculado? Ele?
Quando os Irmãos começaram a discutir com ela, Assail acenou sombriamente aos guerreiros e Rehvenge. — Não haverá problemas de minha parte. Vocês têm minha palavra.
Só que então ele se perguntou se a privacidade de Marisol não merecia proteção dele próprio.
— Marisol, – disse suavemente. — Talvez seja melhor se eu...
— Fique.
Ele fechou os olhos. — Está bem.
Ele se aproximou de sua cabeça, virou as costas a seu corpo, para que ela pudesse travar contato visual com seu rosto, mas que ele não pudesse ver nada que comprometesse sua privacidade.
A médica se aproximou dela e falou suavemente. Gentilmente. — Se puder se deitar de costas, seria ótimo. Se não se sentir segura, eu compreendo, posso erguer a cabeceira da cama para você.
Houve um longo silêncio. — Qual seu nome de novo? – Marisol perguntou asperamente.
— Jane. Eu sou a Jane. Atrás de mim está minha enfermeira, Ehlena. E nada vai te acontecer aqui contra a sua vontade, ok? Você está no comando.
De fato, ele tinha a impressão de que iria gostar desta médica.
— Ok, está certo. – Marisol agarrou a mão dele e se recostou, fazendo careta até estar totalmente deitada. — Ok.
Ele esperava que ela o soltasse ao se deitar. Mas ela não o fez... E seus olhos não desgrudaram dos dele. Nem quando a médica retirou o saco de dormir e a cobriu com um cobertor. Nem quando perguntas sobre uma possível concussão foram feitas, e reflexos foram testados. Nem quando a ferida da coxa foi cutucada e costurada. Nem quando uma máquina portátil de Raios-X foi trazida e uma imagem foi tirada de diferentes ângulos.
— Então eu tenho todo tipo de boas notícias, – a médica disse um pouco mais tarde, ao se aproximar com um notebook. No monitor estava a imagem sombreada do osso da coxa de Marisol. — Não apenas a concussão foi leve, mas a bala passou de forma limpa. Não há evidência de que o osso tenha sido atingido. Então nossa preocupação principal é o risco de infecção. Eu queria limpar as coisas mais cuidadosamente... E lhe dar alguns antibióticos além dos analgésicos. Tudo bem?
— Estou bem, – Marisol cortou.
A médica riu ao afastar o notebook. — Eu juro que você vai se encaixar super bem aqui. Isto é o que todos os meus pacientes dizem. Ainda assim, eu respeito a sua inteligência... E eu sei que não vai querer colocar sua saúde em risco. O que me preocupa é o risco de sepse... Você me disse no carro que foi ferida há vinte e quatro horas. É um longo tempo para ter as coisas cozinhando ali embaixo.
— Vamos enfrentar isso, Marisol, – Assail ouviu-se dizer. — Vamos acatar o conselho dela.
Marisol fechou os olhos. — Ok.
— Bom, bom. – a médica fez algumas anotações no notebook. — Só mais uma coisa.
— O quê? – Assail perguntou, quando houve uma pausa longa.
— Marisol, eu preciso saber se você foi ferida em algum outro lugar.
— Algum outro... Lugar? – veio a resposta abafada.
Assail podia sentir o olhar da doutora sobre ele. — Se importa de nos dar um minutinho?
Antes dele poder responder, Marisol apertou sua mão tão forte que ele piscou. — Não, – ela disse cheia de tensão. — Em nenhum outro lugar.
A médica pigarreou. — Pode me contar qualquer coisa, sabe. Qualquer coisa que seja importante para seu tratamento.
Subitamente, Marisol voltou a tremer... Do jeito que tremeu no banco de trás do Range Rover. Rapidamente, como se desgrudasse algo da pele, ela disse, — Ele tentou me violentar. Não conseguiu. Eu o peguei antes...
De repente, os sons da sala sumiram. A ideia... Não, a realidade... De que alguém a tinha maltratado, ferido, marcado seu corpo precioso, tentado...
— Você está bem? – alguém perguntou. A enfermeira. Devia ser a...
— Ele vai desmaiar! – a médica exclamou.
Assail se perguntou de quem elas estariam falando... Antes de perder completamente a consciência.
— Fale, curador, – Wrath exigiu ao se erguer acima do corpo inerte de sua shellan. — Fale!
Querida Virgem Escriba, ela parecia morta.
De fato, imediatamente em seguida ao colapso de sua Anha, ele a carregara de volta ao quarto que partilhavam, os Irmãos ao seu lado, os aristocratas e seus inúteis jogos sociais deixados para trás. Fora ele que deitara sua amada sobre a cama, como o médico tinha orientado, e fora ele a afrouxar seu corpete. Os Irmãos saíram assim que o médico de confiança chegara com seus instrumentos de trabalho, e então ficaram somente os três, a lareira que crepitava, e o grito que reverberava em sua alma.
— Curador, o que me diz?
O macho olhou por sobre o ombro do banco ao lado de Anha. Com as vestes negras de sua posição caindo até o chão, ele mais parecia um pássaro gigantesco, na iminência de alçar voo.
— Ela está perigosamente debilitada, meu senhor. – Diante do recuo de Wrath, o médico se levantou. — Eu acredito que ela esteja carregando um bebê.
Um frio o invadiu, soprando de sua cabeça para os pés, varrendo o sentimento em sua forma inteira. — Ela está...
— Carregando um bebê. Sim. Eu pude perceber ao sentir sua barriga. Está dura e distendida, e o senhor disse que ela recentemente passou por sua necessidade.
— Sim, – ele suspirou. — Então isto é causado pelo...
— Isto não é um sintoma de aborto, já que ela não tem hemorragia. Não, eu acredito que esta doença é por conta de algo diferente. Por favor, meu senhor, vamos até a lareira para conversarmos sem perturbá-la.
Wrath permitiu-se ser arrastado para mais perto das chamas. — Ela está doente então, com a febre?
— Meu senhor... – o médico pigarreou, como se talvez estivesse preocupado sobre uma morte que não tinha nada a ver com a rainha. — Perdoe-me, senhor...
— Não me diga que não tem explicação, – Wrath sibilou.
— Preferiria que eu te enganasse? Seu coração está lento, a pele está cinzenta, a respiração está superficial e intermitente. Pode estar ocorrendo alguma dificuldade interna que não consigo medir a que ela esteja sucumbindo. Eu não sei.
Wrath voltou o olhar para sua companheira. Ele nunca tinha sido sensível. Agora o terror deslizou sob sua pele, possuindo-o como um espírito maligno, dominando-o inteiro.
— Meu senhor, eu diria para alimentá-la agora. Agora e por quantas vezes ela precisar de sua veia. Talvez a troca de energia possa reverter isso... Realmente, se ela tem qualquer esperança, é você. E se ela se levantar, eu lhe darei água fresca somente, nada de cerveja. Nada que cause mais depressão em seu sistema...
— Saia.
— Meu senhor, ela está...
— Deixe-nos... Agora!
Wrath teve consciência do macho cambalear até a porta. E médico tinha razão de cambalear – uma fúria assassina se erguera no peito de seu Rei e era passível de se dirigir diretamente a qualquer um que lhe ficasse à frente.
Quando a porta voltou a se fechar, Wrath se aproximou da cama. — Meu amor, – ele disse desesperadamente. — Anha, meu amor, volte para minha voz.
Voltou a se ajoelhar.
Wrath caiu de joelhos no chão perto da cabeça dela. Acariciou seu cabelo sobre os ombros e seguiu acariciando o braço, sendo cuidadoso para não colocar nenhum peso na carícia.
Medindo sua respiração, tentou encorajá-la a respirar fundo. Ele queria voltar à noite anterior, quando acordaram juntos e olhara dentro de seus olhos e viu-os brilharem cheios de vida. Na verdade, transtornava sua cabeça pensar que ele se lembrava com tanta clareza de tudo, naquele momento, aquela hora, aquela noite, os cheiros da refeição que comeram, e as conversas que tiveram sobre o futuro, e as audiências que teriam na corte.
Ele sentia como se a claridade das memórias devessem ser uma porta, que ele pudesse atravessar, e lá tomaria a sua mão, e absorveria seu aroma, e sentiria a leveza no coração que acompanhava a saúde e o bem-estar... E a colocaria de volta no presente, naquela condição.
Mas era só fantasia, é claro.
Desembainhou sua adaga cerimonial e trouxe a lâmina brilhante e polida. Quando sua manga pesada com as pedrarias e conjunto de ouro precioso ficaram no caminho, ele puxou seu casaco fino pelo torso, jogando-o atrás de si. Quando pousaram com um som rascante, todas aquelas pedras preciosas meticulosamente afixadas, arranharam o assoalho de carvalho, ele passou a ponta da faca através do pulso.
Ai, antes fosse sua garganta.
— Anha, de verdade, sente-se para mim. Erga a cabeça, meu amor.
Erguendo-a em seu antebraço livre, ele trouxe a fonte de seu sangue até os lábios dela. — Anha, alimente-se de mim... Alimente-se de mim...
Os lábios dela se abriram, mas não por estar obedecendo à sua voz. Não, era somente o ângulo de sua cabeça.
— Anha, beba... Volte para mim.
Quando gotas vermelhas caíram em sua boca, ele rezou para que elas, de alguma forma, encontrassem seu caminho garganta abaixo, se enfiassem em suas veias, revivendo-a com sua pureza.
Este não era o destino deles, ele pensou. Eles deviam ficar juntos por séculos, e não separados apenas um ano após se conhecerem. Isto não era... Para eles.
— Beba, meu amor...
Ele manteve o pulso no lugar até que o sangue ameaçou transbordar de seus lábios. — Anha?
Baixou sua cabeça até a palma fria da mão dela, e rezou por um milagre. E quanto mais ele ficava ali, mais ele se juntava a ela em um estado que só ficava a uma batida de coração da morte.
Se ela morresse, ele iria com ela. De um jeito ou de outro...
Querida Virgem Escriba, isto não era para eles.
Wrath não despertou além da superfície do sono, como uma boia que flutuasse das profundezas, para emergir sobre uma superfície instável.
Ele estava no poço escuro de sua cegueira, naturalmente... E como sempre, ele jogou seu braço para o lado oposto da cama...
Crash!
Wrath ergueu a cabeça e franziu o cenho. Tateou em volta com a mão, e encontrou coisas que pareciam livros, um apoio de copo, um cinzeiro.
Lareira acesa.
Ele não estava em seu quarto. E Beth não estava com ele.
Virando-se, se ergueu um pouco, o coração pulando no peito, a arritmia deixando-o zonzo. — Beth?
No porão de seu cérebro, reconheceu estar na biblioteca térrea na mansão da Irmandade, mas seus pensamentos eram como vermezinhos em solo úmido, se contorcendo incessantemente, sem chegar a lugar algum.
— Beth...?
Um ruído distante.
Wrath esfregou o rosto. Se perguntou onde seus óculos estariam. Pensou, sim, ele estava no sofá da biblioteca, aquele em frente à lareira.
— Oh... Puta merda... – Ele grunhiu ao tentar ficar em pé.
Ficar em pé não foi nada divertido. A cabeça girou, o estômago se contraiu como um punho, e ele teve de segurar em um braço do sofá ou teria caído.
Cambaleando pelo espaço desconhecido, ele não foi até a porta, ela que veio a ele, os painéis duros atingindo seu peito. Tateou em busca das maçanetas, abriu o trinco e...
George explodiu na sala, o golden correndo em círculos, as fungadas sugerindo que sorria.
— Ei, ei...
Wrath queria voltar ao sofá, porque não queria que os olhos funcionais na casa o vissem assim... Mas seu corpo tinha ideia diferente. E ao cair de bunda, George aproveitou a oportunidade para pular em cima dele, cobrindo-o como um cobertor.
— Ei, garotão, é, nós dois estamos aqui... – Acariciando o peito largo do retriever, ele enterrou o nariz naquele pelo e deixou o cheiro de cachorro bom e limpo agisse como aromaterapia nele. — Cadê a mamãe? Sabe onde ela está?
Que pergunta cretina. Ela não estava aqui, e era sua maldita culpa.
— Merda, George.
Aquela cauda grande estava batendo contra suas costelas, e aquele focinho estava fungando, e as orelhas abanando. E estava tudo bem, tudo normal – mas estava longe de ser suficiente.
— Me pergunto que horas são?
Maldição... Ele tinha perdido o controle com John e V, não é mesmo? E aquilo não era nem metade. Ele tinha uma vaga lembrança de destruir a sala de jogos, jogando todo tipo de merda, brigando com alguém que tinha chegado perto demais... Então, soneca. Ele tinha quase certeza que alguém o tinha drogado, e não podia dizer que culpava quem quer que o tivesse feito. Se não fosse o desmaio induzido por tranquilizantes, ele não sabia quando teria parado.
E ele não queria machucar nenhum dos irmãos, ou serviçais. Ou a casa.
— Merda.
Parecia que seu vocabulário estava limitado a isso.
Cara, ele devia ter deixado Vishous trazê-lo aqui para lhe dizer o que estava acontecendo. Mas, pelo menos, só havia dois lugares onde sua companheira poderia estar. Um era o Lugar Seguro da Marissa, e o outro era a casa de Darius. E sem dúvida, aquilo era o que John tinha tentado dizer.
Porra, ele pensou. Aquilo não era ele e Beth. Não era assim que deviam terminar.
Claro que as coisas sempre tinham parecido predeterminadas com ela; do modo como ela tinha entrado em sua vida à realização que ela tinha trazido a ele, tudo tinha sempre parecido destino. Eles tinham tido discussões, claro. Ele era um imbecil de cabeça quente e ela não aguentava nenhuma merda dele. Dã.
Mas nunca esta separação. Jamais.
— Vamos lá, amigão. Precisamos de privacidade.
George pulou e deixou Wrath se levantar do chão. Depois de fechar as portas de novo, ele embarcou em um jogo de esconde-esconde com o telefone. Por falar em castração. Mãos estendidas a sua frente, torso encurvado, pés se arrastando, trombou com coisas e tateou-as até identificar onde estava a namoradeira, uma poltrona, uma mesinha lateral...
A mesa pareceu ser a última merda de coisa com a qual ele trombou, e descobriu onde o telefone estava quando sua mão masculina bateu no receptor e o derrubou da base. Levando a coisa ao ouvido, tateou em busca dos números e então teve de voltar a por no gancho antes de conseguir voltar a discar.
Imaginando a disposição do teclado numérico na base do arranjo, discou uma sequência de sete números e esperou.
— Lugar Seguro, boa tarde.
Ele fechou os olhos. Tinha tido esperanças de que estivesse perto do anoitecer, porque então ele poderia sair para procurá-la. — Ei, Beth está aí?
— Não, sinto muito. Quer deixar recado? – Quando ele fechou os olhos, a fêmea disse, — Alô? Está me ouvindo?
— Não quero deixar recado.
— Posso avisar quem ligou, se ela vier mais tarde?
Ele brevemente se perguntou o que a recepcionista diria se lhe dissesse quem era. — Eu a encontrarei em outro lugar. Obrigado.
Ao desligar, sentiu a cabeça grande de George cutucar sua coxa. Tão típico do cão... Querer ajudar.
Wrath manteve o dedo no gancho, apertando. Ele não sabia se estava pronto para outro sinal de linha. Se ela não atendesse no próximo número? Ele não ia ter nenhuma porra de ideia de onde ela estaria. E a ideia de ter de ir até Vishous ou John para aquele tipo de informação era embaraçosa demais para aguentar.
Ao discar uma sequência diferente de números, pensou consigo mesmo...
Eu não acredito que acabamos assim. Isto simplesmente... Não somos... Nós.
Virando a cabeça no travesseiro, Sola olhou para o chão do quarto de hospital que lhe tinha sido dado. Mas ela não viu nada.
Em vez disto, flashes do sequestro continuavam a girar à frente de seus olhos, bloqueando tudo o mais: Sua chegada em casa e ser atingida na cabeça. A viagem de carro. O sinalizador. A perseguição na neve. Então a cela de prisão e aquele guarda que descera para...
A batida na porta a assustou. E engraçado, ela sabia quem era. — Que bom que voltou.
Assail abriu uma fresta na porta, e só colocou a cabeça para dentro, como se temendo assustá-la. — Está acordada.
Ela puxou as cobertas mais para cima, no peito. — Nunca durmo.
— Não? – abrindo mais a porta, ele entrou com uma bandeja de comida. — Eu esperava... Bem, talvez você não se importe com um pouco de nutrição?
Sola inclinou a cabeça para o lado. — Você fala da maneira mais antiquada.
— O Inglês não é minha língua nativa. – Ele pousou a bandeja em uma mesa de rodinhas e empurrou-a para perto dela. — Nem minha segunda língua, a propósito.
— Deve ser por isto que eu adoro te ouvir.
Ele congelou ao ouvir as palavras... E sim, talvez se ela não estivesse grogue de analgésicos, ela não teria admitido tal coisa. Mas que inferno.
Subitamente, ele olhou para ela, uma luz intensa nos olhos fazendo-os parecer mais brilhantes que o usual. — Fico contente que minha voz lhe agrade, – ele disse roucamente...
Sola se concentrou na comida ao começar a se sentir aquecida por dentro pela primeira vez desde... Tudo. — Obrigada pelo esforço, mas não tenho fome.
— Você precisa comer.
— Os antibióticos me deixam enjoada. – ela acenou com a cabeça em direção a bolsa de soro intravenoso dependurada no suporte próximo a sua cama. — Seja lá o que for, é só... Horrível.
— Eu te alimento.
— Eu...
Por alguma razão, ela voltou a pensa naquela noite em que o encontrou lá fora, na neve, quando ele a tinha rastreado ao sair de sua propriedade e a tinha confrontado no carro. Por falar em ameaça no escuro... Jesus, ele a tinha assustado para caralho. Mas não tinha sido só isso o que tinha sentido.
Assail trouxe a única cadeira do quarto mais para perto. Engraçado, não era uma daquelas cadeiras de plástico que existiam comumente em clínicas; era algo saído da Pottery Barn[22], estofada, confortável, e com um bonito padrão. Ao se sentar, ele não coube, e não por estar acima do peso. Ele era grande demais, seu corpo poderoso agigantava-se pelos braços e espaldar da cadeira, as roupas pretas demais pela cor pálida.
Havia duas manchas de sangue em sua jaqueta, marrom e seco. E em sua camisa. Suas calças.
— Não olhe para isto, – disse ele, suavemente. — Aqui. Para você, escolhi somente o melhor.
Erguendo a tampa, ele revelou...
— Onde infernos eu estou? – ela perguntou ao se inclinar e respirar fundo. — Será que Jean-Georges tem uma divisão médica ou algo assim?
— Quem é este Jean-Georges?
— Um chefe chique de Nova York. Eu vi um programa dele na Food Network. – Ela se sentou, piscando quando sua perna soltou um grito de dor. — Eu nem gosto de carne... Mas esta está parecendo incrível.
— Eu acho que você precisa de ferro.
O pedaço de bife estava lindamente cozido, com uma crosta crocante ao cortar com...
— Isto é prata de lei? – ela perguntou, olhando para o garfo, a faca... A colher que ainda estava no elegante guardanapo dobrado.
— Coma. – Ele levou à sua boca um pedaço cuidadosamente cortado. — Coma por mim.
Espontaneamente, a boca dela se abriu, como se não fosse aceitar nenhum daqueles atrasos estilo eu-posso-comer-sozinha.
Fechando os olhos, ela gemeu. É, ela não estava com fome. Nem um pouco.
— Esta é a melhor coisa que eu já comi na vida.
O sorriso que iluminou o rosto dele não fez sentido. Era brilhante demais para ser só por ter trazido a bandeja... E ele deve ter percebido, porque virou a cabeça, de modo que ela só viu de relance sua expressão.
Pelos próximos quinze, vinte minutos, os únicos sons na sala, além do ruído de ventilação foi da luxuosa prataria arranhando o prato de porcelana. E sim, apesar dos oh-não-eu-não-conseguiria-comer, ela comeu aquele enorme pedaço de bife e as batatas bolinha, e o creme de espinafre. Assim como o pãozinho, que com certeza era caseiro. E a torta de pêssego. E ela até mesmo bebeu um pouco da água gelada e do café que veio em uma garrafa.
Ela provavelmente teria comido também o guardanapo, a bandeja, toda a prataria e a mesinha rolante se tivesse chance.
Voltou a deitar de costas no travesseiro, colocando a mão sobre a barriga. — Eu acho que vou explodir.
— Eu vou colocar isto no corredor. Com licença.
De seu ponto de vantagem, ela mediu cada movimento que ele fez: o jeito que ficou em pé, agarrou as extremidades da bandeja com mãos grandes e elegantes, virou-se, caminhou suavemente.
Por falar em boas maneiras. Ele tinha manejado os talheres com uma fluidez educada, como se acostumado àquele tipo de coisa em sua própria casa. E ele não tinha derrubado nem uma gota ao servir o café. Nem tinha deixado cair qualquer migalha ao levar a comida à boca dela.
Um perfeito cavalheiro.
Difícil conciliar isto com o que tinha visto quando ele tinha lhe entregado o celular para falar com sua avó. Naquela hora, ele tinha parecido desequilibrado, com sangue correndo pelo queixo como se tivesse arrancado um pedaço de alguém às dentadas. As mãos dele, também, estavam vermelhas de sangue...
Considerando que ela tinha matado todo mundo naquele lugar horrível antes de escapar? Ele obviamente tinha trazido alguém com ele.
Oh, Deus... Ela era uma assassina.
Assail voltou para perto dela e se sentou, cruzando as pernas na altura do joelho, não com o tornozelo no joelho como os homens normalmente fazem. Juntando as mãos, ele as levou até a boca e observou-a.
— Você o matou, não matou, – ela disse suavemente.
— Quem?
— Benloise.
O olhar magnético dele se desviou dela. — Não falemos disto. De nada disto.
Sola se concentrou em dobrar elaboradamente a beirada de cima da coberta. — Eu não consigo... Não posso fingir que a noite passada não aconteceu.
— Você terá de fazer isso.
— Eu matei dois homens. – Ela ergueu rapidamente os olhos para ele e piscou rapidamente. — Eu matei... Dois seres humanos. Oh, Deus...
Cobrindo o rosto, tentou manter o controle.
— Marisol... – Houve um ruído como se ele tivesse arrastado para ainda mais perto aquela cadeira da Pottery Barn. — Querida, você precisa tirar isto da cabeça.
— Dois homens...
— Animais, – ele disse incisivamente. — Eles eram animais que mereciam ainda pior. Todos eles.
Baixando as mãos, ela não ficou surpresa de que a expressão dele estivesse mortal, mas também não teve medo. Só estava, assustada pelo que ela própria tinha feito.
— Eu não consigo... – ela gesticulou para o lado de sua cabeça. — Eu não consigo tirar as imagens de minha...
— Bloqueie-as, querida. Só esqueça que aconteceu.
— Não posso. Nunca. Eu devia me entregar à polícia...
— Eles iam te matar. E você acha que eles iam ter um pingo de consciência? Posso te garantir que não.
— Foi culpa minha. – Ela fechou os olhos. — Eu devia saber que Benloise se vingaria. Eu só não sabia que seria a este nível.
— Mas, minha querida, você está segura.
— Quantos?
— Desculpe?
— Quantos... Você matou. – Ela exalou com dificuldade. — E por favor não tente fingir que não matou. Eu vi seu rosto, lembra. Antes de lavá-lo.
Ele desviou o olhar, e limpou o queixo como se o sangue ainda estivesse nele. — Marisol. Afaste isso da mente, enterre em algum lugar profundo... E deixe estar.
— É assim que consegue lidar com isto?
Assail balançou a cabeça, a mandíbula travada, os lábios pressionados em uma linha fina. — Não. Eu lembro de meus crimes. Cada um deles.
— Então você odeia o que teve de fazer?
Os olhos dele permaneceram firmes nos dela. — Não. Eu sinto prazer.
Sola piscou. Descobrir que ele era um assassino sociopata era realmente a cereja do bolo, não era?
Ele se inclinou para ela. — Eu jamais matei sem um motivo, Marisol. Eu sinto prazer com as mortes porque eles mereceram o que tiveram.
— Então você protegeu a outras pessoas.
— Não, eu sou um homem de negócios. A menos que seja acuado, eu prefiro viver e deixar viver. No entanto, eu não serei pisoteado... Nem deixarei aqueles que são meus serem ameaçados.
Ela estudou-o por um longo tempo... E ele não desviou o olhar nenhuma vez. — Eu acho que acredito em você.
— Deveria.
— Mas ainda assim, é um pecado. – Ela pensou em todas aquelas preces que tinha feito e sentiu culpa como jamais tinha sentido. — Eu sei que fiz coisas criminosas no passado... Mas eu nunca machuquei ninguém, só financeiramente. O que é ruim o bastante, mas pelo menos, eu não queimei seus...
Ele segurou sua mão. — Marisol. Olhe para mim.
Levou um tempo antes de conseguir. — Eu não sei como viver comigo mesma. Eu realmente não sei.
Quando Assail sentiu o coração bater forte no peito, percebeu que tinha se enganado. Ele tinha assumido que manter sua Marisol fisicamente a salvo e cuidar de Benloise encerraria este horrível capítulo na vida dela:
Uma vez que ela estivesse sob sua guarda, e ele lhe assegurasse o retorno à avó, então tudo estaria resolvido.
Errado. Tão malditamente errado... E da própria dor emocional dela, ele não sabia como salvá-la.
— Marisol... – o tom de sua voz era um que ele nunca tinha ouvido antes. Mas também, implorar não era de seu costume. — Marisol, por favor.
Quando as pálpebras dela finalmente se ergueram, ele se viu respirando fundo. Com elas baixas, a tensão dela lhe lembrava demais do outro desfecho que podia ter ocorrido.
O que dizer a ela, então? — Realmente, eu não posso fingir entender esta concepção de pecado que você tem, porque sua religião é diferente da minha... E eu respeito isto. – Deus, ele odiava aquele hematoma na lateral do rosto dela por tantas razões. — Mas, Marisol, as ações que você executou foram em nome da sobrevivência. Sua sobrevivência. O que você fez lá foi o que lhe permitiu estar enchendo os pulmões de ar neste mesmo momento. A vida se trata de fazer o que é necessário, e você fez.
Ela se virou, como se a dor fosse grande demais. E então suspirou. — Eu só queria ter conseguido... Inferno, talvez você tenha razão. Eu tenho de voltar muito atrás com uma borracha para me tirar de onde eu estava duas noites atrás. Esta coisa toda é resultado de tantas outras.
— Sabe, se você realmente quiser, você pode mudar o seu futuro. Você pode parar de se envolver com os da laia de Benloise.
Um sorriso fantasmal tocou os lábios dela ao olhar para o chão. — Sim. Eu concordo.
Ele deu outra respiração funda. — Há outro caminho para você.
Mesmo que ela só tenha concordado, ele teve a sensação de que ela estava em paz com a aposentadoria, como se podia dizer. E por alguma razão, aquilo o fez querer chorar... Não que ele fosse admitir isso para alguém, inclusive a ela mesma.
Quando ela ficou em silêncio, ele olhou para ela, memorizando tudo, de seus cabelos escuros e ondulados, cuidadosamente lavados com shampoo durante seu banho no banheiro daqui, passando pelas bochechas pálidas, até os lábios perfeitamente desenhados.
Pensando em tudo o que ela tinha passado, ele ouviu-a dizer que ela não tinha sido estuprada... Mas só porque ela matara o bastardo primeiro.
Aquele na cela, ele pensou. Aquele cuja mão ela tinha usado para sair da instalação.
Seu corpo inteiro doeu por ela, realmente doeu.
— Eu posso senti-lo olhar para mim, – ela disse suavemente.
Assail mudou de posição na cadeira e esfregou as coxas. — Perdoe-me. – Olhou em volta pelo quarto, odiando a ideia de ter de usar a porta, embora ele provavelmente devesse deixá-la descansar. — Está sentindo dor física?
Marisol virou a cabeça de volta para ele, seus olhos de mogno buscando o dele. — Onde nós estamos?
— Que tal responder a minha pergunta primeiro?
— Nada que eu não possa aguentar.
— Quer que eu chame a enfermeira?
Ele estava começando a se levantar quando ela esticou a mão e o parou. — Não, por favor. Não gosto do jeito que aquela coisa me fez sentir. Agora, eu preciso estar cem por cento conectada a esta realidade. De outra forma, meu cérebro volta... Para lá.
Assail se sentou de novo e realmente, de verdade, quis ir para o norte e matar Benloise naquele mesmo momento. Acalmou aquele impulso ao se lembrar do sofrimento que o homem devia estar passando... Assumindo que ainda estivesse vivo.
— Então, onde estamos?
Como responder aquilo?
Bem, por mais que a distorção da realidade fosse algo que ela desejasse evitar, não ia revelar o fato de não ser humano, mas um membro de uma espécie que ela associava com Drácula. Muito obrigado, Stoker.
— Estamos entre amigos. – Talvez aquilo fosse um exagero. Mas Rehv tinha providenciado o que tinha sido pedido, no momento em que era necessário... Provavelmente em resposta à pessoa que Assail tinha... Processado... Se não diretamente em nome do Rei, então certa e inegavelmente em seu benefício.
— Você tem uns amigos bem chiques. Você trabalha para o governo?
Ele riu. — Santo Deus, não.
— Que alívio. Eu estava me perguntando se você iria me prender ou tentar me transformar em informante.
— Posso lhe garantir, os meandros do sistema legal humano não me interessam nem um pouco.
— Humano...?
Xingando baixinho, ele fez pouco da palavra. — Você sabe o que eu quis dizer.
Quando ela sorriu, suas pálpebras vibraram. — Sinto muito, eu acho que estou apagando. Toda esta comida.
— Relaxe. E saiba que, quando acordar, te levarei para casa.
Ela se ergueu um pouco. — Minha avó ainda está naquela casa...
— Não, ela está em minha propriedade. Eu jamais a deixaria onde ela estava, exposta e vulnerável.
Sem nenhum aviso, Marisol jogou os braços ao redor dele, abraçando-o tão forte, que ele sentiu cada tremor de seu corpo.
— Obrigada, – ela soluçou contra seu pescoço. — Ela é tudo para mim.
Assail foi tão cuidadoso ao retribuir o abraço, repousando suas mãos levemente nas suas costas. Aspirando seu perfume, seu coração doeu de novo ao pensar que qualquer macho pudesse ter tocado seu corpo com outra coisa além de reverência.
Eles ficaram daquele jeito um longo tempo. E quando ela finalmente se recostou e olhou para ele, ele não conseguiu evitar acariciar o rosto dela com os dedos.
— Não tenho palavras, – ele disse em uma voz falhada.
— Sobre o quê?
Tudo o que ele pôde fazer, foi menear a cabeça e quebrar o contato inteiramente ao se levantar. Era isso, ou ele se enfiaria naquela cama com ela.
— Bom descanso, – ele disse, asperamente. — Ao anoitecer, te levarei em segurança até sua família.
E então ela e sua avó poderiam viver com ele. E daquele jeito ele saberia que ela sempre estaria segura.
Ele jamais precisaria se preocupar com ela de novo.
Assail saiu apressadamente antes que os olhos dela se fechassem. Ele simplesmente não podia aguentar a imagem de suas pálpebras fechadas.
Saindo do quarto, ele...
Parou de supetão.
Do outro lado do corredor, seus primos gêmeos estavam encostados na parede, e eles não tinham de erguer os olhos ou olhar em volta para vê-lo. Eles estavam encarando diretamente em seus olhos no momento em que ele saiu do quarto – certeiramente como se estivessem esperando que ele saísse durante cada segundo que passou lá.
Eles não falaram, mas não precisavam.
Assail esfregou o rosto. Naquele mundo ele achava que podia mesmo dormir com duas mulheres humanas dentro de sua casa? E por toda a porra da eternidade... Ele não ia conseguir fazer aquilo nem por uma noite. O que ele diria quando se tornasse visível que ele não podia sair durante o dia? Ou ter luz do sol invadindo sua casa? Ou...
Tomado de emoção, ele remexeu no bolso da frente de suas calças pretas, tirou seu vidrinho de coca e rapidamente aspirou o que restava.
Só para que ele pudesse se sentir levemente normal.
Então ele pegou a bandeja do chão. — Não me olhem assim, – murmurou ao se afastar.
— Wrath!
Ao gritar o nome do marido, Beth se ergueu dos travesseiros, e por um momento, não fez ideia de onde estava. A parede de pedra e as ricas roupas de cama de veludo não eram...
A casa de Darius. Não o quarto que tinha sido de seu pai, mas o que Wrath usava quando precisava de algum lugar para descansar. Aquele para onde ela tinha ido ao não conseguir dormir.
Ela devia ter desmaiado finalmente sobre o edredom.
À distância, um telefone começou a tocar.
Afastando o cabelo do rosto, ela viu um cobertor sobre as pernas que não se lembrava de ter colocado... A maleta do lado de dentro da porta... E uma bandeja de prata na mesa de cabeceira.
Fritz. O mordomo devia ter vindo em algum momento do dia.
Esfregando o esterno, ela olhou para o travesseiro vazio próximo a ela, o lençol arrumado, a falta de Wrath... E se sentiu pior do que se sentia na noite anterior.
E pensar que ela tinha achado que eles tinham chegado ao fundo do poço. Ou que a distância iria ajudar.
— Merda, Wrath? – ela chamou ao pular da cama.
Correndo para a porta, ela abriu-a, correu pelo corredor curto, e voou para o quarto do pai, mergulhando para o celular na mesinha de cabeceira.
— Alô! Alô? Alô...?
— Oi.
Ao som daquela voz profunda, ela caiu na cama, apertando o celular no punho, empurrando-o contra a orelha como se pudesse trazer seu homem a ela.
— Oi. – Fechou os olhos, sem se importar em conter as lágrimas. Deixou-as cair. — Oi.
A voz dele estava tão rouca quanto a dela. — Oi.
Houve um longo silêncio, e aquilo estava ok: Mesmo que ele estivesse em casa e ela ali, ainda era como se estivessem se abraçando.
— Sinto muito, – ele disse. — Eu sinto tanto.
Ela deixou escapar um soluço. — Obrigada...
— Eu sinto muito. – ele riu um pouco. — Eu não sou muito articulado, sou?
— Tudo bem. Eu não estou me sentindo articulada também... Eu estava sonhando com você, eu acho.
— Um pesadelo?
— Não. Sentindo sua falta.
— Eu não mereço isso. Estava com receio de ligar para seu celular e você não atender. Eu achei que talvez se alguém estivesse com você, poderiam atender e... É, sinto muito.
Beth exalou e se encostou nos travesseiros. Cruzou as pernas na altura dos tornozelos, olhou em volta para suas fotos. — Estou no quarto dele.
— Está?
— Não tem telefone no quarto que você usava.
— Deus, faz tanto tempo que não vou a esta casa.
— Eu sei. Traz tantas lembranças.
— Aposto que sim.
— Como está George?
— Sentindo sua falta. – Houve um ruído surdo... O som dele dando tapinhas no flanco do cão. — Ele está bem aqui comigo.
As boas notícias eram que os assuntos neutros eram a maneira perfeita de molharem a ponta dos dedos na piscina do relacionamento. Mas a discussão maior ainda pairava.
— Então a cabeça de John está ok, – ela disse, mexendo na barra da camiseta. — Mas acho que você já sabe que tudo correu bem no hospital.
— Oh, sim, não. Na verdade, eu estou... Meio por fora.
— Eu liguei.
— Ligou?
— Sim. Tohr disse que você estava dormindo. Conseguiu finalmente descansar?
— Ah... Sim.
Quando ele ficou quieto, o segundo silêncio foi do tipo preparação, a contagem regressiva para a coisa de verdade. E ainda assim, ela não tinha certeza de como trazer o assunto à tona, o que dizer, como...
— Eu não sei se já te falei a respeito dos meus pais, – Wrath disse. — Além do modo como eles foram...
Mortos, ela terminou por ele em sua mente.
— Eles eram um par perfeito, para usar um termo humano. Digo, mesmo que eu fosse pequeno, eu me lembro deles juntos, e quando eles morreram, descobri que aquele tipo de coisa tinha acabado ali, com eles. Como se eles fossem um tipo de amor de um-em-um-milhão ou algo assim. Mas então eu te conheci.
As lágrimas de Beth estavam quentes ao continuarem a escorrer por suas bochechas, algumas caindo suavemente no travesseiro, outra entrando no ouvido. Esticando a mão, ela pegou um lenço de papel e secou-as silenciosamente.
Mas ele sabia que ela estava chorando. Ele tinha de saber.
A voz de Wrath se afinou, como se estivesse com problemas de manter seu próprio controle. — Quando fui ferido naquela noite, há alguns meses, e Tohr e eu estávamos voltando da casa de Assail, eu não tive medo de morrer ou coisa assim. Claro, eu sabia que o ferimento era feio, mas eu já tive muitos ferimentos feios antes... E ia superar aquilo... Porque ninguém nem nada iria me tirar de você.
Apoiando o telefone no ombro, ela dobrou o lenço de papel molhado em quadradinhos bem pequenos. — Oh, Wrath...
— Em se tratando de você ter um filho... – A voz dele se partiu. — Eu... Eu... Eu... Pelo amor da merda, eu continuo tentando encontrar as palavras, mas não consigo. Eu sei que você quer tentar, eu entendo isso. Mas você não passou quatrocentos anos vendo e ouvindo sobre como vampiras morrem durante o parto. Eu não posso... Eu não consigo tirar isso da minha mente, sabe? E o problema é, eu sou um macho vinculado, então por mais que eu queira te dar o que você quer? Há um lado de mim que não vai ouvir a razão. Simplesmente não vai... Não quando se trata de você, arriscando a vida. Eu queria ser diferente porque isto está me matando, mas não posso mudar o que eu sou.
Inclinando-se para o lado, ela puxou outro lenço da caixa. — Mas há medicina moderna agora. Temos a Dra. Jane e...
— Além do mais, e se a criança for cega. E se nascer com meus olhos?
— Eu não vou amá-lo ou amá-la menos por isto, posso garantir.
— Mas pergunte a si mesma ao que estaremos expondo-os geneticamente. Eu consegui enfrentar a vida, claro. Mas se pensar por um instante que eu não sinto falta de minha visão todos os dias? Eu acordo do lado da fêmea que eu amo e não posso olhá-la nos olhos à noite. Não sei qual a sua aparência quando se arruma para mim. Não posso ver seu corpo quando estou dentro de você...
— Wrath, você se esforça tanto...
— E o pior de tudo? Eu não posso protegê-la. Não posso nem sair de casa... E isto por conta de meu fodido emprego além da cegueira... Oh, e não se engane. Legalmente, se tivermos um filho macho, ele irá me suceder. Não terá escolha... Do mesmo jeito que não tive e eu odeio isso. Odeio cada noite de minha vida... Jesus Cristo, Beth, eu odeio sair da cama, odeio a fodida mesa, odeio os decretos e a baboseira e estar preso naquela porra de casa. Eu odeio.
Deus, ela sabia que ele não estava feliz, mas não fazia ideia que era tão profundo.
Mas também, quando tinha sido a última vez que tinham verdadeiramente conversado assim? A rotina noturna junto com o estresse do Bando de Bastardos e suas besteiras...
— Eu não sabia. – Ela suspirou. — Digo, eu sabia que não estava feliz, mas...
— Eu não gosto de falar disto. Eu não quero que você se preocupe comigo.
— Mas eu me preocupo mesmo assim. Eu sei que tem estado estressado... E eu queria poder ajudar de alguma forma.
— Este é o ponto. Não há como ajudar, Beth. Não há nada que ninguém possa fazer... E mesmo que eu tivesse visão perfeita e os riscos de uma gravidez não fossem grande coisa? Eu ainda não iria querer empurrar esta merda para a próxima geração. É uma crueldade que eu não imporia a meu pior inimigo, muito menos ao meu próprio maldito filho. – Ele riu roucamente. — Inferno, eu devida deixar Xcor ficar com o maldito trono. Seria bem feito para ele.
Beth balançou a cabeça. — Tudo o que quero é você feliz. – A verdade, isso não era verdade. — Mas eu não posso mentir. Eu te amo, mas mesmo assim eu ainda...
Cara, agora era ela que estava sem palavras.
Mas ele tinha encontrado um jeito de falar.
— Eu quase não consigo explicar. – Ela curvou um punho sobre o coração. — É como um vazio no meio do meu peito. Não tem nada a ver com você ou como me sinto sobre você. Está dentro de mim... Como um comutador que é acionado, sabe? E eu queria ser mais articulada que isto, mas mal posso descrever. Eu nem mesmo sabia o que era... Até uma destas noites, quando Z levou Bella para Manhattan e eu fiquei cuidando de Nalla? Eu estava naquele quarto deles, com Nalla dormindo em meu colo, e eu fiquei olhando para todas aquelas coisas que eles tem no quarto deles. O trocador, os móbiles, o berço... Todos os lenços umedecidos e as mamadeiras e as chupetas. E eu só pensei... Eu quero isto. Tudo isto. A troca de fraldas, e os patinhos de borracha, e os dias longos. O cheiro de cocô e o doce cheiro de banho tomado, os choros e os balbucios, as cores clichês rosa-bebê e azul-bebê – qualquer coisa que venha. E ouça, eu pensei bem nisto. Eu realmente pensei. Foi tão chocante que eu achei... É um capricho, uma fase, uma ilusão cor de rosa a qual logo eu superaria.
— Quando foi que... – ele pigarreou. — Quanto tempo faz isto?
— Mais de um ano.
— Maldição...
— Como eu disse, me senti deste jeito por um tempo, E eu pensei que você mudaria de opinião. Eu sabia que não era prioridade para você. – ela estava tentando ser diplomática ao dizer aquilo. — Eu pensei... Bem, agora que estou falando, eu percebo que nunca conversei com você sobre estes sentimentos. Não parecia haver tempo.
— Sinto muito. Eu sei que já me desculpei, mas... Maldição.
— Tudo bem. – Ela fechou os olhos. — E eu entendo o seu lado. Não é como se não o visse todas as noites desejando estar em outro lugar.
Houve outro longo silêncio.
— Há mais uma coisa, – ele disse depois de um tempo.
— O quê?
— Eu acho que você vai entrar em sua necessidade. Logo.
Mesmo enquanto o queixo de Beth caía, no fundo de sua mente, algo acendeu. — Eu... Como você sabe?
As oscilações de humor. A ânsia por chocolate. O ganho de peso...
— Merda, – ela disse. — Eu, ah... Oh, merda.
Eeeee aquilo meio que resumia tudo, Wrath pensou ao se recostar na poltrona da mesa da biblioteca. A seus pés, George estava esticado naquele tapete, aquela grande cabeça quadrada deitada em uma das botas de Wrath como se oferecendo apoio.
— Eu não tenho certeza absoluta. – Wrath esfregou sua têmpora dolorida. — Mas como seu companheiro, supõe-se que eu seja afetado tão logo seus hormônios comecem a fluir... e meu sangue está mais quente, minhas emoções mais intensas, meu humor mais instável. Tipo, você estar fora de casa agora, certo? E eu me sinto mais senhor de mim do que tenho sentido nas últimas duas semanas. Mas durante a discussão que tivemos? Eu estava meio doido.
— Duas semanas... Mais ou menos quando eu comecei a ficar com Layla. E sim, você estava fora de si lá.
— Agora... – ele ergueu seu dedo indicador para enfatizar mesmo que ela não estivesse pessoalmente com ele para ver o gesto — Isto não é desculpa pelo meu comportamento. É só contexto, eu posso falar com você pelo telefone assim e me manter normal para me explicar. Quando você está comigo? Novamente, não é uma desculpa, e não é sua culpa, mas fico me perguntando se não pode ter influenciado um pouco tudo o que aconteceu.
Ao se inclinar para o lado e colocar a mão sobre seu cão, George ergueu a cabeça, o olhar dourado, fungando, dando uma lambidinha. Alisando os pelos longos que cresciam do peito largo, Wrath acariciou-os até as pernas de George.
— Deus, Wrath, quando acordei sem você agora há pouco...
— Horrível. Eu sei. Foi o mesmo para mim... Ou talvez ainda pior. Eu não tinha certeza até onde tinha estragado tudo. Se tinha estragado tudo além do conserto.
— Não estragou. – Houve um arrastar, como se ela estivesse mudando de posição na cama. — E acho que eu sabia que estávamos meio que trabalhando lado a lado pela última vez. Eu só não sabia quanto tempo tínhamos perdido... E outras coisas. Ir para Manhattan, ficar juntos um tempo, realmente conversar. Já faz um tempo.
— Honestamente, há outra razão para eu não querer ter um filho. Eu mal consigo me manter conectado com você a esta altura. Eu não tenho nada a oferecer para um filho.
— Isto não é verdade. Você seria um pai maravilhoso.
— Talvez em outro universo.
— Então como ficamos? – ela perguntou depois de um momento.
Wrath esfregou os olhos. Maldição, ele se sentia de ressaca. — Eu não sei. Realmente não sei.
Cada um deles disse o que tinham de dizer, do jeito que deviam ter feito desde o início. Razoavelmente, com calma.
Na verdade, ele tinha sido o problema naquilo, não ela.
— Eu sinto tanto, – ele disse de novo. — Não é suficiente, em tantos níveis. Mas não há nada mais que eu possa... Cara, eu estou fodidamente cansado de me sentir impotente.
— Você não é impotente, – ela disse secamente. — Nós já estabelecemos isto.
Tudo o que ele pode fazer, foi grunhir em resposta. — Quando você vai voltar para casa?
— Agora. Eu vou dirigir... Acho que há um carro extra em algum lugar.
— Espere até o anoitecer.
— Wrath, já passamos por isto. Eu fico perfeitamente bem sob a luz do sol. Além disto, é quase quatro e meia. Não há muita luz.
Ao imaginá-la sob a luz do sol, seu estômago se contraiu... E ele lembrou de Payne chamando-o de chauvinista. Em relação à preocupação com sua shellan, era quase fácil demais soltar um Eu Proíbo. O problema era o que isto causaria a Beth.
Ele realmente não podia colocá-la em uma gaiola dourada só para não ter de surtar sobre a sua segurança.
E talvez esta coisa de gravidez fosse para ele, somente uma nuance mais profunda daquela cor de covardice...
— Ok, – ele ouviu-se dizer. — Tudo bem. Eu te amo.
— Eu te amo também... Wrath, espere. Antes de desligar.
— Sim? – Quando só houve silêncio, ele franziu o cenho. — Beth? O quê?
— Quero que faça algo por mim.
— Qualquer coisa.
Levou um tempo até ela começar a falar. E quando terminou, ele fechou os olhos e deixou a cabeça cair para trás.
— Wrath? Ouviu o que eu disse?
Cada palavra. Infelizmente.
E ele estava a ponto de gritar um “Sem chance”, quando pensou no que tinha sentido ao acordar sem ela ao seu lado.
— Está bem, – ele murmurou entredentes. — É, claro. Eu posso fazer isto.
Ao se observar no espelho do vestíbulo, Saxton ajeitou a gravata borboleta e apertou o nó. Ao soltar o tecido de seda padronizado, a coisa manteve sua forma e a simetria como um cachorrinho bem treinado.
Dando um passo para trás, ele ajeitou o cabelo recém cortado e vestiu seu casaco de inverno de cashmere da Marc Jacobs. Deu um puxão em uma manga, depois a outra; então esticou os braços de forma que as abotoaduras por baixo do paletó aparecessem.
Elas não traziam o brasão de sua família.
Ele não usava mais aquela.
Não, estas eram VCA dos anos quarenta, um conjunto de safira, diamantes e platina.
— Devo usar a colônia? – olhou para os vidros da Gucci, Prada e Chanel, todos alinhados em uma bandeja envidraçada com alças de latão. — Nada a declarar?
Um rápido pulverizar em um pulso. Sim, seria Égoïste, e era refrescante.
Virando-se, caminhou pelo chão de mármore cor creme e entrou em seu quarto de decoração branco-no-branco. Ao passar pela cama, ele teve vontade de refazer a coisa toda, mas aquilo eram só seus nervos falando.
— Irei apenas verificar novamente.
Afofou os travesseiros e rearranjou as almofadas na posição exata na qual estava quando ele tinha começado a se vestir, olhou para o relógio Cartier antiquado sobre a mesinha de cabeceira.
Não tinha mais como adiar.
Ainda assim, olhou em volta, para a chaise lounge branca e as poltronas brancas. Inspecionou os tapetes de pele brancos. Andou mais e verificou que a pintura de Jackson Pollock, acima da lareira, estava perfeitamente posicionada.
Esta não era sua antiga casa, a Vitoriana onde Blay certa vez tinha passado um dia. Este era seu outro local, uma construção térrea de Frank Loyd Wright que ele comprou assim que foi colocada à venda... Como poderia não comprá-la? Havia tão poucas delas no mercado.
É claro que ele tinha tido de fazer algumas reformas clandestinas e expandir o porão, mas vampiros há muito tempo costumavam disfarçar sua permanência entre a raça humana e seus fiscais de construção, entre outras coisas.
Verificando pela segunda vez seus Patek Phillipe, ele se perguntou por que estava fazendo esta horrível peregrinação. De novo.
Era como um horrível tipo de Feitiço do Tempo[23]. Mas pelo menos, não acontecia com grande regularidade.
Ao subir as escadas, percebeu que estava mexendo na gravata de novo. Destrancou a porta no topo, emergiu em uma cozinha lustrosa estilo anos quarenta com reproduções totalmente funcionais de todos aqueles aparelhos estilo Hello, Lucy.
Cada vez que andava pela casa, com móveis Jetsons, e a completa e total ausência de babados, sentia-se de volta a América pós-segunda guerra... E isto o acalmava. Ele gostava do passado. Gostava das diferentes pegadas de várias eras. Adorava viver em espaços que fossem tão autênticos quando se pudesse fazer deles.
E isto não era como se ele fosse voltar àquela casa Vitoriana muito em breve. Não depois que ele e Blay tinham essencialmente começado as coisas lá.
Ao se dirigir à porta da frente, só pensar naquele macho fazia seu peito se contrair... E ele parou, concentrando-se na sensação, as lembranças que vinham com ela, a mudança em sua pressão sanguínea e padrões de pensamento.
Depois da separação, que tinha sido ideia dele, tinha lido muito sobre a dor. Os estágios. O processo. E tinha sido bem esquisito... Estranhamente, a melhor fonte tinha sido um pequeno livro que falava sobre a perda de um animal de estimação. Tinham questões que você supostamente deveria responder sobre o que o cão tinha lhe ensinado, ou o que você mais sentia falta em relação ao gato ou quais tinham sido seus momentos favoritos com sua cacatua.
Ele não admitiria para ninguém, mas tinha respondido cada uma delas em seu diário sobre Blay... E tinha ajudado. Até certo ponto. Ele estava dormindo sozinho, e embora tivesse feito sexo, ao invés de remediar as coisas, só tinha feito doer mais.
Mas as coisas estavam melhores agora. Pelo menos ele agora funcionava quase normalmente: Ele andava como um morto-vivo nas primeiras noites. Mas agora tinha criado uma casca sobre a ferida, e estava comendo e dormindo regularmente. Mas ainda haviam gatilhos... Como toda vez que ele via Blay ou Qhuinn.
Era tão duro ficar feliz por aquele a quem você amava... Em se tratando dele estar com outro.
Como tudo na vida, no entanto, haviam coisas que eram possíveis serem mudadas e outras que não eram.
Por falar nisto...
Fechou os olhos, se desmaterializou e retomou forma em um gramado coberto de neve que era tão grande quanto um parque municipal... E igualmente bem cuidado. Seu pai odiava qualquer coisa em desordem: plantas, grama, objetos de arte, móveis... Filhos. A grande mansão mais atrás tinha uns mil e quatrocentos metros quadrados de tamanho, as diferentes alas tendo sido adicionadas ao longo do tempo por gerações de humanos. Ao observá-la pela noite de inverno, Saxton se lembrou do por que exatamente seu pai tinha comprado a propriedade, quando alguns alunos tinham partido para a Universidade Union... Era o Antigo Continente no Mundo Novo, o lar longe da terra natal.
Um tradicionalista, seu pai tinha insistido em retornar às origens. Não que tivesse em algum momento se desligado delas.
Aproximou-se da entrada frontal, as luminárias a gás de ambos os lados da imensa porta dupla se acenderam, lançando uma luz ancestral nas pedras esculpidas que tinham, na verdade, sido feitas no século dezenove, como parte da Renascença do estilo Gótico. Ao parar, pensou que talvez pudesse não tocar a campainha, porque os serviçais estariam esperando por ele. Eles, como seu pai, estavam sempre com pressa de que ele entrasse e saísse logo da casa... Como se ele fosse um documento a ser processado, ou um jantar a ser servido e rapidamente limpado.
Mas ninguém abriu a porta de imediato.
Se inclinando, ele puxou uma corrente de aço com uma cobertura de veludo para soar a campainha com som de sino.
Ninguém atendeu.
Franzindo o cenho, deu um passo a frente e olhou para os lados, mas de nada adiantou. Haviam arbustos de topearia demais para conseguir enxergar através de qualquer uma das janelas de vidro.
Estar trancado por fora da casa era o tal testemunho do relacionamento deles, não era: O macho pedia para ele vir em seu aniversário e então o deixava do lado de fora, no frio diante da porta da frente.
Na verdade, Saxton tinha decidido que toda a sua existência era agora um foda-se para seu pai. Do que entendia, Tyhm sempre tinha desejado herdeiros... Um filho, especificamente. Tinha rezado à Virgem Escriba por um. E então seu pedido tinha sido atendido.
Infelizmente, tinha havido uma ressalva, que tinha se tornado um verdadeiro estragador de acordos.
Bem quando debatia se tocava a campainha de novo ou não, a porta foi aberta pelo mordomo. O rosto do doggen estava gélido, como sempre, mas o fato de não ter feito uma reverência diante do primogênito e único herdeiro de seu patrão, era esclarecedor o suficiente de sua opinião sobre quem ele estava a ponto de deixar entrar.
Não tinha sido sempre assim na casa. Mas sua mãe tinha morrido, e seu segredinho tinha sido revelado então...
— Seu pai está ocupado. – Só isso. Nenhum “posso-tirar-seu-casaco?”, “Como vai o senhor?” ou mesmo, “Francamente, como está frio esta noite.”?
Nem mesmo uma conversa sobre o tempo seria investida nele.
O que para ele estava bom. Ele nunca tinha se importado com o cara, de qualquer forma.
Quando o mordomo recuou, e fixou o olhar na parede coberta de seda atrás dele, caminhar sob aquele olhar fixo foi como ser aguilhoado por uma cerca elétrica... Embora pelo menos Saxton já estivesse acostumado. E ele sabia aonde ir.
O vestíbulo feminino ficava à esquerda, e ao entrar no cômodo cheio de babados, ele colocou a mão nos bolsos de seu casaco. As paredes cor lilás e o tapete amarelo limão eram brilhantes e alegres, e a verdade era que, por mais que colocá-lo ali intencionasse fosse um insulto, ele o preferia ao vestíbulo masculino do outro lado, com seus painéis de madeira e decoração severa, do outro lado do saguão.
Sua mãe tinha morrido há cerca de três anos, mas isto não era embargo à perda. De fato, ele não achava que seu pai sentia falta da fêmea.
Tyhm sempre tinha sido mais interessado pelas leis... Que ficavam para ele ainda mais acima que a glymera.
Saxton parou. Virou para os fundos do cômodo.
A distância, as vozes se misturavam... O que era incomum. A casa era tipicamente tão silenciosa quanto uma biblioteca, os empregados andavam nas pontas dos pés, os doggen tinham desenvolvido um complexo sistema de sinais com as mãos para se comunicarem sem incomodar o patrão.
Saxton se aproximou de um segundo par de portas. Diferentemente das que levavam ao saguão, estas estavam fechadas.
Abrindo uma fresta, Saxton foi para a sala imponente e octogonal, onde eram mantidos os volumes das Leis Antigas de seu pai, encadernados em couro. O teto ficava a nove metros do chão, a modelagem de todas aquelas prateleiras de mogno escuro, as cornijas sobre as portas entalhadas em relevos apropriadamente Góticos... Ou pelo menos uma reprodução do século dezenove.
No centro do espaço circular, havia uma imensa mesa redonda, o topo de mármore da qual estava... Um pouco chocante.
Estava coberto de livros abertos.
Relanceou as prateleiras, viu espaços vazios entre a fileira infindável de tomos. Cerca de vinte deles.
Sentiu um sinal de alerta soar na base de seu crânio, manteve as mãos nos bolsos e se inclinou, traçando as palavras que estavam expostas...
— Oh, Jesus...
Sucessão.
Seu pai estava pesquisando as leis de sucessão.
Saxton ergueu a cabeça na direção das vozes. Estavam mais altas agora que estava dentro desta sala, embora ainda abafadas por um outro par de portas fechadas do meio do caminho.
A reunião que estava ocorrendo, estava sendo no escritório particular do pai.
Altamente incomum. O macho nunca deixava ninguém entrar lá... Ele não permitia nem que clientes entrassem na casa.
Isto era sério... E Saxton não era estúpido. Havia uma conspiração contra Wrath na glymera, e obviamente, seu pai estava envolvido.
Não havia razão para alguém se importar com a próxima geração de Reis se não estivessem tentando depor o rei atual.
Ele contornou a mesa, com os olhos fixos em cada página aberta. Quanto mais via, mais preocupado ficava.
— Oh... Merda, – murmurou, em um xingamento raro.
Isto era ruim. Muito ruim...
O som de uma porta se abrindo no escritório o assustou. Correu nas pontas dos pés e voltou a entrar no vestíbulo feminino, fechando a porta silenciosamente atrás de si.
Ele estava encarando o Sargento John Singer acima da lareira quando o mordomo chamou seu nome, cerca de dois minutos depois.
— Ele te receberá agora.
Não havia motivo para agradecer. Ele só seguiu a desaprovação do doggen... E preparou-se para mais do mesmo com o pai.
Geralmente ele odiava vir aqui.
Mas não hoje. Não, esta noite ele tinha um propósito ainda maior que a frustração que iria acontecer, sem dúvida, quando seu pai percebesse que mais uma das tentativas de convencê-lo a voltar a ser hetero falhasse.
Puurrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr.
Trez franziu o cenho diante do som. Entreabriu um olho, e viu o irmão em pé, perto da sua cama, com Boo, o gato preto nos braços, uma expressão de desaprovação estreitando seus olhos gélidos.
De seu irmão, não do gato.
— Você vai passar mais uma noite deitado aí, – iAm exclamou.
Não era uma pergunta, então para que se importar em responder.
Grunhindo ao se sentar, Trez teve de se apoiar nos braços para manter seu torso na vertical. Aparentemente, enquanto ele estava apagado, o mundo tinha entrado em hula hoop e o planeta estava girando e girando em seu pescoço.
Perdendo a batalha, ele caiu de novo de costas.
Quando o irmão só ficou parado lá, ele soube que este era o canto da sereia de volta a realidade. E ele queria responder ao chamado, ele realmente queria. Seu corpo, no entanto, estava sem combustível.
— Quando foi a última vez que se alimentou? – iAm perguntou.
Ele desviou o olhar e evitou a pergunta. — Desde quando virou amigo de animais?
— Eu odeio este maldito gato.
— Dá para ver.
— Responda.
O fato era que não podia nem se lembrar de quando tinha sido... Não, branco total.
— Eu vou mandar alguém, – iAm murmurou. — E daí você vai começar a falar.
— Vamos falar agora.
— Por que, para que depois possa fingir que não ouviu direito?
Bem, era uma ideia. — Não.
— Eles estão indo atrás de nosso pai e mãe.
Trez se sentou de novo, desta vez não precisou de nenhuma ajuda adicional. Merda. Ele devia ter esperado isso dos s'Hisbe, mas...
— Como.
— Como você acha? – Seu irmão migrou a carícia da orelha para debaixo do queixo do gato. — Eles vão começar por ela.
Ele esfregou o rosto. — Jesus Cristo. Eu não esperava que o sumo sacerdote seria tão...
— Não foi ele. Nah. Ele foi a segunda visita da noite passada.
— Que hora são? – Embora o fato de que pudesse enxergar pela janela, a noite afora, parcialmente respondesse àquilo. — Por que não me acordou quando chegou?
— Eu tentei. Três vezes. Eu estava pensando em usar um desfibrilador caso você não voltasse desta vez.
— Então o que o sumo sacerdote disse?
— É com s'Ex que você deve se preocupar.
Trez baixou as mãos. Olhou para o irmão, e soube que devia ter ouvido errado. — Desculpe, quem?
— Não é o tipo de nome que eu precise repetir, não é?
— Oh, Deus. – O que infernos o executor da rainha queria, visitando o irmão? Mas se bem que... — Eles estão realmente apostando alto, não estão?
iAm sentou na beira da cama, seu peso fazendo o colchão afundar. — Estamos em um impasse, Trez. Não dá mais para fingir, não dá mais para dar desculpas. Eles usaram a cenoura; agora vão usar o bastão.
Quando pensava nos pais, Trez mal podia lembrar de seus rostos. A última vez que os tinha visto já fazia... Bem, outra coisa que não conseguia lembrar. Mas o que estava claro como cristal? O local onde viviam. Mármore por todos os lados. Luminárias de ouro. Tapetes de seda. Serviçais por todos os lados. Joias dependuradas das lâmpadas para criar um efeito de faísca.
Eles não eram assim no início... E aquilo era outra coisa que ele podia lembrar: ele tinha nascido em um apartamento modesto de dois quartos no canto mais longínquo da corte... Bom o suficiente para padrões normais.
Nada perto do que obtiveram ao vender o seu futuro.
E depois daquilo? Quando subiram para o melhor dos melhores? Ele tinha sido enviado para ser criado pela equipe da rainha, sozinho em um quarto branco. Só quando tinha se recusado a comer ou beber por noites após noites, foi que mandaram iAm para ficar com ele.
E foi assim que a relação defeituosa deles tinha começado.
Sempre depois daquilo? De alguma forma, iAm tinha se tornado responsável por mantê-lo ativo.
— Se lembra quando foi a última vez que os vimos? – ouvi-se perguntando.
— Naquela festa. Sabe, para a rainha.
— Oh... É mesmo. – Os pais deles tinham ficado sentados com os Primários da rainha, como eram chamados. Frente e centro. Sorrindo.
Eles não tinham reconhecido a ele ou iAm quando chegaram, mas aquilo não era incomum. Uma vez vendidos, eles tinham se tornado propriedade da rainha. E uma vez enviado para facilitar as coisas, iAm também não era mais deles.
— Eles jamais se arrependeram, – Trez murmurou. — Eu era só uma propriedade para eles. E cara, eles me venderam por um bom preço.
iAm continuou silencioso, como sempre. Ele só ficou sentado ali, acariciando o gato.
— Quanto tempo eu tenho? – Trez perguntou.
— Você tem de ir esta noite. – Olhos escuros se desviaram. — Tipo agora.
— E se eu não for... – Não havia razão para responder àquilo, e iAm não se incomodou: se ele não saísse da cama e se entregasse, seus pais iam ser sacrificados. Ou pior.
Provavelmente muito pior.
— Eles são parte do sistema, – ele disse. — Aqueles dois realmente conseguiram o que queriam.
— Então você não vai.
Se colocasse os pés no Território, ele jamais veria o mundo exterior de novo. A guarda da rainha ia trancá-lo naquele labirinto de corredores, trancando-o para que se tornasse o equivalente a um harém, separando-o até mesmo do irmão.
E enquanto isso, seus pais viveriam, despreocupadamente.
— Ela olhou para mim, – ele murmurou. — Aquela noite na festa. Os olhos dela se fixaram nos meus... Ela me deu aquele sorriso secreto de superioridade. Como se tivesse feito todos os movimentos certos, e o beneficio adicional tinha sido não ter mais de cuidar de mim. Que porra de mãe faria isso?
— Então você vai deixá-los morrer.
— Não.
— Então você vai se entregar.
— Não.
iAm balançou a cabeça. — É um ou outro, Trez. Eu sei que está emputecido com eles, com a rainha, com uma centena de coisas. Mas chegamos a uma encruzilhada, e só há duas opções. Você realmente tem de entender isso... E eu volto com você.
— Não, você fica aqui. – Quando sua cabeça confusa tentou avaliar as variáveis, seu cérebro era só faísca, sem fogo. — Além disto, eu não vou.
Merda, ele tinha de se alimentar antes de tentar lidar com isso.
— Porra, aquele sangue humano é uma merda, – ele murmurou, esfregando as têmporas como se talvez a fricção pudesse acionar seu QI. — Sabe o que? Eu realmente não consigo falar disso agora... E não estou sendo um cuzão. Eu literalmente não consigo pensar.
— Eu vou enviar alguém. – iAm se levantou e foi em direção à porta que separava suas suítes. — E então, você precisa se decidir. Tem duas horas.
— Você vai me odiar, – ele soltou.
— Sobre eles?
— Sim.
Passou-se um tempo longo até vir a resposta. E o gato parou de ronronar, as mãos de iAm ficaram parados sobre aquela garganta.
— Eu não sei.
Trez anuiu. — Justo.
A porta se fechou e seu irmão se pôs a caminho quando o cérebro de Trez tossiu um “ei, espere!”.
— Não Selena, – ele gritou. — iAm! Ei! Selena não!
Ele não confiava em si mesmo com ela em uma noite boa – a última coisa de que precisava era estar próximo a ela naquele momento.
Ao bater na porta à sua frente, Wrath não sabia o que caralhos estava fazendo. Talvez desse a sorte de ninguém atender.
Ele teria um pouco mais de tempo antes de fazer uma merda daquelas.
Negativo. A porta se abriu e uma voz profunda disse. — Ei. O que há?
Ao tentar pensar em uma resposta, fechou os olhos por trás dos óculos escuros. — Z...
— Sim... Ei. – O irmão pigarreou. O que quebrou o silêncio para valer. — Sim. Então, o que passa?
De repente, como se o universo lhe desse um chute nas bolas, ouviu-se um grito de bebê. — Ah, ouça, eu já estava indo pegá-la. Se importa?
Wrath passou uma mão pelo cabelo. — Não, não, é... Está bem.
— Quer que eu passe no seu escritório depois?
Ele se perguntou como seria aquele quarto, e pintou o espaço de acordo com o que sua Beth tinha contado. Bagunçado, ele pensou. Confortável. Alegre.
Cor de rosa.
Nada que Z aprovasse, nem morto, antes de conhecer Bella.
— Wrath? O que se passa por aqui?
— Se importa de eu entrar?
— Ah... Claro. Ahn, digo, Bella está no trabalho, então teremos privacidade. Mas é melhor você...
Cheeeeeeeeep!
— ...Olhar onde pisa.
Wrath ergueu a bota e ouviu um brinquedo voltar a inflar com um chiado. — Porra, eu quebrei?
— Eu acho que é um brinquedo de cachorro, na verdade. É, eu tenho quase certeza que ela pegou lá embaixo, de George. Quer de volta?
— Ele tem bastante. Ela pode ficar.
Ao fechar a porta, tornou-se dolorosamente consciente de estarem os dois falando de seus filhos... Só que o de Wrath tinha quatro patas e um rabo.
Pelo menos ele não tinha de se preocupar sobre George sucedê-lo no trono ou nascer cego.
A voz de Z veio do canto do quarto. — Você pode sentar nos pés da cama se andar quatro metros à frente.
— Obrigado.
Ele nem queria se sentar, mas, se continuasse em pé, iria querer andar e não demoraria até pisar em alguma coisa que poderia não ser um brinquedo.
De um canto, Z falou suavemente com a filha, as palavras rolando em uma espécie de ritmo, como se falasse através de uma canção. Em resposta, houve alguns balbucios infantis.
E então veio algo que soou aterrorizantemente nítido: — Papá.
Wrath estremeceu por trás dos óculos escuros, e descobriu que bem poderia acabar com aquilo. — Beth pediu que eu conversasse com você.
— Sobre?
Enquanto ele imaginava o Z que conhecia tão bem, visualizou o irmão que antigamente era certo que um dia implodiria e levaria uma dúzia deles consigo: crânio raspado, rosto com cicatrizes, olhos que eram pretos e opacos, como os de um tubarão, antes de Bella aparecer. Então, tinham se tornado amarelos... Pelo menos quando não estava irritado, e aquilo não acontecia mais com tanta frequência, a menos que estivesse em campo.
Que grande virada.
— Você está com ela no colo? – Wrath perguntou.
Houve uma pausa. — Assim que terminar de arrumar este lacinho... Espere um pouco, garotinha. Ok, venha cá. Ela está vestida em um vestido cor-de-rosa que a própria Cormia fez para ela. Eu odeio cor-de-rosa. Mas gosto nela... Mas não diga que confessei isso.
Wrath flexionou as mãos. — Como é?
— Não odiar totalmente cor-de-rosa? Meio fodidamen... Aham, malditamente castrador.
— É.
— Não me diga que Lassiter conseguiu metrossexualizar até você. Eu fiquei sabendo que ele tentou convencer Manello a ir ao pedicuro com ele... Mas estava torcendo para ser somente fofoca.
Era difícil ignorar o modo fácil como o irmão se expressava. Normal, realmente. Mas também, ele tinha sua família, sua shellan estava salva, e já fazia quanto tempo mesmo que desaparecia com Mary no porão regularmente?
Ninguém sabia exatamente sobre o que eles falavam lá embaixo. Mas todo mundo podia adivinhar.
— Realmente, eu não sei por que estou aqui, – Wrath disse asperamente.
Mentiroso.
Sons de passos se aproximando, e então houve um ruído regular, como se o macho tivesse se sentado em uma cadeira de balanço e estivesse indo para frente e para trás. Aparentemente, Nalla gostava do balanço pois houve muito mais daquele balbucio.
Um ruído suave sugeria que Z pegara outro brinquedo e a mantinha ocupada.
— Isto é sobre Beth ter passado aquele tempo com Layla?
— Eu sou o único que não sabia?
— Você não sai muito de seu escritório.
— Mais um motivo para não querer um filho.
— Então é verdade.
Wrath baixou a cabeça e desejou que sua visão funcionasse para poder fingir inspecionar algo. A roupa de cama. Suas botas. Um relógio.
— Sim, Beth quer um bebê. – Ele balançou a cabeça. — Digo, como você conseguiu? Engravidar Bella... Você deve ter ficado aterrorizado com a ideia.
— A gente não planejou. Ela entrou em sua necessidade, e eu tinha de fazer alguma coisa... Digo, eu tinha as drogas. Eu implorei para ela me deixar resolver as coisas daquele jeito. Mas no final, eu fiz o que um macho faz ao ver sua fêmea passar por aquilo. A gravidez foi difícil, mas o nascimento foi o momento mais assustador da minha vida.
Considerando que o cara tinha sido escravo sexual por quanto tempo? Aquilo realmente significava algo.
— Depois, – Z disse lentamente, — Eu não dormi por umas boas quarenta e oito horas. Levou tudo isso de tempo para eu me convencer que Bella não ia morrer de hemorragia e Nalla estava viva e continuaria daquele jeito. Inferno, talvez tenha levado até uma semana.
— Valeu a pena?
Houve um longo silêncio, e Wrath apostaria sua bola esquerda que o irmão estaria contemplando o rosto da filha. — Eu posso dizer que sim porque ambas sobreviveram. Se não tivesse acontecido? Minha resposta seria diferente... Por mais que eu ame minha filha. A coisa é que, como todos os machos vinculados, Bella é a minha prioridade, vem antes até de minha filha.
Wrath estalou o nó dos dedos de uma mão. Depois da outra. — Eu acho que Beth esperava que você me fizesse mudar de ideia.
— Não posso fazer isto. Ninguém pode... É a natureza do macho vinculado. Mas você devia falar com Tohr. Eu passei por isto... E eu sou o filho da puta mais sortudo do mundo por ter dado tudo certo. Por outro lado, Tohr escolheu. Ele de alguma forma teve culhões para jogar os dados... Mesmo conhecendo os riscos. E então, sua Wellsie acabou morrendo.
De repente, Wrath se lembrou de quando desceu até o escritório do centro de treinamento, em busca do guerreiro, com toda a Irmandade atrás de si. Eles tinham encontrado Tohr sentado com John, telefone ao ouvido, com uma aura de desespero marcando tudo, de seu rosto pálido até o aperto naquele receptor, quando sua expressão congelou ao olhar para cima e vê-los todos ali, na porta.
Jesus Cristo, estava tudo tão claro como se tivesse acontecido ontem. Mesmo assim, depois daquilo, Tohr tinha se emparelhado com Autumn e seguira em frente, dentro do possível a um macho.
Wrath meneou a cabeça. — Eu não sei se consigo falar sobre isso com o irmão.
Houve outro longo silêncio, como se talvez Z estivesse lembrando daquela noite também. Mas então, Zsadist disse suavemente, — Ele é seu irmão. Se ele falar disso com alguém... Será com você.
No minuto em que Beth entrou no magnífico saguão da mansão, congelou.
De início, não conseguiu reconhecer a pilha de madeiras partidas que estava amontoada na entrada da sala de jogos. Mas então o tecido verde rasgado lhe deu a pista: era a mesa de bilhar. Parecia que alguém a tinha atacado com uma serra elétrica.
Se adiantando, espiou e sentiu o queixo cair.
Tudo estava detonado. Do sofá à instalação elétrica, da TV ao bar.
— Ele está bem, – uma voz masculina disse por trás dela.
Virou-se para encarar os olhos amarelos de Z, nos braços do Irmão, Nalla estava vestida em um adorável vestido cor-de-rosa, com cintura alta e uma saia rodada que ia perder em alguns meses. Que coisinha mais fofa. Pequenos sapatos Mary Jane se viam em seus pés, e um lacinho torto prendia os cachinhos multicoloridos.
Seus olhos eram amarelos, iguais aos do pai, mas seu sorriso era todo Bella, aberto, confiante, amigável.
Deus, como doía vê-los. Especialmente quando descobriu a causa da destruição na outra sala.
— Ele me ligou, – ela disse.
— Foi por isto que voltou?
— Eu ia voltar de qualquer jeito.
Z anuiu. — Bom. A noite passada foi complicada.
— Estou vendo. – Ela olhou por sobre o ombro. — Como ele...
— Parou? Lassiter atirou um dardo nele. Ele caiu como uma pedra e tirou um longo, longo cochilo.
— Não era isso que eu queria dizer, mas... Sim. – Ela esfregou as mãos geladas. — Ah, você sabe onde ele está?
— Ele me disse que você lhe pediu para conversar comigo.
Ao olhar para Z, ela se lembrou de quando o conheceu. Deus, ele era assustador... E não só por causa da cicatriz. Ele tinha um olhar gelado naquela época, além do tipo de concentração mortal que lhe atingira no centro do peito.
Agora? Ele era como um irmão para ela... Exceto quando se tratava de Wrath. Wrath sempre viria antes para ele.
O que era verdade para todos os Irmãos. E considerando o que Wrath tinha feito à sala de jogos, aquilo não era uma coisa ruim.
— Eu pensei que talvez ajudasse. – Deus, aquilo soou mal. — O que eu quero dizer é...
— Ele foi falar com Tohr.
Beth fechou os olhos. Depois de um momento, ela disse, — Eu não queria nada disto, sabe? Só para esclarecer.
— Eu acredito. E eu não quero isto para vocês dois também.
— Talvez ele supere. – Ao se virar para as escadas, uma onda de exaustão a atingiu como uma tonelada de tijolos. — Ouça, se você o vir... Diga-lhe que subi para tomar uma chuveirada. Foi um longo dia para mim também.
— Pode deixar.
Ao passar pelo Irmão, ela ficou chocada quando a mão dele pousou em seu ombro e deu um aperto encorajador.
Santo Deus, se alguém dissesse alguns anos atrás, que o guerreiro um dia ofereceria mais do que uma arma na cabeça a alguém? De jeito nenhum. E o fato de ele estar, naquele momento, segurando nos braços um bebê de comercial em seus braços musculosos, a dita filha olhando para seu rosto cheio de cicatrizes com adoração total e absoluta?
Porcos voando. Inferno congelando. Miley Cyrus parando de aparecer nua em público.
— Sinto muito, – ele disse roucamente, sabendo que o outro lado da proximidade da Irmandade era que eles se preocupavam uns com os outros verdadeiramente.
Os problemas de um eram os problemas de todos.
— Eu direi que chegou em casa a salvo, – Z disse. — Vá descansar. Você parece exausta.
Ela anuiu e subiu as escadas, arrastando-se degrau a degrau. Ao chegar ao segundo andar, ela olhou pelas portas abertas de seu escritório.
O trono e a imensa mesa pairavam como monstros, a madeira antiga e entalhes ancestrais, uma representação tangível das linhas de sucessão que tinham servido à raça, por quanto tempo? Ela não sabia. Não podia nem adivinhar.
Tantos casais sacrificavam seus primogênitos a uma posição que, de tudo o que tinha visto, não era somente ingrata, mas positivamente perigosa.
Poderia ela condenar seu próprio sangue e carne ali? Perguntou-se. Podia ela sentenciar algo que geraria àquilo que seu marido passava e pelo que sofria?
Atravessando a porta, ela cruzou o tapete Aubusson e parou em frente aos dois símbolos da monarquia. Ela imaginou Wrath ali, com a papelada e a tensão, como um tigre aprisionado em um zoológico, bem alimentado, bem cuidado... Mas ainda assim, engaiolado.
Ela lembrou da época em que trabalhava como assistente de edição, no Jornal Caldwell Courier, para o Clube do Bolinha de Dick o Cuzão, enquanto ele tentava olhar sob sua blusa. Ela queria tanto largar aquilo, e sua transição e conhecer Wrath tinha sido sua salvação.
O que era a salvação de Wrath?
Como ele poderia sobreviver àquilo?
Embora uma derrota, sua única graça salvadora... Seria ser morto por Xcor e Bando de Bastardos.
Uau. Grande futuro ali.
E a solução dela era arriscar sua própria vida tentando engravidar. Não era de se estranhar que ele perdera a merda da cabeça.
Correndo as pontas dos dedos pelo intrincado padrão na mesa, ela descobriu que, na verdade, as espirais formavam uma videira. E que havia datas inscritas ao longo das folhas...
Os Reis e rainhas. Seus filhos.
Um longo legado do qual Wrath era a manifestação atual.
Ele não ia desistir daquilo. Sem chance. Se ele se sentia impotente agora, afastar-se do trono o faria cruzar o limite. Ele já tinha perdido seus pais, cedo demais... Ceder o legado deles a outra pessoa? Aquilo seria um golpe do qual ele jamais se recuperaria.
Ela ainda queria ter um filho.
Mas quanto mais ficava ali, mais ela se perguntava se aquilo valeria a pena se tivesse de sacrificar o homem a quem amava. E este seria o resultado... Além do mais, assumir que ela pudesse ficar grávida e parir um bebê saudável, se eles tivessem um filho, ele iria acabar aqui.
E se fosse uma filha? O homem com quem ela se casasse iria assumir o poder... E então sua filha teria o prazer de assistir ao seu homem enlouquecer sob tanta pressão.
Grande herança, em ambos os lados.
— Maldição, – ela suspirou.
Ela sabia que Wrath era o Rei quando se emparelhou com ele... Mas para ela, naquela época, já era tarde demais. Ela estava loucamente apaixonada, e mesmo se o emprego dele fosse guarda de segurança ou governador do estado, ela não se importaria.
Ela não tinha pensado no futuro naquela época. Só estar com ele já era suficiente.
Mas vamos lá, mesmo que ela estivesse consciente de todas as implicações...
Não. Ela ainda teria usado o maravilhoso vestido vermelho de Wellsie e marchado para se assustar enormemente ao ver que Wrath tinha seu nome cravado nas costas.
Na alegria e na tristeza. Na saúde ou na doença, em termos humanos.
Com filhos... Ou sem filhos.
Quando ela finalmente deu a volta, endireitou os ombros e saiu do cômodo com a cabeça erguida. Seus olhos estavam límpidos, o coração calmo e as mãos firmes.
A vida não era um bufê a La carte onde se podia escolher a entrada e acompanhamentos e voltar para repetir, após provar uns três pedaços de carne e ver acabar seu purê de batatas. E inferno, quando ela pensava logicamente, encontrar o Amor Verdadeiro mais o Felizes para Sempre e Vida Sexual Ativa já era um inferno de um recorde.
Haviam boas razões para eles não terem um filho. E talvez aquilo mudasse no futuro; talvez Xcor e os Bastardos morressem, e a glymera voltasse, e a Sociedade Lessening parasse de matar...
Porcos voando.
Inferno congelando inteiro.
Miley sossegando seu rabo balançante em uma cadeira e mantendo-o lá como serviço de utilidade pública.
Ao se dirigir a escada privada que levava ao terceiro andar, ela desejou ter chegado àquela conclusão antes de Wrath ter ido ver Tohr, mas aquela era outra colisão que ela tinha causado e que não conseguiria desfazer.
Mas ela podia evitar que os danos fossem grandes demais.
Não importava o quanto doesse, ela podia escolher outro caminho e acabar com o sofrimento dos dois.
Pelo amor de Deus, ela não era a primeira mulher do planeta que não podia ter filho só porque queria. E ela não ia ser a última. E todas aquelas fêmeas? Elas iam adiante. Elas viviam suas vidas e seguiam adiante... E elas nem tinham o seu Wrath...
Ele era mais do que suficiente para ela.
E quando ela começasse a pensar que ele não era? Ela ia voltar e se sentar na frente daquela mesa... E colocar-se-ia no lugar de seu hellren.
Ela não queria decepcionar o pai que nem tinha conhecido. Para Wrath, ser Rei era a única maneira de honrar o pai dele... E não querer sujeitar a próxima geração ao trono?
Era a única maneira de proteger a criança que ele nunca teria.
Os Rolling Stones estavam certos. Às vezes, você não conseguia o que queria. Mas se você tivesse tudo o que precisava?
A vida seria boa.
— Seu primo vai se emparelhar.
Ao entrar pelas portas do escritório de seu pai, este foi o cumprimento que Saxton recebeu.
Lá vamos nós, ele pensou. E da próxima vez que conversassem, sem dúvida ia ser sobre o dito primo ter um perfeitamente saudável bebê macho que estava crescendo para ser normal. Acho que este era seu “presente” de aniversário... Um relatório de algum parente levando algum tipo de vida correta, com legendas de que ele era uma vergonha à linhagem e uma grande perda de DNA para seu pai.
De fato, as pequenas atualizações tinham começado logo após seu pai descobrir que ele era gay, e ele se lembrava de cada declaração, escondendo-as como roupas feias no guarda-roupa de sua mente. Seu favorito absoluto? A novidade, alguns meses atrás, sobre um macho gay que tinha saído com outro macho gay da espécie, e tinha acabado por ser atacado por um grupo de humanos em um beco.
Seu pai não fazia ideia de que estava falando do próprio filho, ao contar esta.
O crime de ódio tinha sido ao final de seu primeiro encontro com Blay, e ele quase tinha morrido em consequência dos ferimentos: Ele não tinha procurado ajuda médica... Havers, o único médico da raça, era um tradicionalista devoto, e se recusava a tratar homossexuais. E ir a um médico humano seria impossível. Sim, havia clínicas 24 horas abertas na cidade, mas tinha-lhe custado toda sua energia meramente se arrastar até sua casa... E ele tinha ficado envergonhado demais para buscar pela ajuda de mais alguém.
Mas Blay tinha aparecido – e tudo tinha mudado para eles.
Por um tempo, pelo menos.
— Ouviu o que eu disse, – seu pai perguntou.
— Que maravilha para ele... Que primo é?
— O filho de Enoch. Foi arranjado. As famílias vão fazer uma festa de fim de semana para celebrar.
— Em sua propriedade na Carolina do Sul?
— Aqui. É hora da raça reestabelecer tradições apropriadas em Caldwell. Sem tradição, não somos nada.
Entenda: Você é inútil se não se encaixar no programa.
Embora naturalmente seu pai usasse termos mais elegantes para dizer aquilo.
Saxton franziu o cenho ao finalmente olhar para o macho. Sentado atrás de sua mesa, Tyhm sempre tinha sido magro, uma personificação de Ichabod Crane, de ternos que se dependuravam como mortalhas funerárias de seus ombros ossudos. Comparado à sua última visita, ele parecia ter perdido peso, sua fisionomia angulosa amparando a pele facial como suportes sob uma barraca armada.
Saxton não parecia em nada com seu pai, aqueles cabelos preto e olhos escuros, pele pálida e corpo esguio não lhe haviam sido premiado pela loteria genética. Em vez disto, sua mãe e ele tinham sido idênticos em disposição e compleição, loiros e de olhos cinzentos com um brilho saudável em suas peles.
Seu pai costumava lhe lembrar o tempo inteiro o quão semelhante ele era à sua mahmen – e pensando bem, ele não tinha certeza de aquilo ser um elogio.
— Então no que está trabalhando, – seu pai murmurou, enquanto tamborilava os dedos no mata-borrão de couro.
Acima da cabeça do macho, o retrato de seu próprio pai pairava com desaprovação idêntica.
Quando Saxton foi perscrutado por um par de olhos estreitos, houve uma urgência quase irresistível de responder àquela questão honestamente: Saxton era, de fato, o Primeiro Conselheiro do Rei. E mesmo naquelas épocas, quando o respeito pela monarquia estava em baixa, aquilo ainda era impressionante.
Especialmente para alguém que reverenciava as leis como seu pai.
Mas não, Saxton pensou. Ele ia manter aquilo para si mesmo.
— Eu ainda estou no mesmo lugar, – ele murmurou.
— Direito tributário é um campo complicado. Eu fiquei surpreso quando você o escolheu. Quem são seus clientes recentes?
— Você sabe que não posso divulgar esta informação.
Seu pai desprezou aquilo. — Não seria alguém que eu conheço, certamente.
— Não. Provavelmente não. – Saxton tentou sorrir um pouco. — E você?
O comportamento dele mudou instantaneamente, o súbito desgosto transpareceu e foi substituído por uma máscara que tinha toda a qualidade revelatória de uma estátua de mármore. — Sempre há coisas exigindo minha atenção.
— É claro.
Enquanto ambos continuavam falando alternadamente, a conversação continuava tensa e irrelevante e Saxton passou o tempo pondo a mão no bolso e segurando o iPhone na mão. Ele tinha planejado sua saída, e se perguntava se já seria hora.
E então a hora chegou.
O telefone na mesa, o que tinha sido feito para parecer antiquado, tocou com uma campainha eletrônica quase tão real quanto qualquer coisa que não fosse realmente de bronze produziria.
— Vou te deixar, – Saxton disse, recuando.
Seu pai olhou para o cuidadosamente escondido visor digital... E pareceu esquecer como atender a coisa.
— Adeus, P... – Saxton se interrompeu. Desde que sua orientação sexual fora revelada, aquele era um palavrão pior que porra... Pelo menos quando usada por ele.
Quando seu pai só acenou para ele, teve uma breve sensação de alívio. Geralmente, a pior parte de qualquer visita era a partida: quando ele ia embora, e seu pai confrontava uma nova tentativa falha de trazer seu filho de volta, era como uma caminhada cheia de vergonha novamente.
Saxton não tinha se revelado para sua família. Ele nunca tinha tido intenção de que seu pai soubesse.
Mas alguém tinha fofocado, e ele tinha quase certeza de saber quem.
Então, cada vez que ele saía, revivia ter sido chutado para fora desta mesma casa, cerca de uma semana após a morte da mãe: Ele tinha saído com as roupas nas costas, sem dinheiro e sem lugar algum para ficar na proximidade do amanhecer.
Ele soubera mais tarde, que todas as suas coisas tinham sido ritualisticamente queimadas nas florestas atrás da casa da família.
Mais um uso útil para todas aquelas terras.
— Feche a porta ao sair, – seu pai pediu.
Ele ficou mais do que feliz em obedecer: Fechar a porta silenciosamente daquela vez, sem precisar perder nenhum momento em toda aquela dor. Olhou para a esquerda e para a direita, e aguçou os ouvidos.
Silêncio.
Moveu-se rapidamente, ele voltou ao salão e entrou na biblioteca, fechando a porta às suas costas. Tirou o celular e começou a tirar fotos com o coração batendo tão rápido quanto os movimentos dos dedos sobre a tela. Ele não se incomodou em arranjar ângulos ou fazer qualquer coisa de forma sequencial... A única coisa que importava era o foco e a iluminação que estava boa e aquilo ele não mexeu...
O ruído da porta se abrindo diretamente atrás dele o fez girar rapidamente.
Seu pai parecia confuso ao parar no umbral da porta que levava ao escritório. — O que está fazendo?
— Nada. Eu só estava olhando seus livros. São impressionantes.
Tyhm olhou para as portas que Saxton tinha fechado atrás de si... Como se perguntando por que estariam fechadas. — Você não deveria ter entrado aí.
— Sinto muito. – Disfarçadamente, guardou o celular no bolso, virando o torso de lado como se para apontar para os livros. — É só que... Eu queria admirar sua coleção. As minhas são encadernadas em tecido.
— Você tem um exemplar das Leis Antigas?
— Sim. Eu o comprei em um leilão.
Seu pai se aproximou e tocou as páginas do volume mais próximo que estava aberto sobre a mesa redonda. O carinho do toque naquelas páginas, naquele papel, aquele objeto inanimado... Sugeria que talvez Saxton não fosse a maior decepção de sua vida.
Se a lei o decepcionasse? O faria em pedaços.
— Do que se trata tudo isto? – Saxton disse suavemente. — Eu ouvi dizer que o Rei foi ferido, e agora... Isto é sobre a sucessão.
Quando não houve resposta, começou a pensar que precisava sair rápido dali: Havia uma alta probabilidade de seu pai ter se aliado ao Bando de Bastardos, e seria estúpido achar que Tyhm hesitaria em entregar seu filho gay para o inimigo, por sequer um segundo.
Ou no caso de seu pai, os aliados.
— Wrath não é Rei para a raça. – Tyhm balançou a cabeça. — Nada bom aconteceu desde que seu pai morreu. Agora, aquele sim era um governante. Eu era jovem quando estava na corte, mas me lembro de Wrath, e ao passo que o filho não se importa com as tradições... O pai era um Rei exemplar, um macho sábio com paciência e majestade. Que geração decepcionante.
Saxton olhou para o chão. Por alguma razão absurda, notou que seus próprios sapatos estavam perfeitamente polidos. Todos os seus sapatos eram. Finos e elegantes, arrumados.
Achou difícil respirar. — Eu pensei que a Irmandade estivesse... Cuidando bem das coisas. Depois dos ataques, eles mataram muitos inimigos...
— O fato de você ter usado a palavra depois para completar ataques é só o que é preciso dizer. Um comentário vergonhoso... Wrath não se dignou a reinar até casar com aquela mestiça dele. Só então, quando ele ousou contaminar o trono com os genes humanos bastardos dela, fez menção de tentar ser Rei. Seu pai teria odiado isto... Aquela humana usando o anel de sua mãe? É uma desgraça que não se pode... – ele teve de pigarrear. — Simplesmente é inaceitável.
Quando as implicações daquilo chegaram à consciência de Saxton, ele pode sentir o sangue fugir de sua cabeça. Oh, Deus... Por que eles não tinham previsto aquilo?
Beth. Eles iam derrubá-lo através dela.
Seu pai ergueu o queixo, o pomo de Adão pontudo como um punho na frente de sua garganta. — E alguém tinha de agir. Alguém precisa... Fazer algo quando más escolhas acontecem.
Como ser gay, Saxton terminou para o macho. E então ele entendeu...
Era quase como se seu pai estivesse se juntando à rebelião... Só por não poder fazer nada sobre a falha de sua própria progênie.
— Wrath será deposto do trono, – Tyhm disse com força renovada. — E outro, que não esteja afastado dos valores centrais da raça será colocado no lugar dele. Esta é a consequência para alguém que não faz as coisas da maneira apropriada.
— Eu ouvi... – Saxton parou. — Eu ouvi dizer que foi um emparelhamento por amor. Entre Wrath e sua rainha. Que ele se apaixonou por ela quando a ajudou em sua transição.
— O ímpios frequentemente acobertam suas ações no vocabulário dos justos. É um ato deliberado de tentar colocá-los contra nós. Isto não significa que se comportaram bem ou que suas escolhas erradas devem ser apoiadas pela massa. Muito ao contrário... Ele envergonha a raça, e merece tudo o que vai lhe acontecer.
— Você me odeia? – Saxton soltou.
Os olhos de seu pai se ergueram dos livros que iam ser usados para pavimentar o caminho até a deposição. Quando seus olhares se cruzaram acima da impressão em azul da destruição de Wrath, Saxton sentiu-se reduzido a uma criança que, simplesmente, queria ser amada e valorizada pelo único parente que tinha.
— Sim, – seu pai disse. — Eu te odeio.
Sola subiu os jeans pelos joelhos e fez uma pausa. Preparando-se, passou cuidadosamente a cintura da calça pelo ferimento da coxa.
— Nada mal, – murmurou ao puxá-la todo o caminho até sua bunda, e então abotoar e puxar o zíper.
Um pouco larga, mas quando colocou a camisa de manga comprida e o suéter preto confortável, que também lhe tinha sido dado, nem se percebia. Oh, e os Nikes eram do tamanho exato... E ela até gostou do padrão da cor em preto e vermelho.
Foi até o banheiro do quarto de hospital, e verificou seu cabelo no espelho. Brilhante e macio, graças ao secador de cabelos que tinha usado.
— Você está...
Girando para a voz, encontrou Assail parado próximo à cama. Seus olhos queimavam a distância entre eles, seu corpo aparentando imenso.
— Você me assustou, – ela disse.
— Desculpe. – Ele deu uma reverência curta. — Eu bati na porta várias vezes, e quando não respondeu, achei que pudesse ter caído.
— Isto é realmente... Ah, gentil de sua parte. – Sim, gentil não podia ser associado a ele de jeito nenhum.
— Está pronta para ir para casa?
Ela fechou os olhos. Queria dizer sim... E é claro, ela precisava ver a avó. Mas estava com medo também.
— Dá para... Ver? – ela perguntou.
Assail se aproximou dela, andando lentamente, como se soubesse que ela estava a uma respiração de surtar. Erguendo as mãos, acariciou os cabelo dela para trás dos ombros. Então tocou o rosto.
— Não. Ela não vai perceber nada.
— Graças a Deus. – Sola exalou. — Ela não pode saber. Entende?
— Perfeitamente.
Virando o rosto para a porta do corredor, ele lhe ofereceu o cotovelo... Como se estivesse levando-a a um baile.
E Sola aceitou só porque ela queria senti-lo contra ela. Conhecer seu calor. Estar próxima a seu tamanho e força.
Era um tipo diferente de inferno, a perspectiva de olhar a avó nos olhos.
— Não pense nisto, – ele disse ao leva-la pelo grande corredor. — Você precisa se lembrar disto. Ela verá em seu rosto se você pensar. Nada aconteceu, Marisol. Nada.
Sola estava fracamente consciente de que os guardas que os receberam neste lugar os seguiam de perto. Mas tinha tantas outras coisas com o que se preocupar... E se aquele bando de homens não tinha puxado aqueles gatilhos quando de sua chegada à instalação, seria difícil imaginar por que se incomodariam com a saída.
Um deles se adiantou e abriu a porta de aço para eles, e o Range Rover estava bem ali onde tinha sido estacionado. Perto dele, os dois primos de Assail estavam parados sombriamente... Vigiados por mais daqueles caras, que pareciam incrivelmente perigosos.
Assail abriu a porta de trás do carro para ela e ofereceu sua mão. Ela precisou. Impulsionar-se no SUV causou uma ferroada na coxa que fez seus olhos lacrimejarem. Mas, ao se acomodar, conseguiu colocar o cinto sozinha, puxando-o sobre o corpo e fixando-o no lugar.
Sola franziu o cenho. Pelo vidro filmado, viu Assail ir a cada homem, um após o outro, e oferecer a mão. Não houve troca de palavras, pelo menos não que tenha visto, mas não precisava ter.
Olhares graves encontraram os olhos de Assail e acenos sutis foram trocados respeitosamente, como se um tipo de acordo tivesse sido firmado entre eles.
Então os primos de Assail se dirigiram à frente do SUV, Assail entrou no banco de trás junto a ela e eles partiram.
Ela só tinha uma vaga lembrança de todos os portões e barreiras que tinham atravessado para chegar àquele lugar... Mas a saída pareceu levar uma eternidade.
Pelo menos ela queria que tivesse levado. Tinha esperança de que, caso passasse tempo suficiente, ela poderia convencer à sua garotinha interior de que não tinha quebrado duas vezes o maior dos Dez Mandamentos, quase sido estuprada, e tinha tido de amputar um cadáver para poder sair do inferno.
Infelizmente, eles estavam de volta à Northway, dirigindo-se ao sul para o centro de Caldwell, num piscar de olhos depois. Ou quase isso.
Quando chegaram as pontes que os levariam sobre o rio e pelas florestas, à fortaleza de Assail eles foram...
Ótimo. Seu cérebro não estava conseguindo se desligar.
Esfregando seus olhos cansados, tentou racionalizar as coisas.
Não conseguiu.
— Sabe, você pode ter razão, – ela disse baixinho.
— Sobre o quê? – perguntou Assail, ao seu lado.
— Talvez tenha tudo sido um sonho. Um sonho ruim, horrível...
O Range Rover tomou a ponte oeste sobre o Hudson, e com o tráfego bom, eles estariam na casa de Assail em cinco ou dez minutos.
Virando-se, ela olhou para o centro que se afastava, todas aquelas luzes como estrelas que tinham caído na terra.
— Eu não sei se posso vê-la, – ela ouviu-se dizendo.
— Não aconteceu.
Olhando a paisagem urbana ficar cada vez menor, ela disse ao seu cérebro para fazer o mesmo com as visões e cheiros e sensações que eram tão próximas, tão próximas: o tempo era uma rodovia e seu corpo e cérebro viajavam nele. Então, ela precisava pisar naquela porra de acelerador e escapar do inferno das últimas 48 horas.
Antes que percebesse, estavam virando na estreita estrada que descia à península que pertencia a Assail. E então seu estômago se afundou quando a casa de vidro entrou em seu campo de visão, a iluminação dourada refletindo pela paisagem como se o lugar fosse um pote de ouro.
Eles se dirigiram à parte de trás, os faróis varrendo a traseira da mansão. E então lá estava ela. Na janela da cozinha, cabeça erguida para espiar para fora, as mãos buscando por um pano de prato... A avó de Sola estava procurando, esperando... Agora indo para a porta.
Subitamente, tudo deixou sua mente enquanto sua mão voava para destravar a porta.
Assail agarrou seu braço. — Não. Não até entrarmos na garagem.
Ao contrário do resto da viagem, esta medida de segurança levou uma eternidade e aquela porta reforçada baixou como se tivesse todo o tempo do mundo.
No instante em que completou a descida, Sola saltou do SUV e correu para a porta. Estava trancada e em sua mente confusa, a única coisa que lhe ocorreu foi agarrar a maçaneta mais forte e puxar e empurrar...
Alguém destravou-a à distância, porque houve um clunk! E subitamente a coisa se abriu.
Sua avó estava do outro lado de uma antessala retangular, parada no centro da cozinha, aquele pano de prato branco erguido ao seu rosto, os cheiros de comida caseira como amor no ar.
Sola correu e sua avó abriu os únicos braços que sempre estiveram lá para abraçá-la.
Ela não teve um conhecimento claro do que foi dito em Português, mas de ambos os lados, as palavras fluíram rápido. Até que sua avó afastou-a e capturou seu rosto nas mãos idosas.
— Porque você está se desculpando? – a mulher perguntou, secando as lágrimas com os polegares. — Sem desculpas para você. Nunca.
Sola foi abraçada novamente e apertada longamente contra aquele peito generoso. Fechou os olhos, cedeu e deixou seu cérebro apagar.
Isto era tudo o que importava. Elas estavam juntas. Elas estavam seguras.
— Obrigada, Deus, – ela suspirou. — Obrigada, querido Deus.
É claro que era Selena.
Tão logo Trez ouviu a batida na porta de seu quarto, respirou fundo... E sim, o cheiro dela a precedia, invadindo o quarto por debaixo da porta.
Seu corpo endureceu instantaneamente, o pau se esticou em seu baixo ventre, empurrando contra o peso do edredom.
Mande-a embora, uma parte dele disse. Se lhe restou alguma decência... Mande-a embora...
Não exatamente o melhor argumento: Ele estava, afinal, contemplando mandar seus pais à sepultura... Então, ele não tinha muito de bom escoteiro dentro de si.
Ele parou aquele redemoinho mental. Àquela altura, estava tão faminto de sangue, que não ia conseguir fazer nenhum sentido. Alimentar primeiro. Então... Pensar.
Certo. De volta ao Por favor, Deus, que não seja Selena.
O problema era... Quem mais viria servi-lo? Ele não tinha visto nenhuma Escolhida nesta casa exceto ela e Layla, que agora estava fora turno. E se ele não tomasse a veia que estavam lhe oferecendo, sua única opção seria ir ao clube e tentar se alimentar de meia dúzia de mulheres humanas... Que era uma perspectiva quase tão apetitosa quanto beber líquido de motor.
Havia também o fato de ele estar tão faminto, que não tinha certeza se aquilo seria o suficiente. Outro fato engraçado? Ele não achava que podia ficar em pé para vestir um par de calças jeans. Então como infernos ele iria ao Iron Mask e...
A batida suave se repetiu.
Colocou a mão por baixo da coberta e empurrou a ereção para o lado, de modo que ficasse o mais disfarçado possível... E o contato o fez cerrar os dentes.
Vai ter de ser ela, disse a si mesmo. Uma só vez, e nunca mais.
— Selena... – Merda, o som do nome dela saindo pelos seus lábios o fez sentir como se suas mãos estivessem de volta ao seu pau.
Oh, espere, ele não tinha retirado ela ainda.
Quando a porta se abriu, ele tirou apressadamente o braço sob as cobertas... E olhou-o fixamente, para que permanecesse imóvel.
Doce Maria, Mãe de Deus... Para falar igual ao tira de Boston.
Ela estava tão linda como sempre naquela túnica branca com os cabelos presos para cima, mas sua fome a tornava uma visão transcendental... Que se concentrou diretamente em seus quadris. Sua pélvis imediatamente começou a ondular, o pau implorando por algo, qualquer coisa dela.
Era uma péssima ideia, ele pensou.
E de fato, Selena hesitou na porta, olhando em volta como se reconhecesse o peso que carregava o ar.
Era a última chance de mandá-la embora.
Chance que ele não aproveitou.
— Feche a porta, – ele disse em uma voz tão profunda que soava deformada.
— Está sofrendo.
— Feche.
Clique.
Havia somente um abajur ligado, próximo à espreguiçadeira, e a luz amarelada parecia agir como um isolamento acústico, tornando tudo dentro do quarto amplificado, tudo lá fora silenciado.
Mas talvez fosse a cor dos olhos dela que fazia aquilo.
Ao se aproximar, ela ergueu a manga, expondo o pulso pálido. E em resposta, suas presas se alongaram imediatamente de sua mandíbula superior... E merda, ele não queria o que ela ia oferecer. Ele queria sua garganta... Ele a queria nua e sob seu corpo, seus caninos em seu pescoço assim como seu pau...
Gemendo, ele jogou a cabeça para trás e agarrou o edredom nos punhos.
— Não se preocupe, – ela disse depressa. — Aqui, tome.
A despeito de todo o ar no quarto, seus pulmões começaram a buscar desesperadamente por oxigênio, respirações superficiais bombeando para dentro e para fora de sua boca aberta.
E então a mão dela tocou seu braço, e ele gemeu de novo, tentando virar para o outro lado. Cerrando os dentes, ele soube que era uma coisa bem ruim.
— Selena, eu não... Eu não posso fazer isto...
— Eu não compreendo.
— Você devia ir embora... – Porra, ele mal conseguia dizer as palavras. — Saia ou eu vou...
— Se alimentar, – ela cortou prontamente. — Você precisa se alimentar...
— Selena...
— Precisa tomar minha veia...
— ...É melhor você ir...
Eles estavam falando um com o outro, chegando a lugar algum, quando ela tomou controle da situação. De início, ele pensou que seu cérebro estava lhe pregando peças... Mas não, foi o cheiro do sangue fresco no quarto. Sangue dela.
Ela tinha aberto o pulso.
Grande erro.
Com um rugido, ele a tomou... E não pelo pulso. Suas mãos largaram o edredom e ele agarrou-a, segurando-a pelos ombros e passando-a por sobre seu colo para deitá-la de costas sobre o colchão.
Ele a montou uma fração de segundos depois, o edredom se interpondo entre eles, as mãos segurando os pulsos dela sobre os travesseiros sob a cabeça.
Uma olhada em seus olhos chocados o fez congelar. E ainda assim ele não conseguia sair de cima dela.
Ele não estava só arfando, estava respirando como um trem de carga, seu corpo todo tenso, os músculos formigando. — Merda... – ele gemeu ao abaixar a cabeça.
Saia de cima dela, ele ordenava a seu corpo. Sai daí, caralho.
A ondulação sob ele demorou um tempo para ser percebida. E então ele soube que era ela. Ela estava... Se movendo contra ele, e não como se quisesse se libertar. Os olhos dela, antes alarmados, estavam agora arregalados, os lábios abertos ao se arquear para ele.
Ela o queria. Puta merda, seu cheiro inundava seu nariz, seu sangue correndo rápido e quente como o dele.
— Selena, – ele grunhiu. — Sinto muito...
— Por quê? – ela disse asperamente.
— Por isto.
Ele golpeou sua garganta, as presas se afundando profundamente, o sangue correndo na língua dele, garganta abaixo. Ao tomar dela, seu corpo bombeava contra o edredom emaranhado, desesperadamente tentando encontrar o núcleo dela através das camadas de lençóis, seu pau latejando, a fricção tornando tudo muito pior.
Enquanto bebia avidamente, um grunhido reverberou para fora de seu peito, enchendo o ar com o som de um animal macho chegando aonde ele precisava... Ou pelo menos, parte do que ele precisava. E de certa forma, talvez fosse bom que ele estivesse tão malditamente faminto de sangue. De outra forma, a urgência sexual teria se sobreposto a tudo.
Desde que só se alimentasse? Eles poderiam sair inteiros daquilo.
Qualquer coisa a mais, e eles estariam...
Minha, uma voz profunda dentro de si anunciou.
Minha.
Selena pensava estar preparada para aquilo. Ela tinha pensado que estava pronta para vir até este quarto, encontrar Trez na cama, e tê-lo em seu pulso. Ela assumira que estava pronta para fazer seu trabalho e manter o desejo por ele em segredo, só para si mesma.
Ao invés disto, ela se perdeu. Pelo poder que ele emanava, pela mordida em seu pescoço... Pelo desespero sexual com o qual ela precisava dele. E havia mais. Esmagada sob seu grande peso, sentindo os quadris empurrarem e recuarem sobre ela, sabendo que estava bebendo de sua veia, ela estava, pelo menos momentaneamente, sem medo das estátuas no cemitério lá em cima. Como ela poderia temê-las agora? Não com seu corpo assim, com braços e pernas, seu próprio sexo, relaxado e ardente e desesperado para recebê-lo.
Abriu os olhos, olhou para o teto por trás dos ombros negros dele. — Tome-me, – ela suspirou ante o rugido dele. — Tome-me...
Em resposta, os dedos dele deslizaram para as suas mãos e se uniram às dela, segurando ao invés de prender enquanto ele se aconchegava em sua veia, as bochechas dele ásperas contra sua pele. Ela abriu as pernas por instinto, e ao fazê-lo, a pressão do torso dele que bombeava atingiram aquele seu coração pulsante, empurrando, esfregando... Mas estava tudo muito indistinto. Ela queria nitidez.
Ela queria ambos nus quando ele fizesse aquilo.
Mas não conseguiu se mover. Trez mantinha-a presa e a frustração que sentiu amplificou a fome que tinha se instalado, a negação do que ela queria desencadeando a necessidade. Empurrando contra suas mãos, ela não chegou a lugar algum, sua força em nada comparada a dele.
— Mais, – ela gemeu quando arqueou a coluna para cima, os seios se apertando dolorosamente, o coração disparado sob as costelas.
Cada sucção em sua garganta, cada sugada em sua veia, toda a pressão dele sobre ela, a levava mais próximo de um tipo de precipício... E ela jamais quisera tanto cair daquele jeito. Mesmo que ela não soubesse aonde a queda a levaria, ela não imaginava que pudesse se erguer ainda mais alto sem se despedaçar.
Ela estava errada.
Só que então, ele parou.
Com um xingamento, ele pareceu se forçar a retrair... E mesmo então, ele não se afastou muito de seu pescoço. Com suas presas fora de sua pele, a cabeça pendeu lá por um tempo mais longo. Até que ele começou a lamber as feridas da mordida para fechá-las.
Não pode ter acabado, ela pensou freneticamente. Isto não pode ser...
— Sinto muito, – ele disse em voz gutural.
— Por favor... Por favor, – ela pensou roucamente. — Não pare...
Isto o fez erguer a cabeça para ela. E querida Virgem Escriba, ele estava magnífico. Lábios inchados separados, olhos brilhantes pretos, um rubor intenso nas bochechas, ele estava saciado e ainda faminto, o animal macho só parcialmente satisfeito.
E ela estava bem consciente de que parte de sua refeição faltava.
Quando ela tentou alcançá-lo, suas mãos empurraram contra um aperto de aço.
— Tome-me, – ela implorou. — Lá embaixo... Preciso de você lá...
— Jesus Cristo, – ele exclamou ao sair de cima dela, quase se jogando para fora da cama.
Em pé, ele pareceu perder o equilíbrio, mas então, andou para o banheiro e fechou a porta ruidosamente.
O frio caiu sobre ela. E não só porque o corpo dele não mais cobria o dela. Era vergonha. Embaraço.
Mas como ela poderia ter entendido tudo errado?
Sentar-se levou algumas tentativas. E quando ela finalmente se ergueu dos travesseiros, passou a mão pela bagunça dos cabelos e puxou a lapela de sua túnica de volta no lugar. Se virando, ela olhou para onde tinham estado deitados. Seu sangue era uma mancha brilhante e vermelha nos lençóis brancos.
Seu pulso ainda sangrava de onde ela tinha mordido.
Cuidou disto com sua língua, jogou as pernas para fora da cama. Elas pareciam fracas demais para aguentar seu peso, mas não tinha escolha, exceto forçá-las a funcionar.
Aproximou-se da porta do banheiro fechada, e colocou uma mão sobre a madeira. Do outro lado, ela podia ouvi-lo respirando com dificuldade.
Ao abrir a boca, na intenção de se desculpar por sua temeridade e então sair... Ela respirou fundo.
O aroma da excitação sexual dele estava mais forte do que nunca, e ela franziu o cenho. Ele ainda a queria. Então por que ele...
Pelo menos sua mortificação podia se acalmar um pouco. — Trez?
— Sinto muito.
Tentou a maçaneta, e a encontrou destrancada... Mas quando começou a abrir a porta, ele gritou, — Não! Não...
Com o cheiro da excitação dele ficava ainda mais forte em seu nariz, ela espiou dentro. Ele estava do outro lado, apoiado nas pias, a cabeça baixa. E fosse lá qual tormento ele estivesse atravessando, seu corpo estava seguro de onde estava.
Sua ereção era... Tão incrível quanto o resto dele.
— Feche a maldita porta! – ele gritou.
Só que ela não ia obedecê-lo nisto. Não depois de sua visita ao cemitério lá em cima. Não depois de ser lembrada tão recentemente quanto esta manhã do que exatamente a esperava: seu corpo estava começando o processo de morte, mas ela sabia bem o suficiente que uma vez que suas juntas começassem a enrijecer, tempo era essencial.
Esta podia ser sua única oportunidade de estar com um macho... E ela queria isto. De fato, ela iria querê-lo mesmo que seu futuro não estivesse respirando em seu pescoço.
E seu corpo desejava o dela. Claramente.
Por todas aquelas razões, ela empurrou a porta, abrindo-a completamente.
— Puta merda, – ele murmurou. Então, mais alto, — Selena, por favor.
— Eu quero... Isto.
A cabeça dele balançou. — Não quer.
— Eu quero... Você.
— Não pode... Pelo amor de Deus, Selena, eu te machuquei.
— Não machucou.
Ele olhou por sobre os músculos esculpidos de seu braço. Seus olhos brilhavam verdes. — Não me pressione agora. Não vai gostar das consequências.
— Vai me fazer implorar?
O corpo enorme dele cambaleou, como se ela estivesse sugando a força ao invés de lhe dar mais. — Não faça isto a nós dois, Selena. Não esta noite.
Ela franziu o cenho. — Esta noite?
Ele agarrou uma toalha e enrolou-a nos quadris. — Só vá. Eu estou tão... Grato por ter me dado o que eu precisava. Mas não posso fazer isto agora.
Dando-lhe as costas, ele ficou ali, olhando para uma parede branca.
Selena puxou as lapelas fechadas ainda mais. — O que aflige...
— Pelo amor do fodido Deus, eu já estou destruindo o destino dos meus pais, ok? Não quero fazer o mesmo com você.
— Do que está falando?
Quando ele não respondeu, ela se aproximou dele, seus sapatos de solado de tecido não fizeram som algum. Quando ela tocou seu ombro, ele pulou.
— Trez...
Ele girou e recuou ao mesmo tempo, batendo na parede. — Por favor...
— Fale comigo.
Seus olhos frenéticos perscrutaram o rosto dela, os ombros, seu corpo. — Eu não quero falar agora. Eu quero...
— O quê? – ela suspirou.
— Você sabe o que... Que eu seja amaldiçoado... Eu quero você. Então você precisa mesmo sair daqui, porra.
Eles encararam-se por um longo tempo. E então ela decidiu tomar o controle.
Alcançando a faixa em sua cintura, as mãos de Selena tremeram quando abriu o nó e deixou a faixa cair ao chão. Ao se abrir, a túnica expôs o centro de seu corpo e seus seios doloridos ampararam as duas metades mantendo-os parcialmente cobertos.
Mas seu sexo estava à mostra. E os olhos dele baixaram... E ficaram por lá.
Os lábios de Trez se abriram, suas presas se alongaram de novo; e agora foi ela que cambaleou em seus pés quando seu núcleo respondeu ainda mais, desabrochando entre suas pernas, enviando um chamado.
Ao qual ele respondeu caindo de joelhos.
Ela não tinha certeza do que esperava, mas não era o que ele fez em seguida.
Ele se aproximou e deslizou as mãos sob as metades da túnica e em sua cintura. Calor foi sua primeira impressão... E aquilo foi seguido por uma sensação imediata e elétrica, um chiado que foi transmitido dele para ela através de suas palmas grandes.
Ele era tão alto que sua cabeça estava bem à altura de seus seios, e tudo o que ela pode pensar em fazer foi correr suas mãos sobre seus cabelos suaves e encaracolados...
Ela perdeu aquela iniciativa ao sentir a boca dele contra seu esterno. E então, pela sua barriga. E então o umbigo.
Ele estava baixando mais, e ela... Ele ia...
Selena gemeu e quase caiu quando o sentiu roçar o topo de seu sexo nu com os lábios; o toque dele em sua cintura era a única coisa que a mantinha em pé.
A carícia foi gentil e suave, seu rosto e nariz esfregando em sua pélvis, os lábios dele beijando a área externa de sua fenda.
E ela queria mais.
Bem quando estava tentando formular palavras, a língua dele se estendeu para uma lambida provocante, a invasão tão lânguida, que ela não se assustou nada com o quão estranho era. E então ela voltou, entrando novamente, provando-a novamente.
Ele estava ronronando agora.
Desequilibrando à frente, ela apoiou as mãos nos ombros dele e se abriu ainda mais... Mesmo impaciente com o esforço que levou ficar em pé: Ela queria toda sua concentração nele e no que ele fazia com ela. Se preocupar sobre equilíbrio e coordenação...
Ele resolveu aquele problema erguendo-a e deitando-a no tapete de pele na frente da banheira.
Rendendo-se ao que acontecia ali, ela estendeu os braços para cima da cabeça e arqueou as costas, os seios empinando e liberando as metades da túnica, revelado o corpo todo a ele.
— Puta merda, – ele murmurou quando seus olhos viajaram do topo da cabeça dela aos mamilos enrijecidos... Passando pela barriga plana, pelo sexo e pernas.
A mão negra dele criou contraste com a palidez de sua pele quando ele começou a acariciá-la languidamente, da clavícula aos seios. Capturando o peso na mão, ela gemeu e ondulou, com os joelhos dobrados... E totalmente aberta.
A toalha dele se afastou de seu corpo, expondo sua beleza sem pelos e seu sexo formidável.
— Tome-me, – ela pediu a ele. — Me ensine...
As lágrimas de seu irmão cheiravam a chuva de verão em asfalto ainda quente.
Ao tomar o caminho de volta do centro de treinamento, voltou a Wrath cada palavra que ele e Tohr tinham compartilhado, cada sílaba e todos os silêncios nos intervalos, ressoavam como dores após uma luta: no fundo de seus ossos, na própria medula, ele sentia os resquícios da conversa que eles tiveram perto da piscina.
Um comentário continuava voltando a ele.
Elas são tão vazias sem um filho quanto nós somos vazios sem elas.
Provavelmente, era a única coisa que, realmente, tinha se sobreposto ao seu medo: para ele, acordar sem Beth, tinha sido o pior tipo de revelação... E se fosse daquele jeito que ela se sentia sem um bebê, então aquele seria um longo período de crise para eles.
Olhe para ele. Ele estava preso a uma vida que odiava, e à uma alucinação de se transformar em psicótico. Ele não queria aquilo para ela... E ele sabia bem demais que estar com alguém a quem amava não era suficiente, se você fosse honesta e fundamentalmente infeliz.
O problema? O fato de ele compreender os sentimentos dela, não mudava toda a merda que o preocupava. Só o fazia sentir a incompatibilidade deles, de modo ainda mais visceral.
George espirrou.
Wrath mudou a guia de mão, se abaixou e acariciou o flanco do cão. — Este túnel sempre irrita o seu nariz.
Deus, o que porra ele ia fazer? Assumindo que ela ia entrar em sua necessidade... Mas talvez, ele estivesse errado e aquilo os salvaria. Mas por quanto tempo? Mais cedo ou mais tarde ela iria se tornar fértil.
Quando George sinalizou que era hora de parar e subir os degraus baixos, Wrath digitou o código, abriu a porta, e um momento depois, estavam no saguão e contornavam a base da grande escadaria. A Primeira Refeição já tinha sido servida, a Irmandade conversava, as vozes profundas e altas. Parou, ouviu o grupo e pensou naquela noite em que Beth tinha passado pela transição. Ela tinha vindo do porão na casa de Darius, e ele tinha espantado os irmãos ao tomá-la nos braços na frente de todos.
Fazia sentido. Naquela época, eles nunca o tinham visto com uma fêmea por perto.
E quando ele retornara da cozinha com o bacon e o chocolate que ela precisava para satisfazer sua fome pós-transicional, a Irmandade tinha se ajoelhado a sua volta, as cabeças baixas, as adagas enfiadas no assoalho do chão.
Eles estavam reconhecendo-a como sua futura rainha. Mesmo que ela não soubesse naquela época.
— Meu senhor?
Wrath olhou por sobre o ombro com um franzir de cenho. — Ei, o que está fazendo aqui, advogado.
Quando Saxton se aproximou dele, seu cheiro evocou todo um mundo de nada-bem. — Eu preciso falar com você.
Por trás dos óculos escuros, Wrath fechou os olhos. — Tenho certeza que sim, – ele murmurou. — Mas tenho de ir à minha Beth.
— É urgente. Eu venho do...
— Ouça, sem ofensa, mas eu deixei minha shellan de lado pelos últimos... Merda, nem sei quanto tempo. Esta noite, ela vem em primeiro lugar. Quando eu terminar, se houver tempo, eu te encontrarei. – Ele angulou a cabeça para cima. — George, me leve à Beth.
— Meu senhor...
— Tão logo eu possa, meu homem. Mas nem um segundo antes.
Com rápida eficiência, ele e seu cão subiram correndo a grande escadaria e se dirigiram para a porta que levava ao terceiro andar.
De repente, uma sensação oscilante o fez cambalear, até ter de esticar a mão e se apoiar na parede.
Mas a esquisitice passou tão logo o atingiu, e recuperou seu equilíbrio, as botas novamente solidamente posicionadas no chão.
Ele virou a cabeça para a esquerda e para a direita, como se costumava fazer quando ainda tinha alguma visão para se guiar. No entanto, não percebeu nada. Ninguém o empurrava por trás. Não havia correntes de vento soprando da sala de estar até o fim do corredor. Não havia brinquedos para tropeçar no chão.
Estranho.
Tanto faz. Ele só queria chegar a sua Beth... E ele sentia que ela estava lá em cima, no quarto deles.
Esperando por ele.
Quando chegou ao final da escada, pensou em seus pais. De tudo o que sabia, eles o amavam loucamente. Não havia como discordar disto. Ele tinha sido esperado e planejado e dado a eles pelo destino, ou os deuses, ou pela sorte.
Ele desejava que ele e sua Beth estivessem nessa mesma sintonia. Ele realmente queria.
Enquanto Anha ouvia seu nome através de uma grande distância, sentia como se estivesse se afogando.
Sendo tragada para a profunda inconsciência, ela sabia que estava sendo chamada, e ela queria responder ao chamado. Era seu companheiro, seu amado, seu hellren que estava falando com ela. E ainda assim ela não conseguia alcançá-lo, seu desejo ceifado por algum grande peso que se recusava a deixá-la ir livre.
Não, não um peso. Não, era algo introduzido em seu corpo, algo estranho à sua natureza.
Talvez fosse a criança, ela pensou com horror.
Mas não era para ser assim. O bebê concebido em seu útero deveria ser uma bênção. Um golpe de sorte, um presente da Virgem Escriba para assegurar o próximo Rei.
E ainda assim, tinha sido após sua necessidade que ela tinha começado a sentir a doença. Ela tinha escondido os sintomas e a preocupação o máximo que pôde, protegendo seu amado da preocupação que tinha se entranhado nela. Mas ela quase tinha perdido aquela luta; tinha caído no chão ao lado dele na festa...
A última coisa que ela tinha ouvido claramente, era ele chamando seu nome.
Ao engolir, ela provou o familiar vinho encorpado de seu sangue, mas o poder ruidoso que vinha das veias dele não se seguiu.
A doença a estava levando, pouco a pouco, tirando sua capacidade e também sua funcionalidade.
Ela ia morrer daquilo, fosse o que fosse.
Adeus... Ela queria dizer adeus à Wrath. Se ela não conseguisse reverter isto, pelo menos ela podia expressar-lhe seu doce amor antes de ir para o Fade.
Evocando os resquícios de sua força vital, ela lutou contra a corda que a prendia em seu estupor, lutando com desespero, rezando pela força que precisava para vê-lo uma última vez.
Em resposta, as pálpebras dela se ergueram lentamente e somente em parte, mas sim, ela viu seu amado, a cabeça dele caída, o corpo colapsado ao seu lado em sua cama nupcial.
Ele estava chorando abertamente.
Sua mente comandava sua mão a se esticar, a boca a se abrir e falar, a cabeça se virar para ele.
Nada moveu; nada foi dito.
A única coisa que saiu foi uma lágrima solitária que se formou no canto de seu olho, inchando até se escorrer pela bochecha gelada.
E então foi isso, suas pálpebras voltaram a se fechar, seu adeus dado, sua força acabada.
De repente, uma névoa branca ferveu dos cantos do campo escuro de sua visão, suas camadas ondulantes substituindo a cegueira que tinha sido forjada sobre ela. E de fora de suas curvas e iluminação estranha, uma porta chegou a ela, se adiantando como se nascida da nuvem.
Ela soube sem lhe ter sido dito que se ela a abrisse, se ela esticasse a mão para a maçaneta dourada e abrisse o portal, ela seria bem-vinda no Fade... E não haveria retorno. Ela também estava consciente da convicção de que, se ela não agisse em um tempo previsto, ela perderia sua chance e ficaria perdida no Limbo.
Anha não queria ir.
Ela temia por Wrath sem ela. Havia poucos dignos de confiança na corte... E tantos a serem temidos.
O legado deixado pelo seu pai tinha sido podre. Isso só não tinha sido evidente no início.
— Wrath... – ela disse para a névoa. — Oh, Wrath...
O tom ansioso em sua voz ecoou ao seu redor, ricocheteando em seus próprios ouvidos além da paisagem branco-no-branco.
Olhando para cima, ela teve alguma esperança de que a Virgem Escriba aparecesse em sua túnica e seu esplendor e se apiedasse dela.
— Wrath...
Como ela podia deixar a Terra quando tanto dela seria deixado para trás...
Anha franziu o cenho. A porta a sua frente parecia ter se afastado. A menos que ela tivesse imaginado?
Não, ela estava recuando. Lentamente, inexorável.
— Wrath! – ela gritou. — Wrath, eu não quero ir! Wraaaaath...
— Sim?
Anha gritou ao girar de volta. De início, ela não tinha ideia do que a confrontava: Era um garotinho de talvez sete ou oito anos, de cabelos pretos, olhos pálidos, seu corpo tão dolorosamente magro que ela imediatamente pensou que devia alimentá-lo.
— Quem é você? – ela guinchou. E ainda assim, ela sabia. Ela sabia.
— Você me chamou.
Ela colocou a mão na barriga. — Wrath...?
— Sim, mahmen. – A criança fitou a porta com olhos que pareciam ancestrais. — Você vai atravessar para o Fade?
— Eu não tenho escolha.
— Não é verdade.
— Eu estou morrendo.
— Você não precisa estar.
— Eu estou perdendo a luta.
— Beba. Beba o que está sendo posto em sua boca.
— Não posso. Não consigo engolir.
A cadência de suas palavras era crescente, mais rápido e mais rápido; como se soubesse que estava ficando sem tempo... E por extensão, ele também.
Aqueles olhos dele, de um verde tão pálido... E havia algo estranho neles. As pupilas eram pequenas demais.
— Não consigo beber. – ela repetiu. Querida Virgem Escriba, sua mente estava confusa além da medida.
— Siga-me e conseguirá.
— Como?
Ele esticou a mão para ela: — Venha comigo. Eu te levarei para casa, e então você beberá.
Ela olhou para a porta. Havia um puxão nela, um cordão que a fazia querer ir adiante e completar o ciclo que tinha iniciado quando ela tinha desmaiado no chão.
Mas o que ela sentiu pelo seu filho ainda era mais forte.
Se virando, ela deu as costas ao portal. — Me leve de volta a seu pai?
— Sim. De volta a ele e a mim.
Aproximando-se, ela enlaçou sua mão na palma cálida de seu filho ao invés maçaneta da porta, e ele a guiou, escoltando-a para fora da névoa branca, para longe da morte que tinha vindo a ela, em direção a…
— Wrath? – ela suspirou para a escuridão que clamava a ambos.
— Sim?
— Obrigada. Eu não queria ir.
— Eu sei, mahmen. E algum dia, você me devolverá este favor.
— Devolverei?
— Sim. E tudo ficará bem.
Ela não ouviu o resto do que ele disse: Como uma sucção tinha-a puxado para baixo, uma explosão súbita a levou para fora, o empurrão atacando cada parte dela ao mesmo tempo. E então um grande vento a atingiu no rosto, empurrando seu cabelo para trás, deixando-a sem fôlego.
Anha não sabia onde terminaria.
Tudo o que podia fazer era rezar para que, aquilo que tinha vindo a ela fosse mesmo sua progênie... E não algum demônio, para enganá-la. A única coisa pior do que não voltar, seria ser enganada por toda a eternidade por aquele a quem ela amava...
— Wrath! – ela gritou no turbilhão. — Wraaaaaaath...!
Trez sabia que nada daquilo devia estar acontecendo.
Não do jeito que tinha se alimentado da garganta de Selena ao invés do pulso. Não aquela loucura de merda na cama. E realmente, totalmente não o fato de que ela estivesse deitada no tapete de pele, os seios nus diante de seus olhos, o sexo pronto para ser tomado, o cheiro que era pura excitação.
— Tome-me, – ela disse na voz mais sexy que ele já ouvira. — Ensine-me...
O olhar dela estava tão vidrado quanto o dele, e de certa forma, ele não compreendeu. Ela o rejeitou antes, e agora... Agora ela o queria?
Quem se importa, Sua ereção latejou. Quem se importa! Tome-a! Ela nos quer!
Nós. Como se houvesse duas partes dele. E realmente, aquilo não era tão estúpido quanto parecia. Seu pau estava, de fato, falando sozinho àquela altura.
— Selena, – ele gemeu. — Tem certeza? Se eu provar mais de você... Em qualquer lugar... Não conseguirei parar.
Inferno, ele mal conseguia se segurar naquela pausa.
Ela esticou a mão e acariciou seu antebraço. — Sim.
Cale-se! Sente-se!
Ótimo, agora ele estava incorporando o pai de Howard Stern.
— Selena, eu não... Mereço isto.
— Eu desejo você. E isto te torna merecedor.
Eu te disse para não ser estúpido, seu burro.
Sim, aquilo era definitivamente Ben Stern.
Trez fechou as pálpebras e cambaleou, pensando que parecia uma cruel virada do destino sendo oferecida esta noite.
— Por favor, – ela disse.
Aw, porra. Como se ele fosse dizer não a ela?
Quando ele abriu novamente os olhos, não sabia como ia conseguir fazê-los passar pela experiência sexual sem se machucarem. Era o pior momento possível para abrir esta lata de vermes, mas ele não ia se afastar dela: Ele estava ferido em lugares que não gostaria de descobrir por si mesmo, e isto tudo ia ser um Band-Aid, algo que ia ajudá-lo.
Mesmo que fosse só temporário.
E pelo menos, ele podia fazer seu melhor para tornar aquilo tudo bom para ela também.
Movendo-se para Selena, ele apoiou os braços de ambos os lados de seu corpo ondulante, e lenta e inexoravelmente trouxe a boca para baixo até estar a meros milímetros acima da dela.
— Não tem volta, – ele gemeu.
Ela passou os braços ao redor do pescoço dele. — Sem arrependimentos.
Parecia justo.
Para selar o acordo, ele beijou-a, esfregando a boca contra a dela, pedindo até ela abrir a dela. A língua dele já tinha estado em seu sexo... Mas somente em um nível. Inferno, ele chocou-se com aquela lambida. Agora? Não havia como se segurar. Ele estendeu-se sobre ela completamente, fundindo sua boca na dela, virando a cabeça para o lado ao tomar seus lábios.
Era a dicotomia mais estranha. Ele estava pronto para tomá-la, preparado para abrir-lhe as pernas e se afundar naquele lugar quente e úmido entre suas coxas... E sim, ele queria marcá-la internamente com sua ejaculação, deixando sua essência totalmente dentro e fora dela, para que nenhum macho ousasse tocá-la, olhá-la.
Ainda assim ele tinha o tempo todo do mundo para aquele beijo.
Mas também, ela era doce como vinho gelado, suave como Bourbon, encorpada como vinho do porto. E ele já estava embriagado antes mesmo de erguer a cabeça para respirar.
Mas ele não ia ficar para sempre. Havia outro lugar onde queria ir.
Ao beijá-la pescoço abaixo, arrependeu-se das marcas cruas que tinha deixado em sua veia, e acariciou-a com os lábios uma vez, depois outra.
— Eu sinto muito, – ele disse, asperamente.
— Por quê?
Teve de fechar os olhos de novo quando aquela voz rouca dela penetrou sua bruma... E prontamente o excitou ainda mais. O que ela tinha perguntado... Oh, sim.
— Eu não devia ter sido tão bruto.
— Bem, eu não me importo de ser dominada. Nenhum pouco.
Eeeeee aquilo o fez ver dobrado.
— Você vai voltar ao que estava fazendo? – ela perguntou.
Claro que ia. — Sim... Agora mesmo. Se você quiser...
A ondulação de seu corpo e gemido foram as melhores respostas que ele jamais ouvira.
Tentando manter controlada a sua besta interior, ele beijou toda a clavícula dela e então teve de se afastar para observá-la. Os seios eram os mais lindos que já tinha visto: ela era constituída com perfeição, os mamilos no topo dos montes pálidos, a pele suave, a respiração uma provocação para o autocontrole dele.
Ele foi tão cuidadoso quanto tinha sido com a boca dela.
Esticando a língua, ele lambeu um círculo em volta do mamilo dela... E a julgar pelo modo que as mãos dela agarraram seu cabelo, ela aprovou.
— Oh... – ela gemeu.
Ele sorriu antes de sugá-la. Sugando, se acomodou de lado e passou uma mão pela cintura dela, seus quadris, sua coxa... A parte interna das coxas.
Ela abriu caminho para ele como água, seu corpo lânguido e confiante enquanto ele sugava e subia seu toque alguns centímetros, e mais alto. Ele estava quase em seu núcleo, e planejando exatamente onde acariciá-la quando...
A imagem de uma humana invadiu o espaço entre suas orelhas.
De início, ele não conseguiu entender o que caralhos seu cérebro tinha captado... Mas então reconheceu a mulher aleatória com quem tinha transado no banco de trás do carro há mais de um ano. E a clareza foi mortal. Ele viu tudo em alta definição, o batom manchando o dente da frente, os rímel escorrendo sob os olhos, o silicone mal implantado que deixara os mamilos tortos.
Mas nada disto era a pior parte.
Não, o pior era o jeito que a cabeça dela se movia para frente e para trás, para cima e para baixo... Porque ele estava dentro dela. Seu pau estava afundado em seu sexo, entrando e saindo, o ritmo crescente para que ele pudesse gozar e acabar logo com aquilo.
A ereção dele, a que estava pronta para deslizar para dentro de Selena, tinha estado na latrina. Tinha estado em... Centenas de humanas sujas que não tinham apresentado testes negativos de DSTs ou que já tinha contraído AIDS por deixarem vagabundos como ele entrarem em suas calcinhas.
O fato de que não pudesse contrair tais doenças não importava nem um pouco.
Imundície era imundície.
Pulando para trás, ele sibilou e fechou os olhos, tentando se livrar daquela merda toda.
— Trez?
— Desculpe, eu... – Balançando a cabeça, ele voltou a fitar seus seios... E sentiu náuseas de ódio por si mesmo. — Eu só...
Outra mulher humana pipocou em seu cérebro, desta vez a corretora imobiliária que tinha fodido no galpão que tinha acabado de comprar: Ele visualizou as mãos abertas dela, apoiadas contra a parede enquanto a fodia por trás, a aliança de casamento brilhando.
— Sinto muito, – ele grunhiu. E então balançou mais a cabeça... Como se as memórias fossem objetos que pudesse derrubar da mesa da consciência. — Eu estou...
Em rápida sucessão, ele viu a morena que ele tinha deixado chupá-lo no escritório. A ruiva que tinha comido junto com a loira no banheiro do clube. O ménage com aquelas colegiais, a gótica no cemitério, a garçonete no Sal's, a farmacêutica quando fora comprar Motrin aquela tarde, a bartender naquele lugar, a mulher que conhecera na concessionária de automóveis...
Rápido e mais rápido, até as imagens parecerem balas uma após a outra após a outra, atirando de seu cérebro.
Ao sair de cima de Selena, parecia bizarro e totalmente inadequado que a única coisa que pudesse pensar era que os Sombras tinham razão.
O sexo com humanas o tinham contaminado.
E ele estava pagando o preço pelo veneno, aqui e agora.
Sentado à mesa da cozinha, tudo o que Assail fez foi olhar para os primos. O par de matadores de aluguel, traficantes de droga e executores não só tinham se lavado antes da refeição, como agora estavam recostados em seus assentos e parecendo querer afrouxar as calças.
Quando a avó de Marisol se levantou de novo, Assail balançou a cabeça. — Madame, a senhora deveria aproveitar a refeição com a qual teve tanto trabalho.
— Eu estou aproveitando. – Ela foi para o balcão e cortou mais pão. — Estes garotos, eles precisam comer mais. Magros demais, magros demais.
Naquele passo, ela ia transformar seus ajudantes em... Qual era a expressão? Obesos mórbidos?
E só para constar, mesmo que estivessem cheios a ponto de explodir, os dois machos aceitaram mais um pedaço de seu pão caseiro, e laboriosamente cobriram com manteiga adocicada.
Inacreditável.
Assail olhou para Marisol. A cabeça dela estava baixa, o garfo só remexia a beirada da comida. Ela não tinha comido o suficiente, mas tinha aberto o vidro cor de cobre de pílulas que a Dra. Jane tinha lhe dado para tomar uma das pílulas laranja-acinzentadas de dentro.
Ele não era o único observando-a. Os olhos de águia da avó monitoravam tudo: Cada movimento daquele garfo, cada gole no copo de água, todo o ato de não comer que se desenrolava.
Marisol, por sua vez, não olhava ninguém. Depois da reunião emocionada com sua parenta, ela tinha se fechado, seu olhar fixo na comida, sua voz limitada a respostas curtas de... Sim... E... Não... Sobre temperos e molhos.
Ela tinha retornado para um lugar onde ele não a queria perdida.
— Marisol, – ele disse.
A cabeça dela se ergueu. — Sim?
— Quer que eu te mostre seu quarto? – no instante em que aquilo saiu de sua boca, ele olhou para a avó. — Se me permite, é claro.
De acordo com os velhos costumes, a senhora de idade seria a ghardian de Sola, e embora raramente ele demonstrasse respeito a humanos, parecia apropriado ser respeitoso à mulher.
A avó de Marisol concordou. — Sim. Eu trouxe as coisas dela. Lá.
De fato, havia uma mala de rodinhas à entrada do grande cômodo.
Ao voltar a se concentrar em sua própria comida, ele podia jurar ter visto um sorriso leve nos lábios da avó.
— Eu só estou tão exausta. – Marisol se levantou e pegou o prato. — Sinto como se pudesse dormir para sempre.
Não vamos falar nisto, ele pensou ao também se levantar.
Depois dela beijar a avó na bochecha e falar na língua materna, ele a seguiu, colocando os pratos na pia, e então se dirigiu à mala. Ele queria abraçá-la. Mas não o fez. Ele, no entanto, pegou a bagagem para a qual ela se encaminhava.
— Permita-me, – ele disse.
A calma com a qual ela cedeu, lhe informou que ela ainda tinha dor. E assumindo a frente, ele a levou para as escadas. Havia duas: uma que ia para o quarto dele, outra que descia para o porão, onde havia cinco quartos.
A avó e os primos estavam no andar inferior.
Olhando por sobre os ombros, ela estava em silêncio e séria atrás dele, os olhos baixos, seus ombros caídos de uma fadiga que era mais do que somente física.
— Você ficará no meu quarto, – ele disse a ela. — Só você.
Ele não ficaria com ela. Não com a avó na casa.
Mesmo que o pensamento estivesse lá e ele quisesse.
— Obrigada, – ela murmurou.
Antes que ele soubesse o que estava fazendo, ele abriu a porta com o pensamento, expondo as escadas altamente polidas branco-e-preto.
Oh, merda, ele pensou.
— Detector de movimento, huh, – ela disse, despreocupadamente.
— De fato.
Quando ela começou a subir os degraus, Assail tentou não notar os movimentos de seu corpo. Parecia o cúmulo do desrespeito... Especialmente por ela estar mancando.
Mas querida Virgem Escriba, ele a queria mais do que tudo.
Seu quarto se estendia por todo o andar superior, o espaço octogonal proporcionando uma visão 360 graus do rio, o centro urbano distante de Caldwell, as florestas ao oeste. A cama era redonda com uma cabeceira curva, sua plataforma diretamente ao centro do quarto sob um teto espelhado. Os “móveis” eram embutidos: armários de nogueira trabalhados com criados-mudos, escrivaninhas, e a área trabalho, absolutamente nada ficava no caminho das paredes de vidro.
Apertando um comutador próximo à porta, ele acionou as persianas, que saíram de seus compartimentos escondidos, com as extensões flutuantes ondulando até se fixarem no lugar.
— Para sua privacidade, – ele disse. — O banheiro é por aqui.
Ele passou por um batente de porta e apertou outro comutador. O esquema de cores do quarto era amêndoas e creme, e se repetia no chão de mármore e paredes e balcão da privada. Engraçado, ele nunca tinha, de um jeito ou de outro, pensado na decoração, mas agora ele estava feliz pelos tons calmos. Marisol merecia a paz que suas lutas árduas tinham lhe rendido.
Quando ela andou pelo banheiro, seus dedos acariciaram os veios do mármore como se tentasse se apoiar.
Se virando para ele, ela o encarou. — Aonde você vai dormir?
Nunca foi de hesitar em declarar sua posição, entretanto pigarreou. — Lá embaixo. Em um quarto de hóspedes.
Ela cruzou os braços no peito. — Não há outro quarto aqui em cima?
Ele sentiu as sobrancelhas se erguerem. — Há um sofá-cama.
— Você pode ficar? Por favor.
Assail se viu pigarreando de novo. — Tem certeza que é apropriado com sua avó aqui?
— Eu tenho pesadelos terríveis, se ficar sozinha, não vou conseguir dormir.
— Então eu fico feliz em atender seu pedido.
Ele só tinha de se certificar de ser a única coisa que faria...
— Bom. Obrigada. – Ela olhou para a Jacuzzi atrás de seu box. — Ela parece incrível.
— Deixe-me enchê-la para você. – Ele se adiantou e puxou as torneiras de bronze, a água quente clara como cristal. — Ela é bem funda.
Não que ele já tivesse usado.
— Há também uma pequena cozinha aqui. – Ele abriu uma porta escondida, revelando um frigobar, um minúsculo forno de micro-ondas e uma cafeteira. — E há mantimentos no armário ali em cima se ficar com fome.
De fato, ele era um mestre da obviedade, não era.
Silêncio incômodo.
Ele fechou o pequeno gabinete. — Vou esperar lá embaixo até você terminar o seu...
O colapso de Marisol chegou sem preâmbulos, os soluços balançando seus ombros quando ela colocou a mão na cabeça e tentou manter o barulho sob controle.
Assail não tinha experiência em confortar fêmeas, mas foi a ela, sem pensar duas vezes. — Querida, – ele murmurou, ao puxá-la para seu peito.
— Eu não posso fazer isto. Não está funcionando... Não consigo...
— Não consegue o que? Fale comigo.
Abafada em sua camisa, a resposta dela foi clara o bastante. — Eu não posso fingir que não aconteceu. – Ela ergueu a cabeça, os olhos luminosos de lágrimas. — É tudo o que vejo, cada vez que eu pisco.
— Shh... – ele afastou uma mecha de cabelo para trás da orelha dela. — Está tudo bem.
— Não está...
Enlaçando o rosto dela com as mãos, ele sentiu raiva e impotência. — Marisol...
Como resposta, ela agarrou e apertou os pulsos dele... E no silêncio tenso que se seguiu, ele teve a impressão de que ela estava lhe pedindo algo.
Querido Deus, ela queria algo dele.
Estava evidente na imobilidade de seu corpo, na selvageria de seu olhar, naquele aperto sobre seus pulsos.
Assail fechou os olhos brevemente. Talvez ele estivesse interpretando tudo errado, mas ele achava mesmo... Embora de qualquer forma, não seria de se estranhar, dado tudo o que tinha ela passado.
Ele deu um passo para trás. — A banheira está quase cheia, – ele disse roucamente. — Eu vou verificar as acomodações de sua avó, sim? Chame se precisar de algo antes de eu retornar.
Indicando o intercomunicador interno da casa, ele rapidamente saiu, fechando a porta às suas costas. Se apoiando contra ela, quis bater a cabeça algumas vezes, mas não quis alertá-la de seu conflito.
Passando a mão na frente de suas calças, arrumou sua ereção em uma posição socialmente aceitável... Mas no instante em que o contato foi feito, gemeu e soube que precisava cuidar daquilo.
Ele mal chegou ao banheiro do escritório do primeiro andar. Trancando-se dentro, apoiou as mãos no mármore da pia e baixou a cabeça.
Ele aguentou somente três batidas rápidas de coração.
O cinto foi aberto com a espontaneidade do tecido se abrindo, e os botões de suas calças foram igualmente abertos... E então seu pau, seu pau latejante e duro como rocha explodiu para fora dos quadris.
Mordeu o lábio inferior, agarrou a si mesmo e começou a acariciar, seu peso inteiro se inclinando naquele braço que ele mantinha esticado, o prazer tão intenso a ponto de doer.
O gemido que ele soltou ameaçou conduzi-lo, mas não podia fazer nada sobre aquilo. Ele estava muito perto do buraco do coelho para parar ou mesmo alterar o curso de suas reações.
Mais rápido, para cima e para baixo... Até que morder seu lábio não era mais suficiente: Ele teve de virar a cabeça no braço e morder seus bíceps, suas presas se afundaram profundamente no músculo através do suéter, através da camisa.
O orgasmo o atingiu forte, os picos afiados como facas o atravessaram, a ejaculação foi apanhada em sua própria mão, quando cobriu a si mesmo.
Mesmo a ponto da liberação, ele honrou sua Marisol: Deliberadamente manteve todas as imagens fora de sua mente, determinado a fazer daquilo um ato somente físico.
Quando acabou, não se sentia nem um pouco aliviado.
E ele se sentiu sujo mesmo depois de se limpar.
Beth encontrou o kit de medicação na pia do banheiro. Depois de surtar sobre a condição da mesa de bilhar e tudo o mais, ela tinha subido e imediatamente se dirigiu ao quarto para tomar um banho de chuveiro... Onde ela tinha encontrado o estojo de couro preto no balcão entre sua pia e a de Wrath.
De início, ela pensou que fosse o estojo de um dos óculos escuros de Wrath, só que era flexível e não rígido.
E foi quando esticou a mão para pegar a coisa que a primeira onda a atingiu.
Quente, um úmido ar irradiou de todo o seu corpo, da nuca à extensão das pernas, do rosto e garganta à barriga e abaixo até os pés.
Como se ela já tivesse ligado o chuveiro.
Ignorando a sensação, ela abriu o ziper do kit. Não eram óculos de sol. Ao invés disto, havia um vidrinho contendo um líquido claro e três seringas, todos amarrados como se estivessem seguindo as leis de transito para uma viagem de carro, usando cintos de segurança. O rótulo da garrafinha estava virado para o outro lado, desta forma, ela mexeu para poder ler.
Morfina.
Ela nunca tinha visto algo assim nas coisas de Wrath. E não era difícil adivinhar que ele poderia ter ido até a Dra. Jane... Ou inferno, até mesmo Havers... Para se preparar para a eventualidade de ela realmente passar pela sua...
Outra explosão de calor caiu sobre ela, e ela careteou para a ventilação acima. Talvez Fritz devesse chamar a manutenção...
Quando seus joelhos cederam sem nenhum aviso, ela mal teve tempo de se segurar no balcão, o kit caiu na pia de Wrath, os dois vidros de perfume Chanel dela se batendo um no outro. Com um grunhido de animal ferido, ela tentou se erguer, mas seu corpo não parecia entender os comandos do cérebro.
Ele estava em seu próprio caminho.
Um poder imenso e vulcânico explodiu para fora dela, tirando-lhe a força de manter-se acima do chão. Caindo, ela se embolou toda, abraçando o baixo ventre, puxando o joelho até o peito. O mármore frio mal foi registrado enquanto a floresta de fogo sob sua pele mudava para uma urgência descontrolada, uma necessidade sexual incontrolável que requeria somente uma coisa.
Seu companheiro.
Virando-se de costas, ela rolou para o lado, e então de bruços. Arranhando o chão escorregadio, ela esfregou as coxas, tentando um pouco de alívio, alguma pausa na dor que tomava controle de tudo.
Quantas horas? Ela tentou pensar... Quantas horas Layla tinha dito que duraria?
Vinte e quatro? Não, mais...
Beth chorou ao sentir outra explosão atravessar seu corpo, o suor jorrando de seus poros, as presas alongando dentro da boca.
E isto era só o começo, uma parte distante dela reconheceu. Só o primeiro ataque... E ia piorar: conforme o tempo passasse, os hormônios deixá-la-iam incapaz de qualquer coisa além de respirar.
E pensar que tinha voluntariamente buscado aquilo?
Loucura.
A necessidade era como um par de punhos golpeando seu corpo a ponto de ela achar que quebraria alguns ossos. Não, não, isto ia matá-la... Como podia não matá-la? E a necessidade de sexo? Não era nem mais a respeito de ter um filho. Era questão de sobrevivência...
Wrath.
Oh, Deus, ele ia subir aqui. Quando terminasse a conversa com Tohr. E ele ia encontrá-la no chão... E então o quê?
Mesmo sob o redemoinho de seus hormônios, ela conseguia pensar na conclusão daquilo... Ele iria estar em uma posição horrível: ou servi-la e viver com as consequências que odiaria, ou observá-la sofrer.
O que ele jamais faria.
As palmas de suas mãos fizeram ruídos no chão escorregadio ao se apoiar para se erguer. Escalou os puxadores das gavetas como se fossem uma escada, e teve de parar para se recuperar apoiada no balcão, a visão ondulando, os olhos lutando para se focar enquanto seu corpo implorava pelo sexo que simplesmente não podia ter.
Antes de sucumbir inteiramente a isto, ela ia ter de cuidar sozinha das coisas.
Suas mãos tremiam tão intensamente, que levou diversas tentativas para pegar o kit, mas eventualmente, conseguiu e colocou-o no chão. Hora de nova pausa no mármore gelado. Mas não muito longa. As ondas estavam vindo mais forte e mais rápido a cada vez.
Dedos desajeitados, o vidrinho escapou de seu alcance, deslizando para longe.
Ela chorava ao arrastar o corpo para junto dele, braços esticados, mãos tateando...
— Beth, – uma voz disse. — Oh, Deus... Beth.
Uma mão masculina caiu do céu, buscando por ela, buscando no próprio ar por ela... E através do atoleiro, ela lutou para processar os “comos” e “porquês” – exceto que seu corpo fez a conexão por ela.
Wrath.
Quando as botas entraram em seu campo de visão, seus hormônios explodiram, respondendo a presença dele e elevados a um nível que era não somente Inferno na Terra, mas sob sua pele, fervendo seu sangue, fazendo-a gritar por aquilo que só ele podia lhe dar.
Mas aquilo jamais aconteceria.
— Vá em frente... – ela chorou em uma voz entrecortada. — Drogue-me... Ou me dê...
Wrath se ajoelhou ao lado dela. — Beth...
— Dê-me as drogas! Eu aplico.
— Não posso deixá-la.
Prendendo-o com um olhar duro, ela não teve energia para lutar contra ele. — Me dê a porra das drogas!
O corpo de Wrath tinha começado a responder assim que ele tinha tomado as escadas para seus aposentos... E no momento em que entrou no banheiro, sabia exatamente o que estava acontecendo. Além da solução: cada instinto dele rugia para servir sua fêmea, acalmar o sofrimento dela da única maneira que importava.
Estremecendo, caiu de joelhos, tateando em volta para encontrá-la, seguindo os sons de sua voz e os movimentos espasmódicos que o corpo dela fazia contra o chão de mármore. Ela estava incoerente, chorando de dor, perdida nas contrações de sua necessidade.
— Dê-me a porra das drogas!
Levou um momento para a exigência dela se assentar em sua mente, e então ele percebeu que aquele era o momento na vida onde o caminho se desdobrava... E em sua mente, nenhuma das opções era boa.
— Wrath... – ela grunhiu. — Wrath... Só me anestesie.
Ele pensou no kit que tinha deixado no balcão. Tudo o que tinha de fazer era abrir, encher a seringa e injetar a morfina nela. E então o sofrimento estaria acabado...
Só parcialmente, uma parte dele salientou...
Uma nova carga de necessidade explodiu no corpo de Beth, seu soluço se ergueu ao volume de outro grito, os membros se chocando nele diante dos espasmos dela.
Ele não saberia dizer quando foi, exatamente, que sua mente tomou a decisão. Mas de repente, suas mãos voaram para o zíper de suas calças de couro, a medicação foi esquecida, a direção escolhida.
— Aguente, leelan, – ele grunhiu ao libertar sua ereção. — Aguente, eu vou tomá-la...
Claro que iria.
Só que quando tateou em volta para as pernas dela e tentou tirar as calças jeans que ela vestia, levou tempo demais: o corpo dela resistiu, as pernas se movimentando enquanto ela se contorcia e revirava no chão... Quando ele finalmente conseguiu tirar a porra das calças, não perdeu tempo. Forçou-a a ficar imóvel, enterrando as mãos nos quadris dela, e então ele...
Beth berrou o nome dele ao senti-lo entrar, as unhas ferindo os ombros dele, seus seios se apertando contra o peito dele. Ele gozou imediatamente, as bolas se contraindo e então liberando... E não estava preparado para a resposta dela. Ao gozar junto com ele, o sexo dela ordenhou-o, pressionando seu comprimento, praticamente o puxando...
Ele gozou de novo. Tão violentamente, que mordeu a própria língua.
Bombeando contra ela, bombeando dentro nela, ele deixou-se ir violenta e selvagemente... Até seu corpo tomar uma pequena pausa para se recuperar. E foi quando ele sentiu a diferença que tinha feito nela: ela, também, estava em um curto descanso, a tensão em seu corpo se desenrodilhando como se suas próprias moléculas estivessem em um profundo cochilo.
Mas antes de poder parabenizar-se, sentiu algo errado. A tristeza permeava o ar, o tempero triste dela fazendo-o parar e baixar a cabeça como se pudesse olhá-la nos olhos.
— Não chore, – ele disse roucamente. — Leelan, não...
— Por que está fazendo isto? – ela gemeu. — Por quê...?
Só havia uma resposta. Por esta noite... E para sempre: — Porque eu te amo mais do que qualquer coisa.
Mais do que a ele mesmo. Mais do que qualquer futuro filho.
As mãos trêmulas dela acariciaram o rosto dele. — Tem certeza?
Ele respondeu recomeçando a se mover profundamente dentro dela, as penetrações ondulantes deslizando-o para dentro e para fora de seu sexo úmido. E a resposta dela? O som que soltou era parte ronronar, parte gemido, os hormônios explodindo de novo.
Por alguma razão, ele pensou na visão de Vishous.
Eu o vejo parado em um campo branco. Branco, branco está em toda sua volta e você está falando com um rosto no céu.
Seu futuro está em suas mãos.
Jesus Cristo, ele sentia como se o Fade estivesse respirando em seu pescoço, observando-o... E embora aquilo fosse verdade para cada ser vivo, ele sentia-se um alvo, como se sua data de validade estivesse ali, na próxima esquina.
Não significava que Beth iria sobreviver a ele. Bem ao contrário. A causa mais provável de sua própria derrota... Seria a morte dela.
Baixou a cabeça para o pescoço dela, enfiou os braços embaixo do seu corpo e se concentrou em fodê-la. Desistiu, se rendeu, deixou-se ir como se pulando de um penhasco... O pulo era a parte mais fácil porque a queda-livre não lhe custava merda alguma.
O que matava era o choque com o chão.
Sola fechou seus olhos ao afundar mais o corpo na banheira. Quando o nível da água se ergueu para cobrir tudo, exceto seu pescoço e cabeça, sua calidez a fez perceber o quanto estava fria, não na superfície de sua pele, mas no núcleo de seus ossos.
Olhando para baixo para seu corpo, na luz fraca, ela sentiu-se desconectada dele, e ela não era idiota. Deixar um bandido qualquer boliná-la para poder sobreviver naquela noite tinha criado a separação... A coisa agora era... Como reconectar-se?
Ela conhecia uma solução certeira.
Mas ele a tinha abandonado aqui.
Cara, estava sendo difícil seguir o conselho de Assail. Fingir que aquelas horas, aquele medo, o horror não tinha existido, parecia tão desafiador quanto passar pela própria experiência. Mas qual era a sua outra opção? Ela não podia respirar o mesmo ar que sua avó, com tudo o que tinha feito e visto bem à superfície de sua mente.
Baixou os olhos, para si mesma novamente, e moveu as pernas. Pelo ondular da água, a bandagem em sua coxa se distorceu e retomou a forma, distorceu e retomou a forma. Enfiou a mão na água e puxou a coisa, o adesivo saiu fácil. Ela sabia que não devia molhar os pontos ainda... Ops.
Onde infernos Assail a tinha levado para ser tratada? Aquele lugar era luxuoso, do sistema de segurança às instalações médicas e todas aquelas pessoas. Seu cérebro estava tentando compreender aquilo, e a única conclusão que fazia sentido era governo.
Embora ele tivesse rido daquilo, ela não conseguia pensar em outra explicação.
Mas ele não a tinha encarcerado.
Fechando os olhos, ela se perguntou como ele soubera onde encontrá-la. E o que, exatamente, ele fizera a Benloise. Merda, a imagem do sangue no rosto de Assail, em volta da boca...
Quem comandaria Caldwell agora?
Dã.
Ergueu a mão, retirando-a da água e afastou o cabelo para trás. A umidade já emplastrava o comprimento, aquecendo a base de seu pescoço, fazendo-a suar.
Deus, estava tão silencioso aqui.
Ela tinha morado naquela casa com sua avó por quase uma década, e estava acostumada aos barulhos da vizinhança: carros passando, cães latindo a distância, crianças pulando e gritando ao jogarem basquete nas ruas. Aqui? Somente a água se movendo na banheira a cada movimento de suas pernas... E ela sabia que o silêncio não era somente porque não havia outras casas imediatamente em volta deles. Este lugar tinha sido construído como uma fortaleza, e tinha seus truques. Truques de alto-nível.
Ela pensou de novo na noite em que tinha vindo ali pela primeira vez a pedido de Benloise. Sua missão tinha sido espionar Assail e seu castelo... E o que ela tinha descoberto a tinha confundido: Aquelas estranhas janelas holográficas. As câmeras de segurança. E o próprio homem.
Talvez ela estivesse pensando demais naquilo. Talvez Assail e seus amigos fossem somente apocalípticos previdentes...
Fechando os olhos, ela desistiu de tudo e somente flutuou na água. Ela podia ter ligado a hidromassagem, mas seu corpo já tinha passado por agitação suficiente, muito obrigada...
Subitamente, as emoções borbulharam, demais para conter.
Quando endireitou o corpo, a água transbordou e molhou o chão. — Droga.
Quanto tempo até ela voltar a se sentir normal? Quantas noites de calafrios, distrações durante as refeições e crises de choro escondidas?
Saindo da banheira, pegou uma toalha felpuda branca de uma prateleira e estremeceu ao sentir o contato do tecido em sua pele. Era como se seus nervos estivessem em estado de alerta máximo, cata-ventos que absorviam cada movimento do tecido macio, cada sopro da ventilação acima, todos os arrepios da água que evaporava.
— Você é tão bonita.
Seu calcanhar úmido fez um ruído ao se virar para a porta. Assail estava parado entre as sombras, uma presença sombria, iminente que a fez sentir-se mais do que somente nua.
Houve um momento elétrico quando seus olhos se encontraram.
E então ela largou a toalha. — Preciso de você.
O som dele exalando foi todo um tipo de derrota, mas ela não se importou. Ela podia sentir o chiado do ar entre eles, e soube que não era só de seu lado.
— Agora, – ela exigiu.
— Como posso dizer não, – ele suspirou naquele tom carregado dele.
Ele se aproximou dela e tomou seu rosto em suas mãos grandes e cálidas... E foi tamanho alívio vê-lo se inclinar e esfregar os lábios contra os dela, tocar sua boca, acalmando-a ao mesmo tempo em que a deixava mais excitada. E então ele a pegou no colo, carregando-a para o quarto.
Com incrível gentileza, ele deitou-a sobre edredom felpudo como se temesse que ela se quebrasse... O que estava certo demais. Mesmo que seu corpo respondesse a ele relaxando e se liquefazendo, ela se sentia no limiar de se partir.
Mas isto ia ajudar.
Ela puxou os ombros dele para baixo, mais para perto dela quando ele se sentou ao seu lado na cama... Como se preocupado que se aproximar dela a fizesse entrar em pânico. Só que ela queria o peso dele restringindo-a; queria a sensação dele pressionando-a no colchão, substituindo a lembrança com realidade, levando-a a inconsciência através do contato.
Sola puxou-o para ela. Abriu as pernas para abrir espaço, a ereção por trás do zíper dele pressionou diretamente em seu núcleo, a calça de lã plissada que ele vestia arranhando contra sua pele sensível, fazendo-a gemer... De uma maneira boa.
Mais beijos, a língua dele escorregou pela boca dela, as mãos dele subiram para seus seios. Ele era melhor do que a água na banheira para suas dores e ardores, especialmente quando ondulava os quadris contra os dela, acariciando seu sexo com a promessa do dele, enlevando-a fácil e docemente. Quando seus mamilos enrijeceram a ponto de doer, ele pareceu saber o que precisava em seguida, quebrando o contato com sua boca e beijando todo o caminho para eles.
Sua língua foi preguiçosa ao lamber ao redor de um e então do outro... Antes de sugar uma ponta e puxá-lo.
Arqueando-se de prazer, ela acariciou o cabelo dele para trás, as ondas grossas dando-lhe mais do que o suficiente para se segurar... Quando ela olhou para o espelho acima da cama.
E o viu fazendo amor com ela.
— Oh, Marisol... Um banquete para os olhos... – As pálpebras dele estavam baixas quando ele ergueu a cabeça e olhou para baixo para seu corpo. — Você é o sonho de qualquer homem...
Dificilmente. Ela era reta como um garoto, sem quadris e peitos que só tinham tamanho suficiente para ser preciso usar um sutiã – e ainda assim, sob aquela luz fraca, nesta cama redonda, sob seu olhar penetrante, ela se sentia tão voluptuosa quanto qualquer mulher do planeta, totalmente sexualizada e pronta para ser satisfeita pelo seu homem.
Mesmo que ele não fosse dela de verdade.
Voltando a baixar a cabeça, ele voltou a lhe acariciar os seios enquanto os dedos voavam pelos seus quadris e pelo lado externo da coxa. Para cima e para baixo ele tocou sua perna, ao mesmo tempo em que sugava e pressionava cuidadosamente contra seu...
Então a mão dele escorregou entre eles, substituindo sua ereção vestida, passando sobre seu sexo molhado uma vez, duas vezes... E começou a esfregar.
Ele voltou a tomar sua boca enquanto seus dedos a penetraram.
Por uma fração de segundos, ela estremeceu tomada pela tensão, seu corpo se lembrando da última vez que aquilo tinha acontecido.
Assail imediatamente parou tudo. Encarando-a, sua expressão sombria a ponto de violência. — O quanto eles te machucaram?
Sola só balançou a cabeça. Ela não queria falar naquilo, não quando o alívio estava tão perto que ela podia tocar.
— Marisol. Quanto?
— Eu acho que você disse para eu tentar esquecer que tinha acontecido.
Os olhos dele se fecharam como se sentisse dor. — Eu não te quero ferida... Nunca. Mas especialmente não deste jeito.
Deus, ele era lindo, aquelas feições bonitas dele cobertas de agonia por sua causa.
Ela esticou a mão e acariciou a sobrancelha dele, apagando as rugas que tinham se marcado ali. — Apenas fique comigo. Faça-me saber que é você e não... Ninguém mais. É o que eu preciso neste momento.
Cada vez que Assail achava que sua fêmea tinha deixado de surpreendê-lo, Marisol o levava a outro nível, mais profundo. Neste caso, a ideia de que algum homem tinha brutalizado seu corpo sagrado... Virgem Escriba no Fade, seu cérebro literalmente apagava ante um congestionamento de agressão e agonia.
E ainda assim, só o toque dela era suficiente para resgatá-lo da violência.
— Não pare, – ela suspirou ao acariciar a garganta dele.
A ação inocente dela engatilhou uma resposta imediata de alimentação nele, as presas se alongaram na boca, sua ânsia de marcá-la tomando sua veia, quase tão grande quanto a resolução imperiosa de nunca deixá-la descobrir sua verdadeira natureza.
Ela já tinha sido traumatizada demais.
As mãos dela foram até a camisa dele e ela puxou-a das calças. E então começou a abrir o cinto.
Só que ele não ia se permitir ser distraído. Não até ele saber...
— O que ele fez a você? – ele perguntou.
Quando Marisol congelou, uma parte dele se surpreendeu de estar pressionando-a, especialmente depois do conselho que ele tinha insistido em lhe dar.
— Eu fiz o que tinha de fazer para distraí-lo, – ela disse tensamente. — E então eu chutei suas bolas.
Assail exalou. — Eu é que devia ter matado ele.
— Para defender minha honra?
Ele estava totalmente sério ao olhar para ela. — Absolutamente.
Os olhos dela pareceram agarrar os dele. — Você realmente é um cavalheiro no fundo no fundo, não é?
— Eu matei Benloise, – ele ouviu-se dizer. — De um jeito que o fez sofrer.
As pálpebras dela se fecharam brevemente. — Como você soube que tinha sido ele a me pegar?
— Eu te segui na noite em que invadiu a casa dele.
— Então era você. – Ela balançou a cabeça. — Eu podia jurar que havia alguém comigo. Mas não tive certeza. Jesus, você me deixa no chinelo em termos de espionagem.
— Porque você foi lá? Eu me pergunto desde então.
O sorriso que ela lhe deu era cheio de ironia. — Porque ele me disse para parar de perseguir você... E se recusou a me pagar o valor que tínhamos acordado. Digo, eu estava preparada para manter minha parte no acordo, mas algo o assustou. Você?
Ele anuiu uma vez e tomou novamente a boca dela, bebendo a sensação dela, seu gosto. — Nada mais disto para você.
— De quê?
— Deste tipo de trabalho.
A tensão dela retornou, mas só por um momento. — Eu concordo.
Deus, era exatamente o que ele precisava ouvir e não sabia: a ideia dela permanecendo a salvo o afetou tanto, que ele teve de piscar para passar.
E tão logo passou, Assail rapidamente tirou as roupas, o tecido fino flutuando pela beira da cama para o chão. Então ele estava pele a pele com ela, posicionado sobre suas coxas abertas, seu pau duro como rocha, no entanto, contente de esperar.
Quando ele finalmente posicionou sua cabeça na entrada de seu sexo, soube que estaria perdido para sempre se completasse o ato. Ou talvez fosse uma mentira. Talvez... Ele já estivesse perdido desde a primeira noite em que se encontrara com ela, na neve.
Entrando lentamente, sentiu-a se arquear contra seu peito, viu seus olhos rolaram, e desejou nunca tê-la conhecido. Por melhor que fosse, ele não precisava de uma fraqueza como ela em sua vida. Mas como uma ferida cheia de sal, ela estava permanentemente em sua pele.
Pelo menos ela ia ficar ali com ele, e estaria segura.
Aquele era seu único consolo.
Movendo-se devagar, cuidadosamente, ele moveu-se dentro e fora de seu aperto úmido, seu pau sendo acariciado por todos os lados. Teve de cerrar os dentes e travar a lombar para manter o ritmo firme e contínuo... Ele queria ir mais rápido, mais rápido, mas não era uma opção.
E sim, ele sabia exatamente o que ela queria: ela estava usando-o como uma borracha, e ele estava mais do que disposto a assumir o papel.
Qualquer coisa para ela.
Marisol reposicionou-se, enrodilhando as pernas em volta dele, elevando-se para que fosse ainda mais fundo. Uma carícia mais tarde e ela estava segurando forte em seus ombros. Estava perto para ela, tão perto.
— Estou com você, – ele disse em seus cabelos. — Deixe-se ir e eu te seguro.
Ela jogou a cabeça para trás e as unhas se enterraram fundo e seu corpo ficou tenso, e ele congelou, sentindo o turbilhão da excitação dela, os puxões sutis que o intensificou.
Enterrando a cabeça em seu pescoço, ele só queria ficar mais perto, sentir mais dela, ser mais responsivo as suas necessidades.
Mas ela se moveu inesperadamente, arqueado o corpo, mudando a posição... E seu pescoço se apertou na boca dele... Em suas presas.
O arranhão foi mínimo. O gosto que provou dela não foi.
Antes que pudesse se conter, ele aprofundou um pouco mais.
Sua Marisol gemeu e enterrou as mãos nos quadris dele, puxando-o como se quisesse que ele voltasse a se mover.
— Eu tomo pílula, – ela disse de uma vasta, vasta distância.
Sua mente obstruída não sabia o que aquilo significava, mas o som da voz foi suficiente para forçá-lo a voltar à realidade. Lambendo a ferida que tinha feito, ele se aproximou e tomou mais do sangue dela... Embora uma porção tão pequena comparada ao que ele queria.
— Continue, – ela disse. — Por favor... Não pare.
Assail sentiu-se tentado a interpretar mal e mordê-la apropriadamente, tomando-a completamente. Mas não faria aquilo sem permissão. Estupro podia acontecer de tantas maneiras diferentes... E uma violação era uma violação, especialmente quando somente um dos lados obtinha prazer do ato.
Ele iria, no entanto, terminar o sexo.
Apertando ainda mais seu abraço nela, ele entrou e saiu, entrou e saiu, balançando seus quadris.
De último momento, ele se retirou e gozou na barriga dela, os espasmos jorrando sua essência sobre a pele dela.
Por mais que quisesse mais do que aquilo... E quisesse tê-la de novo, agora mesmo... Ele não completaria o ato dentro dela até ela saber toda a verdade sobre ele. Somente então ela estaria apta a honestamente decidir se o queria como amante.
Com os lábios nas orelhas dela, ele disse, — Mais, sim...
O gemido entrecortado que ela soltou foi resposta perfeita. E antes que terminasse, antes das mãos de novo se afundarem em seus flancos e as pernas dela apertarem a parte inferior do corpo dele, puxando para mais perto dela, ele começou a se mover de novo, o sexo temperado por seu respeito por ela, e ainda mais vívido pela restrição.
Ele nunca tinha estado com uma mulher ou uma fêmea como esta antes.
Depois de anos fazendo sexo, ele pensou que finalmente estava com alguém pela primeira vez.
Ajoelhando-se no pé da cama, Wrath controlava o tempo através das respirações de sua amada, mensurando suas inspirações enquanto elas fracamente empurravam seu braço que estava estendido sobre a cintura dela. Cada vez maiores eram as inspirações, cada vez menores as expirações.
E durante todo esse tempo, seu próprio coração continuava a bater, seus próprios pulmões trabalhavam e seu corpo seguia funcionando.
Parecia tão cruel e ele trocaria seu estado saudável com ela num piscar de olhos. Ele daria a ela qualquer coisa para mantê-la ao seu lado e, como isso não era possível, colocou a sua palma da mão sobre o punho de sua adaga cravejada de joias e posicionou-a no meio dos dois.
Concentrando-se nos lábios entreabertos dela, posicionou a lâmina de modo que estivesse apontada para o centro de seu peito. Os suportes do leito foram construídos a partir de painéis de carvalho maciço, e estavam na altura certa para o que ele precisava. Apoiando a base do punho da arma na borda da madeira, ele mantinha a adaga firme em sua mão e inclinou-se, medindo a distância que ele teria de completar.
Posicionando seu esterno na ponta da lâmina, ele empurrou o suficiente para sentir uma leve pressão.
Satisfeito com o ângulo, girou a faca e direcionou sua ponta para a madeira, cavando um círculo nas fibras, criando uma trava para a base. Enquanto entalhava, parecia desrespeitoso desperdiçar a última das respirações de sua Anha em tais esforços, ela deveria ser o centro de sua atenção, somente ela.
Mas alguns preparativos eram necessários.
Se ele a perdesse antes de terminar o que estava fazendo, correria o risco de fazer uma tentativa descuidada, e precisava se certificar de que não haveria nenhuma possibilidade de sobrevivência...
— O que... Você faz?
Wrath virou bruscamente a cabeça. E, inicialmente, não conseguia compreender a visão a sua frente.
Sua Anha havia virado seu rosto pálido para ele e o encarava através de pálpebras pesadas.
A adaga escapou do entalhe que estava criando, afundando no pulso da mão que ele estava apoiando. O corte nem fora notado.
— Anha…?
Ela passou a língua pelo sangue em seus lábios.
— Nosso filho…
Na realidade, ele não ouvira o que ela havia dito. Lágrimas surgiram de seus olhos e com o coração disparado, ele se perguntava pela primeira vez se aquilo não era um sonho... Como resultado de ter seguido com sua própria morte, apunhalando-se no mesmo lugar onde sentia seu amor por ela mais intensamente.
Porém, não... Ela estendeu sua mão para o rosto dele. Tocando-o com admiração, como se ela também não pudesse compreender seu retorno de consciência.
— Anha!
Ele pressionou seus lábios nos dela e depois removeu suas próprias lágrimas das frias bochechas dela.
Abruptamente, se lembrou da recomendação do curandeiro e...
[1] Hater é um termo usado na internet para definir pessoas que postam comentários de ódio ou crítica sem muito critério.
[2] Tempestade Perfeita é uma expressão que descreve um evento, em que a rara combinação de circunstâncias agravam drasticamente uma situação. O termo também é usado para descrever um fenômeno que coincidentemente se soma a outro, resultando em um evento de magnitude incomum.
[3] The Northway = caminho que leva ao norte.
[4] Alimento semi-pronto para ser aquecido no micro-ondas, espécie de um rolinho recheado com queijos, carne ou vegetais, muito consumido nos EUA.
[5] YouPorn é um site norte-americano onde é possível compartilhar vídeos com áudio e fotos pornográficas. Seu mecanismo de compartilhamento de vídeo é similar ao do YouTube e ao do Google Vídeo, e também utiliza o formato Macromedia Flash para disponibilizar os vídeos.
[6] Abreviação de Jesus Cristo.
[7] Personagem de vídeo game, caracteristicamente quadrado. Infelizmente o sentido se perde no português.
[8] Sisters Wives é um reality show americano que retrata a vida de uma família poligâmica, no ar desde 2010. A família conta com o patriarca, 4 esposas e 17 filhos.
[9] Reality show transmitido pela Discovery Home&Health no qual, o líder Ty Pennington e sua equipe de designers escolhem uma família que tenha enfrentado/enfrenta algum tipo de dificuldade - um desastre natural como um furacão, por exemplo, muito comum em determinadas regiões dos Estados Unidos ou ainda um membro da família que tem uma doença com risco de morte, dentre outras razões - e seja totalmente merecedora de tamanha ajuda. O objetivo deste reality show é reconstruir a casa da família dentro de um prazo de sete dias, adaptando a casa aos moldes dos moradores e realizando o sonho de muita gente.
[10] Doctor Who é uma premiada série de ficção científica britânica, produzida e transmitida pela BBC. A série mostra as aventuras de um Senhor do Tempo - humanoide alienígena viajante do tempo que possui dois corações - conhecido apenas como — O Doutor (“The Doctor”).
[11] Cro-Magnon é o nome que se dá aos restos mais antigos conhecidos na Europa de Homo sapiens, a espécie à qual pertencem todos os humanos modernos.
[12] Phil = em inglês se lê “fill”, to fill é o verbo encher. Encher tem tudo a ver com buraco no trocadilho da personagem.
[13] No original: “Well, am I, iAm.”, trocadilho entre "am I” (da pergunta: estou convidado?) e iAm, nome da personagem.
[14] Na cultura ocidental, a Morte é frequentemente associada à figura do “Ceifador Sinistro” (em inglês, Grim Reaper), seria a nossa clássica visão da Morte com um manto negro com capuz e uma foice na mão.
[15] Phil McGraw (Vinita, Oklahoma, 1 de setembro de 150) é um psicólogo dos EUA que tornou-se conhecido do grande público ao participar nos programas de Oprah Winfrey como consultor de comportamento e relações humanas. É conhecido por Dr Phil.
[16] Norman Rockwell (Nova Iorque, 3 de fevereiro de 1894 — Stockbridge, Massachusetts, 8 de novembro de 1978) foi um pintor e ilustrador estadunidense. Rockwell era muito popular nos Estados Unidos, especialmente em razão das 323 capas da revista The Saturday Evening Post que realizou durante mais de quatro décadas, e das ilustrações de cenas da vida estadunidense nas pequenas cidades.
[17] Chubby Checker (nascido Ernest Evans; Spring Gulley, 3 de outubro de 1941) é um cantor-compositor norte-americano, conhecido por popularizar o twist com sua gravação, feita na década de 1960, do sucesso de R&B composto por Hank Ballard, “ The Twist”.
[18] Gore = filme de Gore ou filme splatter é um subgênero do cinema de terror que, deliberadamente, se concentra em representações gráficas de sangue e violência explícita.
[19] Killington = de “killing” que significa matar, matança.
[20] Ward quis dizer que o sofá girou no ar como um helicóptero.
[21] BTU (também pode ser escrito Btu) é um acrônimo para British Thermal Unit (ou Unidade térmica Britânica). Normalmente serve para indicar a potência do ar condicionado.
[22] Pottery Barn é uma rede de lojas de móveis com qualidade, presente nos Estados Unidos e Canadá. Ficou popular no mundo todo após ser muito citada no seriado Friends. Também foi rapidamente citada no seriado The Big Bang Theory, e no episódio Piloto de Glee e Breaking Bad.
[23] Menção ao filme Groundhog Day (No inglês, Dia da Marmota, mas traduzido para o português como Feitiço do Tempo) de 1993, onde Bill Murray interpreta Phil Connors, um egocêntrico homem do tempo da TV em Pittsburgh, que durante a abertura do anual Dia da Marmota (2 de fevereiro) em Punxsutawney, encontra-se repetindo o mesmo dias várias vezes. Depois de se deixar levar por todas as formas de perseguições hedonísticas, ele começa a reavaliar sua vida e prioridades.
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