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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O RELATÓRIO CHAPMAN / Irving Wallace
O RELATÓRIO CHAPMAN / Irving Wallace

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O RELATÓRIO CHAPMAN

Primeira Parte

 

                     A MUITAS MULHERES E A ALGUNS HOMENS

É possível que algumas das mulheres com quem me cruzei na vida, nos anos que decorreram entre a minha puberdade e o momento actual, pensem descobrir a sua presença neste livro, como se estivessem a oihar-se a um espelho, vendo nele, por qualquer alquimia pessoal, certo reflexo das suas personalidades. Quero assegurar a todas elas que me teria sido impossível reproduzir no papel, mesmo que o desejasse fazer, toda a sua beleza, hábitos, experiências e evasiva feminidade. Todas elas possuíam demasiada complexidade — e eu pouquíssima arte — para servirem de protótipo às mulheres que aparecem nestas páginas.

As mulheres que intervêm na intriga moral que se segue são, na sua totalidade, produto da imaginação do autor, e se alguma das leitoras aqui encontrar, ainda que remotamente, a mais leve semelhança consigo ou, até, com qualquer outro ser humano, vivo ou morto, devo declarar com toda a veemência que tal semelhança não passa de uma incrível coincidência.

O mesmo afirmo relativamente aos leitores do sexo masculino. Se, algures nesta feliz terra, existir um homem que se sinta «maltratado» nestas páginas, na evidente suposição de nelas habitar, aliviemo-lo imediatamente desse peso: as personagens masculinas que figuram neste romance, da primeira à última página, são completamente fictícias.

Alguns dos leitores de ambos os sexos poderão sentir-se tentados a ver no Dr. Chapman e nos outros investigadores quaisquer das características e métodos de autênticos cientistas que se ocuparam dos problemas sexuais, tais como os Drs. Alfred C. Kinsey, G. V. Hamilton, Robert L. Dickinson, Lewis M. Terman e outros. Quem quer que sinta prazer em tecer tais fantasias pode continuar com esse divertimento, mas de sua própria conta e risco. Advirto porém que os seus devaneios carecem de qualquer base real. A partir de 1915, ano em que foi iniciada uma investigação sobre o comportamento sexual dos seres humanos por cientistas desse foro, nessa actividade participaram já, com toda a honestidade, dezenas de homens e mulheres notáveis. Nunca me encontrei nem vi sequer nenhum desses investigadores famosos, o mesmo se aplicando quanto aos seus colaboradores.

Numa obra de pura imaginação decidi utilizar uma actividade que constitui um verdadeiro fenómeno da nossa época, época em que me fiz homem, época preocupada com a sexualidade, com inquéritos, confissões e estatísticas. Inventei um grupo de sexólogos e descrevi-os realizando o seu trabalho. Se, devido à mais estranha das possibilidades, qualquer deles, desta ou daquela maneira, se parecer com um ser humano, vivo ou morto, ficarei apenas com a satisfação de verificar a acuidade da minha pena e da minha percepção. No entanto, semelhante coisa também me surpreenderá, dado que todas as personagens que refiro neste livro são produto total da minha fantasia de escritor.

Deixo o leitor paciente com as sensatas palavras de W. Somerset Maugham: «É bastante nocivo esse costume de atribuir modelos às criaturas que são produto da imaginação do escritor.»

                        IRVING WALLACE - Los Angeles, Califórnia

 

 

Uma vez por dia, precisamente às nove menos dez de cada manhã, um comprido autocarro cinzento, utilizado para digressões turísticas, subia com característica dificuldade o Sunset Boulevard e entrava na área do subúrbio de Los Angeles, conhecido por The Briars. O guia e motorista regular do autocarro aproximava o microfone interno dos lábios e continuava com a sua entorpecente descrição: «Minhas senhoras e meus senhores, neste momento atravessamos The Briars... »

Entre os passageiros, já saciados de terem contemplado as faustosas residências das celebridades do cinema em Beverly Hills e Bel-Air — ultrapassadas vinte minutos antes —, não se produzia a mais ligeira excitação. Sabiam que The Briars (e já o tinha pressentido mesmo antes de terem a certeza) não possuía mais exotismo do que as melhores zonas residenciais das cidades de que se haviam escapado por um breve lapso de tempo — cidades situadas na Pensilvânia, em Cansas, Geórgia e Idaho. The Briars aparentava ser um perfeito modelo do comum e, portanto, nada que merecesse qualquer referência nas cartas e postais a enviar para casa.

Muitos dos passageiros utilizavam aquele breve interlúdio para mudarem de posição, passarem um lenço pelo pescoço, acenderem um cigarro ou trocarem umas palavras com o vizinho de trás, aguardando a sua movimentação até uma zona muito mais prometedora: o oceano Pacífico com a magnífica colónia da praia de Malibu. No entanto, uns quantos passageiros, na sua maioria mulheres de rostos jovens e mãos envelhecidas, continuaram a olhar pelas janelas do autocarro admirando a beleza tranquila, graciosa e quase rural daquele subúrbio, pensando o que seria aquela comunidade e o que seria preciso para se fazer parte daquela selecta população.

Durante as várias décadas do seu desenvolvimento urbano, The Briars fora diariamente atravessado por muitos autocarros como aquele e, para o observador de passagem, sempre havia prevalecido aquela mesma visão superficial de recato, tranquilidade e convencionalismo. Na verdade, as vivendas e prédios que se deparavam à vista, bem como os dados estatísticos fornecidos pelo cicerone, tornavam-se reconfortantes e familiares, dado que The Briars era para Los Angeles o que Lake Forest é para Chicago e Scardsdale para Nova Iorque.

Desde que era uma parte formal da grande Los Angeles, sem autonomia governamental própria, as fronteiras de The Briars haviam sido traçadas, muito tempo antes, de modo bastante

irregular, por financeiros, corretores de imóveis e prósperos directores de semanários videirinhos que haviam formado uma boa combinação de investimentos e construção. Na generalidade o subúrbio era considerado como uma subdivisão de treze quilómetros quadrados localizada em ambos os lados do Sunset Boulevard, entre Westwood, a leste, e Pacific Palisades, a Oeste.

As restrições da subdivisão eram de tal ordem que todos os lotes de terreno eram acentuadamente desproporcionados, sendo as construções, na sua maioria, vivendas de um andar em estilo colonial ou modernas, à feição de ranchos, espaçosas e afastadas cerca de vinte metros das largas ruas asfaltadas. As vivendas ficavam parcialmente encobertas aos olhos alheios, escondidas numa penumbra que se salientava devido aos montículos de terra relvados que tinham em frente, aos círculos de renques de eucaliptos em alguns locais, às sebes de hibiscos que as cercavam ou a altos muros de pedra que serviam de divisórias.

The Briars era servido por uma só área comercial conhecida como The Village Green. A sua fama era em parte devida às lojas bizarras (a sapataria e a barbearia estavam instaladas num pagode, de estilo um pouco alterado, à maneira birmanesa de Moulmein) onde se vendiam exóticas mercadorias importadas e produtos domésticos caríssimos, sustento e distinção da zona. Outros motivos que mostravam o conformismo social da área estavam expressos nas quatro escolas elementares, nas duas secções liceais e outros estabelecimentos de ensino. Os habitantes pareciam ter edificado igrejas em demasia; duas católicas, quatro evangélicas e uma sinagoga. Nos limites da zona comercial situa-va-se uma Central dos Correios, uma biblioteca pública, com reduzido número de livros e fracamente iluminada (a maior parte dos habitantes comprava livros), uma sala da Legião Americana, um Clube dos Optimistas, uma Câmara do Comércio e um edifício de tijolo e pedra, em estilo gótico modernizado, que pertencia à Associação Feminina de The Briars.

Com excepção de diversas ruas onde se erguiam modernos prédios de apartamentos, amplamente ocupados por empregados dos centros citadinos, as avenidas de The Briars estavam povoadas de vivendas, na sua maioria pertencentes aos próprios habitantes, em vez de estarem hipotecadas ao banco local. Os donos dessas casas eram pessoas que ganhavam por ano de 20 000 a 100 000 dólares. Poucos dos moradores eram demasiado avançados em anos para serem aposentados. The Briars era uma comunidade de gente jovem ou de meia-idade. Muito embora relativamente liberais em matéria de política, os habitantes tinham um aspecto exterior de pessoas sérias e conservadoras, coisa que desencorajava a invasão dos empregados nas indústrias de espectáculos. Os membros da indústria cinematográfica raramente avançavam para mais longe do que a opulência de Beverly Hills, e os elementos da indústria de televisão, a expandir-se cada vez mais, preferiam a actividade e bulício de áreas mais cosmopolitas.

Os agentes de vendas de imóveis computavam em 14 000, homens, mulheres e crianças, os habitantes de The Briars, e as páginas da pequena lista telefónica forneciam a indicação das ocupações dos donos das vivendas: um proprietário de armazém de artigos de vestuário, um engenheiro de estruturas, um psiquiatra, um construtor civil, um analista de gestões económicas, um escritor, o proprietário de uma tinturaria, o dono de um motel, o reitor de uma universidade, o director de uma agência de publicidade, um negociante de objectos de arte, o proprietário de uma loja de venda de animais de estimação, um advogado, um contabilista, um arquitecto, um banqueiro e um dentista.

Em regra eram esses os elementos masculinos computados entre a população de The Briars, e, quando eles partiam para as suas ocupações habituais, situadas na remota cidade, a zona tomava-se exclusivamente uma comunidade de mulheres.

Tendo por moldura as janelas do autocarro, os passageiros e passageiras interessados em seguir a vida de The Briars, sobretudo as passageiras, seguiam com olhos, em que brilhava uma certa inveja, os elementos dessa comunidade feminina que iam descortinando no subúrbio. Era já um quadro habitual divisar-se uma espampanante loira que descia uma vereda particular no seu Jaguarilamante, uma matrona ainda atraente, de cabelos negros, envergando um rico vestido de orlon, que tagarelava com o jardineiro-chefe, empoleirada nos degraus da porta fronteira da sua vivenda, outras mulheres de calções brancos, justíssimos, a movimentarem-se ágil e graciosamente num court de ténis privativo, uma ruiva, com as madeixas metidas num lenço de seda, que seguia descontraidamente ao volante do seu Lincoln Continental ou que estacionava o carro junto das arcadas do centro comercial.

Aquilo que os passageiros e passageiras não viam era imaginado pelo melhor e temperado com a pitada de sal de uma beieza exclusivamente pensada. Podiam imaginar nitidamente como viviam aquelas mulheres de The Briars. De manhã a população feminina da zona suburbana enviava os seus filhos para escolas arejadas em autocarros alugados; tomava o pequeno-almoço, servido por criadas de cor, enquanto ia desfolhando as páginas da última Vogue ou da Harper's Bazaar; estendiam-se ao sol de blusas-boiero e calções, deitadas em ricos sofás de baloiço no meio de frescos pátios empedrados; vestiam-se com preciosas camisolas e saias de importação para almoçarem com as suas elegantes amigas nos faustosos restaurantes de Wilshire Boulevard, e pelas tardes divagavam ociosamente pelas magnificentes e selectas lojas de modas, semiexciusivas, descontraíam-se pelos salões de beleza ou assistiam a chás e garden parties. Pelas noites, quando não se encontravam com os maridos e amigos em Palm Springs, Las Vegas ou Sun Valley, estavam na cidade a assistir a uma película de arte, a uma peça de teatro ou num clube nocturno onde se exibiam as costumadas variedades.

 

Por vezes ofereciam um jantar íntimo nas suas vivendas ou, de vestido de noite em shantung, recebiam os seus convidados durante uma festa mais formal (oferecendo ao beijo dos homens o rosto quente e as mãos frias às outras mulheres) e bebiam sem moderação, rindo com as picantes anedotas que se contavam junto ao gira-discos estereofónico. Na manhã seguinte, enquanto a criada ficava, por assim dizer, encarregada de lhes despachar o marido para o emprego e os filhos para a escola, as donas de casa ficavam na cama a restabelecer-se da ressaca. Acordavam tarde lamentando vagamente não terem tido tempo para ler a lição a debater à noite na escola de arte. Era desta forma que, depois de uma rápida visão de algumas das suas habitantes, as passageiras do autocarro turístico imaginavam o modo de viver das mulheres de The Briars, favorecendo-o bastante com uma imaginação exaltada e invejosa, embora a vida fosse essa, em boa verdade, dentro de linhas gerais.

Mas, evidentemente, havia algo mais por detrás da fachada dos lenços, óculos de sol, camisolas justinhas e calças estilo Capri, muito mais por detrás dos carros de desporto estrangeiros, das sebes de verdura bem cuidadas, dos ulmeiros de copas simetricamente debastadas e das grandes e espaçosas vivendas. Para os estranhos que não faziam parte daquela vida invejada, não podia haver compreensão, nem sequer lhes passava pela ideia que ali, também, havia alegrias e tristezas, que para os 14 000 habitantes de The Briars a vida tinha igualmente os seus altos e baixos, as suas dificuldades e as suas facilidades.

O ambiente secreto de The Briars, mantido tão rígido como qualquer rito maçónico, constituía, para a maioria das suas mulheres, um reino de monotonia, de vazio, de aborrecimento e confusão. As nativas — como se dizia em ar de graça — sentiam-se com frequência desassossegadas. A doença era americana e da mulher casada, mas as mulheres de The Briars preferiam acreditar que lhes pertencia exclusivamente. Todavia raramente davam ouvidos àqueles sentimentos confusos de modo aberto e directo, porque não podiam reconciliar completamente o seu infeliz desassossego com a abundância material de que gozavam.

A aspiração das mulheres de The Briars, enquanto solteiras, tinha sido apenas^a de arranjarem marido e gozarem uma existência confortável, usarem a segurança emocional como um atavio favorito e as limitações duma livre escolha como um véu, habitando num paraíso silvestre como aquele em que presentemente se encontravam. Agora que, finalmente, estavam casadas (ou tinham estado) há dois, cinco ou quinze anos, agora que tinham o seu conforto, que tinham as vidas regularizadas e estavam a salvo numa comunidade admirada por toda a gente, o que possuíam já não bastava... queriam mais, mas não sabiam nem podiam explicar o que queriam, ainda que fosse na intimidade do seu próprio ser.

Perdiam-se por isso numa teia confusa de encontros sem significado, de reuniões de caridade, embrenhavam-se em actividades várias e nos passeios de evasão dos fins-de-semana; e, para cessarem de pensar naquilo que não tinham, embotavam os sentidos com vodca, soporíferos, remédios calmantes, experiências sexuais. Desse modo, tornando possível todas as pavorosas manhãs, faziam com que a vida permanecesse sem mudanças, fosse como que um vácuo, intemporal, salvo para a ocasional consciência de que lhes ousara aparecer uma branca no cabelo (rapidamente esquecida por meio duma pintura adequada), de que os seios começavam a ter uma certa flacidez (logo remediada pelo mais moderno e seguro soutien), de que a carne das ancas estava menos elástica (imediatamente tornada firme por meio de engenhosos aparelhómetros e de entregas aos cuidados das massagistas suecas), de que os seus filhos estavam cada vez mais crescidos (mas por fim, nessa altura, o tempo inimigo triunfava, porque era impossível arranjar um antídoto para o redemoinhar cada vez mais rápido dos anos).

Às nove e cinco da manhã, o comprido autocarro cinzento de turismo, saindo do cenário idílico de The Briars, pôs-se em marcha pelo cruzamento que levava ao Sunset Boulevard e principiou a descer a inclinada auto-estrada em direcção à colónia de Malibu.

Parada na vereda circular, asfaltada a cascalho solto diante da sua ampla vivenda em estilo georgiano, de um andar, Kathleen Ballard disse adeus uma última vez a sua filha Deirdre, uma menina de quatro anos, instalada no lugar traseiro da station wagon que a levava para a progressiva escola infantil de Westwood.

Depois de a carrinha ter voltado a esquina, ficou ainda um momento na vereda privativa olhando o canteiro de rosas amarelas protegido pela sebe de hibiscos, observando em especial a fila daquelas rosas pouco viçosas que o pulgão atacara e lembrando--se que devia consultar o senhor Ito a respeito de qualquer espécie de tratamento por pulverização. Tinha dado fé da condição daquelas rosas alguns dias antes e esquecera-as rapidamente, por lhe terem feito recordar que a sua própria inflorescência ocultava aos olhos do observador casual a doença que lhe minava a raiz — o que não se podia revelar senão examinada de perto.

Deixando de fitar as rosas, percorreu com a vista a extensão do verde relvado que ficava em frente da casa; através da espessa folhagem das sebes, que a protegiam de tudo menos de si própria, Kathleen ainda pôde ver a retaguarda do familiar autocarro cinzento de turismo na altura em que ele começava a descer, vagarosamente, a encosta. Não tinha consigo o relógio de pulso — era o dia de folga de Albertine, e Kathleen dormira mal, de madrugada tivera que se levantar para tomar um comprimido e acordara tarde, de modo que apenas tivera tempo de envergar um roupão e vestir Deirdre à pressa para a enviar para a escola. Porém agora, por ver o autocarro, sabia que passava das nove horas e que tinha que fazer aquilo que prometera a Grace Waterton na noite anterior.

Com relutância, caminhando por entre as graciosas colunas caneladas e os altos ciprestes dispostos em largos vasos de madeira, entrou na casa elegante, vazia e cavernosa, numa ressentida resistência ao tempo que tinha diante de si. Uma vez chegada à cozinha, desligou o fogão e encheu uma chávena de café. Bebeu o conteúdo sem açúcar, sentada à branca mesa de fórmica, onde se servia o pequeno-almoço. Pousando a chávena, dirigiu-se para um armário, situado por cima do telefone, de onde tirou um maço de cigarros. Com os cigarros e o dossier, que Grace lhe deixara na noite anterior, numa das mãos, e o telefone na outra, voltou a sentar-se à mesa.

Depois do primeiro golo de café, Kathleen devotava-se ao ritual breve do cigarro matinal. Engolindo o fumo num hausto profundo para depois o soprar, sentiu uma acalmia momentânea. Mesmo os seus compridos dedos, manchados de nicotina no sítio em que seguravam o cigarro, tremiam menos à medida que ia fumando. Pouco depois, esmagou o cigarro, meio consumido, no cinzeiro de porcelana que continha a legenda quase apagada: «Hotel Imperial — Tóquio», cinzeiro que permanecia ainda sobre a mesa onde Boynton o colocava sempre para lhe relembrar velhas glórias. Pensava porque é que não substituía aquele cinzeiro por outro que a irritasse menos, mas compreendia que não o fazia por falta de coragem.

Agora o café estava apenas morno, e Kathleen bebeu-o todo de um só sorvo. Assim fortificada, abriu finalmente o dossier de Grace. Dentro estavam somente duas folhas de papel. Na primeira, esmeradamente dactilografada por Grace, havia os nomes de uma dezena de membros da Associação Feminina, com os respectivos números de telefone à frente. Percorrendo a lista, Kathleen viu que todos os nomes pertenciam a uma amiga, uma conhecida ou uma vizinha. Apesar disso adiou o encargo de telefonar a cada uma delas.

Quando, na noite anterior, Grace lhe entregara o dossier, Kathleen sentira-se imediatamente desamparada perante a entusiástica e agressiva franqueza da amiga, uma mulher já entrada em anos. Grace Waterton estava quase a atingir os sessenta. O seu cabelo grisalho, arranjado várias vezes por semana por um cabeleireiro especializado, tinha a aparência de uma cabeleira postiça. Grace era uma mulher pequenina, espalhafatosa e faladora. Depois de os filhos terem casado, ela tinha gravitado durante dois anos entre a esfera de influência de um pântiita de Reseda e de um psiquiatra de Beverly Hills, abandonando-os a ambos pela presidência da Associação Feminina de The Briars, que se tornara na razão de toda a sua vida. Algures, em certo banco, havia um presidente chamado Mr. Grace Waterton.

Embora Kathleen se tivesse oposto com veemência ao encargo, por fim Grace acabara por persuadi-la a aceitar o dossier e a tarefa que ele envolvia. Kathleen argumentara que se sentia exausta e que tinha muitos afazeres; além disso havia já vários meses que não se encontrava com ninguém, pelo menos desde a última reunião da Associação, e os telefonemas seriam necessariamente longos e careciam de intimidade. «Patetice», fora a estridente resposta de Grace no seu tom de voz fremente. «Isto é puro negócio, e deves tratar o assunto como tal. Diz a cada uma delas que tens mais uma dezena de telefonemas a fazer. Além disso, penso que o assunto é bom para ti, Kathleen, não gosto nada da maneira de te sepultares aqui como se fosses uma eremita. É uma coisa pouco saudável. Se não queres sair para te encontrares com as pessoas, pelo menos fala com elas".

Kathleen não tinha nenhuma vontade de dizer a Grace, ou a quem quer que fosse, que não fora o que acontecera a Boynton que a tornara uma reclusa — ou talvez fosse, mas de um modo e por razões muito diferentes daquilo que poderiam imaginar. Durante o tempo em que estivera casada com Boynton e ele estava em casa, como sucedia com tanta frequência, ela desejava unicamente poder estar fora da vivenda, perdida no barulhento caos do companheirismo, muito embora isso fosse contra os seus naturais instintos. Mas naquele ano e quatro meses que finalmente se encontrara sozinha, desde que Boynton morrera, a fuga tornara-se desnecessária. Arrepiara caminho e mergulhara com verdadeiro prazer na solitária independência que conhecera antes do casamento, solidão que fora ao mesmo tempo tão amada e odiada.

Repentinamente dera-se conta d.e que Grace ainda estava a falar e que a voz dela se dulcificara levemente: «Acredita-me, querida Kathleen, todas nós sabemos o grande transe por que passaste. Mas ninguém te poderá ajudar se tu não te ajudares a ti mesma. Ainda estás uma jovem, és bela, tens uma filha adorável — uma vida inteira à tua frente, e tens que a viver. Se pensasse que realmente não te encontravas bem, seria a primeira a compreender a tua atitude. Claro que posso pedir a outra qualquer para fazer esses telefonemas. Mas o facto é que necessitamos de ti, isto é, queiras ou não, continuas a ser um dos membros mais influentes da nossa associação. Podes compreender porque é que eu escolhi vinte das nossas mais respeitáveis associadas para fazerem estes telefonemas. Significa que o poder de persuasão será maior. Acredita-me, Kathleen, precisamos de uma afluência total, de termos todos ao nosso lado — especialmente se as igrejas objectarem contra esta reunião. Não sei se o farão, mas no entanto fala-se no assunto».

Até então, absorvida como estava pelo esforço de evitar uma tarefa desagradável, Kathleen não tinha compreendido o verdadeiro objectivo da reunião. Quando voltara a inquirir do que se tratava, e Grace lhe explicara o tema com vivacidade e orgulho (sem poder por completo ocultar a sua excitação pela ousadia e invulgaridade de toda a questão), Kathleen ficara ainda mais perturbada. Não estava com disposição de se reunir a uma multidão de mulheres para ouvir um homem debater os hábitos sexuais da mulher americana, por mais clinicamente que fosse. Pior ainda — por considerar nessa altura a realização a que a conferência conduziria —, não estava preparada para revelar os seus segredos íntimos a um bando de estranhos, desnudar-se, metaforicamente, diante de um grupo de lúbricos voyeurs.

Tudo aquilo era insensato, malfeito, por muito grande que fosse o entusiasmo de Grace — «isto tornará famosa a nossa comunidade; daí a razão por que Mr. Ackerman tratou do assunto» —, mas Kathleen, devido à veemência e empenho que Grace punha no assunto, compreendeu que qualquer objecção que levantasse nunca poderia ser entendida e a colocaria como sexualmente suspeita. De modo que resolvera não resistir por mais tempo e decidiu concordar.

Acendendo apressadamente outro cigarro, encarou o maldito dossier e tirou a lista de nomes para ler a outra folha de papel. Tratava-se de uma história feita em stencil e tirada ao copiador para efeitos de publicidade — estava datada para esse dia e «para imediata comunicação à imprensa» —, assinada por Grace Waterton. Grace explicara a Kathleen que aquele comunicado lhe forneceria todos os factos pertinentes quando telefonasse a notificar os membros acerca da reunião especial que se efectuaria daí a dois dias. Aspirando profundamente o fumo do cigarro, Kathleen leu o comunicado a ser publicado nos jornais.

Começava assim: «Na sexta-feira de manhã, dia 22 de Maio, às dez e trinta, o Dr. George G. Chapman, reconhecida e célebre autoridade mundial em questões sexuais, professor da Universidade de Reardon, Wisconsin, e autor do livro Um Estudo Sexual do Celibatário Americano, que foi best-seller do ano transacto, falará perante todas as senhoras que pertencem à Associação Feminina de The Briars. Durante duas semanas, posteriormente a essa reunião, onde o Dr. Chapman debaterá os objectivos do seu actual estudo sobre as mulheres casadas, o mesmo Dr. Chapman e a sua equipa de assistentes, constituída pelo Dr. Horace Van Duesen, Mr. Cass Miller e Mr. Paul Radford, todos eles pertencentes ao corpo docente da Universidade de Reardon, entrevistarão os membros da Associação Feminina que são, ou foram, casadas.

«Durante catorze meses, o famoso Dr. Chapman e a sua equipa têm vindo a viajar através dos Estados Unidos, ocupados em entrevistar alguns milhares de mulheres casadas dos mais variados ambientes educacionais que representam todos os grupos, quer económicos quer religiosos, e dentro de camadas das mais diversas idades. Segundo o Dr. Chapman, as mulheres de The Briars serão as últimas a ser entrevistadas por si e pelos seus assistentes antes da final compilação dos dados recolhidos num livro que será publicado no próximo ano. O Dr. Chapman afirma: "O verdadeiro objectivo das sondagens é a determinação do verdadeiro padrão sexual das mulheres americanas, descobrindo o que há tanto está oculto, de modo que, através das estatísticas, possamos iluminar cientifi-camente uma zona da vida humana há muito mantida na escuridão e na ignorância. Temos esperança de que futuras gerações de mulheres americanas possam beneficiar das nossas pesquisas".

«Mrs. Grace Waterton, presidente da Associação Feminina de The Briars, exprimiu já, em telegrama enviado ao Dr. Chapman, o seu reconhecimento pela grande honra conferida à Associação e prometeu um êxito total ao inquérito do eminente cientista. As entrevistas só se efectuarão por meio de participação voluntária das associadas, mas Mrs. Waterton prevê que, depois de ser ouvida a conferência prévia do Dr. Chapman, onde será assegurado que as entrevistas serão levadas a efeito dentro de uma atmosfera de absoluto sigilo, excedendo, nesse aspecto, as que foram orientadas anteriormente por investigadores como Gilbert Hamilton, Alfred Kinsey, Ernest Burguess e Paul Wallin, poucas das 220 associadas (casadas) recusarão esta oportunidade de contribuírem decisivamente para o progresso da ciência.

«A Associação Feminina de The Briars, com edifício próprio onde existe um vasto auditório, foi fundada há quinze anos e dedica-se não só a obras sociais e de benemerência como também a obras destinadas ao progresso urbanístico da zona ocidental de Los Angeles».

Acabando de ler o comunicado, Kathleen, com patente desagrado, manteve os olhos fitos naquelas palavras. Sentia-se ofendida de modo irracional com tudo aquilo e perguntava a si mesma: «Que espécie de espreitador de vidas íntimas será este Dr. Chapman?»

Claro que já ouvira falar nele. Aliás não havia cão nem gato que o ignorasse. O sensacionalismo do seu último livro (todas as mulheres que conhecia o tinham lido avidamente, embora ela não se tivesse dignado pedir emprestado um exemplar) e a progressão do seu actual estudo vinham a encher, há anos, as páginas dos jornais, e o seu retrato aparecera já na capa de uma dezena de revistas, pelo menos. Supunha que Chapman viria um dia a ser um extravagante símbolo da sua época, tal como acontecia com Emile Coué1, apontado como uma curiosidade do período dos anos vinte do século por um motivo diferente, mas também excêntrico.

Mas o que mais fazia admirar Kathleen era o motivo: «Que teria podido induzir um homem culto, em plena maturidade, a devotar a sua vida à investigação da mais íntima conduta sexual de homens, mulheres e crianças? A persistente zombaria do motivo "progresso científico" devia ser apenas uma camuflagem, disfarçando sob nobres propósitos uma mentalidade doentia e erótica, ou, o que era iguaL um espírito grosseiramente comercial decidido a realizar dinheiro à custa do proibido?» Para ser leal para com o Dr. Chapman, Kathleen lembrou-se de ter lido que ele não ficava com nada dos consideráveis proventos obtidos com os subsídios; não obstante, no presente estádio de cultura, poderia conseguir sempre transformar a sua celebridade em dinheiro ou ficaria ao abrigo de necessidades por meio de uma pensão vitalícia garantida pelo Governo. Além disso, era até possível que ele preferisse a notoriedade à riqueza.

Talvez Kathleen estivesse a ser demasiado severa para com

 

1 - Emile Coué (1857-1926), farmacêutico e psicoterapeuta francês que alcançou a celebridade devido à publicação de um método de cura pela auto--sugestão (N. do T.).

 

o Dr. Chapman. Talvez a culpa fosse dela própria, que se tornara formalista e bota-de-elástico, se é que alguém podia realmente ser bota-de-elástico aos vinte e oito anos. Todavia era sua convicção inabalável: que os órgãos reprodutivos de uma mulher lhe pertenciam exclusivamente e a sua utilização e actividade não deviam ser conhecidas de mais ninguém além dela, do seu companheiro e do seu médico.

Franzindo a testa preocupadamente perante o facto de ser obrigada a fazer uma coisa em que não acreditava, que lhe era desagradável e manifestamente indecente, Kathleen apagou a ponta do seu segundo cigarro do dia. Voltou a colocar à sua frente a lista com os nomes e números de telefones, pegou no auscultador e iniciou a sua tarefa ligando para Úrsula Palmer.

Úrsula Palmer era uma mulher de índole agressivamente objectiva, inquisitiva. Quando perguntava a alguém «como está?», queria significar com isso exactamente como é que a pessoa passara esse dia, levando até, por vezes, o interrogatório ao comportamento do dia anterior. Nunca a satisfaziam as generalidades vagas nem as exposições nebulosas. No mundo que os seus rasgados e luminosos olhos abrangiam, tudo tinha que ser tangível, perceptível, compreensível.

Nesse momento, com uma das mãos ainda pousada no teclado da sua máquina de escrever e a outra a segurar o auscultador, continuava — como há vários minutos o vinha a fazer — a atazanar Kathleen com perguntas concretas acerca da expedição do Dr. Chapman a The Briars.

—        Na verdade, Úrsula, não faço a menor ideia do motivo por que o Dr. Chapman escolheu a nossa comunidade para a sua última sondagem — disse Kathleen, reprimindo a sua impaciência.

—        Tudo o que sei é o que está contido no comunicado à imprensa que tenho em frente de mim.

—        Então, faça o favor de o ler — volveu Úrsula. — Quero conhecer directamente todos os factos.

Úrsula ouviu o longínquo e vago farfalhar do papel e, de olhos fechados para melhor se concentrar, escutou a leitura do comunicado à imprensa.

—        Creio que é suficiente — disse Úrsula, abrindo os olhos logo que Kathleen terminou a arenga. — Pobre Dr. Chapman. Receio bem que venha a ficar decepcionado.

—        Mas porquê?

—        Porque penso que raio pode ele obter deste ramalhete de florzinhas fanadas que não saiba já? Imagino-o a perguntar a Teresa Harnish a sua ocupação favorita. Aposto dobrado contra singelo em como ela lhe dirá que é mulher de um negociante de obras de arte.

—        Por mim não creio que sejamos diferentes das outras mulheres.

—        É possível que não — replicou Úrsula em tom de dúvida.

—        Posso anunciar a Grace que você assiste à reunião?

—        Com certeza. Não a perderia por nada deste mundo.

Após ter desligado, Úrsula Palmer lamentou que tivesse irritado Kathleen, como sentia que o tinha feito. Lamentava, porque respeitava Kathleen sinceramente e queria conservar a sua amizade. De todas as mulheres que conhecia em The Briars só Kathleen a igualava intelectualmente. Ademais, Kathleen possuía aquele aspecto indefinível e raro que transforma uma mulher numa senhora, aquele mágico toque de requinte a que popularmente se chama classe. A tudo isso se podia acrescentar o encanto da fortuna. Toda a gente sabia que ela herdara do pai uma pequena fortuna. Era uma mulher independente. Não precisava de trabalhar para garantir o pão de cada dia. Certa vez, no seu artigo mensal de colaboradora para a revista Houseday, Úrsula aproveitara Kathleen como modelo para descrever a mulher suburbana que vivia à sombra de elevados rendimentos. Invejava-lhe o ar de distinção, o cabelo negro e brilhante como as asas de um corvo, que usava curto e a tornava ainda mais elegante; os olhos verdes excitantes; o narizito petulante; a carminada boca, tudo isso e ainda o pescoço, como que saído de um quadro de Modigliani, bem plantado sobre um corpo de adolescente, flexível e gracioso.

Voltando a aproximar a cadeira giratória e rolante da máquina de escrever, Úrsula mirou de lado o espelho que ficava na parede fronteira da biblioteca e de novo tomou a séria decisão de fazer dieta. Todavia, examinando-se melhor, compreendeu que seria uma batalha perdida — jamais conseguiria ter a esbelteza de Kathleen Ballard. Era de estrutura óssea larga e não conseguiria nunca pesar menos de sessenta quilos. Certa vez, numa festa, um homem já em adiantado estado de embriaguez dissera-lhe que ela parecia uma Charlotte Brontè com peso excessivo. Tinha a certeza de que a semelhança se devia a usar o cabelo castanho apartado ao meio. Mas, fosse como fosse, agradara-lhe a alusão literária. Para uma mulher com quarenta e um anos e mãe (a propósito lembrou--se que tinha de escrever a Devin nesse fim-de-semana, e ao mesmo tempo admirou-se de nunca conseguir recordar as feições do pai do rapaz), estava muito bem conservada. Tinha vaidade nas suas pequenas mãos e nas suas bem modeladas pernas. Fosse como fosse, Harold gostava dela assim. E, além disso, era Safo (a Safo de Musa, entenda-se, não a Safo de Lesbos) e de forma nenhuma Helena de Tróia.

Prosseguiu a bater nas teclas. Ainda tinha uma hora à sua frente antes de se dirigir para o aeroporto, onde tinha que ir esperar Bertram Foster e a esposa, Alma. Muito embora, por vários motivos, Foster não fosse o seu ideal de editor—a sua rudeza e vulgaridade obrigavam, muitas vezes, as pessoas a sentirem-se incomodadas, e os seus interesses na Houseday, de aspectos muito mais comerciais do que puramente literários, serem decepcionantes — , fora suficientemente astuto para a seleccionar a ela, Úrsula, entre os seus muitos colaboradores independentes, promovendo-a a redactora da popular revista da família para a parte ocidental do país.

Completado o resumo que tinha estado a dactilografar, Úrsula tirou a folha de papel da máquina e iniciou a revisão. Aquele sumário das suas actividades no primeiro semestre do ano fora habilmente concebido de forma a não fornecer matéria que contrariasse os preconceitos financeiros de Foster e pudesse melhorar as suas condições de trabalho. Salientava as pequenas economias feitas e as grandes realizações conseguidas. Sugeria uma segura autoridade e cobertura de todos os assuntos, à custa de pequenas despesas suplementares, e de um modo que poderia ser aliciante para os anunciantes potenciais.

— Queridinha?

Aquela era a voz de Harold.

Úrsula levantou os olhos do papel para encarar Harold Palmer, que entrava hesitante no escritório, transportando uma bandeja com o pequeno-almoço — ovos, torradas e café.

—        Acho melhor que comas alguma coisa antes que fiques com dores de cabeça.

Observou distraída o modo como Harold dispunha os pratos diante dela e deitava café numa chávena para si próprio. Embora, desde o princípio da sua vida de casados, ele preparasse todas as manhãs o pequeno-almoço, persistindo nesse hábito mesmo depois de terem arranjado uma criada para todo o serviço, parecia sempre que cumpria aquele ritual como se fosse um favor.

Harold era um homem alto, titubeante, desengonçado, de rosto pálido e chupado, dois anos mais novo que ela. Tinha a aparência de um manga-de-alpaca e na verdade era um contabilista.

Instalou-se na cadeira de couro em frente dela.

—        Não é melhor começares a vestir-te? — perguntou fazendo um gesto em direcção do roupão almofadado que ela envergava.

Úrsula continuou placidamente a mexer o café.

—        Já me lavei e cuidei do rosto. Tenho vestida a roupa interior. Só é preciso que vista uma saia e uma blusa.

—        Quanto tempo vão eles cá ficar?

—        Creio que duas semanas. Depois seguem viagem para Honolulu.

—        Eis a boa maneira de viver — disse Harold, beberricando o café. Se hoje conseguir convencer Berrey a entregar-me a contabilidade da sua firma, talvez que no ano que vem possamos ir ao Havai.

O pensamento de Úrsula estava muito longe dali.

—        Qual Berret? — perguntou surpreendida.

—        Berrey — repetiu Harold timidamente. — Trata-se do proprietário dos Berrey Cut-Rate Drugstores. Possui uma cadeia de dez estabelecimentos nesta área. Poderá vir a ser uma coisa magnífica para eu singrar; falei com ele algumas vezes quando ainda trabalhava na antiga firma.

Úrsula lembrou-se de que a antiga firma, a que ele se referia, era a Companhia de Contabilidade Keller, em Beverly Hills, um amplo cortiço que albergava muitos técnicos de contas e lhes pagava bastante mal, onde Harold começara a trabalhar depois de terminado o curso universitário. Num incaracterístico alarde de independência, Harold deixara a Keller três meses antes para fundar o seu próprio escritório de contas. Arrastara consigo dois clientes de somenos importância, e as contas da nova firma eram pagas à custa de Úrsula.

—        Belo — disse Úrsula. — Então boa sorte.

—        Bem necessito dela — replicou Harold com voz velada. — Tenho que me encontrar com Berrey no centro da cidade às cinco horas. É possível que chegue um pouco tarde para jantar.

—        Harold, por favor! Bem sabes que está combinado levarmos os Fosters ao Panero's. Tens que chegar a horas.

—        Oh, chegarei. Mas quero que saibas que Mr. Berrey é um homem importante, não o posso despachar com duas cantigas. Significa muito para mim.

—        Foster significa muito mais. Quero-te aqui cedo.

Harold não respondeu. Levantou-se, empilhou lentamente os pratos e chávenas na bandeja e encaminhou-se para a porta, enquanto Úrsula voltava à revisão do sumário.

Já com a porta aberta, Harold voltou-se, hesitante.

—        Úrsula...

—        Que queres?

Ao mesmo tempo que respondia, Úrsula riscou o termo nocivo na página que estava à sua frente e substituiu-o pela palavra prejudicial.

—        Gostaria que fosses ao escritório. Ainda não tem uma única peça de mobília nossa. Tenho estado à tua espera.

—        Quando puder passarei por lá — retorquiu ela com impaciência.

Logo a seguir, fitando-o com um sorriso, acrescentou num tom mais suave:

—        Bem sabes como estou sempre muito ocupada. Mas um destes dias passarei por lá.

—        Pensei que talvez na sexta-feira...

—        Na sexta-feira tenho marcado o grande almoço em honra dos Fosters — todos os publicistas... e actores...

Subitamente deu uma palmada na testa.

—        Meu Deus, e eu que prometi a Kathleen Ballard assistir à conferência do Dr. Chapman na sexta-feira de manhã. Como é que me vou arranjar?

—        Dr. Chapman? Será o especialista em questões sexuais?

—        Sim... vai fazer uma conferência na Associação. Depois conto-te tudo a respeito do assunto. Agora tenho que pensar maduramente.

Harold acenou com a cabeça e partiu em direcção da cozinha, onde a criada negra, Hally, estava entretida a descongelar o frigorífico.

Úrsula recostou-se na cadeira e fechou os olhos. O Dr. Chapman poderia ter sido um divertimento, mas constituía agora um estorvo. Era uma mulher que tinha que trabalhar e não podia perder tempo com algaraviadas obscuras sobre a sexualidade. Telefonaria a Kathleen ou a Grace a solicitar um compromisso prévio para tratar do assunto como jornalista. Afinal de contas, Foster estava em primeiro lugar.

Todavia, não se sentia satisfeita com a solução. Levantou-se, agarrou num cigarro e acendeu-o, depois de o encaixar numa boquilha de prata. Teve a percepção de estar mais interessada no Dr. Chapman do que pensara inicialmente. Atravessou a sala e deteve-se em frente de uma estante. Localizou o grande volume de Um Estudo Sexual do Celibatário Americano, tirou-o do seu lugar e começou a folheá-lo lentamente, detendo-se aqui e ali para contemplar um gráfico estatístico ou absorver-se na leitura de um parágrafo. Quando lera o livro pela primeira vez sentira-se verdadeiramente fascinada, não pela relação que os números pudessem ter com ela, mas pelas portas de alcova que eles abriam para outras vidas.

A partir do momento em que arrumou o volume no seu lugar, já na sua imaginação se projectava o título de um artigo: «O Dia em Que o Dr. Chapman me Entrevistou».

Um artigo assinado por uma dona de casa suburbana que, claro, seria a própria Úrsula. Uma coisa ideal para a Houseday. Escrevê-lo-ia com leveza, com sentido de humor, misturado com a pitadinha de sal da excitação, e daria à parada de perguntas e respostas uma dissimulada provocação, um tom de mistério para que o êxito junto do grande público estivesse assegurado de antemão. Melhor ainda, pensou que a entrevista com o Dr. Chapman ou com um dos seus assistentes seria um bom tema de conversa com os Fosters, reforçando a sua reputação de mulher competente e espirituosa que não perdia, de modo nenhum, o carácter de boa representante do Eterno Feminino.

Engendrando tudo aquilo, podia imaginar com prazer os olhares de soslaio que lhe lançaria Bertram Foster enquanto ela condimentava o facto com numerosas anedotas relativas ao caso. Anteviu a satisfação do seu editor, e o seu espírito já não hesitava na dúvida. Teria que estar presente à conferência do Dr. Chapman e iria oferecer-se para ser uma das entrevistadas. Uma vez que Foster soubesse que se estava a sacrificar pela revista não se importaria do atraso para o almoço de recepção. Antevia a sua entrada triunfal — seria o ponto focal de todos os olhares, dado que todos os convidados estariam a par do motivo — e via-se depois, majestosamente, a regalar o patrão e os convidados com uma história sexual privativa. Tinha a certeza de que Bertram Foster a ficaria a admirar mais do que nunca. Era um caminho que podia levar longe. Mesmo até Nova Iorque.

Para além da janela que ficava por cima do lava-loiça, ouviu a carrinha buzinar duas vezes; talvez porque uma avaria no motor atrasara um pouco o horário habitual, a buzina voltou a «secundar» o seu sinal.

—        É capaz de fazer o favor de esperar um momentinho, Kathleen? — pediu Sarah Goldsmith ao telefone. É a carrinha da escola que está a chamar — tapou o bocal com a mão e chamou Jerome e Deborah, os seus filhos.

O rapazinho, com nove anos, estava a acabar de comer a sua papa de cereais, e a menina, de seis, mastigava um biscoito.

—        Vamos embora, depressa, já é tarde. Não se esqueçam das lancheiras.

Sam Goldsmith, com a boca ainda cheia de bolo, pôs de lado a secção financeira do matutino e apertou ao peito Deborah e Jerome, quando o foram beijar.

—        Lembra-te bem das instruções que te dei quando fores jogar durante o intervalo — disse para Jerome. — Mantém o bastão bem levantado, como faz Musial, depois bate a bola por baixo.

Jerome acenou com a cabeça afirmativamente.

—        Lembrar-me-ei, papá.

Os pequenos agarraram nas respectivas lancheiras, deram um rápido beijo no rosto de Sarah e encaminharam-se para a porta. Jerome caminhava aos pulinhos e Deborah com lentidão. Desapareceram finalmente da vista dos pais e ouviu-se a porta a bater ruidosamente. Sarah pôs-se em bicos de pés, espreitando pela alta janela. Viu os filhos atravessarem a correr o caminho asfaltado e subirem apressadamente para a carrinha. Quando esta arrancou, retomou a sua posição normal e destapou o bocal.

—        Desculpe, Kathleen. É isto todas as manhãs.

—        Oh, sei muito bem por experiência própria.

—        Voltando a essa palestra... diz que vão todas as associadas?

—        É o que Grace afirma.

—        Bem, não quero ser a ovelha ranhosa. Suponho que será uma coisa importante.

—        «Para o progresso científico», citando as palavras do Dr. Cnapman. — Kathleen fez uma ligeira pausa. — Claro que se trata de uma questão voluntária, Sarah. Depois de ter ouvido a conferência pode pedir ou não para ser entrevistada.

—        Guiar-rne-ei peio procedimento da maioria — replicou Sarah. — Li o último livro do Dr. Chapman e penso tratar-se de uma boa causa. O que acontece é que... bem, julgo que é uma coisa embaraçante. As entrevistas são na verdade feitas a coberto do anonimato?

—        Pelo menos é o que diz o comunicado à imprensa.

—        O que pretendo dizer é que... Li uma vez, numa revista de condensações, um artigo acerca dessas sondagens; relatava a maneira como é mantido secreto o material recolhido... mas lembro--me que era habitual até mesmo Kinsey sentar-se na frente das pessoas e fazer as perguntas directamente. E houve um outro antes de Kinsey... não me lembro do nome agora...

Kathleen consultou o comunicado.

—        Seria Hamilton?

—        O nome parece-me familiar. Sim, deve ser. Costumava apresentar as perguntas gravadas em cartões, mas de qualquer modo era necessário responder-lhes com a sua presença, frente a frente. Deve ser uma coisa terrivelmente desconfortável...

—        Claro que sim — concordou Kathleen, quase automaticamente. Mas muito embora simpatizasse com o ponto de vista de Sarah, sabia que não devia aceitá-lo.

—        Segundo depreendo, o Dr. Chapman não procede dessa maneira. Não me recordo do que ouvi a respeito do seu método, excepto de que é o mais anónimo de todos eles... Na verdade você sairá da linha de montagem prontinha e selada, como se fosse uma vestal. Desejava poder dizer-lhe exactamente como se passam as coisas, Sarah. Diz a Grace que o Dr. Chapman explicará tudo muito bem durante a sua conferência.

—        Muito bem. Lá estarei.

Depois de Sarah ter pousado o auscultador no seu lugar, mirou Sam de viés. Pensou se ele teria prestado atenção à conversa. Sam estava profundamente absorvido pelas últimas oscilações da bolsa e, aparentemente, distante de tudo o mais. Observando-o em silêncio, tal como vinha fazendo com frequência ultimamente, com a mão direita pousada caracteristicamente sobre o coração (local onde albergava aquele segredo), Sarah imaginou se Sam a continuava a ver como a vira durante o primeiro encontro que tinham tido. Julgou que ele poderia ficar agradavelmente surpreendido se a olhasse detidamente.

Sarah Goldsmith usava o cabelo preto e liso puxado para trás de modo a formar um carrapito, e muito embora os espessos óculos de aros negros lhe dessem um aspecto severo, o seu rosto, de sobrancelhas naturais e largo nariz, era notavelmente latino e suave quando, logo de manhãzinha, não o deformava por trás dos óculos. Tinha trinta e cinco anos, e os seus grandes seios e largas ancas ainda continuavam firmes e jovens. Era uma coisa que a orgulhava, e, diferente de Sam, não se deixara declinar fisicamente. Mesmo depois de doze anos de casada e com dois filhos, o seu peso nunca sofrera uma variação mais acentuada do que dois quilos.

Com um suspiro, chegou-se para a mesa, encheu uma chávena de chá para si e sentou-se em frente do marido. Olhou o braço e a parte visível, atrás do jornal, do rosto de maxilares salientes de Sam, não sem um sentimento de pesar. Conquanto fosse apenas quatro anos mais velho do que ela, o marido, pelo menos a seus olhos, tornara-se uma criatura desenxabida, pesadona. Olvidara há muito a necessidade que sentira da sua solidez durante os primeiros anos de casada, esquecera todo o seu encarniçado entusiasmo na luta que ele travara por conseguir uma independência económica para o lar. Após aqueles doze anos de casamento, tudo o que lembrava era o facto de Sam se ter tomado num homem obtuso, insensível, sem acção, sedentário; um homem sem interesse pelo mundo que o rodeava e pelas excitações e refinamentos que a vida comportava. Era um ser apático, apenas obcecado pelo seu armazém de vestuário masculino, pelos filhos e pela poltrona colocada em frente do aparelho de televisão. O acto sexual era para ele um dever ritual a cumprir, um dever que realizava uma vez por semana, todos os domingos, à noite, um dever que desempenhava a resfolegar como uma locomotiva e sem nunca a satisfazer. Sarah pensou que talvez pudesse suportar essa insipidez se pelo menos houvesse qualquer coisa engraçada ou um certo ambiente de romantismo a rodeá-la, mas tudo o que havia a acrescentar àquela imobilidade era a monotonia das prementes necessidades de comer, dormir e labutar no lar. Claro que Sam era um homem bom, uma pessoa gentil, ninguém podia duvidar disso. Mas era bom e gentil com aquela espécie de flacidez sentimental à maneira judaica, sempre pronto a apresentar desculpas, a lamentar-se, a querer mostrar-se prestável. Num mundo rodopiante e vivo, Sam era uma imagem da morte.

Outrora, Sarah lera a Madame Bovarye retivera na memória umas quantas linhas do romance: «No mais íntimo do seu ser, Ema esperara que alguma coisa viesse a acontecer. Considerando a enorme solidão da sua vida, como os marinheiros naufragados, volvera o desesperado olhar à procura de uma vela branca que se revelasse por entre a neblina do longínquo horizonte... Mas nada sucedera; Deus assim o tinha querido!... O futuro era um corredor escuro que depressa fechara a réstia de claridade daquela porta existente lá no fundo.» Mais tarde, mantivera sempre o pensamento de conhecer Ema Bovary melhor de que qualquer das suas amigas de The Briars.

—        Já nove e meia! — exclamou Sam.

Estava de pé a ajeitar a gravata.

—        Se continuo a chegar assim tarde todas as manhãs, aqueles

ladrões reduzem-me à penúria.

Encaminhou-se para a sala de estar e voltou, a enfiar as mangas do casaco de flanela.

—        Quando os empregados nos apanham distraídos aprovei-

tam-se logo da ocasião. Mas quem é que tem coragem de arrancar

sentindo-se bem em casa? Adoro a companhia da minha mulher e

dos meus filhos. Gosto do meu lar.

Estava plantado em frente de Sarah, a abotoar o casaco.

—        Será isto algum crime?

—        Pelo contrário, é uma coisa muito naturai — respondeu

Sarah.

—        Ou talvez seja eu que esteja a ficar velhote.

—        Porque é que procuras fazer-te sempre mais velho de que és? — exclamou Sarah, mais acrimoniosamente do que

pretendera.

—        Incomoda-te muito? Se assim é, posso dizer-te que ainda

estou nos meus frescos dezasseis anos.

Sam inclinou-se para ela, e Sarah fechou os olhos, à espera. Sentiu-lhe os lábios gretados a tocarem os seus.

—        Bem, até logo. Cá estarei às seis horas — disse ele, endireitando-se.

—        Até logo.

—        Qual é o programa desta noite? Às sete aparece aquele cómico gorducho. Talvez fosse melhor pôr a mesa na sala de estar para vermos a televisão enquanto jantamos.

—        Está bem.

Sam dirigiu-se para a porta.

—        Tens alguma coisa especial para fazer hoje?

—        As compras, levar o Jerry ao dentista depois da escola... enfim, um milhão de coisinhas.

—        Porta-te bem.

Sarah ficou sentada, imóvel, a escutar o ranger dos sapatos dele no soalho. Depois ouviu o fechar da porta do automóvel, o ruído asmático do motor do sedan e o estalar do cascalho sob os pneus, ao descer a vereda.

Acabou de beber o chá apressadamente, tirou o avental e entrou no quarto de cama. Por momentos imobilizou-se em frente do espelho do guarda-fato, estilo Império. O cabelo estava bem penteado e aquela blusa de xadrez assentava-lhe bem. Abriu a malinha de mão encanastrada e tirou de dentro o baton e a caixa de pó-de-arroz. Procedeu a um leve arranjo, deitou uma olhadela atenta ao espelho e depois encaminhou-se para o telefone da banquinha-de--cabeceita, colocada entre as duas camas.

Levantou o auscultador, marcou apressadamente um número e aguardou. O sinal de desimpedido soou três vezes antes de ouvir a voz dele:

—        Estou... Quem fala?

—        É Sarah. Vou para aí imediatamente.

Desligou e dirigiu-se ofegante para o quarto de banho. Abrindo a gaveta do armário, que ficava ao lado do lavatório, procurou lá no fundo o estojo azul de fecho de correr. A sua mão mergulhou no estojo até sentir nos dedos o pequeno tubo que continha os óvulos gelatinosos de prevenção vaginal. Deixou cair o estojo dentro da mala de mão. Abriu um gavetão, tirou um casaco de malha de caxemira carmesim e apressou-se a sair de casa, encaminhando-se para a garagem.

Mary Ewing McManus estava sentada na cama desfeita, com as longas e finas pernas escondidas sob a camisa de noite de seda azul — casada há menos de dois anos mantivera o Ewing na sua assinatura sabendo que tal facto agradava muito a seu pai.

—        Penso que é uma coisa formidável, Kathleen — dizia ela ao telefone. Com vinte e dois anos, sem complexos e apaixonada pelo marido, podia ainda mostrar-se exuberante às dez da manhã. —Assinale um grande ponto de exclamação à frente do meu nome. Não perderia essa reunião por nada deste mundo.

—        Óptimo, Mary. Desejaria que fossem todas assim tão decididas.

Mary mostrou-se admirada.

—        Mas quem é que não gostará de ouvir o Dr. Chapman? Isto

é, julgo que se pode sempre aprender qualquer coisa.

Mary Ewing oferecera-se a Norman McManus, após o casamento, como aquilo que realmente era, uma jovem alegre, saudável e virgem. Apesar de criada com inteligência e afecto, tinha sido de certa maneira mantida preservada de contactos directos com a vida, e por isso todas as coisas que se seguiram à noite de núpcias lhe pareciam novas e maravilhosas. Era tão curiosa acerca dos caminhos sexuais, na exploração dos seus mistérios e aprendizagem das suas técnicas, como se se tratasse de aprender as receitas de novos cozinhados ou de novas técnicas de costura. Certa noite, no primeiro ano de casada, depois de terem lido um novo manual sobre o casamento, ela e Norman tinham passado toda a noite, inicialmente em louca hilaridade e depois em silenciosa excitação, a experimentar as suas várias zonas erogéneas.

—        O Dr. Chapman não vem exactamente para ensinar nada — estava Kathleen a dizer. — Na verdade é um estudo muito sério que vem fazer.

—        Oh, bem sei — disse Mary com a sua voz muito importante e adulta. De certa maneira é como que fazer parte da história... como se fosse Sigmund Freud a vir a The Briards falar a respeito da psicanálise ou Karl Marx a respeito do comunismo. Algo que mais tarde se poderá contar aos nossos filhos.

—        Bem... — disse Kathleen indecisamente — penso que sim, de certo modo.

—        Como vai a Deirdre?

—        Excelentemente, obrigada.

—        É uma criaturinha tão querida! Estou satisfeita por me ter telefonado. Bom, encontramo-nos na conferência.

Desligando o telefone, Mary colocou o aparelho em cima da mesinha-de-cabeceira. O convite emocionara-a tanto como se tivesse combinado um piquenique domingueiro, e sentiu-se repentinamente espicaçada pela urgente necessidade de contar a novidade a Norman, de partilhar com ele a agradável notícia.

Esticou a cabeça e ouviu o ruído abafado do chuveiro na casa de banho que ficava no extremo do quarto. Quando ele acabasse de se arranjar falar-lhe-ia sobre o caso.

Descruzou as pernas e recostou-se contra a almofada. Sentia todo o seu corpo fremente de vida e feliz por ter começado um novo dia e poder esperar pela magia da noite. O ruído da água a correr do chuveiro tornou-se persistente e pensou em Norman debaixo do jacto de água fria. Imaginava-o tal como o via quando tomavam banho juntos, o cabelo cortado quase rente, os grandes olhos, escuros e penetrantes, bastante afastados na quadratura do seu belo rosto, o peito cabeludo, o ventre liso e as compridas pernas musculosas. Para ela era ainda um milagre que, naquela festa de estudantes, três anos antes, Norman a tivesse procurado, sem se deter a olhar para nenhuma das outras moças mais atraentes que se encontravam na sala, e depois desse momento mantivera-se sempre assim, sem olhar para mais nenhuma mulher.

Mary Ewing McManus não tinha quaisquer ilusões acerca da sua beleza. Muito embora o seu cabelo castanho de certo modo descuidado lhe conferisse uma certa semelhança com a Wendy do Peter Pan — pelo menos era o que Norman lhe apontara por diversas vezes, admirativamente — e muito embora fosse uma alegre extrovertida, pouco familiar com os humores sombrios, nunca se iludira a respeito da sua aparência física. Era uma rapariga alta, ossuda, atlética, que andava em largas e decididas passadas. Os olhos castanhos ficavam muito juntos um do outro, e o nariz, embora direito, tinha um comprimento conspícuo (quando terminara os estudos havia colocado na parede, por cima da sua cama, uma romântica gravura de Cleópatra, isto depois de ter lido o comentário de Pascal de que tivesse o nariz de Cleópatra «sido mais curto e estaria alterado todo o aspecto do mundo»). A sua boca era pequena, muito embora os lábios fossem carnudos e os dentes regulares e alvos. O seu peito era liso — não havia soutien, por mais almofadado que fosse, capaz de esconder essa verdade — e escorreita de nádegas. E todavia não se sentia desatraente. Crescera como centro do seu lar, a menina bonita dos pais e da vasta família que tinha, sempre admirada e amimada. A sua jovialidade natural empanava muitas vezes o encanto de raparigas mais bonitas quando confrontadas com ela, e nunca lhe tinham faltado namorados. Mesmo quando chegara à idade de aspirar a um marido, Norman surgira e suplantara todas as suas afeições infantis com um amor intenso e adulto.

A partir do primeiro encontro, Norman McManus tornara-se o centro do seu universo. A princípio, Harry Ewing, que nunca recusava nada à filha, opusera uma certa resistência; com os seus modos corteses procurara fazer-lhe ver que era ainda muito jovem e Norman um pobretanas (Norman acabara de ingressar na Ordem dos Advogados californianos). Dado que adorava o pai, Mary escutara-o com toda a atenção filial, decidindo porém conseguir demovê-lo de qualquer objecção. Harry Ewing acabara por concordar com o casamento, não só porque não sabia recusar nada à

filha, como por ter compreendido que ela não desistiria dos seus intentos. Impusera apenas uma condição, à qual os noivos acederam prontamente: o casal passaria a viver sob o tecto dos Ewing, ocupando o andar superior da vivenda, em estilo espanhol, até ao dia em que pudessem montar casa própria. Depois, desejoso de poder proporcionar uma base económica mais estável à filha, Harry Ewing fora mais longe. Após Norman ter tentado arranjar colocação em várias firmas de advogados de relevo e prestes a constituir uma sociedade com Chris Shearer, seu antigo condiscípulo, para montarem um escritório num dos bairros mais pobres de Los Angeles, Ewing fez uma generosa oferta ao genro. Possuía uma fábrica construtora de secções de casas prefabricadas, que tinha um departamento de Contencioso com quatro advogados. Um dos jurisconsultos ia abandonar a firma, e Harry assegurou o cargo a Norman, com um salário inicial de 150 dólares semanais.

Mary sentira-se dominada pela generosidade paterna, mas Norman não se manifestara lá muito satisfeito. De certo modo, pensou que era uma renúncia a parte da sua independência em troca de uma segurança que tinha todo o sabor de um dote. Além disso, parecia-lhe muito mais tentadora a perspectiva de vir a ser um bom advogado, podendo participar activa e combativamente no auxílio à pobre gente da zona desfavorecida; a ideia de ser socialmente prestável, juntamente com Chris, não o abandonava. Contudo, depois de ter hesitado durante dois dias, convenceu-se de que a proposta de Harry Ewing seria acolhida com verdadeira alegria, pelo menos por uma centena de jovens advogados, e pensou que o seu conceito de defensor dos humildes era apenas romântico e nada prático. Afinal, Mary merecia o que fosse melhor. Contagiado pelo entusiasmo da mulher, Norman acabara por aderir à firma do sogro.

Ano e meio volvido sobre o caso, e pressentindo o desassossego do marido, que passava a vida amarrado a uma secretária do Contencioso, Mary tentou remediar a questão. Muito em segredo confabulara com o pai, explicando-lhe a inquietação de Norman e pedindo que lhe fosse dado trabalho do tribunal. Harry prometera que assim procederia na primeira oportunidade que surgisse, mas já se tinham passado uns quantos meses sem alteração da rotina.

Nesse momento, voltando-se para olhar o relógio, Mary viu que faltavam vinte para as dez. Com certeza que o pai já finalizara o seu pequeno-almoço e devia estar à espera de Norman, visto que, normalmente, iam juntos para a fábrica no Cadillac de Harry Ewing. Pensava que era melhor lembrar a Norman as horas, quando deixou de ouvir o barulho do chuveiro.

Mary levantou-se e, descalça, dirigiu-se para a casa de banho.

Encostou o ouvido à porta.

—        Norm?

—        Que é?

—        São vinte para as dez.

—        Obrigado.

Veio-lhe à ideia o telefonema de Kathleen.

—        Adivinha quem telefonou.

—        Como?

—        Adivinha quem telefonou — falou um pouco mais alto —, foi o que eu disse. Kathleen Ballard telefonou-me há um momento atrás a dizer que o Dr. Chapman vem a The Briars para nos entrevistar.

—        Não consigo ouvir o que dizes. Entra. A porta está aberta.

Mary fez rodar o manipulo de vidro e entrou. Estava calor na

estreita casa de banho e o vapor da água aderia às paredes e embaciava o espelho. Norman estava ao lado da banheira, de pés nus em cima de um tapete cor de laranja. Limpava a cara e o cabelo, e os seus braços estavam levantados. Tinha as musculosas costas voltadas para a porta. Permanecia ainda completamente nu e corriam-lhe pelo dorso algumas gotas de água.

Fitando-lhe o corpo, enquanto fechava a porta, Mary voltou a sentir percorrer-lhe as ilhargas o mesmo dolorido prazer que experimentara na noite anterior. O marido tinha-a possuído e fora uma sensação martirizante e ao mesmo tempo maravilhosa. Teve consciência súbita do acelerar do seu ritmo cardíaco.

Tentou manter a voz com um tom casual.

—        Estava eu a dizer que...

Norman voltou-se para ela a sorrir, e os olhos de Mary percorreram-lhe o corpo orgulhosa e possessivamente.

—        Olá, minha querida. Pensei que ainda estivesses a dormir.

—Telefonaram-me — disse Mary ofegante. — O Dr. Chapman vem na sexta-feira à nossa associação para fazer uma conferência. V—Chapman?

—        Sim. Conheces muito bem o relatório Chapman a respeito

do sexo. Ele vem cá para nos entrevistar.

—        Excelente para ti. Não escondas nenhum segredo. Estendia-lhe a toalha.

—        Agora limpa-me as costas. Norman voltou-se e ela pegou na toalha.

—        Devo também dizer que és o melhor amante do mundo?

—        Não há mal algum em que isso conste.

—        Sabes que és, não é verdade? — insistiu ela, ao mesmo tempo que passava a toalha, numa carícia, pelo dorso do marido.

—        Vamos lá, como é que tu podes saber isso? — perguntou ele só com a intenção de a arreliar. — Ou será que dizes o mesmo a todos os teus homens?

Mary ficou imóvel, com a toalha ridiculamente suspensa entre ambos, enquanto ele se voltava e a fitava intensamente.

—        Norman, amo-te muito.

O sorriso de Norman apagou-se e, estendendo os braços, puxou-a contra si.

—        Desejo-te, queridinha — sussurrou-lhe.

Mary cerrou os dedos contra as costas do marido e a toalha tombou no chão.

—        Querido... — começou a murmurar Mary.

Mas, de repente, lembrando-se das horas, tentou afastar-se.

—        Não, Norman. Já é muito tarde. O papá deve estar lá em baixo à espera.

—        O papá que vá para o inferno — disse Norman, beijando--Lhe o pescoço.

—        Não digas isso — volveu ela em voz sumida.

Lentamente, e sob a pressão dele, Mary deixou-se escorregar,

colada ao corpo de Norman, para o tapete cor de Laranja. Aninhada contra o marido quase nem sentiu a fria humidade dos ladrilhos contra as costas, nádegas e pernas. De olhos fechados sentiu os dedos dele a desapertarem-lhe a camisa de dormir, era o seu bem--amado que marcava o ritmo de um compasso de amor, e abandonou-se completamente àquela doce sensação, esquecendo Por completo que o pai estava lá em baixo à espera.

Em certa ocasião, durante um jantar festivo em casa de Úrsula e Harold Palmer, a dezena de convidados, para passar o tempo, organizara um jogo de associação de ideias. Úrsula, que estava a desenvolver uma série de palavras para um dos convidados, pronunciou o termo anti-séptico e logo o convidado respondeu automaticamente: Teresa Harnish. O facto provocara a hilaridade geral e gerara uma aturada análise, tendo-se chegado à conclusão quanto à propriedade de ligação. Mais tarde o caso fora referido a Teresa, que logo procurou no dicionário a exacta correspondência. Ao verificar que significava «agente desinfectante; o que impede a putrefacção», sentiu-se satisfeita e não fez nenhum esforço para compreender o verdadeiro significado da associação relativamente à sua pessoa.

Nesse momento, Teresa Harnish, encostada a uma estante do seu estúdio, que não continha livros mas sim exóticas reproduções de estatuetas pré-colombianas, escutava a voz de Kathleen Ballard a falar-lhe das coisas inerentes à conferência do Dr. Chapman.

Com trinta e seis anos, Teresa era o quadro perfeito da serenidade e da graça. Jamais algo de desagradável ou genuíno — por exemplo, suor, sujidade ou germes — tinha maculado a sua pele delicada; ou, pelo menos, assim parecia. Cada madeixa do seu cabelo loiro estava sempre no seu lugar. O rosto oval, os olhos rasgados, o nariz patrício, os lábios finos e carminados, formavam no seu conjunto o aspecto de um crisântemo que receasse o contacto de mãos menos dignas. Era de estatura mediana. No momento em que atendia o telefone envergava uma blusa de seda de gola aberta e decotada e calções cinzentos, tudo sem o mais leve vestígio de uma ruga. O seu ar e o maneirismo dos modos, mesmo na intimidade, conferiam-lhe um ar vago de intelectualismo sofisticado, aspecto que ela cultivava e exagerava. Lia muito, mas a originalidade e profundidade do seu pensamento permaneciam à superfície, não ultrapassavam a sua imaculada epiderme. Gostava de conversas que aludissem aos clássicos, que era paupérrima em compreender, e preferia que a sua actividade sexual fosse asseada e executada em boa ordem.

Ficava satisfeita se conseguia sair de qualquer experiência sem se sentir confusa. Achava Lord Byron vulgar, Gauguin repugnante, Stendhal ridículo e Rembrandt larvar. As suas preferências artísticas iam todas para Henry James e Thomas Gainsborough. Admirava extraordinariamente Louise de la Vallière e a pobre Lady Blessington (não sem um certo sentimento de culpa). Considerava como um dos fardos que o casamento impunha conformar-se com o respeito dedicado por seu marido a pintores abstractos, sem densidade, como Duchamp, Gris e Kandinsky.

— Sim, Kathleen, julgo que é perfeitamente evidente — disse por fim ao telefone, com um sotaque há longo tempo cultivado que muito teria perturbado um filólogo (e talvez o levasse a considerá-lo como sendo uma mescla da pronúncia de Beacon Hill, Boston e do West End londrino). — Tanto Geoffrey como eu pensamos que o Dr. Chapman é uma verdadeira preciosidade, um monumento erguido à verdade.

Geoffrey Harnish, que, sentado à enorme escrivaninha estilo Médicis, toda em ornatos e lavores, copiava absorto alguns trechos da obra de Giorgio Vassari Deite Vite de piú ecceentipittori, scultori, ed architettori (a edição italiana publicada em 1878 em Florença) para um seu cliente de Pasadena interessado em manuscritos renascentistas com iluminuras, levantou a cabeça com vivacidade ao ouvir pronunciar o nome do Dr. Chapman. Teresa inclinou a cabeça timidamente, lançando-lhe um sorriso secreto, e Geoffrey ergueu as sobrancelhas cabeludas, manifestando uma agradável surpresa. O nome do Dr. Chapman ultrapassara a sua atenção em Vassari, e Geoffrey Harnish recostou o dorso curto e compacto contra o espaldar da frágil cadeira, ficando a escutar. Alisou com a mão um dos lados do seu ralo cabelo cor de areia, passou depois os dedos pelo farfalhudo e incongruente bigode à oficial dos granadeiros e pensou vagamente se o Dr. Chapman poderia ser induzido a escrever uma introdução ao catálogo que ia mandar imprimir e que anunciava a próxima exposição dos quadros abstractos de Boris Intronsky, alguns dos quais se relacionavam com a vida conjugal.

Teresa tinha estado a escutar e agora, por seu turno, falava a Kathleen.

— Com certeza, eu e Geoffrey lemos conjuntamente o livro sobre o seu último inquérito... isto é, lemos quase em conjunto... e ficámos literalmente maravilhados pelo confronto científico da sexualidade. O livro é absolutamente olímpico, minha querida. Claro que tinha as suas falhas. Qualquer pessoa com razoáveis conhecimentos de sociologia podia verificar esse facto, e, como deve estar lembrada, houve muita gente que o notou. Julgo que o que objectámos acerca do Dr. Chapman foi o caso de ele tratar o sexo como um facto inteiramente biológico, sem relação com outras características humanas. Porém, Kathleen, devemos ser tolerantes com os problemas desse homem. Afinal, como pode alguém catalogar os prazeres do amor ou, o que é mais perturbante, descrever as sensações experimentadas após a primeira contemplação da Mona Lisa do Louvre?

Recostado na sua cadeira, Geoffrey aprovou sabiamente aquela tirada da mulher com um movimento de cabeça; porém, no outro extremo do fio, Kathleen, àquela hora, não se sentia preparada e disposta para ouvir um discurso sobre o método do Dr. Chapman. Retorcendo-se impacientemente no banco de cozinha em que estava sentada, pensou por que raio é que tinha aceitado aquela tarefa. Não sabia que responder a Teresa. Finalmente lá conseguiu articular:

—        Mas não me disse que aprovava o Dr. Chapman?

—        Claro que sim, minha cara, será uma experiência memorável.

—        Podemos então contar consigo?

—        Querida, perderia antes as conferências sobre Milton e Shakespeare na Sociedade Filosófica.

Kathleen sentiu-se mais tranquila por considerar aquelas palavras como uma aceitação e fez o sinal respectivo à frente do nome de Teresa Harnish, enquanto esta lhe fazia lembrar as obrigações e prazeres sociais, sugerindo um almoço num futuro próximo.

Depois de Teresa ter colocado o auscultador no descanso, Geoffrey levantou-se, meteu no bolso do casaco os apontamentos tomados sobre Vassari, e, em companhia da mulher, saiu de casa, dirigindo-se para o soberbo descapotável Thunderbird amarelo--canário, que recentemente substituíra o antiquado Citroen.

Teresa ocupou o seu lugar ao volante, e Geoffrey, que nunca conduzia («Nunca lhe permitiria que o fizesse — explicara Teresa muitas vezes aos amigos —, seria uma imprudência. Geoffrey anda sempre nas nuvens. Imagine-se Goethe a conduzir um automóvel pelo trânsito de Los Angeles!»), sentou-se no outro lado.

A viagem matinal de The Briars até à galeria de arte de Geoffrey, em Westwood Village, foi feita sem pressas, deslizando suavemente pelas curvas e rampas do Sunset Boulevard para depois atravessarem a recta dos terrenos que circundavam o complexo da Universidade, e levou-lhes catorze minutos. Entretanto, foram conversando a respeito do Dr. Chapman, não como pessoas que sentissem curiosidade acerca da sua vida sexual conjugal — que era regular e eficientemente cumprida duas vezes por semana, sempre em dias certos e depois de terem bebido alguns brandes, realizada com certa serenidade, alguns murmúrios românticos e completa satisfação, pelo facto de saberem que uma tal união clássica havia sido sancionada por Abelardo e Heloísa, Gustave Fleubert e Louise Colet, pelo Arquiduque Rudolfo e Maria Vetsera, por Apollinaire e Marie Laurencin —, mas antes como mais um fenómeno cultural nas suas esplêndidas vidas. Ficara tacitamente estabelecido que seria interessante, quando Geoffrey escrevesse as suas memórias referentes à vida que levara no mundo da arte e dos artistas (com a intima colaboração de Teresa, claro), dedicar uma página, ou alguns parágrafos, ao Dr. Chapman — o estatístico do amor.

Ao passarem pelos edifícios da Universidade, lembraram-se do encantador jantar da noite anterior na maravilhosa vivenda do professor Eric Mawson, construída nas colinas; Mawson leccionava uma cadeira de arte impressionista (embora eles lhe perdoassem isso como perdoavam a Dickens os romances mercenários) e vivia com uma irmã solteirona e desagradável. O convidado de honra tinha sido um jovem artista holandês, com um nome difícil de pronunciar (coisa que não interessava, porque Geoffrey tinha imediatamente decidido que ele não tinha talento), que enfurecera toda a gente com as suas dogmáticas opiniões a respeito dos clássicos, entre eles Rubens, que o jovem desdenhava. Quando o holandês declarara gravemente que Hans van Meegeren, o criativo felsificador, era um artista que podia perfeitamente ombrear com Vermeer (a quem, de preferência, imitara), Geoffrey perdera as estribeiras e replicara com grande acrimónia (enaltecendo com notável precisão os inimitáveis tons das cercaduras de Vermeer), apenas parando na sua diatribe para permitir que Teresa pronunciasse um bon mot, muito bem acolhido por todos.

Geoffrey irritara-se mais porque a arte clássica e académica fora a sua primeira paixão e por isso sentira um resto de culpa por ter abandonado uma amante fiel pelos instáveis futuristas, e manifestou de novo o seu desagrado dizendo para Teresa:

—        Aquele jovem idiota... ousar até relacionar o nome de van Meegeren com o de Vermeer. É como dizer que William Ireland foi um emulo de Shakespeare só porque inventou e falsificou o Vortigern apondo-lhe o nome do Bardo, e o livro foi assim aceite durante um breve período. Fico espantado do que estes amadores sem maturidade são capazes de fazer só para chamarem as atenções sobre si.

—        Penso que lhe deste uma boa ensinadela, querido — apoiou Teresa.

—        O palerma — murmurou Geoffrey com satisfação, ao mesmo tempo que tirava um pequeno charuto negro (de uma marca que lhe era fornecida mensalmente por um desorientado negociante de arte de Paris) e o acendia.

—        Ora, cá estamos — disse Teresa.

Tinham parado na movimentada rua lateral que se ligava ao Westwood Boulevard. Teresa cortou a ignição ao motor enquanto deitava uma olhadela para as duas montras da acanhada, mas excelentemente localizada, loja. O bronze de Henry Moore ainda estava numa das vitrinas e, na outra, ainda se estadeava a enorme tela de D. H. Lawrence. Um cartaz, com uma cercadura dadaísta, convidava os clientes interessados para o habitual chá semanal (todas as quartas-feiras à noite) e para a conversazione.

—        Começo a estar cansada daquele Lawrence — disse Teresa. Não fica ali bem. É uma coisa que pertence a uma livraria e não a uma galena de arte.

—        Serve como curiosidade — replicou Geoffrey, não se esquecendo de que aquela coisa lhe valera, duas semanas antes, um parágrafo num jornal dominical.

—        Preferia muito mais aquela nova tela de Marinetti — acrescentou Teresa.

Geoffrey adquirira recentemente, por um preço exorbitante, a um negociante italiano, uma obtusa representação de uma locomotiva pintada por Filippo Tommaso Marinetti, o pai do futurismo, em 1910. Teresa detestava o quadro. Considerava o futurismo como Philip Wilson Steer outrora considerara as obras dos pós-impressionistas, lembrando-se que ele tinha declarado, após visitar uma exposição impressionista: «Suponho que estes pintores devem ter rendimentos particulares». Teresa sugerira o Marinetti para a vitrina por desejar recordar a Geoffrey que era tão intelectual e tão progressiva como ele.

—        Ah, o Marinetti—disse, abrindo a porta do carro. — Grandes

cérebros, et caetera. Vou expô-lo amanhã.

Saiu, fechou a porta do automóvel e depois debruçou-se na janela.

—        Que temos hoje? Praia?

—        Sim, mas só por uma hora. É uma coisa que me põe em forma para o resto do dia.

—        Antes das seis e meia não saio da loja.

—        Cá estarei a essa hora, querido. Não trabalhes demasiado.

Depois de o marido ter desaparecido pela porta da galeria,

Teresa conduziu o descapotável em volta do quarteirão encaminhando-se para o Wilshire Boulevard, ignorou vários estudantes que lhe fizeram sinais perto de São Vicente (desdenhando a rudeza deles, sentia-se inexplicavelmente satisfeita), e, voltando, continuou o seu caminho para Santa Mónica. Após vinte e cinco minutos atingiu a auto-estrada da costa do Pacífico, onde o trânsito era pouco àquela hora, e prosseguiu respirando a brisa marítima até chegar ao seu destino, cerca de um quilómetro antes de Malibu. O seu destino era um pequeno promontório rochoso que forma-va uma saliência precária sobre a ampla praia arenosa que descia para o oceano, e nessa ponta vinham quebrar-se as espumantes ondas da ressaca. Há alguns anos que frequentava aquele local; primeiramente aparecia por ali ocasionalmente, depois Passou a ir uma vez por semana, e mais recentemente a frequência Passara a ser de duas a três vezes por semana. Teresa passava aqueles pedaços da manhã na solidão da praia, que ficava sobranceira e formava uma enseada natural. Muito embora a praia fosse pública, a sua angra era privada, não maculada pelos banhistas, pelas famílias em piqueniques ou pelos acrobatas e atletas que gostavam de mostrar as suas habilidades.

A descoberta daquele refúgio — a angra de Constable, como Geoffrey a crismara quando vira o local pela primeira vez, iembrando-se da «Weymouth Bay» de John Constable exposta na National Gallery — tinha sido um pequeno milagre para Teresa. A partir do momento em que ela e Geoffrey tinham decidido que certas pessoas não eram feitas para ter filhos — canibais da vida e da arte —, as manhãs para ela passaram a ser intoleráveis. As tardes eram passáveis — havia sempre muito que fazer em casa e também as compras em The Village Green e as visitas às amigas — e as noites bastante ocupadas com a vida social, mas as manhãs tornavam mais agudo o desejo das noites e cada vez custavam mais a passar. Então, descobrira a angra de Constable, durante uma ociosa volta de automóvel, e nunca mais cessara de ir estender-se naquela areia, a tomar banhos de sol, sonhando acordada, dormitando ou lendo embalada pelo ritmo das vagas azuis que se vinham quebrar na areia quente e loira.

Depois de ter arrumado o carro, deu a volta, abriu a mala do descapotável e dela tirou um cobertor e um pequeno volume de versos de Ernest Dowson, que incluía um ensaio crítico à obra do poeta. Olhando para trás viu que o Sol, muito embora na sua potência, estava velado por um ligeiro manto de nuvens e os seus raios não eram ainda abrasadores. Resolveu não levar o guarda--sol.

Com o livro debaixo do braço e o cobertor na mão, utilizou o braço livre para se equilibrar pelo ligeiro declive rochoso que levava à praia. A curta distância do ponto onde descera havia um ligeiro recorte na rocha. Era aí que ficava o abrigo de Constable. Teresa deu uns passos pela areia mole e, chegada ao seu retiro privado, poisou o livro no chão, desdobrou o cobertor e sentou-se com um suspiro de alívio e bem-estar. Durante alguns minutos ficou abraçada aos joelhos, de rosto erguido, olhos fechados, para a vastidão da abóbada celeste, a deixar-se possuir pelos doces raios de sol e pela suave brisa marítima. Finalmente abriu os olhos, como que despertando de um sonho delicioso, e deitou-se no cobertor. Ficou de lado, apoiada sobre um cotovelo, a atenção posta no livro de poemas.

Seguiu a primeira e a segunda estâncias pacientemente, na doce antevisão daquilo que viria a seguir, e ao chegar à terceira estrofe sorriu de contentamento, saboreando melhor a leitura, com os lábios a pronunciarem os versos silenciosamente.

Cynara! Quanto te tenho procurado olvidar

seguindo infatigável o rumo do vento, Indo com a multidão a desfolhar rosas tumultuosamente, Seguindo a dançar para arrancar da ideia

os teus pálidos, os teus perdidos lírios. Porém, sentia-me saudoso e doente

de uma velha paixão, Durante todo o tempo, Cynara, porque a dança

foi longa, Fui-te fiel à minha maneira.

Há muito tempo que lera aquelas palavras melodiosas e voltava agora a lê-las com a mesma emoção e o mesmo sentido de frescura. Instintivamente compreendeu o valor social e o poder discursivo dos versos (graças a Deus, Dowson não era um poeta árido) e quis retê-los na memória, saboreá-los melhor. Voltando a mergulhar na leitura, ouviu vozes, não propriamente vozes, mas uma espécie de bramidos selvagens como os que deviam ter sido emitidos pelos homens primitivos antes da palavra, que a fizeram estremecer e voltar à realidade.

— Vamos, lesma... corre... passa o ovo! Estou sobre a linha das vinte jardas... passa e corre...

Levantou a cabeça e procurou a origem dos desagradáveis sons que interrompiam a sua concentração. Na faixa de areia húmida perto da água, talvez a uma centena de metros do sítio

 

1 - Tentativa libérrima de tradução. Eis o original:

I have forgot much, Cynara gone with the wind, Flung roses, roses riotously with the throng, Dancing, to put thy patê, lost lillies out of mind; But I was desolate and sick of an old passion, Yea, ali the time, because the dance was long I have been faithful to thee; Cynara! in my fashion.

 

onde se encontrava, viam-se quatro homens. Embora a distância e a perspectiva não auxiliassem muito a uma perfeita visão, pôde reconhecer que eram jovens e altos e musculosos. Dois deles, ombro com ombro, empurravam-se como dois elefantes em fúria naquilo que parecia ser um jogo pleno de primitivismo. Os outros dois corriam pela areia atirando uma bola oval de um para o outro. O seu olhar fixou-se melhor num deles, o mais alto e vigoroso dos quatro, que corria em sprints curtos e explosivos para apanhar a bola que lhe era arremessada.

Teresa manteve-se a observar aqueles invasores bárbaros com a testa franzida em manifesto sinal de contrariedade. Os quatro colossos, como autómatos, prosseguiam nos seus movimentos rítmicos, como se tivessem descoberto a mecânica do moto contínuo, sublinhando tudo com berros incompreensíveis e por vezes profanos. No impulso do seu jogo, os dois que corriam aproximaram-se do seu abrigo; o mais alto e mais forte estava agora a cerca de vinte metros. Deu um salto no ar para agarrar a bola ovóide e caiu de joelhos na areia. Levantou-se com certo esforço, com todo o corpo a arfar, e, nessa altura, Teresa pôde observá-lo perfeitamente. Usava o cabelo preto cortado curto e tinha uma cara larga, encarniçada pelo esforço, talhada de uma maneira que não se coadunava com os nativos da Califórnia. Vestia uma camisola de um cinzento muito desbotado, com a palavra «Rams saliente no seu peito de mamute. A camisola mal lhe chegava ao umbigo e, para baixo, exibia uns calções reduzidos que quase lhe expunham as partes pudendas, tão curtos que mais pareciam o saco seminal dos selvagens e podiam funcionar perfeitamente como a velha folha de parra. As coxas avultavam como dois troncos de árvore, com as massas musculares salientes, apoiadas nas colunas de umas pernas surpreendentemente finas.

Parando para retomar fôlego, o jovem levantou os olhos e viu Teresa a fixá-lo atentamente. Esboçou um sorriso. Enfadada, ela mergulhou no seu livro. Depois de guardar um intervalo suficiente, voltou a olhar dissimuladamente. O jovem bárbaro encaminhava-se agora na direcção dos companheiros, fazendo saltar a bola.

Resolvida a ignorar aquela intrusão momentânea dos seus domínios, Teresa, com um movimento depreciativo dos lábios, voltou a inclinar-se para os versos de Dowson. Releu cinco vezes a terceira estrofe, mas as palavras não faziam sentido, esf umavam--se. Podia detectar o ritmo dos movimentos sensuais e sadios e ouvir os gritos ocasionais e por mais que tentasse concentrar-se em Dowson o seu pensamento fugia para o Dr. Chapman.

Afinal quais seriam as perguntas que ele faria às mulheres? Que respostas esperaria ouvir? Quais os padrões de uma vida sexual satisfatória? Reflectiu que o cientista não devia saber o caso com exactidão. O Dr. Chapman devia apenas ter conhecimento do padrão quantitativo, mas não do qualificativo, do melhor e mais adequado. Quem poderia determinar o que era melhor, mais harmónico ou aprazível? Teresa, repentinamente, relacionava pela primeira vez o inquérito Chapman consigo, com a sua carne, com o seu próprio leito, e teve uma premonição do perigo, sentindo um frémito de apreensão.

De novo os seus olhos passearam pela praia. Os quatro homens continuavam com o seu jogo, correndo, lançando a bola de uns para os outros, placando-se. Poucos minutos lhe levou a observar que o mais alto e robusto, aquele que pouco antes lhe sorrira, era o mais hábil, muito mais destro do que os seus companheiros.

Num assomo repentino, ergueu-se. Não estivera no abrigo Constable mais de meia hora; habitualmente fazia permanências de uma hora ou mais, mas naquele momento tudo o que desejava era encontrar-se em casa, cercada pela segurança e salvaguarda da sua estatuária, dos seus quadros abstractos e dos seus livros antigos e raros, tanto quanto possível longe da transpiração, da agilidade e da força muscular. Queria sentir-se no conforto e santidade da arte civilizada, não da tosca habilidade do primitivismo.

Segurando o livro de versos de Dowson, agarrou o cobertor e dobrou-o sem se importar em sacudi-lo da areia, tomando a direcção do carreiro talhado no caminho rochoso, sem levantar os olhos da ondulante areia que os seus pés iam pisando.

Parou por momentos no sopé da garganta que levava ao cimo da rocha e voltou a contemplar os quatro bárbaros. O mais alto e mais forte estava imóvel, de mãos nos quadris, pernas bem afastadas, a observá-la ousadamente (talvez se considerasse como que a incarnação de Hércules ou Apolo) e, de repente, quase com insolência, levantou o braço num gesto de adeus. Teresa estremeceu, voltou-se e galgou o caminho apressadamente.

—        Claro que estou a compreender, Kathleen — disse Naomi

Shields, enquanto se afundava na água tépida que enchia a

banheira, vendo-se aflita para conseguir manter o auscultador de

modo a que se não molhasse —, mas repito que não estou nada

interessada. Não dou um chavo furado por qualquer Dr. Chapman,

e não estou disposta a fazer uma sessão de strip tease para agradar

a qualquer cientista barato.

Muito embora Naomi, ainda que com desnecessária rudeza, se fizesse eco dos seus sentimentos a respeito do caso, Kathleen, naquele momento, sentiu que devia uma certa lealdade ao cargo que tinha aceitado.

—        Você fala como se o Dr. Chapman fosse um charlatão.

—        Oh, claro que sei muito bem quem ele é. Li tudo o que publicaram a respeito dele... é uma espécie de Jesus Cristo, etc... e isso dá agora a possibilidade a todas as mulheres casadas de poderem cair de costas no feno, sem se sentirem culpadas, tantas vezes quantas desejarem, porque afinal é uma coisa que toda a gente faz.

—        Evidentemente que não se trata bem disso, Naomi.

Kathleen não conhecia Naomi tão bem quanto conhecia as

outras mulheres de The Briars. Encontrara-a várias vezes, por pura casualidade, nas raras visitas que Naomi fazia à Associação. Porém, esparsamente, ouvira contar algumas histórias a respeito dela e, mesmo descontando cinquenta por cento aos rumores, Naomi ficava ainda completamente desinibida no que se referia à sua conduta com o sexo forte. Uma vez que estava a tratar com alguém cuja descontracção sobre o assunto era manifesta, Kathleen tinha que proceder com uma excessiva cautela. Apesar de tudo, antes de a riscar da lista, decidiu dar a Naomi mais uma oportunidade.

—        Talvez certas de nós tenhamos... sintamos o mesmo que

você a respeito de pesquisas como esta, mas continuo a manter

que o currículo do Dr. Chapman o mantém acima de todas as

suspeitas e que as suas intenções são as melhores e mais bem-

-intencionadas. Sendo assim, bem sabemos que os resultados

poderão trazer algum bem...

—        Ajudará a curar as criancinhas estropiadas, obstará a que as mulheres envelheçam ou fará com que os maridos deixem de ser enganados?

—        Não, mas como a Grace diz...

—        Ah, esse velho frasco.

—        A verdade, Naomi, é que ela apenas está a tentar coordenar as coisas. Grace diz, e nós bem sabemos ser um facto comprovado, que a respeito do sexo existe demasiada ignorância. Será bem-vinda, normalizante e saudável qualquer coisa que possa iluminar um pouco o assunto. Quando éramos rapariguinhas, as crianças estavam completamente às escuras...

—        Deve falar apenas por si! Oiça, Katie, quando eu tinha doze anos... vivia connosco um tio, um velho tratante, um devasso de primeira apanha — o meu velhote era caixeiro-viajante, andava sempre por fora — e, um dia, esse filho da mãe do meu tio fez-me cair de costas e tirou-me as calcinhas... — parou de repente, enojada pela odiosa recordação. — Diabo, isto afinal nada tem a ver consigo. Desculpe, perdi as estribeiras. Acordei com uma dor de cabeça horrível. As têmporas latejavam. Os dois comprimidos que engolira pouco antes de o telefone ter tocado ainda não tinham produzido qualquer efeito.

—        Se não se sente bem...

—        É sempre a mesma coisa — atalhou Naomi. — Acabarei por me pôr fina. A verdade é que estou sempre de péssimo humor às dez horas da manhã.

Kathleen, veterana secreta do sofrimento, sentiu um impulso de pena e compreensão, e começou a esboçar uma retirada.

—        Naomi, afinal tudo isto é uma patetice. Não há nada que a obrigue a estar presente. O Dr. Chapman terá cobaias suficientes. Esqueça o meu telefonema.

—        Agradecida, Katie — disse Naomi, empertigando-se na banheira. — Mas não estou disposta a pôr o assunto de lado. Ainda não pedi a demissão de sócia da raça humana.

Ultimamente, cada vez com mais frequência, sabia que tinha que tomar uma posição contrária, argumentativa e pirrónica a aspeito do que quer que lhe fosse proposto em primeira mão, e quando as pessoas começavam a desistir de convencê-la tomava então a atitude diametralmente oposta.

—        Pensa que quero que esse professor se vá embora de The Briars com má impressão? Se ele só tiver para analisar tipos do quilate de Grace Watreton e Teresa Harnish, pensará que mantemos aqui uma espécie de culto do celibato voluntário. Tal coisa arruinaria a reputação da comunidade. Tenho um certo orgulho cívico. Creio bem que é melhor contar com a velha Naomi; será uma maneira de equilibrar a balança.

—        Tem a certeza de que...

—        Querida, sou absolutamente positiva. Perdi Havelock Ellis e Kraft-Ebing por ainda não ter idade suficiente, mas por nada deste mundo vou deixar escapar o Chapman. Seja como for, pode contar comigo.

Após ter desligado, Naomi sentiu que a dor de cabeça que a afligira quase se desvanecera, restando porém, ainda, um certo resíduo indefinível de depressão. Apaticamente, esfregou o corpo com a esponja, procedendo ao seu banho. Quando acabou, abriu a válvula e, enquanto a água ia baixando de nível, a gorgolejar pelo ralo, saiu da banheira.

Agarrando numa toalha, começou a esfregar-se vigorosamente em frente do grande espelho que a reflectia de corpo inteiro. Com uma espécie de fascinação objectiva, começou a observar minuciosamente a sua figura baixa mas perfeita. Havia gozado e sofrido muito com aquele corpo, ofertara-o num misto de amor, de ódio, de intolerável narcisismo. Tendo-se divorciado de toda a lógica, muito mais facilmente que, três anos antes, se divorciara do marido, lançava as culpas ao corpo por haver contribuído tão altamente para a sua delinquência e para o rumo errado que seguira na vida. Sabia que era uma mulher muito atraente, sempre o fora, não se lembrava de alguma vez não o ter sido. Agora, com os seus trinta e um anos, o ousado corte do cabelo preto, os escuros olhos cor-de-amora, o nariz pequeno e reluzente e a boca de lábios carnudos, era uma promessa de prazeres estranhos e plenos de erotismo. O seu corpo, com pouco menos de um metro e sessenta de altura, parecia ter sido esculpido em marfim por um mestre artesão. As feições, os membros, todas as partes do seu corpo tinham as devidas proporções, as necessárias redondezas, os exactos torneamentos, abrindo-se apenas uma excepção para os abundantes seios de prodigiosos mamilos castanhos que reduziam os homens a escravos e conferiam a Naomi um sentimento de superioridade física, mais habitual nas jovens ainda virgens.

Pondo de lado a toalha, polvilhou a pele de talco e espalhou--o com a mão numa suave carícia. Depois desarrolhou um frasco de perfume e pôs um pouco do aromático líquido atrás das orelhas e no profundo vale cavado entre as montanhas dos seios.

Dirigiu-se nua para o quarto de vestir, ligado ao quarto de cama e, tirando um penteador transparente do cabide que o suportava, vestiu-o e entrou no quarto de dormir. Observou aquilo a que costumava chamar, conforme lhe dava na gana, o seu mausoléu ou o seu purgatório. A metade superior da cama era um autêntico caos — como se por ali houvesse passado um tornado —, a colcha, cor-de-rosa-pálido, formava um enorme monte e a mesinha-de-cabeceira fornecia uma certa explicação do caso: o cinzeiro transbordava de pontas, o frasco de comprimidos verdes estava destapado, a garrafa de gim apresentava-se quase vazia e no alto e esguio copo flutuava uma enrugada casca de limão num fundo de líquido. O aposento, com as janelas fechadas — Naomi tinha um medo irracional dos ladrões —, tresandava a uma mistura de tabaco e álcool. Que quantidade consumira na noite anterior? Talvez um terço do conteúdo da garrafa, talvez mais, não conseguia recordar-se. Lembrava-se apenas que os dois comprimidos — ou teriam sido três? — não lhe haviam trazido o ansiado esquecimento, e por isso, contrariamente à decisão que tomara, começara a emborcar um copo, depois outro e nunca mais parara. Tinha dormido como uma morta, mas os cobertores enrodilhados e o travesseiro comprimido contra a cabeceira da cama mostravam-lhe que, todavia, o dormir continuara ainda a ser sonhar.

Abriu apressadamente uma das janelas para arejar o quarto e, como o banho a despertara e limpara da sujidade, fugiu daquele ar viciado e repugnante. À medida que ia atravessando o pequeno hall, a sala de visitas, a de jantar até à porta da cozinha, tentava idealizar um plano para ocupar o longo dia que se aproximava. Ao colocar a cafeteira em cima da boca do fogão e enquanto tirava do armário, com mão tremente, uma chávena e um pires, pensou que devia ir visitar os velhotes a Burbank. Não os via há já algumas semanas. Porém, passar um dia com aquele casal tão pouco encantador e agressivo — um pai senil e suplicante e uma madrasta de cuja boca jorravam os lugares-comuns em berros incómodos e estridentes — era mais do que podia aguentar mesmo com boa vontade. Poderia telefonar à encantadora pequena que morava no fim do quarteirão, Mary Ewing McManus, e irem as duas fazer compras; mas receava a volubilidade e energia da jovem, e no fundo sabia muito bem que a presença de Mary a fazia sentir-se pouco limpa. Poderia ir de carro até Beverly Hills e conversar um pouco com uma das funcionárias da biblioteca — apesar de ter ainda três livros emprestados por ler que já devia ter entregue — e ir, seguidamente, comprar uma camisola e uma saia. Por negligência e inércia, ainda tinha por depositar alguns cheques da pensão alimentar. Beverly Hills parecia-lhe porém estar situada a um milhão de quilómetros de distância, e Naomi não sentia a mínima disposição para andar por aquelas ruas pejadas de mulheres exuberantemente ruidosas, muito ocupadas e vestidas em excesso.

Passeando de um para outro lado, enquanto esperava que o café estivesse quente, experimentou a sensação inquietante de estar suspensa entre o céu e a terra, desenraizada. O vaporoso penteador abrira-se, expondo-lhe parcialmente o bem modelado corpo. Mais confusa do que nunca pelas ideias que lhe acudiam, apertou distraidamente o penteador. Desconhecia o que devia fazer, mas sabia muito bem o que íhe deveria ser interdito. Não devia beber, mas o pensar na bebida desvendou-se-lhe imediatamente como uma poderosa ajuda contra a solidão. Transigira mais uma vez até ser capaz de tomar uma decisão irrevogável. Apressadamente, dirigiu-se ao armário, abriu-o, e examinou a fila de garrafas há pouco tempo adquiridas. Havia entre elas uma garrafa de gim ainda intacta, mas rejeitou-a mentalmente, ainda enjoada pelo cheiro pestilento do quarto. Então, agarrou numa garrafa de conhaque, tirou um copo da prateleira superior e dirigiu-se para a sala de jantar. Assim que lá chegou, sentou-se no sofá, encheu o copo com o líquido aloirado e, aproximando-o do nariz, inalou profundamente aquele aroma forte e viril. Fechou os olhos e bebeu de um trago.

Chegou-lhe aos ouvidos o chiar da cafeteira. Voltou a encher o copo e a esvaziá-lo apressadamente e encaminhou-se para a cozinha. O café parecia-lhe agora uma coisa supérflua e injustificada.

Queimava-lhe a garganta o sabor acre do conhaque francês e começava a invadi-la um doce calor que lhe esbraseava o rosto. Pensou no jovem gerente do supermercado de Village Green, um homem louro, simpático, sempre muito amável. Talvez ele quisesse ser uma pessoa decente. Talvez ela devesse encorajá-lo. Poderiam ir nessa noite ao cinema. Era possível que isso fosse o início de algo agradável que, finalmente, viesse trazer um sentido à sua vida. Por que carga de água se portara tão estupidamente naquela universidade? Como é que consentira que aquele estudante, ainda um garotelho, a levasse para o relvado das traseiras? Ou fora ela quem conduzira o jovem para lá? Era difícil lembrar-se dos pormenores. De qualquer forma fora uma coisa horrível. Nessa altura, ela era mais nova uns anitos e o estudante estava próximo da formatura, já não era positivamente um menino. Ele... Ele quem?... Ele (referia--se ao marido) dissera que ficaria no laboratório até às dez horas. Ou teria sido até às nove? Oh, como era difícil recordar-se dos pormenores.

Baixou os olhos embaciados para o copo que conservava na mão. Estava vazio. Parecia-lhe que o tinha enchido. Talvez tivesse entornado a bebida. Olhou para o chão de azulejos. Nem o mínimo indicio. Lançou a mão à garrafa e voltou a encher. Desta vez estava resolvida a beber lentamente e depois iria ao drugstore. O homem comportava-se sempre com muita simpatia, parecia que gostava realmente dela. Era possível que fosse tímido em demasia para lhe propor um encontro. Era positivamente tímido. Ah, de que maneira o vira corar quando, na semana anterior, lhe pedira uma caixa de pensos higiénicos! Que coisa tão engraçada! Quando ainda uma jovem liceal, era com acanhamento que pedia os seus pensos, como se o facto constituísse um verdadeiro crime, uma obscenidade das piores. Mais tarde, já com vinte anos, costumava pedi-los com desenvoltura mas o mais rapidamente possível. Agora, entrada na casa dos trinta, fazia a encomenda em voz alta e arrastada, como se sentisse orgulho em mostrar que era uma mulher em plena maturidade física.

Pareceu-lhe ouvir retinir a campainha da porta. Como sentia uma zoada nos ouvidos, escutou melhor para se certificar. Não havia dúvida de ser a campainha. Levantou-se — quando é que se sentara? — e, com passo cuidadoso e estudado, atravessou o varandim, libertou a corrente da porta de serviço e espreitou.

—        Bom dia, minha senhora.

O homem estava parado, com um dos membros um pouco descaído, porque transportava sobre ele uma enorme garrafa de água esterilizada que constituía a carga semanal. Como ele tinha a cara inclinada, Naomi inclinou também a sua para o examinar. Tinha uma farta cabeleira castanha, olhos pequenos, nariz comprido, lábios muito carnudos. Tudo excessivo nas suas feições. Mas sorria-lhe. Era amável. Talvez gostasse dela. E era alto e bem desenvolvido.

—        Mais um lindo dia para nós — disse o homem à guisa de

cumprimento.

Naomi abriu a porta e o homem, atravessando o varandim, entrou na cozinha e poisou a garrafa no chão.

—        É novo no serviço? — perguntou Naomi com voz pastosa.

—        É verdade, minha senhora.

Limpou rapidamente a garrafa com um pano que trazia no bolso do fato-macaco, foi tirar a garrafa vazia e, aparentemente sem esforço, colocou a nova carga no tanque de pressão, ajustando-a. Ficou a observar com certa satisfação ao ver a água borbulhar no tanque.

—        Pronto, está fornecida para mais duas semanas — disse o homem, voltando-se.

—        Excelente serviço — retorquiu Naomi, gentilmente.

Viu que ele a olhava à socapa e lembrou-se que por baixo do transparente penteador não tinha soutien nem calcinhas. O tecido, porém, era de pano duplo, o que obstava a uma visão nítida. Porque é que ele a fixava daquela maneira? Talvez se interessasse por ela. Devia ser um bom rapaz.

—        Bom... — começou o homem.

—        Quer que lhe pague, não é?

—        Quero sim, minha senhora.

—        Muito bem, venha comigo.

Naomi encaminhou-se para a sala de jantar, sentindo-lhe os passos atrás.

—        Quer que espere aqui, minha senhora?

—        Chame-me Naomi, é o meu nome — disse ela aborrecida com tanta formalidade.

—        Mas...

—        Venha comigo. Tenho a bolsa lá dentro.

Naomi tentou caminhar sem vacilações, atenta aos passos dele. Atravessaram a sala de jantar, a saleta de visitas, o pequeno hall e entraram no quarto de cama.

Naomi fitou-o. O distribuidor da água estava parado junto à porta, mas da parte de dentro do quarto, e parecia não saber o que havia de fazer às mãos. Na verdade era um mocetão muito alto. Sorria. Naomi retribuiu-lhe o sorriso, tirou a bolsa da mesinha--de-cabeceira e estendeu-lha.

—        Aqui está o dinheiro, tire-o.

—        Mas...

—        Tire-o.

O homem aproximou-se numa atitude tensa, pegou na bolsa que Naomi lhe estendia e meteu a mão no interior, encontrando somente uma nota de cinco dólares.

—        Vou fazer o troco.

Naomi atirou a bolsa vazia para cima da cama e sentou-se à beirinha. Observava-o atentamente enquanto ele fazia o troco.

—        Simpatizo consigo. Como é que se chama? — disse Naomi,

cruzando as pernas.

O homem levantou os olhos das notas que tinha na mão. O penteador tinha-se aberto nas pernas e as coxas de Naomi estavam à mostra.

—        Johnny — disse ele muito corado, estendendo-lhe o troco. Naomi estendeu a sua mão simultaneamente e agarrou a dele.

—        Venha cá — disse ela. — Não é isso o que eu quero... Puxou-o para ela ao mesmo tempo que se levantava.

O penteador abriu-se mais e Naomi viu a maçã-de-adão do distribuidor mover-se para baixo e para cima e compreendeu que ele vira os grandes mamilos castanhos. Aquele dia ainda podia vir a ser uma coisa magnífica.

—        Venha cá — disse-lhe com um sorriso alvar.

O homem ofegava.

—        Não me é permitido, minha senhora... O caso poderia criar Problemas...

—        Não seja estúpido.

Naomi encurtou a distância que os separava, lançando-lhe os braços em torno do pescoço.

—        Vamos, beije-me.

O homem procurou afastá-la, mas em vez de lhe colocar as mãos nos ombros pousou-as nos enormes e túrgidos seios. Retirou as mãos repentinamente como se as tivesse colocado cm cima de brasas.

—        Sou casado — disse ele arquejante. — Tenho filhos pequenos...

—        Beije-me, ame-me.

—        Não posso...

Com frenesi, afastou os braços de Naomi dos ombros e, virando-se, saiu do quarto quase a correr, em passadas grotescas.

Naomi ficou imóvel, rígida, estupidificada, ouvindo os passos que se afastavam a calcorrear no lajedo da cozinha. Logo a seguir a porta de serviço bateu com violência.

Naomi não se mexeu. Pensou que agora o empregado iria contar o caso aos seus colegas. Porco safado. Talvez fosse castrado. Que poderia ele saber do amor? Mirou os tumefactos seios. O estado de semiembriaguez dissipara-se. Sentia vir-lhe à boca o acre gosto do conhaque e, além disso, experimentava repugnância por tudo.

Aguentara-se durante três semanas e por pouco que agora... Mas porquê? O que é que havia de errado nela? Atirou-se para cima da cama, sentando-se com as pernas dobradas debaixo do corpo, sentiu as ardentes lágrimas que lhe deslizavam pelas faces. Depois foi sacudida por violentos soluços. A náusea acentuou-se e sentiu vontade de vomitar. Levantou-se e, a cambalear, tacteando como uma cega, dirigiu-se para a casa de banho. Muito tempo depois, pálida e trémula, voltou para a cozinha. Tornou a acender uma das bocas do fogão e, enquanto aguardava que o café aquecesse, encaminhou-se para a janela, olhando para fora. O ulmeiro chinês estava em plena floração, e os passarinhos, espalhados pelos seus densos e acolhedores ramos, chilreavam cheios de alegria. Algures, ao longe, um cão ladrava; ouviam-se vozes de crianças que brincavam. O dia prometia ser cálido. Naomi interrogou-se sobre como iria preencher aquelas horas de ócio.

Mais uma vez sentada à mesa da cozinha, Kathleen Ballard examinou a lista que tinha diante de si. Depois do telefonema a Naomi Shields, concedera-se uns minutos de repouso e fumara um cigarro. Reviu, retrospectivamente, as mulheres a quem já falara: Úrsula. Sarah, Mary, Teresa, Naomi. Quase uma hora tinha--se escoado com aquelas chamadas, e agora já conhecia o comunicado de cor e salteado. Restavam ainda sete pessoas para completar a sua lista. Pensou que talvez tivesse sido preferível imprimir uma carta-circular e enviar uma cópia a cada uma das sócias, mas compreendeu de imediato que seria uma coisa muito menos eficiente. Tinha a certeza de que Sarah Goldsmith e Naomi Shields não teriam feito caso de convites impressos. E quantas mais como elas? A conversa directa tinha o aliciante do convencimento. No entanto havia naquilo uma verdadeira ironia, uma armadilhazinha do destino: fora ela, Kathleen, a mais alérgica e menos convencida dos efeitos terapêuticos, quem «passara» às outras o Dr. Chapman e a sua equipa de voyeurs. Seguramente que não havia nenhuma entre elas que assistisse à conferência ou que consentisse em ser examinada com mais desagrado.

Voltou os olhos para o telefone. Fosse como fosse, o dever era imperativo. Relendo os nomes que faltavam, estendeu a mão para o aparelho. Repentinamente, antes que tivesse tido tempo de levantar o auscultador do descanso, a campainha do telefone começou a retinir. Perturbada, retirou instintivamente a mão. Por fim, os toques insistentes e prolongados levaram-na a atender.

—        Está lá?

—        Katie? Querida, é o Ted...

Kathleen não tinha a certeza se se sentia contente ou descontente.

—        Olá, Ted. Como estás? Quando é que regressaste?

—        Há cinco minutos, se tanto. Continuo ainda em serviço. Senti desejos de ouvir a tua voz antes de entrar em. contacto com Metzgar.

—        Então como é que as coisas correram?

—        O sítio onde estive, no Norte de África, pareceu-me a base ^arswell do Texas.

—        Nem sequer chegaste a encontrar-te com Livingstone ou

com um mau-mau?

—        Tudo o que vi foi o mapa de operações. E tu, como é que passaste? Sentiste a minha falta?

—        Claro...

Em boa verdade, não sentira nada a falta dele. Pelo contrário, ficara bastante aliviada quando Ted, duas semanas antes, lhe anunciara que tinha que representar Radcone num voo experimental na África, teste apadrinhado pelo Comando Aéreo Estratégico. Depois da morte de Boyton, ocorrida dezasseis meses antes, Ted Dyson passara a ser uma visita assídua da sua casa e tornara-se um amigo. Ted conhecera Boy — como ele e a maioria dos americanos gostavam de chamar a Boyton — muitos anos antes de Kathleen o ter conhecido. Boyton e Ted tinham sido companheiros de armas, tinham flirtado com os «Mig» por cima do Yalu, durante a Guerra da Coreia. Logo a seguir, Ted ingressara como piloto de ensaios na Radcone Aircraft, em Van Nuys, companhia que pertencia ao magnate J. R. Metzgar. Mais tarde, após uma extraordinária publicidade feita à volta do seu nome, Boyton Ballard ingressara também na companhia. Ted reivindicava sempre com orgulho a quota-parte do êxito em ter trazido Boyton para a Radcone.

Depois de Kathleen se ter consorciado com o herói, Ted Dyson passou a ser considerado o amigo solteirão número um do casal — excelente para fazer companhia, para prestar serviços de fórmula social, principalmente quando havia qualquer visita feminina de Nova Iorque, e levar Kathleen a qualquer espectáculo quando Ballard estava ausente. Naturalmente, com a morte de Boyton, Ted transformou-se no elemento condutor do luto oficial da família, no «pranteador» mais qualificado. Todo o país, Metzgar e o próprio presidente na Casa Branca, haviam chorado a morte de Boyton, mas Ted excedera toda a gente no desgosto. Depois do funeral, a princípio, talvez por respeito pela dor de Kathleen, começara a aparecer a intervalos irregulares, mas mentalizando--a para o facto de não se encontrar muito afastado; bastava que ela o chamasse para que ele acorresse rapidamente. Depois, as suas visitas tinham-se tornado mais insistentes e, a partir de certa altura, a sua atitude para com Kathleen sofrera uma modificação radical. Fora o amigo dilecto do herói e tomou-se no herdeiro do seu ceptro. Promovido à posição de primeiro-piloto de ensaio, começaram a ser-lhe dispensadas parte das atenções gerais que antes pertenciam a Boyton e, muito em breve, Kathleen veio a compreender que Ted Dyson se julgava o único homem à face da terra capaz de possuir e satisfazer plenamente a viúva de Boyton Ballard. Era o sucessor do herói e como tal se começou a comportar. A sua imposta presença exercia-se com mais regularidade e a sua familiaridade tornou-se potencialmente mais agressiva. Como alguém que já se sente em terreno conquistado e sem hipótese de contestação, no último encontro com Kathleen, pouco antes de partir para o continente africano, talvez devido à euforia de uns copitos a mais, beijara-a à porta da residência e tivera a coragem suficiente para lhe acariciar os seios. Kathleen metera-o na ordem com rispidez, furtando-se às suas carícias que prometiam tornar-se mais audaciosas ainda e, como por acordo tácito, ambos tinham resolvido atribuir o incidente ao excesso de álcool. E eis que Ted regressara...

—        ...julgo que as coisas vão decorrer desta forma — dizia Ted.

Kathleen, ensimesmada nos pensamentos, não havia escutado uma só palavra do discurso dele.

—        Muito bem, Ted, excelente...

—        Bom, seja como for, agora não me vou afastar daqui; além disso tenho muitas coisas para te contar. Quando poderemos encontrar-nos?

—        Bem, eu... não sei. Tenho estado tão ocupada...

—        A partir deste momento ainda vais ficar mais ocupada.

Antes que tivesse tido tempo em pensar no que lhe

responderia, Kathleen ouviu o ruído dos pneus de um carro a chiarem na brita solta do caminho privativo. Perturbada, disse para o bocal:

—        Um momento, Ted. Vem alguém em direcção da casa. Volto já.

Encaminhou-se para a janela com rapidez e olhou para o exterior. Uma station em muito mau estado de conservação rodava Pela vereda circular. O carro era-lhe vagamente familiar e, quando parou, reconheceu o condutor sentado por trás dos sujos vidros do Para-brisas.

A memória funcionou automaticamente. Na noite anterior, pouco antes da visita de Grace Waterton, James Scoville tinha-lhe telefonado. Esquecera-se imediatamente que, na presença e na confusão do momento, anuíra em recebê-lo, marcando o encontro para de manhã. Scoville dissera-lhe que a empataria pouco, queria somente esclarecer uns quantos pontos duvidosos do quarto capítulo.

Kathleen voltou ao telefone.

—        Ted, sinto muito, mas tenho que desligar. Vem aí James Scoville. Prometi que o ajudava esta manhã.

—        Então o livro ainda não está terminado?

—        É uma coisa que leva o seu tempo.

—        Muito bem. E quanto ao nosso encontro?

Compreendia que não se podia recusar. Três semanas antes

não havia qualquer constrangimento; Ted, antes disso, era até frequentemente recebido com alegria. Sempre era uma companhia, alguém com quem podia falar, servia-lhe de pretexto para ir mais vezes ao cinema. Mas depois da lamentável despedida daquela ncite, as relações entre ambos quase se tinham tornado impossíveis. Só havia uma desculpa: afinal ele estava embriagado.

—        Bom, então na quarta-feira. Vem jantar comigo e com Deirdre. Depois podemos ir ao teatro.

—        Óptimo, Katie. Fica combinado. Até quarta-feira.

Ouviu o discreto bater de Scoville. Após ter lançado um último olhar perturbado para a lista traçada por Grace Waterton, Kathleen apressou-se a ir abrir a porta ao escritor.

—        Como está, Jim? Sabe, esqueci-me de lhe telefonar esta manhã a anular a entrevista. O facto é que hoje estou imensamente ocupada.

—        Não me demoro mais que um minuto — respondeu o escritor, desculpando-se.

—        Se é assim...

—        É. Terminei o quarto capítulo, mas resta-me ainda fazer um cotejo das datas e esclarecer algumas discrepâncias.

—        Estou pronta — Kathleen fez um gesto de perfeito assentimento. — Vamos sentar-nos. Precisa de papel?

—        Não, muito obrigado. Tenho tudo o que é necessário.

Sentaram-se em frente da mesinha de chá. Kathleen instalou-

-se no sofá e Scoville sentou-se à beirinha da cadeira estofada, cor de turquesa, tirando um bloco de papel do bolso do amplo casaco de sport. Depois a sua mão mergulhou nas profundezas do bolso interior para de lá extrair uma esferográfica.

—        Como é que vai a obra?

—        Creio que a posso terminar dentro de dois meses.

—        É rapidíssimo.

—        Na verdade. Confesso que o meu entusiasmo não tem limites. Tenho-me entregado ao livro de alma e coração. Calcule que ontem foi preciso a Sónia obrigar-me a ir para a cama à meia-

-noite.

Kathleen sentia uma certa afeição por James Scoville. Era um homem muito tímido, muito reservado. O seu modo de esticar o pescoço como uma tartaruga tornava um pouco difícil o cálculo exacto da sua altura, que devia andar pelo seu 1,90 m. Tinha o cabelo loiro-branco, um cabelo baço, deslavado; a sua cara era sardenta, rosada como a de um albino, mas era um rosto suave, tranquilizante, bondoso. Olhando-se para o seu vestuário dava a ideia de que dormia com o fato.

James Scoville fora encarregado por Metzgar, o dono da Radcone Aircraft, de escrever a biografia de Boyton Ballard.

Metzgar era um homem riquíssimo, importante, mas, como todos os homens sedentários cuja carreira fora traçada por detrás de uma secretária comandando o mundo exterior através do fio de um aparelho telefónico ou de um ditafone, venerava os chamados homens de acção. Muito embora tivesse contratado Boyton para a sua companhia e, virtualmente, fosse o seu patrão, sabia muito bem que Boyton não era um empregado no sentido literal do termo, não trabalhava para si nem para ninguém. Boyton era um desses seres independentes que não guardam respeito seja ao que for e a quem for, a não ser, talvez, às vias de condução a Deus; mas, fosse como fosse, vias directas, sem intermediários. Estas circunstâncias, bem como a intrepidez que alardeava (nalguns homens provocada pelo medo íntimo, mas em Boyton originada pela insensibilidade e por um estranho senso egotista do divino e por se julgar demasiado necessário para que a morte o ousasse tocar), tinham-no tornado um verdadeiro ídolo aos olhos de Metzgar.

Quando, durante um voo experimental, o jacto de Boyton se despenhara em chamas, desintegrando-se positivamente no deserto, nas proximidades de Victorville, Metzgar (e não apenas ele) recusara aceitar o implícito facto de que o seu herói era um mortal comum. A fim de manter o seu ídolo bem vivo e eternamente conservado na memória do mundo, Metzgar acabara por conceber a célebre biografia. Prometera a um bem conhecido editor de Manhattan uma aquisição garantida de cinco mil exemplares (para serem distribuídos pelos seus clientes e pelo pessoal da Força Aérea) e, assim, tornara o livro uma realidade gritante. A tarefa seguinte a que Metzgar se devotou foi a procura de um escritor à altura da homérica tarefa. Não pretendia alguém que fosse um jongleur da palavra, alguém que tentasse introduzir a sua própria personalidade naquele testemunho de grandeza humana, de heroísmo puro; queria uma pessoa maleável, uma espécie de linha de montagem da literatura que se limitasse a agarrar no produto em bruto, o trabalhasse de acordo com os planos previamente traçados, em cremalheiras perfeitamente calibradas, que o embalasse dentro das melhores tradições de acondicionamento, lançando o produto acabado ao público sem qualquer margem para reparos.

Ao pensar nos escritores a quem pagava para os utilizar nos seus trabalhos, Metzgar lembrou-se de James Scoville. Recordou--se que Scoville escrevera alguns artigos interessantes sobre a Radcone, e analisando o trabalho do escritor e desprezando a sua personalidade, compreendeu que era ele o homem necessário para escrever a biografia do herói. Assim, Metzgar passara a palavra ao escritor, localizado na sua casa de praia em Venice (certo dia, Kathleen, de passagem, fora entregar algumas cartas de Boyton e entrara na pequena e frágil residência, achando-a lastimavel-mente mal mobilada e sentindo-se pouco à vontade diante da mulher de Scoville, uma senhora magríssima, com a aparência e o vestuário de uma cigana ledora de sinas) e oferecera-lhe o contrato. Scoville receberia três mil dólares do editor e a mesma quantia da Radcone.

Deslumbrado pela perspectiva de ganhar uma soma que nunca recebera até então pelos seus serviços de escritor, Scoville ouvira atentamente as instruções de Metzgar e preparara-se para escrever segundo os desejos do magnate e segundo as suas ideias pré-fabricadas. Depois de aplainados os preliminares, restava somente a formalidade da colaboração de Kathleen. Tudo nela resistira àquela panelinha, mas acabou por compreender que Metzgar —         e os da sua igualha — acabaria, fosse como fosse, por elevar o seu falso monumento. Durante duas semanas, à noite, com o auxílio de um gravador, as cartas fornecidas por Kathleen e os recortes dos jornais e revistas, Scoville delineara a história. Agora estava a escrever furiosamente e, se tudo corresse bem, como esperava, poderia mudar-se com a mulher para uma casinha mais confortável no vale de S. Fernando.

Kathleen acabara por gostar de Scoville. Talvez por todo um conjunto de circunstâncias que também o tornavam uma vítima do mito criado por Metzgar ou porque, apesar de tudo, o homem possuía uma certa fibra.

—        E possível que da próxima vez possamos trabalhar durante mais tempo — disse Kathleen, pesarosa. As associadas do meu clube feminino vão ser entrevistadas pelo Dr. George Chapman, e eu estou encarregada de contactar com elas e informá-las sobre o assunto.

Scoville levantou os olhos do papel; no rosto revelava-se-lhe um certo sentimento de pânico.

—        Chapman? Quer dizer que ele também a vai entrevistar?

—        Pois com certeza. De resto todas nós seremos entrevistadas — respondeu Kathleen ligeiramente surpreendida pelo tom da pergunta.

—        Penso que não devia prestar-se a um tal exame.

—        Mas porquê? — Kathleen sentiu-se invadida pela perturbação.

—        Ora... não está certo. Afinal a senhora não é uma pessoa qualquer. Bem... o facto é que foi casada com Boyton Ballard. Não é... não seria normal e decente contar a um estranho a sua vida íntima com ele.

O ele foi pronunciado com autêntica veneração.

Kathleen observou atentamente Scoville e compreendeu que também aquele homenzinho, tal como Metzgar e como a multidão anónima, sentia uma profunda necessidade de acreditar em Alguém. Tecer um mito que o prendesse a algo fora do ramerrão comum. A autenticidade dos heróis é uma coisa rara, em geral os heróis verdadeiros ousam ser pessoas longevas. Um escritor alemão (talvez Goethe) dissera um dia: «Todo o herói, com o correr do tempo, acaba finalmente por se transformar num maçador, numa coisa incomodativa.» E tais palavras retratavam a verdade. Mas um herói morto no auge da sua carreira tem a imortalidade garantida. Kathleen, de certo modo, por ter sido uma propriedade do ídolo, devia ser preservada para o culto, devia ser santificada, queimada com ele na mesma pira, enterrada com ele no mesmo túmulo. Quer quisesse quer não devia continuar a manter bem acesa a chama da pureza e da virtude intocáveis — duas qualidades que não faziam parte da estrutura dos simples mortais. Compreendia pois o pesar de Scoville. Se fosse revelar a um estranho os hábito animais do herói, os íntimos pormenores da fornicação em que havia participado, seria como que a profanação de uma memória que devia manter-se sagrada, e a verdade é que, em semelhante aspecto, Boyton fora um homem demasiado comum, movido por necessidades básicas e devotado às fraquezas da carne.

Olhando de viés, viu Scoville de cabeça curvada para a folha de apontamentos, que ainda estava vazia. Kathleen perguntou aos seus botões qual seria a reacção do escritor se pudesse saber, mesmo vagamente, o que ela pensava sobre o caso. A sua mente deteve--se bruscamente naquele cinzento fim de tarde, dezasseis meses antes, em que o homem morrera dando nascimento ao herói.

Evidentemente que tinha chorado e sentira uma certa mágoa. Mas se houvesse uma balança que pudesse pesar toda a emoção da sua mágoa e do seu luto, a dor colocada num dos pratos não acusaria mais peso de que a sentida pela morte de um longínquo e desconhecido húngaro varrido pela metralha numa rua de Budapeste durante a sublevação contra os Russos, pela morte de um peruano vitima de um acidente ferroviário nos Andes ou, ainda, pela dor sentida com a morte de uma criança cujo corpo fora encontrado no fundo de uma piscina de Bel-Air.

Sentira apenas dor perante o malogro da condição humana, pela injustiça que a morte representava, sobretudo na faceta de cortar cerce a glória depois de a ter amplamente oferecido. A dor sentida fora simplesmente essa. Nada de mais profundo que isso. Porém, quanto ao homem, ao homem essência individual, ao homem que lhe dera uma filha, as lágrimas que chorara tinham sido de alívio, não de amor. Quem é que poderia compreender semelhante coisa?

— Talvez tenha razão naquilo que diz — volveu por fim Kathleen a Scoville. — Ora... então o que é que queria saber?

 

Quando o comboio entrou naquela curva fechada, eles procuraram equilibrar-se contra o súbito balancear da carruagem; depois, quando o movimento voltou a estabilizar-se e o comboio de novo ganhou velocidade através da recta, com as rodas de ferro a ritmarem o seu ruído pelos carris polidos, descontraíram-se da tensão provocada.

Estavam a cotejar os resultados de uma semana de entrevistas em East St. Louis. Naquele momento aproximavam-se do termo do intervalo de cinco minutos que se tinham proporcionado, fumando distraídos ou fazendo umas quantas observações esporádicas e inconsequentes.

Paul Radford ouviu um silvo proveniente da boquilha do seu cachimbo ao aspirar o fumo e compreendeu que todo o tabaco se tinha transformado em cinzas. Cuidadosamente começou a escarafunchar o fornilho, ao mesmo tempo que perguntava:

—        Pensa que o nosso trabalho em Los Angeles seguirá um curso normal?

Do outro lado, o Dr. George Chapman levantou os olhos do maço de papéis:

—        Não posso ter uma certeza absoluta sobre o assunto. É provável que as coisas decorram dentro da normalidade habitual. Recebemos um telegrama daquela mulher... a Sr.â... Waterton... presidente da... da... — fazia esforço para se recordar.

—        ... Associação Feminina de The Briars — completou o Dr. Horace Van Duesen.

O Dr. Chapman fez um gesto de assentimento.

—        Sim, é isso mesmo. Ela promete-nos uma colaboração cem por cento eficaz.

—        Colaboração que, apesar das promessas, nunca nos é prestada na íntegra — replicou amargamente Cass Miller.

O Dr. Chapman franziu a testa.

—        É possível. Mas digamos que poderemos contar com uma colaboração eficaz em setenta por cento. Julgo que temos andado à roda dessa média. Será mais que suficiente. Poderemos cancelar o trabalho de opção em S. Francisco. Também poderíamos dar as entrevistas por terminadas e passar à parte da análise escrita dos resultados. Creio que vocês ficariam contentes com isso — concluiu com um sorriso forçado.

Ninguém deu resposta. Paul Radford ocupava-se em limpar o fornilho do seu cachimbo; Horace van Duesen olhava as lentes dos seus óculos, contra a luz; Cass Miller manteve os olhos fitos no chão, com as mandíbulas a trabalharem furiosamente a pastilha elástica.

O Dr. Chapman suspirou.

—        Bem, muito bem, parece-me que é melhor voltarmos aos apontamentos — passava a mão nervosamente pela juba de cabelos brancos.

Por momentos os seus olhos mantiveram-se a perscrutar os três homens que, juntamente com ele, viajavam naquela carruagem-cama cujo odor, agora familiar, era uma mistura de tinta e metais. Podia muito bem ver o aborrecimento, o cansaço, a desatenção nos seus rostos, mas, com determinação, ignorou aqueles sinais e, mais uma vez, inclinou a cabeça com os olhos quase a tocarem as páginas dactilografadas que tinha na mão. Era difícil ver os números bem à luz baça e amarelenta do comboio.

—        Temos agora as pesquisas de East St. Louis incorporadas ao nosso trabalho, o que significa, segundo os dados que tenho aqui, entrevistas com 3107 mulheres — levantou os olhos para Paul, como era hábito fazer. — Certo?

—        Certo — respondeu Paul, consultando as páginas que tinha nas mãos. À direita de Paul, Cass e Horace olharam igualmente Para os papéis que tinham nos joelhos e, com ar fatigado, fizeram 9estos de concordância.

Muito bem. Temos que cotejar estes números cuidadosamente; assim pouparemos muito trabalho logo que chegarmos a Reardon para rematar a obra.

Mudou ligeiramente de posição, aproximou mais o monte de páginas dos olhos e, audivelmente, num tom monótono, em voz completamente isenta de qualquer emoção ou crítica, começou a ler:

—        Pergunta: «Sente algum desejo sexual ao ver exposto o

órgão genital masculino?» Resposta: Catorze por cento revelaram sentir um intenso desejo sexual; trinta e nove por cento apenas um leve desejo, seis por cento declararam que dependia do físico do homem e quarenta e um por cento disseram não sentir qualquer desejo.

Chapman levantou a cabeça; tinha um ar satisfeito.

—        É bastante significativo, especialmente se nos recordarmos das percentagens fornecidas pelos celibatários do inquérito anterior, em relação à nudez das mulheres. Paul, escreva um apontamento relacionado com este tópico. Quero mencionar a analogia quando redigir o relatório final.

Paul fez um gesto afirmativo com a cabeça e escreveu qualquer coisa à margem do papel, muito embora, nesse último mês, já lhe tivesse sido solicitado por duas vezes o mesmo apontamento. Perguntou a si mesmo se o Dr. Chapman não estaria tão fatigado como ele, como Horace e Cass Miller. Na verdade o velho professor não costumava olvidar o mais pequeno pormenor nem era seu hábito repetir as coisas. Era inevitável que aqueles catorze meses de viagens quase ininterruptas de um para outro lado, de entrevistas, sondagens, gravações, conferências e análises de apontamentos começassem a fazer sentir os seus efeitos devastadores.

O Dr. Chapman continuava a olhar para os seus papéis.

—        É interessante, estes números pertencentes a East St. Louis aproximam-se muito da média nacional.

—        É evidente que as mulheres são iguais em toda a parte — retorquiu Cass Miller.

Horace voltou-se para ele:

—        Como explica então as percentagens divergentes obtidas em Connecticut e na Pensilvânia?

—        Não se trata de uma divergência regional — respondeu Cass. — Acontece apenas que aquelas mulheres tinham mais aventuras extraconjugais pelas frequentes ausências dos maridos.

Além disso dispõem de muito dinheiro e de poucos afazeres sérios em que se ocupem. Existe pois a intervenção de um factor social e

económico.

—        Muito bem, rapazes — atalhou rapidamente o Dr. Chapman. — Vamos continuar com as análises.

—        Deitei uma olhadela à folha informativa de The Briars — continuou Cass, ignorando a intromissão do Dr. Chapman. — Com tais níveis de rendimentos, aposto dobrado contra singelo em como vamos proceder a sondagens reveladoras de uma enorme percentagem de aventuras extramatrimoniais.

Horace ergueu as mãos num gesto de simulada rendição.

—        Muito bem, muito bem. Estou convencido das suas propriedades de adivinho.

—        Não gosto de discussões deste teor—disse o Dr. Chapman com firmeza, dirigindo-se a Cass. — A verdade é que somos cientistas e não meninos de escola curiosos.

Cass mordeu os lábios e não deu resposta. O Dr. Chapman observou-o tranquilamente durante uns momentos. Depois a sua voz soou menos áspera:

—        Estamos todos esgotados. Sei isso muito bem. O cansaço produz impaciência e a impaciência desvirtua a objectividade e a isenção de critério. É porém necessário que sejamos prudentes.

Não podemos permitir-nos emitir juízos apressados e propalar generalidades não comprovadas. Tudo o que queremos são factos, factos e nada mais. Espero que se lembrem bem desse princípio nestas duas semanas mais próximas.

Paul Radford pensou qual seria a reacção de Cass Miller àquelas palavras, olhando-o de esguelha. Mas Cass tinha um sorriso a aflorar-lhe aos lábios finos, um sorriso indefinível.

—        As minhas desculpas, professor — disse ele por fim.

O Dr. Chapman respondeu-lhe com um resmungo e voltou a atenção para os números que tinha à sua frente.

—        Onde é que íamos?

—        Pergunta: «Sente algum desejo sexual ao vero órgão genital masculino?» Resposta: etc, etc... — elucidou Paul rapidamente.

—        Os nossos números concordam nessa parte? — perguntou o Dr. Chapman.

—        Quanto aos meus apontamentos a concordância é perfeita — respondeu Paul, olhando para os colegas.

Horace e Cass Miller abanaram a cabeça afirmativamente.

—        Prossigamos — disse o Dr. Chapman, enquanto o seu indicador percorria a página até encontrar o Sítio adequado.

Pergunta: «Excita-a ver esta fotografia de um homem nu num campe de nudistas?» Resposta: dez por cento sentiram uma profunda excitação; vinte e sete por cento sentiram uma leve excitação, e sessenta e três por cento não experimentaram qualquer espécie de excitação.

Virou a cabeça para Paul Radford.

—        Correcto?

—        Correcto.

Horace endireitou-se e sacudiu os ombros, numa tentativa para descontrair os músculos e combater a rigidez da forçada posição.

—        Se quer saber — disse ele, dirigindo-se ao Dr. Chapman —, essa categoria tem o condão de me perturbar mais que qualquer outra. As respostas, com muita frequência, não fornecem um esclarecimento preciso.

—        Que pretende dizer com isso?

—        Bem, posso citar-lhe uma dezena de exemplos. Quer que lhe dê um?

—        Se for pertinente.

—        Quando estávamos em Chicago, no mês passado, perguntei a uma mulher se as fotografias de arte ou as pinturas representando homens nus, que lhe mostrava, lhe transmitiam qualquer excitação. Ora essa mulher, que andava na casa dos trinta e cinco anos, respondeu que os nus artísticos nunca a tinham excitado, com excepção de uma obra de estatuária exibida no Instituto de Belas-Artes, reprodução de um atleta inteiramente nu. Confessou-me que sempre que contemplava a escultura tinha que ir para casa e ter relações sexuais com o marido.

—        Creio que isso é indicativo suficiente de reacção a um estímulo — asseverou o Dr. Chapman. — Como é que classificou a resposta?

—        Quis certificar-me de que não havia nenhum motivo pessoal associado que transformasse essa estátua numa coisa excepcional. Mantive-me vigilante enquanto ia fazendo outras perquntas. Finalmente acabei por descobrir que ela, aos dezasseis nos, costumava ter o recorte de uma revista, representando um nadador olímpico apenas com uns calções resumidos, como as bolsas seminais dos selvagens, escondido num gavetão por baixo de peças de vestuário. Sempre que, às escondidas, espreitava a reprodução fotográfica, tinha que se masturbar. O caso é que nada mais, excepto esse recorte e a estátua, lhe transmitiam qualquer qrau de excitação. Julgo que é muito difícil obter uma resposta decisiva.

—        Eu tê-la-ia classificado no «grupo fortemente excitável».

—        Sim, foi o que eu fiz. Mas, frequentemente, é difícil.

—        É natural. O facto é que temos que nos dar conta que estamos a lidar com todos os cambiantes. As emoções humanas não parecem poder ser medidas matematicamente. Mas pode chegar-se a resultados positivos se o entrevistador aplicar a sua inteligência temperada com a experiência.

Coçou pensativamente o lóbulo da orelha direita.

—        Nós não somos infalíveis. Os críticos e os leigos pretendem que sejamos infalíveis, mas não somos. Há-de sempre haver uma margem de erro enquanto as mulheres distorcerem a verdade devido a um exagero defensivo, a bloqueios emocionais involuntários ou a preconceitos orgulhosos. No entanto, Horace, eu acredito no nosso sistema de perguntas feitas em duplicado, especialmente nas psicológicas; essas perguntas, tanto quanto a atitude total e a receptividade da entrevistada, são salvaguarda suficiente. Nos casos de dúvida grave, há sempre o recurso à sondagem duplicada. Afinal de contas, na sondagem duplicada, temos os benefícios dos quarenta anos que o Dr. Julien Gleed devotou a analisar casais, consorciados à face da lei, em separado, estabelecendo-nos uma base estatística para as discrepâncias ou para as prováveis percentagens de erro. As suas notas são uma verdadeira mina de oiro que nós negligenciamos com demasiada frequência. Seja como for, Horace, estou certo que sabe quando uma entrevistada está fora de qualquer hipótese de chegarmos a uma conclusão e por isso deve ser posta de parte.

—        Evidentemente — respondeu Horace.

—        Então isso basta. Indecisões ocasionais a respeito de classificar uma resposta não afectam o todo.

Paul deu-se conta que sempre que um deles discutia o método, coisa que vinha a ser frequente nos últimos meses, Chapman tinha sempre na ponta da língua o seu discursozinho tranquilizador. E o que era mais curioso ainda é que o discurso se adaptava sempre às circunstâncias, por mais peculiares que fossem. O Dr. Chapman irradiava uma autoridade protectora e messiânica que emprestava validade ao trabalho de que se ocupavam. Paui pensou que Maomé devia ter utilizado a mesma confiante autoridade na defesa do Corão, tal como Joseph Smith ao apresentar o «Livro dos Mórmones». Apesar de todos os problemas que surgiam, a fé de Paul na missão e no método do Dr. Chapman era inabalável, e sabia que Horace também experimentava os mesmos sentimentos. Possivelmente, Cass Miller era o único apóstata potencial do grupo, mas ninguém podia ter a certeza dos sentimentos que circulavam pelo complexo sistema nervoso de Cass.

Entretanto o Dr. Chapman continuava com a sua leitura, e Paul também se concentrou nas estatísticas.

Enquanto pronunciava o enunciado das perguntas e respostas, o Dr. Chapman tinha a cabeça inclinada para as páginas dactilografadas, cotejando as percentagens:

«A observação destas três fotografias de cenas românticas tiradas de filmes recentemente exibidos e de peças de teatro fidedignas excitam ou perturbam a sua imaginação?»

Seis por cento de respostas fortemente positivas: um pouco, vinte e quatro por cento; mesmo nada, setenta por cento.

«A observação desta revista de cultura física masculina que acaba de desfolhar fá-la desejar que o seu marido seja um outro tipo de homem? Quinze por cento de respostas afirmativas e sem hesitação; trinta e dois por cento intermitentes no desejo; negativamente, cinquenta e três por cento. «Para aquelas que responderam desejar que o marido fosse um tipo diferente de homem, definam, por favor, de que modo o desejariam diferente?» Quarenta e sete por cento mais alto e mais atlético; mais inteligente e compreensivo, vinte e quatro por cento; meigo e gentil, quinze porcento; treze porcento: mais autoritário e masculino.

«O conhecimento desta cena sexual que acaba de ler e que é extraída do manuscrito original, sem cortes, de O Amante de Lady Chartterley, de D. H. Lawrence, a cena passada entre "os densos abetos", causa-lhe qualquer estímulo erótico?» Sim, trinta por cento' um pouco, vinte e um por cento; nada, quarenta e nove por cento.

Embora a sua mão movimentasse o lápis pela página, o espírito de Paul não se concentrava no trabalho, errava por outros planos. Contemplou o matagal de cabelos que coroava a cabeça do Dr. Chapman e pensou qual seria a vida sexual daquele homem; pensamento, aliás, que já o tinha absorvido muitas vezes. Por hábito e sentido de disciplina tentava sempre alhear-se do caso, porque, de certa maneira, julgava-o um acto de lesa-majestade, mas a irritante curiosidade persistia. Paul tinha a certeza de que entre os milhares de questionários depositados algures na cidade de Reardon existia um que revelava a história sexual do Dr. Chapman. Quem o examinara, traçando o diagrama das perguntas? Mas, na verdade, quem poderia ter criado Deus? Quem

seria competente para analisar Freud? No princípio era Deus; Freud analisara Freud; e o Dr. Chapman auto-entrevistara-se.

O projecto Chapman tinha o seu evangelho, os seus livros de revelação sagrada e, até, o seu génesis. Paul podia, agora, recitar essa história a partir do caos inicial: havia precisamente seis anos e dois meses, o Dr. George Chapman, então com 51 anos, era professor de Biologia, secção dos primatas, na Universidade de Reardon, Wisconsin meridional. Exceptuando a autoria de um ensaio a respeito dos hábitos de cópula do lémure e do saguim era um académico sem notoriedade. Os seus proventos eram bastante confortáveis, auferindo um ordenado anual de 11.440 dólares. Residia fora do complexo universitário com uma irmã mais nova, que o venerava, com o marido dela, com quem jogava umas partidas de xadrez quando ele não estava cansado pelo exercício da sua profissão de dentista ou pela prática do golfe, e com três jovens sobrinhos, que o consideravam como um segundo pai.

Outrora, uma memória perdida no tempo, existira uma Sr.a Chapman. George G. Chapman, quando a conhecera, era assistente de uma universidade do Noroeste. O encontro dera-se durante um baile de caridade e pouco tempo passou entre o conhecimento e o casamento. A Sr.a Chapman era filha de um Prospero editor de livros técnicos de Chicago. Após o enlace, o casal passara uma breve lua-de-mel em Kay e em Havana (a rara e única fotografia que Paul conhecia dela, aquela que fora reproduzida insistentemente em revistas, estava enquadrada por uma bonita moldura de couro sobre a secretária do cientista em Reardon e mostrava uma rapariga alta, desempenada, metida num vestido rodado que lhe chegava aos joelhos, de acordo com a moda da época. A sua testa era alta, de rosto ossudo, nariz fino e boca rasgada, feições que denunciavam uma pessoa bem-humorada e sem vaidades supérfluas. O instantâneo apanhara-a com os olhos semicerrados, dado que o esplendoroso sol cubano lhe batia em cheio no rosto. Por cima das longas pernas, numa caligrafia nervosa — muito sumida —, havia a seguinte dedicatória: «Ao cérebro da família. Com o amor da Lucy». Da última vez que Paul observara a fotografia, o vidro exibia uma arcaica camada de poeira).

Após quatro anos de casamento — entretanto o Dr. Chapman já tinha obtido o seu primeiro contrato como professor efectivo de uma universidade no Orégão —, a Sr.a Chapman sofrera um incrível choque de paralisia que a prostrara num estado de semicoma durante seis semanas. Então, por uma fria manhã de Primavera, falecera quando as flores começavam a desabrochar. Menos de um ano após a sua morte, quando a Universidade de Reardon lhe oferecera a cadeira de Biologia dos Primatas, o Dr. Chapman mudara-se para a encantadora região dos lagos de Wisconsin, cenário onde decorrera a sua infância e o período escolar. Vários anos depois, sob o isco de assistência financeira, convencera o seu cunhado a estabelecer um consultório dentário na cidadezinha de Reardon, situada a dois quilómetros do centro universitário, e depois ajudara a irmã a comprar uma casa, onde ficara a residir também.

Até ao nascimento dos sobrinhos, o Dr. Chapman estivera perdido no mundo dos livros, e era considerado um pouco anti--social e sem interesse pelas mulheres dos outros professores. Após a publicação do seu estudo sobre o lémure e o saguim, houve um despertar de atenções para a sua pessoa, mas como continuou a mostrar-se um ser vago e apático nas reuniões mundanas, as atenções voltaram a afastar-se. Porém, bem depressa, à medida que iam crescendo, os sobrinhos, que Chapman considerava como seus próprios filhos, o obrigavam a ligar-se à realidade do ambiente que o cercava levando-o a participar na comunidade dos vivos. Era frequente vê-lo discursar sobre os problemas da paternidade e da actividade escolar, em reuniões destinadas a tais efeitos, estabelecendo um diálogo permanente com o Dr. Spock — encarregado educacional — e propalando mesmo certas graças sobre como descobrir as melhores noivas para os rapazes entre as filhas dos outros professores de Reardon.

Algumas famílias começaram gradualmente a aceitar o Dr. Chapman no seu círculo de amigos, considerando-o uma criatura bastante gentil e tolerável. Finalmente veio o evento — que a imprensa especulativa comparou ao momento em que Franklin lançou para o ar o seu papagaio e Newton viu cair a maçã — que, do anonimato, levou Chapman a ser considerado uma celebridade nacional, projectando-o para um conhecimento público que ombreava com a fama das estrelas do basebol e com as vedetas de cinema.

O agente catalítico da transformação do Dr. Chapman foi Jonathan, o mais velho dos seus sobrinhos. Tinha Jonathan treze anos e estava prestes a entrar para o liceu quando, certa tarde, ouviu alguns rapazes das vizinhanças, pouco mais velhos que ele, discutir a procriação e o acto da prática do amor numa linguagem que lhe causou espanto. Anteriormente já escutara algumas conversas semelhantes, mas, como era uma criança tranquila e ingénua, nunca ligara qualquer atenção ao assunto — estava muitíssimo mais interessado no desporto e em truques com cartas. Mas, a partir da altura em que ouvira a discussão sobre o sexo, descobrira o que havia de fundamental e agradável nas raparigas que o cercavam e desejou conhecer com clareza a estranha natureza das relações íntimas entre o macho e a fêmea, que geravam tais expressões excitantes entre os outros rapazes. Sem inibições com a mãe, Jonathan pediu-lhe que o elucidasse. A mãe enviou-o para o progenitor como o veículo de esclarecimento mais apropriado em matérias daquele teor. Por sua vez o pai, mais Preocupado em descobrir a melhor maneira de extrair um dente do siso, e pensando, logicamente, que uma autoridade em matéria de biologia dos primatas era a pessoa mais indicada para explicar cabalmente o caso, recambiou o filho para o cunhado.

Sem enredos ou linguagem velada — dado que no seu entender o acto sexual não assumia mais importância que qualquer outra actividade motriz —, Chapman imediatamente começou a explicar ao sobrinho a mecânica da cópula em termos secos, precisos, científicos. Passados quinze minutos, depois de o tio ter chegado ao fim da arenga, Jonathan possuía já enormes conhecimentos sobre o acasalamento entre os macacos e os burros, mas continuava em branco quanto à prática do amor entre os seres humanos. Balbuciante, confessou ao tio a sua conclusão na matéria. Surpreendido, o Dr. Chapman observou Jonathan mais atentamente e deu-se conta de que o sobrinho entrara na fase adolescente e sentiu que o assunto não era assim tão fácil de ser explicado como parecia à primeira vista. Se a singeleza devia ser um apanágio para afugentar o obscurantismo, era necessária uma precisão de termos que só se podia encontrar entre homens habituados a manusear as palavras e os dados com mestria. Aconselhou então Jonathan a conter a sua curiosidade e a praticar a abstinência durante alguns dias, enquanto fazia um esforço para descobrir uns quantos livros sérios que debatessem o assunto com lógica e propriedade.

Embora impaciente, Jonathan aguardou, ao passo que a impaciência também se ia apoderando do Dr. Chapman nas suas buscas. Os livros objectivos e lúcidos sobre a questão eram raríssimos. Encontrou alguns que, embora actualizados, não passavam de esboços muito pobres — afloravam apenas o caso em vez de irem ao seu âmago. Nas buscas feitas com afã e consciência descobriu os estudos académicos e os inquéritos de David, Hamilton, Dickinson e Kinsey, mas eram tão limitados, especializados ou incompreensíveis para os leigos, que se tornavam inúteis para uma especificação, a não ser que fossem interpretados a uma luz inteiramente nova, o que demandava um trabalho terrivelmente fatigante. Foram-lhe parar às mãos alguns romances que, em geral, não eram bem informados, tratavam o caso com um cediço romantismo e, com frequência, incluíam doses substanciais de pura pornografia. A procura veio a provar-se inútil; em parte alguma encontrou um estudo de divulgação simples adaptado a adolescentes que incluísse uma informação séria, vital, completa e sã sobre a vida sexual dos seres humanos.

Aquilo que começara como uma tarefa de rotina veio a transformar-se num desafio científico que se tornou obsessivo. O lémure e o saguim foram esquecidos. O que importava era o homem. Muito mais tarde, quando a sua voz se tornou autorizada e o mundo escutava já atentamente as suas palavras, o Dr. Chapman explicava desta maneira as emoções sentidas naqueles primeiros tempos:

«Tal como Colombo, via à minha frente um mar ignoto povoado de fantasmas. É verdade que já tinham sido descobertas algumas vias da experiência humana, mas o continente principal das relações sexuais da espécie eram ainda uma área terrível, um pélago por explorar, uma gigantesca zona obscurecida pela ignorância. A carta do grande mar continuava por traçar. Alguns eruditos brilhantes haviam, sem dúvida, explorado as generalidades do vasto campo. Homens como Darwin, Freud, Dickinson e Havelock Ellis tinham feito um heróico trabalho de autêntico pioneirismo. Houve também outros historiadores e investigadores do caso sexual, mas sentia a não existência de verdadeiros dados actuais compreensíveis e que fossem úteis para as massas, e aquilo que existia havia sido, com frequência, estragado pelos preconceitos sociais e moralistas dos autores. Após ter feito as minhas primeiras e hesitantes sondagens sobre a vida amorosa dos adolescentes, antevi que existia um trabalho de gigantes a realizar no respeitante a categorias específicas do comportamento sexual, pensei numa série de estudos a fazer como meio de informação e esclarecimento, tanto para os jovens como para os seus pais, a respeito dos problemas sexuais comuns. E foi assim, primeiro com as minhas reduzidas economias, depois com a ajuda e contribuição de amigos e, finalmente, com o patrocínio da Universidade de Reardon que iniciei o ciclo das minhas investigações. Quando consegui provar o êxito da informação científica como uma nova descoberta da América, chegou-me finalmente o apoio dos subsídios das entidades nacionais».

Prevê-se que Jonathan teve que abrir o seu próprio caminho no assunto e esperar, para seu completo esclarecimento, alguns anos mais tarde, a publicação de Padrões Sexuais em 307 Adolescentes e Um Estudo Sexual do Celibatário Americano.

Nos primeiros tempos, após ter iniciado as suas investigações, 6 antes de receber a aprovação das entidades oficiais e os favores com o público, Chapman encontrou grandes resistências em conseguir obter entrevistas voluntárias convincentes. Necessitou de cobaias de choque para a demonstração do valor das suas perguntas. A maioria dos elementos do corpo docente da Universidade, principalmente as esposas dos professores, ficaram chocados com o desplante de se tocar num assunto considerado tabu e desaprovaram solenemente as investigações. Após tentativas honestas goradas, Chapman foi forçado a subornar, por meio de ofertas de dinheiro, certos estudantes universitários e alguns dos mais ociosos habitantes da cidadezinha local. Pagava-lhes as fragmentadas recordações da adolescência dentro do mesmo princípio por que os hospitais são, na maior parte dos casos, obrigados a comprar sangue para as suas transfusões.

Os membros das igrejas da localidade, principalmente o clero, advertiram-no várias vezes, com o maior tacto possível, que, à luz teológica, as investigações que realizava nos adolescentes constituíam um pecado, uma inutilidade e, sobretudo, corrompiam a juventude. Desesperado, o Dr. Chapman entrevistou a irmã, o cunhado e muitas pessoas amigas atraídas àquela casa da infâmia (como passou a ser conhecida) durante as férias de Verão. Finalmente, veio a entrevistar-se a si próprio, incluindo na confissão íntima não só as experiências de adolescente como toda a sua vida sexual.

Os primeiros dados, obtidos com a colaboração de um investigador auxiliar, depois de coligidos em livro, granjearam-lhe alguma fama, trouxeram-lhe algum dinheiro e uma volumosa correspondência de certos admiradores, cartas nem sempre concordantes com as mais elementares regras gramaticais. Porém, o renome nacional continuou arredio. Só depois que confinou os seus estudos ulteriores a jornais especializados é que conseguiu impressionar os seus colegas e conquistar o grande público através dos órgãos de informação, tornando-se a breve trecho uma instituição e uma força poderosa.

Todavia, Paul continuava a pensar quais teriam sido as respostas do Dr. Chapman na sua entrevista pessoal.

O comboio entrou numa curva apertada e Paul foi arremessado contra Horace, deixando cair o lápis. Com um certo sentimento de culpa pela distracção, apressou-se a recolher o seu veículo de escrita.

— Apanhou os últimos números? — perguntava o Dr. Chapman.

—        Julgo que é melhor repeti-los — respondeu Paul.

—        Trata-se agora de uma pergunta suplementar às mulheres casadas que declaram ter participado em relações extraconjugais.

—        Estou pronto.

—        Pergunta: «Pretendemos saber com quantos homens, fora o seu marido, teve relações sexuais desde que se casou?» Resposta: «Cinquenta e oito por cento, apenas um outro homem; vinte e dois por cento, entre dois a dez amantes; catorze por cento, entre onze e vinte e cinco; seis por cento, de vinte e cinco a cinquenta amantes». Certo? — perguntou sem levantar os olhos dos seus apontamentos.

—        Certo — respondeu Paul.

—        E eu que pensava ser East St. Louis uma cidadezinha de

rústicos — murmurou Cass.

O Dr. Chapman lançou-lhe um olhar onde se lia a reprovação.

—        Desculpe. Sinto-me hoje pirrónico — disse Cass, com um encolher de ombros.

—        Estou a ver isso mesmo. Dentro de dez minutos, o mais tarde um quarto de hora, teremos terminado as nossas comparações.

Prosseguiu na leitura num tom persistentemente monótono. Por vezes as suas palavras perdiam-se no ruído mais vivo das rodas a deslizarem nos carris. Paul escutava o soporífero efeito do dueto formado pelo aço raspejante e pela voz, e desejava que o Dr. Chapman os tivesse deixado viajar por avião. Mas, uma vez que só eles quatro possuíam o conhecimento da complexa linguagem simbólica dos questionários, o professor considerava como muito perigosas as viagens por via aérea, e não lhes permitia também viajarem separadamente por considerar utilíssimas as leituras e cotejos de apontamentos. Era aquela, na opinião segregada de Paul, a parte mais enfadonha de todo o inquérito. Após as entrevistas em cada comunidade, para comprovar a exactidão, o Dr. Chapman e o seu grupo encarregavam-se de estudar separadamente os resultados obtidos, calculando as Percentagens das diversas categorias de perguntas e respostas; depois cotejavam em conjunto, de modo que as variações regionais Pudessem ser calculadas com a maior precisão possível em rela-Çao ao conjunto nacional.

Era uma coisa monótona, entorpecente, mas daquele esfalfante e miraculoso trabalho iria sair um relatório que causaria sensação. O primeiro dos inquéritos do Dr. Chapman tivera o público leigo como objectivo e, à parte as críticas inseridas nas revistas Timee News Week, um simples parágrafo de considerandos num programa de Walter Winchell e um editorial na Scholastic, fora recebido como mais uma bizarria passageira sem outro valor do que aquele que lhe era emprestado pelas cartas ao director escritas por umas quantas pessoas curiosas.

Embora acabrunhado por uma recepção tão fria, o Dr. Chapman recebeu-a como uma lição, lembrando-se de que, quando alguém tem alguma coisa de importante a comunicar ao público, em geral deve fazê-lo directamente se pretende que da parte deste haja um movimento voluntário favorável.

Porém, em breve viu que não havia possibilidade de aplicação prática da lição que acabava de aprender. Parecia que os ventos da história desdenhavam soprar a favor das velas da nau do capitão Chapman, e ele mantinha-se sossegado no meio da calmaria. Faltavam-lhe recursos financeiros, ainda que o seu espírito estivesse pleno de projectos — especialmente no que se referia a um inquérito de grande envergadura aos adultos americanos celibatários. É verdade que o seu primeiro trabalho lhe garantira um pequeno subsídio do Gabinete de Ciências Sociais de Reardon, bem como o direito de utilizar um pequeno departamento (construção que era uma espécie de museu e relíquia dos estudantes que haviam combatido na II Guerra Mundial) e o de utilizar o nome da Universidade no timbre das suas cartas particulares, mas sem um auxílio mais substancial de qualquer entidade privada ou governamental não poderia seguir o curso das suas investigações, e as autoridades federais pareciam não se importar nada com as suas necessidades.

No entanto, como não há bem que sempre dure nem mal que se não acabe, de um momento para o outro surgira-lhe a ajuda providencial vinda de onde nunca ousara pensar. O director de uma importante agência de publicidade, em Madison Avenue, progenitor de dois pequenos delinquentes que frequentavam colégios particulares onde a instrução era severamente ministrada com resultados negativos, lera o inquérito do Dr. Chapman acerca dos adolescentes, admirando tanto os dados fornecidos como a técnica das entrevistas, e pusera os necessários recursos à disposição do desconhecido professor de Reardon. Em breve se seguiram outros auxílios estimulantes, e Chapman, finalmente, colocara todo o seu tempo ao serviço do ideal informativo. Com o dinheiro obtido em três inquéritos de carácter comercial — um para uma fábrica de cigarros e manufacturação de tabacos que quisera saber o motivo selectivo do público em relação a determinadas marcas do produto, outro para um partido político que pretendera saber quais os atributos que o público poderia considerar para votar num candidato ao Congresso, e o terceiro a favor de uma firma de produtos de beleza, que queria saber as razões determinantes das reacções dos indivíduos do sexo masculino à cor e perfume de certo tipo de maquilhagem e de artigos de toilette feminina —, o Dr. Chapman conseguira o apoio inicial para se abalançar à sua segunda investigação de carácter sério.

Nessa altura, o antigo professor constituíra com os seus auxiliares um grupo sem intuitos lucrativos chamado Centro de Pesquisas e Estudos. A partir daí o grupo veio a ter duas faces distintas: a científica, amada e centro de grande publicidade, e a comercial, desprezada e sem alardes de publicidade. Era a última que tornava possível a primeira. Tanto a Universidade de Reardon como o Dr. Chapman continuaram a emprestar a cobertura dos seus nomes à secção comercial do Centro de Pesquisas e Estudos, justificando essa participação grosseira como outras universidades justificavam a prática do futebol, mas os seus espíritos pertenciam declaradamente ao departamento científico.

Ao passo que a secção comercial era dirigida por um erudito de pernas arqueadas e olhos protuberantes devido a uma deficiência da tiróide, Marke Hildenfand, antigo empregado das sondagens Gallup e Roper, o Dr. Chapman concentrava todas as suas energias, que eram consideráveis, na segunda pesquisa. A Partir de então, finalmente, pudera beneficiar da lição proporcionada Pelo seu primeiro malogro. Essa segunda pesquisa, sobre o comportamento sexual dos adultos americanos celibatários dos Estados Unidos, foi cuidadosamente organizada em intenção de Uma audiência limitada de pesquisadores, investigadores e professores — todos eles cientistas, sendo escrita, no seu todo, numa linguagem estritamente técnica. As percentagens demonstrativas dramatizadas em gráficos exactos e muito descritivos, como sagazmente foi compreendido pelo Dr. Chapman, não se revestiam, porém, de formas essencial-mente técnicas e, de um dia para o outro, as estatísticas foram amplamente adoptadas pelos jornais e revistas, empregando uma linguagem singularmente perceptível aos leigos, de onde se eliminaram os chavões científicos, e apresentadas a um público que se quedou atónito perante os números.

O Dr. Chapman veio a tornar-se um nome vulgarizado nos lares, um nome ciciado nos quartos de cama, um trampolim destinado a anedotas, gracinhas e comentários sabichões. «O Relatório Chapman», como a imprensa leiga se referia ao Estudo Sexual do Celibatário Americano, tornou-se parte integrante do ambiente dos Estados Unidos. No espaço de quatro semanas, o livro impusera--se e figurava no topo das listas de best-sellers do New York Times, do New York Herald Tribuneeóa Publishers' Weekly. Pouco tempo levou a que se tivessem vendido quase 500 000 exemplares.

Com excepção de um fundo liberal posto de parte para gastos pessoais e relacionado com o seu trabalho, o Dr. Chapman não se dignava ficar com um único dólar da venda dos livros e das conferências que fazia. Tudo o que amealhava destinava-se a apoiar o seu terceiro projecto de carácter científico — Uma História Sexual da Mulher Casada Americana, que, diferente das suas duas sondagens anteriores, começou a ser levado a efeito à luz brilhante de grande publicidade, coisa fervorosamente esperada e seguida com enorme curiosidade por milhões de homens e mulheres de todo o país.

Todavia, a investigação não era coisa fácil, ainda que fosse por vezes divertida — tal como Paul dizia com os seus botões. A graça residia no facto de estar sob o foco das luzes da ribalta e ligado a um projecto que toda a gente considerava importante. Igualmente — e era coisa que não se podia esquecer—, o aliciante do caso residia também em se saberem os segredos da vida privada de toda uma população, segredos em geral desconhecidos ou furtados à curiosidade alheia. Era esse o estímulo real do trabalho e não como se poderia pensar, o facto de haver motivos fortemente sexuais. Era possível que os seus colegas universitários nunca viessem a compreender esse aspecto da questão. Onde querer que o Dr. Chapman estivesse presente, havia sempre qualquer professor ou assistente universitário (pessoas com obrigação de conhecerem o assunto com lucidez) que insinuava advir o estímulo do facto de mergulharem na vida amorosa íntima das mulheres, mas Paul bem sabia que a asserção não continha a mínima parcela de verdade. Ele, como Horace e Cass eram semelhantes a três obstetras, pesquisando, todas as semanas, centenas de vaginas sem a mais ligeira comoção, desligados do valor sexual estimulante, ocupados e preocupados apenas com o seu trabalho. Os milhares de palavras de conteúdo sexual murmuradas aos seus ouvidos, durante as sondagens, tinham perdido todo o seu significado de mistério e ocultismos gerador de excitação, e a cópula tornara-se coisa tão neutra como os desenhos anatómicos de um livro de Biologia. Apesar disso, em East St. Louis, após muitas horas de entrevistas, Paul surpreendera-se a analisar atentamente as pernas das mulheres que passavam na rua — e, finalmente na última noite da sua permanência na localidade, acabara por encontrar uma rapariga italiana, baixinha e morena, com um seio volumoso. O encontro ocorrera num bar elegante e dispendioso e, após os primeiros contactos exploratórios, encontrava-se deitado ao lado dela num quarto de hotel, gozando o saboroso manjar que o corpo dela lhe oferecia, mas o prazer sentido fora muito menor do que tinha previsto.

Nessa altura, sentado no duro e baloiçante assento do comboio, meio consciente da voz monótona e entorpecente do Dr. Chapman, do denso fumo produzido pelo charuto de Horace e do cruzar e descruzar perturbante e agressivo das pernas de Cass, deixou que a mente o levasse até à recordação da sua entrada como elemento da equipa de pesquisas. Naquele momento, com a aproximação de Los Angeles, quase em The Briars e com mais duzentas mulheres para terminar o surto de entrevistas, afigurava-se-lhe que desde sempre estivera integrado no projecto. Contudo, só se lhe agregara três anos antes.

Quando a proposta lhe fora apresentada, contava apenas trinta e dois anos e estava há menos de um ano na Universidade de Reardon. Leccionava «Literatura Inglesa — de Borrow a Beardsley», e era o seu terceiro cargo de feição académica. Antes disso tinha editado e escrito uma pequena revista literária trimestral de lowa e, em resultado de uma série notável de ensaios sobre as escritoras ingleses do século XIX, fora convidado (com um salário mais elevado e transportes pagos) a leccionar numa escola feminina da Suíça, e mais tarde contratado como leitor para uma universidade de Illinois.

Durante os vários anos passados em Berna, Paul tinha viajado consideravelmente e, numa visita feita ao Vaticano, viera a ficar enormemente interessado no Index Librorum Prohibitorum. Daí nascera um livro da sua autoria, No Âmbito da Censura, um estudo erudito, mas vivo e directo, sobre os autores submetidos à censura apostólica. Os escritores iam de Tyndale e Rabelais a Cleland e a Joyce. A obra fora publicada pela editorial de uma universidade do Leste, enquanto Paul ainda cumpria as suas obrigações contratuais como leitor da Faculdade de Illinois. O facto conferiu-lhe um certo, ainda que limitado, nome académico e várias e insistentes ofertas para ingressar nos quadros de professores de algumas universidades, entre elas uma apresentada por Reardon. Muito embora Paul sempre houvesse considerado o escrever como a sua verdadeira vocação e a actividade de leitor e conferencista como um acessório, não estava em posição financeira para resistir à oferta feita por Reardon. A contar para a decisão tomada havia o facto de ter outro livro na forja e necessitar de apoio, sendo essa a principal razão que o levara a aceitar o cargo no Wisconsin meridional.

Em Reardon, Paul tornou-se rapidamente muito popular — primeiro entre os estudantes, que gostavam dos seus irreverentes comentários sobre os imortais da literatura mundial, e logo a seguir entre as mulheres dos professores, bastante atraídas pela sua boa aparência física e pelo facto de ser um solteirão. Paul tinha perto de um metro e noventa de altura e um andar descontraído de intelectual que ainda o fazia parecer mais alto. Os seus cabelos negros estavam prematuramente tocados nas têmporas por tons grisalhos — alguém fizera notar que as brancas lhe davam o ar de homem com um passado —, e o seu rosto, se bem que alongado, era por de mais regular e atraente no seu conjunto para poder ser considerado lincolnesco. Alugara na cidade um apartamento de três espaçosos quartos, trabalhava nos apontamentos para um livro sobre Sir Richard Burton como escritor, jogava ténis todos os domingos, ia ver jogar os Braves a Milwaukee, uma vez por mês e, ocasionalmente, levava raparigas de Lake Forest para uns passes de dança em Chicago.

Não passara ainda um mês que se havia instalado no complexo universitário quando começou a ouvir falar do Dr. George G. Chapman e dos seus estranhos afazeres, levados a efeito na cabana que se erguia atrás da Faculdade de Ciências. Na maior parte dos primeiros seis meses em que Paul começou a trabalhar na Universidade o Dr. Chapman e a sua equipa percorriam as estradas do país, realizando, calmamente, as suas entrevistas com os celibatários. Uma vez por outra, voltavam às cinco salas da pequena construção, cedida pela Reitoria como departamento privativo do Dr. Chapman, mobilada com os grandes arquivos à prova de fogo, cofres-fortes volumosos e uma monstruosa máquina fotográfica electrónica, concebida e desenhada pelo Dr. Chapman de modo a reproduzir e classificar questionários, e conhecida pelo nome de máquina STC. Paul, por várias vezes, assistira à meteórica passagem do Dr. Chapman pelos relvados do campo universitário, sempre metido no seu fato cinzento. O professor embicava persistentemente para o edifício da Faculdade de Ciências sem se dignar lançar um olhar quer para a esquerda quer para a direita, sempre apressado e sempre transportando uma pasta bojuda, que parecia cheia de documentos. A primeira impressão de Paul fora de que Chapman era um homem altíssimo, embora mais tarde viesse a verificar que o professor era um homem de altura mediana que dava a impressão de ser mais alto. Usava a juba grisalha domada à custa de um preparado muito caro e apartada por um risco de perfeita simetria; o seu rosto era bolachudo e de cor vermelhusca, sem ser flácido; o peito e o abdome formavam a perfeita meia circunferência de um barril, contidos pelo milagroso equilíbrio do cinto; e todo o volumoso bojo do seu corpo repousava sobre o envasamento das frágeis e delgadas colunas constituídas pelas suas pernas.

Foi através de Horace Van Duesen que Paul acabou por vir a ser apresentado ao Dr. Chapman. Horace era um jovem professor de Obstetrícia e Ginecologia, desinteressado da sua especialidade, e que sempre desejara exercer as funções de estatístico. Quando Se conseguiram, por fim, as dotações suficientes para vingar o Segundo projecto, o Dr. Chapman resolveu contratar auxiliares em regime de tempo livre, e Horace Van Duesen fora o primeiro a fazer parte do seu estado-maior. Horace era um homem magro e ossudo, e quando se levantava ao longo de toda a sua estatura quase se podiam ouvir os ossos ranger. Os seus olhos eram límpidos e francos, apesar de sofrer de miopia, o nariz aquilino e o mento recuado. Quando Paul o encarava, lembrava-se logo das palavras de Aldous Huxley sobre Shelley: «Não tinha características humanas, faltava-lhe a fortaleza de um homem. O seu ser era uma mistura de efeminização, contida no corpo de uma lesma branca, sem sangue, invertebrado e falho de toda a coragem. Apenas polpa e muco branco». Na verdade, parecia que o jovem professor estava consciente da sua condição e que disfarçava o seu conteúdo líquido dentro da armadura dos colarinhos altos, das gravatas azul-marinhas e dos fatos de tons escuros. Todavia, era muito mais do que aquilo que aparentava. Era rígido dentro da norma de uma decência essencial, quase tocando as raias do puritanismo, e devotado à crença de que a única realidade, compreensão e comunicação se cifravam nos números.

Paul sentiu-se imediatamente atraído para o Dr. Van Duesen porque, para além das meras aparências, era um homem fundamentalmente bom, leal, acessível e, após um conhecimento mais íntimo, chegou à conclusão de que com Horace não podia haver confusões ou desentendimentos possíveis. O destino encaminhou-os para uma grande amizade de um modo naturalíssimo. Ambos eram homens solitários, ou, melhor, porque ambos não possuíam verdadeiras raízes no mundo que os pudessem prender, proclamavam-se a si próprios solitários e solidários nesse ponto de vista comum. Em breve Paul foi informado de que Horace fora casado durante um brevíssimo período, que a mulher o abandonara ou ele a mandara embora, e que, na ocasião do conhecimento de ambos, a mulher movera contra ele uma acção de divórcio no estado da Califórnia. Segundo se murmurava, tinha havido um certo escândalo ligado à dissolução do casal Van Duesen, mas Paul nunca conseguira esclarecer esses factos, nem o desejava, e Horace nunca falava da ferida. Por várias vezes Paul ouvira as mulheres dos professores, ou as suas filhas, já senhoras, referirem-se à Sr.a Van Duesen com animosidade e repugnância. Uma vez que aquilo partia de mulheres e o antagonismo era unânime, Paul quase teve a certeza de que a ex--mulher de Horace fora uma mulher bonita, que exercia uma certa atracção sobre os homens.

À medida que a amizade entre os dois se foi desenvolvendo (partidas de póquer e de ténis, filmes, encontros com raparigas, longos passeios e, de permeio, conversas sobre os trabalhos respectivos), Paul veio a saber do projecto Chapman, e Horace, por seu turno, foi informado do livro escrito por Paul e dos seus planos para novos volumes.

Certa noite de Estio, Horace pediu emprestado a Paul o volume do No Âmbito da Censura. Passada uma semana, após o ter lido e apreciado, declarou a Paul que havia emprestado o livro ao Dr. Chapman. Mas alguns dias depois e, num breve intervalo entre duas aulas, com grande excitação, Horace transmitiu a Paul que o Dr. Chapman teria muito prazer em conhecê-lo.

Finalmente veio o encontro decisivo. Horace conduzira Paul a um restaurante típico sueco que havia na cidade de Reardon, onde, num gabinete privado, eram aguardados pelo Dr. Chapman. Jantaram juntos e conversaram infatigavelmente. Regressaram juntos ao complexo universitário e o Dr. Chapman levou-os para o departamento que lhe fora reservado, descrevendo-lhe o trabalho que realizava. Mais tarde, sob o pretexto de respirar ar fresco e puro, Chapman convidou-os para um longo passeio pelos recreios da Universidade, a essa hora mergulhados numa aliciante escuridão e numa calma que convidava a mais conversa.

Fora uma noite admirável e estimulante. Paul achou o Dr. Chapman um homem cheio de espírito, embora o seu humor não se manifestasse em relação ao trabalho em que estava empenhado. Era um homem que ombreava com ele, Paul, em cultura e um conversador fascinante. Por várias vezes, durante a memorável noite, Paul, evitando deixar-se envolver pela torrente verbal do cientista, avaliou o Dr. Chapman, encarando-o como uma personagem de comédia. A eloquência e o dogmatismo tornavam--no um fanático da missão que pretendia levar a cabo, mas, fora disso, era uma pessoa acessível e despida de preconceitos. Chapman falou dos homens e mulheres que sondava com a perfeita indiferença com que qualquer outra pessoa falaria de nabos e cenouras, e conversou sobre sexualidade com a naturalidade despretensiosa com que qualquer pessoa banal se poderia referir a uma peça de mobília ou ao corte de um fato.

Durante aquela noctuma travessia das grandes paradas da Universidade, Paul apercebeu-se — coisa que veio a ser amplamente confirmada nas viagens ulteriores em conjunto — que não havia qualquer sensibilidade ou consciência do Dr. Chapman em relação aos pormenores externos ao trabalho. Era um homem que não prestava atenção aos ambientes ou às paisagens e que tinha uma carência nítida de reacções sensoriais. Nem sequer estava interessado nas criaturas pelo seu valor intrínseco de seres humanos fora da contribuição que davam às suas preciosas estatísticas. Foi também durante aquela noite que Paul, pela primeira vez, pensou na vida sexual do Dr. Chapman. Mais tarde, Horace informou-o sobre a falecida Sr.8 Chapman e do boato persistente que corria a respeito das relações do cientista com uma mulher, de meia-idade, residente em Milwaukee (sem dúvida boatos que se fundamentavam no simples facto de ele ir muitas vezes, e sempre só, a Milwaukee...). A julgar pelo comportamento do professor, se o caso fosse verdadeiro, tratar-se-ia, possivel-mente, de uma simples curiosidade anatómica.

Durante toda aquela noite, Paul soube o que iria suceder, e esperou, ao mesmo tempo receoso de que não sucedesse (um receio enraizado na incerteza da sua posição académica, dado que nem sequer era um monitor com uma licenciatura, mas somente um leitor, o que por vezes o fazia sentir como se não pertencesse à congregação). Mas afinal o que esperava aconteceu, e a verdade é que não ficou surpreendido.

—        Nesta altura é uma pena, mas não tenho outro remédio senão deixar que o Dominick se vá embora — dissera o Dr. Chapman.

Tinham ultrapassado uma das faculdades e o cientista parara na esquina para acender um novo charuto.

—        Sem dúvida um óptimo elemento e uma boa criatura — continuara Chapman, exalando o fumo —, mas o caso é que se casou com uma rapariga católica, e tanto ela como toda a família censuraram-no pela sua desgraçada vocação. Agora pretende regressar ao seu trabalho anterior (quando o encontrei ocupava- -se de química fisiológica) muito embora tenha uma certa lealdade em relação a mim. Esteve connosco, como entrevistador, viajando por todo o país, durante este passado ano, mas presentemente sente-se impaciente e intranquilo pelo mau ambiente gerado, e neste trabalho não faz sentido que uma pessoa tenha quaisquer inibições ou remorsos — subitamente fitou intensamente Paul através do espesso fumo. — Não é católico, pois não?

—        Minha mãe aderiu aos ensinamentos de João Calvino e meu pai aos de Bob Ingersoll — respondeu Paul. — Tenho uma irmã em Nova Iorque que é devotada a Mary Baker Eddy. Eu... bem, suponho ser mais fiel a Voltaire.

Durante um instante, Chapman permanecera com os olhos cravados no chão.

—        Acho melhor voltarmos para trás — disse.

Nessa altura já caminhavam com mais lentidão e, após umas quantas passadas, o Dr. Chapman retomou o fio à meada:

—        Estamos nos preparativos para apresentação do trabalho.

Entrou-se na fase final e será ela a única responsável pelo nosso julgamento. Tenho comigo especialistas em fisiologia, psiquiatria, sociologia, endocrinologia e antropologia, mas nesta fase necessito de alguém que saiba qualquer coisa de literatura, além de perceber um pouquito de tudo o mais no âmbito da cultura geral, para me ajudar a redigir o manuscrito — fitava Paul de lado. — Preciso exactamente de um homem com a capacidade daquele que escreveu o seu livro.

E fora essa toda a sua concessão à frivolidade de um empréstimo durante toda aquela noite.

E assim, no espaço de uma semana, em base de part-time, Paul veio a tornar-se um dos elementos da equipa. Durante o ano que se seguiu, a última sondagem foi preparada para a publicação. Quanto mais intimamente ia trabalhando com o Dr. Chapman, mais Paul ia descobrindo e admirando nele os traços de carácter forte que almejara ter visto no pai. Aos olhos de Paul, o Dr. Chapman revelava-se possuidor das três prendas raras que formam um verdadeiro ídolo: Direcção, Dedicação e Confiança.

A admiração de Paul pelo Dr. Chapman transportou-se para o Projecto em si mesmo, de modo que, por vezes, lhe parecia que. O mundo, para além do departamento de elaboração e recolha dados das sondagens, não passava de um lugar primitivo e cheio de ignorância aguardando apenas a mensagem para dar à sua Idade Média uma Renascença. O Dr. Chapman era constante no trabalho durante as manhãs, as tardes, e consagrava-lhe igualmente todas as noites das oito às vinte e quatro horas. Paul permanecia constante a seu lado. Os apontamentos sobre a vida de Sir Richard Burton como escritor cobriram-se da poeira do olvido, os Braves de Milwaukee não o voltaram a ter como espectador, e as pequenas de Lake Forest tiveram que procurar perspectivas mais adequadas.

Quando o projecto foi elaborado e o livro enviado para a composição, Paul sentiu-se singularmente vazio, como que despojado de algo que muito prezava. E depois das revisões, quando o livro finalmente foi posto à venda, experimentou uma ansiedade terrível. Seria na verdade aceite incondicionalmente, ou toda a sua fé e devoção teriam sido pura e efémera ilusão destinada ao negro malogro? A verdade é que foi aceite — aliás como muito poucos na história da literatura ensaísta americana — tanto pelos especialistas como pelos leigos. Na excitação alucinante que se seguiu, Paul esqueceu todos os seus sonhos de escritor, olvidou a voz da verdadeira vocação, relegou a sua carreira universitária para o sótão dos trastes inúteis. Tudo o que desejava era poder continuar a participar naquela maravilhosa aventura.

O terceiro inquérito Chapman, Uma História Sexual da Mulher Casada Americana, estava já em preparação quando o clamoroso êxito da segunda sondagem veio trazer a certeza de se poder prosseguir na senda traçada, e foi oferecido a Paul um emprego de carácter permanente na equipa de entrevistadores. O seu salário foi aumentado numa proporção de vinte e cinco por cento, mas mesmo sem isso sabia muito bem que teria aproveitado a oportunidade que considerava única. Abandonou por completo, e sem pena, o leitorado da cadeira de Literatura Inglesa e transformou-se num constante investigador do comportamento sexual feminino.

O itinerário foi escolhido após o lançamento dos alicerces — estudo, orientação, planificação dos objectivos, exame cuidadoso sobre as perguntas a fazer, limando todas as arestas que podiam constituir melindre: correspondência trocada com grupos de estudos afins, organizações religiosas e clubes de carácter comunitário. Era o Dr. Chapman quem escolhia o pessoal que o devia seguir. Na sua primeira sondagem a equipa fora constituída por dois homens — ele mesmo e um assistente. Na segunda sondagem, a fim de ser coberto um maior espaço, tinha sido estabelecida uma equipa de sete entrevistadores dividida em duas forças de tarefa. Mas para a terceira pesquisa, Chapman resolveu limitar o seu estado-maior. O grupo funcionaria apenas com quatro elementos e uma secretária para os assuntos de natureza burocrática e formalidades de contacto e informação: o Dr. Chapman, Horace Van Duesen, o Dr. Theodore Haines, um jovem psicólogo corpulento, e Benita Selby, uma mulher de vinte e nove anos, pálida, reservada e de cabelos muito loiros, quase da cor das espigas, pessoa eficientíssima e bem escolhida para o cargo de secretária pelo seu dinamismo no foro que lhe competia.

Estava destinado a Benita Selby partir de avião para cada cidade onde as sondagens seriam efectuadas dois dias antes de o grupo de entrevistadores chegar, de modo a pôr em movimento o maquinismo das formalidades legais e estabelecer os necessários contactos. A digressão estava planeada para uma duração de catorze meses, com uma rota que começaria por Minesota, passava por Vermont e, após ziguezaguear pelo Norte e Sul, acabaria na Califórnia.

Um mês antes da partida ocorreu a demissão do Dr. Theodore Haines. De Washington haviam-lhe oferecido um cargo no funcionalismo público — aliás como motivo da sua ligação com o Dr. Chapman — e o psicólogo achara mais próprio garantir o futuro. Foi debalde que o Dr. Chapman o procurou reter; por fim resignou--se e admitiu Cass Miller para ocupar o lugar vago.

O contrato de Cass Miller devera-se a uma viagem do Dr. Chapman a Chicago para examinar possíveis candidatos ao lugar.

Cass, zoólogo de um instituto de ensino superior de Oaio, pequeno em extensão mas grande na reputação de que gozava, oferecera-

se de imediato. Cass Miller era um bacharel que leccionava quatro classes, ao mesmo tempo que preparava a tese para o seu doutoramento. Eram excelentes os seus antecedentes culturais.

O Dr. Chapman deixara-se influenciar por uma carreira tão sernelhante à sua, ao mesmo tempo que, na pressa com que estava, interpretou erradamente a vibração e dinamismo manifestados pelo candidato como um sinal de devoção à causa científica. Após ter resistido às perguntas penetrantes do Dr. Chapman e a uma verificação superficial do seu curriculum, Cass tomou posse do cargo de quarto membro da equipa de entrevistadores, embora não tivesse partido logo com o director da sondagem.

Uma semana depois, após arrumados os seus assuntos, Cass Miller fixou-se em Reardon para trabalhar noite e dia, infatigavelmente, no grande projecto. Desde logo Horace o considerou uma pessoa simpática, mas Paul não tomou posição quanto a esse caso, reservando-se um conhecimento mais directo para poder manifestar qualquer opinião definitiva. Cass era um homem baixo, mas sólido e de porte atlético, moreno, de feições regulares, e com um sistema de introversão que fazia lembrar o Hamlet — nisso e nas manifestações de cinismo e dúvida. O seu cabelo era acentuadamente negro e ondulado, os olhos, quase sem linha divisória do nariz, eram pequenos e muito próximos um do outro, e os lábios eram carnudos. Usava sempre os fatos e restante vestuário impecavelmente limpos e vincados, e caminhava com aquela atitude de altivez utilizada pelos galos capões e pelos homens de baixa estatura, predominando na sua personalidade o fulgor de um ser obstinadamente sensitivo. Era com frenesim que realizava o trabalho que lhe competia, mergulhando com frequência num mutismo insondável — coisa que a princípio iludiu Paul. fazendo-o acreditar que por baixo daquele hermetismo existia o estofo de um erudito. Se bem que fosse notória a sua cultura e profundos os seus conhecimentos, Cass era um tanto rude e intempestivo na maneira de falar. Bebia moderadamente e gostava de dar longos passeios sozinho. Paul pensou que para se não gostar dele era preciso conhecê-lo muito bem.

Durante os penosos catorze meses que se tinham escoado na ampulheta do tempo, Paul tivera oportunidade de sobejo para vir a conhecer Cass muito bem. Pesando todos os factores da atenta observação, Paul veio a concluir que uma das facetas mais repugnantes no carácter de Cass Miller era a sua atitude relativamente às mulheres e ao sexo. Dado que todos eles se tinham que dedicar, dia após dia, ao estudo do comportamento sexual das mulheres, qualquer desvio de uma atitude meramente académica e científica poderia gerar uma situação de melindre. Além do teor obrigatório do trabalho, o Dr. Chapman não se envolvia em conversas sobre questões sexuais; Horace mostrava-se apático ao problema, como se tivesse exaurido todas as suas energias copulativas com a ex-mulher, o que levava Paul a suspeitar que o quociente sexual dele era de nível baixo e, regra geral, tornara-se um recluso do seu mundo privado. A avaliar pelos dados de código inventado pelo Dr. Chapman, o próprio Paul, antes de fazer parte do grupo, podia considerar-se como um celibatário mais ou menos normal nos seus estímulos e actividades sexuais. Porém, recentemente, conseguira dominar grande parte das suas necessidades fisiológicas, subli-mando-as com uma entrega devotada ao trabalho, e era capaz de manter continência durante várias semanas. Acontecia que o excesso quotidiano de assuntos sexuais se tornava enervante, as constantes viagens fatigavam, e por isso um pouco de álcool e o sono eram de certo modo sucedâneos satisfatórios da prática do amor. Vinha porém um momento súbito em que se dava uma explosão, e bastava para isso ouvir uma voz feminina, ver umas lindas pernas, contemplar um busto desenvolvido...

Dado que todos os membros do grupo de entrevistadores desafiavam a constante atenção do público e eram atentamente vigiados por uma caterva de moralistas, a sua conduta tinha que estar acima de toda a suspeita e para além de qualquer motivo de censura. O Dr. Chapman lembrava isso com frequência aos seus colaboradores, e Paul jogava pela certa procurando as mulheres no anonimato de bares cheios de clientela ou por intermédio de qualquer colega universitário, solteiro como ele, que colaborativo lhe apresentava uma rapariga conhecida de uma sua amiguinha. O amor nada tinha a ver com tais escapadas, havia apenas satisfação física, descontracção, uma válvula de escape. O chamado amor verdadeiro (fosse lá o que fosse) nunca Paul o saboreara, nem se Permitia o envolvimento em malhas românticas. Paul pensava que, de certo modo, o seu comportamento não andava muito longe do e Cass Miller a respeito desses problemas; apesar disso, era essencialmente diferente do antigo bacharel de Óaio: tinha a certeza e que o homem detestava as mulheres. O Dr. Chapman, geralmente atento e perceptivo aos problemas íntimos daqueles que o rodeavam, manifestava-se agora demasiadamente ocupado para se aperceber do caso, mas Paul estava certo do misoginismo que se escondia por trás do pretenso sexualismo agudo de Cass. A neurose de Miller manifestara-se de maneira evidentíssima na primeira fase da sondagem, todavia ainda temperada por um certo humor sombrio, mas à medida que o trabalho se desenvolvia, em especial quando o Dr. Chapman se encontrava ausente, Cass perorava sobre as mulheres de uma maneira cheia de irritação e agressividade. Pela sua fala dava a impressão de que as mulheres de modo algum eram seres humanos, não passavam de fêmeas sem manifesta evolução relativamente aos animais com um orifício vaginal que dissecar nas suas aulas de zoologia.

Paul sabia que Cass sentia uma necessidade compulsória de possuir sempre muitas mulheres, mulheres de tipos variados, e arranjava-as em quase todas as cidades que visitavam, por vezes com manifesto desrespeito da sua posição. Pretendia com isso mostrar-se mais sexual do que na verdade era, ou seria uma maneira de rebaixar todas as mulheres? Paul não podia definir, mas sentia que Cass praticava a cópula nas mulheres, não com as mulheres. Era essa a diferença básica entre Cass e ele. Cass amava sem esperança. Paul, até nas suas mais calculadas aventuras, esperava sempre mais de que aquilo que lhe davam, buscando sempre não apenas o sexo mas o amor total, que nunca encontrava.

Por entre as trevas nebulosas do seu pensamento, Paul ouviu pronunciar o seu nome e, afastando os sonhos que o levavam para o passado, entrou decididamente na realidade daquela carruagem-cama.

Tinha a certeza de que o Dr. Chapman se estava a dirigir a ele.

—        ...temos definidas as linhas gerais de East St. Louis.

Paul acenou solenemente.

—        Está tudo nos devidos lugares — disse, desatando a ocupar-se afadigadamente dos papéis que tinha em cima dos joelhos.

O Dr. Chapman voltou-se para Horace e Cass:

—        Muito bem, temos que repousar para nos levantarmos cedo e com boa disposição. É preciso que estejamos no melhor do nosso espírito quando entrarmos em The Briars.

Horace levantou-se e distendeu os membros.

—        A nossa sondagem tem tido grande publicidade?

_ Creio que sim — murmurou o Dr. Chapman.

_ É que detesto ver a minha fotografia escarrapachada nos jornais — declarou Horace.

O Dr. Chapman sorriu.

—Temos que pagar o preço da fama e celebridade — pronunciou com satisfação, ainda que houvesse um pouco de ironia na sua voz. — E agora, boa noite.

—        Boa noite—correspondeu Horace, dirigindo-se para a porta do compartimento.

Paul e Cass também já estavam de pé guardando os apontamentos nas pastas. Cass foi o primeiro a sair para o corredor estreito e Paul preparava-se para o seguir, quando ouviu a voz do Dr. Chapman:

—        Paul, posso demorá-lo por mais um minuto?

Paul olhou as figuras de Horace e Cass a caminharem pelo corredor de braços abertos, como asas, a apoiarem-se às paredes procurando o equilíbrio contra os balanços do comboio, em direcção ao bar.

Seria a última noite passada num comboio antes de seguirem para Reardon e Pau! queria celebrar o facto.

—        Cass — chamou ele —, se você vai beber um trago...

—        Claro que vou.

—        Então espere por mim. Faço-lhe companhia.

Ficou ainda um momento a vê-los seguir pelo estreito caminho, cambaleantes, como se fossem batidos por um temporal no mar, e depois voltou a entrar no compartimento do Dr. Chapman.

— Poderá ficar admirado, mas a verdade é que sem homens como Ackerman o nosso trabalho seria dez vezes mais difícil, ou talvez impossível — dizia o Dr. Chapman.

O professor molhou os lábios no seu copo de gim temperado com água tónica, e Paul, sentado em frente dele, aproveitou também para beber um trago do seu uísque com soda.

Durante os primeiros cinco ou dez minutos a conversa tinha decorrido assim, não a incidir exactamente sobre o trabalho que realizavam, mas em pormenores circundantes. O cientista tinha tocado a campainha que alertava o criado, e mandara vir as bebidas. Ao que parecia, também ele se sentia contente, satisfeito com o progresso das coisas.

O Dr. Chapman começara a falar sobre assuntos vários e inconsequentes — Califórnia, The Briars, de alguns amigos que tinha na Universidade de Los Angeles, de umas possíveis férias (bem merecidas) quando regressassem finalmente a Reardon, e de novo voltara ao tema Califórnia. Coisa singular, no entender de Paul, porque não era hábito que o professor conversasse de maneira tão volúvel. Pressentiu, pois, que se devia tratar de um preâmbulo a coisa mais importante e, por isso, beberricando o seu uísque, aguardou.

O Dr. Chapman estava agora a referir-se a Emil Ackerman, um abastado habitante de Los Angeles, que os auxiliara quanto aos preparativos das sondagens quatro anos antes e que fora o responsável pelo actual contacto com a Associação Feminina de The Briars.

—        Mas então em que é que ele se ocupa precisamente? — perguntou Paul.

—        Ah, isso ó coisa que ignoro — respondeu Chapman. — Só sei que é representante de certa profissão não classificada, anónima na América, que ajuda o país a manter o seu progresso. É riquíssimo. Possui residências em Bel-Air, Palm Springs, Phoenix. A vocação dele é a política, e talvez seja nela que faça o seu dinheiro, ajudando a eleger um governador ou um presidente de Município ou, ainda, trapaceando com a legislação fiscal. Sei que está ligado aos intrigantes dos bastidores políticos em Sacramento e que tem participação em mais de uma dúzia de diferentes actividades. Não é porém uma pessoa muito falada. Não lhe interessa a publicidade nem o desempenho de qualquer cargo público. É uma espécie de eminência parda. Sobretudo, a profissão a que Ackerman mais se dedica é a de fazer favores.

—        Altruísmo?

—        Tenho as minhas dúvidas. Pesca em vários mares, em águas turvas, e recolhe variado peixe, por vezes até mesmo uma baleia. É um desporto muito lucrativo. A grande maioria dos governantes do país de modo algum são titãs, quer em inteligência quer em integridade; existe neles, como em toda a gente, a natural fraqueza humana, a mistura de defeitos e virtudes. A propósito, vou contar-lhe uma história que ocorreu sobre o presidente Harding. Certo dia o pai do presidente disse-lhe: «Warren, se fosses uma rapariga estarias sempre grávida. Não sabes dizer não a ninguém». Bem, há pessoas assim, não sabem dizer que não quando Ackerman se oferece para lhes prestar um favor, e depois não podem dizer não quando o homem reclama a sua paga. O negócio de Ackerman é ser pago pelos favores que presta.

—        Mas então que poderá ele receber do senhor?

O Dr. Chapman considerou com atenção o copo que rodava entre os dedos.

—        Nada. Creio que não espera nada de mim em retribuição...

Levantou os olhos e sorriu para Paul.

—        Talvez deseje alguns números de telefones das nossas entrevistadas, como sugeriu Cass.

—        Não me surpreenderia que fosse isso.

—        Com seriedade, julgo que constituo para ele uma espécie de passatempo. Gosta de se sentir ligado a nós, coisa que, entre os amigos, lhe confere uma certa elevação, um lugar de mais realce, isto é, finge que faz parte do nosso grupo, que também é um devotado à ciência, e essa posição é coisa que não se pode vender nem comprar.

—        Sim, isso faz sentido — replicou Paul.

Bebeu com estudada lentidão, intrigado por não saber ao que a conversa levaria.

—        E como é que o conheceu?

—        O Paul conhece profundamente a nossa maneira de operar. É-nos sempre oposta uma certa resistência. Desde o início que decidimos trabalhar com grupos de pessoas e não com indivíduos isolados, uma vez que o indivíduo, em si, é na maior parte dos casos uma criatura tímida, receosa, resistente. Escorado, porém, no anonimato de um grupo, a pessoa humana entrega-se, abre-se, coopera. Logo, o nosso problema foi o de estabelecer contacto com grupos comunitários civis ou de carácter religioso para uma informação e uma colaboração mais eficientes e verdadeiras. Não foi tarefa fácil. Revelou-se impossível a aproximação directa. Suspeitavam de nós, das nossas intenções. Quem éramos? Que Pretendíamos na realidade? Surgiam frequentemente reacções de resistência como estas, entre muitas outras. Finalmente, considerei que só ganharia a confiança dos grupos e agrupamentos por intermédio de dirigentes, quer académicos, quer políticos, quer de qualquer outro teor de chefia. Sobretudo, apoiei-me imenso nos meios universitários, quer dizer, nas pessoas que neles conhecia. Em cada centro social que visitava, havia sempre um professor ou um membro da reitoria que me endossavam para um político local, para um manobrador dos cordelinhos sociais, e estes, regra geral, abriam-me sempre uma porta. Claro que agora em nada se compara com os primeiros inquéritos, é tudo muito mais fácil. Já somos aceites pelo público, possuo uma reputação sólida em quase todos os meios. De qualquer maneira, é até uma honra alguém estar relacionado com o nosso projecto.

Interrompeu o discurso para beber mais um golo. Passou a língua pelo lábio superior, e continuou:

—        Bem, é melhor contar-lhe como foi que conheci Ackerman. Há quatro anos pretendemos realizar sondagens em três grupos na área de Los Angeles. Eu conhecia certa pessoa na Universidade na Califórnia que, por sua vez, estava relacionada com alguém do gabinete do Mayor da cidade, e esse alguém dava-se com Ackerman. O homem jogou futebol por Stanford, parece, e tem um certo prazer em mostrar-se uma pessoa acessível, popular, comum. Mas, acima de tudo, é uma criatura esperta, que conhece toda a gente e, como já frisei, toda a gente, sobretudo, lhe deve favores. O caso é que Ackerman, ao saber das nossas dificuldades, se limitou a fazer três rápidos telefonemas: logo encontrámos os nossos três grupos para realização das entrevistas. Quando o inquérito foi completado enviei-lhe um exemplar do livro, autografado e com uma dedicatória, e ele ficou contente como uma criancinha a quem se desse um brinquedo. Agora, quando pensei em voltar de novo a Los Angeles para trabalho de pesquisa, escrevi-lhe a contar o que queria e, mais uma vez, obtive os seus favores. Foi tudo arranjado a contento. Mas não me pergunte como, porque não sei.

—        Gostava de o conhecer pessoalmente — disse Paul.

O pensamento do Dr. Chapman parecia andar por outras paragens, desinteressado do assunto.

—        Há-de conhecê-lo — disse, meio distraído. — Não duvide

que estará presente à conferência. — Fitou Paul atentamente. — Na verdade desejo que conheça antes outra pessoa que, neste momento, é muito mais importante para nós.

«Lá vem a confissão», pensou Paul, limitando-se a levar o seu copo aos lábios e a aguardar.

—        Mas antes de entrar no assunto propriamente dito, será melhor que lhe explique as coisas pormenorizadamente. É um problema de extrema importância, e sei que posso contar com o seu sigilo.

Paul acenou afirmativamente.

—        É um assunto só entre nós dois.

Fez uma pausa como para procurar a melhor maneira de dizer o que pretendia.

—        Sem necessidade de afirmativas da minha parte, creio bem que sabe o muito respeito e afeição que sinto por si.

—        Estou-lhe deveras grato.

—        Não é para agradecer, e como não quero desperdiçar mais tempo com palavras rebuscadas, é melhor entrarmos no que interessa. Já há algum tempo que tenho o caso na ideia, mas pensei que seria melhor terminar primeiro a nossa digressão e manter a coesão absoluta da equipa que formamos. É muito, muito importante para o nosso trabalho operarmos sem dissenções, unidos como um bloco, sem medidas de excepção, no ambiente mais democrático. Chega porém um momento em que, apesar de tudo, é preciso escolher uma chefia. Não se podem confiar as missões mais melindrosas a três homens, tem que se destacar um para segurar as rédeas. Ora, põe-se agora o problema da minha escolha entre os meus três colaboradores mais directos. Bem, claro que Horace tem a antiguidade a seu favor, é um posto. Claro que todos gostamos dele. Que se pode confiar nele. Que é um moiro de trabalho. Mas o facto é que não possui dotes de imaginação, não tem qualquer vocação de manuseio social, nem instinto de improvisação, e além disso é despido de todo e qualquer dinamismo. Reflecte o rosto da grande massa anónima, é uma cara amorfa entre a multidão. Quanto a Cass... bem, é melhor ser sincero: está deslocado nesta espécie de trabalho. Não possui a serenidade de um cientista frio e objectivo, é um espírito perturbado, disperso. Há já muito tempo que me certifiquei disso. Claro que cumpre o seu dever e de maneira completamente satisfatória, mas a verdade é que não tem condições de espírito para o embate, pode um dia gerar um conflito, e sem dúvida que tenho de o dispensar logo que o inquérito esteja concluído.

Paul ficou ligeiramente surpreendido perante a percepção do Dr. Chapman — não verdadeiramente a percepção, mas a amostra da sua visão quase omnipotente das coisas. «Muito bem, tanto melhor em relação a Horace e tanto pior para Cass. Adeus a Cass Miller— um indiozinho abandonado no deserto».

—        Resta falar de si — prosseguiu o Dr. Chapman. — A verdade é que o tenho vindo a observar atentamente, em tudo aquilo que faz e em todas as circunstâncias que nos são impostas, e sinto um enorme prazer em confessar-lhe que nunca, nunca me decepcionou. Creio que gosta do trabalho que realiza.

—        Muito.

—        É um colaborador magnífico e a única pessoa em quem realmente posso confiar. O Paul deve compreender que neste trabalho há mais qualquer coisa para além da ciência. Evidentemente que a parte científica é a mais importante, mas não é tudo. O mundo exige mais que isso, e eu, para manter esta posição, necessito de possuir uma segunda faceta, uma máscara para afivelar ao rosto, uma aparência. Refiro-me ao aspecto social, político; isto é, para resumir, não basta que realizemos o nosso trabalho de um ponto de vista puramente científico, também é preciso colocá-lo, vendê-lo. Compreende?

—        Penso que sim.

—        Se eu apenas tivesse seguido o processo científico sem me dispersar por outras tarefas, sem possuir outros dons mais comerciais, o projecto não teria existência e, se existisse, estaria relegado ao mero aspecto estatístico com os livros a criarem poeira nas estantes das bibliotecas; sem a dinâmica social e sem aplicabilidade prática não poderia ter sobrevivido, não floresceria.

Paul terminou a sua bebida. A conversa começava a ter algo de perturbante — talvez decepcionante fosse o termo mais exacto. Todavia era uma exposição razoável; aliás o Dr. Chapman era sempre uma criatura razoável.

—        Estou a compreender — asseverou Paul.

—        Estava seguro de que entenderia — volveu o Dr. Chapman. Poucos homens possuem as necessárias qualificações para poderem dirigir um projecto de tanta envergadura como este. Eu sou um dos poucos com capacidade para isso... — fez uma ligeiríssima pausa. — Você também, Paul.

Paul quase tinha receio de ter tido uma dilatação ocular no seu aparelho de visão. Não sabia o que havia de dizer. Limitou-se a fitar o Dr. Chapman e a esperar o que viria a seguir.

—        É preciso agora que lhe conte o que se passa nos bastidores. Volto porém a repetir que será um segredo apenas partilhado por nós os dois.

Procurava as palavras com o maior dos cuidados, como alguém a passar em bicos de pés por um fosso de víboras adormecidas, procurando não pisar os animais.

—        A Fundação Zollman contactou comigo... conhece o lugar

de destaque e importância da Fundação...

Paul fez um gesto de anuência. Conhecia muito bem. —... a instituição pode fazer coisas que a Rockeffeler e a Ford nunca fizeram. Em resumo, o seu conselho de administração está bastante impressionado com o meu trabalho, com o meu currículo. Têm-me rondado sobre uma possível expansão. Gostariam de financiar a criação de uma academia científica no Leste... um vasto laboratório semelhante ao Instituto de Altos Estudos de Princeton, um instituto que seria inteiramente devotado ao trabalho que tenho estado a fazer. Mas claro que numa escala muitíssimo mais ampla.

—        Que oportunidade! — murmurou Paul, maravilhado pela enormidade do programa.

—        Exactamente — disse tensamente o Dr. Chapman. — O trabalho seria produzido a uma escala verdadeiramente inconcebível. Já debati com os membros do conselho de administração os projectos actuais. Repare bem que em lugar da habitual aproximação com todos os seus limites, a academia poderia preparar simultaneamente dezenas de planos, treinar fornadas de pessoal para as sondagens, enviando numerosas equipas para todo o mundo. Pela primeira vez na história da humanidade haveria a possibilidade de se fazerem estudos comparativos sobre o comportamento sexual das inglesas, francesas, italianas e americanas. No pé em que actualmente as coisas permanecem, temos que nos limitar aos inquéritos nos Estados Unidos e em grandes zonas desconexas e dispersas pelo país, não uma cobertura total, do mesmo modo que brilhantes sexólogos, como Eustace Chesser, na Inglaterra, Marc Lanval, na França, Jonsson, na Suécia, o têm feito isoladamente. Ora antevê--se o gigantismo das sondagens sexuais serem feitas em conjunto pela organização. Claro que surgiriam, mesmo assim, problemas, mas seriam eliminados ou confrontados com muito melhor eficiência e com uma força de pressão muito mais poderosa.

—        Que pretende dizer com isso?

—        Bom, o caso é que haveria dificuldades, tanto aqui como no estrangeiro. Lembra-me que aquela sondagem francesa que o Dr. Marc Lanval iniciou em 1935... foi constantemente dificultada pelas autoridades. Mesmo por muito liberais a respeito de coisas sexuais como os franceses aparentam ser, a verdade é que parecem não gostar de inquéritos sobre a questão. Lanval queixou--se de ter sido importunado mais de uma vez pela própria Sureté. Todavia veio a obter o que pretendia, como nós também temos obtido o que desejamos.

Parou a reflectir antes de continuar.

—        Ora, recordo-me de que uma das perguntas feitas por Lanval às mulheres francesas e belgas era a seguinte: «Foi uma boa ou má experiência a sua iniciação sexual na noite de núpcias?» Cinquenta e um por cento das sondadas declararam boa a experiência e quarenta e nove por cento anunciaram ter sido má. Acaso não seria maravilhoso se o mesmo investigador pudesse fazer a pergunta, com sabor comparativo, a americanas, espanholas, alemãs e russas? É o que denomino de estudos comparativos internacionais. Porém, tal como eu disse aos chefões da Zollman, isso constituiria apenas uma parte dos nossos programas.

—        Apenas uma parte?

—        Precisamente. Prevejo muitos outros estudos de envergadura, ramificações do nosso trabalho actual — investigações sobre a poligamia e a poliandria; sobre o efeito das doenças venéreas na vida sexual; um exame à ilegitimidade na Suécia; uma sondagem confinada às mães e aos efeitos que os filhos exercem na sua vida amorosa; outros inquéritos somente respeitantes aos negros, católicos, judeus e grupos raciais ou religiosos similares; um estudo sobre os efeitos do controlo da natalidade sobre o prazer sexual; uma sondagem, à escala mundial, dos artistas que se devotam a escrever ou pintar cenas românticas, e por aí adiante. Não existem fronteiras para os nossos estudos e não há linguagem capaz de exprimir o bem que isso pode fazer à humanidade. A Fundação Zollman está a pensar em termos de milhões de dólares — a academia tornar-se-á uma verdadeira maravilha, um sonho, um marco miliário da civilização, aquilo por que Plínio, Aristóteles e Platão seriam capazes de se tornar escravos para conseguirem estabelecer.

—        Nem sei que dizer. Não há palavras que...

—        Esperava que apreciasse a minha discrição. Estou contente por tê-lo interessado. Se a academia for constituída, serei o seu presidente, o seu mentor — por momentos fixou os olhos num ponto indefinido e longínquo, depois voltou a fitar Paul. Não sei se compreende, estaria imensamente ocupado para desempenhar as funções que hoje me competem. O nosso trabalho seria realizado a uma escala nacional e internacional. Seria elevado a um nível quase governamental. A minha posição obrigar-me-ia a que, em dado momento, estivesse na Casa Branca, e, no dia seguinte, talvez me viesse a encontrar em Estocolmo com as pessoas do Prémio Nobel ou em África com Schweitzer, etc. Por isso precisaria de alguém que conduzisse o trabalho de sondagem, a recolha de material, o alimento verdadeiro da grande máquina que será a academia. É esse o cargo que lhe ofereço.

Paul sentiu que lhe subia um calor afogueante ao rosto. Queria levantar-se, estender a mão, tocar no Dr. Chapman, fazê-lo conhecer a sua expressão de significado mental.

—        Sinto-me confuso, doutor. Eu... eu nunca sonhei com uma coisa dessa envergadura...

—        Teria o dobro do vencimento, autoridade e uma certa... como dizer?, uma certa posição de relevo. Sim, uma posição social de relevo.

—        Dentro de um ano... pouco mais. A partir do momento em que fosse publicado o actual inquérito sobre as mulheres casadas. Certamente (levantou-se subitamente, aproximou-se do cabide onnde estava pendurado o seu casaco e procurou num bolso, acabando por retirar a mão munida de um charuto; mordeu-lhe a Ponta, riscou um fósforo, exalou uma baforada e tornou a sentar-se...) que está a compreender que o plano só se transformará em coisa real e concreta quando tivermos a aprovação final do conselho de administração da Fundação Zollman.

—        Mas eles conhecem o seu trabalho.

—        Conhecem até mais que isso. Apresentei-lhes, por escrito, não só a explicação cabal e completa dos meus métodos e realizações como também um esboço pormenorizado dos meus futuros planos e daquilo de que necessito. Contudo, como a dotação será tão ampla, é preciso um estudo individual de cada membro do conselho e uma maioria favorável de votos, quando a junta se reunir no Outono. Tal como as coisas agora se encontram, creio que a maioria se sente inclinada a apoiar a criação de uma academia devotada aos estudos sexuais no âmbito internacional. Mas é claro que muita coisa pode acontecer entre este momento e a reunião aprovativa. Os homens do conselho de administração são seres humanos; são, em geral, homens inteligentes, mas são também produto de todas as camadas sociais, criados dentro de toda a estrutura, preconceito e susceptibilidade (com esta susceptibilidade quero significar o criticismo desfavorável) e podem ser influenciados a votar contra ou a favor. Observei casos destes muitas vezes.

Paul sabia agora que o Dr. Chapman tinha algo de específico na ideia, mas não atingia o que fosse.

—        Penso que não tem qualquer razão para estar preocupado.

—        Mas claro que tenho, Paul. Claro que tenho todas as razões para estar preocupado. Não lhe quero esconder nada sobre o assunto. Está ao meu alcance a maior oportunidade da minha vida... e da sua também. Está quase à vista a realização de um grande sonho e, todavia, um ligeiro erro cometido até fins do Outono, por muito insignificante que seja, poderá derrubar todos os nossos planos e fazer com que os homens da junta directiva da Zollman se voltem contra nós — fitou Paul intensamente. — Já ouviu falar no Dr. Victor Jonas?

—        Evidentemente.

Todas as pessoas ligadas ao Dr. Chapman conheciam, por dever de ofício, o Dr. Jonas, um psicólogo e um conselheiro matrimonial bastante iconoclasta e sem papas na língua. Quando o segundo livro do Dr. Chapman fora publicado, o Dr. Jonas tinha-o comentado em vários jornais académicos e havia feito uma crítica acentuadamente desfavorável. O seu talento retórico e a riqueza de imagens de que se servira para criticar levaram muitos jornais e revistas a citarem-no como contraponto das sondagens Chapman.

—        É o nosso advogado do Diabo — disse o Dr. Chapman.

—        Como?

—        Em todos os processos destinados a promover à santidade um obscuro e corajoso missionário suspeito de haver praticado alguns milagres, isto é, no estudo evolutivo para uma canonização, além das fontes legítimas de defesa, o Vaticano nomeia um chamado advogado do Diabo, que, pesando os prós e os contras, tenta encontrar causas contrárias que impeçam a canonização. Frequentemente esse advogado tem êxito na sua obra de demolição. Ora bem, o Dr. Jonas é o nosso mais forte obstáculo, a nossa oposição. Presentemente está a escrever um desenvolvido estudo sobre o trabalho que levamos a cabo.

—        Tem a certeza disso?

—        Absoluta. Tal como já lhe disse, Paul, de modo nenhum posso ser somente um cientista puro. Travo uma batalha de todos os dias e por isso tenho que ter as minhas fontes informativas. O Dr. Jonas está a escrever o seu estudo sobre a minha obra e, acidentalmente, tenho conhecimento que é fortemente desfavorável. O livro do Dr. Jonas sairá a lume antes da reunião da junta administrativa da Zollman.

—        Mas porque é que ele faz isso?, quero dizer, porque é que ele empreende essa obra?

—        Porque foi comprado para a fazer. Não estou senhor de todos os factos, o caso é bastante melindroso e secretivo, mas a verdade é que existe um pequeno grupo dissidente no conselho de administração, a facção Anthony Comstock, que se opõe ao auxílio financeiro para a edificação da minha academia. O grupo tem outros planos com respeito à dotação. Quando lançaram os olhos em redor em busca de alguém que se pudesse fazer eco da sua oposição, encontraram o Dr. Jonas como escolha natural. Sem dúvida que ele é contra nós — não sei porém dizer se será por inveja, por maldade, por desejo de publicidade ou por qualquer outra razão —, o que sei é que não gosta de nós, e essa minoria de gentes da Zollman resolveram explorar, servir-se da sua atitude.

Estou seguro de que lhe ofereceram dinheiro para fazer uma análise cuidadosa e desvirtuante dos nossos métodos e realizações, reduzindo-nos a pedaços. A sua obra, uma vez pronta e publicada, pode ter um efeito devastador... não no público, mas no julgamento da junta administrativa da Fundação Zollman. Poderá muito bem ser o veículo de destruição da minha... da nossa academia.

—        Quer dizer com isso que tem conhecimento do caso e não fez nada para o solucionar?

O Dr. Chapman encolheu os ombros.

—        Que posso eu fazer? Não me ficaria bem que eu... que eu reconhecesse até esse homem.

—        Então reforce o seu caso perante o público. Compre publicistas que rebatam o caso.

—        Não serviria de ajuda para o melindre da questão, nem seria o remédio mais adequado para uma solução que tem que ir direita ao núcleo do problema. Só há uma coisa a fazer... procurar Jonas; ele encontra-se em Los Angeles. Procurá-lo e falar com ele.

—        Duvido que ele escute a voz da razão.

—        Não se trata da voz da razão — Chapman sorriu. — Trata--se de dinheiro. Obviamente, é um homem que pode ser comprado.

—        Como?

—        Fazendo-o ingressar no nosso projecto como consultor, como associado. Prometendo-lhe um lugar importante na academia. Não podemos batê-lo, logo temos que o absorver e neutralizar. Jonas não poderá criticar um organismo de que faça parte.

Paul abanou a cabeça negativamente.

—        Uma pessoa do seu nível, Dr. Chapman, não pode contactar com Jonas para procurar suborná-lo.

—        Suborná-lo? — o largo rosto do Dr. Chapman exprimia uma surpresa genuína. — Ora, não se trata bem disso. Esse homem, em boa verdade, poderá ser-nos muito útil. Devia já ter sublinhado esse facto. Ele podia impedir-nos de nos tornarmos complacentes em demasia. Podia continuar a desempenhar o papel de advogado do Diabo, mas para nos apoiar, para nosso benefício, para nos melhorar, não em nosso detrimento.

Paul desejava acreditar naquelas palavras. Tentava ver o valor Dr. Jonas quando ele abandonasse o grupo dos dragões para se integrar no grupo de cavaleiros daTávola Redonda. Pensava que os valores lançados por Jonas no prato da balança da justiça poderiam ser consideráveis para vencer uma causa justa.

—        Estou a compreender. Mas sejam quais forem os motivos que pretenda apresentar, o caso é que se procurar contactar com ele pessoalmente continuará a parecer um suborno.

—        Mas não faço tenções de o procurar. Claro que você, Paul, tem razão quanto a esse ponto. Nem podia tomar uma atitude dessas. É evidente que não sou o homem indicado para essa missão, Paul, mas você está talhado para ela, é a pessoa mais qualificada para se encarregar do caso. Espero que aceite — sorriu. — Não se trata agora só de mim, trata-se de nós... ambos estamos em causa.

—        Ora, ora, até que enfim que temos entre nós o herdeiro aparente da coroa — disse Cass Miller logo que Paul entrou no bar do comboio, reunindo-se à mesma mesa em que estava sentado o antigo zoólogo juntamente com Horace Van Duesen.

—        Foi longa a sessão — continuou Cass, dando ênfase especial à pronúncia das palavras. — Qual foi a conjura que você e o velho romano planearam para os Idos de Março?

—        Estivemos a elaborar o projecto de um novo inquérito — respondeu Paul suavemente. — Sabe, resolvemos fazer entrevistas aos homens que estão a realizar entrevistas sexuais com as mulheres para ver se conseguimos estabelecer o que é que os faz serem tão amargos e cínicos.

—        Eis uma resposta com piada — retorquiu Cass, rindo ruidosamente, ao mesmo tempo que emborcava o conteúdo do seu copo.

Paul olhou de relance para Horace, que fazia rodar lentamente o copo que tinha na mão, absorto.

—        Que se passa consigo? Efeitos da companhia de Cass?

Van Duesen fitou-o, levantando a cabeça.

—        Não. Estava a pensar em Los Angeles. Não gosto de Los Angeles. Preferia não ir lá.

—        E perder todo aquele clima magnífico?

—        De boa vontade lhe abandonava esse gozo.

Paul premiu uma campainha que havia no rebordo da mesa e, pouco depois, apareceu um criado negro, de clássico casaco branco. Paul pediu-lhe que tornasse a encher os copos dos seus colegas e que trouxesse um uísque para si. Ao seguir o criado com os olhos, Paul reparou que na carruagem havia três outras pessoas: um casal já de idade, folheando revistas e, quase no outro extremo do compartimento, sentada, uma loira que fingia ler um livro e levava aos lábios, de vez em quando, um copo que tinha à sua frente.

Cass seguiu a direcção do olhar de Paul e voltou-se um pouco para observar a loira.

—        Belas tetas, hem! — disse ele com ares entendidos. — Na verdade são umas belíssimas tetas.

—        É preciso cautela com a lingua. Mais baixo que ela pode ouvir.

—        É isso precisamente que pretendo — Cass sorriu para Paul. — Ela deve sentir-se orgulhosa dos seios que exibe. De acordo?

—        De acordo — respondeu Paul.

—        E talvez queira partilhar um bocadinho connosco — disse, rodando o corpo o mais que pôde para olhar bem para a loira.

A rapariga cruzou as pernas, puxou um pouco a saia para baixo e concentrou-se no livro.

Cass, uma vez mais, desatou a contar uma anedota carregada de pornografia e sem graça, a respeito de uma loira com quem tivera relações antigas em Oaio. Pouco depois o criado trouxe a pedida rodada, paga por Paul, e os três procuraram na bebida o esquecimento de todos os seus agravos.

—        Com mil raios, gostava de saborear aquela loira — exclamou Cass, ingerindo o conteúdo do seu copo.

—        Esse estímulo deve-se ao andamento do comboio — disse Horace com ponderação.—Tenho observado frequentemente que as pessoas se sentem mais pronunciadamente estimuladas no que diz respeito ao sexo quando viajam de comboio, barco, avião, etc.

—        Cantigas — replicou Cass.

—        Começa a estar embriagado. Porque é que não se vai deitar?

—        Não, nada de ir para a cama — Cass afastou a cadeira. Preciso de me devotar ao trabalho de missionário esclarecedor das massas, é necessário que seja um propagador do evangelho do Sr. Chapman. Vou fazer daquela pecorazinha um símbolo estatístico.

—        Cale essa imunda boca! — E os olhos de Paul chamejavam de cólera.

Cass, por momentos, fitou-o com uma centelha de ódio, depois esboçou um sorrisinho perverso.

—        As minhas desculpas, apóstolo, por ter invocado em vão o nome do senhor.

Levantou-se e, cambaleante, dirigiu-se para o extremo da carruagem-bar. Pegou numa revista que estava em cima de uma cadeira e sentou-se ao lado da rapariga loira. Ela, muito empertigada, continou a ler. Cass, deitando-lhe um olhar de viés, começou a desfolhar com lentidão as páginas da revista.

Paul bebeu o resto do líquido que estava ainda no seu copo.

—        Preparado para ir para vale de lençóis? — perguntou a Horace.

—        Parece-me bem que sim — todavia, Van Duesen não fez o mais leve movimento para se levantar, ficou absorto, contemplando o copo que tinha na sua frente.

Observando o sombrio rosto do amigo, Paul perguntou-lhe:

—        Passa-se alguma coisa consigo?

Horace não respondeu imediatamente. Continuou imóvel, contemplativo, inerte. O único movimento que havia nele era o cruzar e descruzar dos dedos enclavinhados no copo. Finalmente ajeitou os óculos que lhe tinham descaído para o meio da cana do nariz e fitou Paul com os olhos míopes.

—        Sim, estou um pouco preocupado — disse com um tom de voz profissional, um tom que parecia singularmente destituído de conteúdo emocional. — No entanto tal preocupação parece ser uma rematada tolice da minha parte.

Paul ficou sem saber que dizer.

—        Se quer falar acerca daquilo que o preocupa estou às suas ordens.—       Bem... — hesitava visivelmente, com uma profunda ruga Vincada na testa larga de homem inteligente. — Bem... sabe que eu fui casado, não é verdade?

Era mais uma confirmação do que uma pergunta. paul não procurou iludi-lo.

—        Decerto, é voz corrente em Reardon.

Conquanto Paul conhecesse Horace Van Duesen já há três anos e tivesse trocado com ele confidências de carácter banal nunca o ouvira falar do seu casamento. Para ele parecia ser assunto tabu, olvidado, passado à história.

Paul ouvira falar na Sr.s Van Duesen ocasionalmente, outros a haviam mencionado em várias ocasiões e sempre de passagem. Por tudo que ouvira, Paul acabou por compreender que a mulher de Van Duesen deixara a marca da sua passagem pelo complexo universitário, tendo partido cercada de desonra.

—        Acontece que a minha mulher vive no distrito de Los Angeles — disse repentinamente Horace. — Ora eu detesto-a, nem por sombras quero tornar a vê-la.

—        E quem lhe diz que voltará a encontrá-la? Los Angeles é uma cidade enorme. Que diabo, Horace, você esteve na cidade há quatro anos aquando do inquérito aos celibatários. Penso que ela já estava em Los Angeles nessa ocasião, e você sobreviveu à perigosa prova.

—        Há quatro anos era diferente. Nessa altura ela vivia em Burbank, mas agora vive em The Briars.

Paul franziu a testa e tentou pensar em qualquer coisa que pudesse dar tranquilidade ao amigo.

—        Tem a certeza de que ainda lá vive?

—        Pelo menos há um ano vivia.

—        Ora, então não é caso para se impressionar. Todas as probabilidades se encontram do seu lado. A localidade deve fervilhar de mulheres e só contactaremos com uma ínfima parte.

Horace abanou a cabeça com incredulidade, mas resignado, como um condenado a quem não é oferecida outra alternativa senão entregar-se ao carrasco que o irá supliciar.

—        O caso não me agrada. É tudo. O que sei é que não a quero ver nem de longe. Não vislumbro o que faria se me encontrasse cara a cara com ela... — fez uma pausa deliberada e fitou Paul furtivamente. — Se soubesse o que se passou compreenderia a minha atitude.

Apesar daquelas palavras, que pareciam ser o preâmbulo de uma confissão, Horace comprimiu os lábios e não deixou passar o esperado desabafo.

Paul sentia-se tão inútil como um bom samaritano que tivesse de se defrontar com uma noite brumosa, onde não fosse possível ver um palmo diante do nariz.

—        Julgo que pode confiar em mim, creio que pode ter confiança em si mesmo. Ao que parece não foi você que procedeu mal em... abandoná-la à sua sorte.

—        Na altura da ocorrência não tive tempo para pensar. Procedi no meio da excitação natural. Aliás era impossível poder pensar friamente — disse Horace num tom ambíguo. — Mas já tive quatro longos anos para pensar maduramente no que ela fez.

Paul pensou que espécie de escândalo teria sido para conseguir alterar um homem tão desapaixonado como Horace Van Duesen.

Aguardou que o amigo prosseguisse na sua narrativa, mas Horace de novo se fechara na sua concha íntima, recolhera-se na fronteira privativa do seu espírito segregante.

—        Bom, o melhor é não pensar no assunto. Mesmo que a encontre estou certo de que será capaz de dominar-se. Mas apostaria o meu salário de uma semana em como nem sequer de fugida lhe pousará a vista em cima.

Horace pareceu não ouvir as palavras de consolação. Sacudiu a cabeça com resignada tristeza, uma tristeza em que havia algo de inevitabilidade.

—        Pedi ao Dr. Chapman para optarmos pelo inquérito em S. Francisco em vez de virmos a Los Angeles, mas bem sabe que quando se lhe mete uma coisa na ideia...

Paul compreendeu que o amigo não acrescentaria mais nada. Como a maioria dos homens que vivem sós, Horace Van Duesen entregava-se a uma contínua revivescência do passado. A apreensão pelo temido encontro tinha um número infinito de Probabilidades favoráveis para que não ocorresse, mas era Ridente que ninguém seria capaz de o convencer disso.

Finalmente, Paul optou por levantar-se.

—        Vamos, meu velho, trate de vir esquecer as tristezas nos braços de Morfeu. Já será muita sorte se conseguirmos dormir as cinco ou seis horas. Quanto ao futuro, amanhã estará dernasiado ocupado para pensar seja no que for além do trabalho.

Horace anuiu com a cabeça, sem convicção, mas levantou-se.

Esperando para dar passagem ao amigo, Paul lançou um olhar a Cass e à loira. Ao que se afigurava, estavam já a entabular um amigável diálogo; Cass acabara de lhe dizer qualquer coisa engraçada, porque ela ria. Então, a rapariga inclinou-se mais para Cass, e este afagou-lhe levemente o braço. Teve tempo de ver que a mão de Cass, do braço, passara às costas e que descia ousadamente, fixando-se no traseiro rechonchudo. Entretanto, um pouco perturbada, a loira dizia-lhe qualquer coisa.

Sim, talvez se tratasse do movimento embalador do comboio, provocador de excitação sexual. Também aquela rapariga devia ter uma história sexual conveniente para a estatística do inquérito. No fundo tudo se resumia à pergunta: «À vista do órgão genital masculino sente-se excitada?» Existe uma profunda excitação em catorze por cento das sondadas. Era a resposta fria e objectiva.

Paul voltou-se. Horace já tinha desaparecido do salão. Bruscamente, Paul recordou-se do modo como certa pessoa se referira à mulher de Van Duesen. Fora um professor cheio de preconceitos que a designara pelo eufemismo erudito de hetaera. Seria o símbolo adequado? Paul fatigou-se de dar tratos à imaginação para se orientar naquele caminho nebuloso. Apressou o passo na peugada de Horace, impelido contra as paredes do estreito corredor a cada balanço.

Lá à frente fez-se ouvir o silvo da máquina. O comboio, indiferente a todos os problemas humanos, furava a noite em direcção do ocidente.

 

Quando Kathleen Ballard reduziu a velocidade de aceleração do Mercedes, cuidadosa, devido ao intenso trânsito de Village Green — sempre maior de manhã, na medida em que as residentes convergiam para o centro comercial a fim de fazerem as suas compras antes de almoço — e acabou por parar junto ao sinal vermelho de Romola Place, compreendeu que, afinal, o seu devaneio não fora mais de que uma fantasia, um ardente desejo a que nenhuma verdade corresponderia.

Acordara relativamente cedo e, na opaca manhã, onde o sol se começara a levantar, ficara deitada, de costas, imóvel, de olhos fechados, mas com a consciência de tudo o que a rodeava. Reflectira sobre o longo dia que iria ter à sua frente e, eivada de desejo de vida, pensara intensamente que poderia ser o dia em que se iria passar qualquer coisa de novo, fora do comum.

Na noite anterior os jornais tinham noticiado amplamente, com uma incrível soma de pormenores, a chegada do Dr. Chapman a The Briars, a conferência do Dr. Chapman (em grande parte os periódicos baseavam-se no comunicado fornecido à imprensa por Grace Waterton) e muitos inseriam fotografias do famoso cientista. Muito embora a equipa de sondagens tivesse chegado, Kathleen ainda se agarrava ao devaneio de haver uma possibilidade de que a reunião se malograsse, que fosse cancelada à última hora. Talvez acontecesse alguma coisa ao Dr. Chapman. Podia morrer repentinamente com um colapso cardíaco... não, tal pensamento não era uma coisa justa; era melhor que fosse atropelado e que, aPós uma longa convalescença, voltasse a ficar bom. Num tal caso era natural que os assistentes cancelassem as entrevistas, uma vez que o material recolhido já devia ser mais que suficiente... Ou era possível que as coisas viessem a passar-se de uma outra maneira mais convincente: de per si, cada uma das mulheres de The Briars podia decidir firmemente esquivar-se a comparecer àquela provação, àquela humilhação. Não havendo nenhuma presença, a sua falta não seria notada, era óbvio. O Dr. Chapman, desencorajado, anularia a conferência e, com o seu estado-maior, partiria para um inquérito em Pasadena ou San Diego.

Quando por fim o Sol, em pleno desenvolvimento, se insinuou através dos cortinados, e soou o estridente grito de alarme da campainha do despertador, abriu finalmente os olhos. Ouviu Deirdre a mexer-se no quarto contíguo e resolveu-se a saltar da cama, convencida de que a conferência e a sondagem eram um caso definitivamente arrumado. Não precisava de se preocupar mais com o assunto.

Todavia, após abluções, o pequeno-almoço e a questiúncula com Deirdre, voltou ao quarto de cama para tirar o roupão e envergar uma camisola e uma saia, apressando-se a sair.

Agora, à medida que se aproximava do local da Associação Feminina, conduzindo o seu Mercedes, iam-se-lhe desvanecendo as esperanças tão laboriosamente tecidas durante aquele espaço matinal. Ao chegar a Romola Place, escrutinando a longa e íngreme rua, as esperanças varreram-se-lhe por completo do espírito. Para lá da curva, as bermas dos passeios estavam pejadas de carros. Havia automóveis estacionados em frente dos Correios, do Clube dos Optimistas e no parque da Câmara de Comércio. Olhando para o edifício de dois andares da Associação, descortinou à entrada três mulheres — não estava bem certa por causa da distância, mas uma delas parecia Teresa Harnish.

Ouviu um buzinar impaciente atrás de si; Kathleen espreitou pelo espelho retrovisor e viu um pesado camião de transporte de lacticínios. Carregou no acelerador e, descrevendo uma curva, desceu Romola Place. Seguia com lentidão, procurando um lugar para estacionar na berma da direita. Uma nova esperança lhe surgia, uma espécie de saía mental infantil da última hora; claro que se não encontrasse sítio para estacionar teria que perder a conferência. Mas até aquilo lhe foi negado. Um pouco para além da Câmara de Comércio viu um Cadillacafastar-se do seu buraco.

Relutantemente, realizou a manobra correcta e entrou no espaço livre. Não havia qualquer desculpa plausível para não assistir à palestra do Dr. Chapman.

Caminhando em direcção da Associação Feminina, Kathleen começou a pensar em Deirdre. No capítulo das suas relações com a filha, aquela fora uma das manhãs mais infelizes. Sem dúvida que Deirdre era um verdadeiro encanto de criança (toda a gente a achava parecida com Kathleen), com excepção daquelas manhãs em que tinha os seus ataques de mau génio. Ora naquela manhã comportara-se como uma furiazinha, gritara, barafustara, não se quisera deixar vestir e, depois de vestida, fizera chichi nas calcinhas, obrigando-a a substituir-lhas. Já à mesa recusara-se a comer o pequeno-almoço, e, quando a monitora, Olive Keegan, aparecera com a carrinha da escola, fizera uma fita para tomar o seu lugar no veículo. Detestando-se pelo acto, Kathleen tivera que entrar no campo dos subornos, dando a Deirdre um pacote de pastilhas elásticas e um livro de historietas que tinha guardados para lhe dar no próximo domingo.

Tais rebeliões, um dia em cada semana, deixavam Kathleen esgotada e nervosa. Por diversas vezes falara no caso ao pediatra, o Dr. Howland, mas este, sempre apressado com as suas consultas, respondera-lhe resumidamente que todas as crianças de quatro anos necessitavam de uma certa severidade na maneira de as educar «...Fronteiras do comportamento... necessidade de autoritarismo... com as birras, as crianças pretendem saber até onde podem ir...». Uma das coisas que Kathleen mais detestara em Boynton fora a incompletude da tarefa que lhe competia como pai. A partir do parto, compreendera imediatamente que seria inútil Pedir qualquer comparticipação na educação da criança ao marido. O verdadeiro defeito das crises de Deirdre talvez residisse, porém, nela própria, talvez fosse ela a culpada. Talvez fosse diferente se deixasse de viver como uma reclusa...

Ted Dyson era um candidato, mas Kathleen não alimentava ilusões acerca dele. Sabia que Ted só estava interessado nela e nao numa pobre criança de quatro anos; não tinha paciência para aturar crianças. Mas talvez o fulcro da questão não residisse em era um homem em casa como símbolo de uma pretensa autoridade eaucatória, talvez que Deirdre pretendesse dela, Kathleen, uma coisa que ela não lhe — dava calor humano, calor de mãe. Não lhe tinham, porém, dito que era falha de todo o calor? Atrás dela ouviu uma voz chamar.

—        Kathleen!

ela ia precisamente a entrar. Voltou-se e viu Naomi Shields, que atravessava a rua. Kathleen ficou à espera dela.

—        Cuidado, Naomi! — gritou, ao ver que se aproximava um carro a grande velocidade.

Naomi deteve-se a meio da faixa, depois olhou, sorridente, para o descapotável que se aproximava, esperando que passasse. O condutor do automóvel de luxo, um homem ainda jovem, moreno, envergando um casaco desportivo às riscas azuis e brancas, freiou o carro mesmo em frente de Naomi. Esta, acentuando o sorriso, fitou o homem e, contornando a parte dianteira do descapotável, encaminhou-se para o passeio.

Kathleen viu que o condutor do veículo ia observando com gulosos olhos de apreciador o manear das ancas de Naomi. Por fim, com um suspiro de resignação (pensando na mulher ou falta de ousadia?, pôs o carro cm andamento e afastou-se.

Kathleen olhou atentamente para Naomi. Tentou apreciá-la do ponto de vista do condutor do veículo e teve a certeza de que Naomi Shields seria sempre capaz de atravessar as ruas em segurança no meio do mais infernal trânsito. A figurinha pequena e compacta de Naomi exsudava uma sensualidade evidente, clara, sem subterfúgios, e o vestido de malha, colado ao corpo, que envergava, mais fazia acentuar a chamada atractiva. Kathleen pensou que muito poucas mulheres, sobretudo na casa dos trinta anos, podiam envergar com êxito vestidos de malha justos. Para Naorni não oferecia qualquer problema. O seu rosto de bonequinha, as pernas bem torneadas, a esplendente linha da cintura e ancas e o extraordinário busto deviam ser coisas de enlouquecer os homens. Mas que espécie de homens? Bem, isso seria uma coisa a que o Dr. Chapman, dentro de alguns dias, poderia responder cabalmente.

Entretanto, Naomi chegara ao local onde ela estava.

—        Sinto-me muito contente por tê-la encontrado, Katie. Detesto ter que encarar sozinha aquele verdadeiro jardim zoológico.

Kathleen olhou-a atentamente, e o seu apurado olfacto percebeu, por baixo do perfume, um acentuado odor a gim.

—        Também eu estou contente por você ter vindo—respondeu, não conseguindo encontrar outra frase que fosse menos banal.

—        Em boa verdade estive quase para não vir. Acordei com uma terrível dor de cabeça, mas agora já me sinto muito melhor.

Parou para examinar Kathleen dos pés à cabeça.

—        Você tem um aspecto maravilhoso; como é que consegue estar tão fresca a esta hora?

—        Creio que se deve a uma vida regrada — respondeu impulsivamente Kathleen.

Só depois se lembrou das histórias que corriam sobre a vida de Naomi, e detestou-se por ter proferido tais palavras.

No entanto, Naomi pareceu não prestar qualquer atenção ao facto. Olhava para a porta da Associação.

—        Imagine-se, uma conferência sobre a sexualidade às dez e meia da manhã! — exclamou.

—        Pensa que seria melhor e mais apropriado à noite?

—        Bem... não era isso exactamente o que queria dizer. Penso que o sexo é uma coisa magnífica pela manhã... depois de uma pessoa ter lavado os dentes.

Soltou uma súbita gargalhada e enfiou o seu braço no de Kathleen.

—        Vamos juntar-nos ao rebanho de ovelhinhas imbeles.

No enorme e acinzentado átrio estavam quatro mesas em fila indiana, com um afastamento de alguns metros entre elas, onde se achavam colocados cartões, destacados, em que se podia ler «de A a G», de «H a M», «de N a S» e «de T a Z». Por detrás de três das mesas viam-se três raparigas com todo o tipo de dactilógrafas-estenógrafas, bastante feiotas, e numa das mesas da extremidade, mais perto da porta, estava uma quarta rapariga, alta, bastante magra, mas não deselegante, e de cabelos loiros, com um ar imperativo e absolutista.

—        Eis o centro de mobilização — disse Naomi em voz suficientemente audível.

Ao que pareceu, foi ouvida pela rapariga alta e loira, pois que se levantou com um sorriso de incerteza a vogar-lhe no rosto pálido e acabou por avançar.

—        Sou Miss Selby, secretária particular do Dr. Chapman. As senhoras vêm para assistir à conferência?

—        Houve alguém que nos disse que iam exibir umas peliculazitas pornográficas. Será verdade? — perguntou Naomi em ar zombeteiro.

Miss Seiby pareceu ficar um pouco confusa. Mas acabou por pigarrear e declarar com um forçado sorriso:

—        Informaram-na mal, minha senhora.

—        Espero que não tenhamos chegado demasiado tarde — disse Kathleen para deitar água na fervura.

—        Não, a conferência só começará dentro de cinco minutos. Mas o auditório já está quase cheio.

Kathleen seguiu atrás de Naomi pelo corredor e as duas entraram no vasto hemiciclo. O auditório recebia luz por três amplas janelas rasgadas no lado dos lugares da assistência; na parede que servia de pano de fundo à tribuna dos conferencistas havia uma enorme bandeira. O salão de honra, com trezentos lugares, parecia naquele momento um vasto e irregular oceano de cabeças femininas e de coloridos chapeuzinhos. Muitas daquelas cabeças voltaram-se para a porta, e Kathleen, de modo vago, sorriu para os rostos que lhe eram familiares.

—        Vamos sentar-nos — disse Naomi.

—        Úrsula Palmer ficou de me guardar um lugar.

Kathleen estendia o pescoço para localizar Úrsula.

De uma fila quase à frente, via-se alguém a acenar com um bloco de apontamentos. Kathleen pôs-se em bicos de pés. A mão pertencia a Úrsula, que, nesse momento, ergueu também a outra mão com dois dedos espetados para o ar.

—        Parece-me que ela também tem um lugar para si — disse Kathleen.

—        Ou talvez deseje ir à casa de banho, é a maneira como as meninas de escola costumam pedir à professora para ir lá fora — replicou Naomi chocarreiramente.

Seguiram pela coxia central, Naomi muito empertigada fazendo avultar o abundante seio e encarando as outras sócias com sobranceria, e Kathleen com a sua costumada naturalidade de senhoril elegância.

O lugar ocupado por Úrsula Palmer ficava precisamente na coxia da quinta fila, a partir do estrado, e foi com alguma dificuldade que se levantou para deixar passar as duas mulheres para os luga-yes que lhe ficavam imediatos.

—        Viva, Naomi. Olá, Kathleen.

Depois dos cumprimentos da praxe, sentaram-se.

—        Sarah Goldsmith queria que eu lhe guardasse um lugar, mas, segundo creio, não conseguiu chegar a tempo.

—        Provavelmente ficou presa por causa dos filhos — disse Kathleen, voltando a pensar em Deirdre.

—        Os pequenos monstros — pronunciou Úrsula, que, a maior parte das vezes, se esquecia de que também era mãe.

Naomi apontou, com o indicador muito espetado, e num gesto interrogativo, para o bloco de apontamentos que Úrsula pousara

nos joelhos.

—        E possível que possa escrever um bom artigo sobre o caso — respondeu Úrsula com certo ar de aborrecimento, à indirecta pergunta.

Kathleen sentiu que uma mão lhe batia ao de leve no ombro. Voltou-se e encarou com Mary McManus sentada atrás, que lhe sorria.

—        Não se sente emocionada, Kathleen?

—        Sim, pelo menos bastante curiosa.

—        Olá, Mary — disse Naomi. — Como é que vai o nosso Clarence Darrow?

—        Se é a Norman que se refere, está magnífico. Na próxima semana, o papá vai entregar-lhe o primeiro caso da firma para defender em tribunal.

—        Bravíssimo — e Naomi acrescentou: — Tem algum compromisso para antes do almoço?

—        Não. Estou livre até às duas. E você?

—        Idem, idem. Podemos sair juntas.

Úrsula apontou com o bloco de apontamentos para a tribuna.

—        Parece-me que o pano vai subir.

Voltaram-se, expectantes, para o tablado, ainda deserto. Numa das entradas laterais, surgia agora Grace Waterton, transportando um jarro de prata com água e um copo, objectos que colocou em cima da mesa do conferencista, abandonando a ribalta tão silenciosamente como entrara. Pouco depois surgiu nos lugares da orquestra e seguiu pelo corredor central, vendo que Teresa Harnish, como sempre exoticamente elegantíssima e com uma banda cor-de-coral a apanhar-lhes os cabelos, a chamava de uma das primeiras filas. As duas mulheres entretiveram um breve conciliábulo

—        Se estão a falar da vida sexual, parece-me que repetem a fábula dos cegos que se guiavam uns aos outros — disse Naomi com entonação ferina.

Grace continuou o seu caminho pela coxia central. O seu cabelo, que parecia ter sido frisado com todo o cuidado, tinha um tom cinzento-púrpura, e o seu estilizado corpo parecia estar em vias de se desengonçar todo. Dando com os olhos em Úrsula e Kathleen, fez-lhes um aceno.

—        A função começa dentro de momentos. O Dr. Chapman está a acabar a conferência de imprensa — disse Grace, prosseguindo no seu caminho.

Úrsula Palmer franziu a testa.

—        Não sabia que ele dava uma conferência de imprensa. Devia estar a assistir.

—        Você não quer deixar escapar nada, hem? — perguntou Kathleen. — No entanto, pergunto a mim mesma que novidades poderá o Dr. Chapman dar aos jornalistas que não sejam relatadas aqui.

Kathleen Ballard fixou o solitário palco da tribuna com inquietação, deixando os olhos vaguear pela mesa, pelo jarro de prata, pelo copo e pelo microfone postado em frente. Depois deitou uma olhadela em tormo de si, pela assistência. O zunzum das conversas terminara. Todas as mulheres que se encontravam no salão pareciam aguardar a chegada do conferencista com uma certa apreensão, dir-se-ia com um certo receio (ou seria ilusão sua?), e a tensão que reinava quase que estabelecia um bloco solidificado que se podia apalpar.

«Mas afinal que novidades nos poderá ele fornecer?», perguntou Kathleen aos seus botões.

Na ampla sala que servia de vestiário, o Dr. George G. Chapman, vestindo um fato cinzento, de camisa de uma brancura imaculada e gravata preta, estava sentado atrás da larga mesa de tampo de vidro, que abarcava com as mãos estendidas. Fazia uma declaração à imprensa sobre o término da sua longa viagem, e fora coroada do mais espectacular êxito, acabando por afirmar e lhes queria contar algumas novidades. Às palavras do Dr. Chapman a reacção foi imediata. Paul Radford, sentado a alguma distância do Dr. Chapman, pôde ver a curiosidade brilhar nos rostos dos jornalistas presentes: cinco repórteres, quatro homens e uma mulher, pertencentes aos órgãos de informação e agências noticiosas locais, e dois fotógrafos, todos sentados em semicírculo em volta de Chapman. Um pouco mais afastado, Emil Ackerman, um homem obeso, de rosto largo e oleoso, esparramava-se numa cadeira de lona, de pernas e braços cruzados como um paxá. Paul observou-o, depois, a procurar qualquer coisa no bolso do impecável casaco de casimira castanha, retirando finalmente uma cigarreira de ouro, finamente cinzelada, de onde tirou um cigarro. Não obstante todos aqueles cuidadosos gestos, não retirara os olhos de cima do Dr. Chapman.

Entretanto, o Dr. Chapman, empertigando-se no seu lugar, contemplou os jornalistas um a um e começou a falar:

— Por toda a parte por onde tenho passado me pediram que lhes apresentasse um sumário da nossa sondagem sobre a história sexual da mulher casada americana, e eu em todo o lado me tenho recusado a fazer semelhante concessão...

Paul mexeu-se na sua cadeira, incomodado, acabando por fixar os olhos na carpete que cobria o soalho. O que o Dr. Chapman contava aos jornalistas não era inteiramente verdade, sabia-o muito bem. No decorrer do primeiro semestre do inquérito, como ponto fulcro de todas as conferências de imprensa, o Dr. Chapman insinuava generalidades respigadas das estatísticas de sondagem. Pensava, e bem, como o tinha confessado, que os fragmentos insignificantes que fornecia aos órgãos de informação seriam logo aproveitados pelos jornais ávidos de sensacionalismo e teriam as honras de primeiras páginas com títulos fabulosos, para serem devorados por um público fremente de novidades, fossem elas quais fossem. Dessa forma, o cientista estava certo de que o Projecto se manteria como uma permanente atracção pública, num constante dinamismo publicitário que, sem custar dinheiro e sem fujir à verdade, mantinha o suspense e aguçava os apetites até ao aparecimento do livro definitivo. Claro que a ciência pura ficava muito acima daqueles cozinhados preparados para o público, mas era tão forte o instinto de sobrevivência do projecto sobre a coesão do espírito científico que, quase involuntariamente, o Dr. Chapman nunca deixava de lhe administrar aquelas transfusões de plasma de publicidade.

Porém, nunca antes, e isso admirava Paul, o Dr. Chapman fora tão peremptório e afirmativo em registar um facto novo para apreciação do público. Paul disse para consigo que o cientista desejava terminar a digressão com nota alta, ou talvez se tratasse do início da campanha para combater o Dr. Jonas perante o júri da Fundação Zoilman. Até então, Radford procurava não pensar na desagradável missão que o esperava. Fugia à ideia de contactar com o Dr. Jonas para o tentar subornar, mas não havia dúvidas de que o futuro do projecto estava em perigo. Parecia que isso acabava por justificar a missão que lhe estava destinada e a atitude do Dr. Chapman naquele momento.

—        ...Sempre recusei — continuou o Dr. Chapman, pousando no cinzeiro a ponta do seu charuto —, porque sentia não termos ainda recolhido dados suficientes para esclarecer tendências definidas; mal obtivemos esses dados mostrei-me ainda reticente porque queria estudar e comprovar os totais entre os meus apontamentos e as notas dos meus assistentes. Agora, que nos encontramos no distrito de Los Angeles, onde o nosso inquérito encontrará a sua conclusão, e que já entrevistámos mais de três mil mulheres americanas casadas, divorciadas e viúvas, sinto ser meu dever revelar ao público parte dos nossos dados, pelo menos aqueles que são mais precisos e que, de modo geral, podem ter um significado imediato, sobretudo para as mulheres casadas do nosso país.

Observando as expressões ávidas dos jornalistas, Paul imaginou os grandes títulos, os balões inseridos nas colunas, com destaque para certas palavras proferidas pelo Dr. Chapman.

O Dr. Chapman prosseguia:

—        Para os elementos do nosso grupo tornou-se inteiramente evidente, a breve trecho, que o maior... — parou no meio da frase, como que pesando as palavras, para rectificar — ... que um dos maiores mal-entendidos entre os dois sexos se baseia na crença de que os homens e as mulheres possuem emoções e impulsos orgânicos iguais ou similares. Muito embora seja verdade que homens e mulheres são de flagrante semelhança no composto físico das reacções genitais e naquilo que se refere à localização das zonas erógenas, a semelhança não se torna extensiva aos desejos e necessidades sexuais. Em geral o grande público parece alimentar a crença de que, no que respeita às relações sexuais, homens e mulheres sentem da mesma maneira, isto é, têm o mesmo género de reacções durante a cópula. Se bem que, e insisto neste ponto, ainda não esteja preparado para apresentar, de momento, provas estatísticas sobre tão importante pormenor, estou, todavia, preparado para fornecer sobre o caso uma declaração em termos generalizantes. Dentro desse princípio, posso pois dizer-lhes que os dados recolhidos por nós até à data indicam que a participação sexual é menos importante para a mulher do que para o homem.

Uma longa pausa. Um sorriso a aflorar-lhe aos lábios, enquanto os jornalistas se afadigavam para os seus blocos de apontamentos. Depois, os olhos do Dr. Chapman voltaram-se, num lampejo, para Paul, que inclinou a cabeça num gesto de muda aprovação. Ao olhar do Dr. Chapman, Emil Ackerman levantou uma das mãos gordalhufas numa breve saudação, como é hábito dos líderes políticos durante as campanhas eleitorais.

O jornalista que estava em pé por detrás das cadeiras dispostas para a entrevista, e que tinha um engraçado chapéu cinzento, fitou o Dr. Chapman.

—        Doutor, quer o senhor dizer que, após ter entrevistado três mil mulheres, acredita que elas não estão tão inteFessadas quanto os homens nas relações sexuais?

—        Sim, segundo os dados do nosso inquérito — respondeu afavelmente o cientista, apressando-se a acrescentar: — Evidentemente que me refiro à mulher casada americana. Como é óbvio, não posso falar da mulher inglesa ou da francesa.

—        Pois falarei eu da francesa! — exclamou Ackerman. — Quando, no ano passado, estive em Paris... — Parou e sorriu. — Ora, parece-me melhor não continuar, dado que se encontra entre nós uma senhora. Rapazes, mais tarde encontramo-nos no bar.

Houve uma risota geral, e a jovem repórter fez uma careta fingida de desagrado.

—        Por mim pode falar, sou apenas uma jornalista.

Ackerman sacudiu a cabeça.

—        Não se esqueçam de que a nossa sondagem apenas inclui americanas e casadas — frisou o Dr. Chapman.

—        Pode acrescentar mais alguma coisa sobre o caso, Dr. Chapman? — perguntou a jovem repórter.

Paul notou que muito embora ela tivesse uma trunfa de cabelo desgrenhada, o que lhe dava um certo ar boémio de «maria-rapaz», as pernas bem torneadas e os olhos rasgados e muito brilhantes, o rosto era atento e severo. Iria apostar que aquela rapariga era na verdade uma jornalista e não uma libidinosa, mais interessada na história do que propriamente no sexo.

—        Decerto que posso — disse o Dr. Chapman, dirigindo-se à jovem. As descobertas sobre o comportamento da mulher casada adquirem agora mais valor à luz dos conhecimentos, em estatísticas exactas, do comportamento do americano celibatário, que serve como termo de comparação. As respectivas sondagens mostram que o celibatário, em regra, se preocupa mais, ou está mais obcecado, com o sexo do que a americana média. São muito frequentes os homens que casam por via de uma razão básica imperativa: o desejo de possuírem uma mulher sexualmente. Mais tarde, se a decepção o fustiga ou se se cansa da mulher (não se esqueçam de que me refiro unicamente à parte sexual do problema), o homem que assim procedeu pode enveredar pelo divórcio, tornar-se infiel, voltar-se para a psicanálise ou afogar no álcool as suas frustrações. Ao contrário, a mulher não casa porque deseja essencialmente ser possuída sexualmente por determinado homem. Claro que isso constitui uma motivação forte, mas não básica. Na sua

atitude em relação ao amor físico, a mulher é o parceiro que desempenha o papel passivo. Casa por vários motivos: por segurança, por aceitação social, por conformismo, pelos filhos, por companhia. Claro que anseia as normais válvulas de escape sexuais, mas em caso de decepção, em regra, resiste a tomar atitudes ex

tremistas como o divórcio, um amante, um psicanalista ou uma garrafa. Para ela esses meios não constituem sucedâneos nem substitutos. Se o amor físico não satisfaz a mulher, reprimirá os seus desejos, sofrerá mas sobreviverá intacta aos choques emocionais, sublimando as suas necessidades com outros tónicos igualmente importantes e que são uma diversão para não descambar no desespero: os filhos, a vida e arranjo do lar, a vida social intensa, etc.

O Dr. Chapman parou, enquanto os jornalistas traçavam rapidamente as suas garatujas nos blocos. Quando todos pararam de escrever, prosseguiu:

— Com base nas nossas sondagens, suspeito bem que os homens criaram um mundo feminino inteiramente fictício, um mundo de mulheres que, em boa verdade, não existem na América dos nossos dias. É este um dos pontos mais significativos que espero poder esclarecer e sustentar por meio das estatísticas a serem explanadas no livro Uma História Sexual do Comportamento da Mulher Americana Casada, que pensamos publicar na próxima Primavera. Considerando os meios usuais de evasão e diversão — e refiro-me em especial aos romances, peças de teatro, filmes e televisão —, parece-me que os homens que são veículos de execução desses meios inventam com frequência heroínas devoradas por uma fome intensa de amor sexual, mulheres que em regra não são capazes de receber esse amor com a suficiente intensidade do seu desejo, mulheres que reagem eroticamente e sem inibições de qualquer ordem. Mas essas americanas são de pura ficção, criadas pela mente dos homens, são mulheres que se comportam exactamente como o seu parceiro masculino, isto é, comportam-se da maneira como os homens pensam ou desejam que elas se deviam comportar. Porém, as nossas entrevistas indicam que as mulheres desse tipo são raríssimas, se é que existem. As mulheres que eu e os meus assistentes temos entrevistado são precisamente o contrário disso. São essas as mulheres reais, cuja maioria, embora possa fruir ou não de uma intensa vida sexual, não fantasia sobre o sexo nem sofre a mesma excitação a que os homens são contingentes. São mulheres que, em regra, não se sentem estimuladas por verem homens nus ou seminus; que não se sentem subjugadas só pelos homens belos ou de aspecto pronunciadamente viril. Nos romances e nos filmes, habitualmente, as mulheres são flageladas por esses impulsos e estímulos, mas a realidade é diferente. No entanto a maioria dos americanos prefere pensar que as mulheres correspondem à medida-padrão apregoada pela ficção. Não é assim, não é verdade. Factos são factos.

Os jornalistas tinham as cabeças pendidas para os blocos, e as mãos que seguravam os lápis pareciam agitados de delirium tremens. A jovem repórter, porém, de testa franzida, levantou uma das mãos, chamando a atenção do Dr. Chapman.

—        Se o que afirma corresponde à verdade, Dr. Chapman, porque é então que tantas mulheres apreciam esses romances, peças de teatro e filmes inspirados em questões sexuais? Explico-me melhor: esses livros, especialmente, vendem-se com tal êxito que uma pessoa acaba por ficar com a impressão que de facto as mulheres se sentem estimuladas por eles.

O Dr. Chapman comprimiu o lábio inferior com dois dedos e levantou os olhos para o tecto.

—        Estou satisfeito por me ter posto essa pergunta — disse ao cabo de uns momentos. Não possuo dados estatísticos sobre o assunto. Faltam-me factos comprovados. Será verdade que tais livros têm essa aceitação espantosa entre as mulheres? Não sei.

Mas vamos partir da hipótese que isso corresponde a uma verdade.

E provavelmente corresponde. Do meu ponto de vista, só há uma resposta para isso. Uma resposta que, muito embora pareça contradizer aquilo que há pouco declarei, em nada altera o facto alicerçado pelos dados que colhi. Claro que muitas mulheres se sentem absorvidas pelo sexo, mas de uma maneira muito diferente

daquela que os maridos ou os amantes supõem. As mulheres são atraídas para a ficção romântica, não para buscarem um aspecto de identificação ou para serem estimuladas, mas sim para satisfazerem um sentido de irritante curiosidade. Primeiramente porque sabem que os homens têm em grande conta a atracção sexual, e são muito grandes as compensações existentes na nossa sociedade a respeito de se possuir tal poder de atracção e compreendem que têm de se devotar a isso, quer queiram ou não, de modo a atingirem determinados fins. Em segundo lugar, a maioria das mulheres tem que se submeter à propaganda sexual dos homens. Moem-lhes, diariamente, o bichinho do ouvido com doses maciças da maneira como se devem comportar e sentir, segundo a opinião masculina, aquilo que deve ser adequado a uma mulher que se preze. Apesar disso, os homens sabem muito bem que as mulheres não se comportam nem sentem, senão aparentemente, do modo como eles pretendem. O facto perturba-os, preocupa-os, inferioriza-os. Isso, juntamente com todo o defeito da nossa cultura — refiro-me a caminho sem propósito e sem objectivo que a maior parte das mulheres segue no casamento —, faz com que as mulheres se sintam frustradas. Mas este último caso é um outro aspecto da questão em que não pretendo falar. O que interessa agora é a pergunta que se põe: o que é que há com as mulheres? Que se passa de errado com elas? Posto isto, todas desejam ter conhecimento sobre o assunto, daí que se entregam aos livros, às peças de teatro, aos filmes, invejando, secretamente, as heroínas que lhes apresentam, heroínas que não existem senão na imaginação dos seus criadores. Dada a enorme soma de propaganda, grande número de mulheres casadas pensam-se anormais, julgam possuir deficiências sexuais, mas a realidade é muito diferente. Essas mulheres constituem a americana casada média, são a quota dos vinte e cinco a setenta e cinco por cento das mulheres comuns. Creio que a nossa sondagem... — parou ao entrever Grace Waterton que, da porta, fazia frenéticos sinais a Paul. — Depois — voltou a encarar os jornalistas — provará este ponto de forma altamente dramática. Alimento esperanças de que contribuirá em muito para reduzir a tensão que se verifica entre a mulher americana.

—        Falando por mim, há uma coisa que não me parece muito clara... — começou a jovem jornalista.

Paul levantou-se do seu lugar e inclinou-se para o cientista.

—        Desculpe, Dr. Chapman — interrompeu. — As senhoras já estão todas reunidas e à espera.

O Dr. Chapman fez um gesto de compreensão e ergueu-se repentinamente do seu lugar.

—        Tenho muita pena — disse ele dirigindo-se em primeiro lugar à repórter e depois aos outros jornalistas — mas certamente que se lembram de eu lhes ter dito que a conferência de imprensa terminaria logo que chegasse o momento de iniciar a palestra. As senhoras da Associação mostram-se muito amáveis em vir e não as devo fazer esperar — sorriu cordialmente. — Evidentemente que estão convidados para assistir à minha conferência. Mas, para lhes poupar tempo, dado que sei o interesse posto na reportagem, O rneu assistente Paul Radford vai distribuir-lhes cópias da minha c°rnunicação.

—        Os meus agradecimentos em nome de todos, Dr. Chapman """" disse urbanamente o repórter do chapéu cinzento, que devia ser

decano dos jornalistas locais.

— O prazer foi todo meu, eu é que devo agradecer-lhes a atenção que me dispensaram. Muito obrigado.

Chapman, já à porta, esperou por Emil Ackerman, pousando-lhe, amigavelmente, a mão no ombro.

— Emil, porque é que não procura um lugar na sala? A comunicação não excederá uma hora, poderemos depois almoçar juntos.

Paul agarrou no monte de cópias mimeografadas e começou a distribuí-las pelos jornalistas.

A maneira fácil, despida de formalismos, como o Dr. Chapman começou a falar, fez com que a tensão e a ansiedade se dissipassem entre a assistência. Até essa altura, embora de modo obscuro, todas aquelas mulheres pareciam sentir que houvera uma espécie de violação daquilo que tinham de mais íntimo, tinham receio de ser obrigadas a encarar certas verdades, mas tudo isso desapareceu perante a amabilidade, a simpatia e a descontracção com que aquele homem encanecido falava com elas. A personalidade do Dr. Chapman mostrava-se tão tranquilizadora como a de um velho médico de família sentado na borda da cama durante uma doença.

Até então, Kathleen Ballard, mal se apercebendo, e compreendendo, do real conteúdo das observações iniciais do Dr. Chapman, tão decidida estava a rejeitá-lo, mantivera-se rígida na cadeira. Porém, gradualmente, começou a sentir um desvanecer da sua hostilidade, pelo modo afável e regular do discurso do professor. Poucos momentos depois, conseguiu recostar-se na cadeira, o mais confortavelmente que lhe foi possível, tentando compreender o que o cientista dizia, em termos tão acessíveis.

O Dr. Chapman, perfeitamente à vontade, à medida que falava, colocou os cotovelos na mesa, inclinando-se para o microfone como para uma entidade viva e amiga.

— Houve um tempo, ainda não muito distante da nossa época, em que estava na moda uma excessiva afectação de certos preconceitos tidos como virtuosos. Pensava-se que, além de outras coisas, a virtude residia em não mencionar as pernas dos pianos ou os peitos dos animais para não haver confusões que podiam pôr em xeque as boas maneiras e a boa educação, sobretudo por um princípio que proclamava a ingenuidade como uma das melhores prendas femininas. No entanto, duas guerras mundiais bastaram para derrubar todos esses conceitos, e o sexo começou a ser discutido francamente, com a merecida honestidade. Os responsáveis principais por essa revolução pacífica foram Susan B. Anthony, Sigmund Freud, Andrew J. Volstead e o general Tojo. Quero eu dizer com isto que a contribuição para dissipar essa falsa sombra de pudor se ficou a dever à emancipação da mulher, ao arejamento psicanalítico da libido, à reacção excessiva ao Oitavo Mandamento e a duas guerras mundiais que impuseram o envio de americanos de ambos os sexos para o estrangeiro, forçando-os a absorver os padrões sexuais e os costumes de outros povos e outras culturas.

«No entanto a afectação exagerada da virtude e o falso pudor ainda estão muito longe de terem desaparecido da nossa sociedade, que se jacta de civilizada, e o sexo continua a ser uma função secreta e vergonhosa, que se evita discutir e compreender no seu valor intrínseco, para além da mera pornografia. Muito embora as mulheres tenham adquirido um certo grau de liberdade através da igualdade de trabalho, de direito ao divórcio, de uso de contra-ceptivos, de controlo das doenças venéreas, de abandono das áreas rurais menos favorecidas por troca pelos grandes centros urbanos, mais esclarecidos, onde as actividades tendem mais para o anonimato e para a diversificação e informação paralelas, apesar de tudo isso, de todos esses chamados instrumentos de liberdade ou de libertação, as mulheres não são livres nem estão libertas. Em relação à sexualidade continua a persistir uma atitude doentia e falha de senso. E muitas mulheres há que continuam a desconhecer, ou possuem um conhecimento deficientíssimo a respeito de um assunto que, quer queiram quer não, ocupa uma parte vital da vida humana, logo a vida delas mesmas.

«Consequentemente, o sexo é o único aspecto da fisiologia e biologia humana que requer um mais curado inquérito científico.

Modernamente, foi iniciado um pioneirismo na direcção certa. Parece persistir a má interpretação de que fui eu que inventei a sondagem sexual moderna. Ou que ela foi criada, antes de mim, Pelo Dr. Alfred C. Kinsey. Tal não é verdade. A profissão de investigador sexual, de historiador sexual, de estatístico sexual — aquilo que preferirem — é relativamente recente, mas muito mais antiga do que muita gente imagina. Os autênticos inovadores nesse especial campo de sondagem foram Max Joseph Exner, que, em 1915, inquiriu 948 estudantes universitários ou recém-formados em vários ramos de ensino; Katherine B. Davis que, em 1920, sondou 2200 mulheres; Gilbert V. Hamilton que, em 1924, entrevistou 200 homens e mulheres de vários níveis sociais; Robert L. Dickinson que, antes de 1931, estudou a questão sexual em 1000 casamentos; e Lewis M. Terman que, em 1934, examinou 792 casais; além de muitos outros que lhes seguiram as pegadas.

«Um breve olhar sobre as actividades dos meus predecessores neste campo pode, ao mesmo tempo, ser instrutiva e confortante. Em 1915, um ano que foi dominado por acontecimentos de vulto, tais como o afundamento do «Lusitânia», a primeira ligação telefónica transcontinental efectuada por Alexandre Graham Bell, a estreia, nesta mesma cidade de Los Angeles, do filme O Nascimento de Uma Nação, a prisão de Margaret Sanger por instigação da Sociedade para a Supressão do Vício, de Nova Iorque, um ano preenchido pelo eclodir de nomes famosos como Woodrow Wilson, Jess Willard e William Jennings Bryan, viu também a publicação de um opúsculo de trinta e nove páginas, Problemas e Princípios da Educação Sexual, da autoria de Max Joseph Exner. O opúsculo anunciava os resultados daquilo que, quiçá, deve ter sido o primeiro estudo formal do sexo na história da América. O questionário de Exner foi posto a 948 estudantes de escolas superiores e, além de outros tópicos, continha a seguinte pergunta específica: "Já em qualquer altura da sua vida se entregou à prática de qualquer actividade sexual?" Em dez dos entrevistados, oito responderam afirmativamente, dentro da mesma proporção-padrão de dez, quatro admitiram ter tido relações sexuais com mulheres, e seis em dez confessaram que as suas práticas se limitavam ao que então era delicadamente referido como "onamismo". Conquanto Exner tivesse levado a cabo a sua sondagem para provar que a educação sexual era nociva, os resultados obtidos provaram exactamente o contrário: sem que o desejasse, havia estabelecido um novo método para a aquisição de informações sobre um assunto que até então tinha sido considerado tabu.

«Cinco anos depois, em 1920, ano em que foram presos os anarquistas Sacco e Vanzetti, Harding eleito presidente e F. Scott Fitzgerald publicou o seu primeiro livro de combate, uma mulher chamada Katherine B. Davis empreendeu um corajoso estudo sobre o comportamento sexual das mulheres, o qual mais tarde viria a ser publicado sob o título: Factores na Vida Sexual de Duas Mil e Duzentas Mulheres. A ousada Katherine elaborou um questionário de oito páginas relacionado com os hábitos sexuais femininos desde a infância à menopausa e enviou-o a 10000 elementos de clubes femininos e a diversos centros universitários também femininos. As suas sondagens tratavam de tudo, desde a frequência do desejo sexual às experiências emocionais, nesse campo, com outras mulheres. Dos 10 000 questionários, conseguiu 2200 respostas perfeitamente utilizáveis, e dessas, 1073 pertenciam a mulheres casadas. As respostas compiladas foram publicadas, para cada pergunta específica, em escalas gráficas estatísticas. O facto marcou época, é preciso que não esqueçam que tudo ocorreu quando as vossas avozinhas ainda eram jovens, e sessenta e três raparigas confessaram ter relações sexuais diárias, enquanto cento e dezasseis admitiram ser sexualmente infelizes com seus maridos.

«Em 1924, o psiquiatra Dr. Gilbert V. Hamilton realizou uma sondagem secreta entre 200 mulheres e homens na cidade de Nova Iorque. Os inquiridos foram ouvidos numa sala do seu consultório particular e Hamilton fazia-os sentar num cadeirão preso à parede (na sua avidez de falarem sobre questões sexuais, os sondados, quando a cadeira estava livre, iam-na arrastando de tal maneira que com frequência, passados uns momentos, quase estavam sentados no colo do médico), apresentando a cada um cartões com perguntas de vários teores (quarenta e sete cartões Para as mulheres e quarenta e três para os homens). Havia onze Perguntas sobre o orgasmo, cinco sobre variações do acto sexual, onze sobre relações sexuais normais, quinze sobre homossexualidade, etc. Algumas das perguntas, tomando em linha de conta a éPoca em que foram postas, eram extremamente valiosas. Hamilton, por exemplo, fez a seguinte pergunta a todas as mulheres: Se, por uma obra de magia, pudesse premir um botão que invalidasse o seu casamento fazendo até desvanecer-lhe da mente a ideia da existência de seu marido, premiria esse botão?

A Senhora e seu marido nas primeiras vinte e quatro horas após o acto sexual sentem-se mais, ou menos afectuosos um para o outro"?

«Em 1931, RobertL. Dickinson, psicanalista freudiano, publicou as suas descobertas sobre o casamento, tendo sido as sondagens elaboradas e conduzidas sob sua orientação pessoal. Lewis M. Terman, durante os anos de 1934-35, submeteu 792 casais a um teste que continha nove perguntas.

«Frisei também que, além destes pesquisadores, houve também outros que realizaram trabalho útil e desbravador, sendo a maior parte deles completamente desconhecidos do público leigo. Devo referir-me a Ernest W. Burguess e Paul Wallin, que, entre 1940 e 1950, sondaram 1000 pares de noivos no estado de Illinois, e a Harvey J. Locke e seus assistentes, que fizeram trabalho de vulto em Indiana na década de 1939-1949. E devo ainda mencionar investigadores sexuais como Clifford Kirkpatrick, trabalhando no Minesota; Clarence W. Schroeder, em Illinois, e Judson T. Landis, em Michigão.

«Sem dúvida que o grande popularizador em campo tão pouco conhecido até então foi o Dr. Alfred C. Kinsey, da Universidade de Indiana, falecido em 1956. Os dois inquéritos efectuados sob a sua orientação foram iniciados em 1938. Em 1948, justamente dez anos depois, publicou um livro de 820 páginas, em que apresentava o estudo das actividades e comportamentos sexuais de 5300 homens: Comportamento Sexual do Macho Humano. Cinco anos'mais tarde publicou um livro similar sobre a mulher, tendo utilizado treze assistentes para a realização do seu inquérito. Não obstante ter tido que enfrentar o bloqueio e malevolência por parte até mesmo de outras personalidades ligadas a esse especial campo de actividade, Kinsey foi um cientista puro e um grande cientista. Nenhum sexólogo do passado utilizou mais e de melhor maneira conhecimentos específicos sobre o assunto nem usou de mais paciência para levar a cabo um trabalho honesto. Kinsey é credor de todos os louvores por ter refinado a técnica de entrevistas e ter contribuído poderosamente para o conhecimento dos problemas sexuais e dos problemas de sondagem nesse terreno praticamente desconhecido.

«Se me permitem a imodéstia de mencionar o meu trabalho já publicado, direi ter tentado fazer com que um tal campo de actividade científica, criado por Exner e Davis e alargado por Dickinson e Kinsey, fosse dilatado a uma amplitude e desenvolvimento mais poderosos. Certamente que gozei do privilégio de poder estudar o trabalho dos meus antecessores na matéria, e, gradualmente, pude, onde era possível, evitar determinados escolhos. Nas minhas primeiras sondagens iniciei ;um programa pouco vulgar visando a obtenção de dados íparticulares e não de dados gerais. Em lugar de realizar um inquérito entre jovens, fixei-me num tipo único — o adolescente. Em vez de realizar pesquisas sobre todos os tipos de homem, determinei concentrar-me sobre um tipo único — o homem celibatário. Em vez de examinar todos os tipos de mulheres, empe-nhei-me em sondar um único tipo — a mulher casada ou que tivesse sido casada. É um processo a que sou fortemente favorável, dado que fornece a possibilidade de concentração num só tipo de resultados mais exactos e pormenorizados, resultados esses que compreendi que seriam mais lógicos e úteis tanto à ciência em particular como a todo o público em geral. Estou convicto, através da experiência, que as minhas sondagens são uma grande contribuição para o esclarecimento da educação sexual como factor preponderante.

«Permitam-me também acrescentar, sem que pareça sofisticado da minha parte, que fui o primeiro sexólogo a aperfeiçoar uma técnica de entrevistas privadas em que, embora entrevistador e entrevistado se encontrem na mesma sala, se mantém o mais rigoroso anonimato de modo a favorecer, o mais possível, a honestidade da confissão estimulada pela honestidade de processos. Mais adiante descreverei sucintamente os pormenores da minha técnica. Além de tudo o mais, creio sinceramente que aperfeiçoei, no que se refere às entrevistas como ponto fulcro, um novo método de aproximação, de confronto, em que nada é omitido Para uma busca da verdade. Hamilton fazia as suas perguntas por escrito e recebia-as verbalmente. Terman apresentava as perguntas por escrito e recebia-as igualmente pela mesma via. Em todos os casos, as perguntas sobre o comportamento, os estímulos e excitações sexuais eram feitas de modo directo. Eu fui mais longe nesse capítulo: as perguntas feitas por mim e pelos meus assistentes são divididas em três categorias distintas, isto com o intuito de determinar a actividade sexual do entrevistado e individualizar a história por relação implícita, determinando de forma mais objectiva a atitude psicológica de cada sondado perante o sexo e a sua reacção primária aos estímulos sexuais. Mas não deixem que estas explicações vos confundam ou metam medo. Prometo-vos que nada há de penoso no meu inquérito e que ele é sem dúvida fascinante e, até certo ponto, divertido.

«Perdoem-me, porém, tenho estado a dissertar. O ponto que eu desejo esclarecer é que, com excepção dos nomes que citei e de outros que omiti, o assunto do comportamento sexual dos cônjuges tem sido agitado por pessoas lastimavelmente pouco informadas ou mal informadas, ou por pessoas tendenciosas e que possuem um dogma especial sobre a questão. Exceptuando aquilo que as mulheres casadas, sobretudo, aprendem por intermédio dessas fontes pouco dignificantes, ou pelas suas experiências com um ou com vários homens, geralmente tão mal informados como elas próprias, ou através de conversas exageradas, ou, ainda, tendo como veículo a falsidade da ficção novelística, a maioria das mulheres casadas continua pela vida fora a suportar o fardo de uma ignorância medieval. Em resultado disso, a eficiência e felicidade de que poderiam desfrutar está gravemente ameaçada. É facto incontestável que a questão do sexo permanece como um assunto escuso, um assunto que se debate às escondidas, entre murmúrios, em segredo, coisa suprimida pelos falsos moralistas, desconhecida do grande público e considerada, quase sempre, indecente.

«Os meus colegas e eu dedicamo-nos à tarefa sociológica de colocar o sexo como assunto de debate e abrir esse debate a toda a gente, melhorando o destino feminino por meio do conhecimento objectivo dos factos. Essa é a nossa cruzada. É esse o motivo por que hoje nos encontramos em The Briars. Queremos ajudá-las, e para isso têm que nos ajudar a provar que o sexo é uma função fisiológica e biológica natural, uma função dada por Deus a todos os seres humanos, sancionada pelo Supremo Criador, uma função que merece ser reconhecida como um acto perfeitamente decente, dignificante e agradável.»

Ouvindo o Dr. Chapman, Kathleen pensou: «Decente, limpo, dignificante e agradável... Como é que vais provar isso? Entrevistando-me a mim? Extraindo de mim os infernozinhos em que tenho vivido? Conseguirá esse conhecimento dos factos liber-tar-nos, libertar os nossos carrascos? Será isso uma prova de casta? Oh, estúpida ciência! que sabes tu de ser mulher — um elo de ligação quase escravo, um receptáculo, a sancionada prostituta de Boynton Ballard?»

Por fim a cólera de Kathleen cedeu ao raciocínio, e o raciocínio deu lugar à dúvida que sempre a assaltava: «Será minha a culpa e não de Boynton? Poderia qualquer outro homem tornar-me uma criatura normal, proporcionando-me prazer e recebendo prazer em troca? Serei eu... não, não usarei a palavra frígida, prefiro usar outra... Serei eu como carne de carneiro fria?Mas porque me lembrei eu agora dessa frase? Ah, está relacionada com a história da vida de Oscar Wilde. Ernest Dowson tentou regenerá-lo, afastá-lo da sua homossexualidade e, por isso, certo dia, incitou o escritor a acompanhá-lo a um prostíbulo de Diepa. Ao sair do bordel, Oscar Wilde confessou: Foi a primeira e a última vez em dez anos. É como comer carne de carneiro fria. • Sou carne de carneiro fria e detesto sê-lo, abomino-me a mim própria por isso. Tenho que descobrir um homem. Tenho que ter um homem. Preciso de um homem. A pobre Deirdre também necessita de um pai. Porém, a maior necessidade é a minha. Preciso de um homem. Talvez Ted Dyson... Quando é que o verei?»

A breve trecho, Úrsula Palmer descobriu que era dificílimo tirar apontamentos. Por diversas vezes, absorta pelo que dizia o Dr. Chapman, menos em relação com o artigo que tencionava escrever do que consigo mesma, deixara de registar períodos inteiros do discurso.

Agora que o cientista fazia uma breve pausa para beber um copo de água, Úrsula rabiscou apressadamente no bloco «Princípios do casamento nas épocas primitivas. Grupos de homens relacionados sexualmente com grupos de mulheres. Mudavam de parceiros com frequência. Partilhavam as crianças

 

1 - O episódio relatado é verdadeiro, passado nos anos finais da vida de Oscar Wilde enquanto no seu voluntário exílio em França. A frase de Oscar Wilde gravada para a posteridade foi: «The first theese ten Years and it will be tne last It was like cold mutton!» (N. do T.).

 

em comum... A Igreja regulamentou os princípios, tomou-os lei... O casamento é uma invenção puramente humana... O casamento como instituição social tem exigências, comporta deveres — principalmente nas relações sexuais.

De novo se voltou a escutar a voz do Dr. Chapman a perorar:

«Evidentemente que temos os nossos inimigos, mas esse é o estigma que acompanha todos os que tentam investigar a verdade. Desde o tempo memorável em que Sócrates, em Atenas, foi condenado por 280 dos 500 jurados do tribunal, por ter dito a verdade, até recentemente, quando Scopes, em Dayton, foi julgado culpado por ter enunciado outras verdades, os pioneiros do conhecimento humano sem pelas sempre sofreram o ostracismo, castigo e morte às mãos dos guardiães da tradição, do conservantismo, do conformismo e do obscurantismo.

«Quando foram publicados os relatórios sobre os padrões sexuais do celibatário americano, muito nos satisfez a enorme aceitação que tiveram não só entre os cientistas e eruditos como entre os leigos, que apenas estão ocupados na difícil actividade de viver e extrair da vida a maior dose possível de felicidade. Mas decerto que encontramos opositores. Estou certo de que sabem muito bem quem são esses indivíduos com o espírito empedernido, fossilizados, homens que preferem o triste e medonho statu quo da ignorância à recolha de factos através da investigação. Os homens desse tipo foram particularmente activos e férteis nas suas dissertações. Continuam ainda agora a sê-lo. Anunciaram que as nossas estatísticas constituíam um convite para uma promiscuidade à escala nacional. Anunciaram que os nossos dados, colhidos por sondagens aos homens celibatários e às mulheres casadas, eram pura subversão contra a sagrada instituição do matrimónio. Acontece porém que a maioria dos americanos de ambos os sexos, uma maioria que deseja, tanto como nós, conhecer a verdade, acreditou, como nós, que o conhecimento é melhor que a ignorância, e que a verdade, pelo contrário, poderá ser mais um elo a reforçar o ciclo do casamento e a sua moralidade intrínseca em vez de o enfraquecer e dissolver.

«Em 1934-35, Lewis M. Terman perguntou a 792 mulheres californianas: "Antes do casamento a vossa atitude a respeito do sexo era de repugnância e aversão, de indiferença, de interesse e expectativa ou de avidez e apaixonado desejo?" Trinta e quatro por cento das sondadas, cerca de um terço, declarou com franqueza que a sua atitude fora de repugnância e aversão. Penso que poderei ir mais longe. Aventuro-me a considerar, baseado nas informações por nós obtidas, que cinquenta a sessenta por cento de todas as uniões deste país vinculadas pelo casamento encerram em si uma grave ignorância e incompreensão em tudo o que se refere à esfera sexual. Em suma, julgo que uma média de cinco ou seis entre dez senhoras que se encontram nesta sala são, provavelmente, vítimas do silêncio que rodeia a questão sexual, um silêncio que é contra a própria natureza humana. A nossa sondagem sobre as vossas normas de vida tanto quanto sobre as normas de vida de vossos maridos, no que se refere ao sexo, pode resolver grande parte dos problemas. Não podemos garantir resultados de magia, não somos mágicos, mas é meu dever recordar-lhes que onde quer que esteja a Verdade é acompanhada pela Esperança.»

Úrsula pensava, à medida que ia escutando: «Com que então cinco ou seis, em dez das mulheres que se encontram nesta sala, são vítimas do silêncio que rodeia a questão sexual!?... Sim, vitimas da incompreensão do problema sexual — eufemismo para um mau casamento —, mas mesmo assim uma coisa sem resolução se se partir da hipótese que todos os mal-acasalados podiam separar-se do seu cônjuge e ter relações com outras pessoas, não deixando por isso de continuarem a percorrer o caminho do erro. Talvez o facto se deva aos importantes direitos do homem? Mas se não são os indivíduos que estão errados e sim os princípios! Devo dizer que a coisa não está mal. Talvez a venha a utilizar. Sou então uma destas cinco ou seis, em dez? Isto relacionar-se-á comigo e com o Harold? Mas o facto é que nos vamos entendendo menos mal. Talvez não nademos em felicidade. Mas haverá alguém que seja completamente feliz? E no que respeita à paixão? Bem, já não somos nenhumas crianças. Mas já fomos, e havia paixão e fogo em nós. Que diabo, a nossa vida sexual não é muito diferente da dos outros casais. E também temos outras coisas em comum. Harold vai obter a contabilização Berrey e eu tenho o interesse de Foster. Nova Iorque. Que coisa será trabalhar sob as ordens de Poster? Sob as ordens dele uma figa! Que raio estou eu a imaginar? Estou a tornar-me uma contumaz freudiana. Se ao menos ele não fosse um enfatuado repulsivo! Como é que Alma o aguenta? Como é que ele aguenta Alma? Devem ter com certeza alguma vida sexual. Ainda que um homem tenha sempre o recurso das mulheres de vida fácil, possua ele o tipo e o parecer que possuir, porque o dinheiro opera maravilhas, penso que Alma o aguenta' porque não há outro remédio. Quem mais é que ela poderia arranjar? Afinal de contas não possui ela aquele castelo com fossos e tudo em Connecticut e a vida doirada e fácil? Seria eu capaz de entrar nessa negociata? E no caso de ele ser exigente, de pretender ter relações comigo três ou quatro vezes por semana? Pelo menos, Harold tem uma certa consideração por mim. Toma atenção ao que lhe digo e não se atravessa demasiado no meu caminho, isto é, entre nós não há perturbações violentas. Todavia, seria magnífico aquele emprego em Nova Iorque... Passaríamos a ser pessoas de importância, seria possível que tivéssemos também um feudo em Connecticut... Harold podia... que diabo podia fazer Harold? Ah, administrar. Podia administrar os meus rendimentos. O dinheiro correria. As estrelas de cinema também costumam arranjar maridos que lhes administrem os bens—juntam o útil ao agradável. Aliás, o papel de cavaliere servente era bastante honroso em tempos recuados. Sim, porque não? Este artigo podia levar-se a tal posição. Colocá-los literalmente a meus pés. Seria aproveitado pela Time, publicado pelo Reader's Digest. Parece-me que é melhor guardar estas notas, prestar mais atenção a tudo o que se passa. O que é que ele disse? Ah, sim, cinco ou seis em dez... desentendimentos na esfera sexual. O silêncio anormal que nos rodeia... Não garante resultados mágicos...»

Sabendo que estava atrasada um quarto de hora, Sarah Goldsmith ainda pensou em faltar à conferência. Tinha um monte de coisas para fazer em casa. Ultimamente havia descurado muito os seus arranjos caseiros e estava tudo num caos. Enfim, mais como medida de precaução, resolveu-se a seguir até Romola Place. Tinha anuído a estar presente à reunião, e a sua ausência poderia ser notada. Além de tudo o mais, afirmara a Sam que assistiria à conferência. O marido não manifestara a mínima preocupação com o assunto, mas podia vir a recordar-se e fazer-lhe algumas perguntas sobre o caso. Se lhe dissesse que não estivera na conferência do Dr. Chapman, Sam poderia começar a fazer-lhe perguntas embaraçosas. Se mentisse, declarando-lhe que assistira à conferência, seria pouco provável que Sam lhe fizesse quaisquer perguntas, mas era coisa que tinha os seus perigos. Havia que ser encarada a hipótese de, nas suas relações sociais, ele e Sam se encontrarem de frente com Kathleen — ou com qualquer das outras mulheres pertencentes à Associação Feminina — e ser-lhe perguntado o motivo por que não comparecera à reunião. Seria caso para levantar suspeitas... Tal como naqueles estúpidos filmes detectivescos da televisão, em que um crime era cuidadosamente planeado, e o criminoso, depois de se começar a sentir salvo e seguro, deixava escapar um pormenor, aparentemente sem importância, que levava ao deslindar de toda a meada. Se dissesse a verdade tudo estava resolvido com êxito.

No momento em que Miss Selby lhe abria, devagarinho, a porta que dava para o auditório, Sarah começou a sentir-se satisfeita por ter comparecido. A secretária fez-lhe sinal de que podia entrar, e Sarah Goldsmith viu o lugar desocupado na penúltima fila, a terceira a contar do corredor central. Inclinou a cabeça em mudo agradecimento a Miss Selby e entrou no auditório. Cumprimentou cerimoniosamente a Sr.ã Keegan e a Sr.8 Joyce, suas vizinhas de lugar, e sentou-se.

Por momentos ficou muito hirta, com aquela vaga sensação de desconforto que sentem todas as pessoas que entram numa sala depois de um espectáculo já ter começado. Só alguns minutos depois se atreveu a olhar em volta para verificar se estava a ser observada. Viu então que todos os rostos contemplavam o palco e, de súbito, compreendeu que estava a assistir a uma conferência do Dr. Chapman sobre motivos sexuais. A partir da altura em que Kathleen lhe fizera o telefonema do convite, Sarah não voltara rnais a pensar no assunto. Estava demasiado ocupada a pensar em Sam ou Fred, especialmente no último. Ah, como ele fora ardente e vigoroso naquela manhã! Procurou concentrar toda a sua atenção no proscénio e no estranho homem de juba branca Çue se encontrava a falar na tribuna. Apesar disso, a princípio não °i capaz de assimilar as palavras. Só depois que o Dr. Chapman 62 uma pausa prolongada, no reatamento do seu discurso, é que Sarah começou a compreender o sentido da palestra. O Dr. Chapman prosseguia:

— Necessitamos da vossa confiança para podermos continuar esta obra e obter êxito nas sondagens. Baseado nos nossos antecedentes e credenciais, creio que poderemos ganhar a vossa confiança. A pedra angular da nossa técnica de entrevistas é a confiança das entrevistadas. Tudo se apoia nesse fundamento. Pedimos pois a vossa confiança ilimitada, e podem estar de antemão convencidas de que nunca as trairemos, como nunca traímos as mulheres que antes de vós foram escutadas por mim e pela minha equipa. São três os assistentes que comigo colaboram neste empreendimento.

«Durante estes catorze meses que ficaram para trás, tanto eu como os meus assistentes entrevistámos todos os tipos de mulher casada, desde a dona de casa à empregada profissional e à prostituta. Fizemos inquéritos a secretárias de empresas, enfermeiras, bailarinas, estudantes universitárias, criadas, auxiliares de jardins infantis, mães de família, professoras e representantes de instituições femininas de carácter recreativo ou que se ocupam de política. Falámos com recém-casadas e com consorciadas há longos anos, com viúvas e divorciadas. Inteirámo--nos de todos os tipos concebíveis de actividade sexual feminina, tais como, por exemplo, a masturbação, a homossexualidade e a infidelidade conjugal. Em todos os casos as nossas sondagens foram conduzidas com perfeita objectividade e isenção científica. Se fosse preciso uma palavra para definir e caracterizar o nosso método de aproximação utilizaria como mais adequado o termo objectividade.

«Quero que fiquem bem cientes de que só procuramos factos, apenas factos. Não estamos interessados em avaliar, comentar ou procurar corrigir aquilo que fazem ou a maneira como se comportam. Não louvamos nem condenamos e jamais tentamos modificar os padrões sexuais de quem quer que seja. As perguntas por nós feitas são muito simples e formuladas a todas as entrevistadas. São perguntas preparadas cientificamente com grande antecipação e estão impressas em folhas de papel especial. Por baixo de cada pergunta encontra-se um espaço em branco destinado à resposta, e a resposta é registada sob o aspecto de um símbolo, sinal esse somente conhecido pelos quatro entrevistadores da nossa equipa e sem significado para mais ninguém. Chamo a vossa melhor atenção para isto, no intuito de as tranquilizar. Quando fundei o Centro de Estudos e Inquérito, considerei o uso de vários sistemas obsoletos de estenografia e até velhos códigos militares, a fim de que o sigilo das respostas não pudesse ser desvendado por pessoas alheias. Nenhum desses sistemas me satisfez. A seguir iniciei um estudo das línguas mortas, talvez umas duzentas, e das trezentas e vinte e cinco línguas universais-artificiais inventadas nos últimos cinco séculos. A mais conhecida dessas línguas, como todas sabem, é o esperanto, que foi inventada por um oftalmologista polaco em 1887. Mas o que eu procurava era a mais desconhecida dessas línguas, uma que há muito estivesse extinta e se tivesse perdido da memória dos homens. Vim a descobrir a lógica que havia naquilo a que me propunha, e na verdade encontrei a linguagem chamada sol-ré-sol, concebida em 1817 e baseada nas sete notas da escala musical. Adoptei então a sol-ré-sol para as nossas sondagens, acrescentando ao seu esquecido alfabeto vários símbolos consentâneos. Nunca tive conhecimento de um ser humano, quer ele fosse linguista ou criptógrafo, capaz de ler o sol--ré-sol e muito menos a adaptação da linguagem aos nossos propósitos. Esse será o idioma, por assim dizer, utilizado por nós para registo das vossas respostas. É fácil compreender que desta maneira tudo se passará no maior sigilo.

«Quando, dentro de duas semanas, partirmos de The Briars

para regressar à Universidade de Reardon com as vossas respostas em código sol-ré-sol, estas serão expressamente depositadas em cofres alugados para o efeito no Eather Marquette National Bank, organização completamente estranha ao complexo universitário, e de onde só serão retiradas para serem introduzidas numa máquina também por mim concebida. A máquina é por nós designada sob as iniciais STC — o que significa Solresol Translating Compiling Machine (Máquina de Compilação e Tradução Sol-Ré-Sol). Os vossos questionários irão alimentar directamente a máquina. Primeiro os símbolos sol-ré-sol serão fotografados e depois, por meio de um complexo processo electrónico, serão aduzidos em números, a fim de se concluírem as totalizações necessárias às estatísticas Nada é vertido para o inglês antes de obtidos os nossos totais comparativos. Finalmente, para bem de toda a gente, os nossos resultados serão tornados públicos. Contudo, na altura da sua publicação, cada resposta pessoal já se terá transformado e sido absorvida pelo todo de modo a perder--se no anonimato comum. Seja como for, não há quaisquer possibilidades, ainda que remotas, de os resultados estatísticos criarem problemas a um indivíduo ou serem atribuídos a uma única pessoa».

À medida que escutava aquelas palavras, Sarah pensava: «De acordo com a maneira como o homem explica tudo, creio que é um método seguríssimo, além de os resultados serem publicados por uma boa causa. Talvez que a minha vida tivesse seguido um rumo diferente se anos atrás tivesse existido uma sondagem como esta. O Dr. Chapman parece um homem em quem se pode confiar. Contudo, como é possível avaliar um homem antes de o conhecermos? Antes de entrar na fase da maturidade apreciativa gostava um bocadinho de Sam, ou pelo menos pensava que gostava, e veja-se naquilo em que ele se transformou. Pelo contrário, a primeira vez que me encontrei com Fred, ele irritou-me. Parecia tão seguro de si, tão imperativo a mandar em toda a gente! Repare-se no que ele é na realidade. Ninguém neste mundo pode ser mais decente e encantador. Seja onde for, não pode haver nenhum homem que a ele se assemelhe».

Sarah fixou intensamente o Dr. Chapman, estava a vê-lo mas não a ouvi-lo, o seu cérebro continuava a elaborar pensamentos relacionados com o caso: «Julgo que para benefício da ciência será justo que lhe conte a verdade. Mas porquê arriscar-me a contar a verdade seja a quem for? Evidentemente que se contar uma mentira durante a entrevista ele acabará por descobrir—é um cientista. Além de que o caso poderá ocasionar-me problemas. E se não me oferecer para a sondagem? Sem dúvida que será mais arriscado fugir do que oferecer-me como voluntária para a entrevista. É possível que fosse eu a única e toda a gente viria a saber, desabando as perguntas. Inferno, afinal porque é que tudo parece tão simples e sai tão complicado? Creio que me sinto perturbada. A verdade é que esta manhã pretendia falar a Fred da conferência e das entrevistas e não o consegui. Porquê? Penso que por receio de que ele levantasse objecções. Fred e aquela maldita esposa! Se ao menos vivessem juntos, ainda poderia compreender, mas ele é praticamente um homem solteiro. Que teria Fred a perder se o caso se soubesse? Talvez o filho seja um motivo, mas a verdade é que nenhum deles parece visitar o rapaz, e além disso o moço é quase um homem. Eu devia ser a pessoa com mais preocupações no caso e a verdade é que não me importo mesmo nada. De certo modo até penso que gostaria que tudo se soubesse. Tenho tanto orgulho do meu Fred! Nunca mais haverá outro homem na minha vida. É estranho, até casar só tive relações com rapazes judeus, talvez devido à maneira como fui educada. Pensava até que os outros homens eram diferentes. Era o que a mamã me costumava dizer. Estou satisfeita por a mamã já não estar cá, não o devia dizer, mas a verdade é que estou. Talvez não deva contar nada do caso ao Dr. Chapman e talvez ele não faça perguntas desse teor. E se houvesse alguém capaz de ler a linguagem cifrada sol-ré-sol? O que aconteceria se tudo se viesse a saber? Como é que eu poderia olhar de frente para Debbie e Jerry? Se fossem crescidos e pessoas com certa experiência da vida, poderiam compreender, poder-Lhes-ia explicar as coisas, mas assim... Não, terei que esperar, embora seja muito duro e penoso viver nesta mentira. Como funcionará aquela máquina STC? Quantas mais mulheres haverá na minha situação? Aqui, em The Briars, a Sr.a Webb fez o que muito bem quis e deixou o marido, la a apostar que ainda se continua a encontrar com aquele vendedor de automóveis. Por que raio é que não se casa com ele? E Naomi Shields? Ouvi falar muito dela, mas de certa maneira o seu comportamento é diferente — não se trata de amor. Estou deveras cansada destas saídas às escondidas e das preocupações que isso ocasiona. Afinal como raio escreverão eles a tal linguagem cifrada?»

Mary Ewing McManus sentia-se decepcionada. Esperara que um homem com a experiência e a capacidade do Dr. Chapman fosse bastante mais prático. Pensara que depois de ouvi-lo ementaria os seus conhecimentos e poderia ter algo que pudesse utilizar ao vivo. Mas até àquele momento nada fora dito de especial, aPenas generalidades. Evidentemente que houvera umas quantas Coisas interessantes, que podia repetir ao marido e ao pai à hora do jantar. Também houvera umas quantas coisas divertidas. Mary tentou lembrar-se de alguma graça para repetir, mas foi-lhe impossível.

Deu-se conta de que estava a fixar a nuca de Kathleen. Admirava-lhe o cabelo preto, brilhante como a asa de um corvo, cortado curto e bem arranjado. O pescoço dela era branco como alabastro. Como uma oferta de amor a Norman, desejou ser tão bela como Kathleen. Sem dúvida que Naomi Shields era tão bela quanto Kathleen, mas de um tipo diferente, com uma beleza mais evidente e agressiva. O que distinguia Kathleen era o tranquilo ar de tristeza, de sofrimento interior, de profunda melancolia, coisa que formava como que uma barreira em volta dela, mantendo todos a uma certa distância. Mary sorriu. Kathleen ia ser imortalizada nas páginas de um livro, lera algo sobre o caso nos jornais. O livro era a heróica história de Boynton Ballard — a imortal história de amor de Kathleen com Boynton Ballard. Como era emocionante estar tão perto dela, conhecê-la! Afigurava-se-lhe que também fazia parte da importante história. Tal como estar a escutar o Dr. Chapman era também fazer parte da história.

Mary decidiu prestar toda a sua atenção à conferência do Dr. Chapman. Seria possível que o cientista ainda viesse a dizer algo de utilizável sobre o sexo. Desejava poder ser a melhor esposa do mundo. Isso era o que mais importava. Queria fazer Norman um homem muito feliz. Ultimamente o marido parecia bastante tristonho e abatido, e era invulgar nele a maneira como se dirigira ao papá durante o jantar da noite anterior.

O Dr. Chapman falava, e, muito embora não estivesse ainda a dizer nada de utilizável na prática, Mary começou a escutá-lo com toda a atenção.

«Os órgãos de informação chamaram-nos pesquisadores da opinião pública, mas nós preferimos intitularmo-nos investigadores e estatísticos sexuais. É isso precisamente o que somos e nada mais. Quero repetir-lhes que, de modo nenhum, representamos a vossa consciência. Não somos vossos pais, irmãos ou conselheiros morais. Não estamos aqui para criticar ou elogiar a vossa conduta moral ou para vos dizer se sois boas ou más. Somente nos encontramos aqui para recolher uma parte da história das vossas vidas, uma parte acentuadamente privada, íntima, para que aquilo que descobrirmos vos possa ajudar no futuro bem como a toda a imensa família humana».

O conferencista fez uma pausa, tossiu, levou o copo de água aos lábios e, quando recomeçou a falar, notava-se uma ligeira rouquidão na sua voz:

«Muitas de vós poderão considerar embaraçante a ideia de falar com um estranho sobre relações sexuais, ainda que esse estranho não esteja à vista, separado como estará por um biombo opaco, e seja um cientista. Não obstante todas essas razões de peso, perguntareis a vós mesmas: como poderei revelar a um estranho aquilo que nem a meu marido conto? Afinal é um receio naturalíssimo visto que, nalguns casos, o facto de os outros terem um conhecimento real do nosso secreto comportamento sexual da infância à maturidade pode levar ao ostracismo social, à vergonha pública, a dissenções domésticas e até ao divórcio. Afastem porém tal receio porque, ainda que as vossas personalidades sejam únicas e intransmissíveis, está longe de ser exclusivo o vosso comportamento sexual. Em toda a minha já longa carreira nunca escutei uma história sexual que não me houvesse sido antes repetida vezes sem conta. Solicitadas como serão a apresentar factos que estiveram e mantiveram ocultos durante meses, anos, por uma vida inteira, imaginem que não estão a falar para um ser humano mas sim para uma máquina, um aparelho que não emite juízos críticos; imaginem que estão apenas a falar para um gravador e lembrem-se de que os dados fornecidos por essa máquina só poderão vir a melhorar a vossa existência».

Escutando aquelas palavras, Mary pensou: «Claro, Dr. Chapman, mas como é que isso funcionará?»

Embora o pescoço lhe começasse a doer, Teresa Harnish continuou a olhar para cima, para a figura impressionante do Dr. Chapman. Verdadeira maravilha, pensou que era um homem finitamente mais importante do que a maioria dos seus contemporâneos, um homem feito à imagem do Dr. Schweitzer; tudo o que ele dizia estava certo, tinha autenticidade e seria purificador para o resto das mulheres que se encontravam naquela sala.

Teresa não se considerava como fazendo parte do resto das mulheres que se encontravam naquela sala. Na inteligência esclarecida do orador, que era transparente, identificava-lhe o espírito progressista. Naquele preciso dia, por afinidades, ela e o Dr. Chapman estavam em missão civilizadora das habitantes de The Briars.

Aguardara a sua sapiência, mas o que mais a encantava nele era a perfeita urbanidade e a cintilação de um espírito mundano. Já por duas vezes mergulhara a mão na malinha de mão para retirar a agenda com capa de coiro branco, o livro de Geoffrey, como o denominava, e no qual anotava epigramas que às vezes lhe ocorriam ou que eram ouvidos e lidos. Várias vezes por semana, habitualmente depois de jantar, lia esses epigramas a Geoffrey, e o rosto patrício do marido reflectia sempre a sua grande apreciação pelos ditos registados. Já inscrevera duas citações retiradas ao texto de apresentação do Dr. Chapman — decoradas para uso das reuniões mundanas. Eram sem dúvida as mais divertidas que registara. A primeira era uma frase de um tal Dom Horold (quem seria o homem?): «As mulheres não valerão muito, mas são sem dúvida o melhor sexo oposto que temos». A segunda fora citada pelo Dr. Chapman como pertencendo ao romancista e crítico Remy de Courmont: «De todas as aberrações sexuais, talvez a mais extravagante seja a castidade». A frase deliciara-a. Era na realidade tão picantemente francesa!

De novo levantou a vista para a tribuna e, por momentos, pensou que os olhos do Dr. Chapman se haviam fixado nos seus com um lampejo de compreensão pela afinidade existente entre ambos. Ajeitou a fita que lhe prendia os cabelos. Nesse momento o Dr. Chapman já tinha desviado o olhar, contemplando o auditório indiscriminadamente. Decerto não queria manifestar qualquer favoritismo.

Muitas de vós também farão a si mesmas a seguinte pergunta: «Por que razão ele se dirige a nós como grupo em vez de nos sondar individualmente?»

O Dr. Chapman frisou a palavra individualmente com um leve sorriso a pairar-lhe nos lábios, prosseguindo:

«Seria uma pergunta franca a merecer uma resposta directa. Foi durante o inquérito que realizei aos celibatários americanos que me decidi pelos grupos comunitários e não pelo indivíduo como identidade isolada. Previ, evidentemente, que as sondagens a grupos poderiam poupar tempo e movimentos. Compreendi também alguns indivíduos seriam menos relutantes em cooperar se procedessem como a grande massa humana. Mas a principal razão para a minha acessibilidade aos grupos tem ainda uma base mais científica.

«Se eu tivesse chegado a Los Angeles e anunciasse simplesmente que desejava voluntárias, estou certo de que conseguiria obter um número sensivelmente igual ao que a vossa organização me pode oferecer. Infelizmente, porém, receberia, nesse caso, somente um tipo de mulher — um tipo que, de moto próprio, estaria desejoso e ávido de debater a sua vida sexual. Isso seria valioso, mas não seria representativo de The Briars. Nesse caso estaríamos a estabelecer registo da história de uma única espécie de mulher, uma mulher exibicionista, sem inibições ou de alto nível de educação. Para um julgamento honesto, ser-nos-á necessário conhecer também as histórias das mulheres que são tímidas, envergonhadas, receosas, inquietas, pouco seguras de si ou traumatizadas. Um verdadeiro perfil de todas as mulheres casadas só pode ter validade obtendo a cooperação de um grande grupo, um grupo que inclua tipos de todos os matizes. Parece-me que consegui esclarecê-las da melhor maneira, minhas senhoras, dos motivos que me levaram a seleccionar e pedir a ajuda da vossa Associação Feminina em vez de fazer um apelo individual».

Escutando-o, Teresa Harnish pensou: «O professor é um homem extremamente sensível e objectivo. Prestar-lhe-ei toda a minha colaboração. Farei parte do seu grupo sem relutância, conquanto gostasse que ele viesse a considerar que a minha cooperação tem também o cunho do individualismo, e não porque seja uma exibicionista. Tenho a certeza de que ele se aperceberia imediatamente disso. Oferecer-me-ia individualmente, porque a causa que ele defende é boa e justa e porque devo participar na libertação do meu sexo. Julgo que direi isto mesmo a quem me entrevistar para que a compreensão do meu caso seja clara e sem reticências». Repentinamente, como um lampejo, à mente de Teresa acudiu uma pergunta: «Mas afinal o que será que eles esperam de mim?

era que querem conhecer os meus sentimentos mais íntimos e er a maneira como reajo? Parece-me que desejarão ambas as coisas. Muito bem, não há que ter receios, Geoffrey e eu somos normalíssimos. Fazemos amor naturalmente, participando no acto por mútuo acordo e temos as nossas relações de um modo civilizado. Gostaria que Geoffrey também fosse entrevistado, assim o caso ficaria bem comprovado. Quanto aos sentimentos íntimos... que emoções pode qualquer mulher ter nas suas relações sexuais conjugais? Desejo que Geoffrey se sinta satisfeito e realizado. Estou certa de que ele se sente assim. Ele diz-me sempre que sim. Não será esse o objectivo do amor e o papel da mulher? Ah, claro: a moralidade nas relações sexuais, quando essas relações são livres de superstições, consiste essencialmente no respeito de um parceiro pelo outro e não na utilização de um dos participantes somente como um meio de satisfação pessoal sem consideração pelos seus desejos, Ámen. A verdade é que eu respeito Geoffrey e os seus desejos, e estou certa de que ele procede de igual modo para comigo. Julgo que é tudo o que um ser pode esperar. Se o Dr. Chapman me entrevistar, dir-lhe-ei isto mesmo. O facto é que existe muita vulgaridade ligada ao amor sexual... todos aqueles livros que falam de louca paixão, de verdadeira voracidade, de gemidos, mordedelas, êxtase... mas já houve alguém que tivesse conhecido esse êxtase? As relações sexuais podem ser limpas, ordeiras, civilizadas. Ovídio foi um velho e sujo libertino. As relações sexuais podem ser realizadas sem que se venha a ter vergonha do que se faz ou não se faz. O que conta para o caso é o domínio e a moderação. Graças a Deus, não somos seres em estado selvagem nem animais bravios. Deve fazer-se o que é necessário, com toda a dignidade, e assim seremos mais respeitadas pelos nossos maridos. Ah, que sujeira todas essas histórias reles de mulheres que se perdem, que se comportam como verdadeiras prostitutas... que mentem aos seus consortes... Está aqui um calor abominável! Creio que depois disto irei para a praia, para a Angra de Constable, pelo menos para me descontrair, nem sequer levarei um livro para ler... Isto é, ficarei na praia se aqueles bárbaros não estiverem lá. Especialmente aquele mastodonte. Que grosseirão! Que animal tão insolente! Mas haverá alguma mulher civilizada capaz de permitir que aquele selvagem pratique amor com ela? Terá o bárbaro uma amante? Com certeza que o pode cercar um verdadeiro harém constituído por rameiras das mais baixas e talvez que na composição do seu serralho entrem também algumas caixeirinhas de lojas de segunda ordem e colegiais curiosas de brutalidade física. Julgo que a sua atracção deva residir naquelas pernas como colunas e naquele torso musculoso. Se se comportasse como um cavalheiro, é possível que não lhe fosse difícil seduzir uma mulher culta; mas nunca passará de um selvagem. Um homem como aquele atleta precisa de uma mulher que o auxilie, que o esclareça, isto é, uma mulher educada que o cultive, que seja melhor do que ele em todo o sentido estético. Claro, não é necessário que seja eu essa mulher. Afinal de contas julgo que as perguntas do Dr. Chapman incidirão sobre o modo como nos comportamos e não na maneira como sentimos. O comportamento é uma coisa definida, pode verificar-se, contar para resultados. Os sentimentos, por essência, são habitualmente muito confusos».

Naomi Shields não sentia mais de que uma grande secura na sua boca. Decorrera quase uma hora desde que estava ali e tinha uma sede incontrolável. Pensara por momentos em abandonar o auditório para ir beber um copo de água, mas compreendeu que, devido ao lugar que ocupava, a sua saída iria causar grande perturbação em toda aquela assistência tão enfronhada no que o homem dizia. Além disso, afinal não era água o que desejava beber... A sua sede não era de água, era de gim. Ao pequeno--almoço só ingerira dois copos, e a sensação de bem-estar que eles lhe haviam produzido já se dissipara há muito.

Procurou cigarros na mala, mas antes de tirar o maço olhou em redor para ver se alguém fumava. Como observasse que ninguém estava a fumar, concluiu que não era permitido durante a conferência. Perturbada, fechou a malinha. De relance, fitou primeiro Kathleen e depois Úrsula. Kathleen Ballard parecia profundamente absorvida pelas palavras do Dr. Chapman e Úrsula Palmer ocupava-se com os seus apontamentos. Sentiu inveja delas. Quis interessar-se pela palestra, distrair a atenção de si rnesma. Acima de tudo considerava, porém, que se devia ter deixado ficar na cama. Afinal porque estava ali? Determinara mudar de vida, tentar ser como as outras mulheres, interessar-se por qualquer coisa, preencher as suas horas arrastantes com uma actividade social normal. Se ao menos aquele homem não fosse tão enfadonho!

Tentou pensar em qualquer coisa que o Dr. Chapman tivesse dito, mas não conseguiu lembrar-se de uma única palavra. Aconteceria que ficava aborrecida por ouvir falar em sexualidade? Era cada vez maior a sua impaciência em relação a todos os homens que falavam de sexualidade de um modo natural. Ah, aquela chata sedução verbal, aquela postiça e teatral representação do amor... Sobre a sexualidade só havia uma coisa a dizer: deseja-se ou não se deseja. Eis tudo. Uma dualidade bem simples.

Sentou-se muito direita, com os firmes seios espetados para a frente, fixando o proscénio. Havia que cultivar a arte da atenção que fazia parte de uma actividade social normal. Devia pois aprender a ouvir. Rígida, escutou o que o Dr. Chapman dizia:

«É possível que consigam tranquilizar os vossos espíritos se conhecerem o método exacto daquilo que terão que enfrentar na hipótese de resolverem oferecer-se para serem entrevistadas logo que termine esta conferência. No átrio encontrarão quatro secretárias, cada qual com quatro secções distintas de letras do alfabeto, que correspondem, respectivamente, à inicial dos vossos apelidos. Podem escrever o vosso nome completo e a morada, e na segunda-feira receberão um postal onde estará indicado o dia e a hora para a entrevista. Segundo os dias e horários apontados, deslocar-se-ão a este edifício da Associação, e no corredor do andar superior encontrarão montada a mesa de expediente da minha secretária particular, Miss Selby, que vos conduzirá até um dos gabinetes destinados às entrevistas. Aí, encontrarão um biombo separativo, uma cadeira confortável e o material destinado à sondagem; por detrás do biombo ficará instalado um membro da nossa equipa para escutá-las, tendo como único equipamento de trabalho um lápis e o seu conhecimento da cifra sol-ré-sol. Como já antes frisei, as senhoras não verão o entrevistador nem ele as poderá ver.

«Após terem-se instalado o mais descontraidamente que vos for possível, o entrevistador inquirirá a vossa idade, certos pormenores sobre os vossos antecedentes e grau de cultura, e fará também algumas perguntas a respeito da vossa situação matrimonial. Seguir-se-á uma série de perguntas mais objectivas e pormenorizadas, perguntas essas que, como já disse, se encontram elaboradas em três categorias distintas. São essas categorias que vou explicar.

«A primeira só se relaciona com a história sexual e respectiva actividade. Pode ser-vos perguntado: "Qual é a frequência actual das relações sexuais com seu marido"? Ou: "Logo a seguir ao casamento, qual era a frequência das relações conjugais"? Ou ainda: "Em que altura do dia tem, habitualmente, relações sexuais com seu marido — de manhã, à tarde, à noite"?

«A segunda categoria de perguntas está em relação com as vossas atitudes psicológicas no que respeita à sexualidade dentro do casamento. Pode ser-vos perguntado: "Se, devido a uma qualquer formalidade inopinada e insólita, soubesse, neste momento, que o seu casamento não tinha validade, que se podia considerar legalmente livre de tal união, aproveitaria a situação para abandonar imediatamente o seu marido"? Ou podem por--vos a seguinte pergunta: "Esperava, antes do casamento consumado, que seu marido fosse virgem, um amante experiente ou nem sequer pensou em tais coisas?"

«Quanto à terceira categoria de perguntas, relaciona-se com as vossas reacções aos estímulos sexuais. Durante as entrevistas, em momento oportuno, chamar-se-á a vossa atenção mais directa para uma caixa de coiro colocada ao lado da cadeira, pedindo o entrevistador que a abram. Apelidamos a caixa sob as siglas C.O.E. — Caixa dos Objectos Especiais. Ser-vos-á então pedido que tirem lá de dentro certos objectos artísticos e que os observem com toda a atenção. Depois virão perguntas directas no respeitante às vossas reacções a esses estímulos visuais. Poderão encontrar-se a observar a fotografia de uma colónia de nudistas ou a reprodução de uma estátua de Praxíteles representando um varão nu, com o acompanhamento da seguinte pergunta: "Sente-se eroticamente estimulada por aquilo que vê? Até que ponto vai esse estímulo?" Ou poderão encontrar-se a ler uma determinada passagem, previamente assinalada, da edição original e sem cortes do romance clássico de D. H. Lawrence O Amante de Lady Chatterley, seguida por esta Pergunta: "A passagem que acabou de lerexcitou-a? Se a excitou Pode dizer qual a intensidade dessa excitação?"

«A estas três categorias de perguntas podem responder com rapidez, com lentidão, desenvolvidamente ou resumidamente, como preferirem. Poderão ser feitas 150 perguntas, quase nunca mais do que essa conta, e a entrevista, média geral, deve durar uma hora e um quarto. Uma vez terminada, as entrevistadas retirar--se-ão dentro do mesmo sigilo com que vieram, podendo ter a certeza de que tudo o que revelaram apenas faz parte de um conjunto de dados a fornecer à nossa máquina STC, e que os resultados totais apurados servirão para iluminar uma zona da vida humana durante tanto tempo mergulhada na penumbra da ignorância. Como podem perceber, a operação não reflecte a mínima complicação. Não ocorrerá nada de mais ou de menos a não ser, exactamente, o que acabei de explicar. Aguardo esperançado que queiram participar sinceramente em tão meritória tarefa — com a compreensão plena de que a vossa vida, bem como a vida das gerações futuras, poderá vir a ser mais saudável, mais consciente e mais feliz, graças a um momento de verdade.

«Posto isto, só me resta agradecer ao gentil auditório toda a bondade e atenção com que me escutou».

Enquanto reboava pela sala uma calorosa salva de palmas, Naomi dizia para consigo: «Se é certo que me podes vir a tornar mais saudável, mais consciente e mais feliz, não há dúvida que me conquistaste, meu velho. Só não compreendo o motivo de toda essa encenação que me parece de falsa modéstia e humildade exagerada. Para quê todos esses biombos, línguas mortas, cofres, máquinas computadoras e segredos? Nunca fiz nada de que tivesse que me envergonhar. Não passo de uma mulher que aprecia as relações sexuais, necessito delas, e existem milhares de mulheres como eu. Quanto tempo disse o velhinho que demorava a coisa? Uma hora e um quarto? Só à minha parte seria capaz de te moer o bichinho do ouvido sem parar durante vinte e quatro horas e um quarto».

—        Naomi!

Sacudiu a cabeça e voltou-se para o lugar de onde partia o chamamento. Mary McManus estava inclinada para a sua cadeira, e Naomi compreendeu que ficara sozinha sentada no seu lugar, enquanto as outras já iam a sair.

—        Então quanto ao nosso almoço... vamos? — perguntava--Lhe Mary.

—        Claro que sim.

Naomi levantou-se prontamente e aprestou-se a seguir Úrsula e Kathleen, já a meio da coxia.

Mary McManus aguardava-a no fim do corredor, com os olhos a brilharem de emoção.

—        Foi apaixonante, não foi?

—        Muito apaixonante — respondeu Naomi, com a entonação de quem faz uma festa a uma criança —, exactamente como a primeira festa para uma menina de coro.

O Dr. Chapman estava nos bastidores ao lado de um descarregador de água. Tirou um dos copos de papei, soprou-o para o encher e depois carregou na válvula de descarga. O líquido gorgulhou no recipiente de vidro.

—        Então que tal? — perguntou, dirigindo-se a Emil Ackerman.

—        Até eu fiquei ansioso por me inscrever para uma entrevista — respondeu Ackerman com um sorriso escarninho. — Mas é fora de dúvida que esta conferência foi de longe melhor que a palestra feita há dois anos para os celibatários.

O Dr. Chapman riu-se.

—        Diz isso só porque me dirigi a mulheres. E você é um homem...

—        Julgo que sim — concordou Ackerman.

—        Então ainda não tem apetite?

—        Tenho, e muito, mas não daquilo em que está a pensar — replicou Ackerman em jeito de trocadilho.

Enquanto Emil Ackerman ria a bandeiras despregadas pela sua facécia, o Dr. Chapman correspondeu apenas com um leve esboçar de sorriso, olhando cautelosamente em volta para verificar se havia alguém a escutá-los. De modo nenhum gostava de ser surpreendido em situações em que o cientista puro pudesse não parecer mais de que um simples mortal.

—        Julgo que um bom bife lhe satisfará esse apetite bizarro — volveu o Dr. Chapman, voltando a concentrar a sua atenção em Ackerman.

Pouco depois, segurou o braço do gordo Emil e encaminharam-Se Para a porta dos bastidores.

Ao chegar ao átrio, Kathleen Ballard viu que já havia compridas bichas em frente de cada uma das secretárias dispostas para o efeito. Na confusão da saída do auditório perdera-se de Úrsula, Naomi e Mary. Considerou, olhando, que a porta da rua não ficava muito longe do lugar onde estava. Sentiu-se segura de que podia partir sem que ninguém a notasse, e já começara a movimentar--se por entre aquela multidão de mulheres quando ouviu que a chamavam de maneira bastante audível.

Subitamente invadida por suores frios, voltou-se e avistou Grace Waterton, que, rompendo através da concentração de pessoas que se aglomeravam no átrio, se dirigia para ela.

—        Julgo que não nos ia abandonar neste momento, não é verdade? — perguntava a presidente da Associação.

—        De modo nenhum... eu... sim... ia sair por uns instantes... as bichas são já muito grandes, e tenho uns assuntos a tratar. Pensava em voltar dentro de meia hora.

—        Que soberana tolice, minha querida. Venha comigo.

Grace agarrou-lhe na mão e levou-a até perto da mesa na extrema-esquerda, assinalada pelas letras de «A a G». Na fila, que a cada momento ia engrossando, estavam cerca de vinte senhoras.

—        Se tem assuntos importantes a tratar, as outras saberão compreender e dar-lhe prioridade — disse Grace Waterton, chamando a atenção de uma das candidatas:

—        Sarah!

Sarah Goldsmith acendia um cigarro. Era a segunda da bicha e esperava que a mulher gorducha, à sua frente, inclinada para a secretária a escrever o seu nome e morada, se despachasse. Levantou os olhos.

—        Sarah, desculpe incomodá-la, mas Kathleen tem de se retirar com brevidade para um encontro marcado a que não pode faltar. Importa-se que ela se inscreva à sua frente?

Sarah fez um gesto de consentimento.

—        De modo nenhum. Com certeza; Kathleen, pode passar à minha frente.

—        Lamento muito incomodá-la, na verdade não me parece muito próprio usurpar-lhe o lugar — disse Kathleen, que se voltou para dizer qualquer coisa a Grace.

Mas esta já se tinha retirado para junto de outra das mesas.

Entretanto, Sarah afastara-se um pouco, dando-lhe lugar.

—        A senhora que se segue — dizia Miss Selby.

Kathleen avançou incerta, mas aceitou a caneta que lhe era estendida e escreveu o seu nome e morada na comprida folha das inscrições.

—        Gostou da conferência? — perguntou Miss Selby com um sorriso de urbanidade.

—        Gostei muito — respondeu Kathleen, um pouco contrafeita pela mentira. — Na verdade foi muito instrutiva.

Devolveu a caneta, deu um passo para o lado e preparava-se para se retirar, quando se lembrou de Sarah.

—        Muito obrigada pela sua gentileza, Sarah. Como vai a sua família?

—        Em statu quo. Tudo na mesma, como sempre.

—        Um destes dias temos que almoçar as duas. Se não se importa, dou-lhe uma telefonadela.

—        Terei até imenso prazer nisso.

Liberta por fim daquefe ambiente escaldante, conquanto se sentisse presa àquele compromisso que não queria aceitar (condenada ao terror sombrio do nome e morada que inscrevera naquela página), Kathleen encaminhou-se para a porta quase a correr.

Já no passeio, em frente da Associação Feminina, ficou por momentos parada ao sol ardente a pensar onde é que tinha estacionado o carro. Por fim começou a descer a rua, felizmente ainda vazia, o que a libertava do tormento de encontrar quem lhe falasse da conferência.

Com passo lento deslizou pela ladeira da Romola Place.

De uma das janelas do segundo piso da Associação, Paul Radford olhava para Romola Place.

Viu uma mulher que descia a íngreme ladeira compassadamente. Não lhe podia ver o rosto, mas o cabelo escuro e luzidio cintilava em escuros reflexos, batido pelo sol. O vestuário que envergava — uma camisola e uma saia — tinha todo o ar de ter sido adquirido numa das elegantes lojas da zona. Paul ficou com Pena de não lhe poder ver a cara. De costas era notória a sua elegância.

Mudou o cachimbo de um para o outro canto da boca, soprando uma baforada de fumo azulado sem tirar os olhos daquela silhueta de mulher. Via-a agora a atravessar a rua e abrir a porta de um Mercedes. Por momentos a porta da frente do veículo ficou escancarada, mostrando uma das torneadas pernas de mulher solitária. Mesmo àquela distância o panorama era magnífico. Em breve a perna desapareceu e ouviu-se a pancada seca da porta do automóvel ao fechar-se, seguida pelo roncar do motor.

Com um suspiro, Paul voitou-se para o interior da sala onde, sentados a uma mesa, Horace e Cass, afadigadamente, classificavam um monte de questionários.

—        Dá a impressão de que o velhote as conquistou totalmente.

A conferência já terminou há algum tempo, mas foram poucas as mulheres que se retiraram — disse Paul.

Horace continuou com o seu trabalho, mantendo-se silencioso, mas Cass parou de manusear as folhas.

—        Felizmente que tudo vai terminar aqui — pegou num dos questionários. — Com mil diabos, a verdade é que estou farto destas perguntas.

—        Não se esqueça de que são destinadas a iluminar uma zona até agora mantida na escuridão — disse Paul, com um sorriso zombeteiro.

—        Ora, ora... repare bem nisto — replicou Cass, lendo em voz alta: «dado que já teve relações extraconjugais, poderá responder à seguinte pergunta suplementar: "Na primeira vez que efectivou essas relações foi a promotora, a seduzida, ou o acto foi praticado de mútuo acordo"?»

Colocou a página em cima da mesa e levantou os olhos para encarar Paul.

—        Cadelas! — disse com veemência.

—        Quem? — perguntou Paul, franzindo a testa.

—        Ora, as mulheres casadas. Todas as mulheres casadas — respondeu Cass sibilantemente.

Depois baixou os olhos e continuou a seleccionar os questionários destinados às matrimoniadas da área de The Briars.

 

A Villa Neapolis era um motel a respeito do qual, sem relutância, poderia ter sido escrito um opúsculo publicitário assinado pelo esteta Petrónio. O arquitecto do complexo baseara-se em vivendas da Roma primitiva e nas modernas villas italianas das costas do Mediterrâneo. O conjunto resultante ficara vincado numa construção híbrida, de madeiramentos e estuques, que conseguia impressionar, e possuía um certo mérito estético, do qual o «Árbitro das Elegâncias» não desdenharia falar.

Os sessenta apartamentos e quartos da Villa Neapolis estavam divididos por dois pisos e assentavam no cimo de uma alta colina. Do terraço superior tinha-se uma vista espectacular — a norte, nas traseiras do motel, havia uma nesga azul de oceano esfumada numa cortina de névoa; a oeste, o verde de um terreno arborizado do campo universitário; a leste, para além do amplo espaço da piscina e da pequena divisão de pátios em estilo espanhol, a mancha azulada das altas montanhas e, a sul, logo no fim da colina onde a Villa estava construída, a serpenteante estrada ladeada de palmeiras, a atravessar o subúrbio de The Briars, que era o Sunset Boulevard.

Emil Ackerman resolvera reservar alojamentos em Villa Neapolis — uma suite para o Dr. Chapman e quartos para os outros membros da equipa — porque o proprietário do motel lhe devia uns quantos favores anteriormente prestados. O complexo era uma coisa nova e muito frequentado por celebridades de passagem na área de Los Angeles e, além de ser um local agradabilíssimo para uma estadia de duas semanas, ficava somente situado a cerca de dois quilómetros de Village Green e de Romola Place, onde se erguia o edifício da Associação Feminina em que decorreriam as entrevistas.

Até o Dr. Chapman, habitualmente preocupadíssimo com o seu trabalho para aprovar ou desaprovar qualquer habitat provisório, se sentira impressionado com a Vila Neapolis e manifestara já o seu reconhecimento ao patrono político pelo gosto revelado em alojá-los o melhor possível.

Estava-se na manhã de domingo. O Dr. Chapman, envergando uma camisa desportiva e umas calças de linho, encontrava-se, com Cass e Horace, a tomar o pequeno-almoço sentado à beira da piscina, numa mesa metálica coberta por um largo toldo circular aos gomos coloridos.

O Dr. Chapman tinha à sua frente um prato com ovos estrelados e presunto fumado; Horace estava à volta com as suas panquecas e Cass deixara de prestar atenção ao seu pequeno--almoço à francesa — torradas e café com leite — para observar uma tímida donzela loira, aparentando uns dezasseis anos, que se dirigia para a prancha de saltos, acabada de sair dos pequenos bungalows que serviam de vestiários aos utentes do motel.

—        Ora bem, estou satisfeitíssimo por terminarmos aqui a nossa sondagem — disse o Dr. Chapman, enquanto cortava um bocado de presunto fumado.

—        Embora o senhor já me tenha informado, esqueci-me do número de voluntárias. Quantas temos? — perguntou Horace.

—        Um número bastante promissor—respondeu o Dr. Chapman. A Associação Feminina possui 286 sócias, das quais estão qualificadas 226 para as nossas entrevistas. É Benita que possui a estatística exacta, mas creio que poderemos contar com 201 ou 202 entrevistas. Descontando que, por este ou aquele motivo, não comparecem de 7 a 10 por cento, ficamos com um razoável número de elementos válidos. Já enviei um telegrama para S. Francisco a cancelar a opção.

O silêncio voltou a pairar, com Chapman ocupado com o presunto e os ovos, Horace a deglutir os últimos pedaços de massa frita com molho e Cass a observar a jovem loirita.

A adolescente, antes de chegar à prancha, sentara-se por um momento à borda da piscina, metendo um pé dentro da água a experimentar a temperatura. A seguir subiu a escadinha e caminhou, baloiçando, pela tábua de saltos. Tomou posição, e o seu corpo núbil descreveu um gracioso arco em pleno ar, mergulhando na esverdeada água, para reaparecer um pouco mais longe. Em amplas braçadas dirigiu-se para a escada de ferro e saiu. Todo o seu corpo gotejava, e o fato de banho, de um amarelo vivo, modela-va-lhe agora mais vincadamente os pequenos mas rechonchudos seios e as elegantes mas fartas nádegas. Vendo, num relance, que era observada por Cass, corou e procurou descer um pouco o fato de banho que se lhe apertava junto ao púbis.

Quando de novo a pequena se dirigia para a prancha, Cass deu uma cotovelada em Horace e disse-lhe:

—        Olhe para aquele traseiro.

Horace procurava um cigarro nos bolsos.

—        A única coisa que eu vejo é uma prisão por detrás dela. Prefiro-as bem mais crescidas e maduras, assim já não há perigo.

—        Gostos não se discutem. Que seria do amarelo... Para mim, todas as rapariguinhas entre os dezasseis e dezassete anos são bonitas e elegantes — replicou Cass, cujos olhos não se desviavam da adolescente. — Nestas idades todas são belas. Daqui a uns anitos a maior parte das moças de agora perdem toda a graciosidade. Mas sem dúvida que a juventude é beleza em si própria. Repare nos contornos magníficos daquele corpo...

Desviou os olhos para Horace e sacudiu a cabeça.

—        Passados uns anos... quase todas se gastam depois de muito usadas, e é pena.

O Dr. Chapman não escutara a conversa dos seus assistentes, mais ou menos murmurada. Ouviu, porém, as últimas palavras de Cass Miller e levantou os olhos da comida.

—        Afinal o que é que o preocupa, Cass?

—        A condição humana, especialmente a condição especial das mulheres.

Antes que o Dr. Chapman pudesse dizer qualquer coisa, ouviu-se o ruído produzido por alguém que descia as escadas de madeira que levavam ao andar superior. Todos olharam na direcção do ruído para verem Paul Radford em alva camisa de ténis e calções. A sua estatura ficava ainda mais acentuada por aquela indumentária. Paul cumprimentou os seus colegas e, de modo imperceptível, fez um rápido sinal ao Dr. Chapman, que se levantou prontamente da cadeira.

Paul e o Dr. Chapman caminharam até um dos pátios, em estilo espanhol, parando em sítio onde não podiam ser ouvidos pelos outros.

—        Acabo de falar com o Dr. Jonas — anunciou Paul.

—        Foi mesmo ele que atendeu o telefone?

—        Foi.

O Dr. Chapman manifestava no rosto uma certa ansiedade para além da máscara de compustura que era hábito usar.

—        A nossa conversa foi curta. Não tive mais que me apresentar. Declarei-lhe que a nossa sondagem termina aqui em Los Angeles, que permaneceríamos duas semanas em The Briars e que... bem, que pretendia avistar-me com ele.

—        O que é que ele disse? Mostrou-se surpreendido?

—        Não, julgo que a sua voz não era de surpresa. Até me deu a impressão de que já esperava ser contactado por um elemento da nossa equipa. Afirmou-me que já sabia da nossa estada em Los Angeles por ter lido as notícias vindas a lume nos jornais.

—        Não se esqueça de que Jonas é uma criatura possuidora de muita astúcia.

—        É possível que sim, mas durante a nossa conversa pelo telefone afigurou-se-me ser uma pessoa terra-a-terra, bastante atencioso e gentil.

—        Não se deixe enganar pelas suas falinhas mansas.

Conheço-o muito bem. Mantenha-se em guarda.

—        Sem dúvida. Aliás fui até muito cauteloso.

—        Quis saber porque é que você deseja encontrar-se com ele?

—        Nem uma só palavra foi pronunciada sobre esse assunto. Afirmou-me que estava encantado com a visita e fui eu que pensei em dar-lhe qualquer explicação. Disse-lhe que sabíamos dos seus artigos sobre o trabalho da nossa equipa e que estávamos interessados em auscultar a sua opinião ao vivo. Frisei-lhe estarmos preocupados com certas observações tornadas públicas e impressionados com certos aspectos dos artigos dele. A modos de complemento, disse-lhe depois que, de certo modo, ele e nós pugnávamos no mesmo lado da barricada e tínhamos um objectivo comum, muito embora fossem diferentes as nossas maneiras de estudo e aproximação. Finalmente, afirmei-lhe que talvez conseguisse aprender alguma coisa em falar directamente com ele e que, para ele, seria possível que o nosso encontro também tivesse a sua utilidade. O homem mostrou-se compreensível e urbano.

—        Ele falou em mim?

—        Só depois de o encontro já estar combinado. Foi então que me disse: «Senhor Radford, diga ao seu chefe que também fica convidado a vir a minha casa».

—        Chefe...

—        A palavra não foi pronunciada de maneira depreciativa. Todo o vocabulário empregado pelo Dr. Jonas teve características puramente informais.

—        Quando é que se encontra com ele?

—        Na segunda-feira... isto é, amanhã à noite, depois do jantar, por volta das oito horas. O Dr. Jonas mora em Cheviot Hills, a cerca de meia hora de carro do motel.

O Dr. Chapman ficou por instantes pensativo, mordendo o lábio inferior como era seu hábito.

—        Sinto-me satisfeito — disse por fim. — Se se mostrou urbano e compreensivo, é natural que acolha sem relutância a nossa proposta. Vou pensar um pouco no caso e, esta noite, depois do jantar, voltaremos a falar.

—        Certo.

—        São necessários preparativos aturados — acrescentou o Dr. Chapman. — A proposta deverá ser o mais atractiva possível.

Benita Selby atravessava o empedrado do pátio, fazendo soar os saltos numa espécie de eco abafado, e trazia um gigantesco e volumoso envelope debaixo do braço. Ao chegar junto dos dois homens, apontou para o grande envelope, em forma de saco, com um sorriso triunfal.

—        Está tudo feito.

—        Tudo? — a interrogação era do Dr. Chapman.

—        Tudo. Preparei os horários das entrevistas e terminei os postais — bateu no saco. — Estão todos aqui.

—        Quantos?

—        Exactamente duzentos e um.

—        Ora vejamos... — começou o Dr. Chapman num esforço de cálculo mental. — Serão três entrevistadores — desta vez fico de fora, quero dedicar-me aos estudos e comparações dos inquéritos. Paul, vocês três podem entrevistar, individualmente, seis mulheres por dia, dezoito entrevistas na totalidade; logo, em onze dias úteis de trabalho, terão entrevistado 198 mulheres, o que é um número que ultrapassará as apresentações. Garantido que haverá uma pequena margem de desistência, como aliás é normal dentro da nossa média prevista. Magnífico. Significa que, tirando os domingos, estaremos de partida em... Benita, quando é que se iniciam as primeiras entrevistas?

—        Terça-feira de manhã. Amanhã serão os postais distribuídos.

—        Ora... poderemos estar longe daqui de... de hoje a quinze dias. Bem, o melhor é que vá meter esses postais no correio. A estação dos Correios fica perto da Associação Feminina. Está fechada hoje, mas em frente há um marco. Esta tarde fazem-se sete tiragens, fui informado disso. Também já chegaram os dois automóveis que alugámos para as deslocações — um Forde um Dodge. Estão nos parques 49 e 50 — o Dr. Chapman levou a mão ao bolso das calças e tirou dois molhos de chaves. — Leve o Ford — disse para Benita Selby.

—        Eu vou consigo — afirmou Paul. — Preciso de comprar tabaco.

Cavalheirescamente tirou o enorme envelope a Benita e sopesou-o.

—        Que a nossa última sondagem seja a melhor de todas.

—        Não se preocupe com isso — retorquiu-lhe o professor. — Anteontem examinei bem aquelas mulheres. Tenho a impressão de que são das mais evoluídas que conheci nos últimos meses. Além disso, Emil Ackerman falou-me delas com palavras de muito apreço. Fazem parte de algumas das melhores e mais distintas famílias da cidade.

—        Essa qualidade pouco me importa — proferiu Paul. Tudo o que desejo é que se mostrem inteligentes e manifestem interesse. Vou escutar sessenta e seis em onze dias.

—        Vá então deitar esses postais no marco — disse o Dr. Chapman afavelmente a Benita Selby, manifestando aquela insistência de dedicação de um homem que já havia estudado o humilde sagui, o lémure e o macho humano.

A estação dos Correios que servia The Briars provia os seus carteiros, para uma distribuição mais eficiente às vivendas esparsas, separadas entre si, por vezes, por amplos jardins e pátios, de motoretas de garridas cores em listas brancas e azuis. Os carteiros podiam assim deslocar-se com rapidez de casa a casa.

Por isso, na segunda-feira, antes do meio-dia, já todos os postais a marcar as entrevistas estavam pontualmente distribuídos.

O postal dirigido a Kathleen Ballard era do seguinte teor: «A entrevista a que V. Ex.a anuiu está marcada das 16 às 17,55 de quarta-feira, dia 28 de Maio, efectuando-se na sede da Associação Feminina de The Briars».

Com excepção da data e da hora — escritos a tinta —, o resto do postal era impresso.

O postal encontrava-se em cima da mesinha da sala de visitas juntamente com todo o outro correio recebido todas as segundas--feiras de manhã — duas revistas, a circular de um armazém, a conta da leitaria, o novo cartão de crédito para compra de gasolina e a carta, bimensal, de uma irmã mais velha, casada, residente em Vermont; uma página sempre cheia de trivialidades.

Kathleen levara aos lábios a chávena de café fumegante e, por sobre o rebordo da chávena, podia ver a pilha da correspondência. Alguns minutos antes da chegada de J. Ronald Metzgar passara já em revista o correio e dera pelo postal. Estava decidida a rasgá-lo logo que Metzgar se fosse embora; se alguém telefonasse a inquirir porque não comparecia, responderia que estava doente. A persistente doença duraria tanto tempo quanto as duas semanas que o Dr. Chapman e o seu grupo passariam em The Briars.

Como Metzgar continuava a falar — não fizera outra coisa durante a última meia hora —, voltou um pouco a cabeça e fingiu escutá-lo profundamente atenta.

Há muito que Kathleen havia notado que Metzgar fora moldado Para o papel que desempenhava na vida. Tinha o tipo exacto do homem que, aos sessenta e dois anos, ainda jogava ténis em vez de golfe, que casa pela terceira vez com uma mulher da melhor sociedade (sendo cada uma das mulheres progressivamente mais jovem e de mais destaque senhoril) e era presidente de certa coisa terrivelmente rica e importante conhecida como Radcone Aircraft.

Metzgar, com o seu cabelo grisalho, ondulado, o pequeno bigode bem aparado e o rosto sempre meticulosamente barbeado, tinha um aspecto de banqueiro próspero, esse ar realçado pelos óculos com armação de oiro. Era um homem corpulento, sem ser gordo, talvez com 1,80 m de altura, que demonstrava a sua vaidade pela boa saúde de que sempre gozara. A voz tinha um tom demasiado agudo e falava num fluxo de palavras que, às vezes, se tornavam difíceis de apreender por um interlocutor menos prevenido. Dizia-se que era espertíssimo para os negócios e tinha fama de levar sempre a água ao seu moinho, aliás uma coisa que Kathleen pensava ser muito evidente nele.

Ainda de manhã cedo, Metzgar telefonara para a vivenda da viúva de Boynton Ballard, dizendo que, antes de ir para a fábrica, gostaria de a visitar. Marcara a visita para as dez horas e chegara cinco minutos atrasado, transportado na sua limusina preta, guiada por um motorista fardado a preceito e, durante meia hora, falara sem parar de uma recente visita em Havai, das dificuldades com a mão-de-obra e dos conflitos resultantes da exagerada intromissão dos agentes governamentais no que se referia à aplicação da energia atómica à aviação comercial; durante esse tempo Kathleen in-terrogara-se se ele viera com um fim especial ou quisera simplesmente fazer uma visita ao santuário do herói.

Nesse momento, reparando que Metzgar esvaziara a sua chávena, Kathleen interrompeu a verborreia do magnata da aviação.

— Jay (Boynton tratara-o sempre por Jay, e Kathleen, por decalque, fora quase obrigada a adoptar o mesmo tratamento), dá-me licença que chame a criada para lhe servir mais café?

A criada a que se referia era Albertina, uma mestiça magra, sempre vestida sobriamente — com dentes chapeados a ouro, que era a admiração de Deirdre —, que, cinco dias por semana, estava determinadas horas na vivenda a fazer as camas, limpar o pó a metade da mobília, quebrar alguns pratos e chávenas e ler ou contar, em voz cantante e arrastada, umas histórias a Deirdre, para esta adormecer com mais rapidez.

—        Não, Katie. Não se incomode, muito obrigado. Vou-me embora dentro de alguns minutos.

—        Mas quase que mal acabou de chegar... (era a velha delicadeza ritual).

—        Bem sei que não é nada bom andar sempre a correr desta forma, mas o caso é que tenho muito que fazer. Às vezes nem sei para onde me hei-de voltar, mas nunca gostei de encarregar outras pessoas de arcarem com os meus deveres. Quando Boy era vivo, segui muitas vezes o invariável conselho que ele me dava. Boy costumava dizer-me: «Jay, não pense mais nisso, só se vive uma vez. Goze a vida e faça os escravos trabalhar por si». Era um autêntico manancial de filosofia da vida, e eu, durante um ou dois dias, quebrava as amarras que me prendem à secretária. Nunca conheci outro homem que melhor soubesse o real significado dos verdadeiros valores da existência humana.

Kathleen conservou-se silenciosa.

Metzgar fitou-a de soslaio e, como quase toda a gente, interpretou a sua atitude pelo lado mais favorável à unção do culto do herói.

—        Lamento imenso, Kathleen. Creio que Boy está presente no seu espírito... Bem, de certo modo, não é uma situação nada justa para si... uma mulher ainda tão nova...

Ao ouvir aquelas palavras, o desejo de Kathleen foi gritar a sua cólera, desfazer aquele engano, que era o martírio da sua vida, mas o desenvolvimento civilizante que nela se iniciara vinte e oito anos antes afogou os gritos.

—        A dor já passou — disse com firmeza. — A vida não pára, continua sempre. Boynton morreu. É um facto que não podemos modificar. O mesmo nos acontecerá a todos um dia.

Kathleen sabia que Metzgar não apreciaria o seu desabafo, e viu-o a alisar os pêlos do bigode com as pontas dos dedos, piscando os olhos repetidas vezes por detrás dos óculos de arcos de oiro, o que era uma maneira de manifestar a sua desaprovação.

—        Ora... claro que a sua atitude é a única saudável a tomar... gaguejou ele por fim, desta vez espaçando as palavras. Na verdade queria trocar umas palavras consigo sobre Boy... De certa Janeira é um assunto com relação directa entre nós. Jim Scoville falou-me da última vez que esteve aqui em sua casa...

—        Sim, Jim esteve aqui durante alguns instantes. Tinha umas certas perguntas a fazer-me acerca do quarto capítulo do livro.

—        O Livro — e Metzgar sublinhou a palavra, tal como um rabino judeu que se estivesse a referir ao Deuteronómio.—A Katie bem sabe que queremos que o livro seja um símbolo de tudo aquilo que Boy representava.

—        Sim, estou certa disso. E em boa verdade Jim Scoville é um homem muito consciencioso, muito meticuloso... e profundamente acatador das directrizes.

Pelos olhos de Metzgar perpassou uma rápida centelha da desaprovação que a última palavra provocara.

—        Sinto bem dentro de mim, e sei que a Katie também sente o mesmo, não devemos permitir que haja qualquer sombra que possa prejudicar a grande figura pública que foi; não devemos permitir que nada seja alterado da recordação que dele existe e da forma como será retratado ao vivo no livro.

—        Não estou a compreender.

—        Por acaso, Jim Scoville observou que a Katie parece estar ligada, por assim dizer, a essa sondagem sobre questões... sobre questões... bem... sexuais, levada a efeito por um tal Dr. Chapman. No entanto, capacito-me que Jim deve ter compreendido mal o assunto.

—        Não. Na verdade Jim não se enganou. Faço parte de um clube feminino perfeitamente respeitável, que foi escolhido para colaborar no inquérito do Dr. Chapman. De resto, ofereci-me tal como quase todas as outras componentes da associação.

—        Mas a Katie não compreende que não é... não é uma mulher como... como as outras? Perante o público a sua figura é de excepção. Foi a mulher do herói. É a viúva e depositária do melhor que Boy teve. Para muita gente, se não para toda a gente, a colaboração nessa sondagem seria a violação da confiança que o herói em si depositou... Se me permite, seria um autêntico descalabro discutir publicamente certas questões da sua vida conjugal com Boy... Coisas íntimas e que devem ser preservadas a todo o custo, assuntos que só a Boy e a si pertenceram e a ninguém devem ser reveladas.

Kathleen sentiu os nervos em franja.

—        Por amor de Deus, Jay, afinal o que é que o senhor pensa da minha vida com Boynton? Éramos casados, marido e mulher à face da Lei, um casal comum, como qualquer outro, a despeito de tudo o que possa pensar sobre o caso. Nem interessa o que o grande público possa pensar disso. Aos olhos do Dr. Chapman não passo de uma mulher. Uma mulher que hoje é viúva e que antes foi casada com um homem chamado Boynton Ballard. Tudo isto é afinal a coisa mais natural deste mundo...

—        Não está certo — interrompeu-a Metzgar. — A sua posição deve ser salvaguardada a todo o custo. Não terão um efeito salutar e decente aos olhos do público. A Katie é por de mais conhecida como a viúva do herói, toda a gente sabe que foi casada com Boy, e de certeza que coisas ambíguas como essa começam logo a propaiar-se...

—        E depois? Todas as pessoas que lerem o livro devem saber muito bem que nem eu continuei a ser virgem após o casamento, nem Boynton, como é óbvio, era nenhum eunuco.

—        Na verdade, Kattie...

—        Não, não se traia de nenhum gracejo. Estou a falar com sinceridade. Fomos casados. Dormimos juntos. Afinal como é que as pessoas pensarão que Deirdre nasceu... por milagre, como a Imaculada Conceição?

—        Quanto a Deirdre é um assunto diferente. Foi uma coisa normal, decente, limpa. Mas deve saber que... bem... ao inquérito desse Dr. Chapman estão associadas coisas anormais e indecentes. Quando o seu relatório sobre a vida sexual das mulheres casadas americanas for publicado, toda a gente saberá que a Katie participou nele...

—        Juntamente com mais três ou quatro mil mulheres...

—        Não é a questão que se põe. Por favor, desligue-se disso, Katie. Aliás nem parece uma coisa sua.

Naquele trémulo apelo, Kathleen sentiu a ânsia infantil e humilde de Metzgar, sentiu que aquele tubarão dos negócios, aquele grande homem vivia inteiramente dominado pela figura representativa de Boynton, o herói que ele sempre desejara ser e cuja memória cultivava como um prolongamento de si mesmo. Seria inútil continuar aquela conversa. Metzgar de modo nenhum Poderia compreender a verdade verdadeira ou talvez que não lhe interessasse compreender, o que era ainda pior. Tudo o que nesse momento desejou foi ver aquele homem longe da sua vista, fora de sua casa, afastá-lo como se afugentasse um pesadelo que lhe lembrava a personagem de um antigo tormento.

—        Bom, se na verdade o assunto tem para si tanta importância...

—        Decerto que tem. Mas repare que só penso no seu bem--estar. Telefone a esses homens da sondagem e anule a sua entrevista.

—        Muito bem, Jay. Farei o que pede.

—        É uma mulher maravilhosa e de espírito sempre dentro da rectidão. Estava certo de que viria a proceder dentro do que é absolutamente razoável.

Metzgar levantou-se, impando de orgulho pelo seu poder de persuasão. Kathleen pensou que o homem devia manifestar aquele ar de satisfeito consigo próprio quando concluía um daqueles complicados negócios em que estavam envolvidos milhões de dólares.

—        Faz com que regresse ao trabalho com o espírito liberto, desanuviado. Uma noite destas, se não se importar, jantaremos juntos.

—        Terei grande prazer nisso.

—        Direi a Irene para lhe telefonar.

Depois de Metzgar ter partido na sua sumptuosa limusina preta, que parecia um cruzador, Kathleen fechou a porta, e o seu olhar, distraidamente, passeou pelas paredes cor-de-mel do pequeno átrio de entrada. Depois, perturbada, regressou à ampla sala de visitas. Frequentemente, quando se sentia deprimida, apreciava a elegância sóbria e tranquilizante da sala. Nesse momento, porém, contemplando o comprido sofá de seda veneziana, as cadeiras estofadas num tecido cor de turquesa, a elegante mesinha de chá, a distinta colecção de porcelanas chinesas, os móveis de laca em estilo chinês, que ladeavam o bar, situado à esquerda da grande e acolhedora lareira, e as três estantes cheias de livros finamente encadernados, não encontrou prazer em fruir toda aquela tranquila harmonia; parecia-lhe até que agravava a sua perturbação.

Finalmente, sacudiu a cabeça e, chegando-se à mesinha de chá, começou a colocar as chávenas e pires na bandeja. Ao proceder à operação, os seus olhos viram o correio e pegou no postal do Dr. Chapman. Sem o ler, volteou-o entre os dedos. Era estranho, mas aquele postal adquiria agora para ela uma importância que não tivera uma hora antes.

Tencionava rasgá-lo e atirá-lo para o caixote do lixo, pensando em telefonar a Miss Selby a anular a entrevista sob a invocação da doença, mas compreendia repentinamente que proceder assim a agrilhoaria ao passado ainda mais. Continuaria sob a tutela de Metzgar, Scoville e do público anónimo. Aquele postal (das 16 às 17,15 horas de quarta-feira 28 de Maio) era um convite à libertação, a uma vida sem os grilhões do passado. Era um convite a um futuro sem a sombra de Boynton, senhora de si mesma; mas, para além de tudo isso, o postal era um desafio directo à rebelião contra os cânones a que procuravam sujeitá-la.

Sem hesitar, meteu o postal no bolso da saia e, agarrando na bandeja, dirigiu-se para a cozinha.

Úrsula Palmer, tirando o postal da sua mala de mão, estendeu--o a Bertram Foster.

— Eis aqui a prova de que sou agora um elemento de valia do clube sexual do Dr. Chapman — disse ela, com um largo sorriso.

Foster segurou o postal nas mãos ambas e começou a lê-lo, mexendo os lábios como se estivesse a soletrar. Úrsula observou--o, interrogando-se sobre o que o ocupava tanto naquele rectângulo de cartão onde havia tão pouco para ler. No entanto, os olhinhos do editor brilhavam de malícia, e Úrsula estaria inclinada a afastá-lo da sua existência como um ser libidinoso e repugnante, se não fora o facto de ser quem era. Com rapidez, afastou do espírito aquele súbito desagrado, preferindo considerá-lo como um próspero e azou-gado querubim. Bertram Foster já de si tinha uma cara de lua cheia, que parecia ainda mais redonda devido à pronunciada calva. Mas abstraindo aquela semelhança com um querubim, o resto tinha uma aparência grosseira — um nariz largo e lábios amplos como de um negro. E embora utilizasse os serviços do melhor alfaiate de Nova 'orque, os fatos não eram capazes de disfarçar a sua baixa estatura, avolumada por um porte atarracado.

Sentado como estava — quase reclinado — no sofá em frente de Úrsula, naquele aposento mobilado em estilo rústico francês da suite do hotel, a franzir os grossos lábios, tinha o ar de um Cupido sensual — não, acabou por decidir que se parecia mais com um daqueles senadores romanos depravados.

—        Das 13 às 14,15 horas — disse Foster, soletrando ainda o postal. — Mas é já amanhã.

—        É verdade.

Bertram Foster deitou nova olhadela ao postal, devolvendo-o depois a Úrsula com certa relutância, como se se tratasse de uma entrevista amorosa.

—        Uma hora e um quarto... Mas, minha querida, que lhes poderá você contar durante uma hora e quinze minutos?

—        Que sou uma mulher já amadurecida — replicou Úrsula, num tom deliberadamente provocador.

Detestou-se por agir assim, mas bem sabia que era o que ele gostava de ouvir e que aquilo fazia parte do jogo.

—        Quer dizer que vai fazer pesar na balança a sua grande experiência? — perguntou Foster, com um sorriso lúbrico.

—        Não faça ideias erróneas sobre o meu passado, Sr. Foster. Sou uma mulher normal... e casada.

—        Tenho conhecido bastantes mulheres normais e casadas que forçam a essas ideias.

—        Acredito que sim.

—        Há quanto tempo é casada?

—        Há quase dez anos.

—        Logo, teve uma larga vida antes disso, não é verdade?

—        Bem... pode dizer-se que sim.

Úrsula começava a sentir-se incomodada na posição em que estava, positivamente afundada no sofá com as pemas num ângulo muito mais elevado em relação ao traseiro. Era obrigada constantemente a puxar a saia para os joelhos e a ter as pernas firmemente unidas devido aos olhares concupiscentes com que era mimoseada.

Bertram Foster recebera-a sozinho nos seus aposentos privativos do hotel, enquanto sua mulher, Alma Foster, saíra para ir ao instituto de beleza. Úrsula tranquilizou-se a respeito do perigo que aquilo poderia envolver, pensando que geralmente os homens não costumavam forçar as mulheres a uma hora tão matinal e que, sobretudo, talvez o instituto de beleza fosse o do próprio hotel e, por isso, Alma Foster devesse regressar a qualquer momento.

—        Julgo que você não será muito diferente da maior parte das mulheres—continuou ele — e terá muito que responder às perguntas que lhe fizerem durante uma hora e um quarto.

Os seus olhos fixaram insistentemente os joelhos de Úrsula, que os manteve unidos com firmeza, embora isso lhe fizesse doer os músculos.

—        O caso poderá dar um artigo emocionante, Sr. Foster —

disse, esforçando-se por distrair a atenção das suas pernas.

— Um artigo que poderá esgotar um número da Housedayse for publicado.

—        As agências devolvem sempre exemplares — retorquiu ele, evasivo, afastando o olhar daqueles joelhos. — Desde que me contou o caso tenho estado a pensar seriamente nele. Talvez fosse melhor dividi-lo em três partes...

—        Magnífico, Sr. Foster! — exclamou Úrsula, batendo as mãos de contente.

Na sua excitação os joelhos desuniram-se, e os olhos do homem voltaram a fixar-se neles. Desta vez Úrsula não cuidou em uni-los, pensando subitamente que, se o fazia feliz, não era uma coisa assim tão importante. Diabo, havia muito em jogo.

—        Úrsula, talvez seja melhor dizer-lhe o que pensei do assunto. No dia anterior à partida de Nova Iorque, estive a falar com Irving Pinkert—conhece-o, não é verdade?

Úrsula acenou afirmativamente com a cabeça. Pinkert era sócio de Foster na direcção e propriedade da revista. O seu poderio, embora se mantivesse oculto nos bastidores, era imenso. Permitia que o nome de Bertram Foster brilhasse como cabeça de cartaz, parecesse dominar o conteúdo da editorial e fizesse as viagens de inspecção e divulgação, mas permanecia vigilante como o verdadeiro patrão do negócio tratando com eficiência da parte tipográfica, da publicidade e da distribuição.

—        Bem, disse a Irving que tinha os olhos postos em si, que pensava em si como editora associada da Houseday... e talvez mais tarde se possa arranjar uma posição ainda melhor.

—        Sr. Foster, realmente não encontro palavras...

Os grossos lábios de Bertram arreganharam-se num sorriso.

Úrsula dispôs-se imediatamente a modificar todos os conceitos que era dele. Agora tomava-o como um patrono benevolente e sábio.

—        Claro que você está afastada de tais assuntos — continuou ele —, mas a verdade é que as grandes empresas também têm as suas políticas internas. A editora a quem quero que substitua foi colocada no lugar há dois anos por Irving. Ela não presta, é uma lésbica. Irving sabe isso muito bem e também não gosta dela, mas o facto é que está o seu orgulho em jogo, foi ele que a meteu na revista. Não admitirá facilmente que se enganou de modo a despedi-la, sem que haja uma razão forte para isso. O meu argumento a seu favor é que você é uma cabeça sólida, uma mulher inteligente, combativa, e que pode ser uma lufada de ar fresco na revista. Irving não está em desacordo sobre isso, mas para ele você ainda não deu verdadeiras provas. De modo que só será necessário um empurrãozinho para o pôr do meu lado, provar que você é a melhor. Penso que esse artigo sobre o sexo será justamente o ponto fulcral. E é uma coisa na qual todas as mulheres e homens estão interessados, até mesmo Irving.

—        Sr. Foster, sinto vontade de beijá-lo!

—        E o que é que a impede?

Úrsula levantou-se num impuiso e inclinou-se para ele, mas em vez de os seus lábios tocarem a testa, para onde se tinham dirigido, sentiu de repente que os grossos lábios dele se colavam aos seus, sentiu a sua boca ávida que cheirava a tabaco de mistura com o presunto fumado do pequeno-almoço. As mãos dele tinham--se enclavinhado por baixo dos seus sovacos e a direita tacteava o seu seio esquerdo. O instinto primário de Úrsula foi afastá-lo num sacão, mas a verdade é que se ele desejava aquele pouquinho, tal como ela desejava tanto de outra coisa, a troca parecia eminentemente favorável. Permaneceu naquela posição por mais tempo de que tencionara, depois descolou os lábios dos dele e afastou--Lhe a mão do seio.

—        Pronto — disse Úrsula, endireitando-se e sorrindo.

—        Esse é o género de agradecimento que eu aprecio. Sente--se. Ainda temos alguns minutos para tratar dos nossos negócios antes que Alma venha e me arraste para qualquer outro sítio.

Úrsula sentou-se, desta vez despreocupadamente, com os joelhos separados e a saia uns bons centímetros acima deles. Agora aquilo já não lhe importava. Viu os olhos de Foster baixa-rem-se, abissais. Esperava que ele se sentisse satisfeito, tão satisfeito como ela, embora por outras razões.

—        Minha querida, os meus planos para si são concretíssimos — disse Foster. — Deixe as coisas a meu cargo e eu encarregar--me-ei de convencer Irving. Garanto-lhe que em Julho já poderá estar instalada em Nova Iorque. Terá um amplo gabinete só para si, com intercomunicador para chamar a sua secretária privativa, e agentes que a convidarão para almoçar... se eu permitir que o façam. Só tem que fazer o que lhe disser.

Úrsula deu uma gargalhada de alegria.

—        Amanhã — continuou Bertram Foster — irá contar toda a sua vida sexual àqueles homens...

—        Ao Dr. Chapman.

—        Sim, ao Dr. Chapman. Conte-lhe tudo, não esconda nada, percebe? Dir-lhe-á... bem, afinal o que é que eles perguntam?

—        Não estou certa. Suponho que serão as mesmas perguntas feitas aos homens, segundo o último relatório publicado em livro.

—        Dê-me um exemplo.

—        Julgo que desejarão conhecer a minha história sexual da pré-adolescência, brincadeiras estimulantes e experiências anteriores ao casamento, conjugais e extraconjugais.

—        Excelente, excelente — disse Foster, passando a língua pelos lábios. — Isso dará um óptimo artigo. Claro que terão que ser modificadas algumas palavras; seja como for, não podemos desprezar os nossos anunciantes, sobretudo os muito religiosos... mas para mim, isto é, nos apontamentos básicos não modifique nada. Quero conhecer todos os factos para poder... avaliá-la, orientá-la.

—        O que é que pretende, Sr. Foster?

—        Escute, minha cara, vá amanhã à entrevista e, enquanto eles estiverem a tomar notas, você tome notas, também. Depois coordená-las-á e passe-as à máquina, todas as perguntas, as suas respostas, tudo exacto... não modifique nada, não omita nada. Então marcaremos um encontro. Amanhã vou com Alma para Palm Springs. Devemos lá estar uma semana, mas ela talvez não queira perma-necer tanto tempo. Mas o importante é isto, regressarei sozinho a Los Angeles. Encontrar-nos-emos aqui no hotel, na sex-ta-feira... talvez possamos jantar juntos enquanto trabalhamos. O que pensa disto a futura editora?

—        Penso que é uma ideia maravilhosa.

— Quando regressar a Los Angeles na sexta-feira, telefonar--Lhe-ei... julgo que Alma deve estar junto da porta—Bertram Foster levantou-se precipitadamente. — Escreva tudo... Lembre-se da sua futura posição...

Só muito mais tarde, quando já tinha chegado a The Briars, é que Úrsula se lembrou do encontro com Haroid, mas nessa altura já estava quase próximo de casa. Prometera encontrar-se com o marido e já passavam dez minutos da hora marcada, segundo verificou ao deitar uma olhadela ao relógio de pulso. Prometera ir ter com Haroid ao seu novo escritório para o ajudar a decorar e mobilar a casa. Ora, não havia remédio, telefonaria a dizer que tinha estado muito ocupada. Subitamente, lembrou-se que Haroid iria deixar de precisar de ter qualquer escritório, iam mudar-se para o Leste. Lá poderia até contratar um decorador para lhe mobilar qualquer escritório, o que indicaria o seu interesse no marido. Estava convencida disso.  

Sarah Goldsmith estava deitada de costas na cama, de olhos fechados, a respiração um pouco ofegante, sentindo o coração a bater descompassadamente, com as vibrações a reflectir-se por todo o corpo, desde os frementes seios, passando pela linha pronunciada do púbis, aos dedos dos pés. Sentia-se extenuada mas feliz. A seu lado houve um movimento e logo a seguir a sua perna experimentou o contacto da perna cabeluda de Fred, a carícia dos seus dedos. Continuou de olhos fechados a recordar a forte sensação do tempo que já se tinha esgotado, mas com a consciência de que o milagre ainda estava vivo e presente no seu corpo.

—        Amo-te muito — disse para Fred.

—        E eu adoro-te e sei que és minha — respondeu Fred. Sarah abriu os olhos vagarosamente, preguiçosa, fixando-os no tecto verde-mar, baixando-os depois para seguir a linha sinuosa do seu corpo, com evidência para a suave elevação dos seios a descoberto, e contemplando as curvas desenhadas pelo leve e alvo lençol que lhe cobria o corpo desnudado. Seguidamente os olhos volveram-se para a parede, percorrendo o toucador e os objectos circundantes. Finalmente, voltou a cabeça para enfrentar os olhos do amante, fixos nela.

Fred também estava deitado de costas, com os braços cruzados sob a cabeça. Sarah atentou no perfil, recortado naquela semi-obscuridade. Era o perfil de um primitivo, de um homem do Cro-Magnon. O cabelo preto hirsuto, as peludas sobrancelhas, o nariz partido, achatado, os proeminentes maxilares, os ombros poderosos, o pescoço taurino, o peito saliente e cabeludo marcavam uma promessa nunca desmentida. Ela lembrava-se que, à primeira vista, a sua aparência de homem das cavernas não só a intrigara como a decepcionara. Muito embora tivesse ouvido dizer que se tratava de um homem de valor, não pudera imaginar que tal estrutura pudesse albergar grande sensibilidade e uma inteligência superior. Mais tarde, a discrepância da sua voz macia e melodiosa, a penetração profunda da sua percepção, da sua capacidade cerebral que abarcava o melhor de Shakespeare a Tennessee Williams, haviam-se sobreposto a todas as suas primeiras impressões.

Para além do amante, no cadeirão forrado de verde, ao lado da cama, Sarah viu o desvairamento que podia mostrar a grandeza do seu desejo e da sua paixão: a blusa, a saia, o soutien e as calcinhas de nylon estavam empilhadas ao acaso — salientando a sua urgência em ser possuída e em possuir o amante. Só o casaco de coiro, o primeiro objecto de vestuário que tirara à entrada, estava arrumadinho nas costas do cadeirão. Reparou que de um dos bolsos do casaco se distinguia a protuberância de um postal e vários sobrescritos, e então lembrou-se: quando se dirigia para o seu carro, à saída de casa, encontrara-se com o carteiro, que lhe entregara a correspondência. Já dentro da canadiana, deitara um apressado olhar ao postal e repara que lhe marcava a data da entrevista das 9 às 10,15 de terça-feira, 28 de Maio. Cheia de pressa, por estar meia hora atrasada, acabara por esquecer a correspondência. Nesse momento, imaginava o que é que a obrigava a levar aquelas coisas para casa de Fred Tauber. Supunha não ter havido nenhuma razão especial, fora simplesmente um esquecimento motivado pela pressa.

—        Em que é que estás a pensar? — perguntou Fred.

Sarah olhou-o absorventemente.

—        Em quanto te amo. Não sei como pude viver todo este tempo sem ti.

Considerou a frase que acabara de proferir.

—        Evidentemente que não vivi sem ti. A verdade é que nem uma só das células do meu corpo esteve viva até ter-te encontrado.

Fred acenou com a cabeça afirmativamente, declamando:

—        «E quando o amor fala, o céu fica repleto de harmonia com as vozes de todos os deuses...»

—        De onde é isso?

—        Love's Labor's Lost, Shakespeare.

—        Às vezes julgo que decorreu um milhão de anos desde que nos conhecemos... Fred, sabes quanto tempo se passou?

—        Precisamente um milhão de anos.

—        Não. Precisamente três meses e dois dias.

Fred rolou sobre si mesmo e poisou a cabeça no ombro de Sarah, com a boca a tocar-lhe o seio. Lenta e suavemente, os seus dedos acariciaram-lhe o corpo.

Sarah voltou a fechar os olhos, abandonando-se à doce sensação. Mas agora era só o seu corpo que se entregava; o espírito, através do pensamento, volvia-se para uma situação de tempo e espaço localizado três meses e dois dias antes...

Começara tudo com o convite para a representação da peça She Stoops to Conquerpor elementos da Associação Feminina de The Briars, destinada a recolher fundos para fins de caridade.

Grace Waterton, ao saber que Sarah desempenhara alguns papéis, quinze anos antes, no teatro experimental da Universidade, pedira-lhe para participar nos ensaios. A princípio recusara-se terminantemente, mas Úrsula Palmer, encarregada da parte publicitária do espectáculo, acabara por convencê-la, se bem que a sua anuência em acompanhá-la tivesse por motivo um facto imperativo. O dia marcado para ir aos ensaios fora um dia de quezílias familiares, arrelias com os filhos, sentimento de um vazio profundo. Durante todo o jantar ela e o marido, Sam, haviam debatido o caso da sua participação na festa. Sam dissera-lhe que lhe faria muito bem aos nervos sair umas quantas noites, distrair-se-ia do trabalho caseiro fatigante; mas só depois que vira o marido instalar-se diante do aparelho de televisão é que Sarah compreendera que não poderia aguentar mais outra noite de tão entorpecente monotonia. Imediatamente telefonara a Úrsula e, uma hora depois, encontrava-se, com várias outras mulheres e uns quantos maridos e namorados anuentes e com certa experiência teatral, no auditório da Associação.

Lembrava-se que de princípio se tinham todos sentado nas cadeiras do anfiteatro, à espera que chegasse o célebre Fred Tauber. Fora o caso de o marido de Grace Waterton conhecer um produtor de cinema que, por sua vez, conhecia um realizador, de momento sem ocupação. O realizador e encenador era Fred Tauber, que acedera a dirigir o espectáculo por se tratar de uma festa com fins beneficentes.

Sarah destacava o momento em que o vira descer a coxia central, de gabardina deitada sobre o ombro, pedindo desculpa por chegar um pouco atrasado e acabando por se reunir com os novéis actores no palco, depois das habituais apresentações feitas por Grace Waterton.

Fred dissera que, de momento, estava livre, explicara rapidamente que nem sequer tencionava assinar futuramente mais nenhum filme, que ninguém se preocupava já com o chamado cinema vivo, uma vez que a corrente se inclinava agora para a televisão. Já recebera convites para realizar películas para a televisão, mas recusara-se a colaborar num espectáculo corruptor sob o patrocínio de um cereal qualquer ou de uma pasta dentífrica. Confessara que se sentia atraído para a direcção do teatro de amadores, porque estes eram na verdade um símbolo das actividades cénicas criadoras, e que, por isso, teria muito prazer em encenar a peça da Associação Feminina.

Contudo, não obstante a sua voz calma e ponderada e os seus gestos suaves, Sarah não sentira nenhuma simpatia por aquele homem. Assistira à chamada do primeiro grupo de candidatos, vendo o modo profícuo, mas que lhe pareceu arrogante, como Fred Tauber os dirigia nas provas, e, ao subir ao tablado, lamentara ter deixado o ambiente sepulcral do seu lar na já conhecida monotonia que o envolvia. O seu teste consistira num diálogo dramático sob a pele de Constance Neville. Fred Tauber, enquanto ela lia a parte do papel, não lhe lançara um só olhar. porém, em certa passagem, parara de passear para cá e para lá, fixara-a e gritara: «Não a estou a ouvir». Sarah engolira em seco e esforçara-se por elevar a voz, sob o olhar atento do encenador.

Um quarto de hora mais tarde o papel pertencia-lhe. E assim começara tudo...

Fred Tauber decidira que os ensaios seriam feitos várias vezes por semana e durante seis semanas. Os ensaios haviam-se iniciado no vasto auditório da Associação, mas em breve, por conveniência do encenador, foram transferidos para o próprio apartamento de Fred Tauber, situado em Wilshire Boulevard, perto de Beverly Hills. Fora após um desses ensaios que Fred convidara Sara para se deslocar sozinha ao seu apartamento, a fim de intensificar o seu completo domínio do papel. Ao convidá-la, e muito embora não cessasse de a olhar com os seus ardentes e perturbantes olhos, os modos dele tinham tido um ar tão impessoal que ela anuíra à solicitação. Na noite seguinte, a marcada, metera os pequenos na cama, deixara Sam confortavelmente sentado em frente do aparelho de televisão e chegara ao apartamento de Fred às nove horas da noite. Ele recebera-a já com o papel na mão e de modo tão amigável e acolhedor como Sarah ainda não lhe conseguira ver durante todo aquele tempo. Por isso, quando Fred sugerira que podiam tomar qualquer coisa, aceitara prontamente. Sara raramente bebia depois de jantar, mas a verdade é que se sentia nervosa, receosa, com a percepção de se encontrar à beira de algo desconhecido e inesperado na sua vida. De uma bebida passaram à segunda e por aí adiante, até à sexta. Há muito que o ensaio fora posto de parte, o receio evaporara-se e encontrava-se sentada muito junta a Fred.

Há muito tempo que não se divertia daquela maneira, há muitos meses mesmo... meses não, anos, uma eternidade. Fred começara a contar-lhe particularidades da sua vida íntima, falara--Lhe da mulher com quem se casara e de quem se encontrava separado, uma criatura horrorosa que não lhe queria conceder o divórcio pedido. Por seu lado Sarah falou-lhe de Sam, dos anos perdidos e da verdadeira solidão em que vivia. Então, Fred agarrou--Lhe na mão e ela não conseguia lembrar-se se fora ela a beijá-lo ou ele a beijá-la, recordava-se apenas de se terem abraçado um ao outro e das carícias que tinham trocado antes de entrarem no quarto de cama. Fred despira-a, enquanto ela permanecia imóvel, tonta, atónita, especada ali, ao lado da cama. Quando de novo sentira os beijos dele, tivera vontade de gritar, e quando ele a fez deitar no leito, ficou tensa, rígida, de olhos fechados obstina-damente para, pelo menos, não ver a sua participação activa num acto tão pecaminoso e de tanta vergonha. No entanto abraçara-o freneticamente no início da cópula, muito embora a desejar que tudo aquilo acabasse breve como costumava acontecer com Sam.

Mas a revelação viera, os beijos dele, o seu calor, a forma inteiramente nova e desconhecida para Sarah como Fred praticava o amor, levaram ao seu desabrochar da paixão, ao seu encontro, involuntário, de uma participação corroborante, activa, plena de entusiasmo. Descoberta excitante das potencialidades do seu corpo, da magnitude do prazer, e desejando, então, que aquilo nunca mais acabasse, nunca mais...

Na manhã seguinte, na cozinha de sua casa, evitou olhar para a mesa onde Sam e os filhos tomavam o pequeno-almoço. Sentia violentos remorsos do que fizera, muito embora nunca se tivesse sentido tão excitada e tão senhora de si toda a sua vida anterior. Projectou retirar-se da peça e sepultar dentro de si o vergonhoso episódio, dizendo para consigo que o caso da noite antecedente só fora possível por uma intoxicação alcoólica. Mas ao cair da noite teve a certeza de que não queria desistir. Começou impacientemente a contar as horas que a separavam do próximo ensaio, aper-cebendo-se apenas vagamente da estranha casa em que vivia e das estranhas pessoas que ali se encontravam.

Três noites depois, integrada num grupo dos amadores que ensaiavam a peça a levar à cena, foi de novo ao apartamento de Fred Tauber, ficando surpreendida de poder desempenhar o seu papel com toda a naturalidade e de Fred se comportar como se nada tivesse acontecido entre eles.

O ensaio, ou antes a leitura dos papéis, terminou por volta das onze e meia. Porém, quando Sarah se aprestava a enfiar o casaco de agasalho, o encenador, com toda a urbanidade, pediu--Lhe que ficasse mais dez minutos, a fim de reverem um trecho muito importante do primeiro acto. Sarah anuiu.

Nessa noite não houve o preliminar das bebidas, e mal trocaram algumas palavras. E dessa vez o caso não foi um mero acidente.

Ao voltar para casa ao volante do seu automóvel, Sarah sentia-se tão irresponsável e despreocupada como uma dipsomaníaca.

Os ensaios terminaram, por fim. A peça foi levada à cena.

Houve palavras que foram esquecidas, deixas que não entraram a tempo, mas quando o pano caiu estrondearam os aplausos, e foram servidos os fins caritativos para que fora criado o espectáculo.

Mas, entre os dois amantes, levantava-se agora a dificuldade de já não se poderem encontrar à noite—a justificação dos ensaios desaparecera. Então o amor entre eles passou a ser um ritual praticado matinalmente — quatro ou cinco vezes por semana.

Primeiro, Sarah surpreendeu-se pela sua insaciabilidade; depois admirou-se pelo frenesi que punha no acto, mas passada a primeira onda de choque acabou por se deliciar. O que tinha começado casualmente, com um fim previsível, por ser uma coisa impraticável, sem objectivo e até perigosa, manifestou-se um hábito necessário, fundamental, com o absoluto significado de cada dia vivido e de cada dia para viver. E, todavia, Sarah ainda não se permitia acreditar que aquele amor representava toda a sua vida, um novo rumo da sua existência; considerava o caso como um episódio finito que constituía temporariamente a única parte de verdadeira vivência da sua monótona existência.

A mão dele parara de acariciá-la, e ela abriu os olhos.

—        És o meu querido, o meu maravilhoso e único amor.

—        Espero bem que sim — foi a resposta dele.

—        Que horas são, Fred?

—        Quase meio-dia.

—        É melhor regressar a casa. Mais um cigarro e depois vou--me embora. O maço está no meu casaco, importas-te de o ir buscar?

Fred afastou a coberta, saltou da cama e espreguiçou-se. Sarah olhou para aquele sólido e atlético corpo e sentiu uma onda de orgulhoso poder de posse. A partir daquela primeira vez, nunca mais voltara a sentir qualquer sentimento de culpa. Tudo o que acontecia era tão maravilhoso e repousante que não havia lugar para a culpa nem para o erro. Recordava-se que da primeira vez em que vira Fred, todo nu, atravessar o quarto em plena claridade para ir ao encontro dela, experimentara uma certa vergonha. Fora durante o quarto encontro e vira que ele não era circuncidado. Sarah nunca antes encarara uma coisa assim — o marido, o filho, seu pai eram todos judeus e cumpriam os preceitos da velha religião. Nessa altura, por breves momentos, tivera uma sensação de algo estranho, mortificara-se pelo que pensara ser uma depravação. Mas logo a seguir sentiu-se invadida pela maravilha do prazer físico, e a vergonha desapareceu por completo.

Fred estava junto do casaco dela, colocado nas costas da cadeira.

—        Em qual dos bolsos?

—        No da direita.

Viu imediatamente que era o bolso onde guardara o correio. A mão de Fred tirou o maço de cigarros e, ao fazê-lo, o postal caiu no chão. Sarah sentou-se na cama, sentindo o coração pulsar mais depressa ao vê-lo inclinar-se para apanhar o postal.

—        Nunca pude resistir a postais.

Os seus olhos percorreram as linhas escritas e depois ergue-ram-se para ela, interrogativos:

—        Quem é que te vai entrevistar na quinta-feira de manhã?

—        Esqueci-me por completo de te dizer. Nessa manhã não posso vir a tua casa—tentava desesperadamente encontrar uma explicação para lha fornecer. — Trata-se de uma psiquiatra que vem dar consultas livres às crianças.

—        Julgava que os teus filhos eram normais — aliás como a mãe.

—        Claro que são — disse ela rapidamente. — Acontece apenas que Debbie tem andado perturbada ultimamente. Penso que é devido a não lhe poder dar a assistência que devia... isto é, nos últimos tempos não tenho tido paciência para as crianças, o meu pensamento não se devota a elas.

—        E se isso estiver na minha mão, penso que continuarás assim. Todo o tempo é pouco para o devotarmos um ao outro. Acho, pois, excelente que vás com os pequenos a essa sabichona de psicologia infantil.

Colocou novamente o postal no bolso de onde caíra e voltou para a cama, fornecido de cigarros e fósforos. Sarah tapou os seios com o lençol, agarrou no cigarro que Fred lhe estendia e deu graças a Deus por ele ler somente a secção de crítica de espectáculos dos jornais.

Mary McManus entrou na sala de jantar, vinda da cozinha, equilibrando cuidadosamente o tabuleiro cheio de copinhos com sumo de laranja e uma grande travessa atascada de ovos mexidos e salsichas. Desde o momento em que ela e Norman tinham concordado em viver com os pais, o espaço da cozinha fora considerado demasiado pequeno para albergar os quatro durante as refeições matinais. O pequeno-almoço passara a ser servido na ampla sala de jantar da casa dos Ewing.

Mary poisou o tabuleiro na mesa, servindo primeiro o pai, sentado à cabeceira, a seguir Norman e, por fim, serviu-se a si mesma, deixando a restante comida em frente do lugar habitualmente ocupado pela mãe, nessa altura ausente.

A criada espanhola que servia a casa, Rosa, estava no andar superior a fazer arrumações; mas mesmo que assim não fosse, Mary sempre insistia em ser ela a servir a refeição matinal à família — aquilo fazia parte de um dos seus planos para induzir o marido a acreditar que se encontrava realmente no seio de uma família unida, numa casa que também lhes pertencia.

Mary olhou para o pai — que bebera o seu sumo de um só trago —, para o marido, que rodava o copo entre os dedos com os oihos distraidamente fixos num ponto vago do espaço.

—        Está tudo em condições, Norman? — perguntou Mary, com a voz a tremer de ansiedade.

—        Está sim... tudo perfeito — respondeu Norman, bebendo o sumo de laranja desinteressadamente.

—        Onde é que está a tua mãe? — perguntou Harry Ewing. Daqui a pouco os ovos dela estarão frios.

—        Foi buscar o correio — respondeu Mary, pegando no garfo.

Ao mesmo tempo que ia comendo, deitava olhares de revés tanto ao marido como ao pai.

Habitualmente, o pequeno-almoço era um momento de prazer para ela. Gostava de ver os seus entes queridos todos reunidos naquele à-vontade da refeição matinal. Sentia-se feliz de ver Norman naquele seu fato castanho de Verão, com o cabelo bem penteado, o rosto barbeado de fresco. O marido tinha um ar marcante de advogado combativo que a fazia sentir-se orgulhosa. Apreciava com o mesmo carinho, embora de outra espécie, o pai no seu fato azul--marinho, com o lenço imaculadamente branco a sair do bolsinho superior do casaco, com aquele seu ar de director de empresa bem sucedido e próspero.

Mas agora que olhava mais atentamente para o marido, sentia--o estranho, coisa que vinha a suceder nos últimos tempos, sobretudo à hora das refeições. Havia um instinto que a impedia de o sondar sobre o caso quando à noite estavam sozinhos no leito. Mas tinha a premonição que, se aquilo continuasse, cedo ou tarde teria que falar a sério com ele.

Desviou os olhos. A sua atenção concentrou-se na mãe que, no seu robe cor-de-rosa, entrava na sala de jantar com o correio na mão. Bessie Ewing era uma mulher alta e magra, com um rosto comprido e cavalar, cujas preocupações mais evidentes eram o tempo que fazia e o cuidado com a sua saúde.

—O dia hoje vai ser uma verdadeira calamidade—disse Bessie Ewing. — Tomara eu que o Verão acabe. Os meus ossos ressen-tem-se.

Quando chegava o Outono, ela ansiava pelo Inverno, depois pela Primavera e assim sucessivamente.

—        Há alguma novidade no correio? — perguntou Harry Ewing. Bessie ocupou o seu lugar à mesa.

—        Nada de especial.

Passou o correio todo ao marido, ficando apenas com um postal que estendeu à filha.

—        É para ti, Mary.

Mary ficou a observar o rectângulo de cartão durante uns segundos, indecisa. Depois voltou a ler o que lá estava escrito.

—        É o aviso a marcar a entrevista? — perguntou a mãe.

—        Claro que é! — exclamou Mary com um gritinho de alegria.

— Quase que me tinha esquecido do caso. É a resposta do Dr. Chapman a marcar a entrevista.

Estendeu o postal ao marido.

—        Olha, Norman, amanhã é o meu dia D. A entrevista é das duas e meia às três e quarenta e cinco. Julgo que amanhã à noite já farei parte de um grande livro.

—        Magnífico! — exclamou Norman.

Entretanto, Harry Ewing colocara de parte o seu correio e estava agora a fixar atentamente a filha, sentada no extremo oposto da comprida mesa.

—        Que significa isso? Se bem ouvi, falaste no Dr. Chapman, não é verdade?

—        É verdade. Sabe que...

—        Não, não sei nada — disse Harry Ewing com um ar de paciência evangélica.

—        Mas eu... eu... Contei à mãe... julgava que também lhe tinha dito. O Dr. Chapman está cá, papá.

—        Li isso nos jornais.

—        Muito bem. O Dr. Chapman vai entrevistar todas as sócias casadas da Associação Feminina, a fim de elaborar um trabalho científico. Deu-nos uma conferência explicativa e vamos ser entrevistadas. Não é maravilhoso?

Harry Ewing volveu os olhos para Norman.

—        O teu marido tem conhecimento do caso?

—        Tem-me dado instruções durante toda a semana — disse Mary dando uma cotovelada no marido.

Ewing recostou-se na cadeira. Os seus olhos não se desviaram de Norman, que acabou por o fixar também.

—        Com certeza que não aprova, não é assim, Norman?

—        Que significa isso?

—        Exactamente o que disse. Não vai com certeza permitir que Mary se vá expor a essa... a essa pretensa investigação.

—        Não vejo nada de mal no caso. Acredito até que é uma coisa muito boa. Já não estamos na Idade Média.

—        Insinua então que eu sou medieval, hem? — perguntou Harry Ewing sem elevar a voz, muito embora se tornasse aparente o esforço que estava a fazer para se controlar.

—        Ora, Harry, suponho que a questão só diz respeito aos dois — disse Bessie, tentando deitar água na fervura.

—        É possível que nenhum deles tenha maturidade suficiente para distinguir o que está certo do que está errado, o que se deve ou não se deve fazer.

Mary ficou atónita com a objecção levantada pelo pai. Devido ao longo e antigo hábito de um contacto sem reservas, sentiu-se impressionada e enervada com a rispidez do seu progenitor.

—        Mas afinal que mal poderá haver no caso? Trata-se de uma sondagem perfeitamente científica.

—        Essa opinião é muito discutível, podes ficar certa disso. Os métodos utilizados pelo Dr. Chapman e o real valor do seu inquérito são suspeitos até nos melhores círculos. Evidentemente que não levanto objecções, tratando-se de mulheres mais idosas do que tu, de mulheres já amadurecidas. O tempo é um grande mestre. Com a idade vai-se aprendendo a distinguir os valores reais das coisas, vai-se conhecendo o que é de aceitar e o que é de rejeitar. Enfim, é uma lição sobre a arte de como uma pessoa se deve conduzir. Mas tu, Mary, completaste vinte e um anos em Março.

Foi ostentoriamente ruidosa a forma como Norman poisou o garfo na borda do prato.

—        Aos vinte e dois anos de idade minha mãe já tinha três filhos — disse ele.

Mary sentiu a corrente eléctrica de animosidade que pairava no ambiente — era uma coisa quase palpável. Em dois anos de casada a única discussão séria que tivera com o marido cifrara-se no caso de terem filhos. Norman ansiava por ter os seus pimpolhos, e muitos, Harry Ewing, porém, aconselhava com firmeza a não os ter tão cedo. Confidenciara a Mary, numa conversa íntima de pai para filha, que devia primeiro aprender a viver o sentido experimental do casamento, que era ainda muito nova, que havia muito tempo para os filhos e que os primeiros anos do matrimónio deviam ser gozados sem os incómodos de crianças agarradas às saias.

Até então, Mary nunca analisara os seus verdadeiros sentimentos quanto a ter filhos. Sabia apenas querer o que Norman queria, isto é, desejava ardentemente que o marido fosse feliz a seu lado.

Quanto aos conselhos paternos, considerara sempre o pai como uma pessoa avisada que só queria o bem dela. Todavia, naquele momento, a atitude de Harry Ewing em relação ao Dr. Chapman não lhe parecia nada razoável.

—        Mary já não é nenhuma criancinha de mama — continuou Norman, com a cólera a transparecer na voz. — É uma mulher casada, maior e vacinada. Não é necessária essa persistência em protegê-la como se ela fosse um bebé irresponsável. Acredito que o inquérito promovido pelo Dr. Chapman é uma coisa completamente saudável e inteiramente dentro da normalidade.

—        Lamento muito, mas discordo dessa opinião, Norman — volveu Harry Ewing. — Estou crente de que poderá fazer mais mal do que bem.

—        Seja como for. O que está em causa é que eu desejo que

ela seja entrevistada — tornou Norman obstinadamente.

Harry Ewing encolheu os ombros num falso gesto de desinteresse, sorrindo forçadamente.

—Afinal Mary é sua mulher—olhou para o relógio de pulso e afastou a cadeira. — O que está agora em causa é que são horas de irmos para o escritório.

Harry Ewing encaminhou-se para o hall, a fim de ir buscar o chapéu. Os olhos de Norman, a chispar de ira contida, seguiram--no até à porta de comunicação; depois levantou-se também num repelão, tomando o mesmo caminho do sogro.

Já ia a sair da sala de jantar, quando ouviu a interpelação de Mary:

—        Norman, tens a certeza de que não te esqueceste de nada?

Norman, ainda de rosto fechado, arrepiou caminho até junto da cadeira em que a mulher continuava sentada.

—        Tens razão, perdoa-me — disse, ao beijá-la.

—        Não vale a pena estares zangado, querido. Eu quero ser entrevistada.

—        Ainda bem — retorquiu Norman, já junto da porta.

Entretanto, Bessie Ewing, que estivera a mexer na correspondência, desdobrava uma circular de propaganda.

—        Olha, vem aqui um saldo de vestidos de algodão nos Armazéns Brandon — declarou ela, como se fosse a coisa mais importante e apropriada para o momento.

Mary contemplou o postal com tristeza e desejou secretamente que a opinião de Norman a respeito dos filhos se modificasse ou que o pai modificasse a sua opinião sobre o mesmo assunto. Subitamente pensou qual seria a resposta a dar se o Dr. Chapman a interrogasse sobre o facto. Sim, que responderia se a pergunta lhe fosse feita?

Teresa Harnish rodou a chave na fechadura e entrou na frescura acolhedora da sala de visitas. Tirou os óculos escuros e soltou um suspiro de alívio. A diferença de temperaturas era manifesta. Na rua estava um calor verdadeiramente sufocante. Os braços, a partir das cavas das mangas curtas da blusa, e as pernas, a partir da orla onde chegavam os shorts, estavam ligeiramente encarniçados.

Teresa abandonara o «abrigo de Constable» meia hora mais cedo do que o tempo habitualmente concedido para o seu repouso. À guisa de safa mental, dissera para consigo mesma que o sol não se podia aguentar na praia, mas a verdade é que lhe sobreviera um certo e inexplicável nervosismo, mesmo irritação, por ver o local deserto. Pela primeira vez desde a sua descoberta daquele local tranquilo, sentia que o refúgio à beira-mar não lhe fora útil como factor repousante. Dessa vez a terapêutica da solidão não surtira o desejado efeito. Claro que não fora o abrigo, em si mesmo, que a decepcionara. Pelo contrário, nessa manhã estivera mesmo tão encantador e solitário como antes da invasão dos bárbaros.

De facto, ao iniciar a descida irregular da falésia rochosa, esperara ver os quatro bárbaros nos seus habituais jogos violentos primitivos, la precavida contra eles, escudada por uma justa cólera de ser civilizado ante a brutalidade dos trogloditas. Aliás, era sua intenção proceder como se aqueles seres não tivessem existência real — ignoraria simplesmente tais presenças. Mas para o caso de o tal mastodonte, com os seus indecentes calções que lhe realçavam as musculosas coxas, se aproximar dela, estava disposta a pulverizá-lo com palavras directas e duras. As frases a dizer já tinham sido pensadas e trabalhadas de modo a serem o mais contundentes possível e, depois disso, estava certa de que encontraria a paz; evidentemente no caso de o vândalo as compreender.

Ao pisar, porém, o areal, verificara que os hunos não estavam à vista. O caso desconcertara-a. Já no abrigo, e depois de estendida no cobertor, abriu o livro de poemas... mas pouco depois acabou por compreender que, embora tivesse voltado cinco páginas de Swinburne e duas de Coventry Patmore, não lera uma só palavra do que estava escrito. O seu espírito estivera inteiramente ocupado pelo pensamento nos invasores—travara uma imaginária e acalorada discussão com os quatro, particularmente com o tal, e saíra vencedora da força física que eles representavam com a força espiritual de quem era um expoente.

Para não voltar a tão obcecante assunto, pensou na galeria de arte do marido, no Marinetti da montra e nas manhãs de prazer que passava ali na praia. Imaginou como é que um ser sem intelecto como Grace Waterton conseguia sublimar-se numa actividade tão servil, ou como era possível Sarah Goldsmith conseguir passar um dia satisfatório a tratar dos filhos e da casa. Disse para com os seus botões que talvez tivesse nascido fora da sua verdadeira época. Estava certa de que eram coisas que aconteciam: eram alguns dos anacronismos e deficiências da Criação. Visionava-se melhor como uma Louise Colet, de Paris, ou como uma Mary Wollstonecraft, de Londres (embora houvesse uma certa porcaria na última que não era nada agradável) ou ainda como uma Kitty 0'Shea, de Dublim, em vez de Teresa Harnish, de The Briars, no estado da Califórnia.

Pensando melhor, a personalidade que mais lhe quadrava era a de Maria Duplessis, ofertando a sua beleza, elegância, tragédia e inspiração ao jovem Dumas Filho de A Dama das Camélias. Contudo, o papel parecia-lhe, de certo modo, mais ajustado à personalidade de Kathleen Ballard — qual seria a actividade dela durante aquelas longas manhãs?

De repente Teresa sentiu cócegas nas costas da mão que tinha apoiada no cobertor e viu um bichinho que abria caminho naquele terreno desconhecido. Sacudiu a mão com um trejeito de asco, e todos os devaneios se perderam. Estava de novo no abrigo de Constable. Lá em baixo, na orla da praia, as ondas lambiam a areia num movimento de azul-metálico. O sol era uma brasa. De súbito, aquele local afigurou-se-lhe uma autêntica excrescência geológica que primava pela imperfeição — rochedos dispersos, detritos que o mar arrojava à praia e que ficavam a salpicar a areia, exactamente como um terreno baldio onde se fazem despejos do lixo.

Para estar desconfortável e aborrecida, então era muito melhor, embora continuasse aborrecida, estar pelo menos confortavelmente na frescura da sua vivenda, dentro da água limpa e clara da sua banheira de mármore. A propósito de banheira: quem era que, habitualmente, se fazia conduzir ao banho nos braços do seu musculoso criado negro? E quem, depois, costumava entreter conversação com os seus amigos e admiradores franceses e italianos enquanto se banhava? Ah, sim, era Paulina Bonaparte. Verdadeiramente sensacional. A bela Paulina Bonaparte esplendidamente esculpida por Canova naquele extraordinário nu da Villa Borghese. Teresa Harnish levantou-se, juntou as suas coisas e percorreu o caminho inverso pela penedia até junto do automóvel.

Agora, na sua sala de estar, elegante, cheia de gosto e escassamente mobilada, uma sinfonia de bege e de outros tons variegados provenientes dos quadros abstractos que estavam pendurados pelas paredes, colocou o livro de poemas em cima da mesa e viu num relance o casaco de Geoffrey — o azul, com botões de metal, que ele levara nessa manhã vestido ao ir para a loja — cuidadosamente colocado nas costas de uma cadeira de alto espaldar.

—        Geoffrey! —chamou.

—        Estou no escritório.

Intrigada, largou o cobertor e os apetrechos em cima do canapé e encaminhou-se para o escritório.

Geoffrey estava ajoelhado no chão a desenrolar o cartaz litografado, que se intitulava Divan Japonais.

—        Sentes-te bem, Geoffrey?

—        Perfeitamente, minha querida — respondeu. Contemplou o cartaz durante mais algum tempo e, depois, voltou a enrolá-lo.

—        Afinal, que vieste fazer a casa a esta hora? — perguntou Teresa.

—        Uma cliente de S. Francisco acaba de descobrir a existência de Henri Toulouse-Lautrec — disse ele, estendendo a mão para pegar noutro cartaz.

—        É como atingir a puberdade aos quarenta anos.

—        Temos encontro marcado para as duas horas. A cliente quer tudo o que lhe possa arranjar.

Geoffrey desenrolou o outro cartaz: La Troupe de Mademoiselle Eglantine. Apontou para as quatro bailarinas de perna eternamente levantada.

—        Jane Avril, Cleópatra, Eglantine, Gazelle. Recordas-te da época em que descobrimos isto?

Fora numa loja suja e atravancada de velharias da Rue de Seine dez anos antes. A obra litográfica custara-lhes cinquenta e sete mil francos — nessa altura o valor de um dólar, no mercado negro, era de trezentos e oitenta francos. Costumavam sempre dizer que haviam descoberto Lautrec, pelo menos assim lhes parecia naqueles dias. Ter os cartazes colados nas paredes da casa era uma maneira nobre de chamar atenções. Porém, logo a seguir veio uma verdadeira inundação de obras sobre o pintor; depois seguiu-se a realização e exibição do filme da vida de Toulouse i Lautrec, e em breve das obras do pintor figuravam decalques em guardanapos, caixas de fósforos e anúncios coloridos das revistas.' Geoffrey enrolou o cartaz das dançarinas e levantou-se.

—        Na verdade, já me sentia cansado disto, e não tenho pena de me ver livre destas obras, porque vou receber três vezes mais do que paguei. Afinal de contas, sou um negociante. Aliás, todo o artista, mais tarde ou mais cedo, se assemelha a um convidado importuno que ficou demasiado tempo — disse ele em forma de lamento.

—        Julgo que ninguém se poderá cansar de Leonardo da Vinci: ou de Shakespeare. Os artistas de menor envergadura aparecem e desaparecem, dentro da ordem normal das coisas. Lautrec foi uma curiosidade, mas os clássicos são eternos, permanecem.

—        É melhor não estares tão segura disso. Shakespeare esteve esquecido durante muitos séculos após a sua morte. A sua revivescência é relativamente moderna e pode ser esquecido de novo, desaparecer até do conhecimento dos vindoiros.

Teresa deixou de sentir vontade de prosseguir com a conversa.

—        É possível que tenhas razão — respondeu com ar enfastiado. — O mais importante agora é que preciso de tomar, um banho.

—        Um momento, querida — pediu Geoffrey, aproximando-se da secretária e entregando-lhe um postal. — Estava entre o correio que recolhi. É finalmente a grande aventura que esperavas.

Teresa leu em voz alta: «Quarta-feira, das dez e meia às onze e quarenta e cinco».

—        Não te esqueças que quero um relatório completo sobre o assunto.

—        Rematada tolice. Que poderei eu dizer que não saibas de antemão? Colaboraste em tudo o que forma esse aspecto da minha vida.

—        Ora, na verdade nem pensei nisso — parecia envaidecido do seu papel. — As próximas semanas deverão ser emocionantes. Uma verdadeira catarse para a nossa comunidade.

—Julgo que será um acontecimento saudável e rico de efeitos — replicou Teresa, para não ficar calada.

Sentia-se intrigada com a indiferença com que encarava agora a entrevista com o Dr. Chapman. Mas, repentinamente, acudiu--Lhe um pensamento que a fez reanimar.

—        Sabes o que seria engraçado?

—        Não.

—        Ora, darmos uma festa. Uma grande festa, tanto mais que há um mês que não nos divertimos. Podíamos celebrar o caso do Dr. Chapman e da libertação que ele vai conceder às mulheres da nossa comunidade. Por exemplo, dávamos um baile em que os convidados seriam obrigados a aparecerem com fantasias. As mulheres vestidas com disfarces das personalidades que gostariam de ser em relação à entrevista do Dr. Chapman. Não achas uma ideia divertida?

—        Maravilhosa, querida Teresa. Para mais, temos muitos convites que nos foram feitos para retribuir.

Para Teresa Harnish, despontava de novo um dia radioso de fulguração para o seu espírito criador. Começou a andar de um lado para o outro do aposento, ao mesmo tempo que perorava.

—        Estou mesmo a ver as fantasias das convidadas: Naomi Shields disfarçada de Penélope. Sarah Goldsmith aparecendo nas roupagens de... Geoffrey, depressa, menciona o nome de uma cortesã notória.

—        Hester Prynne; Harriett Wilson; Cora Pearl.

—        Sim, sim, qualquer dessas — aprovou excitada. — Estou a ver Mary McManus vestida de Ninon.

—        Já compreendo a tua ideia. Cada mulher encarnará justamente a personalidade sua oposta.

—        As castas desejarão, secretamente, ser devassas, e as devassas mostrar-se ante o bom Dr. Chapman como as mais puras donzelinhas.

—        E tu, querida, como queres apresentar-te?

Teresa teve a intuição da armadilha. Seria Maria Duplessis?

—        Aparentando ser eu mesma, querido — disse, resolvendo

a questão. — Sou franca. Por que raio desejaria ser outra coisa

senão eu mesma?

Naomi Shields, vestida apenas com a combinação, estava a dormitar enroscada na cama, tão desfeita e remexida, com as roupas a esmo, como se por ali tivesse passado um furacão. A pouco e pouco, a parte ainda consciente do seu ser sentia-se penetrada por insistente retinir. A dissonância, embora lutasse contra ela, persistia, e acabou por forçá-la a abrir os olhos e a escutar. Compreendeu finalmente que era a compainha da porta.

Primeiro sentou-se na devastada cama. A cabeça andava--Lhe à roda e parecia-lhe uma coisa separada por completo do resto do corpo. Sentia-se como se fosse um balão que pairava muito acima de si preso por um fio. Agora incomodava-a a transpiração. O sulco que separava os seios era um rio a correr por um vale entre altas montanhas e a combinação estava peganhentamente colada ao corpo. Deitou uma olhadela ao relógio. Meio-dia menos dez. Depois do pequeno-almoço resolvera encostar-se um bocadinho e afinal dormira durante duas horas.

Tentou recordar-se dos acontecimentos. Sim, despertara às nove horas absolutamente consciente da firme resolução que tomara a partir do último trago da noite anterior. Na segunda-feira, iniciaria um novo dia, uma nova semana, com o programa de uma vida inteiramente nova. Antes de se casar havia frequentado, durante oito longos meses, uma escola para secretárias. Tinha aprendido dactilografia, estenografia e alguma coisa de Francês, e estava esperançada em que fossem coisas que ainda não tivesse olvidado completamente. Resolvera que, na segunda-feira, telefonaria a Úrsula Palmer, ainda que ela lhe desagradasse... ou então a Kathleen Ballard, que conhecia toda aquela gente importante das fábricas de aviação, devido ao falecido marido ter sido aviador. Fosse como fosse, telefonaria a uma delas, talvez a ambas, e certamente que a ajudariam. Porque não tomara a decisão há mais tempo? Daria normalidade e um sentido definido à sua vida. Nos escritórios existiam sempre homens solteiros... seria possível que acabasse por conhecer um que fosse honesto e decente. Era uma coisa realmente sensata. Imaginara aquilo tudo durante o pequeno-almoço, mas com o primeiro golo de café todo o plano traçado se esboroara. Por que diabo engolira todo aquele vodka? Levou as mãos às têmporas e tentou lembrar-se como conseguira chegar à cama.

De novo o retinir do besouro da campainha. Procurou as chinelas de quarto e dirigiu-se para a sala, mas antes de chegar ao átrio lembrou-se de que estava só em combinação e voltou apressadamente ao quarto. Uma vez envergado o vaporoso penteador branco, aproximou-se da porta da rua e abriu-a. A explosão do sol a bater--Lhe em cheio no rosto fê-la fechar os olhos violentamente.

Quando conseguiu fitar o exterior, avistou um homem alto, magro, que vestia uma camiseta, calças azuis desbotadas, calçava sandálias e se afastava pelo relvado em declive.

—        Eh! — chamou ela.

O desconhecido parou e voltou-se.

—        Viva. Até que enfim.

—        Foi o senhor que tocou à campainha?

—        Fui.

O homem dirigiu-se para a porta. À medida que se ia aproximando, Naomi via que era feio. O cabelo era uma trunfa acastanhada em desordem, com necessidade de um bom corte, os olhos eram pequeninos e afundados nas órbitas, o rosto marcado pelas bexigas e um sorriso escarninho nos lábios finos.

—        Pretende vender-me alguma coisa? — perguntou-lhe

Naomi.

Chegado junto da porta, o homem, descaradamente, examinou-a dos pés à cabeça. A inspecção foi demorada e insolente, e Naomi via agora que, não obstante a sua palidez e fealdade, o desconhecido tinha qualquer coisa de atraente. Viu-o mexer os lábios, mas, na sua fascinação por aquele sorriso escarninho que nunca o abandonava, só conseguiu ouvir:

—... no quarteirão lá do fundo.

—        Desculpe-me, parece que não estou ainda bem acordada. O que foi que disse?

—        Que me chamo Wash Dillon e que moro no quarteirão ali do fundo da rua. Justamente cinco portas mais abaixo.

Naomi franziu a testa num esforço para se recordar. Aquele nome não lhe era estranho.

—        É possível que já tenha ouvido tocar a minha orquestra. Temos algumas gravações.

—        Claro que já ouvi.

—        É a Sr.s Naomi Shields, não é verdade?

—        Miss Naomi Shields — atalhou ela rapidamente.

—        Ah, sim! — os olhos dele estavam abissalmente fitos nos peitos de Naomi. — Ora bem, aqui — disse ele, metendo a mão no bolso traseiro das calças e exibindo um postal — está escrito senhora.

—        Mas afinal que quer isso dizer?

—        É para si. O carteiro deve ter-se enganado e meteu o postal na minha caixa do correio. Parece tratar-se de uma marcação de entrevista para emprego. Claro que me apressei a virtrazê-lo como bom vizinho que sou.

Naomi abriu um pouco mais a porta e aceitou o postal que o homem lhe estendia.

—        Fartei-me de tocar, e, como não me respondiam, pensei que não estava ninguém em casa. Já me preparava para lhe meter o postal na sua caixa do correio. Onde é que ela fica?

—        Ali em baixo, junto daquelas sebes. As sebes estão muito crescidas. Tenho que avisar o jardineiro para as aparar.

Naomi deitou uma vista de olhos para o postal e viu que se tratava da entrevista com o Dr. Chapman, marcada para quarta--feira das cinco e meia às seis e quarenta e cinco.

—        É alguma coisa importante? — perguntou o desconhecido.

Naomi olhou-o.

—        Sim, de certo modo — o homem era descaradamente curioso, mas ela não desejava que ele se fosse embora. Penso que ainda estou ensonada e não sei como agradecer o seu cuidado.

—        Sei eu — replicou ele. Não há melhor agradecimento a um bom vizinho do que oferecer-lhe uma chávena de café.

—Tem razão — concordou Naomi, abrindo a porta para o homem passar.

Ao entrar, o desconhecido, embora tivesse muito espaço, roçou--se por Naomi.

—        Onde fica a sua cozinha?

Naomi fechou a porta, apertou melhor o cordão do penteador e, com o homem a observar-lhe o ondular das ancas, encaminhou--se para a cozinha.

Enquanto o café aquecia, Naomi colocou em cima da mesa um prato com biscoitos, vendo o à-vontade com que o vizinho se sentava, de pernas abertas, a seguir-lhe todos os movimentos, com aquele sorriso escarninho à flor dos lábios.

Sentindo-se inexplicavelmente perturbada, serviu-lhe o café e foi sentar-se no outro lado da mesa. O café para ela era uma coisa fora de hipótese, apetecia-lhe beber um copo de gim mas não se atrevia a ir buscar a garrafa.

Pouco depois teve consciência de que estava a responder a todas as perguntas que o homem lhe fazia.

«Sim, comprara aquela vivenda e habitava em The Briars há três anos. Conhecia a maior parte das pessoas que moravam nas redondezas e surpreendia-a o facto de nunca o ter visto por ali».

Wash Dillon respondeu-lhe que só estava em The Briars há duas semanas. Normalmente habitava em Van Nuys. Andava em digressão com a sua orquestra. Tinha um longo contrato a cumprir em Los Angeles e instalara-se na residência do Sr. Agajanian, também proprietário do night club em que actuava, até arranjar alojamento próprio.

—        Conheço o Sr. Agajanian... isto é, de vista. Diz-se que é muito rico.

—        Sim, na verdade qualquer pessoa pode enriquecer facilmente explorando os músicos e misturando água nas bebidas alcoólicas.

—        Não são pessoas desse quilate que vivem em The Briars — ripostou Naomi.

—        Ora, bonequinha, a gente dessa ordem vive em qualquer lado.

A chávena estava vazia, e Naomi foi ao fogão buscar a cafeteira para lha tornar a encher, preferindo fazer um rodeio para não passar junto dele. O homem devorava-lhe o corpo com a vista, particularizando a atenção do seu olhar no farto busto dela.

—        Estou satisfeita por sermos vizinhos — disse Naomi, para quebrar o silêncio embaraçoso. — A sua mulher gosta de viver em The Briars?

—        Pequerrucha, ainda nenhuma mulher me fisgou para ir ao altar. É coisa que pode ficar para mais tarde. Até ter uma vida equilibrada é melhor um músico ser solteiro. Então, e você, como se dá com o seu marido?

Naomi explicou-lhe que era divorciada há três anos.

—        Isso é uma coisa que se adivinha ao longe.

Naomi resolveu encher uma chávena de café para si; era um modo de esconder a perturbação em que se encontrava. Via perfeitamente o caminho a que o homem a pretendia conduzir e não queria deixar-se levar. Ansiava por aquele homem, mas tinha que se lembrar que era segunda-feira, que estava disposta a arrepiar caminho, a começar uma vida nova, uma vida diferente.

—        Quantos músicos tem a sua orquestra? — perguntou com intenção de o distrair.

Wash Dillon respondeu-lhe que era um quinteto e que estava a tocar em Sunset Strip, num clube denominado Jorrocks' Jollities.

—        Tocamos lá todas as noites, todas...

Naomi calou-se. Não sabia que mais perguntar para fazer, desviar a conversa do rumo que ele pretendia imprimir-lhe.

—        Como lhe disse há pouco, queridinha, pressenti à distância-que era divorciada.

—        Ah, sim? E como?

—        Um homem experiente nota sempre quando uma mulher não tem dono.

—        Sério? (Adeus votos de nova vida para segunda-feira).

—        Sim. Nota-se no modo como uma mulher se comporta, como anda... na insegurança que manifesta.

—        E foi a sua pequena que lhe ensinou tudo isso? (Era uma última tentativa para o confundir e salvar-se).

—        Não, bonequinha, as minhas pequenas não se comportam assim. A bem dizer quase que não fazem ondas.

—        Nunca lhe disseram que é uma criatura muito insolente? (Adeus intenções de arranjar um emprego).

—        Se sou assim, tenho todo o direito a sê-lo. As minhas pequenas nunca tiveram razão de queixa.

—        Não estou a gostar nada da sua conversa.

Naomi levantou-se num ímpeto, indecisa sobre se deveria correr a fechar-se no seu quarto, como num baluarte, ou se devia tomar um trago de qualquer coisa forte para permitir que acontecesse o que, com toda a certeza, acabaria por acontecer fosse como fosse.

Ao tentar contornar a mesa, os grandes braços de Wash Dillon estenderam-se para agarrá-la pela cintura. Naomi tentou lutar, mas o homem, apesar de magricelas, tinha força, e foi quase sem aparente esforço que a obrigou a sentar-se-lhe nos joelhos. A carne do desconhecido era uma brasa contra o seu traseiro. Debilmente, Naomi tentou libertar-se do amplexo a que a sujeitava.

—        Por que raio havia de me ter trazido aquele postal? — disse quase com lágrimas na voz. — Podia tê-lo...

Wash Dillon desatava-lhe o cordão do penteador.

—        Pequerrucha linda, observei-a há dois dias com aquela camisola especial... Ora só se veste uma coisa daquelas quando uma mulher pretende caçar os homens.

            — Wash, por favor.

O sorriso escarninho não desaparecia daqueles lábios, e Naomi fechou os olhos.

Nesse momento ouviu-se o besouro da campainha.

Wash desviou a vista, inquieto, o que ela aproveitou para se libertar, pondo-se de pé, vacilante.

—        Queridinha, espera... não atendas.

—        Não vê que está alguém à porta à espera?

—        Que espere!

Naomi correu para fora da cozinha, ajeitando o penteador que tinha ficado aberto. Não se importava de estar desgrenhada, nem do seu aspecto. Tudo o que queria naquele momento era ver alguém que a salvasse.

Abriu a porta da rua.

Um rapazito magrinho, aparentando ter uns doze anos, estava ali à entrada.

—        O meu pai veio aqui...

Nesse momento o rapazito avistou Wash Dillon, que seguira Naomi.

—        Papá, a mamã diz para ir para casa.

Finalmente o sorriso escarninho desaparecera dos lábios finos do homem.

—        Vou já. Desanda daqui!

—        A mãe diz que não quer que eu lhe apareça sem o levar comigo... Diz que se eu for sozinho vem cá buscá-lo.

Naomi, ainda trémula, olhou para o bom vizinho. O sorriso de mofa voltara a reaparecer, agora ainda mais descarado.

—        Ora bem, bonequita, como vê a vida é assim mesmo... Paciência...

Encolheu os ombros e voltou-se para o filho.

—        Vamos embora, Johnny.

Lentamente, passou por Naomi, por quem procurou roçar-se.

—        Filho da mãe! — vociferou ela, irada.

Wash Dillon parou por momentos, voltou-se e mirou-a intensamente dos pés à cabeça.

—        Boneca, pelo teu aspecto deves ter uma fome dos diabos.

Se queres matar essa fome não te esqueças de aparecer uma

noite destas pelo Jorrocks' Jollities.

Naomi fechou a porta com estrondo, e ficou da parte de dentro, encostada ao painel, a soluçar. Pouco depois, extinguido o choro, limpou os olhos e voltou para a cozinha. Instintivamente encaminhou-se para o armário onde estavam as bebidas.

Bem, ao menos restava-lhe a esperança da quarta-feira...  

—        Finalmente os pequenos ficaram a dormir, e agora já poderemos conversar à vontade — disse o Dr. Victor Jonas, aparecendo à porta da sala.

Paul Radford, que ficara sentado no sofá, junto de Peggy Jonas, a ver as primeiras cenas de um filme antigo que se exibia na televisão, ergueu-se rapidamente.

—        Tem uns filhos na verdade encantadores, Dr. Jonas. Que idade têm?

—        Thomas vai fazer doze em Setembro e Mathew tem nove.

Peggy Jonas desviou por momentos a sua atenção do pequeno ecrã.

—        O Sr. Radford não quererá uma chávena de café ou de chá?

— perguntou, dirigindo-se ao marido.

A Sr.ã Jonas era uma mulher baixinha, afável, jovial, acolhedora, com um sardento rosto irlandês que respirava simpatia e franqueza por todos os poros.

—        Chá? Café? Que tolice propor uma coisa dessas ao Sr. Radford.

Depois voltando-se para Paul:

—        Tenho coisa muito melhor para nós no pátio.

—        Bom, ficarei então aqui — disse Peggy Jonas, voltando a aninhar-se no seu canto do sofá. — Se precisares de alguma coisa, chama-me.

Victor Jonas, com familiaridade, agarrou no braço de Paul.

—        Por aqui, temos que atravessar a cozinha para chegarmos ao meu refúgio.

Chegados à cozinha, o Dr. Jonas abriu a porta das traseiras e esperou que Paul passasse.

— Cuidado, há dois degraus.

Atravessaram o relvado humedecido, dirigindo-se para o extremo oposto do largo quadrado.

Paul Radford chegara à modesta residência, em estilo americano antigo, do Dr. Victor Jonas às oito e dez.

A casa ficava situada em Cheviot Hills, e a apreensão que Paul sentira durante todo o percurso fora rapidamente dissipada pela cordialidade com que o Dr. Jonas o recebera.

O «advogado do Diabo», como o designara o Dr. Chapman com azedume, nada tinha da aparência de um feroz inquisidor. Era um homem com cerca de um metro e oitenta. O cabelo arruivado, de risca ao lado, caía-lhe para a testa, como o de um rapazinho de escola. Os olhos, cinzentos e vivos, piscavam constantemente num tique peculiar. Só o comprido nariz aquilino obscurecia um pouco o sorriso bonacheirão que sempre lhe bailava nos lábios.

O vestuário constituiu outra das surpresas para Paul, que esperava encontrar um homem vestido a rigor e metido nuns colarinhos altos de estilo.

Victor Jonas, pelo contrário, usava uma camisa desportiva, de colarinho aberto e umas calças de bombazina, amarrotadas, tal qual um trabalhador manual que andasse sempre a fazer biscatos. O cachimbo que fumava tinha um fornilho de cerejeira, tão despretensioso como o de qualquer pescador.

No momento em que Paul chegara, o Dr. Victor Jonas estava a ler trechos de um livro aos seus dois filhos. Jonas chamara imediatamente a mulher, e, depois das apresentações de estilo, Paul Radford insistira para que o doutor terminasse a leitura que fazia aos filhos.

Victor Jonas, naturalmente, sem desculpas pretensiosas, anuíra com satisfação e, indicando a Paul uma larga cadeira de braços, voltara para o sofá, onde os garotos o esperavam, e reiniciara a leitura no ponto onde a tinha interrompido.

Pouco depois a Sr.B Jonas voltara da cozinha e haviam encetado uma conversação sobre vários casos, que não tinham passado de futilidades de momento: teceram comentários ao trecho de ficção científica que o Dr. Jonas acabara de ier aos filhos; falaram das histórias em quadradinhos dos jornais dominicais de Los Angeles; da neblina que quase sempre pairava, à noite, em Cheviot Hills; do encanto de The Briars; da vida californiana comparada com a vida noutros locais dos Estados Unidos; das escolas que os moços frequentavam; e mergulharam numa discussão sobre desportos. Foi tudo tão fácil e encantador que Paul Radford sentiu-que-j-ião era um desconhecido, experimentou a sensação inolvidável de que já conhecia aquela casa, aquele ambiente, aquela família feliz há longos anos.

Nesse momento, no meio da ligeira neblina que ocultava toda a potência da noite luarenta, estacou, ao lado do Dr. Jonas, junto de uma espécie de bungalowque se erguia no extremo do pátio.

— É a minha oficina — disse o Dr. Jonas. Julgo que foi por isto que me atrevi a comprar a casa.

Abriu a porta, acendeu as luzes, e Paul avaliou rapidamente o aposento. No centro havia uma secretária de carvalho, com aspecto de muito uso, e sobre ela uma confusão de papéis. Ao lado da secretária havia uma mesinha onde se instalava uma máquina de escrever muito antiga, e em frente uma cadeira giratória, sem braços. A parede frontal era dominada por uma grande lareira de tijolos, e nas paredes laterais predominavam prateleiras carregadas de livros. Ao fundo, por uma porta entreaberta, via-se uma nesga da casa de banho privativa. Além de umas quantas cadeiras simples, existia a nota confortante de um largo divã.

Enquanto o Dr. Jonas se dirigia à janela para a abrir, Paul, tal como era seu velho hábito sempre que entrava numa biblioteca, estacou diante das prateleiras com livros e bisbilhotou os títulos. Deu imediatamente de frente com o último livro do Dr. Chapman e, mais adiante, um segundo exemplar da mesma obra. Pelas estantes haviam espalhados volumes de Freud, Adler, Jung, Alexander, Fenichel, Bergler, Dickinson, Terman, Stone, Stopes, Gorer, Hamilton, Kraft-Ebing, Lynd Reik, Weissenberg, Mead, Ellis, Guyon, Trilling, Kiekegaard, Riesman, Russel...

— Chartreuse, xerez seco ou conhaque? — perguntou o Dr. Jonas, que estava agora junto de um móvel-bar em que Paul não tinha reparado.

—        Deixo à sua escolha.

—        Recomendo-lhe o chartreuse.

—        De acordo.

Victor Jonas encheu dois cálices, colocou um no tampo da secretária e o outro na mesinha, perto do candeeiro de pé alto e da cadeira estofada, que ficava em frente da secretária. Paul sentou--se na cadeira estofada e observou o Dr. Jonas, que enchia o seu cachimbo com tabaco da grande lata que estava num canto da secretária.

—        Creio que foi convenientemente inteirado daquilo em que me ocupo e da minha vida, Sr. Radford — rompeu subitamente o Dr. Jonas.

—        Evidentemente... claro — respondeu Paul, um pouco surpreendido. — Na verdade procuro sempre conhecer qualquer coisa de uma pessoa com quem tenho que contactar.

—        É como eu — o Dr. Jonas sorria acolhedor. — Para tentar conhecê-lo li a obra que escreveu.

—        Ah, a minha obra...

—        Um livro na realidade muito prometedor. Pena é que não tenha continuado a escrever. Agora, presumo que já não se dedique a essa actividade. É mais que suficiente haver um escritor na família.

Paul sentiu a directa alusão ao Dr. Chapman.

—        As obras do Dr. Chapman têm a colaboração de todos os seus assistentes. É quanto basta para me manter activo.

—        Afirmou ao seu chefe que também seria bem recebido nesta casa? — o cachimbo do Dr. Jonas era uma brasa incandescente.

—        Evidentemente. Mas é pena que não pudesse ter vindo. Amanhã começamos com as entrevistas, é a última parte do nosso inquérito. Tem a noite toda ocupada com os preparativos.

—        Visto isso, o senhor tem que fazer sozinho o trabalho sórdido, hem?

Paul estremeceu. Esteve prestes a retorquir que não havia nenhum trabalho sórdido, mas reconheceu a tempo que a proposta que tinha para dar desmentiria a sua negativa.

—        Não compreendo o que quer dizer.

—        Quero dizer simplesmente que não posso acreditar que fez toda esta caminhada até casa de um desconhecido por mera curiosidade intelectual ou para se entreter durante um serão. Posso estar enganado e, se assim for, peço-lhe que me perdoe. Mas na realidade é o que penso da sua presença.

Observando que Paul tirava a sua bolsa de tabaco para encher o cachimbo, o Dr. Jonas estendeu-lhe a lata.

—        Experimente esta mistura.

Paul chegou-se para a beira da cadeira, destapou a lata e encheu o fornilho.

—        Em boa verdade, sinto-me contente por o Dr. Chapman não teívindo — disse o Dr. Jonas. — Penso que não simpatizaria com ele. E, pelo contrário, simpatizo imenso consigo.

Não obstante o prazer sentido com as palavras do Dr. Jonas, Paul quis acentuar a sua lealdade ao Dr. Chapman.

—        Embora o possa surpreender, Dr. Jonas, o facto é que o meu chefe, como lhe chamou, é uma pessoa inteligente, um homem digno.

—        Não duvido. Existe porém qualquer coisa nele... eu... não, não faça caso daquilo que disse. O que quero na verdade realçar é que muitas pessoas, que não me conhecem, me julgam irascível, desagradável. Não sou nada disso. Quero que compreenda que apenas procuro ser o mais franco e directo que é possível. Posso não ter razão naquilo que digo, mas procuro primar pela franqueza. Principalmente aqui, neste tugúrio, neste santuário do meu pensamento íntimo, sobretudo com uma pessoa que pressinto ser da mesma força intelectual que eu, ponho inteiramente dê parte os jogos de palavras. São um deplorável desperdício de tempo. Gosto de ir directamente à essência da questão... e espero o melhor do meu oponente, tal como lhe darei o melhor de mim. Aprender é evoluir. Se concordarmos com estas premissas, creio que nos entenderemos às mil maravilhas e que esta noite se pode revestir de imenso valor e proveito para ambos.

—        Sim, na verdade o senhor prima pela franqueza — disse Paul, recostando-se no espaldar da cadeira e relaxando a tensão muscular.

—        Quer lume?

—        Obrigado. Tenho aqui fósforos.

—        Espero que saiba plenamente qual é o meu pensamento a respeito das sondagens do Dr. Chapman, envoltas em tão altos galarins de publicidade. Na generalidade, não me agradam mesma jornada. Quanto a si, sem dúvida que acredita nelas.

Evidentemente.

—        Muito bem. Os dados estão lançados.

Paul recordou a emoção sentida quando, em Reardon, travara contacto com as primeiras críticas escritas pelo Dr. Victor Jonas a respeito do inquérito sobre os celibatários. Considerara-as de visão curta e pouco elegantes. Estaria nessa altura a julgar sobre directa influência da má vontade manifestada pelo Dr. Chapman? O pai do inquérito, sobranceiramente, insinuara que o Dr. Jonas era uma espécie de ratinho que procurava importunar um elefante. Acrescia que as opiniões pouco favoráveis emitidas pelo Dr. Victor Jonas ficavam ainda desfocadas por não passarem de excertos publicados em últimas páginas, por falta de espaço. As primeiras páginas e os grandes cabeçalhos pertenciam ao Dr. Chapman.

Nesse momento, as velhas emoções reacendiam-se. «Se o nosso trabalho é uma coisa tão justa, tão certa, tão esclarecedora (pensou Paul), como é que um homem tão inteligente como o Dr. Jonas não o encara assim? Será ele, como disse o Dr. Chapman, um invejoso e um ambicioso?»

—        É escusado dizer-lhe qual a minha opinião no que respeita ao inquérito dos celibatários — continuou imperturbavelmente o Dr. Jonas, como se estivesse a ler no pensamento de Paul como num livro aberto. — Está contida num sucinto artigo que escrevi na altura. Também quero que fique inteirado de que são ainda maiores as minhas dúvidas no tocante ao inquérito sobre as mulheres casadas... e do uso que o Dr. Chapman fará da sondagem.

—        Mas o trabalho ainda está a ser elaborado. Como pode o senhor criticar uma coisa que ainda não chegou ao seu termo, criticar os resultados de obra que ainda não leu?

Por escassos minutos, o Dr. Jonas esteve às voltas com o seu cachimbo, depois olhou fixamente para Paul.

—        Está redondamente enganado. Já existem dados referentes à sondagem às mulheres casadas... alguns dados, não todos, evidentemente... mas foi o suficiente. Como deve estar ao corrente, fui contratado por determinado grupo pertencente ao conselho de

administração da Fundação Zollman, para fazer uma análise ao inquérito do Dr. Chapman sobre as mulheres casadas... aliás a ambos os inquéritos. Ora o seu Dr. Chapman, para tentar obter o apoio dos membros da Fundação Zollman para a sua causa, vai-Lhes enviando, regularmente, cópias dos dados fornecidos pelas sondagens que efectua.

—        É-me quase impossível acreditar nisso, tanto mais que o trabalho ainda não está concluído.

—        Todavia, os administradores da Zollman estão a par desses progressos do inquérito. Foram-me enviadas fotocópias daquilo que têm realizado, do vosso trabalho já feito — apontou para o móvel atrás de si: — Na segunda gaveta superior do arquivo possuo umas duzentas páginas sobre as vossas entrevistas. Creio, pois, estar suficientemente qualificado para poder discutir consigo o assunto, os últimos dados obtidos até há dois meses.

Paul não estava preparado para aquele rumo da conversa. Apoiara-se essencialmente sobre a total falta de conhecimentos do Dr. Jonas sobre o caso, e a reviravolta súbita dos acontecimentos perturbava-o. Por que razão tivera o Dr. Chapman tanta pressa em enviar os dados, ainda falhos de verificação correcta, a pessoas inteiramente estranhas a trabalho tão melindroso? E, sobretudo, por que motivo não o informara antecipada-mente do caso, colocando-o numa posição tão vulnerável? Supôs que o Dr. Chapman pensara provavelmente que ele tivera conhecimento do caso, que era uma coisa a fazer e que haviam de ser corridos certos riscos para que os projectos tivessem o necessário êxito. Fosse como fosse, era inquietante. No entanto, enfrentando o olhar do Dr. Jonas, sentiu mais de que nunca a determinação de fazer compreender àquele homem atrás da secretária, de olhos piscos, nariz monstruoso e cachimbo de cerejeira, o valor básico da cruzada que representava o inquérito sobre as mulheres casadas.

—        Sim, julgo que na verdade está absolutamente qualificado. O que me espanta, Dr. Jonas...

—        Desculpe a interrupção, mas decerto não se importa que nos tratemos pelos nomes próprios, hem? Gostava que a nossa conversa decorresse no tom menos formal possível.

Paul sorriu.

—        Estou de acordo.

—        Não que eu esteja a antecipar qualquer discussão violenta à boa maneira irlandesa. Na verdade, se temos que nos bater um com o outro, façamo-lo de maneira amigável e isenta de.cerimonial. Peço novamente perdão por tê-lo interrompido, Paul. O que é que estava a dizer?

—        Okay, Victor.

Paul viera até ali preparado para edificar um baluarte altamente defensivo, a pretensos ataques de um inimigo esperto, mas agora qualquer defesa parecia pomposa, e considerou o modo de ajustar o que tinha a dizer a uma ocasião tão pouco cerimoniosa e despida de tácticas e contratácticas.

—        Pois bem, Victor, li grande parte das suas críticas ao relatório sobre os celibatários. Concordei consigo, e continuo a concordar, acerca de grande parte de umas quantas coisas de somenos. Mas o facto é que também fiquei convencido de que, apenas preocupado com as árvores, se esqueceu da floresta. Desde que o Mayflower arribou, o povo deste país tem vivido encerrado numa casa lúgubre, tapada por uma negra cortina de exacerbado puritanismo. As pessoas têm crescido nesta fria e destrutiva casa construída por Calvino, e à entrada da porta continua a manter-se o dístico imprimido por Jonathan Edwards, onde se lê: «Nada de brincadeiras». A melhor parte da vida deste povo tem sido passada nessa casa escura e sem iluminação, uma casa doentia, pouco salubre e feia. Ora acontece que nós tentamos apenas afastar a cortina negra da ignorância, deixando que um pouco-de luz entre na mansão.

—        E de que maneira procedem para isso?

—        De que maneira? Reunindo dados... recolhendo informações sobre um assunto tão melindroso e tão pouco conhecido... E fizemos isso numa escala nunca antes tentada. Tal como sempre afirma o Dr. Chapman, somos coleccionadores de factos.

—        Não chega — disse o Dr. Jonas, imperturbável. — Vocês somam os números obtidos, publicam-nos e eu não vejo em que isso possa realizar qualquer bem. Como alguém disse a respeito de outro relatório — creio que foi Simpson, no «Humanist» —, apenas por se olhar para o céu e contar as estrelas nunca se atinge a positiva ciência da astronomia. Do mesmo modo, recolhendo o que as mulheres casadas dizem sobre o seu comportamento sexual, não poderemos ter um verdadeiro esclarecimento sobre a realidade íntima do seu comportamento.

—        Lamento, mas não estou de acordo consigo — disse Paul, com todo o calor. — Estamos a dar o primeiro e gigantesco passo na senda. A válida ideia de remover os motivos sexuais confinados às palavras obscenas escritas nos lavabos públicos, trazendo o assunto a uma discussão aberta e sincera, já será um bem infinito. Lembro-me que o Dr. Robert Dickinson afirmou que os inimigos da liberdade sexual eram a concepção, a contaminação e a detecção. Plena verdade. Nós, porém, conseguimos controlar a maior parte disso. Todavia, continuamos a enfrentar um inimigo que raramente desce a terreiro e que ninguém até agora desafiou publicamente: a ignorância. Na realidade, um poderoso inimigo que vai solapando no silêncio.

O Dr. Jonas esvaziou o fornilho do cachimbo da cinza, batendo--o vigorosamente contra a beira do cinzeiro metálico. Depois voltou a enchê-lo de tabaco tirado da lata.

— Pelo menos tem poder de persuasão. Estou de acordo que a ignorância é um dos inimigos mais tenazes, mas continuo crente de que o Dr. Chapman enfrenta esse perigoso inimigo de forma errada. Evidentemente que o seu chefe já realizou coisas eminentemente boas, mas as coisas más são em muito maior quantidade — acendeu um fósforo, ateando lume por igual a toda a superfície do tabaco. — Claro que, tratando-se de mulheres casadas da nossa sociedade americana, a investigação ainda mais difícil se torna. Penso que a poligamia é a essência da natureza do homem e que a monogamia lhe foi imposta, tal como lhe foram impostos muitos outros costumes e credos, por exemplo: «oferece a face direita a quem te bater na esquerda»; «ama o teu próximo como a ti mesmo»; «joga lealmente», e por aí adiante. Daí, o homem sentir-se oprimido por inumeráveis condicionalismos que em nada estão de acordo com a sua primitiva natureza. Mas, aceitando esses condicionalismos, respeitando esses limites, recebe certos benefícios — uma espécie de prémio para a condição de poder ser considerado como um ser civilizado e progressivo. O homem estabelece as suas próprias regras e depois, por muito anormais que sejam, o que sucede com frequência, procura fazer com que funcionem perfeitamente. A sexualidade é uma das formas de comportamento condicionado que mais sofrem com as regras antinaturais que exercem pressão sobre o ser humano.

— De modo nenhum nego isso.

—        Realizar um trabalho sobre a sexualidade, sob circuns-tâncias tão repressivas, é um cometimento muito delicado. Acredita que se pode fazer um bom inquérito só pelo facto de contar umas tantas cabeças?

—        Não é esse o meu pensamento sobre a questão, nem o pensamento do Dr. Chapman. Não. Direi que iremos tão longe quanto pudermos nas nossas pesquisas, e outros, depois de nós, irão mais longe ainda.

—        Claro, Paul, claro. Mas o problema, como eu o vejo, reside nisto: vocês sabem até onde podem ir e que não passarão daí, mas o vosso público desconhece os limites.O vasto público tem sido influenciado, pela propaganda em massa, para acreditar que aquilo que a ciência diz é a verdade incontestável. O povo acredita que a ciência é uma espécie de sociedade mística, em ligação directa com Deus, que não pode ser inteiramente compreendida mas em que se deve acreditar cegamente. Evidentemente que a massa popular aceitará os relatórios do Dr. Chapman como a Última Palavra sobre o comportamento sexual. Desconhece que os dados são material em bruto que necessita, depois, de ser submetido à complicada laboração de caldeamento, de libertação de escórias, de laminação, etc, para se conseguir um produto acabado e limpo para consumo. E o mal reside em que o Dr. Chapman não os informa dessa verdade. Logo, quem lê os resultados dos inquéritos, toma-os como coisa definitiva e actua de acordo com eles. A ignorância, como declarado inimigo, acrescenta-se a péssima informação, e isso só pode ser pernicioso.

—        O que é que o faz ser tão positivo de que andamos a disseminar informações erradas?

—        Os métodos que empregam. Quer que esclareça esse ponto?

—        Agradeço-lhe.

Paul viu que o tabaco no seu cachimbo já não era mais que um amontoado de cinzas. Pô-lo de lado e bebeu um gole do seu licor. Lamentou a missão que lhe fora incumbida, porque gostaria de ter conhecido o Dr. Victor Jonas noutras circunstâncias. A conversa, de modo nenhum estranha, poderia ter sido estimulante se não fora aquilo que concordara em fazer. Dessa maneira não passava de um prelúdio para um suborno. Todavia, disse para com os seus botões que a obra não pertencia somente ao Dr. Chapman, era também sua, de Horace e de Cass Miller, e devia ser protegida.

—        ...não é rigorosamente controlada, nem controlada clinicamente, e por isso penso que é um erro — estava o Dr. Jonas a dizer.

Paul deduziu aquilo que não escutara devido ao seu devaneio. Evidentemente que o Dr. Jonas se devia estar a referir à técnica de sondagem.

—        Os grupos de voluntárias de modo nenhum podem ser realmente representativos do comportamento sexual da mulher casada americana — continuou o Dr. Jonas. — As mulheres que se oferecem afectam o seu desejo de falar.

—        Haverá uma técnica melhor? — interrompeu Paul. — Preferiria o método de andar de porta em porta ou da publicação de anúncios nos jornais? Optaria pela selecção de indivíduos por meio de consulta da lista telefónica ou de interpelação directa nas ruas? Enveredaria pelo envio dos questionários pelo correio que a maior parte dos escolhidos não compreenderia e a que muitos não ligariam a menor importância? Devo lembrar-lhe que a Comissão de Investigação Federal aprovou as nossas fórmulas metodplógicas e estatísticas.

O Dr. Jonas fez um aceno de confirmação.      

—        Sim, de facto receberam aprovação oficial, eu sei. È que todos os outros métodos que enumerou não são tão válidos e exactos como o que empregam. Existem porém meios melhores de procurar a verdade do que aqueles que utilizam. Estou certo disso. Não pretendo agora divagar sobre esse assunto, prefiro debater a vossa técnica.

—        Pode continuar.

—        O Dr. Chapman colocou-se demasiado na dependência da natureza dos agrupamentos e organizações femininas. Julgo isso suspeito. Parece-me que as mulheres mais representativas da América não pertencem a quaisquer grupos formais nem a estritos clubes femininos. As mulheres mais representativas da nossa sociedade americana não pertencem a agremiações privadas, são independentes na sua própria essência de material avaliável, o que as torna completamente diferentes das mulheres que vocês entrevistam, e de forma nenhuma a vossa equipa pode ter a pretensão de estar a fazer a cobertura de toda a população feminina americana engajada no casamento. Aliás, vocês nem sequer podem ter no vosso activo todas as mulheres membros dessas organizações femininas espalhadas pelo país.

—        No entanto, entrevistámos bastantes. Em The Briars existem 220 mulheres casadas. A maior parte delas ofereceram--se como voluntárias — 201, para lhe dar o número exacto.

—        Segundo as informações que possuo, o contingente em The Briars é excepcionalmente elevado. Creio que só nove por cento, isto é, nove de cada 100 grupos que vocês sondaram apresentaram para entrevistas o contingente ideal de cem por cento.

—        Bem, é verdade. Mas...

—        Estou plenamente de acordo em que os elementos dessas organizações que não se oferecem para as entrevistas têm preconceitos sexuais e exagerado recato. Só conseguem obter a colaboração das exibicionistas—faço uso desta palavra dentro do seu mais amplo sentido — e das mulheres psicologicamente perturbadas, que estão verdadeiramente famintas por falar a seu respeito.

—        Temos tomado isso tudo em consideração.

—        Mas não de forma eficaz e suficiente, Paul. Suponho que conhece a obra de Abraham H. Maslow, da Universidade de Brandeis. Também ele realizou um estudo sobre questões sexuais utilizando essencialmente voluntárias. A breve trecho, porém, aper-cebeu-se de que havia algo extremamente significativo: nove em cada dez dessas voluntárias eram de um egocentrismo máximo. Constituíam um agrupamento especial de mulheres agressivas, autoconfiantes, sendo precisamente as que não eram virgens que desprezavam as convenções no comportamento sexual, e que, em grande percentagem, se masturbavam com frequência. A décima representante era uma espécie de voluntária compelida, com inibições, pouco segura de si, normalmente virgem, conservadora nos costumes e sem recorrer à masturbação. Sinto que o Dr. Chapman está a obter demasiado das mulheres que se têm a si mesmas em alta consideração e muito pouco das outras. Logo, existe uma questão de erro de memória nas entrevistas por si mesmas.

Dado que o estudo de Maslow sempre o perturbara, Paul firmou-se na posição de não o debater, discutindo apenas o que lhe dizia respeito.

—        Julgo que sobre o último ponto posso falar com certo conhecimento de causa. Não há dúvida que grande número de mulheres parece decidido a mascarar a verdade, a fazer omissões intencionais e a entrar em exageros. No entanto, acabam por colaborar connosco quando, através da entrevista, verificam que procuramos somente ser objectivos e que nada mais desejamos do que factos.

—        Como pode ter a certeza disso? Devido à vossa «Sondagem Dupla»?

Paul não pôde ocultar a sua surpresa ao ouvir aquelas palavras. A «Sondagem Dupla» não era regulamentar, tratava-se apenas da designação particular dada pelo Dr. Chapman aos valiosos documentos que herdara do falecido Dr. Julian Gleed, da Universidade de Massachusetts. Em 1909, com dezanove anos, Julian Gleed era ainda aluno da Universidade de Clark quando o discutido Dr. Sigmund Freud visitou a América pela primeira e única vez. O jovem Gleed ficou tão fascinado pelas Cinco Conferências sobre a Psicanálise do mago de Viena, em especial com a quarta, a respeito da sexualidade, que logo decidiu ser um psicanalista. Uma vez licenciado e iniciada a sua carreira prática, o Dr. Gleed verificou, verdadeiramente fascinado, que os cônjuges encaravam de maneira muito diferente os mesmos acontecimentos da vida marital. Em breve o Dr. Gleed passou a aceitar unicamente casos em que pudesse analisar, embora em sessões separadas, casais consorciados. Ordenara e conservara meticulosamente volumosos arquivos sobre esses casais, duzentos e três ao todo, estabe-lecendo uma percentagem de discrepâncias sobre o comporta-mento sexual, especialmente nas associações livres de ideias tomadas durante a análise.

Quando o Dr. Gleed publicou uma breve resenha dos resultados a que chegara, numa revista especializada em psiquiatria, o Dr. Chapman, que nessa mesma altura iniciava a sua sondagem sobre os celibatários, tornou-se o mais interessado dos seus admiradores, começando uma intensa correspondência com o psicanalista. Em breve era possuidor das estatísticas do Dr. Gleed e dos modos de tomar os erros em consideração em sondagens futuras.

Após o falecimento do Dr. Julian Gleed, o Dr. Chapman entrou na posse dos seus arquivos, por expressa disposição testamentária, e deles tirou as ilações de que mais necessitava para a sua obra. A «Sondagem Dupla», como foram particular-mente denominados os estudos do Dr. Gleed, era matéria somente conhecida do Dr. Chapman e dos seus mais directos colaboradores. Os estudos do psicanalista nunca tinham sido publicados, nem tinham tido qualquer publicidade. Eram mantidos como um elemento secreto de mensuração.

Por isso, Paul perguntava a si mesmo como é que o Dr. Victor Jonas tinha conhecimento do caso. Finalmente, relacionando os factos, concluiu que o Dr. Chapman revelara todos os seus processos à Fundação Zollman, única forma, por ligação directa, que podia explicar o conhecimento do Dr. Jonas sobre o caso.

—        Sim. Entre outros modos de verificação, pelo processo da «Sondagem Dupla» — confirmou Paul.

—        Estou de acordo em que, em parte, poderão verificar as mentiras proferidas conscientemente. Na verdade, o facto abona a habilidade posta ao serviço da entrevista pelo Dr. Chapman. Mas como é que podem detectar as mentiras ditas inconscientemente, tomando-as em consideração no expresso valor da sondagem?

—        Não compreendi perfeitamente. Quer fazer o favor de ser mais explícito?

—        Ponhamos então o assunto desta forma: suponhamos que uma das entrevistadas está ao seu dispor. Você faz-lhe as perguntas previamente seleccionadas, a que ela responde com honestidade, pensando estar a ser sincera, e você adiciona a entrevista ao somatório da estatística condicionada, porque acredita na sondagem. Repare que eu disse que a entrevistada pensa ser sincera ao responder. Muito bem, não obstante a tocante sinceridade que se julga objectiva, suponhamos que as memórias dos acontecimentos da infância e da adolescência são coisas esparsas, imprecisas, envoltas num nevoeiro mental. Logo, o comportamento sexual que referir de modo nenhum corresponde a uma verdade inteiriça. Freud preocupou-se em esclarecer o caso. Você está a lidar com o inconsciente de uma mulher. Ela não lhe pode revelar o que esconde de si própria, aquilo que está reprimido e latente. Ela pode relatar fantasias como factos concretos, acreditando que está a falar verdade. A entrevistada pode saltar por cima daquilo que os psicanalistas chamam memórias ocultas, as mais recentes sobrepõem-se às antigas e estas são, na sua grande maioria, distorcidas, inexactas.

—        Com as nossas perguntas de cotejo, cada uma utilizando termos diferentes, conseguimos, habitualmente, verificar essas mentiras.

—        Duvido. A entrevistada pode repetir a mesma resposta parcialmente falsa uma dezena de vezes reagindo da mesma maneira a uma dezena de perguntas diferentes, porque crê estar a contar a verdade. Igualmente pode escamotear certos acontecimentos, convencida realmente de que nunca ocorreram. Quero dizer na minha que a resposta evidente, aberta, consciente, não basta. Nunca diz bastante e, frequentemente, é cheia de inexactidões.

—        Frequentemente prima pela exactidão — afirmou Paul, obstinado. — Mas afinal que sugere? Que se faça antecipadamente uma análise psicológica a cada uma das voluntárias?

—        Seria mais confiante se cada uma delas se encontrasse em estado de narcose.

Paul sacudiu a cabeça numa negativa.

—        Santo Deus, Victor, já se torna dificílimo conseguir entrevistas de três mil mulheres casadas sobre os seus comportamentos sexuais. Se lhes fosse pedido para anuírem a tomar o soro da verdade não obteríamos mais que uma mão-cheia de candidatas.

—        Talvez que essa mão-cheia fosse preferível às três mil, se se pudesse ter confiança naquilo que contavam — disse suavemente o Dr. Jonas, ao mesmo tempo que se levantava para ir fechar a janela. — Sabe, no meu tempo ouvi milhares de mulheres casadas. E era um dos cinco conselheiros do Tribunal de Conciliação Matrimonial de Los Angeles. Um organismo perfeitamente legal. Num caso de divórcio, se um dos cônjuges deseja um inquérito, o outro, se necessário mesmo por intimação formal, deve apresentar--se ao conselheiro. Em determinado ano, tendo aconselhado cerca de mil cônjuges desavindos, conse-guimos manter a união em metade. Continuo ainda a ser conselheiro matrimonial, mas agora numa base privada.

—        Costuma utilizar o sistema de narcose?

—        Sim, quando sou forçado a isso. Mas num número

reduzidíssimo de casos. Porém o fulcro da questão não reside nisso. O que acontece é que eu e os meus colegas não somos

caçadores de números como o Dr. Chapman. Quando encaramos a história sexual de uma mulher, o nosso interesse não reside exclusivamente na frequência com que pratica o coito ou na frequência dos orgasmos. Preocupamo-nos mais com a gradação emocional íntima do que com o grau e soma das emoções puramente físicas. Eis o busílis. Eis onde mais violentamente diferimos do Dr. Chapman.

Paul terminou de beber o seu licor e ficou a observar pensativamente o Dr. Jonas, que passeava de um lado para outro no aposento. Pouco depois, o dono da casa sentou-se no tampo da secretária, em frente de Paul, e encarou-o firmemente.

—        Estava a perguntar a mim mesmo de que forma prosseguir com a conversa sem o indispor contra mim.

—        Acredite que não me indispõe contra si nem me aborrece. Penso que o Dr. Chapman é um ser humano, mas um ser humano muito importante, e sinto-me privilegiado por ser um dos seus associados. Posso parecer um pouco pretensioso, mas na verdade não o sou. Tenho trinta e cinco anos e com uma maturidade que tem sido muito experimentada pelas várias circunstâncias da vida. Se não acreditasse no trabalho que realizo, já teria abandonado o inquérito e regressaria ao ensino da Literatura ou dedicar-me-ia a escrever livros. É possível que até viesse a tornar-me um conselheiro matrimonial, por exemplo, se considerasse mais útil essa especialidade. Não, em nada me aborrece. Já ouvi quase tudo isso que me disse, só com a diferença de que a sua exposição é a mais brilhante de todas.

—        Mais licor?

—        Não, muito obrigado. A nossa conversa sup'era o estímulo de todos os licores. A respeito da observação que fez de que nos interessa mais a soma das emoções físicas de que a gradação emocional íntima creio que não tem razão. Aliás a pedra de toque não é essa.

—        Então qual é? — o Dr. Jonas voltou a sentar-se na sua cadeira.

—        A nossa missão é de estatísticas, não de dar conselhos aos corações solitários, às pessoas emocionalmente perturbadas.

—        Uma vez que preparam uma publicação para os leigos, julgo que as duas coisas deviam entrar na vossa missão — replicou o Dr. Jonas franzindo o cenho. Como que para se moderar, agarrou num estilete corta-papéis e pôs-se a observá-lo cuidadosamente, voltando, passado um minuto, a colocá-lo de novo no lugar anterior.

— Acima de tudo, o seu Dr. Chapman é um biólogo. Como tal, dedica a sua especial opinião à sondagem pública, à investigação.

Mas no que ele se manifesta interessado é na colectânea de números. Comigo não é assim, eu sou um psicólogo, pretendo ter conhecimento a respeito de sentimentos e relações.

Agarrou numa revista que estava em cima da secretária e íolheou-a. Paul viu que a revista era a Encounter.

—        Estive a ler um artigo do antropólogo inglês Geoffrey Gorer.

Um homem profundo e espirituoso. Gorer fala das sondagens sexuais, em especial de uma. A respeito dos padrões dos entrevistadores, diz o seguinte... — o Dr. Jonas procurou a citação e depois, com o dedo a marcar o local, leu em voz alta: — «O sexo torna-se uma actividade completamente desprovida de significado, excepto como instrumento de descontracção física, algo como o alívio produzido por um bom espirro, mas com a nota marcante de ser uma descarga das regiões inferiores do corpo em vez das superiores. Se as tensões sobem de grau, uma pessoa não tem mais que tomar uma pitada de rapé ou arranjar uma amante, não importa qual das coisas».

O Dr. Jonas fechou a revista e colocou-a na secretária.

—        Se estiver errado corrija-me, mas, tanto quanto sei, o Dr. Chapman nunca usou a palavra amor, quer nas suas publicações quer nas suas declarações.

Paul ficou calado.

—        Estou a falar com a máxima seriedade — continuou o Dr. Jonas. — Nunca vi essa palavra nas obras dele. Todos os vossos diagramas, gráficos, tabelas, são unicamente dedicados ao acto físico — quantidade, frequência. Quanto; quantas vezes. Todavia esses números nada dizem às mulheres casadas sobre o amor ou sobre o modo de atingir a felicidade e a paz conjugal. O que fazem é separar o acto sexual de qualquer afecto, calor humano, ternura e devoção. Do meu ponto de vista pessoal, não devia ser assim. Como muitos outros cientistas da sua especialidade, o Dr. Chapman está convencido de que o orgasmo — escoadoiro sexual regular—significa toda a fonte de saúde e felicidade. Paul, creia que existe nisso um grande erro. A chamada sexualidade física normal pode representar amor, mas pode também exprimir ansiedade, receio, vaidade, compulsão. Quero eu dizer com isto que utilizando-se o acto sexual como unidade de julgamento sobre a normalidade, a felicidade ou a saúde, esses padrões podem ser coisas erradas. O sexo como atitude física é uma das partes do todo que forma o homem ou a mulher. Não determina o carácter. Pelo contrário, é o carácter que determina o comportamento sexual de um ser humano. Terman exprimiu isto da melhor maneira. O ajustamento sexual no casamento é principalmente uma expressão dos mesmos factores que fazem com que um homem ou uma mulher se consigam ajustar com êxito em qualquer tipo de relações humanas. A vossa vida sexual é uma escravidão de toda a personalidade a um único fim que nada significa dentro de uma escala de valores positivos. É perfeitamente possível que uma pessoa com uma personalidade integrativa, um ser completamente adaptado à vida social e capaz de êxito na carreira escolhida consiga atingir um grau de completa satisfação sexual, de normalidade conjugal. Se uma criatura for um feixe de perturbações emocionais, os gráficos do Dr. Chapman em nada ajudarão à sua cura. Importa que uma mulher tenha três magníficos orgasmos por semana, é uma coisa a que todas devem aspirar. Está dentro de uma escala de normalidade e perfeição, segundo o Dr. Chapman. Mas claro que se olvida completamente que, mesmo com os seus regulamentares orgasmos, essa mulher pode não passar de uma infeliz, com toda a carência de amor, de ternura e alegria na sua vida extra-sexual.

Paul, que ouvira a peroração do Dr. Jonas recostado no espaldar da sua cadeira estofada, com as pernas estiraçadas, levantou--se lentamente.

—        De modo nenhum pretendo negar as nossas limitações. Mas pergunto de que maneira se consegue mensurar o amor? Afigura--se-me que é impossível.

—        Justamente. Então porque é que hão-de confundir o coito e o orgasmo com o amor?

—        Não é isso que o Dr. Chapman preconiza.

— Porém, dado que não acrescenta mais nada de positivo, o público acredita que assim é, que a satisfação sexual é uma norma de amor e felicidade. Se, de acordo com os vossos números, se considera biologicamente normal o facto de grande número de pessoas conseguir ter relações sexuais três vezes por semana, que esperança restará para aquelas que não estão física nem psicologicamente aptas a praticar o coito esse número determinante de vezes? Suponha o caso comigo e com minha mulher. Julgamos suficiente uma vez por semana. Ora, consoante a vossa lógica, ao lermos os gráficos estatísticos, julgar-nos-íamos anormais e esse sentimento de frustração pressupõe um pensamento de culpa e de erro que conduz ao sofrimento intolerável. As regras da maioria não devem ser consideradas automaticamente como medida-padrão do normal, somente por se tratar de práticas maioritárias.

—Até agora o senhor só tem demonstrado o reverso da medalha, mas a verdade é que ela tem um anverso. Volte-a — disse paul. _ Evidentemente que representa precisamente o contrário daquilo que tem vindo a expor. Penso que se se disser e mostrar claramente que determinadas práticas sexuais são as mais difundidas, a minoria inibida tem tendência a perder a crença sobre a sua anormalidade e a acabar com um sentimento de vergonha e culpa. E é uma ajuda para libertar da ignorância milhões de seres mergulhados na aflição e no sofrimento.

—        Isso parece-me como que um jogo de azar, e em nada me sinto inclinado a aprová-lo.

—        Por vezes torna-se necessário. O senhor está encerrado neste belo bungalowe teoriza sobre a questão, mas nós andamos no campo de batalha escutando três mil mulheres verdadeiras com as suas reais histórias sexuais. Eis a verdade. Eis a maneira como o mundo vive. Os arautos da ignorância, da moralidade medieval, censuram-nos e atacam-nos por isso. Afirmam que somos apenas coleccionadores e fornecedores de podridão erótica. Não faz a menor ideia da resistência que encontramos. Comparam o Dr. Chapman com D. H. Lawrence, com Rabelais, com o Marquês de Sade e com Henry Miller. Mas não é isso o pior do caso. Enquanto estamos engajados na batalha frontal com esses puritanos, somos atacados pela retaguarda por provocadores especiais, corpos francos de intelectuais picuinhas e de críticos dispostos apenas a destruir... — vendo um começo de reacção aparecer na fisionomia do Dr. Jonas, Paul levantou a mão num gesto de paz. — Não, não estou a pretender incluí-lo entre essa gente, Victor, ainda que o senhor possa estar integrado nesses batalhões de sapadores. Mas, seja como for, embora a nossa estratégica possa não ser perfeita, o facto é que continuamos a lutar sem desfalecimentos, isto porque conhecemos muito bem os bons objectivos que pretendemos atingir com a nossa causa e porque sabemos que milhões de pessoas necessitam de nós. É possível que os meios que utilizamos para procurarmos alcançar os nossos fins não sejam os melhores, talvez mesmo os fins acabem por não justificar os meios. Quem sabe? Mas lutamos porque sabemos que alguém deve iniciar a batalha para conseguir uma moralidade mais tolerante e um novo clima para o desenvolvimento do sexo.

Paul parou, arquejante. Momentaneamente embaraçado pela sua veemência, procurou refúgio no cachimbo.

O Dr. Jonas sorriu.

—        Paul, você é um homem às direitas.

—        Como lhe afirmei a princípio, acredito naquilo que estou a realizar.

—        Talvez eu tenha sido duro de mais para si... Claro que isso não envolveu qualquer intenção pessoal...

—        Bom Deus, não tem nada de que me pedir desculpa.

—        ...mas, como pode verificar, eu não acredito no trabalho em que toma parte. Quando me telefonou, disse-me que tínhamos um objectivo comum. Pois bem, vamos agora falar sobre esse assunto. O mesmo objectivo... sim, na verdade, acredito nisso. Como sabe, Paul, a tagarelice acerca de tolerância, discernimento e vida melhor costuma ser hábito dos radicais da província ou dos jovens liberais, sobretudo dos jovens. Mas eu creio que chegou agora a altura de os homens maduros retomarem com fidelidade a senda das teorias dos jovens. Sinto-me enjoado de ouvir dizer que o idealismo só tem relação directa com a puberdade. Penso, em definitivo, que o idealismo pertence aos homens fortes, amadurecidos, conscientes das suas responsabilidades. Tal como você, desejo confinar o puritanismo a um círculo restrito de defesas de aço de onde não se possa escapar e difundir. Constituir-lhe uma espécie de reserva que seja como que uma curiosidade de um passado arcaico. Desejo que os homens e mulheres sejam finalmente livres e sem o jugo vergonhoso do medo. Concordo que se lute por essa liberdade com afinco, que se procure libertar a humanidade dessa escravidão e conduzi-la à terra prometida. Sim, nisso estamos de acordo total. A única questão que nos separa é: que caminho nos poderá levar o mais rapidamente possível a essa terra prometida? Tenho a minha ideia sobre o caso, mas penso que o meu caminho não é aquele que o Dr. Chapman segue.

Subitamente a consciência de Paul despertou para o verdadeiro motivo que o trouxera a casa do Dr. Victor Jonas.

—        Mas o importante é que andamos em demanda da mesma coisa. Eis o que conta. Estou certo de que o Dr. Chapman apreciaria as suas críticas...

—        Duvido.

—        O inquérito é toda a sua vida. Ele está sempre a procurar melhorar os seus métodos. É um cientista puro... — Paul hesitou, ao ver a expressão de cepticismo no rosto do Dr. Jonas. — Não acredita em mim?

—        Bem...

—        Afigura-se-me que é desrazoavelmente hostil ao Dr. Chapman.

—        Sim, porque, na minha opinião, ele não é um cientista puro. Quando muito, se não ultrapassar esta craveira, é um publicista e um político. A pureza do trabalho fica degradada por esses factores.

Paul recordou-se da conversa no comboio, quando o Dr. Chapman tinha defendido o Cientista no seu direito de agir como um Político para defender uma boa causa. Ainda considerou parafrasear a explicação dada pelo seu chefe, mas depois julgou melhor calar-se.

—        Em boa verdade, Paul, penso que comete um erro misturando a sua identidade com a do Dr. Chapman. Você é um homem devotado à verdade. Pode na realidade observar o modo

como eu posso ser útil. Mas o Dr. Chapman, estou absolutamente certo, é muito diferente de si.

-— Creio que não somos assim tão diferentes como pensa. Muito embora você pense que não, sinto que na verdade é muito diferente. Todavia, isso é uma coisa que não está agora em causa.

—        Claro que está. Tinha grande prazer em que conhecesse o Dr. Chapman pessoalmente, que trabalhasse com ele. Poderia então compreender a justiça da nossa causa.

—        Foi por isso que veio a minha casa? — perguntou o Dr. Jonas, fitando Paul com curiosidade.

—        Não. Não exactamente por esse motivo — respondeu Paul, com demasiada pressa.

Victor Jonas baixou a vista para o mata-borrão que cobria parte do tampo da secretária. Por breves instantes os seus dedos distraíram-se a brincar com um cinzeiro de loiça em forma de sombrero. Quando voltou a olhar para Paul, disse sem sombra de hostilidade:

—        Muito bem, antes de procurarmos saber exactamente a razão que o trouxe cá, com certeza que não se deve importar de me ouvir durante mais alguns minutos. Tenho mais qualquer coisa a dizer sobre a vossa sondagem. O meu sentido de plenitude sen-tir—se-ia frustrado se não acabasse. Ficaria a pensar toda a noite naquilo que realmente lhe deveria ter dito.

—        Com certeza — disse Paul, aliviado.

—        Desde o início da vossa investigação, o Dr. Chapman, como tantos outros antes dele, escolheu o orgasmo como unidade de avaliação para a normalidade sexual. De princípio nada vi de errado nisso. Era necessário que se começasse por qualquer coisa. E, como muito bem há pouco me observou, não há qualquer processo de se poder medir o amor. Assim, o orgasmo era mais acessível. Todavia, o que depois me veio a alarmar, e que profundamente passei a deplorar, foi a péssima utilização dos dados apurados durante o inquérito aos celibatários e os perigos inerentes de que se reveste a publicação das estatísticas sobre as mulheres casadas. Evidentemente que o Dr. Chapman é um biólogo, de modo que posso muito bem compreender a sua afeição pelos animais sub--humanos. Não fiquei surpreendido quando ele citou Edward Elkan, naquele artigo aparecido num jornal de sexologia de Bombaim, declarando que nenhuma fêmea, com excepção da fêmea de certos peixes especiais e da fêmea do cisne, conseguia chegar ao orgasmo. Nem fiquei surpreendido quando o Dr. Chapman relatou que a média geral dos machos, nas primatas, se sacia sexualmente por acção reflexa, e que o seu orgasmo se manifesta dezassete segundos após a intromissão, o tempo estritamente necessário para a sobrevivência da espécie. Mas quando relacionou este último facto com a revelação de que a média do homem celibatário atinge o orgasmo em cento e dezanove segundos — menos de dois minutos— fiquei perturbado.

—        Mas porquê? É um facto comprovado.

—        É o vosso facto. Há outros que apresentam factos diferentes. Dickinson situou a média à roda dos cinco minutos; Kinsey, por sua vez, estabeleceu-a entre dois a três minutos. Mas digamos que é um facto, não é a isso que objecto. A minha objecção é feita ao caso de que, por sugestão, o Dr. Chapman perdoa o facto, afirmando que a breve duração das relações sexuais é justa e boa só porque está difundida e que, por conseguinte, é normal. Não estou em crer que seja justa e boa—falo das relações conjugais —, nem a maioria dos psicólogos pensa que o caso tenha justiça e harmonia. O que é natural e facílimo para um macho como animal pode ser desejável para a condição do matrimónio que ele inventou. Não me admiraria que a maioria dos homens tomasse isso como uma licença para abandonar o controlo.

—        Não acredito nisso, Victor, nem as mulheres, que costumam relacionar a potência e a virilidade com o jogo sexual prolongado. De resto não se esqueça da descoberta feita por Hamilton. Quando ele perguntou às mulheres que entrevistou: «Crê que os orgasmos do seu marido ocorrem demasiado depressa para que consiga sentir prazer?», quarenta e oito por cento forneceram resposta afirmativa, desta ou daquela maneira. A maioria dos homens sentem ou compreendem muito bem esse facto.

—        Bem, talvez seja. Quero que saiba que não estou a dizer que a ejaculação rápida é sempre errada. Uma reacção erótica excitada pode ser boa, se não for provocada por hostilidade. E, frequentemente, uma mulher pode ser patologicamente tardia na sua reacção, e então não há necessidade de que o homem se satisfaça num masoquismo artificial. Mas, geralmente, não é esse o caso. E eu penso que a utilização dos números do Dr. Chapman sobre o orgasmo masculino tem sido prejudicial. Além disso, não rrie agrada nada o modo como ele separa o orgasmo da emoção.

Nas vossas tabelas, cada orgasmo representa apenas um número idêntico a qualquer outro. Mas não me venha dizer que um orgasmo tido com uma prostituta é o mesmo orgasmo que se pode ter com a bonita virgem com quem um homem contrai matrimónio. Ou que o orgasmo conseguido em poucos segundos em qualquer vão de escada é o mesmo que se consegue durante umas férias passadas num solitário abrigo de montanha. Pior ainda, para o Dr. Chapman o número relativo ao orgasmo é o fim das relações sexuais.

—        E não é assim?

—        Tecnicamente, para o macho, assim é. Mas você ouviu há pouco tempo as confissões de centenas de mulheres. Para muitas delas o orgasmo pode não ser um fim em si, mas apenas um começo de algo de maior projecção. Em que lugar situaremos a procriação — gravidez, parto e maternidade?

—        Evidentemente que está dentro da razão. Estou certo de que o Dr. Chapman compreende isso muito bem e que o caso será esclarecido na nova obra em preparação.

—        Naquilo que li até à data, Paul, ainda não encontrei qualquer prova disso. Pode pensar que estou a ir longe de mais no assunto, mas eu julgo que não. Vocês atiram à consideração de homens e mulheres, que se sentem profundamente preocupados, quantidades de números incaracterísticos e frios. As pessoas que lerem essas estatísticas podem não sabê-las compreender, interpretá--las de forma errada e afundarem-se ainda mais no inferno de dúvidas em que já estavam mergulhadas. Quando ontem à noite estive a examinar certos gráficos sobre as mulheres casadas, enviados pelo Dr. Chapman à Fundação Zollman, fiquei atónito pelos rígidos e dogmáticos comentários do mestre feito à administração. Em todos os gráficos, o Dr. Chapman parece estar a dizer que as mulheres que, com frequência, gozam de orgasmos são as de casamento mais feliz, como se isso fosse tudo o que interessa no amor. Inclino-me mais para aquilo que foi observado pelo Dr. Edmund Bergler e pelo Dr. William S. Kroger. Lembra-se do que eles escreveram? «Se tipicamente uma mulher experimenta orgasmos numa série de relações sexuais clandestinas mas é fria no casamento, os seus orgasmos não são prova de saúde sexual mas sim de que sofre de uma neurose». Existem centenas de pessoas com autoridade no assunto a acreditar que o orgasmo não está estreitamente relacionado com o êxito conjugal, como o Dr. Chapman parece supor. Estou na verdade bastante preocupado de que essa falta de senso manifestada pelo Dr. Chapman pode realmente causar imensos prejuízos.

—        É pena que tivesse visto esse material em bruto, isto é, antes de o Dr. Chapman o poder desenvolver e corrigir para a final publicação.

—        Só lhe pus a vista em cima, porque o Dr. Chapman achou conveniente submetê-lo à consideração da Fundação Zollman. E há mais uma coisa que eu quero salientar, se não se importa.

—        Faça favor...

—        O seu chefe é uma pessoa demasiado impaciente, manifesta uma excessiva pressa. O irrequietismo e a pressa podem ser qualidades estimáveis num agente comercial, mas operam na verdade em detrimento do espírito de um cientista. Não pense que estou a ser pomposo ou caturra a este respeito. Preocupa-me. Não me refiro somente aos últimos dados que o Dr. Chapman enviou à Fundação Zollman, mas também às obras que tem apresentado e que apresentará aos seus colegas e ao público leigo, e às suas declarações feitas à imprensa. Li a grande entrevista que concedeu quando chegou a The Briars e toda aquela miscelânea acerca dos homens e das mulheres terem atitudes diferentes em relação ao acto sexual. Levou-lhe um enorme espaço de tempo a aprender o que Lord Byron já sabia por instinto em 1819.

O amor que na vida do homem é uma coisa à parte Constitui para a mulher toda a sua existência.

—        Precisamente aquilo que Madame de Staél descobriu vinte e cinco anos antes de Byron: «O amor, que é apenas um episódio na vida de um homem, significa toda a história da vida de uma mulher».

Não se pôde Paul impedir de dizer:

—        Completamente verdade, mas poucas pessoas acreditaram naquilo que foi escrito por Madame Staèl ou por Lord Byron. O Dr. Chapman está agora a provar esse facto estatisticamente. Porque é que não havia de falar à imprensa nisso? Com certeza que isso dará mais compreensão mútua do amor entre as pessoas casadas.

— Será verdade? Por meio de publicação de meras estatísticas pode dizer-se que os homens e as mulheres são diferentes na sua concepção do amor? Penso que não. Os números não dizem a verdade completa. E ou o Dr. Chapman tem conhecimento disso e não quer encarar a questão de frente, ou ignora por completo o caso. Seja como for, não devia vir com isso a público por enquanto. O facto em si de que os homens e mulheres são diferentes nesse aspecto vem comprovar o grave erro do próprio inquérito. Os gráficos do Dr. Chapman mostram quantas vezes uma mulher acede sexualmente às exigências do seu companheiro, mas não mostram o que ela sentiucom essa anuência. O que é que constitui um facto verdadeiro a respeito do amor de uma mulher? Que ela concordou em copular com o marido na noite anterior? Ou o que ela sentiu de certo modo, acerca da cópula, antes, durante e depois? Lembre-se bem disto, Paul, um homem pode desejar tornar-se uma das estatísticas do Dr. Chapman, mas uma mulher tornar-se-á uma das estatísticas sem ter nenhuma vontade disso. Acredito que, com mais frequência, uma mulher deseja o seu marido por ele ter sido amável, atencioso e devotado para com ela durante todo o dia, e que o acto físico do amor durante a noite não é mais que a culminação de todas as outras facetas do amor ocorridas durante o dia. Sim, na verdade estou em crer que os factores influentes são os que enumerei e não o facto de uma mulher se sentir feliz na cama apenas por causa de um órgão sexual exigente e com cio. Com um homem passa-se justamente o contrário. O seu comportamento na cama deve-se exclusivamente à febre do órgão sexual. Resta só dizer que o Dr. Chapman não explicou essa importante diferença na sua entrevista.

—        Mas ele sublinhou precisamente que as necessidades básicas do homem diferem das da mulher — interrompeu Paul, teimosamente.

—        Não como devia, nem como o assunto merecia ser ventilado. Afirmou unicamente que os homens e as mulheres se encaram sexualmente em planos diferentes. É muito de lamentar que se tivesse detido apenas nesse ponto morto. Porém, se as vossas estatísticas incluíssem também um diagrama sobre os sentimentos, emoções e exigências reais das mulheres, acharia esplêndido que fornecesse semelhantes primores de oratória à imprensa. Acontece simplesmente que o Dr. Chapman não se detém na essência das coisas, mas sim no que ele pensa ser um motivo essencial: números sem vida, que podem obter alta publicidade e fornecer um vasto campo de especulações. Se não fosse tão insistente a sua pressa de publicidade e dinheiro...

—        Discordo. O Dr. Chapman não retira sequer um centavo dos fundos do inquérito.

—        Sei isso muito bem — replicou o Dr. Jonas, quase com brusquidão. — Estava a referir-me ao dinheiro que pode obter para o seu tão ambicionado projecto, sobretudo ao apoio monetário da Fundação Zollman... Seja como for, se não estivesse a ser movido por uma pressa quase irracional, poderia ser muito mais profundo nas suas investigações.

—        É óbvio que temos que impor limites ao âmbito do nosso trabalho.

—        Claro, Paul. No entanto, a verdade é para ser revelada sem rebuços, integralmente, de modo que as pessoas possam lucrar com a sua publicação em termos de pesquisa honesta. Tome como exemplo esta sondagem que realizam sobre a mulher casada. Preciso de mais informações e afigura-se-me ser pertinente o que peço. Com respeito às mulheres que vocês entrevistaram, acho como vital que se saiba: Será a entrevistada estéril ou não? Quantos filhos tem? Se teve relações sexuais pré-conjugais, engravidou alguma vez? Se assim foi, em que medida isso afectou o seu casamento? Foi filha única? Se não foi, teve algum irmão ou irmã mais velhos? Qual a sua opinião e sensação relativamente ao tamanho do órgão genital masculino? Quais os seus sentimentos acerca de intimidades conjugais durante o período menstrual? Prefere camas separadas ou cama de casal? Os contraceptivos usados refreiam a sua reacção? Pensa em divorciar-se? Já foi alguma vez Psicanalisada? Se teve relações sexuais pré-conjugais e veio a casar-se com o homem que a desflorou, fê-lo porque a prática do coito foi satisfatória? Casou-se mesmo não se tendo satisfeito com o coito, ou o caso não lhe interessou? — o Dr. Jonas parou abruptamente. — Podia continuar com perguntas destas durante uma hora, mas não importa. O que está em equação é que algumas destas perguntas deviam ser seriamente consideradas.

—        E como é que sabe que não foram formuladas?

—        De facto não sei. Presumo... baseado naquilo que apreendo sobre o carácter do Dr. Chapman, baseado nas suas ambições, nos seus objectivos e nos seus gráficos demonstrativos — fitou fixamente Paul durante uns momentos.

—        Ainda continua a pensar que o Dr. Chapman gostaria de falar comigo?

—        Sei que gostaria.

—        Porquê?

Antes que Paui pudesse falar, o Dr. Jonas levantou os braços, com as palmas das mãos voltadas para a frente, como um lutador que pedisse ao adversário jogo limpo.

—        Paul, nada de lugares-comuns muito bem arranjadinhos. E nada de trivialidades sobre aquilo que temos a declarar com honestidade e franqueza. Quero a razão pura e simples por que o Dr. Chapman desejaria encontrar-se comigo... e a verdade sobre a razão de o ter enviado a si a minha casa.

Paul sentiu-se corar intensamente. Ficou sentado, sem se mover, tentando determinar a resposta que havia de dar. Deveria continuar a jogar o joguinho do Dr. Chapman com a amarga pílula envolta num papel de rebuçado? Sem dúvida que o Dr. Jonas acabaria por descobrir o truque. Deveria enveredar pelo caminho da verdade nua e crua? Era natural que a reacção do Dr. Jonas fosse hostil. Mas pensou que, em qualquer dos casos, o seu anfitrião reagiria negativamente.

Paul estava agora consciente de que estivera durante todo aquele tempo à espera de encontrar uma fenda na armadura do Dr. Jonas. Havia sempre um ponto fraco em todos os homens, uma tal fenda na armadura que, por vezes, se tornava tão difícil de encontrar. Uma vez detectada essa fenda, podia fazer-se pressão, alargar-se a brecha, fosse qual tosse a resistência inicial manifestada, explorando as incertezas ou as ambições e aspirações do antagonista. Mas Paul não fora capaz de encontrar o mais ligeiro ponto que o levasse a descobrir uma só amolgadela na armadura da integridade do Dr. Victor Jonas. Talvez não houvesse sequer qualquer fenda e, mesmo naquela oposição rígida e obstinada que o homem tomava, Paul desejava o seu respeito. Habitualmente não se importava com semelhantes coisas, mas agora tinha todo o interesse no assunto. Repetir a decalcada história envolveria um risco calculado. Poderia revelar a fenda, e o Dr. Chapman venceria; e ele, Paul, sairia também vencedor. Mas o mais natural era que nada provasse de concreto e só servisse para ser marcado pelo antagonismo do Dr. Jonas. Sentia-se numa posição aflitiva, não desejava nem a vitória nem a derrota.

O Dr. Jonas, com os braços cruzados, a fumar o seu cachimbo e a balançar-se na cadeira, esperava pela réplica de Paul.

—        Muito bem. Vou confessar-lhe o que o Dr. Chapman me encarregou de dizer-lhe. Ele pretende-o na nossa equipa como consultor. Quer contratá-lo, oferecendo-lhe o dobro que o senhor estiver a ganhar.

—        Trata-se da Fundação Zollman? — a voz do Dr. Jonas era quase imperceptível.

—        Sim.

—        O Dr. Chapman quercomprar-me? Paul hesitou.

—        Sim — acabou por dizer.

—        Porque é que me está a confessar isso? Paul encolheu os ombros.

—        Porque se não puder ser subornado, quero continuar a poder contar com a sua amizade.

O Dr. Jonas continuou a balançar-se na cadeira. O único som que se ouvia na sala era o das molas mal oleadas.

Paul fitava-o, aguardando a reacção. Iria a fenda revelar-se? Com toda a sua alma desejou que não.

Nesse momento ouviu-se bater à porta.

O Dr. Jonas parou de se balançar.

—        Quem é?

—        Sou eu, querido.

A porta abriu-se ligeiramente e assomou a cabeça de Peggy Jonas, que olhou os dois homens atentamente.

—        Houve desentendimento?

—        Não — respondeu Victor Jonas.

—        Ora muito bem. Penso que vocês já conversaram bastante. Devem sentir-se fracos. Tenho umas coisitas na mesa para fortalecerem. Não queiras que o Sr. Radford tenha um colapso por falta de alimentação.

—Já vamos, querida.

A cara sardenta de Peggy sumiu-se. O Dr. Jonas levantou-se. Paul imitou-o. Saíram do bungalow.

A neblina era agora mais densa no pátio. O vapor flutuante obscurecia a lua. A mancha de luz da cozinha era como o farol de um porto de abrigo.

O Dr. Jonas tomou o braço de Paul, que se voltou para encarar um sorriso bonacheirão no rosto de Victor.

—        Paul, digamos que pode continuar a contar com a minha amizade.

A mesa da sala de jantar estava posta com perfeita eficiência e Peggy designou-lhes os lugares que haviam de ocupar.

Victor Jonas e Paul Radford atiraram-se aos biscoitos e ao café, sem voltarem a tocar no caso do inquérito do Dr. Chapman.

A conversa generalizou-se, fácil, solta, agradável, sem pretensões. Peggy Jonas, com uma maravilhosa habilidade para a mímica, resumiu-lhes o filme que acabara de ver na televisão. O Dr. Jonas falou das toiradas que vira recentemente em Ti Juana. Ambos apresentaram a sua teoria sobre a aceitação que o novo desporto estava a alcançar nos Estados Unidos. Depois, Paul relatou que, durante um período de férias do colégio onde leccionara em Berna, estivera entre os famosos bascos, em San Sebastian e arredores.

Enquanto Peggy Jonas se deslocou à cozinha para trazer mais café, O Dr. Jonas perguntou a Paul se tencionava voltar a escrever, e Paul falou-lhe da biografia literária de Sir Richard Burton, começada alguns anos antes e abandonada devido à sua colaboração com o Dr. Chapman no Estudo Sexual do Celibatário Americano. Foi a única alusão à parte da conversa que antes tinham tido no bungalow.

No momento em que Peggy regressava, o Dr. Jonas disse para Paul:

—        Já ouviu falar na nova clínica que uma organização de que faço parte vai abrir em Santa Mónica?

—        Não.

—        É uma coisa muito interessante. Repare bem que o que lhe vou contar é, por enquanto, ainda confidencial, mas o projecto será anunciado brevemente. O edifício já está em construção e fica situado num belo local com vista para o mar. A sua norma vai ser o tratamento de casamentos afectados pelas inúmeras doenças que os podem corromper, tal como a Clínica Menninger trata de doenças mentais.

—        Qual é o vosso programa clínico? — perguntou Paul, com ar intrigado.

—        Sou eu que vou orientar o estabelecimento, e o corpo clínico será composto por um grupo substancial de conselheiros matrimoniais orientados psiquiatricamente. Anunciaremos a inauguração a todo o país. Os honorários a pagar estão previstos para uma taxa mínima e só com o intuito de auxílio aos tratamentos e cuidados subsequentes dos doentes. Os lucros não estão previstos nem nos interessam. Somos apoiados por dotações e fundos de ajuda particulares. Além do objectivo que já lhe delineei, vamos também empreender um vastíssimo programa de educação matrimonial — sorriu. — É esta a estrada que eu vou tomar para remediar os males de que falámos.

—        É uma obra que parece demasiado boa para ser verdadeira... tem um valor incalculável. Quando é que começam?

—        Dentro de um período de quatro meses. Quando o complexo ficar pronto. Temos o nosso corpo clínico quase organizado, mas ainda existem certas vagas vitais por preencher.

Olhou afectuosamente para Paul.

—        Há pouco fez-me uma oferta, posso agora retribuí-la, mas sem a intenção de tentar suborná-lo; é uma espécie de regeneração que lhe ofereço. Temos um trabalho importante para si.

—        Sinto-me na verdade muito lisonjeado com a sua proposta...

—        Está então interessado? Repare que ainda teria tempo disponível para viajar e para se dedicar a Sir Richard Burton.

Por instantes Paul imaginou-se a realizar um trabalho útil e magnífico naquela ilha do Sul da Califórnia, e ainda com tempo para se dedicar à sua obra literária. Todavia, por mais que gostasse do devaneio e da pessoa que lho fizera criar, ressaltava do facto um estigma de traição para com o Dr. Chapman. Tratava-se do campo rival. Estava a pactuar com o inimigo do seu chefe, um inimigo esclarecido e benevolente, mas um inimigo. Além disso, o Dr. Chapman oferecia-lhe também uma luminosa visão: a Academia a fundar no Leste, dedicada ao estudo do comportamento sexual humano, uma instituição de características internacionais, aureolada pela fama e pela prosperidade, onde ele seria o lugar--tenente do mestre. O Dr. Chapman ainda não o tinha decepcionado, ele não iria decepcionar o cientista.

—        Como lhe disse já, Victor, sinto-me lisonjeadíssimo pela sua proposta, mas a verdade é que não posso aceitar. O Dr. Chapman tem sido para mim um amigo generoso e forte. Sou-lhe imensamente dedicado, mas, acima de tudo, acredito na sua obra.

O Dr. Jonas acenou a cabeça num gesto de compreensão.

—        Percebo-o perfeitamente. Não nos preocupemos mais com o assunto. Afinal o único a ficar prejudicado sou eu, que perco um maravilhoso colaborador.

—        Não sabia que era já tão tarde — disse Paul, depois de ter olhado para o relógio. — Mais cinco minutos de permanência e o senhor podia muito bem exigir-me renda.

Afastou a cadeira da mesa.

—        Amanhã, às nove horas, tenho que estar na ponte do comando do nosso navio.

—        Quanto tempo demorará esta última parte do inquérito? — perguntou Victor Jonas.

—        Cerca de duas semanas.

—        Penso tanta vez nessas vossas entrevistas...

—        De que modo?

—        É verdade que a publicação do relatório será a culminância de todo o mal causado... isto é, o efeito permeável constituído pelos vossos dados, o súbito minar de ideias há longo tempo preconcebidas sobre o bem e o mal, o certo e o errado, fazendo com que os erros pareçam coisas acertadas... enfim, na verdade será esse o mal maior, mas essas vossas entrevistas que começam amanhã... — abanou a cabeça lentamente com um profundo ar de desgosto.

—        Funciona tudo de uma maneira essencialmente clínica, é como se um técnico de raios X estivesse a realizar o seu trabalho.

—        Não completamente. Essas mulheres que se lhes vão dirigir, doentes ou sãs, na sua maioria têm tudo ordenado, cada coisa no seu lugar próprio. Tudo reprimido com propriedade e tudo com propriedade esquecido, e sobrevivem sem prejuízos de maior. Então vocês começam a martelar aquelas perguntas. Cada uma é como a perfuração de um poço que conduz a um local escuro, a uma galeria onde impera o receio e a angústia. Toda a ordem desaparecerá, tal como uma selvagem e inesperada explosão de átomos sem possibilidade de controlo, que conduz ao caos. Vocês vão provocar uma cadeia de forças obscuras e nocivas. Mas o pior é que depois não as ajudam, não as auxiliam a colocar de novo tudo numa ordem essencial e construtiva. Desencadeiam reacções e abandonam-nas à sua sorte. E eu penso: aonde e a que conduzirá isso essas mulheres? Como se comportarão depois das entrevistas, o que será delas? Paui levantou-se.

—        Tenho a certeza de que não será um quadro tão mau como o está a pintar.

—        Espero bem que não — disse o Dr. Jonas, sem convicção.

E o que mais perturbava Paul naquele momento é que também ele não se sentia convicto.

 

Fora na verdade uma longa manhã, reflectia o Dr. Chapman, enquanto comia o resto do seu «prego» e bebia o café já morno, servido no copo de papel.

George G. Chapman estava sentado à cabeceira da grande mesa existente na sala de conferência do andar superior da Associação Feminina de The Briars. Paul e Horace estavam sentados à sua direita e Cass à esquerda; todos acabaram de comer as sanduíches que Benita lhes trouxera.

O Dr. Chapman observou Paul, que, enquanto ia mastigando, lia a página desportiva de um matutino de Los Angeles. Olhando-o, o cientista pensava no que se teria passado entre o seu ajudante e o Dr. Victor Jonas.

Na noite anterior, movido pela ânsia de saber notícias, prolongara a sua vigília para além da hora em que costumava ir para a cama. Ficara sentado numa cadeira da sala de estar, à espera de Paul; mas, pela meia-noite, depois de ter já dormitado, resolveu ir meter-se entre os lençóis. Nessa manhã, durante o pequeno-almo-ço, tomado em conjunto, sentira-se em pulgas, mas não se atrevera a interrogar Paul sobre o assunto em frente do outro pessoal. Ao dirigirem-se para o carro que os transportaria a The Briars, o Dr. Chapman tocara no cotovelo de Paul, e ambos se haviam deixado ficar para trás. Evitando assim poderem ser ouvidos, o Dr. Chapman interrogara Paul sobre o que se passara. Radford limitara--se a abanar a cabeça negativamente e a dizer que, em sua opinião, nada havia a esperar do Dr. Jonas. A breve conversa fora interrompida pelo aparecimento de Benita Selby com os braços cheios de dossiers.

Paul prometera fazer-lhe um relato integral nessa noite, logo que acabassem de jantar.

Haviam chegado ao edifício da Associação por volta das oito e meia. As saias de entrevistas já tinham sido preparadas de véspera, de modo que, cerca das nove horas, quando chegaram as três rimeiras mulheres, Paul Radford, Horace Van Duesen e Cass Milller á estavam nos gabinetes à prova de som, por detrás dos seus iombos, preparados para o trabalho.

Os resultados das entrevistas da manhã estavam colocados o lado do Dr. Chapman. Seis compridos questionários com as espostas sol-ré-sol apontadas a lápis. Cada uma daquelas pági-as parecia uma selva de rabiscos como símbolos estenográficos.

Nesse momento o Dr. Chapman amarrotou o seu guardanapo de papel, deixando-o cair dentro do pires onde viera a sanduíche, e pegou em seis daquelas folhas. Como sempre, sentiu-se tranquilizado pela objectividade numérica daquelas seis histórias, experimentando um sentimento de força e grandeza por ter aumentado o seu conhecimento e o conhecimento humano acerca de tão magno problema. Frequentemente, em momentos assim, ante os seus olhos parecia brilhar a palavra imortalidade, escrita no espaço a letras de fogo e oiro. Banhava-se numa inesperada onda de prazer, mas logo caía em si, reconsiderava que a sua vida era dedicada ao bem comum e, por isso, toda a vaidade pessoal era coisa indigna e mesquinha.

Chapman percorreu com a vista o relatório que estava no topo, depois foi desfolhando os outros, lentamente, interpretando a estranha linguagem, que somente ele e os seus três assistentes conheciam. As respostas não fugiam da regra geral, embora houvesse uma ou outra que lhe chamava a atenção por fugir um bocado dos moldes habituais. Mais uns quantos minutos naquela observação, e de novo o Dr. Chapman ordenou os relatórios e os colocou de novo a seu lado.

—        Muito bem. Parece-me tudo bastante aproveitável.

Olhou para o seu relógio de pulso — sete minutos para a uma.

—        Dentro de alguns minutos teremos cá as restantes entrevistadas do dia. Será conveniente que voltem, aos seus postos, meus senhores.

—        Maldita enxaqueca — disse Cass, passando a mão pela fronte com um ricto de fadiga.

—        Pense que só temos mais duas semanas de trabalho — disse-lhe Horace, que acrescentou à guisa de compensação: — imagine aqueles pobres psicanalistas todos os dias no seu serviço e sem mãos a medir.

Paul levantou-se.

—        Na verdade isto não tem andado nada mal. Quando terminarmos talvez sintamos saudades.

—        Essa é a sua opinião pessoal — replicou Cass. — Quanto a mim, não fui feito para esta vida.

Encarninharam-se para a porta.

Um tanto ou quanto eufórica, quando chegou ao cimo das escadas, Úrsula Palmerteve que parar um momento para descansar e normalizar a respiração. O seu relógio de pulso, de caixa de ouro, marcava justamente um minuto para as 13 horas.

No caminho de sua casa até Romola Place, viera a pensar na excitante proposta que lhe fora feita por Bertram Foster. Pela sua mente desfilaram as fantasias de se ver salientada pela crítica mais exigente:

O remédio miraculoso que inoculou vida nova à revista Houseday, duplicando-lhe a tiragem, chama-se Úrsula Palmer, e é uma clássica beleza californiana que está agora a auferir um ordenado anual de 100 000 dólares— «TIME». Palmer, de longe a mulher do ano. — «VOGUE».

Úrsula P., a nova sensação do mundo da imprensa. — Winchell.

Na próxima semana temos uma verdadeira surpresa para lhes apresentar: Úrsula Palmer. — Kike Wallace.

Naquele cocktail-party tivemos que abrir caminho por entre grande número de celebridades para podermos homenagear o novo monstro sagrado. Na reunião cruzámo-nos com Truman Capote, Jean Kerr, John Houston, Dean Acheson, Cole Porter, Leland Hayward, Fanny Holtzmann e a Duquesa de Windsor, para irmos descobrir, com uma taça de champanha na mão, a inevitável rainha da festa, a bela e insinuante editora que... — «Secção de respigos da cidade» do «NEW YORKER».

No momento em que penetrou no fresco edifício da Associação Feminina, Úrsula lembrou-se de que, se tudo aquilo não passara de um devaneio, poderia, no entanto, vir a ser verdade se se mantivesse atenta e pudesse seguir a história da sua entrevista com toda a exactidão.

Sentiu uma pontinha de remorso por não ter contado ainda a Harold a proposta de Bertram Foster. Instintivamente, ocultara-lhe o caso para não dar origem a uma cena familiar. Ocasionalmente, e de maneira perfeitamente imprevisível, Harold tornava-se irascível e desagradável perante certas coisas. Era o seu modo de obediência a um princípio de masculinidade. Habitualmente, Úrsula enfrentava tais crises com todo o ânimo e acabava sempre por levar a melhor, somente não queria alaridos sobre um facto que ainda não era uma realidade paipável. Uma vez terminada a sua entrevista e os apontamentos entregues a Foster, estava certa de poder resolver as coisas da melhor maneira. É verdade que se sentia um pouco chocada com a avidez lúbrica de Bertram Foster pela entrevista, mas decidira que o caso não passava de uma infantilidade. Seria uma pequena concessão a fazer. Afinal, as actrizes mais famosas mostravam muito mais das suas vidas sexuais, e de maneira muito mais espectacular.

O pensamento nos apontamentos trouxe-lhe à ideia o trabalho que tinha que efectuar, tudo tinha que estar pronto para um perfeito funcionamento na altura própria. Abriu a mala de mão e extraiu lá de dentro um livrinho de notas, com duas páginas já preenchidas com a descrição de alguns pensamentos de «Uma dona de casa urbana», escritos na manhã da entrevista, e depois retirou o lápis. Apressadamente começou a reportagem: «Ela vestia uma blusa branca de renda e uma saia azul. À medida que se aproximava a hora da "entrevista", sentia-se como uma colegial no seu primeiro encontro amoroso; saiu de casa vinte minutos antes da hora marcada e chegou ao local precisamente um minuto antes. Pensava que nunca tinha falado de sexo com ninguém, à excepção de seu marido, não lhe contando, mesmo a ele, todos os seus sentimentos e emoções, e reflectia se poderia falar do caso com um estranho. Ao subir as escadas os joelhos "tremiam-lhe".

Claro que não sentia os joelhos a tremer, e os seus pensamentos não se dirigiam para a entrevista em si mesma, mas sim para os resultados dela. Aqueles apontamentos, porém, eram o que os leitores da Houseday esperariam.

Voltou a meter o canhenho e o lápis na mala e enfiou deliberadamente pelo corredor. Em frente, avistou uma rapariga pálida e ossuda, metida num fato saia-casaco cinzento, que parecia esperá-la. Estava sentada a uma secretária a meio do corredor.

Úrsula chegou junto da secretária.

—        Como está? Chego atrasada?

Benita Selby abanou a cabeça de lado a lado.

—        Não, minha senhora. As outras duas entrevistadas chegaram há pouco.

Consultou os seus registos.

—        Chama-se Úrsula Palmer, não é verdade?

—        Exactamente.

—        A sua entrevista é no gabinete C, ao fim do corredor.

Benita Selby fez um rabisco de descarga ao lado do nome da recém-chegada, e levantou-se para guiá-la.

Um pouco antes de chegarem ao seu destino, Úrsula parou e perguntou:

—        Posso saber o nome do meu entrevistador?

Benita ficou surpreendida; na verdade nunca uma entrevistada lhe fizera semelhante pergunta.

—        Dr. Horace Van Duesen.

—        É uma pessoa suficientemente qualificada para o trabalho?

—        Posso garantir-lhe que é eminentemente qualificada.

—        Acredito em si. Qual era a especialidade dele antes de trabalhar neste inquérito?

—        Professor de Ginecologia e Obstetrícia na Universidade de Reardon.

—        Que Deus me livre de tal coisa! — exclamou Úrsula.

Mas Benita não viu onde poderia estar a piada.

Chegaram finalmente junto do gabinete C. Benita abriu a porta

e convidou Úrsula a entrar. Úrsula lembrava-se perfeitamente daquela salinha verde-mar. Era ali que costumava passar ao duplicador o boletim mensal da Associação. Mas a meio da sala havia agora a inovação de um biombo de quase dois metros de altura, que separava o aposento em duas partes. Para o outro lado não conseguia divisar nada. O rodapé de assentamento do biombo era feito de painéis de mogno e a parte superior composta por uma estrutura de vergas entrelaçadas, tão juntas que nada se podia ver, mas, evidentemente, destinadas a deixar passar o som em condições perfeitamente audíveis.

—        É então este o vosso famoso biombo?

—        Foi inteiramente imaginado pelo Dr. Chapman e adaptado às funções da entrevista secreta. Ouve-se tudo, mas nada se vê. Antes da sua decisão final o Dr. Chapman estudou vários tipos de biombos, principalmente chineses. Como bem deve saber, o Dr. Chapman é um cientista com o gosto da minúcia.

Úrsula fez um gesto de concordância e passou a examinar a cadeira alta, de espaldar, com confortáveis assentos de couro e braços de repouso também almofadados; e a mesinha, logo ao lado, onde se via um cinzeiro típico.

Benita indicou-lhe a cadeira, e Úrsula instalou-se, colocando a mala de mão no regaço. Ao cruzar as pernas tocou com a ponta do sapato numa pequena caixa quadrada, forrada de couro.

—        Que é isto? — perguntou apontando para o insólito objecto.

—        A maleta que contém diversos objectos especiais para a consumação da entrevista.

Úrsula recordou-se imediatamente da referência que o Dr. Chapman fizera àquela caixa durante a sua conferência. Ele mencionara uma série de perguntas reactivas a que a entrevistada responderia depois de examinar várias peças do conteúdo daquela misteriosa caixa.

—        Muito bem. Uma vez que não seja uma daquelas caixas mágicas de onde os objectos saltam...

—        Pode ficar descansada a esse respeito — disse Benita, com manifesta resignação na voz.

Mas ao perceber que Úrsula estava a brincar, pelo sorriso que lhe aflorava aos lábios, correspondeu com timidez. Porém, para evitar mais daquelas saídas, disse, voltada para o biombo: — Dr. Van Duesen, a senhora Palmer já está aqui.

—        Como está, senhora Palmer? — ouviu-se dizer uma voz do outro lado do biombo.

—        Bem, muito obrigada — respondeu Úrsula, que, logo a seguir, olhou para Benita e lhe perguntou baixinho: — Que está ele a fazer do outro lado?

—        Está sentado a uma mesinha, em cima da qual estão alguns lápis e um questionário. Nada mais.

—        Não tem nenhum equipamento especial para me fazer uma lavagem ao cérebro?

—        Não, Sr. Palmer. Entre nós é tudo muito simples.

—        É-me permitido fumar?

—        Com certeza. Esteja à sua vontade — disse Benita, que, em tom um pouco mais alto, acrescentou: — Muito bem, vou sair do gabinete.

Saiu, fechando a porta sem ruído.

—        Descontraia-se, minha senhora — disse a voz de Horace.

—        Quando estiver preparada...

—        Só peço alguns segundos, enquanto acendo um cigarro.

Procurou o maço na mala e tirou um, ao mesmo tempo que tirava também o livrinho de apontamentos e o lápis.

—        Pronto, já estou preparada para a entrevista.

—        Peço-lhe o favor de responder a todas as perguntas o melhor que for possível e com total exactidão. Disponha do tempo que quiser para responder. Torna-se evidente que pode dizer o que desejar. Se não compreender seja o que for, não hesite em perguntar. Eu repetirei. Esteja absolutamente tranquila, todas as suas respostas ficam registadas na linguagem sol-ré-sol. Como sabe, é uma linguagem cifrada que só o Dr. Chapman e os seus colaboradores directos conhecem.

—        Peço desculpa, mas como tenho uma fraca memória, tem que me conceder algum tempo para responder convenientemente —  mentiu Úrsula.

O espaço de tempo requerido servir-lhe-ia apenas para traçar os seus apontamentos. Nesse momento começou a escrever velozmente o nome do seu entrevistador, a sua especialidade e algumas das suas palavras de abertura.

—        Esteja à vontade e disponha de mim como lhe aprouver — sublinhou a voz de Horace Van Duesen.

—        Estou pronta. Pode fazer fogo.

Depois de um breve momento de silêncio, ouviu-se a voz do entrevistador:

—        Pode dizer-me a sua idade?

—        Claro que sim. Tenho quarenta e um.

—        Habilitações literárias?     

—        Curso dos liceus e dois anos de frequência universitária. Não completei qualquer curso universitário porque ansiava iniciar a minha vida profissional. Sou escritora, ou, melhor, jornalista.

—        Local de nascimento?

—        Sioux City, lowa.

—        Há quanto tempo reside na Califórnia?

—        A minha família veio para cá quando eu tinha três anos.

—        Que religião professa?

—        Pertenço à igreja episcopal.

—        Considera-se uma regular frequentadora dos serviços religiosos da sua igreja, frequenta-os com irregularidade ou nunca lá vai?

—        Bem... digamos que vou lá muitas vezes.

—        Frequentadora irregular?

—        Sim.

—        Qual o seu estado civil?

—        Como?

—        É casada?

—        Claro que sim.

—        Antes do seu casamento actual já tinha contraído qualquer outro matrimónio?

—        Já. Estive casada com outro homem durante três meses.

—        Que profissão exercia o seu primeiro marido?

—        Quando o conheci escrevia slogans publicitários. Fazia as melhores tenções de se tornar director da companhia para quem trabalhava, mas em vez disso perdeu o emprego e, durante todo o tempo que durou o nosso casamento, entreteve-se a comer, beber e ler os anúncios de ofertas de empregos.

—Tem filhos?

—        Um. Chama-se Devin e é tudo o que resta do meu primeiro casamento. O moço tem agora dezanove anos e está a estudar Engenharia na Universidade de Purdue, Indiana.

—        Quer dizer que não existem filhos do seu actual casamento?

—        Evidentemente.

—        Há quanto tempo contraiu matrimónio com o seu segundo marido?

—        Dezasseis anos.

—        Qual a profissão dele?

—        Contabilista. Constituiu há pouco tempo a sua própria empresa.

—        Disse que é jornalista. Significa que exerce presentemente essa actividade?

—        Sim. Represento uma revista de Nova Iorque.

Úrsula só registava as perguntas que lhe eram feitas; as suas respostas seriam colocadas depois.

—        A partir deste momento...

—        Não poderá aguardar um instante?

—        Com certeza que sim. Esperarei.

Ela acabou de apontar a última das perguntas.

—        Pronto. Pode prosseguir.

—        ... começaremos com uma série de perguntas sobre o período imediatamente anterior à fase em que entrou na adolescência. Pode não se lembrar com exactidão de tudo, mas tente responder o melhor que lhe for possível. Disponha de todo o tempo que quiser para rememorar os factos.

Úrsula começou a impacientar-se. Afinal que interesse poderiam ter as coisas da pré-adolescência? Evidentemente que Bertram Foster não ligaria um pataco ao assunto, e o público também não. Úrsula desejou que aquela parte fosse omitida; tais preliminares eram enfadonhos. O que importava era chegar aos motivos excitantes que garantiriam o êxito da publicação do artigo.

—        Consegue recordar-se da idade em que atingiu o primeiro orgasmo através da masturbação?

Úrsula franziu a testa. Então aquilo é que era para a Houseday?

—        Mas há alguma criança que faça uma coisa dessas? — perguntou com forçada naturalidade.

—        É coisa habitual na pré-adolescência, entre os três e os treze anos, e depois disso também nada tem de estranho ou insólito.

Que coisa ridícula e mesmo ultrajante... mas de imediato veio--Lhe à ideia o seu primeiro orgasmo. Bem, talvez não tivesse sido o primeiro, como ordem de precedência, mas era daquele que se lembrava com mais acuidade... havia visitas em sua casa naquela noite, e ouvira as vozes das pessoas mais velhas que vinham da sala de estar. Ao mesmo tempo, um filete de luz passava pela fenda existente na porta do seu quarto. Estava deitada na cama, acordada, e lembrava-se perfeitamente de ter estreado a sua camisa de noite de flanela com pintinhas...

—        Estou a tentar lembrar-me — disse finalmente. — Devia ter os meus sete anos para oito... não, já passava dos oito anos.

—        Pode descrever o método que utilizou?

A vaga recordação projectava-se agora claramente, iluminada pela luz crua da maturidade, e sentia uma certa repugnância em revelar o caso. Aliás, como é que semelhante trivialidade da sua infância poderia ser útil a quem quer que fosse? Contudo, aquela voz impessoal por detrás do biombo tinha com certeza ouvidos impessoais que esperavam uma resposta. Foi num tom firme que confessou o método empregado quando tinha oito anos.

O interrogatório sobre o seu comportamento sexual pré--adolescente continuou no mesmo tom impessoal por mais dez minutos.

Úrsula mal podia conter a sua impaciência. Pensando em termos de milhões de leitores da Houseday, tudo aquilo era um desperdiçar de tempo, tempo precioso, e por isso as suas respostas se foram tornando cada vez mais breves e manifestamente hostis. Finalmente, após ter revelado que a menstruação lhe tinha aparecido aos doze anos, sentiu-se aliviada por passar, num ápice, para as brincadeiras amorosas antematrimoniais. Desleixara-se com os apontamentos, mas estava certa de poder preencher todas as lacunas.

—        Qual é a sua definição de brincadeiras amorosas? — ouviu a voz de Horace Van Duesen perguntar.

Sim, aquilo já era um facto de interesse, fascinaria as mães e as filhas que lessem a Houseday.

—        Ora, é tudo aquilo que nos pode excitar, tudo o que se faz sem se chegar ao fim principal.

—        Sim, é uma explicação aceitável. Mas talvez seja melhor eu ser mais exacto sobre o assunto.

Horace definiu as partes componentes das brincadeiras amorosas em pormenor. Para Úrsula, que nunca antes pensara seriamente no caso — pelo menos nada de que se recordasse em pormenor —, o explícito vocabulário científico dava ao assunto um cariz de vulgaridade e desencanto. No entanto tinha que registar a conversa. Foster devia ser servido, e o público também. Fosse como fosse, quando passasse aquilo à máquina, dar-lhe-ia um outro sabor mais picante, mas perfeitamente enquadrado, para se poder debater em rodas familiares.

Horace perguntava naquele momento se ela já alguma vez obtivera plena satisfação através das brincadeiras amorosas.

—        Da primeira vez que isso aconteceu?

—        Sim.

—        Foi nos últimos anos de frequência do liceu. Suponho que também quer saber que idade tinha. Devia andar pelos dezassete anos. Significará que fui uma adolescente muito atrasada em semelhantes coisas?

Do outro lado do biombo não veio qualquer comentário à gracinha. Em vez disso, ouviu perguntar:

—        Qual o método utilizado?

Lá vinha de novo o maldito método. Explicou o mais sucintamente possível.

—        Onde é que isso ocorreu?

—        No carro do moço. Parámos numa estrada das montanhas, e fomos os dois para o assento traseiro. Primeiro pensei que amava o rapaz, depois mudei de ideias. Seja como for, não passámos de apalpões, brincadeiras de amor, carícias sem importância.

De ambos os lados do biombo foram tomados apontamentos. Depois, as perguntas continuaram no mesmo tom até que, por fim, chegaram ao assunto da intimidade sexual pré-conjugal.

—        Com três homens — respondeu ela à pergunta que lhe fora formulada.

—        Quais os lugares escolhidos?

—        Com os dois primeiros nos apartamentos deles. E com o último em motéis.

—        Veio a casar-se com algum desses homens?

—        Sim. Com o segundo. Foi o meu primeiro marido.

—        E com o seu segundo marido, teve qualquer experiência anteconjugal?

—        Não, nem pensar nisso. Harold não pensaria em ter relações comigo antes de nos casarmos. A primeira ligação foi com um estudante, então ainda eu estava na universidade. Depois... foi com o meu marido, o que escrevia slogans publicitários. Trabalhávamos os dois no mesmo escritório — era o meu primeiro emprego. O último foi no segundo emprego que tive que arranjar. Tratou-se do meu patrão, fui secretária dele durante um curtíssimo período de tempo.

—        Atingiu o orgasmo em qualquer dessas ocasiões? Se assim foi...

—        Não cheguei a qualquer orgasmo — interrompeu ela veementemente.

—        Durante essas intimidades sexuais estava parcialmente vestida ou completamente nua?

—        Nua.

—        Quais as alturas do dia preferidas para o acto, as mais frequentes — de manhã, de tarde, ao escurecer ou durante a noite?

—        Ora... poderemos dizer que era ao anoitecer.

—        Regra geral usavam contraceptivos para evitar a gravidez?

—        Sim.

—        Quem utilizava esses contraceptivos, a senhora, o seu parceiro ou ambos? Ou o seu parceiro era partidário da teoria de Noyes sobre a continência masculina?

—        Os meus parceiros usaram sempre contraceptivos.

—        Voltemos agora ao acto sexual em si, quanto ao método utilizado...

Úrsula sentiu os poros da pele perlarem-se de gotículas de suor. Que Deus tivesse pena das pobres raparigas que trabalhavam por esse mundo fora. Notou então que os seus dedos agarravam com tal firmeza o lápis que o sangue fugira deles, e que, durante aqueles últimos minutos, não conseguira tomar um único apontamento. Desesperadamente, tentou descontrair-se, lembrar-se de tudo, porque era necessário escrever.

—        ...pode indicar-me aqueles que eram utilizados por si com mais frequência?

Indicou um dos métodos com uma voz tão estranha que nem parecia a sua. Mas continuou a escrever afanosamente, imaginando, ao mesmo tempo, o que Bertram Foster pensaria de tudo aquilo.

Quando, às 14 e 22 minutos, Úrsula Palmer se encontrou em Romola Place, onde o sol brilhava, sentiu-se fraca e preocupada, tal como frequentemente se sentia depois das relações sexuais e quase nunca depois de ter dedicado o seu tempo a escrever. Era uma fraqueza que não sabia definir com precisão, uma preocupação estranha. Afigurava-se-lhe que havia muito mais que deveria ter sido dito, muito embora não soubesse exactamente o quê. As perguntas haviam coberto todas as experiências possíveis, todos os assuntos relacionados com a vida sexual, e ela tinha respondido honestamente. Todavia, tinha a sensação de uma coisa incompleta, uma coisa insolúvel, e a sua preocupação ressaltava da incerteza se o caso envolvia as perguntas a respeito do comportamento sexual ou se se referiam ao comportamento em si mesmo. Fosse como fosse, o melhor de tudo aquilo eram sem dúvida os apontamentos. Para o fim da entrevista, tomara a verdadeira consciência de uma profissional e passara tudo ao papel. Sim, com imaginação e perfeita discrição, estava convencida que a coisa resultaria em cheio.

A sua primitiva intenção era a de encaminhar-se a toda a pressa para casa, terminada a entrevista, a fim de transcrevera experiência enquanto as coisas estivessem frescas na sua memória. Porém, naquele momento, parada em frente do edifício da Associação, sentiu de repente que não tinha nenhum desejo de transcrever a sondagem imediatamente. Era um assunto que poderia muito bem esperar até à noite ou até à manhã seguinte. Sentia a necessidade de se manter fora de casa, de ver gente, de não ficar sozinha com aqueles apontamentos.

Recordou-se de que não tinha selos em sua casa e atravessou a rua em direcção à estação dos Correios. Quando se preparava para franquear o curto lanço de degraus que levavam ao interior do edifício, viu Kathleen Ballard emergir da estação, e esperou que ela descesse.

—        Olá, Kathleen!

—        Viva, Úrsula!

—        Acabo de vir do outro lado da rua, onde tive um laborioso debate sobre Aquilo Que Toda a Rapariga Deve Saber.

Kathleen, perplexa, olhou para o outro lado da rua e depois fitou Úrsula interrogativamente. Porém, a expressão desta levou-a a compreender imediatamente.

—Quer dizer que foi entrevistada, hem?

—        É verdade — respondeu Úrsula, secamente.

—        Estou ansiosa por ouvi-la contar o que se passou... isto é, não pretendo saber nada de particular, apenas como as coisas se processam, as perguntas que fazem...

—        Pois bem, ninguém mais indicado do que eu. Lembre-se que está a falar com uma das veteranas dos rituais cabalísticos do Dr. Chapman.

—        A minha entrevista está marcada para quarta-feira à tarde.

Que tal é aquilo?

Úrsula não tinha nenhuma vontade de ventilar o assunto, mas de forma nenhuma queria perder a companhia de Kathleen.

—        Proponho que nos sentemos em qualquer lado. Tem tempo disponível?

—        Deirdre está nas aulas de dança e só a vou buscar às três e meia.

—        Prepare-se então para ouvir uma resumida versão com o cunho Úrsula Palmer passando por alto as brincadeiras amorosas, o matiz sexual da pré-adolescência e concentrando-me especialmente no coito. Não se admire, cara amiga, coito é uma palavra que vai estar muito em voga, tem que aprender a gostar do termo. Coito conjugal, extraconjugal e mais ou menos conjugal.

—        Quer dizer que nos obrigam a...

A curiosidade primeiramente manifestada por Kathleen cedera agora lugar à ansiedade.

—        Não nos obrigam a nada—respondeu Úrsula, veementemente.

—Tem que se lembrar que somos todas absolutamente voluntárias.

Uma espécie de cobaias como as que serviram os fins científicos do major Reed durante a febre-amarela. Mas o que importa agora é que nos sentemos. Vamos até ao Crystal Roorn; coisas destas só podem ser digeridas com o estômago bem amparado.

Sentado ao lado da sua mesinha, com a perna negligentemente traçada, Cass Miller pensava naquelas raparigas saudáveis, feiotas e um pouco obtusas, que o destino enviava a este mundo. O lápis que tinha na mão encontrava-se precisamente a apontar a pergunta que acabara de fazer à mulher que estava do outro lado do biombo: «Entreteve alguma vez carícias amorosas pré-conjugais?» O lápis seguiu o curso da página e detectou a resposta escrita em cifra. Era a palavra «Não» que eliminava imediatamente as próximas dez perguntas subsequentes.

Aquelas jovens mulheres pertenciam todas ao mesmo tipo, segundo o pensamento de Cass. Eram todas as mesmas de costa a costa. No Leste o tipo era mais baixinho e, inteligentes ou estúpidas, todas usavam uma ridícula franjinha e tinham enormes traseiros e umas pernas que pareciam troncos. Tinham frequentado as universidades de Bennington ou Barnard e acabavam porcasar-se com rapazes pertencentes à Liga de Temperança — que mais tarde davam em grandes bebedores —, tornando-se donas de casa perfeitas. No Oeste, o tipo vestia bem, era mais alto e mais magro, usando o cabelo curto, à rapaz, e de peles queimadas pelo sol, mais moreno do que loiro. Essas mulheres costumavam ter seios diminutos, ou serem lisas como tábuas de engomar, de ancas escorridas e pernas finas. Tinham estudado na Universidade de Stanford ou em colégios suíços, e costumavam casar-se com jovens de profissão combativa e levar uma vida mais mundana.

A mulher que estava a entrevistar pertencia ao último tipo, e Cass voltou a ler o cabeçalho da entrevista: Sr.** Mary Ewing McManus, de vinte e dois anos, nascida em Los Angeles. Estudara na Universidade da Califórnia Meridional, era luterana e regular frequentadora da igreja. Casada pela primeira vez, um casamento que durava há dois anos, o marido era advogado e indicara a profissão dela como «Doméstica».

Continuou a interpretar o que já havia escrito: brincadeiras heterossexuais na pré-adolescência. Rotina. As carícias amorosas pré-conjugais cifradas em beijos e breves contactos peito com peito. O normal. As carícias nunca tinham ido mais além. Quanto a coito pré-conjugal, «Nunca!». Uma coisa sensaborona como a água salobra, que só se consegue beber quando, na verdade, se está a morrer de sede.

Cass sabia perfeitamente que o resto se poderia prever. Não obstante, o Grande Pai Branco e a máquina STC tinham que ser servidos.

Cass Miller lançou um olhar de tédio para o enorme biombo de separação, desinteressado daquela Mary Ewing McManus que se encontrava do outro lado, e, com voz cansada (que ela tomou como se fosse objectividade científica), começou:

—        Agora temos uma série de perguntas a respeito do coito conjugal. Qual é a frequência das relações sexuais com seu marido?

—        Bem...

—        Sei que é coisa variável. Mas não me poderá fornecer uma média por semana ou por mês?

—        O meu marido e eu fazemos amor em média três vezes por semana — respondeu Mary, explícita e orgulhosamente.

Cass detectou a ponta de orgulho que soava naquela voz. Ironicamente divertido, apontou a declaração. As rapariguinhas daquela espécie costumavam manifestar sempre um certo orgulho na frequência das suas relações sexuais, no vigor e alto sentido acrobático postos ao serviço do coito conjugal, tal como se tivessem descoberto o Novo Mundo da Sexualidade, implantado nele uma bandeira de conquista e mandado rezar uma missa em acção de graças. Julgavam-se na verdade donatárias exclusivas das capitanias da sexualidade. Pensou que dentro de vinte anos o orgulho ficaria abatido, o coito passaria a efectuar-se uma vez por semana — na melhor das hipóteses —, e as mulheres daquele jaez começavam a perguntar a si mesmas por que diabo o marido fazia sempre tantos serões. Depois desatavam a carregar na maquilhagem como se fossem drogarias ambulantes, passavam a usar vestidos cada vez mais transparentes e provocantes e desejariam que o jovem e novo sócio dos respectivos maridos lhes ligasse mais atenção.

—        Antes das relações sexuais propriamente ditas, costuma entregar-se à prática de brincadeiras amorosas de carácter excitante?

—        Claro que sim.

—        Pode descrever-me o que costumam fazer?

—        Eu... não sei... isto é, penso que é muito difícil de explicar.

Apesar disso, hesitantemente, mas com o incitamento e encorajamento de Cass, descreveu os preliminares que conduziam à cópula.

Ainda arquejante de ter ousado debater uma questão tão íntima, Mary acabou por sentir-se aliviada por ter conseguido ultrapassar aquele obstáculo.

Mas ainda mal acabara de se descontrair quando desabaram sobre ela novas séries de perguntas relacionadas com a junção específica do coito conjugal.

—        Não me lembro exactamente — começou a responder à pergunta formulada sobre o tempo de duração. — Duas ou três vezes, por simples graça, contámos o tempo levado.

—        E quanto tempo registaram?       

—        De uma das vezes demorou cerca de... cinco minutos... outra ocasião, a última, a duração foi de quase dez minutos.    

—        Bom, pode estabelecer uma média?

—        Cinco minutos.

Firmemente, Cass começou a traduzir para símbolos os gaguejos e tímidos pormenores fornecidos por Mary McManus.

Miller, frequentemente, costumava motejar daquela fogosidade ingénua que as jovens habitualmente demonstravam, mas sentia também a sua ponta de inveja.

—        Durante a prática do coito, excita-a olhar para o seu marido?          

—        Nunca o observo.   

—        Mas quando isso acontece?        

—        Sinto-me feliz.

Cass registou as respostas automaticamente, olhando para o que faltava ainda e computando que o resto demoraria talvez cerca de quinze minutos. Às três e quarenta e cinco estaria tudo terminado. Pensou se não poderia dar um empurrãozinho para apressar as coisas. Sentia aquela pressão aflitiva na têmpera direita, o usual prelúdio da enxaqueca, e queria repousar um bocado antes da entrevista seguinte, marcada para as quatro horas.

O que é que ainda faltava? A série de perguntas sobre experiências extraconjugais. Depois a outra série, mais reduzida, a respeito das atitudes psicológicas, finalmente, as perguntas sobre as reacções aos estímulos sexuais. Estava tentado a omitir a maior parte do interrogatório que faltava. Podia com exactidão prever as respostas da mulher. Recentemente, vinha a ser acometido por aquele desejo insólito de reduzir as entrevistas. Mas, como sempre, lembrou-se dos persistentes avisos do Dr. Chapman de que todas as perguntas estabeleciam um padrão computável, e refreou a sua vontade. No entanto, como uma variante, decidiu fazer a série que aparecia em último lugar na lista de sequência e voltar depois às outras antecedentes.

—        Observou a caixa de couro aos seus pés?

—        Sim.

—        Faça favor de a abrir. Tire a primeira das fotografias e obser-e-a com atenção durante uns momentos.

Ouviu o ruído do fecho da caixa a abrir-se.

—        O que é que está a ver? Quero ter a certeza de que tirou a otograf ia desejada.

—        É a... é uma reprodução de uma estátua clássica. Suponho grega.

—        Um varão adulto e simpático, não é verdade?

—        Sim.

—        É o Hermes de Praxíteies. Agora vamos à respectiva pergunta: a observação desse másculo varão que a fotografia representa consegue produzir-lhe qualquer excitação?

Inevitavelmente, veio-lhe à memória o resumo dos dados esta-ísticos. «Quatro por cento sentem-se fortemente excitadas, onze por cento um tanto excitadas e oitenta e cinco por cento nada exci-adas». Com certeza que a resposta daquela entrevistada seria «Não».

—        Não — respondeu Mary, do outro lado do biombo.

Mas Cass já tinha marcado a resposta antes de a ouvir, e, sufocando um bocejo com a palma da mão, no desejo de se conseguir libertar para tomar um comprimido contra aquela nevralgia que lhe atacava a têmpora, apontou o lápis para a pergunta seguinte.

Mary McManus fez todo o caminho entre a Associação e o parque de estacionamento onde deixara o seu novo Nash Rambler, na distância de um alentado quarteirão, como se caminhasse nas nuvens. O Wash fora uma oferta do pai no último aniversário natalício que cumprira.

Já dentro do carro, não fez qualquer esforço para ligar o motor. Sentada, com as mãos apoiadas no volante, tentava aclarar ideias, aquilatar emoções. Após ter assistido à conferência do Dr. Chapman — que a decepcionara —, aguardara que a entrevista tivesse um fim útil e prático de percepção imediata, mas compreendia que mais uma vez a sua expectativa fora lograda. Os setenta e cinco minutos de duração da entrevista haviam sido muito diferentes daquilo que esperara. Os seus dois anos de matrimónio com Norman, normais sob todos os aspectos, segundo aqueles manuais de conselhos sobre as relações sexuais no casamento, haviam-na convencido de que era uma pessoa sexualmente evoluída, moderna. Mas compreendia agora que o pai (aliás como sempre) tivera razão. A entrevista, com perguntas intimidativas e melindrosas, constituíra um inesperado transe que era ao mesmo tempo uma sensação de total vacuidade.

Sim, recordando o que se passara, não conseguia encontrar uma só das perguntas que, à parte o seu melindre, fosse das chamadas impróprias. Nada houvera naquele inquérito que, numa ou noutra ocasião, não tivesse já debatido, ouvido ou lido. Mais, até ao momento em que iniciara a entrevista, o acto sexual conjugal constituíra para ela a coisa mais natural do mundo. Porém, as persistentes e minuciosas perguntas sobre todos os aspectos — carícias preparatórias, posição, orgasmo — do comportamento sexual, que ela nunca encarara com facto especial, pareciam projectar o acto para além das proporções anteriormente estabelecidas.

Naquele momento, pensando intensamente no problema, começou a avaliar que a sua vida sexual com Norman (como ela o adorava! que enorme significado o marido tinha para ela!) não era apenas mais uma prenda concedida à sua maturidade, mais uma actividade apensa ao triângulo familiar dos Ewing — pai, mãe e filha. Era coisa importantíssima, que pertencia unicamente e só dizia respeito a marido e mulher — a família McManus. Af igurava--se-lhe o único prazer que por completo lhe pertencia, que não tinha qualquer relação com a sua existência anterior. Compreendia pela primeira vez que a intimidade que partilhava com Norman, de súbito tornada tão complicada e excepcional, não tinha nenhum ponto de contacto com a antiga família, com a antiga maneira de viver, fazia parte integrante de uma nova família e de um novo modo de viver.

Até àquela altura, não tinha realmente possuído nada inteiramente seu. Nada fora seu como propriedade absoluta. O volante onde apoiava as mãos, o sedan de desporto onde estava encerrada, eram cordelinhos que a mantinham presa à vida antiga cheia de segurança e dependência, tal como acontecia com as suas feições, com o seu sangue, com as suas recordações. Quando Norman pretendera comprar um velho Buicka prestações, Harry Ewing, o pai, ridicularizara a ideia e surpreendera-a generosamente com a oferta daquele Nash. Seu pai tinha também proporcionado a Norman uma carreira fácil, de futuro assegurado, salvando-a, salvando os dois, da inevitável luta pelo pão de cada dia que teria resultado no caso de Norman se ter engajado naquela romântica sociedade com Chris Shearer. E o conceito cheio de maturidade de que não deviam suportar o pesado fardo de filhos até o casal ser mais velho, ter mais maturidade e mais segurança, também fora fruto da sabedoria de seu pai. Sim, sem dúvida, tudo parecia ligá-la indissoluvelmente ao passado familiar a três, de que continuava a fazer parte, com excepção das respostas que fornecera às perguntas que lhe haviam sido formuladas naquela sala da Associação Feminina.

Desviou a vista para o tabliere rodou a chave da ignição. O motor pegou imediatamente, arfando com um baloiçar suave, quase insensível. Mesmo antes da entrevista, planeara fazer uma visita ao pai. Sentira-se culpada e infeliz por se ter colocado ao lado de Norman contra a opinião do progenitor. Afinal o julgamento do pai provava-se agora acertado. O menos que podia fazer era procurar sanar a ferida de uma maneira discreta. Pensara, logo após terminada a entrevista, em passar pela fábrica, como se fosse por acaso, e, como tantas vezes anteriormente, pai e filha conversariam sobre coisas várias, à velha maneira familiar, não fazendo menção à entrevista, mas ambos compreendendo tacitamente que devia alguma coisa à autoridade de Norman, muito embora (como se tornava evidente) continuasse a ser a menina do seu pai.

Mas depois de sair do parque de estacionamento e ter rodeado Romola Place, a caminho de Sunset Boulevard, teve a consciência de que parte dos seus projectos, a parte mais essencial, tinha sofrido uma modificação fundamental.

Inexplicavelmente a sua necessidade nesse momento manifestava-se intensamente por Norman, não por seu pai. Tinha que encontrar Norman, o sèu querido Norman, procurar refúgio nos seus^ braços e dizer-lhe quanto o amava.

Saiu da rampa de asfalto de Sunset e dirigiu-se para a estrada; secundária, tomando posição atrás dos grandes camiões de serviços de transporte, até que o troço de estrada secundária desembocou na pista de Sepúlveda. Guiando para sul, depois de ter passado o Aeroporto Internacional de Los Angeles, dirigiu-se para o local, à distância, onde aparecia já o grande anúncio em que se lia Ewing Manufacturing Company, colocado na berma do terraço do gigan-i tesco edifício. Depois de ter arrumado o carro na área da secção administrativa, enfiou como uma louca, em longas passadas, pelo. corredor principal, do interior da fábrica.

Quase corria disposta a chegar o mais depressa possível ao gabinete de Norman, situado na mesma ala do escritório de Harry Ewing, quando viu Míss Damerel a sair dos lavabos das senhoras. Miss Damerel, cujo cabelo tinha uma tonalidade metálica de cinzento e estava sempre severamente penteado, e cujos vestidos eram todos cortados quase a direito e de impecáveis cores escuras, era a secretária privada de Harry Ewing, uma criatura que ocupava aquele posto com eficiência há mais de vinte anos.

— Oh, Mary, que maravilha poder tê-la entre nós — clamou Miss Damerel, num tom de voz fortíssimo. — Seu pai vai ficar muito, satisfeito por vê-la.

Por momentos, o passo elástico de Mary perdeu um pouco do: impulso vital devido àquela voz que lhe condicionava os reflexos, alados como uma dança da Pavlova. Mas logo a seguir, com um esforço de suprema vontade, muito maior de que se julgava possuidora, fez um aceno de adeus a Miss Damerel e prosseguiu o seu caminho no mesmo ritmo. Sabia que a secretária ficara a observada com desaprovadora surpresa. Também sabia que Miss Damerel iria contar o sucedido a seu pai, mas naquele dia Mary McManus não se importava com nada. Com nada mesmo.

Pelas noites, Villa Neapolis era iluminada por fileiras de lâmpadas, de reflexos azuis e amarelos, a brilharem nos terraços colocados a dois níveis diferentes, e por quatro projectores de enorme intensidade colocados perto de cada um dos cantos da grande piscina. Esses pontos de luz colorida, vistos à distância (o motel ficava situado numa colina com a abóbada celeste por único pano de fundo), afiguravam-se estrelas artificiais de uma galáxia inteiramente forjada pelo homem e colocada a um canto do firmamento. Todavia, as mesmas luzes vistas do interior do complexo eram completamente diferentes, formavam como que a iluminação de uma gigantesca árvore de Natal. Pelo menos era esse o pensamento de Paul Radford ao sair da relativa obscuridade da grande sala de jantar para o deslumbrante esplendor daquele arco-íris.

Benita Selby tinha-o antecedido no pátio, e era precedido pelo Dr. Chapman, Horace Van Duesen e Cass Miller.

Benita trocara a sua severa roupa de trabalho por um vestido sem mangas, de cor azul-pálido, e tinha sobre os ombros um casaco de malha lilás.

Por mútuo acordo tinham jantado todos às oito e meia, juntando duas mesas iluminadas por quatro românticos candeeiros em forma de velas.

O primeiro dia de entrevistas fora, como já era hábito em todas as outras comunidades, absolutamente enervante. Isso e a exigência do Dr. Chapman de que as entrevistas do dia não deviam ser discutidas na sua presença, reduzira a sociabilidade geral a uma troca esporádica de palavras no intervalo dos prolongados silêncios.

Já no pátio, Cass Miller perguntou se os dois automóveis alugados para as deslocações tinham destino. Benita disse que ia pôr o seu diário em ordem e escrever uma carta, uma das cinco que enviava semanalmente a sua mãe, senhora parcialmente inválida, que residia em Beloit, Wisconsin. Por sua vez, Horace afirmou inte-ressar-lhe um dos carros para ir ao cinema em Westwood, onde se projectava um filme que pretendia ver. Então, o Dr. Chapman informou Cass de que podia levar o outro veículo, dado que ele e Paul tinham que terminar um trabalho.

Depois de Horace e Cass se terem dirigido para a garagem e de Benita subir para o seu quarto, o Dr. Chapman levou Paul até ao maciço de hibiscos, na extremidade da piscina, e sentaram-se em cadeiras de verga.

O pátio àquela hora estava calmo. Só havia dois casais que jogavam às cartas no outro extremo da piscina, por detrás da prancha de saltos, e as suas vozes mal chegavam ao outro lado.

O Dr. Chapman aliviou o cinto e fez rolar o seu charuto de um a outro canto da boca, como era seu hábito; quanto a Paul, fumava uma cachimbada.

—        Ora muito bem, estou em pulgas para saber o que se passou entre você e o Dr. Jonas — começou o Dr. Chapman. — Esta manhã disse-me que as esperanças eram quase nulas.

Observou a reacção de Paul.

—        Isso significa que ainda existe alguma esperança de vencer o obstáculo, ou que podemos desistir?

—        Podemos desistir — respondeu Paul, com firmeza. O Dr. Chapman emitiu um grunhido de contrariedade.

—        Estou a compreender.

Ficou durante alguns segundos a olhar pensativamente para o lajedo do pátio, acrescentando finalmente:

—        Conte-me o que se passou.

Paul referiu-lhe os acontecimentos da noite anterior da maneira mais concisa. Descreveu-lhe o Dr. Victor Jonas, a mulher e os filhos; falou-lhe da vivenda e relatou-lhe trechos da conversa no bungalow das traseiras da casa, principalmente a parte em que o Dr. Jonas deduzira que pretendiam suborná-lo e em que ele, Paul, defendera a integridade do Dr. Chapman, omitindo somente a observação feita pelo anfitrião de se sentir satisfeito com a ausência do mestre. Depois, Paul contou a sua surpresa ao ver que o Dr. Jonas estava ao corrente do andamento dos trabalhos do inquérito.

Os olhos do Dr. Chapman fulguraram na sombra.

—        Como pode ele estar inteirado desse facto?

—        Foi exactamente a interrogação que lhe fiz. Respondeu que o senhor enviava cópias actualizadas dos seus estudos para a Fundação Zollman...

Paul deixou a frase em suspenso, como que a aguardar uma explicação.

O Dr. Chapman fitou-o tranquilamente.

—        Sim, isso é verdade. O conselho de administração vai reunir-se ainda antes de o nosso inquérito estar completado, e por isso pensei que era melhor mantê-los informados do andamento.

—        Mas o nosso trabalho ainda não está concluído. Digamos mesmo que não passa de um amálgama de coisas indefiníveis, de uma massa em bruto.

—        Deve ser escusado lembrar-lhe que a Zollman tem cientistas capazes de discernirem as coisas. De resto estou certo de que o envio antecipado de dados poderá militar em nosso favor.

—        Mas militará também em favor do Dr. Victor Jonas. O grupo da Zollman que o contratou enviou-lhe fotocópias dos dados.

—        Canalhas! — vociferou o Dr. Chapman —, são capazes de tudo para me torpedearem.

Estava lívido; Paul não se recordava de o ter visto assim.

—        Bom, julgo que pretendem fazer jogo franco...

—O diabo é que farão jogo franco! — exclamou o Dr. Chapman. — Que disse Jonas a respeito do novo material?

—        Abriu-se com franqueza, tanto sobre a nossa sondagem corrente como no que houve concernente ao inquérito dos celibatários. Pôs todas as cartas na mesa... talvez não todas, mas a maior parte.

—        Ah, sim?

Paul traçou-lhe um resumo das objecções levantadas pelo Dr. Jonas, excepto a observação feita de que o Dr. Chapman era mais um político e um amante da publicidade do que um cientista em toda a sua pureza. Ao terminar o relato, reparou que o Dr. Chapman rolava o charuto, apagado, de um a outro canto da boca, com um ricto de intenso azedume.

—        Julgo que não pôde ouvir as mentiras desse homem sem reagir.

—        O debate foi de parada e resposta. O Dr. Jonas é um adversário de respeito, bate com força e com objectividade. Mas eu encaixei e contra-ataquei. Nunca concordou em que a razão está do nosso lado, mas pelo menos penso que ficou convencido de que somos sinceros.

—        Na verdade é o melhor que se pode dizer de um sanguessuga como ele. Aliás, neste país, como em todos os países, existem Muitos homens degenerados como esse Jonas. Pessoas destituídas de poder criador e de dons de imaginação, lobos apenas, que ficam à espreita de poderem beber o sangue dos pioneiros como vampiros. São abutres prontos a caírem sobre o corpo dos pioneiros, dos cientistas de grandiosa visão que marcham à frente de toda a matilha de inúteis. Os homens como Victor Jonas nada edificam, só sabem destruir, precisam de destruir para garantirem a sua sobrevivência. Que tem feito esse Jonas durante a vida além de ser um parasita da ciência?

Paul não discordava do Dr. Chapman. O seu chefe definira com precisão certa espécie de cientistas, caluniadores que não faziam outra coisa senão aproveitarem-se do trabalho dos verdadeiros investigadores para uma demolição sistemática. Porém, não obstante todo o respeito que devotava à inteligência do seu mestre, bem no íntimo de si sentia que o Dr. Victor Jonas não pertencia à espécie em discussão. O Dr. Jonas não era um ser mesquinho e, além disso, não podia ser de forma nenhuma um oportunista — havia a clínica a inaugurar em breve em Santa Mónica. Aquela clínica em que lhe oferecera um lugar. Esteve quase tentado a falar do caso com o Dr. Chapman, como reforço à sua boa opinião a respeito do adversário, mas lembrou-se a tempo que Victor Jonas lhe pedira segredo.

—        O Dr. Jonas insiste em que o seu objectivo é o mesmo que o nosso — disse Paul, evasivamente.

—        Nunca ouvi blasfémia tão grande! — exclamou o Dr. Chapman. — Claro que você o rebateu nessas pretensões, hem?

—        Não, não rebati. Não tinha qualquer motivo honesto para lhe poder chamar mentiroso. Suponho que há verdade naquilo que afirma... que temos objectivos comuns mas caminhos diferentes...

—        Que espécie de senda construtiva pode ter semelhante pigmeu?

—        Durante muitos anos foi conselheiro matrimonial de uma entidade oficial.

—        Paul, você endoideceu? Não vê que qualquer trabalho desse tipo é meramente individual, microscópico? Nem mais nem menos do que o infinito que separa o médico de um banco hospitalar de uma grande cidade, lidando com todas as doenças numa escala maciça, do médico de aldeia, a receitar tisanas aos seus doentes.

Relativamente a esse Victor Jonas, e a todos os conselheiros como ele, o nosso trabalho é uma obra de titãs. Nós estamos a realizar um trabalho de auxílio a toda a gente, ao país, ao vasto mundo, e o nosso trabalho é produto de um sacrifício de uma grandeza ilimitada. Realizaremos coisas ainda mais importantes e espantosas se esse judas de meia-tigela não nos vibrar uma punhalada pelas costas.

O Dr. Chapman parou um momento para tomar fôlego, fitando Paul intensamente.

—        Não me diga que ele o conseguiu convencer das suas ridículas ideias?

Paul soltou uma risada.

—        Não. De modo nenhum. É uma pessoa cativante. Uma personalidade insinuante, inteligente, decente e com extraordinárias faculdades de exposição. Todavia, eu sei bem aquilo que quero, aquilo em que acredito e defendo com todo o meu espírito. Nada do que ouvi me conseguiu sequer fazer duvidar da razão que nos assiste.

O Dr. Chapman pareceu ficar aliviado, como se lhe tivesse tirado um pesado fardo de cima dos ombros.

—        Então não foi em vão que sempre confiei no seu bom senso.

Lançou a ponta do charuto, reduzida a polpa, para o meio do maciço de hibiscos e, tirando do bolso superior do casaco outro charuto, acendeu-o.

—        É minha opinião pessoal de que mesmo não estando ao lado dos anjos bons, o Dr. Jonas é um tipo correcto. Não podemos ser irredutíveis.

O Dr. Chapman exalou uma enorme nuvem de fumo azulado.

—        Na guerra como na guerra. Todos somos adversários de quem não partilha as nossas ideias. Temos que estar alerta contra todos os antagonistas. Quem não é por nós é contra nós. O cavalheirismo é uma palavra vã durante a guerra, ao mais ligeiro engano, o combatente que se descuida pode morrer. Quem não é por Deus é pelo Diabo.

—        É possível... — o interesse de Paul pela discussão exauria-se.

—        Como é que lhe apresentou a nossa proposta? — inquiriu o Dr- Chapman.

—        De modo directo. Com um homem como o Dr. Jonas é inútil jogar no escuro. Declarei-lhe que o senhor pensava que ele poderia ser útil ao nosso trabalho como consultor. Apresentei-lhe a sua proposta sem adornos escusados.

—        Qual foi a resposta dele?

—        Que se o senhor o pretendia comprar era impossível. Não'é pessoa que esteja à venda. Sim, foi assim mesmo.

O Dr. Chapman recostou-se no cadeirão de verga, a soprar ondas de fumo para o espaço. Pouco depois endireitou-se com brusquidão.

—        Se bem compreendo, não estamos a tratar com um inimigo vulgar.

—        Exactamente.

—        Será impiedoso no relatório a apresentar a esse grupo discordante da Zollman.

—        Sem a menor dúvida.

—        Seja como for, não o posso entregar aos assassinos da Mão Negra, tenho que o enfrentar sozinho, rebatê-lo ponto por ponto — dominou a emoção que lhe vibrava na voz e acrescentou: — Sabe, vou derrubá-lo.

Paul sabia que era verdade.

—        Tenho a certeza disso.

—        Acabou-se. Faça-me um esquema completo da conversa que teve com esse Dr. Jonas, sem omitir as suas palavras de acerba crítica ao nosso inquérito. Preciso disso o mais breve possível. Comece já esta noite.

—        É possível que não me recorde das palavras com toda a fidelidade...

—        Não interessa. Fale de tudo aquilo de que se lembrar. A partir do momento em que terminámos as entrevistas em The Briars, havemos de concluir o nosso relatório em metade do tempo que estava previsto para o enviarmos ao conselho administrativo da Zollman antes da programada reunião. Redigirei então um documento pessoal a prever e refutar todas as objecções a apresentar pelo Dr. Jonas. Paul, afinal começo a pensar que a sua missão foi coroada de êxito, uma vez que se apercebeu perfeitamente dos métodos de ataque do inimigo. Já nem interessa sequer tentar conquistá-lo para a nossa causa.

Paul não sentiu qualquer satisfação por aquele elogio. Pelo contrário, havia em si um ressaibo de traição por detalhar os planos de combate do adversário... mas tinha que pensar que o inimigo do Dr. Chapman era também o seu inimigo...

— Na verdade—continuou o Dr. Chapman, complacentemente — serão muito melhores os resultados assim obtidos do que com o suborno do Dr. Jonas. Posso perfeitamente desacreditá-lo e demoli-lo perante a Zollman.

Levantou-se pesadamente.

—Agora, nenhuma força no mundo me poderá deter. Os meus agradecimentos pela sua colaboração fiel, Paul. Faça um trabalho limpo. Boa noite.

Paul permaneceu sentado, vendo o Dr. Chapman caminhar para a zona de luz como uma personagem fabulosa a avançar num palco sob baterias de holofotes. A sua figura distinguiu-se por momentos na crua claridade até desaparecer na escuridão do complexo do motel. A Paul afigurou-se que a afirmação de pureza científica do seu mestre, nesse momento, era muito pouco pura.

 

                                                                                CONTINUA 

 

                      

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