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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O RESGATE NO MAR / Diana Gabaldon
O RESGATE NO MAR / Diana Gabaldon

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Escócia, 1968. Claire Randall, a bela enfermeira do livro A viajante do tempo, agora uma médica bem-sucedida, leva uma vida confortável ao lado da filha Brianna. Seu coração, no entanto, ainda sofre a perda de seu único e verdadeiro amor, o sedutor guerreiro escocês Jamie Fraser, de quem foi obrigada a separar-se há mais de 20 anos, durante a sangrenta Batalha de Culloden, travada no século XVIII.

Durante todo esse tempo, desde que voltara ao futuro, grávida, Claire acreditava que Jamie não tivesse sobrevivido ao violento conflito travado nas Highlands. O jovem historiador Roger Wakefield, entretanto, vira o mundo de Claire de cabeça para baixo ao apresentar a ela provas de que Jamie não morrera.

Na primeira parte de O resgate no mar, terceiro livro da série Outlander, a escritora Diana Gabaldon dá seguimento à saga descrevendo o que aconteceu com Jamie depois que sua amada voltou ao século XIX, para logo em seguida mostrar os dilemas que mãe e filha enfrentam no futuro.

Brianna, dividida entre o amor pelo homem que a criara como filha, Frank Randall, e a curiosidade de conhecer a história de seu verdadeiro pai, junta-se a Roger na pesquisa para descobrir o que aconteceu com Jamie após Culloden e onde ele se encontrava 20 anos após o conflito. Eles acreditam tê-lo localizado, sob o nome de A. Malcolm, em uma tipografia em Edimburgo. Se o tempo "funcionasse" como eles acreditavam, Claire poderia voltar para Jamie vinte anos depois de ter partido.

 

 

 

 

Quando eu era pequena, nunca gostei de pisar em poças. Não temia minhocas afogadas ou meias molhadas; eu era, de um modo geral, uma criança suja, com uma abençoada indiferença a imundícies de qualquer espécie.

Era porque eu não conseguia acreditar que aquela superfície perfeitamente lisa fosse apenas uma fina lâmina de água sobre solo firme. Eu acreditava tratar-se da entrada de algum espaço insondável. As vezes, vendo as minúsculas ondulações na água causadas pela minha aproximação, eu imaginava a poça incrivelmente profunda, um mar abismal onde se ocultavam tentáculos preguiçosamente enroscados e escamas reluzentes, com a ameaça de corpos imensos e dentes afiados à deriva e silenciosos nas profundezas sem fim.

Em seguida, olhando para o reflexo na água, eu podia ver meu próprio rosto redondo e os cabelos crespos contra uma expansão azul e uniforme. Pensava, então, que a poça fosse a entrada de um outro céu. Se eu pisasse ali, cairia imediatamente, e continuaria caindo, indefinidamente, pelo espaço azul.

A única hora em que ousava atravessar uma poça era ao crepúsculo, quando as estrelas começavam a surgir. Se eu olhasse dentro da água e visse ali o reflexo de um pontinho cintilante, poderia passar sem medo, chapinhando água para todos os lados - porque se eu caísse na poça e dentro do espaço, eu poderia agarrar-me à estrela na queda e me salvar.

Mesmo agora, quando vejo uma poça em meu caminho, minha mente hesita — ainda que meus pés não o façam —, depois dispara, deixando para trás apenas o eco do pensamento.

E se desta vez você cair?

 

Ele estava morto. No entanto seu nariz latejava dolorosamente, fato que considerou estranho nas circunstâncias. Embora depositasse grande confiança na sabedoria e clemência de seu Criador, alimentava aquele resíduo de culpa essencial que fazia todos os homens temerem a possibilidade do inferno. Ainda assim, tudo que já ouvira sobre o inferno fazia-o julgar improvável que os tormentos reservados a seus infelizes habitantes pudessem se restringir a um nariz machucado.

Por outro lado, aquilo não podia ser o céu, por diversos motivos. Primeiro, ele não merecia. Segundo, não parecia ser o céu. E terceiro, duvidava que as recompensas dos abençoados incluíssem um nariz quebrado, da mesma forma que os castigos dos amaldiçoados não deviam incluí-lo.

Embora sempre tivesse imaginado o Purgatório como um tipo de lugar cinzento, a fraca luz avermelhada que nada iluminava ao seu redor parecia adequada. Sua mente clareava-se aos poucos e a capacidade de raciocinar retornava, ainda que lentamente. Alguém, pensou um pouco irritado, devia atendê-lo e dizer-lhe exatamente qual era sua sentença, até ele ter sofrido o suficiente para ser purificado e, finalmente, entrar no Reino dos Céus. Não sabia ao certo se esperava um anjo ou um demónio. Não fazia a menor idéia dos requisitos de recrutamento de pessoal do Purgatório; o assunto não fora tratado pelo mestre-escola em sua época.

Enquanto aguardava, começou a fazer um inventário dos outros tormentos que foi solicitado a suportar. Havia inúmeros cortes, arranhões e contusões aqui e ali; além disso, tinha quase certeza de que quebrara o dedo anular da mão direita outra vez - era difícil protegê-lo, da forma como se projetava, rígido, com a junta endurecida. Mas nada disso era muito grave. O que mais?

Claire. O nome cortou seu coração como uma faca, provocando uma dor mais torturante do que qualquer sofrimento que seu corpo já tenha suportado.

Se ainda tivesse um corpo real, tinha certeza de que se contorceria de tanta agonia. Sabia que seria assim, quando a enviou de volta pelo círculo de pedras. A angústia espiritual podia ser a condição no Purgatório e ele esperara o tempo inteiro que a dor da separação seria seu maior castigo suficiente, pensou, para compensar qualquer pecado que já tivesse cometido: inclusive assassinato e traição.

Ele não sabia se as pessoas no Purgatório tinham permissão para rezar ou não. Mas assim mesmo tentou. Senhor, rezou, que ela esteja a salvo. Ela e a criança. Tinha certeza de que ela conseguira chegar ao círculo; grávida de apenas dois meses, ela ainda era leve e ágil - e a mulher mais obstinada e determinada que ele já conheceu. Mas se ela conseguira realizar a perigosa transição de volta ao lugar de onde viera - deslizando precariamente por quaisquer que fossem as misteriosas camadas do tempo, totalmente à mercê das garras da rocha - isso ele jamais saberia. Esse pensamento era suficiente para fazê-lo esquecer até o latejamento em seu nariz.

Retornou seu inventário dos danos físicos e ficou extremamente desconcertado com a descoberta da ausência de sua perna esquerda. As sensações terminavam no quadril, com uma espécie de formigamento na extremidade. Provavelmente, iria recuperá-la no devido tempo, quando finalmente chegasse ao Céu ou, no mínimo, no dia do Juízo Final. E afinal, seu cunhado Ian arranjava-se muito bem com a perna de pau que usava em substituição à sua perna perdida.

Ainda assim, sua vaidade estava ferida. Ah, devia ser isso; uma punição destinada a curá-lo do pecado da vaidade. Enrijeceu o maxilar mentalmente, determinado a aceitar qualquer punição que lhe fosse destinada com bravura e com toda a humildade possível. Ainda assim, não pôde deixar de levar a mão abaixo, tateante e exploratória, para ver onde o membro agora terminava.

A mão encontrou algo rígido e os dedos misturaram-se a pêlos enroscados e úmidos. Sentou-se abruptamente e, com algum esforço, rompeu a camada de sangue seco que colara suas pestanas. A memória voltou aos borbotões e ele soltou um urro. Estava enganado. Aquilo era o inferno. Mas James Fraser, afinal de contas, não estava morto.

O corpo de um homem jazia sobre o seu. O peso morto esmagava sua perna esquerda, explicando a ausência de sensibilidade. A cabeça, pesada como uma bala de canhão, pressionava seu abdómen, o rosto para baixo, os cabelos úmidos e escuros derramando-se sobre o linho molhado de sua camisa. Empertigou-se bruscamente, num pânico repentino; a cabeça rolou para o lado em seu colo e um olho semi-aberto olhou fixamente para cima, cego, por trás de protetoras mechas de cabelos.

Era Jack Randall, seu belo casaco vermelho de capitão tão escuro da chuva que quase parecia preto. Jamie fez um movimento desajeitado para afastar o corpo, mas constatou que estava surpreendentemente fraco; sua mão espalmava-se frouxamente contra o ombro de Randall e o cotovelo de seu outro braço cedeu de repente, quando tentou apoiar-se. Viu-se de novo estatelado de costas no chão, o céu esbranquiçado de chuva e neve girando vertiginosamente acima. A cabeça de Jack Randall movia-se de modo obsceno para cima e para baixo sobre sua barriga a cada respiração.

Apoiou-se com as mãos espalmadas no solo encharcado — a água molhava seus dedos e encharcava as costas de sua camisa — e, com uma contorção, virou-se de lado. Um pouco de calor ficara entre eles. Quando o flácido peso morto escorregou lentamente para o chão, a chuva enregelada atingiu sua pele agora exposta como o choque de um soco, e ele tremeu violentamente com o frio inesperado.

Enquanto se contorcia no solo, lutando contra as pregas amarrotadas e sujas de lama de seu kilt, pôde ouvir sons acima do lamento fúnebre do vento de abril; gritos distantes, gemidos e queixumes, como apelos de fantasmas. E, acima de tudo, os berros roucos dos corvos. Dezenas de corvos, a julgar pelo barulho.

Que estranho, pensou vagamente. Os pássaros não deveriam estar voando numa tempestade como essa. Um puxão final libertou o xale de baixo de seu corpo e ele estendeu-o sobre o corpo. Quando se esticava para cobrir as pernas, viu que seu kilt e a perna esquerda estavam encharcados de sangue. A visão não o perturbou; pareceu-lhe apenas curiosa, as manchas vermelho-escuras em contraste com o verde-acinzentado das plantas da charneca ao seu redor. Os ecos da batalha esvaíram-se de seus ouvidos e ele deixou o Campo de Culloden entregue à gritaria dos corvos.

Foi acordado muito tempo depois com os gritos de alguém que chamava seu nome.

— Fraser! Jamie Fraser! Está aqui?

Não, pensou atordoadamente. Não estou. Onde quer que tenha estado enquanto estava inconsciente, era um lugar melhor do que este. Jazia num pequeno declive, parcialmente cheio de água. A mistura de chuva e neve parara, mas não o vento; ele sibilava pela charneca, penetrante e gélido. O céu escurecera até tornar-se quase negro; deve ser noite então.

— Eu o vi descer por aqui. Perto de uma moita grande de tojo. — A voz soava ao longe, desaparecendo gradativamente enquanto discutia com alguém.

Ouviu um ruído sussurrante junto ao seu ouvido e virou a cabeça para ver o corvo. Estava parado no capim, a uns trinta centímetros de distância, uma mancha de penas pretas agitadas pelo vento, fitando-o com um olho brilhante como uma conta de vidro.

Concluindo que ele não representava nenhuma ameaça, girou o pescoço com absoluta tranqüilidade e arremeteu o bico grosso e afiado no olho de Jack Randall.

Jamie sobressaltou-se com um grito de repugnância e um alvoroço de movimentos que fez o corvo bater em retirada com um berro lancinante de susto.

- Ouviram? Lá embaixo!

Ouviu-se um chapinhar de pés pelo terreno encharcado, um rosto surgiu diante dele e sentiu o toque reconfortante da mão de um homem em seu ombro.

- Ele está vivo! Venha, MacDonald! Me dê uma ajuda aqui que ele não vai conseguir andar por conta própria.

Eram quatro homens e, com uma boa dose de esforço, ergueram-no, os braços lânguidos em volta dos ombros de Ewan Cameron e Iain MacKinnon.

Queria dizer-lhes que o deixassem ali; o propósito que tinha em mente retornara ao recuperar os sentidos e ele lembrava-se de que queria morrer. Mas o conforto da companhia dos homens era irresistível. O repouso restaurara a sensibilidade de sua perna e ele percebeu a gravidade do ferimento. Iria morrer logo, de qualquer maneira; graças a Deus que não precisaria ser sozinho, na escuridão.

- Água? - A borda da caneca pressionou seu lábio e ele ergueu-se o suficiente para beber, com cuidado para não derramar o líquido. Alguém colocou a mão brevemente em sua testa e retirou-a sem comentários.

Ele ardia em febre; podia sentir as chamas por trás dos olhos ao fechálos. Seus lábios estavam rachados e doloridos da alta temperatura, mas o calor era melhor do que os calafrios que o assolavam de vez em quando. Ao menos, quando estava com febre, podia ficar deitado quieto; os tremores dos calafrios acordavam os demónios adormecidos em sua perna.

Murtagh. Tinha uma sensação terrível em relação ao seu padrinho, mas nenhuma lembrança que concretizasse esse sentimento. Murtagh estava morto; tinha certeza, mas não sabia modos ou motivos. A maior parte do exército das Highlands estava morta, fora dizimada na charneca — foi o que apreendera da conversa dos homens na casa, mas não tinha nenhuma lembrança da batalha.

Já lutara em outros exércitos e sabia que essa amnésia não era incomum entre soldados; já a presenciara antes, embora nunca a tivesse sofrido. Sabia que as lembranças retornariam e esperava estar morto quando isso acontecesse. Remexeu-se em pensamento e o movimento provocou uma dor tão lancinante pela sua perna que o fez gemer.

— Tudo bem, Jamie? — A seu lado, Ewan ergueu-se sobre um dos cotovelos, o rosto preocupado e pálido à luz do alvorecer. Uma bandagem manchada de sangue circundava sua cabeça e viam-se manchas cor de ferrugem na gola da camisa, deixadas pelo ferimento no couro cabeludo produzido pelo raspão de uma bala.

- Sim, estou bem. - Estendeu a mão e tocou o ombro de Ewan num sinal de gratidão. Ewan bateu de leve em sua mão e deitou-se.

Os corvos haviam retornado. Negros como a própria noite, foram pernoitar em seus poleiros na escuridão, mas voltaram com a aurora — pássaros de guerra, as aves de rapina vieram se refestelar na carne dos abatidos. Podiam ser seus próprios olhos que os bicos cruéis devoravam, pensou. Podia sentir seus globos oculares sob as pálpebras, redondos e quentes, guloseimas gelatinosas revirando-se incessantemente de um lado para outro, buscando em vão o esquecimento, enquanto o sol nascente transformava suas pálpebras num vermelho sangüíneo e escuro.

Quatro dos homens reuniam-se junto à única janela da casa, conversando à meia-voz.

- Fugir correndo? - um deles disse, com um sinal da cabeça indicando o lado de fora. — Santo Deus, homem, os que não morreram mal conseguem se arrastar e pelo menos seis não podem andar de jeito nenhum.

- Quem conseguir ir que vá - disse um homem deitado no chão. Fez uma careta em direção à sua própria perna, enrolada no que sobrara de uma coberta esfarrapada. - Não se demorem aqui por nossa causa.

Duncan MacDonald virou-se da janela com um sorriso lúgubre, sacudindo a cabeça. A luz que penetrava pela janela iluminava as superfícies lisas de seu rosto, aprofundando as rugas de fadiga.

— Não, nós vamos aguardar — ele disse. — Para começar, os ingleses estão por toda parte, compactos como piolhos; pode-se vê-los pululando da janela. Ninguém conseguiria sair vivo de Drumossie agora.

- Mesmo aqueles que fugiram do campo ontem não irão longe. - MacKinnon acrescentou serenamente. - Não ouviu as tropas inglesas passando à noite em marcha rápida? Acha que vão ter dificuldade em caçar nosso bando de estropiados?

Não houve reação; todos conheciam muito bem a resposta. Muitos dos escoceses mal conseguiam manter-se de pé no campo antes mesmo da batalha, enfraquecidos como estavam pelo frio, fadiga e fome.

Jamie virou-se para a parede, rezando para que seus homens tivessem partido com suficiente dianteira. Lallybroch era umugar remoto; se conseguissem se afastar o suficiente de Culloden, era pouco provável que fossem capturados. E no entanto Claire dissera-lhe que as tropas de Cumberland iriam saquear as Highlands, alcançando os mais longínquos recônditos em sua sede de vingança.

A lembrança de Claire desta vez causou-lhe apenas uma onda de terrível saudade. Meu Deus, tê-la aqui, para tocá-lo com suas mãos, cuidar de seus ferimentos e embalar sua cabeça no colo. Mas ela partira - fora embora para duzentos anos de distância - e graças a Deus que o conseguira! As lágrimas escorreram lentamente por baixo de suas pálpebras cerradas e ele virou-se dolorosamente de lado, para escondê-las dos outros.

Deus, que ela esteja a salvo, rezou. Ela e a criança.

Perto do meio-dia, o cheiro de queimado surgiu repentinamente no ar, soprado pela janela sem vidros. Era mais forte do que o cheiro de fumaça de pólvora, pungente, com um odor subjacente e aterrorizante, lembrando carne tostada.

- Estão queimando os mortos - disse MacDonald. Ele mal se movera de seu lugar junto à janela durante todo o tempo em que permaneceram na cabana. Ele próprio assemelhava-se à face da morte, os cabelos negros e emplastados de sujeira afastados de um rosto cadavérico.

Aqui e ali, um estalido seco ecoava na charneca. Tiros. Os tiros de misericórdia, administrados por oficiais ingleses que ainda possuíam algum resíduo de compaixão, antes que um miserável envolto em seu tartã fosse amontoado na pira com os companheiros que tiveram melhor sorte. Quando Jamie ergueu os olhos, Duncan MacDonald continuava sentado junto à janela, mas seus olhos estavam fechados.

A seu lado, Ewan Cameron benzeu-se.

- Que possamos encontrar a mesma compaixão - murmurou.

Encontraram. Passava um pouco do meio-dia do segundo dia quando passos de botas finalmente aproximaram-se da casa e a porta abriu-se de par em par sobre as silenciosas dobradiças de couro.

- Santo Deus! - Foi uma exclamação abafada diante da visão do interior da cabana. A corrente de vento que entrou pela porta agitou o ar fétido sobre os corpos imundos, ensangüentados e molhados que jaziam deitados ou sentados, amontoados no chão de terra batida.

Não houvera nenhuma discussão sobre a possibilidade de resistência armada; não tinham forças e não fazia sentido. Os jacobitas apenas ficaram ali, à mercê de seu visitante.

Era um major, saudável e bem-disposto em seu uniforme impecável e botas lustradas. Após um instante de hesitação para inspecionar os ocupantes da cabana, deu um passo para dentro, o tenente logo atrás.

— Sou Lorde Melton — ele disse, olhando em torno como se buscasse o líder daqueles homens, a quem suas observações deveriam ser adequadamente dirigidas.

Duncan MacDonald, depois de também lançar um olhar à sua volta, levantou-se lentamente e inclinou a cabeça.

- Duncan MacDonald, de Glen Richie - disse. - E os outros - indicou com um gesto amplo da mão - integrantes das forças de Sua Majestade, o rei Jaime.

- Foi o que imaginei - o inglês disse secamente. Era jovem, tinha trinta e poucos anos, mas sua postura revelava a confiança de um soldado experiente. Olhou deliberadamente de um homem a outro, depois enfiou a mão no bolso do casaco e apresentou uma folha de papel dobrada.

- Tenho aqui uma ordem de Sua Excelência, o duque de Cumberland. - disse. - Autorizando a execução imediata de qualquer homem encontrado e que tenha participado da traiçoeira rebelião que acaba de ser debelada. — Olhou ao redor de toda a cabana outra vez. - Há algum homem aqui que alegue inocência de traição?

Ouviu-se um débil arfar de risos dos escoceses. Inocência, com a fumaça negra da batalha ainda em seus rostos, aqui à beira do campo de massacre?

- Não, senhor — disse MacDonald, um leve sorriso nos lábios. - Todos traidores. Vamos ser enforcados, senhor?

O rosto de Melton contorceu-se numa ligeira careta de nojo, depois retomou a expressão impassível. Era um homem delgado, de ossos pequenos e delicados, mas, ainda assim, transmitia autoridade.

— Serão fuzilados - ele disse. - Têm uma hora para se prepararem. Hesitou, lançando um olhar ao seu tenente, como se receasse parecer generoso demais diante de seu subordinado, mas continuou: — Se algum de vocês quiser deixar material escrito, escrever uma carta, talvez, o secretário de minha companhia os atenderá. — Balançou a cabeça rapidamente para MacDonald, girou nos calcanhares e saiu.

Foi uma hora sombria. Alguns aceitaram a oferta de pena e tinta e rabiscaram tenazmente, o papel contra a chaminé de madeira inclinada por falta de outra superfície firme para escrever. Outros rezaram em silêncio ou simplesmente continuaram sentados, aguardando.

MacDonald suplicara o perdão para Giles McMartm e Frederick Murray, argumentando que eles mal tinham dezessete anos e não deviam ser responsabilizados como os mais velhos. O pedido foi negado e os dois rapazes sentaram-se juntos, pálidos, contra a parede, segurando as mãos um do outro.

Por eles, Jamie sentiu uma profunda pena - e pelos outros ali, amigos leais e bravos soldados. Por si mesmo, sentiu apenas alívio. Nada mais com que se preocupar, nada mais a fazer. Fizera tudo que podia por seus homens, por sua mulher, por seu filho que ainda não nascera. Agora, depois que o sofrimento físico terminasse, ele seria grato pela paz que viria.

Mais por costume do que por necessidade, fechou os olhos e começou o Ato de Contrição, em francês, como sempre fazia. Mon Dieu, je regrette... e, no entanto, não se arrependia; era tarde demais para qualquer tipo de arrependimento.

Encontraria Claire assim que morresse?, perguntou-se. Ou talvez, como esperava, seria condenado à separação por algum tempo? De qualquer forma, ele a veria outra vez; agarrava-se à convicção com muito mais firmeza do que abraçava os dogmas da Igreja. Deus a dera a ele; Ele a traria de volta.

Esquecendo-se de rezar, começou, em vez disso, a evocar o rosto de Claire por trás das pálpebras, a curva da face e da têmpora, a testa larga e alva que sempre o fazia querer beijá-la, bem ali, naquele ponto liso e macio entre as sobrancelhas, no começo do nariz, entre os claros olhos cor de âmbar. Concentrou sua atenção no formato de sua boca, imaginando cuidadosamente a curva meiga e cheia, e o gosto, a sensação e a pura alegria de seus lábios. Os sons de oração, o ruído arranhado de penas de escrever e os soluços curtos e abafados de Giles McMartin desapareceram de seus ouvidos.

Já era o meio da tarde quando Melton retornou, desta vez acompanhado de seis soldados, bem como do tenente e do secretário. Novamente, parou na soleira da porta, mas MacDonald levantou-se antes que ele pudesse falar.

- Irei primeiro - ele disse, atravessando a cabana destemidamente. Quando abaixou a cabeça para atravessar a porta, no entanto, Lorde Melton segurou-o pela manga da camisa.

- Poderia me dar seu nome completo, senhor? Meu secretário fará a anotação.

MacDonald olhou para o secretário, o esboço de um sorriso amargo no canto da boca.

- Uma lista de trofeus, hein? Sim, está bem. - Deu de ombros e empertigou-se. - Duncan William MacLeod MacDonald, de Glen Richie. - Inclinou-se educadamente para Lorde Melton. - A seu serviço... senhor. - Atravessou a porta e logo se ouviu o barulho de um único tiro de pistola disparado à queima-roupa.

Os dois rapazes tiveram permissão de ir juntos, as mãos ainda agarradas quando atravessaram a porta. O resto foi levado um a um, cada qual solicitado a dizer o nome, para que o secretário pudesse fazer o registro. O secretário sentava-se em um banco junto à porta, a cabeça abaixada para os papéis em seu colo, sem erguer os olhos quando os homens passavam.

Quando chegou a vez de Ewan, Jamie esforçou-se para apoiar-se nos cotovelos e agarrou a mão do amigo, com toda a força que conseguiu reunir.

- Logo o verei outra vez - murmurou.

A mão de Ewan tremia na sua, mas o Cameron apenas sorriu. Em seguida, inclinou-se com simplicidade, beijou a boca de Jamie e levantouse para sair.

Deixaram para o fim os seis que não podiam caminhar.

- James Alexander Malcolm MacKenzie Fraser — ele disse, falando devagar para que o secretário tivesse tempo de anotar direito. - Senhor de Broch Tuarach. - Pacientemente, soletrou as palavras, depois ergueu os olhos para Melton. — Tenho que lhe pedir a gentileza, senhor, de me ajudar a levantar.

Melton não respondeu, mas continuou olhando fixamente para ele, a expressão distante de asco alterando-se para uma mistura de assombro e algo semelhante a um horror crescente.

- Fraser? — indagou. - De Broch Tuarach?

- Sim - Jamie disse pacientemente. Será que o sujeito não podia se apressar um pouco? Estar resignado a ser fuzilado era uma coisa, mas ouvir seus amigos serem mortos era outra, e não era propriamente algo que acalmasse os nervos. Seus braços tremiam com o esforço de soerguê-lo e seus intestinos, não compartilhando a resignação de suas faculdades superiores, contorciam-se com um gorgolejante pavor.

- Puta merda - resmungou o inglês. Inclinou-se e olhou atentamente para Jamie, deitado na sombra da parede, depois se virou e acenou para seu tenente.

- Ajude-me a colocá-lo na luz - ordenou. Não agiram com delicadeza e Jamie grunhiu quando o movimento provocou um lampejo de dor da perna direita até o topo de sua cabeça. Sentiu-se tonto por um instante e não ouviu o que Melton lhe dizia.

- Você é o jacobita que chamam de ”Jamie, o Ruivo”? - perguntou outra vez, com impaciência.

Um calafrio de medo percorreu o corpo de Jamie diante da pergunta; se soubessem que ele era o famoso Jamie, o Ruivo, não iriam fuzilá-lo. Eles o prenderiam em correntes e o levariam para Londres, para ser julgado — um troféu de guerra. Depois disso, viria a corda da forca e ficar deitado, parcialmente estrangulado, no cadafalso, enquanto cortavam sua barriga e arrancavam suas entranhas. Seus intestinos emitiram um novo ronco, longo e gorgolejante; também não gostaram da idéia.

- Não - ele disse, com toda a firmeza que conseguiu reunir. – Ande logo com isso, hein?

Ignorando seus protestos, Melton ajoelhou-se e, com um puxão, abriu a gola da camisa de Jamie. Agarrou Jamie pelos cabelos e puxou sua cabeça para trás.

— Droga! — Melton disse. O dedo de Melton tateou sua garganta, logo acima da clavícula. Havia uma pequena cicatriz triangular ali e isso parecia ser o que estava causando a preocupação de seu interrogador.

-James Fraser, de Broch Tuarach; cabelos ruivos e uma cicatriz de três pontas na garganta. — Melton soltou seus cabelos e sentou-se sobre os calcanhares, esfregando o queixo distraidamente. Em seguida, recuperou o autocontrole e voltou-se para o tenente, gesticulando na direção dos cinco homens que permaneciam na cabana.

— Leve o resto — ordenou. Suas sobrancelhas louras estavam unidas em profunda concentração. Ficou em pé acima de Jamie, a testa franzida, enquanto os outros prisioneiros escoceses eram removidos.

— Preciso pensar — murmurou. — Merda, tenho que pensar!

— Faça isso - Jamie disse -, se puder. Eu mesmo tenho que me deitar. — Haviam-no colocado sentado, escorado na parede oposta, a perna esticada à sua frente, mas sentar-se ereto depois de dois dias deitado era demais para ele; o aposento inclinava-se como se ele estivesse bêbado e pequenos lampejos de luz surgiam incessantemente diante de seus olhos. Inclinou-se para o lado e foi-se deixando escorregar para baixo, abraçando o chão de terra, os olhos fechados enquanto esperava a tontura passar.

Melton resmungava baixinho, mas Jamie não conseguia entender as palavras; não se importava muito, de qualquer forma. Sentado à luz do sol, ele vira sua perna claramente pela primeira vez e tinha absoluta certeza de que não viveria até ser enforcado.

O vermelho vivo do tecido inflamado espalhava-se do meio da coxa para cima, muito mais vivo do que as manchas de sangue seco remanescentes. O ferimento estava purulento; com o mau cheiro dos demais homens arrefecido, ele podia sentir o leve odor agridoce da descarga do tiro. Ainda assim, uma bala rápida na cabeça parecia preferível à dor e ao delírio da morte por infecção. Ouviu o barulho do tiro?, perguntou-se, e foi perdendo a consciência, a terra fria lisa e reconfortante como o peito de uma mãe sob sua face quente.

Não estava realmente dormindo, apenas sendo levado numa sonolência febril, mas a voz de Melton em seu ouvido o fez recobrar a consciência.

- Grey - a voz dizia -, John William Grey! Conhece este nome?

- Não - ele disse, entorpecido de sono e febre. - Olhe, meu caro, ou me fuzila ou me deixa ir embora, sim? Estou doente.

- Perto de Carryarick. - A voz de Melton insistia, impaciente. - Um garoto, um garoto louro, de dezesseis anos. Você o encontrou na floresta.

Jamie estreitou os olhos para seu algoz. A febre distorcia sua visão, mas havia alguma coisa vagamente familiar no rosto de traços finos acima dele, com aqueles olhos grandes, como os de uma moça.

- Ah - disse, fixando-se em um único rosto do fluxo de imagens que rodopiava erraticamente pelo seu cérebro. - O menino que tentou me matar. Sim, lembro-me dele. - Fechou os olhos outra vez. À maneira estranha da febre, uma sensação parecia se fundir em outra. Ele quebrara o braço de John William Grey; a lembrança do osso delgado do braço do rapaz sob sua mão tornou-se o braço de Claire quando ele a arrancou das garras das pedras. A neblina fria tocou seu rosto com os dedos de Claire.

- Acorde, desgraçado! - Sua cabeça caía de umado para o outro sobre o pescoço conforme Melton o sacudia com impaciência. - Ouça-me!

Jamie abriu os olhos fatigados.

- Hein?

- John William Grey é meu irmão - Melton disse. - Ele me contou sobre o encontro que tiveram. Você poupou a vida dele e ele lhe fez uma promessa. É verdade?

Com enorme esforço, rebuscou suas lembranças. Encontrara o garoto dois dias antes da primeira batalha da revolta; a vitória escocesa em Prestonpans. Os seis meses decorridos até agora pareciam um enorme abismo; tanta coisa acontecera desde então.

- Sim, lembro-me. Ele prometeu me matar. Mas não me importo se você fizer isso por ele. - Suas pálpebras fechavam-se novamente. Tinha que estar acordado para ser fuzilado?

- Ele disse que tinha uma dívida de honra para com você, e tem. Melton levantou-se, limpando os joelhos das calças, e virou-se para seu tenente, que observava o interrogatório com grande perplexidade.

- É uma situação infernal, Wallace. Este... este maldito jacobita é famoso. Já ouviu falar de Jamie, o Ruivo? Aquele dos cartazes? - O tenente balançou a cabeça, olhando curiosamente para a forma imunda na terra a seus pés. Melton sorriu amargamente.

- Não, ele não parece tão perigoso agora, não é? Mas continua sendo Jamie Fraser, o Ruivo, e Sua Excelência ficaria mais do que satisfeita ao saber da existência de tão ilustre prisioneiro. Ainda não encontraram Carlos Stuart, mas alguns jacobitas famosos contentariam igualmente a turba na Tower Hill.

- Devo enviar uma mensagem a Sua Excelência? - O tenente estendeu a mão para sua caixa de mensagens.

- Não! - Melton girou nos calcanhares para fitar intensamente o prisioneiro. — Esta é a dificuldade! Além de ser uma excelente isca para a forca, este miserável imundo também é o homem que capturou meu irmão mais novo perto de Preston. Em vez de matar o moleque com um tiro, que é o que ele merecia, este sujeito poupou sua vida e devolveu-o a seus companheiros. Assim — disse entre dentes —, fazendo minha família contrair uma maldita dívida de honra!

- Santo Deus! - disse o tenente. - Então não pode entregá-lo a Sua Excelência.

- Não, maldito! Não posso nem mesmo atirar no desgraçado, sem desonrar a palavra de meu irmão!

O prisioneiro abriu um dos olhos.

- Não contarei a ninguém se o fizer - sugeriu e prontamente fechou-o outra vez.

- Cale-se! - Perdendo completamente a paciência, Melton chutou o prisioneiro, que gemeu com o impacto, mas não disse mais nada.

- Talvez possamos matá-lo sob um nome falso - o tenente sugeriu prestativamente.

Lorde Melton lançou um olhar de profundo desprezo a seu assistente, depois olhou pela janela para calcular a hora.

- Anoitecerá dentro de três horas. Vou supervisionar o sepultamento dos outros prisioneiros executados. Encontre uma carroça pequena e mande enchê-la de feno. Encontre um condutor... escolha alguém discreto, Wallace, isso significa subornável, Wallace... e mande-os para longe daqui assim que escurecer.

- Sim, senhor. E, senhor? E o prisioneiro? - O tenente indicou timidamente o corpo no chão.

- O que tem ele? - Melton perguntou bruscamente. — Ele está fraco demais para rastejar, quanto mais andar. Ele não irá a lugar algum, ao menos não até a carroça chegar aqui.

— Carroça? — O prisioneiro dava sinais de vida. De fato, sob o estímulo da agitação, ele conseguira erguer-se sobre um dos braços. Os olhos azuis injetados brilharam, arregalados de susto, sob os espigões de cabelos ruivos emaranhados. - Para onde está me mandando? - Virando-se da porta, Melton lançou-lhe um olhar de intensa antipatia.

— Você é o senhor de Broch Tuarach, não é? Bem, é para lá que o estou enviando.

- Não quero ir pra casa! Quero ser fuzilado! Os ingleses trocaram um olhar.

— Está delirando — o tenente disse de modo significativo, e Melton balançou a cabeça, concordando.

- Duvido que ele sobreviva à viagem, mas pelo menos sua morte não ficará na minha consciência.

A porta fechou-se com firmeza atrás dos ingleses, deixando Jamie Fraser inteiramente sozinho - e ainda vivo.

 

É claro que ele está morto! - A voz de Claire estava aguda com o nervosismo; ressoou estridente no gabinete parcialmente vazio, ecoando entre as estantes de livros remexidas. Ficou parada contra a parede forrada de cortiça como uma prisioneira aguardando o pelotão de fuzilamento, olhando de sua filha para Roger Wakefield e de novo para sua filha.

— Creio que não. — Roger sentia-se terrivelmente cansado. Esfregou a mão no rosto, depois apanhou a pasta de arquivo da escrivaninha; a que continha toda a pesquisa que fizera desde que Claire e sua filha o procuraram, há três semanas, e pediram sua ajuda.

Abriu a pasta e folheou o conteúdo devagar. Os jacobitas de Culloden. A Revolta de 1745. Os bravos escoceses que se reuniram sob o estandarte do príncipe Carlos Stuart e cortaram a Escócia como uma espada em chamas - apenas para se deparar com a derrota e a ruína ao enfrentar o duque de Cumberland na charneca cinzenta de Culloden.

- Tome - ele disse, arrancando várias folhas grampeadas. A escrita arcaica parecia estranha, reproduzida no preto intenso de uma fotocópia. Esta é a lista de chamada do regimento do Senhor de Lovat.

Estendeu bruscamente o fino maço de folhas a Claire, mas foi sua filha, Brianna, que tomou o documento de suas mãos e começou a virar as páginas, as sobrancelhas ruivas levemente franzidas.

- Leia a página inicial - Roger disse. - Onde se lê ”Oficiais”.

— Está bem. ”Oficiais” — leu em voz alta. — ”Simon, Senhor de Lovat...”

- A Jovem Raposa - Roger interrompeu. - O filho de Lovat. E mais cinco nomes, certo?

Brianna ergueu uma das sobrancelhas para ele, mas continuou a leitura.

- ”William Chisholm Fraser, tenente; George D’Armed Fraser Shaw, capitão; Duncan Joseph Fraser, tenente; Bayard Murray Fraser, major... ela parou, engoliu em seco, antes de ler o último nome - ...James Alexander Malcolm MacKenzie Fraser, capitão.” - Abaixou os papéis, um pouco pálida. - Meu pai.

Claire aproximou-se rapidamente de sua filha, apertando o braço da jovem. Ela também estava pálida.

— Sim — ela disse a Roger. — Sei que ele foi a Culloden. Quando me deixou... lá no círculo de pedras... ele pretendia voltar ao Campo de Culloden, para resgatar seus homens que estavam com Carlos Stuart. E sabemos que o fez — com um movimento da cabeça, indicou a pasta sobre a escrivaninha, a superfície de papel manilha vazia e inocente à luz do abajur —, você encontrou seus nomes. Mas... mas... Jamie... — Pronunciar seu nome em voz alta parecia devastá-la e ela cerrou os lábios com força.

Foi a vez de Brianna apoiar sua mãe.

- Ele pretendia voltar, você disse. - Seus olhos, azul-escuros e encorajadores, fitavam intensamente o rosto de sua mãe. - Ele pretendia tirar seus homens do campo e depois voltar para a batalha.

Claire balançou a cabeça, recobrando-se ligeiramente.

- Ele sabia que não tinha muita chance de escapar; se os ingleses o pegassem... ele disse que preferia morrer em combate. É o que pretendia fazer. - Voltou-se para Roger, o olhar de uma desconcertante cor de âmbar. Seus olhos sempre o faziam lembrar os olhos de um falcão, como se ela pudesse ver muito mais longe do que a maioria das pessoas. — Não posso acreditar que ele não tenha morrido lá... tantos homens morreram e ele pretendia fazer isso!

Quase metade do exército das Highlands morrera em Culloden, derrubados numa rajada de tiros de canhão e de fuzilaria. Mas não James Fraser.

- Não - Roger disse com teimosia. - Aquele trecho que eu li para você do livro de Linklater. - Pegou o livro, um volume branco, intitulado O príncipe no urzal.

- Após a batalha — ele leu —, dezoito oficiais jacobitas feridos refugiaram-se na casa de fazenda próxima à charneca. Ali ficaram sofrendo, os ferimentos sem tratamento, por dois dias. Ao cabo desse tempo, foram levados para fora e fuzilados. Um dos homens, um Fraser do regimento do Senhor de Lovat, escapou ao massacre. Os demais estão enterrados no terreno da casa, junto ao bosque.

”Viu? - ele disse, abaixando o livro e olhando ansiosamente para as duas mulheres por cima das páginas. — Um oficial do regimento do Senhor de Lovat. - Agarrou as folhas da lista de chamada. - E aqui estão eles! Apenas seis deles. Bem, sabemos que o homem na cabana não pode ter sido o Jovem Simon; ele é uma figura histórica conhecida e sabemos muito bem o que aconteceu a ele. Ele retirou-se do campo, sem estar ferido, veja bem, com um grupo de seus homens e foi abrindo caminho para o norte, finalmente conseguindo chegar ao Castelo Beaufort, perto daqui. Acenou vagamente na direção da enorme janela, através da qual as luzes noturnas de Inverness cintilavam debilmente.

- Nem o homem que escapou da casa da fazenda Leanach foi nenhum dos outros quatro oficiais, William, George, Duncan ou Bayard - Roger disse. - Por quê? - Agarrou com violência outro documento da pasta e brandiu-o, quase triunfalmente. — Porque eles realmente morreram em Culloden! Todos os quatro foram mortos em combate, eu encontrei seus nomes listados numa placa na igreja em Beauly.

Claire soltou um longo suspiro, depois se deixou arriar na velha cadeira giratória de couro atrás da escrivaninha.

-Jesus H. Cristo! - exclamou, proferindo sua expressão favorita. Fechou os olhos e inclinou-se para a frente, os cotovelos sobre a escrivaninha e a cabeça apoiada nas mãos, com os cabelos castanhos, cheios e encaracolados, derramando-se pelos lados de seu rosto. Brianna colocou a mão no ombro de Claire, o rosto transtornado ao inclinar-se sobre sua mãe. Era uma jovem alta, de compleição forte e elegante, e seus longos cabelos ruivos brilhavam à luz cálida do abajur da escrivaninha.

— Se ele não morreu... — ela começou, especulativamente.

Claire ergueu a cabeça bruscamente.

- Mas ele está morto! - disse. Seu rosto estava atormentado e viam-se pequenas rugas ao redor de seus olhos. — Pelo amor de Deus, são duzentos anos; quer ele tenha morrido em Culloden ou não, ele está morto agora!

Brianna recuou diante da veemência de sua mãe e abaixou a cabeça, fazendo os cabelos ruivos — os cabelos ruivos de seu pai — caírem ao lado de seu rosto.

- Creio que sim - murmurou. Roger pôde ver que ela lutava para conter as lágrimas. Não era de admirar, pensou. Descobrir num curto espaço de tempo que o homem a quem amara e chamara de pai durante toda a vida não era seu pai; segundo, que seu verdadeiro pai era um escocês das Highlands que vivera há duzentos anos; e terceiro, descobrir que ele provavelmente morrera de alguma maneira terrível, inconcebivèlmente longe da mulher e da filha por quem ele se sacrificara para salvar... era o suficiente para deixar qualquer um abalado, Roger pensou.

Aproximou-se de Brianna e tocou em seu braço. Ela lançou-lhe um olhar breve e distraído, e tentou sorrir. Ele envolveu-a em seus braços, sentindo, mesmo na compaixão por seu infortúnio, o quanto era bom abraçála, ao mesmo tempo macia, quente e viva.

Claire permanecia sentada à escrivaninha, imóvel. Os olhos amarelos de falcão haviam adquirido uma cor mais suave agora, perdidos em lembranças. Pousaram, sem enxergar, na parede leste do gabinete, ainda recoberta do chão ao teto com os bilhetes, anotações e lembranças deixados pelo reverendo Wakefield, o falecido pai adotivo de Roger.

Olhando, ele mesmo, para a parede, Roger viu o aviso da reunião anual enviado pela Sociedade da Rosa Branca - aquelas almas entusiásticas, excêntricas, que ainda defendiam a causa da independência da Escócia, reunindo-se num tributo nostálgico a Carlos Stuart e aos heróis das Highlands que o seguiram.

Roger clareou levemente a garganta.

- Ha... se Jamie Fraser não morreu em Culloden... - ele disse.

— Então, provavelmente, morreu logo depois. — Os olhos de Claire encontraram-se com os de Roger, diretamente, o olhar frio de volta às profundezas castanho-amareladas. - Você não faz a menor idéia de como era - ela disse. - Houve um período de fome nas Highlands... nenhum dos homens comia há dias antes da batalha. Ele estava ferido, isso nós sabemos. Ainda que tivesse escapado, não haveria ninguém... para cuidar dele. - Sua voz fraquejou levemente; ela era uma médica agora, fora uma curandeira já naquela época, há vinte anos, quando atravessara um círculo sagrado de pedras e encontrara o destino com James Alexander Malcolm MacKenzie Fraser.

Roger tinha consciência de quem eram as duas mulheres; a jovem alta, trêmula, que tinha nos braços, e a mulher sentada à escrivaninha, tão quieta, tão serena. Ela viajara através das pedras, através do tempo; suspeita de ser uma espiã, presa como bruxa, arrancada por um inimaginável capricho das circunstâncias dos braços de seu primeiro marido, Frank Randall. E três anos mais tarde, seu segundo marido, James Fraser, a enviara de volta através das pedras, grávida, num esforço desesperado para salvá-la e à sua filha ainda por nascer do desastre iminente que logo o engolfaria.

Sem dúvida, pensou consigo mesmo, ela já sofreu o suficiente? Mas Roger era um historiador. Possuía uma curiosidade amoral, insaciável, poderosa demais para ser contida pela simples compaixão. Mais do que isso, estranhamente, também tinha consciência de quem era a terceira figura na tragédia familiar em que se vira envolvido - Jamie Fraser.

- Se ele não morreu em Culloden - começou outra vez, com mais firmeza -, então talvez eu possa descobrir o que realmente aconteceu a ele. Quer que eu tente? - Esperou, a respiração presa, sentindo o hálito quente de Brianna atravessar sua camisa.

Jamie Fraser tivera uma vida e uma morte. Roger sentia obscuramente que era seu dever descobrir toda a verdade; que as mulheres de Jamie Fraser mereciam saber tudo que ele pudesse conseguir sobre ele. Para Brianna, esse conhecimento era tudo que ela poderia ter do pai que nunca conhecera. E para Claire - por trás da pergunta que ele fizera, estava a idéia que ainda não a havia atingido completamente, abalada como estava: ela já atravessara a barreira do tempo duas vezes antes. Ela podia, provavelmente, fazê-lo outra vez. E se Jamie Fraser não tivesse morrido em Culloden...

Ele viu a consciência dessa possibilidade tremeluzir nos olhos de âmbar anuviados, quando o pensamento lhe ocorreu. Ela era normalmente pálida; agora, seu rosto ficou lívido, branco como o cabo de marfim do abridor de cartas diante dela na escrivaninha. Seus dedos fecharam-se em torno do objeto, com tanta força que os ossos dos nós dos dedos projetaram-se de forma visível.

Ela permaneceu calada por um longo tempo. Seu olhar fixou-se em Brianna e deteve-se ali por um instante, retornando em seguida ao rosto de Roger.

- Sim - ela disse, num sussurro tão baixo que ele mal podia ouvi-la. Sim. Descubra para mim. Por favor, descubra.

 

A circulação de pedestres era grande na ponte sobre o rio Ness, era o fluxo de pessoas indo para casa para o chá. Roger caminhava à minha frente, os ombros largos protegendo-me dos esbarrões da multidão ao nosso redor.

Eu podia sentir as batidas de meu coração na capa dura do livro que segurava abraçado. Isso acontecia sempre que eu pensava no que estávamos realmente fazendo. Eu não sabia ao certo qual das duas alternativas era a pior; descobrir que Jamie morrera em Culloden ou descobrir que não morrera.

As tábuas da ponte ecoavam embaixo de nossos pés, enquanto caminhávamos de volta à casa paroquial. Meus braços doíam pelo peso dos livros que carregava e eu mudava o fardo de um lado para o outro.

- Olhe para a frente, homem! - Roger gritou, empurrando-me habilmente para o lado, quando um operário numa bicicleta passou, com a cabeça abaixada, bem pelo meio do tráfego na ponte, quase me jogando contra a balaustrada.

- Desculpe! - ouviu-se o grito de desculpas e o ciclista acenou a mão por cima do ombro, enquanto a bicicleta abria caminho, ziguezagueando pelo meio de dois grupos de estudantes que retornavam para casa. Olhei para trás, ao longo da ponte, para talvez encontrar Brianna atrás de nós, mas não havia sinal dela.

Roger e eu passáramos a tarde na Sociedade para a Preservação de Antigüidades. Brianna fora ao escritório de representação dos clãs das Highlands, para obter fotocópias de uma lista de documentos que Roger compilara.

- É muita bondade sua se dar a todo este trabalho, Roger - eu disse, erguendo a voz acima do barulho da ponte e da correnteza do rio.

- Tudo bem - ele disse, um pouco sem jeito, parando para que eu o alcançasse. — Estou curioso — acrescentou, com um leve sorriso. — Sabe como são os historiadores, não conseguem deixar uma charada em paz. - Sacudiu a cabeça, tentando afastar dos olhos os cabelos escuros soprados pelo vento sem usar as mãos.

Eu realmente conhecia os historiadores. Vivera com um deles durante vinte anos. Frank também não quisera deixar em paz esse enigma em particular. Mas também não quis resolvê-lo. Mas Frank estava morto há dois anos e agora era a minha vez — minha e de Brianna.

-Já teve notícias do dr. Inklater? - perguntei, quando descíamos o arco da ponte. Apesar de estarmos no final da tarde, o sol ainda estava alto, por estarmos tão ao norte. Preso entre as folhas das tílias nas margens do rio, brilhava em tons cor-de-rosa sobre o cenotáfio de granito que erguia-se embaixo da ponte.

Roger sacudiu a cabeça, estreitando os olhos contra o vento.

— Não, mas faz apenas uma semana que eu lhe escrevi. Se não tiver resposta até segunda-feira, tentarei telefonar. Não se preocupe — exibiu um sorriso enviesado -, fui muito circunspecto. Disse-lhe apenas que, para fins de um estudo que eu estava fazendo, precisava de uma lista, se é que existia essa lista, dos oficiais jacobitas que estavam na casa da fazenda Leanach após a batalha de Culloden e, caso existisse alguma informação sobre algum sobrevivente dessa execução, se ele poderia me dar as referências das fontes.

— Você conhece Inklater? — perguntei, apoiando os livros inclinados sobre o quadril e, assim, conseguindo relaxar o braço esquerdo

- Não, mas escrevi meu pedido num papel timbrado do Balhol College e fiz uma referência educada ao sr. Cheesewright, meu ex-orientador, que, ele sim, conhece Inklater. - Roger piscou o olho para mim e não pude deixar de rir.

Seus olhos eram de um verde brilhante e translúcido, luminosos contrastados com a pele cor de oliva. A curiosidade podia ser sua razão declarada para nos ajudar a descobrir a história de Jamie, mas eu tinha certeza de que seu interesse ia bem mais longe - na direção de Brianna. Eu também sabia que o interesse era recíproco. O que eu não sabia era se Roger também percebera o fato.

De volta ao gabinete do falecido reverendo Wakefield, larguei os livros sobre a mesa com alívio e deixei-me afundar na bergère junto à lareira, enquanto Roger ia buscar um copo de limonada na cozinha

Minha respiração foi se acalmando enquanto eu bebia pequenos goles do líquido ácido e doce, mas minha pulsação continuou errática, conforme eu analisava a imponente pilha de livros que trouxéramos de volta. Jamie estaria ali em algum lugar? E se estivesse... minhas mãos ficaram úmidas sobre o copo frio e eu afastei o pensamento Não deseje demais, avisei a mim mesma. Era melhor esperar e ver o que poderíamos encontrar.

Roger examinava as prateleiras de livros do gabinete, em busca de outras possibilidades. O reverendo Wakefield, o falecido pai adotivo de Roger, fora um bom historiador amador mas também um terrível colecionador cartas, jóias, folhetos, cartazes, livros antigos e contemporâneos tudo estava amontoado nas estantes apinhadas.

Roger hesitou, depois sua mão recaiu em uma pilha de livros em uma mesa próxima. Eram os livros de Frank - uma notável realização, pelo que eu pude apreender pela leitura dos elogios impressos na sobrecapa.

—Já leu este aqui? — ele perguntou, apanhando o volume intitulado Os jacobitas.

- Não - respondi. Tomei um gole reanimador de limonada e tossi. Não — repeti. — Não pude — Depois que voltei, recusei-me termmantemente a olhar para qualquer material que tivesse a ver com o passado da Escócia, embora o século XVIII fosse uma das áreas de especialização de Frank. Sabendo que Jamie estava morto e diante da necessidade de ter que viver sem ele, evitei qualquer coisa que pudesse lembrá-lo Uma fuga inútil. Não havia nenhum modo de esquecê-lo, com a existência de Brianna diariamente trazendo-o à minha lembrança Mesmo assim, não conseguia ler livros sobre Carlos Stuart, aquele rapaz fútil e terrível, ou seus partidários.

- Compreendo. Pensei que talvez pudesse saber se haveria alguma coisa útil aqui. - Roger fez uma pausa, o rubor intensificando-se nas maçãs do rosto. - Seu., ha... seu marido Frank, quero dizer - acrescentou apressadamente - Você lhe contou., hum... sobre... - Sua voz foi desaparecendo, asfixiada pelo constrangimento.

- Ora, claro que sim. - eu disse, um pouco bruscamente. - O que pensou? Que eu simplesmente entrei no seu escritório depois de ter desaparecido por três anos e disse: ”Olá, querido, o que gostaria para o jantar hoje?”

- Não, claro que não - Roger murmurou. Virou-se, pôs os olhos fixos nas estantes de livros. Sua nuca estava vermelha de constrangimento.

- Desculpe-me - eu disse, respirando fundo - É uma pergunta justa. É só que tudo ainda é... um pouco doloroso - Muito mais do que um pouco. Eu estava tanto surpresa quanto horrorizada de ver o quanto a ferida ainda estava aberta. Coloquei o copo sobre a mesa, junto ao meu cotovelo. Se pretendíamos ir adiante com aquilo, eu iria precisar de algo bem mais forte do que limonada. - Sim - eu disse - Contei a ele. Contei-lhe tudo sobre as pedras... sobre Jamie. Tudo.

Roger não disse nada por algum tempo. Então virou-se, parcialmente, de modo que apenas as linhas fortes e cmzeladas de seu perfil fossem visíveis. Não olhou para mim, mas para a pilha de livros de Frank, para a foto de Frank no verso da capa, magro, moreno e bonito, sorrindo para a posteridade.

— Ele acreditou em você? - ele perguntou em voz baixa.

Meus lábios estavam pegajosos da limonada e eu os umedeci antes de responder.

— Não — eu disse. — Não no começo. Achou que eu estava louca. Até me fez ser examinada por um psiquiatra. - Ri, um riso curto, mas a lembrança me fez cerrar os punhos de raiva.

- Então, mais tarde? - Roger virou-me para me encarar. O rubor desaparecera de sua pele, deixando apenas um eco de curiosidade em seus olhos. — O que ele pensou?

Respirei fundo e fechei os olhos.

— Não sei.

O minúsculo hospital de Inverness possuía um cheiro estranho, como o de desinfetante carbólico e goma.

Eu não conseguia pensar e tentava não sentir. Retornar fora muito mais aterrorizante do que minha viagem ao passado havia sido, porque lá eu estava envolvida por uma camada protetora de dúvida e incredulidade a respeito de onde eu estava e o que estava acontecendo, e vivera na esperança permanente de fugir. Agora, eu sabia muito bem onde estava e sabia que não havia fuga possível. Jamie estava morto.

Os médicos e enfermeiras tentavam conversar gentilmente comigo, alimentar-me e trazer coisas para eu beber, mas não havia lugar em mim para nada além de tristeza e terror. Eu lhes dizia meu nome quando perguntavam, mas recusava-me a dizer qualquer coisa além disso.

Eu permanecia deitada na cama branca e limpa, os dedos entrelaçados com força sobre minha vulnerável barriga, e mantinha os olhos cerrados. Visualizava repetidamente as últimas cenas que vira antes de atravessar as pedras — a charneca chuvosa e o rosto de Jamie — sabendo que, se olhasse por muito tempo para o meu novo ambiente, essas visões feneceriam, substituídas por cenas mundanas, como as enfermeiras e o vaso de flores ao lado da cama. Secretamente, pressionava um polegar contra a base do outro, extraindo um consolo obscuro da presença do minúsculo ferimento, um pequeno corte na forma de um J. Jamie afizera, a meu pedido — seu último toque em minha carne.

Devo ter permanecido assim por bastante tempo; às vezes dormia, sonhando com os últimos dias da Revolução Jacobita — vi novamente o homem morto na floresta dormindo sob uma camada de fungos azuis brilhantes; e Dougal MacKenzie morrendo no chão de um sótão na Casa Culloden; os homens maltrapilhos do exército das Highlands dormindo nas trincheiras lamacentas; seu último sono antes do massacre.

Eu acordava gritando e gemendo, sentindo o cheiro de desinfetante e ouvindo palavras apaziguadoras, incompreensíveis diante dos ecos da gritaria em gaélico dos meus sonhos. Depois, adormecia de novo, a mão fechada com força sobre o pequeno ferimento na base do polegar.

Então, abri os olhos e Frank estava lá. Parado na porta, alisando os cabelos negros para trás com uma das mãos, parecendo hesitar - e não era de admirar, pobre homem.

Recostei-me nos travesseiros, apenas observando-o, sem falar. Ele se parecia com seus ancestrais, Jack e Alex Randall; feições aristocráticas, finas e puras, e uma cabeça bem-torneada, sob uma cabeleira lisa e escura. Mas seu rosto possuía uma certa diferença indefinível, além das pequenas diferenças de feições. Não havia nenhuma marca de medo ou de brutalidade nele; nem a espiritualidade de Alex nem a arrogância glacial de Jack. Seu rosto delgado parecia inteligente, bondoso e ligeiramente cansado, com olheiras e a barba por fazer. Percebi, sem que fosse necessário me dizer, que ele dirigira a noite toda para chegar ali.

- Claire? — Aproximou-se da cama e falou de forma hesitante, como se não tivesse certeza de que eu fosse realmente Claire.

Eu também não tinha certeza, mas assenti e disse:

— Olá, Frank. - Minha voz soou rouca e áspera, desacostumada a falar. Tomou uma de minhas mãos e deixei que a segurasse.

- Você está... bem? - perguntou, após um minuto. Olhava para mim com a testa ligeiramente franzida.

- Estou grávida. - Esse parecia o ponto crucial, em minha mente perturbada. Eu não pensara no que iria dizer a Frank, se viesse a revê-lo, mas no instante em que o vi parado na porta tudo pareceu simples. Eu lhe diria que estava grávida, ele iria embora e eu ficaria sozinha com minha última visão do rosto de Jamie e seu toque ardente em minha mão.

Seu rosto crispou-se um pouco, mas ele não soltou minha mão.

— Eu sei. Eles me disseram. — Respirou fundo e soltou a respiração. — Claire, pode me contar o que aconteceu com você?

Fiquei completamente aturdida por um instante, mas depois encolhi os ombros.

— Suponho que sim — eu disse. Reuni os pensamentos, fatigada; não queria conversar sobre isso, mas, eu tinha uma dívida para com aquele homem. Não era culpa, ainda não; mas, ainda assim, uma dívida. Eu fora casada com ele.

— Bem — eu disse -, apaixonei-me por outra pessoa e casei-me. Sinto muito - acrescentei, em reação ao olhar de espanto que atravessou seu rosto —, não pude evitar.

Não era o que ele esperava. Sua boca abriu-se e fechou-se, e ele agarrou minha mão com força suficiente para me fazer recuar e puxá-la.

— O que quer dizer? — perguntou, a voz estridente. — Por onde esteve, Claire? — Levantou-se de repente, assomando acima da cama.

— Lembra-se de que quando o vi pela última vez eu estava subindo ao círculo de pedras em Craigh na Dun?

— Sim? — Ele me fitava com uma expressão entre a raiva e a desconfiança

— Bem — umedeci os lábios, que haviam ficado completamente secos —, o fato é que atravessei umafenda na rocha naquele círculo e acabei em 1743.

— Deixe de brincadeira, Claire!

- Acha que estou fazendo graça? - A idéia era tão absurda que eu na verdade comecei a rir, embora me sentisse muito distante do verdadeiro humor

- Pare com isso!

Parei de rir. Duas enfermeiras apareceram na soleira da porta como por mágica, deviam estar espreitando por perto no corredor. Frank inclinou-se e agarrou meu braço.

- Ouça-me — disse entre dentes — Você vai me dizer onde esteve e o que andou fazendo!

— Eu estou lhe dizendo. Solte-me! — Sentei-me na cama e puxei meu braço com toda força, soltando-me de sua mão. - Já lhe disse. Atravessei uma das pedras do círculo e acabei no passado, há duzentos anos E encontrei seu maldito ancestral, Jack Randall, lá.

Frank piscou, completamente desconcertado

- Quem?

— Black Jack Randall, e era um maldito pervertido, asqueroso, nojento! Frank ficou boquiaberto, assim como as enfermeiras. Pude ouvir pés descendo o corredor atrás delas e vozes apressadas

— Tive que me casar com Jamie Fraser para me livrar de Jack Randall, mas depois... Jamie... não pude evitar, Frank, eu o amei e teria ficado com ele se pudesse, mas ele me enviou de volta por causa de Culloden, e da criança, e...

— parei, quando um homem com uniforme de médico passou pelas enfermeiras na porta.

— Frank — eu disse, cansada —, sinto muito. Não tive a intenção de que isso acontecesse e tentei de todas as formas voltar, realmente, tentei mas não pude E agora é tarde demais.

Involuntariamente, as lágrimas começaram a assomar aos meus olhos e escorrer pelas minhas faces. Em grande parte, por causa de Jamie, e de mim mesma, e da criança que carregava, mas algumas por Frank também. Inspirei com força e engoli as lágrimas, tentando parar de chorar, e sentei-me aprumada na cama.

- Olhe — eu disse —, sei que você não vai querer mais olhar na minha cara e eu não o culpo, absolutamente. Apenas... apenas vá embora, sim?

Seu rosto mudara. Não parecia mais zangado, mas perturbado e levemente intrigado. Sentou-se ao lado da cama, ignorando o médico que entrara e procurava medir o meu pulso.

— Eu não vou a lugar algum — ele disse, com muita delicadeza. Segurou minha mão outra vez, embora eu tentasse retirá-la. — Este Jamie. Quem era ele?

Inspirei fundo, a respiração entrecortada. O médico segurava minha outra mão, ainda tentando tomar meu pulso, e me senti absurdamente em pânico, como se os dois estivessem me mantendo prisioneira. No entanto tentei debelar a sensação e falar de modo equilibrado.

—James Alexander Malcolm MacKenzie Fraser— eu disse, espacejando as palavras, formalmente, da maneira como Jamie as pronunciara para mim quando me disse seu nome completo pela primeira vez... no dia de nosso casamento. O pensamento provocou um novo transbordamento de lágrimas e eu as enxuguei no ombro, minhas mãos estando presas.

- Era um guerreiro das Highlands. Ele morreu em Culloden. — Não adiantava, eu estava chorando outra vez, as lágrimas não representavam nenhum paliativo para a dor que me dilacerava, mas a única reação que eu podia ter à dor insuportável. Inclinei-me ligeiramente para frente, tentando encapsular o bebê, envolver-me em torno da vida minúscula, imperceptível, em meu ventre, o único remanescente de Jamie Fraser para mim.

Frank e o médico trocaram um olhar do qual eu mal tive consciência. Obviamente, para eles Culloden fazia parte do passado distante. Para mim, acontecera há apenas dois dias.

— Talvez seja melhor deixar a sra. Randall descansar um pouco — o médico sugeriu. — Ela parece um pouco transtornada no momento.

Frank olhou do médico para mim, indeciso.

— Bem, ela sem dúvida parece transtornada. Mas eu realmente queria descobrir... o que é isso, Claire? — Tocando minha mão, ele encontrara a aliança de prata no meu dedo anular e agora se inclinava para examiná-la. Era a aliança que Jamie me dera pelo nosso casamento; um largo aro de prata no padrão entrelaçado das Highlands, as ligações gravadas com minúsculas e estilizadas flores de cardo.

— Não! — exclamei, em pânico, quando Frank tentou tirá-la do meu dedo. Puxei minha mão bruscamente e a protegi, fechada, contra o peito, coberta pela mão esquerda, que ainda usava a aliança de ouro do casamento com Frank. — Não, não pode tirá-la, eu não vou permitir! É minha aliança de casamento!

— Vamos, veja bem, Claire...—As palavras de Frank foram interrompidas pelo médico, que dera a volta na cama, aproximara-se de Frank e agora se inclinava e sussurrava alguma coisa em seu ouvido. Captei algumas palavras — ”não perturbe sua mulher agora. O choque” —, e logo Frank levantou-se outra vez, sendo firmemente conduzido para fora do quarto pelo médico, que fez um sinal com a cabeça para uma das enfermeiras ao passar por elas.

Eu mal senti a picada da agulha hipodérmica, absorvida demais por uma nova onda de tristeza e pesar para prestar atenção a qualquer coisa. Ouvi vagamente as palavras de Frank ao sair:

- Está bem. Mas, Claire, eu vou descobrir!

Em seguida, mergulhei numa abençoada escuridão e dormi um sono sem sonhos, por muito, muito tempo.

Roger inclinou a garrafa de uísque, serviu até a metade do copo. Entregou-o a Claire com um leve sorriso.

- A avó de Fiona sempre disse que uísque é bom para qualquer mal que nos aflija.

-Já vi remédios piores. - Claire pegou o copo e retribuiu o leve sorriso. Roger serviu uma dose para si próprio, em seguida sentou-se ao lado dela, sorvendo-o silenciosamente em pequenos goles.

- Eu tentei mandá-lo embora, sabe - ela disse de repente, abaixando o copo — Frank. Eu disse que sabia que ele não poderia continuar a sentir o mesmo por mim, independentemente do que acreditasse que tivesse acontecido. Disse que lhe daria o divórcio, ele devia ir embora e esquecer de mim, retomar a vida que começara a construir sem mim.

— Mas ele se recusou — Roger disse. Começava a fazer frio no gabinete conforme o sol desaparecia e ele inclinou-se e ligou o velho aquecedor elétrico. - Porque você estava grávida. – sugeriu.

Ela lançou-lhe um olhar repentino e penetrante, depois esboçou um sorriso enviesado.

— Sim, foi por isso. Disse que ninguém, exceto um canalha, pensaria em abandonar uma mulher grávida sem absolutamente nenhum recurso. Particularmente alguém cujo elo com a realidade parecia um pouco tênue. - acrescentou com ironia. - Eu não estava totalmente desprovida de recursos, possuía um pouco de dinheiro do meu tio Lamb, mas Frank também não era um canalha. — Seu olhar desviou-se para as estantes de livros. As obras históricas de seu marido estavam ali, lado a lado, as lombadas brilhando à luz do abajur sobre a escrivaninha.

- Ele era um homem muito honrado. - ela disse num sussurro. Tomou outro gole de sua bebida, fechando os olhos conforme os vapores alcoólicos elevavam-se.

— Depois ele sabia, ou suspeitava, que ele próprio não podia ter filhos. Um grande choque, para um homem tão envolvido em história e genealogias. Todas aquelas considerações de dinastia, sabe?

- Sim, posso compreender - Roger disse devagar - Mas ele não se sentiu... quero dizer, era o filho de outro homem.

— Deve ter se sentido — Os olhos cor de âmbar fitavam-no outra vez, sua limpidez levemente amenizada pelo uísque e pelas recordações - Mas diante da situação, já que ele não conseguia acreditar em nada que eu dissesse a respeito de Jamie, o pai da criança era essencialmente desconhecido. Se ele não sabia quem era o homem, e se convencera de que eu mesma também não sabia, apenas inventara aquelas histórias fantasiosas por causa do choque traumático... bem, então, não haveria ninguém para dizer que o filho não era dele. Certamente não eu - acrescentou, com um toque de amargura.

Tomou um grande gole de uísque que fez seus olhos lacrimejarem um pouco e fez uma pausa para enxugá-los.

- Mas, por garantia, levou-me para bem longe. Para Boston - continuou. — Haviam lhe oferecido um bom emprego em Harvard e ninguém nos conhecia lá. Foi onde Brianna nasceu.

O choro estridente acordou-me com um sobressalto outra vez. Eu voltara para a cama às 6h30, depois de levantar cinco vezes durante a noite com o bebê. Um olhar turvo para o relógio mostrou que agora eram 7h. Um cantarolar alegre vinha do banheiro, a voz de Frank elevada no hino imperialista inglês ”Rule, Britannia”, acima do barulho da água corrente.

Permaneci deitada, os membros pesados de exaustão, imaginando se eu teria forças para agüentar o choro da criança até Frank sair do chuveiro e trazer Brianna para mim. Como se o bebê soubesse o que eu estava pensando, o choro elevou-se dois ou três tons e foi aumentando para uma espécie de berro cíclico, pontuado por apavorantes tragadas de ar. Atirei as cobertas para o lado e pusme de pé num salto, impulsionada pelo mesmo tipo de pânico com que recebia os bombardeios aéreos da guerra.

Arrastei-me pelo corredor frio até o quarto do bebê e encontrei Brianna, com três meses de idade, deitada de costas, gritando a plenos pulmões. Eu estava tão zonza de sono que levei algum tempo para perceber que eu a havia deixado de barriga para baixo.

— Querida! Você se virou! Sozinha! — Aterrorizada por seu ato audacioso, Brianna brandiu seus pequeninos punhos e berrou ainda mais alto, os olhos cerrados com força.

Peguei-a nos braços, dando uns tapinhas tranqüilizadores em suas costas e sussurrando palavras de conforto no topo de sua cabecinha coberta de penugem ruiva.

— Ah, queridinha! Que menina inteligente você é!

— O que foi? O que aconteceu? — Frank emergiu do banheiro, enxugando a cabeça, uma segunda toalha enrolada em torno dos quadris. — Aconteceu alguma coisa com Brianna?

Aproximou-se de nós, preocupado. A medida que o nascimento se aproximava, nós dois ficamos tensos; Frank irritadiço e eu mesma aterrorizada, sem a menor idéia do que poderia acontecer conosco com a chegada do filho de Jamie Fraser. Mas quando a enfermeira pegou Brianna em seu berço e entregou-a a Frank, com as palavras ”Aqui está o papai da garotinha”, seu rosto ficou lívido e, em seguida, olhando para o rostinho minúsculo, perfeito como um botão de rosa,-enterneceu-se. Em uma semana, se apaixonara por ela, de corpo e alma. Virei-me para ele, sorrindo.

— Ela se virou no berço! Sozinha!

- É mesmo? - Seu rosto recém-barbeado iluminou-se de prazer. — Ainda não é cedo demais para ela fazer isso?

— É, sim. O dr. Spock diz que ela só conseguiria daqui a um mês, no mínimo!

— Bem, o que o dr. Spock sabe? Venha cá, princesa. Dê um beijo no papai por ser tão precoce. — Ele ergueu o corpinho macio, enrolado em seu aconchegante macacão rosa de dormir, e beijou a ponta do narizinho. Brianna espirrou e nós dois rimos.

Parei naquele momento, repentinamente ciente de que era a primeira vez que eu ria em quase um ano. Mais ainda que era a primeira vez que eu ria com Frank.

Ele também percebeu isso; seus olhos encontraram os meus por cima da cabeça de Brianna. Eram de um suave tom castanho-claro e, no momento, estavam cheios de ternura. Sorri para ele, um pouco trêmula, e agora plenamente consciente de que ele estava nu, gotas de água deslizando pelos seus ombros rijos e brilhando na pele morena e lisa de seu peito.

O cheiro de queimado atingiu-nos simultaneamente, arrancando-nos daquela cena de felicidade doméstica.

- O café! - Atirando Bri sem a menor cerimônia em meus braços, Frank partiu como um raio em direção à cozinha, deixando as duas toalhas num monte a meus pés. Sorrindo diante da visão de suas nádegas nuas, brilhando de uma maneira inadequadamente branca enquanto ele corria para a cozinha, segui-o mais devagar, segurando Bri junto ao ombro.

Ele estava parado junto à pia, nu, em meio a uma nuvem de vapor malcheiroso que se erguia da cafeteira queimada.

— Que tal um chá? —perguntei, apoiando Brianna habilmente no quadril com um dos braços, enquanto remexia no armário. — Receio que não tenha sobrado nenhum orange pekoe, só saquinhos de chá Lipton.

Frank fez uma careta; inglês até a alma, ele preferia beber água do vaso sanitário do que tomar chá de saquinho. O Lipton fora deixado pela sra. Grossman, a faxineira que vinha uma vez por semana, que achava que o chá feito de folhas soltas fazia sujeira e era repugnante.

— Não, tomarei uma xícara de café a caminho da universidade. Ah, por falar nisso, lembra-se de que vamos receber o decano e sua mulher para jantar esta noite? A sra. Hinchcliffe vai trazer um presente para Brianna.

— Ah, certo — eu disse, sem entusiasmo. Já me encontrara com os Hinchcliffe antes e não estava ansiosa para repetir a experiência. Ainda assim, era preciso fazer o esforço. Com um suspiro mental, mudei o bebê para o outro lado e tateei dentro da gaveta à cata de um lápis para fazer uma lista de mantimentos.

Brianna começou a escarafunchar a frente do meu robe de chenille vermelho, fazendo vorazes barulhos guturais.

- Você não pode estar com fome outra vez — eu disse para o topo de sua cabeça. — Não faz nem duas horas que você mamou. — Mas meus seios começaram a vazar em reação aos seus movimentos e eu já estava me sentando e abrindo a frente do meu robe.

— A sra. Hinchcliffe disse que um bebê não deve ser alimentado toda vez que chora — Frank observou. - Ficam mal acostumados se não respeitarem os horários.

Não era a primeira vez que eu ouvia a opinião da sra. Hinchcliffe sobre criação de bebês.

— Então ela vai ficar mimada, hein? — eu disse friamente, sem olhar para ele. A boquinha rósea agarrou-se ferozmente ao seio e Brianna começou a sugar com um apetite voraz. Eu também sabia que a sra. Hinchcliffe também considerava a amamentação vulgar e pouco higiênica. Eu, que vira inúmeros bebês do século XVIII sendo alegremente amamentados no peito de suas mães, não concordava.

Frank suspirou, mas não disse mais nada. Após um instante, ele colocou o descanso do bule sobre a mesa e dirigiu-se para a porta.

— Bem - disse, um pouco sem jeito. - Vejo-a por volta das seis, certo? Devo trazer alguma coisa, para que você não tenha que sair?

Dirigi-lhe um breve sorriso e disse:

- Não, darei um jeito.

— Ah, muito bem. — Hesitou por um instante, enquanto eu ajeitava Bri mais confortavelmente no colo, a cabeça descansando na dobra do meu braço, a curva de sua cabeça reproduzindo a curva do meu seio. Ergui os olhos além do bebê e o vi observando-me atentamente, os olhos fixos na intumescência do meu seio exposto.

Meus próprios olhos desceram pelo seu corpo. Vi o começo de sua excitação e abaixei a cabeça sobre a criança, para esconder o rubor no meu rosto.

— Até logo — murmurei, para o topo da cabeça do bebê.

Ele ficou parado por um instante, depois se inclinou para a frente e beijoume rápido no rosto, o calor de seu corpo nu perturbadoramente perto.

— Até logo, Claire — ele disse ternamente. — Nos vemos à noite.

Ele não retornou à cozinha antes de sair, de modo que tive a oportunidade de terminar de amamentar Brianna e dar uma aparência de normalidade aos meus sentimentos.

Eu não vira Frank nu desde a minha volta; ele sempre se vestia no banheiro ou no closet. Nem ele tentara me beijar antes do cauteloso beijo desta manhã. A gravidez fora considerada ”de alto risco” pelo obstetra e não houve sequer a hipótese de Frank compartilhar minha cama, ainda que eu estivesse disposta — o que não estava.

Eu devia ter previsto que isso iria acontecer, mas não previra. Absorvida primeiro no próprio infortúnio, depois no torpor físico da maternidade iminente, eu afastara quaisquer considerações que não dissessem respeito à minha barriga cada vez mais volumosa. Após o nascimento de Brianna, eu vivia de uma mamada à outra, buscando breves momentos de paz e despreocupação, quando podia segurar seu corpo adormecido bem junto ao meu e encontrar alívio dos pensamentos e das lembranças no prazer puramente sensual de tocá-la e abraçá-la.

Frank, também, embalava a criança e brincava com ela, adormecendo em sua enorme poltrona com ela estendida sobre seu corpo longo e esbelto, o rostinho rosado pressionado contra seu peito, enquanto roncavam em uníssono, numa tranqüila camaradagem. No entanto nós dois não nos tocávamos, nem realmente conversávamos sobre nada além de nossos arranjos domésticos básicos

- exceto Brianna.

A criança era nosso foco mútuo; um elo através do qual podíamos imediatamente alcançar um ao outro e nos mantermos fisicamente próximos. Tudo indicava que essa proximidade já não era suficiente para Frank.

Eu podia fazê-lo —fisicamente, ao menos. Eu fizera um exame completo na semana anterior e o médico - com uma piscadela e um tapinha no meu traseiro — assegurou-me que eu podia retomar as ”relações” com meu marido quando quisesse.

Eu sabia que Frank não se tornara um celibatário depois do meu desaparecimento. Tinha quarenta e poucos anos, ainda era esbelto e musculoso, moreno e insinuante, um homem muito bonito. As mulheres aglomeravam-se ao seu redor nos coquetéis como abelhas em volta de um pote de mel, emitindo pequenos zumbidos de excitação.

Houve uma jovem de cabelos castanhos em particular que eu notei na festa do departamento; ela ficou parada no canto, fitando Frank melancolicamente por cima de seu drinque. Mais tarde, ficou bêbada e tornou-se chorosa e incoerente. Foi escoltada para casa por duas amigas, que se revezavam lançando olhares malignos para mim e Frank, parada a seu lado, silenciosamente volumosa em meu vestido de gravidez estampado.

Mas ele fora discreto. Sempre passava as noites em casa e tinha o cuidado de não apresentar manchas de batom no colarinho. Então ele agora pretendia voltar para casa por completo. Suponho que tivesse algum direito a esperar por isso; não era um dever conjugal e eu não era de novo sua mulher?

Havia apenas um pequeno problema. Não era Frank quem eu desejava, na calada da noite, acordada. Não era seu corpo liso e delgado que povoava meus sonhos e me excitava, fazendo-me acordar molhada e arquejante, o coração disparado com a sensação relembrada. Mas eu jamais voltaria a tocar aquele homem outra vez.

—Jamie — murmurei. - Ah, Jamie. — Minhas lágrimas cintilaram na luz da manhã, adornando a penugem macia e ruiva de Brianna como pérolas e diamantes derramados.

Não foi um bom dia. Brianna teve uma séria assadura das fraldas, o que a deixou irritada e mal-humorada, tendo que ser apanhada no colo a intervalos de poucos minutos. Ela mamava e criava confusão alternadamente, parando de vez em quando para soltar golfadas, produzindo manchas molhadas e gosmentas em tudo que eu estivesse usando. Mudei de blusa três vezes antes das onze horas.

O pesado sutiã de amamentação que eu usava atritava e irritava minha pele embaixo dos braços e meus mamilos estavam frios e rachados. Enquanto me esforçava para arrumar a casa, ouvi um resfolegar alto sob as tábuas do assoalho e depois um som agudo, em seguida o registro de ar quente morreu com um débil suspiro.

— Não, semana que vem não dá — eu disse pelo telefone à loja de consertos de fornalha. Olhei para a janela, onde a fria neblina de fevereiro ameaçava se infiltrar por baixo do parapeito e nos engolfar. — Está fazendo cinco graus e eu tenho um bebê de três meses!

O bebê em questão estava sentado em sua cadeirinha, enrolado em todos os seus cobertores, berrando como um gato escaldado. Ignorando a tagarelíce da pessoa no outro lado da linha, segurei o receptor junto a boca escancarada de Brianna por vários segundos.

— Ouviu? — perguntei, levando o telefone ao meu ouvido outra vez.

— Está bem, madame — disse uma voz resignada do outro lado. — Irei aí hoje à tarde, entre o meio-dia e seis horas.

— Meio-dia e seis horas? Não pode ser um pouco mais preciso? Tenho que sair para ir ao mercado — protestei.

— A sua não é a única fornalha enguiçada na cidade, madame - disse a voz com determinação, e desligou. Olhei o relógio; onze e meia. Eu jamais conseguiria fazer as compras no mercado e estar de volta em meia hora. Ir ao mercado com uma criança pequena era mais uma expedição de noventa minutos às selvas de Bornéu, exigindo muita parafernália e excessivos gastos de energia.

Rangendo os dentes, telefonei para um mercado mais caro, mas que entregava em domicílio, pedi o que precisava para o jantar e peguei o bebê, que a essa altura já estava da cor de uma berinjela e perceptivelmente fedorento.

— Credo, querida! Você vai se sentir muito melhor se tirarmos isso, não é? — eu disse, tentando tranqüilizá-la enquanto limpava a sujeira marrom do traseiro vermelho-rubi de Brianna. Ela arqueava as costas, tentando escapar do pano úmido e grudento, e berrava ainda mais. Uma camada de vaselina e a décima fralda limpa do dia, o caminhão do serviço de fraldas só viria amanhã e a casa cheirava a amônia.

— Está bem, benzinho, vamos, vamos — Ergui o bebê, coloquei-o no ombro, batendo de leve para acalmá-la, mas a gritaria continuou sem cessar. Não que eu pudesse culpá-la, seu pobre traseiro estava quase em carne viva. O ideal seria deixá-la ficar numa toalha, sem fralda, mas sem aquecimento na casa, isso não era possível. Tanto ela quanto eu usávamos suéteres e pesados casacos de inverno, o que tornava as freqüentes mamadas um transtorno maior do que o habitual, descobrir um seio podia levar vários minutos, enquanto o bebê gritava.

Brianna não conseguia dormir por mais de dez minutos de cada vez. Conseqüentemente, eu também não. Quando nós duas finalmente cochilamos às quatro horas, fomos acordadas em quinze minutos pela barulhenta chegada do consertador da fornalha, que batia na porta com toda a força, sem se incomodar em largar a enorme chave inglesa que segurava.

Sacudindo o bebê contra o ombro com uma das mãos, comecei a preparar o jantar com a outra, ao acompanhamento de berros no meu ouvido e os sons de violência no porão.

- Não vou lhe prometer nada, madame, mas por enquanto já tem o aquecimento de volta — O sujeito da fornalha surgiu repentinamente, limpando uma mancha de graxa da testa enrugada. Inclinou-se para a frente para inspecionar Brianna, que estava deitada mais ou menos tranqüila em meu ombro, chupando sonoramente o polegar

— Que tal o gosto deste dedo, doçura? — perguntou — Dizem que não se deve permitir que a criança chupe o dedo, sabe? — ele me informou, endireitando-se — Ficam dentuças e depois têm que usar aparelho

— É mesmo? — eu disse entre dentes — Quanto eu lhe devo?

Meia hora depois, o frango estava na panela, recheado e costurado, cercado de alho amassado, rammhos de alecrim e rodelas de casca de limão. Uma rápida espremida de limão por cima da pele untada de manteiga e eu poderia enfiálo no forno, e eu e Brianna poderíamos nos aprontar. A cozinha parecia ter sido arrombada, tinha os armários abertos e a louça espalhada em todas as superfícies planas. Bati algumas portas de armários e depois a própria porta da cozinha, confiando que isso manteria a sra Hinchcliffe longe dela, ainda que as boas maneiras não afizessem.

Frank trouxera um vestido novo, cor-de-rosa, para Brianna usar. Era um lindo vestido, mas olhei com suspeita as camadas de renda em volta do pescoço. Pareciam não só causar coceira, como também pareciam muito delicadas

— Bem, vamos experimentar — eu lhe disse. — Papai vai ficar contente de vê-la arrumada. Vamos tentar não cuspir nele, está bem?

Brianna respondeu fechando os olhos, retesando o corpo e grunhindo, enquanto expelia mais fezes.

— Ah, belo trabalho! — eu disse, sinceramente. Significava trocar os lençóis do berço, mas ao menos não iria piorar a assadura. Uma vez limpa a sujeira e uma nova fralda no lugar, sacudi o vestido cor-de-rosa e parei para cuidadosamente limpar o muco do nariz e a baba do rosto antes de enfiar o vestido pela sua cabeça. Ela pestanejou para mim e gorgolejou sedutoramente, girando os punhos no ar.

Obedientemente, abaixei a cabeça e fiz ”Pffffi!”, dentro de seu umbigo, o que afez contorcer-se de alegria. Repetimos a brincadeira mais algumas vezes, depois começamos a difícil tarefa de entrar no vestido cor-de-rosa.

Brianna não gostou; começou a queixar-se quando enfiei o vestido por sua cabeça e, quando passei seus bracinhos gorduchos pelas mangas fofas, lançou a cabeça para trás e soltou um grito lancinante.

— O que foi? — perguntei, espantada. Eu já conhecia todos os seus choros a esta altura e em grande parte o que queria dizer com cada um deles, mas este era novo, cheio de medo e dor. — O que foi, querida?

Ela berrava furiosamente agora, as lágrimas rolando pelo rosto. Virei-a freneticamente de bruços e dei uns tapinhas em suas costas, achando que ela podia ter tido um ataque súbito de cólica, mas ela não estava dobrando-se ao meio. Ela debatia-se violentamente, e quando a desvirei para pegá-la no colo, vi o longo risco vermelho que corria pela delicada parte interna de seu braço agitado. Um alfinete fora deixado no vestido e arranhara seu braço quando enfiei a manga.

— Ah, neném! Ah, me desculpe! Mamãe sente muito! — As lágrimas corriam pelo meu próprio rosto quando removi com cuidado o alfinete.

Aconcheguei-a no meu ombro, batendo de leve em suas costas e balbuciando palavras de consolo, tentando acalmar meus próprios sentimentos de pânico e culpa. É claro que eu não a feri intencionalmente, mas ela não sabia disso.

— Ah, querida — murmurei. — Está tudo bem agora. Sim, mamãe a ama, está tudo bem. — Por que eu não pensara em verificar se havia algum alfinete na roupa? Na verdade, que tipo de maníaco embalaria roupas de bebê com alfinetes? Dilacerada entre a fúria e a agonia, vesti Brianna na roupa, limpei seu queixo e levei-a para o quarto, onde a coloquei em minha cama de solteira enquanto apressadamente mudava de roupa, vestindo uma saia apresentável e uma blusa lavada e passada.

A campainha da porta tocou quando eu calçava as meias de seda. Havia um buraco em um dos calcanhares, mas não havia nada que eu pudesse fazer agora. Enfiei os pés nas incômodas sapatilhas de pele de crocodilo, peguei Brianna no colo e fui atender a porta.

Era Frank, carregado demais de pacotes para usar a chave. Com uma das mãos, peguei a maior parte dos seus pacotes e coloquei-os na mesa do vestíbulo.

— Está tudo pronto para o jantar, querida? Trouxe uma toalha nova com guardanapos, achei que a nossa estava um pouco surrada. E o vinho, é claro. — Ergueu a garrafa na mão, sorrindo, depois inclinou-se para examinar-me e parou de sorrir. Olhou com ar de desaprovação dos meus cabelos desgrenhados para a minha blusa, que acabara de ser manchada com uma nova golfada de leite.

— Nossa, Claire — ele disse. — Não podia ter se arrumado um pouco? Quero dizer, você não tem mais nada afazer, em casa o dia todo... não podia gastar uns minutos para...

— Não — eu disse, a voz alterada. Empurrei Brianna, que berrava outra vez com irritada exaustão, em seus braços.

— Não — repeti, arrancando a garrafa de vinho de sua mão, que não ofereceu resistência.

— NÃO!—gritei, batendo o pé. Girei a garrafa com um movimento amplo e ele esquivou-se, mas o que eu atingi foi a maçaneta da porta. Respingos de cor púrpura de Beaujolais voaram pela pequena varanda, deixando cacos de vidro brilhando à luz da entrada.

Atirei a garrafa estilhaçada no meio das azaléias e saí correndo pela calçada, sem casaco, na neblina gélida. No fim da calçada, passei pelos assustados Hinchcliffe, que estavam chegando meia hora mais cedo, provavelmente na esperança de me flagrar em alguma falha doméstica. Esperava que aproveitassem o jantar.

Dirigi sem rumo pelo nevoeiro, o sistema de aquecimento do carro soprando ruidosamente em meus pés, até começar a ficar sem gasolina. Não voltaria para casa; ainda não. Um café aberto a noite toda? Então lembrei-me de que era noite de sexta-feira, perto da meia-noite. Havia um lugar para onde eu podia ir, afinal. Voltei para o subúrbio onde morávamos, para a igreja de St. Finbar.

A essa hora, a capela estava trancada para evitar roubos e vandalismo. Para os fiéis noturnos, havia uma tranca que funcionava com um teclado numérico, logo abaixo da maçaneta da porta. Cinco botões, numerados de um a cinco. Apertando três deles, na combinação adequada, a trava soltava-se para permitir a entrada legítima.

Caminhei silenciosamente pelos fundos da capela, até o livro de registros que ficava aos pés da imagem de são Finbar, para registrar minha presença.

— São Finbar? - Frank dissera, incrédulo. - Não existe esse santo. Não pode existir.

— Existe — eu disse, com uma ponta de orgulho. — Um bispo irlandês, do século XII.

- Ah, irlandês — Frank disse com desprezo. — Isso explica. Mas o que não consigo entender— ele disse, com cuidado para ser diplomático — é, ha, bem... por quê?

— Por que o quê?

— Por que entrar nesse negócio de Adoração Perpétua? Você nunca foi nem um pouco devota, não mais do que eu. E você não vai à missa nem nada; o padre Beggs me pergunta toda semana onde você está.

Sacudi a cabeça.

— Não sei realmente por quê, Frank. É algo... que eu preciso fazer. — Olhei para ele, incapaz de explicar adequadamente. — É que lá... é tranqüilo — eu disse finalmente.

Ele abriu a boca como se fosse dizer mais alguma coisa, depois se virou, sacudindo a cabeça.

Era realmente tranqüilo. O estacionamento da igreja estava deserto, a não ser por um único carro, do adorador de plantão, brilhando anonimamente em preto sob os postes de luz. No interior, assinei meu nome no livro de registros e caminhei para frente, tossindo educadamente para avisar o adorador da minha presença, sem a indelicadeza do discurso direto. Ajoelhei-me atrás dele, um homem corpulento com um casaco impermeável amarelo. Após alguns instantes, ele se levantou, fez uma genuflexão diante do altar, virou-se e dirigiu-se para a porta, cumprimentando-me com um breve sinal da cabeça ao passar por mim.

A porta fechou-se com um som sibilante e eu fiquei sozinha, exceto pelo Sacramento exibido no altar, no majestoso ostensório de ouro na figura do sol e seus raios. Havia duas velas no altar, grandes. Lisas e brancas, queimavam firmemente no ar parado, sem tremeluzir. Fechei os olhos por um instante, apenas ouvindo o silêncio.

Tudo que acontecera durante o dia girou em minha mente num redemoinho de pensamentos e sentimentos desarticulados. Sem casaco, eu tremia de frio da curta caminhada para atravessar o estacionamento, mas aos poucos aquecime outra vez e minhas mãos, até então tensas, relaxaram-se no meu colo.

Finalmente, como sempre acontecia quando eu estava ali, parei de pensar. Se era a parada do tempo na presença da eternidade ou apenas o triunfo de uma extenuante fadiga, eu não sabia. Mas a culpa em relação a Frank abrandou-se, o dilacerante sentimento de pesar porjamie arrefeceu e até mesmo as constantes exigências da maternidade sobre minhas emoções recuaram ao nível de ruído de fundo, mais baixo do que as batidas do meu próprio coração, regular e reconfortante na paz escura da capela.

— Ah, Senhor - murmurei —, confio à Sua misericórdia a alma de Seu servo James. — E a minha, acrescentei silenciosamente. E a minha.

Permaneci sentada ali sem me mover, observando o brilho trêmulo das chamas das velas na superfície dourada do ostensório, até que o suave som dos passos do adorador seguinte desceu a nave atrás de mim, terminando no pesado rangido da genuflexão. Eles vinham a cada hora, dia e noite. O Sagrado Sacramento nunca era deixado sozinho.

Fiquei mais alguns minutos, depois saí discretamente do banco, com meu próprio sinal da cabeça em direção ao altar. Quando caminhava em direção aos fundos da capela, vi uma figura na fileira de trás, sob a sombra da imagem de Santo Antônio. Ela moveu-se quando me aproximei, em seguida o homem levantou-se e veio ao meu encontro na nave.

- O que está fazendo aqui? — perguntei num sussurro.

Frank balançou a cabeça na direção da figura do novo adorador, já se ajoelhando em contemplação, e segurou meu cotovelo para conduzir-me para fora.

Esperei até a porta da capela fechar-se atrás de nós e então libertei-me de sua mão e girei nos calcanhares para confrontá-lo.

- O que é isso? - perguntei com raiva. — Por que veio atrás de mim?

— Estava preocupado com você. — Fez um gesto na direção do estacionamento vazio, onde seu grande Buick aninhava-se protetoramente ao lado do meu pequeno Ford. — É perigoso, uma mulher sozinha andando por aí tarde da noite nesta parte da cidade. Vim para levá-la para casa. Só isso.

Não mencionou os Hinchcliffe nem o jantar. Meu aborrecimento diminuiu um pouco.

— Ah — exclamei. — O que fez com Brianna?

— Pedi à vizinha do lado, a sra. Munsing, para ficar atenta para o caso de ela chorar. Mas ela parecia dormir profundamente; achei que não havia muita chance. Vamos embora, está frio aqui fora.

Estava; o ar gélido que vinha da baía enroscava-se em anéis brancos em torno dos postes de luz e eu estremeci em minha blusa fina.

— Encontro-o em casa, então — eu disse.

O calor do quarto de bebê envolveu-me quando entrei para ver Brianna. Ela ainda dormia, mas debatia-se num sono agitado, virando a cabecinha ruiva de um lado para o outro, a boca pequenina abrindo-se e fechando-se como a respiração de um peixe.

— Ela está ficando com fome - sussurrei para Frank, que entrara atrás de mim e pairava acima do meu ombro, espreitando amorosamente o bebê. — É melhor alimentá-la antes de ir me deitar; assim, ela dormirá até mais tarde de manhã.

— Vou trazer uma bebida quente para você — ele disse, desaparecendo pela porta em direção à cozinha enquanto eu pegava no colo a trouxinha quente e sonolenta.

Ela esvaziara apenas um dos seios, mas já estava satisfeita. A boca frouxa foi largando o mamilo lentamente, cingida de leite, e a cabecinha ruiva deixou-se afundar pesadamente em meu braço. Nenhuma sacudida delicada ou palavra sussurrada foi capaz de acordá-la para mamar no outro lado. Por fim, desisti e ajeitei-a novamente no berço, batendo de leve em suas costas até que um arroto fraco e satisfeito ergueu-se do travesseiro, seguido da respiração pesada da saciedade absoluta.

— Pronta para passar a noite, não? — Frank puxou o cobertor do bebê, decorado com coelhos amarelos, cobrindo-a.

— Sim. — Recostei-me em minha cadeira de balanço, demasiado cansada física e mentalmente para me levantar outra vez. Frank aproximou-se por trás de mim; pousou a mão de leve sobre meu ombro.

— Ele está morto, então? — perguntou delicadamente.

Eu já lhe disse, comecei a dizer. Depois, parei, fechei a boca e apenas assenti com um movimento da cabeça, balançando a cadeira de leve, fitando o berço escuro e seu minúsculo ocupante.

Meu seio direito ainda estava doloridamente inchado de leite. Por mais cansada que eu tivesse, não poderia dormir enquanto não cuidasse disso. Com um suspiro de resignação, peguei a bombinha de sucção, um dispositivo de borracha desajeitado e ridículo. Usá-lo era inconveniente e desconfortável. Mas melhor do que acordar dentro de uma hora com uma dor explosiva, encharcada de leite.

Sacudi a mão para Frank, mandando-o embora.

— Pode ir. Só vou levar uns minutos, mas tenho que...

Em vez de sair ou responder, ele tomou a bombinha da minha mão e colocou-a sobre a mesa. Como se tivesse vontade própria, sem obedecer a ele, sua mão ergueu-se lentamente pelo ar escuro e quente do quarto e envolveu delicadamente a curva inchada do meu seio.

Sua cabeça inclinou-se e seus lábios fecharam-se suavemente sobre meu mamilo. Gemi, sentindo a dolorida ferroada do leite correndo pelos minúsculos canais. Coloquei a mão em sua nuca e pressionei-o ligeiramente contra mim.

— Com mais força — murmurei. Sua boca era macia, suave em sua pressão, em nada semelhante à voracidade implacável das gengivas duras e desdentadas do bebê, que se agarram com sofreguidão, ansiosas e exigentes, liberando a fonte generosa imediatamente, em resposta à sua avidez.

Frank ajoelhou-se diante de mim, a boca suplicante. Seria assim que Deus se sentia, imaginei, vendo os adoradores diante Dele - Ele, também, se encheria de ternura e compaixão? A névoa de fadiga me fazia sentir como se tudo acontecesse em câmera lenta, como se estivéssemos submersos em água. As mãos de Frank moviam-se devagar como plantas marinhas, oscilando nas correntes, movendo-se pelo meu corpo com um toque tão suave como o roçar de algas, erguendo-me com a força de uma onda e deitando-me na praia do tapete do quarto. Fechei os olhos e deixei que a maré me levasse.

A porta da frente da residência paroquial abriu-se com um rangido de dobradiças enferrujadas, anunciando o retorno de Brianna Randall. Roger levantou-se imediatamente e dirigiu-se ao vestíbulo, atraído por vozes femininas.

- Meio quilo da melhor manteiga, foi o que você mandou pedir, e foi o que fiz, mas fiquei imaginando se existiria manteiga de segunda, ou manteiga péssima... — Brianna entregava pacotes a Fiona, rindo e falando ao mesmo tempo.

- Bem, se você comprar na loja daquele velho patife Wicklow, é bem provável que seja péssima, independentemente do que ele diga - Fiona interrompeu. — Ah, e você comprou canela, ótimo! Vou fazer pãezinhos de canela, então; quer vir ver como eu os preparo?

- Sim, mas primeiro quero jantar. Estou faminta! - Brianna ficou na ponta dos pés, cheirando o ar esperançosamente na direção da cozinha. — O que vamos comer... aquele prato escocês de miúdos de carneiro., haggis?

- Haggis1 Santa Mãe de Deus, Sassenach tola! Não se come haggis na primavera! Só no outono, quando os carneiros são abatidos.

- Eu sou uma Sassenach? — Brianna pareceu encantada com o termo.

— Claro que é, boba. Mas gosto de você assim mesmo.

Fiona ergueu o rosto risonho para Brianna, que ultrapassava a pequenajovem escocesa em quase trinta centímetros. Fiona tinha dezenove anos, era graciosa e ligeiramente rechonchuda; a seu lado, Brianna parecia uma escultura medieval, severa e de ossos largos. Com seu nariz longo e reto, e os cabelos compridos brilhando em vermelho e dourado sob a clarabóia no teto do vestíbulo, parecia saída de uma obra de iluminura, suficientemente vívida para durar mil anos sem se alterar.

Roger percebeu repentinamente a presença de Claire Randall junto a seu cotovelo. Ela fitava sua filha, com uma expressão onde se misturavam amor, orgulho e mais alguma coisa — lembrança, talvez? Compreendeu, com um leve choque, que Jaime Fraser, também, devia ter tido não só uma altura impressionante e os cabelos ruivos de um viking herdados por sua filha, mas provavelmente a mesma marcante presença física.

Era de fato notável, ele pensou. Ela não dizia nem fazia nada fora do comum, mas ainda assim Brianna inegavelmente chamava a atenção das pessoas. Ela possuía um fascínio, quase magnético, que atraía todo mundo para o brilho ao seu redor.

Atraiu-o; Brianna virou-se e sorriu para ele, e sem perceber que havia se deslocado, viu-se perto dela o suficiente para notar as sardas bem claras no alto das maçãs do rosto e sentir o leve sopro de tabaco de cachimbo que permaneceu em seus cabelos de suas andanças pelas lojas.

- Olá - ele disse, sorrindo. - Teve alguma sorte com o escritório dos clãs ou esteve ocupada demais bancando a faz-tudo de Fiona?

- Faz-tudo? - Brianna achou graça, os olhos puxados e azuis arregalando-se. — Faz-tudo? Primeiro, sou uma Sassenach, e agora uma faz-tudo. De que vocês escoceses chamam as pessoas quando estão querendo ser gentis?

— Querrrrrida — ele disse, rolando o erre exageradamente e fazendo as duas jovens rirem.

— Você soa como um Aberdeen terrier de mau humor — Claire observou.

- Encontrou alguma coisa na biblioteca dos clãs das Highlands, Bri?

— Um monte de coisas — Brianna respondeu, remexendo na pilha de fotocópias que colocara na mesa do vestíbulo. - Consegui ler quase tudo enquanto tiravam as cópias... este aqui foi o mais interessante. — Puxou uma folha de papel da pilha e entregou-a a Roger.

Era um trecho de um livro sobre lendas das Highlands. Um dos títulos era ”Salto do Barril”.

- Lendas? - Claire disse, espreitando por cima do ombro de Roger. É isso mesmo que queremos?

- Talvez. - Roger examinava a folha e falou absortamente, a atenção dividida. — No que diz respeito às Highlands escocesas, a maior parte da história é oral, até meados do século XIX, mais ou menos. Isso significa que não havia muita distinção entre histórias sobre pessoas reais, figuras históricas e personagens míticas, como fantasmas, monstros aquáticos e as façanhas do Povo Antigo. Os estudiosos que registravam as histórias em geral não sabiam ao certo com o que estavam lidando. Às vezes, era uma mistura de mito e realidade, outras vezes era possível saber que se tratava de um fato histórico real.

”Este aqui, por exemplo”, ele passou a folha para Claire, ”parece real. Descreve a história que originou o nome de uma determinada formação rochosa em particular, nas Highlands.”

Claire ajeitou os cabelos atrás da orelha e abaixou a cabeça para ler, estreitando os olhos na luz turva que entrava pela clarabóia. Fiona, acostumada demais a papéis velhos e maçantes fragmentos históricos para se interessar, desapareceu de volta à sua cozinha para servir o jantar.

— Salto do Barril — Claire leu. — Esta formação inusitada, localizada a alguma distância acima de um riacho, recebeu este nome a partir da história de um senhor feudal jacobita e seu criado. O chefe de um clã, um dos poucos afortunados a escapar ao massacre de Culloden, conseguiu com muita dificuldade chegar à sua casa, mas foi obrigado a ficar escondido em uma caverna em suas terras por quase sete anos, enquanto os ingleses vasculhavam as Highlands à caça dos fugitivos partidários de Carlos Stuart. Os arrendatários desse senhor de terras lealmente mantiveram sua presença em segredo e levavam comida e suprimentos ao chefe em seu esconderijo. Tinham o cuidado de sempre se referirem a ele como ”Dunbonnet”, a fim de evitar qualquer possibilidade de revelar sua presença às patrulhas inglesas que com freqüência cruzavam a região.

”Certo dia, um garoto que levava um pequeno barril de cerveja pela trilha acima até a caverna do chefe do clã deparou-se com um grupo de soldados ingleses da Companhia dos Dragões. Corajosamente recusando-se a responder às perguntas dos soldados ou entregar seu fardo, o garoto foi atacado por um dos dragões e deixou cair o barril, que rolou pela íngreme colina abaixo, até o córrego lá embaixo.”

Ela levantou os olhos do papel, erguendo as sobrancelhas para sua filha.

- Por que esta? Nós sabemos... ou achamos que sabemos - ela corrigiu, com um irônico sinal da cabeça em direção a Roger - que Jamie escapou de Culloden, mas muitas outras pessoas também escaparam. Por que você acha que este senhor de terras poderia ter sido Jamie?

- Por causa da história do Dunbonnet, é claro - Brianna respondeu, como se estivesse surpresa por ela estar perguntando.

- O quê? — Roger olhou para ela, intrigado. - O que tem o Dunbonnet?

Em resposta, Brianna pegou uma mecha de seus espessos cabelos ruivos e sacudiu-a debaixo do nariz de Roger.

— Dunbonnet? — ela disse com impaciência — Significa um gorro marrom comum, certo? Ele usava um gorro o tempo todo, porque possuía cabelos que chamavam a atenção e podiam ser reconhecidos! Vocês não disseram que os ingleses o chamavam de ”Jamie, o Ruivo”? Eles sabiam que seus cabelos eram ruivos ele tinha que escondê-los!

Roger fitou-a, temporariamente mudo. Os cabelos de Brianna caíam, soltos, sobre os ombros, brilhando como a luz das chamas

- Você pode ter razão - Claire disse. A empolgação tornou seus olhos brilhantes ao olhar para sua filha. - Eram como os seus, os cabelos de Jamie eram iguais aos seus, Bri. — Estendeu a mão e acariciou delicadamente os cabelos de Brianna. O rosto da jovem enterneceu-se ao olhar para a mãe.

— Eu sei — ela disse — Eu estava pensando nisso enquanto lia... tentando ver, sabe? - Parou e limpou a garganta, como se algo a estivesse engasgando - Pude vê-lo, na charneca, escondendo-se, e o sol refletindo em seus cabelos. Você disse que ele havia sido um fora-da-lei; só... só pensei que ele devia saber muito bem., como se esconder. Se estavam querendo matá-lo - concluiu suavemente.

- Certo. - Roger disse vivamente, para dissipar a sombra nos olhos de Brianna. - Foi um belo trabalho de dedução, mas talvez possamos ter certeza com um pouco mais de investigação. Se pudermos encontrar o ”Salto do Barril” no mapa...

- Que espécie de idiota você acha que eu sou? - Brianna disse desdenhosamente. -Já pensei nisso. - A tristeza desapareceu, substituída por uma expressão presunçosa. - Foi por isso que demorei tanto; fiz o funcionário trazer todos os mapas das Highlands que possuíam. - Apanhou outra fotocópia da pilha e bateu o dedo triunfalmente perto da margem superior.

- Estão vendo? É tão pequeno que não aparece na maioria dos mapas, mas neste aparece. Aqui está a vila de Broch Mordha, que mamãe diz que fica próxima de Lallybroch, e ali. - Seu dedo moveu-se alguns milímetros, apontando para uma linha de impressão microscópica. - Estão vendo? - ela repetiu. - Ele voltou para sua propriedade, Lallybroch, e escondeu-se lá.

— Não tendo uma lupa à mão, vou aceitar sua palavra de que ali está escrito ”Salto do Barril” — Roger disse, aprumando-se. Exibiu um largo sorriso para Brianna. - Parabéns, então. Acho que você o encontrou... até aqui, pelo menos.

Brianna sorriu, os olhos desconfiados e brilhantes.

- Sim — disse suavemente. Tocou as duas folhas de papel delicadamente com o dedo. - Meu pai.

Claire apertou a mão de sua filha.

- Se você tem os cabelos de seu pai, é bom ver que tem a inteligência de sua mãe - ela disse, sorrindo. - Vamos comemorar sua descoberta com o jantar de Fiona.

- Excelente trabalho — Roger disse a Brianna, enquanto seguiam Claire em direção à sala de jantar. Sua mão descansou de leve em sua cintura. - Devia ficar orgulhosa de si mesma.

- Obrigada - ela disse, com um breve sorriso, mas a expressão pensativa retornou quase imediatamente à curva de sua boca.

- O que foi? - Roger perguntou delicadamente, parando no corredor. — Aconteceu alguma coisa?

- Não, na verdade, não. - Ela virou-se para encará-lo, uma pequena ruga visível entre as sobrancelhas ruivas. - É só que... eu estava pensando, tentando imaginar... como você acha que foi para ele? Viver numa caverna por sete anos? E o que aconteceu a ele depois?

Movido por um impulso, Roger inclinou-se para a frente e beijou-a de leve entre as sobrancelhas.

- Não sei, querida - ele disse. - Mas talvez a gente possa descobrir.

 

Ele descia até a casa uma vez por mês para se barbear, quando um dos garotos viesse lhe dizer que era seguro. Sempre à noite, movendo-se silenciosamente como uma raposa pela escuridão. Parecia necessário, de certa forma, um pequeno gesto em favor do conceito de civilização.

Ele deslizava como uma sombra pela porta da cozinha, era recebido pelo sorriso de Ian ou o beijo de sua irmã e sentia a transformação começar. A bacia de água quente estaria preparada e a navalha recém-afiada à sua espera em cima da mesa, com o que houvesse de sabão para barbear. De vez em quando, era sabonete de verdade, se o primo Jared tivesse mandado algum da França; mas em geral era apenas sebo transformado em sabão rústico, que fazia os olhos arderem com a solução alcalina desinfetante.

Ele podia sentir o começo da transformação com o primeiro cheiro da cozinha - tão forte e aromático, após os cheiros, diluídos pelo vento, de lago, charneca e floresta —, mas era somente depois de terminar o ritual da barba é que ele se sentia completamente humano outra vez.

Haviam aprendido a não esperar que ele falasse enquanto não terminasse de se barbear; as palavras brotavam com dificuldade, após um mês de solidão. Não que ele não tivesse nada a dizer; era apenas que as palavras dentro dele formavam uma obstrução em sua garganta, digladiando-se para sair no curto tempo de que ele dispunha. Ele precisava daqueles poucos minutos de meticulosos cuidados pessoais para separar e escolher o que ele iria dizer primeiro e para quem.

Havia notícias para ouvir e sobre as quais indagar — de patrulhas inglesas na região, de política, de prisões e julgamentos em Londres e Edimburgo. Essas podiam esperar. Era melhor conversar com Ian sobre as terras, com Jenny sobre as crianças. Se lhe parecesse seguro, as crianças eram trazidas de seus quartos para cumprimentar o tio, para lhe dar abraços sonolentos e beijos molhados antes de saírem cambaleando de volta para suas camas.

- Logo ele se tornará um homem - fora sua primeira escolha de conversa quando veio em setembro, com um sinal de cabeça na direção do filho mais velho de Jenny, seu xará. O menino de dez anos sentava-se à mesa com certo constrangimento, extremamente consciente da dignidade de sua posição temporária como homem da casa.

— Sim, tudo que eu preciso é de outra criatura com quem me preocupar - sua irmã retrucou com sarcasmo, mas tocou o ombro do filho ao passar, com um orgulho que contradizia suas palavras.

- Teve notícias de Ian? - Seu cunhado fora detido, pela quarta vez, há três semanas, e levado para Inverness sob suspeita de ser um simpatizante jacobita.

Jenny sacudiu a cabeça, trazendo uma travessa tampada e colocando-a diante dele. O cheiro quente e penetrante da torta de perdiz desprendeu-se da crosta perfurada e fez sua boca aguar de tal forma que teve que engolir a saliva antes de falar.

- Não há com que se preocupar -Jenny disse, servindo a torta em seu prato. Sua voz era calma, mas a pequena ruga entre as sobrancelhas aprofundou-se. - Enviei Fergus para mostrar-lhes o documento de transferência de propriedade e a dispensa de Ian de seu regimento. Eles vão mandálo de volta para casa outra vez, assim que virem que ele não é o senhor de Lallybroch e que nada ganharão infernizando-o. - Com um olhar para seu filho, estendeu o braço e pegou a jarra de cerveja. — Não têm a menor chance de provar que um menino pequeno seja um traidor.

Sua voz era sarcástica e amarga, mas revelava um tom de satisfação à idéia da perplexidade do tribunal inglês. O documento respingado de chuva que provava a transferência da propriedade de Lallybroch de James para seu sobrinho, o pequeno James, já fora apresentado à corte antes, a cada vez frustrando a tentativa da Coroa de confiscar as terras como a propriedade de um jacobita traidor.

Ele começava a senti-la se eclipsar quando ia embora - aquela fina camada de verniz de humanidade -, desaparecendo cada vez mais a cada passo com que se afastava da casa. As vezes, ele mantinha a ilusão de calor humano e familiar durante todo o caminho até a caverna onde se escondia; outras, ela desaparecia quase instantaneamente, arrancada por um vento frio, fétido e penetrante com o cheiro de queimado.

Os ingleses haviam queimado três sítios, do outro lado da encosta. Arrancaram Hugh Kirby e Geoff Murray de seus lares e os executaram junto à própria soleira de suas portas, sem nenhuma pergunta ou palavra de acusação formal. O jovem Joe Fraser conseguira escapar, avisado por sua mulher, que vira os ingleses se aproximando, e viveu três semanas com Jamie na caverna, até que os soldados estivessem bem longe da região - e Ian com eles.

Em outubro, foi com os garotos mais velhos que ele falou; Fergus, o menino francês que ele pegara em um bordel de Paris, e Rabbie MacNab, o filho da cozinheira e melhor amigo de Fergus.

Ele deslizou a navalha devagar por uma das faces e em torno do ângulo do maxilar, depois limpou a lâmina afiada na borda da bacia. Pelo canto de um dos olhos, percebeu um leve vislumbre de fascinada inveja no rosto de Rabbie MacNab. Virando-se ligeiramente, viu que os três garotos Rabbie, Fergus e o Jovem Jamie - observavam-no intensamente, a boca ligeiramente aberta.

- Nunca viram um homem se barbear antes? - ele perguntou, arqueando uma das sobrancelhas.

Rabbie e Fergus entreolharam-se, mas deixaram a cargo do Jovem Jamie, como dono honorário da propriedade, responder.

- Ah, bem... sim, tio - ele disse, ruborizando-se. - Mas... que-quero dizer...— gaguejou um pouco e ficou ainda mais vermelho —, já que meu pai não está aqui, e mesmo quando ele está em casa, não o vemos se barbear sempre. E depois, você tem tanto pêlo no rosto, tio, depois de um mês inteiro, e também estamos tão contentes de vê-lo outra vez, e...

Jamie percebeu de repente que para os garotos ele devia parecer uma figura muito romântica. Morando sozinho em uma caverna, saindo no escuro para caçar, surgindo de dentro da neblina à noite, imundo e desgrenhado, a barba crescida, ruiva e selvagem — sim, na idade deles, era provável que ser um fora-da-lei e viver escondido na charneca, numa caverna acanhada e úmida, parecesse uma glamourosa aventura. Aos quinze, aos dezesseis e aos dez anos, não tinham nenhuma noção de culpa ou de amarga solidão, do peso de uma responsabilidade que não podia ser aliviado pela ação.

Deviam compreender o medo, de certa forma. Medo de ser capturado, medo da morte. Não o medo da solidão, de sua própria natureza, medo da loucura. Não o medo constante, crônico, do que sua presença poderia lhes causar - se chegavam a pensar nesse risco, o descartavam, com a descontraída presunção de imortalidade que era própria de rapazes.

— Bem, sim — ele disse, voltando-se novamente para o espelho, enquanto o Jovem Jamie parava seu discurso gaguejado. - O homem nasceu para a tristeza e os pêlos do rosto. Uma das pragas de Adão.

- De Adão? - Fergus mostrou-se francamente estarrecido, enquanto os outros tentavam fingir que sabiam do que Jamie estava falando. Quanto a Fergus, entretanto, sendo francês, não se esperava que soubesse tudo.

- Ah, sim. - Jamie esticou o lábio superior sobre os dentes e raspou cuidadosamente o bigode sob o nariz. — No começo, quando Deus fez o homem, o queixo de Adão era tão liso quanto o de Eva. E os corpos de ambos eram macios como o de um recém-nascido - acrescentou, vendo os olhos do Jovem Jamie moverem-se rápido para a forquilha de Rabbie. Rabbie ainda era imberbe, mas a leve penugem escura sobre o lábio superior indicava novos pêlos surgindo em outros lugares. — Mas quando o anjo com a espada de fogo os expulsou do Éden, tão logo eles atravessaram o portão do jardim, os pêlos começaram a crescer e coçar no queixo de Adão e, desde então, os homens foram amaldiçoados com a barba. — Terminou de barbear o próprio queixo com um floreio e inclinou-se de forma teatral para a sua platéia.

- Mas e os outros pêlos? - Rabbie quis saber. - Você não raspa lá? — O Jovem Jamie deu uma risadinha diante da idéia, ficando vermelho outra vez.

- Ainda bem que não - seu xará mais velho observou. - Iria precisar de mãos muito firmes. Mas não seria necessário um espelho - acrescentou, para um coro de risadinhas estridentes.

- E as mulheres? — Fergus disse. Sua voz alquebrou-se na palavra ”mulheres”, num coaxar de sapo-boi que fez os outros dois rirem mais alto. - Certamente lês filies têm pêlos lá também, mas não raspam... geralmente não, eu acho - acrescentou, obviamente pensando em algumas das visões de sua infância no bordel.

Jamie ouviu os passos de sua irmã descendo o corredor.

- Ah, bem, isso não é uma maldição - disse à sua platéia extasiada, pegando a bacia e arremessando o conteúdo com cuidado pela janela aberta. - Isso foi um presente de Deus para consolo dos homens. Se algum dia tiverem o privilégio de ver uma mulher pelada, cavalheiros — ele disse, olhando por cima do ombro em direção à porta e abaixando a voz em tom confidencial —, observarão que os pêlos lá crescem na forma de uma seta, apontando o caminho, sabe, para que um pobre homem ignorante possa encontrar o rumo de casa em segurança.

Afastou-se pomposamente dos risinhos e gargalhadas atrás dele, para se sentir de repente envergonhado ao ver a irmã, descendo o corredor com o passo lento e gingado da gravidez adiantada. Segurava a bandeja com seu jantar em cima de seu ventre proeminente. Como podia ter zombado dela daquela forma, por causa de um gracejo grosseiro e de um momento de camaradagem com os meninos?

- Quietos! - disse rispidamente aos garotos que logo pararam com as risadas e fitaram-no espantados. Ele adiantou-se rápido para pegar a bandeja de Jenny e colocá-la sobre a mesa.

Era uma iguaria feita de carne de cabrito e bacon e ele viu o proeminente pomo-de-adão de Fergus subir e descer na garganta com o aroma do prato. Ele sabia que guardavam o melhor da comida para ele; bastava ver os rostinhos macilentos do outro lado da mesa. Quando ele vinha, trazia toda caça que pudesse encontrar, coelhos e galinhas-do-mato capturados-em armadilhas, às vezes um ninho de ovos de maçaricos - mas nunca era suficiente, em uma casa onde a hospitalidade devia estender-se às necessidades não só da família e dos criados, mas às famílias de Kirby e Murray, executados na porta de suas casas pelos ingleses. Ao menos, até a primavera, as viúvas e filhos de seus rendeiros deviam ser amparados e ele tinha que fazer o melhor possível para alimentá-los.

- Sente-se aqui a meu lado - ele disse a Jenny, segurando seu braço e delicadamente conduzindo-a a um lugar a seu lado no banco. Ela pareceu surpresa, tinha o hábito de servi-lo quando ele vinha, mas sentou-se com prazer. Era tarde da noite e ela estava cansada; podia ver as olheiras sob seus olhos.

Com grande firmeza, cortou uma grossa fatia da torta e colocou o prato diante dela.

- Mas é tudo para você! —Jenny protestou. — Eu já comi.

- Não comeu o suficiente - ele disse. - Precisa de mais, para o bebê acrescentou, inspirado. Se não comesse por si própria, o faria pela criança. Ela hesitou mais algum tempo, mas depois sorriu, pegou a colher e começou a comer.

Agora era novembro e o frio penetrava pela camisa fina e pelas calças que ele vestia. Ele mal notava, absorto em sua caça. Estava nublado, mas com uma fina camada de céu azul-esverdeado, através da qual a lua cheia lançavva uma forte claridade.

Ainda bem que não chovia; era impossível ouvir através do tamborilar das gotas de chuva e o cheiro pungente de plantas molhadas mascarava o cheiro dos animais. Seu faro tornara-se quase dolorosamente gomado através dos longos meses de vida ao ar livre; os cheiros domésticos às vezes quase o derrubavam quando ele entrava em casa.

Ele não estava suficientemente perto para sentir o cheiro almiscarado do veado, mas ele ouviu o sussurro revelador de seu breve sobressalto quando ele sentiu seu cheiro. Agora, ele devia estar paralisado, uma das sombras que ondulavam pela encosta da colina ao seu redor, sob as nuvens fugidias.

Virou-se o mais devagar possível na direção do lugar onde seus ouvidos apontavam. Segurava o arco na mão, uma flecha pronta para o cordame do arco. Ele teria apenas um único arremesso — talvez — quando o veado saltasse, disparando em fuga.

Sim, lá estava ele! Seu coração saltou até a boca quando ele viu a galhada dos chifres, projetando-se pontiagudos e negros acima das tojeiras ao redor. Aprumou-se, respirou fundo e deu um único passo para a frente.

O barulho do salto de fuga de um veado era sempre assustadoramente alto, para amedrontar e desestimular o caçador. Mas este caçador estava preparado. Ele nem se assustou, nem perseguiu o animal, mas permaneceu firmemente onde estava, mirando ao longo do bastão da flecha, seguindo com o olho o trajeto do salto do veado, avaliando o melhor momento, retendo o disparo e, em seguida, a corda do arco bateu em seu pulso com uma aguilhoada.

Foi um disparo limpo, logo atrás do ombro, e isso era uma vantagem; duvidava que tivesse forças para perseguir um veado adulto. Ele caiu num lugar plano, atrás de uma touceira de tojo, as pernas espetadas para cima, rígidas como varas, na maneira estranhamente indefesa com que os animais de casco morriam. A lua de caçador iluminava seu olho que aos poucos se vitrificava, de modo que o olhar escuro e suave ocultava-se, o mistério da morte encoberto por um prateado vazio.

Ele retirou a adaga da cintura e ajoelhou-se ao lado do animal, apressadamente recitando a prece da estripação da caça. O velho John Murray, pai de Ian, a ensinara a ele. A boca de seu próprio pai torcera-se ligeiramente, ao ouvi-la, do que ele deduziu que esta prece talvez não fosse endereçada ao mesmo deus ao qual se dirigiam na igreja aos domingos. Mas seu pai não disse nada e ele próprio murmurara as palavras, mal percebendo o que dizia, na empolgação e nervosismo de sentir a mão do velho John, firme sobre a sua, pela primeira vez pressionando para baixo a lâmina da faca no couro peludo e na carne quente.

Agora, com a confiança da prática, ele apoiou o focinho pegajoso com uma das mãos e com a outra cortou a garganta do veado.

O sangue jorrou, quente, pela faca e pela mão, em dois ou três jatos, que se enfraqueceram e passaram a um fluxo contínuo, enquanto a carcaça se exauria, os grandes vasos sangüíneos da garganta talhados. Se ele tivesse parado para pensar, talvez não tivesse feito o que fez, mas a fome e a tontura, assim como a intoxicação do ar frio e fresco da noite haviam-no transportado para muito além do pensamento. Colocou as mãos em concha sob o fluxo e levou o líquido quente à boca.

A lua lançou um brilho turvo sobre suas mãos transbordantes e foi como se ele absorvesse a essência do veado, em vez de bebê-la. O gosto do sangue era salgado e metálico, e o calor era o seu próprio. Não houve nenhum choque de temperatura enquanto sorvia, apenas o gosto, luxuriante em sua boca, o inebriante cheiro de metal incandescente e a repentina contração, seguida de um ronco em sua barriga, diante da expectativa de comida.

Fechou os olhos e respirou fundo. O ar úmido e frio voltou, entre o odor quente da carcaça e seus sentidos. Engoliu uma vez, passou as costas da mão pelo rosto, limpou as mãos no capim e iniciou o trabalho que tinha pela frente.

Primeiro, o esforço brusco de mover a carcaça flácida e pesada, depois a retirada das vísceras, o longo golpe de força e delicadeza que cortava o couro entre as pernas, mas não perfurava o saco que envolvia as entranhas. Enfiou as mãos dentro da carcaça, uma intimidade úmida e quente, e novamente ouviu-se o barulho surdo do puxão que arrancou o saco das vísceras para fora, escorregadio e brilhante em suas mãos, sob o luar. Um talho em cima e outro embaixo, e a massa deslizou, livre, a metamorfose mágica que transformava um veado em alimento.

Era um veado pequeno, embora tivesse a galhada pontiaguda. Com sorte, poderia carregá-lo sozinho, em vez de deixá-lo à mercê de raposas e texugos até poder trazer ajuda para removê-lo dali. Enfiou o ombro sob uma das pernas do animal e levantou-se devagar, grunhindo com o esforço enquanto mudava o peso para uma posição firme e sólida em suas costas.

A luz lançava sua sombra em uma rocha, corcunda e fantasmagórica, enquanto ele prosseguia lenta e desajeitadamente pelo declive. A galhada do veado balançava-se acima de seu ombro, dando à sua silhueta a aparência de um homem com chifres. Estremeceu ligeiramente diante da idéia, lembrando-se das histórias das festas das bruxas, quando o Chifrudo aparecia, para beber o sangue do sacrifício de bodes ou galos.

Sentia-se um pouco enjoado e mais do que um pouco zonzo. Cada vez mais, sentia a desorientação, sua fragmentação entre o dia e a noite. Durante o dia, era uma criatura apenas do pensamento, fugindo de sua úmida imobilidade por um recolhimento disciplinado e obstinado para as avenidas do pensamento e da meditação, buscando refúgio nas páginas de livros. Mas com o nascer da lua, toda a razão desaparecia, sucumbindo imediatamente à sensação, quando ele emergia no ar puro e fresco como uma besta saída de sua toca, para correr pelas colinas escuras sob as estrelas e caçar, movido pela fome, bêbado de sangue e luar.

Fitava o solo enquanto caminhava, a visão noturna aguçada o suficiente para evitar que tropeçasse, apesar do fardo pesado. O veado estava lasso e cada vez mais frio, as cerdas macias roçavam em sua nuca e seu próprio suor esfriava na brisa, como se ele compartilhasse a sorte da caça.

Somente quando as luzes da mansão Lallybroch surgiram no campo de visão é que ele finalmente sentiu o manto da condição humana cair sobre ele. O corpo e a mente uniram-se outra vez, enquanto ele se preparava para reencontrar sua família.

 

Três semanas mais tarde, ainda não havia notícias da volta de Ian. Na verdade, nenhuma notícia de qualquer espécie. Fergus não vinha à caverna há vários dias, deixando Jamie aflito de preocupação sobre o que estaria acontecendo na casa. Além do mais, o veado que ele abatera já devia ter acabado há muito tempo, com todas as bocas extras para alimentar, e devia haver bem pouca couve no canteiro nesta época do ano.

Estava suficientemente preocupado para arriscar uma visita cedo, verificando suas armadilhas e descendo das colinas pouco antes do pôr-do-sol. Por precaução, teve o cuidado de colocar o gorro de lã, tricotado com um fio castanho rústico, que escondia seus cabelos de qualquer reflexo revelador dos últimos raios solares. Só o seu tamanho já poderia despertar suspeita, mas não certeza, e ele tinha plena confiança na força de suas pernas para levá-lo para longe do perigo, caso tivesse a má sorte de encontrar uma patrulha inglesa. Lebres nas urzes não eram páreo para Jamie Fraser, uma vez avisado.

A casa estava estranhamente silenciosa quando ele se aproximou. Não se via a algazarra de costume das crianças: os cinco de Jenny e os seis dos rendeiros, sem contar Fergus e Rabbie MacNab, que não se sentiam grandes demais para perseguirem um ao outro pelos estábulos, berrando como demônios.

A casa parecia estranhamente vazia ao seu redor, quando entrou e parou junto à porta da cozinha. Ficou ali na entrada, a despensa de um lado, a copa do outro e a cozinha principal em frente. Permaneceu imóvel, todos os sentidos aguçados, ouvindo enquanto sentia os cheiros dominantes da casa. Não, havia alguém ali; o leve som arrastado, seguido de um tinido baixo e regular vinha de trás da porta com almofadas de pano que impedia que o calor da cozinha vazasse para a fria despensa.

Era um som doméstico reconfortante, então empurrou a porta cautelosamente, mas sem um temor exagerado. Sua irmã, Jenny, sozinha e com o corpo enorme do final de gravidez, estava de pé junto à mesa, mexendo alguma coisa numa tigela amarela.

- O que está fazendo aqui? Onde está a sra. Coker?

Sua irmã largou a colher com um grito de espanto.

- Jamie! - Pálida, apertou a mão contra o peito e fechou os olhos. Santo Deus! Você quase me matou de susto. - Abriu os olhos, azul-escuros como os dele, e fitou-o com um olhar penetrante. - E o que em nome de Nossa Senhora você está fazendo aqui? Não o esperava antes de uma semana, no mínimo.

- Fergus não tem subido a colina ultimamente, fiquei preocupado. - ele disse simplesmente.

- Você é um amor, Jamie. - A cor voltava ao seu rosto. Sorriu para seu irmão e aproximou-se para abraçá-lo. Era um esforço desengonçado, com o bebê no caminho, mas agradável, ainda assim. Ele recostou a face sobre seus cabelos escuros e sedosos por um instante, inalando seu aroma complexo de cera de vela e canela, sebo de sabão e lã. Havia um elemento fora do comum em seu cheiro esta noite; ele achou que ela estava começando a cheirar a leite.

— Onde estão todos? — ele perguntou, soltando-a com relutância.

- Bem, a sra. Coker morreu - ela respondeu, a ruga entre suas sobrancelhas aprofundando-se.

- É mesmo? - ele disse à meia-voz, benzendo-se. - Sinto muito. - A sra. Coker fora primeiro empregada e depois governanta da família, desde o casamento de seus próprios pais, há mais de quarenta anos. - Quando?

— Ontem de manhã. Já era esperado, pobre alma, e foi tranqüila. Morreu em sua própria cama, como queria, e com o padre McMurtry rezando à sua cabeceira.

Jamie olhou pensativamente para a porta que levava aos aposentos dos empregados, depois da cozinha.

- Ela ainda está aqui?

Sua irmã sacudiu a cabeça.

— Não. Eu disse ao seu filho que podiam fazer o velório aqui em casa, mas os Coker acharam, as coisas estando do jeito que estão - seu beicinho abrangendo a ausência de Ian, guardas ingleses à espreita, colonos refugiados, escassez de comida e a sua própria presença inconveniente na caverna -, acharam melhor fazer em Broch Mordha, na casa da irmã dela. Então é para lá que todos foram. Eu disse a eles que não me sentia bem para ir. - acrescentou, depois sorriu, erguendo uma sobrancelha travessa. — Mas na verdade o que eu queria era algumas horas de paz e silêncio, com todo mundo fora.

- E então eu chego, interrompendo a sua paz - Jamie disse com tristeza. - Quer que eu vá embora?

- Não, idiota - sua irmã disse afavelmente. - Sente-se e eu continuarei a preparar o jantar.

- O que temos para comer, então? - ele perguntou, farejando o ar cheio de esperança.

- Depende do que você trouxe - sua irmã respondeu. Caminhava pesadamente pela cozinha, tirando louça do armário e da arca, parando para mexer a enorme caçarola suspensa acima do fogo, de onde se erguia um fino vapor. - Se trouxe carne, é o que comeremos. Se não, será caldo de aveia e mocotó.

Ele fez uma careta; a idéia dos últimos remanescentes da carcaça salgada de boi que haviam comprado há dois meses não o atraía.

- Então ainda bem que tive sorte - ele disse. Virou sua bolsa de caça e deixou os três coelhos caírem sobre a mesa numa pilha flácida de pêlos cinza e orelhas amassadas. — E frutos de abrunheiro - acrescentou, despejando o conteúdo do gorro, agora manchado por dentro com o espesso suco vermelho.

Os olhos de Jenny brilharam.

- Torta de coelho - declarou. - Não temos groselhas, mas as frutas silvestres servirão melhor ainda. Graças a Deus temos bastante manteiga. Vendo um ligeiro movimento entre o pêlo cinza, ela deu um tapa na mesa, destruindo com precisão o minúsculo intruso.

- Leve-os para fora e limpe-os, Jamie, ou a cozinha vai ficar infestada de moscas.

Retornando com as carcaças limpas e sem pele, ele encontrou a massa da torta bem adiantada e Jenny com manchas de farinha no vestido.

— Corte-os em tiras e quebre os ossos para mim, sim, Jamie? — ela disse, franzindo a testa para um livro de receitas, aberto sobre a mesa, ao lado da forma de torta.

- Certamente você sabe fazer uma torta de coelho sem ter que olhar no livro de receitas, não é? — ele disse, obedientemente pegando o grande martelo de madeira para quebrar ossos de cima da arca, onde ficava guardado. Riu ao segurá-lo, sentindo o peso do martelo. Era muito semelhante ao que quebrara sua mão direita há vários anos antes, numa prisão inglesa, e ele teve uma lembrança repentina e vívida dos ossos estilhaçados em uma torta de coelho, fragmentados e rachados, vazando sangue salgado e tutano doce dentro da carne.

- Sim, eu sei - sua irmã respondeu distraidamente, folheando as páginas. - É que, quando não se tem metade dos ingredientes necessários para fazer um prato, às vezes há alguma outra coisa que eu descubro aqui e que pode substituir. - Franziu a testa para a página à sua frente. - Normalmente, eu usaria clarete no molho, mas não temos nenhum em casa, a não ser os barris de Jared no buraco-do-padre, e eu não quero abrir nenhum ainda... podemos precisar deles.

Não era preciso que ela lhe dissesse como poderiam precisar usá-los. Um barril de clarete podia ”acelerar” a libertação de Ian - ou pelo menos pagar por notícias sobre seu estado. Ele lançou um olhar furtivo para a barriga grande e protuberante de Jenny. Não era um homem quem deveria dizer, mas para seus olhos experientes a hora do parto parecia estar bem próxima. Distraidamente, estendeu a mão para a caçarola e passou a lâmina de sua adaga de um lado para o outro no líquido escaldante, em seguida tirou-a e enxugou-a.

- Por que você faz isso, Jamie? - virou-se e viu Jenny fitando-o. Os cachos pretos soltavam-se da fita e ele sentiu uma pontada ao ver o reflexo de um único cabelo branco em meio ao ébano.

— Ah — ele disse, obviamente sem pensar, enquanto pegava uma das carcaças -, Claire... ela me disse que era preciso lavar uma faca em água fervente antes de usá-la em alimentos.

Ele pressentiu, mais do que viu, as sobrancelhas de Jenny arquearemse. Ela lhe perguntara sobre Claire uma única vez, quando ele voltara de Culloden, semiconsciente e quase morto de febre.

- Ela se foi - ele dissera, virando o rosto. - Não pronuncie o nome dela para mim outra vez. - Leal como era, Jenny não o fizera, nem ele. Não sabia dizer o que o fizera pronunciar seu nome hoje; a menos, talvez, que fossem os sonhos.

Tinha-os com freqüência, de diversas formas, e isso sempre o deixava perturbado no dia seguinte, como se por um instante Claire estivesse realmente ao alcance de sua mão e depois tivesse sido tragada para longe outra vez. Podia jurar que, às vezes, acordava com o cheiro dela em sua pele, almiscarado e luxuriante, entremeado com os aromas pungentes, refrescantes, de folhas e ervas. Liberara seu sêmen durante o sono mais de uma vez enquanto sonhava, uma ocorrência que o deixava ligeiramente envergonhado e confuso. Para distrair Jenny e a si mesmo, fez um sinal com a cabeça indicando a barriga de Jenny.

- Para quando vai ser? — perguntou, franzindo a testa para seu ventre volumoso. - Está parecendo um daqueles cogumelos inflados... um toque e puuuf. — Abriu os dedos, para ilustrar.

— Ah, é? Bem, eu até que gostaria que fosse assim tão fácil. - Arqueou as costas, esfregando as cadeiras e fazendo a barriga projetar-se para a frente de um modo alarmante. Ele espremeu-se contra a parede para dar-lhe espaço. - Quando? A qualquer momento, espero. Não sei ao certo. — Pegou a xícara e mediu a farinha; no saco, restava apenas um pouco da preciosa farinha, ele notou com amargura.

- Mande me avisar na caverna quando começar - ele disse de repente. - Eu descerei, com ou sem casacos-vermelhos.

Jenny parou de mexer e fitou-o.

- Você? Por quê?

- Bem, Ian não está aqui - ele ressaltou, pegando uma das carcaças sem pele. Com a experiência de longa prática, separou uma coxa com precisão e cortou-a da espinha dorsal. Três batidas rápidas com o martelo de madeira e a carne clara ficou achatada e pronta para a torta.

- E ele seria de muita ajuda se estivesse aqui -Jenny disse. - Ele cuidou de sua parte nove meses atrás. - Franziu o nariz para seu irmão e pegou a travessa de manteiga.

- Huum. - Ele sentou-se para continuar seu trabalho, o que levou a barriga de Jenny quase ao nível de seus olhos. O conteúdo, acordado e ativo, remexia-se de um lado para o outro sem parar, fazendo seu avental torcer-se e empinar-se conforme ela se mexia. Ele não pôde resistir a colocar a mão de leve contra a curva monstruosa, para sentir os empurrões e chutes surpreendentemente fortes do habitante, impaciente em seu acanhado confinamento.

- Mande Fergus me avisar quando chegar a hora — ele disse outra vez. Ela olhou-o exasperada e sacudiu a mão com a colher.

- Eu já não disse que não preciso de você? Pelo amor de Deus, como se eu já não tivesse o suficiente com que me preocupar, com a casa cheia de gente e quase nenhuma comida para alimentá-los, Ian numa cela em Inverness e os casacos-vermelhos espreitando pelas janelas sempre que olho ao redor? Ainda vou ter que me preocupar que você seja preso também?

- Não precisa se preocupar comigo. Tomarei cuidado. - Não olhou para ela, mas focalizou sua atenção na junta que cortava.

- Bem, então, tenha cuidado e fique quieto lá na colina. - Ela olhou pelo nariz longo e reto, espreitando-o por cima da borda da tigela. —Já tive seis filhos, hein? Acha que não sei lidar com isso a essa altura?

- Não tem conversa com você, não é? - ele disse.

- Não - ela respondeu prontamente. - Portanto você fica lá.

- Eu virei.

Jenny estreitou os olhos e lançou-lhe um olhar longo e penetrante.

- Acho que você é o sujeito mais estúpido e teimoso daqui a Aberdeen, não?

Um sorriso espraiou-se pelo rosto de seu irmão quando ergueu os olhos para ela.

- Talvez sim — disse. Estendeu o braço e deu umas pancadinhas de leve em sua barriga arfante. — E talvez não. Mas eu virei. Mande Fergus me avisar quando chegar a hora.

Foi quase ao alvorecer, três dias mais tarde, que Fergus subiu a colina, arquejando, errando a trilha no escuro e fazendo tanto barulho pelas moitas de tojo que Jamie ouviu-o aproximar-se muito antes de ele chegar à entrada da caverna.

- Milorde... - ele começou, sem fôlego, quando emergiu na cabeça da trilha, mas Jamie já passava pelo garoto, colocando o manto em torno dos ombros enquanto corria em direção à casa.

- Mas, milorde... - Ouviu a voz de Fergus atrás dele, arfante e assustada. - Milorde, os soldados...

— Soldados? — Ele parou bruscamente e virou-se, esperando impacientemente que o garoto francês descesse a encosta. - Que soldados? - perguntou, enquanto Fergus deslizava os últimos metros até ele.

— Dragões ingleses, milorde. Milady me mandou para avisá-lo. Não deve sair da caverna de modo algum. Um dos homens viu os soldados ontem, acampados perto de Dunmaglas.

- Droga.

— Sim, milorde. — Fergus sentou-se numa pedra e abanou-se, o peito franzino subindo e descendo, conforme ele tentava recuperar o fôlego.

Jamie hesitou, indeciso. Todos os seus instintos diziam-lhe para não voltar para a caverna. Seu sangue estava esquentado pela onda de adrenalina causada pelo surgimento de Fergus e rebelava-se contra a idéia de docemente se enfiar de volta no esconderijo, como um inseto buscando refúgio embaixo de sua pedra.

- Umhm - disse. Olhou para Fergus. A luz da aurora começava a delinear a figura mirrada do menino contra a escuridão das tojeiras, mas seu rosto ainda era uma mancha pálida, marcada por um par de manchas mais escuras onde estavam os olhos. Uma certa suspeita avolumava-se em Jamie. Por que sua irmã enviara Fergus numa hora tão estranha?

Se tivesse sido necessário avisá-lo com urgência sobre os dragões, teria sido mais seguro mandar o menino durante a noite. Se a questão não era urgente, por que não esperar até a noite seguinte? A resposta era óbvia porque Jenny achou que talvez não pudesse lhe mandar o recado na noite seguinte.

- Como está minha irmã? — ele perguntou a Fergus.

— Ah, bem, milorde, muito bem! — O tom vigoroso de sua afirmação confirmou todas as suspeitas de Jamie.

— Ela está dando à luz, não está? — perguntou a Fergus.

- Não, milorde! Absolutamente, não!

Jamie estendeu o braço para baixo e grampeou a mão no ombro de Fergus. Os ossos do menino pareceram pequenos e frágeis sob seus dedos, fazendo-o lembrar-se desconfortavelmente dos coelhos que ele quebrara para Jenny. Mesmo assim, apertou com mais força. Fergus contorceu-se, tentando livrar-se.

- Conte-me a verdade, garoto -Jamie disse.

— Não, milorde! É verdade!

A mão apertou inexoravelmente.

- Ela lhe disse para não me contar?

A proibição de Jenny devia ter sido enfática, porque Fergus respondeu à pergunta com evidente alívio.

- Sim, milorde!

- Ah. - Relaxou o aperto da mão no ombro de Fergus, e o menino pôs-se de pé num salto, agora falando sem parar, enquanto esfregava o ombro esquelético.

— Ela disse que eu não devia contar-lhe nada, exceto a respeito dos soldados, milorde, porque se eu contasse, ela iria cortar minhas partes e cozinhá-las como nabos e salsicha!

Jamie não conteve um sorriso diante dessa ameaça.

— Podemos estar com falta de comida — assegurou a seu protegido —, mas não tanto assim. - Perscrutou o horizonte, onde uma linha cor-de-rosa fina surgia, nítida e vívida, por trás da silhueta dos pinheiros negros. Vamos, então; já será pleno dia dentro de meia hora.

Não havia nenhum vestígio de vazio silencioso pela casa neste alvorecer. Qualquer um com um olho só podia ver que as coisas não estavam como de costume em Lallybroch; o caldeirão de ferver roupas estava preparado sobre sua base no terreiro, com o fogo apagado embaixo, cheio de água fria e roupas fervidas. Roucos lamentos vindos do celeiro - como se alguém estivesse sendo estrangulado - indicavam que a única vaca que restava precisava ser ordenhada com urgência. Uns balidos irritados do barracão das cabras informaram-no que as habitantes também gostariam de um pouco de atenção semelhante.

Quando entrou no quintal, três galinhas passaram por ele numa gritaria de penas alvoroçadas, com Jehu, o terrier rateiro, logo atrás. Com um movimento rápido, ele saltou para a frente e chutou o cachorro, pegando-o bem embaixo das costelas. Ele voou no ar com uma expressão de intensa surpresa e, em seguida, com um ganido, recompôs-se e partiu em disparada.

Ele encontrou as crianças, os garotos mais velhos, Mary MacNab e a outra criada, Sukie, todos amontoados na sala de visitas, sob o olhar atento da sra. Kirby, uma viúva austera e rígida, que lia a Bíblia em voz alta.

- E Adão não se deixou enganar, mas a mulher, sendo enganada, caiu em tentação - leu a sra. Kirby. Ouviu-se um berro alto e longo, do andar de cima, parecendo interminável. A sra. Kirby parou por um instante, para permitir que todos o avaliassem, antes de retomar sua leitura. Seus olhos, cinzaclaro e úmidos como ostras cruas, piscaram na direção do teto, depois repousaram com satisfação na fileira de rostos tensos à sua frente.

- Salvar-se-á, porém, dando à luz filhos, se permanecer com humildade na fé, na caridade e na santificação - continuou a sra. Kirby. Kitty eclodiu em soluços histéricos e enterrou a cabeça no ombro da irmã. Maggie Ellen estava ficando esbaforida e vermelha sob as sardas, enquanto seu irmão mais velho ficara mortalmente pálido com o grito.

- Sra. Kirby - Jamie disse. - Fique em silêncio, por favor.

As palavras foram bastante educadas, mas a expressão em seus olhos deve ter sido a mesma que Jehu viu imediatamente antes de seu vôo impulsionado pela bota de Jamie, porque a sra. Kirby soltou a respiração com uma arfada e deixou cair a Bíblia, que aterrissou no chão com um baque de folhas de papel.

Jamie inclinou-se e pegou-a, depois exibiu os dentes para a sra. Kirby. A expressão evidentemente não foi bem-sucedida como um sorriso, mas ainda assim teve algum efeito. A sra. Kirby ficou muito pálida e colocou a mão em seu vasto peito.

— Talvez você deva ir para a cozinha e fazer alguma coisa — ele disse, com um movimento brusco da cabeça, o que fez Sukie, a criada, escapulir rapidamente como uma folha soprada pelo vento. Com muito mais dignidade, mas nenhuma hesitação, a sra. Kirby levantou-se e seguiu-a.

Animado com essa pequena vitória, Jamie livrou-se dos demais ocupantes da sala sem demora, enviando a viúva Murray e suas filhas para fora, para lidar com o caldeirão de lavar roupas, as crianças menores para pegar as galinhas sob a supervisão de Mary MacNab. Os garotos mais velhos partiram, obviamente aliviados, para cuidar dos animais.

Com a sala finalmente vazia, ele parou por um instante, sem saber o que fazer em seguida. Sentia obscuramente que devia permanecer na casa, de guarda, embora tivesse plena noção que não poderia - como Jenny dissera - fazer nada para ajudar, não importa o que acontecesse. Havia unia mula desconhecida amarrada no pátio de entrada; provavelmente, a parteira estava lá em cima com Jenny.

Sem conseguir ficar sentado, andava nervosamente de um lado para o outro da sala, a Bíblia na mão, tocando em tudo. A estante de livros de Jenny, surrada e marcada pela última invasão dos casacos-vermelhos, há três meses. O grande prato ornamental de prata, com divisões para frutas e doces, utilizado como centro de mesa. Estava levemente denteado, mas fora pesado demais para caber na mochila dos soldados e, assim, escapara do roubo de objetos menores. Não que os ingleses tenham levado muita coisa; os poucos itens realmente de valor, bem como o pequeno estoque de ouro que lhes restava, estavam escondidos em segurança no buraco-dopadre, junto com o vinho de Jared.

Ouvindo um gemido prolongado vindo lá de cima, abaixou o olhar involuntariamente para a Bíblia em sua mão. Mesmo sem o desejar, ainda assim deixou o livro abrir-se, exibindo a página da frente, onde os casamentos, nascimentos e mortes da família eram registrados.

As entradas começavam com o casamento de seus pais. Brian Fraser e Ellen MacKenzie. Os nomes e a data estavam escritos na caligrafia redonda e elegante de sua mãe, com uma breve anotação embaixo, nos garranchos mais escuros e mais firmes de seu pai. Casados por amor, dizia a inscrição - uma observação intencional, tendo em vista que a entrada seguinte, indicava o nascimento de Willie, que ocorrera apenas dois meses depois da data do casamento.

Jamie sorriu, como sempre o fazia, à vista das palavras, e ergueu os olhos para o quadro onde ele próprio estava retratado, com dois anos de idade, ao lado de Willie e Bran, o enorme cão de caça. Tudo que restara de Willie, que morrera de varíola aos onze anos. A pintura tinha um corte na tela obra de uma baioneta, imaginava, descarregando a frustração do dono.

- E se você não tivesse morrido - disse para o quadro num sussurro -, o que teria acontecido?

Realmente, o que teria acontecido? Ao fechar o livro, seus olhos recaíram sobre a última entrada - Caitlin Maisri Murray, nascida em 3 de dezembro de 1749, morta em 3 de dezembro de 1749. Sim. Se os casacos-vermelhos não tivessem vindo em 2 de dezembro, Jenny teria dado à luz prematuramente? Se tivessem tido comida suficiente, de modo que ela, como todos os demais, não passasse de pele e osso e o volume da barriga, teria sido diferente?

— Não há como saber, não é? — disse para o quadro. A mão de Willie na pintura descansava em seu ombro; sempre se sentira seguro, com Willie de pé às suas costas.

Outro grito veio de cima e um espasmo de medo fez suas mãos agarrarem-se ao livro.

— Reze por nós, irmão — sussurrou, e fazendo o sinal-da-cruz, colocou a Bíblia sobre a mesa e saiu para o celeiro para ajudar com os animais.

Havia pouco a fazer ali; Rabbie e Fergus eram mais do que capazes de cuidar dos poucos animais que restavam, e o Jovem Jamie, com dez anos, já era grande o suficiente para dar uma ajuda substancial. Olhando à sua volta, à procura de algo para fazer, Jamie juntou uma braçada de feno espalhado e desceu o barranco, levando-a para a mula da parteira. Quando o feno acabasse, a vaca teria que ser abatida; ao contrário das cabras, ela não conseguia forragem suficiente nas colinas durante o inverno para se sustentar, mesmo com o capim e as ervas daninhas que as crianças catavam e traziam. Com sorte, a carcaça salgada duraria até a primavera.

Quando voltou ao celeiro, Fergus ergueu os olhos de seu garfo de estérco.

— Ela é uma parteira adequada, de boa reputação? — Fergus perguntou. Lançou o queixo para frente agressivamente. - Certamente madame não devia ser entregue aos cuidados de uma camponesa!

— Como posso saber? — Jamie disse, com impaciência. — Acha que eu tenho alguma coisa a ver com a contratação de parteiras? - A sra Martin, a velha parteira que havia feito o parto de todos os filhos dos Murray anteriores, morrera, como tantas outras pessoas, durante a fome no ano seguinte a Culloden. A sra. Innes, a nova parteira, era muito mais jovem, esperava que ela tivesse experiência suficiente para saber o que estava fazendo.

Rabbie também parecia inclinado a participar da discussão. Franziu a testa com um ar soturno para Fergus.

- Sim, e o que quer dizer com ”camponesa”? Você também é um camponês, ou ainda não percebeu?

Fergus olhou para Rabbie com alguma dignidade, apesar do fato de que, para isso, tivesse que inclinar a cabeça um pouco para trás, sendo muitos centímetros mais baixo do que seu amigo

- Se eu sou ou não um camponês, não vem ao caso - disse com arrogância - Não sou uma parteira, sou?

- Não, você é um filho-da-mãe! - Rabbie deu um forte empurrão em seu amigo e, com uma súbita exclamação de surpresa, Fergus caiu de costas, aterrissando pesadamente no chão do estábulo. Com a rapidez de um raio, pôs-se de pé. Lançou-se sobre Rabbie, sentado na borda da manjedoura, rindo, mas a mão de Jamie segurou-o pela gola e puxou-o para trás.

- Vamos parar com isso - disse seu patrão. — Não vou deixar que estraguem o pouco de feno que resta. - Colocou Fergus de pé outra vez e, para distraí-lo, perguntou. — E, aliás, o que você sabe de parteiras?

- Muita coisa, milorde - Fergus bateu a poeira das roupas com gestos elegantes. — Muitas das mulheres na casa de madame Elise vieram à luz enquanto eu estava lá...

— Acredito que sim — Jamie interrompeu secamente. — Ou você quer dizer ”deram à luz”?

- Dar à luz, sem dúvida. Ora, eu mesmo nasci lá! - O menino francês estufou o peito franzino, pomposamente.

- De fato. - A boca de Jamie torceu-se ligeiramente. — Bem, e imagino que você fez observações cuidadosas na ocasião, a ponto de poder dizer como essas questões devem ser resolvidas?

Fergus ignorou o tom de sarcasmo.

- Ora, claro - disse, de modo prático -, a parteira certamente deve ter posto uma faca embaixo da cama, para cortar a dor.

- Não tenho tanta certeza se ela fez isso - Rabbie murmurou. - Ao menos, não parece. - A maior parte dos gritos era inaudível no celeiro, mas nem todos.

- E um ovo deve ser abençoado com água benta e colocado no pé da cama, para que a mulher expulse a criança facilmente - Fergus continuou, sem dar ouvidos. Franziu o cenho. — Eu mesmo dei um ovo à mulher, mas ela não parecia saber o que fazer com ele. E eu o guardei este mês todo especialmente para a ocasião - disse, queixosamente -, já que as galinhas quase já não botam ovo. Eu queria ter certeza de ter um quando fosse necessário.

”Em seguida ao parto”, ele continuou, abandonando as dúvidas no entusiasmo de sua aula, ”a parteira deve fazer um chá com a placenta e dálo para a mulher beber, para que ela tenha bastante leite.”

Rabbie fez uma careta de nojo.

- Do que foi expelido no parto, você quer dizer? — perguntou, incrédulo. - Santo Deus!

Jamie também se sentiu um pouco enjoado diante dessa exibição de modernos conhecimentos médicos.

— Sim, bem - ele disse a Rabbie, procurando mostrar desenvoltura -, eles também comem rãs, sabe. E caracóis. Suponho que a placenta não seja tão esquisito, afinal de contas. - Particularmente, perguntava-se se eles logo não estariam todos comendo rãs e caracóis, mas achou que devia guardar essa especulação para si próprio.

Rabbie fingiu que vomitava.

- Nossa, quem gostaria de ser francês?

Fergus, ao lado de Rabbie, girou nos calcanhares e desfechou o punho cerrado em Rabbie com a rapidez de um raio. Fergus era pequeno e franzino para sua idade, mas ainda assim era forte e tinha uma mira mortal para os pontos fracos de um homem, conhecimento adquirido dos seus tempos de batedor de carteiras nas ruas de Paris. O soco atingiu Rabbie de modo certeiro na boca do estômago, e ele dobrou-se ao meio com o som de uma bexiga de porco estourada.

- Fale com respeito de seus superiores, por favor - Fergus disse arrogantemente. O rosto de Rabbie adquiriu vários tons de vermelho e sua boca abriu-se e fechou-se como a de um peixe, enquanto tentava recuperar o fôlego. Seus olhos arregalaram-se numa expressão de grande surpresa e ele pareceu tão ridículo que Jamie teve que esforçar-se para não rir, apesar de sua preocupação com Jenny e sua irritação com a briga dos garotos.

- Fiquem longe um do outro, moleques - começou a dizer, quando foi interrompido por um grito do Jovem Jamie, que até então se mantivera calado, fascinado com a conversa.

- O que foi? -Jamie girou nos calcanhares, a mão dirigindo-se automaticamente para a pistola que carregava sempre que deixava a caverna, mas não havia, como ele temera, uma patrulha inglesa no terreiro do estábulo.

- O que aconteceu? - perguntou. Em seguida, seguindo a direção apontada pelo Jovem Jamie, ele os viu. Três pontinhos negros sobrevoando o amontoado marrom dos pés de batata mortos no campo.

- Abutres - ele disse devagar, sentindo os cabelos da nuca eriçarem-se. Esses pássaros de guerras e matadouros virem a uma casa durante um nascimento era a pior espécie de sinal de mau agouro. Uma das malditas aves estava na realidade pousando no telhado quando ele olhou.

Sem pensar duas vezes, tirou a pistola da cintura e apoiou o cano sobre o braço, mirando com todo o cuidado. Era um longo tiro, da porta do estábulo à viga da cumeeira, e ainda mirando para cima. Mesmo assim...

A pistola deu um tranco em sua mão e o abutre explodiu numa nuvem de penas pretas. Seus dois companheiros saltaram no ar como se tivessem sido impulsionados pela explosão e bateram em retirada freneticamente, seus gritos roucos desaparecendo rápido no ar de inverno.

- Mon Dieu! — Fergus exclamou. - C’est bien, ca!

- Sim, belo tiro, senhor. - Rabbie, ainda vermelho e com falta de ar, recuperara-se a tempo de ver o tiro. A seguir, fez um sinal com a cabeça, apontando o queixo para a casa. - Veja, senhor, aquela não é a parteira?

Era. A sra. Innes enfiou a cabeça pela janela do segundo andar, os cabelos louros voando, soltos, enquanto ela inclinava-se para fora para espiar o terreiro embaixo. Talvez tenha sido atraída pelo barulho do tiro, temendo algum problema. Jamie saiu para o pátio e acenou para a janela, a fim de tranqüilizá-la.

- Está tudo bem - ele gritou. - Só um acidente. - Não quis mencionar os abutres, com receio de que a parteira fosse contar a Jenny.

- Suba! - ela gritou, ignorando suas explicações. - A criança nasceu e sua irmã quer vê-lo!

Jenny abriu um único olho, azul e ligeiramente amendoado como os seus próprios

— Então, você veio, hein?

- Achei que alguém devia estar aqui... ainda que apenas para rezar por você - ele disse, asperamente.

Fechou o olho e um leve sorriso desenhou-se em seus lábios. Ela se parecia muito, ele pensou, com uma pintura que ele vira na França — antiga, de um pintor italiano, mas uma boa pintura, ainda assim.

- Você é um tolo., e eu fico feliz por isso. - ela disse suavemente. Abriu os olhos e olhou para o fardo enfaixado que segurava na curva do braço.

- Quer vê-lo?

— Ah, é um menino, hem? — Com mãos experientes de anos de sobrinhos, ele ergueu a pequenina trouxa e aconchegou-a junto a si, afastando a ponta do cobertor que encobria o rosto do bebê.

Os olhos estavam fechados com força, as pestanas escondidas nas curvas profundas das pálpebras. As próprias pálpebras destacavam-se num ângulo agudo acima das maçãs do rosto lisas e rosadas, indicando que ele deveria ao menos, nessa característica reconhecível — parecer-se com sua mãe.

A cabeça era estranhamente torta, com uma aparência enviesada que fez Jamie pensar desconfortavelmente em um melão afundado com um soco, mas a boquinha polpuda estava relaxada e tranqüila, o lábio inferior rosado e úmido, tremendo ligeiramente com o ronco que acompanha a exaustão de nascer.

- Foi difícil, não? - ele disse, falando com a criança, mas foi a mãe quem respondeu

- Sim, foi -Jenny disse - Tem uísque no armário. Podia me servir um pouco? — Sua voz estava rouca e ela teve que limpar a garganta antes de terminar o pedido

- Uísque? Você não deveria estar tomando cerveja misturada com ovos? - ele perguntou, reprimindo com alguma dificuldade a visão mental da sugestão de Fergus de alimento adequado para mães que acabaram de dar à luz.

- Uísque — sua irmã disse categoricamente. - Quando você estava deitado lá embaixo, imobilizado, com a perna quase o matando, eu lhe dava cerveja com ovos.

- Você me dava coisas bem piores do que isso - seu irmão disse, com um sorriso -, mas tem razão, você também me deu uísque - Colocou a criança adormecida cuidadosamente sobre a colcha e virou-se para pegar o uísque. – Ele já tem nome? - perguntou, indicando o bebê com um movimento da cabeça, enquanto servia uma dose generosa do líquido âmbar.

- Vou chamá-lo de Ian, como o pai. - A mão de Jenny pousou delicadamente por um instante sobre a cabecinha redonda, coberta com uma leve penugem castanho-dourada. Uma pulsação era visível na moleira no alto da cabeça; parecia terrivelmente frágil a Jamie, mas a parteira havia lhe garantido que o bebê era um garoto robusto e saudável, e ele achava que podia acreditar nela. Movido por um impulso obscuro de proteger aquele ponto macio perigosamente exposto, pegou a criança no colo outra vez, puxando o cobertor novamente sobre sua cabeça.

— Mary MacNab falou-me de você e da sra. Kirby — Jenny observou, bebericando seu uísque. - Uma pena que eu não tenha visto... ela disse que a pobre vassoura velha quase engoliu a língua quando você falou com ela.

Jamie devolveu o sorriso, batendo de leve nas costas do bebê apoiado em seu ombro. Profundamente adormecido, o corpinho jazia inerte como um presunto sem osso, um peso macio e reconfortante.

— Pena que não tenha engolido. Como pode suportar essa mulher vivendo na mesma casa com você? Eu a estrangularia, se estivesse aqui todos os dias.

Sua irmã fez um muxoxo e fechou os olhos, inclinando a cabeça para trás para deixar o uísque deslizar pela garganta.

— Ah, as pessoas só incomodam se você deixar; não deixo que ela me incomode, não muito. Mesmo assim - acrescentou, abrindo os olhos —, não posso dizer que vou ficar triste em me livrar dela. Pretendo despachála para o velho Kettrick, em Broch Mordha. A mulher e a filha dele morreram no ano passado e ele vai precisar de alguém para cuidar dele.

- Sim, mas se eu fosse Samuel Kettrick, ficaria com a viúva Murray — Jamie observou -, não com a viúva Kirby.

- Peggy Murray já está encaminhada - sua irmã assegurou-lhe. - Vai se casar com Duncan Gibbons na primavera.

— Duncan trabalhou rápido — ele disse, um pouco surpreso. Então uma idéia lhe ocorreu, e ele riu para Jenny. - Alguma das duas já sabe disso?

- Não - ela disse, devolvendo o sorriso. Em seguida, o sorriso desapareceu num olhar especulativo. - A menos que você esteja pensando em Peggy para si próprio, está?

- Eu? -Jamie ficou tão surpreso como se ela tivesse sugerido de repente que ele estivesse pensando em se jogar da janela do segundo andar.

- Ela tem apenas vinte e cinco anos — Jenny continuou. - Bastante jovem para mais filhos, e é uma boa mãe.

- Quanto você tomou deste uísque? - Seu irmão inclinou-se para a frente e fingiu examinar o nível do conteúdo da garrafa, envolvendo a cabecinha da criança com uma das mãos para que não balançasse. Endireitou-se e lançou um olhar levemente exasperado a sua irmã. – Estou vivendo como um animal numa caverna e você quer que eu me case? Sentiu repentinamente um enorme vazio interior. Para impedir que ela visse como a sugestão o transtornara, levantou-se e começou a andar para cima e para baixo no quarto, cantarolando baixinho para a trouxinha em seus braços.

— Quanto tempo faz que você se deitou com uma mulher, Jamie? — sua irmã perguntou em tom casual atrás dele. Chocado, girou nos calcanhares para encará-la.

— Isso é pergunta que se faça a um homem?

— Você não dormiu com nenhuma das raparigas solteiras entre Lallybroch e Broch Mordha - ela continuou, sem prestar nenhuma atenção. - Eu saberia. Nenhuma das viúvas, tampouco, não é? - parou delicadamente.

— Sabe muito bem que não — ele disse sucintamente. Podia sentir seu rosto queimando de constrangimento.

— Por que não? - sua irmã perguntou-lhe diretamente.

— Por que não? — Olhou-a fixamente, a boca um pouco aberta. — Perdeu a cabeça? O que acha, que eu sou o tipo de homem que iria sorrateiramente de casa em casa, dormindo com qualquer mulher que não me expulsasse com um cinturão na mão?

- Como se elas fossem recusá-lo. Não, você é um bom homem, Jamie.

- Jenny sorriu, melancolicamente. - Não se aproveitaria de nenhuma mulher. Você se casaria primeiro, não é?

- Não! - ele disse violentamente. O bebê contorceu-se e fez um ruído sonolento, e ele automaticamente o transferiu para o outro ombro, batendo de leve em suas costas, enquanto fitava sua irmã com raiva. — Não pretendo me casar de novo, portanto desista de qualquer idéia de arranjar casamento, Jenny Murray! Não quero nem ouvir falar nisso, entendeu?

- Ah, entendi - ela disse, sem se deixar perturbar. Aprumou-se melhor nos travesseiros, de modo a poder fitá-lo nos olhos. — Pretende viver como um monge o resto de seus dias? - ela perguntou. - Ir para seu túmulo sem nenhum filho para enterrá-lo ou abençoar seu nome?

- Cuide de sua própria vida, droga! - Com o coração martelando, virou-se de costas para ela e caminhou a passos largos até a janela, onde permaneceu olhando fixamente para fora sem nada ver.

— Sei que sente falta de Claire. — A voz suave de sua irmã chegou até ele pelas costas. — Acha que eu poderia esquecer Ian, se ele não voltasse? Mas já é hora de você seguir em frente, Jamie. Não acha que Claire iria querer que você vivesse sozinho a vida toda, sem ninguém para confortálo ou gerar seus filhos, não é?

Ele não falou por um longo tempo, apenas ficou lá parado, sentindo o suave calor da cabecinha coberta de penugem pressionada contra o lado do seu pescoço. Podia ver sua imagem turva na vidraça enevoada, um homem alto, sujo e desajeitado, a trouxinha branca e arredondada contrastando com seu rosto sombrio.

- Ela estava grávida - ele disse num sussurro finalmente, falando para o reflexo. - Quando ela... quando a perdi. - De que outra forma poderia explicar o que houve? Não havia como dizer a sua irmã onde Claire estava... onde esperava que ela estivesse. Que ele não podia pensar em outra mulher, esperando que Claire ainda estivesse viva, mesmo sabendo que a havia perdido para sempre.

Fez-se um longo silêncio na cama. Em seguida, Jenny disse serenamente:

— Foi por isso que você veio hoje?

Ele suspirou e virou-se para ela, encostando a cabeça contra a vidraça fria. Sua irmã estava deitada, os cabelos escuros soltos sobre o travesseiro, olhando-o com ternura.

- Sim, talvez - ele disse. - Não pude ajudar minha mulher; acho que pensei que talvez pudesse ajudá-la. Não que eu possa - acrescentou com certa amargura. - Sou tão inútil para você quanto fui para ela.

Jenny estendeu a mão para ele, o rosto aflito.

- Jamie, mo chridhe - ela disse, mas parou, os olhos arregalando-se numa surpresa repentina quando um barulho de estilhaços e o som de gritos veio do andar térreo. - Nossa Senhora! - ela disse, ficando ainda mais pálida. - São os ingleses!

— Santo Deus. — Foi mais uma prece do que uma exclamação de surpresa. Ele olhou rápido da cama para a janela, avaliando as possibilidades de se esconder ou fugir. O barulho de botas já estava nas escadas.

- O armário, Jamie! - Jenny murmurou ansiosamente, apontando. Sem hesitação, ele entrou no armário e fechou a porta.

A porta do quarto abriu-se de par em par com um estrondo um segundo depois, sendo preenchida pela figura de um casaco-vermelho com um chapéu de bicos, segurando uma espada na mão à sua frente. O capitão dos dragões parou e seus olhos percorreram todo o quarto, parando finalmente na pequena figura na cama.

- Sra. Murray? - ele disse.

Jenny esforçou-se para aprumar-se na cama.

— Sou eu. E o que diabos está fazendo na minha casa? — perguntou. Seu rosto estava pálido e brilhante de suor, e seus braços tremiam, mas ela ergueu o queixo e fitou o homem furiosamente. - Saia!

Sem se preocupar com ela, o homem entrou no quarto e caminhou até a janela; Jamie pôde ver sua forma indistinta desaparecer além da quina do armário, depois reaparecer, de costas enquanto falava comjenny.

- Um dos meus batedores relatou ter ouvido um tiro das vizinhanças desta casa, há pouco tempo. Onde estão os seus homens?

- Não tenho nenhum. - Seus braços trêmulos não a suportariam por muito mais tempo e Jamie viu sua irmã deixar-se deslizar, recaindo sobre os travesseiros. - Já levaram o meu marido, meu filho mais velho só tem dez anos. — Não mencionou Rabbie nem Fergus; garotos da idade deles eram considerados suficientemente adultos para serem tratados, ou maltratados, como homens, se o capitão viesse a saber. Com sorte, eles teriam se escondido ao primeiro sinal da presença dos ingleses.

O capitão era um homem de meia-idade, inflexível, que não se deixava enganar.

- A posse de armas nas Highlands é um delito grave - ele disse, virando-se para o soldado que entrara no quarto atrás dele. - Dê uma busca na casa, Jenkins.

Ele teve que erguer a voz ao dar a ordem porque havia uma comoção crescente no vão da escada. Quando Jenkins virou-se para sair do quarto, a sra. Innes, a parteira, empurrou e passou pelo soldado que tentou barrar sua passagem.

- Deixe a pobre senhora em paz! - ela gritou, encarando o capitão com os punhos cerrados ao lado do corpo. A voz da parteira tremia e seus cabelos soltavam-se da fita que os prendia, mas ela não esmoreceu. — Saiam, miseráveis! Deixem-na em paz!

— Não estou destratando sua patroa — o capitão disse, com alguma irritação, evidentemente confundindo a sra. Innes com uma das criadas. Estou só...

- E não faz nem uma hora que ela deu à luz! Não é decente nem para você colocar os olhos nela, quanto mais...

- Deu à luz? - A voz do capitão aguçou-se e ele olhou da parteira para a cama com repentino interesse. - Acaba de ter um filho, sra. Murray? Onde está a criança?

A criança em questão contorcia-se dentro de suas faixas, perturbada com o aperto de seu tio paralisado de horror.

Do fundo do armário, ele podia ver o rosto de sua irmã, pálida até os lábios e paralisada como uma estátua de pedra.

— A criança está morta — ela disse.

A parteira ficou boquiaberta, em estado de choque, mas felizmente a atenção do capitão concentrava-se emjenny.

— Oh? — ele disse devagar. — Foi...

- Mamãe! - O grito de angústia veio da porta quando o Jovem Jamie libertou-se das mãos de um soldado e lançou-se na direção de sua mãe. — Mamãe, o bebê morreu? Não, não! - Soluçando, caiu de joelhos e enterrou a cabeça nas cobertas da cama.

Como se quisesse refutar a declaração do irmão, o bebê Ian deu provas de estar vivo chutando as pernas com considerável vigor contra as costelas do tio e emitindo uma série de pequenos grunhidos fanhosos, que felizmente passaram despercebidos na comoção do lado de fora.

Jenny tentava consolar o Jovem Jamie, a sra. Innes tentava inutilmente levantar o garoto, que se agarrava ferozmente à manga da camisola de sua mãe, o capitão em vão tentava se fazer ouvir acima dos gemidos e lamentos do Jovem Jamie e, acima de tudo, o som abafado de botas e gritos vibravam pela casa.

Jamie achou que o capitão estava indagando sobre o local onde estaria o corpo da criança. Apertou com mais força o corpo em questão, balançando-o na tentativa de prevenir qualquer disposição de sua parte para chorar. A outra mão pousou no cabo de sua adaga, mas era um gesto inútil; duvidava que até mesmo cortar a própria garganta adiantaria alguma coisa, se o armário fosse aberto.

O bebê Ian fez um ruído irascível, dando a entender que ele não gostava de ser sacudido. Com visões da casa em chamas e seus moradores massacrados, o barulho pareceu tão alto a Jamie quanto os berros angustiados de seu sobrinho mais velho.

— Foi você! — o Jovem Jamie ficou de pé, o rosto molhado e inchado de lágrimas e ódio, e avançou para o capitão, a cabeça de cachos negros abaixada como a de um carneiro selvagem. — Você matou meu irmão, inglês desgraçado!

O capitão pareceu desconcertado por esse ataque inesperado e chegou mesmo a recuar um passo, pestanejando para o garoto.

— Não, menino, você está enganado. Ora, eu apenas...

— Miserável! Desgraçado! A mhic an diabhoil! — Completamente fora de si, o Jovem Jamie atacava o capitão, gritando todos os palavrões que já ouvira, em gaélico ou inglês.

- Enh - disse o bebê Ian no ouvido do Jamie mais velho. - Enh, enh!

- Aquilo soava muito como o ruído preliminar de um grande berreiro e, em pânico, Jamie largou a adaga e enfiou o polegar na abertura macia e úmida de onde saíam os sons. As gengivas desdentadas do bebê agarraramse ao seu polegar com uma ferocidade que quase o fez soltar um grito.

- Saia daqui! Saia daqui! Saia ou eu vou matá-lo! - O Jovem Jamie gritava para o capitão, o rosto contorcido de raiva. O inglês olhou desamparadamente para a cama, como se pedisse a Jenny para calar aquele inimigo pequeno e implacável, mas ela permaneceu deitada como morta, os olhos fechados.

- Vou esperar pelos meus homens lá embaixo - o capitão disse, com a pouca dignidade que conseguiu reunir, e saiu, fechando a porta apressadamente atrás de si. Privado de seu inimigo, o Jovem Jamie desabou no chão e entregou-se a um choro convulsivo.

Pela fresta na porta, Jamie viu a sra. Innes olhar para Jenny, a boca abrindo-se para fazer uma pergunta. Jenny deu um salto para fora das cobertas como Lázaro, com uma expressão ferozmente ameaçadora, o dedo pressionado sobre os lábios para impor silêncio. O bebê Ian agarrava-se cruelmente ao polegar, rosnando diante da sua incapacidade de fornecer qualquer alimento.

Jenny girou para a borda da cama e ficou sentada ali, aguardando. O barulho dos soldados no térreo pulsava e circulava pela casa. Jenny tremia de fraqueza, mas estendeu a mão na direção do armário onde seus homens estavam escondidos.

Jamie inspirou fundo e preparou-se. Teria que correr o risco; sua mão e pulso estavam molhados de saliva e os grunhidos de frustração do bebê estavam ficando cada vez mais altos.

Saiu cambaleando do armário, encharcado de suor, e atirou o bebê para Jenny. Desnudando o seio com uma única torção violenta do corpo, pressionou a cabecinha contra seu mamilo e inclinou-se sobre a minúscula trouxa, como se quisesse protegê-la.

O começo de um berreiro desapareceu nos sons abafados de uma sucção vigorosa. Jamie sentou-se no assoalho repentinamente, sentindo-se como se alguém tivesse passado uma espada por trás de seus joelhos.

O Jovem Jamie sentara-se completamente empertigado diante da repentina abertura do armário e agora se apoiava, as pernas abertas, contra a porta, o rosto lívido de choque e espanto, enquanto olhava de sua mãe para seu tio e de novo para sua mãe. A sra. Innes ajoelhou-se ao lado dele, sussurrando ansiosamente em seu ouvido, mas o rostinho banhado em lágrimas não mostrava nenhum sinal de compreensão.

Quando os gritos e o rangido de arreios do lado de fora sinalizaram a partida dos soldados, o pequeno Ian dormia satisfeito e roncando nos braços de sua mãe. Jamie ficou parado junto à janela, fora de vista, observando-os partir.

O quarto ficou em silêncio, a não ser pelo barulho de líquido produzido pela sra. Innes bebendo uísque. O Jovem Jamie fora sentar-se junto a sua mãe, o rosto pressionado contra seu ombro. Ela não erguera os olhos nem uma vez desde que pegara a criança e continuava sentada, a cabeça abaixada sobre a criança em seu colo, os cabelos negros ocultando seu rosto. Jamie aproximou-se e tocou em seu ombro. O calor do corpo de sua irmã espantou-o, como se o pavor frio fosse seu estado natural e o contato com outra pessoa de certa forma lhe parecesse singular e anormal.

- Vou para o buraco-do-padre - ele disse à meia-voz - e para a caverna quando escurecer.

Jenny assentiu, mas sem erguer os olhos para ele. Havia vários fios brancos entre os negros, ele observou, brilhando como prata no alto de sua cabeça.

- Acho... que não devo sair de lá outra vez — ele disse finalmente. — Por um bom tempo.

Jenny não disse nada, mas balançou a cabeça mais uma vez.

 

Na verdade, ele foi até a casa mais uma vez. Durante dois meses, permaneceu escondido na caverna, mal ousando sair à noite para caçar, porque os ingleses ainda estavam na região, alojados em Cornar. As tropas saíam durante o dia em pequenas patrulhas de oito ou dez, vasculhando os campos, saqueando o pouco que restava para roubar, destruindo o que não podiam usar. E tudo sob as bênçãos da Coroa britânica.

Um caminho passava junto ao sopé da colina onde sua caverna estava escondida. Não passava de uma vereda rústica, que começara como uma trilha de veados e que ainda servia em grande parte a esse propósito, embora somente um veado ingênuo ousasse se aproximar da caverna. Ainda assim, às vezes, quando o vento soprava na direção certa, ele via um pequeno grupo de veados vermelhos no caminho ou encontrava rastros frescos dos animais na trilha enlameada.

Também era útil para as pessoas que tinham trabalho a fazer na encosta da montanha - embora fossem bem poucas. O vento soprava da caverna para baixo e ele não tinha nenhuma esperança de avistar veados. Ficava deitado no chão bem perto da entrada da caverna, onde a luz que se filtrava através da cortina de tojo e sorva na boca da caverna era suficiente para ele ler nos dias mais claros. Não havia muitos livros, mas Jared ainda conseguia contrabandear alguns junto com seus presentes da França.

O violento aguaceiro forçou-me a um novo trabalho, a saber, escavar um buraco em minha nova fortificação, como um dreno, para que a água escoasse, caso contrário a caverna teria sido inundada. Depois de estar em meu esconderijo há algum tempo, e não ter enfrentado mais nenhuma intempérie, comecei a recuperar o autocontrole; e agora, para manter meu estado de espírito elevado, o que de fato eu muito precisava, dirigi-me ao meu pequeno depósito e tomei um pequeno gole de rum, o que, entretanto, eu só fazia esporadicamente e com grande moderação, sabendo que não teria mais quando aquele acabasse.

Continuou a chover durante aquela noite inteira e grande parte do dia seguinte, de modo que eu não pude sair; mas, estando minha mente mais serena, comecei a pensar...

As sombras moviam-se pela página conforme as moitas acima dele se agitavam. Com os instintos aguçados, percebeu imediatamente a mudança da direção do vento — e com ele, o som de vozes.

Ergueu-se num salto, a mão na adaga que nunca saía de sua cintura. Depois de esconder o livro cuidadosamente, agarrou-se a uma protuberância de granito que usava como apoio e entrou na fenda íngreme e estreita que formava a entrada da caverna.

O brilhante lampejo de vermelho e metal no caminho embaixo atingiu-o como um golpe de choque e contrariedade. Droga. Não tinha muito receio de que algum dos soldados saísse da trilha - estavam mal equipados para abrir caminho até mesmo por trechos normais de charneca e turfa esponjosa e aberta, quanto mais uma encosta espinhosa, coberta de mato como esta. Mas tê-los tão perto significava que ele não podia se arriscar a deixar a caverna antes da noite cair, nem mesmo para pegar água ou aliviar-se. Lançou um olhar rápido para sua jarra de água, sabendo que estava quase vazia.

Um grito atraiu sua atenção de volta ao caminho embaixo e ele quase perdeu o equilíbrio na rocha. Os soldados haviam se reunido em volta de uma figura pequena, curvada sob o peso de um pequeno barril que carregava no ombro. Fergus, subindo com um barril de cerveja recém-produzida. Droga, mil vezes droga. Bem que gostaria de um pouco de cerveja; há meses não bebia nenhuma.

O vento mudara de direção outra vez, de modo que ele só ouvia fragmentos de palavras, mas a figura pequena parecia estar discutindo com o soldado à sua frente, gesticulando violentamente com a mão livre.

— Idiota! — Jamie disse, num sussurro. - Entregue-lhes o barril e fuja, seu tolo!

Um dos soldados tentou agarrar o barril com as duas mãos, mas errou o alvo quando a pequena figura de cabelos escuros pulou agilmente para trás. Jamie deu um tapa na testa de exasperação. Fergus nunca conseguia resistir à insolência quando confrontado com uma autoridade — especialmente autoridades inglesas.

A pequena figura agora saltitava para trás, gritando alguma coisa a seus perseguidores.

- Idiota! - Jamie disse violentamente. - Largue isso e corra!

Em vez de largar a carga ou correr, Fergus, aparentemente confiante na própria velocidade, virou-se de costas para os soldados e sacudiu o traseiro num insulto. Suficientemente provocados para se arriscarem a pisar na vegetação encharcada, vários dos casacos-vermelhos saíram do caminho para segui-lo.

Jamie viu o líder dos soldados erguer um dos braços e gritar um aviso. Ele evidentemente achara que Fergus podia ser uma isca, tentando atraílos para uma emboscada. Mas Fergus também gritava e os soldados conheciam o suficiente de francês de baixo calão para interpretar o que ele estava dizendo, porque, enquanto vários dos homens pararam imediatamente com o grito do líder, quatro outros soldados arremessaram-se sobre o garoto saltitante.

Houve uma refrega e mais gritaria enquanto Fergus se esquivava, contorcendo-se como uma enguia entre os soldados. Com toda a comoção e acima do zumbido do vento, Jamie não podia ter ouvido o ruído do sabre sendo retirado da bainha, mas sempre achou que ouvira, como se o tênue zunido e o tilintar do metal tivessem sido o primeiro sinal de desgraça. Pareciam ressoar em seus ouvidos sempre que se lembrava da cena - e ele se lembraria dela por muito tempo.

Talvez tivesse sido alguma coisa na atitude dos soldados, uma irritabilidade que chegou até ele na caverna. Talvez fosse apenas uma sensação de desgraça que se agarrara a ele desde Culloden, como se tudo perto dele fosse contaminado e corresse perigo pelo simples fato de estar perto dele. Quer tenha ouvido o som do sabre ou não, seu corpo retesara-se antes de ver o arco prateado da lâmina cortar o ar.

A lâmina moveu-se quase em câmara lenta, suficientemente devagar para que seu cérebro acompanhasse a trajetória do arco, deduzisse o alvo e gritasse, sem palavras, não! Certamente se movera suficientemente devagar para que ele pudesse ter se lançado para baixo no meio do grupo de homens, agarrado o pulso que brandia a espada e soltado a arma mortal, que cairia inofensiva no chão.

A parte consciente de seu cérebro disse-lhe que isso era tolice, mesmo quando congelou suas mãos em torno da pedra de granito, agarrando-se a ela como uma âncora para evitar o impulso avassalador de sair de dentro da terra e correr à frente.

Você não pode, dizia-lhe, um tênue sussurro sob a fúria e o horror que o dominavam. Ele fez isso por você; não pode tornar sem sentido o que ele fez. Não pode, dizia-lhe, fria como a morte sob a dilacerante onda de fracasso que o inundava. Você não pode fazer nada.

E ele não fez nada, nada além de observar, quando a lâmina completou seu movimento vagaroso e atingiu o alvo com um pequeno barulho, surdo e quase insignificante. O barril disputado caiu e foi rolando pelo declive do riacho, o derradeiro barulho da batida na água perdendo-se no gorgolejar alegre da água marrom bem mais abaixo.

A gritaria cessou repentinamente num silêncio chocado. Ele mal ouviu quando recomeçou; era igual ao ronco em seus ouvidos. Seus joelhos cederam e ele percebeu vagamente que estava prestes a desmaiar. Sua visão escureceu e ficou de um negro-avermelhado, salpicado de estrelas e raios de luz - mas nem mesmo a opressora escuridão foi capaz de esconder a visão derradeira da mão de Fergus, aquela mão pequena, ágil e inteligente de um batedor de carteiras, imóvel na lama da trilha, a palma voltada para cima numa súplica.

Ele esperou quarenta e oito longas e arrastadas horas antes de Rabbie MacNab assoviar no caminho abaixo da caverna.

- Como ele está? - perguntou sem preliminares.

- A sra. Jenny diz que ele vai ficar bom - Rabbie respondeu. Seu rosto jovem estava pálido e abatido; obviamente, ele ainda não se recuperara do choque do acidente com seu amigo. - Ela diz que ele não tem febre e não há sinal de inflamação no... - engoliu em seco audivelmente - ...no toco.

- Os soldados o levaram para casa, não foi? - Sem esperar resposta, ele já descia a colina.

- Sim, eles ficaram transtornados... eu acho. - Rabbie parou para desprender sua camisa de um galho e teve que correr para alcançar seu patrão.

- Eu acho que eles lamentaram o que aconteceu. Pelo menos, foi o que o capitão disse. E ele deu uma moeda de ouro para a sra. Jenny, por Fergus.

- É mesmo? - Jamie disse. - Muito generosos. - E não voltou a falar até chegarem em casa.

Fergus estava deitado com todo aparato no quarto das crianças, instalado em uma cama junto à janela. Seus olhos estavam fechados quando Jamie entrou no quarto, as pestanas longas suavemente encostadas nas faces magras. Visto assim, sem a costumeira animação, sua exibição normal de caretas e poses, seu rosto parecia diferente. O nariz ligeiramente pontiagudo acima da boca longa e flexível dava-lhe um ar levemente aristocrático, e os ossos endurecendo-se sob a pele davam alguma promessa de que seu rosto pudesse um dia passar do encanto infantil para uma beleza absoluta.

Jamie aproximou-se da cama e as pestanas escuras ergueram-se imediatamente.

- Milorde - Fergus disse, e um sorriso fraco restaurou no mesmo instante os contornos familiares de seu rosto. - Está seguro aqui?

- Meu Deus, garoto, sinto muito. - Jamie caiu de joelhos junto à cama. Quase não suportava olhar para o braço delgado pousado sobre a colcha, o pulso frágil envolto em ataduras terminando em nada, mas forçou-se a segurar o ombro de Fergus em saudação e esfregar a mão delicadamente sobre a massa de cabelos escuros desgrenhados.

— Dói muito? — perguntou.

- Não, milorde - Fergus disse. Então uma repentina pontada de dor atravessou suas feições, desmentindo-o, e ele riu acanhadamente. - Bem, não muito. E madame tem sido muito generosa com o uísque.

Havia um copo grande cheio da bebida sobre a mesinha-de-cabeceira, porém não mais do que um pouco fora bebido. Fergus, criado com vinho francês, não gostava muito de uísque.

- Sinto muito - Jamie disse outra vez. Não havia mais nada a dizer. Nada que ele pudesse dizer, por causa do aperto em sua garganta. Olhou apressadamente para baixo, sabendo que Fergus ficaria transtornado se o visse chorar.

- Ah, milorde, não se preocupe. - Havia um tom da velha travessura na voz de Fergus. — Eu tive sorte.

Jamie engoliu com força antes de responder.

- Ah, sim, você está vivo, graças a Deus!

- Ah, mais do que isso, milorde! - Ergueu os olhos e viu Fergus sorrindo, embora ainda muito pálido. — Não se lembra do nosso acordo, milorde?

- Acordo?

- Sim, quando me colocou a seu serviço em Paris. O senhor me disse na época que se eu fosse preso e executado, mandaria rezar missas pela minha alma durante um ano. - A mão que lhe restava adejou na direção da surrada medalha esverdeada pendurada ao redor de seu pescoço, a medalha de são Dimas, padroeiro dos ladrões. — Mas se eu perdesse uma orelha ou mão enquanto estivesse a seu serviço...

— Eu iria sustentá-lo para o resto da vida. — Jamie não sabia se ria ou chorava, contentando-se em bater de leve na mão que agora repousava imóvel sobre a coberta. - Sim, lembro-me. Pode confiar em mim, pode ter certeza de que eu vou cumprir o acordo.

- Ah, sempre confiei no senhor, milorde - Fergus assegurou-lhe. Ele estava ficando visivelmente cansado; as faces pálidas estavam ainda mais brancas e a cabeleira escura recaía sobre o travesseiro. - Então tenho sorte — ele murmurou, ainda sorrindo. — Porque, de um só golpe, eu me tornei um cavalheiro do ócio, não?

Jenny aguardava-o quando ele saiu do quarto de Fergus.

- Venha ao buraco-do-padre comigo - ele disse, conduzindo-a pelo cotovelo. — Preciso falar-lhe por um instante e não devo ficar mais tempo dando as caras por aqui.

Ela seguiu-o sem comentários, até a saleta de entrada dos fundos, de assoalho de pedra, que separava a cozinha da despensa. No meio das lajes do assoalho havia um grande painel de madeira, perfurado com buracos, aparentemente cimentado nas pedras do piso. Teoricamente, aquele era o respiradouro do depósito subterrâneo e, de fato, se alguém suspeitasse e resolvesse investigar, este depósito, onde se entrava por uma porta do lado de fora da casa e abaixo do nível do terreno, possuía um painel assim instalado no teto.

O que não se via era que o painel também permitia entrada de luz e ar a um cubículo construído logo atrás do depósito, o qual podia ser acessado puxando-se o painel, com a moldura cimentada e tudo, e revelando-se uma pequena escada que conduzia ao cubículo.

Media pouco mais de um metro quadrado, destituído de qualquer móvel, exceto um banco rústico, um cobertor e um urinol. Uma grande jarra de água e uma pequena caixa de biscoitos secos completavam os acessórios do aposento. Na realidade, fora acrescentado à casa há poucos anos e, portanto, não era verdadeiramente um buraco-do-padre, já que nenhum padre o ocupara ou provavelmente viria a ocupar. Mas sem dúvida tratava-se de um buraco.

Duas pessoas só poderiam ocupar o lugar sentando-se lado a lado no banco e Jamie sentou-se ao lado da irmã assim que recolocou o painel no lugar acima de sua cabeça e desceu a escada. Ele permaneceu imóvel por um instante, depois respirou fundo e começou.

- Não posso mais suportar isso - ele disse. Falou tão baixo que Jenny foi forçada a inclinar a cabeça para mais perto a fim de ouvi-lo, como um sacerdote ouvindo a confissão de um penitente. - Não posso. Tenho que ir embora.

Estavam sentados tão juntos que ele podia sentir a subida e descida de seu peito quando ela respirava. Em seguida, ela estendeu o braço e tomou a mão dele, os dedos pequenos e firmes apertando-a.

— Vai tentar a França outra vez, então? — Ele já havia tentado fugir para a França duas vezes, frustrado nas duas tentativas pela vigilância rigorosa que os ingleses mantinham em todos os portos. Nenhum disfarce era suficiente para um homem de sua extraordinária altura e cor.

Ele sacudiu a cabeça.

— Não. Vou me deixar capturar.

- Jamie! - Em sua agitação, Jenny deixou sua voz erguer-se por um instante, depois a abaixou outra vez em reação ao aperto da mão de Jamie em advertência. -Jamie, não pode fazer isso! - disse, mais baixo. - Santo Deus, você será enforcado!

Ele manteve a cabeça baixa como se pensasse, mas sacudiu-a, sem hesitação.

- Acho que não. - Olhou para sua irmã, depois desviou o olhar rapidamente. — Claire... ela era vidente. - Uma explicação tão boa quanto outra qualquer, ele pensou, se não a verdadeira. - Ela previu o que aconteceria em Culloden... ela sabia. E me contou o que viria depois.

- Ah - Jenny disse num sussurro. - Eu imaginava. Então foi por isso que ela me pediu para plantar batatas... e construir este esconderijo.

- Sim. - Deu um ligeiro aperto na mão de sua irmã, depois a soltou e virou-se ligeiramente no banco para encará-la. — Ela me disse que a Coroa continuaria a caçar jacobitas durante algum tempo... e foi o que aconteceu — acrescentou ironicamente. — Mas que depois de alguns anos eles não iriam mais executar os homens que capturassem... apenas prendê-los.

- Apenas! - sua irmã repetiu em eco. - Se tem que ir, Jamie, vá para a charneca, mas entregar-se a uma prisão inglesa, quer o enforquem ou não...

— Espere. — A mão no braço de Jenny interrompeu-a. — Ainda não lhe disse tudo que tenho a dizer. Não pretendo simplesmente ir até os ingleses e render-me. Há um bom preço pela minha cabeça, não é? Seria uma vergonha desperdiçar isso, não acha? - Tentou forçar um sorriso em sua voz; ela o ouviu e ergueu os olhos incisivamente para ele.

— Santa Mãe de Deus - murmurou. - Então pretende que alguém o traia?

— Aparentemente, sim. — Ele já arquitetara o plano, sozinho na caverna, mas não parecera tão real até agora. - Achei que talvez Joe Fraser seria a pessoa mais indicada para isso.

Jenny esfregou o punho cerrado nos lábios. Ela era rápida; sabia que ela compreendera o plano imediatamente - e todas as suas implicações.

- Mas, Jamie - ela murmurou. - Mesmo que eles não o enforquem imediatamente, e esse é um risco muito grande, você poderia ser morto quando eles o levassem!

Seus ombros arriaram-se subitamente, sob o peso do sofrimento e da exaustão.

- Meu Deus, Jenny - ele disse -, você acha que eu me importo? Fez-se um longo silêncio antes de Jenny responder.

— Não, acho que não — ela disse. — E também não posso dizer que o recrimino por isso. - Parou por um instante, para firmar a voz. - Mas ainda assim eu me importo. — Os dedos dela tocaram sua nuca ternamente, afagando seus cabelos. — Então você vai tomar cuidado, não é, seu tolo?

O painel de ventilação acima deles escureceu-se momentaneamente e ouviu-se o som de passos leves. Uma das cozinheiras, a caminho da dêspensa, talvez Em seguida, a luz turva voltou e ele pôde ver o rosto de Jenny outra vez

- Sim - murmurou finalmente - Tomarei

Foram necessários mais de dois meses para completar os preparativos. Quando chegou finalmente o dia, já era primavera.

Ele sentou-se em sua pedra favorita, perto da entrada da caverna, observando as primeiras estrelas surgirem. Mesmo nos piores momentos passados desde Culloden, ele sempre fora capaz de encontrar um momento de paz nesta hora do dia. Conforme entardecia, era como se tudo ficasse iluminado por dentro, a silhueta recortada das coisas contra o céu ou o solo, perfeitas e nítidas em cada detalhe. Ele podia ver a forma de uma mariposa, invisível em plena luz, agora desenhada na claridade do crepúsculo com um triângulo de sombra mais escura que a fazia se destacar do tronco onde se escondia. Em um instante, ela levantaria vôo.

Olhou a extensão do vale, tentando estender a paisagem até os pinheiros negros que margeavam a longínqua escarpa do penhasco. Depois para cima, entre as estrelas Orion lá, abarcando, majestosa, o horizonte E as Plêiades, pouco visíveis no céu que escurecia. Poderia ser sua última visão do céu por algum tempo e pretendia desfrutá-la. Pensou na prisão, barras de ferro e trancas e paredes sólidas, e lembrou-se de Fort William. Prisão de Wentworth. A Bastilha. Paredes de pedra, de mais de um metro de espessura, bloqueando todo o ar e toda a luz. Imundície, fedor, fome, sepultura.

Estremeceu, afastando esses pensamentos. Ele escolhera seu caminho e estava satisfeito com isso. Ainda assim, vasculhou o céu, à procura de Touro. Não era a mais bela das constelações, mas era a sua. Nascido sob o signo do touro, teimoso e forte. Forte o suficiente, esperava, para fazer o que pretendia.

Entre os crescentes sons noturnos, ouviu-se um assovio alto e agudo. Podia ser o canto de volta para casa de um maçarico no lago, mas ele reconheceu o sinal. Alguém subia o caminho — uma pessoa amiga.

Era Mary MacNab, que se tornara cozinheira em Lallybroch depois da morte do marido. Geralmente era seu filho Rabbie, ou Fergus, que lhe trazia comida e notícias, mas ela já viera algumas vezes antes.

Trazia um cesto, extraordinariamente bem suprido, com uma perdiz assada, pão fresco, várias cebolinhas verdes, um cacho das primeiras cerejas da temporada e um frasco de cerveja. Jamie examinou a fartura, depois ergueu os olhos com um sorriso enviesado.

- Meu banquete de despedida, hem?

Ela balançou a cabeça, em silêncio. Era uma mulher pequena, de cabelos escuros bastante mesclados de fios brancos, o rosto marcado pelas dificuldades da vida. Ainda assim, seus olhos eram meigos e castanhos, e seus lábios ainda cheios e suavemente delineados.

Ele percebeu que estava olhando fixamente para sua boca e apressadamente voltou-se para o cesto outra vez.

- Nossa, vou ficar tão cheio que não vou conseguir me locomover. Até mesmo um bolo! Como vocês conseguiram isso?

Ela deu de ombros - Mary MacNab não era de muita conversa - e, pegando o cesto de sua mão, começou a arrumar a refeição sobre o tampo de mesa de madeira apoiado sobre pedras. Ela colocou pratos para ambos. Isso não era nada incomum; ela já havia comido com ele antes, para lhe contar os mexericos da região enquanto comiam. Ainda assim, se essa era sua última refeição antes de deixar Lallybroch, ficou surpreso de nem sua irmã nem os garotos terem vindo compartilhá-la com ele. Talvez houvesse visitas na casa que os impediam de se ausentar sem serem notados.

Ele fez um sinal educado para que ela se sentasse primeiro, antes de tomar seu próprio lugar, com as pernas cruzadas no chão de terra batida.

- Falou com Joe Fraser? Onde deverá ser, então? - ele perguntou, comendo um pedaço da perdiz assada.

Ela lhe passou os detalhes do plano; um cavalo seria trazido antes do amanhecer e ele cavalgaria para fora do vale estreito, seguindo o desfiladeiro. Em seguida, deveria virar, atravessar os sopés rochosos das montanhas e descer, de volta ao vale em Feesyhant’s Burn, como se estivesse voltando para casa. Os ingleses o encontrariam em algum ponto entre Struy e Eskadale, mais provavelmente em Midmains; era um bom lugar para uma emboscada, porque o vale estreito erguia-se quase verticalmente dos dois lados, mas com um pequeno bosque junto ao riacho, onde vários homens poderiam se esconder.

Após a refeição, ela arrumou o cesto cuidadosamente, deixando comida suficiente para um pequeno desjejum antes de sua partida ao alvorecer. Esperava que ela fosse embora então, mas não foi. Inspecionou a fenda onde ele mantinha seu colchão de palha e cobertas, estendeu-os diligentemente no chão, virou os cobertores para trás e ajoelhou-se ao lado do colchão, as mãos entrelaçadas no colo.

Ele recostou-se contra a parede da caverna, os braços cruzados. Olhou para o topo de sua cabeça abaixada, exasperado.

- Ah, então é assim, hein? - perguntou. - E de quem foi a idéia? Sua ou de minha irmã?

— E importa? — Ela estava serena, as mãos perfeitamente imóveis no colo, os cabelos escuros perfeitamente presos em sua fita.

Ele sacudiu a cabeça e inclinou-se para puxá-la e colocá-la de pé.

- Não, não importa, porque não vai acontecer. Agradeço sua intenção, mas...

Seu discurso foi interrompido com um beijo. Seus lábios eram tão macios quanto pareciam. Agarrou-a com firmeza pelos pulsos e afastou-a.

- Não! - disse. - Não é necessário e eu não quero fazer isso. - Ele estava desconfortavelmente consciente de que seu corpo não concordava absolutamente com sua avaliação de necessidade e ainda mais desconfortável com o conhecimento de que suas calças, pequenas e gastas com o uso, tornava a magnitude da discordância óbvia para qualquer um que quisesse olhar. O ligeiro sorriso que curvava aqueles lábios cheios e doces sugeria que ela estava olhando.

Virou-a em direção à entrada da caverna e deu-lhe um pequeno empurrão, ao qual ela respondeu dando um passo para o lado e levando as mãos às costas para desamarrar sua saia.

- Não faça isso! - ele exclamou.

- Como pretende me impedir? - ela perguntou, pisando fora da roupa, dobrando-a cuidadosamente e colocando-a em cima do único banquinho. Os dedos delgados dirigiram-se aos cadarços do espartilho.

- Se você não sair, eu é que serei obrigado a fazê-lo - respondeu com decisão. Girou nos calcanhares e dirigia-se para a entrada da caverna quando ouviu a voz atrás dele.

- Milorde! - ela disse.

Ele parou, mas não se virou.

- Não é adequado me chamar assim - ele disse.

- Lallybroch é sua - ela disse. - E será enquanto você viver. Se você é o proprietário e senhor das terras, eu o chamarei assim.

- Não é minha. A propriedade pertence ao Jovem Jamie.

- Não é o Jovem Jamie que está fazendo o que você está — ela respondeu sem titubear. - E não foi sua irmã quem me pediu para fazer o que estou fazendo. Vire-se.

Ele virou-se, relutantemente. Ela estava de pé, descalça e de combinação, os cabelos soltos sobre os ombros. Ela era magra, como todos eram ultimamente, mas seus seios eram maiores do que ele imaginara e os mamilos mostravam-se proeminentes, através do tecido fino. A combinação estava tão gasta quanto suas outras roupas, puídas na bainha e nos ombros, quase transparente em alguns pontos. Ele fechou os olhos.

Sentiu um leve toque em seu braço e obrigou-se a permanecer imóvel.

- Sei muito bem o que está pensando - ela disse. - Porque eu conheci sua senhora e sei como era entre vocês dois. Eu nunca tive isso - ela acrescentou, com a voz mais branda - com nenhum dos dois homens com quem me casei. Mas eu sei quando vejo o verdadeiro amor e não penso em fazê-lo sentir que o traiu.

O toque de sua mão, leve como uma pluma, moveu-se para seu rosto e o polegar, áspero do trabalho bruto, percorreu o sulco que corria do nariz à boca.

- O que eu quero - ela disse serenamente - é lhe dar algo diferente. Algo menor, talvez, mas algo que você pode usar; algo para você se sentir inteiro, completo. Sua irmã e as crianças não podem lhe dar isso, eu posso. — Ele ouviu-a inspirar e a mão em seu rosto afastou-se. — Você me deu minha casa, minha vida e meu filho. Não vai deixar que eu lhe dê um pequeno presente em troca?

Ele sentiu os olhos marejarem de lágrimas. O toque suave moveu-se pelo seu rosto, limpando as lágrimas de seus olhos, alisando seus cabelos para trás. Ele ergueu os braços, devagar, e estendeu-os para ela. Ela entrou em seu abraço, tão cuidadosa e simplesmente como pôs a mesa e fez a cama.

— Eu... não faço isso há muito tempo — ele disse, de repente envergonhado.

— Eu também não — ela disse, com um leve sorriso. — Mas a gente vai se lembrar como é.

 

O envelope de Linklater chegou no correio da manhã.

— Olha como é volumoso! — Brianna exclamou. — Ele enviou alguma coisa! - A ponta de seu nariz estava rosada de empolgação.

- Parece que sim - Roger disse. Aparentemente, ele estava calmo, mas pude ver sua pulsação latejando na base da garganta. Ele pegou o grosso envelope de papel pardo e segurou-o por um instante, avaliando o peso. Em seguida, rasgou a aba descuidadamente com o polegar e arrancou de dentro um maço de páginas fotocopiadas.

A carta que encimava o maço de folhas, num espesso papel timbrado da universidade, esvoaçou e caiu. Agarrei-a do chão e a li em voz alta, a voz um pouco trêmula.

- Prezado dr. Wakefield — eu li. - Esta carta é em resposta à sua consulta referente à execução de oficiais jacobitas pelas tropas do duque de Cumberland após a Batalha de Culloden. A principal fonte de minha citação no meu livro ao qual você se refere foi o diário particular de um certo lorde Melton, que comandou um regimento de infantaria sob as ordens de Cumberland na época de Culloden. Anexei fotocópias das páginas relevantes do diário; como vê, a história do sobrevivente, chamado James Fraser, é extraordinária e emocionante. Fraser não é um personagem histórico relevante e sua trajetória não acrescentaria muito à minha linha de trabalho, mas muitas vezes pensei em pesquisar mais sobre ele, na esperança de determinar sua sorte final. Caso você descubra que ele realmente sobreviveu à jornada à sua própria propriedade, ficaria agradecido que me informasse. Eu sempre, de certo modo, torci para que ele tenha conseguido, embora suas condições físicas, como descritas por Melton, façam essa possibilidade parecer improvável. Atenciosamente, Eric Linklater.

O papel tremia em minha mão e eu o coloquei, com muito cuidado, sobre a escrivaninha.

- Improvável, hein? - Brianna disse, na ponta dos pés para olhar por cima do ombro de Roger. - Ah-ah! Ele realmente voltou, sabemos que ele conseguiu!

- Nós achamos que conseguiu — Roger corrigiu-a, mas tratava-se apenas de cautela acadêmica; seu sorriso era tão amplo quanto o de Brianna.

— Vão tomar chá ou chocolate quente no lanche das onze horas? — A cabeça de cabelos escuros e cacheados de Fiona surgiu na porta do gabinete, interrompendo a animação. — Temos biscoitos de nozes e gengibre que acabaram de sair do forno. - O aroma de gengibre quente entrou no gabinete com ela, elevando-se de seu avental e flutuando no ar de forma tentadora.

Roger e Brianna responderam ao mesmo tempo.

— Chá, por favor.

- Ah, chocolate quente está ótimo!

Fiona, exibindo uma expressão convencida, empurrou o carrinho de chá para dentro do gabinete, ostentando chá, chocolate quente e biscoitos frescos de nozes e gengibre.

Eu mesma aceitei uma xícara de chá e sentei-me na bergère com as páginas do diário de Melton. A fluida caligrafia do século XVIII era surpreendentemente clara, apesar da grafia arcaica e, em poucos minutos, eu estava nos limites da casa da fazenda Leanach, imaginando o som de moscas zumbindo, os movimentos de corpos amontoados e o cheiro acre de sangue encharcando o chão de terra batida.

”... em atendimento à dívida de honra de meu irmão, eu não poderia agir de outra forma senão poupar a vida de Fraser. Assim, omiti seu nome da lista de traidores executados na casa da fazenda e tomei providências para seu transporte até sua própria propriedade. Não consigo me sentir nem completamente clemente em relação a Fraser ao tomar essa medida, nem completamente culpado com relação ao meu serviço ao duque, já que o estado de Fraser, com um grave ferimento na perna inflamado e pustulento, torna improvável que ele sobreviva à viagem até em casa. Ainda assim, a honra me impede de agir de outra forma e devo confessar que meu espírito ficou mais leve ao ver o sujeito removido, ainda vivo, do campo, quando voltei minha atenção para a melancólica tarefa de dispor dos corpos de seus camaradas. Tanta matança como tenho presenciado nestes últimos dois dias me oprime”, a anotação terminava com simplicidade.

Coloquei as folhas de papel sobre os joelhos, engolindo em seco com esforço. ”... um grave ferimento... inflamado e pustulento...” Eu sabia, de uma forma que Brianna e Roger não poderiam saber, o alcance da gravidade desse ferimento, sem antibióticos, nada que se aproximasse de um tratamento médico adequado; nem mesmo os rústicos emplastros de ervas disponíveis a um feiticeiro das Highlands na época. Quanto tempo teria levado, sacolejando de Culloden a Broch Tuarach em uma carroça? Dois dias? Três? Como poderia ter sobrevivido, nessas condições e sem tratamento, por tanto tempo?

- Mas ele conseguiu. - A voz de Brianna interrompeu meus pensamentos, respondendo ao que parecia ser um pensamento semelhante expressado por Roger. Falou com uma segurança simples, como se tivesse visto todos os acontecimentos descritos no diário de Melton e tivesse certeza de seu desfecho. - Ele conseguiu voltar. Ele era o Dunbonnet, eu sei.

— O Dunbonnet? — Fiona, pairando com impaciência sobre a minha xícara fria de chá intocado, olhou por cima do ombro, surpresa. - Você já ouviu falar do Dunbonnet?

— Você já? — Roger olhou para a jovem governanta, espantado.

Ela balançou a cabeça, entornando acidentalmente meu chá na aspidistra que ficava perto da lareira e enchendo minha xícara outra vez com um chá fresco e fumegante.

- Ah, sim. Minha avó me contou essa história, muitas vezes.

- Conte-nos! - Brianna inclinou-se para a frente, atenta, as palmas das mãos envolvendo a xícara de chocolate quente. — Por favor, Fiona. Como é a história?

Fiona pareceu ligeiramente surpresa de se ver de repente o centro de tanta atenção, mas deu de ombros com bom humor.

- Ora, é apenas a história de um dos seguidores do príncipe Carlos Stuart. Quando houve a grande derrota de Culloden, onde muitos homens morreram, alguns escaparam. Bem, um homem fugiu do campo e atravessou o rio a nado para escapar, mas os casacos-vermelhos continuaram atrás dele mesmo assim. No caminho, ele se deparou com uma igreja onde uma cerimônia religiosa estava sendo realizada. Entrou correndo e pediu clemência ao pastor. O ministro e as pessoas tiveram pena dele e ele vestiu o traje do pastor, de modo que, quando os soldados ingleses irromperam na igreja poucos instantes depois, lá estava ele, de pé no púlpito, pregando, enquanto a água de sua barba e de suas roupas fazia uma poça em volta de seus pés. Os soldados acharam que haviam se enganado e continuaram sua perseguição descendo a rua. Assim, ele escapou e todos na igreja disseram que aquele fora o melhor sermão que já tinham ouvido! Fiona riu animadamente, enquanto Brianna franzia o cenho e Roger olhava-a perplexo.

- Esse era o Dunbonnet? - ele disse. - Mas eu achei que...

- Ah, não! - ela assegurou-lhes. - Esse não era o Dunbonnet... o Dunbonnet era outro dos homens que conseguiram escapar de Culloden. Ele voltou para suas próprias terras, mas como os sassenachs estavam caçando homens por todas as Highlands, ele ficou escondido lá numa caverna por sete anos.

Ouvindo isso, Brianna afundou em sua cadeira com um suspiro de alívio.

- E seus arrendatários o chamavam de Dunbonnet para não dizerem seu nome e o traírem - ela murmurou.

- Você conhece a história? - Fiona perguntou, impressionada. - Sim, é isso mesmo.

- E sua avó lhe contou o que aconteceu a ele depois disso? - Roger perguntou.

— Ah, sim! — Os olhos de Fiona estavam redondos como balas de caramelo. - Essa é a melhor parte da história. Depois da batalha, a fome se espalhou, as pessoas estavam passando fome nos vales, expulsas de suas casas no inverno, os homens executados e as cabanas incendiadas. Os rendeiros de Dunbonnet tiveram mais sorte do que a maioria, mas mesmo assim chegou o dia em que a comida acabou e suas barrigas roncavam de manhã à noite, não havia caça na floresta, nenhum grão nos campos e as crianças pequenas morrendo nos braços das mães por falta de leite para alimentá-las.

Um calafrio percorreu meu corpo com aquelas palavras. Vi os rostos dos moradores de Lallybroch — as pessoas que eu conhecera e amara — atormentados de frio e fome. Não foi apenas o horror que tomou conta de mim; havia culpa também. Eu fiquei a salvo, aquecida e bem alimentada, em vez de compartilhar seu destino - porque eu fiz o que Jamie quis e os abandonei. Olhei para Brianna, a cabeça ruiva e sedosa inclinada, absorta, e o aperto em meu peito abrandou-se um pouco. Ela também esteve a salvo nesses anos passados, aquecida, bem alimentada e amada — porque eu fiz o que Jamie pediu.

— Então o Dunbonnet arquitetou um plano ousado — Fiona continuava. O rosto redondo estava iluminado com o drama de sua história. - Ele arranjou para que um de seus rendeiros fosse ao encontro dos ingleses e se oferecesse para traí-lo. Havia um bom preço por sua cabeça, pois ele fora um grande guerreiro para o príncipe. O rendeiro pegaria o ouro da recompensa, para ser usado pelas pessoas da propriedade, é claro, e diria aos ingleses onde o Dunbonnet poderia ser capturado.

Minha mão fechou-se com tanta força diante disso que a asa delicada de minha xícara saiu inteira em minha mão.

- Capturado? - exclamei com a voz rouca de choque. - Eles o enforcaram?

Fiona pestanejou para mim, surpresa.

- Ora, não - ela disse. - Eles queriam, foi o que minha avó disse, e o levaram a julgamento por traição, mas por fim trancaram-no numa prisão, em vez de enforcá-lo. Mas o ouro foi para seus rendeiros e assim conseguiram sobreviver à fome - ela terminou alegremente, sem dúvida considerando aquele um final feliz.

— Santo Deus — Roger exclamou com um suspiro. Colocou a xícara sobre a mesa cuidadosamente e permaneceu sentado, fitando o espaço vazio, transfixo. — Prisão.

- Você fala como se isso fosse bom - Brianna protestou. Os cantos de sua boca estavam tensos de agonia e os olhos ligeiramente brilhantes.

— E é — Roger disse, notando seu sofrimento. — Não havia tantas prisões onde os ingleses aprisionavam traidores jacobitas e todas elas mantinham registros oficiais. Não compreendem? — ele perguntou, olhando da expressão de perplexidade de Fiona para a expressão de tristeza de Brianna, em seguida assentando-se em mim, na esperança de encontrar compreensão. - Se ele foi para a prisão, eu posso localizá-lo. - Virou-se, para olhar para as altas estantes de livros que recobriam três paredes do gabinete, abrigando a coleção de segredos jacobitas pertencente ao finado reverendo Wakefield.

— Ele está lá — Roger disse num murmúrio. — Em uma lista de presos. Em um documento, prova verdadeira! Não vê? - perguntou outra vez, voltando-se de novo para mim. - Ir para a prisão tornou-o parte da história escrita outra vez! E em algum lugar ali, nós o encontraremos!

- E o que aconteceu a ele - Brianna disse com um suspiro. - Quando ele foi libertado.

Os lábios de Roger comprimiram-se, para estancar a alternativa que lhe veio à mente, como viera à minha — ”ou morreu”.

- Sim, isso mesmo - ele disse, tomando a mão de Brianna. Seus olhos depararam-se com os meus, verde-escuros e insondáveis. — Quando ele foi libertado.

Uma semana mais tarde, a fé de Roger em documentos continuava inabalável. O mesmo não podia ser dito em relação à mesa do século XVIII do gabinete do falecido reverendo Wakefield, cujas pernas finas oscilavam e estalavam assustadoramente sob o peso extra.

Essa mesa em geral acomodava não mais do que um pequeno abajur e uma coleção dos artefatos menores do reverendo; estava sobrecarregada agora simplesmente porque todas as demais superfícies horizontais no gabinete já transbordavam de documentos, publicações, livros e grossos envelopes de papel pardo de sociedades de antiquários, universidades e bibliotecas de pesquisa de toda a Inglaterra, Escócia e Irlanda.

- Se você colocar mais uma folha nesta mesa ela vai desmoronar — Claire observou, enquanto Roger descuidadamente estendia o braço, pretendendo largar a pasta que estava carregando sobre a pequena mesa de marchetaria.

- Ah, é? Oh, está bem. - Mudou de direção em pleno ar, olhou inutilmente ao redor, à procura de outro lugar onde colocar a pasta, e por fim resolveu colocá-la no chão a seus pés.

- Finalmente acabei com Wentworth - Claire disse. Com a ponta do pé, indicou uma pilha precária no chão. -Já recebemos os registros de Berwick?

- Sim, hoje de manhã. Mas onde será que eu os coloquei? - Roger olhou vagamente ao redor do aposento, que lembrava muito o saque da biblioteca de Alexandria, pouco antes da primeira tocha ter sido acesa. Ele esfregou a testa, tentando se concentrar. Após uma semana passando dez horas por dia folheando os registros manuscritos à mão das prisões britânicas, além de cartas, periódicos e diários de seus comandantes, buscando qualquer pista oficial de Jamie Fraser, Roger estava começando a sentir que tinha areia nos olhos.

- Era azul - disse finalmente. - Lembro-me perfeitamente de que era azul. Eu os consegui com McAllister, o professor de história do Trinity em Cambridge, e o Trinity College usa esses grandes envelopes azul-claros, com o brasão da faculdade na frente. Talvez Fiona o tenha visto. Fiona!

Caminhou até a porta do gabinete e chamou-a pelo corredor, na direção da cozinha. Apesar da hora, a luz da cozinha ainda estava acesa e os cheiros revigorantes de chocolate quente e bolo de amêndoas pairavam no ar. Fiona jamais abandonaria seu posto enquanto houvesse a mais leve possibilidade de que alguém em seu entorno pudesse precisar de alimento.

- Ah, sim? - A cabeça de cabelos castanhos e cacheados de Fiona surgiu pela porta da cozinha. — Num instante o chocolate estará pronto — ela assegurou-lhe. - Só estou esperando o bolo sair do forno.

Roger sorriu para ela com profunda afeição. Fiona não possuía a menor utilidade para a história, nunca lia nada além de revistas populares, mas nunca questionava suas atividades, tranqüilamente tirando o pó das pilhas de livros e papéis diariamente, sem se incomodar com seus conteúdos.

— Obrigado, Fiona — ele disse. — Eu só estava pensando se você viu um grande envelope azul, grosso, por aí? - Mostrou o tamanho do envelope com as mãos. — Chegou hoje de manhã pelo correio, mas eu não sei onde o coloquei.

- Deixou-o no banheiro de cima - ela disse imediatamente. - Há um livro grande e grosso com letras douradas e o retrato do príncipe Carlos na capa, três cartas abertas e a conta do gás, também, que você não queria esquecer e que vence no dia 14 do mês. Coloquei tudo sobre o aquecedor de água, para não ficarem no caminho. — Um bipe curto e agudo do relógio do forno a fez recuar bruscamente com uma exclamação abafada.

Roger virou-se e subiu as escadas, dois degraus de cada vez, sorrindo. Se tivesse outras inclinações, a memória de Fiona a teria tornado uma estudiosa. Assim mesmo do jeito que era, já não se podia desprezar como assistente de pesquisa. Desde que um determinado documento ou livro pudesse ser descrito com base na aparência, em vez do título ou do conteúdo, era provável que Fiona soubesse exatamente onde ele estava.

— Ah, não é nada de mais — respondeu a Roger com vivacidade, quando ele tentou se desculpar pela bagunça que estava fazendo na casa. - Até parece que o reverendo ainda está vivo, com tantos papéis espalhados por toda parte. Exatamente como nos velhos tempos, não é?

Descendo as escadas mais devagar, com o envelope azul nas mãos, perguntou-se o que seu falecido pai adotivo teria pensado da presente busca.

- Estaria mergulhado nisso até a cabeça, não tenho a menor dúvida. - murmurou para si mesmo. Guardava uma lembrança vivida do reverendo, a cabeça calva brilhando sob os antiquados globos de luz pendurados no teto do corredor, enquanto caminhava sem pressa do gabinete para a cozinha, onde a velha sra. Graham, avó de Fiona, estaria à frente do fogão, suprindo as necessidades físicas do velho reverendo durante as sessões noturnas de estudo, exatamente como Fiona agora fazia para ele.

Faz uma pessoa refletir, ele pensou, entrando no gabinete. Antigamente, quando o filho geralmente seguia a profissão do pai, seria apenas por uma questão de conveniência - a intenção de manter os negócios na família — ou haveria alguma espécie de predisposição familiar para alguns tipos de trabalho? Algumas pessoas de fato teriam nascido para ser ferreiros, ou comerciantes, ou cozinheiros - nascidos com uma inclinação ou um talento, além da oportunidade?

Obviamente, isso não se aplicava a todo mundo; sempre havia aqueles que saíam de casa, vagavam por aí, tentavam atividades até então desconhecidas em seus círculos familiares. Se não fosse assim, provavelmente não haveria inventores nem exploradores; ainda assim, parecia haver uma certa afinidade para algumas carreiras em determinadas famílias, mesmo nestes agitados tempos modernos de educação acessível e viagens fáceis.

O que ele realmente se perguntava, pensou consigo mesmo, era a respeito de Brianna. Observou Claire, a cabeça de cabelos cacheados com reflexos dourados inclinada sobre a escrivaninha, e viu-se imaginando o quanto Brianna viria a ser como a mãe e o quanto como o pouco conhecido escocês - guerreiro, fazendeiro, cortesão, senhor de terras - que fora seu pai.

Ainda seguia essa mesma linha de raciocínio um quarto de hora mais tarde, quando Claire fechou a última pasta de sua pilha e reclinou-se para trás, suspirando.

- Um centavo pelos seus pensamentos - ela disse, estendendo a mão para sua xícara.

- Não valem nem isso - Roger retrucou com um sorriso, saindo de seus devaneios. - Só estava imaginando como as pessoas vêm a ser o que são. Como você se tornou médica, por exemplo?

- Como me tornei uma médica? - Claire inalou o vapor de sua xícara de chocolate quente, decidiu que estava quente demais para beber e recolocoua sobre a escrivaninha, entre o amontoado de livros, periódicos e folhas de papel rabiscadas a lápis. Esboçou um sorriso para Roger e esfregou as mãos, dispersando o calor da xícara. - Como você se tornou um historiador?

- Mais ou menos honestamente - ele respondeu, reclinando-se na poltrona do reverendo e abanando a mão para o acúmulo de documentos e pequenos objetos ao redor. Bateu de leve em um relógio de viagem folheado a ouro que havia sobre a mesa, uma peça elegante do século XVIII, com carrilhões em miniatura que batiam a hora, a meia hora e o quarto de hora.

- Cresci em meio a tudo isso. Eu já bisbilhotava pelas Highlands à procura de artefatos com meu pai desde quando aprendi a ler. Creio que simplesmente pareceu natural continuar fazendo isso. Mas e você?

Ela balançou a cabeça e espreguiçou-se, relaxando os ombros das longas horas passadas debruçada sobre a escrivaninha. Brianna, sem conseguir permanecer acordada, desistira e fora para a cama há uma hora, mas Claire e Roger continuaram com sua busca pelos registros administrativos das prisões britânicas.

- Bem, para mim também foi algo semelhante - ela disse. - Eu não decidi de repente que queria ser médica. Eu apenas percebi um dia que já tinha sido médica por um longo tempo e agora não era mais e sentia falta.

Espalmou as mãos sobre a escrivaninha e flexionou os dedos, longos e maleáveis, as unhas ovais brilhantes e bem polidas.

- Havia uma velha canção da Primeira Guerra Mundial - ela disse pensativamente. - Eu a ouvia às vezes, quando alguns dos velhos companheiros de tio Lamb do exército vinham nos visitar e ficavam até tarde, meio bêbados. Dizia assim: ”Como você vai mantê-los na fazenda, depois de terem visto Paris?” — ela cantou o primeiro verso, depois parou, com um sorriso irônico.

- Eu tinha visto Paris - ela disse brandamente. Ergueu os olhos das mãos, alerta e presente, mas com traços da memória nos olhos, fixos em Roger com a claridade de um sexto sentido. - E diversas outras coisas. Caen e Amiens, Preston, Falkirk, o Hôpital dês Anges e o pretenso consultório de Leoch. Eu tinha sido uma médica, de todas as formas possíveis: fiz partos, consertei ossos, costurei ferimentos, tratei febres... — Sua voz definhou e ela estremeceu. - Havia muita coisa que eu não sabia, é claro.

Eu sabia o quanto podia aprender e foi por isso que fui para a faculdade de medicina. Mas não fez muita diferença, sabe. - Enfiou o dedo no creme chantilly que flutuava sobre o chocolate quente e lambeu-o. - Tenho um diploma de médica, mas eu já era médica muito antes de colocar os pés numa escola de medicina.

— Não pode ter sido tão simples como você faz parecer — Roger disse, soprando seu próprio chocolate e analisando Claire com franco interesse. — Não havia muitas mulheres na medicina na época, não há muitas mulheres na medicina nem agora e, além disso, você tinha uma família.

— Não, não posso dizer que foi fácil, absolutamente. — Claire lançoulhe um olhar inquisidor. — Esperei até Brianna ir para a escola, é claro, e tínhamos dinheiro suficiente para pagar alguém para cozinhar e limpar, mas... — Deu de ombros e sorriu ironicamente. — Parei de dormir por vários anos. Isso ajudou um pouco. E, por estranho que pareça, Frank também ajudou.

Roger testou sua própria caneca de chocolate e achou que já esfriara o suficiente. Segurou-a entre as mãos, desfrutando o calor da porcelana grossa e branca penetrando em suas palmas. Apesar de ser começo de junho, as noites ainda eram bastante frias para tornar o aquecedor elétrico uma necessidade.

— É mesmo? — ele disse, curioso. — Pelo que você comentou a respeito dele, não imaginei que ele tivesse gostado de sua decisão de fazer a faculdade de medicina e se tornar médica.

- E não gostou. - Seus lábios cerraram-se; o movimento disse a Roger mais do que as palavras poderiam dizer, fazendo lembrar discussões, conversas não terminadas e abandonadas, uma oposição de teimosia e obstrução indireta, em vez de desaprovação declarada.

Que rosto notavelmente expressivo ela possuía, ele pensou, observando-a. Perguntou-se de repente se o seu próprio rosto também poderia ser lido com tanta facilidade. A idéia era tão perturbadora que ele enfiou o rosto na sua caneca, tomando um grande gole de chocolate, embora ainda estivesse um pouco quente demais.

Ao emergir da caneca, Claire fitava-o com um ar ligeiramente irônico.

- Por quê? - ele perguntou rapidamente, para distraí-la. - O que o fez mudar de idéia?

- Bri - ela disse, e seu rosto suavizou-se como sempre acontecia quando mencionava a filha. - Bri era a única coisa que realmente importava para Frank.

Eu esperara, como havia dito, até Brianna começar a escola para eu mesma começar o curso de medicina. Mas, ainda assim, havia uma grande lacuna entre seus horários e os meus, que preenchíamos da melhor forma possível com uma série de governantas e babás mais ou menos competentes; algumas mais, a maioria menos.

Minha mente voltou ao dia assustador em que recebi um chamado no hospital, dizendo-me que Brianna estava ferida. Saí às pressas do hospital, sem parar para tirar o uniforme de linho verde que estava usando, e corri para casa, ignorando todos os limites de velocidade. Deparei-me com um carro da polícia e uma ambulância iluminando a noite com sua luz vermelho-sangue intermitente e um grupo de vizinhos curiosos amontoados na rua.

Quando conseguimos montar a história mais tarde, o que acontecera é que a babá temporária mais recente, aborrecida por eu estar atrasada e ela ter que ficar além da hora outra vez, simplesmente vestira o casaco no seu horário de saída e fora embora, abandonando Brianna, aos sete anos, com as instruções ”espere a mamãe”. Isso ela obedientemente fez por mais ou menos uma hora. Mas quando começou a escurecer, ela ficou com medo de ficar sozinha em casa e resolveu sair e ir ao meu encontro. Ao cruzar uma das ruas movimentadas perto de casa, fora atropelada por um carro que entrava na rua.

Ela —graças a Deus! — não se ferira gravemente; o carro estava em baixa velocidade e ela saiu da experiência apenas abalada e com algumas contusões. Aliás, não tão abalada quanto eu. Nem tão machucada como eu, quando entrei na sala e a encontrei deitada no sofá; ela olhou para mim, as lágrimas escorrendo de novo pelo rostinho molhado e disse: ”Mamãe! Onde você estava? Não consegui encontrar você!”

Precisei de todas as minhas reservas de autocontrole profissional para confortá-la, examiná-la, cuidar novamente de seus arranhões e cortes, agradecer às pessoas que a resgataram — as quais, para a minha mente febril, fitavam-me acusadoramente - e colocá-la para dormmír com seu ursinho bem apertado nos braços. Em seguida, sentei-me à mesa da cozinha e foi minha vez de chorar.

Frank deu uns tapinhas desajeitadamente em minhas costas, murmurando palavras de conforto, mas depois desistiu e, numa atitude mais prática, foi preparar um chá.

-Já decidi — eu disse, quando ele colocou a xícara fumegante à minha frente. Falei vagarosamente, sentindo a cabeça pesada e bloqueada. — Vou largar os estudos. Farei isso amanhã.

- Parar de estudar? - A voz de Frank soou aguda de surpresa. - Vai largar a faculdade? Por quê?

— Não agüento mais. — Eu nunca adicionava creme nem açúcar ao meu chá. Desta vez, acrescentei ambos, mexendo e observando os filetes de creme girarem pela xícara. — Não agüento mais deixar Bri, sem saber se estão cuidando bem dela... e sabendo que ela não está feliz. Você sabe que ela não gosta realmente de nenhuma das babás que experimentamos.

— Sim, eu sei disso. — Sentou-se à minha frente, mexendo seu próprio chá. Após um longo instante, ele disse: — Mas não acho que deva renunciar.

Era a última coisa que eu esperava ouvir; achei que ele receberia minha decisão com aprovação e alívio. Fitei-o, perplexa, depois assoei o nariz outra vez no lenço de papel que estava no meu bolso.

- Não?

— Ah, Claire. — Falou com impaciência, mas ainda assim com um toque de afeição. - Você sempre soube quem você era. Não percebe o quanto esse conhecimento é incomum?

— Não. — Limpei o nariz com o lenço em frangalhos, usando-o delicadamente para que não se desfizesse em pedaços.

Frank recostou-se em sua cadeira, sacudindo a cabeça enquanto me olhava.

— Não, imagino que não — ele disse. Ficou em silêncio por um minuto, os olhos abaixados, fitando as mãos entrelaçadas. Eram delgadas, os dedos longos; macias e lisas como as de uma moça. Mãos elegantes, feitas para gestos descontraídos e para dar ênfase ao discurso.

Estendeu-as sobre a mesa e olhou para elas como se nunca as tivesse visto antes.

— Eu não tenho isso — ele disse finalmente. — Eu sou bom no que faço, tudo bem. Ensinar, escrever. Na realidade, excelente às vezes. E gosto muito do que faço. Mas a questão é... — Hesitou, depois me olhou diretamente, os olhos castanho-claros ansiosos. - Eu poderia fazer outra coisa e ser igualmente bom. Dedicar-me muito ou pouco. Não possuo esta convicção absoluta de que existe algo na vida que estou destinado afazer... mas você possui.

— E isso é bom? — As minhas narinas ardiam e meus olhos estavam inchados de tanto chorar.

Ele deu uma risadinha curta.

— É extremamente inconveniente, Claire. Para você, para mim e para Bri, para nós três. Mas, por Deus, eu às vezes a invejo.

Estendeu o braço para segurar minha mão e, após um momento de hesitação, deixei que a tomasse.

- Sentir essa paixão por alguma coisa - um pequeno tremor repuxou o canto de sua boca — ou alguém. Isso é absolutamente esplêndido, Claire, e muito raro. — Apertou minha mão delicadamente e soltou-a, virando-se para trás para pegar um livro da estante ao lado da mesa.

Era um de seus livros de referência, Patriots, de Woodhill, uma série de perfis dos fundadores da América.

Colocou a mão sobre a capa do livro, delicadamente, como se relutasse em perturbar o descanso das vidas adormecidas enterradas ali dentro.

— Essas pessoas eram assim. Elas se importavam o suficiente para arriscar tudo, o suficiente para mudar e fazer coisas. A maioria das pessoas não é assim, você sabe. Não é que não se importem, mas que não se importam tanto. — Tomou minha mão outra vez, desta vez virando-a para cima. Um dedo traçou as linhas que cortavam a palma, fazendo cócegas enquanto deslizava.

— Será que está gravado aí? — ele continuou, sorrindo ligeiramente. - Será que algumas pessoas são fadadas a um grande destino ou a grandes feitos? Ou será apenas que elas nasceram com essa enorme paixão e, quando se vêem nas circunstâncias favoráveis, as coisas acontecem? É o tipo do pensamento que me faz refletir, ao estudar história... mas não há realmente como saber. Tudo que sabemos é o que essas pessoas realizaram.

”Mas, Claire...” Os olhos dele exibiam uma expressão inequívoca de advertência, enquanto ele batia de leve na capa do livro. ”Elas pagaram um preço por isso.”

— Eu sei. — Senti-me muito distante dali, como se estivesse nos observando à distância; podia ver a cena com muita clareza com os olhos da mente: Frank, bonito, magro e um pouco cansado, ficando encantadoramente grisalho nas têmporas. Eu, imunda em minhas roupas de hospital, os cabelos despenteados, a frente da blusa amassada e manchada das lágrimas de Bri.

Ficamos sentados em silêncio por algum tempo, minha mão ainda repousando na de Frank. Eu podia ver as linhas e vales misteriosos, claros como um mapa rodoviário — mas uma estrada para qual destino desconhecido?

Há alguns anos, minha mão fora lida por uma velha senhora escocesa chamada Graham — na verdade, a avó de Fiona. ”As linhas da mão vão mudando conforme você muda”, ela dissera. ”Não importa tanto aquilo com que você nasceu, mas o que você faz de si mesma.”

E o que eu fizera de mim mesma, o que eu estava fazendo? Um caos, era isso. Nem boa mãe, nem boa esposa, nem boa médica. Um caos. Um dia eu me achara uma pessoa inteira —fora capaz de amar um homem, gerar um filho, curar os enfermos - e considerava tudo isso parte natural de mim, não os fragmentos difíceis, confusos, em que minha vida agora se desintegrara. Mas isso fora no passado, o homem que eu amara fora Jamie e, durante algum tempo, eu fizera parte de algo maior do que eu mesma.

— Eu levarei Bri.

Eu estava tão absorta em meus pensamentos infelizes que, por um instante, as palavras de Frank se perderam e eu o fitei com um ar estúpido.

- O que foi que você disse?

— Eu disse — ele repetiu pacientemente — que levarei Bri. Ela pode ir da escola para a universidade e ficar na minha sala até eu voltar para casa.

Esfreguei o nariz.

- Achei que você não achasse correto que os funcionários levassem os filhos para o trabalho. — Ele criticara severamente a sra, Clancy, uma das secretárias, que levara seu neto para o trabalho durante um mês quando a mãe dele ficou doente.

Ele deu de ombros, um pouco constrangido.

— Bem, as circunstâncias obrigam mudanças. E não é provável que Brianna fique correndo para cima e para baixo nos corredores gritando e derramando tinta como Bart Clancy.

- Eu não apostaria minha vida nisso - eu disse ironicamente. - Mas você faria isso? — Um pequeno sentimento crescia na boca do meu estômago contraído; um cauteloso, incrédulo, sentimento de alívio. Eu podia não confiar que Frank fosse fiel a mim, eu sabia muito bem que não era, mas eu confiava nele inequivocamente em se tratando de Bri.

De repente, toda a minha preocupação se desfez. Eu não precisava mais sair correndo do hospital para casa, aterrorizada porque estava atrasada, odiando a idéia de encontrar Brianna encolhida em seu quarto, aborrecida, porque ela não gostava da babá atual. Ela amava Frank; eu sabia que ela iria ficar encantada com a idéia de ir para o gabinete dele todos os dias.

— Por quê? — perguntei diretamente. — Não é por você estar empolgado com a idéia de eu me tornar médica, eu sei disso.

— Não — ele disse, pensativamente. — Não é isso. Mas eu realmente acho que não há nenhum modo de impedi-la... talvez o melhor que eu possa fazer seja ajudá-la, de modo que haja menos danos para Brianna. — Suas feições endureceram ligeiramente e ele afastou-se.

— Se algum dia ele sentiu que tinha um destino, algo que ele realmente estava fadado a fazer, esse destino era Brianna - Claire disse. Mexeu o chocolate pensativamente. - Por que você se importa, Roger? - ela perguntou-lhe de repente. — Por que está me fazendo essas perguntas?

Ele levou alguns segundos para responder, tomando pequenos goles de seu chocolate. Era uma bebida espessa e escura, feita com creme de leite fresco e uma pitada de açúcar mascavo. Fiona, sempre realista, dera uma olhada em Brianna e desistira de suas tentativas de conquistar Roger pela barriga, mas Fiona era uma cozinheira da mesma forma que Claire era uma médica; nascida com esse talento e incapaz de abandoná-lo.

— Porque sou um historiador, suponho - ele respondeu finalmente. Observou-a por cima da borda de sua caneca. - Eu preciso saber. O que as pessoas de fato fizeram e por que o fizeram.

— E acha que eu posso lhe dizer isso? — Olhou-o de modo incisivo. — Ou que eu sei?

Ele balançou a cabeça, confirmando e bebendo seu chocolate.

— Você sabe melhor do que a maioria das pessoas. A maioria das fontes de um historiador não possuí a sua... - ele parou e exibiu um largo sorriso - ...a sua perspectiva única, digamos assim.

Houve uma repentina quebra da tensão. Ela riu e pegou sua própria xícara.

- Sim, digamos assim - concordou.

- O outro motivo - ele disse, observando-a atentamente - é que você é honesta. Não acho que poderia mentir, ainda que quisesse.

Olhou-o de modo brusco e deu uma risada seca e curta.

— Todo mundo é capaz de mentir, meu jovem Roger, se tiver motivos suficientes. Até eu. Apenas é mais difícil para nós que temos um rosto transparente; temos que inventar nossas mentiras com antecedência.

Ela abaixou a cabeça e remexeu nos papéis à sua frente, virando as folhas devagar, uma a uma. Eram listas de nomes, listas de prisioneiros, copiadas de livros de registros de prisões britânicas. A tarefa era complicada pelo fato de que nem todas as prisões haviam sido bem administradas.

Alguns diretores não mantinham nenhum registro oficial de seus internos ou listava-os desordenadamente em seus diários, junto com anotações de despesas diárias e de manutenção, não fazendo maiores distinções entre a morte de um prisioneiro e o abate de dois bois para consumo interno.

Roger achou que Claire abandonara a conversa, mas um momento depois ela ergueu os olhos outra vez.

— Mas você tem toda a razão — ela disse. — Sou sincera porque não sei ser diferente, mais do que por qualquer outra coisa. Não é fácil para mim não dizer o que estou pensando. Imagino que perceba isso porque também é assim.

- Sou? - Roger sentiu-se imensamente satisfeito, como se alguém tivesse lhe dado um presente inesperado.

Claire balançou a cabeça, um ligeiro sorriso nos lábios enquanto o observava.

- Ah, sim. É inquestionável, sabe. Não há muitas pessoas assim... que lhe digam a verdade sobre si mesmos e sobre qualquer outra coisa de pronto. Só conheci três pessoas assim, eu acho... quatro agora — ela disse, seu sorriso ampliando-se cordialmente para ele. - Houve Jamie, é claro. - Seus dedos longos descansaram levemente na pilha de papéis, quase os acariciando. - Mestre Raymond, o boticário que conheci em Paris. E um amigo que conheci na faculdade de medicina, Joe Abernathy. E agora você. Eu acho.

Inclinou a xícara e bebeu o restante do espesso líquido marrom. Colocou-a de volta sobre a escrivaninha e olhou direto para Roger.

- Mas Frank tinha razão, de certa forma. Não é necessariamente mais fácil se você sabe qual é a sua vocação, mas ao menos não perde tempo questionando ou duvidando. Se for honesto... bem, isso não é necessariamente mais fácil, tampouco Embora eu imagine que se você for honesto consigo mesmo e souber quem você é, pelo menos é pouco provável que sinta que desperdiçou sua vida fazendo a coisa errada.

Colocou de lado a pilha de documentos e pegou outra — um conjunto de pastas com o logotipo característico do Museu Britânico nas capas.

- Jamie era assim - ela disse suavemente, como se falasse consigo mesma. - Não era um homem de virar as costas a nada que achasse que era seu dever. Perigoso ou não. E acredito que ele não deve ter se sentido desperdiçado... independentemente do que possa ter lhe acontecido

Ela caiu em silêncio depois disso, absorta nos arabescos de algum escriturário morto há muito tempo, procurando o registro que lhe diria o que Jamie Fraser fizera e fora, e se sua vida fora desperdiçada numa cela de prisão ou terminara numa masmorra solitária.

O relógio sobre a escrivaninha bateu a meia-noite, seus carrilhões surpreendentemente sonoros e melodiosos para um instrumento tão pequeno. O quarto de hora bateu e depois a meia hora, pontuando o rumor monótono dos papéis. Roger colocou sobre a mesa o maço de fotocópias que andara folheando e bocejou longamente, sem se preocupar em tampar a boca.

- Estou tão cansado que já estou vendo tudo duplicado - ele disse. Vamos continuar a busca pela manhã?

Claire não respondeu por um instante; estava olhando dentro das barras incandescentes do aquecedor elétrico, uma expressão de completo distanciamento no rosto. Roger repetiu a pergunta e devagar ela voltou de onde quer que estivesse.

- Não - ela disse. Pegou outra pasta e sorriu para Roger, o ar distante demorando-se em seus olhos. - Vá você, Roger - ela disse. - Eu... vou procurar um pouco mais.

Quando finalmente o encontrei, quase que passei direto por ele sem o notar. Eu não estava lendo os nomes cuidadosamente, mas apenas fazendo uma varredura superficial das páginas em busca da letra ”J”. ”John, Joseph, Jacques, James.” Havia James Edward, James Alan, James Walter, ad infinitum E então, lá estava ele, a escrita pequena e precisa atravessando a página: ”Jamie MacKenzie Fraser, de Broch Tuarach.”

Coloquei a folha com todo o cuidado sobre a mesa, fechei os olhos por um instante para clareá-los, depois olhei outra vez. Ainda estava lá.

— Jamie — eu disse em voz alta. Meu coração batia com força no meu peito -Jamie - disse outra vez, mais serenamente Eram quase três horas da madrugada. Todos dormiam, mas a casa, como acontece com as construções antigas, ainda estava acordada ao meu redor, estalando e suspirando, fazendo-me companhia. Estranhamente, não senti nenhum desejo de sair correndo e acordar Brianna e Roger para dar-lhes a notícia. Queria guardá-la para mim por alguns instantes, como se eu estivesse ali sozinha, no aposento iluminado pelo abajur, com o próprio Jamie.

Meus dedos percorreram a linha de tinta. A pessoa que escrevera aquelas palavras vira Jamie - talvez tenha escrito aquela linha com Jamie de pé diante dele. A data no alto da página era 16 de maio de 1753. Portanto fora perto desta época do ano. Eu podia imaginar como estava o ar, puro e fresco, com o raro sol de primavera sobre seus ombros, acendendo centelhas em seus cabelos.

Como estaria usando os cabelos na época — curtos ou longos? Ele preferia usá-los longos, em trança ou amarrados na nuca. Lembro-me do gesto descontraído com que ele tirava o peso dos cabelos do pescoço para refrescar-se no calor do exercício.

Não estaria usando seu kilt - o uso de qualquer tartã fora proibido depois de Culloden. Calças, portanto, provavelmente, e uma camisa de linho. Eu mesma fizera camisas assim para ele; podia sentir a maciez do tecido em minha lembrança, o flutuante comprimento de três metros necessários para fazer uma peça, as longas abas e as mangas franzidas que permitiam que os homens das Highlands largassem seus trajes de xadrez e dormissem ou lutassem apenas com sua camisa. Podia imaginar seus ombros largos sob o tecido rústico, a pele quente embaixo, as mãos tocadas pelo frio da primavera escocesa.

Ele já estivera preso antes. Que expressão teria, diante de um funcionário de uma prisão inglesa, sabendo perfeitamente o que o aguardava? Soturno, pensei, olhando para baixo pelo longo nariz reto com olhos frios e azul-escuros - sombrios e insondáveis como as águas do lago Ness.

Abri meus próprios olhos, percebendo somente então que estava sentada na borda da minha cadeira, a pasta de fotocópias agarradas junto ao peito, tão absorta em minha evocação que nem prestara atenção de onde vieram aqueles registros.

Havia vários presídios grandes que os ingleses usaram regularmente no século XVIII e diversos outros menores. Virei a pasta, devagar. Seria Berwick, perto da fronteira? A famosa Tolbooth de Edimburgo? Ou uma das prisões ao sul, Castelo Leeds ou mesmo a Torre de Londres?

- Ardsmuir - dizia o cartão de identificação habilmente grampeado na frente da pasta. - Ardsmuir? - eu disse, perplexa. - Onde será que fica?

 

Ardsmuir é o furúnculo da bunda de Deus - disse o coronel Harry Quarry. Ergueu o copo sarcasticamente para o jovem junto àjanela. — Fiquei aqui doze meses e foram onze meses e vinte e nove dias demais. Seja feliz em seu novo posto, milorde.

O major John William Grey virou-se da janela que dava para o pátio, de onde andara supervisionando seus novos domínios.

— De fato, parece um pouco desconfortável — concordou secamente, pegando seu próprio copo. - Chove o tempo todo?

— Claro. É a Escócia. E, o que é pior, a bunda da maldita Escócia. Quarry tomou um grande gole de seu uísque, tossiu e expirou ruidosamente enquanto colocava o copo vazio sobre a mesa. - A bebida é a única compensação - ele disse, meio rouco. - Visite os comerciantes de bebida do local em seu melhor uniforme e lhe farão um preço honesto. É incrivelmente barato, sem o imposto. Deixei uma lista para você das melhores destilarias. - Indicou com a cabeça a pesada escrivaninha de carvalho maciço num dos lados da sala, plantada no meio de uma ilha de tapete como uma pequena fortaleza confrontando o aposento árido. A ilusão de fortificações era ampliada pelos estandartes do regimento e da nação pendurados na parede de pedra atrás da mesa.

- A lista de plantão dos guardas está aqui - ele continuou, levantando-se e remexendo na primeira gaveta da escrivaninha. Bateu uma pasta de couro surrada no tampo da escrivaninha e acrescentou outra por cima. - E a lista de prisioneiros. Você tem cento e noventa e seis no momento; duzentos é o normal, um pouco a mais ou a menos devido a algumas mortes por doença ou a um ou outro caçador ilegal preso no campo

— Duzentos. — Grey disse. — E quantos nos alojamentos dos guardas?

— Oitenta e dois, em número. Em condições, cerca da metade. — Quarry enfiou a mão na gaveta outra vez e retirou uma garrafa de vidro marrom com uma rolha de cortiça. Sacudiu-a, ouviu o barulho e sorriu ironicamente — O comandante não é o único a encontrar consolo na bebida. Metade dos beberrões geralmente está incapacitada na hora da chamada. Vou deixar isto aqui para você, está bem? Vai precisar. - Colocou a garrafa de volta, abriu a última gaveta e continuou:

- Requisições e cópias aqui; a papelada é o pior do cargo. Não há muito o que fazer, na verdade, se tiver um bom secretário. Não tem, no momento; eu tinha um caco que escrevia com boa caligrafia, mas morreu há duas semanas. Treine outro e não terá nada a fazer, a não ser caçar tetrazes e o Ouro do Francês. - Riu de sua própria piada; boatos sobre o ouro que Luís da França supostamente teria enviado a seu primo Carlos Stuart eram numerosos nesta ponta da Escócia.

- Os prisioneiros não são difíceis? - Grey perguntou. - Pelo que soube, quase todos são jacobitas das Highlands.

- E são. Mas são bastante dóceis. - Quarry parou, olhando pela janela. Uma pequena fileira de homens maltrapilhos saía de uma porta na ameaçadora parede de pedras em frente. - Não têm mais ânimo, depois de Culloden — disse, sem entusiasmo. — Billy, o Açougueiro, deu jeito nisso. E nós os fazemos pegar tão pesado no trabalho que não lhes restam forças para criar confusão.

Grey balançou a cabeça. A fortaleza de Ardsmuir estava passando por reformas, ironicamente usando a mão-de-obra dos escoceses ali encarcerados. Levantou-se e foi se juntar a Quarry à janela.

— Há uma turma de trabalho saindo agora, para cortar turfa. — Quarry indicou o grupo lá embaixo com um sinal da cabeça. Doze homens barbados, esfarrapados como espantalhos, formavam uma fila torta diante de um soldado de casaco vermelho, que andava para baixo e para cima, inspecionando-os. Evidentemente satisfeito, gritou um comando e sacudiu a mão em direção ao portão externo.

A turma de prisioneiros era acompanhada por seis soldados armados, que se perfilaram na frente e atrás do grupo, os mosquetes posicionados para a marcha, sua aparência elegante em marcante contraste com os escoceses maltrapilhos. Os prisioneiros andavam devagar, indiferentes à chuva que encharcava seus farrapos. Uma carroça puxada por mulas ia rangendo atrás, um monte de facões para cortar turfa brilhando opacamente no chão do veículo.

Quarry franziu a testa, contando-os.

- Alguns devem estar doentes. Cada turma de trabalho tem dezoito homens: três prisioneiros para um guarda, por causa dos facões. Embora, surpreendentemente, bem poucos tentem fugir — acrescentou, afastando-se da janela. - Não há lugar para onde ir, imagino. - Deixou a escrivaninha, chutando para o lado um grande cesto de vime que descansava sobre a lareira, cheia de pedaços brutos de uma substância marrom-escura.

— Deixe a janela aberta, mesmo se estiver chovendo - Quarry avisou. — Caso contrário, a fumaça da turfa vai sufocá-lo. — Respirou fundo para ilustrar e soltou o ar explosivamente. — Meu Deus, vou ficar feliz de retornar a Londres!

- Não há muito o que fazer na sociedade local, eu presumo - Grey disse secamente. Quarry riu; seu rosto largo e vermelho enrugando-se com a risada diante da idéia.

- Sociedade? Meu caro jovem! Fora uma ou duas vadias passáveis no vilarejo, a vida social aqui é unicamente conversar com seus oficiais. São quatro, um dos quais é capaz de falar sem usar palavrões, seu ordenança e um prisioneiro.

- Um prisioneiro? — Grey ergueu os olhos dos livros de registros que andara examinando, uma das sobrancelhas louras erguida inquisitivamente.

- Ah, sim. - Quarry andava de um lado para o outro do escritório agitadamente, ansioso para ir embora. Sua carruagem o aguardava; demorara-se apenas o suficiente para passar as informações básicas para seu substituto e fazer a passagem formal do comando. Parou, olhando para Grey. Um canto de sua boca torceu-se para cima, divertindo-se com uma piada secreta.

- Imagino que já tenha ouvido falar de Jamie Fraser, o Ruivo, não é?

Grey retesou-se ligeiramente, mas manteve o rosto o mais impassível que pôde.

— Creio que a maioria das pessoas já ouviu — disse friamente. — O sujeito ficou famoso durante a revolução. - Quarry ouvira a história, droga! Toda ela ou apenas a primeira parte?

A boca de Quarry contorceu-se ligeiramente, mas ele apenas balançou a cabeça.

— É verdade. Bem, nós o temos. Ele é o único oficial jacobita aqui; os prisioneiros das Highlands tratam-no como seu chefe. Em conseqüência, se surge algum problema com os presos, e surgirão, posso lhe garantir, ele age como seu porta-voz. — Quarry estava calçado apenas com suas meias; agora, sentou-se e enfiou as longas botas da cavalaria, preparando-se para a lama lá fora.

- Seumas, mac anjhear dhuibh, é como o chamam, ou simplesmente Mac Dubh. Fala gaélico? Nem eu. Mas Grissom fala; ele diz que significa ”James, filho do Coisa-Ruim”. Metade dos guardas tem medo dele, os que lutaram com Cope em Prestonpans. Dizem que ele é o próprio Diabo. Pobre-diabo, agora! - Quarry deu um breve muxoxo, forçando os pés dentro das botas. Bateu os pés no chão, um de cada vez, para ajeitá-las, e levantou-se.

- Os prisioneiros lhe obedecem sem titubear; mas dê ordens sem que ele dê seu aval e será o mesmo que estar falando com pedras no pátio. Já conviveu com escoceses? Ah, claro, você lutou em Culloden, no regimento de seu irmão, não foi? — Quarry tocou a testa em seu fingido esquecimento.

Desgraçado! Ele sabia da história toda.

- Deve ter uma idéia, então. ”Teimosos” não serve nem para começar a descrevê-los. — Abanou a mão no ar como se descartasse um contingente inteiro de escoceses recalcitrantes. — O que significa — Quarry fez uma pausa, divertindo-se - que vai precisar da boa vontade de Fraser, ou ao menos de sua cooperação. Ele jantava comigo uma vez por semana, para conversar, e achei que deu certo. Talvez você deva experimentar o mesmo arranjo.

— Suponho que sim. — O tom de voz de Grey era frio, mas suas mãos estavam apertadas com força contra os lados do corpo. Quando pingentes de gelo crescerem no inferno, ele jantaria com James Fraser!

- Ele é um homem educado - Quarry continuou, os olhos brilhando de malícia, fixos no rosto de Grey. - Muito mais interessante para se conversar do que os oficiais. Joga xadrez. Joga de vez em quando, não é?

- De vez em quando. - Os músculos de seu abdômen estavam contraídos com tanta força que tinha dificuldade de respirar. Por que esse cabeçadura idiota não pára de falar e vai embora?

- Bem, pense no assunto. - Como se adivinhasse o desejo de Grey, Quarry ajeitou a peruca com mais firmeza, em seguida pegou o manto do cabide junto à porta e jogou-o sobre os ombros com um floreio. Virou-se para a porta, o chapéu na mão, depois se virou de novo para Grey.

— Ah, mais uma coisa. Se você realmente jantar com Fraser sozinho, não dê as costas para ele. - O sarcasmo abandonara o rosto de Quarry; Grey franziu a testa, mas não viu nenhuma prova de que o aviso tivesse a intenção de uma piada. — Falo sério — Quarry disse, com um ar repentinamente grave. - Ele está acorrentado, mas é fácil estrangular um homem com a corrente. E Fraser é um sujeito muito corpulento.

— Eu sei. — Para sua desgraça, Grey pôde sentir o sangue subir às suas faces. Para esconder o fato, virou-se, deixando que o ar frio da janela parcialmente aberta soprasse em seu rosto. - Certamente - ele disse, para as pedras cinza e escorregadias da chuva lá embaixo —, se ele for o homem inteligente que você diz que é, não seria tão idiota a ponto de me atacar em meu próprio gabinete, no meio da prisão, não é? Por que ele faria isso?

Quarry não respondeu. Após um instante, Grey virou-se, encontrando o outro fitando-o pensativamente, o rosto largo, vermelho, sem qualquer vestígio de humor.

- Há inteligência - Quarry disse devagar. - E depois há outras coisas. Mas talvez você seja jovem demais para ter visto o ódio e o desespero de perto. Tem havido muito disso na Escócia nestes últimos dez anos. - Inclinou a cabeça, inspecionando o novo comandante de Ardsmuir do alto de seus quinze anos de experiência.

O major Grey era jovem, não mais do que vinte e seis anos, tinha um rosto bonito e longas pestanas femininas que o faziam parecer ainda mais jovem. Para agravar o problema, era quatro ou cinco centímetros mais baixo do que a média e, além disso, de compleição delicada. Ele empertigou-se.

- Tenho consciência de tudo isso, coronel - ele disse sem se alterar. Quarry era o filho mais novo de uma boa família, como ele próprio, mas ainda assim seu superior em patente; ele devia controlar-se.

O olhar castanho-claro e brilhante de Quarry demorou-se nele, conjeturando

- Tenho certeza que sim.

Com um movimento repentino, enfiou o chapéu na cabeça. Tocou o rosto, onde a linha mais escura de uma cicatriz cortava a pele vermelha; uma lembrança do escandaloso duelo que o enviara ao exílio em Ardsmuir.

- Só Deus sabe o que você fez para ser enviado para cá, Grey - ele disse, sacudindo a cabeça. — Mas, para o seu próprio bem, espero que o mereça! Boa sorte! - E com um giro do manto azul, desapareceu

- Melhor o diabo que se conhece do que o diabo que não se conhece - Murdo Lmdsay disse, sacudindo a cabeça lugubremente - Harry, o Bomtão, não era tão ruim assim.

- Não, não era - concordou Kenny Lesley. - Mas você já estava aqui quando ele veio, não é? Ele era bem melhor do que o merda do Bichopapão, hein?

— Sim — disse Murdo, sem entender. - O que está querendo dizer?

- Bom, se o Bomtão era melhor do que o Bicho-papão - Lesley explicou pacientemente -, então o Bomtão era o diabo que não conhecíamos e o Bicho-papão era o diabo que conhecíamos, mas o Bomtão era melhor, apesar disso, portanto você está errado, parceiro.

— Estou? — Murdo, irremediavelmente confuso com esse raciocínio, olhou furiosamente para Lesley. - Não, não estou.

- Está, sim - Lesley disse, perdendo a paciência. - Você está sempre errado, Murdo? Por que você discute, se nunca tem razão?

- Não estou discutindo! - Murdo protestou, indignado. - Você é que está me provocando, e não o contrário.

— Só porque você está errado! — Lesley disse. — Se estivesse certo, eu não teria dito uma palavra.

- Não estou errado! Ao menos, eu não acho - Murdo resmungou, sem conseguir lembrar exatamente o que havia dito. Virou-se, recorrendo à enorme figura sentada a um canto. - Mac Dubh, eu estava errado?

O homem alto espreguiçou-se, as correntes de seus grilhões tilintando levemente com seus movimentos, e ele riu.

- Não, Murdo, você não está errado, Mas por enquanto ainda não podemos dizer se está certo. Não até vermos como é o novo diabo, certo?

- Vendo as sobrancelhas de Lesley unirem-se em preparação para prosseguir com a discussão, ele ergueu a voz, falando para todo o aposento. Alguém já viu o novo diretor? Johnson? MacTavish?

- Eu vi - Hayes disse, abrindo caminho alegremente para frente para aquecer as mãos junto ao fogo. Havia apenas uma lareira na enorme cela e espaço para no máximo seis homens diante do fogo de cada vez. Os outros quarenta permaneciam num frio cortante, amontoando-se em pequenos grupos para se aquecerem.

Em conseqüência, o acordo era que aquele que tivesse uma história para contar ou uma canção para cantar obtinha um lugar junto à lareira, enquanto estivesse falando. Mac Dubh disse que esse era um direito dos trovadores, que ao chegar aos grandes castelos, davam-lhe um lugar quente junto à lareira e bastante comida e bebida, em honra da hospitalidade do senhor do castelo. Nunca havia comida ou bebida de reserva ali, mas o lugar quente era certo.

Hayes relaxou, os olhos fechados e um sorriso de felicidade no rosto quando abriu as mãos para o calor. Mas, avisado por um movimento irrequieto de ambos os lados, apressadamente abriu os olhos e começou a falar.

- Eu o vi quando saiu da carruagem e depois outra vez quando levei um prato de doces das cozinhas, enquanto ele e Harry, o Bonitão, estavam conversando. - Hayes franziu a testa em concentração.

- Ele é louro, com longas madeixas douradas amarradas com fita azul. Olhos grandes e pestanas longas também, como as de uma mocinha. — Hayes olhou maliciosamente para seus ouvintes, batendo as próprias pestanas curtas num arremedo de flerte.

Encorajado pelas risadas, continuou, descrevendo as roupas do novo diretor - ”elegantes como as de um senhor feudal” - seus equipamentos e seu criado - ”um desses sassenachs que falam como se tivessem queimado a língua” - e tudo que ouvira sobre o modo de falar do novo diretor.

- Ele fala com autoridade e rápido, como alguém que sabe o que está dizendo - Hayes disse, sacudindo a cabeça em dúvida. - Além do mais, ele é muito novo. Parece que acabou de ser desmamado, embora eu imagine que seja mais velho do que parece.

— Sim, é um sujeito baixinho, menor do que o pequeno Angus - Baird fez coro, com uma sacudida da cabeça em direção a Angus MacKenzie, que olhou para si mesmo espantado. Angus tinha doze anos quando lutou ao lado do pai em Culloden. Passara metade de sua vida em Ardsmuir e, em conseqüência da alimentação pobre da prisão, não crescera muito.

- Sim - Hayes concordou -, mas ele tem pose, ombros aprumados e as costas retas como se tivessem enfiado uma vara pelo traseiro.

A observação de Hayes provocou uma explosão de gargalhadas e comentários grosseiros. Hayes deu lugar a Ogilvie, que sabia uma longa e obscena história sobre o senhor de Dombristle e a filha do homem-porco. Hayes deixou a lareira sem ressentimentos e foi - como de costume sentar-se ao lado de Mac Dubh.

Mac Dubh nunca ocupava um lugar junto à lareira, mesmo quando lhes contava as longas histórias dos livros que havia lido — As aventuras de Rodenck Randorn; A história de Tomjones, uma criança abandonada; ou a favorita de todos Robmson Crusoé. Alegando que precisava de espaço para acomodar as longas pernas, Mac Dubh sempre se sentava no mesmo lugar no canto, de onde todos podiam ouvi-lo. Mas os homens que saíam de perto do fogo vinham, um a um, e sentavam-se no banco a seu lado, para lhe dar o calor que emanava de suas roupas.

- Acha que vai falar com o novo comandante amanhã, Mac Dubh? Hayes perguntou ao se sentar. - Encontrei-me com Billy Malcolm, na volta do corte de turfa, e ele gritou para mim que os ratos estavam ficando incrivelmente audaciosos em sua cela agora. Seis homens foram mordidos nesta semana quando dormiam e dois deles já estão com feridas supuradas.

Mac Dubh sacudiu a cabeça e coçou o queixo. Emprestavam-lhe uma navalha antes de suas audiências semanais com Harry Quarry, mas já fazia cinco dias desde a última audiência e a barba ruiva espetada já cobria todo o seu queixo.

- Não sei, Gavin - ele disse. - Quarry disse que falaria com o novo sujeito sobre nosso acordo, mas o novo diretor pode ter seus métodos próprios, não é? Mas, se for chamado para vê-lo, não deixarei de falar sobre os ratos E Malcolm pediu a Morrison para vir tratar as feridas? - A prisão não possuía um médico; Mornson, que tinha talento para curandeiro, tinha permissão dos guardas para ir de cela em cela cuidar dos doentes e feridos, a pedido de Mac Dubh

Hayes sacudiu a cabeça.

- Ele não teve tempo de dizer mais nada. Passaram por mim marchando, sabe?

- É melhor eu enviar Morrison - Mac Dubh decidiu. - Ele pode perguntar a Billy se há mais alguma coisa errada por lá. — Havia quatro celas principais onde os prisioneiros eram mantidos em grupos numerosos; a comunicação entre eles era feita através das visitas de Morrison e da mistura dos homens nas equipes de trabalho que saíam dia a dia para carregar pedras ou cortar turfa na charneca próxima.

Morrison aproximou-se assim que foi chamado, colocando no bolso quatro crânios de ratos esculpidos com que os presos improvisavam jogos de damas. Mac Dubh tateou embaixo do banco onde se sentava, retirando a sacola de pano que carregava quando ia à charneca.

— Ah, nada mais dos malditos cardos — Morrison protestou, ao ver o amplo sorriso de Mac Dubh ao remexer na sacola. — Não consigo fazê-los comer essa planta espinhenta. Todos perguntam se eu acho que eles são bois ou porcos.

Mac Dubh colocou com todo o cuidado no banco um punhado de talos secos e sugou os dedos espetados.

- São teimosos como porcos, sem dúvida — observou. — É apenas cardo leiteiro. Quantas vezes tenho que lhe dizer, Morrison? Tire as pontas do cardo e triture bem as folhas e os talos. Se ficar espinhoso demais para comer a pasta passada no pão, prepare um chá com as folhas e os talos e faça-os beber. Diga a eles que nunca vi porcos beberem chá.

O rosto enrugado de Morrison abriu-se numa risada. Sendo um homem de idade, ele sabia muito bem como lidar com pacientes teimosos; só gostava de se queixar por diversão.

- Sim, bem, vou perguntar a eles se já viram uma vaca desdentada. - disse, resignado, enquanto enfiava o punhado de ervas murchas cuidadosamente em sua própria sacola. - Mas não deixe de arreganhar os dentes para Joel McCulloch da próxima vez que o vir. Ele é o pior de todos, não acredita que as folhas verdes realmente ajudam a prevenir o escorbuto.

- Diga a ele que vou dar uma mordida no traseiro dele - Mac Dubh prometeu, com um lampejo de seus belos dentes -, se ficar sabendo que ele não comeu seus cardos.

Morrison deu uma risada gutural e foi reunir os poucos ungüentos e ervas que usava como remédios.

Mac Dubh relaxou por um instante, olhando em volta da cela para se certificar de que não havia nenhum problema em formação. Havia rixas no momento; ele havia resolvido o conflito entre Bobby Sinclair e Edwin Murray uma semana atrás e, embora não fossem amigos, estavam mantendo distância um do outro.

Fechou os olhos. Estava cansado; carregara pedras o dia inteiro. A refeição da noite seria servida em poucos minutos — uma tigela de mingau e um pouco de pão para ser dividido entre eles, um pouco de sopa também se tivessem sorte. Como sempre, a maioria dos homens iria dormir logo depois, deixando-lhe alguns momentos de paz e privacidade parcial, quando não precisaria ouvir ninguém ou achar que devia tomar alguma providência.

Não tivera um tempo livre até agora sequer para pensar a respeito do novo comandante, por mais importante que o homem fosse para todas as suas vidas. Jovem, Hayes dissera. Isso podia ser bom, ou ruim.

Homens mais velhos que haviam lutado na revolução geralmente tinham preconceito contra os escoceses das Highlands - o Bicho-papão, que o prendera, lutara com Cope. Mas um jovem soldado assustado, tentando se firmar num cargo com o qual não estava familiarizado, poderia ser mais rígido e tirânico do que o mais rabugento dos velhos coronéis. Bem, não havia nada a ser feito senão esperar para ver.

Suspirou e mudou de posição, incomodado — pela milionésima-vez — pelos grilhões que usava. Remexeu-se com irritação, batendo um dos pulsos contra a borda do banco. Ele era suficientemente grande para o peso dos ferros não incomodá-lo muito, mas roçavam e irritavam a pele com o trabalho. Pior ainda era a impossibilidade de abrir os braços mais do que cinqüenta centímetros; isso lhe dava cãibras e uma sensação dilacerante no músculo do peito e das costas, que só o abandonava quando ele dormia.

Mac Dubh - disse uma voz próxima. - Posso lhe falar em particular? - Abriu os olhos e viu Ronnie Sutherland de cócoras a seu lado, o rosto pontudo atento, semelhante ao de uma raposa, na fraca claridade do fogo.

Sim, Ronnie, claro. — Sentou-se e afastou da mente com firmeza tanto seus grilhões quanto qualquer pensamento sobre o novo diretor.

Querida mãe, John Grey escreveu, mais tarde naquela noite.

Cheguei em segurança ao meu novo posto e achei-o confortável. O coronel Quarry, o meu antecessor - ele é sobrinho do duque de Clarence, lembra-se? -, deu-me as boas-vindas e me colocou a par dos meus deveres. Tenho um criado excelente e, embora no começo esteja inclinado a achar estranhas muitas coisas a respeito da Escócia, tenho certeza de que a experiência será interessante. Serviram-me um prato no jantar que o intendente disse chamar-se "haggis". Após averiguar, fiquei sabendo tratar-se do órgão interno de um carneiro, recheado com uma mistura de aveia moída e uma carne cozida impossível de identificar. Embora tivessem me assegurado que os habitantes da Escócia consideram esse prato uma iguaria, eu o devolvi à cozinha e pedi um simples lombo de carneiro cozido em substituição. Tendo assim feito minha primeira - e humilde! - refeição aqui, e estando bastante cansado da longa viagem - de cujos detalhes devo informá-la numa carta subseqüente -, acho que agora devo me recolher, deixando maiores descrições do meu ambiente - com o qual ainda não estou bem familiarizado no momento, já que está escuro - para uma comunicação futura.

Parou, batendo de leve com a pena no mata-borrão. A ponta deixou pequenos pontos de tinta e ele distraidamente desenhou linhas ligando-os, traçando os contornos de um objeto denteado.

Ousaria perguntar sobre George? Não uma pergunta direta, isso não daria certo, mas uma referência à família, perguntando se sua mãe por acaso tinha visto lady Everett ultimamente e pedindo que desse lembranças suas ao seu filho.

Suspirou e desenhou mais uma ponta em seu objeto. Não. Sua mãe viúva ignorava a situação, mas o marido de lady Everett circulava nos meios militares. A influência de seu irmão poderia abafar os mexericos, mas ainda assim lorde Everett poderia sentir o cheiro no ar e ser bastante rápido para tirar conclusões. Se ele fizesse algum comentário indiscreto com sua mulher sobre George, e esse comentário passasse de lady Everett a sua mãe... a viúva condessa Melton não era boba.

Ela sabia perfeitamente que ele caíra em desgraça; jovens e promissores oficiais não eram enviados à toa para os confins da Escócia para supervisionar a reforma de pequenas e insignificantes prisões fortificadas. Mas seu irmão Harold dissera-lhe que o problema era um infeliz assunto do coração, deixando implícito que seria uma indelicadeza da parte dela se perguntasse mais a respeito. Ela provavelmente pensou que ele fora flagrado com a mulher do coronel ou com uma prostituta no seu alojamento.

Um infeliz assunto do coração! Sorriu lugubremente, mergulhando a pena na tinta. Talvez Harold tivesse uma sensibilidade maior do que ele imaginava, descrevendo o caso dessa maneira. Mas todos os seus casos tinham sido infelizes, desde a morte de Hector em Culloden.

Com a lembrança de Culloden, a imagem de Fraser voltou à sua mente; algo que andara evitando o dia inteiro. Olhou do mata-borrão para a pasta que continha a relação de prisioneiros, mordendo o lábio. Ficou tentado a abri-la e ver o nome, mas de que adiantaria isso? Devia haver centenas de escoceses nas Highlands chamados James Fraser, mas apenas um conhecido também como Jamie, o Ruivo.

Sentiu as faces queimarem quando ondas de calor percorreram seu corpo, mas não era a proximidade do fogo. Apesar disso, ergueu-se e dirigiu-se à janela, sorvendo grandes arfadas de ar, como se a brisa fria pudesse apagar suas lembranças.

- Desculpe-me, senhor, mas gostaria que sua cama fosse aquecida agora? - O sotaque escocês às suas costas espantou-o e ele girou nos calcanhares defrontando-se com a cabeça desgrenhada do prisioneiro, designado para cuidar de suas acomodações, enfiada pela porta que levava aos seus aposentos particulares.

- Oh! Ah, sim. Obrigado... MacDonell? - ele disse, em dúvida.

-MacKay, senhor — o homem corrigiu-o, sem aparente ressentimento, e a cabeça desapareceu.

Grey suspirou. Não havia nada a ser feito esta noite. Voltou à escrivaninha e juntou as pastas para guardá-las. O objeto denteado que ele desenhara no mata-borrão parecia uma dessas clavas cheias de espigões, com que os cavaleiros antigos esmagavam a cabeça de seus inimigos. Sentia como se tivesse engolido uma delas, embora talvez não passasse de indigestão provocada pelo lombo de carneiro mal cozido.

Sacudiu a cabeça, puxou a carta e assinou-a apressadamente.

Com afeto, seu filho obediente, John Wm. Grey. Espalhou areia sobre a assinatura, selou a carta com seu anel e colocou-a ao lado da mesa para ser enviada pela manhã.

Levantou-se e ficou parado, hesitante, observando os recônditos sombreados do escritório. Era um aposento espaçoso, frio e árido, com pouco mais além da enorme escrivaninha e duas cadeiras. Estremeceu; o brilho melancólico dos tijolos de turfa na lareira pouco contribuía para aquecer o amplo espaço, particularmente com aquele ar úmido e glacial entrando pela janela.

Olhou novamente para o rol de prisioneiros. Depois, inclinou-se, abriu a última gaveta da escrivaninha e retirou dali a garrafa de vidro marrom. Apagou a vela e dirigiu-se ao seu quarto de dormir guiado apenas pela claridade fraca da lareira.

Os efeitos da mistura de cansaço e uísque deveriam tê-lo feito adormecer imediatamente, mas o sono manteve-se distante, planando acima de sua cama como um morcego, mas sem nunca pousar. Toda vez que sentia-se afundar em sonhos, uma visão do bosque de Carryarrick surgia diante de seus olhos e ele via-se novamente acordado e suando, o coração martelando em seus ouvidos.

Tinha dezesseis anos na época, empolgado com sua primeira campanha. Ele não se alistara no serviço ainda, mas seu irmão Hal o levara com o regimento, para que ele pudesse sentir o gosto de ser um soldado.

Acampados à noite perto de um escuro bosque escocês, a caminho de se unir ao general Cope em Prestonpans, John sentira-se nervoso demais para dormir. Como seria a batalha? Cope era um grande general, todos os amigos de Hal diziam isso, mas os homens em volta das fogueiras contavam histórias assustadoras dos ferozes escoceses das Highlands e de suas malditas espadas de folha larga. Ele teria coragem de enfrentar o terrível ataque dos guerreiros das Highlands?

Não conseguia mencionar seus temores nem mesmo a Hector. Hector o amava, mas Hector tinha vinte anos, era alto, musculoso e destemido, com a patente de tenente e histórias arrojadas de batalhas travadas na França.

Ele não sabia, mesmo agora, se fora uma necessidade urgente de imitar Hector, ou apenas impressioná-lo, que o levara a fazer o que fez. De qualquer modo, quando viu o escocês no bosque e o reconheceu dos cartazes que vira como o famoso Jamie Fraser, o Ruivo, resolvera matá-lo ou capturá-lo.

A idéia de voltar ao acampamento para buscar ajuda de fato lhe ocorreu, mas o sujeito estava sozinho — ao menos John achou que estivesse - e evidentemente distraído, sentado sossegadamente em um tronco de árvore, comendo um pedaço de pão.

Assim, sacou a adaga do cinto e rastejou silenciosamente pelo bosque em direção àquela brilhante cabeleira ruiva, o cabo escorregadio em sua mão, a mente repleta de visões de glória e elogios de Hector.

Em vez disso, houve o lampejo da adaga num golpe cintilante, seu braço firmemente preso em volta do pescoço do escocês para sufocá-lo, e então...

Lorde John Grey arremessou-se de um lado para o outro na cama, afo-gueado com a lembrança. Eles haviam caído para trás, rolando juntos na escuridão, sobre as crepitantes folhas de carvalho secas, debatendo-se e lutando pela vida, ele pensou.

Primeiro, o escocês ficara por baixo dele, depois, com uma torção, conseguira ficar por cima. Ele havia tocado em uma enorme cobra uma vez, uma jibóia que um amigo de seu tio trouxera das índias, e assim lhe pareceu o toque de Fraser, liso, macio e extremamente poderoso, movendo-se como uma espiral musculosa, nunca estando onde você esperava que estivesse.

Ele fora atirado de maneira humilhante de cara nas folhas, o pulso torcido dolorosamente atrás das costas. Num frenesi de pavor, convencido como estava de que iria ser morto, puxara o braço preso com todas as suas forças, e o osso se quebrara, com uma violenta explosão de dor que o deixou momentaneamente sem sentidos.

Voltou a si pouco depois, desmoronado contra uma árvore, diante de um círculo de escoceses de ar feroz, todos vestidos com suas mantas de xadrez. No meio deles, estava Jamie Fraser, o Ruivo, e a mulher.

Grey cerrou os dentes. Maldita mulher! Se não tivesse sido por ela... bem, só Deus sabe o que poderia ter acontecido. O que realmente aconteceu é que ela falou, com aquele sotaque inglês, era uma dama pelo modo de falar, e ele — idiota como era! — concluiu na hora que ela era refém dos depravados escoceses, sem dúvida seqüestrada para ser violentada. Todos diziam que os escoceses das Highlands eram dados à pilhagem diante de qualquer oportunidade e compraziam-se em desonrar mulheres inglesas; como ele podia saber que não era esse o caso?

E lorde John William Grey, com dezesseis anos e impregnado de noções militares de cavalheirismo e propósitos nobres, machucado, abalado e lutando contra a dor do braço quebrado, tentara barganhar, para salvá-la de sua sina. Fraser, alto e zombeteiro, brincou com ele como quis, deixando a mulher semidespida diante dele para forçá-lo a revelar informações sobre a posição e o tamanho do regimento de seu irmão. Depois de ter-lhe dito tudo que sabia, Fraser, rindo, revelou que a mulher era sua esposa. Todos irromperam numa gargalhada; ainda podia ouvir as-risadas escarnecedoras dos escoceses agora, em sua lembrança.

Grey rolou na cama, mudando seu peso de lugar com irritação sobre o colchão a que não estava acostumado. E para piorar, Fraser nem sequer tivera a decência de matá-lo, mas amarrara-o a uma árvore, onde seria encontrado por seus amigos pela manhã. Quando, então, os homens de Fraser já teriam visitado o acampamento e — com as informações que ele lhes dera! — inutilizado o canhão que levavam para Cope.

Todos descobriram, é claro, e embora desculpas fossem apresentadas por causa de sua idade e do fato de não ser oficialmente alistado, ele se tornara um pária e objeto de desprezo. Todos se recusavam a falar com ele, exceto seu irmão — e Hector. O fiel Hector.

Suspirou, esfregando o rosto no travesseiro. Ainda podia ver Hector, com a visão da mente. Cabelos escuros e olhos azuis, boca delicada, sempre sorrindo. Dez anos haviam se passado desde que Hector morrera em Culloden, dilacerado por uma espada escocesa, e John, às vezes, ainda acordava ao alvorecer, o corpo arqueado num espasmo incontrolável, sentindo o toque de Hector.

E agora isto. Tivera medo deste posto, permanentemente cercado pelos escoceses, por suas vozes rascantes, dominado pela lembrança do que haviam feito a Hector. Mas nunca, nem nos piores momentos de expectativa, pensara encontrar James Fraser outra vez.

O fogo de turfa na lareira definhara gradualmente até se transformar em cinzas quentes, depois frias, e a janela empalideceu, passando de um negro profundo a um cinza soturno de uma aurora escocesa chuvosa. E John Grey ainda permanecia insone, os olhos ardendo, fixos nas vigas escuras do teto. Grey levantou-se de manhã sentindo-se cansado, mas com uma decisão. Ele estava ali. Fraser estava ali. E nenhum dos dois podia ir embora, num futuro próximo. Portanto...

Teria que ver o sujeito de vez em quando - estaria dirigindo-se aos prisioneiros reunidos dentro de uma hora e depois disso teria que inspecioná-los regularmente. Se mantivesse o sujeito à distância, talvez também conseguisse manter ao largo as lembranças que ele suscitava. E os sentimentos.

Porque embora tivesse sido a lembrança de sua antiga raiva e humilhação que o mantivera acordado no começo, era o outro lado da atual situação que o deixara ainda acordado ao amanhecer. A lenta percepção de que Fraser agora era seu prisioneiro; não mais seu atormentador, mas um prisioneiro, como os outros, inteiramente à sua mercê.

Tocou a sineta chamando seu criado e aproximou-se da janela para ver como estava o tempo, contraindo-se com o frio do assoalho de pedra sob seus pés descalços.

Estava, como não era de admirar, chovendo. No pátio lá embaixo, os prisioneiros já estavam reunidos em turmas de trabalho, molhados até os ossos. Tremendo em seu camisão, Grey colocou a cabeça para dentro e fechou parcialmente a janela: um bom meio-termo entre a morte por asfixia e a morte por calafrios.

Foram visões de vingança que o mantiveram revirando-se na cama conforme a janela clareava e a chuva batia no parapeito; pensamentos de Fraser confinado a uma cela minúscula de pedra gélida, mantido nu durante as noites de inverno, alimentado com restos de comida, desnudado e chicoteado no pátio da prisão. Todo aquele poder arrogante humilhado, reduzido a um estado abjeto, dependendo unicamente de uma palavra sua para um momento de alívio.

Sim, ele pensou em todas essas coisas, imaginou-as em vívidos detalhes, deliciou-se com elas. Ouviu Fraser implorar misericórdia, imaginou-se desdenhoso, soberbo. Pensou em tudo isso e a clava cheia de espigões revirou-se em suas estranhas, perfurando-o de repugnância por si mesmo.

O que quer que Fraser possa ter sido para Grey, ele agora era um inimigo derrotado; um prisioneiro de guerra e responsabilidade da Coroa. Na verdade, ele era responsabilidade de Grey, uma obrigação, e seu bem-estar um dever de honra. Seu criado trouxe água quente para ele se bar-bear. Molhou o rosto, sentindo a água quente acalmá-lo, afastando as fantasias atormentadas da noite. É tudo que eram, concluiu - fantasias, e essa compreensão lhe trouxe um certo alívio.


Ele poderia ter encontrado Fraser no campo de batalha e realmente sentir um prazer selvagem em matá-lo ou mutilá-lo. Mas o fato inevitável é que, enquanto Fraser fosse seu prisioneiro, não poderia honradamente causar mal ao sujeito. Quando terminou de se barbear e o criado de vesti-lo, estava suficientemente recuperado para achar uma certa ironia na situação.

Seu comportamento tolo em Carryarrick salvara a vida de Fraser em Culloden. Agora, a dívida paga, e Fraser em seu poder, a absoluta impotência de Fraser como prisioneiro o tornava completamente seguro. Porque tolos ou espertos, ingênuos ou experientes, todos os Grey eram homens honrados.

Sentindo-se um pouco melhor, fitou sua imagem no espelho, ajeitou a peruca e foi tomar o desjejum antes de fazer seu primeiro discurso para os prisioneiros.

O jantar deve ser servido na sala de visitas ou aqui, senhor? — A cabeça de MacKay, descabelada como sempre, surgiu na porta do escritório.

Hum? - Grey murmurou, absorto nos papéis espalhados sobre a mesa. - Ah - disse, erguendo os olhos. — Aqui mesmo, por favor. - Abanou a mão vagamente indicando o canto da enorme escrivaninha e retornou ao seu trabalho, mal erguendo os olhos quando a bandeja com sua refeição chegou algum tempo depois.

Quarry não estava brincando quando falara da papelada. Só a quantidade de comida requeria infindáveis pedidos e requisições - todas a serem submetidas com cópia a Londres, por favor -, sem falar nas centenas de outras necessidades apresentadas pelos prisioneiros, guardas e homens e mulheres do vilarejo que vinham à prisão durante o dia para limpar os alojamentos e trabalhar nas cozinhas. Não fizera nada durante todo o dia a não ser escrever e assinar requisições. Tinha que achar um secretário, ou morreria de absoluto tédio.

Cem quilos de farinha de trigo, escreveu, para uso dos prisioneiros. Seis barris de cerveja, para uso do quartel. Sua caligrafia em geral elegante rapidamente se degenerara num rabisco prático, sua distinta assinatura transformada num sucinto J. Grey.

Largou a pena com um suspiro e fechou os olhos, massageando a dor entre as sobrancelhas. O sol não se dera ao trabalho de aparecer nem uma vez desde a sua chegada e trabalhar o dia inteiro num aposento enfumaçado à luz de velas deixava seus olhos queimando como pedaços de carvão. Seus livros haviam chegado no dia anterior, mas não chegara sequer a desempacotá-los, exausto demais ao cair da noite para fazer algo além de banhar os olhos ardentes em água fria e ir dormir.

Ouviu um ruído baixo e furtivo e sentou-se bruscamente, de olhos arregalados. Um enorme rato marrom estava instalado no canto da escrivaninha, segurava um pedaço de bolo de frutas nas patas dianteiras. O rato não se moveu, apenas olhou-o especulativamente, os bigodes torcendo-se.

- Ora, não acredito no que estou vendo! - Grey exclamou, surpreso. - Patife! Este jantar é meu!

O rato mordiscou o bolo pensativamente, os olhos brilhantes fixos no major.

Saia já daí! — Furioso, Grey agarrou o objeto mais próximo e atirou-o no rato. O vidro de tinta explodiu no assoalho de pedra com um esguicho preto, o assustado rato pulou da escrivaninha e fugiu precipitadamente, correndo entre as pernas do ainda mais espantado MacKay, que aparecera à porta para verificar a origem do barulho.

A prisão tem um gato? - Grey perguntou, despejando o conteúdo da bandeja na lata de lixo junto à escrivaninha.

Sim, senhor, há gatos no paiol de víveres - MacKay informou, engatinhando, sobre as mãos e os joelhos, para limpar as minúsculas pegadas pretas que o rato deixara em sua fuga precipitada pela poça de tinta.

Bem, traga um para cá, por favor, MacKay - Grey ordenou. -Imediatamente. - Grunhiu diante da lembrança daquele rabo obscena-mente nu, empoleirado despreocupadamente sobre seu prato. Já se deparara com muitos ratos no campo, é claro, mas ter sua própria refeição cons-purcarda diante de seus olhos lhe parecia particularmente enfurecedor.

Caminhou a passos largos até a janela e ficou ali parado, tentando clarear a mente com ar fresco, enquanto MacKay terminava a limpeza. Já era quase hora do crepúsculo e o pátio se enchia de sombras púrpuras. As pedras da ala das celas em frente pareciam ainda mais frias e lúgubres do que nunca.

Os carcereiros cruzavam o pátio na chuva, vindos da ala das cozinhas; uma procissão de carrinhos carregados com a comida dos prisioneiros; enormes vasilhames de fumegante mingau de aveia e cestos de pão, cobertos com lonas contra a chuva. Pelo menos os pobres-diabos tinham comida quente após um dia de trabalho sob a chuva na pedreira.

Um pensamento ocorreu-lhe quando se afastou da janela.

- Há muitos ratos nas celas? - perguntou a MacKay.

Sim, senhor, muitos - o prisioneiro respondeu, com um movimento final do pano de limpeza na soleira da porta. - Vou dizer ao cozinheiro que prepare uma nova bandeja, está bem, senhor?

Sim, por favor - Grey disse. - E depois, sr. MacKay, por favor providencie para que cada cela tenha seu próprio gato.

MacKay pareceu hesitar diante da ordem. Grey parou no meio do ato de recolher seus papéis espalhados.

- Alguma coisa errada, MacKay?

-Não, senhor - MacKay respondeu devagar. - É que esses ratos realmente mantêm os insetos sob controle. E, com todo respeito, senhor, acho que os homens não gostariam que um gato acabasse com todos os ratos.

Grey olhou espantado para o sujeito, sentindo-se ligeiramente nauseado.

Os prisioneiros comem os ratos? - perguntou, com a lembrança vívida dos dentes amarelos e pontiagudos mordiscando o bolo de frutas.

Só quando têm a sorte de pegar um, senhor — MacKay disse. — Talvez os gatos possam ajudar nisso, afinal. Isso é tudo por hoje, senhor?

 

A decisão de Grey em relação a James Fraser durou duas semanas. Então o mensageiro chegou do vilarejo de Ardsmuir com notícias que mudaram tudo.

Ele ainda está vivo? - perguntou rispidamente ao sujeito. O mensageiro, um dos habitantes do vilarejo que trabalhava para a prisão, balançou a cabeça, confirmando.

Eu mesmo o vi, senhor, quando o trouxeram. Está na Tília agora, estão cuidando dele... mas eu não achei que bastaria cuidar dele, senhor, se entende o que eu quero dizer. - Ergueu uma das sobrancelhas significativamente.

- Entendo - Grey disse secamente. Obrigado, sr...

- Allison, senhor, Rufus Allison. Seu criado, senhor. - O homem aceitou a moeda que Grey lhe deu, inclinou-se com o chapéu debaixo do braço e saiu.

Grey sentou-se à sua escrivaninha, olhando para fora, para o céu de chumbo. O sol mal brilhara por um dia desde sua chegada. Bateu de leve sobre a mesa com a ponta da pena com a qual estivera escrevendo, desatento ao dano que estava infligindo à ponta afiada.

A simples menção de ouro era suficiente para fazer qualquer homem ficar de cabelos em pé, mas especialmente os seus.

Um homem fora encontrado pela manhã, vagando pela névoa da charneca próxima ao vilarejo. Suas roupas estavam encharcadas não só da chuva, como de água do mar, e delirava de febre.

Não parara de falar desde que fora encontrado, a maior parte do tempo apenas balbuciando, mas as pessoas que o resgataram eram incapazes de dar algum sentido aos seus delírios. O homem parecia ser escocês, mas falava uma mistura incoerente de francês e gaélico, com uma palavra em inglês aqui ou ali. E uma dessas palavras fora "ouro".

A combinação de ouro, escocês e francês, mencionada nesta região do país, somente poderia trazer um pensamento à mente de qualquer um que tivesse lutado nos últimos dias da revolução jacobita. O Ouro do Francês. A fortuna em lingotes de ouro que Luís da França - segundo os boatos - enviara secretamente para ajudar seu primo, Carlos Stuart. Mas enviada tarde demais.

Algumas histórias diziam que o ouro francês fora escondido pelo exército das Highlands durante a última e açodada retirada para o norte, antes do desastre final em Culloden. Outras afirmavam que o ouro jamais chegara a Carlos Stuart, mas fora deixado por segurança em uma caverna perto do lugar onde fora descarregado, na costa noroeste.

Algumas ainda diziam que o segredo do esconderijo se perdera, tendo seu guardião morrido em Culloden. Outras, que o esconderijo ainda era conhecido, mas era um segredo guardado a sete chaves pelos membros de uma única família das Highlands. Qualquer que fosse a verdade, o ouro ainda não fora encontrado. Ainda não.

Francês e gaélico. O francês de Grey era passável, pois passara vários anos lutando no estrangeiro, mas nem ele nem nenhum dos seus oficiais falavam o bárbaro gaélico, a não ser algumas palavras que o sargento Grissom aprendera quando criança de uma babá escocesa.

Não podia confiar em nenhum homem do vilarejo, não se houvesse alguma verdade nessa história. O Ouro do Francês! Além de seu valor como tesouro - que iria para a Coroa, de qualquer forma -, o ouro possuía um valor considerável e pessoal para John William Grey. A descoberta dessa riqueza quase mítica seria seu passaporte para longe de Ardsmuir -de volta a Londres e à civilização. A mais negra desonra seria instantaneamente ofuscada pelo brilho do ouro.

Mordeu a ponta estragada da pena, sentindo o cilindro quebrar-se entre os dentes.

Droga. Não, não podia ser um dos habitantes do vilarejo, nem um de seus oficiais. Então teria que ser um prisioneiro. Sim, podia usar um prisioneiro de pouco risco, porque um prisioneiro não poderia fazer uso das informações em seu próprio benefício.

Droga também. Todos os prisioneiros falavam gaélico, muitos tinham algum conhecimento de inglês também, mas apenas um falava francês. Ele é um homem educado, a voz de Quarry ecoou em sua lembrança.

-Droga, droga, droga - Grey murmurou. Não havia outro jeito. Allison dissera que o homem encontrado vagando a esmo estava muito doente; não havia tempo para alternativas. Cuspiu um fragmento da pena de escrever.

Brame! - gritou. O espantado cabo enfiou a cabeça pela porta.

Sim, senhor?

Traga-me o prisioneiro chamado James Fraser. Imediatamente.

O diretor do presídio permaneceu de pé atrás da escrivaninha, apoiando-se sobre ela como se o enorme tampo de carvalho fosse de fato a amurada de proteção que parecia ser. Suas mãos estavam úmidas sobre a madeira lisa e o lenço branco de seu uniforme parecia apertado em volta do seu pescoço.

Seu coração deu um salto quando a porta se abriu. O escocês entrou, suas correntes tilintando levemente, e parou diante da escrivaninha. Todas as velas estavam acesas e o escritório quase tão claro como o dia, embora já fosse praticamente noite lá fora.

Ele vira Fraser várias vezes, é claro, de pé no pátio com os outros prisioneiros, a cabeça ruiva e os ombros acima da maioria dos outros homens, mas nunca suficientemente perto para ver seu rosto com clareza.

Ele estava diferente. Isso foi tanto um choque quanto um alívio; durante muito tempo ele vira um rosto bem barbeado em sua mente, sombrio e ameaçador ou iluminado com uma risada zombeteira. Este homem usava a barba curta, tinha um rosto calmo e circunspecto e, embora os olhos azuis continuassem os mesmos, não davam nenhum sinal de reconhecimento. Continuou tranqüilamente parado diante da escrivaninha, aguardando.

Grey pigarreou. Seu coração ainda estava acelerado, mas ao menos podia falar com calma.

- Sr. Fraser - ele disse. - Agradeço-lhe por ter vindo.

O escocês inclinou a cabeça educadamente, mas não respondeu que ele não tivera outra escolha; seus olhos disseram isso por ele.

Sem dúvida, está se perguntando por que eu mandei trazê-lo aqui -Grey disse. Ele soava insuportavelmente pomposo a seus próprios ouvidos, mas era incapaz de remediar isso. - Surgiu uma questão para a qual solicito seu auxílio.

De que se trata, major? - A voz era a mesma grave e límpida, marcada pelo forte sotaque das Highlands.

Respirou fundo, escorando-se na escrivaninha. Preferia fazer qualquer outra coisa que não ter que pedir ajuda a este homem em particular, mas não havia escolha. Fraser era a única chance.

- Um homem foi encontrado vagando pela charneca perto da costa - disse, com todo o cuidado. — Ele parece estar gravemente doente e o que fala não faz sentido. Entretanto algumas... coisas que ele diz parecem ser de... grande interesse para a Coroa. Solicito que fale com ele e descubra o máximo que puder sobre sua identidade e sobre as questões de que fala.

Parou, mas Fraser continuou simplesmente parado, esperando.

- Infelizmente - Grey disse, respirando fundo outra vez -, soube que o homem em questão fala uma mistura de gaélico e francês, e não mais do que uma ou duas palavras em inglês.

Uma das sobrancelhas ruivas do escocês arqueou-se. Seu rosto não se alterou de nenhuma maneira perceptível, mas era evidente que ele havia percebido as implicações da situação.

- Compreendo, major. — A voz macia do escocês soou carregada de ironia. - E gostaria da minha ajuda para traduzir para você o que esse homem possa ter a dizer.

Grey não podia confiar em sua própria voz e, assim, meramente fez um rápido sinal de afirmação com a cabeça.

Receio ter que declinar, major. — Fraser falou com todo o respeito, mas com um brilho no olhar que nada tinha de respeitoso. A mão de Grey fechou-se com força em torno do abridor de cartas de bronze que estava sobre o mata-borrão.

Você declina? - disse. Apertou o abridor de cartas com mais força a fim de manter a voz firme e estável. - Posso perguntar por quê, sr.- Fraser?

Eu sou um prisioneiro, major - o escocês disse educadamente. -Não um intérprete.

Sua ajuda seria... reconhecida — Grey disse, tentando infundir significado na palavra sem oferecer suborno diretamente. — Por outro lado — seu tom de voz endureceu —, a recusa em prestar uma ajuda legítima...

Não é legítimo que o senhor venha extorquir meus serviços ou me ameaçar, major. - A voz de Fraser soou bem mais implacável do que a de Grey.

Eu não o ameacei! - O gume do abridor de cartas estava cortando sua palma; foi obrigado a afrouxar a mão.

Ah, não? Bem, fico feliz em saber disso. — Fraser voltou-se para a porta. — Neste caso, major, desejo-lhe boa-noite.

Grey teria ficado muito satisfeito em apenas deixá-lo ir. Infelizmente, o dever o chamava.

- Sr. Fraser! — O escocês parou, a poucos passos da porta, mas não se virou.

Grey respirou fundo, revestindo-se de coragem.

- Se fizer o que lhe peço, mandarei retirar suas algemas — disse. Fraser permaneceu imóvel. Grey podia ser jovem e inexperiente, mas não era desatento. Nem era um mau conhecedor do caráter humano. Grey observou a cabeça do prisioneiro levantar-se, a tensão crescente em seus ombros, e sentiu um pequeno relaxamento da ansiedade que o acometera desde que a notícia do andarilho errante chegara.

- Sr. Fraser?

Muito devagar, o escocês virou-se. Seu rosto mantinha-se absolutamente impenetrável.

- Aceito o acordo, major - ele disse serenamente.

Já passava bastante da meia-noite quando chegaram ao vilarejo de Ardsmuir. Não se via nenhuma luz nas cabanas pelas quais passavam e Grey ficou imaginando o que os habitantes estariam pensando, com o barulho dos cascos dos cavalos e o tilintar das armas passando por suas janelas tarde da noite, um débil eco das tropas inglesas que varreram as Highlands há dez anos.

O andarilho fora levado para a Tília, uma estalagem assim chamada porque durante muitos anos ostentou uma enorme tília no pátio, a única árvore num raio de cinqüenta quilômetros. Não restava mais nada agora além de um toco largo — a árvore, como tantas outras coisas, morrera depois de Culloden, consumida como lenha pelas tropas de Cumberland -, mas o nome permaneceu.

Na entrada, Grey parou e virou-se para Fraser.

- Vai se lembrar dos termos do nosso acordo?

- Sim — Fraser respondeu laconicamente, passando por ele e entrando na estalagem.

Em troca de livrar Fraser dos grilhões, Grey fizera três exigências: a primeira, que Fraser não tentaria fugir durante o trajeto de ida e de volta do vilarejo. A segunda, Fraser se comprometeria a fazer um relato completo e verdadeiro de tudo que o andarilho dissesse. E terceira, Fraser daria sua palavra de honra de não falar a ninguém exceto Grey sobre o que ouvira.

Houve um murmúrio de vozes em gaélico dentro da estalagem; um som de surpresa quando o estalajadeiro viu Fraser e de deferência à vista do casaco-vermelho atrás dele. A mulher do proprietário estava parada na escada, uma lamparina a óleo na mão, fazendo as sombras dançarem ao seu redor

Grey colocou a mão no braço do dono da estalagem, surpreso.

Quem é este? — Havia uma outra figura nas escadas, uma aparição toda vestida de negro.

É o padre - Fraser disse em voz baixa, a seu lado. - O homem deve estar à morte.

Grey respirou fundo, tentando preparar-se para o que viria.

- Então não temos tempo a perder - disse com firmeza, colocando un pé calçado de bota na escada. - Vamos.

O homem morreu pouco antes de amanhecer o dia, Fraser segurando uma de suas mãos, o padre a outra. Quando o padre inclinou-se sobre a cama, murmurando em gaélico e latim, fazendo sinais católicos sobre o corpo, Fraser recostou-se em seu banco, os olhos cerrados, ainda segurando a mão pequena e frágil na sua.

O enorme escocês permanecera sentado à cabeceira do moribundo a noite inteira, ouvindo, encorajando, consolando. Grey permanecera junto à porta, não querendo assustar o homem com a visão do seu uniforme, tanto surpreso quanto estranhamente emocionado com a delicadeza de Fraser.

Fraser colocou a mão descarnada e ressequida gentilmente sobre o peito imóvel e fez o mesmo sinal que o padre fizera, tocando a testa, o coração e os dois ombros, no sinal-da-cruz. Abriu os olhos e levantou-se, a cabeça quase tocando as vigas do teto baixo. Fez um breve sinal com a cabeça para Grey e seguiu à sua frente, descendo as escadas estreitas.

- Aqui. — Grey indicou a porta da taberna, vazia àquela hora. Um barman sonolento acendeu a lareira para eles e trouxe pão e cerveja, depois saiu, deixando-os a sós.

Esperou que Fraser se servisse antes de perguntar.

- E então, sr. Fraser?

O escocês colocou seu caneco de cerveja sobre a mesa e limpou a boca com as costas da mão. Com a barba já feita, os longos cabelos muito bem trançados, não parecia desalinhado pela longa noite de vigília, mas havia olheiras escuras de cansaço sob seus olhos.

Tudo bem - ele disse. - Não faz muito sentido, major - acrescentou, avisando-o —, mas eis tudo o que ele disse. — Falou cuidadosamente, fazendo uma pausa de vez em quando para se lembrar de alguma palavra, parando outra vez para explicar alguma referência em gaélico. Grey permaneceu sentado, ouvindo atentamente, com crescente decepção; Fraser tinha razão, não fazia muito sentido.

A feiticeira branca? - Grey interrompeu. - Ele mencionou uma bruxa branca? E focas? - Aquilo não parecia mais improvável do que o resto da história, mas mesmo assim falou, incrédulo.

- Sim, foi o que ele disse.

- Conte-me outra vez - Grey solicitou. - Da melhor maneira que conseguir se lembrar. Por favor - acrescentou.

Sentia-se estranhamente à vontade com Fraser, ele percebeu com uma sensação de surpresa. Em parte, devia-se à pura fadiga, é claro; todas as suas reações e sentimentos costumeiros estavam entorpecidos pela longa noite e pela tensão de observar de perto um homem morrer.

A noite inteira parecera irreal a Grey; e não menos essa estranha conclusão, em que se via sentado à luz turva da aurora de uma taberna rural, partilhando um jarro de cerveja comjamie Fraser, o Ruivo.

Fraser obedeceu, falando devagar, parando de vez em quando para se lembrar. Com a diferença de uma palavra aqui ou ali, o relato era idêntico ao primeiro - e aquelas partes que o próprio Grey fora capaz de compreender haviam sido fielmente traduzidas.

Sacudiu a cabeça, desanimado. Balbucios confusos e ininteligíveis. Os delírios do homem haviam sido exatamente isso — delírios. Se o homem jamais tivesse visto algum ouro - e assim realmente pareceu, em determinado momento -, não havia como saber onde ou quando por aquela mixórdia de seus delírios febris e incoerentes.

- Tem absoluta certeza de que isso foi tudo o que ele disse? - Grey agarrava-se à frágil esperança de que Fraser pudesse ter omitido uma pequena expressão, alguma declaração que fornecesse uma pista para levar ao ouro perdido.

A manga da camisa de Fraser deslizou para trás quando ele ergueu seu caneco; Grey pôde ver a faixa funda de carne ferida junto aos pulsos, escura à luz turva dentro da taberna. Fraser viu-o olhando seu braço e colocou o caneco de volta sobre a mesa, a frágil ilusão de companheirismo destruída.

- Cumpro meus acordos, major — Fraser disse, com fria formalidade. Levantou-se. — Podemos voltar agora?

Cavalgaram em silêncio por algum tempo. Fraser estava absorto em seus próprios pensamentos, Grey mergulhado em cansaço e frustração. Pararam junto a uma pequena fonte para se refrescar, exatamente quando o sol surgiu no topo das colinas ao norte.

Grey bebeu a água fria, depois molhou o rosto, sentindo o choque de temperatura reanimá-lo no mesmo instante. Estava acordado há mais de vinte e quatro horas e sentia-se lerdo e incapaz de raciocinar.

Fraser estava acordado pelas mesmas vinte e quatro horas, mas não dava nenhum sinal aparente de estar perturbado com o fato. Arrastava-se, atarefado, de joelhos, em volta da fonte, evidentemente arrancando uma espécie de erva da água.

- O que está fazendo, sr. Fraser? - Grey perguntou, ligeiramente intrigado.

Fraser ergueu os olhos, levemente surpreso, mas nem um pouco constrangido.

Estou colhendo agrião, major.

Estou vendo - Grey disse irritado. - Para quê?

Para comer, major — Fraser respondeu sem se alterar. Tirou a manchada sacola de pano do cinto e enfiou o maço de folhas molhadas para dentro.

É mesmo? Não é alimentado o suficiente? - Grey perguntou, sem compreender. — Nunca ouvi falar de pessoas comendo agrião.

-É verde, major.

Em seu estado de completa fadiga, o major suspeitou que Fraser estivesse brincando com ele.

- E de que outra cor uma planta deveria ser? - perguntou.

A boca de Fraser contorceu-se ligeiramente e ele parecia estar deliberando consigo mesmo. Por fim, deu de ombros, limpando as mãos molhadas nas calças.

- Eu só quis dizer, major, que comer plantas verdes impede que uma pessoa contraia escorbuto e perca os dentes. Meus homens comem as folhas verdes que eu levo para eles, e agrião tem um gosto melhor do que a maioria das plantas que consigo na charneca.

Grey sentiu as sobrancelhas arquearem-se.

Plantas verdes impedem o escorbuto? — exclamou. - Onde foi que você aprendeu isso?

Com minha mulher! — Fraser respondeu rispidamente. Virou-se de modo abrupto e ficou amarrando a boca da sacola com movimentos rápidos e bruscos.

Grey não pôde deixar de perguntar.

- Sua mulher, senhor... onde ela está?

A resposta foi um repentino lampejo azul-escuro que o fulminou até a medula dos ossos, tamanha a sua intensidade.

Talvez você seja jovem demais para conhecer o poder do ódio e do desespero. A voz de Quarry soou na memória de Grey. Ele não era; reconheceu-os imediatamente nas profundezas dos olhos de Fraser.

Mas apenas por um instante; em seguida, o véu normal de fria cortesia voltou à sua expressão.

- Minha mulher se foi — Fraser disse, virando-se de costas outra vez, tão bruscamente que o movimento foi quase rude.

Grey sentiu-se abalado por um sentimento inesperado. Em parte, era alívio. A mulher que fora tanto a causa quanto cúmplice de sua humilhação estava morta. Em parte, era pesar.

Nenhum dos dois voltou a falar durante a viagem de volta a Ardsmuir.

Três dias depois, Jamie Fraser fugiu. Nunca fora um obstáculo difícil para os prisioneiros fugirem de Ardsmuir; ninguém nunca o fez simplesmente porque não havia nenhum lugar para onde um homem pudesse ir. A cinco quilômetros da prisão, a costa da Escócia mergulhava no oceano num derrame de granito esfacelado. Nos outros três lados, não havia nada além de terra deserta, estendendo-se por quilômetros e quilômetros.

No passado, um homem poderia fugir pela mata e contar com um clã ou um parente que lhe desse abrigo e proteção. Mas os clãs haviam sido dizimados, os parentes mortos, os prisioneiros escoceses levados para longe das terras de seus próprios clãs. Morrer de fome numa terra pantanosa não era melhor do que uma cela de prisão. A fuga não valia a pena - para qualquer um, exceto Jamie Fraser, que evidentemente tinha um motivo.

Os cavalos dos dragões restringiam-se à estrada; embora a charneca ao redor parecesse lisa como uma colcha de veludo, o urzal arroxeado era uma camada fina, enganosamente espraiada sobre uns trinta centímetros mais de musgo de turfa, esponjoso e encharcado. Até os veados vermelhos evitavam caminhar a esmo pelo terreno pantanoso - Grey podia ver quatro desses animais agora, figuras semelhantes a galhos, a um quilômetro e meio de distância, a sua trilha pelo urzal parecendo fina como uma linha.

Fraser, obviamente, não estava a cavalo. Isso significava que o prisioneiro fugitivo podia estar em qualquer lugar da charneca, livre para seguir as trilhas dos veados vermelhos.

Era dever de John Grey perseguir seu prisioneiro e tentar recapturá-lo. Foi algo mais do que o dever que o fez desfalcar a guarnição para formar o grupo de busca e instar os homens a prosseguir, parando o mínimo possível para comer e descansar. Dever, sim, e uma necessidade premente encontrar o ouro francês e angariar a aprovação de seus superiores e a dispensa daquele estéril exílio escocês. Mas havia raiva também, e uma estranha sensação de traição pessoal.

Grey não tinha certeza se estava com mais raiva de Fraser por faltar com sua palavra ou consigo mesmo, por ter sido tolo o suficiente para acreditar que um escocês das Highlands — cavalheiro ou não - tivesse uma noção de honra igual à sua. Mas com raiva ele estava, e determinado a vasculhar cada trilha de veados naquela charneca se necessário, a fim de laçar James Fraser pelos calcanhares.

Alcançaram a costa na noite seguinte, bem depois de escurecer, após um dia cansativo esquadrinhando o território. A neblina havia se dispersado por cima dos rochedos, varrida pelo vento que soprava da terra, o mar estendia-se diante deles, represado pelos penhascos e salpicado de minúsculas ilhotas desertas.

John Grey ficou parado ao lado de seu cavalo no alto dos rochedos, contemplando o mar bravio e negro lá embaixo. Era uma noite clara na costa, graças a Deus, e a lua estava pela metade, sua claridade revelando rochas molhadas pela arrebentação, fazendo-as destacarem-se, duras e brilhantes como lingotes de prata em meio a sombras negras e aveludadas.

Era o lugar mais desolado que já vira, embora tivesse uma espécie de beleza terrível que fazia o sangue correr gelado em suas veias. Nenhum sinal de James Fraser. Nenhum sinal de vida.

Um dos homens que o acompanhavam fez uma repentina exclamação de surpresa e sacou a pistola.

- Lá! - disse. - Nas rochas!

- Guarde a arma, idiota - disse outro dos soldados, agarrando a arma do companheiro. Não fez nenhum esforço para disfarçar seu desdém. — Nunca viu focas?

-Ah... não — disse o primeiro homem, um pouco encabulado. Abaixou a pistola, fitando as pequenas formas escuras nas rochas abaixo.

Grey também nunca vira focas e observou-as fascinado. A distância, pareciam lesmas negras, o luar refletindo-se em seus dorsos luzidios quando erguiam a cabeça, inquietas, parecendo rolar e contorcer-se, vacilantes, quando se locomoviam em terra.

Sua mãe possuíra um manto feito de pele de foca, quando ele era garoto. Ele teve a oportunidade de tocá-lo uma vez, admirando-se com a sensação, escura e quente como uma noite de verão sem luar. Era surpreendente que aquela pele espessa e sedosa viesse dessas criaturas molhadas e escorregadias.

Os escoceses as chamam de silkies — disse o soldado que as reconhecera. Fez um sinal com a cabeça indicando as focas com ar de profundo conhecedor.

Silkies? - A atenção de Grey foi despertada; fitou o homem com interesse. - O que mais sabe sobre elas, Sykes?

O soldado deu de ombros, desfrutando sua importância passageira.

Não muita coisa, senhor. Mas o pessoal daqui conta histórias sobre elas; dizem que às vezes uma delas vem à terra firme e livra-se de sua pele, e por dentro há uma bela mulher. Se um homem encontrar a pele e escondê-la, de modo que ela não possa voltar, bem... ela será obrigada a ficar e se tornar sua mulher. Dão ótimas esposas, senhor, ou assim dizem.

Ao menos, vão estar sempre molhadas - murmurou o primeiro soldado, e os homens irromperam em gargalhadas que ecoaram pelos penhascos, rouquenhas como os gritos de aves marinhas.

Basta! — Grey teve que elevar a voz, para se fazer ouvir acima da eclosão de risadas e piadas grosseiras. - Espalhem-se! - Grey ordenou. - Quero que dêem uma busca nos rochedos em ambas as direções. E fiquem de olho em barcos lá embaixo, há espaço suficiente para esconder uma chalupa atrás dessas ilhotas.

Envergonhados, os homens afastaram-se sem comentários. Retornaram uma hora mais tarde, molhados pelos borrifos da arrebentação das ondas contra os rochedos e desalinhados por escalarem pedras, mas sem nenhum sinal de Jamie Fraser — ou do Ouro do Francês.

Ao amanhecer, quando a luz pintou as rochas escorregadias de vermelho e dourado, pequenos grupos de dragões foram enviados para vasculhar os rochedos nas duas direções, descendo cuidadosamente os penhascos rochosos e as pilhas de pedras desmoronadas.

Nada foi encontrado. Grey permaneceu junto a uma fogueira no topo do penhasco, observando a busca. Estava enrolado em seu sobretudo para proteger-se do vento cortante e periodicamente se reanimava com café quente, fornecido por seu criado.

O andarilho viera do mar, suas roupas estavam encharcadas de água salgada. Se Fraser ficara sabendo de alguma coisa pelas palavras do sujeito que não lhe contara ou tivesse decidido apenas dar uma olhada por conta própria, certamente ele também teria vindo para o mar. No entanto não havia nenhum sinal de James Fraser, em nenhum lugar ao longo dessa faixa da costa. Pior ainda, não havia nenhum sinal do ouro.

Se ele foi para algum lugar ao longo desta faixa do litoral, major, acho que não o veremos mais. - Era o sargento Grissom, de pé ao seu lado, olhan do fixamente para a turbulência das ondas arrebentando nas pedras escarpadas lá embaixo. Fez um sinal com a cabeça indicando a fúria das águas.

Chamam este lugar de Caldeirão do Diabo, por causa da maneira como fervilha o tempo todo. Os pescadores que se afogam ao largo desta costa raramente são encontrados; há correntes terríveis que podem ser responsáveis por isso, é claro, mas as pessoas dizem que o diabo os agarra e puxa para baixo.

É mesmo? - Grey disse, de modo inexpressivo. Olhou fixament para a espuma e a arrebentação violenta quinze metros abaixo. - Eu não duvidaria, sargento.

Voltou para a fogueira do acampamento.

- Dê ordens para que as buscas continuem até o cair da noite, sargento. Se nada for encontrado, partiremos de volta pela manhã.

Grey ergueu o olhar do pescoço do cavalo, estreitando os olhos pela luz turva do começo da manhã. Sentia os olhos inchados da fumaça de turfa e da falta de sono, e seus ossos doíam das várias noites passadas deitado no chão úmido.

A volta a Ardsmuir não levaria mais do que um dia. A idéia de uma cama macia e uma refeição quente era deliciosa mas teria que redigir despacho oficial a Londres, comunicando a fuga de Fraser — a razão da fuga e seu próprio fracasso vergonhoso em recapturar o prisioneiro.

A sensação de desalento diante dessa perspectiva era reforçada por fortes contrações na barriga do major. Ergueu a mão, fazendo sinal para uma parada, e desceu com dificuldade do cavalo.

-Esperem aqui — disse a seus homens. Havia uma pequena colina a uns trinta metros de distância; ela lhe proporcionaria suficiente privacidade para o alívio de que tanto precisava; seus intestinos, desacostumados ao mingau e ao pão de aveia escoceses, haviam se rebelado completamente contra as exigências de uma dieta de campanha.

Os pássaros cantavam no urzal. Longe do barulho dos cascos e arreios, ele podia ouvir todos os minúsculos sons do amanhecer. O vento mudara de direção com a aurora e o cheiro do mar agora vinha para a terra, murmurando pelo capim. Algum animal pequeno fez um barulho farfalhante do outro lado de uma moita de tojo. Tudo era muito pacífico.

Erguendo-se do que ele descobriu tarde demais ser uma posição muito indigna, Grey virou a cabeça e deu de cara com James Fraser.

Ele estava a menos de dois metros de distância. Permaneceu imóvel como um dos veados vermelhos, o vento roçando-o de leve, o sol nascente refletido em seus cabelos.

Ficaram paralisados, encarando-se. O vento trazia um leve cheiro do mar. Por um instante, não se ouviu nenhum ruído além da brisa do mar e do canto de pássaros. Em seguida, Grey aprumou-se, engolindo com força para fazer o coração descer da garganta.

- Receio que tenha me pego desprevenido, sr. Fraser - ele disse friamente, abotoando as calças com toda a dignidade que conseguiu reunir.

Os olhos do escocês foram a única parte dele a se mover, percorrendo a figura de Grey lentamente de alto a baixo. Olhou por cima do ombro, para onde seis soldados armados estavam enfileirados, apontando seus mosquetes. Os olhos azul-escuros fixaram-se depois nos seus. Por fim, o canto da boca de Fraser contorceu-se e ele disse:

- Acho que também me pegou, major.

 

Jamie Fraser estava sentado, tremendo de frio, no chão de pedra do depósito vazio, envolvendo os joelhos e tentando se aquecer. Achava que jamais se sentiria aquecido outra vez. A triagem do mar penetrara em seus ossos e ele ainda podia sentir na barriga a agitação dos vagalhões revoltos na arrebentação.

Ansiava pela presença dos outros presos — Morrison, Hayes, Sinclair, Sutherland. Não só por companhia, mas pelo calor de seus corpos. Nas noites mais geladas, os homens sentavam-se bem juntos para se aquecerem, respirando o hálito rançoso uns dos outros, tolerando as cotoveladas e empurrões de acomodações apertadas por causa do calor.

Mas ele estava sozinho. Era provável que não o devolvessem à cela grande com os outros homens até terem feito com ele o que quer que pretendessem como castigo pela fuga. Recostou-se na parede com um suspiro, sentindo morbidamente os ossos da espinha dorsal pressionando a pedra e a fragilidade da carne que os recobria.

Estava com muito medo de ser açoitado, mas torcia para que essa fosse sua punição. Seria horrível, mas logo terminaria — e infinitamente mais suportável do que ser acorrentado outra vez. Podia sentir na carne as batidas do martelo, ecoando pelos ossos de seu braço conforme o ferreiro fixava os grilhões firmemente no lugar, mantendo o seu pulso preso sobre a bigorna.

Seus dedos buscaram o rosário em volta do pescoço. Sua irmã o dera para ele quando ele partiu de Lallybroch; os ingleses deixaram que ele o conservasse, já que as contas de madeira não tinham nenhum valor.

— Ave Maria, cheia de graça - murmurou -, bendita sois vós entre as mulheres.

Não tinha muita esperança. Aquele maldito majorzinho de cabelos louros vira, o desgraçado — ele sabia como os ferros eram terríveis.

- Bendito é o fruto de vosso ventre, Jesus. Santa Maria, Mãe de Deus, rogai a Deus por nós, pecadores...

O majorzinho fizera um acordo com ele, e ele o cumprira. Mas não era o que o major estaria pensando.

Cumprira sua palavra, fizera o que prometera. Repassara a ele as palavras que lhe foram ditas, uma a uma, exatamente como as ouvira do forasteiro. Não fazia parte do acordo dizer ao inglês que ele conhecia o sujeito - ou que conclusões ele tirara das palavras balbuciadas.

Ele reconhecera Duncan Kerr imediatamente, apesar de mudado pelo tempo e pela doença fatal. Antes de Culloden, ele fora um arrendatário de Colum MacKenzie, tio de Jamie. Depois, fugira para a França, para tentar a vida do jeito que pudesse por lá.

- Fique quieto, a charaid; bi sàmhach — ele dissera suavemente em gaélico, ajoelhando-se junto à cama onde o doente estava deitado. Duncan era um homem de idade, tinha o rosto envelhecido, desgastado pela doença e pela fadiga, e seus olhos brilhavam de febre. No começo, achara que Duncan estava mal demais para reconhecê-lo, mas a mão debilitada agarrara a sua com uma força surpreendente e o homem repetira com a respiração áspera, "mo charaid". Meu irmão.

O dono da estalagem observava-os do seu lugar junto à porta, espreitando por cima do ombro do major Grey. Jamie inclinou a cabeça e sussurrou no ouvido de Duncan:

- Tudo que você disser será contado ao inglês. Fale com cuidado.

Os olhos do estalajadeiro estreitaram-se, mas a distância entre eles era grande demais; Jamie tinha certeza de que ele não ouvira. Em seguida, o major virou-se e ordenou que o dono da estalagem se retirasse, e ele ficou seguro.

Não sabia se fora o efeito do seu aviso ou apenas o delírio da febre, mas a fala de Duncan divagava com sua mente, em geral incoerente, imagens do passado misturadas às do presente. Algumas vezes, chamara-o de "Dougal", o nome do irmão de Colum, o outro tio de Jamie. Às vezes, deixava-se levar por poesias, outras vezes simplesmente delirava. E entre os delírios e divagações, às vezes havia algum sentido - ou mais do que sentido.

É amaldiçoado — Duncan murmurou. — O ouro é amaldiçoado. Estou avisando-o, rapaz. Foi dado pela bruxa branca, dado ao filho do rei. Mas a causa está perdida, o filho do rei fugiu e ela não permitirá que o ouro seja dado a um covarde.

Quem é ela? -Jamie perguntou. Seu coração dera um pulo e o sufocara às palavras de Duncan, e continuava batendo desgovernadamente quando perguntou: — A bruxa branca, quem é?

Ela procura um homem de coragem. Um MacKenzie, é para ele mesmo. MacKenzie. Pertence a eles, ela disse, pelo bem dele que está morto.

Quem é a bruxa? —Jamie perguntou outra vez. A palavra usada por Duncan foi ban-druidh: uma bruxa, uma feiticeira, uma dama branca. Certa vez, chamaram assim sua mulher. Claire, sua própria dama branca. Apertou a mão de Duncan com força, instando-o a não perder os sentidos.

- Quem? - disse novamente. - Quem é a bruxa?

- A bruxa — Duncan murmurou, os olhos cerrando-se. — A bruxa. Ela é uma devoradora de alma. Ela é a morte. Ele está morto, o MacKenzie, ele está morto.

- Quem está morto? Colum MacKenzie?

- Todos eles, todos eles. Estão todos mortos. Todos mortos! – gritou o moribundo, agarrando sua mão com força. - Colum, Dougal e Ellen, também.

De repente, seus olhos se abriram e se fixaram nos de Jamie. A febre dilatara suas pupilas, de modo que seu olhar parecia uma poça negra e funda.

- As pessoas realmente contam - ele disse, com surpreendente clareza — como Ellen MacKenzie deixou seus irmãos e sua casa e foi casar-se com uma sílkie do mar. Ela as ouviu, sabe? — Duncan sorriu sonhadoramente, o olhar negro girando com a visão distante. — Ela ouviu as focas cantarem, lá nas rochas, uma, duas e três delas, e ela viu de sua torre, uma, duas e três delas, e assim ela desceu e foi para o mar, e para o fundo do mar, para viver com as silkies. Hein? Não foi?

- Assim dizem - Jamie respondera, a boca seca. Ellen era o nome de sua mãe. E isso foi o que as pessoas disseram, quando ela saiu de casa, para fugir com Brian Dubh Fraser, o homem com os cabelos negros e brilhantes de uma silkie. O homem em razão do qual ele próprio era agora chamado Mac Dubh - o filho de "Black Brian".

O major Grey aproximou-se e parou do outro lado da cama, o cenho franzido, observando o rosto de Duncan. O inglês não sabia nada de gaélico, mas Jamie poderia apostar que ele conhecia a palavra para ouro. Entreolharam-se e ele fez um breve sinal com a cabeça, inclinando-se outra vez para falar com o moribundo.

- O ouro, companheiro - ele disse, em francês, suficientemente alto para Grey ouvir. - Onde está o ouro? - Apertou a mão de Duncan com toda a força, na esperança de comunicar-lhe um aviso.

Os olhos de Duncan cerraram-se e ele começou a virar a cabeça agitadamente de um lado para o outro no travesseiro. Murmurou alguma coisa, mas as palavras eram fracas demais para serem compreendidas.

O que ele disse? - o major perguntou rispidamente. - O quê?

Não sei. -Jamie bateu de leve na mão de Duncan para despertá-lo.

— Fale comigo, companheiro, conte-me outra vez.

Não houve resposta, a não ser uns murmúrios. Os olhos de Duncan haviam rolado para trás em sua cabeça, de modo que apenas uma linha fina de esclerótica brilhante aparecia sob as pálpebras enrugadas. Impaciente, o major inclinou-se para a frente e sacudiu-o por um dos ombros.

- Acorde! - ele disse. - Fale conosco!

Imediatamente, os olhos de Duncan Kerr arregalaram-se. Olhou fixamente para cima, mais para cima, vendo alguma coisa muito além dos dois rostos inclinados sobre ele.

- Ela lhes dirá - ele disse, em gaélico. - Ela virá até vocês. - Por uma fração de segundo, sua atenção pareceu retornar ao quarto da estalagem onde estava e seus olhos fixaram-se nos homens que o ladeavam. — Até vocês dois - disse com clareza.

Em seguida, fechou os olhos e não disse mais nada, agarrando-se cada vez com mais força à mão de Jamie. Após algum tempo, sua mão relaxou e soltou-se. Tudo estava acabado. A guarda do ouro havia sido transmitida.

E assim, Jamie Fraser cumpriu sua palavra ao inglês - e sua obrigação com seus compatriotas. Contou ao major tudo que Duncan dissera, o que de nada lhe adiantara! E quando a oportunidade de fuga surgiu, ele aproveitou-a - fugiu para a charneca, dirigiu-se para a costa e fez o que pôde com o legado de Duncan Kerr. E agora tinha que pagar o preço de seus atos, qualquer que fosse.

Ouviu passos descendo o corredor do lado de fora. Apertou os joelhos com mais força, tentando estancar os tremores. Ao menos, seria resolvido agora, de um modo ou de outro.

- ...rogai por nós pecadores, agora e na hora de nossa morte, amém.

A porta escancarou-se, deixando entrar um facho de luz que o fez piscar. Estava escuro no corredor, mas o guarda parado acima dele carregava uma tocha.

De pé. - O homem agarrou-o e puxou-o, obrigando-o a levantar-se apesar da rigidez de suas juntas. Foi empurrado em direção à porta, aos tropeções. — Querem vê-lo lá em cima.

Lá em cima? Onde? — Estava surpreso; a forja do ferreiro ficava no andar de baixo, fora do pátio. E não iriam açoitá-lo tão tarde da noite.

O rosto do homem contorceu-se, feroz e vermelho à luz da tocha.

Aos alojamentos do major - o guarda disse, rindo. - E que Deus tenha pena de sua alma, Mac Dubh.

Não, senhor, não vou dizer onde estive. - Repetiu com firmeza tentando não deixar que seus dentes batessem de frio. Fora levado não ao escritório, mas à sala de visitas particular de Grey. A lareira estava acesa, mas Grey estava parado diante dela, bloqueando a maior parte do calor.

- Nem por que decidiu fugir? - A voz de Grey era fria e formal.

O rosto de Jamie endureceu-se. Fora colocado perto da estante de livros, onde a luz de um candelabro de três braços recaía sobre seu rosto; o próprio Grey não passava de uma silhueta, escura contra a claridade do fogo.

- É assunto pessoal meu — ele disse.

- Assunto pessoal? - Grey ecoou, incrédulo. - Você disse assunto pessoal seu?

- Sim.

O diretor respirou ruidosamente pelo nariz.

- Isso é provavelmente a coisa mais afrontosa que já ouvi na vida!

- Sua vida, então, deve ter sido curta, major — Fraser disse. - Se me permite o comentário. - Não fazia sentido prorrogar aquela conversa ou tentar aplacar a ira do major. Era melhor provocar logo uma decisão e acabar com aquilo.

Ele com certeza provocara alguma coisa; Grey cerrou os punhos com força, pressionando-os junto ao corpo, e deu um passo em sua direção, afastando-se do fogo.

Tem noção do que eu poderia fazer com você por isso? — Grey perguntou, a voz baixa e deliberadamente controlada.

Sim, tenho, major. - Mais do que uma simples noção. Sabia por experiência própria o que ele podia infligir-lhe e não estava ansioso por isso. Mas não tinha escolha.

Grey respirou pesadamente por um instante, depois virou de modo abrupto a cabeça.

Venha cá, sr. Fraser - ordenou. Jamie fitou-o, intrigado. - Aqui! -ele disse, autoritariamente, apontando para um lugar direto à sua frente no tapete em frente à lareira. - Venha cá, sr. Fraser!

Não sou um cachorro, major! -Jamie retorquiu. - Faça o que quiser comigo, mas não vou obedecer quando me ordena junto aos seus calcanhares!

Pego de surpresa, Grey emitiu uma risada curta e involuntária.

- Minhas desculpas, sr. Fraser — disse secamente. — Não tive intenção de ofendê-lo. Só queria que chegasse mais perto. Poderia? - Deu um passo para o lado e fez uma mesura elaborada, indicando a lareira com um gesto da mão.

Jamie hesitou, mas depois avançou cautelosamente pelo tapete ornamentado com motivos decorativos. Grey deu um passo em sua direção, as narinas alargadas. Assim de perto, os ossos delicados e a pele clara e lisa de seu rosto davam-lhe um ar quase feminino. O major colocou a mão em sua manga e os olhos de longas pestanas arregalaram-se de surpresa.

- Está molhado!

- Sim, estou molhado - Jamie disse, com elaborada paciência. Também estava congelado. Um tremor contínuo percorria seu corpo, mesmo ali junto ao fogo.

- Por quê?

Por quê? - Jamie repetiu, atônito. - Não mandou os guardas me encharcarem de água antes de me deixarem numa cela gelada?

Não, não fiz isso. — Era bastante evidente que o major dizia a verdade; seu rosto estava pálido sob o rubor causado pelo calor da lareira, e ele pareceu furioso. Seus lábios contraíram-se numa linha fina. - Peço-lhe desculpas por isso, sr. Fraser.

Desculpas aceitas, major. — Pequenos filetes de vapor começavam a elevar-se de suas roupas, mas o calor penetrava pelo tecido úmido. Seus músculos doíam dos tremores e gostaria de deitar-se no tapete. Cachorro ou não.

- Sua fuga teve alguma coisa a ver com o que ouviu na estalagem Tília?

Jamie permaneceu em silêncio. As pontas dos seus cabelos estavam secando e alguns fios flutuavam pelo seu rosto.

-Juraria para mim que sua fuga nada teve a ver com o que aconteceu na estalagem?

Jamie continuou em silêncio. Não havia razão para dizer alguma coisa agora.

O pequeno major andava para cima e para baixo da lareira diante dele, as mãos entrelaçadas nas costas. De vez em quando, o major erguia os olhos para ele, depois retomava os passos.

Finalmente, parou em frente a Jamie.

- Sr. Fraser — disse formalmente. - Vou lhe perguntar mais uma vez.

Por que fugiu da prisão?

Jamie suspirou. Não iria ficar de pé junto ao fogo por muito mais tempo.

Não posso lhe dizer, major.

Não pode ou não quer? - Grey perguntou asperamente.

- Não parece uma distinção necessária, major, já que não ouvirá nada de mim, de qualquer forma. - Fechou os olhos e esperou, tentando absorver o máximo de calor possível antes que o levassem.

Grey sentiu-se desorientado, sem saber o que dizer ou fazer. "Teimosos" não serve nem para começar a descrevê-los, Quarry dissera. Não mesmo.

Inspirou fundo, imaginando o que fazer. Sentia-se constrangido pela crueldade mesquinha da vingança dos guardas; mais ainda porque fora exatamente essa medida que ele próprio contemplara assim que soube que Fraser era seu prisioneiro.

Estaria perfeitamente dentro dos seus direitos agora mandar açoitar o sujeito ou acorrentá-lo outra vez. Condenado ao confinamento em uma solitária, com suas rações reduzidas — ele poderia com justiça infligir-lhe dezenas de punições diferentes. E se o fizesse, as chances de um dia vir a encontrar o Ouro do Francês se reduziriam drasticamente.

O ouro realmente existia. Ou ao menos havia uma boa probabilidade de que assim fosse. Somente a crença nesse ouro teria motivado Fraser a agir como agiu.

Examinou o escocês. Os olhos de Fraser estavam fechados, os lábios cerrados com firmeza. Possuía a boca larga e forte, cuja expressão feroz em parte se contrapunha aos lábios sensíveis, macios e expostos em seu ninho encaracolado de barba ruiva.

Grey parou, tentando pensar em algum jeito de transpassar a muralha de brando desafio do sujeito. O uso da força seria pior do que inútil - e depois da atitude dos guardas, teria vergonha de ordená-la, ainda que tivesse estômago para brutalidade.

O relógio no consolo da lareira bateu as dez horas. Era tarde; não havia nenhum ruído na fortaleza, a não ser os passos do soldado de sentinela no pátio do lado de fora da janela.

Obviamente, nem força nem ameaça ajudariam a obter a verdade. Com relutância, compreendeu que só havia um caminho a seguir, se ainda quisesse ir ao encalço do ouro. Teria que deixar de lado seus sentimentos em relação ao escocês e aceitar a sugestão de Quarry. Devia buscar um relacionamento, no decorrer do qual talvez pudesse extrair do sujeito alguma pista que o levasse ao tesouro escondido.

Se ele existisse, lembrou a si mesmo, virando-se para o prisioneiro. Respirou fundo.

- Sr. Fraser - disse formalmente -, me daria a honra de jantar comigo amanhã nas minhas dependências?

Ao menos, teve a satisfação momentânea de surpreender o maldito escocês. Os olhos azuis arregalaram-se e, em seguida, Fraser recuperou o domínio de sua expressão. Parou por um instante, depois fez uma mesura floreada, como se usasse um kilt e um xale oscilante, e não farrapos úmidos de um prisioneiro.

- O prazer será todo meu, major - respondeu.

 

Fraser chegou escoltado pelo guarda e foi deixado na sala de estar, onde a mesa de jantar estava posta. Quando Grey atravessou a porta de seu quarto alguns instantes depois, viu seu convidado parado junto à estante, aparentemente absorto em um exemplar de Noupelle Héloise.

- Interessa-se por romances franceses? - perguntou inesperadamente, só percebendo tarde demais o quanto a pergunta soava inacreditável.

Fraser ergueu os olhos, surpreso, e fechou o livro com um estalo. Com acintosa deliberação, devolveu o livro ao seu lugar na estante.

Eu sei ler, major - disse. Ele havia se barbeado; um ligeiro rubor afo-gueava as maçãs do rosto.

Eu... sim, claro, não quis dizer... eu apenas... — As próprias faces de Grey ficaram mais ruborizadas do que as de Fraser. A realidade é que ele havia de fato, inconscientemente, presumido que o outro não lia, apesar de sua evidente educação esmerada, somente por causa de seu sotaque das Highlands e suas vestimentas andrajosas.

Embora seu casaco pudesse estar surrado e gasto, os modos de Fraser não deixavam a desejar. Ignorou as desculpas atrapalhadas de Grey e virou-se para a estante.

Tenho contado a história aos homens, mas já faz algum tempo que a li. Achei que podia refrescar a memória quanto à seqüência do final.

Sei. — Bem a tempo, Grey conteve-se de dizer: "E eles a compreendem?"

Fraser evidentemente leu a frase não pronunciada em seu rosto, porque disse secamente:

- Todas as crianças escocesas são alfabetizadas, major. Além disso, temos uma grande tradição de contadores de histórias nas Highlands.

- Ah. Sim. Entendo.

A entrada do criado com o jantar salvou-o de novos embaraços e o jantar transcorreu sem incidentes, embora com pouca conversa, assim mesmo limitada aos assuntos da prisão.

Na vez seguinte, mandou colocar a mesa de xadrez diante da lareira e convidou Fraser para se unir a ele numa partida antes do jantar ser servido. Um breve lampejo de surpresa atravessou os olhos oblíquos e azuis, seguido de um breve aceno de cabeça em aquiescência.

Aquele fora um golpe de gênio, Grey pensou em retrospecto. Aliviados da necessidade de manter uma conversa ou gentilezas sociais, eles gradualmente acostumaram-se um ao outro, inclinados sobre o tabuleiro incrustado de marfim e ébano, avaliando-se silenciosamente pelos movimentos das peças do jogo de xadrez.

Quando por fim sentaram-se para jantar, já não eram completos estranhos, e a conversa, embora ainda cautelosa e formal, era ao menos uma conversa autêntica, e não aqueles monossílabos experimentais e embaraçosos de antes. Discutiram assuntos da prisão, conversaram um pouco sobre livros e separaram-se formalmente, mas de maneira amistosa. Grey não fez menção ao ouro.

E assim o costume semanal foi estabelecido. Grey procurava colocar seu convidado à vontade, na esperança de que Fraser deixasse escapar alguma pista do destino do Ouro do Francês. Não chegara a esse ponto, apesar de cuidadosa sondagem. Qualquer sugestão de pergunta sobre o que acontecera durante os três dias de ausência de Fraser de Ardsmuir era sempr recebida com silêncio.

Enquanto comiam carneiro e batatas cozidas, ele fazia todo o possível para conduzir seu convidado ocasional à discussão da França e sua política, com o intuito de descobrir se poderia haver algum elo entre Fraser e uma possível fonte de ouro da corte francesa.

Para grande surpresa sua, fora informado que Fraser havia de fato passado dois anos vivendo na França, trabalhando no ramo de vinhos, antes da rebelião dos Stuart.

Um certo humor frio nos olhos de Fraser indicava que o sujeito tinha plena consciência dos motivos por trás de suas perguntas. Ao mesmo tempo, ele concordava gentilmente em seguir com a conversa, embora sempre tomando cuidado para desviar as perguntas de sua vida pessoal e, ao contrário, na direção de questões mais gerais de arte e sociedade.

Grey passara algum tempo em Paris, e apesar de suas tentativas de sondar as conexões francesas de Fraser, viu-se cada vez mais interessado na conversa por si mesma.

- Diga-me, sr. Fraser, durante sua estada em Paris, teve a chance de deparar com as obras dramáticas de monsieur Voltaire?

Fraser sorriu.

Ah, sim, major. Na realidade, tive o privilégio de receber monsie Arouet, Voltaire era seu nom de plume, sabia?, à minha mesa, em mais uma ocasião.

É mesmo? - Grey ergueu uma das sobrancelhas, interessado. - E ele é tão inteligente em pessoa como o é com sua pena?

Não saberia realmente dizer - Fraser respondeu, cuidadosamente espetando com o garfo uma fatia de carneiro. - Ele praticamente não falava nada, quanto mais alguma coisa inteligente. Apenas ficava lá, curvado em sua cadeira, observando todo mundo, os olhos revirando de um para outro. Não ficaria absolutamente surpreso de ouvir que muito do que disse à minha mesa apareceu depois no palco, embora felizmente não tenha encontrado uma paródia de mim mesmo em sua obra. - Fechou os olhos em concentração momentânea, mastigando o carneiro.

A carne está a seu gosto, sr. Fraser? - Grey perguntou educadamente. Mas estava cheia de cartilagem e mal lhe parecia comível. Por outro lado, ele podia muito bem pensar de modo diferente, já que vinha comendo aveia, ervas e um ou outro rato.

Sim, está, major, obrigado. - Fraser passou o último pedaço de carne em um pouco do molho de vinho e levou-o à boca, não fazendo nenhuma objeção quando Grey fez sinal para MacKay trazer a travessa de volta. - Receio que monsieur Arouet não iria apreciar uma excelente refeição como esta — Fraser disse, sacudindo a cabeça enquanto se servia de mais carneiro.

-Já imaginava que um homem tão festejado na sociedade francesa tivesse gostos mais exigentes — Grey retrucou secamente. Metade de sua própria refeição permanecia no prato, destinada ao jantar do gato Augustus.

Fraser riu.

Nada disso, major - assegurou a Grey. - Nunca vi monsieur Arouet consumir nada além de um copo de água e um biscoito seco, por mais suntuoso que fosse o jantar. É um homenzinho mirrado, sabe, e um mártir da indigestão.

É mesmo? — Grey estava fascinado. — Talvez isso explique o cinismo de alguns dos seus sentimentos que vi expressos em suas peças. Não acha que o caráter de um autor transpareça na criação de sua obra?

Considerando alguns dos personagens que vi em peças e romances, major, eu diria que o autor que os criou inteiramente a partir de si próprio era um pouco depravado, não acha?

Suponho que sim - Grey respondeu, sorrindo à idéia de alguns dos mais radicais personagens ficcionais com que estava familiarizado. - Se um autor constrói esses personagens pitorescos a partir da vida real, em vez de tirá-los da sua imaginação, sem dúvida ele deve conhecer gente de todo tipo!

Fraser assentiu, tirando farelos de pão do seu colo com o guardanapo de linho.

- Não foi monsieur Arouet, mas uma de suas colegas de profissão, uma romancista, que comentou comigo certa vez que escrever romances era uma arte canibal, onde o autor em geral mistura pequenas porções dos seus amigos e inimigos, tempera-as com a imaginação e deixa a mistura cozinhar, transformando-a num saboroso ensopado.

Grey riu com a descrição e acenou para MacKay para tirar os pratos e trazer as garrafas de vinho do Porto e de xerez.

- De fato, uma descrição maravilhosa! Mas, por falar em canibais, teve a chance de conhecer a obra do sr. Defoe, Robinson Crusoé? É uma de minhas histórias favoritas desde a juventude.

A conversa, então, voltou-se para romances e o arrebatamento dos trópicos. Já era muito tarde quando Fraser retornou à sua cela, deixando major Grey entretido, mas nem um pouco mais conhecedor da fonte nem do destino do ouro do escocês errante.

 

John Grey abriu o pacote de penas de escrever que sua mãe enviara de Londres. Penas de cisne, mais finas e mais resistentes do que as penas comuns de ganso. Sorriu vagamente ao vê-las, um lembrete nada sutil que estava atrasado em sua correspondência.

Entretanto sua mãe teria que esperar até o dia seguinte. Pegou seu canivete pequeno, gravado com seu monograma, que sempre trazia consigo e lentamente afinou a ponta da pena de acordo com seu gosto, compondo mentalmente o que queria dizer. Quando mergulhou a pena na tinta, as palavras estavam claras em sua mente e ele escreveu rápido, quase sem pausas.

 

2 de abril de 1755

A Harold, lorde Melton, conde de Moray

Caro Hal, começou dizendo, escrevo para informá-lo de uma recente ocorrência que muito tem absorvido minha atenção. Pode vir a não significar nada, mas se houver alguma verdade na questão, ela será de grande importância. Os detalhes da aflição do andarilho e o relato de seus delírios seguiram-se prontamente, mas Grey viu-se escolhendo as palavras quando contou sobre a fuga e recaptura de Fraser.

O fato de Fraser ter desaparecido das dependências da prisão logo após esses eventos me sugere enfaticamente que havia de fato alguma verdade nas palavras do pobre vagabundo.

No entanto, se esse fosse o caso, não sei como explicar as ações subseqüentes de Fraser. Ele foi recapturado após três dias depois de sua fuga, em um lugar a menos de dois quilômetros da costa. A região em volta do presídio é deserta por muitos quilômetros além do vilarejo de Ardsmuir e é bem pouco provável que ele tenha se encontrado com um aliado a quem possa ter passado as informações sobre o tesouro. Todas as casas do vilarejo foram revistadas, assim como o próprio Fraser, sem que nenhum vestígio de ouro fosse encontrado.

É uma região remota e tenho quase certeza de que ele não se comunicou com ninguém fora da prisão antes de sua fuga - tenho absoluta certeza que não o fez desde então, porque é mantido sob severa vigilância.

Grey parou, vendo outra vez a figura de James Fraser ao vento, selvagem como os veados vermelhos e tão à vontade na charneca quanto um deles.

Não tinha a menor dúvida de que Fraser podia ter enganado os dragões com facilidade, se quisesse, mas não o fez. Ele deliberadamente se deixara ser recapturado. Por quê? Retomou a escrita, mais devagar.

Pode ser, é claro, que Fraser não tenha conseguido encontrar o tesouro ou que tal tesouro não exista. Sinto-me inclinado a acreditar nisso, porque se ele estivesse de posse de uma grande soma, com certeza teria saído da região imediatamente, não? É um homem forte, acostumado à vida sem confortos e totalmente capaz, acredito, de seguir seu caminho por terra até algum ponto na costa do qual ele pudesse fugir pelo mar.

Grey mordeu delicadamente a ponta da pena, sentindo o gosto da tinta. Fez uma careta diante do sabor amargo, levantou-se e cuspiu para fora da janela. Ficou ali parado por um instante, olhando para a noite fria de primavera, limpando a boca distraidamente.

Por fim ocorrera-lhe perguntar; não a pergunta que estivera fazendo o tempo inteiro, mas outra mais importante. Fizera-a ao término de um jogo de xadrez, que Fraser vencera. O guarda estava parado à porta, pronto para escoltar Fraser de volta à sua cela; como o prisioneiro levantara-se de sua cadeira, Grey levantara-se também.

- Não vou lhe perguntar outra vez por que deixou a prisão — ele disse, calmamente, em tom de conversa. - Mas vou lhe perguntar: por que voltou?

Frazer ficara paralisado por um instante, surpreso. Virou-se e olhou direto nos olhos de Grey. Por um instante, não disse nada. Depois, sua boca curvou-se num sorriso.

- Acho que devo dar valor à sua companhia, major. Posso lhe assegurar que não foi pela comida.

Grey riu com desdém, lembrando-se. Incapaz de pensar numa resposta adequada, deixara Fraser partir. Somente mais tarde naquela noite foi que ele laboriosamente chegou a uma resposta, finalmente tendo a inteligência de fazer perguntas a si mesmo, em vez de fazê-las a Fraser: o que ele, Grey, teria feito, se Fraser não tivesse retornado?

A resposta foi que seu próximo passo teria sido uma investigação sobre as conexões familiares de Fraser, caso o sujeito tivesse buscado abrigo ou ajuda de parentes.

E essa, tinha certeza, era a resposta. Grey não tomara parte na subjugação das Highlands - assumira postos na França e na Itália -, mas ouvira mais do que o suficiente dessa campanha em particular. Vira as pedras enegrecidas de muitas cabanas incendiadas, erguendo-se como monumentos funerários em meio a plantações arruinadas, quando viajou para o norte, para Ardsmuir.

As ferrenhas lealdades dos escoceses das Highlands são lendárias. Aquele que tivesse visto as cabanas em chamas poderia muito bem preferir sofrer prisão, grilhões ou mesmo açoites, para poupar sua família de uma visita dos soldados ingleses.

Grey sentou-se e pegou a pena, mergulhando-a outra vez na tinta.

Você conhece, acredito, a têmpera dos escoceses, ele escreveu. Essa em particular, pensou ironicamente.

É improvável que qualquer ato de força ou qualquer ameaça que eu possa exercer induza Fraser a revelar o paradeiro do ouro - caso ele exista. Se não existir, posso esperar menos ainda que qualquer ameaça seja eficaz! Resolvi, assim, iniciar um relacionamento amistoso e formal com Fraser, como chefe dos prisioneiros escoceses, na esperança de extrair alguma pista de sua conversa. Até agora, não ganhei nada com esse processo. Entretanto uma outra avenida de abordagem se apresenta.

Por razões óbvias, ele continuou, escrevendo devagar enquanto dava forma ao pensamento, eu não quero tornar esta questão oficialmente conhecida. Chamar atenção para um tesouro que pode muito bem mostrar ser quimérico era perigoso; a chance de desapontamento era grande demais. Haveria tempo suficiente, se o ouro fosse encontrado, de informar seus superiores e colher a recompensa merecida — sair de Ardsmuir, ser nomeado para um posto de volta à civilização.

Assim, recorro a você, meu caro irmão, e peço sua ajuda em descobrir os detalhes que puder obter referentes à família de James Fraser. Rogo-lhe, não deixe que ninguém seja alertado por suas investigações; se tais conexões familiares existirem, gostaria que permanecessem ignorando meu interesse por enquanto. Meus profundos agradecimentos por qualquer esforço que possa fazer por mim, e acredite-me sempre,

Molhou a pena mais uma vez e assinou com um pequeno floreio,

Seu humilde criado e devotado irmão, John William Grey

 

-Os homens doentes com a grippe — Grey perguntou -, como estão passando?

O jantar terminara e, com ele, a conversa sobre livros. Agora, era a hora dos negócios.

Fraser franziu a testa sobre o único copo de xerez que era tudo que ele aceitava em termos de bebida. Ainda não o havia provado, embora o jantar já tivesse terminado há algum tempo.

Nada bem. Tenho mais de sessenta homens doentes, quinze deles em péssimas condições. - Hesitou. - Posso pedir-lhe...

Não posso prometer nada, sr. Fraser, mas pode pedir — Grey respondeu formalmente. Ele mal tocara seu próprio xerez, não mais do que tocara seu jantar; o dia inteiro, sentira um nó de expectativa no estômago.

Jamie fez uma pausa ainda mais longa, calculando suas probabilidades. Não iria conseguir tudo; devia tentar o que era mais importante, mas deixar espaço para Grey rejeitar alguns pedidos.

- Precisamos de mais cobertores, major, mais fogueiras e mais comida. E remédios.

Grey girou o xerez em seu copo observando a luz do fogo brincar no vórtice. Negócios comuns primeiro, lembrou a si mesmo. Tempo suficiente para o outro, mais tarde.

Não temos mais do que vinte cobertores em reserva no depósito -ele respondeu -, mas pode ficar com eles para os mais doentes. Receio não poder aumentar a ração de comida; os estragos causados por ratos têm sido consideráveis e perdemos uma grande quantidade de grãos no desmoronamento do depósito há dois meses. Temos recursos limitados e...

Não é apenas uma questão de quantidade - Fraser interrompeu-o rapidamente. — Mas do tipo de comida. Os que estão muito doentes não podem digerir prontamente o pão e o mingau. Talvez algum tipo de substituição pudesse ser arranjado? - Todo homem, por lei, recebia um quarto de galão de mingau de aveia e um pequeno pedaço de pão de trigo por dia. Um caldo ralo de cevada complementava essa dieta duas vezes por semana, com um quarto de ensopado de carne acrescentado aos domingos, para sustentar as necessidades de homens em trabalho braçal de doze a dezesseis horas por dia.

Grey ergueu uma das sobrancelhas.

- O que está sugerindo, sr. Fraser?

Presumo que a prisão tem algum recurso em caixa destinado à compra de carne salgada, aipos e cebolas, para o ensopado de domingo, não é?

Sim, mas essa cota tem que ser usada para adquirir os suprimentos do próximo trimestre.

Então o que eu sugiro, major, é que use o dinheiro agora para fornecer caldo e ensopado para aqueles que estão doentes. Aqueles de nós que estão em boas condições de saúde de boa vontade abrem mão de nossa parte de carne para o trimestre.

Grey franziu o cenho.

Mas os presos não ficarão fracos sem absolutamente carne nenhuma? Não ficarão incapacitados para o trabalho?

Os que morrerem da gripe certamente não irão trabalhar - Fraser ressaltou asperamente.

Grey riu com desdém.

- É verdade. Mas os que estão saudáveis não permanecerão assim por muito tempo, se abrirem mão de sua parte por tanto tempo. - Sacudiu a cabeça. - Não, sr. Fraser, acho que não. É melhor deixar os doentes correrem o risco do que permitir que muitos outros fiquem doentes.

Fraser era um homem teimoso. Abaixou a cabeça por um instante, depois ergueu os olhos para tentar outra vez.

Então eu lhe pediria licença para irmos caçar por conta própria, major, já que a Coroa não pode nos fornecer uma alimentação adequada.

Caçar? — As sobrancelhas louras de Grey ergueram-se de espanto. -Dar-lhes armas e permitir que vagueiem pelo mato? Pelo amor de Deus, sr. Fraser!

Acho que Deus não sofre de escorbuto, major - Jamie disse secamente. - Os dentes Dele não correm perigo. - Viu a boca de Grey contorcer-se e relaxou um pouco. Grey sempre tentava reprimir seu senso de humor, sem dúvida percebendo que isso o colocava em desvantagem. Como sempre acontecia quando lidava com Jamie Fraser.

Encorajado pelo suposto trejeito da boca de Grey, Jamie continuou a pressionar.

- Armas, não, major. E não ficar vagando por aí. Mas nos daria permissão para colocar armadilhas lá fora quando cortamos turfa? E para ficarmos com o que pegarmos? - De vez em quando, um prisioneiro criava uma armadilha, porém quase sempre os guardas ficavam com a caça.

Grey inspirou fundo e foi liberando o ar aos poucos, pensativamente.

Armadilhas? Não iria precisar de materiais para construir essas armadilhas, sr. Fraser?

Só um pouco de corda, major - Jamie assegurou-lhe. - Uma dúzia de rolos, não mais do que isso, de qualquer tipo de barbante ou corda, pode deixar o resto conosco.

Grey esfregou o rosto devagar, considerando, depois assentiu. - Muito bem. - O major virou-se para a pequena escrivaninha, tirou a pena do tinteiro e redigiu uma anotação. - Agora, quanto ao resto de suas solicitações...

Quinze minutos depois, tudo estava acertado. Jamie por fim relaxou, recostando-se na cadeira com um suspiro, e finalmente tomou um gole do xerez. Considerou que fizera por merecê-lo.

Teve permissão não só para as armadilhas, mas para que os cortadores de turfa trabalhassem mais meia hora por dia, a turfa extra servindo para fornecer um pequeno fogo adicional em cada cela. Não haveria nenhum tipo de remédio, mas teve permissão para que Sutherland enviasse uma mensagem a uma prima em Ullapool, cujo marido era um boticário. Se o marido da prima estivesse disposto a mandar remédios, os presos poderiam recebê-los.

Uma boa noite de trabalho, Jamie pensou. Tomou outro gole do xerez e fechou os olhos, apreciando o calor do fogo em seu rosto.

Grey observava seu convidado por baixo das pálpebras cerradas, vendo os ombros largos afrouxarem-se um pouco, a tensão relaxada agora que haviam terminado os negócios. Ou assim Fraser acreditava. Muito bem, Grey pensou consigo mesmo. Sim, tome seu xerez e relaxe. Quero você com a guarda completamente aberta.

Inclinou-se para a frente para pegar a garrafa de bebida e sentiu o estalido da carta de Hal no bolso do peito. Seu coração começou a bater mais rápido.

- Não quer um pouco mais, sr. Fraser? E diga-me... como tem passado sua irmã?

Viu os olhos de Fraser abrirem-se de repente e seu rosto ficar branco com o choque.

Como vão as coisas lá em... Lallybroch, é como se chama, não? -Grey afastou a garrafa, mantendo os olhos fixos em seu convidado.

Não sei dizer, major. - A voz de Fraser soou completamente inalterada, mas seus olhos haviam se transformado em duas fendas.

Não? Mas eu ousaria dizer que vivem muito bem atualmente, com o ouro que você lhes forneceu.

Os ombros largos retesaram-se subitamente, os músculos avolumando-se sob o casaco surrado. Grey pegou uma das peças do xadrez descontrai-damente do tabuleiro próximo, lançando-a de modo descuidado de uma mão para outra.

- Suponho que Ian... seu cunhado chama-se Ian, não é?... saberá fazer bom uso dele.

Fraser havia recuperado o autocontrole. Os olhos azul-escuros fitaram direto os de Grey.

- Já que está tão bem informado sobre meus parentes, major – disse sem se alterar -, devo supor que também sabe que minha casa fica a mais de cento e cinqüenta quilômetros de Ardsmuir. Talvez possa explicar como eu percorri essa distância duas vezes no espaço de três dias.

Os olhos de Grey permaneceram na peça de xadrez, girando-a indo-lentemente de uma mão para outra. Era um peão, um pequeno guerreiro de cabeça em cone com um rosto feroz, esculpido de um cilindro de presa de morsa.

- Você deve ter encontrado alguém na charneca que tenha levado a informação do ouro, ou levado o próprio ouro, para sua família.

Fraser riu desdenhosamente.

Em Ardsmuir? Qual a probabilidade, major, que eu possa ter encontrado por acaso uma pessoa que eu conhecesse naquela charneca? Muito menos uma pessoa em quem eu pudesse confiar para mandar uma mensagem como a que sugere? - Colocou seu copo sobre a mesa com um gesto deliberado e definitivo. - Não encontrei ninguém na charneca, major.

E devo confiar em sua palavra quanto a isso, sr. Fraser? — Grey deixou um considerável ceticismo transparecer em sua voz. Ergueu os olhos, as sobrancelhas levantadas.

As maçãs do rosto altas de Fraser ruborizaram-se ligeiramente.

Ninguém jamais teve motivo de duvidar de minha palavra, major - disse friamente.

Ah, não? - Grey não estava fingindo sua raiva completamente. -Acredito que tenha dado a mim sua palavra, na ocasião em que mandei retirar seus ferros!

- E eu a cumpri!

É mesmo? - Os dois homens sentavam-se empertigados na ponta da cadeira, fitando-se furiosamente por cima da mesa.

Você pediu três coisas de mim, major, e eu cumpri o acordo em cada detalhe!

Grey fez um muxoxo de desdém.

- Verdade, sr. Fraser? E se assim for, o que o fez repentinamente desprezar a companhia de seus companheiros de prisão e procurar se reunir aos coelhos do mato? Já que afirma que não se encontrou com ninguém, me dê sua palavra de que assim foi. - A última parte foi pronunciada com um audível sinal de desdém, fazendo o rubor subir às faces de Fraser.

Uma das mãos enormes crispou-se devagar num punho cerrado.

- Sim, major - ele disse serenamente. - Eu lhe dou minha palavra de que assim foi. - Nesse ponto, pareceu perceber que seu punho estava cerrado; bem devagar, abriu a mão, espalmando-a sobre a mesa.

- E quanto à sua fuga?

- Quanto à minha fuga, major, já lhe disse que não direi nada. - Fraser soltou o ar devagar e recostou-se em sua cadeira, os olhos fixos em Grey, sob as sobrancelhas espessas e ruivas.

Grey parou por um instante, depois ele próprio recostou-se na cadeira, recolocando a peça de xadrez na mesa.

- Deixe-me falar claro, sr. Fraser. Concedo-lhe a honra de presumir que seja um homem sensato.

- Sou profundo reconhecedor desta honra, major, asseguro-lhe. Grey percebeu a ironia, mas não respondeu; era ele quem estava em posição de vantagem agora.

- O fato é, sr. Fraser, que não importa se de fato se comunicou com sua família com relação ao ouro. Você deve ter feito isso. Apenas essa possibilidade já é suficiente para justificar que eu mande um grupo de dragões para dar uma busca minuciosa nas dependências de Lallybroch e para prender e interrogar os membros de sua família.

Enfiou a mão no bolso do peito e retirou uma folha de papel. Desdobrando-a, leu a lista de nomes.

- Ian Murray é seu cunhado, não é? A mulher dele, Janet. Seria sua irmã, é claro. Seus filhos, James, em homenagem ao tio, talvez? – Ergueu os olhos rapidamente, tempo suficiente para vislumbrar o rosto de Fraser, depois retornou à lista. — E Margaret, Katherine, Janet, Michael e Ian. Uma prole e tanto - ele disse, num tom de desprezo que igualava os seis Murray mais novos a uma ninhada de leitõezinhos. Colocou a lista sobre a mesa, ao lado da peça de xadrez. - Os três filhos mais velhos já têm idade para serem detidos e interrogados com seus pais, você sabe. Esses interrogatórios costumam ser violentos, sr. Fraser.

Quanto a isso, ele dizia a pura verdade, e Fraser não a ignorava. O rosto do prisioneiro perdeu toda a cor, deixando os ossos fortes mais visíveis sob a pele. Fechou os olhos por um breve momento, abrindo-os em seguida.

Grey lembrou-se rapidamente da voz de Quarry, dizendo: "Se jantar sozinho com o sujeito, não lhe dê as costas." Os cabelos de sua nuca se arrepiaram por um momento, mas ele se controlou, devolvendo o olhar fixo e azul de Fraser.

- O que quer de mim? - A voz era baixa, rouca de raiva, mas o escocês permaneceu sentado, imóvel, uma figura esculpida em vermelho, dourada pelo fogo.

Grey respirou fundo.

- Quero a verdade — disse brandamente.

Não se ouviu nenhum ruído no aposento, a não ser o zumbido e estalido dos pedaços de turfa na lareira. Houve um breve movimento de Fraser, não mais do que a torção de seus dedos contra a perna, e depois mais nada. O escocês continuou sentado, a cabeça virada, fitando o fogo como se buscasse ali uma resposta.

Grey também permaneceu sentado, aguardando. Podia se dar ao luxo de esperar. Afinal, Fraser virou-se e encarou-o.

A verdade, então. - Respirou fundo; Grey podia ver o peito de sua camisa de linho elevar-se com a respiração, ele não possuía um colete.

Cumpri minha palavra, major. Eu lhe contei fielmente tudo que o homem me disse naquela noite. O que eu não lhe disse foi que parte do que ele falou fazia sentido para mim.

De fato. - Grey mantinha-se imóvel, mal ousando se mexer. - E que sentido foi esse?

A boca larga de Fraser transformou-se numa linha fina.

- Eu... lhe falei de minha mulher — ele disse, forçando as palavras a saírem de sua boca, como se elas o ferissem.

- Sim, você disse que ela estava morta.

Eu disse que ela se foi, major - Fraser corrigiu-o serenamente. Seus olhos estavam fixos no peão. — É provável que esteja morta, mas... — Parou e engoliu em seco, depois continuou com mais firmeza. — Minha mulher era uma curandeira. O que nas Highlands chamam de feiticeira, porém mais do que isso. Ela era uma dama branca, uma mulher sábia. - Ergueu os olhos por um instante. - A palavra em gaélico é bandruidh, que também significa bruxa.

A bruxa branca. - Grey também falou brandamente, mas a empolgação pulsava em seu sangue. - Então as palavras do sujeito referiam-se a sua mulher?

Achei que era possível. E se assim fosse... - Os ombros largos remexeram-se quando deu de ombros. - Eu precisava ir - ele disse simplesmente. — Para ver.

Como sabia aonde ir? Também foi algo que inferiu das palavras do moribundo? - Grey inclinou-se para a frente, ligeiramente curioso. Fraser balançou a cabeça, os olhos ainda fixos na peça de xadrez de marfim.

Há um lugar que eu conhecia, não muito distante daqui, onde existe um santuário a Santa Brígida. Santa Brígida também é conhecida como "a dama branca" — ele explicou, erguendo os olhos. — Embora o santuário já esteja lá há muito tempo, desde muito antes de Santa Brígida vir à Escócia.

Sei. E então você presumiu que as palavras do sujeito referiam-se a esse lugar, bem como a sua mulher?

De novo, ele deu de ombros.

-Eu não sabia - Fraser repetiu. - Não sabia se ele estava fazendo alguma referência a minha mulher ou se "a dama branca" apenas significava Santa Brígida. Ele podia estar tentando me direcionar para o lugar ou talvez nem uma coisa nem outra. Mas achei que eu devia ir.

Descreveu o lugar em questão e, diante da insistência de Grey, deu as coordenadas para se alcançar o local.

- O santuário em si é uma pequena rocha na forma de uma cruz antiga, tão desgastada pelo tempo que mal se vê as inscrições gravadas nela.Fica acima de um pequeno lago, oculto no urzal. Há pequenas pedras brancas no fundo do lago, emaranhadas entre as raízes das urzes que crescem nas margens. Dizem que essas pedras têm um grande poder, major — ele explicou, vendo o olhar inexpressivo de Grey. — Mas apenas quando usadas por uma dama branca.

- Compreendo. E sua mulher...? - Grey parou, delicadamente. Fraser fez um breve movimento com a cabeça.

-Não havia nada lá que tivesse a ver com ela — ele disse, brandamente. - Ela se foi de verdade. - Sua voz era baixa e controlada, mas Grey pôde perceber um tom de desolação e pesar.

O rosto de Fraser normalmente era calmo e insondável; ele não mudou de expressão agora, mas as marcas de pesar eram claras, gravadas nos sulcos em torno da boca e dos olhos, escurecidos pelo fogo bruxuleante.

Parecia uma intrusão interromper e perturbar um sentimento tão profundo, apesar de não declarado, mas Grey tinha um dever a cumprir.

E o ouro, sr. Fraser? - perguntou calmamente. - E o ouro? Fraser deu um longo suspiro.

Estava lá — disse sem rodeios.

-O quê! - Com um salto, Grey sentou-se completamente ereto nacadeira, fitando o escocês com os olhos arregalados. — Você o encontrou?

Fraser ergueu os olhos para ele e sua boca torceu-se ironicamente.

- Eu o encontrei.

Era de fato o ouro francês que Luís enviou para Carlos Stuart? - A impolgação percorria a corrente sangüínea de Grey, com visões de si mesmo entregando magníficos baús de louis d'or a seus superiores em Lomdres.

Luís nunca enviou ouro para os Stuart — Fraser disse, com convicção. Não, major, o que eu encontrei na lagoa da santa era ouro, mas não eram moedas francesas.

Ele encontrara uma pequena caixa, contendo algumas moedas de ouro e prata e uma pequena bolsa de couro, cheia de jóias.

Jóias? — Grey exclamou. — De onde vinham essas jóias? Fraser lançou-lhe um olhar de ligeira exasperação.

Não faço a menor idéia, major - ele disse. - Como poderia saber?

- Não, claro que não - Grey disse, tossindo para disfarçar seu aturdimento. - Sem dúvida. Mas esse tesouro... onde está agora?

Eu o joguei no mar. Grey fitou-o com ar confuso.

Você o quê?

Eu o joguei no mar - Fraser repetiu pacientemente. Os olhos azuis puxados fitaram os de Grey sem pestanejar. - Por acaso já ouviu falar de um lugar chamado Caldeirão do Diabo, major? Não fica a mais de oitocentos metros da lagoa da santa.

Por quê? Por que você faria isso? — Grey perguntou. — Não faz sentido!

Eu não estava muito preocupado com o sentido na ocasião, major -Fraser disse serenamente. - Eu fui até lá com uma esperança e, com essa esperança perdida, o tesouro não me pareceu mais do que uma pequena caixa de pedras e algumas peças de metal sem brilho. Não me serviam para nada. - Ele ergueu os olhos, uma das sobrancelhas levemente erguida com ironia. - Mas também não vi "sentido" em dá-lo ao rei Jorge. Assim, atirei-o no mar.

Grey afundou-se na cadeira e mecanicamente serviu-se de outro copo de xerez, mal prestando atenção ao que estava fazendo. Seus pensamentos giravam num turbilhão.

Fraser continuou sentado, a cabeça virada e o queixo apoiado sobre o punho fechado, fitando o fogo, o rosto novamente impassível. A luz brilhava atrás dele, iluminando a linha reta e longa do nariz e a curva suave do lábio, as sombras no maxilar e na fronte dando-lhe um ar austero.

Grey tomou um bom gole de sua bebida e endireitou-se.

- É uma história comovente, sr. Fraser - ele disse com a voz estável. - Muito dramática. No entanto não há nenhuma prova de que seja verdadeira.

Fraser virou a cabeça para fitar Grey. Os olhos rasgados de Jamie estreitaram-se, no que poderia ser interpretado como uma expressão divertida.

- Há, sim, major - ele disse. Enfiou a mão no cós de suas calças puídas, tateou por um instante e estendeu a mão acima do tampo da mesa, aguardando.

Grey estendeu a própria mão em reflexo e um pequeno objeto caiu em sua palma aberta.

Era uma safira, azul-escura como os próprios olhos de Fraser e de um bom tamanho.

Grey abriu a boca, mas não disse nada, engasgado de perplexidade.

- Aí está sua prova de que o tesouro existiu, major. - Fraser indicou a pedra na mão de Grey com um movimento da cabeça. Seus olhos encontraram os de Grey por cima da mesa. - E quanto ao resto... lamento dizer, major, que terá que aceitar a minha palavra.

- Mas... mas... você disse...

- E foi o que fiz. - Fraser estava calmo como se estivessem falando da chuva que caía lá fora. — Guardei essa pequena pedra achando que poderia ter alguma utilidade, se algum dia eu fosse libertado ou se tivesse oportunidade de enviá-la à minha família. Porque há de concordar comigo, major - uma luz brilhou sarcasticamente nos olhos azuis de Fraser —, que minha família não poderia fazer uso de um tesouro desse tipo sem atrair um bocado de atenção indesejada. Uma pedra, talvez, mas não muitas delas.

Grey mal conseguia pensar. O que Frazer dizia era verdade; um fazendeiro das Highlands como seu cunhado não teria como transformar tal tesouro em dinheiro sem causar comentários que levariam os homens do rei a Lallybroch imediatamente. E o próprio Fraser poderia muito bem ficar aprisionado pelo resto da vida. Ainda assim, jogar fora uma fortuna tão facilmente! Entretanto, olhando para o escocês, podia acreditar perfeitamente nisso. Se havia um homem cujo discernimento jamais seria distorcido pela ganância, esse homem era James Fraser. Ainda assim...

- Como conseguiu guardar essa pedra com você? — Grey perguntou de modo incisivo. - Você foi revistado de cima a baixo quando foi trazido de volta.

A boca larga curvou-se ligeiramente no primeiro sorriso genuíno que Grey vira.

- Eu a engoli - Fraser disse.

A mão de Grey fechou-se convulsivamente sobre a safira. Abriu a mão e com toda a cautela colocou a brilhante pedra azul sobre a mesa, junto à peça de xadrez.

- Compreendo - ele disse.

- Tenho certeza que sim, major - disse Fraser, com uma seriedade que só fez aumentar o brilho de divertida ironia em seus olhos. - Uma dieta de mingau grosseiro tem suas vantagens de vez em quando.

Grey sufocou a repentina vontade de rir, esfregando um dedo com força sobre o lábio.

Tenho certeza que sim, sr. Fraser. — Ficou imóvel por um instante, contemplando a pedra azul. Depois, ergueu os olhos abruptamente.

Você é papista, sr. Fraser? - Já sabia a resposta; eram poucos os partidários dos Stuart que não eram. Sem esperar uma resposta, levantou-se e dirigiu-se à estante de livros no canto. Levou alguns segundos para encontrá-lo; um presente de sua mãe, não fazia parte de sua leitura normal.

Colocou a Bíblia de capa de couro sobre a mesa, ao lado da pedra.

- Estou inclinado a aceitar sua palavra de cavalheiro, sr. Fraser – ele disse. - Mas deve compreender que tenho meu dever a cumprir.

Fraser fitou o livro por um longo tempo, depois ergueu os olhos para Grey, a expressão impenetrável.

- Sim, sei disso muito bem, major - disse com tranqüilidade. Sem hesitação, colocou a enorme mão sobre a Bíblia. —Juro em nome de Deus Todo-Poderoso e de Sua Palavra Sagrada — disse com firmeza. — O tesouro era o que lhe descrevi. — Seus olhos brilharam à luz do fogo, escuros inescrutáveis. — E eu juro pela minha esperança de entrar no céu — acrecentou em voz branda — que ele agora descansa no mar.

 

Com a questão do ouro francês assim resolvida, voltaram ao que se tornara sua rotina; um breve período de negociações formais sobre os assuntos dos prisioneiros, seguido de uma conversa informal e às vezes uma partida de xadrez. Esta noite, saíram da mesa de jantar ainda discutindo o imenso romance de Samuel Richardson, Pamela.

- Acha que o tamanho do livro justifica-se pela complexidade da história? - Grey perguntou, inclinando-se para a frente para acender uma cigarrilha na vela sobre o aparador. - Afinal, deve ser uma grande despesa para o editor, bem como exigir um esforço substancial do leitor, um livro desse tamanho.

Fraser sorriu. Ele não fumava, mas resolvera tomar um Porto esta noite, alegando ser essa a única bebida cujo gosto não seria afetado pelo tabaco.

O quê? Mil e duzentas páginas? Sim, acho que sim. Afinal, é difícil resumir as complicações de uma vida num conto com qualquer esperança de construir um relato preciso.

É verdade. Mas já ouvi o argumento que a habilidade do escritor reside na seleção engenhosa dos detalhes. Não acha que um livro de tal extensão possa indicar indisciplina na seleção e, daí, uma falta de habilidade?

Fraser considerou a questão, saboreou um pequeno gole do líquido cor de rubi.

Já vi livros em que esse é o caso, sem dúvida - disse. - Um escritor procura, pela simples inundação de detalhes, impressionar o leitor e dar credibilidade à história. Neste caso, entretanto, acho que não é assim. Cada personagem é cuidadosamente imaginado e todos os incidentes escolhidos parecem necessários à história. Não, acho que é verdade que algumas histórias simplesmente exigem mais espaço para serem contadas. — Tomou outro gole e riu. - Claro, admito um pouco de preconceito nessa afirmação, major. Dadas as circunstâncias em que li Pamela, teria ficado encantado se o livro tivesse o dobro do tamanho.

E que circunstâncias foram essas? — Grey franziu os lábios e soprou a fumaça cautelosamente no formato de um aro, que flutuou em direção ao teto.

Vivi numa caverna nas Highlands por vários anos, major - Fraser disse com amargura. - Raramente tinha mais do que três livros comigo e tinham que durar vários meses. Sim, sou parcial quando se trata de volumes grossos, mas devo admitir que não se trata de uma preferência universal.

Isso sem dúvida é verdade — Grey concordou. Estreitou os olhos, seguindo o trajeto do primeiro aro de fumaça, e soprou mais um. Errou o alvo e o aro desviou-se para o lado. — Lembro-me - ele continuou, tragando ferozmente sua cigarrilha, encorajando-a a queimar - que uma amiga de minha mãe... viu o livro... na sala de visitas... - Tragou profundamente e soprou a fumaça outra vez, dando um pequeno grunhido de satisfação quando o novo aro atingiu o antigo, dispersando-o numa nuvem fina. -Lady Hensley, foi ela. Ela pegou o livro, olhou-o com aquele jeito desamparado que tantas mulheres fingem e disse: "Ah, condessa! Você é tão corajosa de enfrentar um romance de um tamanho assombroso como este. Acho que eu jamais começaria a ler um livro tão grande quanto este." -Grey limpou a garganta e abaixou a voz do falsete com que imitara lady Hensley. - Ao que minha mãe respondeu - ele continuou, em sua voz normal. — "Não se preocupe com isso, minha cara. Você não iria compreendê-lo de qualquer forma."

Fraser riu, depois tossiu, abanando os resquícios de outro aro de fumaça. Grey apagou sua cigarrilha depressa e levantou-se de sua poltrona.

- Venha, então; temos tempo para uma partida rápida.

Não faziam um bom jogo; Fraser era muito melhor, mas Grey de vez em quando conseguia resgatar uma partida por meio de pura bravata.

Esta noite, ele tentou o gambito Torremolinos. Era uma abertura arriscada, com um cavalo da rainha. Lançada com sucesso, abria o caminho para uma combinação incomum de torre e bispo, dependia de um movimento errado do cavalo do rei e do peão do bispo do rei. Grey raramente o usava, pois era um truque que não funcionaria com um jogador medíocre, alguém que não fosse astuto o suficiente para detectar a ameaça do cavalo ou suas possibilidades. Era um gambito para ser usado contra uma mente sutil e perspicaz, e após quase três meses de jogos semanais, Grey sabia muito bem que tipo de mente estava enfrentando do outro lado do quadriculado do tabuleiro.

Forçou-se a respirar normalmente ao fazer o penúltimo movimento da combinação. Sentiu os olhos de Fraser pousarem nele rapidamente, mas não o encarou, com receio de trair sua empolgação. Em vez disso, estendeu a mão para a garrafa de bebida ao lado do tabuleiro e tornou a encher ambos os copos com o Porto doce e escuro, mantendo os olhos cuidadosamente fixos no líquido.

Seria o peão ou o cavalo? A cabeça de Fraser estava inclinada sobre o tabuleiro, em contemplação, pequenas luzes vermelhas cintilando em seus cabelos conforme ele se movia devagar. O cavalo, e tudo estaria bem; seria tarde demais. O peão, e provavelmente tudo estaria perdido.

Grey podia sentir seu coração acelerado no peito enquanto aguardava. A mão de Fraser pairou acima do tabuleiro, em seguida tomou uma súbita decisão, desceu e tocou a peça. O cavalo.

Ele deve ter soltado a respiração com muito ruído, porque Fraser ergueu os olhos para ele, mas era tarde demais. Com cuidado para manter fora de seu rosto qualquer expressão clara de triunfo, Grey encastelou.

Fraser franziu o cenho para o tabuleiro por um longo instante, os olhos dardejando entre as peças, avaliando. Em seguida, sacudiu-se levemente, ao compreender, e ergueu o rosto, os olhos arregalados.

Ora, seu velhaco filho-da-mãe! - disse, num tom de surpresa e admiração. - Onde você aprendeu este truque?

Meu irmão mais velho me ensinou — Grey respondeu, perdendo sua costumeira cautela no afã de comemorar seu sucesso. Normalmente, ele não vencia Fraser mais do que três vezes em dez, e a vitória tinha um sabor doce.

Fraser deu uma risada curta e estendendo um longo dedo indicador, com delicadeza, derrubou seu rei.

- Eu deveria ter esperado algo assim de um homem como lorde Melton - ele observou de modo descontraído.

Grey aprumou-se em sua cadeira. Fraser notou o movimento e arqueou uma das sobrancelhas interrogativamente.

É de lorde Melton que você está falando, não é? - disse. - Ou você tem outro irmão?

Não - Grey respondeu. Sentia os lábios ligeiramente entorpecidos, embora isso pudesse ser simplesmente por causa da cigarrilha. - Não, eu só tenho um irmão. — Seu coração começara a bater forte outra vez, mas desta vez com uma batida seca e pesada. Será que o maldito escocês lembrava-se o tempo todo de quem ele era?

Nosso encontro foi necessariamente breve - o escocês disse secamente. - Mas memorável. - Pegou seu copo e tomou um gole, observando Grey por cima da borda do cristal. - Não sabia que eu encontrei lorde Melton, no campo de Culloden?

Sabia. Eu lutei em Culloden. - Todo o prazer de Grey em sua vitória evaporou-se. Sentia-se ligeiramente nauseado com a fumaça. - Mas não sabia que você se lembraria de Hal... ou soubesse do nosso parentesco.

Como devo a minha vida a esse encontro, não é provável que o esqueça - Fraser disse secamente.

Grey ergueu os olhos.

— Pelo que sei, não se mostrou tão agradecido quando Hal o encontrou em Culloden.

A linha da boca de Fraser enrijeceu-se, mas logo relaxou.

— Não - disse, com a voz suave. Sorriu sem humor. - Seu irmão, com muita teimosia, recusou-se a me executar com um tiro. Na ocasião, eu não estava inclinado a ser grato pelo favor.

— Você queria ser fuzilado? - As sobrancelhas de Grey ergueram-se. Os olhos do escocês estavam distantes, fixos no tabuleiro de xadrez, mas obviamente vendo outra coisa.

— Eu achava ter um bom motivo — ele disse serenamente. — Na época.

— Que motivo? - Grey perguntou. Percebeu um olhar rápido e penetrante e acrescentou apressadamente: - Não quero ser impertinente com minha pergunta. É que... na ocasião, eu... eu me sentia assim também. Pelo que você disse dos Stuart, não posso pensar que a derrota da causa o tivesse levado a tal desespero.

Viu-se um tênue estremecimento junto à boca de Fraser, leve demais para ser considerado um sorriso. Inclinou a cabeça num movimento breve, em admissão.

— Houve os que lutaram por amor a Carlos Stuart... ou em lealdade ao direito de seu pai ao trono. Mas você tem razão, eu não era um deles.

Não deu maiores explicações. Grey respirou fundo, mantendo os olhos fixos no tabuleiro.

— Eu disse que, na época, também me sentia como você. Eu... perdi um grande amigo em Culloden — ele disse. Com metade de sua mente, perguntava-se por que deveria falar de Hector a este homem, logo a este; um guerreiro escocês que abrira caminho por aquele campo mortal retalhando o inimigo, cuja espada poderia muito bem ser a que... Ao mesmo tempo, não podia silenciar; não havia ninguém com quem ele realmente pudesse falar de Hector, a não ser este homem, este prisioneiro que não podia contar a mais ninguém, cujas palavras não lhe causariam nenhum mal. - Ele me obrigou a ir olhar o corpo... Hal me obrigou, meu irmão – Grey deixou escapar. Abaixou os olhos para sua mão, onde o azul-escuro da safira de Hector queimava sua pele, uma versão menor daquela que Fraser com relutância lhe entregara. — Disse que eu devia, que a menos que eu o visse morto, eu nunca acreditaria realmente. Que a menos que eu soubesse que Hector, meu amigo, de fato morrera, iria ficar de luto para sempre. Se eu o visse, e soubesse, eu sofreria, mas depois ficaria curado e esqueceria. - Levantou os olhos, com uma melancólica tentativa de sorriso. – Hal em geral tem razão, mas nem sempre.

Talvez estivesse curado, mas jamais esqueceria. Com certeza, nunca poderia esquecer a última visão que teve de Hector, deitado, o rosto cor de cera, imóvel, à luz do começo da manhã, as longas pestanas escuras delicadamente pousadas nas faces, como acontecia quando estava dormindo. E o ferimento profundo que quase decepara sua cabeça do corpo, deixando a traquéia e os grandes vasos do pescoço expostos numa cena de carnificina.

Permaneceram sentados por algum tempo. Fraser não disse nada, mas pegou seu copo e esvaziou-o. Sem perguntar, Grey tornou a encher ambos os copos pela terceira vez.

Recostou-se na cadeira, olhando para seu convidado com curiosidade.

- Considera sua vida um fardo, sr. Fraser?

O escocês ergueu a cabeça então e fitou-o nos olhos, um olhar longo e direto. Evidentemente, Fraser não encontrou nada em seu rosto além da curiosidade, pois os ombros largos do outro lado do tabuleiro relaxaram um pouco a tensão e a boca larga suavizou-se numa linha amarga. O escocês recostou-se em sua cadeira e flexionou a mão direita devagar, abrindo-a e fechando-a para esticar os músculos. Grey vira que sua mão fora danificada um dia; pequenas cicatrizes eram visíveis à luz do fogo e dois dos dedos eram rígidos.

- Talvez não muito - o escocês respondeu devagar. Seus olhos fitaram os de Grey sem paixão. - Acho que talvez o maior fardo esteja em se importar com aqueles a quem não podemos ajudar.

- E não em não ter ninguém com quem se importar?

Fraser fez uma pausa antes de responder; podia estar avaliando a posição das peças sobre a mesa.

- Isso é vazio - ele disse finalmente, com brandura. - Mas não um grande fardo.

Era tarde; não havia mais nenhum som da fortaleza ao redor deles, exceto um ou outro passo do soldado de serviço no pátio embaixo.

- Sua mulher... você disse que ela era uma curandeira?

- Era. Ela... seu nome era Claire. - Fraser engoliu em seco, depois ergueu o copo e bebeu, como se tentasse deslocar algo preso em sua garganta.

- Você gostava muito dela, não é? - Grey perguntou suavemente. Ele reconheceu no escocês a mesma compulsão que sentira há alguns instantes - a necessidade de pronunciar um nome guardado, de trazer de volta por um momento o fantasma de um amor.

- Eu pretendia agradecer-lhe em algum momento, major — o escocês disse em voz baixa.

Grey espantou-se.

- Agradecer-me? Por quê?

O escocês levantou o rosto, os olhos escuros sobre o jogo terminado.

- Por aquela noite em Carryarrick onde nos encontramos pela primeira vez. — Seus olhos mantinham-se fixos nos de Grey. - Pelo que fez por minha mulher.

- Você se lembrou — Grey disse com voz rouca.

- Eu não havia esquecido - Fraser observou simplesmente. Grey obrigou-se a olhar para o homem do outro lado da mesa, mas ao fazê-lo não viu nenhum indício de zombaria nos olhos azuis.

Fraser balançou a cabeça para ele, sério e formal.

- Você foi um inimigo de valor, major. Eu não o esqueceria.

John Grey riu com amargura. Estranhamente, sentia-se menos perturbado do que achou que se sentiria, ao ver o vergonhoso episódio tão explicitamente rememorado.

- Se achou um garoto de dezesseis anos que estava se borrando de medo de um inimigo valoroso, sr. Fraser, não é de admirar que o exército das Highlands tenha sido derrotado!

Fraser sorriu debilmente.

- Um homem que não se borra com uma pistola apontada para sua cabeça, major, ou não tem intestinos ou não tem cérebro.

A despeito de si mesmo, Grey riu. Um dos cantos da boca de Fraser virou-se ligeiramente para cima.

- Você não pediria pela própria vida, mas foi capaz de fazê-lo para salvar a honra de uma mulher. A honra de minha própria mulher – Fraser disse em voz baixa. - Isso não me parece covardia.

O tom de verdade estava claro demais na voz do escocês para ser ignorado ou confundido.

Não fiz nada por sua mulher - Grey disse, com certa amargura. -Afinal ela não estava correndo nenhum perigo!

Mas você não sabia disso, não é? - Fraser ressaltou. - Você pensou em salvar a vida e a honra dela, ao risco de sua própria vida. Com essa atitude, você a honrou... e eu tenho pensado nisso de vez em quando, desde que eu... desde que eu a perdi. — A hesitação na voz de Fraser era quase imperceptível, apenas o enrijecimento dos músculos em sua garganta traía sua emoção.

Compreendo. - Grey respirou fundo e soltou o ar devagar. - Sinto muito por sua perda - acrescentou formalmente.

Ambos ficaram em silêncio por alguns instantes, sozinhos com seus fantasmas. Depois, Fraser ergueu os olhos e inspirou fundo.

- Seu irmão estava certo, major - ele disse. - Eu lhe agradeço e desejo- lhe uma boa noite. — Levantou-se, colocou o copo sobre a mesa e deixou a sala.

A situação fazia-o lembrar, de certa forma, de seus anos na caverna, com suas visitas à casa, aqueles oásis de vida e calor no deserto da solidão. Aqui, era o oposto, sair da imundície fria e apertada das celas para as reluzentes acomodações particulares do major, capaz de espreguiçar tanto a mente quanto o corpo por algumas horas, relaxar no calor, na conversa e na fartura de comida.

Entretanto dava-lhe a mesma sensação estranha de deslocamento; aquela sensação de perder alguma parte valiosa de si mesmo que não poderia sobreviver à passagem de volta ao dia-a-dia da prisão. A cada vez, a passagem ficava mais difícil.

Ficou parado no corredor frio e ventoso, esperando que o carcereiro abrisse a porta da cela. Os sons de homens dormindo zumbiam em seus ouvidos e os seus cheiros invadiram suas narinas quando a porta foi aberta, cáusticos como gases intestinais.

Encheu os pulmões com uma respiração rápida e profunda e abaixou a cabeça para entrar.

Houve uma movimentação de corpos no chão quando ele entrou na cela, sua sombra recaindo, negra, sobre as formas deitadas de barriga para baixo ou encolhidas. A porta fechou-se atrás de si, deixando a cela às escuras, mas um murmúrio percorreu o lugar quando os homens tomaram consciência de sua chegada.

Voltou tarde, Mac Dubh — disse Murdo Lindsay, a voz rouca de sono. - Vai ficar exausto amanhã.

Eu me arranjo, Murdo — ele sussurrou, passando por cima dos corpos. Tirou o casaco e colocou-o cuidadosamente sobre o banco, depois pegou o cobertor rústico e procurou seu lugar no chão, sua longa sombra bruxuleando pela janela de barras de ferro, iluminada com o luar.

Ronnie Sinclair virou-se quando Mac Dubh deitou-se a seu lado. Piscou sonolentamente, as pestanas claras quase invisíveis na claridade da lua.

- O reizinho alimentou-o decentemente, Mac Dubh?

Sim, Ronnie, obrigado. — Remexeu-se sobre as lajes de pedra do assoalho, procurando uma posição confortável.

Vai nos contar amanhã? - Os prisioneiros sentiam um estranho prazer em saber o que haviam servido no jantar, tomando como uma honra que seu chefe fosse bem alimentado.

Sim, contarei, Ronnie - Mac Dubh prometeu. - Mas preciso dormir agora, está bem?

- Durma bem, Mac Dubh - veio o sussurro do canto onde Hayes estava encolhido, junto com MacLeod, Innes e Keith, curvados como um conjunto de colheres de chá, eles gostavam de dormir aquecidos.

Bons sonhos, Gavin — Mac Dubh sussurrou de volta e, pouco a pouco, a cela retornou ao silêncio.

Ele sonhou com Claire naquela noite. Ela estava em seus braços, relaxada e perfumada. Ela estava grávida; seu ventre redondo e liso como um melão, os seios voluptuosos e cheios, os mamilos escuros como vinho, fazendo-o ansiar para prová-los.

A mão dela fechou-se entre as suas pernas e ele estendeu o braço para devolver o favor, sua intimidade pequena, macia e rechonchuda enchendo sua mão, pressionando-se contra ele quando ela se movia. Ela ergueu-se sobre ele, sorrindo, os cabelos caindo em torno do rosto, atirando a perna por cima de seu corpo.

Me dê sua boca - ele sussurrou, sem saber se pretendia beijá-la ou que ela o tomasse entre seus lábios, sabendo apenas que precisava tê-la de alguma forma.

Me dê a sua — ela disse. Ela riu e inclinou-se para ele, as mãos em seus ombros, os cabelos roçando-lhe o rosto com o aroma de musgo e sol E ele sentiu folhas secas espetando-lhe as costas e percebeu que estavam deitados no fundo do barranco perto de Lallybroch, e ela era da cor das faias acobreadas ao redor; folhas e madeiras de faias, olhos dourados e uma pele branca e macia, povoada de sombras.

Em seguida, seu seio pressionou-se contra sua boca e ele o tomou ansiosamente, puxando seu corpo para bem junto ao seu enquanto a sugava. Seu leite era doce e quente, com um leve sabor de prata, como o sangue de um cervo.

- Mais forte - ela murmurou-lhe, colocando a mão por trás de sua cabeça, agarrando sua nuca, pressionando-o para ela. - Mais forte.

Ela deitou-se em todo o seu comprimento sobre ele, as mãos dele agarradas à carne macia de suas nádegas, sentindo o peso pequeno e sólido da criança sobre sua própria barriga, como se a compartilhassem agora protegendo o pequeno ser redondo entre seus corpos.

Lançou os braços ao seu redor, abraçando-a, e ela o segurou com força enquanto ele arremessava-se e estremecia, os cabelos dela em seu rosto, as mãos dela em seus cabelos e a criança entre eles, sem saber onde qualquer um dos três começava ou terminava.

Ele acordou bruscamente, ofegante e suando, parcialmente curvado, de lado, sob um dos bancos na cela. Ainda não amanhecera completamente, mas ele podia ver as formas dos homens deitados junto a ele e esperou que não tivesse gritado. Fechou os olhos outra vez, mas o sonho se desfizera. Permaneceu deitado e imóvel, o coração desacelerando aos poucos, e esperou o dia clarear.

 

John Grey vestiu-se com esmero naquela noite, usava roupas de linho recém-lavadas e meias de seda. Não usou peruca, apenas seus próprios cabelos, numa trança simples, enxaguados com uma loção de limão e ver-bena. Hesitou por um instante diante do anel de Hector, mas por fim resolveu usá-lo. O jantar estava bom; um faisão que ele mesmo abatera e uma salada verde, em deferência aos estranhos gostos de Fraser por verduras. Agora, permaneceram sentados de cada lado do tabuleiro de xadrez, os tópicos de conversa mais amenos deixados de lado na concentração do jogo.

- Aceita um xerez? - Colocou seu bispo no tabuleiro e inclinou-se para trás, esticando os músculos.

Fraser fez que sim com a cabeça, absorto na nova jogada.

- Obrigado.

Grey levantou-se e atravessou o aposento, deixando Fraser junto ao fogo. Abriu o armário para apanhar a garrafa e sentiu um fio fino de suor escorrer pelas suas costelas. Não por causa do fogo, queimando lentamente do outro lado do aposento; mas por puro nervosismo.

Trouxe a garrafa para a mesa, segurando as taças na outra mão; as taças de cristal Waterford que sua mãe lhe enviara. O líquido fluiu para dentro das taças, cintilando nas cores âmbar e rosa-escuro à luz do fogo. Os olhos de Fraser estavam fixos na taça, observando o xerez subir, mas com uma abstração que evidenciava que ele estava profundamente absorto em seus pensamentos. Os olhos azul-escuros estavam velados. Grey perguntou-se em que ele estaria pensando; não no jogo - o resultado deste já era previsto.

Grey estendeu o braço e moveu o bispo de sua rainha. Não passava de uma manobra de adiamento, ele o sabia; ainda assim, colocava a rainha de Fraser em perigo e podia forçar a troca de uma torre.

Grey levantou-se para colocar um bloco de turfa no fogo. Espreguiçou-se e passou para trás de seu adversário para ver a situação daquele ângulo.

A luz do fogo tremeluziu quando o enorme escocês inclinou-se para frente para estudar o tabuleiro, ressaltando os vívidos tons vermelhos dos cabelos de James Fraser e reproduzindo o brilho da luz no xerez translúcido.

Fraser prendera os cabelos na nuca com uma fina tira de couro, amarrada com um laço. Não seria necessário mais do que um pequeno puxão para soltá-lo. John Grey podia imaginar correr sua mão para cima, por baixo dos cabelos lustrosos e espessos, a sensação da nuca quente e lisa embaixo. Tocar...

Fechou a mão bruscamente, imaginando a sensação.

- Sua vez, major. - A voz suave do escocês trouxe-o de volta à realidade e ele assumiu seu lugar, olhando cegamente para o tabuleiro de xadrez.

Sem de fato olhar, estava intensamente consciente dos movimentos do outro, de sua presença. Houve uma perturbação do ar em volta de Fraser; era impossível não olhar para ele. Para ocultar uma espiada de relance, ele pegou a taça de xerez e tomou um pequeno gole, mal notando o gosto da bebida.

Fraser continuava sentado, imóvel como uma estátua de cinabre, apenas os olhos azul-escuros vividos no rosto, enquanto examinava o tabuleiro. O fogo diminuíra e os contornos de seu corpo estavam delineados com sombras. A mão, dourada e preta com a luz do fogo, descansava sobre a mesa, imóvel e refinada como o peão capturado ao seu lado.

A pedra azul do anel de Grey cintilou quando ele estendeu a mão para pegar o bispo de sua rainha. É errado, Hector?, pensou. Que eu ame um homem que pode tê-lo matado? Ou seria um modo de finalmente acertar as coisas? Curar as feridas de Culloden para ambos?

O bispo fez um ruído suave e surdo quando ele colocou a base forrada de feltro no tabuleiro com precisão. Sem parar, sua mão ergueu-se, como se tivesse vontade própria. A mão percorreu a pequena distância pelo ar, parecendo saber precisamente o que queria e pousou sobre a de Fraser, a palma formigando, os dedos curvados gentilmente implorando.

A mão sob a dele era quente - tão quente - mas dura, e imóvel como o mármore. Nada se moveu sobre a mesa, exceto o tremeluzir da chama no âmago do xerez. Então ele ergueu os olhos, para defrontar-se com os de Fraser.

- Tire sua mão de mim - Fraser disse, muito, muito suavemente. – Ou eu o matarei.

A mão sob a de Grey não se moveu, nem o rosto acima, mas ele pôde sentir o estremecimento de repulsa, um espasmo de ódio e repugnância que vinha de dentro do escocês, irradiando através de sua carne.

Repentinamente, ele ouviu mais uma vez a advertência de Quarry em sua mente, tão clara como se o ex-diretor falasse em seu ouvido neste instante.

Se jantar sozinho com Fraser, não dê as costas para ele.

Não haveria chance para isso; ele não poderia virar-se de costas. Não conseguia sequer piscar ou desviar os olhos, esquivar-se do olhar azul-escuro, intenso e fixo, que o mantinha paralisado. Movendo-se tão lentamente como se estivesse em cima de uma mina terrestre que não explodiu, ele retirou sua mão.

Houve um momento de silêncio, quebrado apenas pelo tamborilar da chuva e pelo zunido da turfa no fogo, quando nenhum dos dois parecia respirar. Em seguida, Fraser levantou-se sem uma palavra e deixou a sala.

 

A chuva do fim de novembro tamborilava nas pedras do pátio e nas melancólicas fileiras de homens, amontoados sob o aguaceiro. Os casacos-vermelhos que os vigiavam também não pareciam mais felizes do que os encharcados prisioneiros.

O major Grey estava parado sob a projeção do telhado, aguardando. Não eram as melhores condições de tempo para conduzir uma busca e uma limpeza das celas dos prisioneiros, mas nesta época do ano era inútil esperar por um tempo melhor. E com mais de duzentos prisioneiros em Ardsmuir, era necessário limpar as celas ao menos uma vez por mês, a fim de evitar o alastramento de doenças.

As portas do bloco principal de celas escancararam-se e uma pequena fila de prisioneiros emergiu; os prisioneiros de confiança que de fato faziam a limpeza, eram atentamente vigiados pelos guardas. Ao fim da fila, cabo Dunstable emergiu, as mãos cheias dos pequenos itens de contrabando que uma busca desse tipo em geral revelava.

— O lixo de sempre, senhor — relatou, deixando cair a coleção de patéticas relíquias e quinquilharias anônimas sobre a tampa de um barril que estava próximo ao cotovelo do major. — Apenas isso pode interessá-lo.

"Isso" era uma pequena tira de pano, talvez de quinze por dez centímetros, em xadrez verde de um tartã. Dunstable olhou rapidamente para as fileiras de prisioneiros de pé na chuva, como se pretendesse pegar alguém numa ação comprometedora.

Grey suspirou, depois endireitou os ombros.

— Sim, creio que sim.

A posse de qualquer tartã escocês era estritamente proibida pelo Diskilting Act - o decreto que ao mesmo tempo desarmava os escocêses das Highlands e os proibia de usar seu traje tradicional, o kilt. Adiantou-: e parou diante das fileiras de homens, enquanto o cabo Dunstable dava um brado para atrair a atenção dos prisioneiros.

— De quem é isto? - O cabo ergueu a tira de pano no alto e também levantou a voz. Grey olhou do pedaço de pano colorido para as fileiras de prisioneiros, mentalmente conferindo os nomes, tentando combiná-los ao seu deficiente conhecimento de tartãs. Mesmo em um único clã, os padrões variavam tanto que uma determinada estampa de xadrez não podia ser atribuída com nenhuma certeza, mas havia padrões gerais de desenho e cor.

MacAlester, Hayes, Innes, Graham, MacMurtry, MacKenzie, MacDonald... pare. MacKenzie. E esse. O que lhe dava certeza era mais o conhecimento dos homens por parte de um oficial do que qualquer identificação do xadrez com um clã em particular. MacKenzie era um jovem prisioneiro e seu rosto era um pouco controlado demais, um pouco inexpressivo demais.

— É seu, MacKenzie. Não é? — Grey perguntou. Arrancou o pedaço de pano da mão do cabo e enfiou-o sob o nariz do rapaz. O prisioneiro ficou lívido sob as manchas de sujeira. Seu maxilar estava cerrado com força e ele respirava com dificuldade pelo nariz com um leve som sibilante.

Grey transpassou o jovem prisioneiro com um olhar severo e triunfan-te. O jovem escocês possuía aquele núcleo central de ódio implacável que todos eles possuíam, mas ele não conseguira erigir a muralha de estóica indiferença que o escondesse. Grey podia sentir o medo crescente do jovem; mais um segundo e ele desmoronaria.

- É meu. - A voz era calma, quase entediada, e falou com tamanha indiferença que nem MacKenzie nem Grey a registraram imediatamente. Mantiveram o olhar preso um no outro, até que a enorme mão passou por cima do ombro de Angus MacKenzie e delicadamente arrancou o pedaço de tecido da mão do oficial.

John Grey deu um passo para trás, sentindo as palavras como um golpe na boca do seu estômago. Esquecendo-se de MacKenzie, ergueu os olhos os muitos centímetros necessários para olhar Jamie Fraser diretamente no rosto.

- Não é um tartã dos Fraser - ele disse, sentindo as palavras forçarem sua passagem por entre lábios de madeira. Todo o seu rosto parecia entorpecido, um fato pelo qual estava vagamente agradecido; ao menos, sua expressão não poderia traí-lo diante das fileiras de prisioneiros que os observavam.

A boca de Fraser alargou-se ligeiramente. Grey mantinha os olhos fixos nela, com receio de fitar os olhos azul-escuros acima.

— Não, não é — Fraser concordou. — É MacKenzie. O clã de minha mãe. Em algum canto remoto de sua mente, Grey armazenou mais uma minúscula migalha de informação com o pequeno tesouro de fatos mantidos no cofre de jóias identificado com a etiqueta "Jamie" - sua mãe era uma MacKenzie. Sabia que isso era verdade, exatamente como sabia que o tartã não pertencia a Fraser.

Ouviu a própria voz, fria e firme, dizendo:

- A posse de tartãs de clã é ilegal. Conhece a pena, é claro? A boca larga curvou-se num sorriso enviesado.

Sim.

Houve murmúrios e uma certa agitação entre as fileiras de prisioneiros; na verdade, houve bem pouco movimento, mas Grey pôde sentir a mudança do alinhamento, como se estivessem na realidade aproximando-se de Fraser, fechando o cerco em torno dele, envolvendo-o. O círculo desfez-se e se realinhou, e ele estava sozinho do lado de fora. Jamie Fraser voltara para o meio dos seus.

Com um grande esforço de determinação, Grey desviou os olhos dos lábios macios e lisos, ligeiramente gretados pela exposição ao sol e ao vento. A expressão dos olhos acima da boca de Jamie era o que ele temera; nem medo, nem raiva — apenas indiferença.

Fez sinal para um dos guardas.

- Levem-no.

O major John William Grey inclinou a cabeça sobre o trabalho em sua escrivaninha, assinando requisições sem lê-las. Raramente trabalhava até tão tarde da noite, mas não houve tempo durante o dia e a papelada estava se acumulando. As requisições tinham que ser enviadas a Londres ainda naquela semana.

"Quatrocentos quilos de farinha de trigo", escreveu, tentando se concentrar na precisão dos rabiscos negros sob sua pena. O problema dessa papelada de rotina era que ela ocupava sua atenção, mas não sua mente, permitindo que lembranças do dia se infiltrassem de improviso.

"Seis barris de cerveja, para uso do quartel." Largou a pena e esfregou as mãos energicamente. Ainda podia sentir o frio que penetrara em seus ossos no pátio naquela manhã. O fogo na lareira estava forte, mas não parecia ajudar. Não se aproximou; já tentara isso uma vez e ficara hipnotizado, vendo as imagens da tarde nas chamas, despertando somente quando o tecido de suas calças começou a pegar fogo.

Pegou a pena e tentou mais uma vez banir as visões do pátio de sua mente.

O melhor era não adiar a execução de sentenças desse tipo; os prisioneiros ficavam inquietos e ansiosos de expectativa, e havia uma dificuldade considerável em controlá-los. Entretanto, quando executada imediatamente, tal disciplina em geral tinha um efeito salutar, mostrando aos prisioneiros que o castigo seria rápido e terrível, aumentando o respeito por aqueles que eram responsáveis por sua guarda. De algum modo, John Grey suspeitava que esta ocasião em particular não aumentara o respeito dos prisioneiros - ao menos, não por ele.

Sentindo pouco mais do que o fluxo de água gelada em suas veias, dera suas ordens, de forma rápida e serena, e elas foram obedecidas com igual competência.

Os prisioneiros haviam sido enfileirados em volta dos quatro lados do pátio, com filas mais curtas de guardas arrumadas de frente para eles, as baionetas em prontidão, para evitar qualquer manifestação inconveniente.

Mas não houve nenhuma manifestação, conveniente ou não. Os presos aguardaram num silêncio frio sob a chuva fina que cobria as pedras do pátio, com quase nenhum barulho além das tosses e pigarros normais em qualquer agrupamento de homens. Era começo de inverno e o catarro era um flagelo quase tão comum nos alojamentos quanto nas celas úmidas.

Ele assistiu impassivelmente, as mãos às costas, enquanto o prisioneiro era conduzido à plataforma. Observou, sentindo a chuva penetrar pelos ombros de seu casaco e correr em minúsculos fios pelo colarinho de sua camisa. Jamie Fraser mantinha-se de pé na plataforma a um metro de distância, despido até a cintura, movendo-se sem pressa ou hesitação, como se aquilo fosse algo que já tivesse feito antes, uma tarefa à qual estava acostumado, sem nenhuma importância em si mesma.

Ele fez um sinal com a cabeça para os dois soldados rasos, que seguraram as mãos do prisioneiro, sem que oferecessem nenhuma resistência, e as levantaram, amarrando-as aos braços do poste de açoite. Amordaçaram-no e Fraser permaneceu ereto, a chuva escorrendo pelos braços erguidos e pelo sulco profundo de sua espinha dorsal, encharcando o tecido fino de suas calças.

Outro sinal com a cabeça, para o sargento que segurava o documento de acusação, e uma pequena onda de aborrecimento quando o gesto provocou uma cascata da chuva acumulada de um dos lados do chapéu. Ajeitou o chapéu e a peruca encharcada, e retomou sua postura de autoridade a tempo de ouvir a leitura da acusação e da sentença.

- "... em desrespeito ao Diskilting Act, aprovado pelo Parlamento de Sua Majestade, por cujo crime a sentença de sessenta chibatadas deve ser infligida."

Grey olhou com um distanciamento profissional para o sargento encarregado dos cavalos, designado para aplicar a pena; não era a primeira vez para nenhum dos dois. Não fez um novo sinal com a cabeça; a chuva ainda caía pesadamente. Ao invés disso, semicerrou os olhos e pronunciou as palavras de praxe:

— Sr. Fraser, sofra sua punição.

E permaneceu ali de pé, olhando fixamente para frente, observando e ouvindo o baque surdo do açoite e o ronco da respiração do prisioneiro, forçada através da mordaça pelo golpe.

Os músculos do prisioneiro enrijeceram-se em resistência à dor Repetidamente, até que cada músculo se destacasse separadamente sob a pele. Seus próprios músculos doíam de tensão, e ele mudou o peso de corpo discretamente de uma perna para a outra, conforme a monótona brutalidade prosseguia. Filetes vermelhos escorriam pela espinha do prisioneiro, sangue misturado a água, manchando o tecido das calças.

Grey podia sentir os homens atrás de si, soldados e prisioneiros, todos os olhos fixos na plataforma e em sua figura central. Até mesmo a tosse silenciou.

E por cima de tudo, como um manto pegajoso de verniz lacrando o sentimentos de Grey, havia uma fina camada de nojo de si mesmo, confor me percebia que seus olhos estavam fixos na cena, não por dever, mas por pura incapacidade de desviar os olhos do brilho da mistura de sangue e chuva que cintilava nos músculos, contraídos de dor em curvas de arrebatadora beleza.

O sargento-ferreiro parava apenas por um instante entre uma chicotada e outra. Apressava-se um pouco; todos queriam acabar logo com aquilo e sair da chuva. Grissom contava cada golpe em voz alta, anotando em sua folha de papel conforme o fazia. O ferreiro verificou o chicote, correndo as tiras com seus nós encerados entre os dedos para livrá-los de san gue e fragmentos de carne, em seguida ergueu o gato-de-nove-rabos outra vez, girou-o devagar duas vezes por cima da cabeça e golpeou de novo.

— Trinta! — disse o sargento.

O major Grey puxou a gaveta mais baixa da escrivaninha e vomitou por cima de uma pilha de requisições.

Seus dedos estavam cravados com força nas palmas das mãos, mas os tremores não paravam. Vinha de dentro dos ossos, como o frio do inverno.

— Coloquem um cobertor sobre ele. Vou cuidar dele daqui a pouco.

A voz do médico inglês parecia vir de muito longe; não sentia nenhuma conexão entre a voz e as mãos que o agarravam com firmeza pelos dois braços. Gritou quando o mudaram de posição, a torção abrindo os ferimentos que mal acabavam de coagular em suas costas. O escorrer dos filetes de sangue por suas costelas piorava os tremores, apesar do cobertor áspero que haviam colocado sob seus ombros.

Agarrou-se às bordas do banco onde estava deitado, a face pressionada contra a madeira, os olhos cerrados, lutando contra os tremores. Ouviu-se um movimento e o arrastar de pés em algum lugar no aposento, mas ele não podia notar, não conseguia desviar a atenção do ranger dos dentes e da contração das juntas.

A porta fechou-se e o aposento ficou em silêncio. Estaria sozinho?

Não, ouviu passos junto à sua cabeça e o cobertor que o cobria foi levantado e dobrado até a cintura.

— Hum. Fizeram um trabalho e tanto em você, hein, rapaz?

Não respondeu, nenhuma resposta era esperada de qualquer forma. O médico virou-se por um instante; em seguida, sentiu a mão do médico sob seu rosto, erguendo sua cabeça. Uma toalha foi enfiada debaixo dela, acolchoando-a contra a madeira áspera.

— Vou limpar os ferimentos agora — a voz disse. Era impessoal, mas não era hostil.

Ele inspirou fundo pelo meio dos dentes quando a mão do médico tocou suas costas. Ouviu-se um estranho choramingo. Percebeu que fora ele quem emitira o som e sentiu-se envergonhado.

— Quantos anos você tem, rapaz?

— Dezenove. — Mal conseguiu proferir a palavra, antes de reprimir um gemido com toda a força.

O médico tocou delicadamente aqui e ali em suas costas, então levantou-se. Ouviu o barulho da trava da porta, depois os passos do médico retornando.

— Ninguém entrará aqui agora - a voz disse gentilmente. — Vá em frente e chore.

- Ei! - a voz dizia. - Acorde!

Recobrou a consciência lentamente; a aspereza da madeira sob sua face reuniu o sonho e a realidade por um instante, e ele não conseguiu se lembrar de onde estava. A mão de alguém surgiu da escuridão, tocando-o de leve no rosto.

Estava rangendo os dentes em seu sono, companheiro - a voz murmurou. — Está doendo muito?

Um pouco. - Percebeu a outra ligação entre o sonho e a realidade quando tentou se levantar e a dor espalhou-se por suas costas como um relâmpago difuso. Soltou o ar com um grunhido involuntário e deixou-se cair de volta no banco.

Tivera sorte; o escalado fora Dawes, um soldado vigoroso, de meia-idade, que na verdade não gostava de açoitar prisioneiros e só o fazia porque era o seu trabalho. Ainda assim, sessenta chibatadas causavam um grande estrago, ainda que aplicadas sem entusiasmo.

- Não, isso está quente demais. Quer escaldá-lo? - Era a voz de Morrison, repreendendo alguém. Tinha que ser Morrison, é claro.

Engraçado, pensou vagamente. Como sempre que havia um grupo de homens, eles pareciam encontrar cada qual a sua função apropriada, independentemente de ser ou não algum serviço que já tivessem feito antes. Morrison fora um lavrador, como a maioria deles. Provavelmente, um ótimo trabalhador com a ajuda de seus animais, mas sem pensar muito no que fazia. Agora, era o curandeiro natural dos homens, aquele a quem recorriam quando tinham uma cólica ou um polegar quebrado. Morrison sabia pouco mais do que os outros, mas os homens recorriam a ele quando estavam feridos ou doentes, como recorriam a Seumus Mac Dubh em busca de orientação e conselho. E justiça.

O pano fumegante foi colocado sobre suas costas e ele gemeu com a dor aguda, pressionando os lábios com força para não gritar. Podia sentir a forma da pequena mão de Morrison, delicadamente pousada no meio de suas costas.

- Agüente firme, companheiro, até o calor passar.

Quando o pesadelo arrefeceu, ele piscou por um instante, ajustando-se às vozes próximas e à percepção de companhia. Estava numa cela grande, no canto ensombreado junto à lareira. Saía vapor do fogo, devia haver um caldeirão de água fervente. Viu Walter MacLeod colocar uma nova braçada de tiras de pano dentro do vasilhame, o fogo dando umas pinceladas de vermelho na barba e nas sobrancelhas escuras de MacLeod. Depois, conforme os trapos em suas costas esfriavam para um calor reconfortante, ele fechava os olhos e deixava-se mergulhar de novo num cochilo, embalado pela conversa amena dos homens próximos.

Era familiar, esse estado de distanciamento nebuloso. Sentira praticamente o mesmo desde o instante em que estendera a mão por cima do ombro de Angus e pegara o pedaço de pano de tartã. Como se, com essa escolha, uma cortina tivesse descido entre eles e os homens; como se estivesse sozinho, em algum lugar tranqüilo, infinitamente distante.

Seguira o guarda que o levara, despiu-se quando lhe ordenaram, mas tudo como se na verdade não estivesse acordado. Assumira seu lugar na plataforma e escutara as palavras de crime e sentença pronunciadas, sem realmente ouvir. Nem mesmo o corte áspero da corda em seus pulsos ou a chuva fria em suas costas nuas o despertou. Tudo parecia já ter acontecido antes; nada que ele dissesse ou fizesse poderia alterar alguma coisa; seu destino já estava decidido.

Quanto ao açoitamento, suportara-o. Não havia margem, portanto para arrependimento ou reflexão, ou para qualquer coisa além da luta desesperada, obstinada, que tal insulto corporal exigia.

- Quieto, agora, quieto. - A mão de Morrison pousou em seu pescoço, para impedi-lo de se mover quando os panos molhados eram retirados e um novo emplastro quente era aplicado, momentaneamente despertando todos os nervos adormecidos para um novo sobressalto.

A única conseqüência desse estranho estado de espírito era que todas as sensações pareciam ter a mesma intensidade. Ele podia, se tentasse, sentir cada tira separadamente em suas costas. Ver cada uma delas com os olhos da mente, como uma faixa de cor vívida atravessando o escuro da imaginação. Mas a dor dos cortes que iam das costelas aos ombros não possuía maior importância ou conseqüência do que a sensação quase agradável de peso nas pernas, de desconforto nos braços ou do toque leve e macio de seus cabelos sobre o rosto.

Seu coração pulsava de forma lenta e regular em seus ouvidos; o ruído de sua respiração não participava dos movimentos de seu peito quando respirava. Ele existia apenas como uma coleção de fragmentos, cada pedacinho com suas próprias sensações e nenhum deles de particular interesse para a inteligência central.

- Tome, Mac Dubh - disse a voz de Morrison junto ao seu ouvido. - Levante a cabeça e beba isto.

O cheiro forte de uísque assaltou-o e ele tentou desviar a cabeça.

— Não preciso disso — ele disse.

— Precisa, sim — Morrison disse, com aquela firmeza e senso prático que todos os curandeiros pareciam ter, como se sempre soubessem melhor do que você como se sentia ou do que precisava. Sem forças ou vontade de argumentar, abriu a boca e tomou um gole do uísque, sentindo os músculos do seu pescoço tremerem sob o esforço de manter sua cabeça levantada.

O uísque acrescentou sua parte ao coro de sensações que o dominava. Uma queimação na garganta e na barriga, um formigamento agudo acima e por trás do nariz, e uma espécie de redemoinho em sua cabeça que lhe disse que tomara uísque demais, rápido demais.

- Mais um pouco, vamos, sim, isso mesmo - Morrison dizia, persuadindo-o. - Bom rapaz. Sim, vai se sentir melhor, não é? — A figura corpulenta de Morrison se moveu, bloqueando sua visão da cela obscurecida. Uma corrente de ar soprava da janela alta, mas parecia haver mais movimento perto dele do que podia ser atribuído ao vento. - Bem, como estão as costas? Amanhã, estará mais firme do que uma meda de trigo, mas acho que talvez não esteja tão ruim quanto poderia estar. Tome, rapaz, tome mais um gole. - A borda do caneco de chifre pressionou sua boca com insistência.

Morrison continuou falando, um pouco alto demais, de nada em particular. Havia alguma coisa errada. Morrison não era um sujeito tagarela. Algo estava acontecendo, mas ele não conseguia ver. Ergueu a cabeça, procurando ver o que estava errado, mas Morrison pressionou-a para baixo outra vez.

- Não se perturbe, Mac Dubh - disse brandamente. - Você não pode impedir, de qualquer forma.

Sons furtivos vinham do outro canto da cela, os sons que Morrison tentara impedir que ele ouvisse. Barulhos arrastados, murmúrios breves, um baque surdo. Em seguida, o som abafado de golpes, lentos e regulares, e um gemido pesado de medo e dor, pontuado por um choro alquebrado de respiração presa.

Estavam batendo no jovem Angus MacKenzie. Tencionou as mãos sob o peito, mas o esforço fez suas costas arderem e sua cabeça girar. Sentiu a mão de Morrison outra vez, forçando-o para baixo.

- Fique quieto, Mac Dubh - ele disse. Seu tom de voz era uma mistura de autoridade e resignação.

Uma onda de tontura percorreu-o e suas mãos deslizaram do banco. De qualquer modo, Morrison tinha razão. Não podia impedi-los.

Permaneceu imóvel, então, sob a mão de Morrison, os olhos fechados, e esperou que os sons cessassem. A despeito de si mesmo, imaginou quem seria aquele administrador de justiça cega no escuro. Sinclair. Sua mente forneceu a resposta sem hesitação. E Hayes e Lindsay ajudando, sem dúvida.

Assim como ele, também não podiam deixar de ser quem eram, nem Morrison. Os homens faziam o que nasceram para fazer. Um era um curandeiro, o outro um valentão.

Os sons haviam cessado, exceto pelos soluços abafados. Seus ombros relaxaram e ele não se moveu quando Morrison retirou o último emplastro e delicadamente enxugou suas costas, a corrente de ar da janela fazendo-o tremer com um calafrio repentino. Pressionou os lábios com força, para não emitir nenhum barulho. Haviam-no amordaçado esta tarde e ele ficou contente por isso; da primeira vez que fora açoitado, há muitos anos, ele mordera o lábio inferior a ponto de quase cortá-lo ao meio.

O caneco de uísque foi pressionado contra sua boca, mas ele virou a cabeça e ele desapareceu sem comentário para algum lugar onde fosse encontrar uma recepção mais calorosa. Milligan, provavelmente, o irlandês.

Um homem com a fraqueza pela bebida, outro com raiva. Um com um fraco por mulheres, enquanto outro...

Suspirou e remexeu-se ligeiramente na cama dura de tábuas. Morrison cobrira-o com um cobertor e se afastara. Sentia-se exausto e vazio, ainda em fragmentos, mas com a mente absolutamente clara, assentada em algum lugar muito distante do resto de si mesmo.

Morrison levara a vela também; ela queimava no extremo oposto da cela, onde os homens sentavam-se, acotovelados uns contra os outros em amistoso companheirismo, a luz tornando-os figuras negras, um indistinguível do outro, contornados de luz dourada como as gravuras de santos sem rosto em missais antigos.

Perguntou-se de onde viriam esses dons que moldavam a natureza de um ser humano. De Deus?

Seria como a descida do Paracleto e as línguas de fogo que pousaram sobre os apóstolos? Lembrou-se da figura na Bíblia, na sala de visitas de sua mãe, todos os apóstolos coroados com fogo e parecendo totalmente apa-lermados, em estado de choque, parados à volta como um bando de velas de cera, acesas para uma festa.

Sorriu com a lembrança e fechou os olhos. As sombras da vela tremularam vermelhas sobre suas pálpebras.

Claire, sua própria Claire - quem saberia o que a enviara para ele, a lançara em uma vida para a qual ela certamente não havia nascido? E no entanto ela soube o que fazer, o que ela era destinada a ser, apesar disso. Nem todos eram tão afortunados de saber qual era o seu dom.

Ouviu um som arrastado e cauteloso ao seu lado na escuridão. Abriu os olhos e viu não mais do que um vulto, mas logo percebeu quem era.

Como você está, Angus? - perguntou brandamente em gaélico. O jovem ajoelhou-se timidamente a seu lado e segurou sua mão.

Estou... bem. Mas o senhor, quero dizer... eu... eu sinto muito... Teria sido experiência ou instinto que o fez apertar sua própria mão, reconfortando-o?

- Eu também estou bem - disse. — Vá deitar-se, Angus, e descanse.

A figura inclinou a cabeça em um gesto estranhamente formal e pressionou um beijo nas costas de sua mão.

- Eu... posso ficar aqui a seu lado, senhor?

Sua mão pesava uma tonelada, mas levantou-a mesmo assim e pousou-a sobre a cabeça do rapaz. Depois, ela escorregou, mas ele sentiu a tensão de Angus relaxar, à medida que o consolo fluiu do toque de sua mão.

Ele nascera um líder, depois foi moldado ainda mais para adequar-se a esse destino. Mas e quanto a um homem que não nascera para o papel que exigiam que cumprisse? John Grey, por exemplo. Carlos Stuart, outro exemplo.

Pela primeira vez em dez anos, dessa estranha distância, pôde encontrar em si mesmo a capacidade de perdoar aquele homem frágil que um dia fora seu amigo. Tendo tantas vezes pago o preço exigido por seu próprio dom, podia finalmente ver a maldição mais terrível de ter nascido rei, sem o dom da majestade.

Angus MacKenzie deixou-se cair contra a parede a seu lado, a cabeça abaixada sobre os joelhos, seu cobertor por cima dos ombros. Um ronco baixo e gorgolejante veio da forma encolhida. Podia sentir o sono aproximar-se dele também, encaixando de novo as partes fragmentadas e dispersas de si mesmo conforme o dominava, e compreendeu que acordaria inteiro outra vez - ainda que muito dolorido - pela manhã.

Sentiu-se imediatamente aliviado de muitas coisas. Do peso da responsabilidade imediata, da necessidade de decisão. A tentação se fora, junto com suas possibilidades. Mais importante ainda, o fardo da raiva dissolvera-se; talvez tenha desaparecido para sempre.

Portanto, pensou, através da névoa que começava a envolvê-lo, John Grey lhe devolvera seu destino.

Podia sentir-se quase agradecido.

 

Foi Roger quem a encontrou de manhã, encolhida no sofá do gabinete sob a manta da lareira, papéis espalhados descuidadamente pelo chão onde haviam caído ao derramarem de uma das pastas.

A luz penetrava pelas janelas altas, inundando o gabinete, mas o encosto alto do sofá sombreara o rosto de Claire, evitando que acordasse com o clarear do dia. A luz agora começava a derramar-se por cima da curva de veludo empoeirado do encosto para tremeluzir nas mechas de seus cabelos.

Um rosto transparente em mais de uma maneira, Roger pensou, olhando para ela. Sua pele era tão fina e clara que as veias azuis podiam ser vistas na têmpora e na garganta, e os ossos bem delineados estavam tão próximos da superfície da pele que ela parecia esculpida em marfim.

A manta deslizara um pouco para fora do sofá, expondo seus ombros. Um dos braços repousava, relaxado, por cima do seu peito, prendendo uma folha de papel, única e amarrotada, contra seu corpo. Roger ergueu seu braço com cuidado, para soltar o papel sem acordá-la. Ela estava lânguida em seu sono, a pele surpreendentemente cálida e macia sob sua mão.

Seus olhos logo depararam-se com o nome; sabia que ela devia tê-lo encontrado.

- "James MacKenzie Fraser" - ele murmurou. Ergueu os olhos do papel para a mulher adormecida no sofá. A luz acabava de tocar a curva de sua orelha; ela remexeu-se levemente e virou a cabeça, em seguida seu rosto deixou-se cair outra vez na sonolência. — Não sei quem você era, companheiro — ele murmurou para o escocês invisível —, mas deve ter sido alguém formidável para merecê-la.

Delicadamente, ele recolocou a manta sobre os ombros de Claire e abaixou a cortina da janela atrás dela. Em seguida, agachou-se e juntou as folhas da pasta de Ardsmuir espalhadas pelo chão. Ardsmuir. Era tudo que ele precisava por enquanto; ainda que o destino final de Jamie Fraser não estivesse registrado nas folhas em suas mãos, estaria em algum lugar na história da prisão de Ardsmuir. Provavelmente, iria precisar de mais uma incursão nos arquivos das Highlands, ou mesmo de uma viagem a Londres, mas o próximo passo na conexão já fora dado; o caminho estava desimpedido.

Brianna descia as escadas quando ele fechou a porta do gabinete, movendo-se com extremo cuidado. Ela arqueou uma das sobrancelhas interrogativamente e ele ergueu a pasta, sorrindo.

— Encontramos - sussurrou.

Ela não disse nada, mas um sorriso em resposta espalhou-se por seu rosto, luminoso como o sol nascente lá fora.

 

- Eu acho que você devia pensar em trocar de nome — disse Grey cuidadosamente.

Não esperava uma resposta; em quatro dias de viagem, Fraser não lhe dirigira uma única palavra, conseguindo até mesmo a difícil tarefa de compartilhar um quarto de hospedaria com ele sem comunicação direta. Grey dera de ombros e ocupara a cama, enquanto Fraser, sem um gesto ou olhar, enrolara-se em seu manto surrado e deitara-se diante da lareira. Coçando uma variedade de mordidas de pulgas e percevejos, Grey concluiu que provavelmente Fraser ficara com a melhor parte dos arranjos para dormir.

- Seu novo anfitrião não simpatiza com Carlos Stuart e seus partidários, tendo perdido o seu único filho em Prestonpans — continuou, dirigindo-se ao perfil férreo visível a seu lado. Gordon Dunsany era apenas alguns anos mais velho do que ele próprio, um jovem capitão no regimento de Bolton. Podiam facilmente ter morrido juntos naquele campo, se não fosse por aquele encontro no bosque perto de Carryarrick. - Certamente você não pode nem pensar em esconder o fato de que é um escocês, e das Highlands, ainda por cima. Se quiser se dignar a considerar um conselho bem-intencionado, pode ser de bom alvitre não usar um nome tão facilmente reconhecível como o seu.

A expressão pétrea de Fraser não se alterou em nenhum aspecto. Cutucou seu cavalo com o calcanhar e guiou-o à frente do cavalo baio de Grey, procurando os remanescentes da trilha, varrida por uma enxurrada recente.

Era fim de tarde quando atravessaram o arco da ponte Ashness e começaram a descer o declive em direção a um pequeno lago, Watendlath Tarn. Lake District, a região dos lagos da Inglaterra, não parecia em nada com a Escócia, Grey refletiu, mas pelo menos havia montanhas ali. Montanhas nebulosas, férteis e de flancos arredondados, não severamente hostis como os penhascos das Highlands, mas montanhas ainda assim.

Watendlath Tarn estava escura e agitada no vento do começo do outono, suas margens repletas de plantas de brejo. As chuvas de verão haviam sido ainda mais generosas do que de costume naquele lugar úmido e as pontas de arbustos alagados projetavam-se, moles e despedaçadas, acima da água que havia inundado as margens.

No alto da próxima colina, a trilha se bifurcava, partindo em duas direções. Fraser, alguma distância à frente, freou seu cavalo e aguardou instruções, o vento agitava seus cabelos. Não os prendera numa trança nesta manhã e esvoaçavam-se livremente, as mechas cor de fogo erguendo-se em total desgoverno ao redor de sua cabeça.

Patinhando pela encosta acima, John William Grey ergueu os olhos para o homem no alto, imóvel como uma estátua de bronze em sua montaria, exceto pela cabeleira ondulante. O ar secou em sua garganta e ele umedeceu os lábios.

- O Lúcifer, filho da manhã - murmurou consigo mesmo, mas absteve-se de acrescentar o resto da citação.

Para Jamie, a viagem de quatro dias a Helwater fora uma tortura. A repentina ilusão de liberdade, combinada à certeza da perda imediata, dava-lhe uma terrível expectativa sobre seu destino desconhecido.

Isso, aliado à raiva e à tristeza da separação de seus homens vívida em sua lembrança — o doloroso sentimento de perda por deixar as Highlands, com o conhecimento de que a separação poderia ser permanente - e seus momentos acordados, atormentados pela dor física de músculos há muito tempo desacostumados à sela, eram suficientes para mantê-lo em agonia durante toda a viagem. Apenas o fato de ter dado sua palavra o impedia de arrancar o major John William Grey de seu cavalo e esganá-lo em alguma viela deserta.

As palavras de Grey ecoavam em seus ouvidos, parcialmente obstruídos pela pulsação dissonante de seu sangue efervescente:

- Como a reforma da fortaleza já está praticamente concluída, com a ajuda competente de você mesmo e de seus homens — Grey permitira que sua voz denotasse um tom de ironia -, os prisioneiros deverão ser removidos para outras acomodações e a fortaleza de Ardsmuir guardada pelas tropas da vigésima Companhia dos Dragões de Sua Majestade. Os prisioneiros de guerra escoceses deverão ser transportados para as colônias americanas - continuou. - Serão vendidos mediante contrato de trabalhos forçados, por um período de sete anos.

Jamie mantivera-se cautelosamente impassível, mas diante das notícias sentira seu rosto e suas mãos ficarem dormentes com o choque.

- Trabalhos forçados? Isso é o mesmo que escravidão — ele disse, mas sem prestar muita atenção às próprias palavras. América! Uma terra selvagem, de bárbaros, e a ser alcançada através de três mil milhas de mar deserto e agitado! Trabalhar na América era uma sentença igual a exílio permanente da Escócia.

Um contrato de trabalho não é escravidão — Grey afirmou, mas o major sabia tão bem quanto ele que a diferença era meramente uma questão formal, a de que trabalhadores assim contratados recuperariam, se sobrevivessem, sua liberdade numa data predeterminada. Um trabalhador nestas condições era para todos os efeitos o escravo de seu senhor ou senhora, a ser explorado, açoitado ou marcado como lhe aprouvessem, proibido por lei de deixar as dependências de seu senhor sem permissão.

Como James Fraser agora seria proibido.

- Você não será enviado com os outros. — Grey não olhara para ele enquanto falava. - Você não é apenas um prisioneiro de guerra, foi condenado por traição. Como tal, sua prisão segue os ditames da vontade de Sua Majestade; você não pode ser exilado sem aprovação real. E Sua Majestade não achou por bem conceder essa aprovação.

Jamie tinha consciência de uma notável seqüência de emoções; sob sua fúria imediata havia medo e tristeza pelo destino de seus homens, misturados a uma pequena centelha de ignominioso alívio de que, qualquer que seu destino viesse a ser, não incluía ser atirado ao mar. Envergonhado desse sentimento, lançou um olhar frio sobre Grey.

- O ouro - disse sem rodeios. - É isso, não é? - Enquanto houvesse a mais remota chance de ele revelar o que sabia sobre o quase mítico tesouro, a Coroa inglesa não se arriscaria a perdê-lo para os demônios do mar ou os selvagens das colônias.

Ainda assim, o major não olhou para ele, mas deu de ombros, num gesto equivalente a uma confirmação.

- Para onde devo ir, então? - Sua própria voz soou esganiçada aos seus ouvidos, levemente rouca conforme ele começava a se recuperar do abalo emocional das notícias.

Grey se ocupara guardando seus registros. Era início de setembro e uma brisa cálida soprava pela janela semi-aberta, agitando os documentos.

- Chama-se Helwater. Fica no Lake District, na Inglaterra. Ficará alojado com lorde Dunsany, para servi-lo em qualquer tarefa que lhe seja solicitada. - Nesse momento, Grey ergueu o olhar, a expressão em seus claros olhos azuis indecifrável. - Deverei visitá-lo lá a cada três meses, para garantir seu bem-estar.

Olhou para as costas do major em seu casaco vermelho, enquanto cavalgavam em fila indiana pelas veredas estreitas, buscando refúgio de seus infortúnios numa visão gratificante: aqueles olhos azuis arregalados, vermelhos e saltados de surpresa, enquanto as mãos de Jamie fechavam-se na garganta fina, os polegares afundando na carne avermelhada do sol, até que o corpo pequeno e musculoso do major ficasse mole como um coelho morto em suas mãos.

A vontade de Sua Majestade, hein? Não se deixava enganar. Aquilo fora obra de Grey; o ouro era apenas uma desculpa. Ele seria vendido como criado e mantido num lugar onde Grey pudesse vê-lo e regozijar-se. Esta era a vingança do major.

Todas as noites, dormira diante da lareira na estalagem, com os músculos doendo, atento a qualquer respiração, murmúrio ou movimento do sujeito na cama atrás dele, e com uma raiva profunda dessa consciência. Na claridade cinza do amanhecer, era levado à fúria outra vez, desejando que o sujeito se levantasse da cama e fizesse algum gesto vergonhoso em sua direção, para que ele pudesse liberar sua ira na paixão do assassinato. Mas Grey apenas roncava.

Passaram pela ponte Helvellyn e por outro daqueles pequenos lagos entre montanhas, estranhamente cobertos de capim, as folhas vermelhas e amarelas dos bordos e lariços girando e derramando-se pelas ancas ligeiramente suadas do seu cavalo, açoitando seu rosto e deslizando por ele como uma carícia murmurante como a de um papel.

Grey parara logo adiante e virara-se na sela, aguardando. Haviam chegado. O terreno transformava-se num declive íngreme até o vale, onde a mansão erguia-se, parcialmente oculta numa profusão de árvores vivida-mente iluminadas com as cores do outono.

Helwater estendia-se diante dele e, com ela, a perspectiva de uma vida de vergonhosa servidão. Aprumou-se na sela e açulou o cavalo, com mais força do que pretendia.

Grey foi recebido na sala de visitas principal, lorde Dunsany mos-trando-se cordialmente desatento às suas roupas desalinhadas e suas botas imundas, e lady Dunsany, uma mulher pequena e roliça, com cabelos louros sem vida, excessivamente hospitaleira.

- Uma bebida, Johnny, você precisa de uma bebida! E Louisa, minha querida, acho que deve ir buscar as meninas para virem cumprimentar nosso hóspede.

Enquanto lady Dunsany virava-se para dar ordens ao lacaio, o lorde inclinava-se por cima do copo para murmurar para ele:

- O prisioneiro escocês... você o trouxe com você?

Sim — Grey respondeu. Era improvável que lady Dunsany, agora em animada conversa com o mordomo sobre a alteração dos preparativos para o jantar, ouvisse, mas achou melhor manter sua própria voz baixa. - Eu o deixei no vestíbulo... não tinha certeza do que você pretendia fazer com ele.

Disse que o sujeito é bom com cavalos, não? Melhor torná-lo um cavalariço, então, como você sugeriu. — Lorde Dunsany olhou para a mulher e cuidadosamente virou-se para que suas costas magras ficassem voltadas para ela, protegendo ainda mais sua conversa. — Não disse a Louisa quem ele é - o baronete sussurrou. - Todo aquele pavor com os escoceses das Highlands durante a revolução... o país ficou paralisado de medo, sabe? E ela nunca se recuperou da morte de Gordon.

Compreendo perfeitamente. - Grey bateu de leve no braço do velho lorde para tranqüilizá-lo. Acreditava que o próprio Dunsany não se recuperara da morte de seu filho, embora tivesse se refeito corajosamente pelo bem de sua mulher e filhas.

Direi a elas apenas que o sujeito é um criado que você me recomendou. Hã... ele é confiável, não? Quero dizer... bem, as meninas... - Lorde Dunsany lançou um olhar inquieto a sua mulher.

Totalmente — Grey assegurou a seu anfitrião. — É um homem honrado e deu sua palavra. Ele não entrará na casa nem deixará os limites de sua propriedade, a não ser com sua permissão expressa. - Helwater cobria mais de duzentos e quarenta hectares, ele sabia. Era uma longa distância da liberdade, bem como da Escócia, mas talvez algo melhor do que as estreitas pedras de Ardsmuir ou os sofrimentos das colônias.

Um som vindo da porta fez Dunsany girar nos calcanhares, restaurado a uma esfuziante jovialidade pelo surgimento de suas duas filhas.

- Lembra-se de Geneva, Johnny? - perguntou, fazendo seu hóspede aproximar-se. - Isobel ainda era um bebê na última vez em que você esteve aqui. Como o tempo voa, não é? - E sacudiu a cabeça, ligeiramente consternado.

Isobel estava com catorze anos, pequena, roliça, efervescente e loura, como sua mãe. Grey, na verdade, não se lembrava de Geneva - ou melhor, lembrava-se, mas a garotinha mirrada de anos antes não se parecia em nada com a graciosa jovem de dezessete anos que agora lhe oferecia sua mão. Se Isobel lembrava sua mãe, Geneva puxara a seu pai, ao menos na questão de altura e peso. Os cabelos grisalhos de lorde Dunsany deviam ter sido um dia castanhos e brilhantes assim, e a jovem possuía os mesmos olhos cinza-claro de Dunsany.

As moças cumprimentaram o visitante educadamente, mas estavam visivelmente mais interessadas em outra coisa.

Papai — Isobel disse, puxando a manga do pai. — Há um homem enorme no vestíbulo! Ele ficou nos observando enquanto descíamos as escadas. Ele é assustador!

Quem é ele, papai? - Geneva perguntou. Era mais reservada do que sua irmã, mas obviamente também estava interessada.

Hã... ora, deve ser o novo cavalariço que John nos trouxe - disse lorde Dunsany, claramente desconcertado. - Pedirei a um dos lacaios que o leve... — O baronete foi interrompido pelo repentino surgimento de um lacaio no vão da porta.

Senhor — ele disse, parecendo chocado com as notícias que trazia há um escocês no vestíbulo! — Com receio de que essa horrorosa afirmação não fosse levada a sério, virou-se e gesticulou agitadamente na direção da figura alta e silenciosa parada atrás dele, ainda vestido com seu manto.

Diante dessa deixa, o estrangeiro deu um passo à frente e, vendo lord Dunsany, inclinou a cabeça cortesmente.

- Meu nome é Alex MacKenzie - disse, com um leve sotaque das Highlands. Fez uma mesura a lorde Dunsany, sem nenhum vestígio de zombaria em seus modos. - Seu criado, milorde.

Para alguém acostumado à vida estafante de uma fazenda das Higlands ou ao trabalho em uma prisão, o serviço de cavalariço em uma fazenda de criação de cavalos em Lake District não era um grande esforço. Para um homem que ficara trancado numa cela por dois meses — desde que os outros partiram para as colônias -, era um trabalho duro. Na primeira semana, enquanto seus músculos se reacostumavam às repentinas exigências do movimento constante, Jamie Fraser caía num catre no palheiro toda noite, cansado demais até para sonhar.

Chegara a Helwater em tal estado de fadiga e agitação mental que ele, no começo, vira o local como uma outra prisão — e uma prisão entre estranhos, longe das Highlands. Agora que estava assentado ali, tão aprisionado pela palavra quanto estaria por barras de ferro, sentiu o corpo e a mente começarem a relaxar, à medida que os dias se passavam. Seu corpo se enrijecia, seus sentimentos se acalmavam na tranqüila companhia dos cavalos e pouco a pouco ele achou possível pensar racionalmente outra vez.

Se não tinha uma verdadeira liberdade, ao menos tinha ar fresco, um espaço para estender o corpo, a visão de montanhas e os belos cavalos que Dunsany criava. Os outros cavalariços e criados, compreensivelmente, desconfiavam dele, mas deixavam-no sozinho consigo mesmo,, em respeito ao seu tamanho e aparência assustadora. Era uma vida solitária - mas ele aceitara há muito tempo o fato de que, para ele, a vida provavelmente jamais seria de outra forma.

A neve suave e macia caiu sobre Helwater e, até a visita oficial do major Grey no Natal — uma ocasião tensa e embaraçosa —, passou sem perturbar seus crescentes sentimentos de contentamento.

Muito discretamente, ele fez os arranjos que lhe foram possíveis para se comunicar comjenny e Ian nas Highlands. Com exceção das cartas esporádicas que chegavam até ele por meios indiretos, que ele lia e depois destruía por segurança, sua única lembrança de casa era o rosário de madeira que usava ao pescoço, escondido sob a camisa.

Uma dezena de vezes por dia, ele tocava na pequena cruz que repousava sobre seu coração, a cada vez evocando o rosto de alguém querido, com uma breve oração - para sua irmã, Jenny; para Ian e as crianças - seu xará, o Jovem Jamie, Maggie, Katherine Mary, pelos gêmeos Michael e Janet e pelo bebê Ian. Pelos colonos de Lallybroch, pelos homens de Ardsmuir. E sempre a primeira prece do dia, a última da noite — e muitas entre uma e outra - por Claire. Senhor, que ela possa estar em segurança. Ela e a criança.

Conforme a neve passava e o ano se iluminava com a chegada da primavera, Jamie Fraser tinha consciência de apenas uma circunstância anuviando sua existência diária - a presença de lady Geneva Dunsany

Bonita, mimada e autocrata, lady Geneva estava acostumada a conseguir o que queria, quando queria, e dane-se quem estivesse em seu caminho. Era uma boa amazona - Jamie reconhecia -, mas tão caprichosa e ferina que os cavalariços costumavam tirar na sorte para determinar quem teria a infelicidade de acompanhá-la em sua cavalgada diária.

Ultimamente, entretanto, lady Geneva andava ela mesma escolhendo seu acompanhante - Alex MacKenzie.

— Bobagem — ela dissera, quando ele alegara primeiro discrição e depois indisposição temporária, para evitar acompanhá-la à neblina erma e solitária dos sopés das montanhas acima de Helwater; um lugar onde ela estava proibida de cavalgar, por causa do terreno traiçoeiro e dos nevoeiros perigosos. - Não seja tolo. Ninguém vai nos ver. Vamos! - E chutando sua égua brutalmente nas costelas, partia antes que ele pudesse impedi-la, rindo para ele por cima do ombro.

Sua paixonite por ele era bastante óbvia para fazer os outros cavalariços sorrirem disfarçadamente e trocarem comentários em voz baixa quando ela entrava no estábulo. Ele sentia um forte impulso, quando estava em sua companhia, de dar-lhe um pontapé onde ele seria mais eficaz, mas até então limitara-se a manter um silêncio rígido quando estava em sua companhia, respondendo a todas as suas tentativas de diálogo com um grunhi-do emburrado.

Confiava em que ela, mais cedo ou mais tarde, se cansaria de seu tratamento taciturno e transferiria suas incômodas atenções para outro cava-lariço. Ou - Deus queira - logo se casaria e iria para longe tanto dele quanto de Helwater.

Era um raro dia ensolarado para Lake Country, onde a diferença entre as nuvens e o solo em geral era imperceptível. Ainda assim, nesta tarde de maio, o clima estava ameno, quente o suficiente para Jamie sentir-se confortável em tirar a camisa. Era bastante seguro ali no alto campo, sem nenhuma probabilidade de companhia além de Bess e Blossom, as duas éguas impassíveis que puxavam a carreta com o rolo compressor.

O campo era extenso e os cavalos velhos e bem treinados para a tarefa, da qual gostavam; tudo que ele precisava fazer era virar as rédeas de vez em quando, para manter seus focinhos para a frente. O rolo compressor era feito de madeira, em vez do tipo mais antigo de pedra ou metal, e construído com uma fenda estreita entre cada tábua, de modo que o interior pudesse ser enchido de estrume bem curtido. Conforme o rolo girava, o adubo vazava, deixando o pesado aparelho mais leve à medida que se esvaziava.

Jamie aprovava inteiramente essa invenção. Precisava falar a Ian sobre isso; desenhar um diagrama. Os ciganos logo chegariam; todos os cavalariços e cozinheiras estavam falando sobre isso. Talvez ele tivesse tempo de acrescentar outra parte à carta em andamento que carregava consigo, enviando o atual maço de páginas sempre que um bando de ciganos ou latoeiros nômades aparecia na fazenda. A entrega poderia demorar um mês, três ou seis, mas finalmente o pacote de informações chegaria às Highlands, passado de mão em mão, até sua irmã em Lallybroch, que pagaria uma taxa generosa pelo recebimento.

As respostas de Lallybroch vinham pela mesma rota anônima - porque, sendo um prisioneiro da Coroa, tudo que ele enviasse ou recebesse pelos carteiros teria que ser inspecionado por lorde Dunsany. Sentiu uma breve empolgação ao pensar em uma carta, mas tentou amortecê-la; poderia não haver carta alguma.

- Ooopa! - gritou, mas por hábito do que qualquer outro motivo. Bess e Blossom podiam avistar a cerca de pedras tão bem quanto ele e sabiam perfeitamente que este era o lugar onde deveriam começar a pesada mudança de direção. Bess agitou uma das orelhas e relinchou, e ele riu. - Sim, eu sei - disse-lhe, com um leve puxão na rédea. - Mas eles me pagam para dizer isso.

Iniciaram, então, o novo caminho e não havia mais nada a fazer até alcançarem a carroça fincada na extremidade oposta do campo, cheia de estrume para abastecer novamente o rolo. O sol batia em seu rosto agora e ele fechou os olhos, desfrutando a sensação de calor em seu peito e ombros nus.

O barulho alto do relincho de um cavalo sacudiu-o de sua sonolência um quarto de hora mais tarde. Abrindo os olhos, pôde ver o cavaleiro subindo a trilha que vinha do curral mais baixo, perfeitamente emoldurado entre as orelhas de Blossom. Apressadamente, ele endireitou-se no banco e enfiou a camisa pela cabeça.

Não precisa ser modesto por minha causa, MacKenzie. - A voz de Geneva Dunsany soou alta e ligeiramente ofegante, enquanto ela freava a égua, fazendo-a marchar ao lado do rolo em movimento.

- Huuum. — Ela vestia seus melhores trajes, ele viu, com um broche de quartzo na garganta, e estava mais esbaforida do que a temperatura do dia justificava.

O que está fazendo? - ela perguntou, depois de alguns instantes prosseguindo em silêncio.

Estou espalhando bosta, milady - ele respondeu sem titubear e sem olhar para ela.

Oh. - Ela continuou acompanhando-o ao longo de cerca de meia trilha, antes de se aventurar a puxar conversa novamente. — Sabia que vou me casar?

Ele sabia; todos os criados já sabiam há um mês, através de Richards, o mordomo, que estava na biblioteca, servindo, quando o pretendente veio de Derwentwater para redigir o contrato de casamento. Lady Geneva fora informada há dois dias. Segundo a criada, Betty, a notícia não fora bem recebida.

Ele contentou-se com um grunhido evasivo.

Com Ellesmere - ela disse. O rubor intensificou-se em suas faces e seus lábios comprimiram-se.

Desejo-lhe muitas felicidades, milady. - Jamie puxou levemente as rédeas quando atingiram o fim do campo. Ele já estava fora de seu banco antes de Bess fincar os cascos no chão; não pretendia de forma alguma demorar-se em conversa com lady Geneva, cujo humor parecia extremamente perigoso.

Felicidade! — ela gritou. Seus grandes olhos cinza faiscaram e ela bateu na coxa de seu traje de montaria. — Felicidade! Casada com um homem que tem idade para ser meu avô?

Jamie absteve-se de dizer que suspeitava que as perspectivas de felicidade do conde de Ellesmere eram um pouco mais limitadas do que as da jovem. Em vez disso, murmurou: "Com licença, milady", e foi para trás para desatrelar o rolo.

Ela desmontou e seguiu-o.

- É um acordo nojento entre meu pai e Ellesmere! Ele está me vendendo, é isso. Meu pai não se importa nem um pouco comigo ou jamais teria combinado esse casamento! Não acha que estou sendo injustamente usada?

Ao contrário, Jamie achava que lorde Dunsany, um pai muito dedicado, provavelmente fizera o melhor acordo possível para sua mimada filha mais velha. O conde de Ellesmere era mesmo um velho. Havia uma boa chance de que, em poucos anos, Geneva seria uma jovem viúva extremamente rica, e uma condessa ainda por cima. Por outro lado, tais considerações podiam não ter muito valor para uma moça voluntariosa — uma megera malcriada e teimosa, corrigiu-se, vendo o conjunto petulante de sua boca e olhos — de dezessete anos.

- Tenho certeza de que seu pai sempre age em seu melhor interesse, milady - respondeu impassivelmente. A diabinha não iria embora?

Não. Adotando uma expressão mais simpática, ela aproximou-se e parou ao seu lado, atrapalhando a sua tarefa de abrir a tampa do rolo para recarregá-lo.

- Mas um casamento com um velho tão ressequido? - ela disse. - Certamente, é uma crueldade do meu pai me entregar a uma criatura como essa! — Ficou na ponta do pé, examinando Jamie. — Quantos anos tem, MacKenzie?

Seu coração parou de bater por um instante.

Sou muito mais velho do que você, milady - disse com firmeza. -Com licença, milady. - Passou por ela da melhor forma possível para não tocá-la e subiu na carroça de estérco, para onde estava razoavelmente certo que ela não iria segui-lo.

Mas não está pronto para o cemitério ainda, não é, MacKenzie? -Agora, ela estava em frente a ele, cobrindo os olhos com a mão enquanto espreitava para cima. Uma brisa começara a soprar e pequenos tufos de seus cabelos castanhos flutuavam à volta de seu rosto. — Você já foi casado, MacKenzie?

Ele rangeu os dentes, dominado pela vontade de jogar uma pá de estérco sobre a cabeça de cabelos castanhos, mas se conteve e enterrou a pá no monturo, dizendo simplesmente: "Já", num tom que não admitia maiores indagações.

Lady Geneva, no entanto, não estava interessada nas sensibilidades de outras pessoas.

Ótimo - disse, satisfeita. — Então saberá o que fazer.

Fazer? — Interrompeu no meio o ato de escavar, o pé apoiado na pá.

Na cama - ela disse calmamente. - Quero que venha pra cama comigo.

No choque do momento, tudo em que ele conseguiu pensar foi na visão absurda da elegante lady Geneva, as saias por cima de seu rosto, esparramada sobre a matéria esfarelada e fétida da carroça.

Deixou a pá cair.

- Aqui? - grasnou, a voz rouca e dissonante.

Não, tolo - ela disse, impaciente. - Na cama, numa cama adequada. No meu quarto.

Você perdeu a cabeça - Jamie disse friamente, o estado de choque gradualmente se dissipando. - Ou assim eu pensaria, se você tivesse cabeça.

Seu rosto afogueou-se e os olhos estreitaram-se.

- Como ousa falar assim comigo?

- Como ousa falar assim comigo? - Jamie retrucou com raiva. – Uma menina de família fazendo propostas indecentes a um homem com o dobro de sua idade? E um cavalariço da casa de seus pais? - acrescentou, lembrando-se de quem era. Engoliu outros comentários, lembrando-se também de que esta terrível jovem era lady Geneva e ele era o cavalariço de seu pai. - Queira me desculpar, milady - ele disse, dominando sua cólera com algum esforço. - O sol está muito quente hoje e sem dúvida deixou seu juízo um pouco confuso. Acho que deve voltar para casa imediatamente e pedir à sua criada que coloque toalhas frias em sua cabeça.

Lady Geneva bateu o pé calçado com bota de couro marroquino.

-Meujuízo não está nem um pouco confuso!

Fitou-o com raiva, o queixo empinado. Seu queixo era pequeno e pontudo, assim como seus dentes, e com aquela particular expressão de determinação no rosto, ele achou que ela se parecia muito com a maldita raposa que era.

- Ouça-me — ela disse. — Não posso evitar esse casamento abominável. Mas - hesitou, depois continuou com firmeza - que o diabo me carregue se vou desperdiçar minha virgindade com um velho monstro nojento e depravado como Ellesmere!

jamie esfregou a mão pela boca. A despeito de si mesmo, sentia certa compaixão por ela. Mas que o diabo carregasse a ele se iria permitir que uma louca de saias o envolvesse em seus problemas.

Tenho perfeita noção da honra, milady - ele disse finalmente, com pesada ironia -, mas eu realmente não posso...

Pode, sim. - Seus olhos pousaram ostensivamente na frente de suas calças imundas. - Betty diz que sim.

Ele tentou falar, não conseguindo mais do que alguns grunhidos incoerentes no começo. Finalmente, respirou fundo e disse, com toda a firmeza que pôde reunir:

- Betty não tem a menor base para tirar conclusões a respeito de minha capacidade. Não coloquei nem a mão na rapariga!

Geneva riu, encantada.

- Então não a levou para a cama? Ela disse que você se recusou, mas achei que talvez ela estivesse apenas tentando evitar uma surra. Isso é bom; eu não poderia compartilhar um homem com uma criada.

Ele respirou ruidosamente. Golpear sua cabeça com a pá ou estrangulá-la infelizmente estava fora de questão. Seu temperamento inflamado aos poucos se acalmou. Ela podia ser insuportável, mas não possuía essencialmente nenhum poder. Não poderia forçá-lo a ir para sua cama.

Tenha um bom dia, milady - ele disse, o mais educadamente possível. Deu-lhe as costas e começou a trabalhar com a pá, lançando estérco dentro do rolo oco.

Se não o fizer - ela disse docemente -, contarei a meu pai que você tentou me seduzir. Ele vai tirar o couro das suas costas.

Os ombros de Jamie encolheram-se involuntariamente. Ela não poderia saber. Tomara o cuidado de nunca tirar sua camisa na frente de ninguém desde que chegara ali.

Virou-se com todo o cuidado e fitou-a. A luz do triunfo brilhava em seus olhos.

- Seu pai pode não me conhecer muito bem - ele disse -, mas certamente a conhece desde que nasceu. Conte-lhe e vá se danar!

Ela estufou-se como um galo de briga, o rosto ficando cada vez mais vermelho de raiva.

-Ah, então é assim, hein? - ela gritou. - Bem, então olhe para isto e vá você se danar! - Enfiou a mão entre os seios e retirou uma carta de várias folhas, que sacudiu embaixo do nariz dele. A caligrafia preta e firme de sua irmã era-lhe tão familiar que um mero vislumbre foi suficiente.

- Dê-me isso! -Já descera da carroça e aproximava-se dela, mas ela foi rápida demais. Já estava montada na sela antes que ele pudesse agarrá-la, dando ré com as rédeas em uma das mãos e brandindo a carta zombeteiramente com a outra.

- Você a quer, hein?

- Sim, quero! Me dê essa carta! - Ele estava tão furioso que poderia facilmente cometer um ato de violência, se pusesse as mãos nela. Infelizmente, a égua que ela montava pressentiu sua disposição e afastou-se, resfolegando e batendo as patas no chão nervosamente.

- Acho que não. - Fitou-o provocantemente, o rubor da raiva esvanecendo-se de seu rosto. - Afinal, é realmente meu dever entregar esta carta a meu pai, não é? Ele deve saber que seus criados estão enviando e recebendo correspondências clandestinas, não acha? Jenny é sua namorada?

Você leu minha carta? Cadela sem-vergonha!

Que linguagem! - ela disse, sacudindo a carta com ar de reprovação. – É meu dever ajudar meus pais, informando-os das coisas terríveis em que os criados estão metidos, não é? E eu sou uma filha obediente, submetendo-me a esse casamento sem protestar, não sou? — Inclinou-se para a frente em sua sela, sorrindo zombeteiramente. Com um novo acesso de raiva, ele compreendeu que ela estava se divertindo muito com tudo aquilo. - Acho que ele vai achar muito interessante a leitura desta carta - ela disse. - Especialmente o trecho sobre o ouro a ser enviado a Lochiel na França. Ainda é considerado traição dar apoio aos inimigos do rei? - Ela estalou a língua em sinal de reprovação e disse maliciosamente: - Que malvado.

Ele achou que iria vomitar ali mesmo, de puro terror. Ela teria a menor idéia de quantas vidas estavam naquela mão branca e manicurada? Sua irmã, Ian, seus seis filhos, todos os colonos e famílias de Lallybroch – talvez até mesmo as vidas dos agentes que carregavam mensagens e dinheiro entre a Escócia e a França, mantendo a existência precária dos exilados jacobitas.

Ele engoliu em seco, uma vez, depois outra vez, antes de falar.

Está bem - ele disse. Um sorriso mais natural irrompeu em seu rosto e compreendeu o quanto ela era jovem. Sim, bem, e a mordida de uma víbora nova era tão venenosa quanto a de uma víbora velha.

Não contarei nada a ninguém - ela afirmou-lhe, parecendo ansiosa. - Eu lhe devolverei a carta depois e jamais direi o que havia nela. Prometo.

Obrigado. - Ele tentou clarear a mente o suficiente para fazer um plano sensato. Sensato? Entrar na casa de seu patrão para desvirginar sua filha... a pedido dela? Jamais ouvira falar de uma idéia tão insensata.

Está bem — repetiu. — Devemos ser cuidadosos. — Com uma sensação de entorpecimento e horror, viu-se arrastado ao papel de conspirador com ela.

Sim. Não se preocupe, posso dar um jeito de despachar minha criada; o lacaio bebe; está sempre dormindo antes das dez horas.

Faça os preparativos, então - ele disse, o estômago revirando-se. Mas escolha um dia seguro.

- Um dia seguro? - Ela olhou-o sem compreender.

- Algum dia da semana posterior ao fim de sua menstruação - ele disse sem rodeios. - Assim, será menos provável que engravide.

- Ah. - Ela enrubesceu, mas olhou-o com um novo interesse. Fitaram-se em silêncio por um longo instante, repentinamente ligados pela perspectiva do futuro.

— Eu lhe mandarei um recado - ela disse finalmente e, fazendo o cavalo virar-se, afastou-se a galope pelo campo, os cascos da égua fazendo saltar o adubo recém-espalhado.

Xingando fluente e silenciosamente, enfiou-se sob a fileira de lariços. Não havia luar, o que era uma bênção. Seis metros de gramado aberto para atravessar numa corrida e ele viu-se enterrado até os joelhos no canteiro de aquilégias e germândreas.

Olhou para a parede lateral da casa, seu volume assomando escuro e proibitivo acima dele. Sim, lá estava a vela à janela, exatamente como dissera. Ainda assim, contou as janelas cuidadosamente, para se certificar. Que Deus o ajudasse se viesse a escolher a janela errada. Que Deus o ajudasse se fosse a janela certa também, pensou sombriamente, agarrando-se com força ao tronco da enorme trepadeira cinzenta que cobria aquele lado da casa.

As folhas farfalharam como um furacão e os caules, apesar de fortes, estalavam e envergavam de forma alarmante sob seu peso. Não havia nada a fazer, senão subir o mais rápido possível e preparar-se para lançar-se na noite se alguma das janelas fosse repentinamente aberta.

Chegou à pequena sacada ofegante, o coração disparado e molhado de suor, apesar do frio da noite. Parou por um instante, sozinho sob as débeis estrelas da primavera, para recuperar o fôlego. Usou-o para amaldiçoar Geneva Dunsany outra vez e, em seguida, abriu a porta.

Ela estava à sua espera e obviamente ouvira sua aproximação pela hera. Levantou-se da chaise-longue onde estava sentada e aproximou-se dele, o queixo empinado, os cabelos castanhos soltos pelos ombros.

Usava uma camisola branca de algum tecido lustroso, amarrada ao pescoço com um laço de seda. Não parecia uma roupa de dormir de uma jovem recatada e ele percebeu com um choque que ela estava usando o traje da noite de núpcias.

- Então você veio. - Ouviu o tom de triunfo em sua voz, mas também um leve tremor. Então ela não tinha certeza se ele viria?

— Não tive escolha - ele disse sucintamente, virando-se para fechar as portas duplas atrás de si.

- Aceita um pouco de vinho? - Esforçando-se para ser graciosa, dirigiu-se à mesa, onde havia uma garrafa e dois copos. Como conseguira aquilo?, ele perguntou-se. Ainda assim, uma bebida viria a calhar nas atuais circunstâncias. Assentiu e pegou o copo cheio de sua mão.

Examinou-a disfarçadamente enquanto bebericava. A camisola não escondia suas formas e conforme seu coração gradualmente diminuiu o compasso do pânico de sua escalada, viu seu primeiro temor - de que ele não conseguiria cumprir sua parte do acordo — apaziguar-se sem esforço consciente. Ela era de compleição delgada, quadris estreitos e seios pequenos, mas indubitavelmente uma mulher.

Uma vez terminada sua bebida, depositou o copo sobre a mesa. Não fazia sentido ficar adiando, pensou.

- A carta? - disse abruptamente.

— Depois — ela respondeu, apertando os lábios.

- Agora, ou irei embora. - Virou-se em direção à sacada, como se estivesse se preparando para executar a ameaça.

— Espere!

Ele virou-se, mas olhou-a com indisfarçável impaciência.

- Não confia em mim? - ela disse, tentando soar faceira e sedutora.

— Não — ele disse asperamente.

Ela pareceu ficar com raiva e fez um beicinho petulante, mas ele meramente continuou a olhá-la com frieza por cima do ombro, ainda de frente para a porta da sacada.

- Ah, está bem, então - ela disse finalmente, dando de ombros. Enfiando a mão sob camadas de bordados em uma caixa de costura, ela retirou a carta e atirou-a sobre a cômoda com a bacia de lavar as mãos que estava ao lado dele.

Ele apanhou-a e desdobrou as folhas para se certificar. Sentiu uma onda de raiva e de alívio ao ver o selo violado e a letra de Jenny nas folhas, nítida e vigorosa.

- E então? - A voz de Geneva interrompeu sua leitura, impaciente. — Largue isso e venha até aqui, Jamie. Estou pronta. - Ela sentou-se na cama, os braços envolvendo os joelhos.

Ele empertigou-se e lançou um olhar frio e azul sobre ela, por cima das folhas em suas mãos.

- Não me chame assim - ele disse. Ela levantou o queixo pontiagudo um pouco mais e ergueu as sobrancelhas bem-feitas.

— Por que não? É o seu nome. Sua irmã chama-o assim.

Ele hesitou por um instante, depois deliberadamente deixou a carta de lado e inclinou a cabeça para os cadarços de suas calças.

— Vou servi-la adequadamente — ele disse, olhando para seus dedos em movimento - pela minha própria honra como homem e sua como mulher. Mas - ele ergueu a cabeça e os olhos azuis apertados fitaram-na -, tendo me trazido para a sua cama por meio de ameaças contra a minha família, não permitirei que me chame pelo nome que me deram. — Permaneceu imóvel, encarando-a. Finalmente, ela assentiu com um breve movimento da cabeça e abaixou os olhos para a colcha.

Ela traçou o desenho da colcha com um dedo.

- Como devo chamá-lo, então? - perguntou-lhe finalmente, num fio de voz. — Não posso chamá-lo de MacKenzie!

Os cantos da boca de Jamie ergueram-se levemente ao olhar para ela. Parecia muito pequena, encolhida sobre si mesma, com os braços em torno dos joelhos e a cabeça baixa. Ele suspirou.

— Chame-me de Alex, então. É meu nome, também.

Ela assentiu, sem falar. Seus cabelos caíam para a frente em volta do seu rosto, mas ele pôde ver o brilho fugidio de seus olhos quando ela espiou por trás de sua cortina.

- Tudo bem - ele disse com a voz rouca. - Pode me observar. Empurrou as calças soltas para baixo, tirando as meias junto com elas. Sacudiu suas roupas e dobrou-as cuidadosamente sobre uma cadeira antes de começar a desatar a camisa, consciente de seu olhar, ainda tímido, mas agora direto. Por alguma idéia de consideração, virou-se de frente para ela antes de retirar a camisa, para poupá-la por um instante da visão de suas costas.

- Oh! - A exclamação foi baixa, mas suficiente para fazê-lo parar.

- Alguma coisa errada? — ele perguntou.

- Oh, não... quero dizer, é que eu não esperava... - Os cabelos balançaram-se para a frente outra vez, mas não antes de Jamie ver o vermelho revelador de suas faces.

- Nunca viu um homem nu antes? - ele perguntou. Os lustrosos cabelos castanhos balançaram-se para a frente e para trás.

- Nãão - ela disse, hesitante -, já vi, é que... não estava...

- Bem, normalmente não está - ele disse de forma prática, sentando-se na cama ao seu lado. - Mas se alguém pretende fazer amor, ele tem que estar, sabe.

— Sei — ela disse, ainda parecendo em dúvida. Ele tentou sorrir, para tranqüilizá-la.

- Não se preocupe. Não fica maior do que está. E não fará nada estranho, se quiser tocá-lo. - Ao menos, assim ele esperava. Estar nu e tão próximo a uma jovem seminua estava acarretando efeitos terríveis sobre seu autocontrole. Sua anatomia traiçoeira, carente, não se importava nem um pouco que ela fosse uma pequena megera chantagista e egoísta. Talvez felizmente, ela declinou de sua oferta, encolhendo-se um pouco contra a parede, embora seus olhos continuassem fixos nele. Ele esfregou o queixo, em dúvida. — O que você... quero dizer, tem alguma idéia de como isso é feito?

Seu olhar era claro e ingênuo, embora suas faces ardessem.

- Bem, como os cavalos, suponho.

Ele balançou a cabeça, mas sentiu uma pontada de dor, recordando-se de sua noite de núpcias, quando ele também achara que deveria ser como os cavalos.

- Algo assim - ele disse, clareando a garganta. - Porém mais devagar. Mais delicadamente - acrescentou, vendo seu olhar apreensivo.

— Oh. Isso é bom. A ama e as criadas costumavam contar histórias, sobre... homens e, ha, casamento, e tudo o mais... parecia um pouco assustador. - Ela engoliu com força. - V-vai doer muito?

Ergueu a cabeça de repente e olhou-o direto nos olhos.

- Não me importo se doer - disse corajosamente -, é somente que gostaria de saber o que devo esperar. - Ele sentiu uma inesperada simpatia por ela. Podia ser mimada, egoísta e irresponsável, mas ao menos tinha algum caráter. Coragem, para ele, não era uma virtude menor.

- Acho que não - ele respondeu. - Se eu for devagar e deixá-la pronta - (se ele pudesse ir devagar, seu cérebro corrigiu-o) -, acho que não será muito pior do que um beliscão. — Estendeu o braço e beliscou a pele de seu antebraço. Ela deu um salto e esfregou o lugar, mas sorriu.

- Posso agüentar isso.

— Só é assim da primeira vez — assegurou-lhe. — Da próxima vez, será melhor.

Ela balançou a cabeça e, em seguida, após um instante de hesitação, veio se arrastando em sua direção, estendendo a mão experimentalmente.

- Posso tocá-lo? - Desta vez ele realmente riu, embora logo sufocasse o barulho.

- Acho que vai ter que fazê-lo, milady, se eu tiver que fazer o que me pede.

Ela deslizou a mão suavemente pelo seu braço, tão delicada que ele sentiu cócegas e sua pele reagiu com um estremecimento. Adquirindo confiança, ela deixou a mão envolver seu antebraço, sentindo a sua espessura.

- Você é muito... grande. - Ele sorriu, mas permaneceu imóvel, deixando-a explorar seu corpo, até onde desejasse. Sentiu os músculos de sua barriga enrijecerem-se quando ela deslizou a mão por uma de suas coxas e aventurou-se hesitantemente pela curva de sua nádega. Seus dedos aproximaram-se da linha irregular e proeminente da cicatriz que percorria sua coxa esquerda de alto a baixo, mas logo pararam.

- Tudo bem - ele afirmou. - Não dói mais. - Ela não respondeu, mas correu dois dedos ao longo de toda a extensão da cicatriz, sem exercer nenhuma pressão.

As mãos exploratórias, cada vez mais ousadas, subiram pelas curvas arredondadas de seus ombros largos, desceram para as costas — e pararam subitamente. Ele fechou os olhos e esperou, seguindo seus movimentos pela mudança do peso de seu corpo no colchão. Ela passou para trás dele e ficou em silêncio. Ouviu-se um suspiro estremecido e as mãos tocaram-no de novo, delicadas em suas costas devastadas.

- E você não teve medo quando eu disse que mandaria que o açoitassem! — Sua voz soou estranhamente rouca, mas ele manteve-se quieto, os olhos fechados.

- Não - ele disse. -Já não tenho muito medo de nada. - De fato, estava começando a ter medo de que não seria capaz de manter as mãos longe dela ou tratá-la com a delicadeza necessária, quando chegasse a hora. Seus testículos doíam de desejo e ele podia sentir o batimento de seu coração, pulsando em suas têmporas.

Ela saiu da cama e parou diante dele. Ele ergueu-se repentinamente, assustando-a de tal modo que ela deu um passo para trás, mas ele a deteve, pousando as mãos em seus ombros.

- Posso tocá-la agora, milady? - As palavras eram de troça, mas não a intenção. Ela assentiu, ofegante demais para falar, e seus braços a envolveram.

Apertou-a contra o peito, sem se mover até a respiração da jovem se acalmar. Ele tinha consciência de uma extraordinária mistura de sentimentos. Nunca em sua vida tomara uma mulher nos braços sem algum sentimento de amor, mas não havia nenhum amor neste encontro, nem poderia haver, para o bem da própria rapariga. Havia uma certa ternura por sua juventude, e pena pela situação em que ela se encontrava. Raiva por ela estar manipulando-o e medo pela magnitude do crime que ele estava prestes a cometer. Mas, no geral, havia uma incrível luxúria, uma necessidade que dilacerava seus órgãos vitais e o fazia se envergonhar de sua própria masculinidade, mesmo reconhecendo seu poder. Odiando a si mesmo, abaixou a cabeça e segurou seu rosto entre as mãos.

Beijou-a delicadamente, rápido, depois mais longamente. Ela tremia contra ele quando suas mãos desfizeram o laço da camisola e a fizeram deslizar de seus ombros. Ergueu-a nos braços e a depositou sobre a cama.

Deitou-se a seu lado, aconchegando-a com um braço enquanto o outro acariciava seus seios, primeiro um depois o outro, envolvendo cada um de modo que ela sentisse o peso e o calor de sua mão.

— Um homem deve prestar homenagem ao seu corpo — ele disse suavemente, incitando cada mamilo com pequenos toques circulares. Porque você é bela e tem esse direito.

Ela soltou a respiração com um pequeno suspiro, depois relaxou sob o toque de sua mão. Ele não teve pressa, movendo-se tão devagar quanto podia, acariciando-a e beijando-a, tocando de leve em todo o seu corpo.

Não gostava da jovem. Não queria estar ali, não queria estar fazendo isso, mas... fazia mais de três anos que ele não tocava o corpo de uma mulher.

Tentou avaliar quando ela estaria realmente pronta, mas como poderia saber? Ela estava afogueada e ofegante, mas simplesmente permanecia ali deitada, como uma peça de porcelana em exibição. Maldita garota, não podia lhe dar sequer uma pista?

Passou a mão trêmula pelos cabelos, tentando aplacar a onda de emoções confusas que o percorriam a cada batida de seu coração. Estava com raiva, com medo e extremamente excitado, sentimentos que não o ajudavam muito agora. Fechou os olhos e respirou fundo, procurando se acalmar, tentando ser gentil.

Não, é claro que ela não podia lhe mostrar. Ela nunca tocara em um homem antes. Tendo o forçado até ali, ela deixava, com uma maldita, indesejável e injustificável confiança, a condução de todo o caso a seu cargo!

Continuou a acariciar a jovem, delicadamente, tocando-a entre as coxas. Ela não as abriu para ele, mas não ofereceu resistência. Estava levemente úmida. Seria agora a hora certa?

— Tudo bem — murmurou-lhe. — Fique quieta, mo chridhe. — Sussurrando o que lhe pareciam palavras tranqüilizadoras, posicionou-se delicadamente sobre ela e usou o joelho para separar suas pernas. Ele sentiu sua leve surpresa com o calor do seu corpo cobrindo-a, com o toque de seu pênis, e ele mergulhou as mãos em seus cabelos para segurá-la, ainda murmurando ternamente em gaélico.

Pensou vagamente que era bom que ele estivesse falando em gaélico, já que não estava prestando mais nenhuma atenção ao que dizia. Seus seios pequenos e firmes empurravam-se contra seu peito.

- Mo nighean — ele murmurou.

— Espere um instante — Geneva disse. — Acho que talvez...

O esforço para controlar-se deixou-o zonzo, mas prosseguiu lentamente, penetrando-a apenas superficialmente.

- Ooh! - exclamou Geneva. Seus olhos arregalaram-se.

— Uh — ele resmungou, penetrando-a um pouco mais fundo.

- Pare! É grande demais! Tire! - Em pânico, Geneva debatia-se sob ele. Imprensados sob seu peito, seus seios agitavam-se e roçavam-se nele, de modo que seus próprios mamilos eriçaram-se abruptamente numa brusca sensação.

Os esforços dela estavam conseguindo à força o que ele tentara fazer com delicadeza. Atordoado, ele lutava para mantê-la sob ele, enquanto buscava loucamente algo para dizer que pudesse acalmá-la.

- Mas... - ele começou.

- Pare!

-Eu...

- Tire isso já! - ela gritou.

Ele tampou sua boca com uma das mãos e disse a única coisa coerente que lhe ocorreu.

- Não - disse categoricamente, e avançou.

O que poderia ter sido um grito emergiu pelo meio de seus dedos como um ”lip!”. Os olhos de Geneva estavam esbugalhados, mas secos.

Perdido por um, perdido por mil. O ditado atravessou de modo absurdo a sua mente, não deixando nada em seu rastro além de uma confusão de alarmes incoerentes e um sentimento marcante de terrível urgência entre os dois. Havia exatamente uma única coisa que ele era capaz de fazer neste ponto, e ele o fez, seu corpo usurpando o controle brutalmente conforme movia-se no ritmo de sua inexorável alegria pagã.

Não precisou de mais do que algumas estocadas antes de ser dominado pela onda que desceu, agitada, pela sua espinha dorsal e eclodiu como um vagalhão arrebentando-se contra as rochas, arrastando consigo os últimos fragmentos de pensamento consciente que se agarravam, como crustáceos, aos remanescentes de sua mente.

Recobrou-se um instante depois, deitado de lado, com o barulho do seu próprio coração alto e lento em seus ouvidos. Entreabriu uma das pálpebras e viu uma cintilação de pele rósea à luz do lampião. Tinha que saber se a machucara muito, mas por Deus, não neste instante. Fechou o olho outra vez e simplesmente continuou respirando.

- Em que... você está pensando? - A voz soou hesitante e um pouco abalada, mas não histérica.

Ele próprio abalado demais para notar o absurdo da pergunta, respondeu com a verdade.

- Eu estava me perguntando por que, em nome de Deus, os homens querem se deitar com virgens.

Houve um longo momento de silêncio e, em seguida, uma respiração funda e trêmula.

- Desculpe-me - ela disse, com um fio de voz. - Não sabia que iria machucá-lo também.

Seus olhos abriram-se abruptamente de espanto e ele ergueu-se em um dos cotovelos, deparando-se com ela fitando-o como uma corça assustada. Seu rosto estava pálido e ela emudeceu os lábios secos.

- Machucar-me? - ele disse, sem compreender. - Não machucou a mim.

— Mas - ela franziu o cenho, enquanto seus olhos percorriam toda a extensão de seu corpo - pensei que machucaria. Você fez uma careta horrível, como se doesse terrivelmente, e você... você grunhiu como um...

- Sim, bem - ele interrompeu-a apressadamente, antes que ela pudesse revelar mais alguma observação pouco lisonjeira sobre seu comportamento.

- Eu não quis dizer... quero dizer... é assim que os homens reagem, quando fazem... isso - finalizou canhestramente. Seu assombro diluía-se em curiosidade.

- Todos os homens agem assim quando estão... fazendo isso?

- Como eu poderia...? - ele começou, irritado, depois parou e deu de ombros, percebendo que ele de fato sabia a resposta.

- Sim, agem - respondeu sucintamente. Aprumou-se, sentando-se na cama, e afastou os cabelos do rosto. — Os homens são terríveis animais nojentos, exatamente como sua ama lhe disse. Eu a machuquei muito?

- Acho que não - ela disse, sem muita certeza. Moveu as pernas para se certificar. — Realmente doeu, por um instante, como você disse que doeria, mas já não está tão ruim agora.

Ele soltou um suspiro de alívio ao ver que, embora ela tivesse sangrado, a mancha na toalha era pequena e ela não parecia estar sentindo dor. Ela tateou entre as coxas e fez uma careta de nojo.

— Uuh! — exclamou. — Está tudo sujo e grudento!

O sangue subiu ao rosto de Jamie, numa mistura de ultraje e vergonha.

— Tome — ele murmurou, pegando uma toalha de mão da cômoda com a bacia. Ela não a pegou, mas abriu as pernas e arqueou as costas ligeiramente, obviamente esperando que ele limpasse a sujeira. Em vez disso, ele sentiu um forte ímpeto de estrangulá-la, mas um olhar para a cômoda onde estava sua carta o impediu. Era um acordo, afinal, e ela cumprira sua parte.

Com um ar soturno, ele molhou a toalha e começou a limpá-la, mas achou a confiança com que ela se apresentava para ele estranhamente tocante. Executou seus serviços com delicadeza e viu-se, ao final, plantando um leve beijo na curva macia de sua barriga.

- Pronto.

- Obrigada - ela disse. Ela mexeu os quadris e estendeu o braço para tocá-lo. Ele não se moveu, deixando seus dedos percorrerem seu peito e brincarem com a profunda endentação de seu umbigo. O leve toque hesitante desceu.

- Você disse... que seria melhor da próxima vez - ela sussurrou.

Ele fechou os olhos e respirou fundo. Havia muito tempo até o amanhecer.

— Espero que seja — ele disse, estendendo-se de novo ao seu lado.

-Jai... ha, Alex?

Sentia-se como se estivesse drogado e teve que fazer um grande esforço para responder.

- Milady?

Os braços da jovem enlaçaram seu pescoço e ela aninhou a cabeça na curva de seu ombro, a respiração quente contra seu peito.

- Eu o amo, Alex.

Com dificuldade, ergueu-se o suficiente para afastá-la, segurando-a pelos ombros e olhando dentro de seus olhos cinza, meigos como os de uma corça.

- Não - ele disse, mas delicadamente, sacudindo a cabeça. - Esta é a terceira regra. Você não tem direito senão a uma noite. Não pode me chamar pelo meu primeiro nome. E não pode me amar.

Os olhos cinzentos umedeceram-se.

— Mas e se não depender de mim?

— Não é amor o que você sente agora. — Esperava estar certo, pelo bem da jovem e pelo seu próprio bem. - É apenas o sentimento que despertei em seu corpo. É forte e é bom, mas não é amor.

- Qual a diferença?

Ele esfregou o rosto com força. Ela iria ser uma filósofa, ele pensou ironicamente. Inspirou fundo e expirou com força antes de responder.

— Bem, o amor é por uma única pessoa. Isso, que você sente por mim, você pode sentir por qualquer homem, não é particular.

Somente uma pessoa. Afastou o pensamento de Claire com firmeza e, exausto, inclinou-se mais uma vez em seu trabalho.

Caiu pesadamente no solo do canteiro de flores, sem se preocupar por ter amassado várias plantas pequenas e delicadas. Estremeceu. Esta hora antes da aurora não só era a mais escura, mas a mais fria também, e seu corpo protestou enfaticamente por ter que levantar-se de um ninho quente e macio para aventurar-se na escuridão gelada, protegido do ar glacial apenas por uma camisa fina e calças.

Lembrou-se da curva da face rosada que se inclinou para beijar antes de partir. Suas formas continuavam em seu pensamento, quentes em suas mãos, fazendo seus dedos se curvarem com a lembrança, mesmo enquanto procurava no escuro a linha mais escura do muro de pedras do estábulo. Exausto como estava, era um terrível esforço erguer-se e pular o muro, mas não podia arriscar-se a acordar Hughes, o chefe dos cavalariços, com o rangido do portão.

Tateando, atravessou o pátio interno, entulhado de carroças e fardos de feno, prontos para a jornada de lady Geneva à casa de seu novo senhor, depois do casamento na próxima quinta-feira. Finalmente, ele empurrou a porta do estábulo e subiu a escada para seu palheiro. Deitou-se na palha gelada e cobriu-se com o único cobertor, sentindo-se inteiramente vazio.

 

De forma bastante apropriada, o tempo estava escuro e tempestuoso quando a notícia chegou a Helwater. O exercício da tarde fora cancelado, devido ao forte aguaceiro, e os cavalos estavam acomodados em suas baias embaixo. Os sons reconfortantes e tranqüilos de mastigação e relinchos elevavam-se até o palheiro em cima, onde Jamie Fraser reclinava-se em um confortável ninho forrado de feno, com um livro aberto e apoiado no peito.

Era um dos vários livros que tomara emprestado do capataz da propriedade, sr. Grieves, e estava achando a leitura absorvente, apesar da dificuldade de ler à luz fraca das fendas sob as calhas.

Meus lábios, que lancei à sua frente, de modo que ele não pudesse deixar de beijá-los, paralisaram-no, excitaram-no e encorajaram-no: e agora, voltando meus olhos para aquela parte de sua indumentária que cobria o essencial objeto de prazer, descobri claramente o intumescimento e a comoção ali. Como eu já estava muito adiantada para parar de um modo apropriado, e na verdade já não era capaz de me conter ou aguardar o progresso mais lento de sua timidez virginal, deslizei a mão entre suas coxas, sobre uma das quais pude ver e sentir um corpo rígido e duro, confinado pelas suas calças, e para o qual meus dedos não conseguiam achar o final.

- Ah, é mesmo? - Jamie murmurou com ceticismo. Ergueu uma das sobrancelhas e ajeitou-se sobre o feno. Sabia que existiam livros como este, é claro, mas... comjenny administrando a leitura em Lallybroch... nunca se deparara pessoalmente com um destes. O tipo de envolvimento mental exigido era um pouco diferente daquele solicitado por Defoe e Fielding, mas ele não era avesso ao tipo.

Seu prodigioso tamanho me fez encolher outra vez; e no entanto eu não pude, sem prazer, contemplar e mesmo me aventurar a tocar, tal comprimento, tal espessura de marfim vivo!, perfeitamente torneado e modelado; sua arrogante rigidez distendia a pele, cuja aveludada maciez e lustrosa perfeição podiam rivalizar com a mais delicada de nosso próprio sexo, e cuja extraordinária brancura era magnificamente destacada por um tufo de pêlos encaracolados e pretos ao redor da base; depois, a cabeça larga e em tom azulado, e as serpentinas azuis de suas veias, tudo compunha o mais surpreendente conjunto de formas e cores da natureza. Em resumo, impunha-se como um objeto de terror e prazer!

Jamie lançou um olhar à própria forquilha entre as pernas e deu um muxoxo, mas passou a página, o estrépito de trovões do lado de fora não merecendo mais do que um vislumbre de sua atenção. Estava tão absorto que no começo não ouviu os ruídos embaixo, sons de vozes abafadas pela queda e escoamento da chuva pesada nas tábuas a poucos metros acima de sua cabeça.

- MacKenzie! - O repetido estertor abaixo finalmente penetrou em sua consciência e ele pôs-se de pé num salto, ajeitando apressado as roupas enquanto se dirigia à escada.

— Sim? — Espichou a cabeça por cima da borda do palheiro e viu Hughes, já abrindo a boca outra vez para um novo berro.

- Ah, aí está você. - Hughes fechou a boca e chamou-o com um aceno da mão enrijecida e nodosa, contraindo-se ao fazê-lo. Hughes sofria gravemente de reumatismo no tempo úmido; fugia da tempestade refugiando-se no pequeno quarto ao lado do lugar onde eram guardados arreios e selas. Ali, mantinha uma cama e um jarro de bebida grosseiramente destilada. O cheiro da bebida era perceptível ali de cima do palheiro e tornava-se cada vez mais forte à medida que Jamie descia as escadas.

- Deve ajudar a aprontar a carruagem e conduzir lorde Dunsany e lady Isobel a Ellesmere — Hughes disse-lhe, no instante em que seus pés tocaram as lajes de pedra do assoalho do estábulo. O velho chefe dos cavalariços cambaleava de forma alarmante, sacudindo-se levemente com soluços.

- Agora? Está maluco? Ou apenas bêbado? - Olhou para a meia-porta aberta atrás de Hughes, que parecia um lençol de água corrente. Enquanto olhava, o céu iluminou-se com o clarão repentino de um raio que por um rápido instante colocou a montanha ao longe em nítido relevo. Da mesma forma repentina, ele desapareceu, deixando a imagem gravada em sua retina. Sacudiu a cabeça para apagar a imagem e viu Jeffries, o cocheiro, atravessando o pátio, a cabeça baixa contra a força do vento e da chuva, o manto bem enrolado no corpo. Então não se tratava de uma fantasia de Hughes, provocada pela bebida.

-Jeffries precisa de ajuda com os cavalos! - Hughes foi forçado a se inclinar para perto de Jamie e gritar, a fim de ser ouvido acima do barulho da tempestade. O cheiro de bebida alcoólica de má qualidade era insuportável a curta distância.

- Sim, mas por quê? Por que lorde Dunsany tem que... ah, dane-se!

- Os olhos do chefe dos cavalariços estavam embaçados e as pálpebras vermelhas; obviamente, ele não estava em condições de ser coerente. Enojado, Jamie afastou-o do caminho e subiu as escadas, dois degraus de cada vez.

Um instante para envolver-se em seu próprio manto surrado, outro instante para enfiar o livro que estava lendo embaixo do feno - os empregados do estábulo não respeitavam a propriedade alheia —, e ele já descia a escada outra vez e saía para a retumbante tempestade.

Foi uma viagem infernal. O vento uivava pelo desfiladeiro, atingindo a volumosa carruagem e ameaçando virá-la a qualquer momento. Empoleirado na boléia ao lado de Jeffries, um manto pouco protegia da chuva fustigante; menos ainda quando ele era obrigado a desmontar e colocar o ombro contra a roda para liberar a desgraçada das garras de um buraco de lama.

Ainda assim, ele mal notava a inconveniência física da viagem, preocupado como estava com as possíveis razões para isso. Não podia haver muitas questões de tamanha urgência para forçar um homem de idade como lorde Dunsany a sair de casa num dia como aquele, quanto mais enfrentar a estrada esburacada até Ellesmere. Alguma notícia chegara de Ellesmere e só poderia dizer respeito a lady Geneva ou à criança que esperava.

Sabendo pelos mexericos dos criados que lady Geneva deveria dar à luz em janeiro, contara rapidamente os meses para trás, amaldiçoara Geneva Dunsany outra vez e depois fizera uma prece apressada para que ela tivesse uma boa hora. Desde então, fizera o possível para não pensar mais nisso. Estivera com ela apenas três dias antes do casamento; não podia ter certeza.

Na semana anterior, lady Dunsany fora para Ellesmere para ficar com a filha. Desde então, enviava mensageiros diariamente para casa, para buscar as dezenas de apetrechos que ela se esquecera de levar e de que precisava com urgência, e todos eles, ao chegarem a Helwater, informaram: ”Nenhuma notícia ainda.” Agora havia notícias e obviamente não eram boas.

Passando novamente para a frente da carruagem, após a última batalha com a lama, viu o rosto de lady Isobel espreitando por baixo da película de mica que cobria a janela.

- Ah, MacKenzie! - ela disse, o rosto contraído de medo e agonia. — Por favor, ainda falta muito?

Ele aproximou-se para gritar em seu ouvido, acima do borbulhar e da precipitação das águas pelas valas que percorriam os dois lados da estrada.

—Jeffries diz que ainda faltam mais ou menos sete quilômetros, milady! Duas horas, aproximadamente. - Se a maldita carruagem não virasse e caísse da ponte Ashness, levando seus desafortunados passageiros com ela, para dentro do lago Watendlath, acrescentou silenciosamente para si mesmo.

Isobel balançou a cabeça em sinal de agradecimento e abaixou a proteção da janela, mas não antes de ele ver que seu rosto estava molhado tanto de chuva quanto de lágrimas. A víbora da ansiedade que se enrolara em seu coração deslizou mais para baixo, torcendo suas entranhas.

Já eram quase três horas da tarde quando o cocheiro finalmente entrou no pátio de Ellesmere. Sem hesitação, lorde Dunsany saltou e, mal parando para dar o braço à sua filha mais nova, correu para dentro da casa.

Foi necessário quase mais uma hora para desatrelar os cavalos, enxugálos, lavar a lama endurecida das rodas da carruagem e guardar tudo nos estábulos de Ellesmere. Entorpecidos de frio, fadiga e fome, ele e Jeffries buscaram refúgio e alimento nas cozinhas de Ellesmere.

- Coitados, estão azuis de frio - a cozinheira observou. - Sentem-se aqui e já vou lhes trazer uma comida quente. - Uma mulher de compleição delgada e pequena, rosto astuto, sua figura contradizia sua habilidade, porque em poucos minutos uma enorme e apetitosa omelete foi colocada diante deles, acompanhada de fartas porções de pão e manteiga, e um pequeno pote de geléia.

- Ótimo, muito bom -Jeffries comentou, lançando um olhar aprovador à refeição. Piscou o olho para a cozinheira. — Mas desceria melhor com um gole de alguma coisa para pavimentar o caminho, hein? Você parece do tipo que teria compaixão de uma pobre dupla de sujeitos enregelados, não é, querida?

Quer tenha sido esse exemplo de persuasão irlandesa ou a visão de suas roupas pingando e soltando vapor, o argumento fez efeito e uma garrafa de conhaque para cozinhar surgiu ao lado do moedor de pimenta. Jeffries serviu uma grande dose e bebeu-a de uma só vez, estalando os lábios ao terminar.

- Ah, assim está melhor! Tome, rapaz. - Passou a garrafa para Jamie, depois se instalou confortavelmente para uma refeição quente e mexericos com as criadas. - Bem, então, o que está acontecendo aqui? O bebê já nasceu?

- Ah, sim, ontem à noite! - a ajudante de cozinha disse ansiosamente. — Ficamos acordados a noite toda, com a chegada do médico, e lençóis e toalhas limpas sendo requisitadas a toda hora, e a casa toda em polvorosa. Mas o bebê é o de menos!

- Ora, ora - a cozinheira interrompeu a criada, franzindo a testa em tom de censura. — Há muito trabalho para você ficar aí parada de mexericos.

Ande, Mary Ann, vá ao gabinete e veja se o patrão quer mandar servir mais alguma coisa agora.

Jamie, limpando seu prato com um pedaço de pão, observou que a criada, longe de se sentir envergonhada com essa repreensão, afastou-se alegremente, fazendo-o deduzir que era provável que algo de considerável interesse estivesse prestes a ocorrer no gabinete.

Tendo obtido a atenção completa de sua platéia, a cozinheira deixou-se persuadir a revelar o mexerico com não mais do que um protesto simbólico.

- Bem, tudo começou há alguns meses, quando a gravidez de lady Geneva começou a aparecer, pobrezinha. O patrão sempre fora muito gentil com ela, desde que se casaram, nada era demais para ele, qualquer coisa que ela quisesse ele mandava vir de Lunnon, sempre perguntando se ela estava bem agasalhada, se tinha tudo que queria comer... o patrão estava caidinho por ela. Mas, depois, quando descobriu que ela estava grávida!

- A cozinheira parou para contorcer as feições num ricto de mau agouro.

Jamie queria desesperadamente saber da criança; se era menino ou menina e como estava passando. Entretanto não parecia haver nenhum jeito de apressar a mulher, de modo que ele compôs uma expressão do maior interesse possível, inclinando-se para a frente para encorajá-la.

- Nossa, a gritaria, as brigas! - disse a cozinheira, atirando as mãos para cima numa ilustração consternada. — Ele gritava, ela chorava e ambos andando furiosamente para cima e para baixo, batendo portas, ele xingando-a com palavrões dignos de uma estrebaria. Assim, eu disse a Mary Ann quando ela me contou...

- Então o lorde não estava satisfeito com a criança? -Jamie interrompeu. A omelete estava emperrada como um torrão duro em algum lugar sob seu esterno. Tomou outro gole de conhaque, na esperança de desalojá-la.

A cozinheira voltou para ele um olhar brilhante, semelhante ao de um pássaro, a sobrancelha arqueada em reconhecimento de sua inteligência.

- Bem, era de se esperar que estivesse, não é? Mas de modo algum! Longe disso — ela acrescentou com ênfase.

— Por que não? — Jeffries perguntou, apenas superficialmente interessado.

- Ele dizia - revelou a cozinheira, abaixando a voz em consideração ao teor escandaloso da informação - que a criança não era dele!

Jeffries, já bem adiantado em seu segundo copo, deu um muxoxo desdenhoso.

- Bode velho com gelatina nova? Imagino que seja bem provável, mas como o lorde podia saber com certeza de quem era o rebento? Tanto poderia ser dele quanto de qualquer um, apenas com a palavra da mulher, não é?

A boca fina da cozinheira estendeu-se num sorriso brilhante e malicioso.

- Bem, não sei como ele poderia saber de quem era, mas... há uma maneira segura de ele saber que não era dele, não é mesmo?

Jeffries olhou fixamente para a cozinheira, inclinando-se para trás em sua cadeira.

— O quê? — exclamou. — Está me dizendo que o lorde é impotente? Um largo sorriso diante de um pensamento tão interessante abriu-se em seu rosto maltratado pelas intempéries. Jamie sentiu a omelete subir e apressadamente engoliu outro trago de conhaque.

- Bem, eu é que não poderia saber, tenho certeza. - A cozinheira fez cara de santa do pau oco, depois acrescentou: - Embora a camareira realmente tenha dito que os lençóis da noite de núpcias que ela tirou da cama estavam tão brancos quanto no dia anterior, sem sombra de dúvida.

Já era demais. Interrompendo a risadinha encantada de Jeffries, Jamie depositou o copo na mesa com um baque e perguntou sem rodeios:

- A criança sobreviveu?

A cozinheira e Jeffries fitaram-no atônitos, mas a cozinheira, após um instante de perplexidade, balançou a cabeça afirmativamente em resposta.

- Ah, sim, claro. Aliás, é um garotinho belo e saudável, ou assim dizem. Pensei que já soubessem. A mãe é que está morta.

Essa afirmação brusca deixou a cozinha em silêncio. Até Jeffries ficou quieto por um instante, repentinamente sóbrio em face da morte. Em seguida, persignou-se rápido, murmurou: ”Que Deus a tenha”, e engoliu o resto do seu conhaque.

Jamie podia sentir a própria garganta queimar, se de conhaque ou lágrimas ele não sabia. Choque e pesar sufocavam-no como uma bola de fio de lã presa em seu esôfago; mal conseguiu perguntar com um grasnido:

- Quando?

- Hoje de manhã - a cozinheira disse, balançando a cabeça pesarosamente. - Pouco antes de meio-dia, pobrezinha. Durante algum tempo, acharam que ela ficaria bem, depois que o bebê nasceu; Mary Ann disse que ela sentava-se na cama, segurando o bebê e rindo. - Suspirou pesadamente diante da idéia. - Mas depois, perto do amanhecer, começou a sangrar muito outra vez. Chamaram o médico de volta e ele veio o mais rápido que pôde, mas...

A porta abriu-se com estrondo, interrompendo-a. Era Mary Ann, os olhos arregalados sob o gorro, arfando de ansiedade e esforço.

- Seu patrão precisa de vocês! - disse num jato só, os olhos dardejando de Jamie para o cocheiro e de volta. - Dos dois, imediatamente, e oh!, senhor - ela engoliu em seco, balançando a cabeça para Jeffries -, ele disse para, pelo amor de Deus, levar suas pistolas!

O cocheiro trocou um olhar consternado com Jamie, em seguida levantou-se num salto e saiu a toda a pressa em direção aos estábulos. Como a maioria dos cocheiros, ele levava um par de pistolas carregadas embaixo do banco, contra a possibilidade de assaltantes de estrada.

Jeffries levaria alguns instantes para encontrar as armas e mais tempo ainda se resolvesse verificar se o estopim não fora danificado pela umidade. Jamie levantou-se e agarrou a trêmula criada pelo braço.

— Mostre-me o gabinete — ele disse. — Agora!

O som de vozes altercadas o teria levado até lá, tão logo tivesse chegado ao topo da escada. Passando por Mary Ann sem nenhuma cerimônia, parou por um instante do lado de fora da porta, sem saber se deveria entrar imediatamente ou esperar por Jeffries.

- Como pode ter a insolência absolutamente cruel de fazer tais acusações?! — Dunsany dizia, a voz de um homem idoso tremendo de cólera e angústia. - E minha pobre filha nem esfriou na cama! Seu patife, covarde! Não vou deixar a criança ficar sequer uma noite sob seu teto!

— O pequeno bastardo fica aqui! — A voz de Ellesmere soou áspera e rouca. Teria sido claro para um observador bem menos experiente que o senhor da propriedade era de longe o pior com bebidas. — Mesmo sendo um bastardo, ele é meu herdeiro e ficará comigo! Ele foi comprado e pago e se sua mãe era uma vagabunda, ao menos ela me deu um garoto.

- Desgraçado! - A voz de Dunsany atingira um tom tão agudo de estridência que não passava de um guincho, mas a indignação que se percebia nela era evidente. - Comprado? Você... você ousa insinuar...

— Eu não insinuo. — A voz de Ellesmere continuava rouca, porém mais controlada. - Você me vendeu sua filha, e sob falsas alegações, devo acrescentar. - A voz rouca disse com sarcasmo. - Paguei trinta mil libras por uma virgem de boa família. A primeira condição não foi atendida e tomo a liberdade de duvidar da segunda. - O som de líquido sendo servido atravessou a porta, seguido pelo rangido de um copo sobre uma mesa de madeira.

— Diria que seu quinhão de bebida já foi excessivo, senhor — Dunsany disse. Sua voz tremia com um óbvio esforço para dominar suas emoções. Só posso atribuir as ignomínias que lançou sobre a pureza de minha filha ao seu evidente estado de embriaguez. Assim sendo, vou pegar meu neto e partir.

- Ah, seu neto, hein? - A voz de Ellesmere soou arrastada e desdenhosa. - Parece muito convicto da ”pureza” de sua filha. Tem certeza de que o fedelho não é seu? Ela disse...

Ele parou com um grito de surpresa, acompanhado de um barulho de queda. Sem ousar esperar mais, Jamie precipitou-se pela porta e encontrou Ellesmere e lorde Dunsany embolados sobre o tapete da lareira, rolando de um lado para o outro numa confusão de casacos, pernas e braços, ambos alheios à proximidade do fogo.

Jamie levou um instante para avaliar a situação, em seguida, aproveitando uma oportunidade, enfiou a mão no meio da refrega e ergueu seu patrão.

- Fique aí, milorde - murmurou no ouvido de Dunsany, arrastando-o para longe da figura arquejante de Ellesmere. Em seguida, disse: — Desista, velho idiota! - sibilou entre dentes, quando Dunsany continuou imprudentemente lutando para alcançar seu oponente. Ellesmere era quase da mesma idade de Dunsany, mas de compleição mais forte e obviamente com mais saúde, apesar da embriaguez.

Cambaleando, Ellesmere pôs-se de pé, os cabelos ralos desgrenhados e os olhos injetados cravados furiosamente em Dunsany. Limpou a boca salpicada de saliva com as costas da mão, os ombros robustos subindo e descendo com a respiração ofegante.

— Canalha — disse, quase em tom de conversa. — Colocar as mãos... em mim, hein? - Ainda arfando, lançou-se bruscamente para a corda da sineta.

Não havia nenhuma certeza de que lorde Dunsany ficaria onde estava, mas não havia tempo para se preocupar com isso. Jamie soltou seu patrão e lançou-se sobre a mão tateante de Ellesmere.

- Não, milorde - ele disse, da forma mais respeitosa possível. Segurando Ellesmere grosseiramente com uma gravata, forçou o corpulento lorde a recuar pela sala. - Acho que não seria... uma boa medida... envolver seus criados. - Rosnando, empurrou Ellesmere numa poltrona.

— É melhor ficar aí, milorde. — Jeffries, uma pistola em cada mão, avançou cautelosamente pelo aposento, seu olhar lançando-se de Ellesmere, que lutava para levantar-se do fundo da poltrona, para lorde Dunsany, que agarrava-se precariamente à borda de uma mesa, o rosto envelhecido branco como papel.

Jeffries olhou para Dunsany à espera de instruções e, não obtendo nenhuma, instintivamente olhou para Jamie. Jamie sentiu uma enorme irritação; por que esperavam que ele resolvesse este imbróglio? De qualquer forma, era importante que o grupo de Helwater se retirasse imediatamente do local. Adiantou-se e segurou Dunsany pelo braço.

— Vamos embora daqui agora, milorde - disse. Arrancando o desfalecente da borda da mesa, tentou conduzir o nobre idoso e alto em direção à porta. Neste exato momento da fuga, a porta foi bloqueada.

- William? — O rosto redondo de lady Dunsany, manchado com as marcas de seu sofrimento recente, evidenciou uma espécie de perplexidade obtusa diante da cena no gabinete. Em seus braços, havia o que parecia ser uma trouxa grande e desfeita de roupa para lavar. Ergueu-a num movimento de vaga interrogação. - A criada disse que você queria que eu trouxesse o bebê. O que... - Um rugido de Ellesmere interrompeu-a. Indiferente às pistolas apontadas para ele, o conde saltou de sua poltrona e, com um empurrão, afastou o apalermado Jeffries do caminho.

— Ele é meu! — Atirando lady Dunsany bruscamente contra a parede, Ellesmere arrancou a trouxa de seus braços. Segurando-a contra o peito, o conde recuou em direção à janela. Olhou furiosamente para Dunsany, arquejando como uma fera acuada. - Meu, entendeu?

A trouxa emitiu um gritinho agudo, como se protestasse contra essa afirmação, e Dunsany, despertado do seu estado de choque pela visão de seu neto nos braços de Ellesmere, lançou-se para a frente, as feições contorcidas de cólera.

— Me dê o menino!

- Vá para o inferno, velho ridículo! - Com uma insuspeita agilidade, Ellesmere desviou-se de Dunsany. Puxou as cortinas e abriu uma fresta da janela girando a manivela com uma das mãos, enquanto agarrava a chorosa criança com a outra.

- Saia já da minha casa! - Ofegava, arquejando a cada volta da manivela que alargava a abertura da janela. - Vá! Agora, ou jogarei o bastardo, eu juro! — Para enfatizar sua ameaça, empurrou a trouxa agora aos berros em direção ao parapeito e à escuridão vazia onde as pedras molhadas do pátio esperavam, dez metros abaixo.

Sem qualquer pensamento consciente ou temor das conseqüências, Jamie Fraser agiu segundo o instinto que já o conduzira por dezenas de batalhas. Arrancou uma das pistolas do paralisado Jeffries, girou nos calcanhares e atirou simultaneamente.

O estrondo do tiro emudeceu todos no aposento. Até a criança parou de berrar. O rosto de Ellesmere ficou lívido, as espessas sobrancelhas erguidas inquisitivamente. Em seguida, cambaleou, e Jamie arremeteu-se para a frente, notando com uma espécie de distante clareza o pequeno buraco redondo na coberta solta do bebê, onde a bala da pistola a atravessara.

Estancou de repente, então, paralisado no tapete da lareira, alheio ao fogo que queimava a parte de trás de suas pernas, ao corpo ainda arfante de Ellesmere a seus pés, aos gritos histéricos e regulares de lady Dunsany, perfurantes como os de um pavão. Ficou parado, os olhos cerrados com força, tremendo como uma folha, incapaz de se mover ou pensar, os braços envolvendo com força a trouxa amorfa, que se contorcia e berrava, contendo seu filho.

- Quero falar com MacKenzie. A sós.

Lady Dunsany parecia completamente deslocada no estábulo. Pequena, gorda e impecavelmente vestida de linho preto, parecia um bibelô chinês, retirada de seu lugar seguro no consolo da lareira e em perigo constante e iminente de se quebrar, ali naquele mundo de animais rudes e homens brutos.

Hughes, com um olhar de absoluta perplexidade para sua patroa, fez uma mesura e ajeitou os cabelos para trás antes de se retirar para seu quarto atrás da sala de arreios, deixando MacKenzie cara a cara com ela.

De perto, a impressão de fragilidade era acentuada pela palidez de seu rosto, ligeiramente rosado nos cantos do nariz e nos olhos. Ela parecia uma coelhinha muito digna, vestida de luto. Jamie achou que devia convidá-la a sentar-se, mas não havia nenhum lugar para ela sentar-se, a não ser um fardo de feno ou um carrinho de mão virado para baixo.

- A corte judicial reuniu-se hoje de manhã, MacKenzie - ela disse.

— Sim, milady. — Ele sabia, todos sabiam, e mantiveram-se longe dele durante toda a manhã. Não por respeito; por medo de alguém que sofre de uma doença mortal. Jeffries sabia o que acontecera em Ellesmere e isso significava que todos os empregados também sabiam. Mas ninguém comentou o ocorrido.

- O veredicto da corte foi que o conde de Ellesmere morreu por acidente. A teoria do investigador é que o conde estava... perturbado - fez uma leve careta de repugnância — com a morte de minha filha. — Sua voz tremeu ligeiramente, mas ela não se interrompeu. A frágil lady Dunsany havia suportado a tragédia muito melhor do que seu marido; os boatos entre os criados diziam que lorde Dunsany não se levantara da cama desde que voltara de Ellesmere.

- Sim, milady? - Jeffries fora chamado para testemunhar. MacKenzie, não. No que dizia respeito ao tribunal, o cavalariço MacKenzie nunca colocara os pés em Ellesmere.

Os olhos de lady Dunsany fitaram os dele diretamente. Eram claros, verde-azulados, como os de sua filha Isobel, mas os brilhantes cabelos louros de Isobel estavam desbotados em sua mãe, mesclados de fios grisalhos como prata ao sol que penetrava pela porta aberta do estábulo.

- Nós somos muito gratos a você, MacKenzie - ela disse brandamente.

- Obrigado, milady.

- Muito gratos - ela repetiu, ainda fitando-o intensamente. - MacKenzie não é seu verdadeiro nome, não é? - ela disse de repente.

- Não, milady. - Um calafrio percorreu sua espinha, apesar do calor do sol da tarde em seus ombros. Quanto lady Geneva contara a sua mãe antes de morrer?

Ela pareceu perceber sua reação, pois o canto de sua boca ergueu-se no que ele acreditou ser um sorriso tranqüilizador.

— Acho que eu não preciso perguntar qual é o verdadeiro ainda — ela disse. - Mas, na verdade, tenho uma pergunta para você. MacKenzie... você quer voltar para casa?

— Para casa? — Ele repetiu a palavra sem compreender.

— Para a Escócia. — Observava-o intensamente. — Sei quem você é — ela disse. - Não o seu nome, mas que você é um dos prisioneiros jacobitas de John. Meu marido me contou.

Jamie observou-a cautelosamente, mas ela não parecia transtornada; ao menos, não mais do que seria natural numa mulher que acabara de perder uma filha e de ganhar um neto.

- Espero que perdoe a fraude, milady - ele disse. - Lorde...

- Quis me poupar da preocupação - lady Dunsany terminou a frase para ele. - Sim, eu sei. William se preocupa demais. - Ainda assim, o sulco fundo entre suas sobrancelhas relaxou um pouco à idéia da preocupação de seu marido. O fato, com a prova subjacente de devoção conjugal, o fez sentir uma súbita e inesperada pontada de dor.

- Não somos ricos... deve ter compreendido isso pelas observações de Ellesmere - lady Dunsany continuou. - Helwater está profundamente afundada em dívidas. Meu neto, entretanto, agora é dono de uma das maiores fortunas do condado.

Não parecia haver nada a dizer além de: ”Sim, milady?”, embora o fizesse parecer o papagaio que vivia no salão principal. Ele o vira quando se infiltrara furtivamente pelos canteiros de flores ao pôr-do-sol do dia anterior, aproveitando a chance de se aproximar da casa enquanto a família se aprontava para o jantar, numa tentativa de ver de relance o novo conde de Ellesmere pela janela.

- Estamos muito retirados aqui - ela continuou. - Raramente visitamos Londres e meu marido tem pouca influência nas altas rodas. Mas...

- Sim, milady? - Agora, tinha uma noção do que lady Dunsany queria dizer com sua conversa indireta e uma repentina sensação de júbilo criou um vazio sob suas costelas.

— John... quer dizer, lorde John Grey... vem de uma família muito influente. Seu padrasto é... bem, isso não vem ao caso. — Deu de ombros, os pequenos ombros em linho preto descartando os detalhes. — A questão é que talvez seja possível exercer suficiente influência no seu interesse para que seja liberado das condições de seu livramento condicional, de modo que possa retornar à Escócia. Assim, vim lhe perguntar: quer voltar para casa, MacKenzie?

Ele perdeu a respiração, como se alguém tivesse dado um soco forte na boca do seu estômago.

Escócia. Ir embora desta região úmida, pantanosa, colocar os pés naquela estrada proibida e caminhar em liberdade, com passos largos e firmes, subindo as escarpas e percorrendo as trilhas de veado, sentir o ar cada vez mais puro e impregnado do aroma de tojos e urzes. Voltar para casa!

Não ser mais um estranho. Deixar para trás a hostilidade e a solidão, chegar a Lallybroch e ver o rosto de sua irmã iluminar-se de alegria ao avistá-lo, sentir seus braços em torno de sua cintura, o abraço de Ian em torno de seus ombros e as mãos das crianças, agarrando-o, puxando-o pelas roupas.

Ir embora, e nunca mais ver ou ouvir seu próprio filho. Olhou fixamente para lady Dunsany, o rosto impassível, indecifrável, de modo que ela não percebesse o turbilhão de emoções que a sua oferta desencadeara em seu íntimo.

Ele havia, finalmente, descoberto o bebê ontem, dormindo num cesto perto da janela de um quarto no segundo andar. Precariamente empoleirado num galho de um enorme abeto norueguês, ele estreitara os olhos para ver melhor através da cortina de agulhas de abeto que o ocultavam.

O rosto da criança só era visível de perfil, uma bochecha gorducha descansando sobre o ombro coberto de babados. A touca se deslocara para o lado, de modo que ele pôde ver a curva lisa do minúsculo crânio, coberto com uma leve penugem louro-clara.

”Graças a Deus que não é ruivo”, fora seu primeiro pensamento, persignando-se em seguida num agradecimento.

”Meu Deus, ele é tão pequeno!”, foi seu segundo pensamento, associado a uma intensa necessidade de entrar pela janela e pegar o bebê no colo. A cabeça lisa, tão bem torneada, caberia perfeitamente na palma de sua mão. Pôde sentir, na lembrança, o corpinho agitado que ele segurara por tão pouco tempo junto ao coração.

- Você é um garoto forte - ele murmurara. - Forte, corajoso e bonito. Mas, por Deus, como você é pequeno!

Lady Dunsany aguardava pacientemente. Ele inclinou a cabeça respeitosamente, sem saber se estava cometendo um terrível erro, mas incapaz de agir de outra forma.

— Agradeço-lhe, milady, mas... acho que não devo ir... por enquanto. Uma sobrancelha clara estremeceu levemente, mas ela inclinou a cabeça para ele com igual deferência.

— Como quiser, MacKenzie. Só tem que pedir.

Virou-se como uma minúscula figura de relógio e se afastou, voltando ao mundo de Helwater, agora mil vezes mais uma prisão para ele do que jamais fora.

Willie

 

Para sua enorme surpresa, os anos seguintes foram sob muitos aspectos os mais felizes da vida de Jamie Fraser, a não ser pelo período de seu casamento.

Livre da responsabilidade por colonos, partidários ou qualquer pessoa além de si mesmo e dos cavalos a seu cargo, a vida era relativamente simples. Embora a corte judicial não tivesse tomado conhecimento de sua existência, Jeffries deixara escapar o suficiente sobre a morte de Ellesmere para que os demais criados o tratassem com um respeito distante, mas não contassem demasiado com sua presença.

Tinha o suficiente para comer, roupas suficientes para se manter aquecido e dignamente vestido, e de vez em quando uma carta discreta das Highlands assegurava-lhe que lá prevaleciam as mesmas condições.

Um benefício inesperado da vida tranqüila em Helwater era o fato de que, de certa forma, retomara sua estranha amizade com lorde John Grey. O major, como prometido, vinha a Helwater uma vez a cada três meses, sempre permanecendo por alguns dias em visita aos Dunsany. Não fizera, entretanto, nenhuma tentativa de humilhá-lo ou mesmo de falar com Jamie, além de algumas perguntas estritamente formais

Aos poucos, Jamie compreendera tudo que lady Dunsany deixara implícito, em sua oferta de libertá-lo. ”John... quer dizer, lorde John Grey... vem de uma família muito influente. Seu padrasto é... bem, isso não vem ao caso”, ela dissera Mas vinha, sim, ao caso. Não fora a vontade de Sua Majestade que o trouxera para Helwater, em vez de condená-lo à perigosa travessia do oceano e à semi-escravidão na América, fora a influência de John Grey.

E não o fizera por vingança ou razões indecentes, pois nunca se vangloriara, nunca fizera propostas; nunca dissera nada além de palavras comuns de civilidade. Não, ele levara Jamie para Helwater porque foi o melhor que pôde conseguir; incapaz de simplesmente libertá-lo na ocasião, Grey fizera o melhor possível para facilitar as condições do cativeiro — proporcionando-lhe ar, luz e cavalos.

Foi preciso um esforço extra, mas ele o fez. Na vez seguinte em que John Grey apareceu no pátio do estábulo em sua visita trimestral, Jamie esperou até que o major estivesse sozinho, admirando a conformação de um enorme alazão castrado. Aproximou-se de Grey, apoiando-se na cerca. Observaram o cavalo em silêncio por alguns minutos.

- Peão do rei para rei quatro - Jamie disse serenamente por fim, sem olhar para o homem a seu lado.

Sentiu o sobressalto de surpresa de Grey e seus olhos sobre ele, mas não virou a cabeça. Em seguida, sentiu o estalido da madeira sob seu braço quando Grey virou-se, apoiando-se na cerca outra vez.

- Cavalo da rainha para rainha bispo três - Grey retrucou, a voz um pouco mais rouca do que o normal.

Desde então, Grey ia ao estábulo a cada visita, para passar algumas horas da noite sentado no tosco banco de Jamie, conversando. Não tinham nenhum tabuleiro de xadrez e raramente jogavam verbalmente, mas as conversas até altas horas da noite continuaram — a única conexão de Jamie com o mundo fora de Helwater e um pequeno prazer que ambos aguardavam com agradável expectativa a cada trimestre.

Acima de tudo, ele tinha Willie. Helwater era dedicada a cavalos; antes mesmo que o garoto pudesse ficar em pé com firmeza, seu avô já o colocava em cima de um pônei, a ser puxado lentamente em volta do curral. Quando Willie fez três anos, já andava a cavalo sozinho - sob o olhar cuidadoso de MacKenzie, o cavalariço.

Willie era um garoto forte, corajoso e belo. Possuía um sorriso deslumbrante e era capaz de encantar os pássaros das árvores se assim desejasse. Era também extremamente mimado. Como o nono conde de Ellesmere e o único herdeiro tanto de Ellesmere quanto de Helwater, sem mãe nem pai para mantê-lo sob controle, ele era malcriado com seus indulgentes avós, sua jovem tia e com todos os criados do lugar - exceto MacKenzie.

E isso por milagre. Até então, ameaças de não permitir que o garoto o ajudasse com os cavalos haviam sido suficientes para reprimir os piores excessos de Willie nos estábulos, porém mais cedo ou mais tarde, apenas as ameaças não seriam mais suficientes e MacKenzie, o cavalariço, viu-se imaginando o que iria acontecer quando ele finalmente perdesse o próprio controle e desse um tapa no diabinho.

Quando garoto, ele próprio teria sido surrado até perder os sentidos pelo parente masculino mais próximo, caso tivesse a ousadia de se dirigir a uma mulher do modo como ouvia Willie falar com sua tia e com as criadas. A tentação de arrastar Willie até uma baia vazia e tentar corrigir seus modos era cada vez mais freqüente.

Assim, na maior parte, ele tinha apenas alegrias com Willie. O garoto adorava MacKenzie e, conforme crescia, passava horas em sua companhia, montado nos enormes cavalos de tração que puxavam o pesado rolo pelos campos altos e precariamente empoleirado nas carroças de feno quando desciam dos pastos de cima, no verão.

Entretanto havia uma ameaça a essa tranqüila existência, que crescia a cada mês. Ironicamente, a ameaça vinha do próprio Willie e não havia nada que ele pudesse fazer.

- Que rapazinho bonito ele é! É um cavaleiro esplêndido! - Foi lady Grozier quem falou, de pé na varanda com lady Dunsany, para admirar as peregrinações de Willie em seu pônei ao redor das bordas do gramado.

A avó de Willie riu, olhando amorosamente para o menino.

- Ah, sim. Ele adora seu pônei. Temos dificuldade até em fazê-lo entrar para as refeições. E ele adora o cavalariço. Às vezes, brincamos que ele passa tanto tempo com MacKenzie que está começando a se parecer com MacKenzie!

Lady Grozier, que obviamente não prestara nenhuma atenção a um cavalariço, olhou na direção de MacKenzie.

— Ora, você tem razão! — ela exclamou, achando graça. — Veja só... Willie tem a mesma maneira de inclinar a cabeça e de colocar os ombros! Que engraçado!

Jamie inclinou-se respeitosamente para as damas, mas sentiu um suor frio porejar em seu rosto.

Já antevira essa situação, mas não quis acreditar que a semelhança fosse tão pronunciada a ponto de ser visível para qualquer outra pessoa além dele mesmo. Willie, quando bebê, era roliço e com bochechas rechonchudas, não se parecia com ninguém. Mas, à medida que fora crescendo, o aspecto rechonchudo desaparecera de suas faces e do queixo e, embora seu nariz ainda fosse macio e arrebitado como era próprio das crianças, a sugestão de maçãs do rosto altas e pronunciadas era evidente. Além disso, os olhos acinzentados característicos dos bebês haviam dado lugar a olhos claros e límpidos, azul-escuros, ligeiramente puxados e espessamente emoldurados por pestanas cor de ferrugem.

Depois que as senhoras entraram na casa e ele assegurou-se de que não havia ninguém observando, Jamie passou a mão furtivamente pelas próprias feições. A semelhança seria realmente assim tão grande? Os cabelos de Willie eram de um castanho-claro e suave, apenas com uma nuance do brilho dourado dos cabelos de sua mãe. E aquelas orelhas grandes, translúcidas? As suas certamente não eram assim para fora?

O problema é que Jamie Fraser na verdade não se via claramente há alguns anos. Cavalariços não possuíam espelhos e ele diligentemente evitava a companhia das criadas, que poderiam ter lhe fornecido um.

Dirigindo-se ao cocho de água, inclinou-se sobre ele, disfarçadamente, como se inspecionasse um dos insetos que patinavam na superfície. Sob o espelho ondulante, pontilhado de fragmentos flutuantes de feno e crivado de perturbações causadas pelos insetos, seu próprio rosto fitava-o intensamente.

Engoliu em seco e viu o reflexo de sua garganta se mover. Não era uma semelhança absoluta, mas sem dúvida estava lá. Mais na postura da cabeça e dos ombros, como lady Grozier ressaltara, mas sem dúvida alguma também nos olhos. Os olhos dos Fraser; seu pai, Brian, possuía aqueles olhos, assim como sua irmã, Jenny, também. Quando os ossos do menino despontassem sob a pele, quando o nariz arrebitado de criança se tornasse longo e reto e as maçãs do rosto ainda mais proeminentes — todos seriam capazes de notar.

O reflexo no cocho desapareceu quando ele se endireitou. Ficou parado, fitando cegamente o estábulo que fora seu lar nos últimos anos. Era julho e o sol estava quente, mas não alterou a friagem que entorpecia seus dedos e fazia um calafrio percorrer sua espinha.

Chegara a hora de falar com lady Dunsany.

Em meados de setembro, tudo já fora arranjado. O perdão fora obtido; John Grey o trouxera no dia anterior. Jamie havia economizado um pouco de dinheiro, suficiente para as despesas de viagem, e lady Dunsany dera-lhe um bom cavalo. Restava apenas dizer adeus a seus conhecidos em Helwater - e a Willie.

— Partirei amanhã. — Jamie falou de modo pragmático, sem tirar os olhos do machinho da égua baia. O calo que ele estava desbastando desfezse, deixando um pó de aparas pretas no chão do estábulo.

— Aonde você vai? A Derwentwater? Posso ir com você? — William, visconde de Dunsany, nono conde de Ellesmere, saltou da borda do boxe, aterrissando com um baque surdo que fez com que a égua se assustasse e relinchasse.

- Não faça isso -Jamie disse automaticamente. -Já não lhe disse para mover-se com cuidado perto de Milly? Ela está arisca.

- Por quê?

- Você também não ficaria, se eu apertasse seu joelho? - Estendeu a mão enorme e beliscou o músculo logo acima do joelho do menino. Willie deu um gritinho e um salto para trás, rindo.

— Posso andar na Millyflower quando você terminar, Mac?

- Não - Jamie respondeu pacientemente, pela duodécima vez naquele dia. -Já lhe disse mil vezes, ela ainda é grande demais para você.

— Mas eu quero andar nela!

Jamie suspirou, mas não respondeu. Em vez disso, deu a volta para o outro lado de Milles Fleurs e pegou o casco esquerdo.

— Eu já disse que quero andar na Milly!

— Eu ouvi.

— Então, sele ela para mim! Agora mesmo!

O nono conde de Ellesmere empinou o queixo o máximo que pôde, mas a expressão desafiadora em seus olhos moderou-se com uma certa dúvida ao perceber o frio olhar azul de Jamie. Jamie pousou o casco da égua lentamente no chão, endireitou-se igualmente devagar e, erguendo-se em toda a sua altura de quase dois metros, colocou as mãos na cintura, abaixou os olhos para o conde, de pouco mais de um metro, e disse, com a voz muito baixa e branda.

- Não.

- Sim! - William bateu o pé no chão coberto de feno. - Você tem que fazer o que eu lhe digo!

- Não, não tenho.

- Tem, sim!

- Não, eu... - Sacudindo a cabeça com força suficiente para fazer seus cabelos ruivos voarem de um lado para outro, Jamie pressionou os lábios com força, depois se agachou em frente ao garoto. - Olhe aqui - disse -, eu não tenho que fazer o que você diz, porque não vou mais ser cavalariço aqui. Já lhe disse, vou embora amanhã.

O rosto de Willie ficou totalmente pálido com o choque e as sardas em seu nariz destacaram-se contra a pele branca.

— Não pode! — ele disse. — Não pode ir embora.

- É preciso.

— Não! — O pequeno conde cerrou o maxilar, o que lhe dava uma semelhança verdadeiramente surpreendente com seu bisavô paterno. Jamie agradeceu à sua boa estrela o fato de ninguém em Helwater jamais ter visto Simon Fraser, lorde Lovat. — Eu não vou deixar você partir!

- Desta vez, milorde, não há nada que possa fazer - Jamie retrucou com firmeza, sua tristeza por partir amenizada em parte por finalmente poder falar abertamente ao garoto.

- Se você for embora... - Willie olhou ao redor em busca de uma ameaça e viu uma bem à mão. — Se você for embora — repetiu com mais confiança -, vou gritar, berrar e assustar todos os cavalos!

— Dê um pio, diabinho, e eu lhe dou um sopapo no pé do ouvido! — Livre de sua reserva habitual e alarmado com a idéia de que aquele fedelho mimado pudesse assustar os cavalos valiosos e altamente sensíveis, Jamie olhou furiosamente para o garoto.

Os olhos do conde esbugalharam-se e seu rosto ficou roxo de raiva. Ele respirou fundo, depois girou nos calcanhares e correu por todo o comprimento do estábulo, berrando e agitando os braços.

Milles Fleurs, já nervosa por estarem mexendo em seus cascos, ergueu-se nas patas traseiras e depois se precipitou para a frente, relinchando de forma assustadora. Sua agitação foi seguida de coices e relinchos agudos das baias próximas, onde Willie urrava todos os palavrões que conhecia e não eram poucos - chutando freneticamente as portas dos boxes.

Jamie conseguiu agarrar a corda-guia de Milles Fleurs e, com considerável esforço, levou a égua para fora sem danos para ele ou para o animal. Amarrou-a na cerca do curral e voltou a passos largos e pesados para o estábulo, a fim de acertar as contas com Willie.

— Droga, droga, droga! — o conde berrava. — Porco! Merda! Filho-damãe!

Sem uma palavra, Jamie agarrou o garoto pela gola, levantou-o do chão e carregou-o, esperneando e debatendo-se, para o banco de ferrador de cavalos que estivera usando. Sentou-se no banquinho, colocou o conde sobre o joelho e deu cinco ou seis palmadas em suas nádegas, com força. Depois, levantou o menino com um safanão e colocou-o de pé.

— Eu te odeio! — O rosto sujo de lágrimas do conde estava vivamente vermelho e seus punhos cerrados tremiam de raiva.

— Bem, eu também não gosto muito de você, seu filho-da-mãe! — Jamie retrucou.

Willie empertigou-se, os punhos cerrados, as faces roxas.

- Eu não sou um filho-da-mãe! Não sou um bastardo! - gritou com voz aguda. - Não sou! Não sou! Retire o que disse! Ninguém pode me dizer isso! Retire, já disse!

Jamie olhou para o garoto em estado de choque. Então realmente havia boatos, e Willie já os ouvira. Ele adiara demais a sua partida.

Respirou fundo uma, duas vezes, e torceu para que sua voz não tremesse.

- Eu retiro o que disse - falou suavemente. - Eu não deveria ter usado essa palavra, milorde.

Ele teve vontade de se ajoelhar e abraçar o menino, ou pegá-lo no colo e consolá-lo contra seu ombro - mas esse não era um gesto próprio de um cavalariço em relação a um conde, ainda que criança. A palma de sua mão esquerda formigava e ele fechou os dedos com força sobre o único carinho paternal que provavelmente ele jamais daria a seu filho.

Willie sabia como um conde devia se comportar; estava fazendo um esforço descomunal para conter as lágrimas, fungando ferozmente e limpando o rosto com a manga da camisa.

— Permita-me, milorde. —Jamie de fato ajoelhou-se e limpou o rosto do menino delicadamente com seu próprio lenço rústico. Os olhos de Willie fitaram-no por cima das dobras do lenço de algodão, vermelhos e aflitos

— Você tem mesmo que ir, Mac? — ele perguntou, com uma voz quase inaudível.

- Tenho, sim. - Fitou os olhos azul-escuros e de repente deixou de lado o que era apropriado ou quem poderia vê-lo. Puxou o menino para junto de si, abraçando-o com força contra o coração, segurando a cabecinha junto a seu ombro, para que Willie não visse as rápidas lágrimas que caíram em seus cabelos macios e espessos.

Os braços de Willie envolveram seu pescoço e agarraram-se a ele. Podia sentir o corpo pequeno e vigoroso sacudir-se contra o seu, com a força dos soluços reprimidos. Bateu de leve nas costas pequeninas e alisou os cabelos de Willie, murmurando doces palavras em gaélico, que ele esperava que o menino não compreendesse.

Por fim, tirou os bracinhos de seu pescoço e delicadamente o afastou.

- Venha comigo ao meu quarto, Willie. Quero lhe dar uma coisa para você guardar.

Há muito tempo ele se mudara do palheiro, passando a ocupar o quartinho de Hughes ao lado da sala de arreios depois que o idoso chefe dos cavalariços se aposentou. Era um cômodo pequeno e parcamente mobiliado, mas possuía as virtudes do calor humano e da privacidade

Além da cama, do banco e de uma banqueta do urinol, havia uma mesinha, sobre a qual viam-se alguns livros que lhe pertenciam, uma vela grande num castiçal de cerâmica e uma vela menor, grossa e gasta, em frente a uma pequena imagem da Virgem Maria. Era uma escultura barata, de madeira, que Jenny lhe enviara, mas fora feita na França e com um talento artístico considerável.

- Para que serve esta vela? - Willie perguntou. - A vovó diz que somente os malditos papistas queimam velas em frente a imagens pagãs.

- Bem, eu sou um maldito papista -Jamie disse, com um trejeito irônico da boca. - Mas não é uma imagem pagã; é a estátua da Mãe de Deus.

- Você é? - Obviamente essa revelação serviu apenas para aumentar o fascínio do garoto. - Por que os papistas acendem velas diante de estátuas?

Jamie passou a mão pelos cabelos.

— Sim, bem. E... talvez uma maneira de rezar., e de se lembrar. Você acende a vela, faz uma prece e pensa nas pessoas que são importantes para você. E enquanto ela queimar, a chama lembra deles por você.

- De quem você se lembra? - Willie ergueu os olhos para ele. Seus cabelos estavam arrepiados, desgrenhados pela comoção anterior, mas seus olhos azuis estavam límpidos e interessados.

- Ah, de muita gente. Minha família nas Highlands, minha irmã e sua família. Amigos. Minha mulher. - E às vezes a vela queimava em memória de uma mulher, jovem e imprudente, chamada Geneva, mas ele não disse isso.

Willie franziu a testa.

— Você não tem uma mulher.

— Não. Não tenho mais. Mas sempre me lembro dela.

Willie estendeu um dedo rechonchudo e cautelosamente tocou a pequena estátua. Os braços da Virgem estavam abertos, um ar terno e maternal gravado em suas belas feições.

- Eu também quero ser um maldito papista - Willie disse com firmeza.

— Não pode! — Jamie exclamou, em parte achando graça e em parte enternecido com a idéia. - Sua avó e sua tia enlouqueceriam.

- Elas soltariam espuma pela boca como aquela raposa louca que você matou? - Willie perguntou, de repente animado.

- Eu não me admiraria -Jamie disse secamente.

— Quero fazer isso! — As feições pequenas, claras, estavam determinadas. - Não contarei à vovó nem à tia Isobel; não contarei a ninguém. Por favor, Mac! Por favor, deixe! Quero ser igual a você!

Jamie hesitou, tanto enternecido com a ansiedade do menino como subitamente desejoso de deixar seu filho com algo mais do que o cavalo de madeira que ele esculpira para dar a ele como presente de despedida. Tentou se lembrar do que o padre McMurtry lhe ensinara na escola a respeito do batismo. Uma pessoa laica poderia batizar, lembrou, desde que a situação fosse de emergência e não houvesse nenhum padre por perto.

Seria um exagero dizer que a presente situação era uma emergência, mas... um impulso repentino o fez pegar o jarro de água que mantinha no peitoril da janela.

Os olhos tão parecidos com os seus observavam, arregalados e solenes, enquanto ele cuidadosamente alisava os macios cabelos castanho-claros para trás, afastando-os da fronte. Mergulhou três dedos na água e de leve traçou uma cruz na testa do menino.

- Eu o batizo William James - disse suavemente -, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.

Willie piscou, meio vesgo por causa de uma gota de água que escorreu pelo seu nariz. Colocou a língua para fora para pegá-la e Jamie riu, a despeito de si mesmo.

— Por que me chamou de William James? — Willie perguntou com curiosidade. - Meus outros nomes são Clarence Henry George. - Fez uma careta; não achava que Clarence fosse um bom nome.

Jamie ocultou um sorriso.

- Você recebe um novo nome quando é batizado. James é seu nome papista especial. É o meu também.

- É mesmo? - Willie ficou encantado. - Sou um maldito papista agora, como você?

- Sim, até onde eu possa garantir, pelo menos - Sorriu para Willie e, movido por novo impulso, enfiou a mão por baixo da gola de sua camisa.

- Tome. Guarde isto também, para se lembrar de mim. - Passou o rosário de contas de madeira delicadamente pela cabeça de Willie. - Mas não pode deixar que ninguém veja isto - avisou. - E pelo amor de Deus, não diga a ninguém que você é um papista

- Não vou dizer - Willie prometeu - A ninguém. - Enfiou o rosário para dentro da camisa, batendo de leve para se certificar de que estava escondido

- Ótimo - Jamie estendeu a mão e despenteou ainda mais os cabelos de Willie, despachando-o. -Já está quase na hora do seu chá; é melhor você voltar para casa agora.

Willie começou a se dirigir para a porta, mas parou no meio do caminho, repentinamente aflito outra vez, com uma das mãos aberta sobre o peito.

- Você disse para eu guardar isto para me lembrar de você Mas eu não tenho nada para você se lembrar de mim!

Jamie esboçou um sorriso. Seu coração estava tão apertado que ele achou que não iria conseguir respirar para poder falar, mas obrigou as palavras a serem pronunciadas.

- Não se preocupe - disse. - Eu me lembrarei de você.

 

Brianna piscou, ajeitando para trás uma brilhante mecha de cabelo embaralhada pelo vento.

- Já havia quase me esquecido de como era o sol - ela disse, apertando os olhos contra o sol que, reluzia com uma ferocidade incomum sobre as águas escuras do lago Ness.

Sua mãe espreguiçou-se lentamente, desfrutando a brisa.

- Sem falar no ar fresco. Sinto-me como um cogumelo que ficou crescendo no escuro durante semanas, todo pálido, úmido e mole.

— Que belas pesquisadoras vocês duas dariam — Roger disse, mas abriu um largo sorriso. Todos os três estavam de excelente humor. Após o árduo trabalho de examinar os registros das prisões, até chegar à de Ardsmuir, tiveram um período de sorte. Os registros de Ardsmuir estavam completos, em um único local, e, em comparação a muitos outros, extraordinariamente claros. Ardsmuir fora uma prisão durante apenas quinze anos; depois de sua reforma, realizada com a mão-de-obra dos prisioneiros jacobitas, foi transformada numa pequena guarnição militar permanente e a população carcerária dispersada — a maioria dos presos enviada para colônias na América.

- Eu ainda não consigo entender por que Fraser não foi enviado com os demais para a América - Roger disse. Tivera um momento de pânico na ocasião, examinando cuidadosamente, inúmeras vezes, a lista de condenados enviados para as colônias, verificando nome por nome, sem encontrar nenhum Fraser. Concluíra que Jamie Fraser devia ter morrido na prisão e suara frio de medo à idéia de levar a notícia às Randall, até que uma virada de página mostrara a condicional de Fraser, designando-o para um lugar chamado Helwater.

- Não sei - Claire disse -, mas foi bom ele não ter sido levado para a América. Ele fica... ficava — corrigiu-se rapidamente, mas não o suficiente para impedir que Roger notasse o deslize - terrivelmente enjoado no mar. — Fez um gesto indicando a superfície do lago diante deles, dançando com pequenas ondulações. - Até mesmo sair em um lugar como este o deixava verde em questão de minutos.

Roger lançou um olhar para Brianna com interesse.

- Está enjoada?

Ela sacudiu a cabeça, os brilhantes cabelos esvoaçando ao vento.

- Não. - Deu umas pancadinhas na altura do estômago com orgulho.

- Eu sou de ferro.

Roger riu.

— Quer dar uma volta de barco, então? Afinal, são suas férias.

- Verdade? Poderíamos ir? Pode-se pescar lá? - Brianna encobriu os olhos, olhando ansiosamente para as águas escuras.

- Claro. Já peguei salmão e enguias muitas vezes no lago Ness - Roger assegurou-lhe. - Venha, vamos alugar um barquinho nas docas em Drumnadrochit.

A viagem de carro a Drumnadrochit foi prazerosa. Era um desses dias límpidos e luminosos de verão que fazem com que os turistas do sul sigam para a Escócia em bandos durante agosto e setembro. Com um café da manhã dos mais fartos no estômago, graças a Fiona, e um dos seus almoços arrumado num cesto no porta-malas, com Brianna Randall, cabelos longos ao vento, sentada a seu lado, Roger estava começando a achar que tudo ia às mil maravilhas no mundo.

Permitiu-se celebrar com grande satisfação os resultados de suas pesquisas. Significara pedir uma licença adicional de sua faculdade para o período do verão, mas valera a pena.

Depois de encontrar o registro da condicional de James Fraser, levaram mais duas semanas de trabalho árduo e investigação — até mesmo uma rápida viagem de fim de semana de Roger e Bri a Lake District e outra dos três a Londres. Depois, veio a descoberta que fez Brianna gritar de satisfação no meio da sacrossanta sala de leitura do Museu Britânico, provocando sua saída apressada em meio a ondas glaciais de reprovação. A descoberta do Indulto Real, estampado com o selo de Jorge III, Rex Angletene, datado de 1764, exibindo o nome de ”James Alexander MacKenzie Fraser”.

- Estamos chegando perto - Roger dissera, exultante com a fotocópia do documento. — Muito perto!

- Perto? - Brianna dissera, mas depois se distraíra com a chegada do ônibus e não dera continuidade ao assunto. Mas Roger percebeu o olhar de Claire sobre ele; ela sabia muito bem o que ele queria dizer.

Ela devia, é claro, estar pensando nisso; imaginava se Brianna estaria. Claire viajara para o passado em 1945, desaparecendo pelo círculo de pedras verticais em Craigh na Dun e reaparecendo em 1743. Vivera com Jamie Fraser por quase três anos, depois retornara através das pedras. E ela voltara quase três anos após o desaparecimento original, em abril de 1948.

Tudo isso significava - provavelmente - que se ela estivesse disposta a tentar a viagem de volta pelas pedras mais uma vez, provavelmente chegaria vinte anos depois de ter ido embora, ou seja, em 1766. E 1766 era apenas dois anos depois da última data conhecida em que Jamie Fraser fora localizado, vivo e são. Se ele tivesse sobrevivido mais dois anos e se Roger pudesse encontrá-lo...

- Lá está! - Brianna exclamou. - ”Alugam-se barcos”. - Apontou para o cartaz na janela do pub das docas e Roger estacionou o carro numa vaga em frente, sem pensar mais em Jamie Fraser.

— Por que será que os baixinhos geralmente se apaixonam por mulheres altas? — A voz de Claire atrás dele fez eco aos pensamentos de Roger com uma estranha precisão, e não pela primeira vez.

- A síndrome da mariposa e da chama, talvez? - Roger sugeriu, franzindo o cenho diante do evidente fascínio do minúsculo barman por Brianna. Ele e Claire estavam diante do balcão de aluguel de barcos, aguardando o funcionário preencher o recibo, enquanto Brianna comprava garrafas de Coca-Cola e cerveja escura para acompanhar o almoço.

O jovem barman, que chegava à altura das axilas de Brianna, saltitava de um lado para outro, oferecendo ovos em conserva e fatias de língua defumada, os olhos revirados em adoração para a deusa de top amarelo diante dele. Por sua risada, Brianna parecia achar o sujeito ”engraçadinho”.

— Eu sempre disse a Bri para não se envolver com baixinhos — Claire comentou, observando a cena.

- É mesmo? - Roger disse secamente. - Por alguma razão, eu não vejo você como uma mãe conselheira.

Ela riu, indiferente ao azedume momentâneo dele.

- Bem, não faço o tipo mesmo, não muito. Mas quando se nota um princípio importante como este, parece ser um dever de mãe transmiti-lo.

— Algum problema com homens baixos? — Roger perguntou.

- Eles costumam ser mesquinhos se não conseguem o que querem Claire - respondeu. — Como esses cachorrinhos que latem sem parar. Bonitinhos e fofinhos, mas basta contrariá-los e você provavelmente vai ganhar uma desagradável mordida no tornozelo.

Roger riu.

- Essa observação é o resultado de anos de experiência, suponho?

- Ah, sim. - Ela balançou a cabeça, fitando-o. - Nunca conheci um maestro com mais de um metro e meio de altura. Sujeitinhos pérfidos, praticamente todos eles. Mas os homens altos... - seus lábios curvaram-se ligeiramente, enquanto ela corria os olhos pelo um metro e noventa e dois centímetros de Roger — os homens altos são quase sempre muito meigos e gentis.

- Meigos, hein? - Roger disse, com um olhar cínico para o barman, que cortava em pedacinhos uma enguia em conserva para Brianna. O rosto da jovem expressava uma cautelosa repugnância, mas ela inclinou-se para a frente, torcendo o nariz ao aceitar o pedaço oferecido em um garfo.

— Com as mulheres — Claire esclareceu. — Sempre achei que é porque eles sabem que não precisam provar nada; quando fica óbvio que eles podem fazer o que bem quiserem, quer você queira ou não, não precisam tentar provar isso.

- Ao passo que um baixinho - Roger estimulou-a.

- Ao passo que um baixinho sabe que não pode fazer qualquer coisa, a menos que você permita. Saber disso o deixa maluco, de modo que ele está sempre tentando alguma coisa só para provar de que é capaz.

- Mmphm. - Roger emitiu um som escocês no fundo da garganta, pretendendo mostrar tanto admiração pela perspicácia de Claire quanto uma suspeita geral do que o barman estaria querendo provar a Brianna.

— Obrigado — ele disse ao funcionário, que empurrou o recibo por cima do balcão para ele. - Pronta, Bri? - ele perguntou.

O lago estava calmo e a pescaria lenta, mas estava agradável na água, com o sol de agosto quente em suas costas e os aromas de frutas silvestres e pinheiros aquecidos pelo sol trazidos pelo vento da margem mais próxima. Pesados com o almoço, sentiram-se sonolentos e, pouco depois, Brianna estava enroscada na proa, dormindo com a cabeça descansando sobre o paletó dobrado de Roger. Claire sentou-se à popa, piscando, mas ainda acordada.

- E quanto a mulheres altas e baixas? - Roger perguntou, retomando a conversa anterior enquanto remava devagar pelo lago. Olhou por cima do ombro para a enorme extensão das pernas de Brianna, desajeitadamente dobradas sob seu corpo. — O mesmo? As baixinhas são detestáveis?

Claire sacudiu a cabeça pensativamente, os cachos começando a se soltar do seu prendedor de cabelos.

- Não, acho que não. Não parece ter nada a ver com a altura. Acho que é mais uma questão de enxergar os homens como um inimigo ou apenas como homens e, no geral, gostam deles por isso.

- Ah, tem a ver com a liberação da mulher, não é?

— Não, de modo algum — Claire disse. — Eu vi exatamente os mesmos tipos de comportamento entre homens e mulheres em 1743 que se vê agora. Algumas diferenças, é claro, no modo como cada um se comporta, mas não tanto em como se comportam um em relação ao outro.

Ela olhou para as águas escuras do lago ao longe, protegendo os olhos com a mão. Podia estar atenta ao aparecimento de lontras ou troncos flutuantes, mas Roger achou que aquele olhar escrutinava um pouco além dos penhascos da margem oposta.

— Você gosta dos homens, não? — ele perguntou serenamente. — Homens altos.

Ela sorriu ligeiramente, sem olhar para ele.

— Só de um — ela disse brandamente.

- Então você irá... se eu puder encontrá-lo? - Ele descansou os remos momentaneamente, observando-a.

Ela respirou fundo antes de responder. O vento deixava suas faces rosadas e moldava o tecido do vestido branco contra seu corpo, ressaltando os seios altos e uma cintura fina. Jovem demais para ser uma viúva, ele pensou, bonita demais para ser desperdiçada.

- Não sei - ela disse, a voz um pouco trêmula. - Pensar nisso... em encontrar Jamie... ter de atravessar... as pedras outra vez. - Um tremor percorreu seu corpo, fazendo-a fechar os olhos.

- É indescritível, sabe - ela continuou, os olhos ainda fechados como se visse por trás deles o círculo de pedras de Craigh na Dun. — Horrível, mas horrível de um modo diferente de outras coisas horríveis, é indescritível. - Abriu os olhos e lançou-lhe um sorriso enviesado. - É um pouco como tentar dizer a um homem como é parir um filho. Ele pode mais ou menos ter noção de que é doloroso, mas na verdade não está preparado para compreender o que se sente.

Roger achou graça.

- Ah, é mesmo? Bem, há uma certa diferença, você sabe. Eu na verdade ouvi aquelas malditas pedras. — Ele próprio estremeceu, involuntariamente. Aquela noite, há três meses, quando Gillian Edgars atravessara as pedras, não era uma lembrança que gostasse de trazer novamente à memória; mas ela voltara-lhe em pesadelos diversas vezes. Empenhou toda a sua força nos remos, tentando apagá-la da mente. - É como ser rasgado, não é? - ele disse, os olhos intensamente fixos nos de Claire. - Alguma coisa o puxa, dilacera, arrasta, e não apenas do lado de fora, mas por dentro também. Você sente que seu crânio vai voar em pedaços a qualquer momento. E aquele barulho terrível. - Estremeceu novamente. O rosto de Claire tornara-se ligeiramente pálido.

- Não sabia que você podia ouvi-las - ela disse. - Você não me contou.

- Não me pareceu importante. - Examinou-a por um instante, enquanto remava, depois acrescentou serenamente: - Bri ouviu-as também.

- Sei. - Ela olhou para o outro lado do lago, onde o rastro do barquinho espalhava suas asas em forma de V. Mais ao longe, as ondas da passagem de um barco maior batiam nos penhascos e voltavam, unindo-se outra vez no meio do lago, criando uma ondulação longa e corcunda na água brilhante... uma onda vertical, um fenômeno do lago, freqüentemente confundido com uma visão do monstro.

- Ele está lá, sabe - ela disse de repente, balançando a cabeça para as águas negras e carregadas de turfa.

Abriu a boca para perguntar o que ela queria dizer, mas depois compreendeu que já sabia. Vivera próximo ao lago Ness durante toda a sua vida, pescara enguias e salmão em suas águas, ouvira e zombara de todas as histórias da ”temível criatura” que eram contadas nos pubs de Drumnadrochit e Fort Augustus.

Talvez fosse o inusitado da situação — ali sentado, calmamente discutindo se a mulher que o acompanhava deveria ou não correr o risco inimaginável de lançar-se em um passado desconhecido. Qualquer que fosse a causa de sua certeza, de repente, parecia não só possível, mas certo que as águas escuras do lago escondessem um mistério desconhecido, mas real.

- O que acha que é? - ele perguntou, não só para dar aos seus sentimentos perturbados um tempo para se acalmarem, mas por curiosidade.

Claire inclinou-se sobre a borda do barco, observando intensamente um tronco de árvore flutuante surgir no alcance da visão.

- O que eu vi era provavelmente um plesiossauro - ela disse finalmente. Não olhou para Roger, mas manteve os olhos desviados. - Embora eu não tivesse gravado os pormenores na ocasião. — Sua boca torceu-se em algo que não chegava a ser um sorriso. - Quantos círculos de pedras existem? - ela perguntou abruptamente. - Na Grã-Bretanha, na Europa. Você sabe?

— Não precisamente. Mas são algumas centenas — ele respondeu cautelosamente. - Você acha que todos eles são...

— Como eu poderia saber? — interrompeu-o com impaciência. — A questão é: talvez sejam. Foram erguidas para marcar alguma coisa, o que significa que pode haver um monte de lugares onde essa alguma coisa tenha ocorrido. - Inclinou a cabeça para o lado, afastando do rosto os cabelos agitados pelo vento, e deu-lhe um sorriso enviesado. - Isso explicaria tudo, sabe.

- Explicaria o quê? - Roger sentiu-se confuso com as rápidas mudanças na conversa.

- O monstro. - Fez um gesto amplo na direção da água. - E se houver outro desses... lugares... embaixo da água?

- Um corredor do tempo... uma passagem... sei lá o quê? - Roger olhou para a esteira borbulhante, perplexo com a idéia.

— Explicaria muita coisa. — Havia um sorriso oculto no canto da boca de Claire, por trás do véu de cabelos esvoaçantes. Não sabia dizer se ela estava falando sério ou não. — Os melhores candidatos a monstro são todos os seres que foram extintos há centenas de milhares de anos. Se houver uma passagem do tempo sob o lago, isso resolveria esse pequeno problema.

— Também explicaria por que os relatos às vezes são diferentes — Roger disse, ficando intrigado com a idéia. - Já que são criaturas diferentes que atravessam a passagem.

- E explicaria por que a criatura ou criaturas nunca foram capturadas e nem sempre podem ser vistas. Talvez passem para o outro lado, também, de modo que não ficam no lago o tempo todo.

- Que idéia maravilhosa! - Roger disse. Ele e Claire riram um para o outro.

- Sabe de uma coisa? - ela disse. - Aposto que nossa tese não vai entrar para a lista das mais populares.

Roger riu, pegando um caranguejo, e respingos d’água caíram sobre Brianna. Ela resfolegou, sentou-se abruptamente, piscando, depois se deitou outra vez, o rosto vermelho de sono e, em poucos segundos, respirava pesadamente.

— Ela ficou acordada até tarde ontem à noite, ajudando-me a empacotar o último conjunto de registros a ser enviado de volta à Universidade de Leeds — Roger disse, tomando a defesa de Brianna.

Claire balançou a cabeça distraidamente, observando sua filha.

- Jamie conseguia fazer isso - ela disse ternamente. - Deitar-se e dormir em qualquer lugar.

Ela ficou em silêncio. Roger continuou remando, em direção à ponta do lago onde as sombrias ruínas do Castelo Urquhart destacavam-se em meio aos pinheiros.

- O problema é que - Claire disse finalmente - cada vez fica mais difícil. Atravessar pela primeira vez foi a experiência mais terrível que já me aconteceu. Voltar foi mil vezes pior. — Seus olhos estavam fixos no castelo que se avolumava. - Não sei se foi porque eu não voltei no dia certo. Era o Beltane quando eu fui. E voltei duas semanas antes do Beltane.

- Geilie... quer dizer, Gillian... ela também foi durante o Beltane. Apesar do calor do dia, Roger sentiu frio, vendo novamente a figura da mulher que tanto fora sua ancestral quanto sua contemporânea, de pé à luz de uma flamejante fogueira, fixa por um instante na luz, antes de desaparecer para sempre na fenda dos monólitos. - É o que seu caderno de notas dizia, que a porta está aberta nas festas do sol e nas festas do fogo. Talvez esteja apenas parcialmente aberta quando essas épocas se aproximam. Ou talvez ela estivesse completamente errada, afinal ela achava que era necessário um sacrifício humano para fazer a coisa funcionar.

Claire engoliu em seco. Os restos embebidos em gasolina de Greg Edgars, marido de Gillian, foram recuperados do círculo de pedras pela polícia, no dia 1° de maio. O relatório terminava apenas com uma conclusão sobre sua mulher: ”Fugiu, paradeiro desconhecido.”

Claire inclinou-se sobre a borda do barco, deixando a mão correr pela água. Uma pequena nuvem ocultou o sol, tornando o lago subitamente cinza, com dezenas de pequenas ondas erguendo-se na superfície conforme o vento leve se intensificava. Logo embaixo, na esteira do barco, a água era escura e insondável. O lago Ness tem mais de duzentos metros de profundidade e é terrivelmente gelado. O que pode viver num lugar assim?

- Você iria lá embaixo, Roger? - ela perguntou suavemente. - Pular do barco, mergulhar, continuar descendo pela escuridão até seus pulmões parecerem explodir, sem saber se há monstros com dentes e corpos grandes e pesados à sua espera?

Roger sentiu os pêlos de seus braços se arrepiarem e não apenas porque o vento repentino era gelado.

- Mas essa não é toda a questão - ela continuou, ainda fitando as águas profundas e misteriosas. - Você iria, se Brianna estivesse lá embaixo? - Ela endireitou-se e virou-se para encará-lo. - Você iria? - Os olhos cor de âmbar fitavam intensamente os de Roger, firmes como os de um falcão.

Ele umedeceu os lábios, secos e gretados pelo vento, e lançou um rápido olhar por cima do ombro para Brianna, dormindo. Virou-se de novo para encarar Claire.

- Sim. Acho que iria.

Ela fitou-o por um longo instante, depois balançou a cabeça, sem sorrir.

- Eu também.

 

 

                                             CONTINUA

 

 

A mulher ao meu lado provavelmente pesava uns cento e trinta quilos. Ela assobiava durante o sono, os pulmões esforçando-se para erguer o fardo de seu peito maciço pela milionésima vez. Seu quadril, coxa e braço rechonchudos pressionavam-se contra mim, desagradavelmente quentes e úmidos.

Não havia escapatória; eu estava encurralada no outro lado pela curva de aço da fuselagem do avião. Liberei um braço e o ergui, para acender a luz acima de minha cabeça e poder ver a hora. Dez e trinta, hora de Londres; pelo menos mais seis horas até o pouso na paisagem prometida de Nova York.

O avião estava repleto dos suspiros e roncos de passageiros cochilando da melhor forma que podiam. Dormir para mim estava fora de questão. Com um suspiro de resignação, enfiei a mão no bolso da poltrona à minha frente e peguei o romance que estava lendo e que guardara ali. O livro era de um dos meus autores favoritos, mas não conseguia concentrar a atenção na leitura — minha mente resvalava de volta a Roger e Brianna, que eu deixara em Edimburgo, para continuarem a busca, ou deslizava para frente, para o que me aguardava em Boston.

 

 

 

 

Eu não estava certa do que realmente me esperava, o que era parte do problema. Fora obrigada a voltar, ainda que temporariamente; já esgotara minhas férias, além de várias prorrogações, há muito tempo. Havia problemas a resolver no hospital, contas a pagar em casa, a manutenção da casa e do jardim - estremeci ao pensar em que altura a grama do jardim deveria ter chegado —, amigos a serem contatados...

Havia um amigo em particular. Joseph Abernathy fora meu melhor amigo, desde a faculdade de medicina. Antes de tomar quaisquer decisões definitivas — e provavelmente irrevogáveis —, queria conversar com ele. Fechei o livro no colo e fiquei traçando os volteios extravagantes do título com um dedo, sorrindo levemente. Entre outras coisas, eu devia a Joe o gosto por romances.

Conhecia Joe desde o começo de minha formação médica. Exatamente como eu, ele se destacava entre os outros internos do hospital de Boston. Eu era a única mulher entre os promissores médicos; Joe era o único’ negro.

Nossa compartilhada singularidade dava a cada um de nós uma consciência especial do outro; nós dois a sentíamos claramente, embora não a mencionássemos. Trabalhávamos muito bem juntos, mas ambos tínhamos o cuidado - por boas razões - de não nos expormos, e o tênue vínculo entre nós, nebuloso demais para ser chamado de amizade, permaneceu ignorado até quase o final de nosso estágio.

Eu havia presidido minha primeira cirurgia naquele dia - uma apendicite sem maiores complicações, em um adolescente de boa saúde. Tudo correra bem e não havia razão para pensar que haveria complicações pósoperatórias. Ainda assim, experimentava um estranho sentimento de posse em relação ao garoto e não quis ir para casa enquanto ele não estivesse acordado e...

 

 

                                                                                                    

 

 

                                         

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