Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O RETORNO DE IZABEL / J. A. Redmerski
O RETORNO DE IZABEL / J. A. Redmerski

 

 

                                                                                                     

 

 

 

 

CAPÍTULO UM

Sarai

Já faz oito meses que fugi da fortaleza no México onde fui mantida contra minha vontade por nove anos. Estou livre. Levo uma vida “normal”, fazendo coisas normais com gente normal. Não fui mais atacada, ameaçada nem seguida por ninguém que ainda queira me matar. Tenho uma “melhor amiga”, Dahlia. Tenho a coisa mais parecida com uma mãe que já conheci, Dina Gregory. O que mais eu poderia querer? Parece egoísmo desejar qualquer outra coisa. Mas, apesar de tudo o que tenho, algo não mudou: continuo vivendo uma mentira.

Deixei amigos na Califórnia: Charlie, Lea, Alex e... Bri... Não, espera, quero dizer Brandi. Meu ex-namorado, Matt, era abusivo, por isso voltei para o Arizona. Ele me perseguiu por muito tempo depois que terminamos. Consegui uma ordem judicial para mantê-lo afastado, mas não funcionou. Ele atirou em mim há oito meses, mas não posso provar porque não cheguei a vê-lo. E tenho muito medo de denunciá-lo à polícia.

Claro que tudo isso é mentira.

São os pedaços da minha vida que acobertam o que realmente aconteceu comigo. Os pretextos para eu ter desaparecido aos 14 anos e ter ido parar em um hospital da Califórnia com um ferimento a bala. Jamais vou poder contar a Dina, Dahlia ou ao meu namorado, Eric, o que aconteceu de verdade: que fui levada para o México pela péssima versão de mãe que eu tinha, para morar com um chefão do tráfico. Jamais vou poder contar que fugi daquele lugar depois de nove anos e matei o homem que me manteve prisioneira por toda a minha adolescência. Quer dizer, claro que eu poderia contar a alguém, mas, se fizesse isso, só estaria pondo Victor em perigo.

 

 

 

 

 

 

Victor.

Não, nunca vou poder contar que um assassino me ajudou a fugir, ou que testemunhei Victor matando várias pessoas, inclusive a esposa de um empresário famoso e importante de Los Angeles. Nunca vou poder contar que, depois de tudo pelo que passei, depois de tudo o que vi, o que mais quero é fazer as malas e voltar para aquela vida perigosa. A vida com Victor.

Até hoje, falar o nome dele me acalma. Às vezes, quando estou acordada na cama à noite, murmuro seu nome só para ouvi-lo, porque preciso. Preciso dele. Não consigo tirá-lo da cabeça. Já tentei. Porra, e como tentei. Mas, não importa o que eu faça, continuo vivendo cada dia da minha vida pensando nele. Se está me vigiando. Se pensa em mim tanto quanto penso nele. Se ainda está vivo.

Pressiono o travesseiro contra a cabeça e fecho os olhos, imaginando Victor. Às vezes, é só assim que consigo gozar.

Eric aperta minhas coxas com as mãos e me imobiliza na cama, com o rosto enfiado no meio das minhas pernas.

Arqueio o quadril contra ele, roçando de leve contra sua língua frenética, até que ele faça meu corpo todo enrijecer e minhas coxas tremerem ao redor da sua cabeça.

— Meu Deus... — Estremeço enquanto gozo, então deixo os braços caírem entre as pernas, afundando os dedos no cabelo preto de Eric. — Caramba...

Sinto os lábios de Eric tocando minha barriga um pouco acima da pélvis.

Olho para o teto como sempre faço depois de um orgasmo, pois a culpa que sinto me deixa com vergonha de olhar para Eric. Ele é um cara superlegal. Meu namorado sexy de 27 anos, cabelo preto e olhos azuis, gentil, encantador, engraçado e perfeito. Perfeito para mim se eu nunca tivesse conhecido Victor Faust.

Estou arruinada pelo resto da vida.

Enxugo as gotas de suor da testa e Eric sobe pela cama, deitando-se ao meu lado.

— Você sempre faz isso — diz ele, brincando, enquanto cutuca minhas costelas com os nós dos dedos.

Como sinto muitas cócegas, eu me encolho e me viro para encará-lo. Sorrio com ternura e passo um dedo por seu cabelo.

— O que eu sempre faço?

— Esse negócio de ficar em silêncio. — Eric segura meu queixo entre o polegar e o indicador. — Eu faço você gozar e você fica bem quieta durante um tempão.

Eu sei e sinto muito, mas preciso apagar o rosto de Victor da minha cabeça antes de conseguir olhar você nos olhos. Sou uma pessoa horrível.

Eric me dá um beijo na testa.

— Isso se chama recuperação — brinco, beijando os dedos dele. — É totalmente inofensivo. Mas você deveria interpretar como um bom sinal. Você sabe o que está fazendo — digo, retribuindo o cutucão nas costelas.

E ele sabe mesmo o que está fazendo. Eric é ótimo na cama. Mas ainda sou emocionalmente muito ligada... viciada... em Victor, e tenho a sensação de que sempre serei.

Só consegui seguir a vida e me abrir a outros relacionamentos cinco meses depois que Victor foi embora. Conheci Eric no trabalho, na loja de conveniência. Ele comprou um saco de biscoitos e um energético. Depois disso, ele aparecia na loja duas, às vezes três vezes por semana. Eu não queria nada com ele. Queria Victor. Mas comecei a perder a esperança de que Victor um dia fosse voltar para mim.

Eric tenta passar um braço ao redor do meu corpo, mas me levanto casualmente e visto a calcinha. Ele não desconfia de nada, o que é bom. Não sinto vontade de ficar abraçadinha, mas a última coisa que quero é magoá-lo. Ele ergue os braços e entrelaça os dedos atrás da cabeça. Olha para mim, do outro lado do quarto, com um sorriso sedutor. Sempre faz isso quando não estou completamente vestida.

— Sarai.

— Oi. — Visto a camiseta e ajeito o rabo de cavalo.

— Eu sei que está em cima da hora — diz Eric —, mas queria ir com você e Dahlia para a Califórnia amanhã.

Merda.

— Mas você não disse que não ia conseguir folga no trabalho? — pergunto, vestindo o short e calçando os chinelos.

— Quando você perguntou se eu queria ir, não ia dar mesmo. Mas contrataram um funcionário novo, e meu chefe decidiu me dar folga.

Isso é uma péssima notícia. Não porque eu não o queira por perto — gosto de Eric, apesar da minha incapacidade de esquecer Victor Faust —, mas minha viagem de “férias” à Califórnia amanhã não é para fazer turismo, curtir a noite nem fazer compras na Rodeo Drive.

Estou indo até lá para matar um homem. Ou melhor, tentar matar um homem.

Já é ruim que Dahlia vá também, e já vai ser difícil guardar segredo de uma pessoa. Imagine duas.

— Você... não parece animada — comenta Eric, seu sorriso morrendo aos poucos.

Abro um sorriso largo e balanço a cabeça, voltando para perto dele e me sentando na beira da cama.

— Não, não, eu estou animada. É que você me pegou de surpresa. A gente vai sair às seis da manhã. É daqui a menos de oito horas. Você já fez as malas?

Eric dá uma risada e se estica na minha cama, me puxando para si. Eu me sento perto de sua cintura, apoiando um braço no colchão do outro lado dele, com os pés para fora da cama.

— Bom, eu só fiquei sabendo hoje à tarde, antes de sair do trabalho — explica ele. — Eu sei, está em cima da hora, mas só preciso enfiar umas coisas na mala e estou pronto.

Ele estende a mão e afasta do meu rosto os fios de cabelo que escaparam do rabo de cavalo.

— Ótimo! — minto, com um sorriso igualmente falso. — Então acho que está combinado.

Dina acorda antes de mim, às quatro da manhã. O cheiro de bacon é o que me desperta. Levanto da cama e entro debaixo do chuveiro antes de me sentar à mesa da cozinha. Um prato vazio já está à minha espera.

— Gostaria que você tivesse escolhido algum outro lugar para passar sua folga, Sarai — afirma Dina.

Ela se senta do outro lado da mesa e começa a encher seu prato. Pego alguns pedaços de bacon do monte e ponho no meu.

— Eu sei — digo —, mas, como falei para você, não vou deixar que meu ex me impeça de ver meus amigos.

Ela balança a cabeça cada vez mais grisalha e suspira.

Passei do limite em algum momento com meu amontoado de mentiras. Quando Victor levou Dina para o hospital em Los Angeles, depois que o irmão dele, Niklas, atirou em mim, ela não fazia ideia do que tinha acontecido. Só sabia que eu tinha levado um tiro. Demorei alguns meses até me sentir segura o suficiente para falar com ela sobre isso. Quer dizer, depois de bolar a história que eu ia contar. Foi aí que inventei o lance do ex-namorado violento. Eu deveria ter dito que fui assaltada. Por um desconhecido. A mentira seria muito mais fácil de manter. Agora que ela sabe que vou voltar para Los Angeles, está morrendo de preocupação, e já faz uns dois meses. Eu nem deveria ter contado que ia voltar lá.

Termino de comer o bacon e um pouco de ovos mexidos, junto com um copo de leite.

Dahlia e Eric chegam juntos assim que termino de escovar os dentes.

— Vamos logo, a gente precisa pegar a estrada — chama Dahlia, me apressando da porta. Seu cabelo castanho-claro está preso no alto da cabeça em um coque desalinhado de quem acabou de acordar.

Eu me despeço de Dina com um abraço.

— Eu vou ficar bem — digo a ela. — Prometo. Não vou nem chegar perto de onde ele mora.

Desta vez, chego até a imaginar um rosto masculino ao falar de alguém que não existe. Acho que já interpreto esse papel há tanto tempo que “Matt” e todos esses meus “amigos” de Los Angeles, de quem falo para todo mundo como se fossem reais, se tornaram reais no meu subconsciente.

Dina força um sorriso em seu rosto preocupado, e suas mãos soltam meus cotovelos.

— Você liga assim que chegar?

— Assim que eu entrar no quarto do hotel, ligo — respondo, assentindo.

Ela sorri e eu a abraço mais uma vez, antes de segui-los até o carro de Dahlia, que está esperando. Eric guarda minha mala no bagageiro, junto com as deles, e se senta no banco de trás.

— Hollywood, aí vamos nós! — exclama Dahlia.

Finjo metade da empolgação dela. Ainda bem que está muito cedo, senão Dahlia poderia intuir o verdadeiro motivo da minha falta de entusiasmo. Estico os braços para trás e bocejo, apoiando a cabeça no banco do carro. Sinto a mão de Eric no meu pescoço quando ele começa a massagear meus músculos.

— Não sei por que você quer ir a Los Angeles de carro — diz Dahlia. — Se a gente fosse de avião, não ia precisar acordar tão cedo. E você não estaria tão cansada e rabugenta.

Minha cabeça cai para a esquerda.

— Não estou rabugenta. Ainda mal falei com você.

Ela dá um sorrisinho.

— Exatamente. Sarai sem falar significa Sarai rabugenta.

— E se recuperando — acrescenta Eric.

Meu rosto fica vermelho e eu estico a mão atrás da cabeça, dando um tapinha de brincadeira na dele, que está fazendo maravilhas no meu pescoço. Fecho os olhos e vejo Victor.

Não de propósito.

Chegamos a Los Angeles depois de quatro horas na estrada. Eu não podia ir de avião porque não conseguiria levar minhas armas. É claro que Dahlia não pode saber disso. Ela acha apenas que quero apreciar a paisagem.

Tenho sete dias para fazer o que vim fazer. Isto é, se eu conseguir. Pensei no meu plano durante meses, em como vou fazer isso. Sei que é impossível entrar na mansão Hamburg. Para isso, eu precisaria ter um convite e socializar em público com o próprio Arthur Hamburg e seus convidados. Ele viu meu rosto. Bem, tecnicamente, viu mais do que meu rosto. Mas sinto que os acontecimentos daquela noite, quando Victor e eu enganamos Hamburg para que ele nos convidasse para ir ao seu quarto e conseguíssemos matar sua esposa, são algo que ele jamais vai esquecer, nem os mínimos detalhes.

Se tudo der certo, uma peruca loura platinada de cabelo curto e maquiagem escura e pesada vão esconder aquela identidade de cabelo longo e castanho que Hamburg reconheceria assim que eu aparecesse.


CAPÍTULO DOIS

Sarai

Passo o dia todo com Eric e Dahlia, fingindo me divertir para passar o tempo. Saímos para almoçar e para fazer um tour por Hollywood com um guia e visitar um museu antes de voltarmos para o hotel, exaustos. Quer dizer, finjo estar exausta o suficiente para querer dar o dia por encerrado. Na verdade, o que preciso é me preparar para ir ao restaurante de Hamburg ainda hoje.

Dahlia já acha que tem algo errado comigo.

— Você está ficando doente? — pergunta ela, estendendo a mão entre nossas espreguiçadeiras à beira da piscina e sentindo a temperatura da minha testa.

— Estou ótima — respondo. — Só cansada porque levantei muito cedo. E quando foi a última vez que andei tanto assim em um dia só?

Dahlia volta a se recostar em sua espreguiçadeira e ajeita os óculos de sol grandes e redondos no rosto.

— Bom, espero que não esteja cansada amanhã — diz Eric, do outro lado. — Tem tantas coisas que eu quero fazer. Não venho para Los Angeles desde que meus pais se divorciaram.

— Pois é. É a minha primeira vez aqui em dois anos — afirma Dahlia.

Um adolescente pula na piscina e a água respinga em nós. Ergo as costas da espreguiçadeira e agito a revista que estava lendo para tirar as gotas. Ponho os óculos escuros no alto da cabeça. Jogo as pernas para o lado e fico de pé.

— Acho que vou voltar para o quarto e tirar uma soneca — anuncio, pegando minha bolsa do chão.

Eric se ergue também e tira os óculos escuros.

— Se quiser, vou com você — oferece ele.

Agito a mão para ele, pedindo que não se levante.

— Não, fica aí e faz companhia para a Dahlia — sugiro, ajeitando a bolsa no ombro. Abaixo os óculos escuros de novo para que ele não perceba minha mentira.

— Tem certeza de que você está bem? — pergunta Dahlia. — Sarai, você está de férias, lembra? Veio para cá se divertir, não para cochilar.

— Acho que vou estar cem por cento amanhã. Só preciso de um banho quente e demorado e de uma boa noite de sono.

— Ok, vou acreditar — diz Dahlia. — Mas nem vem com doença para o meu lado. — Ela aponta o dedo para mim, com ar severo.

Eric fecha os dedos em torno do meu pulso e me puxa para perto.

— Tem certeza de que não quer que eu vá? — Ele me beija e eu correspondo antes de me levantar de vez.

— Tenho — respondo, baixinho, e saio na direção do elevador.

Assim que entro no quarto, tranco a porta com a corrente para que Eric e Dahlia não entrem de surpresa, jogo a bolsa no chão e abro meu laptop, digitando a senha. Enquanto o laptop inicia, olho pela janela e vejo meus amigos, figuras pequenas daquela distância, ainda à beira da piscina. Eu me sento diante da tela e, provavelmente pela centésima vez, olho cada página do site do restaurante de Hamburg, verificando de novo o horário de funcionamento e passando os olhos pelas fotos profissionais do lugar, dentro e fora. Na verdade, nada disso me ajuda muito com o que pretendo fazer, mas olho tudo de novo todo dia, de qualquer maneira.

Derrotada, bato a palma da mão com força no tampo da mesa.

— Droga! — exclamo, desabando na poltrona enquanto passo as mãos pelo cabelo.

Ainda não sei como vou conseguir ficar a sós com Hamburg sem ser vista. Sei que estou dando um passo maior do que a perna. Sei disso desde que tive essa ideia maluca, mas também sei que, se ficar apenas pensando a respeito, nunca vou passar dessa fase.

Vim para cá com um plano: entrar disfarçada no restaurante e agir como qualquer outro cliente. Sondar o lugar por uma noite. Saber onde ficam as saídas. As entradas para outras partes do prédio. Os banheiros. Minha prioridade número um, contudo, é encontrar a sala de onde Hamburg observa do alto seus clientes e ouve a conversa deles pelo minúsculo microfone escondido no arranjo de cada mesa. Então pretendo me enfiar na sala e cortar a garganta daquele porco.

Contudo, agora que estou aqui, a menos de seis quadras do restaurante, e agora que o tempo está passando tão depressa, estou menos confiante. Isso não é um filme. Sou uma idiota por achar que posso adentrar um lugar desses sem ser vista, tirar a vida de um homem sem chamar atenção e fugir sem ser capturada.

Apenas Victor conseguiria fazer algo assim.

Bato no tampo da mesa de novo, mais de leve desta vez, fecho o laptop e me levanto. Ando de um lado para outro no carpete vermelho e verde. E bem quando resolvo seguir pelo corredor para o quarto separado que reservei sem Dahlia e Eric saberem, a porta se abre um pouco, mas é travada pela corrente.

— Sarai? — chama Dahlia do outro lado. — Vai deixar a gente entrar?

Suspiro fundo e destranco a porta.

— Por que a corrente? — pergunta Eric, entrando atrás de Dahlia.

— Força do hábito.

Eu me jogo na ponta da cama king-size.

Os dois deixam suas coisas no chão. Dahlia se senta à mesa, ao lado da janela, e Eric se deita atravessado na cama ao meu lado, cruzando as pernas na altura dos calcanhares.

— Pensei que você ia tirar uma soneca — diz Dahlia.

Ela passa os dedos com cuidado pelo cabelo úmido, fazendo caretas quando se depara com alguma mecha mais embaraçada.

— Dahlia — digo, olhando para os dois. — Eu subi agora há pouco. Pensei que vocês iam ficar na piscina mais um tempo.

Espero ter conseguido disfarçar o aborrecimento na minha voz por eles terem vindo me encontrar tão cedo. Não consigo evitar: estou estressada demais, além de preocupada com a simples presença dos dois aqui comigo. Não quero que eles se machuquem nem que se envolvam de forma alguma com meu motivo para estar aqui.

— A gente pode sair e deixar você sozinha, se quiser — sugere Eric, baixinho, atrás de mim.

Eu me arrependo na mesma hora do que disse, porque é óbvio que não disfarcei o aborrecimento tão bem quanto esperava.

Inclino a cabeça para trás e suspiro, esticando o braço para tocar o tornozelo dele.

— Desculpa — digo, sorrindo para Dahlia. — Sabe, eu... — Então, de repente, uma desculpa perfeitamente plausível para o modo como tenho agido surge na minha cabeça, e a torneira das mentiras se abre. — Eu só fico meio nervosa por estar de volta a Los Angeles.

Dahlia faz cara de “ah, entendi”, empurra os pés de Eric para o lado e se senta perto de mim. Ela passa o braço por cima dos meus ombros e segura meu antebraço.

— Imaginei que o problema fosse esse.

Percebo que ela olha de relance para Eric e tenho a impressão de que foi sobre isso que os dois falaram enquanto ficaram na piscina, depois que fui embora.

Aposto que também foi por isso que decidiram subir tão cedo para me ver.

— A gente queria ver como você estava — acrescenta Eric atrás de mim, confirmando minha suspeita.

Sinto a cama se mexer quando ele se senta.

Eu me levanto antes que ele consiga me abraçar. É nesse exato momento que me dou conta de como tenho feito isso com frequência no último mês. Não sei por quanto tempo mais vou conseguir enganá-lo. Sei que deveria simplesmente contar o que sinto, que não gosto tanto de Eric quanto ele gosta de mim. Mas não consigo dizer a verdade. Eu precisaria inventar mais uma mentira, e estou tão atolada em mentiras que me sinto afogada nelas.

Ao mesmo tempo, deixei nossa relação durar tanto porque eu queria de verdade sentir por ele algo tão profundo quanto o que ele parece sentir por mim. Queria seguir em frente, esquecer Victor e ser feliz com a vida que ele me deixou.

Mas não consigo. Não consigo mesmo...

— Ele nem vai saber que você está aqui — diz Eric sobre “Matt”. — Além disso, mesmo que ele descobrisse, eu ia encher o cara de porrada assim que o visse.

Esboço um sorriso para Eric.

— Eu sei que você faria isso — digo, mas me sinto ainda pior, porque os únicos dois amigos que tenho no mundo não fazem nem ideia de quem sou.

Cruzo os braços, vou até a janela e olho para fora.

— Sarai — chama Dahlia. — Não queria dizer isso, mas, se você está tão preocupada com a possibilidade de Matt descobrir que você está em Los Angeles, acho que não é boa ideia visitar seus amigos aqui.

— Eu sei, você tem razão. Sei que eles não contariam para Matt, mas acho que é melhor eu ficar só com vocês dois enquanto estivermos aqui.

Eu me viro para encará-los.

— É um bom plano — diz Eric, com um sorriso radiante.

É um bom plano, com certeza, porque agora não preciso mais inventar outra desculpa para não apresentar os dois aos meus amigos que não existem.

Dahlia se aproxima de mim.

— A gente devia ter ido para a Flórida ou algum lugar assim, hein?

Olho pela janela de novo.

— Não — respondo. — Adoro esta cidade. E sei que vocês queriam muito vir para cá. — Dou um sorriso rápido. — Sugiro que a gente curta ao máximo esta semana.

Ela me empurra com o ombro de brincadeira.

— Essa é a Sarai que eu conheço — diz Dahlia, sorrindo.

É, só que não sou essa pessoa...

Ela vai até Eric e o puxa pelo braço, levantando-o da cama.

— Vamos sair daqui e deixar a mocinha descansar.

Eric se levanta e se aproxima de mim. Então pega meus braços e me vira para encará-lo. Com aqueles olhos azul-bebê, ele faz a melhor expressão amuada que consegue.

— Se precisar de mim para qualquer coisa, pode me chamar que eu venho.

Concordo com a cabeça e lhe ofereço um sorriso sincero. Ele merece, por ser tão legal comigo.

— Pode deixar.

Então eu os empurro porta afora com as duas mãos.

— Eu diria para vocês não se divertirem muito sem mim, mas isso seria pedir demais.

Dahlia ri baixinho ao sair para o corredor.

— Não, não é pedir muito. — Ela levanta dois dedos. — Palavra de escoteiro.

— Acho que não é assim que se faz, Dahl — diz Eric.

Ela faz um gesto para dispensar as palavras dele.

— Trate de dormir — sugere Dahlia. — Porque amanhã você vai precisar estar novinha em folha.

— De acordo — digo, assentindo.

— Tchau, amor — diz Eric antes de eu fechar a porta.

Fico com as costas apoiadas na porta e solto um suspiro longo e profundo.

Fingir é difícil demais. Bem mais difícil do que simplesmente ser eu mesma, por mais anormal e imprudente que eu seja.

— Eu sei o que preciso fazer — digo em voz alta.

Falar sozinha é minha nova mania, porque me ajuda a visualizar e entender melhor as coisas.

Volto para a janela e olho a cidade de Los Angeles, com os braços cruzados.

— Preciso de um disfarce, mas não para me esconder de Hamburg. Só das câmeras e de qualquer outra pessoa. Eu quero que Hamburg me veja. Só assim vou conseguir entrar.


CAPÍTULO TRÊS

Sarai

Dahlia e Eric só voltam para o quarto algumas horas mais tarde, depois de escurecer. Eu já tinha tomado banho, vestido short e camiseta e deixado a luz apagada para parecer que estava dormindo. Assim que ouvi o cartão passando pela porta, pulei na cama e me espalhei pelo colchão, como sempre faço quando durmo de verdade. Eric entrou na ponta dos pés, tentando não “me acordar”, mas me virei, soltei um resmungo e abri os olhos para mostrar que acordei. Ele pediu desculpas e perguntou se eu queria ir com ele e Dahlia a uma boate ali perto, insistindo que, se eu não fosse, ele também não iria. Mas logo rejeitei essa ideia. Percebi que ele queria muito ir e não posso culpá-lo: se eu estivesse no lugar dele, não iria querer ficar em um quarto escuro de hotel às oito da noite de uma sexta-feira, em uma das cidades mais animadas dos Estados Unidos.

Eric e Dahlia saírem era exatamente do que eu precisava. Passei aquelas duas horas inteiras tentando inventar uma desculpa para explicar a eles por que eu ia sair, aonde iria e por que eles não poderiam ir junto.

Eles resolveram isso para mim.

Minutos após Eric sair do quarto, espero Dahlia — em seu próprio quarto, ao lado do nosso — tirar o biquíni e se vestir. Pelo olho mágico da minha porta, eu os vejo indo embora pelo corredor. Conto até cem enquanto ando de um lado para outro sem parar. Então pego minha bolsa e vou até a porta. Ando depressa pelo corredor na direção oposta e chego ao quarto secreto, do outro lado do prédio.

Com certa paranoia de ser flagrada, vasculho minha bolsa e encontro tudo, menos a chave do quarto. Enfim consigo senti-la entre os dedos e me apresso para entrar, travando a porta com a corrente. Abro a mala ao pé da cama e tiro minha peruca curta platinada, passando os dedos para ajeitar as mechas desalinhadas, e então a deixo sobre o abajur ao lado para que não perca a forma.

Visto um Dolce & Gabbana curtinho e me maquio com cores escuras e pesadas, o que, depois de passar um tempão praticando em casa, faço bem. Então calço as sandálias de salto alto. Andar de salto é outra coisa que passei muito tempo tentando aprender. Meu alter ego, Izabel Seyfried, saberia andar de salto e o faria bem. Por isso, eu precisava acompanhar.

Em seguida, molho o cabelo e o divido em duas partes atrás. Enrolo cada metade e cruzo uma sobre a outra na nuca. Vários grampos depois, meu longo cabelo castanho está bem preso no couro cabeludo. Visto a touca da peruca e depois a própria peruca, ajustando-a por muito tempo até deixar tudo perfeito.

Por fim, prendo uma bainha de punhal em torno da coxa e a cubro com o tecido do vestido.

Fico de pé diante do espelho de corpo inteiro e me avalio de todos os ângulos possíveis. Estar loura é estranho. Satisfeita, pego a bolsinha preta e a enfio debaixo do braço, com a pequena pistola formando certo volume nela. Estico o braço para girar a maçaneta, mas deixo minha mão cair junto ao corpo.

“Que droga eu estou fazendo?”

O que precisa ser feito.

“E por que eu estou fazendo isso?”

Porque preciso.

Não consigo tirar da cabeça as coisas que aquele homem confessou, as pessoas que matou por causa de um fetiche sexual doentio. Todas as noites desde que Victor me deixou, quando fecho os olhos, vejo o rosto de Hamburg e aquele sorriso de gelar o sangue que ele abriu quando me curvei sobre a mesa, exposta na frente dele. Vejo o rosto de sua esposa, esquelético e combalido, seus olhos fundos turvados pela resignação. Ainda sinto até o fedor da urina que secou em suas roupas e no catre infestado onde ela dormia, naquele quarto escondido.

Meu peito se enche de ar e eu o prendo por vários segundos, antes de soltar um longo suspiro.

Não posso esquecer. A necessidade de matá-lo é como uma coceira no meio das costas. Não posso alcançar naturalmente, mas vou me curvar e torcer os braços até doerem para coçar.

Não posso esquecer...

E talvez... só talvez também acabe chamando a atenção de um certo assassino que não consigo me obrigar a esquecer.

Assim que passo pela porta, deixo Sarai para trás e me torno Izabel por uma noite.

Por não ter pensado de antemão na importância de ao menos alugar um carro chique, salto do táxi a duas quadras do restaurante e ando o resto do caminho. Izabel jamais seria vista andando de táxi.

— Mesa para um? — pergunta o recepcionista assim que entro no restaurante.

Inclino a cabeça e olho para ele com um ar irritado.

— Algum problema? Não posso fazer uma refeição sozinha? Ou você está dando em cima de mim? — Abro um sorrisinho e inclino a cabeça para o outro lado. Ele está ficando nervoso. — Você gostaria de jantar comigo... — olho para o nome bordado no paletó — ... Jeffrey? — Chego mais perto. Ele dá um passo constrangido para trás.

— Hã... — Ele hesita. — Peço desculpas, senhora...

Recuo, trincando os dentes.

— Nunca me chame de senhora — digo com rispidez. — Me leve até uma mesa. Para um.

Ele assente e pede que eu o siga. Quando chego à minha mesinha redonda com duas cadeiras, no meio do restaurante, me sento e deixo a bolsa ao lado. Um garçom se aproxima quando o recepcionista se afasta e me apresenta a carta de vinhos. Eu a rejeito com um movimento dos dedos.

— Quero apenas água com uma rodela de limão.

— Pois não, senhora — diz ele, mas deixo passar.

Enquanto o garçom se afasta, começo a examinar o lugar. Há uma placa indicando a saída à minha esquerda, bem longe, perto do corredor. Há outra à minha direita, próxima à escada que leva para o segundo piso. O restaurante está praticamente igual à primeira vez que vim: escuro, não muito cheio e bastante silencioso, embora desta vez eu ouça jazz baixinho vindo de algum lugar. Ao observar o recinto, paro de repente ao ver a mesa à qual me sentei com Victor quando vim com ele, meses atrás.

Eu me perco na memória, vendo tudo exatamente como aconteceu. Quando olho para as duas pessoas sentadas no outro lado do salão, só consigo me ver com Victor:

— Venha cá — diz ele, em um tom de voz mais delicado.

Deslizo os poucos centímetros que nos separam e me sento encostada a ele.

Seus dedos dançam pela minha nuca quando ele puxa minha cabeça para perto de si. Meu coração bate descompassado quando ele roça os lábios na lateral do meu rosto. De repente, sinto sua outra mão entrando pelo meio das minhas coxas e subindo por baixo do vestido. Minha respiração para. Devo abrir as pernas? Devo ficar imóvel e travá-las? Sei o que quero fazer, mas não sei o que devo fazer, e minha mente está a ponto de desistir.

— Tenho uma surpresa para você esta noite — murmura ele no meu ouvido.

Sua mão se aproxima mais do calor no meio das minhas pernas.

Gemo baixinho, tentando não deixar que ele perceba, embora tenha certeza absoluta de que percebeu.

— Que tipo de surpresa? — pergunto, com a cabeça inclinada para trás, apoiada em sua mão.

— Vai querer algo mais? — Ouço uma voz, e sou arrancada do meu devaneio.

O garçom está segurando o cardápio. Minha água com uma rodela de limão na borda do copo já está diante de mim.

Um pouco confusa de início, apenas assinto, mas faço que não em seguida.

— Ainda não sei — respondo, enfim. — Deixe o cardápio. Talvez eu peça mais tarde.

— Pois não — diz o garçom.

Ele deixa o cardápio na mesa e vai embora.

Olho para a varanda e para as mesas encostadas no balaústre requintado. Onde Hamburg pode estar? Sei que ele está no andar de cima porque Victor disse que ele ficava por lá. Mas onde? Eu me pergunto se ele já me viu, e no mesmo instante meu estômago se embrulha de nervoso.

Não, não posso parecer nervosa.

Endireito as costas na cadeira e tomo um gole da água. Deixo o dedo mindinho levantado, o que me faz parecer muito mais rica, ou apenas mais esnobe. Fico observando os clientes indo e vindo, escuto sua conversa supérflua e me pego imaginando qual dos casais que estão ali poderia acabar na mansão de Hamburg no fim de semana, ganhando muito dinheiro para deixar que ele os veja foder.

Então olho para o arranjo de flores vermelhas em um pequeno vaso de vidro no centro da minha mesa. Pego o celular na bolsa, finjo digitar um número e o coloco perto do ouvido, para que ninguém ache que estou falando sozinha.

— Este recado é para Arthur Hamburg — digo em voz baixa, inclinando-me um pouco para a frente a fim de que o microfone escondido no vaso de flores capte minha voz. — Com certeza você se lembra de mim, não é? Izabel Seyfried. Há quanto tempo, não?

Com cuidado, olho para os lados, esperando ver um ou dois homens parrudos de terno se aproximando de mim com armas em punho.

— Não estou sozinha — continuo —, por isso nem pense em fazer alguma idiotice. A gente precisa conversar.

Olhando para a varanda acima de mim, tento descobrir onde ele pode estar, torcendo para que esteja ali. Alguns minutos tensos se passam, e, quando começo a pensar que a noite foi em vão e que eu estava mesmo falando sozinha, noto um movimento no piso superior, logo acima da saída à minha direita. Meu coração bate forte quando vejo a figura alta e escura sair das sombras e descer a escada.

Eu me lembro desse homem de ombros largos, cabelo grisalho e uma covinha no meio do queixo. É o gerente do restaurante, Willem Stephens, que já encontrei aqui uma vez.

Ele se aproxima da minha mesa sem expressar nenhuma emoção, com as mãos enormes cruzadas à frente, as costas retas, o queixo anguloso imóvel.

— Boa noite, srta. Seyfried. — A voz dele é profunda e sinistra. — Posso perguntar onde está seu dono?

Levanto os olhos para encará-lo, dou um sorrisinho, tomo um gole da minha água e devolvo o copo à mesa, sem pressa. Cada fibra do meu ser está gritando, dizendo como fui idiota em vir até aqui. Por mais que eu saiba que é verdade, não importa. Não é o medo que me faz tremer por dentro, é a adrenalina.

— Victor Faust não é meu dono — explico, com calma. — Mas ele está aqui. Em algum lugar. — Um sorriso tênue e dissimulado toca meus lábios.

Os olhos de Stephens percorrem o salão sutilmente e voltam a me encarar.

— Por que está aqui? — pergunta ele, perdendo um pouco o ar de gerente sofisticado.

— Tenho negócios a discutir com Arthur Hamburg — respondo, confiante. — É do maior interesse dele marcar um encontro privado comigo. Aqui. Hoje. De preferência agora.

Tomo outro gole.

Noto que o pomo de adão de Stephens se move quando ele engole em seco, bem como os contornos de seu queixo quando ele cerra os dentes. Ele olha para o lugar de onde veio, no andar de cima, e percebo um aparelhinho preto escondido em seu ouvido esquerdo. Parece que ele está ouvindo alguém falar. Eu chutaria que é Hamburg.

Ele me encara de novo, com os olhos escuros e cheios de ódio, mas mantém o semblante inexpressivo com a mesma perfeição de Victor.

Ele descruza os braços, estende a mão direita para mim e diz:

— Por aqui.

Ele só deixa os braços penderem, relaxados, quando me levanto. Sigo Stephens pelo restaurante e escada acima, para o piso da varanda.

Apenas duas coisas podem acontecer: ou esta será minha primeira noite como assassina ou a última da minha vida.


CAPÍTULO QUATRO

Sarai

— Se encostar em mim — digo para o guarda-costas de terno à porta da sala particular de Hamburg —, enfio suas bolas em um moedor de carne.

As narinas do segurança se dilatam e ele olha para Stephens.

— Você solicitou uma reunião com o sr. Hamburg — diz Stephens atrás de mim. — É claro que vamos revistá-la antes para verificar se está armada.

Droga!

Calma. Fique calma. Faça o que Izabel faria.

Respiro fundo, encarando-os com desprezo e um ar ameaçador. Então jogo minha bolsinha preta no segurança. Ele pega a bolsa quando ela bate em seu peito.

— Acho que está bem claro que eu não conseguiria esconder uma arma em um vestido como este, a menos que a enfiasse na boceta — digo, olhando para Stephens. — Minha arma está na bolsa. Mas nem pense em tocar...

— Deixem a moça entrar — ordena da porta uma voz familiar.

É Hamburg, ainda balofo e grotesco como antes, usando um terno imenso que parece em vias de estourar se ele respirar fundo demais.

Abro um leve sorriso para o segurança, que me encara com olhos assassinos. Conheço esse olhar, até demais. O homem tira a pistola e me devolve a bolsa.

— Sr. Hamburg — diz Stephens —, eu deveria ficar na sala com o senhor.

Hamburg balança a papada, rejeitando a sugestão.

— Não, vá cuidar do restaurante. Se essas pessoas tivessem vindo me matar, não seriam tão óbvias. Eu vou ficar bem.

— Pelo menos deixe Marion à porta — sugere Stephens, olhando para o guarda-costas.

— Sim — concorda Hamburg. — Você fica aqui. Não deixe ninguém interromper nossa... — diz ele, me olhando com frieza — reunião, a menos que eu peça. Se em algum momento você não ouvir minha voz por mais de um minuto, entre na sala. Como precaução, é claro.

Ele abre um sorrisinho para mim.

— É claro. — Imito Hamburg e sorrio também.

Ele dá um passo para o lado e me convida a entrar.

— Pensei que isso tivesse acabado, srta. Seyfried.

Hamburg fecha a porta.

— Sente-se — pede ele.

A sala é bem grande, com paredes lisas e arredondadas, sem cantos, de um lado a outro. Uma série de grandes quadros retratando o que parece ser cenas bíblicas rodeia uma grande lareira de pedra. Cada imagem é emoldurada em uma caixa de vidro, com luzes na parte de baixo. A sala é pouco iluminada, como o restaurante, e o cheiro é de incenso ou talvez de óleo aromático de almíscar e lavanda. Na parede à minha esquerda, há uma porta aberta que leva a outra sala, onde a luz cinza-azulada de várias telas de TV brilha nas paredes. Chego mais perto para me sentar na poltrona de couro com encosto alto diante da escrivaninha e espio dentro da saleta. É como eu imaginava. As telas mostram várias mesas do restaurante.

Hamburg fecha essa porta também.

— Não, está longe de acabar — respondo, enfim.

Cruzo as pernas e mantenho a postura ereta, o queixo levantado com ar confiante e os olhos em Hamburg, enquanto ele atravessa a sala na minha direção. Puxo a barra do vestido para cobrir completamente o punhal preso na coxa. Minha bolsa está no meu colo.

— Vocês já tiraram minha esposa de mim. — A indignação transparece na voz dele. — Não acham que foi o suficiente?

— Infelizmente, não. — Abro um sorriso malicioso. — Não foi o suficiente para você e sua esposa tirarem uma vida? Não, não foi — respondo por ele. — Vocês tiraram muitas vidas.

Hamburg morde o interior da bochecha e se senta atrás da escrivaninha, de frente para mim. Ele apoia as mãos gordas sobre o tampo de mogno. Percebo quanto ele quer me matar ali mesmo onde estou. Mas não fará isso porque acredita que não estou sozinha. Ninguém em sã consciência faria algo assim, vir até aqui sozinha, inexperiente e desprevenida.

Ninguém, a não ser eu.

Preciso garantir que ele continue acreditando que tenho cúmplices até descobrir como vou matá-lo e sair da sala sem ser pega. O pedido de Hamburg para que o guarda-costas entrasse na sala depois de um minuto sem ouvir sua voz pôs mais um obstáculo no plano que, na verdade, nunca tive de fato.

— Bem, devo dizer uma coisa — diz Hamburg, mudando de tom. — Você é deslumbrante com qualquer tipo de peruca. Mas admito que prefiro a morena.

Ele acha que meu cabelo castanho-avermelhado era uma peruca. Ótimo.

— Você é doente. Sabe disso, certo? — Tamborilo com as unhas no braço da poltrona.

Hamburg abre um sorriso medonho. Estremeço por dentro, mas mantenho a compostura.

— Eu não matei aquelas pessoas de propósito. Elas sabiam no que estavam se metendo. Sabiam que, no calor do momento, alguém poderia perder o controle.

— Quantas?

Hamburg estreita os olhos.

— O que importa isso, srta. Seyfried? Uma. Cinco. Oito. Por que não diz logo o motivo da sua visita? Dinheiro? Informação? A chantagem assume muitas formas, e não seria a primeira vez que enfrento uma. Sou um veterano.

— Fale sobre a sua esposa — peço, ganhando tempo e fingindo ainda ser quem dá as cartas. — Antes de “ir direto ao assunto”, quero entender sua relação com ela.

Uma parte de mim quer saber de verdade. E estou incrivelmente nervosa; sinto um enxame zumbindo no meu estômago. Talvez jogar conversa fora ajude a acalmar minha mente.

Hamburg inclina a cabeça para o lado.

— Por quê?

— Apenas responda à pergunta.

— Eu a amava muito — responde ele, relutante. — Ela era a minha vida.

— Aquilo é amor? — pergunto, incrédula. — Você manchou a memória dela ao dizer que ela era uma viciada em drogas que se suicidou, só para salvar a própria pele, e chama isso de amor?

Noto uma luz se movendo no chão, por baixo da porta da sala de vigilância. Não havia ninguém lá dentro antes, ao menos que eu tivesse visto.

— Como a chantagem, o amor assume muitas formas. — Hamburg apoia as costas na poltrona de couro, que range, cruzando os dedos roliços sobre a enorme barriga. — Mary e eu éramos inseparáveis. Não éramos como outras pessoas, outros casais, mas o fato de sermos tão diferentes não significava que nos amávamos menos do que os outros. — Os olhos dele cruzam os meus por um momento. — Tivemos sorte por encontrar um ao outro.

— Sorte? — pergunto, pasma com o comentário. — Foi sorte duas pessoas doentes se encontrarem e se unirem para fazer coisas doentias com os outros? Não entendo.

Hamburg balança a cabeça como se fosse um velho sábio e eu fosse jovem demais para entender.

— Pessoas diferentes como Mary e eu...

— Doentes e dementes — corrijo. — Não diferentes.

— Chame como quiser — diz ele, com ar de resignação. — Quando você é tão diferente assim da sociedade, do que é aceitável, encontrar alguém como você é algo muito raro.

Sem perceber, cerro os dentes. Não porque Hamburg esteja me irritando, mas porque nunca imaginei que esse homem nojento pudesse me dizer qualquer coisa que me fizesse pensar na minha situação com Victor, ou qualquer coisa que eu pudesse entender.

Afasto esse pensamento.

A luz fraca sob a porta da sala de vigilância se move de novo. Finjo não ter notado, sem querer dar a Hamburg qualquer motivo para achar que estou pensando em outra saída.

— Vim aqui saber nomes — digo de repente, sem ter pensado bem a respeito.

— Que nomes?

— Dos seus clientes.

Algo muda nos olhos de Hamburg, ele vai tomar o controle da situação.

— Você quer os nomes dos meus clientes? — pergunta ele, desconfiado.

Que merda...

— Pensei que você e Victor Faust já estivessem de posse da minha lista de clientes.

Continue séria. Não perca a compostura. Merda!

— Sim, estamos, mas me refiro àqueles que você não mantinha nos registros.

Acho que vou vomitar. Parece que minha cabeça está pegando fogo. Prendo a respiração, torcendo para ter me livrado dessa.

Hamburg me examina em silêncio, vasculhando meu rosto e minha postura em busca de qualquer sinal de autoconfiança abalada. Ele coça o queixo gordo e cheio de dobras.

— Por que você acha que existe uma lista fantasma?

Suspiro meio aliviada, mas ainda não estou fora de perigo.

— Sempre existe uma lista fantasma — afirmo, embora não faça nem ideia do que estou dizendo. — Quero pelo menos três nomes que não estejam no registro que nós temos.

Sorrio, sentindo que recuperei o controle da situação.

Até ele falar:

— Diga você três nomes da lista que já tem, e eu dou o que você quer.

É oficial: perdi o controle.

Engulo em seco e me controlo antes de parecer “pega no flagra”.

— Você acha que eu carrego a lista na bolsa? — pergunto com sarcasmo, tentando continuar no jogo. — Nada de negociações ou meios-termos, sr. Hamburg. O senhor não está em condições de fazer nenhuma barganha.

— É mesmo? — pergunta ele, sorrindo.

Ele suspeita de mim. Posso sentir. Mas vai garantir que está certo antes de dar o bote.

— Isso não está em discussão. — Eu me levanto da poltrona de couro, enfiando a bolsa debaixo do braço, mais frustrada do que antes por ter que entregar minha arma.

Pressiono os dedos na escrivaninha de mogno, apoiando meu peso neles ao me curvar um pouco na direção de Hamburg.

— Três nomes, ou saio daqui e Victor Faust entra para espalhar os seus miolos naquele belo quadro do menino Jesus atrás de você.

Hamburg ri.

— Esse não é o menino Jesus.

Ele se levanta junto comigo, alto, enorme e ameaçador.

Enquanto vasculho minha mente e tento entender como ele descobriu que sou uma farsante, Hamburg se adianta e anuncia seu raciocínio como um chute na minha boca.

— É engraçado, Izabel, você vir aqui pedir nomes que não aparecem em uma lista que você... — diz, apontando para a minha bolsa — ... nem carrega consigo, porque como você saberia que os nomes que eu daria não estão nela?

Estou muito ferrada.

— Vou dizer o que eu acho — continua ele. — Acho que você veio aqui sozinha por causa de alguma vingança contra mim. — Ele balança o indicador. — Porque eu me lembro de cada detalhe da porra daquela noite. Cada merda de detalhe. Especialmente a sua expressão quando percebeu que Victor Faust tinha vindo matar minha esposa em vez de mim. Era a expressão de alguém pega de surpresa, que não fazia ideia de por que estava ali. Era a expressão de alguém que não está familiarizada com o jogo.

Ele tenta sorrir com gentileza, como se quisesse demonstrar alguma espécie de empatia pela minha situação, mas o que leio em seu rosto é cinismo.

— Acho que, se houvesse mais alguém aqui com você, ele já teria aparecido para salvá-la, porque é óbvio que você está ferrada.

A porta do quarto principal se abre, o guarda-costas entra e a tranca. Por uma fração de segundo, tive a esperança de que fosse Victor vindo me salvar na hora certa. Mas foi só um desejo. O guarda-costas me olha com desprezo. Hamburg acena para ele, que começa a tirar o cinto.

Meu coração afunda até o estômago.

— Sabe — diz Hamburg, dando a volta na escrivaninha —, na primeira vez que a gente se viu, lembro que fiz um acordo com Victor Faust. — Ele aponta para mim. — Você se lembra disso, não?

Hamburg sorri e apoia a mão gorda nas costas da poltrona na qual eu estava sentada, virando-a para mim.

Todo o meu corpo está tremendo; parece que o sangue que passa pelas minhas mãos virou ácido. Ele corre pelo meu coração e pela minha cabeça tão rápido que quase desmaio. Começo a tentar alcançar meu punhal, mas eles estão perto demais, aproximando-se pelos dois lados. Não tenho como enfrentar os dois ao mesmo tempo.

— Como assim? — pergunto, tropeçando nas palavras, tentando ganhar um pouco de tempo.

Hamburg revira os olhos.

— Ora, por favor, Izabel. — Ele gira um dedo no ar. — Apesar do que aconteceu naquela noite, fiquei decepcionado de verdade por vocês dois irem embora antes de cumprir o acordo.

— Eu diria que, em vista do que aconteceu, o acordo não vale mais nada.

Ele sorri para mim e se senta na poltrona de couro. Percebo Hamburg espiar de relance o guarda-costas, dando uma ordem só com o olhar.

Antes que eu consiga me virar, o segurança prende minhas duas mãos nas minhas costas.

— Você vai cometer um erro do caralho se fizer isso! — grito, tentando me livrar das garras do segurança.

Ele me leva à força até uma mesa quadrada e me joga sobre ela. Meus reflexos não são rápidos o suficiente e meu queixo bate no mármore duro. O gosto metálico do sangue enche minha boca.

— Me solte! — Tento chutá-lo. — Me solte agora!

Hamburg ri de novo.

— Vire a cabeça dela para esse lado — ordena ele.

Dois segundos depois, meu pescoço é torcido para o outro lado e mantido ali, minha bochecha esquerda pressionada contra o mármore frio.

— Quero ver a cara dela enquanto você a fode. — Hamburg me olha de novo. — Então vamos continuar do ponto onde paramos naquela noite, tudo bem? Você concorda, Izabel?

— Vai se foder!

— Ah, não, não — diz ele, ainda com o riso na voz. — Não sou eu quem vai foder você. Você não faz o meu tipo. — Seus olhos famintos percorrem o corpo do segurança que está me pressionando por trás.

— Eu vou matar você — digo, cuspindo por entre os dentes. A mão do segurança sobre a minha cabeça impede que eu a mexa. — Vou matar vocês dois! Me estupre! Vamos lá! Mas os dois vão estar mortos antes que eu saia daqui!

— Quem disse que você vai sair daqui? — provoca Hamburg.

O zíper da calça dele está aberto; sua mão direita está parada ao lado da braguilha, como se ele estivesse tentando manter algum autocontrole e não se masturbar ainda.

Então Hamburg acena com dois dedos para o guarda-costas, que me mantém imóvel segurando meus cabelos da nuca.

— Lembre-se disso — diz ele ao segurança. — Ela não vai sair daqui.

Sinto a mão direita do guarda-costas soltar meu cabelo e se mover entre as minhas pernas. Enquanto ele ergue meu vestido, aproveito para alcançar o punhal na minha coxa e tirá-lo da bainha, golpeando atrás em um ângulo desajeitado. O segurança grita de dor e me solta. Puxo o punhal ainda firme na mão, que está coberta de sangue. Ele cambaleia para trás, com a mão na base do pescoço, o sangue jorrando entre seus dedos.

— Sua puta do caralho! — ruge Hamburg, saltando da poltrona e vindo atrás de mim como um elefante descontrolado, a calça caindo de sua cintura flácida.

Corro na direção dele com o punhal levantado e colidimos no meio da sala. Seu peso me joga de bunda no chão e o punhal cai da minha mão, deslizando pelo piso ensanguentado. De pé, Hamburg se abaixa para me segurar, mas me reclino no chão e levanto o pé com toda a força, enfiando o salto da minha sandália na lateral do seu rosto. Ele geme e cambaleia para trás, com a mão na bochecha.

— Eu vou acabar com você! Puta que pariu! — berra ele.

Engatinho na direção do punhal, vendo o segurança no chão, em meio a uma poça de sangue. Ele está engasgando com os próprios fluidos; tentando em vão encher os pulmões de ar.

Pego o punhal com firmeza e rolo no chão enquanto Hamburg se aproxima, derrubando a poltrona de couro. Fico de pé e corro até a mesa, empurrando-a na direção dele. Hamburg tenta tirá-la da frente, mas o móvel balança sobre a base e ele acaba tropeçando. Seu corpo desaba no chão de barriga para baixo e a mesa cai quase na sua cabeça. Salto sobre suas costas e monto em seu corpo obeso. Meus joelhos mal tocam o chão. Agarro seu cabelo, puxo a cabeça dele para trás na minha direção e aperto o punhal em sua garganta, imobilizando-o em segundos.

— Pode me matar! Foda-se! Você não vai sair viva daqui mesmo. — A voz de Hamburg é rouca, sua respiração, rápida e ofegante, como se ele tivesse acabado de tentar correr uma maratona. O cheiro de seu suor e de seu medo invade minhas narinas.

Ocupada com a lâmina em sua garganta, me assusto com o som de batidas fortes na porta. A distração me pega desprevenida. Hamburg consegue se erguer debaixo de mim como um touro, rolando de lado e me derrubando no chão. Deixo cair o punhal em algum lugar, mas não tenho tempo para procurá-lo porque Hamburg consegue se levantar e parte para cima de mim. Ouço a voz de Stephens do outro lado da porta, que vibra com seus socos.

Rolo para sair do caminho antes que Hamburg consiga pular em cima de mim, pego o objeto mais próximo — um peso de papel de pedra, bem pesado, que estava na mesa antes de ser derrubada — e golpeio Hamburg com ele. O som do osso de seu rosto quebrando com o impacto faz meu estômago revirar. Hamburg cai para trás, cobrindo a cara com as mãos.

As batidas na porta ficam mais fortes. Numa fração de segundo, levanto a cabeça e vejo a porta sacudindo com violência no batente. Preciso sair daqui. Agora. Meu olhar varre a sala procurando o punhal, mas não há mais tempo.

Corro para a sala de vigilância, contornando os obstáculos.

Graças a Deus, há outra porta lá dentro. Abro a porta e desço correndo a escada de concreto, torcendo para que seja uma saída e eu não encontre mais ninguém no caminho.


CAPÍTULO CINCO

Sarai

Desço a escada de concreto de dois em dois degraus, segurando no corrimão de metal pintado com as mãos ensanguentadas, até chegar ao térreo. Uma placa vermelha com a palavra SAÍDA está à minha frente. Corro pela passagem mal-iluminada, onde uma lâmpada fluorescente pisca acima de mim e torna o lugar ainda mais ameaçador. Empurro com força a barra da porta com as duas mãos e ela se abre para um beco. Um homem de terno está sentado no capô de um carro, fumando, quando saio para a rua.

Eu fico paralisada.

Ele olha para mim.

Eu olho para ele.

Ele nota o sangue nas minhas mãos e olha de relance para a porta, depois para mim.

— Vá — diz ele, acenando para a caçamba de lixo à minha direita.

Sei que não tenho tempo para ficar confusa nem para perguntar por que ele está me deixando ir embora, mas pergunto assim mesmo.

— Por que você está...?

— Apenas vá!

Ouço passos ecoando na escada atrás da porta.

Lanço um olhar agradecido ao homem e dou a volta na caçamba, desço o beco e me afasto do restaurante. Ouço um tiro segundos depois que dobro a esquina e torço para que seja aquele homem fingindo atirar em mim.

Evito espaços abertos e corro por trás de prédios, protegida pela escuridão, tanto quanto minhas sandálias de salto alto permitem. Quando sinto que estou longe o suficiente para parar um pouco, tento me esconder atrás de outra caçamba e tiro as sandálias. Arranco a peruca loura e a jogo no lixo.

Não consigo respirar. Estou enjoada.

Meu Deus, estou enjoada...

Encosto na parede de tijolos atrás de mim, arqueando as costas e apoiando as mãos nos joelhos. Vomito com violência no chão, meu corpo rígido, o esôfago ardendo.

Pego as sandálias e saio correndo de novo na direção do hotel, tentando esconder o sangue das mãos e do vestido, mas percebo que não é tão fácil. Recebo alguns olhares desconfiados ao passar depressa pela recepção, mas tento ignorá-los e torço para que ninguém chame a polícia.

Em vez de arriscar ser vista por outras pessoas, subo pela escada até o oitavo andar. Quando chego lá, e depois de tudo o que corri, sinto que minhas pernas vão ceder. Encosto na parede e recupero o fôlego, com os joelhos tremendo descontroladamente. Meu peito dói, como se cada respiração trouxesse poeira, fumaça e cacos microscópicos de vidro para o fundo dos pulmões.

O quarto que divido com Eric está trancado e eu não tenho a chave. Aliás...

— Puta merda...

Jogo a cabeça para trás, fecho os olhos e suspiro, arrasada.

Não estou mais com a minha bolsa. Eu a perdi em algum momento da luta na sala de Hamburg. A chave do meu quarto. Meu celular. Minha arma. Meu punhal. Não tenho mais nada.

Bato na porta, mas Eric não está no quarto. Não esperava que estivesse, na verdade, já que não são nem onze da noite. Só para o caso de estar enganada, no entanto, tento o quarto de Dahlia.

— Dahl! Você está aí? — Bato na porta com pressa, tentando não incomodar os outros hóspedes.

Nenhuma resposta.

Já desistindo, jogo as sandálias no chão e apoio as mãos na parede. Minha cabeça desaba. Mas então ouço um clique baixinho e vejo a porta do quarto de Dahlia se abrindo devagar. Levanto a cabeça e a vejo parada ali.

Sem me demorar para questionar a expressão estranha no rosto dela, entro no quarto só para sair do corredor. Eric está sentado na poltrona perto da janela. Noto que seu cabelo está meio bagunçado. O de Dahlia também.

Meu instinto está tentando chamar minha atenção, mas não me importo. Acabei de apunhalar um homem no pescoço e de tentar matar outro. Quase fui estuprada. Estava correndo pelos becos de Los Angeles para fugir de homens armados que vinham atrás de mim. Nada que esses dois façam pode superar isso.

— Meu Deus, Sarai — diz Dahlia, aproximando-se de mim. — Isso é sangue?

A expressão estranha e silenciosa que ela exibia quando entrei no quarto desaparece em um instante quando ela me vê no quarto bem-iluminado. Seus olhos se arregalam, cheios de preocupação.

Eric se levanta da poltrona.

— Você está sangrando. — Ele também me olha de cima a baixo. — O que aconteceu?

Os olhos de Dahlia correm pela minha roupa e pelo meu cabelo preso dentro da touca da peruca.

— Por que... Hã, por que você está vestida assim?

Olho para mim mesma. Não sei o que dizer, então não digo nada. Eu me sinto como um cervo diante dos faróis de um carro, mas minha expressão continua firme e sem emoções, talvez um pouco confusa.

— Você encontrou Matt — acusa Dahlia, começando a levantar a voz. — Puta que pariu, Sarai. Você foi se encontrar com ele, não foi?

Sinto os dedos dela apertando meu antebraço.

Eu me desvencilho de Dahlia e caminho até o banheiro para tirar a touca do cabelo. Enquanto tiro os grampos, noto uma camisinha boiando na privada.

Eric entra no banheiro atrás de mim. Ele sabe que eu vi.

— Sarai, e-eu... Eu sinto muito — diz ele.

— Não se preocupe — respondo, tirando o último grampo e deixando-o na bancada creme.

Passo por Eric e volto para o quarto. Dahlia está me encarando, com o rosto cheio de vergonha e arrependimento.

— Eu...

Ergo a mão e olho para os dois.

— Não, é sério. Não estou brava.

— Como assim? — pergunta Dahlia.

Eric parece agitado. Ele põe a mão na nuca e passa os dedos pelo cabelo.

— Olhe, sem querer ofender — digo a Eric —, mas tenho fingido tudo com você desde a primeira vez que a gente ficou junto.

Ele arregala os olhos, embora tente não deixar que o choque e a mágoa da minha revelação transpareçam demais. Grande parte de mim se sente bem por dizer a verdade. Não por vingança, mas porque eu precisava tirar isso do peito. Mas admito que, depois de descobrir que os dois têm trepado pelas minhas costas, uma pequena parte de mim também fica feliz em magoá-lo. Acho que a vingança sempre encontra um caminho, mesmo nos gestos mais insignificantes.

— Fingido?

— Não tenho tempo para isso — digo, indo na direção da porta. — Vocês dois podem ficar juntos. Não tenho nada contra. Não estou brava, só não me importo mesmo. Preciso ir.

— Espere... Sarai.

Eu me viro para olhar Dahlia. Ela está muito chocada, mal sabe o que pensar. Depois de alguns segundos de silêncio, fico impaciente e a olho com cara de “vai, desembucha”.

— Para você... tudo bem mesmo?

Uau, não sirvo mesmo para o estilo de vida deles. O estilo de vida normal. Nem consigo entender essas coisas de namoro, melhores amigas, infidelidade, competição e joguinhos psicológicos. A cara que eles fazem, tão vazia e mesmo assim tão cheia de incredulidade e dúvida, por causa de uma situação que, para mim, não é tão importante... Tenho coisas mais graves com que me preocupar.

Suspiro, aborrecida com as perguntas vagas e confusas dos dois.

— Sim, por mim, tudo bem — digo, e então me viro para Eric, estendendo a mão. — Preciso da chave do nosso quarto.

Relutante, ele enfia a mão no bolso de trás e pega a chave. Tomo da sua mão, saio dali e vou para o quarto ao lado. Eric vem atrás e tenta falar comigo enquanto guardo minhas coisas na mala.

— Sarai, eu nunca quis...

Eu me viro de repente e o encaro.

— Tudo bem, só vou dizer isto uma vez, depois você muda de assunto ou volta para lá e fica com a Dahlia. Não estou nem aí para o que vocês dois fazem, mas, por favor, não apele para esse clichê de novela de que você nunca quis que isso acontecesse, porque... é muito idiota. — Eu rio baixinho, porque acho idiota mesmo. — Só falta você dizer que o problema não é comigo, é com você. Caramba, você faz ideia do que isso parece? É tão difícil assim acreditar quando digo que não me importo e que estou falando sério? Sem joguinhos. É verdade. — Balanço a cabeça, levanto as mãos e digo: — Não. Me. Importo.

Viro para a mala, fecho o zíper, abro a parte lateral e pego a chave do quarto secreto. Ainda bem que eu tinha uma cópia.

— Preciso ir — digo, andando até a porta e passando por Eric.

— Aonde você vai?

— Não posso contar, mas me escute, Eric, por favor. Se alguém aparecer me procurando, finja que não me conhece. Diga o mesmo para Dahlia. Finjam que nunca me viram na vida. Aliás, quero que vocês dois saiam hoje. Vão para qualquer lugar. Só... não fiquem aqui.

— Você vai me dizer o que aconteceu ou por que está toda ensanguentada? Sarai, você está me deixando assustado pra cacete.

— Eu vou ficar bem — digo, atenuando minha expressão. — Mas prometa que você e Dahlia vão fazer exatamente o que falei.

— Você vai me contar um dia?

— Não posso.

O silêncio entre nós fica mais pesado.

Enfim, abro a porta e saio para o corredor.

— Acho que sou eu quem deveria estar pedindo desculpas.

— Por quê?

Eric fica na porta, com os braços caídos ao lado do corpo.

— Por pensar em outra pessoa durante todo esse tempo em que eu estava com você. — Olho para o chão.

Nós nos encaramos por um breve momento e ninguém diz mais nada. Ambos sabemos que estamos errados. E acho que nós dois estamos aliviados por tudo ter vindo à tona.

Não há mais nada a dizer.

Eu me afasto pelo corredor na direção oposta à do meu quarto secreto e dou a volta por trás, para que Eric não veja aonde estou indo. Quando me tranco no quarto, só consigo desabar na cama. A exaustão, a dor e o choque de tudo o que aconteceu esta noite me atingem em cheio assim que a porta se fecha, e me engolem como uma onda. Eu me jogo de costas no colchão. Minhas panturrilhas doem tanto que duvido conseguir andar sem mancar amanhã.

Fico olhando para o teto escuro até ele desaparecer e eu pegar no sono.


CAPÍTULO SEIS

Sarai

Um tum! pesado me acorda, mais tarde naquela noite. Eu me levanto como uma catapulta.

Vejo dois homens no meu quarto: um desconhecido morto no chão e Victor Faust de pé sobre o corpo dele.

— Levante-se.

— Victor?

Não acredito que ele está aqui. Devo estar sonhando.

— Levante-se, Sarai. AGORA! — Victor me pega pelo cotovelo, me arranca da cama e me põe de pé.

Não consigo nem pegar minhas coisas, ele já está abrindo a porta e me puxando para o corredor com ele, segurando forte a minha mão.

Disparamos juntos pelo corredor e outro homem aparece virando a esquina, de arma em punho. Victor aponta sua 9mm com silenciador e o derruba antes que o cara consiga atirar. Ele passa pelo corpo me puxando, seus dedos fortes afundando na minha mão enquanto corremos para a escada. Ele abre a porta, me empurra para a frente e nós subimos depressa os degraus de concreto. Um andar. Três. Cinco. Minhas pernas estão me matando. Acho que não consigo andar por muito mais tempo. Enfim, no quinto andar, Victor me puxa para outro corredor e rumo a um elevador nos fundos.

Quando as portas do elevador se fecham e estamos só nós dois lá dentro, finalmente tenho a oportunidade de falar.

— Como você sabia que eu estava aqui? — Mal consigo recuperar o fôlego, esgotada pela correria infinita e pela adrenalina, mas acho que sobretudo porque Victor está de pé ao meu lado, segurando minha mão.

Meus olhos começam a arder com as lágrimas.

Engulo o choro.

— O que você estava pensando, Sarai?

— Eu...

Victor segura meu rosto com as duas mãos e me empurra contra a parede do elevador, pressionando ferozmente seus lábios nos meus. Sua língua se entrelaça na minha e sua boca tira meu fôlego em um beijo apaixonado que, enfim, faz meus joelhos cederem. Toda a força que eu estava usando para manter o corpo ereto desaparece quando os lábios dele me tocam. Ele me beija com fome, com raiva, e eu derreto em seus braços.

Então ele se afasta, as mãos fortes nos meus braços, me segurando contra a parede do elevador. Nós nos encaramos pelo que parece ser uma eternidade, nossos olhos paralisados em uma espécie de contemplação profunda, nossos lábios a centímetros de distância. Só quero prová-los de novo.

Mas ele não deixa.

— Responda — exige Victor, estreitando seus olhos perigosos em reprovação.

Já esqueci a pergunta.

Ele me sacode.

— Por que você veio aqui? Tem ideia do que você fez?

Balanço a cabeça em um movimento curto e rápido, parte de mim mais preocupada com seu olhar ameaçador do que com o que ele está dizendo.

A porta do elevador se abre no subsolo e eu não tenho tempo para responder, pois Victor mais uma vez pega minha mão e me puxa para que o siga. Serpenteamos por um grande depósito com caixas em pilhas altas encostadas nas paredes e depois por um longo corredor escuro que leva a um estacionamento. Victor enfim solta minha mão e eu o sigo até um carro parado entre dois furgões pretos com o logotipo do hotel nas laterais. Dois bipes ecoam pelo ambiente e os faróis do carro piscam quando nos aproximamos, iluminando a parede de concreto em frente. Sem perder tempo, me sento no banco do passageiro e fecho a porta.

Segundos depois, Victor está dirigindo casualmente pelo estacionamento até a rua.

— Eu queria que ele morresse — respondo, enfim.

Victor não me olha.

— Bom, você fez um excelente trabalho — rebate ele, sarcástico.

Ele vira para a direita no semáforo, e o carro ganha velocidade quando chegamos à rodovia.

Fico magoada por suas palavras, mas sei que ele tem razão, por isso não discuto. Fiz merda. Uma merda muito grande.

Mas não me dou conta do tamanho dela até Victor dizer:

— Os seus amigos podiam ter morrido. Você podia ter morrido.

Sinto meus olhos se arregalarem além dos limites e me viro mais um pouco para encará-lo.

— Ah, não... Victor, o quê... Eles estão bem?

Sinto que vou vomitar de novo.

Victor me olha por um instante.

— Estão ótimos. O primeiro quarto que os capangas de Hamburg revistaram estava vazio — diz ele, voltando a olhar para a estrada. — Eu cheguei quando eles estavam saindo. Segui um deles até o quarto onde você estava escondida, deixei que ele destrancasse a porta e então ataquei.

As chaves do quarto. Minhas duas chaves extras estavam na bolsa que perdi no restaurante de Hamburg. E os números dos quartos estavam escritos nas capinhas de papel que as protegiam. Eu estava tão preocupada em esconder minha arma e meu punhal que nem pensei em esconder as chaves.

— Merda! — Também olho para a estrada. — E-eu perdi a bolsa no restaurante. As chaves do meu quarto estavam dentro dela. Deixei um rastro para eles seguirem!

Felizmente, eu não tinha uma chave extra do quarto de Dahlia, senão ela e Eric já poderiam estar mortos.

Onde é que eu estava com a cabeça?!

— Não, você deixou literalmente as chaves do seu quarto com o nome do hotel gravado. Sarai, eu devia ter matado você há muito tempo e poupado toda essa confusão para cima de você e de mim.

Eu me viro para encará-lo; a raiva e a mágoa pesando no meu peito.

— Você não está falando sério.

Ele faz uma pausa e me olha. Suspira.

— Não, não estou falando sério.

— Nunca mais me diga isso. Nunca mais me diga uma coisa dessas, ou eu mato você e poupo a mim de toda essa confusão — rebato, desviando o olhar.

— Você não está falando sério — diz Victor.

Olho mais uma vez para aqueles olhos ameaçadores verde-azulados que me fizeram tanta falta.

— Não. Mas acho que isso seria o mais sensato.

— Bom, você não foi a campeã da sensatez hoje, então acho que estou seguro ao menos pelas próximas 24 horas.

Escondo o sorriso.

— Senti sua falta — digo de maneira distante, olhando para a estrada.

Victor não responde, mas admito que seria estranho se respondesse. A despeito de sua falta de emoção, porém, sei que ele também sentiu saudade de mim. Aquele beijo no elevador disse coisas que palavras jamais conseguiriam.

Ele pega uma saída e para o carro debaixo de um viaduto. Puxa o freio de mão e a área ao redor desaparece na escuridão quando ele desliga os faróis.

— O que a gente está fazendo aqui?

— Você precisa ligar para os seus amigos.

— Por quê?

Ele tira um celular do porta-luvas entre nós.

— Mande eles voltarem para o Arizona. Faça ou diga o que for preciso para que eles saiam de Los Angeles. Quanto antes, melhor.

Ele coloca o telefone na minha mão. De início, só olho para o aparelho, mas ele me pressiona com aquele olhar, aquele que grita “vamos lá, faça isso de uma vez”, mas que só alguém como eu, alguém que conhece Victor, seria capaz de notar.

Giro o celular nas mãos, depois o seguro firmemente e digito o número de Eric. Mas então mudo de ideia, desligo no primeiro toque e ligo para Dahlia.

Ela atende no quinto toque.

Respiro fundo e faço o que sei fazer melhor: minto.

— A verdade é que vocês me magoaram. Duvido que um dia eu consiga perdoar você ou Eric pelo que fizeram.

— Sarai... Meu Deus, me desculpe, estou me sentindo muito mal. A gente não queria que isso chegasse a esse ponto. Juro para você. Não sei o que aconteceu...

— Escute, Dahlia, por favor, só me escute.

Ela fica quieta.

Começo a choradeira. Nunca imaginei que eu seria capaz de chorar sob demanda e de forma tão falsa.

— Eu quero acreditar em você. Quero conseguir confiar em você de novo, mas você era minha melhor amiga e me traiu. Preciso de um tempo sozinha e quero que você e Eric voltem para o Arizona. Hoje. Acho que não vou aguentar ver vocês de novo... Espere, onde você está, agora?

Acabo de me dar conta de que, se ela e Eric estiverem no hotel, a essa altura ela já sabe que dois homens foram mortos a tiros no andar do quarto deles.

— A gente está em uma festa em um terraço — conta ela. — T-tudo bem por você? Achei que não tinha nada a ver a gente sair, mas o Eric falou que você insistiu...

— Não, tudo bem — digo, cortando-a. — Insisti mesmo. Onde ele está, agora?

— Deixei Eric lá no terraço para a gente poder conversar. Está muito barulhento lá em cima. Que número é esse de onde você está ligando?

— É o celular de um amigo. Perdi o meu. O Eric por acaso avisou que se alguém procurar por mim...

— Avisou, sim — interrompe Dahlia. — Que confusão é essa, afinal? Meu Deus, Sarai, esquece por um momento esse lance com Eric e me conta o que está acontecendo, por favor. O sangue. As roupas esquisitas que você estava usando e aquele troço na sua cabeça. Era uma touca de peruca? Você está metida em alguma encrenca, eu sei. Sei que você me odeia, e tem todo o direito de odiar, mas, por favor, conte o que aconteceu.

— Não posso contar, porra! — grito, deixando o choro distorcer minha voz. — Caramba, Dahlia, faça o que eu pedi. Pelo menos isso! Você deu para o meu namorado! Por favor, voltem para o Arizona, me deixem esfriar a cabeça e depois eu volto para casa. Talvez aí a gente possa conversar. Mas agora façam o que eu estou pedindo. Tudo bem?

Ela não responde por um momento, e um longo silêncio se forma entre nós.

— Tudo bem — concorda ela. — Vou dizer ao Eric que a gente precisa ir embora.

— Obrigada.

Estou apenas um pouco aliviada. Não vou me sentir bem com isso até saber que eles chegaram em casa sãos e salvos.

Desligo sem dizer mais uma palavra.

— Bom, isso foi bastante convincente — observa Victor, levemente impressionado.

— Acho que foi.

— Eu sei que a sua amiga acreditou — acrescenta ele. — Mas eu não acreditei em uma só palavra.

Eu me viro para ele. Victor me conhece tão bem quanto eu o conheço, parece.

— É porque nem uma palavra era verdade.

Ele deixa por isso mesmo e nós saímos de baixo do viaduto.

Chegamos a uma casa perdida no final de uma estrada isolada nos arredores da cidade, empoleirada no alto de uma colina com uma vista quase perfeita para a cidade lá embaixo. Uma piscina de formato irregular começa no lado esquerdo da casa e serpenteia por trás, a água azul-clara iluminada por lâmpadas submersas parece luminescente. O lugar está silencioso. Só ouço o vento passando pela mata cerrada que contorna o lado direito e os fundos da casa, impedindo uma visão em 360 graus da paisagem iluminada de Los Angeles. Quando nos aproximamos da porta, uma mulher robusta usando uniforme azul de empregada nos recebe. Ela tem cabelo preto encaracolado e pele morena. Suas bochechas são volumosas, envolvendo seus olhos castanho-escuros pequenos e brilhantes, que fitam atentamente Victor e a mim.

— Por favor, entrem — diz ela, com um sotaque hispânico familiar.

A mulher fecha a porta. A casa cheira a limpa-vidro e a uma mistura pouco natural de cheiros adocicados que só pode vir de algum tipo de aromatizador de ambientes artificial. Parece que todas as janelas foram abertas, permitindo que a brisa noturna de verão se espalhasse pela casa. Não se parece em nada com as mansões ricas onde já estive, mas é impecável e aconchegante, e penso que eu deveria pelo menos ter tomado um banho antes de vir. Minha pele e minhas roupas ainda estão manchadas de sangue...

Victor está usando uma calça preta e uma camisa apertada de mangas compridas que adere a cada músculo de seus braços e seu peito, com os punhos desabotoados e arregaçados até os cotovelos. A camisa está por fora da calça e os dois botões de cima estão abertos. Sapatos pretos chiques e informais calçam seus pés. Um relógio brilhante de prata adorna seu pulso direito, e não consigo deixar de notar a solitária veia grossa que percorre as costas de sua mão até o osso de seu pulso. Quando ele segue a empregada pela grande entrada e se vira momentaneamente de costas para mim, vejo o cabo da arma saindo da cintura de sua calça, com a barra da camisa branca enfiada atrás.

Ele me olha, para e estende o braço, em um gesto para que eu ande à sua frente. Tremo de leve quando sua mão toca minhas costas perto da cintura.

Antes que eu tenha tempo de me sentir deslocada ao lado dele, Fredrik, o amigo e cúmplice sueco de Victor que conheci no restaurante de Hamburg há tanto tempo, entra na sala pelas grandes portas de vidro que dão para o quintal dos fundos.


CAPÍTULO SETE

Sarai

— Você chegou cedo — comenta Fredrik com um sorriso mortal, porém inimaginavelmente sexy.

As roupas dele são bem parecidas com as de Victor, mas, em vez de camisa de botão, Fredrik está vestindo uma camiseta branca apertada que adere à sua forma esbelta e máscula. Ele está descalço.

A primeira vez que vi Fredrik, pensei que era impossível haver alguém mais bonito. Com cabelo macio, quase preto, e olhos escuros e misteriosos, suas feições parecem ter sido esculpidas por algum artista famoso. Mas sempre achei que havia algo de sombrio e assustador naquele homem. Um lado dele que eu, particularmente, não faço questão de conhecer. Para mim, basta o jeito como ele era quando nos encontramos: cordial, encantador e misterioso, uma linda máscara que ele usa para esconder a fera que há por trás.

Victor olha para seu relógio caro.

— Só dez minutos mais cedo — comenta ele.

Fredrik sorri ao se aproximar, os dentes brancos reluzindo contra a pele bronzeada.

— Sim, mas você sabe como eu sou.

Victor assente, mas não alonga o assunto. A mim, só resta imaginar o que aquilo significa.

— É bom ver você — diz Fredrik, observando-me do topo de sua altura considerável e presença avassaladora. Ele se inclina, pega minha mão e a beija, logo acima dos nós dos dedos. — Ouvi dizer que você matou um homem hoje.

Ele apruma as costas e solta minha mão. Um sorriso perturbador e orgulhoso surge em seu rosto, os cantos dos olhos se aquecendo com alguma lembrança ou... prazer, como se a ideia de matar alguém o deliciasse de alguma forma.

Olho para Victor à minha direita. Ele assente, respondendo à pergunta estampada no meu rosto. O guarda-costas que apunhalei no pescoço morreu?

Olho para Fredrik e respondo sem rodeios.

— Acho que matei.

Um leve sorriso se abre nos cantos dos lábios de Fredrik, e ele olha de relance para Victor, sem mover a cabeça.

— E você se sente bem com isso? — pergunta Fredrik.

— Para dizer a verdade, sim — respondo sem demora. — O desgraçado mereceu.

Fredrik e Victor parecem envolvidos em algum tipo de conversa secreta. Odeio isso.

Enfim, Fredrik diz para Victor em voz alta:

— Você arrumou sarna para se coçar, Faust.

Ele então se vira de costas para nós e anda na direção das portas de vidro. Nós o seguimos para o lado de fora, passando pela parte coberta do quintal e descendo uma escada de pedra que leva a um enorme pátio, também de pedra, que se abre em todas as direções. O pátio é decorado com mesas e cadeiras de ferro batido e uma cama com dossel ao ar livre.

Eu me sento ao lado de Victor em um sofá.

— Como é que você sabe? — pergunto a Fredrik, mas então me viro para Victor e digo: — E você ainda não me contou como sabia que eu estava aqui.

Na verdade, isso não importa muito, só quero encará-lo nos olhos de novo. Quero ficar sozinha com Victor, mas por enquanto vou precisar me contentar com os 7 centímetros entre nossos corpos, sentados lado a lado.

— Melinda Rochester me contou — explica Fredrik com um sorriso conivente. Começo a perguntar “E quem é Melinda Rochester”, mas ele diz: — Bem, ela contou para todo mundo, na verdade. Noticiário do Canal 7. Um homem morto a punhaladas atrás de um restaurante de Los Angeles.

Começo a me retorcer por dentro. Espero que as câmeras não tenham me mostrado com nitidez.

Eu me viro para Victor, com a preocupação transparecendo no rosto.

— Eu estava de peruca loura — digo, tentando encontrar alguma coisa, qualquer coisa que eu tenha feito certo. — Fiquei com a cabeça baixa... a maior parte do tempo.

Desisto. Sei que o que fiz vai continuar me perseguindo. Suspiro e olho para as mãos ensanguentadas no meu colo.

— E encontrar você foi fácil — continua Victor. — A sra. Gregory me ligou depois que você saiu do Arizona. Ela estava preocupada com a sua vinda para Los Angeles e achou que eu precisava saber.

Viro a cabeça para encará-lo.

— O quê? Dina sabia onde você estava? — Sinto a pele ao redor das sobrancelhas se enrijecendo.

— Não — responde ele, com delicadeza. — Ela não sabia onde eu estava, mas sabia como entrar em contato comigo.

Essas palavras me magoam. Engulo em seco a sensação de ser traída por eles.

— Falei para ela entrar em contato comigo só em caso de emergência — acrescenta Victor. — Caso algo acontecesse com você.

— Você deixou para Dina uma forma de entrar em contato — digo, ríspida —, mas para mim, nada. Não acredito que você fez isso.

— Eu queria que você tocasse a sua vida. Mas, caso os irmãos de Javier descobrissem onde você estava, ou você decidisse fazer uma proeza como a de hoje, eu queria ficar sabendo.

Não consigo olhar para Victor. Tento chegar mais alguns centímetros para o lado a fim de aumentar a distância entre nós. Ainda assim, mesmo que esteja magoada e enfurecida com ele, sinto vontade de me aproximar de novo. Mas me mantenho firme e me recuso a deixá-lo perceber que o poder que ele exerce sobre mim faz a raiva que sinto parecer um chilique.

— Não acredito que Dina escondeu isso de mim — digo em voz alta, ainda que esteja falando mais comigo mesma.

— Ela escondeu de você porque eu disse a ela quanto isso era importante.

— Bom, de qualquer maneira — interrompe Fredrik, sentando-se na poltrona ao lado do sofá —, parece que você se meteu em uma situação da qual não vai conseguir sair tão facilmente, se é que vai conseguir.

— Por que a gente está aqui? — pergunto, aborrecida.

Fredrik ri baixinho.

— Aonde mais você iria?

— Eu precisava tirar você do hotel — explica Victor.

— Espere um pouco. Eu não matei aquele homem atrás do restaurante. Tudo aconteceu na sala particular de Hamburg, no andar de cima.

Recordo o homem que vi do lado de fora, atrás do restaurante, aquele que me deixou fugir, e meu coração afunda.

— Hamburg não deixaria que a polícia acreditasse que o assassinato aconteceu lá dentro, porque eles confiscariam a memória da câmera de vigilância e veriam o que realmente aconteceu.

Não estou entendendo nada. Nadinha.

— Eles não iam querer que a polícia soubesse o que realmente aconteceu?

Fredrik se reclina na poltrona e ergue um pé descalço, apoiando o tornozelo sobre o outro joelho, e estende os braços sobre os da poltrona.

Victor balança a cabeça.

— Preciso mesmo explicar isso para você, Sarai?

Sua vaga irritação me pega de surpresa. Olho para ele e levo alguns segundos para entender tudo sem que ele precise explicar.

— Ah, entendi — digo, olhando um de cada vez. — Hamburg não quer que a polícia se envolva porque corre o risco de se expor. O que ele fez, então? Só levou o corpo para fora? Preparou a situação para parecer um assalto comum? Não muito diferente do que ele fez naquela noite em que a gente estava na mansão dele, imagino.

Paro por aí porque Fredrik está presente. Não sei qual o grau de intimidade entre ele e Victor, nem mesmo se Fredrik sabe o que aconteceu na noite em que Victor matou a esposa de Hamburg.

Os olhos de Victor sorriem de leve para mim: sua maneira de me mostrar quanto lhe agrada eu ter entendido tudo. Ainda fingindo estar aborrecida, não retribuo o olhar da forma que ele deve esperar.

A empregada aparece com um balde chique de gelo, de madeira, com três garrafas de cerveja dentro. Fredrik pega uma, então ela nos oferece. Victor pega uma garrafa, mas recuso, mal conseguindo olhar a mulher nos olhos. Estou absorta demais nos acontecimentos da noite, que não me saem da cabeça.

A empregada vai embora logo depois, sem dizer uma palavra.

— O que você quis dizer com os irmãos de Javier?

Victor abre sua garrafa e a põe na mesa.

— Dois deles, Luis e Diego, assumiram os negócios de Javier dias depois que você o matou.

Por um instante, o rosto de Javier surge em minha mente: sua expressão chocada e ainda orgulhosa, os olhos arregalados, o corpo caindo no chão segundos depois de eu meter uma bala em seu peito.

Afasto a imagem.

Eu me lembro de Luis e Diego. Diego é aquele que tentou me estuprar quando eu estava na fortaleza no México, aquele que Javier castrou como punição.

— Eles estão me procurando?

Victor toma um gole de cerveja e devolve a garrafa à mesa com calma.

— Que eu saiba, não. Estou monitorando a fortaleza há meses. Os irmãos de Javier são amadores. Não têm ideia do que fazer com tanto poder. Duvido até que vejam você como ameaça.

Fredrik toma um gole de cerveja e prende a garrafa entre as pernas.

— Não fique tão aliviada assim — diz ele. — É melhor ser perseguida por amadores do que por Hamburg e aquele braço direito dele.

Um nó nervoso se forma no fundo do meu estômago. Olho de relance para Victor, buscando respostas.

— Willem Stephens — esclarece Victor — faz todo o serviço sujo de Hamburg. Hamburg em si é covarde, tão perigoso quanto o pedófilo gente boa da vizinhança. Mal consegue atirar em um alvo imóvel, e trairia alguém em dois minutos para se salvar. — Ele arqueia uma sobrancelha. — Stephens, por outro lado, tem uma extensa formação militar, é ex-mercenário e trabalhou para uma Ordem do mercado negro em 1986.

— Uma o quê?

— Uma Ordem como a nossa — explica Victor —, mas que aceita contratos particulares. Eles fazem coisas que outros agentes se recusam a fazer, vendem seus serviços basicamente para qualquer um.

— Ah... Então, resumindo, ele mata gente inocente por dinheiro.

Lembro o que Victor me contou, meses atrás, sobre a natureza dos contratos particulares, como pessoas eram assassinadas por motivos fúteis como traição conjugal ou vingança. A Ordem de Victor só trabalha com crime, ameaças sérias a um grande número de pessoas ou ideias que poderiam ter um impacto negativo na sociedade ou na vida como um todo.

Engulo em seco.

— Bom, ele me viu, com certeza. — Levanto as mãos e tiro o cabelo do rosto, passando as mãos no alto da cabeça. — Foi ele quem me levou para o segundo andar, para a sala de Hamburg. — Olho para Victor. — Desculpa, Victor. Eu... eu não sabia de nada disso.

Fredrik ri baixinho e diz:

— Algo me diz que, mesmo se você soubesse, teria ido lá de qualquer maneira.

Desvio o olhar de Victor e olho para baixo de novo, nervosa, esfregando os dedos ensanguentados uns nos outros. Fredrik tem razão. Odeio admitir, mas ele tem razão. Eu teria ido para o restaurante mesmo assim. Teria tentado matar Hamburg mesmo assim. Mas, se eu soubesse de tudo isso, acho que teria pensado em um plano melhor.

De repente, sinto que alguma coisa toma meu corpo e me tira o fôlego.

— Victor... Meu celular... — Eu me levanto do sofá, com o cabelo castanho-avermelhado caindo pelos ombros, batendo em meus braços nas partes em que o sangue secou e formou uma crosta áspera. — O número de Dina está no meu celular. Merda. Merda! Victor, Stephens vai atrás dela! Preciso voltar para o Arizona!

Começo a seguir para a porta dos fundos, mas Victor me alcança antes que eu atravesse o caminho decorado com pedras lisas.

— Espere aí.

Olho para baixo e vejo os dedos dele em volta do meu pulso. Seus hipnóticos olhos verde-azulados me fitam com desejo e devoção. Devoção. Algo que nunca vi no olhar de Victor antes.

Fredrik fala atrás de nós, me tirando do transe em que Victor me colocou.

— Eu vou cuidar disso — diz ele.

Desvio o olhar de Victor para Fredrik, que então ganha importância, considerando que a vida de Dina está em jogo.

— Como? — pergunto.

Victor me leva de volta para o sofá.

Fredrik pega o celular da mesa à frente, procura um número e toca na tela para ligar. Então encosta o celular no ouvido.

Victor me faz sentar perto dele de novo. Estou concentrada demais em Fredrik no momento para notar que Victor fez questão de se sentar tão perto que sua coxa está encostada na minha. Quero aproveitar o momento de proximidade, mas não posso. Estou preocupada com Dina.

Fredrik se reclina na poltrona de novo, balançando o pé descalço apoiado no joelho. Seu rosto fica alerta quando alguém atende à ligação.

— Em quanto tempo você consegue chegar a Lake Havasu City? — pergunta Fredrik ao telefone. Ele ouve por um segundo e assente. — Mando o endereço por mensagem de texto assim que eu desligar. Vá para lá o mais rápido que puder. Uma mulher mora lá. Dina Gregory. — Ele me olha de relance, para se certificar de que disse o nome certo. Como não o corrijo, volta a falar ao telefone. — Tire-a da casa e a leve para Amelia, em Phoenix. Sim. Sim. Não, não pergunte nada a ela. Só tome cuidado para ninguém machucar Dina. Sim. Me ligue neste número assim que estiver com ela.

Fredrik assente mais algumas vezes. Meu coração está batendo tão forte que parece pronto para pular do peito. Espero que a pessoa com quem ele está falando consiga encontrar Dina a tempo.

Fredrik desliga e parece abrir uma tela de texto no celular. Ele olha para mim, mas é Victor quem dá o endereço da sra. Gregory. Fredrik o digita e deixa o celular na mesa.

— Meu contato está a apenas trinta minutos de lá — explica Fredrik, olhando primeiro para mim. Então se vira para Victor. — O que você quer que eu faça?

Ele levanta as costas da poltrona e apoia os cotovelos nos joelhos, deixando as mãos entre eles. Mesmo em uma posição relaxada, ele consegue parecer elegante, importante e perigoso.

— Ainda preciso que você verifique o que discutimos ontem — diz Victor, e fica ainda mais claro, para mim, que Fredrik recebe ordens dele, embora não pareça ser do tipo que recebe ordens de ninguém. Mas está claro que os dois têm uma relação forte. — E, se você não se importa, preciso da sua casa emprestada por esta noite.

Os olhos escuros de Fredrik me encaram, e o traço de um sorriso aparece em seu rosto. Ele se levanta e pega o celular da mesa, escondendo-o na mão.

— Não precisa dizer mais nada. Vou sair daqui em vinte minutos. Eu ia mesmo me encontrar com alguém hoje, então está combinado.

A atitude de Victor muda um pouco, o que percebo no mesmo instante. Ele está encarando Fredrik, do outro lado da mesa do pátio, com um olhar cansado e cauteloso.

— Você não vai fazer o que estou pensando...

Ouço com atenção sem nem ao menos tentar disfarçar. Eu quero que eles saibam que estou bisbilhotando, porque é frustrante nenhum dos dois me oferecer qualquer explicação sobre esses comentários internos.

Fredrik ergue um lado da boca em um meio sorriso. Ele balança a cabeça de leve.

— Não, esta noite, não, infelizmente. Mas já faz algum tempo. Vou precisar que você me ajude com isso em breve.

Os olhos dele passam por mim e sinto um calafrio percorrer minhas costas. Não consigo decidir se é um arrepio bom ou assustador.

— Você terá sua oportunidade logo, logo — assegura Victor.

Fredrik dá a volta na mesa.

— Lamento por ter que encurtar nossa reunião.

— Tudo bem — digo. — Obrigada por ajudar com Dina. Você avisa quando receber aquela ligação?

Fredrik assente.

— Com certeza. Farei isso.

— Obrigada.

Victor acompanha Fredrik até a porta de vidro e os dois a atravessam. Fico sentada, observando-os do outro lado do pátio de pedra e tentando ouvir o máximo que posso, mas eles fazem questão de falar em voz baixa. Isso também me deixa frustrada. E pretendo informar Victor disso.


CAPÍTULO OITO

Victor

Fredrik fecha a porta de correr feita de vidro.

— Ela não sabe nada sobre Niklas? — pergunta ele, como eu já previa.

— Não, mas vou ter que contar. Ela vai precisar ficar atenta o tempo todo. Agora mais do que nunca.

— Ela não pode ficar aqui por muito tempo — aconselha Fredrik, olhando, através do vidro, Sarai sentada no sofá lá fora e nos observando. — Você também não.

— Eu sei. Quando Niklas descobrir que ela participou do assassinato no restaurante de Hamburg, vai saber na mesma hora que também estou envolvido nisso. Ele não é bobo. Se Sarai está viva, Niklas vai saber que estou tentando ajudá-la.

— E como ele desconfia de que agora trabalho com você — acrescenta Fredrik —, ela corre tanto perigo perto de mim quanto de você.

— É verdade.

Fredrik balança a cabeça para mim, com um sorriso escondido no fundo dos olhos.

— Não entendo esse envolvimento. Respeito você como sempre, respeitei, Victor, mas nunca vou entender a necessidade de um homem amar uma mulher.

— Eu não estou apaixonado por ela. Ela só é importante para mim.

— Talvez não — retruca ele, indo para a cozinha. — Mas parece que o amor e o envolvimento trazem as mesmas consequências, meu amigo. — Sigo Fredrik até a cozinha iluminada e ele abre um armário. — Mas estou do seu lado. O que você precisar que eu faça para ajudar, é só pedir. — Ele aponta para mim perto do armário, agora com um pão na mão.

A empregada de Fredrik entra na cozinha, roliça e mais velha do que nós dois juntos, exatamente o tipo de mulher que jamais o atrairia, e foi por isso que ele a contratou. Ela lhe pergunta em espanhol se pode voltar para casa e ver a família mais cedo hoje. Fredrik responde em espanhol, concordando. Ela assente respeitosamente e passa por mim na sala. De soslaio, eu a observo pegar uma bolsa volumosa de couro marrom do chão, perto da espreguiçadeira, e colocá-la no ombro. Depois ela vai até a porta, fechando-a devagar ao sair.

Sarai está de pé nas sombras da sala quando desvio o olhar da porta. Nem ouvi a porta de vidro correr quando ela entrou, e pelo jeito Fredrik também não.

Ela vai para a cozinha iluminada, de braços cruzados, os dedos delicados segurando seus bíceps femininos, mas bem-definidos. Ela é linda demais, mesmo quando está desgrenhada assim.

— Quanto tempo vocês planejavam me deixar lá fora? — pergunta ela, com um traço de irritação na voz.

— Ninguém disse que você precisava ficar lá, gata — responde Fredrik.

Ele gosta dela, isso é óbvio para mim, e ele deve saber. Mas também sabe que vou matá-lo. Ainda assim, minha confiança em Fredrik é maior do que minha preocupação de que ele volte para o lado sombrio e a machuque. Fredrik Gustavsson é uma fera do tipo mais carnal, que adora mulheres e sangue, mas tem limites e critérios, além de levar a lealdade, o respeito e a amizade muito a sério. Sua lealdade a mim é, afinal, o motivo para ele trair a Ordem todos os dias me ajudando.

Sarai se aproxima de mim e me olha nos olhos, inclinando um pouco a cabeça para o lado. O cheiro de sua pele e o calor tênue que emana dela quase me fazem perder o controle. Tenho conseguido me conter bastante desde que a beijei no elevador. Pretendo continuar assim.

Ela não diz nada, mas continua me encarando como se esperasse alguma coisa. Fico confuso. Ela inclina a cabeça para o outro lado e seu olhar se suaviza, embora eu não saiba ao certo por quê. Parece maliciosa e cheia de expectativa.

Ouço Fredrik rir baixinho e a porta da geladeira se fechar, mas não tiro os olhos de Sarai.

— As coisas são tão mais fáceis do meu jeito. — Ouço-o dizer, com um sorriso na voz.

— Entre em contato comigo assim que tiver a informação sobre Niklas — peço, ainda olhando nos olhos de Sarai e ignorando o comentário dele. — E quando souber pelo seu contato se Dina Gregory está a salvo em Phoenix.

— Pode deixar — diz Fredrik, e então vai para a porta do corredor que leva ao seu quarto. Mas ele para e olha para nós. — Se você não se importa...

Enfim desvio o olhar de Sarai e dou atenção total a Fredrik.

— Não se preocupe — interrompo —, eu sei onde fica o quarto de hóspedes.

Ele enfia na boca um sanduíche que mal notei que ele preparava e morde, rasgando um pedaço de pão. Eu o vejo piscando para Sarai antes de desaparecer da sala. Foi algo inofensivo, uma menção ao que ele acha que pode acontecer entre nós quando sair, e não uma tentativa de flerte.

— Que informação sobre Niklas? — pergunta Sarai, seus traços suaves agora encobertos pela preocupação.

Estendo a mão e passo os dedos por algumas mechas do cabelo dela.

— Preciso contar muita coisa para você — anuncio, tirando a mão antes de perder o controle e acabar tocando nela mais do que pretendo. — Sei que você deve estar exausta. Por que não toma um banho e fica à vontade primeiro? Depois conversamos.

Um sorrisinho suave emerge em seus lábios, mas logo desaparece em seu rosto enrubescido.

— Você quer dizer que eu estou nojenta? — pergunta ela, tímida. — Esse é o seu jeito de me dizer que preciso lavar meu corpo nojento?

— Na verdade, sim — admito.

Por um momento ela faz uma careta e parece ofendida, mas então só balança a cabeça e dá risada. Admiro isso em Sarai. Admiro muita coisa nela.

— Tudo bem. — Sua expressão brincalhona fica séria de novo. — Mas você precisa me contar tudo, Victor. E eu sei que você deve ter muito para contar, mas saiba que também preciso dizer muita coisa para você.

Eu já esperava isso. E, antes que ela fique na ponta dos pés, incline o corpo na minha direção e me beije, já sei que, quando ela sair do banho, vou precisar decidir o que vamos fazer. Vou precisar tomar algumas decisões importantes, que nos afetarão.

Porque de uma coisa eu tenho certeza: Sarai não pode voltar para casa.


Sarai

Quando volto, Victor está na sala, acomodado na beira do sofá, curvado sobre a mesinha de centro feita de vidro que está cheia de pedaços de papel e fotografias. Entro, mas ele continua remexendo neles sem erguer a cabeça para me olhar. Só que ele não me engana, sei que sente a minha presença tanto quanto quero que ele sinta.

Vasculhei o guarda-roupa de Fredrik procurando uma camiseta branca, que vesti sobre meus seios nus. Infelizmente, tive que usar a mesma calcinha de antes, mas as cuecas boxer de Fredrik não são exatamente o tipo de lingerie que eu gostaria de usar para seduzir Victor. Só uma camiseta e uma calcinha. Claro que fiz questão de vestir o mínimo possível, porque desejo Victor e não tenho nenhuma vergonha de deixar isso claro. Mas ainda custo a acreditar que estou no mesmo cômodo que ele, depois de meses achando que ele havia ido embora para sempre.

Acho que o beijo no elevador é onde minha mente ficou suspensa, como se o tempo tivesse parado naquele momento e cada parte de mim ainda deseje que aquele instante continue. Contudo, o resto do mundo continua passando ao meu redor.

Eu me sento ao lado de Victor, recolhendo um pé descalço para o sofá e enfiando-o sob a minha coxa.

— O que é isso tudo? — Olho para os papéis e fotografias na mesa.

Ele mexe em alguns pedaços de papel, empilhando-os.

— É um serviço — explica ele, colocando a foto de um homem de camiseta regata na pequena pilha. — Agora eu trabalho por conta própria.

Isso me surpreende.

— Como assim? — Acho que sei o que ele quer dizer, mas custo a acreditar.

Ele pega a pilha de papéis e bate as laterais na mesa para ajeitar todas as folhas. Então enfia o maço em um envelope de papel pardo.

— Eu saí da Ordem, Sarai. — Ele olha para mim.

Victor aperta as pontas do fecho prateado para fechar o envelope.

Meus pensamentos se embaralham, minhas palavras ficam confusas na ponta da língua. Luto, desesperada, para acreditar no que ele acaba de me contar.

— Victor... mas... não...

— Sim — confirma ele, virando-se para mim e me olhando bem nos olhos. — É verdade. Eu me rebelei contra a Ordem, contra Vonnegut, e agora eles estão atrás de mim. — Ele volta a mexer nos outros papéis na mesa. — Mas ainda preciso trabalhar, por isso agora trabalho sozinho.

Balanço a cabeça sem parar, sem querer engolir a verdade. A ideia de Victor sendo caçado por aqueles que o fizeram ser como ele é, por qualquer um, faz um pânico febril correr pelas minhas veias.

Solto um longo suspiro.

— Mas... mas e Fredrik? E Niklas? Victor, eu... O que está acontecendo?

Ele respira fundo e deixa a folha de papel cair suavemente na mesa, então reclina as costas no sofá.

— Fredrik ainda trabalha para a Ordem. Está lá dentro. Ele vigia Niklas e... — seus olhos cruzam com os meus por um instante —... tem me ajudado a manter você a salvo.

Antes que eu consiga fazer mais perguntas presas na garganta, Victor se levanta e continua a falar, enquanto fico sentada e o observo com a boca semiaberta e as pernas dobradas sobre a almofada.

— Como você sabe, quando alguém está sob suspeita de trair a Ordem, é imediatamente eliminado. Mas acredito que Niklas deixou Fredrik vivo e não transmitiu suas preocupações a Vonnegut pelo simples fato de que Niklas está usando Fredrik para me encontrar. Assim como deixou você viva todo este tempo, esperando que um dia você o levasse a mim.

O que mais me choca não é o que Victor diz, mas o que ele deixa de fora. Tiro as duas pernas de cima do sofá e pressiono os pés no chão de madeira, apoiando as mãos nas almofadas.

— Victor, o que você está me dizendo? Quer dizer que... Niklas continua com Vonnegut?

Espero que não seja isso que ele esteja tentando me dizer. Espero de todo o coração que minha decisão de deixar Niklas vivo aquele dia no hotel, quando ele atirou em mim, não tenha sido o maior erro da minha vida.

Os olhos de Victor vagam para a porta de vidro, e sinto que uma espécie de sofrimento infinito o consome, mas ele não deixa transparecer.

— Você estava lá. Eu disse para o meu irmão que, se ele decidisse continuar na Ordem caso eu resolvesse sair, eu não ficaria bravo com ele. Dei a ele a minha palavra, Sarai. — Victor vai até a porta de vidro, cruza os braços e olha para a piscina azul iluminada que reluz sob o céu cinzento. — Agora é hora de Niklas brilhar, e não vou tirar isso dele.

— Que absurdo! — Salto do sofá com os punhos fechados. — Ele está atrás de você, não é? — Cerro os dentes e contorno a mesinha de centro. — Caralho, é isso, Victor? Para provar seu valor para Vonnegut, ele foi encarregado de matar você. Aquele merda do seu irmão traiu você. Ele acha que vai pegar o seu lugar na Ordem. Puta que pariu, não acredito...

— É o que é, Sarai — interrompe Victor, virando-se para me encarar. — Mas, neste momento, Niklas é a menor das minhas preocupações.

Cruzando os braços, começo a andar de um lado para outro, olhando os veios claros e escuros da madeira sob meus pés descalços. Minhas unhas ainda têm o esmalte vermelho-sangue de duas semanas atrás.

— Por que saiu da Ordem?

— Eu tive que sair. Não tinha escolha.

— Não acredito.

Victor suspira.

— Vonnegut descobriu sobre a gente — conta ele, ganhando minha atenção total. — Foi Samantha... na noite em que ela morreu. Antes que eu saísse da Ordem, encontrei Vonnegut em Berlim, o primeiro encontro frente a frente que tive com ele em meses. Foi em uma sala de interrogatório. Quatro paredes. Uma porta. Uma mesa. Duas cadeiras. Somente eu e Vonnegut sentados frente a frente, com uma luz brilhando no teto acima de nós. — Victor olha para trás pela porta de vidro e depois continua: — No início, eu estava certo de que ele tinha me levado para lá com a intenção de me matar. Eu estava preparado...

— Para morrer? — Se Victor responder que sim, vou dar um tapa na cara dele.

— Não — responde ele, e consigo respirar um pouco melhor. — Eu fui para lá preparado. Raptei a mulher de Vonnegut antes de ir encontrá-lo. Fredrik a manteve em uma sala, pronto para fazer... as coisas dele, caso fosse necessário.

No mesmo instante, quero perguntar o que são as “coisas” de Fredrik, mas deixo a pergunta de lado por enquanto e digo:

— Se Vonnegut quisesse matar você, a esposa dele seria a sua moeda de troca.

De costas para mim, ele assente.

— Samantha estava sendo vigiada pela Ordem. Provavelmente há muito tempo.

— Eles desconfiavam da traição dela? Por que não a mataram, então, como fizeram com a mãe de Niklas, ou como queriam fazer com Niklas?

Victor se vira para me encarar de novo.

— Eles não desconfiavam dela, Sarai, ela era... — Victor respira fundo e aperta os lábios.

— Ela era o quê? — Chego mais perto dele. Não gosto do rumo que a conversa está tomando.

— Ela era mais leal à Ordem do que eu jamais poderia ter imaginado — conta ele, e isso fere meu coração. — Sentado naquela sala com Vonnegut, quanto mais ele falava, mais eu começava a entender que Samantha me traiu da mesma forma que Niklas. Vonnegut me contou coisas que ele não tinha como saber. Ele sabia que eu ajudei você. Em algum momento antes de morrer, naquela noite, Samantha conseguiu passar informações a Vonnegut sobre nossa estadia por lá.

— Não acredito nisso. — Golpeio o ar com a mão diante de mim. — Samantha morreu tentando me proteger. Já falamos sobre isso. Não acredito em você, Victor. Ela era uma boa pessoa.

— Ela era boa manipuladora, Sarai, nada mais do que isso.

Balanço a cabeça, ainda sem acreditar.

— Foi Niklas quem contou a Vonnegut que você me ajudou. Só pode ter sido. Niklas sabia até que você tinha me levado para a casa de Samantha.

— Sim, mas Niklas não sabia que eu fiz Samantha provar nossa comida antes de a gente comer, naquela noite. Assim que Vonnegut mencionou quanto eu ainda desconfiava dela depois de tantos anos, eu soube que ela havia me traído.

— Mas isso não faz nenhum sentido. — Começo a andar pela sala de novo, de braços cruzados e com uma das mãos apoiada no rosto. — Por que ela me protegeria de Javier?

— Porque ela não era leal a Javier.

Jogo as mãos para o ar, atônita com aquela revelação.

— Não dá para confiar em ninguém — digo, me jogando no sofá e olhando para o nada.

— Não, não dá — concorda Victor, e eu olho para cima, detectando um significado oculto por trás de suas palavras. — Agora talvez você entenda por que eu não me envolvo com ninguém. Não é só o trabalho, Sarai. As pessoas em geral não são confiáveis, especialmente na minha profissão, na qual a confiança é tão rara que não vale a pena perder tempo e esforço procurando por ela.

— Mas você parece confiar em Fredrik — observo, olhando para Victor do sofá. — Por que me trouxe logo aqui? Não aprendeu a lição com Samantha?

Sua expressão fica um pouco mais sombria, ressentida pela minha acusação.

— Eu nunca disse que confiava em Fredrik. Mas no momento ele é meu único contato dentro da Ordem e, nos últimos sete meses, não fez nada que não o tornasse digno de confiança. Ao contrário, fez tudo para provar sua lealdade a mim.

— Mas isso não significa que seja verdade.

— Não, você tem razão, mas logo vou saber com cem por cento de certeza se Fredrik é confiável ou não.

— Como?

— Você vai descobrir comigo.

— Por que se dar a esse trabalho? Você disse que a confiança é tão rara que não vale o esforço.

— Você faz muitas perguntas.

— Pois é, acho que faço. E você não responde o suficiente.

— Não, acho que não. — Victor abre um sorrisinho, e meu coração se derrete instantaneamente em uma poça de mingau.

Desvio os olhos dos dele e disfarço meus sentimentos.

— Não estou segura aqui — digo, encarando-o novamente.

— Você não está segura em lugar nenhum — corrige Victor. — Mas, enquanto estiver comigo, nada vai acontecer com você.

— Quem está falando merda agora?

Ele levanta uma sobrancelha.

— Você não é meu herói, lembra? — digo para refrescar a memória de Victor. — Não é minha alma gêmea que jamais deixará que nada de ruim aconteça comigo. Devo confiar nos meus instintos primeiro e em você, se eu decidir confiar, por último. Você me disse isso certa vez.

— E continua sendo verdade.

— Então como pode dizer que nada vai me acontecer se eu estiver com você?

A expressão de Victor fica vazia, como se pela primeira vez na vida alguém o tivesse deixado sem palavras. Olho para seu rosto silencioso e sem emoção, e apenas seus olhos revelam um traço de torpor. Tenho a sensação de que ele falou sem pensar, que manifestou algo que sente de verdade, mas que jamais quis que eu soubesse: Victor quer ser meu herói, vai fazer qualquer coisa, tudo o que puder para me manter a salvo. Quer que eu confie totalmente nele.

E confio.

Ele volta para perto de mim e se senta ao meu lado. O cheiro de seu perfume é fraco, como se ele fizesse questão de usar o mínimo possível. Estou tonta de desejo. Ansiosa para sentir novamente seu toque, saborear seus lábios quentes, deixar que ele me tome como fez algumas noites antes que nos víssemos pela última vez. Não tenho pensado em nada além de Victor nos últimos oito meses da minha vida. Enquanto durmo. Como. Vejo TV. Transo. Me masturbo. Tomo banho. Cada coisa que fiz desde que ele me deixou naquele hospital com Dina fiz pensando nele.

— Você acha que Fredrik vai contar a Niklas onde a gente está? — Mudo de assunto por medo de deixar transparecer muita coisa cedo demais.

— Acho que se ele fosse fazer isso teria contado a Niklas o pouco que sabia sobre o seu paradeiro há muito tempo, e Niklas já teria tentado matar você — responde Victor.

— Tem alguma coisa... estranha em Fredrik. Você não sente?

Victor passa a mão pelo meu cabelo úmido. O gesto faz meu coração disparar.

— Você tem grande sensibilidade para as pessoas, Sarai — comenta ele, levando a mão ao meu queixo. — Tem razão sobre Fredrik. — Ele passa o polegar pelo meu lábio inferior. Um calafrio percorre o meio das minhas pernas. — Ele é... como dizer?... desequilibrado, de certa forma.

Minha respiração acelera, e sinto meus cílios tocando meu rosto quando os lábios de Victor cobrem os meus.

— Desequilibrado de que forma? — pergunto, ofegante, quando ele se afasta.

De olhos fechados, percebo que ele está observando a curva do meu rosto e meus lábios e sinto a respiração que sai suavemente de suas narinas.

Cada pelinho minúsculo se eriça quando a outra mão de Victor sobe e encontra minha cintura nua por baixo da camiseta. Seus dedos longos dançam sobre a pele do meu quadril e param por ali.

Abro os olhos e vejo os dele me encarando.

— Algum problema? — pergunta ele, e sua boca roça a minha de novo.

— Não, eu... eu só não esperava isso.

— Esperava o quê?

Sinto seus dedos levantando o elástico da minha calcinha. Minha cabeça está girando, sinto meu estômago se transformar em um emaranhado de músculos, trêmulo e nervoso.

— Isso — respondo, piscando. — Você está diferente — acrescento, baixinho.

— Culpa sua — diz Victor, e então seus lábios devoram os meus.

Ele me deita no sofá e se encaixa entre as minhas pernas.

Seu celular vibra na mesinha de centro, e percebo quanto sou humana quando xingo Fredrik por estragar aquele momento, mesmo que seja para me avisar de que Dina está a salvo.


CONTINUA

CAPÍTULO UM

Sarai

Já faz oito meses que fugi da fortaleza no México onde fui mantida contra minha vontade por nove anos. Estou livre. Levo uma vida “normal”, fazendo coisas normais com gente normal. Não fui mais atacada, ameaçada nem seguida por ninguém que ainda queira me matar. Tenho uma “melhor amiga”, Dahlia. Tenho a coisa mais parecida com uma mãe que já conheci, Dina Gregory. O que mais eu poderia querer? Parece egoísmo desejar qualquer outra coisa. Mas, apesar de tudo o que tenho, algo não mudou: continuo vivendo uma mentira.

Deixei amigos na Califórnia: Charlie, Lea, Alex e... Bri... Não, espera, quero dizer Brandi. Meu ex-namorado, Matt, era abusivo, por isso voltei para o Arizona. Ele me perseguiu por muito tempo depois que terminamos. Consegui uma ordem judicial para mantê-lo afastado, mas não funcionou. Ele atirou em mim há oito meses, mas não posso provar porque não cheguei a vê-lo. E tenho muito medo de denunciá-lo à polícia.

Claro que tudo isso é mentira.

São os pedaços da minha vida que acobertam o que realmente aconteceu comigo. Os pretextos para eu ter desaparecido aos 14 anos e ter ido parar em um hospital da Califórnia com um ferimento a bala. Jamais vou poder contar a Dina, Dahlia ou ao meu namorado, Eric, o que aconteceu de verdade: que fui levada para o México pela péssima versão de mãe que eu tinha, para morar com um chefão do tráfico. Jamais vou poder contar que fugi daquele lugar depois de nove anos e matei o homem que me manteve prisioneira por toda a minha adolescência. Quer dizer, claro que eu poderia contar a alguém, mas, se fizesse isso, só estaria pondo Victor em perigo.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/2_O_RETORNO_DE_IZABEL.jpg

 

Victor.

Não, nunca vou poder contar que um assassino me ajudou a fugir, ou que testemunhei Victor matando várias pessoas, inclusive a esposa de um empresário famoso e importante de Los Angeles. Nunca vou poder contar que, depois de tudo pelo que passei, depois de tudo o que vi, o que mais quero é fazer as malas e voltar para aquela vida perigosa. A vida com Victor.

Até hoje, falar o nome dele me acalma. Às vezes, quando estou acordada na cama à noite, murmuro seu nome só para ouvi-lo, porque preciso. Preciso dele. Não consigo tirá-lo da cabeça. Já tentei. Porra, e como tentei. Mas, não importa o que eu faça, continuo vivendo cada dia da minha vida pensando nele. Se está me vigiando. Se pensa em mim tanto quanto penso nele. Se ainda está vivo.

Pressiono o travesseiro contra a cabeça e fecho os olhos, imaginando Victor. Às vezes, é só assim que consigo gozar.

Eric aperta minhas coxas com as mãos e me imobiliza na cama, com o rosto enfiado no meio das minhas pernas.

Arqueio o quadril contra ele, roçando de leve contra sua língua frenética, até que ele faça meu corpo todo enrijecer e minhas coxas tremerem ao redor da sua cabeça.

— Meu Deus... — Estremeço enquanto gozo, então deixo os braços caírem entre as pernas, afundando os dedos no cabelo preto de Eric. — Caramba...

Sinto os lábios de Eric tocando minha barriga um pouco acima da pélvis.

Olho para o teto como sempre faço depois de um orgasmo, pois a culpa que sinto me deixa com vergonha de olhar para Eric. Ele é um cara superlegal. Meu namorado sexy de 27 anos, cabelo preto e olhos azuis, gentil, encantador, engraçado e perfeito. Perfeito para mim se eu nunca tivesse conhecido Victor Faust.

Estou arruinada pelo resto da vida.

Enxugo as gotas de suor da testa e Eric sobe pela cama, deitando-se ao meu lado.

— Você sempre faz isso — diz ele, brincando, enquanto cutuca minhas costelas com os nós dos dedos.

Como sinto muitas cócegas, eu me encolho e me viro para encará-lo. Sorrio com ternura e passo um dedo por seu cabelo.

— O que eu sempre faço?

— Esse negócio de ficar em silêncio. — Eric segura meu queixo entre o polegar e o indicador. — Eu faço você gozar e você fica bem quieta durante um tempão.

Eu sei e sinto muito, mas preciso apagar o rosto de Victor da minha cabeça antes de conseguir olhar você nos olhos. Sou uma pessoa horrível.

Eric me dá um beijo na testa.

— Isso se chama recuperação — brinco, beijando os dedos dele. — É totalmente inofensivo. Mas você deveria interpretar como um bom sinal. Você sabe o que está fazendo — digo, retribuindo o cutucão nas costelas.

E ele sabe mesmo o que está fazendo. Eric é ótimo na cama. Mas ainda sou emocionalmente muito ligada... viciada... em Victor, e tenho a sensação de que sempre serei.

Só consegui seguir a vida e me abrir a outros relacionamentos cinco meses depois que Victor foi embora. Conheci Eric no trabalho, na loja de conveniência. Ele comprou um saco de biscoitos e um energético. Depois disso, ele aparecia na loja duas, às vezes três vezes por semana. Eu não queria nada com ele. Queria Victor. Mas comecei a perder a esperança de que Victor um dia fosse voltar para mim.

Eric tenta passar um braço ao redor do meu corpo, mas me levanto casualmente e visto a calcinha. Ele não desconfia de nada, o que é bom. Não sinto vontade de ficar abraçadinha, mas a última coisa que quero é magoá-lo. Ele ergue os braços e entrelaça os dedos atrás da cabeça. Olha para mim, do outro lado do quarto, com um sorriso sedutor. Sempre faz isso quando não estou completamente vestida.

— Sarai.

— Oi. — Visto a camiseta e ajeito o rabo de cavalo.

— Eu sei que está em cima da hora — diz Eric —, mas queria ir com você e Dahlia para a Califórnia amanhã.

Merda.

— Mas você não disse que não ia conseguir folga no trabalho? — pergunto, vestindo o short e calçando os chinelos.

— Quando você perguntou se eu queria ir, não ia dar mesmo. Mas contrataram um funcionário novo, e meu chefe decidiu me dar folga.

Isso é uma péssima notícia. Não porque eu não o queira por perto — gosto de Eric, apesar da minha incapacidade de esquecer Victor Faust —, mas minha viagem de “férias” à Califórnia amanhã não é para fazer turismo, curtir a noite nem fazer compras na Rodeo Drive.

Estou indo até lá para matar um homem. Ou melhor, tentar matar um homem.

Já é ruim que Dahlia vá também, e já vai ser difícil guardar segredo de uma pessoa. Imagine duas.

— Você... não parece animada — comenta Eric, seu sorriso morrendo aos poucos.

Abro um sorriso largo e balanço a cabeça, voltando para perto dele e me sentando na beira da cama.

— Não, não, eu estou animada. É que você me pegou de surpresa. A gente vai sair às seis da manhã. É daqui a menos de oito horas. Você já fez as malas?

Eric dá uma risada e se estica na minha cama, me puxando para si. Eu me sento perto de sua cintura, apoiando um braço no colchão do outro lado dele, com os pés para fora da cama.

— Bom, eu só fiquei sabendo hoje à tarde, antes de sair do trabalho — explica ele. — Eu sei, está em cima da hora, mas só preciso enfiar umas coisas na mala e estou pronto.

Ele estende a mão e afasta do meu rosto os fios de cabelo que escaparam do rabo de cavalo.

— Ótimo! — minto, com um sorriso igualmente falso. — Então acho que está combinado.

Dina acorda antes de mim, às quatro da manhã. O cheiro de bacon é o que me desperta. Levanto da cama e entro debaixo do chuveiro antes de me sentar à mesa da cozinha. Um prato vazio já está à minha espera.

— Gostaria que você tivesse escolhido algum outro lugar para passar sua folga, Sarai — afirma Dina.

Ela se senta do outro lado da mesa e começa a encher seu prato. Pego alguns pedaços de bacon do monte e ponho no meu.

— Eu sei — digo —, mas, como falei para você, não vou deixar que meu ex me impeça de ver meus amigos.

Ela balança a cabeça cada vez mais grisalha e suspira.

Passei do limite em algum momento com meu amontoado de mentiras. Quando Victor levou Dina para o hospital em Los Angeles, depois que o irmão dele, Niklas, atirou em mim, ela não fazia ideia do que tinha acontecido. Só sabia que eu tinha levado um tiro. Demorei alguns meses até me sentir segura o suficiente para falar com ela sobre isso. Quer dizer, depois de bolar a história que eu ia contar. Foi aí que inventei o lance do ex-namorado violento. Eu deveria ter dito que fui assaltada. Por um desconhecido. A mentira seria muito mais fácil de manter. Agora que ela sabe que vou voltar para Los Angeles, está morrendo de preocupação, e já faz uns dois meses. Eu nem deveria ter contado que ia voltar lá.

Termino de comer o bacon e um pouco de ovos mexidos, junto com um copo de leite.

Dahlia e Eric chegam juntos assim que termino de escovar os dentes.

— Vamos logo, a gente precisa pegar a estrada — chama Dahlia, me apressando da porta. Seu cabelo castanho-claro está preso no alto da cabeça em um coque desalinhado de quem acabou de acordar.

Eu me despeço de Dina com um abraço.

— Eu vou ficar bem — digo a ela. — Prometo. Não vou nem chegar perto de onde ele mora.

Desta vez, chego até a imaginar um rosto masculino ao falar de alguém que não existe. Acho que já interpreto esse papel há tanto tempo que “Matt” e todos esses meus “amigos” de Los Angeles, de quem falo para todo mundo como se fossem reais, se tornaram reais no meu subconsciente.

Dina força um sorriso em seu rosto preocupado, e suas mãos soltam meus cotovelos.

— Você liga assim que chegar?

— Assim que eu entrar no quarto do hotel, ligo — respondo, assentindo.

Ela sorri e eu a abraço mais uma vez, antes de segui-los até o carro de Dahlia, que está esperando. Eric guarda minha mala no bagageiro, junto com as deles, e se senta no banco de trás.

— Hollywood, aí vamos nós! — exclama Dahlia.

Finjo metade da empolgação dela. Ainda bem que está muito cedo, senão Dahlia poderia intuir o verdadeiro motivo da minha falta de entusiasmo. Estico os braços para trás e bocejo, apoiando a cabeça no banco do carro. Sinto a mão de Eric no meu pescoço quando ele começa a massagear meus músculos.

— Não sei por que você quer ir a Los Angeles de carro — diz Dahlia. — Se a gente fosse de avião, não ia precisar acordar tão cedo. E você não estaria tão cansada e rabugenta.

Minha cabeça cai para a esquerda.

— Não estou rabugenta. Ainda mal falei com você.

Ela dá um sorrisinho.

— Exatamente. Sarai sem falar significa Sarai rabugenta.

— E se recuperando — acrescenta Eric.

Meu rosto fica vermelho e eu estico a mão atrás da cabeça, dando um tapinha de brincadeira na dele, que está fazendo maravilhas no meu pescoço. Fecho os olhos e vejo Victor.

Não de propósito.

Chegamos a Los Angeles depois de quatro horas na estrada. Eu não podia ir de avião porque não conseguiria levar minhas armas. É claro que Dahlia não pode saber disso. Ela acha apenas que quero apreciar a paisagem.

Tenho sete dias para fazer o que vim fazer. Isto é, se eu conseguir. Pensei no meu plano durante meses, em como vou fazer isso. Sei que é impossível entrar na mansão Hamburg. Para isso, eu precisaria ter um convite e socializar em público com o próprio Arthur Hamburg e seus convidados. Ele viu meu rosto. Bem, tecnicamente, viu mais do que meu rosto. Mas sinto que os acontecimentos daquela noite, quando Victor e eu enganamos Hamburg para que ele nos convidasse para ir ao seu quarto e conseguíssemos matar sua esposa, são algo que ele jamais vai esquecer, nem os mínimos detalhes.

Se tudo der certo, uma peruca loura platinada de cabelo curto e maquiagem escura e pesada vão esconder aquela identidade de cabelo longo e castanho que Hamburg reconheceria assim que eu aparecesse.


CAPÍTULO DOIS

Sarai

Passo o dia todo com Eric e Dahlia, fingindo me divertir para passar o tempo. Saímos para almoçar e para fazer um tour por Hollywood com um guia e visitar um museu antes de voltarmos para o hotel, exaustos. Quer dizer, finjo estar exausta o suficiente para querer dar o dia por encerrado. Na verdade, o que preciso é me preparar para ir ao restaurante de Hamburg ainda hoje.

Dahlia já acha que tem algo errado comigo.

— Você está ficando doente? — pergunta ela, estendendo a mão entre nossas espreguiçadeiras à beira da piscina e sentindo a temperatura da minha testa.

— Estou ótima — respondo. — Só cansada porque levantei muito cedo. E quando foi a última vez que andei tanto assim em um dia só?

Dahlia volta a se recostar em sua espreguiçadeira e ajeita os óculos de sol grandes e redondos no rosto.

— Bom, espero que não esteja cansada amanhã — diz Eric, do outro lado. — Tem tantas coisas que eu quero fazer. Não venho para Los Angeles desde que meus pais se divorciaram.

— Pois é. É a minha primeira vez aqui em dois anos — afirma Dahlia.

Um adolescente pula na piscina e a água respinga em nós. Ergo as costas da espreguiçadeira e agito a revista que estava lendo para tirar as gotas. Ponho os óculos escuros no alto da cabeça. Jogo as pernas para o lado e fico de pé.

— Acho que vou voltar para o quarto e tirar uma soneca — anuncio, pegando minha bolsa do chão.

Eric se ergue também e tira os óculos escuros.

— Se quiser, vou com você — oferece ele.

Agito a mão para ele, pedindo que não se levante.

— Não, fica aí e faz companhia para a Dahlia — sugiro, ajeitando a bolsa no ombro. Abaixo os óculos escuros de novo para que ele não perceba minha mentira.

— Tem certeza de que você está bem? — pergunta Dahlia. — Sarai, você está de férias, lembra? Veio para cá se divertir, não para cochilar.

— Acho que vou estar cem por cento amanhã. Só preciso de um banho quente e demorado e de uma boa noite de sono.

— Ok, vou acreditar — diz Dahlia. — Mas nem vem com doença para o meu lado. — Ela aponta o dedo para mim, com ar severo.

Eric fecha os dedos em torno do meu pulso e me puxa para perto.

— Tem certeza de que não quer que eu vá? — Ele me beija e eu correspondo antes de me levantar de vez.

— Tenho — respondo, baixinho, e saio na direção do elevador.

Assim que entro no quarto, tranco a porta com a corrente para que Eric e Dahlia não entrem de surpresa, jogo a bolsa no chão e abro meu laptop, digitando a senha. Enquanto o laptop inicia, olho pela janela e vejo meus amigos, figuras pequenas daquela distância, ainda à beira da piscina. Eu me sento diante da tela e, provavelmente pela centésima vez, olho cada página do site do restaurante de Hamburg, verificando de novo o horário de funcionamento e passando os olhos pelas fotos profissionais do lugar, dentro e fora. Na verdade, nada disso me ajuda muito com o que pretendo fazer, mas olho tudo de novo todo dia, de qualquer maneira.

Derrotada, bato a palma da mão com força no tampo da mesa.

— Droga! — exclamo, desabando na poltrona enquanto passo as mãos pelo cabelo.

Ainda não sei como vou conseguir ficar a sós com Hamburg sem ser vista. Sei que estou dando um passo maior do que a perna. Sei disso desde que tive essa ideia maluca, mas também sei que, se ficar apenas pensando a respeito, nunca vou passar dessa fase.

Vim para cá com um plano: entrar disfarçada no restaurante e agir como qualquer outro cliente. Sondar o lugar por uma noite. Saber onde ficam as saídas. As entradas para outras partes do prédio. Os banheiros. Minha prioridade número um, contudo, é encontrar a sala de onde Hamburg observa do alto seus clientes e ouve a conversa deles pelo minúsculo microfone escondido no arranjo de cada mesa. Então pretendo me enfiar na sala e cortar a garganta daquele porco.

Contudo, agora que estou aqui, a menos de seis quadras do restaurante, e agora que o tempo está passando tão depressa, estou menos confiante. Isso não é um filme. Sou uma idiota por achar que posso adentrar um lugar desses sem ser vista, tirar a vida de um homem sem chamar atenção e fugir sem ser capturada.

Apenas Victor conseguiria fazer algo assim.

Bato no tampo da mesa de novo, mais de leve desta vez, fecho o laptop e me levanto. Ando de um lado para outro no carpete vermelho e verde. E bem quando resolvo seguir pelo corredor para o quarto separado que reservei sem Dahlia e Eric saberem, a porta se abre um pouco, mas é travada pela corrente.

— Sarai? — chama Dahlia do outro lado. — Vai deixar a gente entrar?

Suspiro fundo e destranco a porta.

— Por que a corrente? — pergunta Eric, entrando atrás de Dahlia.

— Força do hábito.

Eu me jogo na ponta da cama king-size.

Os dois deixam suas coisas no chão. Dahlia se senta à mesa, ao lado da janela, e Eric se deita atravessado na cama ao meu lado, cruzando as pernas na altura dos calcanhares.

— Pensei que você ia tirar uma soneca — diz Dahlia.

Ela passa os dedos com cuidado pelo cabelo úmido, fazendo caretas quando se depara com alguma mecha mais embaraçada.

— Dahlia — digo, olhando para os dois. — Eu subi agora há pouco. Pensei que vocês iam ficar na piscina mais um tempo.

Espero ter conseguido disfarçar o aborrecimento na minha voz por eles terem vindo me encontrar tão cedo. Não consigo evitar: estou estressada demais, além de preocupada com a simples presença dos dois aqui comigo. Não quero que eles se machuquem nem que se envolvam de forma alguma com meu motivo para estar aqui.

— A gente pode sair e deixar você sozinha, se quiser — sugere Eric, baixinho, atrás de mim.

Eu me arrependo na mesma hora do que disse, porque é óbvio que não disfarcei o aborrecimento tão bem quanto esperava.

Inclino a cabeça para trás e suspiro, esticando o braço para tocar o tornozelo dele.

— Desculpa — digo, sorrindo para Dahlia. — Sabe, eu... — Então, de repente, uma desculpa perfeitamente plausível para o modo como tenho agido surge na minha cabeça, e a torneira das mentiras se abre. — Eu só fico meio nervosa por estar de volta a Los Angeles.

Dahlia faz cara de “ah, entendi”, empurra os pés de Eric para o lado e se senta perto de mim. Ela passa o braço por cima dos meus ombros e segura meu antebraço.

— Imaginei que o problema fosse esse.

Percebo que ela olha de relance para Eric e tenho a impressão de que foi sobre isso que os dois falaram enquanto ficaram na piscina, depois que fui embora.

Aposto que também foi por isso que decidiram subir tão cedo para me ver.

— A gente queria ver como você estava — acrescenta Eric atrás de mim, confirmando minha suspeita.

Sinto a cama se mexer quando ele se senta.

Eu me levanto antes que ele consiga me abraçar. É nesse exato momento que me dou conta de como tenho feito isso com frequência no último mês. Não sei por quanto tempo mais vou conseguir enganá-lo. Sei que deveria simplesmente contar o que sinto, que não gosto tanto de Eric quanto ele gosta de mim. Mas não consigo dizer a verdade. Eu precisaria inventar mais uma mentira, e estou tão atolada em mentiras que me sinto afogada nelas.

Ao mesmo tempo, deixei nossa relação durar tanto porque eu queria de verdade sentir por ele algo tão profundo quanto o que ele parece sentir por mim. Queria seguir em frente, esquecer Victor e ser feliz com a vida que ele me deixou.

Mas não consigo. Não consigo mesmo...

— Ele nem vai saber que você está aqui — diz Eric sobre “Matt”. — Além disso, mesmo que ele descobrisse, eu ia encher o cara de porrada assim que o visse.

Esboço um sorriso para Eric.

— Eu sei que você faria isso — digo, mas me sinto ainda pior, porque os únicos dois amigos que tenho no mundo não fazem nem ideia de quem sou.

Cruzo os braços, vou até a janela e olho para fora.

— Sarai — chama Dahlia. — Não queria dizer isso, mas, se você está tão preocupada com a possibilidade de Matt descobrir que você está em Los Angeles, acho que não é boa ideia visitar seus amigos aqui.

— Eu sei, você tem razão. Sei que eles não contariam para Matt, mas acho que é melhor eu ficar só com vocês dois enquanto estivermos aqui.

Eu me viro para encará-los.

— É um bom plano — diz Eric, com um sorriso radiante.

É um bom plano, com certeza, porque agora não preciso mais inventar outra desculpa para não apresentar os dois aos meus amigos que não existem.

Dahlia se aproxima de mim.

— A gente devia ter ido para a Flórida ou algum lugar assim, hein?

Olho pela janela de novo.

— Não — respondo. — Adoro esta cidade. E sei que vocês queriam muito vir para cá. — Dou um sorriso rápido. — Sugiro que a gente curta ao máximo esta semana.

Ela me empurra com o ombro de brincadeira.

— Essa é a Sarai que eu conheço — diz Dahlia, sorrindo.

É, só que não sou essa pessoa...

Ela vai até Eric e o puxa pelo braço, levantando-o da cama.

— Vamos sair daqui e deixar a mocinha descansar.

Eric se levanta e se aproxima de mim. Então pega meus braços e me vira para encará-lo. Com aqueles olhos azul-bebê, ele faz a melhor expressão amuada que consegue.

— Se precisar de mim para qualquer coisa, pode me chamar que eu venho.

Concordo com a cabeça e lhe ofereço um sorriso sincero. Ele merece, por ser tão legal comigo.

— Pode deixar.

Então eu os empurro porta afora com as duas mãos.

— Eu diria para vocês não se divertirem muito sem mim, mas isso seria pedir demais.

Dahlia ri baixinho ao sair para o corredor.

— Não, não é pedir muito. — Ela levanta dois dedos. — Palavra de escoteiro.

— Acho que não é assim que se faz, Dahl — diz Eric.

Ela faz um gesto para dispensar as palavras dele.

— Trate de dormir — sugere Dahlia. — Porque amanhã você vai precisar estar novinha em folha.

— De acordo — digo, assentindo.

— Tchau, amor — diz Eric antes de eu fechar a porta.

Fico com as costas apoiadas na porta e solto um suspiro longo e profundo.

Fingir é difícil demais. Bem mais difícil do que simplesmente ser eu mesma, por mais anormal e imprudente que eu seja.

— Eu sei o que preciso fazer — digo em voz alta.

Falar sozinha é minha nova mania, porque me ajuda a visualizar e entender melhor as coisas.

Volto para a janela e olho a cidade de Los Angeles, com os braços cruzados.

— Preciso de um disfarce, mas não para me esconder de Hamburg. Só das câmeras e de qualquer outra pessoa. Eu quero que Hamburg me veja. Só assim vou conseguir entrar.


CAPÍTULO TRÊS

Sarai

Dahlia e Eric só voltam para o quarto algumas horas mais tarde, depois de escurecer. Eu já tinha tomado banho, vestido short e camiseta e deixado a luz apagada para parecer que estava dormindo. Assim que ouvi o cartão passando pela porta, pulei na cama e me espalhei pelo colchão, como sempre faço quando durmo de verdade. Eric entrou na ponta dos pés, tentando não “me acordar”, mas me virei, soltei um resmungo e abri os olhos para mostrar que acordei. Ele pediu desculpas e perguntou se eu queria ir com ele e Dahlia a uma boate ali perto, insistindo que, se eu não fosse, ele também não iria. Mas logo rejeitei essa ideia. Percebi que ele queria muito ir e não posso culpá-lo: se eu estivesse no lugar dele, não iria querer ficar em um quarto escuro de hotel às oito da noite de uma sexta-feira, em uma das cidades mais animadas dos Estados Unidos.

Eric e Dahlia saírem era exatamente do que eu precisava. Passei aquelas duas horas inteiras tentando inventar uma desculpa para explicar a eles por que eu ia sair, aonde iria e por que eles não poderiam ir junto.

Eles resolveram isso para mim.

Minutos após Eric sair do quarto, espero Dahlia — em seu próprio quarto, ao lado do nosso — tirar o biquíni e se vestir. Pelo olho mágico da minha porta, eu os vejo indo embora pelo corredor. Conto até cem enquanto ando de um lado para outro sem parar. Então pego minha bolsa e vou até a porta. Ando depressa pelo corredor na direção oposta e chego ao quarto secreto, do outro lado do prédio.

Com certa paranoia de ser flagrada, vasculho minha bolsa e encontro tudo, menos a chave do quarto. Enfim consigo senti-la entre os dedos e me apresso para entrar, travando a porta com a corrente. Abro a mala ao pé da cama e tiro minha peruca curta platinada, passando os dedos para ajeitar as mechas desalinhadas, e então a deixo sobre o abajur ao lado para que não perca a forma.

Visto um Dolce & Gabbana curtinho e me maquio com cores escuras e pesadas, o que, depois de passar um tempão praticando em casa, faço bem. Então calço as sandálias de salto alto. Andar de salto é outra coisa que passei muito tempo tentando aprender. Meu alter ego, Izabel Seyfried, saberia andar de salto e o faria bem. Por isso, eu precisava acompanhar.

Em seguida, molho o cabelo e o divido em duas partes atrás. Enrolo cada metade e cruzo uma sobre a outra na nuca. Vários grampos depois, meu longo cabelo castanho está bem preso no couro cabeludo. Visto a touca da peruca e depois a própria peruca, ajustando-a por muito tempo até deixar tudo perfeito.

Por fim, prendo uma bainha de punhal em torno da coxa e a cubro com o tecido do vestido.

Fico de pé diante do espelho de corpo inteiro e me avalio de todos os ângulos possíveis. Estar loura é estranho. Satisfeita, pego a bolsinha preta e a enfio debaixo do braço, com a pequena pistola formando certo volume nela. Estico o braço para girar a maçaneta, mas deixo minha mão cair junto ao corpo.

“Que droga eu estou fazendo?”

O que precisa ser feito.

“E por que eu estou fazendo isso?”

Porque preciso.

Não consigo tirar da cabeça as coisas que aquele homem confessou, as pessoas que matou por causa de um fetiche sexual doentio. Todas as noites desde que Victor me deixou, quando fecho os olhos, vejo o rosto de Hamburg e aquele sorriso de gelar o sangue que ele abriu quando me curvei sobre a mesa, exposta na frente dele. Vejo o rosto de sua esposa, esquelético e combalido, seus olhos fundos turvados pela resignação. Ainda sinto até o fedor da urina que secou em suas roupas e no catre infestado onde ela dormia, naquele quarto escondido.

Meu peito se enche de ar e eu o prendo por vários segundos, antes de soltar um longo suspiro.

Não posso esquecer. A necessidade de matá-lo é como uma coceira no meio das costas. Não posso alcançar naturalmente, mas vou me curvar e torcer os braços até doerem para coçar.

Não posso esquecer...

E talvez... só talvez também acabe chamando a atenção de um certo assassino que não consigo me obrigar a esquecer.

Assim que passo pela porta, deixo Sarai para trás e me torno Izabel por uma noite.

Por não ter pensado de antemão na importância de ao menos alugar um carro chique, salto do táxi a duas quadras do restaurante e ando o resto do caminho. Izabel jamais seria vista andando de táxi.

— Mesa para um? — pergunta o recepcionista assim que entro no restaurante.

Inclino a cabeça e olho para ele com um ar irritado.

— Algum problema? Não posso fazer uma refeição sozinha? Ou você está dando em cima de mim? — Abro um sorrisinho e inclino a cabeça para o outro lado. Ele está ficando nervoso. — Você gostaria de jantar comigo... — olho para o nome bordado no paletó — ... Jeffrey? — Chego mais perto. Ele dá um passo constrangido para trás.

— Hã... — Ele hesita. — Peço desculpas, senhora...

Recuo, trincando os dentes.

— Nunca me chame de senhora — digo com rispidez. — Me leve até uma mesa. Para um.

Ele assente e pede que eu o siga. Quando chego à minha mesinha redonda com duas cadeiras, no meio do restaurante, me sento e deixo a bolsa ao lado. Um garçom se aproxima quando o recepcionista se afasta e me apresenta a carta de vinhos. Eu a rejeito com um movimento dos dedos.

— Quero apenas água com uma rodela de limão.

— Pois não, senhora — diz ele, mas deixo passar.

Enquanto o garçom se afasta, começo a examinar o lugar. Há uma placa indicando a saída à minha esquerda, bem longe, perto do corredor. Há outra à minha direita, próxima à escada que leva para o segundo piso. O restaurante está praticamente igual à primeira vez que vim: escuro, não muito cheio e bastante silencioso, embora desta vez eu ouça jazz baixinho vindo de algum lugar. Ao observar o recinto, paro de repente ao ver a mesa à qual me sentei com Victor quando vim com ele, meses atrás.

Eu me perco na memória, vendo tudo exatamente como aconteceu. Quando olho para as duas pessoas sentadas no outro lado do salão, só consigo me ver com Victor:

— Venha cá — diz ele, em um tom de voz mais delicado.

Deslizo os poucos centímetros que nos separam e me sento encostada a ele.

Seus dedos dançam pela minha nuca quando ele puxa minha cabeça para perto de si. Meu coração bate descompassado quando ele roça os lábios na lateral do meu rosto. De repente, sinto sua outra mão entrando pelo meio das minhas coxas e subindo por baixo do vestido. Minha respiração para. Devo abrir as pernas? Devo ficar imóvel e travá-las? Sei o que quero fazer, mas não sei o que devo fazer, e minha mente está a ponto de desistir.

— Tenho uma surpresa para você esta noite — murmura ele no meu ouvido.

Sua mão se aproxima mais do calor no meio das minhas pernas.

Gemo baixinho, tentando não deixar que ele perceba, embora tenha certeza absoluta de que percebeu.

— Que tipo de surpresa? — pergunto, com a cabeça inclinada para trás, apoiada em sua mão.

— Vai querer algo mais? — Ouço uma voz, e sou arrancada do meu devaneio.

O garçom está segurando o cardápio. Minha água com uma rodela de limão na borda do copo já está diante de mim.

Um pouco confusa de início, apenas assinto, mas faço que não em seguida.

— Ainda não sei — respondo, enfim. — Deixe o cardápio. Talvez eu peça mais tarde.

— Pois não — diz o garçom.

Ele deixa o cardápio na mesa e vai embora.

Olho para a varanda e para as mesas encostadas no balaústre requintado. Onde Hamburg pode estar? Sei que ele está no andar de cima porque Victor disse que ele ficava por lá. Mas onde? Eu me pergunto se ele já me viu, e no mesmo instante meu estômago se embrulha de nervoso.

Não, não posso parecer nervosa.

Endireito as costas na cadeira e tomo um gole da água. Deixo o dedo mindinho levantado, o que me faz parecer muito mais rica, ou apenas mais esnobe. Fico observando os clientes indo e vindo, escuto sua conversa supérflua e me pego imaginando qual dos casais que estão ali poderia acabar na mansão de Hamburg no fim de semana, ganhando muito dinheiro para deixar que ele os veja foder.

Então olho para o arranjo de flores vermelhas em um pequeno vaso de vidro no centro da minha mesa. Pego o celular na bolsa, finjo digitar um número e o coloco perto do ouvido, para que ninguém ache que estou falando sozinha.

— Este recado é para Arthur Hamburg — digo em voz baixa, inclinando-me um pouco para a frente a fim de que o microfone escondido no vaso de flores capte minha voz. — Com certeza você se lembra de mim, não é? Izabel Seyfried. Há quanto tempo, não?

Com cuidado, olho para os lados, esperando ver um ou dois homens parrudos de terno se aproximando de mim com armas em punho.

— Não estou sozinha — continuo —, por isso nem pense em fazer alguma idiotice. A gente precisa conversar.

Olhando para a varanda acima de mim, tento descobrir onde ele pode estar, torcendo para que esteja ali. Alguns minutos tensos se passam, e, quando começo a pensar que a noite foi em vão e que eu estava mesmo falando sozinha, noto um movimento no piso superior, logo acima da saída à minha direita. Meu coração bate forte quando vejo a figura alta e escura sair das sombras e descer a escada.

Eu me lembro desse homem de ombros largos, cabelo grisalho e uma covinha no meio do queixo. É o gerente do restaurante, Willem Stephens, que já encontrei aqui uma vez.

Ele se aproxima da minha mesa sem expressar nenhuma emoção, com as mãos enormes cruzadas à frente, as costas retas, o queixo anguloso imóvel.

— Boa noite, srta. Seyfried. — A voz dele é profunda e sinistra. — Posso perguntar onde está seu dono?

Levanto os olhos para encará-lo, dou um sorrisinho, tomo um gole da minha água e devolvo o copo à mesa, sem pressa. Cada fibra do meu ser está gritando, dizendo como fui idiota em vir até aqui. Por mais que eu saiba que é verdade, não importa. Não é o medo que me faz tremer por dentro, é a adrenalina.

— Victor Faust não é meu dono — explico, com calma. — Mas ele está aqui. Em algum lugar. — Um sorriso tênue e dissimulado toca meus lábios.

Os olhos de Stephens percorrem o salão sutilmente e voltam a me encarar.

— Por que está aqui? — pergunta ele, perdendo um pouco o ar de gerente sofisticado.

— Tenho negócios a discutir com Arthur Hamburg — respondo, confiante. — É do maior interesse dele marcar um encontro privado comigo. Aqui. Hoje. De preferência agora.

Tomo outro gole.

Noto que o pomo de adão de Stephens se move quando ele engole em seco, bem como os contornos de seu queixo quando ele cerra os dentes. Ele olha para o lugar de onde veio, no andar de cima, e percebo um aparelhinho preto escondido em seu ouvido esquerdo. Parece que ele está ouvindo alguém falar. Eu chutaria que é Hamburg.

Ele me encara de novo, com os olhos escuros e cheios de ódio, mas mantém o semblante inexpressivo com a mesma perfeição de Victor.

Ele descruza os braços, estende a mão direita para mim e diz:

— Por aqui.

Ele só deixa os braços penderem, relaxados, quando me levanto. Sigo Stephens pelo restaurante e escada acima, para o piso da varanda.

Apenas duas coisas podem acontecer: ou esta será minha primeira noite como assassina ou a última da minha vida.


CAPÍTULO QUATRO

Sarai

— Se encostar em mim — digo para o guarda-costas de terno à porta da sala particular de Hamburg —, enfio suas bolas em um moedor de carne.

As narinas do segurança se dilatam e ele olha para Stephens.

— Você solicitou uma reunião com o sr. Hamburg — diz Stephens atrás de mim. — É claro que vamos revistá-la antes para verificar se está armada.

Droga!

Calma. Fique calma. Faça o que Izabel faria.

Respiro fundo, encarando-os com desprezo e um ar ameaçador. Então jogo minha bolsinha preta no segurança. Ele pega a bolsa quando ela bate em seu peito.

— Acho que está bem claro que eu não conseguiria esconder uma arma em um vestido como este, a menos que a enfiasse na boceta — digo, olhando para Stephens. — Minha arma está na bolsa. Mas nem pense em tocar...

— Deixem a moça entrar — ordena da porta uma voz familiar.

É Hamburg, ainda balofo e grotesco como antes, usando um terno imenso que parece em vias de estourar se ele respirar fundo demais.

Abro um leve sorriso para o segurança, que me encara com olhos assassinos. Conheço esse olhar, até demais. O homem tira a pistola e me devolve a bolsa.

— Sr. Hamburg — diz Stephens —, eu deveria ficar na sala com o senhor.

Hamburg balança a papada, rejeitando a sugestão.

— Não, vá cuidar do restaurante. Se essas pessoas tivessem vindo me matar, não seriam tão óbvias. Eu vou ficar bem.

— Pelo menos deixe Marion à porta — sugere Stephens, olhando para o guarda-costas.

— Sim — concorda Hamburg. — Você fica aqui. Não deixe ninguém interromper nossa... — diz ele, me olhando com frieza — reunião, a menos que eu peça. Se em algum momento você não ouvir minha voz por mais de um minuto, entre na sala. Como precaução, é claro.

Ele abre um sorrisinho para mim.

— É claro. — Imito Hamburg e sorrio também.

Ele dá um passo para o lado e me convida a entrar.

— Pensei que isso tivesse acabado, srta. Seyfried.

Hamburg fecha a porta.

— Sente-se — pede ele.

A sala é bem grande, com paredes lisas e arredondadas, sem cantos, de um lado a outro. Uma série de grandes quadros retratando o que parece ser cenas bíblicas rodeia uma grande lareira de pedra. Cada imagem é emoldurada em uma caixa de vidro, com luzes na parte de baixo. A sala é pouco iluminada, como o restaurante, e o cheiro é de incenso ou talvez de óleo aromático de almíscar e lavanda. Na parede à minha esquerda, há uma porta aberta que leva a outra sala, onde a luz cinza-azulada de várias telas de TV brilha nas paredes. Chego mais perto para me sentar na poltrona de couro com encosto alto diante da escrivaninha e espio dentro da saleta. É como eu imaginava. As telas mostram várias mesas do restaurante.

Hamburg fecha essa porta também.

— Não, está longe de acabar — respondo, enfim.

Cruzo as pernas e mantenho a postura ereta, o queixo levantado com ar confiante e os olhos em Hamburg, enquanto ele atravessa a sala na minha direção. Puxo a barra do vestido para cobrir completamente o punhal preso na coxa. Minha bolsa está no meu colo.

— Vocês já tiraram minha esposa de mim. — A indignação transparece na voz dele. — Não acham que foi o suficiente?

— Infelizmente, não. — Abro um sorriso malicioso. — Não foi o suficiente para você e sua esposa tirarem uma vida? Não, não foi — respondo por ele. — Vocês tiraram muitas vidas.

Hamburg morde o interior da bochecha e se senta atrás da escrivaninha, de frente para mim. Ele apoia as mãos gordas sobre o tampo de mogno. Percebo quanto ele quer me matar ali mesmo onde estou. Mas não fará isso porque acredita que não estou sozinha. Ninguém em sã consciência faria algo assim, vir até aqui sozinha, inexperiente e desprevenida.

Ninguém, a não ser eu.

Preciso garantir que ele continue acreditando que tenho cúmplices até descobrir como vou matá-lo e sair da sala sem ser pega. O pedido de Hamburg para que o guarda-costas entrasse na sala depois de um minuto sem ouvir sua voz pôs mais um obstáculo no plano que, na verdade, nunca tive de fato.

— Bem, devo dizer uma coisa — diz Hamburg, mudando de tom. — Você é deslumbrante com qualquer tipo de peruca. Mas admito que prefiro a morena.

Ele acha que meu cabelo castanho-avermelhado era uma peruca. Ótimo.

— Você é doente. Sabe disso, certo? — Tamborilo com as unhas no braço da poltrona.

Hamburg abre um sorriso medonho. Estremeço por dentro, mas mantenho a compostura.

— Eu não matei aquelas pessoas de propósito. Elas sabiam no que estavam se metendo. Sabiam que, no calor do momento, alguém poderia perder o controle.

— Quantas?

Hamburg estreita os olhos.

— O que importa isso, srta. Seyfried? Uma. Cinco. Oito. Por que não diz logo o motivo da sua visita? Dinheiro? Informação? A chantagem assume muitas formas, e não seria a primeira vez que enfrento uma. Sou um veterano.

— Fale sobre a sua esposa — peço, ganhando tempo e fingindo ainda ser quem dá as cartas. — Antes de “ir direto ao assunto”, quero entender sua relação com ela.

Uma parte de mim quer saber de verdade. E estou incrivelmente nervosa; sinto um enxame zumbindo no meu estômago. Talvez jogar conversa fora ajude a acalmar minha mente.

Hamburg inclina a cabeça para o lado.

— Por quê?

— Apenas responda à pergunta.

— Eu a amava muito — responde ele, relutante. — Ela era a minha vida.

— Aquilo é amor? — pergunto, incrédula. — Você manchou a memória dela ao dizer que ela era uma viciada em drogas que se suicidou, só para salvar a própria pele, e chama isso de amor?

Noto uma luz se movendo no chão, por baixo da porta da sala de vigilância. Não havia ninguém lá dentro antes, ao menos que eu tivesse visto.

— Como a chantagem, o amor assume muitas formas. — Hamburg apoia as costas na poltrona de couro, que range, cruzando os dedos roliços sobre a enorme barriga. — Mary e eu éramos inseparáveis. Não éramos como outras pessoas, outros casais, mas o fato de sermos tão diferentes não significava que nos amávamos menos do que os outros. — Os olhos dele cruzam os meus por um momento. — Tivemos sorte por encontrar um ao outro.

— Sorte? — pergunto, pasma com o comentário. — Foi sorte duas pessoas doentes se encontrarem e se unirem para fazer coisas doentias com os outros? Não entendo.

Hamburg balança a cabeça como se fosse um velho sábio e eu fosse jovem demais para entender.

— Pessoas diferentes como Mary e eu...

— Doentes e dementes — corrijo. — Não diferentes.

— Chame como quiser — diz ele, com ar de resignação. — Quando você é tão diferente assim da sociedade, do que é aceitável, encontrar alguém como você é algo muito raro.

Sem perceber, cerro os dentes. Não porque Hamburg esteja me irritando, mas porque nunca imaginei que esse homem nojento pudesse me dizer qualquer coisa que me fizesse pensar na minha situação com Victor, ou qualquer coisa que eu pudesse entender.

Afasto esse pensamento.

A luz fraca sob a porta da sala de vigilância se move de novo. Finjo não ter notado, sem querer dar a Hamburg qualquer motivo para achar que estou pensando em outra saída.

— Vim aqui saber nomes — digo de repente, sem ter pensado bem a respeito.

— Que nomes?

— Dos seus clientes.

Algo muda nos olhos de Hamburg, ele vai tomar o controle da situação.

— Você quer os nomes dos meus clientes? — pergunta ele, desconfiado.

Que merda...

— Pensei que você e Victor Faust já estivessem de posse da minha lista de clientes.

Continue séria. Não perca a compostura. Merda!

— Sim, estamos, mas me refiro àqueles que você não mantinha nos registros.

Acho que vou vomitar. Parece que minha cabeça está pegando fogo. Prendo a respiração, torcendo para ter me livrado dessa.

Hamburg me examina em silêncio, vasculhando meu rosto e minha postura em busca de qualquer sinal de autoconfiança abalada. Ele coça o queixo gordo e cheio de dobras.

— Por que você acha que existe uma lista fantasma?

Suspiro meio aliviada, mas ainda não estou fora de perigo.

— Sempre existe uma lista fantasma — afirmo, embora não faça nem ideia do que estou dizendo. — Quero pelo menos três nomes que não estejam no registro que nós temos.

Sorrio, sentindo que recuperei o controle da situação.

Até ele falar:

— Diga você três nomes da lista que já tem, e eu dou o que você quer.

É oficial: perdi o controle.

Engulo em seco e me controlo antes de parecer “pega no flagra”.

— Você acha que eu carrego a lista na bolsa? — pergunto com sarcasmo, tentando continuar no jogo. — Nada de negociações ou meios-termos, sr. Hamburg. O senhor não está em condições de fazer nenhuma barganha.

— É mesmo? — pergunta ele, sorrindo.

Ele suspeita de mim. Posso sentir. Mas vai garantir que está certo antes de dar o bote.

— Isso não está em discussão. — Eu me levanto da poltrona de couro, enfiando a bolsa debaixo do braço, mais frustrada do que antes por ter que entregar minha arma.

Pressiono os dedos na escrivaninha de mogno, apoiando meu peso neles ao me curvar um pouco na direção de Hamburg.

— Três nomes, ou saio daqui e Victor Faust entra para espalhar os seus miolos naquele belo quadro do menino Jesus atrás de você.

Hamburg ri.

— Esse não é o menino Jesus.

Ele se levanta junto comigo, alto, enorme e ameaçador.

Enquanto vasculho minha mente e tento entender como ele descobriu que sou uma farsante, Hamburg se adianta e anuncia seu raciocínio como um chute na minha boca.

— É engraçado, Izabel, você vir aqui pedir nomes que não aparecem em uma lista que você... — diz, apontando para a minha bolsa — ... nem carrega consigo, porque como você saberia que os nomes que eu daria não estão nela?

Estou muito ferrada.

— Vou dizer o que eu acho — continua ele. — Acho que você veio aqui sozinha por causa de alguma vingança contra mim. — Ele balança o indicador. — Porque eu me lembro de cada detalhe da porra daquela noite. Cada merda de detalhe. Especialmente a sua expressão quando percebeu que Victor Faust tinha vindo matar minha esposa em vez de mim. Era a expressão de alguém pega de surpresa, que não fazia ideia de por que estava ali. Era a expressão de alguém que não está familiarizada com o jogo.

Ele tenta sorrir com gentileza, como se quisesse demonstrar alguma espécie de empatia pela minha situação, mas o que leio em seu rosto é cinismo.

— Acho que, se houvesse mais alguém aqui com você, ele já teria aparecido para salvá-la, porque é óbvio que você está ferrada.

A porta do quarto principal se abre, o guarda-costas entra e a tranca. Por uma fração de segundo, tive a esperança de que fosse Victor vindo me salvar na hora certa. Mas foi só um desejo. O guarda-costas me olha com desprezo. Hamburg acena para ele, que começa a tirar o cinto.

Meu coração afunda até o estômago.

— Sabe — diz Hamburg, dando a volta na escrivaninha —, na primeira vez que a gente se viu, lembro que fiz um acordo com Victor Faust. — Ele aponta para mim. — Você se lembra disso, não?

Hamburg sorri e apoia a mão gorda nas costas da poltrona na qual eu estava sentada, virando-a para mim.

Todo o meu corpo está tremendo; parece que o sangue que passa pelas minhas mãos virou ácido. Ele corre pelo meu coração e pela minha cabeça tão rápido que quase desmaio. Começo a tentar alcançar meu punhal, mas eles estão perto demais, aproximando-se pelos dois lados. Não tenho como enfrentar os dois ao mesmo tempo.

— Como assim? — pergunto, tropeçando nas palavras, tentando ganhar um pouco de tempo.

Hamburg revira os olhos.

— Ora, por favor, Izabel. — Ele gira um dedo no ar. — Apesar do que aconteceu naquela noite, fiquei decepcionado de verdade por vocês dois irem embora antes de cumprir o acordo.

— Eu diria que, em vista do que aconteceu, o acordo não vale mais nada.

Ele sorri para mim e se senta na poltrona de couro. Percebo Hamburg espiar de relance o guarda-costas, dando uma ordem só com o olhar.

Antes que eu consiga me virar, o segurança prende minhas duas mãos nas minhas costas.

— Você vai cometer um erro do caralho se fizer isso! — grito, tentando me livrar das garras do segurança.

Ele me leva à força até uma mesa quadrada e me joga sobre ela. Meus reflexos não são rápidos o suficiente e meu queixo bate no mármore duro. O gosto metálico do sangue enche minha boca.

— Me solte! — Tento chutá-lo. — Me solte agora!

Hamburg ri de novo.

— Vire a cabeça dela para esse lado — ordena ele.

Dois segundos depois, meu pescoço é torcido para o outro lado e mantido ali, minha bochecha esquerda pressionada contra o mármore frio.

— Quero ver a cara dela enquanto você a fode. — Hamburg me olha de novo. — Então vamos continuar do ponto onde paramos naquela noite, tudo bem? Você concorda, Izabel?

— Vai se foder!

— Ah, não, não — diz ele, ainda com o riso na voz. — Não sou eu quem vai foder você. Você não faz o meu tipo. — Seus olhos famintos percorrem o corpo do segurança que está me pressionando por trás.

— Eu vou matar você — digo, cuspindo por entre os dentes. A mão do segurança sobre a minha cabeça impede que eu a mexa. — Vou matar vocês dois! Me estupre! Vamos lá! Mas os dois vão estar mortos antes que eu saia daqui!

— Quem disse que você vai sair daqui? — provoca Hamburg.

O zíper da calça dele está aberto; sua mão direita está parada ao lado da braguilha, como se ele estivesse tentando manter algum autocontrole e não se masturbar ainda.

Então Hamburg acena com dois dedos para o guarda-costas, que me mantém imóvel segurando meus cabelos da nuca.

— Lembre-se disso — diz ele ao segurança. — Ela não vai sair daqui.

Sinto a mão direita do guarda-costas soltar meu cabelo e se mover entre as minhas pernas. Enquanto ele ergue meu vestido, aproveito para alcançar o punhal na minha coxa e tirá-lo da bainha, golpeando atrás em um ângulo desajeitado. O segurança grita de dor e me solta. Puxo o punhal ainda firme na mão, que está coberta de sangue. Ele cambaleia para trás, com a mão na base do pescoço, o sangue jorrando entre seus dedos.

— Sua puta do caralho! — ruge Hamburg, saltando da poltrona e vindo atrás de mim como um elefante descontrolado, a calça caindo de sua cintura flácida.

Corro na direção dele com o punhal levantado e colidimos no meio da sala. Seu peso me joga de bunda no chão e o punhal cai da minha mão, deslizando pelo piso ensanguentado. De pé, Hamburg se abaixa para me segurar, mas me reclino no chão e levanto o pé com toda a força, enfiando o salto da minha sandália na lateral do seu rosto. Ele geme e cambaleia para trás, com a mão na bochecha.

— Eu vou acabar com você! Puta que pariu! — berra ele.

Engatinho na direção do punhal, vendo o segurança no chão, em meio a uma poça de sangue. Ele está engasgando com os próprios fluidos; tentando em vão encher os pulmões de ar.

Pego o punhal com firmeza e rolo no chão enquanto Hamburg se aproxima, derrubando a poltrona de couro. Fico de pé e corro até a mesa, empurrando-a na direção dele. Hamburg tenta tirá-la da frente, mas o móvel balança sobre a base e ele acaba tropeçando. Seu corpo desaba no chão de barriga para baixo e a mesa cai quase na sua cabeça. Salto sobre suas costas e monto em seu corpo obeso. Meus joelhos mal tocam o chão. Agarro seu cabelo, puxo a cabeça dele para trás na minha direção e aperto o punhal em sua garganta, imobilizando-o em segundos.

— Pode me matar! Foda-se! Você não vai sair viva daqui mesmo. — A voz de Hamburg é rouca, sua respiração, rápida e ofegante, como se ele tivesse acabado de tentar correr uma maratona. O cheiro de seu suor e de seu medo invade minhas narinas.

Ocupada com a lâmina em sua garganta, me assusto com o som de batidas fortes na porta. A distração me pega desprevenida. Hamburg consegue se erguer debaixo de mim como um touro, rolando de lado e me derrubando no chão. Deixo cair o punhal em algum lugar, mas não tenho tempo para procurá-lo porque Hamburg consegue se levantar e parte para cima de mim. Ouço a voz de Stephens do outro lado da porta, que vibra com seus socos.

Rolo para sair do caminho antes que Hamburg consiga pular em cima de mim, pego o objeto mais próximo — um peso de papel de pedra, bem pesado, que estava na mesa antes de ser derrubada — e golpeio Hamburg com ele. O som do osso de seu rosto quebrando com o impacto faz meu estômago revirar. Hamburg cai para trás, cobrindo a cara com as mãos.

As batidas na porta ficam mais fortes. Numa fração de segundo, levanto a cabeça e vejo a porta sacudindo com violência no batente. Preciso sair daqui. Agora. Meu olhar varre a sala procurando o punhal, mas não há mais tempo.

Corro para a sala de vigilância, contornando os obstáculos.

Graças a Deus, há outra porta lá dentro. Abro a porta e desço correndo a escada de concreto, torcendo para que seja uma saída e eu não encontre mais ninguém no caminho.


CAPÍTULO CINCO

Sarai

Desço a escada de concreto de dois em dois degraus, segurando no corrimão de metal pintado com as mãos ensanguentadas, até chegar ao térreo. Uma placa vermelha com a palavra SAÍDA está à minha frente. Corro pela passagem mal-iluminada, onde uma lâmpada fluorescente pisca acima de mim e torna o lugar ainda mais ameaçador. Empurro com força a barra da porta com as duas mãos e ela se abre para um beco. Um homem de terno está sentado no capô de um carro, fumando, quando saio para a rua.

Eu fico paralisada.

Ele olha para mim.

Eu olho para ele.

Ele nota o sangue nas minhas mãos e olha de relance para a porta, depois para mim.

— Vá — diz ele, acenando para a caçamba de lixo à minha direita.

Sei que não tenho tempo para ficar confusa nem para perguntar por que ele está me deixando ir embora, mas pergunto assim mesmo.

— Por que você está...?

— Apenas vá!

Ouço passos ecoando na escada atrás da porta.

Lanço um olhar agradecido ao homem e dou a volta na caçamba, desço o beco e me afasto do restaurante. Ouço um tiro segundos depois que dobro a esquina e torço para que seja aquele homem fingindo atirar em mim.

Evito espaços abertos e corro por trás de prédios, protegida pela escuridão, tanto quanto minhas sandálias de salto alto permitem. Quando sinto que estou longe o suficiente para parar um pouco, tento me esconder atrás de outra caçamba e tiro as sandálias. Arranco a peruca loura e a jogo no lixo.

Não consigo respirar. Estou enjoada.

Meu Deus, estou enjoada...

Encosto na parede de tijolos atrás de mim, arqueando as costas e apoiando as mãos nos joelhos. Vomito com violência no chão, meu corpo rígido, o esôfago ardendo.

Pego as sandálias e saio correndo de novo na direção do hotel, tentando esconder o sangue das mãos e do vestido, mas percebo que não é tão fácil. Recebo alguns olhares desconfiados ao passar depressa pela recepção, mas tento ignorá-los e torço para que ninguém chame a polícia.

Em vez de arriscar ser vista por outras pessoas, subo pela escada até o oitavo andar. Quando chego lá, e depois de tudo o que corri, sinto que minhas pernas vão ceder. Encosto na parede e recupero o fôlego, com os joelhos tremendo descontroladamente. Meu peito dói, como se cada respiração trouxesse poeira, fumaça e cacos microscópicos de vidro para o fundo dos pulmões.

O quarto que divido com Eric está trancado e eu não tenho a chave. Aliás...

— Puta merda...

Jogo a cabeça para trás, fecho os olhos e suspiro, arrasada.

Não estou mais com a minha bolsa. Eu a perdi em algum momento da luta na sala de Hamburg. A chave do meu quarto. Meu celular. Minha arma. Meu punhal. Não tenho mais nada.

Bato na porta, mas Eric não está no quarto. Não esperava que estivesse, na verdade, já que não são nem onze da noite. Só para o caso de estar enganada, no entanto, tento o quarto de Dahlia.

— Dahl! Você está aí? — Bato na porta com pressa, tentando não incomodar os outros hóspedes.

Nenhuma resposta.

Já desistindo, jogo as sandálias no chão e apoio as mãos na parede. Minha cabeça desaba. Mas então ouço um clique baixinho e vejo a porta do quarto de Dahlia se abrindo devagar. Levanto a cabeça e a vejo parada ali.

Sem me demorar para questionar a expressão estranha no rosto dela, entro no quarto só para sair do corredor. Eric está sentado na poltrona perto da janela. Noto que seu cabelo está meio bagunçado. O de Dahlia também.

Meu instinto está tentando chamar minha atenção, mas não me importo. Acabei de apunhalar um homem no pescoço e de tentar matar outro. Quase fui estuprada. Estava correndo pelos becos de Los Angeles para fugir de homens armados que vinham atrás de mim. Nada que esses dois façam pode superar isso.

— Meu Deus, Sarai — diz Dahlia, aproximando-se de mim. — Isso é sangue?

A expressão estranha e silenciosa que ela exibia quando entrei no quarto desaparece em um instante quando ela me vê no quarto bem-iluminado. Seus olhos se arregalam, cheios de preocupação.

Eric se levanta da poltrona.

— Você está sangrando. — Ele também me olha de cima a baixo. — O que aconteceu?

Os olhos de Dahlia correm pela minha roupa e pelo meu cabelo preso dentro da touca da peruca.

— Por que... Hã, por que você está vestida assim?

Olho para mim mesma. Não sei o que dizer, então não digo nada. Eu me sinto como um cervo diante dos faróis de um carro, mas minha expressão continua firme e sem emoções, talvez um pouco confusa.

— Você encontrou Matt — acusa Dahlia, começando a levantar a voz. — Puta que pariu, Sarai. Você foi se encontrar com ele, não foi?

Sinto os dedos dela apertando meu antebraço.

Eu me desvencilho de Dahlia e caminho até o banheiro para tirar a touca do cabelo. Enquanto tiro os grampos, noto uma camisinha boiando na privada.

Eric entra no banheiro atrás de mim. Ele sabe que eu vi.

— Sarai, e-eu... Eu sinto muito — diz ele.

— Não se preocupe — respondo, tirando o último grampo e deixando-o na bancada creme.

Passo por Eric e volto para o quarto. Dahlia está me encarando, com o rosto cheio de vergonha e arrependimento.

— Eu...

Ergo a mão e olho para os dois.

— Não, é sério. Não estou brava.

— Como assim? — pergunta Dahlia.

Eric parece agitado. Ele põe a mão na nuca e passa os dedos pelo cabelo.

— Olhe, sem querer ofender — digo a Eric —, mas tenho fingido tudo com você desde a primeira vez que a gente ficou junto.

Ele arregala os olhos, embora tente não deixar que o choque e a mágoa da minha revelação transpareçam demais. Grande parte de mim se sente bem por dizer a verdade. Não por vingança, mas porque eu precisava tirar isso do peito. Mas admito que, depois de descobrir que os dois têm trepado pelas minhas costas, uma pequena parte de mim também fica feliz em magoá-lo. Acho que a vingança sempre encontra um caminho, mesmo nos gestos mais insignificantes.

— Fingido?

— Não tenho tempo para isso — digo, indo na direção da porta. — Vocês dois podem ficar juntos. Não tenho nada contra. Não estou brava, só não me importo mesmo. Preciso ir.

— Espere... Sarai.

Eu me viro para olhar Dahlia. Ela está muito chocada, mal sabe o que pensar. Depois de alguns segundos de silêncio, fico impaciente e a olho com cara de “vai, desembucha”.

— Para você... tudo bem mesmo?

Uau, não sirvo mesmo para o estilo de vida deles. O estilo de vida normal. Nem consigo entender essas coisas de namoro, melhores amigas, infidelidade, competição e joguinhos psicológicos. A cara que eles fazem, tão vazia e mesmo assim tão cheia de incredulidade e dúvida, por causa de uma situação que, para mim, não é tão importante... Tenho coisas mais graves com que me preocupar.

Suspiro, aborrecida com as perguntas vagas e confusas dos dois.

— Sim, por mim, tudo bem — digo, e então me viro para Eric, estendendo a mão. — Preciso da chave do nosso quarto.

Relutante, ele enfia a mão no bolso de trás e pega a chave. Tomo da sua mão, saio dali e vou para o quarto ao lado. Eric vem atrás e tenta falar comigo enquanto guardo minhas coisas na mala.

— Sarai, eu nunca quis...

Eu me viro de repente e o encaro.

— Tudo bem, só vou dizer isto uma vez, depois você muda de assunto ou volta para lá e fica com a Dahlia. Não estou nem aí para o que vocês dois fazem, mas, por favor, não apele para esse clichê de novela de que você nunca quis que isso acontecesse, porque... é muito idiota. — Eu rio baixinho, porque acho idiota mesmo. — Só falta você dizer que o problema não é comigo, é com você. Caramba, você faz ideia do que isso parece? É tão difícil assim acreditar quando digo que não me importo e que estou falando sério? Sem joguinhos. É verdade. — Balanço a cabeça, levanto as mãos e digo: — Não. Me. Importo.

Viro para a mala, fecho o zíper, abro a parte lateral e pego a chave do quarto secreto. Ainda bem que eu tinha uma cópia.

— Preciso ir — digo, andando até a porta e passando por Eric.

— Aonde você vai?

— Não posso contar, mas me escute, Eric, por favor. Se alguém aparecer me procurando, finja que não me conhece. Diga o mesmo para Dahlia. Finjam que nunca me viram na vida. Aliás, quero que vocês dois saiam hoje. Vão para qualquer lugar. Só... não fiquem aqui.

— Você vai me dizer o que aconteceu ou por que está toda ensanguentada? Sarai, você está me deixando assustado pra cacete.

— Eu vou ficar bem — digo, atenuando minha expressão. — Mas prometa que você e Dahlia vão fazer exatamente o que falei.

— Você vai me contar um dia?

— Não posso.

O silêncio entre nós fica mais pesado.

Enfim, abro a porta e saio para o corredor.

— Acho que sou eu quem deveria estar pedindo desculpas.

— Por quê?

Eric fica na porta, com os braços caídos ao lado do corpo.

— Por pensar em outra pessoa durante todo esse tempo em que eu estava com você. — Olho para o chão.

Nós nos encaramos por um breve momento e ninguém diz mais nada. Ambos sabemos que estamos errados. E acho que nós dois estamos aliviados por tudo ter vindo à tona.

Não há mais nada a dizer.

Eu me afasto pelo corredor na direção oposta à do meu quarto secreto e dou a volta por trás, para que Eric não veja aonde estou indo. Quando me tranco no quarto, só consigo desabar na cama. A exaustão, a dor e o choque de tudo o que aconteceu esta noite me atingem em cheio assim que a porta se fecha, e me engolem como uma onda. Eu me jogo de costas no colchão. Minhas panturrilhas doem tanto que duvido conseguir andar sem mancar amanhã.

Fico olhando para o teto escuro até ele desaparecer e eu pegar no sono.


CAPÍTULO SEIS

Sarai

Um tum! pesado me acorda, mais tarde naquela noite. Eu me levanto como uma catapulta.

Vejo dois homens no meu quarto: um desconhecido morto no chão e Victor Faust de pé sobre o corpo dele.

— Levante-se.

— Victor?

Não acredito que ele está aqui. Devo estar sonhando.

— Levante-se, Sarai. AGORA! — Victor me pega pelo cotovelo, me arranca da cama e me põe de pé.

Não consigo nem pegar minhas coisas, ele já está abrindo a porta e me puxando para o corredor com ele, segurando forte a minha mão.

Disparamos juntos pelo corredor e outro homem aparece virando a esquina, de arma em punho. Victor aponta sua 9mm com silenciador e o derruba antes que o cara consiga atirar. Ele passa pelo corpo me puxando, seus dedos fortes afundando na minha mão enquanto corremos para a escada. Ele abre a porta, me empurra para a frente e nós subimos depressa os degraus de concreto. Um andar. Três. Cinco. Minhas pernas estão me matando. Acho que não consigo andar por muito mais tempo. Enfim, no quinto andar, Victor me puxa para outro corredor e rumo a um elevador nos fundos.

Quando as portas do elevador se fecham e estamos só nós dois lá dentro, finalmente tenho a oportunidade de falar.

— Como você sabia que eu estava aqui? — Mal consigo recuperar o fôlego, esgotada pela correria infinita e pela adrenalina, mas acho que sobretudo porque Victor está de pé ao meu lado, segurando minha mão.

Meus olhos começam a arder com as lágrimas.

Engulo o choro.

— O que você estava pensando, Sarai?

— Eu...

Victor segura meu rosto com as duas mãos e me empurra contra a parede do elevador, pressionando ferozmente seus lábios nos meus. Sua língua se entrelaça na minha e sua boca tira meu fôlego em um beijo apaixonado que, enfim, faz meus joelhos cederem. Toda a força que eu estava usando para manter o corpo ereto desaparece quando os lábios dele me tocam. Ele me beija com fome, com raiva, e eu derreto em seus braços.

Então ele se afasta, as mãos fortes nos meus braços, me segurando contra a parede do elevador. Nós nos encaramos pelo que parece ser uma eternidade, nossos olhos paralisados em uma espécie de contemplação profunda, nossos lábios a centímetros de distância. Só quero prová-los de novo.

Mas ele não deixa.

— Responda — exige Victor, estreitando seus olhos perigosos em reprovação.

Já esqueci a pergunta.

Ele me sacode.

— Por que você veio aqui? Tem ideia do que você fez?

Balanço a cabeça em um movimento curto e rápido, parte de mim mais preocupada com seu olhar ameaçador do que com o que ele está dizendo.

A porta do elevador se abre no subsolo e eu não tenho tempo para responder, pois Victor mais uma vez pega minha mão e me puxa para que o siga. Serpenteamos por um grande depósito com caixas em pilhas altas encostadas nas paredes e depois por um longo corredor escuro que leva a um estacionamento. Victor enfim solta minha mão e eu o sigo até um carro parado entre dois furgões pretos com o logotipo do hotel nas laterais. Dois bipes ecoam pelo ambiente e os faróis do carro piscam quando nos aproximamos, iluminando a parede de concreto em frente. Sem perder tempo, me sento no banco do passageiro e fecho a porta.

Segundos depois, Victor está dirigindo casualmente pelo estacionamento até a rua.

— Eu queria que ele morresse — respondo, enfim.

Victor não me olha.

— Bom, você fez um excelente trabalho — rebate ele, sarcástico.

Ele vira para a direita no semáforo, e o carro ganha velocidade quando chegamos à rodovia.

Fico magoada por suas palavras, mas sei que ele tem razão, por isso não discuto. Fiz merda. Uma merda muito grande.

Mas não me dou conta do tamanho dela até Victor dizer:

— Os seus amigos podiam ter morrido. Você podia ter morrido.

Sinto meus olhos se arregalarem além dos limites e me viro mais um pouco para encará-lo.

— Ah, não... Victor, o quê... Eles estão bem?

Sinto que vou vomitar de novo.

Victor me olha por um instante.

— Estão ótimos. O primeiro quarto que os capangas de Hamburg revistaram estava vazio — diz ele, voltando a olhar para a estrada. — Eu cheguei quando eles estavam saindo. Segui um deles até o quarto onde você estava escondida, deixei que ele destrancasse a porta e então ataquei.

As chaves do quarto. Minhas duas chaves extras estavam na bolsa que perdi no restaurante de Hamburg. E os números dos quartos estavam escritos nas capinhas de papel que as protegiam. Eu estava tão preocupada em esconder minha arma e meu punhal que nem pensei em esconder as chaves.

— Merda! — Também olho para a estrada. — E-eu perdi a bolsa no restaurante. As chaves do meu quarto estavam dentro dela. Deixei um rastro para eles seguirem!

Felizmente, eu não tinha uma chave extra do quarto de Dahlia, senão ela e Eric já poderiam estar mortos.

Onde é que eu estava com a cabeça?!

— Não, você deixou literalmente as chaves do seu quarto com o nome do hotel gravado. Sarai, eu devia ter matado você há muito tempo e poupado toda essa confusão para cima de você e de mim.

Eu me viro para encará-lo; a raiva e a mágoa pesando no meu peito.

— Você não está falando sério.

Ele faz uma pausa e me olha. Suspira.

— Não, não estou falando sério.

— Nunca mais me diga isso. Nunca mais me diga uma coisa dessas, ou eu mato você e poupo a mim de toda essa confusão — rebato, desviando o olhar.

— Você não está falando sério — diz Victor.

Olho mais uma vez para aqueles olhos ameaçadores verde-azulados que me fizeram tanta falta.

— Não. Mas acho que isso seria o mais sensato.

— Bom, você não foi a campeã da sensatez hoje, então acho que estou seguro ao menos pelas próximas 24 horas.

Escondo o sorriso.

— Senti sua falta — digo de maneira distante, olhando para a estrada.

Victor não responde, mas admito que seria estranho se respondesse. A despeito de sua falta de emoção, porém, sei que ele também sentiu saudade de mim. Aquele beijo no elevador disse coisas que palavras jamais conseguiriam.

Ele pega uma saída e para o carro debaixo de um viaduto. Puxa o freio de mão e a área ao redor desaparece na escuridão quando ele desliga os faróis.

— O que a gente está fazendo aqui?

— Você precisa ligar para os seus amigos.

— Por quê?

Ele tira um celular do porta-luvas entre nós.

— Mande eles voltarem para o Arizona. Faça ou diga o que for preciso para que eles saiam de Los Angeles. Quanto antes, melhor.

Ele coloca o telefone na minha mão. De início, só olho para o aparelho, mas ele me pressiona com aquele olhar, aquele que grita “vamos lá, faça isso de uma vez”, mas que só alguém como eu, alguém que conhece Victor, seria capaz de notar.

Giro o celular nas mãos, depois o seguro firmemente e digito o número de Eric. Mas então mudo de ideia, desligo no primeiro toque e ligo para Dahlia.

Ela atende no quinto toque.

Respiro fundo e faço o que sei fazer melhor: minto.

— A verdade é que vocês me magoaram. Duvido que um dia eu consiga perdoar você ou Eric pelo que fizeram.

— Sarai... Meu Deus, me desculpe, estou me sentindo muito mal. A gente não queria que isso chegasse a esse ponto. Juro para você. Não sei o que aconteceu...

— Escute, Dahlia, por favor, só me escute.

Ela fica quieta.

Começo a choradeira. Nunca imaginei que eu seria capaz de chorar sob demanda e de forma tão falsa.

— Eu quero acreditar em você. Quero conseguir confiar em você de novo, mas você era minha melhor amiga e me traiu. Preciso de um tempo sozinha e quero que você e Eric voltem para o Arizona. Hoje. Acho que não vou aguentar ver vocês de novo... Espere, onde você está, agora?

Acabo de me dar conta de que, se ela e Eric estiverem no hotel, a essa altura ela já sabe que dois homens foram mortos a tiros no andar do quarto deles.

— A gente está em uma festa em um terraço — conta ela. — T-tudo bem por você? Achei que não tinha nada a ver a gente sair, mas o Eric falou que você insistiu...

— Não, tudo bem — digo, cortando-a. — Insisti mesmo. Onde ele está, agora?

— Deixei Eric lá no terraço para a gente poder conversar. Está muito barulhento lá em cima. Que número é esse de onde você está ligando?

— É o celular de um amigo. Perdi o meu. O Eric por acaso avisou que se alguém procurar por mim...

— Avisou, sim — interrompe Dahlia. — Que confusão é essa, afinal? Meu Deus, Sarai, esquece por um momento esse lance com Eric e me conta o que está acontecendo, por favor. O sangue. As roupas esquisitas que você estava usando e aquele troço na sua cabeça. Era uma touca de peruca? Você está metida em alguma encrenca, eu sei. Sei que você me odeia, e tem todo o direito de odiar, mas, por favor, conte o que aconteceu.

— Não posso contar, porra! — grito, deixando o choro distorcer minha voz. — Caramba, Dahlia, faça o que eu pedi. Pelo menos isso! Você deu para o meu namorado! Por favor, voltem para o Arizona, me deixem esfriar a cabeça e depois eu volto para casa. Talvez aí a gente possa conversar. Mas agora façam o que eu estou pedindo. Tudo bem?

Ela não responde por um momento, e um longo silêncio se forma entre nós.

— Tudo bem — concorda ela. — Vou dizer ao Eric que a gente precisa ir embora.

— Obrigada.

Estou apenas um pouco aliviada. Não vou me sentir bem com isso até saber que eles chegaram em casa sãos e salvos.

Desligo sem dizer mais uma palavra.

— Bom, isso foi bastante convincente — observa Victor, levemente impressionado.

— Acho que foi.

— Eu sei que a sua amiga acreditou — acrescenta ele. — Mas eu não acreditei em uma só palavra.

Eu me viro para ele. Victor me conhece tão bem quanto eu o conheço, parece.

— É porque nem uma palavra era verdade.

Ele deixa por isso mesmo e nós saímos de baixo do viaduto.

Chegamos a uma casa perdida no final de uma estrada isolada nos arredores da cidade, empoleirada no alto de uma colina com uma vista quase perfeita para a cidade lá embaixo. Uma piscina de formato irregular começa no lado esquerdo da casa e serpenteia por trás, a água azul-clara iluminada por lâmpadas submersas parece luminescente. O lugar está silencioso. Só ouço o vento passando pela mata cerrada que contorna o lado direito e os fundos da casa, impedindo uma visão em 360 graus da paisagem iluminada de Los Angeles. Quando nos aproximamos da porta, uma mulher robusta usando uniforme azul de empregada nos recebe. Ela tem cabelo preto encaracolado e pele morena. Suas bochechas são volumosas, envolvendo seus olhos castanho-escuros pequenos e brilhantes, que fitam atentamente Victor e a mim.

— Por favor, entrem — diz ela, com um sotaque hispânico familiar.

A mulher fecha a porta. A casa cheira a limpa-vidro e a uma mistura pouco natural de cheiros adocicados que só pode vir de algum tipo de aromatizador de ambientes artificial. Parece que todas as janelas foram abertas, permitindo que a brisa noturna de verão se espalhasse pela casa. Não se parece em nada com as mansões ricas onde já estive, mas é impecável e aconchegante, e penso que eu deveria pelo menos ter tomado um banho antes de vir. Minha pele e minhas roupas ainda estão manchadas de sangue...

Victor está usando uma calça preta e uma camisa apertada de mangas compridas que adere a cada músculo de seus braços e seu peito, com os punhos desabotoados e arregaçados até os cotovelos. A camisa está por fora da calça e os dois botões de cima estão abertos. Sapatos pretos chiques e informais calçam seus pés. Um relógio brilhante de prata adorna seu pulso direito, e não consigo deixar de notar a solitária veia grossa que percorre as costas de sua mão até o osso de seu pulso. Quando ele segue a empregada pela grande entrada e se vira momentaneamente de costas para mim, vejo o cabo da arma saindo da cintura de sua calça, com a barra da camisa branca enfiada atrás.

Ele me olha, para e estende o braço, em um gesto para que eu ande à sua frente. Tremo de leve quando sua mão toca minhas costas perto da cintura.

Antes que eu tenha tempo de me sentir deslocada ao lado dele, Fredrik, o amigo e cúmplice sueco de Victor que conheci no restaurante de Hamburg há tanto tempo, entra na sala pelas grandes portas de vidro que dão para o quintal dos fundos.


CAPÍTULO SETE

Sarai

— Você chegou cedo — comenta Fredrik com um sorriso mortal, porém inimaginavelmente sexy.

As roupas dele são bem parecidas com as de Victor, mas, em vez de camisa de botão, Fredrik está vestindo uma camiseta branca apertada que adere à sua forma esbelta e máscula. Ele está descalço.

A primeira vez que vi Fredrik, pensei que era impossível haver alguém mais bonito. Com cabelo macio, quase preto, e olhos escuros e misteriosos, suas feições parecem ter sido esculpidas por algum artista famoso. Mas sempre achei que havia algo de sombrio e assustador naquele homem. Um lado dele que eu, particularmente, não faço questão de conhecer. Para mim, basta o jeito como ele era quando nos encontramos: cordial, encantador e misterioso, uma linda máscara que ele usa para esconder a fera que há por trás.

Victor olha para seu relógio caro.

— Só dez minutos mais cedo — comenta ele.

Fredrik sorri ao se aproximar, os dentes brancos reluzindo contra a pele bronzeada.

— Sim, mas você sabe como eu sou.

Victor assente, mas não alonga o assunto. A mim, só resta imaginar o que aquilo significa.

— É bom ver você — diz Fredrik, observando-me do topo de sua altura considerável e presença avassaladora. Ele se inclina, pega minha mão e a beija, logo acima dos nós dos dedos. — Ouvi dizer que você matou um homem hoje.

Ele apruma as costas e solta minha mão. Um sorriso perturbador e orgulhoso surge em seu rosto, os cantos dos olhos se aquecendo com alguma lembrança ou... prazer, como se a ideia de matar alguém o deliciasse de alguma forma.

Olho para Victor à minha direita. Ele assente, respondendo à pergunta estampada no meu rosto. O guarda-costas que apunhalei no pescoço morreu?

Olho para Fredrik e respondo sem rodeios.

— Acho que matei.

Um leve sorriso se abre nos cantos dos lábios de Fredrik, e ele olha de relance para Victor, sem mover a cabeça.

— E você se sente bem com isso? — pergunta Fredrik.

— Para dizer a verdade, sim — respondo sem demora. — O desgraçado mereceu.

Fredrik e Victor parecem envolvidos em algum tipo de conversa secreta. Odeio isso.

Enfim, Fredrik diz para Victor em voz alta:

— Você arrumou sarna para se coçar, Faust.

Ele então se vira de costas para nós e anda na direção das portas de vidro. Nós o seguimos para o lado de fora, passando pela parte coberta do quintal e descendo uma escada de pedra que leva a um enorme pátio, também de pedra, que se abre em todas as direções. O pátio é decorado com mesas e cadeiras de ferro batido e uma cama com dossel ao ar livre.

Eu me sento ao lado de Victor em um sofá.

— Como é que você sabe? — pergunto a Fredrik, mas então me viro para Victor e digo: — E você ainda não me contou como sabia que eu estava aqui.

Na verdade, isso não importa muito, só quero encará-lo nos olhos de novo. Quero ficar sozinha com Victor, mas por enquanto vou precisar me contentar com os 7 centímetros entre nossos corpos, sentados lado a lado.

— Melinda Rochester me contou — explica Fredrik com um sorriso conivente. Começo a perguntar “E quem é Melinda Rochester”, mas ele diz: — Bem, ela contou para todo mundo, na verdade. Noticiário do Canal 7. Um homem morto a punhaladas atrás de um restaurante de Los Angeles.

Começo a me retorcer por dentro. Espero que as câmeras não tenham me mostrado com nitidez.

Eu me viro para Victor, com a preocupação transparecendo no rosto.

— Eu estava de peruca loura — digo, tentando encontrar alguma coisa, qualquer coisa que eu tenha feito certo. — Fiquei com a cabeça baixa... a maior parte do tempo.

Desisto. Sei que o que fiz vai continuar me perseguindo. Suspiro e olho para as mãos ensanguentadas no meu colo.

— E encontrar você foi fácil — continua Victor. — A sra. Gregory me ligou depois que você saiu do Arizona. Ela estava preocupada com a sua vinda para Los Angeles e achou que eu precisava saber.

Viro a cabeça para encará-lo.

— O quê? Dina sabia onde você estava? — Sinto a pele ao redor das sobrancelhas se enrijecendo.

— Não — responde ele, com delicadeza. — Ela não sabia onde eu estava, mas sabia como entrar em contato comigo.

Essas palavras me magoam. Engulo em seco a sensação de ser traída por eles.

— Falei para ela entrar em contato comigo só em caso de emergência — acrescenta Victor. — Caso algo acontecesse com você.

— Você deixou para Dina uma forma de entrar em contato — digo, ríspida —, mas para mim, nada. Não acredito que você fez isso.

— Eu queria que você tocasse a sua vida. Mas, caso os irmãos de Javier descobrissem onde você estava, ou você decidisse fazer uma proeza como a de hoje, eu queria ficar sabendo.

Não consigo olhar para Victor. Tento chegar mais alguns centímetros para o lado a fim de aumentar a distância entre nós. Ainda assim, mesmo que esteja magoada e enfurecida com ele, sinto vontade de me aproximar de novo. Mas me mantenho firme e me recuso a deixá-lo perceber que o poder que ele exerce sobre mim faz a raiva que sinto parecer um chilique.

— Não acredito que Dina escondeu isso de mim — digo em voz alta, ainda que esteja falando mais comigo mesma.

— Ela escondeu de você porque eu disse a ela quanto isso era importante.

— Bom, de qualquer maneira — interrompe Fredrik, sentando-se na poltrona ao lado do sofá —, parece que você se meteu em uma situação da qual não vai conseguir sair tão facilmente, se é que vai conseguir.

— Por que a gente está aqui? — pergunto, aborrecida.

Fredrik ri baixinho.

— Aonde mais você iria?

— Eu precisava tirar você do hotel — explica Victor.

— Espere um pouco. Eu não matei aquele homem atrás do restaurante. Tudo aconteceu na sala particular de Hamburg, no andar de cima.

Recordo o homem que vi do lado de fora, atrás do restaurante, aquele que me deixou fugir, e meu coração afunda.

— Hamburg não deixaria que a polícia acreditasse que o assassinato aconteceu lá dentro, porque eles confiscariam a memória da câmera de vigilância e veriam o que realmente aconteceu.

Não estou entendendo nada. Nadinha.

— Eles não iam querer que a polícia soubesse o que realmente aconteceu?

Fredrik se reclina na poltrona e ergue um pé descalço, apoiando o tornozelo sobre o outro joelho, e estende os braços sobre os da poltrona.

Victor balança a cabeça.

— Preciso mesmo explicar isso para você, Sarai?

Sua vaga irritação me pega de surpresa. Olho para ele e levo alguns segundos para entender tudo sem que ele precise explicar.

— Ah, entendi — digo, olhando um de cada vez. — Hamburg não quer que a polícia se envolva porque corre o risco de se expor. O que ele fez, então? Só levou o corpo para fora? Preparou a situação para parecer um assalto comum? Não muito diferente do que ele fez naquela noite em que a gente estava na mansão dele, imagino.

Paro por aí porque Fredrik está presente. Não sei qual o grau de intimidade entre ele e Victor, nem mesmo se Fredrik sabe o que aconteceu na noite em que Victor matou a esposa de Hamburg.

Os olhos de Victor sorriem de leve para mim: sua maneira de me mostrar quanto lhe agrada eu ter entendido tudo. Ainda fingindo estar aborrecida, não retribuo o olhar da forma que ele deve esperar.

A empregada aparece com um balde chique de gelo, de madeira, com três garrafas de cerveja dentro. Fredrik pega uma, então ela nos oferece. Victor pega uma garrafa, mas recuso, mal conseguindo olhar a mulher nos olhos. Estou absorta demais nos acontecimentos da noite, que não me saem da cabeça.

A empregada vai embora logo depois, sem dizer uma palavra.

— O que você quis dizer com os irmãos de Javier?

Victor abre sua garrafa e a põe na mesa.

— Dois deles, Luis e Diego, assumiram os negócios de Javier dias depois que você o matou.

Por um instante, o rosto de Javier surge em minha mente: sua expressão chocada e ainda orgulhosa, os olhos arregalados, o corpo caindo no chão segundos depois de eu meter uma bala em seu peito.

Afasto a imagem.

Eu me lembro de Luis e Diego. Diego é aquele que tentou me estuprar quando eu estava na fortaleza no México, aquele que Javier castrou como punição.

— Eles estão me procurando?

Victor toma um gole de cerveja e devolve a garrafa à mesa com calma.

— Que eu saiba, não. Estou monitorando a fortaleza há meses. Os irmãos de Javier são amadores. Não têm ideia do que fazer com tanto poder. Duvido até que vejam você como ameaça.

Fredrik toma um gole de cerveja e prende a garrafa entre as pernas.

— Não fique tão aliviada assim — diz ele. — É melhor ser perseguida por amadores do que por Hamburg e aquele braço direito dele.

Um nó nervoso se forma no fundo do meu estômago. Olho de relance para Victor, buscando respostas.

— Willem Stephens — esclarece Victor — faz todo o serviço sujo de Hamburg. Hamburg em si é covarde, tão perigoso quanto o pedófilo gente boa da vizinhança. Mal consegue atirar em um alvo imóvel, e trairia alguém em dois minutos para se salvar. — Ele arqueia uma sobrancelha. — Stephens, por outro lado, tem uma extensa formação militar, é ex-mercenário e trabalhou para uma Ordem do mercado negro em 1986.

— Uma o quê?

— Uma Ordem como a nossa — explica Victor —, mas que aceita contratos particulares. Eles fazem coisas que outros agentes se recusam a fazer, vendem seus serviços basicamente para qualquer um.

— Ah... Então, resumindo, ele mata gente inocente por dinheiro.

Lembro o que Victor me contou, meses atrás, sobre a natureza dos contratos particulares, como pessoas eram assassinadas por motivos fúteis como traição conjugal ou vingança. A Ordem de Victor só trabalha com crime, ameaças sérias a um grande número de pessoas ou ideias que poderiam ter um impacto negativo na sociedade ou na vida como um todo.

Engulo em seco.

— Bom, ele me viu, com certeza. — Levanto as mãos e tiro o cabelo do rosto, passando as mãos no alto da cabeça. — Foi ele quem me levou para o segundo andar, para a sala de Hamburg. — Olho para Victor. — Desculpa, Victor. Eu... eu não sabia de nada disso.

Fredrik ri baixinho e diz:

— Algo me diz que, mesmo se você soubesse, teria ido lá de qualquer maneira.

Desvio o olhar de Victor e olho para baixo de novo, nervosa, esfregando os dedos ensanguentados uns nos outros. Fredrik tem razão. Odeio admitir, mas ele tem razão. Eu teria ido para o restaurante mesmo assim. Teria tentado matar Hamburg mesmo assim. Mas, se eu soubesse de tudo isso, acho que teria pensado em um plano melhor.

De repente, sinto que alguma coisa toma meu corpo e me tira o fôlego.

— Victor... Meu celular... — Eu me levanto do sofá, com o cabelo castanho-avermelhado caindo pelos ombros, batendo em meus braços nas partes em que o sangue secou e formou uma crosta áspera. — O número de Dina está no meu celular. Merda. Merda! Victor, Stephens vai atrás dela! Preciso voltar para o Arizona!

Começo a seguir para a porta dos fundos, mas Victor me alcança antes que eu atravesse o caminho decorado com pedras lisas.

— Espere aí.

Olho para baixo e vejo os dedos dele em volta do meu pulso. Seus hipnóticos olhos verde-azulados me fitam com desejo e devoção. Devoção. Algo que nunca vi no olhar de Victor antes.

Fredrik fala atrás de nós, me tirando do transe em que Victor me colocou.

— Eu vou cuidar disso — diz ele.

Desvio o olhar de Victor para Fredrik, que então ganha importância, considerando que a vida de Dina está em jogo.

— Como? — pergunto.

Victor me leva de volta para o sofá.

Fredrik pega o celular da mesa à frente, procura um número e toca na tela para ligar. Então encosta o celular no ouvido.

Victor me faz sentar perto dele de novo. Estou concentrada demais em Fredrik no momento para notar que Victor fez questão de se sentar tão perto que sua coxa está encostada na minha. Quero aproveitar o momento de proximidade, mas não posso. Estou preocupada com Dina.

Fredrik se reclina na poltrona de novo, balançando o pé descalço apoiado no joelho. Seu rosto fica alerta quando alguém atende à ligação.

— Em quanto tempo você consegue chegar a Lake Havasu City? — pergunta Fredrik ao telefone. Ele ouve por um segundo e assente. — Mando o endereço por mensagem de texto assim que eu desligar. Vá para lá o mais rápido que puder. Uma mulher mora lá. Dina Gregory. — Ele me olha de relance, para se certificar de que disse o nome certo. Como não o corrijo, volta a falar ao telefone. — Tire-a da casa e a leve para Amelia, em Phoenix. Sim. Sim. Não, não pergunte nada a ela. Só tome cuidado para ninguém machucar Dina. Sim. Me ligue neste número assim que estiver com ela.

Fredrik assente mais algumas vezes. Meu coração está batendo tão forte que parece pronto para pular do peito. Espero que a pessoa com quem ele está falando consiga encontrar Dina a tempo.

Fredrik desliga e parece abrir uma tela de texto no celular. Ele olha para mim, mas é Victor quem dá o endereço da sra. Gregory. Fredrik o digita e deixa o celular na mesa.

— Meu contato está a apenas trinta minutos de lá — explica Fredrik, olhando primeiro para mim. Então se vira para Victor. — O que você quer que eu faça?

Ele levanta as costas da poltrona e apoia os cotovelos nos joelhos, deixando as mãos entre eles. Mesmo em uma posição relaxada, ele consegue parecer elegante, importante e perigoso.

— Ainda preciso que você verifique o que discutimos ontem — diz Victor, e fica ainda mais claro, para mim, que Fredrik recebe ordens dele, embora não pareça ser do tipo que recebe ordens de ninguém. Mas está claro que os dois têm uma relação forte. — E, se você não se importa, preciso da sua casa emprestada por esta noite.

Os olhos escuros de Fredrik me encaram, e o traço de um sorriso aparece em seu rosto. Ele se levanta e pega o celular da mesa, escondendo-o na mão.

— Não precisa dizer mais nada. Vou sair daqui em vinte minutos. Eu ia mesmo me encontrar com alguém hoje, então está combinado.

A atitude de Victor muda um pouco, o que percebo no mesmo instante. Ele está encarando Fredrik, do outro lado da mesa do pátio, com um olhar cansado e cauteloso.

— Você não vai fazer o que estou pensando...

Ouço com atenção sem nem ao menos tentar disfarçar. Eu quero que eles saibam que estou bisbilhotando, porque é frustrante nenhum dos dois me oferecer qualquer explicação sobre esses comentários internos.

Fredrik ergue um lado da boca em um meio sorriso. Ele balança a cabeça de leve.

— Não, esta noite, não, infelizmente. Mas já faz algum tempo. Vou precisar que você me ajude com isso em breve.

Os olhos dele passam por mim e sinto um calafrio percorrer minhas costas. Não consigo decidir se é um arrepio bom ou assustador.

— Você terá sua oportunidade logo, logo — assegura Victor.

Fredrik dá a volta na mesa.

— Lamento por ter que encurtar nossa reunião.

— Tudo bem — digo. — Obrigada por ajudar com Dina. Você avisa quando receber aquela ligação?

Fredrik assente.

— Com certeza. Farei isso.

— Obrigada.

Victor acompanha Fredrik até a porta de vidro e os dois a atravessam. Fico sentada, observando-os do outro lado do pátio de pedra e tentando ouvir o máximo que posso, mas eles fazem questão de falar em voz baixa. Isso também me deixa frustrada. E pretendo informar Victor disso.


CAPÍTULO OITO

Victor

Fredrik fecha a porta de correr feita de vidro.

— Ela não sabe nada sobre Niklas? — pergunta ele, como eu já previa.

— Não, mas vou ter que contar. Ela vai precisar ficar atenta o tempo todo. Agora mais do que nunca.

— Ela não pode ficar aqui por muito tempo — aconselha Fredrik, olhando, através do vidro, Sarai sentada no sofá lá fora e nos observando. — Você também não.

— Eu sei. Quando Niklas descobrir que ela participou do assassinato no restaurante de Hamburg, vai saber na mesma hora que também estou envolvido nisso. Ele não é bobo. Se Sarai está viva, Niklas vai saber que estou tentando ajudá-la.

— E como ele desconfia de que agora trabalho com você — acrescenta Fredrik —, ela corre tanto perigo perto de mim quanto de você.

— É verdade.

Fredrik balança a cabeça para mim, com um sorriso escondido no fundo dos olhos.

— Não entendo esse envolvimento. Respeito você como sempre, respeitei, Victor, mas nunca vou entender a necessidade de um homem amar uma mulher.

— Eu não estou apaixonado por ela. Ela só é importante para mim.

— Talvez não — retruca ele, indo para a cozinha. — Mas parece que o amor e o envolvimento trazem as mesmas consequências, meu amigo. — Sigo Fredrik até a cozinha iluminada e ele abre um armário. — Mas estou do seu lado. O que você precisar que eu faça para ajudar, é só pedir. — Ele aponta para mim perto do armário, agora com um pão na mão.

A empregada de Fredrik entra na cozinha, roliça e mais velha do que nós dois juntos, exatamente o tipo de mulher que jamais o atrairia, e foi por isso que ele a contratou. Ela lhe pergunta em espanhol se pode voltar para casa e ver a família mais cedo hoje. Fredrik responde em espanhol, concordando. Ela assente respeitosamente e passa por mim na sala. De soslaio, eu a observo pegar uma bolsa volumosa de couro marrom do chão, perto da espreguiçadeira, e colocá-la no ombro. Depois ela vai até a porta, fechando-a devagar ao sair.

Sarai está de pé nas sombras da sala quando desvio o olhar da porta. Nem ouvi a porta de vidro correr quando ela entrou, e pelo jeito Fredrik também não.

Ela vai para a cozinha iluminada, de braços cruzados, os dedos delicados segurando seus bíceps femininos, mas bem-definidos. Ela é linda demais, mesmo quando está desgrenhada assim.

— Quanto tempo vocês planejavam me deixar lá fora? — pergunta ela, com um traço de irritação na voz.

— Ninguém disse que você precisava ficar lá, gata — responde Fredrik.

Ele gosta dela, isso é óbvio para mim, e ele deve saber. Mas também sabe que vou matá-lo. Ainda assim, minha confiança em Fredrik é maior do que minha preocupação de que ele volte para o lado sombrio e a machuque. Fredrik Gustavsson é uma fera do tipo mais carnal, que adora mulheres e sangue, mas tem limites e critérios, além de levar a lealdade, o respeito e a amizade muito a sério. Sua lealdade a mim é, afinal, o motivo para ele trair a Ordem todos os dias me ajudando.

Sarai se aproxima de mim e me olha nos olhos, inclinando um pouco a cabeça para o lado. O cheiro de sua pele e o calor tênue que emana dela quase me fazem perder o controle. Tenho conseguido me conter bastante desde que a beijei no elevador. Pretendo continuar assim.

Ela não diz nada, mas continua me encarando como se esperasse alguma coisa. Fico confuso. Ela inclina a cabeça para o outro lado e seu olhar se suaviza, embora eu não saiba ao certo por quê. Parece maliciosa e cheia de expectativa.

Ouço Fredrik rir baixinho e a porta da geladeira se fechar, mas não tiro os olhos de Sarai.

— As coisas são tão mais fáceis do meu jeito. — Ouço-o dizer, com um sorriso na voz.

— Entre em contato comigo assim que tiver a informação sobre Niklas — peço, ainda olhando nos olhos de Sarai e ignorando o comentário dele. — E quando souber pelo seu contato se Dina Gregory está a salvo em Phoenix.

— Pode deixar — diz Fredrik, e então vai para a porta do corredor que leva ao seu quarto. Mas ele para e olha para nós. — Se você não se importa...

Enfim desvio o olhar de Sarai e dou atenção total a Fredrik.

— Não se preocupe — interrompo —, eu sei onde fica o quarto de hóspedes.

Ele enfia na boca um sanduíche que mal notei que ele preparava e morde, rasgando um pedaço de pão. Eu o vejo piscando para Sarai antes de desaparecer da sala. Foi algo inofensivo, uma menção ao que ele acha que pode acontecer entre nós quando sair, e não uma tentativa de flerte.

— Que informação sobre Niklas? — pergunta Sarai, seus traços suaves agora encobertos pela preocupação.

Estendo a mão e passo os dedos por algumas mechas do cabelo dela.

— Preciso contar muita coisa para você — anuncio, tirando a mão antes de perder o controle e acabar tocando nela mais do que pretendo. — Sei que você deve estar exausta. Por que não toma um banho e fica à vontade primeiro? Depois conversamos.

Um sorrisinho suave emerge em seus lábios, mas logo desaparece em seu rosto enrubescido.

— Você quer dizer que eu estou nojenta? — pergunta ela, tímida. — Esse é o seu jeito de me dizer que preciso lavar meu corpo nojento?

— Na verdade, sim — admito.

Por um momento ela faz uma careta e parece ofendida, mas então só balança a cabeça e dá risada. Admiro isso em Sarai. Admiro muita coisa nela.

— Tudo bem. — Sua expressão brincalhona fica séria de novo. — Mas você precisa me contar tudo, Victor. E eu sei que você deve ter muito para contar, mas saiba que também preciso dizer muita coisa para você.

Eu já esperava isso. E, antes que ela fique na ponta dos pés, incline o corpo na minha direção e me beije, já sei que, quando ela sair do banho, vou precisar decidir o que vamos fazer. Vou precisar tomar algumas decisões importantes, que nos afetarão.

Porque de uma coisa eu tenho certeza: Sarai não pode voltar para casa.


Sarai

Quando volto, Victor está na sala, acomodado na beira do sofá, curvado sobre a mesinha de centro feita de vidro que está cheia de pedaços de papel e fotografias. Entro, mas ele continua remexendo neles sem erguer a cabeça para me olhar. Só que ele não me engana, sei que sente a minha presença tanto quanto quero que ele sinta.

Vasculhei o guarda-roupa de Fredrik procurando uma camiseta branca, que vesti sobre meus seios nus. Infelizmente, tive que usar a mesma calcinha de antes, mas as cuecas boxer de Fredrik não são exatamente o tipo de lingerie que eu gostaria de usar para seduzir Victor. Só uma camiseta e uma calcinha. Claro que fiz questão de vestir o mínimo possível, porque desejo Victor e não tenho nenhuma vergonha de deixar isso claro. Mas ainda custo a acreditar que estou no mesmo cômodo que ele, depois de meses achando que ele havia ido embora para sempre.

Acho que o beijo no elevador é onde minha mente ficou suspensa, como se o tempo tivesse parado naquele momento e cada parte de mim ainda deseje que aquele instante continue. Contudo, o resto do mundo continua passando ao meu redor.

Eu me sento ao lado de Victor, recolhendo um pé descalço para o sofá e enfiando-o sob a minha coxa.

— O que é isso tudo? — Olho para os papéis e fotografias na mesa.

Ele mexe em alguns pedaços de papel, empilhando-os.

— É um serviço — explica ele, colocando a foto de um homem de camiseta regata na pequena pilha. — Agora eu trabalho por conta própria.

Isso me surpreende.

— Como assim? — Acho que sei o que ele quer dizer, mas custo a acreditar.

Ele pega a pilha de papéis e bate as laterais na mesa para ajeitar todas as folhas. Então enfia o maço em um envelope de papel pardo.

— Eu saí da Ordem, Sarai. — Ele olha para mim.

Victor aperta as pontas do fecho prateado para fechar o envelope.

Meus pensamentos se embaralham, minhas palavras ficam confusas na ponta da língua. Luto, desesperada, para acreditar no que ele acaba de me contar.

— Victor... mas... não...

— Sim — confirma ele, virando-se para mim e me olhando bem nos olhos. — É verdade. Eu me rebelei contra a Ordem, contra Vonnegut, e agora eles estão atrás de mim. — Ele volta a mexer nos outros papéis na mesa. — Mas ainda preciso trabalhar, por isso agora trabalho sozinho.

Balanço a cabeça sem parar, sem querer engolir a verdade. A ideia de Victor sendo caçado por aqueles que o fizeram ser como ele é, por qualquer um, faz um pânico febril correr pelas minhas veias.

Solto um longo suspiro.

— Mas... mas e Fredrik? E Niklas? Victor, eu... O que está acontecendo?

Ele respira fundo e deixa a folha de papel cair suavemente na mesa, então reclina as costas no sofá.

— Fredrik ainda trabalha para a Ordem. Está lá dentro. Ele vigia Niklas e... — seus olhos cruzam com os meus por um instante —... tem me ajudado a manter você a salvo.

Antes que eu consiga fazer mais perguntas presas na garganta, Victor se levanta e continua a falar, enquanto fico sentada e o observo com a boca semiaberta e as pernas dobradas sobre a almofada.

— Como você sabe, quando alguém está sob suspeita de trair a Ordem, é imediatamente eliminado. Mas acredito que Niklas deixou Fredrik vivo e não transmitiu suas preocupações a Vonnegut pelo simples fato de que Niklas está usando Fredrik para me encontrar. Assim como deixou você viva todo este tempo, esperando que um dia você o levasse a mim.

O que mais me choca não é o que Victor diz, mas o que ele deixa de fora. Tiro as duas pernas de cima do sofá e pressiono os pés no chão de madeira, apoiando as mãos nas almofadas.

— Victor, o que você está me dizendo? Quer dizer que... Niklas continua com Vonnegut?

Espero que não seja isso que ele esteja tentando me dizer. Espero de todo o coração que minha decisão de deixar Niklas vivo aquele dia no hotel, quando ele atirou em mim, não tenha sido o maior erro da minha vida.

Os olhos de Victor vagam para a porta de vidro, e sinto que uma espécie de sofrimento infinito o consome, mas ele não deixa transparecer.

— Você estava lá. Eu disse para o meu irmão que, se ele decidisse continuar na Ordem caso eu resolvesse sair, eu não ficaria bravo com ele. Dei a ele a minha palavra, Sarai. — Victor vai até a porta de vidro, cruza os braços e olha para a piscina azul iluminada que reluz sob o céu cinzento. — Agora é hora de Niklas brilhar, e não vou tirar isso dele.

— Que absurdo! — Salto do sofá com os punhos fechados. — Ele está atrás de você, não é? — Cerro os dentes e contorno a mesinha de centro. — Caralho, é isso, Victor? Para provar seu valor para Vonnegut, ele foi encarregado de matar você. Aquele merda do seu irmão traiu você. Ele acha que vai pegar o seu lugar na Ordem. Puta que pariu, não acredito...

— É o que é, Sarai — interrompe Victor, virando-se para me encarar. — Mas, neste momento, Niklas é a menor das minhas preocupações.

Cruzando os braços, começo a andar de um lado para outro, olhando os veios claros e escuros da madeira sob meus pés descalços. Minhas unhas ainda têm o esmalte vermelho-sangue de duas semanas atrás.

— Por que saiu da Ordem?

— Eu tive que sair. Não tinha escolha.

— Não acredito.

Victor suspira.

— Vonnegut descobriu sobre a gente — conta ele, ganhando minha atenção total. — Foi Samantha... na noite em que ela morreu. Antes que eu saísse da Ordem, encontrei Vonnegut em Berlim, o primeiro encontro frente a frente que tive com ele em meses. Foi em uma sala de interrogatório. Quatro paredes. Uma porta. Uma mesa. Duas cadeiras. Somente eu e Vonnegut sentados frente a frente, com uma luz brilhando no teto acima de nós. — Victor olha para trás pela porta de vidro e depois continua: — No início, eu estava certo de que ele tinha me levado para lá com a intenção de me matar. Eu estava preparado...

— Para morrer? — Se Victor responder que sim, vou dar um tapa na cara dele.

— Não — responde ele, e consigo respirar um pouco melhor. — Eu fui para lá preparado. Raptei a mulher de Vonnegut antes de ir encontrá-lo. Fredrik a manteve em uma sala, pronto para fazer... as coisas dele, caso fosse necessário.

No mesmo instante, quero perguntar o que são as “coisas” de Fredrik, mas deixo a pergunta de lado por enquanto e digo:

— Se Vonnegut quisesse matar você, a esposa dele seria a sua moeda de troca.

De costas para mim, ele assente.

— Samantha estava sendo vigiada pela Ordem. Provavelmente há muito tempo.

— Eles desconfiavam da traição dela? Por que não a mataram, então, como fizeram com a mãe de Niklas, ou como queriam fazer com Niklas?

Victor se vira para me encarar de novo.

— Eles não desconfiavam dela, Sarai, ela era... — Victor respira fundo e aperta os lábios.

— Ela era o quê? — Chego mais perto dele. Não gosto do rumo que a conversa está tomando.

— Ela era mais leal à Ordem do que eu jamais poderia ter imaginado — conta ele, e isso fere meu coração. — Sentado naquela sala com Vonnegut, quanto mais ele falava, mais eu começava a entender que Samantha me traiu da mesma forma que Niklas. Vonnegut me contou coisas que ele não tinha como saber. Ele sabia que eu ajudei você. Em algum momento antes de morrer, naquela noite, Samantha conseguiu passar informações a Vonnegut sobre nossa estadia por lá.

— Não acredito nisso. — Golpeio o ar com a mão diante de mim. — Samantha morreu tentando me proteger. Já falamos sobre isso. Não acredito em você, Victor. Ela era uma boa pessoa.

— Ela era boa manipuladora, Sarai, nada mais do que isso.

Balanço a cabeça, ainda sem acreditar.

— Foi Niklas quem contou a Vonnegut que você me ajudou. Só pode ter sido. Niklas sabia até que você tinha me levado para a casa de Samantha.

— Sim, mas Niklas não sabia que eu fiz Samantha provar nossa comida antes de a gente comer, naquela noite. Assim que Vonnegut mencionou quanto eu ainda desconfiava dela depois de tantos anos, eu soube que ela havia me traído.

— Mas isso não faz nenhum sentido. — Começo a andar pela sala de novo, de braços cruzados e com uma das mãos apoiada no rosto. — Por que ela me protegeria de Javier?

— Porque ela não era leal a Javier.

Jogo as mãos para o ar, atônita com aquela revelação.

— Não dá para confiar em ninguém — digo, me jogando no sofá e olhando para o nada.

— Não, não dá — concorda Victor, e eu olho para cima, detectando um significado oculto por trás de suas palavras. — Agora talvez você entenda por que eu não me envolvo com ninguém. Não é só o trabalho, Sarai. As pessoas em geral não são confiáveis, especialmente na minha profissão, na qual a confiança é tão rara que não vale a pena perder tempo e esforço procurando por ela.

— Mas você parece confiar em Fredrik — observo, olhando para Victor do sofá. — Por que me trouxe logo aqui? Não aprendeu a lição com Samantha?

Sua expressão fica um pouco mais sombria, ressentida pela minha acusação.

— Eu nunca disse que confiava em Fredrik. Mas no momento ele é meu único contato dentro da Ordem e, nos últimos sete meses, não fez nada que não o tornasse digno de confiança. Ao contrário, fez tudo para provar sua lealdade a mim.

— Mas isso não significa que seja verdade.

— Não, você tem razão, mas logo vou saber com cem por cento de certeza se Fredrik é confiável ou não.

— Como?

— Você vai descobrir comigo.

— Por que se dar a esse trabalho? Você disse que a confiança é tão rara que não vale o esforço.

— Você faz muitas perguntas.

— Pois é, acho que faço. E você não responde o suficiente.

— Não, acho que não. — Victor abre um sorrisinho, e meu coração se derrete instantaneamente em uma poça de mingau.

Desvio os olhos dos dele e disfarço meus sentimentos.

— Não estou segura aqui — digo, encarando-o novamente.

— Você não está segura em lugar nenhum — corrige Victor. — Mas, enquanto estiver comigo, nada vai acontecer com você.

— Quem está falando merda agora?

Ele levanta uma sobrancelha.

— Você não é meu herói, lembra? — digo para refrescar a memória de Victor. — Não é minha alma gêmea que jamais deixará que nada de ruim aconteça comigo. Devo confiar nos meus instintos primeiro e em você, se eu decidir confiar, por último. Você me disse isso certa vez.

— E continua sendo verdade.

— Então como pode dizer que nada vai me acontecer se eu estiver com você?

A expressão de Victor fica vazia, como se pela primeira vez na vida alguém o tivesse deixado sem palavras. Olho para seu rosto silencioso e sem emoção, e apenas seus olhos revelam um traço de torpor. Tenho a sensação de que ele falou sem pensar, que manifestou algo que sente de verdade, mas que jamais quis que eu soubesse: Victor quer ser meu herói, vai fazer qualquer coisa, tudo o que puder para me manter a salvo. Quer que eu confie totalmente nele.

E confio.

Ele volta para perto de mim e se senta ao meu lado. O cheiro de seu perfume é fraco, como se ele fizesse questão de usar o mínimo possível. Estou tonta de desejo. Ansiosa para sentir novamente seu toque, saborear seus lábios quentes, deixar que ele me tome como fez algumas noites antes que nos víssemos pela última vez. Não tenho pensado em nada além de Victor nos últimos oito meses da minha vida. Enquanto durmo. Como. Vejo TV. Transo. Me masturbo. Tomo banho. Cada coisa que fiz desde que ele me deixou naquele hospital com Dina fiz pensando nele.

— Você acha que Fredrik vai contar a Niklas onde a gente está? — Mudo de assunto por medo de deixar transparecer muita coisa cedo demais.

— Acho que se ele fosse fazer isso teria contado a Niklas o pouco que sabia sobre o seu paradeiro há muito tempo, e Niklas já teria tentado matar você — responde Victor.

— Tem alguma coisa... estranha em Fredrik. Você não sente?

Victor passa a mão pelo meu cabelo úmido. O gesto faz meu coração disparar.

— Você tem grande sensibilidade para as pessoas, Sarai — comenta ele, levando a mão ao meu queixo. — Tem razão sobre Fredrik. — Ele passa o polegar pelo meu lábio inferior. Um calafrio percorre o meio das minhas pernas. — Ele é... como dizer?... desequilibrado, de certa forma.

Minha respiração acelera, e sinto meus cílios tocando meu rosto quando os lábios de Victor cobrem os meus.

— Desequilibrado de que forma? — pergunto, ofegante, quando ele se afasta.

De olhos fechados, percebo que ele está observando a curva do meu rosto e meus lábios e sinto a respiração que sai suavemente de suas narinas.

Cada pelinho minúsculo se eriça quando a outra mão de Victor sobe e encontra minha cintura nua por baixo da camiseta. Seus dedos longos dançam sobre a pele do meu quadril e param por ali.

Abro os olhos e vejo os dele me encarando.

— Algum problema? — pergunta ele, e sua boca roça a minha de novo.

— Não, eu... eu só não esperava isso.

— Esperava o quê?

Sinto seus dedos levantando o elástico da minha calcinha. Minha cabeça está girando, sinto meu estômago se transformar em um emaranhado de músculos, trêmulo e nervoso.

— Isso — respondo, piscando. — Você está diferente — acrescento, baixinho.

— Culpa sua — diz Victor, e então seus lábios devoram os meus.

Ele me deita no sofá e se encaixa entre as minhas pernas.

Seu celular vibra na mesinha de centro, e percebo quanto sou humana quando xingo Fredrik por estragar aquele momento, mesmo que seja para me avisar de que Dina está a salvo.


CONTINUA

CAPÍTULO UM

Sarai

Já faz oito meses que fugi da fortaleza no México onde fui mantida contra minha vontade por nove anos. Estou livre. Levo uma vida “normal”, fazendo coisas normais com gente normal. Não fui mais atacada, ameaçada nem seguida por ninguém que ainda queira me matar. Tenho uma “melhor amiga”, Dahlia. Tenho a coisa mais parecida com uma mãe que já conheci, Dina Gregory. O que mais eu poderia querer? Parece egoísmo desejar qualquer outra coisa. Mas, apesar de tudo o que tenho, algo não mudou: continuo vivendo uma mentira.

Deixei amigos na Califórnia: Charlie, Lea, Alex e... Bri... Não, espera, quero dizer Brandi. Meu ex-namorado, Matt, era abusivo, por isso voltei para o Arizona. Ele me perseguiu por muito tempo depois que terminamos. Consegui uma ordem judicial para mantê-lo afastado, mas não funcionou. Ele atirou em mim há oito meses, mas não posso provar porque não cheguei a vê-lo. E tenho muito medo de denunciá-lo à polícia.

Claro que tudo isso é mentira.

São os pedaços da minha vida que acobertam o que realmente aconteceu comigo. Os pretextos para eu ter desaparecido aos 14 anos e ter ido parar em um hospital da Califórnia com um ferimento a bala. Jamais vou poder contar a Dina, Dahlia ou ao meu namorado, Eric, o que aconteceu de verdade: que fui levada para o México pela péssima versão de mãe que eu tinha, para morar com um chefão do tráfico. Jamais vou poder contar que fugi daquele lugar depois de nove anos e matei o homem que me manteve prisioneira por toda a minha adolescência. Quer dizer, claro que eu poderia contar a alguém, mas, se fizesse isso, só estaria pondo Victor em perigo.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/2_O_RETORNO_DE_IZABEL.jpg

 

Victor.

Não, nunca vou poder contar que um assassino me ajudou a fugir, ou que testemunhei Victor matando várias pessoas, inclusive a esposa de um empresário famoso e importante de Los Angeles. Nunca vou poder contar que, depois de tudo pelo que passei, depois de tudo o que vi, o que mais quero é fazer as malas e voltar para aquela vida perigosa. A vida com Victor.

Até hoje, falar o nome dele me acalma. Às vezes, quando estou acordada na cama à noite, murmuro seu nome só para ouvi-lo, porque preciso. Preciso dele. Não consigo tirá-lo da cabeça. Já tentei. Porra, e como tentei. Mas, não importa o que eu faça, continuo vivendo cada dia da minha vida pensando nele. Se está me vigiando. Se pensa em mim tanto quanto penso nele. Se ainda está vivo.

Pressiono o travesseiro contra a cabeça e fecho os olhos, imaginando Victor. Às vezes, é só assim que consigo gozar.

Eric aperta minhas coxas com as mãos e me imobiliza na cama, com o rosto enfiado no meio das minhas pernas.

Arqueio o quadril contra ele, roçando de leve contra sua língua frenética, até que ele faça meu corpo todo enrijecer e minhas coxas tremerem ao redor da sua cabeça.

— Meu Deus... — Estremeço enquanto gozo, então deixo os braços caírem entre as pernas, afundando os dedos no cabelo preto de Eric. — Caramba...

Sinto os lábios de Eric tocando minha barriga um pouco acima da pélvis.

Olho para o teto como sempre faço depois de um orgasmo, pois a culpa que sinto me deixa com vergonha de olhar para Eric. Ele é um cara superlegal. Meu namorado sexy de 27 anos, cabelo preto e olhos azuis, gentil, encantador, engraçado e perfeito. Perfeito para mim se eu nunca tivesse conhecido Victor Faust.

Estou arruinada pelo resto da vida.

Enxugo as gotas de suor da testa e Eric sobe pela cama, deitando-se ao meu lado.

— Você sempre faz isso — diz ele, brincando, enquanto cutuca minhas costelas com os nós dos dedos.

Como sinto muitas cócegas, eu me encolho e me viro para encará-lo. Sorrio com ternura e passo um dedo por seu cabelo.

— O que eu sempre faço?

— Esse negócio de ficar em silêncio. — Eric segura meu queixo entre o polegar e o indicador. — Eu faço você gozar e você fica bem quieta durante um tempão.

Eu sei e sinto muito, mas preciso apagar o rosto de Victor da minha cabeça antes de conseguir olhar você nos olhos. Sou uma pessoa horrível.

Eric me dá um beijo na testa.

— Isso se chama recuperação — brinco, beijando os dedos dele. — É totalmente inofensivo. Mas você deveria interpretar como um bom sinal. Você sabe o que está fazendo — digo, retribuindo o cutucão nas costelas.

E ele sabe mesmo o que está fazendo. Eric é ótimo na cama. Mas ainda sou emocionalmente muito ligada... viciada... em Victor, e tenho a sensação de que sempre serei.

Só consegui seguir a vida e me abrir a outros relacionamentos cinco meses depois que Victor foi embora. Conheci Eric no trabalho, na loja de conveniência. Ele comprou um saco de biscoitos e um energético. Depois disso, ele aparecia na loja duas, às vezes três vezes por semana. Eu não queria nada com ele. Queria Victor. Mas comecei a perder a esperança de que Victor um dia fosse voltar para mim.

Eric tenta passar um braço ao redor do meu corpo, mas me levanto casualmente e visto a calcinha. Ele não desconfia de nada, o que é bom. Não sinto vontade de ficar abraçadinha, mas a última coisa que quero é magoá-lo. Ele ergue os braços e entrelaça os dedos atrás da cabeça. Olha para mim, do outro lado do quarto, com um sorriso sedutor. Sempre faz isso quando não estou completamente vestida.

— Sarai.

— Oi. — Visto a camiseta e ajeito o rabo de cavalo.

— Eu sei que está em cima da hora — diz Eric —, mas queria ir com você e Dahlia para a Califórnia amanhã.

Merda.

— Mas você não disse que não ia conseguir folga no trabalho? — pergunto, vestindo o short e calçando os chinelos.

— Quando você perguntou se eu queria ir, não ia dar mesmo. Mas contrataram um funcionário novo, e meu chefe decidiu me dar folga.

Isso é uma péssima notícia. Não porque eu não o queira por perto — gosto de Eric, apesar da minha incapacidade de esquecer Victor Faust —, mas minha viagem de “férias” à Califórnia amanhã não é para fazer turismo, curtir a noite nem fazer compras na Rodeo Drive.

Estou indo até lá para matar um homem. Ou melhor, tentar matar um homem.

Já é ruim que Dahlia vá também, e já vai ser difícil guardar segredo de uma pessoa. Imagine duas.

— Você... não parece animada — comenta Eric, seu sorriso morrendo aos poucos.

Abro um sorriso largo e balanço a cabeça, voltando para perto dele e me sentando na beira da cama.

— Não, não, eu estou animada. É que você me pegou de surpresa. A gente vai sair às seis da manhã. É daqui a menos de oito horas. Você já fez as malas?

Eric dá uma risada e se estica na minha cama, me puxando para si. Eu me sento perto de sua cintura, apoiando um braço no colchão do outro lado dele, com os pés para fora da cama.

— Bom, eu só fiquei sabendo hoje à tarde, antes de sair do trabalho — explica ele. — Eu sei, está em cima da hora, mas só preciso enfiar umas coisas na mala e estou pronto.

Ele estende a mão e afasta do meu rosto os fios de cabelo que escaparam do rabo de cavalo.

— Ótimo! — minto, com um sorriso igualmente falso. — Então acho que está combinado.

Dina acorda antes de mim, às quatro da manhã. O cheiro de bacon é o que me desperta. Levanto da cama e entro debaixo do chuveiro antes de me sentar à mesa da cozinha. Um prato vazio já está à minha espera.

— Gostaria que você tivesse escolhido algum outro lugar para passar sua folga, Sarai — afirma Dina.

Ela se senta do outro lado da mesa e começa a encher seu prato. Pego alguns pedaços de bacon do monte e ponho no meu.

— Eu sei — digo —, mas, como falei para você, não vou deixar que meu ex me impeça de ver meus amigos.

Ela balança a cabeça cada vez mais grisalha e suspira.

Passei do limite em algum momento com meu amontoado de mentiras. Quando Victor levou Dina para o hospital em Los Angeles, depois que o irmão dele, Niklas, atirou em mim, ela não fazia ideia do que tinha acontecido. Só sabia que eu tinha levado um tiro. Demorei alguns meses até me sentir segura o suficiente para falar com ela sobre isso. Quer dizer, depois de bolar a história que eu ia contar. Foi aí que inventei o lance do ex-namorado violento. Eu deveria ter dito que fui assaltada. Por um desconhecido. A mentira seria muito mais fácil de manter. Agora que ela sabe que vou voltar para Los Angeles, está morrendo de preocupação, e já faz uns dois meses. Eu nem deveria ter contado que ia voltar lá.

Termino de comer o bacon e um pouco de ovos mexidos, junto com um copo de leite.

Dahlia e Eric chegam juntos assim que termino de escovar os dentes.

— Vamos logo, a gente precisa pegar a estrada — chama Dahlia, me apressando da porta. Seu cabelo castanho-claro está preso no alto da cabeça em um coque desalinhado de quem acabou de acordar.

Eu me despeço de Dina com um abraço.

— Eu vou ficar bem — digo a ela. — Prometo. Não vou nem chegar perto de onde ele mora.

Desta vez, chego até a imaginar um rosto masculino ao falar de alguém que não existe. Acho que já interpreto esse papel há tanto tempo que “Matt” e todos esses meus “amigos” de Los Angeles, de quem falo para todo mundo como se fossem reais, se tornaram reais no meu subconsciente.

Dina força um sorriso em seu rosto preocupado, e suas mãos soltam meus cotovelos.

— Você liga assim que chegar?

— Assim que eu entrar no quarto do hotel, ligo — respondo, assentindo.

Ela sorri e eu a abraço mais uma vez, antes de segui-los até o carro de Dahlia, que está esperando. Eric guarda minha mala no bagageiro, junto com as deles, e se senta no banco de trás.

— Hollywood, aí vamos nós! — exclama Dahlia.

Finjo metade da empolgação dela. Ainda bem que está muito cedo, senão Dahlia poderia intuir o verdadeiro motivo da minha falta de entusiasmo. Estico os braços para trás e bocejo, apoiando a cabeça no banco do carro. Sinto a mão de Eric no meu pescoço quando ele começa a massagear meus músculos.

— Não sei por que você quer ir a Los Angeles de carro — diz Dahlia. — Se a gente fosse de avião, não ia precisar acordar tão cedo. E você não estaria tão cansada e rabugenta.

Minha cabeça cai para a esquerda.

— Não estou rabugenta. Ainda mal falei com você.

Ela dá um sorrisinho.

— Exatamente. Sarai sem falar significa Sarai rabugenta.

— E se recuperando — acrescenta Eric.

Meu rosto fica vermelho e eu estico a mão atrás da cabeça, dando um tapinha de brincadeira na dele, que está fazendo maravilhas no meu pescoço. Fecho os olhos e vejo Victor.

Não de propósito.

Chegamos a Los Angeles depois de quatro horas na estrada. Eu não podia ir de avião porque não conseguiria levar minhas armas. É claro que Dahlia não pode saber disso. Ela acha apenas que quero apreciar a paisagem.

Tenho sete dias para fazer o que vim fazer. Isto é, se eu conseguir. Pensei no meu plano durante meses, em como vou fazer isso. Sei que é impossível entrar na mansão Hamburg. Para isso, eu precisaria ter um convite e socializar em público com o próprio Arthur Hamburg e seus convidados. Ele viu meu rosto. Bem, tecnicamente, viu mais do que meu rosto. Mas sinto que os acontecimentos daquela noite, quando Victor e eu enganamos Hamburg para que ele nos convidasse para ir ao seu quarto e conseguíssemos matar sua esposa, são algo que ele jamais vai esquecer, nem os mínimos detalhes.

Se tudo der certo, uma peruca loura platinada de cabelo curto e maquiagem escura e pesada vão esconder aquela identidade de cabelo longo e castanho que Hamburg reconheceria assim que eu aparecesse.


CAPÍTULO DOIS

Sarai

Passo o dia todo com Eric e Dahlia, fingindo me divertir para passar o tempo. Saímos para almoçar e para fazer um tour por Hollywood com um guia e visitar um museu antes de voltarmos para o hotel, exaustos. Quer dizer, finjo estar exausta o suficiente para querer dar o dia por encerrado. Na verdade, o que preciso é me preparar para ir ao restaurante de Hamburg ainda hoje.

Dahlia já acha que tem algo errado comigo.

— Você está ficando doente? — pergunta ela, estendendo a mão entre nossas espreguiçadeiras à beira da piscina e sentindo a temperatura da minha testa.

— Estou ótima — respondo. — Só cansada porque levantei muito cedo. E quando foi a última vez que andei tanto assim em um dia só?

Dahlia volta a se recostar em sua espreguiçadeira e ajeita os óculos de sol grandes e redondos no rosto.

— Bom, espero que não esteja cansada amanhã — diz Eric, do outro lado. — Tem tantas coisas que eu quero fazer. Não venho para Los Angeles desde que meus pais se divorciaram.

— Pois é. É a minha primeira vez aqui em dois anos — afirma Dahlia.

Um adolescente pula na piscina e a água respinga em nós. Ergo as costas da espreguiçadeira e agito a revista que estava lendo para tirar as gotas. Ponho os óculos escuros no alto da cabeça. Jogo as pernas para o lado e fico de pé.

— Acho que vou voltar para o quarto e tirar uma soneca — anuncio, pegando minha bolsa do chão.

Eric se ergue também e tira os óculos escuros.

— Se quiser, vou com você — oferece ele.

Agito a mão para ele, pedindo que não se levante.

— Não, fica aí e faz companhia para a Dahlia — sugiro, ajeitando a bolsa no ombro. Abaixo os óculos escuros de novo para que ele não perceba minha mentira.

— Tem certeza de que você está bem? — pergunta Dahlia. — Sarai, você está de férias, lembra? Veio para cá se divertir, não para cochilar.

— Acho que vou estar cem por cento amanhã. Só preciso de um banho quente e demorado e de uma boa noite de sono.

— Ok, vou acreditar — diz Dahlia. — Mas nem vem com doença para o meu lado. — Ela aponta o dedo para mim, com ar severo.

Eric fecha os dedos em torno do meu pulso e me puxa para perto.

— Tem certeza de que não quer que eu vá? — Ele me beija e eu correspondo antes de me levantar de vez.

— Tenho — respondo, baixinho, e saio na direção do elevador.

Assim que entro no quarto, tranco a porta com a corrente para que Eric e Dahlia não entrem de surpresa, jogo a bolsa no chão e abro meu laptop, digitando a senha. Enquanto o laptop inicia, olho pela janela e vejo meus amigos, figuras pequenas daquela distância, ainda à beira da piscina. Eu me sento diante da tela e, provavelmente pela centésima vez, olho cada página do site do restaurante de Hamburg, verificando de novo o horário de funcionamento e passando os olhos pelas fotos profissionais do lugar, dentro e fora. Na verdade, nada disso me ajuda muito com o que pretendo fazer, mas olho tudo de novo todo dia, de qualquer maneira.

Derrotada, bato a palma da mão com força no tampo da mesa.

— Droga! — exclamo, desabando na poltrona enquanto passo as mãos pelo cabelo.

Ainda não sei como vou conseguir ficar a sós com Hamburg sem ser vista. Sei que estou dando um passo maior do que a perna. Sei disso desde que tive essa ideia maluca, mas também sei que, se ficar apenas pensando a respeito, nunca vou passar dessa fase.

Vim para cá com um plano: entrar disfarçada no restaurante e agir como qualquer outro cliente. Sondar o lugar por uma noite. Saber onde ficam as saídas. As entradas para outras partes do prédio. Os banheiros. Minha prioridade número um, contudo, é encontrar a sala de onde Hamburg observa do alto seus clientes e ouve a conversa deles pelo minúsculo microfone escondido no arranjo de cada mesa. Então pretendo me enfiar na sala e cortar a garganta daquele porco.

Contudo, agora que estou aqui, a menos de seis quadras do restaurante, e agora que o tempo está passando tão depressa, estou menos confiante. Isso não é um filme. Sou uma idiota por achar que posso adentrar um lugar desses sem ser vista, tirar a vida de um homem sem chamar atenção e fugir sem ser capturada.

Apenas Victor conseguiria fazer algo assim.

Bato no tampo da mesa de novo, mais de leve desta vez, fecho o laptop e me levanto. Ando de um lado para outro no carpete vermelho e verde. E bem quando resolvo seguir pelo corredor para o quarto separado que reservei sem Dahlia e Eric saberem, a porta se abre um pouco, mas é travada pela corrente.

— Sarai? — chama Dahlia do outro lado. — Vai deixar a gente entrar?

Suspiro fundo e destranco a porta.

— Por que a corrente? — pergunta Eric, entrando atrás de Dahlia.

— Força do hábito.

Eu me jogo na ponta da cama king-size.

Os dois deixam suas coisas no chão. Dahlia se senta à mesa, ao lado da janela, e Eric se deita atravessado na cama ao meu lado, cruzando as pernas na altura dos calcanhares.

— Pensei que você ia tirar uma soneca — diz Dahlia.

Ela passa os dedos com cuidado pelo cabelo úmido, fazendo caretas quando se depara com alguma mecha mais embaraçada.

— Dahlia — digo, olhando para os dois. — Eu subi agora há pouco. Pensei que vocês iam ficar na piscina mais um tempo.

Espero ter conseguido disfarçar o aborrecimento na minha voz por eles terem vindo me encontrar tão cedo. Não consigo evitar: estou estressada demais, além de preocupada com a simples presença dos dois aqui comigo. Não quero que eles se machuquem nem que se envolvam de forma alguma com meu motivo para estar aqui.

— A gente pode sair e deixar você sozinha, se quiser — sugere Eric, baixinho, atrás de mim.

Eu me arrependo na mesma hora do que disse, porque é óbvio que não disfarcei o aborrecimento tão bem quanto esperava.

Inclino a cabeça para trás e suspiro, esticando o braço para tocar o tornozelo dele.

— Desculpa — digo, sorrindo para Dahlia. — Sabe, eu... — Então, de repente, uma desculpa perfeitamente plausível para o modo como tenho agido surge na minha cabeça, e a torneira das mentiras se abre. — Eu só fico meio nervosa por estar de volta a Los Angeles.

Dahlia faz cara de “ah, entendi”, empurra os pés de Eric para o lado e se senta perto de mim. Ela passa o braço por cima dos meus ombros e segura meu antebraço.

— Imaginei que o problema fosse esse.

Percebo que ela olha de relance para Eric e tenho a impressão de que foi sobre isso que os dois falaram enquanto ficaram na piscina, depois que fui embora.

Aposto que também foi por isso que decidiram subir tão cedo para me ver.

— A gente queria ver como você estava — acrescenta Eric atrás de mim, confirmando minha suspeita.

Sinto a cama se mexer quando ele se senta.

Eu me levanto antes que ele consiga me abraçar. É nesse exato momento que me dou conta de como tenho feito isso com frequência no último mês. Não sei por quanto tempo mais vou conseguir enganá-lo. Sei que deveria simplesmente contar o que sinto, que não gosto tanto de Eric quanto ele gosta de mim. Mas não consigo dizer a verdade. Eu precisaria inventar mais uma mentira, e estou tão atolada em mentiras que me sinto afogada nelas.

Ao mesmo tempo, deixei nossa relação durar tanto porque eu queria de verdade sentir por ele algo tão profundo quanto o que ele parece sentir por mim. Queria seguir em frente, esquecer Victor e ser feliz com a vida que ele me deixou.

Mas não consigo. Não consigo mesmo...

— Ele nem vai saber que você está aqui — diz Eric sobre “Matt”. — Além disso, mesmo que ele descobrisse, eu ia encher o cara de porrada assim que o visse.

Esboço um sorriso para Eric.

— Eu sei que você faria isso — digo, mas me sinto ainda pior, porque os únicos dois amigos que tenho no mundo não fazem nem ideia de quem sou.

Cruzo os braços, vou até a janela e olho para fora.

— Sarai — chama Dahlia. — Não queria dizer isso, mas, se você está tão preocupada com a possibilidade de Matt descobrir que você está em Los Angeles, acho que não é boa ideia visitar seus amigos aqui.

— Eu sei, você tem razão. Sei que eles não contariam para Matt, mas acho que é melhor eu ficar só com vocês dois enquanto estivermos aqui.

Eu me viro para encará-los.

— É um bom plano — diz Eric, com um sorriso radiante.

É um bom plano, com certeza, porque agora não preciso mais inventar outra desculpa para não apresentar os dois aos meus amigos que não existem.

Dahlia se aproxima de mim.

— A gente devia ter ido para a Flórida ou algum lugar assim, hein?

Olho pela janela de novo.

— Não — respondo. — Adoro esta cidade. E sei que vocês queriam muito vir para cá. — Dou um sorriso rápido. — Sugiro que a gente curta ao máximo esta semana.

Ela me empurra com o ombro de brincadeira.

— Essa é a Sarai que eu conheço — diz Dahlia, sorrindo.

É, só que não sou essa pessoa...

Ela vai até Eric e o puxa pelo braço, levantando-o da cama.

— Vamos sair daqui e deixar a mocinha descansar.

Eric se levanta e se aproxima de mim. Então pega meus braços e me vira para encará-lo. Com aqueles olhos azul-bebê, ele faz a melhor expressão amuada que consegue.

— Se precisar de mim para qualquer coisa, pode me chamar que eu venho.

Concordo com a cabeça e lhe ofereço um sorriso sincero. Ele merece, por ser tão legal comigo.

— Pode deixar.

Então eu os empurro porta afora com as duas mãos.

— Eu diria para vocês não se divertirem muito sem mim, mas isso seria pedir demais.

Dahlia ri baixinho ao sair para o corredor.

— Não, não é pedir muito. — Ela levanta dois dedos. — Palavra de escoteiro.

— Acho que não é assim que se faz, Dahl — diz Eric.

Ela faz um gesto para dispensar as palavras dele.

— Trate de dormir — sugere Dahlia. — Porque amanhã você vai precisar estar novinha em folha.

— De acordo — digo, assentindo.

— Tchau, amor — diz Eric antes de eu fechar a porta.

Fico com as costas apoiadas na porta e solto um suspiro longo e profundo.

Fingir é difícil demais. Bem mais difícil do que simplesmente ser eu mesma, por mais anormal e imprudente que eu seja.

— Eu sei o que preciso fazer — digo em voz alta.

Falar sozinha é minha nova mania, porque me ajuda a visualizar e entender melhor as coisas.

Volto para a janela e olho a cidade de Los Angeles, com os braços cruzados.

— Preciso de um disfarce, mas não para me esconder de Hamburg. Só das câmeras e de qualquer outra pessoa. Eu quero que Hamburg me veja. Só assim vou conseguir entrar.


CAPÍTULO TRÊS

Sarai

Dahlia e Eric só voltam para o quarto algumas horas mais tarde, depois de escurecer. Eu já tinha tomado banho, vestido short e camiseta e deixado a luz apagada para parecer que estava dormindo. Assim que ouvi o cartão passando pela porta, pulei na cama e me espalhei pelo colchão, como sempre faço quando durmo de verdade. Eric entrou na ponta dos pés, tentando não “me acordar”, mas me virei, soltei um resmungo e abri os olhos para mostrar que acordei. Ele pediu desculpas e perguntou se eu queria ir com ele e Dahlia a uma boate ali perto, insistindo que, se eu não fosse, ele também não iria. Mas logo rejeitei essa ideia. Percebi que ele queria muito ir e não posso culpá-lo: se eu estivesse no lugar dele, não iria querer ficar em um quarto escuro de hotel às oito da noite de uma sexta-feira, em uma das cidades mais animadas dos Estados Unidos.

Eric e Dahlia saírem era exatamente do que eu precisava. Passei aquelas duas horas inteiras tentando inventar uma desculpa para explicar a eles por que eu ia sair, aonde iria e por que eles não poderiam ir junto.

Eles resolveram isso para mim.

Minutos após Eric sair do quarto, espero Dahlia — em seu próprio quarto, ao lado do nosso — tirar o biquíni e se vestir. Pelo olho mágico da minha porta, eu os vejo indo embora pelo corredor. Conto até cem enquanto ando de um lado para outro sem parar. Então pego minha bolsa e vou até a porta. Ando depressa pelo corredor na direção oposta e chego ao quarto secreto, do outro lado do prédio.

Com certa paranoia de ser flagrada, vasculho minha bolsa e encontro tudo, menos a chave do quarto. Enfim consigo senti-la entre os dedos e me apresso para entrar, travando a porta com a corrente. Abro a mala ao pé da cama e tiro minha peruca curta platinada, passando os dedos para ajeitar as mechas desalinhadas, e então a deixo sobre o abajur ao lado para que não perca a forma.

Visto um Dolce & Gabbana curtinho e me maquio com cores escuras e pesadas, o que, depois de passar um tempão praticando em casa, faço bem. Então calço as sandálias de salto alto. Andar de salto é outra coisa que passei muito tempo tentando aprender. Meu alter ego, Izabel Seyfried, saberia andar de salto e o faria bem. Por isso, eu precisava acompanhar.

Em seguida, molho o cabelo e o divido em duas partes atrás. Enrolo cada metade e cruzo uma sobre a outra na nuca. Vários grampos depois, meu longo cabelo castanho está bem preso no couro cabeludo. Visto a touca da peruca e depois a própria peruca, ajustando-a por muito tempo até deixar tudo perfeito.

Por fim, prendo uma bainha de punhal em torno da coxa e a cubro com o tecido do vestido.

Fico de pé diante do espelho de corpo inteiro e me avalio de todos os ângulos possíveis. Estar loura é estranho. Satisfeita, pego a bolsinha preta e a enfio debaixo do braço, com a pequena pistola formando certo volume nela. Estico o braço para girar a maçaneta, mas deixo minha mão cair junto ao corpo.

“Que droga eu estou fazendo?”

O que precisa ser feito.

“E por que eu estou fazendo isso?”

Porque preciso.

Não consigo tirar da cabeça as coisas que aquele homem confessou, as pessoas que matou por causa de um fetiche sexual doentio. Todas as noites desde que Victor me deixou, quando fecho os olhos, vejo o rosto de Hamburg e aquele sorriso de gelar o sangue que ele abriu quando me curvei sobre a mesa, exposta na frente dele. Vejo o rosto de sua esposa, esquelético e combalido, seus olhos fundos turvados pela resignação. Ainda sinto até o fedor da urina que secou em suas roupas e no catre infestado onde ela dormia, naquele quarto escondido.

Meu peito se enche de ar e eu o prendo por vários segundos, antes de soltar um longo suspiro.

Não posso esquecer. A necessidade de matá-lo é como uma coceira no meio das costas. Não posso alcançar naturalmente, mas vou me curvar e torcer os braços até doerem para coçar.

Não posso esquecer...

E talvez... só talvez também acabe chamando a atenção de um certo assassino que não consigo me obrigar a esquecer.

Assim que passo pela porta, deixo Sarai para trás e me torno Izabel por uma noite.

Por não ter pensado de antemão na importância de ao menos alugar um carro chique, salto do táxi a duas quadras do restaurante e ando o resto do caminho. Izabel jamais seria vista andando de táxi.

— Mesa para um? — pergunta o recepcionista assim que entro no restaurante.

Inclino a cabeça e olho para ele com um ar irritado.

— Algum problema? Não posso fazer uma refeição sozinha? Ou você está dando em cima de mim? — Abro um sorrisinho e inclino a cabeça para o outro lado. Ele está ficando nervoso. — Você gostaria de jantar comigo... — olho para o nome bordado no paletó — ... Jeffrey? — Chego mais perto. Ele dá um passo constrangido para trás.

— Hã... — Ele hesita. — Peço desculpas, senhora...

Recuo, trincando os dentes.

— Nunca me chame de senhora — digo com rispidez. — Me leve até uma mesa. Para um.

Ele assente e pede que eu o siga. Quando chego à minha mesinha redonda com duas cadeiras, no meio do restaurante, me sento e deixo a bolsa ao lado. Um garçom se aproxima quando o recepcionista se afasta e me apresenta a carta de vinhos. Eu a rejeito com um movimento dos dedos.

— Quero apenas água com uma rodela de limão.

— Pois não, senhora — diz ele, mas deixo passar.

Enquanto o garçom se afasta, começo a examinar o lugar. Há uma placa indicando a saída à minha esquerda, bem longe, perto do corredor. Há outra à minha direita, próxima à escada que leva para o segundo piso. O restaurante está praticamente igual à primeira vez que vim: escuro, não muito cheio e bastante silencioso, embora desta vez eu ouça jazz baixinho vindo de algum lugar. Ao observar o recinto, paro de repente ao ver a mesa à qual me sentei com Victor quando vim com ele, meses atrás.

Eu me perco na memória, vendo tudo exatamente como aconteceu. Quando olho para as duas pessoas sentadas no outro lado do salão, só consigo me ver com Victor:

— Venha cá — diz ele, em um tom de voz mais delicado.

Deslizo os poucos centímetros que nos separam e me sento encostada a ele.

Seus dedos dançam pela minha nuca quando ele puxa minha cabeça para perto de si. Meu coração bate descompassado quando ele roça os lábios na lateral do meu rosto. De repente, sinto sua outra mão entrando pelo meio das minhas coxas e subindo por baixo do vestido. Minha respiração para. Devo abrir as pernas? Devo ficar imóvel e travá-las? Sei o que quero fazer, mas não sei o que devo fazer, e minha mente está a ponto de desistir.

— Tenho uma surpresa para você esta noite — murmura ele no meu ouvido.

Sua mão se aproxima mais do calor no meio das minhas pernas.

Gemo baixinho, tentando não deixar que ele perceba, embora tenha certeza absoluta de que percebeu.

— Que tipo de surpresa? — pergunto, com a cabeça inclinada para trás, apoiada em sua mão.

— Vai querer algo mais? — Ouço uma voz, e sou arrancada do meu devaneio.

O garçom está segurando o cardápio. Minha água com uma rodela de limão na borda do copo já está diante de mim.

Um pouco confusa de início, apenas assinto, mas faço que não em seguida.

— Ainda não sei — respondo, enfim. — Deixe o cardápio. Talvez eu peça mais tarde.

— Pois não — diz o garçom.

Ele deixa o cardápio na mesa e vai embora.

Olho para a varanda e para as mesas encostadas no balaústre requintado. Onde Hamburg pode estar? Sei que ele está no andar de cima porque Victor disse que ele ficava por lá. Mas onde? Eu me pergunto se ele já me viu, e no mesmo instante meu estômago se embrulha de nervoso.

Não, não posso parecer nervosa.

Endireito as costas na cadeira e tomo um gole da água. Deixo o dedo mindinho levantado, o que me faz parecer muito mais rica, ou apenas mais esnobe. Fico observando os clientes indo e vindo, escuto sua conversa supérflua e me pego imaginando qual dos casais que estão ali poderia acabar na mansão de Hamburg no fim de semana, ganhando muito dinheiro para deixar que ele os veja foder.

Então olho para o arranjo de flores vermelhas em um pequeno vaso de vidro no centro da minha mesa. Pego o celular na bolsa, finjo digitar um número e o coloco perto do ouvido, para que ninguém ache que estou falando sozinha.

— Este recado é para Arthur Hamburg — digo em voz baixa, inclinando-me um pouco para a frente a fim de que o microfone escondido no vaso de flores capte minha voz. — Com certeza você se lembra de mim, não é? Izabel Seyfried. Há quanto tempo, não?

Com cuidado, olho para os lados, esperando ver um ou dois homens parrudos de terno se aproximando de mim com armas em punho.

— Não estou sozinha — continuo —, por isso nem pense em fazer alguma idiotice. A gente precisa conversar.

Olhando para a varanda acima de mim, tento descobrir onde ele pode estar, torcendo para que esteja ali. Alguns minutos tensos se passam, e, quando começo a pensar que a noite foi em vão e que eu estava mesmo falando sozinha, noto um movimento no piso superior, logo acima da saída à minha direita. Meu coração bate forte quando vejo a figura alta e escura sair das sombras e descer a escada.

Eu me lembro desse homem de ombros largos, cabelo grisalho e uma covinha no meio do queixo. É o gerente do restaurante, Willem Stephens, que já encontrei aqui uma vez.

Ele se aproxima da minha mesa sem expressar nenhuma emoção, com as mãos enormes cruzadas à frente, as costas retas, o queixo anguloso imóvel.

— Boa noite, srta. Seyfried. — A voz dele é profunda e sinistra. — Posso perguntar onde está seu dono?

Levanto os olhos para encará-lo, dou um sorrisinho, tomo um gole da minha água e devolvo o copo à mesa, sem pressa. Cada fibra do meu ser está gritando, dizendo como fui idiota em vir até aqui. Por mais que eu saiba que é verdade, não importa. Não é o medo que me faz tremer por dentro, é a adrenalina.

— Victor Faust não é meu dono — explico, com calma. — Mas ele está aqui. Em algum lugar. — Um sorriso tênue e dissimulado toca meus lábios.

Os olhos de Stephens percorrem o salão sutilmente e voltam a me encarar.

— Por que está aqui? — pergunta ele, perdendo um pouco o ar de gerente sofisticado.

— Tenho negócios a discutir com Arthur Hamburg — respondo, confiante. — É do maior interesse dele marcar um encontro privado comigo. Aqui. Hoje. De preferência agora.

Tomo outro gole.

Noto que o pomo de adão de Stephens se move quando ele engole em seco, bem como os contornos de seu queixo quando ele cerra os dentes. Ele olha para o lugar de onde veio, no andar de cima, e percebo um aparelhinho preto escondido em seu ouvido esquerdo. Parece que ele está ouvindo alguém falar. Eu chutaria que é Hamburg.

Ele me encara de novo, com os olhos escuros e cheios de ódio, mas mantém o semblante inexpressivo com a mesma perfeição de Victor.

Ele descruza os braços, estende a mão direita para mim e diz:

— Por aqui.

Ele só deixa os braços penderem, relaxados, quando me levanto. Sigo Stephens pelo restaurante e escada acima, para o piso da varanda.

Apenas duas coisas podem acontecer: ou esta será minha primeira noite como assassina ou a última da minha vida.


CAPÍTULO QUATRO

Sarai

— Se encostar em mim — digo para o guarda-costas de terno à porta da sala particular de Hamburg —, enfio suas bolas em um moedor de carne.

As narinas do segurança se dilatam e ele olha para Stephens.

— Você solicitou uma reunião com o sr. Hamburg — diz Stephens atrás de mim. — É claro que vamos revistá-la antes para verificar se está armada.

Droga!

Calma. Fique calma. Faça o que Izabel faria.

Respiro fundo, encarando-os com desprezo e um ar ameaçador. Então jogo minha bolsinha preta no segurança. Ele pega a bolsa quando ela bate em seu peito.

— Acho que está bem claro que eu não conseguiria esconder uma arma em um vestido como este, a menos que a enfiasse na boceta — digo, olhando para Stephens. — Minha arma está na bolsa. Mas nem pense em tocar...

— Deixem a moça entrar — ordena da porta uma voz familiar.

É Hamburg, ainda balofo e grotesco como antes, usando um terno imenso que parece em vias de estourar se ele respirar fundo demais.

Abro um leve sorriso para o segurança, que me encara com olhos assassinos. Conheço esse olhar, até demais. O homem tira a pistola e me devolve a bolsa.

— Sr. Hamburg — diz Stephens —, eu deveria ficar na sala com o senhor.

Hamburg balança a papada, rejeitando a sugestão.

— Não, vá cuidar do restaurante. Se essas pessoas tivessem vindo me matar, não seriam tão óbvias. Eu vou ficar bem.

— Pelo menos deixe Marion à porta — sugere Stephens, olhando para o guarda-costas.

— Sim — concorda Hamburg. — Você fica aqui. Não deixe ninguém interromper nossa... — diz ele, me olhando com frieza — reunião, a menos que eu peça. Se em algum momento você não ouvir minha voz por mais de um minuto, entre na sala. Como precaução, é claro.

Ele abre um sorrisinho para mim.

— É claro. — Imito Hamburg e sorrio também.

Ele dá um passo para o lado e me convida a entrar.

— Pensei que isso tivesse acabado, srta. Seyfried.

Hamburg fecha a porta.

— Sente-se — pede ele.

A sala é bem grande, com paredes lisas e arredondadas, sem cantos, de um lado a outro. Uma série de grandes quadros retratando o que parece ser cenas bíblicas rodeia uma grande lareira de pedra. Cada imagem é emoldurada em uma caixa de vidro, com luzes na parte de baixo. A sala é pouco iluminada, como o restaurante, e o cheiro é de incenso ou talvez de óleo aromático de almíscar e lavanda. Na parede à minha esquerda, há uma porta aberta que leva a outra sala, onde a luz cinza-azulada de várias telas de TV brilha nas paredes. Chego mais perto para me sentar na poltrona de couro com encosto alto diante da escrivaninha e espio dentro da saleta. É como eu imaginava. As telas mostram várias mesas do restaurante.

Hamburg fecha essa porta também.

— Não, está longe de acabar — respondo, enfim.

Cruzo as pernas e mantenho a postura ereta, o queixo levantado com ar confiante e os olhos em Hamburg, enquanto ele atravessa a sala na minha direção. Puxo a barra do vestido para cobrir completamente o punhal preso na coxa. Minha bolsa está no meu colo.

— Vocês já tiraram minha esposa de mim. — A indignação transparece na voz dele. — Não acham que foi o suficiente?

— Infelizmente, não. — Abro um sorriso malicioso. — Não foi o suficiente para você e sua esposa tirarem uma vida? Não, não foi — respondo por ele. — Vocês tiraram muitas vidas.

Hamburg morde o interior da bochecha e se senta atrás da escrivaninha, de frente para mim. Ele apoia as mãos gordas sobre o tampo de mogno. Percebo quanto ele quer me matar ali mesmo onde estou. Mas não fará isso porque acredita que não estou sozinha. Ninguém em sã consciência faria algo assim, vir até aqui sozinha, inexperiente e desprevenida.

Ninguém, a não ser eu.

Preciso garantir que ele continue acreditando que tenho cúmplices até descobrir como vou matá-lo e sair da sala sem ser pega. O pedido de Hamburg para que o guarda-costas entrasse na sala depois de um minuto sem ouvir sua voz pôs mais um obstáculo no plano que, na verdade, nunca tive de fato.

— Bem, devo dizer uma coisa — diz Hamburg, mudando de tom. — Você é deslumbrante com qualquer tipo de peruca. Mas admito que prefiro a morena.

Ele acha que meu cabelo castanho-avermelhado era uma peruca. Ótimo.

— Você é doente. Sabe disso, certo? — Tamborilo com as unhas no braço da poltrona.

Hamburg abre um sorriso medonho. Estremeço por dentro, mas mantenho a compostura.

— Eu não matei aquelas pessoas de propósito. Elas sabiam no que estavam se metendo. Sabiam que, no calor do momento, alguém poderia perder o controle.

— Quantas?

Hamburg estreita os olhos.

— O que importa isso, srta. Seyfried? Uma. Cinco. Oito. Por que não diz logo o motivo da sua visita? Dinheiro? Informação? A chantagem assume muitas formas, e não seria a primeira vez que enfrento uma. Sou um veterano.

— Fale sobre a sua esposa — peço, ganhando tempo e fingindo ainda ser quem dá as cartas. — Antes de “ir direto ao assunto”, quero entender sua relação com ela.

Uma parte de mim quer saber de verdade. E estou incrivelmente nervosa; sinto um enxame zumbindo no meu estômago. Talvez jogar conversa fora ajude a acalmar minha mente.

Hamburg inclina a cabeça para o lado.

— Por quê?

— Apenas responda à pergunta.

— Eu a amava muito — responde ele, relutante. — Ela era a minha vida.

— Aquilo é amor? — pergunto, incrédula. — Você manchou a memória dela ao dizer que ela era uma viciada em drogas que se suicidou, só para salvar a própria pele, e chama isso de amor?

Noto uma luz se movendo no chão, por baixo da porta da sala de vigilância. Não havia ninguém lá dentro antes, ao menos que eu tivesse visto.

— Como a chantagem, o amor assume muitas formas. — Hamburg apoia as costas na poltrona de couro, que range, cruzando os dedos roliços sobre a enorme barriga. — Mary e eu éramos inseparáveis. Não éramos como outras pessoas, outros casais, mas o fato de sermos tão diferentes não significava que nos amávamos menos do que os outros. — Os olhos dele cruzam os meus por um momento. — Tivemos sorte por encontrar um ao outro.

— Sorte? — pergunto, pasma com o comentário. — Foi sorte duas pessoas doentes se encontrarem e se unirem para fazer coisas doentias com os outros? Não entendo.

Hamburg balança a cabeça como se fosse um velho sábio e eu fosse jovem demais para entender.

— Pessoas diferentes como Mary e eu...

— Doentes e dementes — corrijo. — Não diferentes.

— Chame como quiser — diz ele, com ar de resignação. — Quando você é tão diferente assim da sociedade, do que é aceitável, encontrar alguém como você é algo muito raro.

Sem perceber, cerro os dentes. Não porque Hamburg esteja me irritando, mas porque nunca imaginei que esse homem nojento pudesse me dizer qualquer coisa que me fizesse pensar na minha situação com Victor, ou qualquer coisa que eu pudesse entender.

Afasto esse pensamento.

A luz fraca sob a porta da sala de vigilância se move de novo. Finjo não ter notado, sem querer dar a Hamburg qualquer motivo para achar que estou pensando em outra saída.

— Vim aqui saber nomes — digo de repente, sem ter pensado bem a respeito.

— Que nomes?

— Dos seus clientes.

Algo muda nos olhos de Hamburg, ele vai tomar o controle da situação.

— Você quer os nomes dos meus clientes? — pergunta ele, desconfiado.

Que merda...

— Pensei que você e Victor Faust já estivessem de posse da minha lista de clientes.

Continue séria. Não perca a compostura. Merda!

— Sim, estamos, mas me refiro àqueles que você não mantinha nos registros.

Acho que vou vomitar. Parece que minha cabeça está pegando fogo. Prendo a respiração, torcendo para ter me livrado dessa.

Hamburg me examina em silêncio, vasculhando meu rosto e minha postura em busca de qualquer sinal de autoconfiança abalada. Ele coça o queixo gordo e cheio de dobras.

— Por que você acha que existe uma lista fantasma?

Suspiro meio aliviada, mas ainda não estou fora de perigo.

— Sempre existe uma lista fantasma — afirmo, embora não faça nem ideia do que estou dizendo. — Quero pelo menos três nomes que não estejam no registro que nós temos.

Sorrio, sentindo que recuperei o controle da situação.

Até ele falar:

— Diga você três nomes da lista que já tem, e eu dou o que você quer.

É oficial: perdi o controle.

Engulo em seco e me controlo antes de parecer “pega no flagra”.

— Você acha que eu carrego a lista na bolsa? — pergunto com sarcasmo, tentando continuar no jogo. — Nada de negociações ou meios-termos, sr. Hamburg. O senhor não está em condições de fazer nenhuma barganha.

— É mesmo? — pergunta ele, sorrindo.

Ele suspeita de mim. Posso sentir. Mas vai garantir que está certo antes de dar o bote.

— Isso não está em discussão. — Eu me levanto da poltrona de couro, enfiando a bolsa debaixo do braço, mais frustrada do que antes por ter que entregar minha arma.

Pressiono os dedos na escrivaninha de mogno, apoiando meu peso neles ao me curvar um pouco na direção de Hamburg.

— Três nomes, ou saio daqui e Victor Faust entra para espalhar os seus miolos naquele belo quadro do menino Jesus atrás de você.

Hamburg ri.

— Esse não é o menino Jesus.

Ele se levanta junto comigo, alto, enorme e ameaçador.

Enquanto vasculho minha mente e tento entender como ele descobriu que sou uma farsante, Hamburg se adianta e anuncia seu raciocínio como um chute na minha boca.

— É engraçado, Izabel, você vir aqui pedir nomes que não aparecem em uma lista que você... — diz, apontando para a minha bolsa — ... nem carrega consigo, porque como você saberia que os nomes que eu daria não estão nela?

Estou muito ferrada.

— Vou dizer o que eu acho — continua ele. — Acho que você veio aqui sozinha por causa de alguma vingança contra mim. — Ele balança o indicador. — Porque eu me lembro de cada detalhe da porra daquela noite. Cada merda de detalhe. Especialmente a sua expressão quando percebeu que Victor Faust tinha vindo matar minha esposa em vez de mim. Era a expressão de alguém pega de surpresa, que não fazia ideia de por que estava ali. Era a expressão de alguém que não está familiarizada com o jogo.

Ele tenta sorrir com gentileza, como se quisesse demonstrar alguma espécie de empatia pela minha situação, mas o que leio em seu rosto é cinismo.

— Acho que, se houvesse mais alguém aqui com você, ele já teria aparecido para salvá-la, porque é óbvio que você está ferrada.

A porta do quarto principal se abre, o guarda-costas entra e a tranca. Por uma fração de segundo, tive a esperança de que fosse Victor vindo me salvar na hora certa. Mas foi só um desejo. O guarda-costas me olha com desprezo. Hamburg acena para ele, que começa a tirar o cinto.

Meu coração afunda até o estômago.

— Sabe — diz Hamburg, dando a volta na escrivaninha —, na primeira vez que a gente se viu, lembro que fiz um acordo com Victor Faust. — Ele aponta para mim. — Você se lembra disso, não?

Hamburg sorri e apoia a mão gorda nas costas da poltrona na qual eu estava sentada, virando-a para mim.

Todo o meu corpo está tremendo; parece que o sangue que passa pelas minhas mãos virou ácido. Ele corre pelo meu coração e pela minha cabeça tão rápido que quase desmaio. Começo a tentar alcançar meu punhal, mas eles estão perto demais, aproximando-se pelos dois lados. Não tenho como enfrentar os dois ao mesmo tempo.

— Como assim? — pergunto, tropeçando nas palavras, tentando ganhar um pouco de tempo.

Hamburg revira os olhos.

— Ora, por favor, Izabel. — Ele gira um dedo no ar. — Apesar do que aconteceu naquela noite, fiquei decepcionado de verdade por vocês dois irem embora antes de cumprir o acordo.

— Eu diria que, em vista do que aconteceu, o acordo não vale mais nada.

Ele sorri para mim e se senta na poltrona de couro. Percebo Hamburg espiar de relance o guarda-costas, dando uma ordem só com o olhar.

Antes que eu consiga me virar, o segurança prende minhas duas mãos nas minhas costas.

— Você vai cometer um erro do caralho se fizer isso! — grito, tentando me livrar das garras do segurança.

Ele me leva à força até uma mesa quadrada e me joga sobre ela. Meus reflexos não são rápidos o suficiente e meu queixo bate no mármore duro. O gosto metálico do sangue enche minha boca.

— Me solte! — Tento chutá-lo. — Me solte agora!

Hamburg ri de novo.

— Vire a cabeça dela para esse lado — ordena ele.

Dois segundos depois, meu pescoço é torcido para o outro lado e mantido ali, minha bochecha esquerda pressionada contra o mármore frio.

— Quero ver a cara dela enquanto você a fode. — Hamburg me olha de novo. — Então vamos continuar do ponto onde paramos naquela noite, tudo bem? Você concorda, Izabel?

— Vai se foder!

— Ah, não, não — diz ele, ainda com o riso na voz. — Não sou eu quem vai foder você. Você não faz o meu tipo. — Seus olhos famintos percorrem o corpo do segurança que está me pressionando por trás.

— Eu vou matar você — digo, cuspindo por entre os dentes. A mão do segurança sobre a minha cabeça impede que eu a mexa. — Vou matar vocês dois! Me estupre! Vamos lá! Mas os dois vão estar mortos antes que eu saia daqui!

— Quem disse que você vai sair daqui? — provoca Hamburg.

O zíper da calça dele está aberto; sua mão direita está parada ao lado da braguilha, como se ele estivesse tentando manter algum autocontrole e não se masturbar ainda.

Então Hamburg acena com dois dedos para o guarda-costas, que me mantém imóvel segurando meus cabelos da nuca.

— Lembre-se disso — diz ele ao segurança. — Ela não vai sair daqui.

Sinto a mão direita do guarda-costas soltar meu cabelo e se mover entre as minhas pernas. Enquanto ele ergue meu vestido, aproveito para alcançar o punhal na minha coxa e tirá-lo da bainha, golpeando atrás em um ângulo desajeitado. O segurança grita de dor e me solta. Puxo o punhal ainda firme na mão, que está coberta de sangue. Ele cambaleia para trás, com a mão na base do pescoço, o sangue jorrando entre seus dedos.

— Sua puta do caralho! — ruge Hamburg, saltando da poltrona e vindo atrás de mim como um elefante descontrolado, a calça caindo de sua cintura flácida.

Corro na direção dele com o punhal levantado e colidimos no meio da sala. Seu peso me joga de bunda no chão e o punhal cai da minha mão, deslizando pelo piso ensanguentado. De pé, Hamburg se abaixa para me segurar, mas me reclino no chão e levanto o pé com toda a força, enfiando o salto da minha sandália na lateral do seu rosto. Ele geme e cambaleia para trás, com a mão na bochecha.

— Eu vou acabar com você! Puta que pariu! — berra ele.

Engatinho na direção do punhal, vendo o segurança no chão, em meio a uma poça de sangue. Ele está engasgando com os próprios fluidos; tentando em vão encher os pulmões de ar.

Pego o punhal com firmeza e rolo no chão enquanto Hamburg se aproxima, derrubando a poltrona de couro. Fico de pé e corro até a mesa, empurrando-a na direção dele. Hamburg tenta tirá-la da frente, mas o móvel balança sobre a base e ele acaba tropeçando. Seu corpo desaba no chão de barriga para baixo e a mesa cai quase na sua cabeça. Salto sobre suas costas e monto em seu corpo obeso. Meus joelhos mal tocam o chão. Agarro seu cabelo, puxo a cabeça dele para trás na minha direção e aperto o punhal em sua garganta, imobilizando-o em segundos.

— Pode me matar! Foda-se! Você não vai sair viva daqui mesmo. — A voz de Hamburg é rouca, sua respiração, rápida e ofegante, como se ele tivesse acabado de tentar correr uma maratona. O cheiro de seu suor e de seu medo invade minhas narinas.

Ocupada com a lâmina em sua garganta, me assusto com o som de batidas fortes na porta. A distração me pega desprevenida. Hamburg consegue se erguer debaixo de mim como um touro, rolando de lado e me derrubando no chão. Deixo cair o punhal em algum lugar, mas não tenho tempo para procurá-lo porque Hamburg consegue se levantar e parte para cima de mim. Ouço a voz de Stephens do outro lado da porta, que vibra com seus socos.

Rolo para sair do caminho antes que Hamburg consiga pular em cima de mim, pego o objeto mais próximo — um peso de papel de pedra, bem pesado, que estava na mesa antes de ser derrubada — e golpeio Hamburg com ele. O som do osso de seu rosto quebrando com o impacto faz meu estômago revirar. Hamburg cai para trás, cobrindo a cara com as mãos.

As batidas na porta ficam mais fortes. Numa fração de segundo, levanto a cabeça e vejo a porta sacudindo com violência no batente. Preciso sair daqui. Agora. Meu olhar varre a sala procurando o punhal, mas não há mais tempo.

Corro para a sala de vigilância, contornando os obstáculos.

Graças a Deus, há outra porta lá dentro. Abro a porta e desço correndo a escada de concreto, torcendo para que seja uma saída e eu não encontre mais ninguém no caminho.


CAPÍTULO CINCO

Sarai

Desço a escada de concreto de dois em dois degraus, segurando no corrimão de metal pintado com as mãos ensanguentadas, até chegar ao térreo. Uma placa vermelha com a palavra SAÍDA está à minha frente. Corro pela passagem mal-iluminada, onde uma lâmpada fluorescente pisca acima de mim e torna o lugar ainda mais ameaçador. Empurro com força a barra da porta com as duas mãos e ela se abre para um beco. Um homem de terno está sentado no capô de um carro, fumando, quando saio para a rua.

Eu fico paralisada.

Ele olha para mim.

Eu olho para ele.

Ele nota o sangue nas minhas mãos e olha de relance para a porta, depois para mim.

— Vá — diz ele, acenando para a caçamba de lixo à minha direita.

Sei que não tenho tempo para ficar confusa nem para perguntar por que ele está me deixando ir embora, mas pergunto assim mesmo.

— Por que você está...?

— Apenas vá!

Ouço passos ecoando na escada atrás da porta.

Lanço um olhar agradecido ao homem e dou a volta na caçamba, desço o beco e me afasto do restaurante. Ouço um tiro segundos depois que dobro a esquina e torço para que seja aquele homem fingindo atirar em mim.

Evito espaços abertos e corro por trás de prédios, protegida pela escuridão, tanto quanto minhas sandálias de salto alto permitem. Quando sinto que estou longe o suficiente para parar um pouco, tento me esconder atrás de outra caçamba e tiro as sandálias. Arranco a peruca loura e a jogo no lixo.

Não consigo respirar. Estou enjoada.

Meu Deus, estou enjoada...

Encosto na parede de tijolos atrás de mim, arqueando as costas e apoiando as mãos nos joelhos. Vomito com violência no chão, meu corpo rígido, o esôfago ardendo.

Pego as sandálias e saio correndo de novo na direção do hotel, tentando esconder o sangue das mãos e do vestido, mas percebo que não é tão fácil. Recebo alguns olhares desconfiados ao passar depressa pela recepção, mas tento ignorá-los e torço para que ninguém chame a polícia.

Em vez de arriscar ser vista por outras pessoas, subo pela escada até o oitavo andar. Quando chego lá, e depois de tudo o que corri, sinto que minhas pernas vão ceder. Encosto na parede e recupero o fôlego, com os joelhos tremendo descontroladamente. Meu peito dói, como se cada respiração trouxesse poeira, fumaça e cacos microscópicos de vidro para o fundo dos pulmões.

O quarto que divido com Eric está trancado e eu não tenho a chave. Aliás...

— Puta merda...

Jogo a cabeça para trás, fecho os olhos e suspiro, arrasada.

Não estou mais com a minha bolsa. Eu a perdi em algum momento da luta na sala de Hamburg. A chave do meu quarto. Meu celular. Minha arma. Meu punhal. Não tenho mais nada.

Bato na porta, mas Eric não está no quarto. Não esperava que estivesse, na verdade, já que não são nem onze da noite. Só para o caso de estar enganada, no entanto, tento o quarto de Dahlia.

— Dahl! Você está aí? — Bato na porta com pressa, tentando não incomodar os outros hóspedes.

Nenhuma resposta.

Já desistindo, jogo as sandálias no chão e apoio as mãos na parede. Minha cabeça desaba. Mas então ouço um clique baixinho e vejo a porta do quarto de Dahlia se abrindo devagar. Levanto a cabeça e a vejo parada ali.

Sem me demorar para questionar a expressão estranha no rosto dela, entro no quarto só para sair do corredor. Eric está sentado na poltrona perto da janela. Noto que seu cabelo está meio bagunçado. O de Dahlia também.

Meu instinto está tentando chamar minha atenção, mas não me importo. Acabei de apunhalar um homem no pescoço e de tentar matar outro. Quase fui estuprada. Estava correndo pelos becos de Los Angeles para fugir de homens armados que vinham atrás de mim. Nada que esses dois façam pode superar isso.

— Meu Deus, Sarai — diz Dahlia, aproximando-se de mim. — Isso é sangue?

A expressão estranha e silenciosa que ela exibia quando entrei no quarto desaparece em um instante quando ela me vê no quarto bem-iluminado. Seus olhos se arregalam, cheios de preocupação.

Eric se levanta da poltrona.

— Você está sangrando. — Ele também me olha de cima a baixo. — O que aconteceu?

Os olhos de Dahlia correm pela minha roupa e pelo meu cabelo preso dentro da touca da peruca.

— Por que... Hã, por que você está vestida assim?

Olho para mim mesma. Não sei o que dizer, então não digo nada. Eu me sinto como um cervo diante dos faróis de um carro, mas minha expressão continua firme e sem emoções, talvez um pouco confusa.

— Você encontrou Matt — acusa Dahlia, começando a levantar a voz. — Puta que pariu, Sarai. Você foi se encontrar com ele, não foi?

Sinto os dedos dela apertando meu antebraço.

Eu me desvencilho de Dahlia e caminho até o banheiro para tirar a touca do cabelo. Enquanto tiro os grampos, noto uma camisinha boiando na privada.

Eric entra no banheiro atrás de mim. Ele sabe que eu vi.

— Sarai, e-eu... Eu sinto muito — diz ele.

— Não se preocupe — respondo, tirando o último grampo e deixando-o na bancada creme.

Passo por Eric e volto para o quarto. Dahlia está me encarando, com o rosto cheio de vergonha e arrependimento.

— Eu...

Ergo a mão e olho para os dois.

— Não, é sério. Não estou brava.

— Como assim? — pergunta Dahlia.

Eric parece agitado. Ele põe a mão na nuca e passa os dedos pelo cabelo.

— Olhe, sem querer ofender — digo a Eric —, mas tenho fingido tudo com você desde a primeira vez que a gente ficou junto.

Ele arregala os olhos, embora tente não deixar que o choque e a mágoa da minha revelação transpareçam demais. Grande parte de mim se sente bem por dizer a verdade. Não por vingança, mas porque eu precisava tirar isso do peito. Mas admito que, depois de descobrir que os dois têm trepado pelas minhas costas, uma pequena parte de mim também fica feliz em magoá-lo. Acho que a vingança sempre encontra um caminho, mesmo nos gestos mais insignificantes.

— Fingido?

— Não tenho tempo para isso — digo, indo na direção da porta. — Vocês dois podem ficar juntos. Não tenho nada contra. Não estou brava, só não me importo mesmo. Preciso ir.

— Espere... Sarai.

Eu me viro para olhar Dahlia. Ela está muito chocada, mal sabe o que pensar. Depois de alguns segundos de silêncio, fico impaciente e a olho com cara de “vai, desembucha”.

— Para você... tudo bem mesmo?

Uau, não sirvo mesmo para o estilo de vida deles. O estilo de vida normal. Nem consigo entender essas coisas de namoro, melhores amigas, infidelidade, competição e joguinhos psicológicos. A cara que eles fazem, tão vazia e mesmo assim tão cheia de incredulidade e dúvida, por causa de uma situação que, para mim, não é tão importante... Tenho coisas mais graves com que me preocupar.

Suspiro, aborrecida com as perguntas vagas e confusas dos dois.

— Sim, por mim, tudo bem — digo, e então me viro para Eric, estendendo a mão. — Preciso da chave do nosso quarto.

Relutante, ele enfia a mão no bolso de trás e pega a chave. Tomo da sua mão, saio dali e vou para o quarto ao lado. Eric vem atrás e tenta falar comigo enquanto guardo minhas coisas na mala.

— Sarai, eu nunca quis...

Eu me viro de repente e o encaro.

— Tudo bem, só vou dizer isto uma vez, depois você muda de assunto ou volta para lá e fica com a Dahlia. Não estou nem aí para o que vocês dois fazem, mas, por favor, não apele para esse clichê de novela de que você nunca quis que isso acontecesse, porque... é muito idiota. — Eu rio baixinho, porque acho idiota mesmo. — Só falta você dizer que o problema não é comigo, é com você. Caramba, você faz ideia do que isso parece? É tão difícil assim acreditar quando digo que não me importo e que estou falando sério? Sem joguinhos. É verdade. — Balanço a cabeça, levanto as mãos e digo: — Não. Me. Importo.

Viro para a mala, fecho o zíper, abro a parte lateral e pego a chave do quarto secreto. Ainda bem que eu tinha uma cópia.

— Preciso ir — digo, andando até a porta e passando por Eric.

— Aonde você vai?

— Não posso contar, mas me escute, Eric, por favor. Se alguém aparecer me procurando, finja que não me conhece. Diga o mesmo para Dahlia. Finjam que nunca me viram na vida. Aliás, quero que vocês dois saiam hoje. Vão para qualquer lugar. Só... não fiquem aqui.

— Você vai me dizer o que aconteceu ou por que está toda ensanguentada? Sarai, você está me deixando assustado pra cacete.

— Eu vou ficar bem — digo, atenuando minha expressão. — Mas prometa que você e Dahlia vão fazer exatamente o que falei.

— Você vai me contar um dia?

— Não posso.

O silêncio entre nós fica mais pesado.

Enfim, abro a porta e saio para o corredor.

— Acho que sou eu quem deveria estar pedindo desculpas.

— Por quê?

Eric fica na porta, com os braços caídos ao lado do corpo.

— Por pensar em outra pessoa durante todo esse tempo em que eu estava com você. — Olho para o chão.

Nós nos encaramos por um breve momento e ninguém diz mais nada. Ambos sabemos que estamos errados. E acho que nós dois estamos aliviados por tudo ter vindo à tona.

Não há mais nada a dizer.

Eu me afasto pelo corredor na direção oposta à do meu quarto secreto e dou a volta por trás, para que Eric não veja aonde estou indo. Quando me tranco no quarto, só consigo desabar na cama. A exaustão, a dor e o choque de tudo o que aconteceu esta noite me atingem em cheio assim que a porta se fecha, e me engolem como uma onda. Eu me jogo de costas no colchão. Minhas panturrilhas doem tanto que duvido conseguir andar sem mancar amanhã.

Fico olhando para o teto escuro até ele desaparecer e eu pegar no sono.


CAPÍTULO SEIS

Sarai

Um tum! pesado me acorda, mais tarde naquela noite. Eu me levanto como uma catapulta.

Vejo dois homens no meu quarto: um desconhecido morto no chão e Victor Faust de pé sobre o corpo dele.

— Levante-se.

— Victor?

Não acredito que ele está aqui. Devo estar sonhando.

— Levante-se, Sarai. AGORA! — Victor me pega pelo cotovelo, me arranca da cama e me põe de pé.

Não consigo nem pegar minhas coisas, ele já está abrindo a porta e me puxando para o corredor com ele, segurando forte a minha mão.

Disparamos juntos pelo corredor e outro homem aparece virando a esquina, de arma em punho. Victor aponta sua 9mm com silenciador e o derruba antes que o cara consiga atirar. Ele passa pelo corpo me puxando, seus dedos fortes afundando na minha mão enquanto corremos para a escada. Ele abre a porta, me empurra para a frente e nós subimos depressa os degraus de concreto. Um andar. Três. Cinco. Minhas pernas estão me matando. Acho que não consigo andar por muito mais tempo. Enfim, no quinto andar, Victor me puxa para outro corredor e rumo a um elevador nos fundos.

Quando as portas do elevador se fecham e estamos só nós dois lá dentro, finalmente tenho a oportunidade de falar.

— Como você sabia que eu estava aqui? — Mal consigo recuperar o fôlego, esgotada pela correria infinita e pela adrenalina, mas acho que sobretudo porque Victor está de pé ao meu lado, segurando minha mão.

Meus olhos começam a arder com as lágrimas.

Engulo o choro.

— O que você estava pensando, Sarai?

— Eu...

Victor segura meu rosto com as duas mãos e me empurra contra a parede do elevador, pressionando ferozmente seus lábios nos meus. Sua língua se entrelaça na minha e sua boca tira meu fôlego em um beijo apaixonado que, enfim, faz meus joelhos cederem. Toda a força que eu estava usando para manter o corpo ereto desaparece quando os lábios dele me tocam. Ele me beija com fome, com raiva, e eu derreto em seus braços.

Então ele se afasta, as mãos fortes nos meus braços, me segurando contra a parede do elevador. Nós nos encaramos pelo que parece ser uma eternidade, nossos olhos paralisados em uma espécie de contemplação profunda, nossos lábios a centímetros de distância. Só quero prová-los de novo.

Mas ele não deixa.

— Responda — exige Victor, estreitando seus olhos perigosos em reprovação.

Já esqueci a pergunta.

Ele me sacode.

— Por que você veio aqui? Tem ideia do que você fez?

Balanço a cabeça em um movimento curto e rápido, parte de mim mais preocupada com seu olhar ameaçador do que com o que ele está dizendo.

A porta do elevador se abre no subsolo e eu não tenho tempo para responder, pois Victor mais uma vez pega minha mão e me puxa para que o siga. Serpenteamos por um grande depósito com caixas em pilhas altas encostadas nas paredes e depois por um longo corredor escuro que leva a um estacionamento. Victor enfim solta minha mão e eu o sigo até um carro parado entre dois furgões pretos com o logotipo do hotel nas laterais. Dois bipes ecoam pelo ambiente e os faróis do carro piscam quando nos aproximamos, iluminando a parede de concreto em frente. Sem perder tempo, me sento no banco do passageiro e fecho a porta.

Segundos depois, Victor está dirigindo casualmente pelo estacionamento até a rua.

— Eu queria que ele morresse — respondo, enfim.

Victor não me olha.

— Bom, você fez um excelente trabalho — rebate ele, sarcástico.

Ele vira para a direita no semáforo, e o carro ganha velocidade quando chegamos à rodovia.

Fico magoada por suas palavras, mas sei que ele tem razão, por isso não discuto. Fiz merda. Uma merda muito grande.

Mas não me dou conta do tamanho dela até Victor dizer:

— Os seus amigos podiam ter morrido. Você podia ter morrido.

Sinto meus olhos se arregalarem além dos limites e me viro mais um pouco para encará-lo.

— Ah, não... Victor, o quê... Eles estão bem?

Sinto que vou vomitar de novo.

Victor me olha por um instante.

— Estão ótimos. O primeiro quarto que os capangas de Hamburg revistaram estava vazio — diz ele, voltando a olhar para a estrada. — Eu cheguei quando eles estavam saindo. Segui um deles até o quarto onde você estava escondida, deixei que ele destrancasse a porta e então ataquei.

As chaves do quarto. Minhas duas chaves extras estavam na bolsa que perdi no restaurante de Hamburg. E os números dos quartos estavam escritos nas capinhas de papel que as protegiam. Eu estava tão preocupada em esconder minha arma e meu punhal que nem pensei em esconder as chaves.

— Merda! — Também olho para a estrada. — E-eu perdi a bolsa no restaurante. As chaves do meu quarto estavam dentro dela. Deixei um rastro para eles seguirem!

Felizmente, eu não tinha uma chave extra do quarto de Dahlia, senão ela e Eric já poderiam estar mortos.

Onde é que eu estava com a cabeça?!

— Não, você deixou literalmente as chaves do seu quarto com o nome do hotel gravado. Sarai, eu devia ter matado você há muito tempo e poupado toda essa confusão para cima de você e de mim.

Eu me viro para encará-lo; a raiva e a mágoa pesando no meu peito.

— Você não está falando sério.

Ele faz uma pausa e me olha. Suspira.

— Não, não estou falando sério.

— Nunca mais me diga isso. Nunca mais me diga uma coisa dessas, ou eu mato você e poupo a mim de toda essa confusão — rebato, desviando o olhar.

— Você não está falando sério — diz Victor.

Olho mais uma vez para aqueles olhos ameaçadores verde-azulados que me fizeram tanta falta.

— Não. Mas acho que isso seria o mais sensato.

— Bom, você não foi a campeã da sensatez hoje, então acho que estou seguro ao menos pelas próximas 24 horas.

Escondo o sorriso.

— Senti sua falta — digo de maneira distante, olhando para a estrada.

Victor não responde, mas admito que seria estranho se respondesse. A despeito de sua falta de emoção, porém, sei que ele também sentiu saudade de mim. Aquele beijo no elevador disse coisas que palavras jamais conseguiriam.

Ele pega uma saída e para o carro debaixo de um viaduto. Puxa o freio de mão e a área ao redor desaparece na escuridão quando ele desliga os faróis.

— O que a gente está fazendo aqui?

— Você precisa ligar para os seus amigos.

— Por quê?

Ele tira um celular do porta-luvas entre nós.

— Mande eles voltarem para o Arizona. Faça ou diga o que for preciso para que eles saiam de Los Angeles. Quanto antes, melhor.

Ele coloca o telefone na minha mão. De início, só olho para o aparelho, mas ele me pressiona com aquele olhar, aquele que grita “vamos lá, faça isso de uma vez”, mas que só alguém como eu, alguém que conhece Victor, seria capaz de notar.

Giro o celular nas mãos, depois o seguro firmemente e digito o número de Eric. Mas então mudo de ideia, desligo no primeiro toque e ligo para Dahlia.

Ela atende no quinto toque.

Respiro fundo e faço o que sei fazer melhor: minto.

— A verdade é que vocês me magoaram. Duvido que um dia eu consiga perdoar você ou Eric pelo que fizeram.

— Sarai... Meu Deus, me desculpe, estou me sentindo muito mal. A gente não queria que isso chegasse a esse ponto. Juro para você. Não sei o que aconteceu...

— Escute, Dahlia, por favor, só me escute.

Ela fica quieta.

Começo a choradeira. Nunca imaginei que eu seria capaz de chorar sob demanda e de forma tão falsa.

— Eu quero acreditar em você. Quero conseguir confiar em você de novo, mas você era minha melhor amiga e me traiu. Preciso de um tempo sozinha e quero que você e Eric voltem para o Arizona. Hoje. Acho que não vou aguentar ver vocês de novo... Espere, onde você está, agora?

Acabo de me dar conta de que, se ela e Eric estiverem no hotel, a essa altura ela já sabe que dois homens foram mortos a tiros no andar do quarto deles.

— A gente está em uma festa em um terraço — conta ela. — T-tudo bem por você? Achei que não tinha nada a ver a gente sair, mas o Eric falou que você insistiu...

— Não, tudo bem — digo, cortando-a. — Insisti mesmo. Onde ele está, agora?

— Deixei Eric lá no terraço para a gente poder conversar. Está muito barulhento lá em cima. Que número é esse de onde você está ligando?

— É o celular de um amigo. Perdi o meu. O Eric por acaso avisou que se alguém procurar por mim...

— Avisou, sim — interrompe Dahlia. — Que confusão é essa, afinal? Meu Deus, Sarai, esquece por um momento esse lance com Eric e me conta o que está acontecendo, por favor. O sangue. As roupas esquisitas que você estava usando e aquele troço na sua cabeça. Era uma touca de peruca? Você está metida em alguma encrenca, eu sei. Sei que você me odeia, e tem todo o direito de odiar, mas, por favor, conte o que aconteceu.

— Não posso contar, porra! — grito, deixando o choro distorcer minha voz. — Caramba, Dahlia, faça o que eu pedi. Pelo menos isso! Você deu para o meu namorado! Por favor, voltem para o Arizona, me deixem esfriar a cabeça e depois eu volto para casa. Talvez aí a gente possa conversar. Mas agora façam o que eu estou pedindo. Tudo bem?

Ela não responde por um momento, e um longo silêncio se forma entre nós.

— Tudo bem — concorda ela. — Vou dizer ao Eric que a gente precisa ir embora.

— Obrigada.

Estou apenas um pouco aliviada. Não vou me sentir bem com isso até saber que eles chegaram em casa sãos e salvos.

Desligo sem dizer mais uma palavra.

— Bom, isso foi bastante convincente — observa Victor, levemente impressionado.

— Acho que foi.

— Eu sei que a sua amiga acreditou — acrescenta ele. — Mas eu não acreditei em uma só palavra.

Eu me viro para ele. Victor me conhece tão bem quanto eu o conheço, parece.

— É porque nem uma palavra era verdade.

Ele deixa por isso mesmo e nós saímos de baixo do viaduto.

Chegamos a uma casa perdida no final de uma estrada isolada nos arredores da cidade, empoleirada no alto de uma colina com uma vista quase perfeita para a cidade lá embaixo. Uma piscina de formato irregular começa no lado esquerdo da casa e serpenteia por trás, a água azul-clara iluminada por lâmpadas submersas parece luminescente. O lugar está silencioso. Só ouço o vento passando pela mata cerrada que contorna o lado direito e os fundos da casa, impedindo uma visão em 360 graus da paisagem iluminada de Los Angeles. Quando nos aproximamos da porta, uma mulher robusta usando uniforme azul de empregada nos recebe. Ela tem cabelo preto encaracolado e pele morena. Suas bochechas são volumosas, envolvendo seus olhos castanho-escuros pequenos e brilhantes, que fitam atentamente Victor e a mim.

— Por favor, entrem — diz ela, com um sotaque hispânico familiar.

A mulher fecha a porta. A casa cheira a limpa-vidro e a uma mistura pouco natural de cheiros adocicados que só pode vir de algum tipo de aromatizador de ambientes artificial. Parece que todas as janelas foram abertas, permitindo que a brisa noturna de verão se espalhasse pela casa. Não se parece em nada com as mansões ricas onde já estive, mas é impecável e aconchegante, e penso que eu deveria pelo menos ter tomado um banho antes de vir. Minha pele e minhas roupas ainda estão manchadas de sangue...

Victor está usando uma calça preta e uma camisa apertada de mangas compridas que adere a cada músculo de seus braços e seu peito, com os punhos desabotoados e arregaçados até os cotovelos. A camisa está por fora da calça e os dois botões de cima estão abertos. Sapatos pretos chiques e informais calçam seus pés. Um relógio brilhante de prata adorna seu pulso direito, e não consigo deixar de notar a solitária veia grossa que percorre as costas de sua mão até o osso de seu pulso. Quando ele segue a empregada pela grande entrada e se vira momentaneamente de costas para mim, vejo o cabo da arma saindo da cintura de sua calça, com a barra da camisa branca enfiada atrás.

Ele me olha, para e estende o braço, em um gesto para que eu ande à sua frente. Tremo de leve quando sua mão toca minhas costas perto da cintura.

Antes que eu tenha tempo de me sentir deslocada ao lado dele, Fredrik, o amigo e cúmplice sueco de Victor que conheci no restaurante de Hamburg há tanto tempo, entra na sala pelas grandes portas de vidro que dão para o quintal dos fundos.


CAPÍTULO SETE

Sarai

— Você chegou cedo — comenta Fredrik com um sorriso mortal, porém inimaginavelmente sexy.

As roupas dele são bem parecidas com as de Victor, mas, em vez de camisa de botão, Fredrik está vestindo uma camiseta branca apertada que adere à sua forma esbelta e máscula. Ele está descalço.

A primeira vez que vi Fredrik, pensei que era impossível haver alguém mais bonito. Com cabelo macio, quase preto, e olhos escuros e misteriosos, suas feições parecem ter sido esculpidas por algum artista famoso. Mas sempre achei que havia algo de sombrio e assustador naquele homem. Um lado dele que eu, particularmente, não faço questão de conhecer. Para mim, basta o jeito como ele era quando nos encontramos: cordial, encantador e misterioso, uma linda máscara que ele usa para esconder a fera que há por trás.

Victor olha para seu relógio caro.

— Só dez minutos mais cedo — comenta ele.

Fredrik sorri ao se aproximar, os dentes brancos reluzindo contra a pele bronzeada.

— Sim, mas você sabe como eu sou.

Victor assente, mas não alonga o assunto. A mim, só resta imaginar o que aquilo significa.

— É bom ver você — diz Fredrik, observando-me do topo de sua altura considerável e presença avassaladora. Ele se inclina, pega minha mão e a beija, logo acima dos nós dos dedos. — Ouvi dizer que você matou um homem hoje.

Ele apruma as costas e solta minha mão. Um sorriso perturbador e orgulhoso surge em seu rosto, os cantos dos olhos se aquecendo com alguma lembrança ou... prazer, como se a ideia de matar alguém o deliciasse de alguma forma.

Olho para Victor à minha direita. Ele assente, respondendo à pergunta estampada no meu rosto. O guarda-costas que apunhalei no pescoço morreu?

Olho para Fredrik e respondo sem rodeios.

— Acho que matei.

Um leve sorriso se abre nos cantos dos lábios de Fredrik, e ele olha de relance para Victor, sem mover a cabeça.

— E você se sente bem com isso? — pergunta Fredrik.

— Para dizer a verdade, sim — respondo sem demora. — O desgraçado mereceu.

Fredrik e Victor parecem envolvidos em algum tipo de conversa secreta. Odeio isso.

Enfim, Fredrik diz para Victor em voz alta:

— Você arrumou sarna para se coçar, Faust.

Ele então se vira de costas para nós e anda na direção das portas de vidro. Nós o seguimos para o lado de fora, passando pela parte coberta do quintal e descendo uma escada de pedra que leva a um enorme pátio, também de pedra, que se abre em todas as direções. O pátio é decorado com mesas e cadeiras de ferro batido e uma cama com dossel ao ar livre.

Eu me sento ao lado de Victor em um sofá.

— Como é que você sabe? — pergunto a Fredrik, mas então me viro para Victor e digo: — E você ainda não me contou como sabia que eu estava aqui.

Na verdade, isso não importa muito, só quero encará-lo nos olhos de novo. Quero ficar sozinha com Victor, mas por enquanto vou precisar me contentar com os 7 centímetros entre nossos corpos, sentados lado a lado.

— Melinda Rochester me contou — explica Fredrik com um sorriso conivente. Começo a perguntar “E quem é Melinda Rochester”, mas ele diz: — Bem, ela contou para todo mundo, na verdade. Noticiário do Canal 7. Um homem morto a punhaladas atrás de um restaurante de Los Angeles.

Começo a me retorcer por dentro. Espero que as câmeras não tenham me mostrado com nitidez.

Eu me viro para Victor, com a preocupação transparecendo no rosto.

— Eu estava de peruca loura — digo, tentando encontrar alguma coisa, qualquer coisa que eu tenha feito certo. — Fiquei com a cabeça baixa... a maior parte do tempo.

Desisto. Sei que o que fiz vai continuar me perseguindo. Suspiro e olho para as mãos ensanguentadas no meu colo.

— E encontrar você foi fácil — continua Victor. — A sra. Gregory me ligou depois que você saiu do Arizona. Ela estava preocupada com a sua vinda para Los Angeles e achou que eu precisava saber.

Viro a cabeça para encará-lo.

— O quê? Dina sabia onde você estava? — Sinto a pele ao redor das sobrancelhas se enrijecendo.

— Não — responde ele, com delicadeza. — Ela não sabia onde eu estava, mas sabia como entrar em contato comigo.

Essas palavras me magoam. Engulo em seco a sensação de ser traída por eles.

— Falei para ela entrar em contato comigo só em caso de emergência — acrescenta Victor. — Caso algo acontecesse com você.

— Você deixou para Dina uma forma de entrar em contato — digo, ríspida —, mas para mim, nada. Não acredito que você fez isso.

— Eu queria que você tocasse a sua vida. Mas, caso os irmãos de Javier descobrissem onde você estava, ou você decidisse fazer uma proeza como a de hoje, eu queria ficar sabendo.

Não consigo olhar para Victor. Tento chegar mais alguns centímetros para o lado a fim de aumentar a distância entre nós. Ainda assim, mesmo que esteja magoada e enfurecida com ele, sinto vontade de me aproximar de novo. Mas me mantenho firme e me recuso a deixá-lo perceber que o poder que ele exerce sobre mim faz a raiva que sinto parecer um chilique.

— Não acredito que Dina escondeu isso de mim — digo em voz alta, ainda que esteja falando mais comigo mesma.

— Ela escondeu de você porque eu disse a ela quanto isso era importante.

— Bom, de qualquer maneira — interrompe Fredrik, sentando-se na poltrona ao lado do sofá —, parece que você se meteu em uma situação da qual não vai conseguir sair tão facilmente, se é que vai conseguir.

— Por que a gente está aqui? — pergunto, aborrecida.

Fredrik ri baixinho.

— Aonde mais você iria?

— Eu precisava tirar você do hotel — explica Victor.

— Espere um pouco. Eu não matei aquele homem atrás do restaurante. Tudo aconteceu na sala particular de Hamburg, no andar de cima.

Recordo o homem que vi do lado de fora, atrás do restaurante, aquele que me deixou fugir, e meu coração afunda.

— Hamburg não deixaria que a polícia acreditasse que o assassinato aconteceu lá dentro, porque eles confiscariam a memória da câmera de vigilância e veriam o que realmente aconteceu.

Não estou entendendo nada. Nadinha.

— Eles não iam querer que a polícia soubesse o que realmente aconteceu?

Fredrik se reclina na poltrona e ergue um pé descalço, apoiando o tornozelo sobre o outro joelho, e estende os braços sobre os da poltrona.

Victor balança a cabeça.

— Preciso mesmo explicar isso para você, Sarai?

Sua vaga irritação me pega de surpresa. Olho para ele e levo alguns segundos para entender tudo sem que ele precise explicar.

— Ah, entendi — digo, olhando um de cada vez. — Hamburg não quer que a polícia se envolva porque corre o risco de se expor. O que ele fez, então? Só levou o corpo para fora? Preparou a situação para parecer um assalto comum? Não muito diferente do que ele fez naquela noite em que a gente estava na mansão dele, imagino.

Paro por aí porque Fredrik está presente. Não sei qual o grau de intimidade entre ele e Victor, nem mesmo se Fredrik sabe o que aconteceu na noite em que Victor matou a esposa de Hamburg.

Os olhos de Victor sorriem de leve para mim: sua maneira de me mostrar quanto lhe agrada eu ter entendido tudo. Ainda fingindo estar aborrecida, não retribuo o olhar da forma que ele deve esperar.

A empregada aparece com um balde chique de gelo, de madeira, com três garrafas de cerveja dentro. Fredrik pega uma, então ela nos oferece. Victor pega uma garrafa, mas recuso, mal conseguindo olhar a mulher nos olhos. Estou absorta demais nos acontecimentos da noite, que não me saem da cabeça.

A empregada vai embora logo depois, sem dizer uma palavra.

— O que você quis dizer com os irmãos de Javier?

Victor abre sua garrafa e a põe na mesa.

— Dois deles, Luis e Diego, assumiram os negócios de Javier dias depois que você o matou.

Por um instante, o rosto de Javier surge em minha mente: sua expressão chocada e ainda orgulhosa, os olhos arregalados, o corpo caindo no chão segundos depois de eu meter uma bala em seu peito.

Afasto a imagem.

Eu me lembro de Luis e Diego. Diego é aquele que tentou me estuprar quando eu estava na fortaleza no México, aquele que Javier castrou como punição.

— Eles estão me procurando?

Victor toma um gole de cerveja e devolve a garrafa à mesa com calma.

— Que eu saiba, não. Estou monitorando a fortaleza há meses. Os irmãos de Javier são amadores. Não têm ideia do que fazer com tanto poder. Duvido até que vejam você como ameaça.

Fredrik toma um gole de cerveja e prende a garrafa entre as pernas.

— Não fique tão aliviada assim — diz ele. — É melhor ser perseguida por amadores do que por Hamburg e aquele braço direito dele.

Um nó nervoso se forma no fundo do meu estômago. Olho de relance para Victor, buscando respostas.

— Willem Stephens — esclarece Victor — faz todo o serviço sujo de Hamburg. Hamburg em si é covarde, tão perigoso quanto o pedófilo gente boa da vizinhança. Mal consegue atirar em um alvo imóvel, e trairia alguém em dois minutos para se salvar. — Ele arqueia uma sobrancelha. — Stephens, por outro lado, tem uma extensa formação militar, é ex-mercenário e trabalhou para uma Ordem do mercado negro em 1986.

— Uma o quê?

— Uma Ordem como a nossa — explica Victor —, mas que aceita contratos particulares. Eles fazem coisas que outros agentes se recusam a fazer, vendem seus serviços basicamente para qualquer um.

— Ah... Então, resumindo, ele mata gente inocente por dinheiro.

Lembro o que Victor me contou, meses atrás, sobre a natureza dos contratos particulares, como pessoas eram assassinadas por motivos fúteis como traição conjugal ou vingança. A Ordem de Victor só trabalha com crime, ameaças sérias a um grande número de pessoas ou ideias que poderiam ter um impacto negativo na sociedade ou na vida como um todo.

Engulo em seco.

— Bom, ele me viu, com certeza. — Levanto as mãos e tiro o cabelo do rosto, passando as mãos no alto da cabeça. — Foi ele quem me levou para o segundo andar, para a sala de Hamburg. — Olho para Victor. — Desculpa, Victor. Eu... eu não sabia de nada disso.

Fredrik ri baixinho e diz:

— Algo me diz que, mesmo se você soubesse, teria ido lá de qualquer maneira.

Desvio o olhar de Victor e olho para baixo de novo, nervosa, esfregando os dedos ensanguentados uns nos outros. Fredrik tem razão. Odeio admitir, mas ele tem razão. Eu teria ido para o restaurante mesmo assim. Teria tentado matar Hamburg mesmo assim. Mas, se eu soubesse de tudo isso, acho que teria pensado em um plano melhor.

De repente, sinto que alguma coisa toma meu corpo e me tira o fôlego.

— Victor... Meu celular... — Eu me levanto do sofá, com o cabelo castanho-avermelhado caindo pelos ombros, batendo em meus braços nas partes em que o sangue secou e formou uma crosta áspera. — O número de Dina está no meu celular. Merda. Merda! Victor, Stephens vai atrás dela! Preciso voltar para o Arizona!

Começo a seguir para a porta dos fundos, mas Victor me alcança antes que eu atravesse o caminho decorado com pedras lisas.

— Espere aí.

Olho para baixo e vejo os dedos dele em volta do meu pulso. Seus hipnóticos olhos verde-azulados me fitam com desejo e devoção. Devoção. Algo que nunca vi no olhar de Victor antes.

Fredrik fala atrás de nós, me tirando do transe em que Victor me colocou.

— Eu vou cuidar disso — diz ele.

Desvio o olhar de Victor para Fredrik, que então ganha importância, considerando que a vida de Dina está em jogo.

— Como? — pergunto.

Victor me leva de volta para o sofá.

Fredrik pega o celular da mesa à frente, procura um número e toca na tela para ligar. Então encosta o celular no ouvido.

Victor me faz sentar perto dele de novo. Estou concentrada demais em Fredrik no momento para notar que Victor fez questão de se sentar tão perto que sua coxa está encostada na minha. Quero aproveitar o momento de proximidade, mas não posso. Estou preocupada com Dina.

Fredrik se reclina na poltrona de novo, balançando o pé descalço apoiado no joelho. Seu rosto fica alerta quando alguém atende à ligação.

— Em quanto tempo você consegue chegar a Lake Havasu City? — pergunta Fredrik ao telefone. Ele ouve por um segundo e assente. — Mando o endereço por mensagem de texto assim que eu desligar. Vá para lá o mais rápido que puder. Uma mulher mora lá. Dina Gregory. — Ele me olha de relance, para se certificar de que disse o nome certo. Como não o corrijo, volta a falar ao telefone. — Tire-a da casa e a leve para Amelia, em Phoenix. Sim. Sim. Não, não pergunte nada a ela. Só tome cuidado para ninguém machucar Dina. Sim. Me ligue neste número assim que estiver com ela.

Fredrik assente mais algumas vezes. Meu coração está batendo tão forte que parece pronto para pular do peito. Espero que a pessoa com quem ele está falando consiga encontrar Dina a tempo.

Fredrik desliga e parece abrir uma tela de texto no celular. Ele olha para mim, mas é Victor quem dá o endereço da sra. Gregory. Fredrik o digita e deixa o celular na mesa.

— Meu contato está a apenas trinta minutos de lá — explica Fredrik, olhando primeiro para mim. Então se vira para Victor. — O que você quer que eu faça?

Ele levanta as costas da poltrona e apoia os cotovelos nos joelhos, deixando as mãos entre eles. Mesmo em uma posição relaxada, ele consegue parecer elegante, importante e perigoso.

— Ainda preciso que você verifique o que discutimos ontem — diz Victor, e fica ainda mais claro, para mim, que Fredrik recebe ordens dele, embora não pareça ser do tipo que recebe ordens de ninguém. Mas está claro que os dois têm uma relação forte. — E, se você não se importa, preciso da sua casa emprestada por esta noite.

Os olhos escuros de Fredrik me encaram, e o traço de um sorriso aparece em seu rosto. Ele se levanta e pega o celular da mesa, escondendo-o na mão.

— Não precisa dizer mais nada. Vou sair daqui em vinte minutos. Eu ia mesmo me encontrar com alguém hoje, então está combinado.

A atitude de Victor muda um pouco, o que percebo no mesmo instante. Ele está encarando Fredrik, do outro lado da mesa do pátio, com um olhar cansado e cauteloso.

— Você não vai fazer o que estou pensando...

Ouço com atenção sem nem ao menos tentar disfarçar. Eu quero que eles saibam que estou bisbilhotando, porque é frustrante nenhum dos dois me oferecer qualquer explicação sobre esses comentários internos.

Fredrik ergue um lado da boca em um meio sorriso. Ele balança a cabeça de leve.

— Não, esta noite, não, infelizmente. Mas já faz algum tempo. Vou precisar que você me ajude com isso em breve.

Os olhos dele passam por mim e sinto um calafrio percorrer minhas costas. Não consigo decidir se é um arrepio bom ou assustador.

— Você terá sua oportunidade logo, logo — assegura Victor.

Fredrik dá a volta na mesa.

— Lamento por ter que encurtar nossa reunião.

— Tudo bem — digo. — Obrigada por ajudar com Dina. Você avisa quando receber aquela ligação?

Fredrik assente.

— Com certeza. Farei isso.

— Obrigada.

Victor acompanha Fredrik até a porta de vidro e os dois a atravessam. Fico sentada, observando-os do outro lado do pátio de pedra e tentando ouvir o máximo que posso, mas eles fazem questão de falar em voz baixa. Isso também me deixa frustrada. E pretendo informar Victor disso.


CAPÍTULO OITO

Victor

Fredrik fecha a porta de correr feita de vidro.

— Ela não sabe nada sobre Niklas? — pergunta ele, como eu já previa.

— Não, mas vou ter que contar. Ela vai precisar ficar atenta o tempo todo. Agora mais do que nunca.

— Ela não pode ficar aqui por muito tempo — aconselha Fredrik, olhando, através do vidro, Sarai sentada no sofá lá fora e nos observando. — Você também não.

— Eu sei. Quando Niklas descobrir que ela participou do assassinato no restaurante de Hamburg, vai saber na mesma hora que também estou envolvido nisso. Ele não é bobo. Se Sarai está viva, Niklas vai saber que estou tentando ajudá-la.

— E como ele desconfia de que agora trabalho com você — acrescenta Fredrik —, ela corre tanto perigo perto de mim quanto de você.

— É verdade.

Fredrik balança a cabeça para mim, com um sorriso escondido no fundo dos olhos.

— Não entendo esse envolvimento. Respeito você como sempre, respeitei, Victor, mas nunca vou entender a necessidade de um homem amar uma mulher.

— Eu não estou apaixonado por ela. Ela só é importante para mim.

— Talvez não — retruca ele, indo para a cozinha. — Mas parece que o amor e o envolvimento trazem as mesmas consequências, meu amigo. — Sigo Fredrik até a cozinha iluminada e ele abre um armário. — Mas estou do seu lado. O que você precisar que eu faça para ajudar, é só pedir. — Ele aponta para mim perto do armário, agora com um pão na mão.

A empregada de Fredrik entra na cozinha, roliça e mais velha do que nós dois juntos, exatamente o tipo de mulher que jamais o atrairia, e foi por isso que ele a contratou. Ela lhe pergunta em espanhol se pode voltar para casa e ver a família mais cedo hoje. Fredrik responde em espanhol, concordando. Ela assente respeitosamente e passa por mim na sala. De soslaio, eu a observo pegar uma bolsa volumosa de couro marrom do chão, perto da espreguiçadeira, e colocá-la no ombro. Depois ela vai até a porta, fechando-a devagar ao sair.

Sarai está de pé nas sombras da sala quando desvio o olhar da porta. Nem ouvi a porta de vidro correr quando ela entrou, e pelo jeito Fredrik também não.

Ela vai para a cozinha iluminada, de braços cruzados, os dedos delicados segurando seus bíceps femininos, mas bem-definidos. Ela é linda demais, mesmo quando está desgrenhada assim.

— Quanto tempo vocês planejavam me deixar lá fora? — pergunta ela, com um traço de irritação na voz.

— Ninguém disse que você precisava ficar lá, gata — responde Fredrik.

Ele gosta dela, isso é óbvio para mim, e ele deve saber. Mas também sabe que vou matá-lo. Ainda assim, minha confiança em Fredrik é maior do que minha preocupação de que ele volte para o lado sombrio e a machuque. Fredrik Gustavsson é uma fera do tipo mais carnal, que adora mulheres e sangue, mas tem limites e critérios, além de levar a lealdade, o respeito e a amizade muito a sério. Sua lealdade a mim é, afinal, o motivo para ele trair a Ordem todos os dias me ajudando.

Sarai se aproxima de mim e me olha nos olhos, inclinando um pouco a cabeça para o lado. O cheiro de sua pele e o calor tênue que emana dela quase me fazem perder o controle. Tenho conseguido me conter bastante desde que a beijei no elevador. Pretendo continuar assim.

Ela não diz nada, mas continua me encarando como se esperasse alguma coisa. Fico confuso. Ela inclina a cabeça para o outro lado e seu olhar se suaviza, embora eu não saiba ao certo por quê. Parece maliciosa e cheia de expectativa.

Ouço Fredrik rir baixinho e a porta da geladeira se fechar, mas não tiro os olhos de Sarai.

— As coisas são tão mais fáceis do meu jeito. — Ouço-o dizer, com um sorriso na voz.

— Entre em contato comigo assim que tiver a informação sobre Niklas — peço, ainda olhando nos olhos de Sarai e ignorando o comentário dele. — E quando souber pelo seu contato se Dina Gregory está a salvo em Phoenix.

— Pode deixar — diz Fredrik, e então vai para a porta do corredor que leva ao seu quarto. Mas ele para e olha para nós. — Se você não se importa...

Enfim desvio o olhar de Sarai e dou atenção total a Fredrik.

— Não se preocupe — interrompo —, eu sei onde fica o quarto de hóspedes.

Ele enfia na boca um sanduíche que mal notei que ele preparava e morde, rasgando um pedaço de pão. Eu o vejo piscando para Sarai antes de desaparecer da sala. Foi algo inofensivo, uma menção ao que ele acha que pode acontecer entre nós quando sair, e não uma tentativa de flerte.

— Que informação sobre Niklas? — pergunta Sarai, seus traços suaves agora encobertos pela preocupação.

Estendo a mão e passo os dedos por algumas mechas do cabelo dela.

— Preciso contar muita coisa para você — anuncio, tirando a mão antes de perder o controle e acabar tocando nela mais do que pretendo. — Sei que você deve estar exausta. Por que não toma um banho e fica à vontade primeiro? Depois conversamos.

Um sorrisinho suave emerge em seus lábios, mas logo desaparece em seu rosto enrubescido.

— Você quer dizer que eu estou nojenta? — pergunta ela, tímida. — Esse é o seu jeito de me dizer que preciso lavar meu corpo nojento?

— Na verdade, sim — admito.

Por um momento ela faz uma careta e parece ofendida, mas então só balança a cabeça e dá risada. Admiro isso em Sarai. Admiro muita coisa nela.

— Tudo bem. — Sua expressão brincalhona fica séria de novo. — Mas você precisa me contar tudo, Victor. E eu sei que você deve ter muito para contar, mas saiba que também preciso dizer muita coisa para você.

Eu já esperava isso. E, antes que ela fique na ponta dos pés, incline o corpo na minha direção e me beije, já sei que, quando ela sair do banho, vou precisar decidir o que vamos fazer. Vou precisar tomar algumas decisões importantes, que nos afetarão.

Porque de uma coisa eu tenho certeza: Sarai não pode voltar para casa.


Sarai

Quando volto, Victor está na sala, acomodado na beira do sofá, curvado sobre a mesinha de centro feita de vidro que está cheia de pedaços de papel e fotografias. Entro, mas ele continua remexendo neles sem erguer a cabeça para me olhar. Só que ele não me engana, sei que sente a minha presença tanto quanto quero que ele sinta.

Vasculhei o guarda-roupa de Fredrik procurando uma camiseta branca, que vesti sobre meus seios nus. Infelizmente, tive que usar a mesma calcinha de antes, mas as cuecas boxer de Fredrik não são exatamente o tipo de lingerie que eu gostaria de usar para seduzir Victor. Só uma camiseta e uma calcinha. Claro que fiz questão de vestir o mínimo possível, porque desejo Victor e não tenho nenhuma vergonha de deixar isso claro. Mas ainda custo a acreditar que estou no mesmo cômodo que ele, depois de meses achando que ele havia ido embora para sempre.

Acho que o beijo no elevador é onde minha mente ficou suspensa, como se o tempo tivesse parado naquele momento e cada parte de mim ainda deseje que aquele instante continue. Contudo, o resto do mundo continua passando ao meu redor.

Eu me sento ao lado de Victor, recolhendo um pé descalço para o sofá e enfiando-o sob a minha coxa.

— O que é isso tudo? — Olho para os papéis e fotografias na mesa.

Ele mexe em alguns pedaços de papel, empilhando-os.

— É um serviço — explica ele, colocando a foto de um homem de camiseta regata na pequena pilha. — Agora eu trabalho por conta própria.

Isso me surpreende.

— Como assim? — Acho que sei o que ele quer dizer, mas custo a acreditar.

Ele pega a pilha de papéis e bate as laterais na mesa para ajeitar todas as folhas. Então enfia o maço em um envelope de papel pardo.

— Eu saí da Ordem, Sarai. — Ele olha para mim.

Victor aperta as pontas do fecho prateado para fechar o envelope.

Meus pensamentos se embaralham, minhas palavras ficam confusas na ponta da língua. Luto, desesperada, para acreditar no que ele acaba de me contar.

— Victor... mas... não...

— Sim — confirma ele, virando-se para mim e me olhando bem nos olhos. — É verdade. Eu me rebelei contra a Ordem, contra Vonnegut, e agora eles estão atrás de mim. — Ele volta a mexer nos outros papéis na mesa. — Mas ainda preciso trabalhar, por isso agora trabalho sozinho.

Balanço a cabeça sem parar, sem querer engolir a verdade. A ideia de Victor sendo caçado por aqueles que o fizeram ser como ele é, por qualquer um, faz um pânico febril correr pelas minhas veias.

Solto um longo suspiro.

— Mas... mas e Fredrik? E Niklas? Victor, eu... O que está acontecendo?

Ele respira fundo e deixa a folha de papel cair suavemente na mesa, então reclina as costas no sofá.

— Fredrik ainda trabalha para a Ordem. Está lá dentro. Ele vigia Niklas e... — seus olhos cruzam com os meus por um instante —... tem me ajudado a manter você a salvo.

Antes que eu consiga fazer mais perguntas presas na garganta, Victor se levanta e continua a falar, enquanto fico sentada e o observo com a boca semiaberta e as pernas dobradas sobre a almofada.

— Como você sabe, quando alguém está sob suspeita de trair a Ordem, é imediatamente eliminado. Mas acredito que Niklas deixou Fredrik vivo e não transmitiu suas preocupações a Vonnegut pelo simples fato de que Niklas está usando Fredrik para me encontrar. Assim como deixou você viva todo este tempo, esperando que um dia você o levasse a mim.

O que mais me choca não é o que Victor diz, mas o que ele deixa de fora. Tiro as duas pernas de cima do sofá e pressiono os pés no chão de madeira, apoiando as mãos nas almofadas.

— Victor, o que você está me dizendo? Quer dizer que... Niklas continua com Vonnegut?

Espero que não seja isso que ele esteja tentando me dizer. Espero de todo o coração que minha decisão de deixar Niklas vivo aquele dia no hotel, quando ele atirou em mim, não tenha sido o maior erro da minha vida.

Os olhos de Victor vagam para a porta de vidro, e sinto que uma espécie de sofrimento infinito o consome, mas ele não deixa transparecer.

— Você estava lá. Eu disse para o meu irmão que, se ele decidisse continuar na Ordem caso eu resolvesse sair, eu não ficaria bravo com ele. Dei a ele a minha palavra, Sarai. — Victor vai até a porta de vidro, cruza os braços e olha para a piscina azul iluminada que reluz sob o céu cinzento. — Agora é hora de Niklas brilhar, e não vou tirar isso dele.

— Que absurdo! — Salto do sofá com os punhos fechados. — Ele está atrás de você, não é? — Cerro os dentes e contorno a mesinha de centro. — Caralho, é isso, Victor? Para provar seu valor para Vonnegut, ele foi encarregado de matar você. Aquele merda do seu irmão traiu você. Ele acha que vai pegar o seu lugar na Ordem. Puta que pariu, não acredito...

— É o que é, Sarai — interrompe Victor, virando-se para me encarar. — Mas, neste momento, Niklas é a menor das minhas preocupações.

Cruzando os braços, começo a andar de um lado para outro, olhando os veios claros e escuros da madeira sob meus pés descalços. Minhas unhas ainda têm o esmalte vermelho-sangue de duas semanas atrás.

— Por que saiu da Ordem?

— Eu tive que sair. Não tinha escolha.

— Não acredito.

Victor suspira.

— Vonnegut descobriu sobre a gente — conta ele, ganhando minha atenção total. — Foi Samantha... na noite em que ela morreu. Antes que eu saísse da Ordem, encontrei Vonnegut em Berlim, o primeiro encontro frente a frente que tive com ele em meses. Foi em uma sala de interrogatório. Quatro paredes. Uma porta. Uma mesa. Duas cadeiras. Somente eu e Vonnegut sentados frente a frente, com uma luz brilhando no teto acima de nós. — Victor olha para trás pela porta de vidro e depois continua: — No início, eu estava certo de que ele tinha me levado para lá com a intenção de me matar. Eu estava preparado...

— Para morrer? — Se Victor responder que sim, vou dar um tapa na cara dele.

— Não — responde ele, e consigo respirar um pouco melhor. — Eu fui para lá preparado. Raptei a mulher de Vonnegut antes de ir encontrá-lo. Fredrik a manteve em uma sala, pronto para fazer... as coisas dele, caso fosse necessário.

No mesmo instante, quero perguntar o que são as “coisas” de Fredrik, mas deixo a pergunta de lado por enquanto e digo:

— Se Vonnegut quisesse matar você, a esposa dele seria a sua moeda de troca.

De costas para mim, ele assente.

— Samantha estava sendo vigiada pela Ordem. Provavelmente há muito tempo.

— Eles desconfiavam da traição dela? Por que não a mataram, então, como fizeram com a mãe de Niklas, ou como queriam fazer com Niklas?

Victor se vira para me encarar de novo.

— Eles não desconfiavam dela, Sarai, ela era... — Victor respira fundo e aperta os lábios.

— Ela era o quê? — Chego mais perto dele. Não gosto do rumo que a conversa está tomando.

— Ela era mais leal à Ordem do que eu jamais poderia ter imaginado — conta ele, e isso fere meu coração. — Sentado naquela sala com Vonnegut, quanto mais ele falava, mais eu começava a entender que Samantha me traiu da mesma forma que Niklas. Vonnegut me contou coisas que ele não tinha como saber. Ele sabia que eu ajudei você. Em algum momento antes de morrer, naquela noite, Samantha conseguiu passar informações a Vonnegut sobre nossa estadia por lá.

— Não acredito nisso. — Golpeio o ar com a mão diante de mim. — Samantha morreu tentando me proteger. Já falamos sobre isso. Não acredito em você, Victor. Ela era uma boa pessoa.

— Ela era boa manipuladora, Sarai, nada mais do que isso.

Balanço a cabeça, ainda sem acreditar.

— Foi Niklas quem contou a Vonnegut que você me ajudou. Só pode ter sido. Niklas sabia até que você tinha me levado para a casa de Samantha.

— Sim, mas Niklas não sabia que eu fiz Samantha provar nossa comida antes de a gente comer, naquela noite. Assim que Vonnegut mencionou quanto eu ainda desconfiava dela depois de tantos anos, eu soube que ela havia me traído.

— Mas isso não faz nenhum sentido. — Começo a andar pela sala de novo, de braços cruzados e com uma das mãos apoiada no rosto. — Por que ela me protegeria de Javier?

— Porque ela não era leal a Javier.

Jogo as mãos para o ar, atônita com aquela revelação.

— Não dá para confiar em ninguém — digo, me jogando no sofá e olhando para o nada.

— Não, não dá — concorda Victor, e eu olho para cima, detectando um significado oculto por trás de suas palavras. — Agora talvez você entenda por que eu não me envolvo com ninguém. Não é só o trabalho, Sarai. As pessoas em geral não são confiáveis, especialmente na minha profissão, na qual a confiança é tão rara que não vale a pena perder tempo e esforço procurando por ela.

— Mas você parece confiar em Fredrik — observo, olhando para Victor do sofá. — Por que me trouxe logo aqui? Não aprendeu a lição com Samantha?

Sua expressão fica um pouco mais sombria, ressentida pela minha acusação.

— Eu nunca disse que confiava em Fredrik. Mas no momento ele é meu único contato dentro da Ordem e, nos últimos sete meses, não fez nada que não o tornasse digno de confiança. Ao contrário, fez tudo para provar sua lealdade a mim.

— Mas isso não significa que seja verdade.

— Não, você tem razão, mas logo vou saber com cem por cento de certeza se Fredrik é confiável ou não.

— Como?

— Você vai descobrir comigo.

— Por que se dar a esse trabalho? Você disse que a confiança é tão rara que não vale o esforço.

— Você faz muitas perguntas.

— Pois é, acho que faço. E você não responde o suficiente.

— Não, acho que não. — Victor abre um sorrisinho, e meu coração se derrete instantaneamente em uma poça de mingau.

Desvio os olhos dos dele e disfarço meus sentimentos.

— Não estou segura aqui — digo, encarando-o novamente.

— Você não está segura em lugar nenhum — corrige Victor. — Mas, enquanto estiver comigo, nada vai acontecer com você.

— Quem está falando merda agora?

Ele levanta uma sobrancelha.

— Você não é meu herói, lembra? — digo para refrescar a memória de Victor. — Não é minha alma gêmea que jamais deixará que nada de ruim aconteça comigo. Devo confiar nos meus instintos primeiro e em você, se eu decidir confiar, por último. Você me disse isso certa vez.

— E continua sendo verdade.

— Então como pode dizer que nada vai me acontecer se eu estiver com você?

A expressão de Victor fica vazia, como se pela primeira vez na vida alguém o tivesse deixado sem palavras. Olho para seu rosto silencioso e sem emoção, e apenas seus olhos revelam um traço de torpor. Tenho a sensação de que ele falou sem pensar, que manifestou algo que sente de verdade, mas que jamais quis que eu soubesse: Victor quer ser meu herói, vai fazer qualquer coisa, tudo o que puder para me manter a salvo. Quer que eu confie totalmente nele.

E confio.

Ele volta para perto de mim e se senta ao meu lado. O cheiro de seu perfume é fraco, como se ele fizesse questão de usar o mínimo possível. Estou tonta de desejo. Ansiosa para sentir novamente seu toque, saborear seus lábios quentes, deixar que ele me tome como fez algumas noites antes que nos víssemos pela última vez. Não tenho pensado em nada além de Victor nos últimos oito meses da minha vida. Enquanto durmo. Como. Vejo TV. Transo. Me masturbo. Tomo banho. Cada coisa que fiz desde que ele me deixou naquele hospital com Dina fiz pensando nele.

— Você acha que Fredrik vai contar a Niklas onde a gente está? — Mudo de assunto por medo de deixar transparecer muita coisa cedo demais.

— Acho que se ele fosse fazer isso teria contado a Niklas o pouco que sabia sobre o seu paradeiro há muito tempo, e Niklas já teria tentado matar você — responde Victor.

— Tem alguma coisa... estranha em Fredrik. Você não sente?

Victor passa a mão pelo meu cabelo úmido. O gesto faz meu coração disparar.

— Você tem grande sensibilidade para as pessoas, Sarai — comenta ele, levando a mão ao meu queixo. — Tem razão sobre Fredrik. — Ele passa o polegar pelo meu lábio inferior. Um calafrio percorre o meio das minhas pernas. — Ele é... como dizer?... desequilibrado, de certa forma.

Minha respiração acelera, e sinto meus cílios tocando meu rosto quando os lábios de Victor cobrem os meus.

— Desequilibrado de que forma? — pergunto, ofegante, quando ele se afasta.

De olhos fechados, percebo que ele está observando a curva do meu rosto e meus lábios e sinto a respiração que sai suavemente de suas narinas.

Cada pelinho minúsculo se eriça quando a outra mão de Victor sobe e encontra minha cintura nua por baixo da camiseta. Seus dedos longos dançam sobre a pele do meu quadril e param por ali.

Abro os olhos e vejo os dele me encarando.

— Algum problema? — pergunta ele, e sua boca roça a minha de novo.

— Não, eu... eu só não esperava isso.

— Esperava o quê?

Sinto seus dedos levantando o elástico da minha calcinha. Minha cabeça está girando, sinto meu estômago se transformar em um emaranhado de músculos, trêmulo e nervoso.

— Isso — respondo, piscando. — Você está diferente — acrescento, baixinho.

— Culpa sua — diz Victor, e então seus lábios devoram os meus.

Ele me deita no sofá e se encaixa entre as minhas pernas.

Seu celular vibra na mesinha de centro, e percebo quanto sou humana quando xingo Fredrik por estragar aquele momento, mesmo que seja para me avisar de que Dina está a salvo.


CONTINUA

CAPÍTULO UM

Sarai

Já faz oito meses que fugi da fortaleza no México onde fui mantida contra minha vontade por nove anos. Estou livre. Levo uma vida “normal”, fazendo coisas normais com gente normal. Não fui mais atacada, ameaçada nem seguida por ninguém que ainda queira me matar. Tenho uma “melhor amiga”, Dahlia. Tenho a coisa mais parecida com uma mãe que já conheci, Dina Gregory. O que mais eu poderia querer? Parece egoísmo desejar qualquer outra coisa. Mas, apesar de tudo o que tenho, algo não mudou: continuo vivendo uma mentira.

Deixei amigos na Califórnia: Charlie, Lea, Alex e... Bri... Não, espera, quero dizer Brandi. Meu ex-namorado, Matt, era abusivo, por isso voltei para o Arizona. Ele me perseguiu por muito tempo depois que terminamos. Consegui uma ordem judicial para mantê-lo afastado, mas não funcionou. Ele atirou em mim há oito meses, mas não posso provar porque não cheguei a vê-lo. E tenho muito medo de denunciá-lo à polícia.

Claro que tudo isso é mentira.

São os pedaços da minha vida que acobertam o que realmente aconteceu comigo. Os pretextos para eu ter desaparecido aos 14 anos e ter ido parar em um hospital da Califórnia com um ferimento a bala. Jamais vou poder contar a Dina, Dahlia ou ao meu namorado, Eric, o que aconteceu de verdade: que fui levada para o México pela péssima versão de mãe que eu tinha, para morar com um chefão do tráfico. Jamais vou poder contar que fugi daquele lugar depois de nove anos e matei o homem que me manteve prisioneira por toda a minha adolescência. Quer dizer, claro que eu poderia contar a alguém, mas, se fizesse isso, só estaria pondo Victor em perigo.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/2_O_RETORNO_DE_IZABEL.jpg

 

Victor.

Não, nunca vou poder contar que um assassino me ajudou a fugir, ou que testemunhei Victor matando várias pessoas, inclusive a esposa de um empresário famoso e importante de Los Angeles. Nunca vou poder contar que, depois de tudo pelo que passei, depois de tudo o que vi, o que mais quero é fazer as malas e voltar para aquela vida perigosa. A vida com Victor.

Até hoje, falar o nome dele me acalma. Às vezes, quando estou acordada na cama à noite, murmuro seu nome só para ouvi-lo, porque preciso. Preciso dele. Não consigo tirá-lo da cabeça. Já tentei. Porra, e como tentei. Mas, não importa o que eu faça, continuo vivendo cada dia da minha vida pensando nele. Se está me vigiando. Se pensa em mim tanto quanto penso nele. Se ainda está vivo.

Pressiono o travesseiro contra a cabeça e fecho os olhos, imaginando Victor. Às vezes, é só assim que consigo gozar.

Eric aperta minhas coxas com as mãos e me imobiliza na cama, com o rosto enfiado no meio das minhas pernas.

Arqueio o quadril contra ele, roçando de leve contra sua língua frenética, até que ele faça meu corpo todo enrijecer e minhas coxas tremerem ao redor da sua cabeça.

— Meu Deus... — Estremeço enquanto gozo, então deixo os braços caírem entre as pernas, afundando os dedos no cabelo preto de Eric. — Caramba...

Sinto os lábios de Eric tocando minha barriga um pouco acima da pélvis.

Olho para o teto como sempre faço depois de um orgasmo, pois a culpa que sinto me deixa com vergonha de olhar para Eric. Ele é um cara superlegal. Meu namorado sexy de 27 anos, cabelo preto e olhos azuis, gentil, encantador, engraçado e perfeito. Perfeito para mim se eu nunca tivesse conhecido Victor Faust.

Estou arruinada pelo resto da vida.

Enxugo as gotas de suor da testa e Eric sobe pela cama, deitando-se ao meu lado.

— Você sempre faz isso — diz ele, brincando, enquanto cutuca minhas costelas com os nós dos dedos.

Como sinto muitas cócegas, eu me encolho e me viro para encará-lo. Sorrio com ternura e passo um dedo por seu cabelo.

— O que eu sempre faço?

— Esse negócio de ficar em silêncio. — Eric segura meu queixo entre o polegar e o indicador. — Eu faço você gozar e você fica bem quieta durante um tempão.

Eu sei e sinto muito, mas preciso apagar o rosto de Victor da minha cabeça antes de conseguir olhar você nos olhos. Sou uma pessoa horrível.

Eric me dá um beijo na testa.

— Isso se chama recuperação — brinco, beijando os dedos dele. — É totalmente inofensivo. Mas você deveria interpretar como um bom sinal. Você sabe o que está fazendo — digo, retribuindo o cutucão nas costelas.

E ele sabe mesmo o que está fazendo. Eric é ótimo na cama. Mas ainda sou emocionalmente muito ligada... viciada... em Victor, e tenho a sensação de que sempre serei.

Só consegui seguir a vida e me abrir a outros relacionamentos cinco meses depois que Victor foi embora. Conheci Eric no trabalho, na loja de conveniência. Ele comprou um saco de biscoitos e um energético. Depois disso, ele aparecia na loja duas, às vezes três vezes por semana. Eu não queria nada com ele. Queria Victor. Mas comecei a perder a esperança de que Victor um dia fosse voltar para mim.

Eric tenta passar um braço ao redor do meu corpo, mas me levanto casualmente e visto a calcinha. Ele não desconfia de nada, o que é bom. Não sinto vontade de ficar abraçadinha, mas a última coisa que quero é magoá-lo. Ele ergue os braços e entrelaça os dedos atrás da cabeça. Olha para mim, do outro lado do quarto, com um sorriso sedutor. Sempre faz isso quando não estou completamente vestida.

— Sarai.

— Oi. — Visto a camiseta e ajeito o rabo de cavalo.

— Eu sei que está em cima da hora — diz Eric —, mas queria ir com você e Dahlia para a Califórnia amanhã.

Merda.

— Mas você não disse que não ia conseguir folga no trabalho? — pergunto, vestindo o short e calçando os chinelos.

— Quando você perguntou se eu queria ir, não ia dar mesmo. Mas contrataram um funcionário novo, e meu chefe decidiu me dar folga.

Isso é uma péssima notícia. Não porque eu não o queira por perto — gosto de Eric, apesar da minha incapacidade de esquecer Victor Faust —, mas minha viagem de “férias” à Califórnia amanhã não é para fazer turismo, curtir a noite nem fazer compras na Rodeo Drive.

Estou indo até lá para matar um homem. Ou melhor, tentar matar um homem.

Já é ruim que Dahlia vá também, e já vai ser difícil guardar segredo de uma pessoa. Imagine duas.

— Você... não parece animada — comenta Eric, seu sorriso morrendo aos poucos.

Abro um sorriso largo e balanço a cabeça, voltando para perto dele e me sentando na beira da cama.

— Não, não, eu estou animada. É que você me pegou de surpresa. A gente vai sair às seis da manhã. É daqui a menos de oito horas. Você já fez as malas?

Eric dá uma risada e se estica na minha cama, me puxando para si. Eu me sento perto de sua cintura, apoiando um braço no colchão do outro lado dele, com os pés para fora da cama.

— Bom, eu só fiquei sabendo hoje à tarde, antes de sair do trabalho — explica ele. — Eu sei, está em cima da hora, mas só preciso enfiar umas coisas na mala e estou pronto.

Ele estende a mão e afasta do meu rosto os fios de cabelo que escaparam do rabo de cavalo.

— Ótimo! — minto, com um sorriso igualmente falso. — Então acho que está combinado.

Dina acorda antes de mim, às quatro da manhã. O cheiro de bacon é o que me desperta. Levanto da cama e entro debaixo do chuveiro antes de me sentar à mesa da cozinha. Um prato vazio já está à minha espera.

— Gostaria que você tivesse escolhido algum outro lugar para passar sua folga, Sarai — afirma Dina.

Ela se senta do outro lado da mesa e começa a encher seu prato. Pego alguns pedaços de bacon do monte e ponho no meu.

— Eu sei — digo —, mas, como falei para você, não vou deixar que meu ex me impeça de ver meus amigos.

Ela balança a cabeça cada vez mais grisalha e suspira.

Passei do limite em algum momento com meu amontoado de mentiras. Quando Victor levou Dina para o hospital em Los Angeles, depois que o irmão dele, Niklas, atirou em mim, ela não fazia ideia do que tinha acontecido. Só sabia que eu tinha levado um tiro. Demorei alguns meses até me sentir segura o suficiente para falar com ela sobre isso. Quer dizer, depois de bolar a história que eu ia contar. Foi aí que inventei o lance do ex-namorado violento. Eu deveria ter dito que fui assaltada. Por um desconhecido. A mentira seria muito mais fácil de manter. Agora que ela sabe que vou voltar para Los Angeles, está morrendo de preocupação, e já faz uns dois meses. Eu nem deveria ter contado que ia voltar lá.

Termino de comer o bacon e um pouco de ovos mexidos, junto com um copo de leite.

Dahlia e Eric chegam juntos assim que termino de escovar os dentes.

— Vamos logo, a gente precisa pegar a estrada — chama Dahlia, me apressando da porta. Seu cabelo castanho-claro está preso no alto da cabeça em um coque desalinhado de quem acabou de acordar.

Eu me despeço de Dina com um abraço.

— Eu vou ficar bem — digo a ela. — Prometo. Não vou nem chegar perto de onde ele mora.

Desta vez, chego até a imaginar um rosto masculino ao falar de alguém que não existe. Acho que já interpreto esse papel há tanto tempo que “Matt” e todos esses meus “amigos” de Los Angeles, de quem falo para todo mundo como se fossem reais, se tornaram reais no meu subconsciente.

Dina força um sorriso em seu rosto preocupado, e suas mãos soltam meus cotovelos.

— Você liga assim que chegar?

— Assim que eu entrar no quarto do hotel, ligo — respondo, assentindo.

Ela sorri e eu a abraço mais uma vez, antes de segui-los até o carro de Dahlia, que está esperando. Eric guarda minha mala no bagageiro, junto com as deles, e se senta no banco de trás.

— Hollywood, aí vamos nós! — exclama Dahlia.

Finjo metade da empolgação dela. Ainda bem que está muito cedo, senão Dahlia poderia intuir o verdadeiro motivo da minha falta de entusiasmo. Estico os braços para trás e bocejo, apoiando a cabeça no banco do carro. Sinto a mão de Eric no meu pescoço quando ele começa a massagear meus músculos.

— Não sei por que você quer ir a Los Angeles de carro — diz Dahlia. — Se a gente fosse de avião, não ia precisar acordar tão cedo. E você não estaria tão cansada e rabugenta.

Minha cabeça cai para a esquerda.

— Não estou rabugenta. Ainda mal falei com você.

Ela dá um sorrisinho.

— Exatamente. Sarai sem falar significa Sarai rabugenta.

— E se recuperando — acrescenta Eric.

Meu rosto fica vermelho e eu estico a mão atrás da cabeça, dando um tapinha de brincadeira na dele, que está fazendo maravilhas no meu pescoço. Fecho os olhos e vejo Victor.

Não de propósito.

Chegamos a Los Angeles depois de quatro horas na estrada. Eu não podia ir de avião porque não conseguiria levar minhas armas. É claro que Dahlia não pode saber disso. Ela acha apenas que quero apreciar a paisagem.

Tenho sete dias para fazer o que vim fazer. Isto é, se eu conseguir. Pensei no meu plano durante meses, em como vou fazer isso. Sei que é impossível entrar na mansão Hamburg. Para isso, eu precisaria ter um convite e socializar em público com o próprio Arthur Hamburg e seus convidados. Ele viu meu rosto. Bem, tecnicamente, viu mais do que meu rosto. Mas sinto que os acontecimentos daquela noite, quando Victor e eu enganamos Hamburg para que ele nos convidasse para ir ao seu quarto e conseguíssemos matar sua esposa, são algo que ele jamais vai esquecer, nem os mínimos detalhes.

Se tudo der certo, uma peruca loura platinada de cabelo curto e maquiagem escura e pesada vão esconder aquela identidade de cabelo longo e castanho que Hamburg reconheceria assim que eu aparecesse.


CAPÍTULO DOIS

Sarai

Passo o dia todo com Eric e Dahlia, fingindo me divertir para passar o tempo. Saímos para almoçar e para fazer um tour por Hollywood com um guia e visitar um museu antes de voltarmos para o hotel, exaustos. Quer dizer, finjo estar exausta o suficiente para querer dar o dia por encerrado. Na verdade, o que preciso é me preparar para ir ao restaurante de Hamburg ainda hoje.

Dahlia já acha que tem algo errado comigo.

— Você está ficando doente? — pergunta ela, estendendo a mão entre nossas espreguiçadeiras à beira da piscina e sentindo a temperatura da minha testa.

— Estou ótima — respondo. — Só cansada porque levantei muito cedo. E quando foi a última vez que andei tanto assim em um dia só?

Dahlia volta a se recostar em sua espreguiçadeira e ajeita os óculos de sol grandes e redondos no rosto.

— Bom, espero que não esteja cansada amanhã — diz Eric, do outro lado. — Tem tantas coisas que eu quero fazer. Não venho para Los Angeles desde que meus pais se divorciaram.

— Pois é. É a minha primeira vez aqui em dois anos — afirma Dahlia.

Um adolescente pula na piscina e a água respinga em nós. Ergo as costas da espreguiçadeira e agito a revista que estava lendo para tirar as gotas. Ponho os óculos escuros no alto da cabeça. Jogo as pernas para o lado e fico de pé.

— Acho que vou voltar para o quarto e tirar uma soneca — anuncio, pegando minha bolsa do chão.

Eric se ergue também e tira os óculos escuros.

— Se quiser, vou com você — oferece ele.

Agito a mão para ele, pedindo que não se levante.

— Não, fica aí e faz companhia para a Dahlia — sugiro, ajeitando a bolsa no ombro. Abaixo os óculos escuros de novo para que ele não perceba minha mentira.

— Tem certeza de que você está bem? — pergunta Dahlia. — Sarai, você está de férias, lembra? Veio para cá se divertir, não para cochilar.

— Acho que vou estar cem por cento amanhã. Só preciso de um banho quente e demorado e de uma boa noite de sono.

— Ok, vou acreditar — diz Dahlia. — Mas nem vem com doença para o meu lado. — Ela aponta o dedo para mim, com ar severo.

Eric fecha os dedos em torno do meu pulso e me puxa para perto.

— Tem certeza de que não quer que eu vá? — Ele me beija e eu correspondo antes de me levantar de vez.

— Tenho — respondo, baixinho, e saio na direção do elevador.

Assim que entro no quarto, tranco a porta com a corrente para que Eric e Dahlia não entrem de surpresa, jogo a bolsa no chão e abro meu laptop, digitando a senha. Enquanto o laptop inicia, olho pela janela e vejo meus amigos, figuras pequenas daquela distância, ainda à beira da piscina. Eu me sento diante da tela e, provavelmente pela centésima vez, olho cada página do site do restaurante de Hamburg, verificando de novo o horário de funcionamento e passando os olhos pelas fotos profissionais do lugar, dentro e fora. Na verdade, nada disso me ajuda muito com o que pretendo fazer, mas olho tudo de novo todo dia, de qualquer maneira.

Derrotada, bato a palma da mão com força no tampo da mesa.

— Droga! — exclamo, desabando na poltrona enquanto passo as mãos pelo cabelo.

Ainda não sei como vou conseguir ficar a sós com Hamburg sem ser vista. Sei que estou dando um passo maior do que a perna. Sei disso desde que tive essa ideia maluca, mas também sei que, se ficar apenas pensando a respeito, nunca vou passar dessa fase.

Vim para cá com um plano: entrar disfarçada no restaurante e agir como qualquer outro cliente. Sondar o lugar por uma noite. Saber onde ficam as saídas. As entradas para outras partes do prédio. Os banheiros. Minha prioridade número um, contudo, é encontrar a sala de onde Hamburg observa do alto seus clientes e ouve a conversa deles pelo minúsculo microfone escondido no arranjo de cada mesa. Então pretendo me enfiar na sala e cortar a garganta daquele porco.

Contudo, agora que estou aqui, a menos de seis quadras do restaurante, e agora que o tempo está passando tão depressa, estou menos confiante. Isso não é um filme. Sou uma idiota por achar que posso adentrar um lugar desses sem ser vista, tirar a vida de um homem sem chamar atenção e fugir sem ser capturada.

Apenas Victor conseguiria fazer algo assim.

Bato no tampo da mesa de novo, mais de leve desta vez, fecho o laptop e me levanto. Ando de um lado para outro no carpete vermelho e verde. E bem quando resolvo seguir pelo corredor para o quarto separado que reservei sem Dahlia e Eric saberem, a porta se abre um pouco, mas é travada pela corrente.

— Sarai? — chama Dahlia do outro lado. — Vai deixar a gente entrar?

Suspiro fundo e destranco a porta.

— Por que a corrente? — pergunta Eric, entrando atrás de Dahlia.

— Força do hábito.

Eu me jogo na ponta da cama king-size.

Os dois deixam suas coisas no chão. Dahlia se senta à mesa, ao lado da janela, e Eric se deita atravessado na cama ao meu lado, cruzando as pernas na altura dos calcanhares.

— Pensei que você ia tirar uma soneca — diz Dahlia.

Ela passa os dedos com cuidado pelo cabelo úmido, fazendo caretas quando se depara com alguma mecha mais embaraçada.

— Dahlia — digo, olhando para os dois. — Eu subi agora há pouco. Pensei que vocês iam ficar na piscina mais um tempo.

Espero ter conseguido disfarçar o aborrecimento na minha voz por eles terem vindo me encontrar tão cedo. Não consigo evitar: estou estressada demais, além de preocupada com a simples presença dos dois aqui comigo. Não quero que eles se machuquem nem que se envolvam de forma alguma com meu motivo para estar aqui.

— A gente pode sair e deixar você sozinha, se quiser — sugere Eric, baixinho, atrás de mim.

Eu me arrependo na mesma hora do que disse, porque é óbvio que não disfarcei o aborrecimento tão bem quanto esperava.

Inclino a cabeça para trás e suspiro, esticando o braço para tocar o tornozelo dele.

— Desculpa — digo, sorrindo para Dahlia. — Sabe, eu... — Então, de repente, uma desculpa perfeitamente plausível para o modo como tenho agido surge na minha cabeça, e a torneira das mentiras se abre. — Eu só fico meio nervosa por estar de volta a Los Angeles.

Dahlia faz cara de “ah, entendi”, empurra os pés de Eric para o lado e se senta perto de mim. Ela passa o braço por cima dos meus ombros e segura meu antebraço.

— Imaginei que o problema fosse esse.

Percebo que ela olha de relance para Eric e tenho a impressão de que foi sobre isso que os dois falaram enquanto ficaram na piscina, depois que fui embora.

Aposto que também foi por isso que decidiram subir tão cedo para me ver.

— A gente queria ver como você estava — acrescenta Eric atrás de mim, confirmando minha suspeita.

Sinto a cama se mexer quando ele se senta.

Eu me levanto antes que ele consiga me abraçar. É nesse exato momento que me dou conta de como tenho feito isso com frequência no último mês. Não sei por quanto tempo mais vou conseguir enganá-lo. Sei que deveria simplesmente contar o que sinto, que não gosto tanto de Eric quanto ele gosta de mim. Mas não consigo dizer a verdade. Eu precisaria inventar mais uma mentira, e estou tão atolada em mentiras que me sinto afogada nelas.

Ao mesmo tempo, deixei nossa relação durar tanto porque eu queria de verdade sentir por ele algo tão profundo quanto o que ele parece sentir por mim. Queria seguir em frente, esquecer Victor e ser feliz com a vida que ele me deixou.

Mas não consigo. Não consigo mesmo...

— Ele nem vai saber que você está aqui — diz Eric sobre “Matt”. — Além disso, mesmo que ele descobrisse, eu ia encher o cara de porrada assim que o visse.

Esboço um sorriso para Eric.

— Eu sei que você faria isso — digo, mas me sinto ainda pior, porque os únicos dois amigos que tenho no mundo não fazem nem ideia de quem sou.

Cruzo os braços, vou até a janela e olho para fora.

— Sarai — chama Dahlia. — Não queria dizer isso, mas, se você está tão preocupada com a possibilidade de Matt descobrir que você está em Los Angeles, acho que não é boa ideia visitar seus amigos aqui.

— Eu sei, você tem razão. Sei que eles não contariam para Matt, mas acho que é melhor eu ficar só com vocês dois enquanto estivermos aqui.

Eu me viro para encará-los.

— É um bom plano — diz Eric, com um sorriso radiante.

É um bom plano, com certeza, porque agora não preciso mais inventar outra desculpa para não apresentar os dois aos meus amigos que não existem.

Dahlia se aproxima de mim.

— A gente devia ter ido para a Flórida ou algum lugar assim, hein?

Olho pela janela de novo.

— Não — respondo. — Adoro esta cidade. E sei que vocês queriam muito vir para cá. — Dou um sorriso rápido. — Sugiro que a gente curta ao máximo esta semana.

Ela me empurra com o ombro de brincadeira.

— Essa é a Sarai que eu conheço — diz Dahlia, sorrindo.

É, só que não sou essa pessoa...

Ela vai até Eric e o puxa pelo braço, levantando-o da cama.

— Vamos sair daqui e deixar a mocinha descansar.

Eric se levanta e se aproxima de mim. Então pega meus braços e me vira para encará-lo. Com aqueles olhos azul-bebê, ele faz a melhor expressão amuada que consegue.

— Se precisar de mim para qualquer coisa, pode me chamar que eu venho.

Concordo com a cabeça e lhe ofereço um sorriso sincero. Ele merece, por ser tão legal comigo.

— Pode deixar.

Então eu os empurro porta afora com as duas mãos.

— Eu diria para vocês não se divertirem muito sem mim, mas isso seria pedir demais.

Dahlia ri baixinho ao sair para o corredor.

— Não, não é pedir muito. — Ela levanta dois dedos. — Palavra de escoteiro.

— Acho que não é assim que se faz, Dahl — diz Eric.

Ela faz um gesto para dispensar as palavras dele.

— Trate de dormir — sugere Dahlia. — Porque amanhã você vai precisar estar novinha em folha.

— De acordo — digo, assentindo.

— Tchau, amor — diz Eric antes de eu fechar a porta.

Fico com as costas apoiadas na porta e solto um suspiro longo e profundo.

Fingir é difícil demais. Bem mais difícil do que simplesmente ser eu mesma, por mais anormal e imprudente que eu seja.

— Eu sei o que preciso fazer — digo em voz alta.

Falar sozinha é minha nova mania, porque me ajuda a visualizar e entender melhor as coisas.

Volto para a janela e olho a cidade de Los Angeles, com os braços cruzados.

— Preciso de um disfarce, mas não para me esconder de Hamburg. Só das câmeras e de qualquer outra pessoa. Eu quero que Hamburg me veja. Só assim vou conseguir entrar.


CAPÍTULO TRÊS

Sarai

Dahlia e Eric só voltam para o quarto algumas horas mais tarde, depois de escurecer. Eu já tinha tomado banho, vestido short e camiseta e deixado a luz apagada para parecer que estava dormindo. Assim que ouvi o cartão passando pela porta, pulei na cama e me espalhei pelo colchão, como sempre faço quando durmo de verdade. Eric entrou na ponta dos pés, tentando não “me acordar”, mas me virei, soltei um resmungo e abri os olhos para mostrar que acordei. Ele pediu desculpas e perguntou se eu queria ir com ele e Dahlia a uma boate ali perto, insistindo que, se eu não fosse, ele também não iria. Mas logo rejeitei essa ideia. Percebi que ele queria muito ir e não posso culpá-lo: se eu estivesse no lugar dele, não iria querer ficar em um quarto escuro de hotel às oito da noite de uma sexta-feira, em uma das cidades mais animadas dos Estados Unidos.

Eric e Dahlia saírem era exatamente do que eu precisava. Passei aquelas duas horas inteiras tentando inventar uma desculpa para explicar a eles por que eu ia sair, aonde iria e por que eles não poderiam ir junto.

Eles resolveram isso para mim.

Minutos após Eric sair do quarto, espero Dahlia — em seu próprio quarto, ao lado do nosso — tirar o biquíni e se vestir. Pelo olho mágico da minha porta, eu os vejo indo embora pelo corredor. Conto até cem enquanto ando de um lado para outro sem parar. Então pego minha bolsa e vou até a porta. Ando depressa pelo corredor na direção oposta e chego ao quarto secreto, do outro lado do prédio.

Com certa paranoia de ser flagrada, vasculho minha bolsa e encontro tudo, menos a chave do quarto. Enfim consigo senti-la entre os dedos e me apresso para entrar, travando a porta com a corrente. Abro a mala ao pé da cama e tiro minha peruca curta platinada, passando os dedos para ajeitar as mechas desalinhadas, e então a deixo sobre o abajur ao lado para que não perca a forma.

Visto um Dolce & Gabbana curtinho e me maquio com cores escuras e pesadas, o que, depois de passar um tempão praticando em casa, faço bem. Então calço as sandálias de salto alto. Andar de salto é outra coisa que passei muito tempo tentando aprender. Meu alter ego, Izabel Seyfried, saberia andar de salto e o faria bem. Por isso, eu precisava acompanhar.

Em seguida, molho o cabelo e o divido em duas partes atrás. Enrolo cada metade e cruzo uma sobre a outra na nuca. Vários grampos depois, meu longo cabelo castanho está bem preso no couro cabeludo. Visto a touca da peruca e depois a própria peruca, ajustando-a por muito tempo até deixar tudo perfeito.

Por fim, prendo uma bainha de punhal em torno da coxa e a cubro com o tecido do vestido.

Fico de pé diante do espelho de corpo inteiro e me avalio de todos os ângulos possíveis. Estar loura é estranho. Satisfeita, pego a bolsinha preta e a enfio debaixo do braço, com a pequena pistola formando certo volume nela. Estico o braço para girar a maçaneta, mas deixo minha mão cair junto ao corpo.

“Que droga eu estou fazendo?”

O que precisa ser feito.

“E por que eu estou fazendo isso?”

Porque preciso.

Não consigo tirar da cabeça as coisas que aquele homem confessou, as pessoas que matou por causa de um fetiche sexual doentio. Todas as noites desde que Victor me deixou, quando fecho os olhos, vejo o rosto de Hamburg e aquele sorriso de gelar o sangue que ele abriu quando me curvei sobre a mesa, exposta na frente dele. Vejo o rosto de sua esposa, esquelético e combalido, seus olhos fundos turvados pela resignação. Ainda sinto até o fedor da urina que secou em suas roupas e no catre infestado onde ela dormia, naquele quarto escondido.

Meu peito se enche de ar e eu o prendo por vários segundos, antes de soltar um longo suspiro.

Não posso esquecer. A necessidade de matá-lo é como uma coceira no meio das costas. Não posso alcançar naturalmente, mas vou me curvar e torcer os braços até doerem para coçar.

Não posso esquecer...

E talvez... só talvez também acabe chamando a atenção de um certo assassino que não consigo me obrigar a esquecer.

Assim que passo pela porta, deixo Sarai para trás e me torno Izabel por uma noite.

Por não ter pensado de antemão na importância de ao menos alugar um carro chique, salto do táxi a duas quadras do restaurante e ando o resto do caminho. Izabel jamais seria vista andando de táxi.

— Mesa para um? — pergunta o recepcionista assim que entro no restaurante.

Inclino a cabeça e olho para ele com um ar irritado.

— Algum problema? Não posso fazer uma refeição sozinha? Ou você está dando em cima de mim? — Abro um sorrisinho e inclino a cabeça para o outro lado. Ele está ficando nervoso. — Você gostaria de jantar comigo... — olho para o nome bordado no paletó — ... Jeffrey? — Chego mais perto. Ele dá um passo constrangido para trás.

— Hã... — Ele hesita. — Peço desculpas, senhora...

Recuo, trincando os dentes.

— Nunca me chame de senhora — digo com rispidez. — Me leve até uma mesa. Para um.

Ele assente e pede que eu o siga. Quando chego à minha mesinha redonda com duas cadeiras, no meio do restaurante, me sento e deixo a bolsa ao lado. Um garçom se aproxima quando o recepcionista se afasta e me apresenta a carta de vinhos. Eu a rejeito com um movimento dos dedos.

— Quero apenas água com uma rodela de limão.

— Pois não, senhora — diz ele, mas deixo passar.

Enquanto o garçom se afasta, começo a examinar o lugar. Há uma placa indicando a saída à minha esquerda, bem longe, perto do corredor. Há outra à minha direita, próxima à escada que leva para o segundo piso. O restaurante está praticamente igual à primeira vez que vim: escuro, não muito cheio e bastante silencioso, embora desta vez eu ouça jazz baixinho vindo de algum lugar. Ao observar o recinto, paro de repente ao ver a mesa à qual me sentei com Victor quando vim com ele, meses atrás.

Eu me perco na memória, vendo tudo exatamente como aconteceu. Quando olho para as duas pessoas sentadas no outro lado do salão, só consigo me ver com Victor:

— Venha cá — diz ele, em um tom de voz mais delicado.

Deslizo os poucos centímetros que nos separam e me sento encostada a ele.

Seus dedos dançam pela minha nuca quando ele puxa minha cabeça para perto de si. Meu coração bate descompassado quando ele roça os lábios na lateral do meu rosto. De repente, sinto sua outra mão entrando pelo meio das minhas coxas e subindo por baixo do vestido. Minha respiração para. Devo abrir as pernas? Devo ficar imóvel e travá-las? Sei o que quero fazer, mas não sei o que devo fazer, e minha mente está a ponto de desistir.

— Tenho uma surpresa para você esta noite — murmura ele no meu ouvido.

Sua mão se aproxima mais do calor no meio das minhas pernas.

Gemo baixinho, tentando não deixar que ele perceba, embora tenha certeza absoluta de que percebeu.

— Que tipo de surpresa? — pergunto, com a cabeça inclinada para trás, apoiada em sua mão.

— Vai querer algo mais? — Ouço uma voz, e sou arrancada do meu devaneio.

O garçom está segurando o cardápio. Minha água com uma rodela de limão na borda do copo já está diante de mim.

Um pouco confusa de início, apenas assinto, mas faço que não em seguida.

— Ainda não sei — respondo, enfim. — Deixe o cardápio. Talvez eu peça mais tarde.

— Pois não — diz o garçom.

Ele deixa o cardápio na mesa e vai embora.

Olho para a varanda e para as mesas encostadas no balaústre requintado. Onde Hamburg pode estar? Sei que ele está no andar de cima porque Victor disse que ele ficava por lá. Mas onde? Eu me pergunto se ele já me viu, e no mesmo instante meu estômago se embrulha de nervoso.

Não, não posso parecer nervosa.

Endireito as costas na cadeira e tomo um gole da água. Deixo o dedo mindinho levantado, o que me faz parecer muito mais rica, ou apenas mais esnobe. Fico observando os clientes indo e vindo, escuto sua conversa supérflua e me pego imaginando qual dos casais que estão ali poderia acabar na mansão de Hamburg no fim de semana, ganhando muito dinheiro para deixar que ele os veja foder.

Então olho para o arranjo de flores vermelhas em um pequeno vaso de vidro no centro da minha mesa. Pego o celular na bolsa, finjo digitar um número e o coloco perto do ouvido, para que ninguém ache que estou falando sozinha.

— Este recado é para Arthur Hamburg — digo em voz baixa, inclinando-me um pouco para a frente a fim de que o microfone escondido no vaso de flores capte minha voz. — Com certeza você se lembra de mim, não é? Izabel Seyfried. Há quanto tempo, não?

Com cuidado, olho para os lados, esperando ver um ou dois homens parrudos de terno se aproximando de mim com armas em punho.

— Não estou sozinha — continuo —, por isso nem pense em fazer alguma idiotice. A gente precisa conversar.

Olhando para a varanda acima de mim, tento descobrir onde ele pode estar, torcendo para que esteja ali. Alguns minutos tensos se passam, e, quando começo a pensar que a noite foi em vão e que eu estava mesmo falando sozinha, noto um movimento no piso superior, logo acima da saída à minha direita. Meu coração bate forte quando vejo a figura alta e escura sair das sombras e descer a escada.

Eu me lembro desse homem de ombros largos, cabelo grisalho e uma covinha no meio do queixo. É o gerente do restaurante, Willem Stephens, que já encontrei aqui uma vez.

Ele se aproxima da minha mesa sem expressar nenhuma emoção, com as mãos enormes cruzadas à frente, as costas retas, o queixo anguloso imóvel.

— Boa noite, srta. Seyfried. — A voz dele é profunda e sinistra. — Posso perguntar onde está seu dono?

Levanto os olhos para encará-lo, dou um sorrisinho, tomo um gole da minha água e devolvo o copo à mesa, sem pressa. Cada fibra do meu ser está gritando, dizendo como fui idiota em vir até aqui. Por mais que eu saiba que é verdade, não importa. Não é o medo que me faz tremer por dentro, é a adrenalina.

— Victor Faust não é meu dono — explico, com calma. — Mas ele está aqui. Em algum lugar. — Um sorriso tênue e dissimulado toca meus lábios.

Os olhos de Stephens percorrem o salão sutilmente e voltam a me encarar.

— Por que está aqui? — pergunta ele, perdendo um pouco o ar de gerente sofisticado.

— Tenho negócios a discutir com Arthur Hamburg — respondo, confiante. — É do maior interesse dele marcar um encontro privado comigo. Aqui. Hoje. De preferência agora.

Tomo outro gole.

Noto que o pomo de adão de Stephens se move quando ele engole em seco, bem como os contornos de seu queixo quando ele cerra os dentes. Ele olha para o lugar de onde veio, no andar de cima, e percebo um aparelhinho preto escondido em seu ouvido esquerdo. Parece que ele está ouvindo alguém falar. Eu chutaria que é Hamburg.

Ele me encara de novo, com os olhos escuros e cheios de ódio, mas mantém o semblante inexpressivo com a mesma perfeição de Victor.

Ele descruza os braços, estende a mão direita para mim e diz:

— Por aqui.

Ele só deixa os braços penderem, relaxados, quando me levanto. Sigo Stephens pelo restaurante e escada acima, para o piso da varanda.

Apenas duas coisas podem acontecer: ou esta será minha primeira noite como assassina ou a última da minha vida.


CAPÍTULO QUATRO

Sarai

— Se encostar em mim — digo para o guarda-costas de terno à porta da sala particular de Hamburg —, enfio suas bolas em um moedor de carne.

As narinas do segurança se dilatam e ele olha para Stephens.

— Você solicitou uma reunião com o sr. Hamburg — diz Stephens atrás de mim. — É claro que vamos revistá-la antes para verificar se está armada.

Droga!

Calma. Fique calma. Faça o que Izabel faria.

Respiro fundo, encarando-os com desprezo e um ar ameaçador. Então jogo minha bolsinha preta no segurança. Ele pega a bolsa quando ela bate em seu peito.

— Acho que está bem claro que eu não conseguiria esconder uma arma em um vestido como este, a menos que a enfiasse na boceta — digo, olhando para Stephens. — Minha arma está na bolsa. Mas nem pense em tocar...

— Deixem a moça entrar — ordena da porta uma voz familiar.

É Hamburg, ainda balofo e grotesco como antes, usando um terno imenso que parece em vias de estourar se ele respirar fundo demais.

Abro um leve sorriso para o segurança, que me encara com olhos assassinos. Conheço esse olhar, até demais. O homem tira a pistola e me devolve a bolsa.

— Sr. Hamburg — diz Stephens —, eu deveria ficar na sala com o senhor.

Hamburg balança a papada, rejeitando a sugestão.

— Não, vá cuidar do restaurante. Se essas pessoas tivessem vindo me matar, não seriam tão óbvias. Eu vou ficar bem.

— Pelo menos deixe Marion à porta — sugere Stephens, olhando para o guarda-costas.

— Sim — concorda Hamburg. — Você fica aqui. Não deixe ninguém interromper nossa... — diz ele, me olhando com frieza — reunião, a menos que eu peça. Se em algum momento você não ouvir minha voz por mais de um minuto, entre na sala. Como precaução, é claro.

Ele abre um sorrisinho para mim.

— É claro. — Imito Hamburg e sorrio também.

Ele dá um passo para o lado e me convida a entrar.

— Pensei que isso tivesse acabado, srta. Seyfried.

Hamburg fecha a porta.

— Sente-se — pede ele.

A sala é bem grande, com paredes lisas e arredondadas, sem cantos, de um lado a outro. Uma série de grandes quadros retratando o que parece ser cenas bíblicas rodeia uma grande lareira de pedra. Cada imagem é emoldurada em uma caixa de vidro, com luzes na parte de baixo. A sala é pouco iluminada, como o restaurante, e o cheiro é de incenso ou talvez de óleo aromático de almíscar e lavanda. Na parede à minha esquerda, há uma porta aberta que leva a outra sala, onde a luz cinza-azulada de várias telas de TV brilha nas paredes. Chego mais perto para me sentar na poltrona de couro com encosto alto diante da escrivaninha e espio dentro da saleta. É como eu imaginava. As telas mostram várias mesas do restaurante.

Hamburg fecha essa porta também.

— Não, está longe de acabar — respondo, enfim.

Cruzo as pernas e mantenho a postura ereta, o queixo levantado com ar confiante e os olhos em Hamburg, enquanto ele atravessa a sala na minha direção. Puxo a barra do vestido para cobrir completamente o punhal preso na coxa. Minha bolsa está no meu colo.

— Vocês já tiraram minha esposa de mim. — A indignação transparece na voz dele. — Não acham que foi o suficiente?

— Infelizmente, não. — Abro um sorriso malicioso. — Não foi o suficiente para você e sua esposa tirarem uma vida? Não, não foi — respondo por ele. — Vocês tiraram muitas vidas.

Hamburg morde o interior da bochecha e se senta atrás da escrivaninha, de frente para mim. Ele apoia as mãos gordas sobre o tampo de mogno. Percebo quanto ele quer me matar ali mesmo onde estou. Mas não fará isso porque acredita que não estou sozinha. Ninguém em sã consciência faria algo assim, vir até aqui sozinha, inexperiente e desprevenida.

Ninguém, a não ser eu.

Preciso garantir que ele continue acreditando que tenho cúmplices até descobrir como vou matá-lo e sair da sala sem ser pega. O pedido de Hamburg para que o guarda-costas entrasse na sala depois de um minuto sem ouvir sua voz pôs mais um obstáculo no plano que, na verdade, nunca tive de fato.

— Bem, devo dizer uma coisa — diz Hamburg, mudando de tom. — Você é deslumbrante com qualquer tipo de peruca. Mas admito que prefiro a morena.

Ele acha que meu cabelo castanho-avermelhado era uma peruca. Ótimo.

— Você é doente. Sabe disso, certo? — Tamborilo com as unhas no braço da poltrona.

Hamburg abre um sorriso medonho. Estremeço por dentro, mas mantenho a compostura.

— Eu não matei aquelas pessoas de propósito. Elas sabiam no que estavam se metendo. Sabiam que, no calor do momento, alguém poderia perder o controle.

— Quantas?

Hamburg estreita os olhos.

— O que importa isso, srta. Seyfried? Uma. Cinco. Oito. Por que não diz logo o motivo da sua visita? Dinheiro? Informação? A chantagem assume muitas formas, e não seria a primeira vez que enfrento uma. Sou um veterano.

— Fale sobre a sua esposa — peço, ganhando tempo e fingindo ainda ser quem dá as cartas. — Antes de “ir direto ao assunto”, quero entender sua relação com ela.

Uma parte de mim quer saber de verdade. E estou incrivelmente nervosa; sinto um enxame zumbindo no meu estômago. Talvez jogar conversa fora ajude a acalmar minha mente.

Hamburg inclina a cabeça para o lado.

— Por quê?

— Apenas responda à pergunta.

— Eu a amava muito — responde ele, relutante. — Ela era a minha vida.

— Aquilo é amor? — pergunto, incrédula. — Você manchou a memória dela ao dizer que ela era uma viciada em drogas que se suicidou, só para salvar a própria pele, e chama isso de amor?

Noto uma luz se movendo no chão, por baixo da porta da sala de vigilância. Não havia ninguém lá dentro antes, ao menos que eu tivesse visto.

— Como a chantagem, o amor assume muitas formas. — Hamburg apoia as costas na poltrona de couro, que range, cruzando os dedos roliços sobre a enorme barriga. — Mary e eu éramos inseparáveis. Não éramos como outras pessoas, outros casais, mas o fato de sermos tão diferentes não significava que nos amávamos menos do que os outros. — Os olhos dele cruzam os meus por um momento. — Tivemos sorte por encontrar um ao outro.

— Sorte? — pergunto, pasma com o comentário. — Foi sorte duas pessoas doentes se encontrarem e se unirem para fazer coisas doentias com os outros? Não entendo.

Hamburg balança a cabeça como se fosse um velho sábio e eu fosse jovem demais para entender.

— Pessoas diferentes como Mary e eu...

— Doentes e dementes — corrijo. — Não diferentes.

— Chame como quiser — diz ele, com ar de resignação. — Quando você é tão diferente assim da sociedade, do que é aceitável, encontrar alguém como você é algo muito raro.

Sem perceber, cerro os dentes. Não porque Hamburg esteja me irritando, mas porque nunca imaginei que esse homem nojento pudesse me dizer qualquer coisa que me fizesse pensar na minha situação com Victor, ou qualquer coisa que eu pudesse entender.

Afasto esse pensamento.

A luz fraca sob a porta da sala de vigilância se move de novo. Finjo não ter notado, sem querer dar a Hamburg qualquer motivo para achar que estou pensando em outra saída.

— Vim aqui saber nomes — digo de repente, sem ter pensado bem a respeito.

— Que nomes?

— Dos seus clientes.

Algo muda nos olhos de Hamburg, ele vai tomar o controle da situação.

— Você quer os nomes dos meus clientes? — pergunta ele, desconfiado.

Que merda...

— Pensei que você e Victor Faust já estivessem de posse da minha lista de clientes.

Continue séria. Não perca a compostura. Merda!

— Sim, estamos, mas me refiro àqueles que você não mantinha nos registros.

Acho que vou vomitar. Parece que minha cabeça está pegando fogo. Prendo a respiração, torcendo para ter me livrado dessa.

Hamburg me examina em silêncio, vasculhando meu rosto e minha postura em busca de qualquer sinal de autoconfiança abalada. Ele coça o queixo gordo e cheio de dobras.

— Por que você acha que existe uma lista fantasma?

Suspiro meio aliviada, mas ainda não estou fora de perigo.

— Sempre existe uma lista fantasma — afirmo, embora não faça nem ideia do que estou dizendo. — Quero pelo menos três nomes que não estejam no registro que nós temos.

Sorrio, sentindo que recuperei o controle da situação.

Até ele falar:

— Diga você três nomes da lista que já tem, e eu dou o que você quer.

É oficial: perdi o controle.

Engulo em seco e me controlo antes de parecer “pega no flagra”.

— Você acha que eu carrego a lista na bolsa? — pergunto com sarcasmo, tentando continuar no jogo. — Nada de negociações ou meios-termos, sr. Hamburg. O senhor não está em condições de fazer nenhuma barganha.

— É mesmo? — pergunta ele, sorrindo.

Ele suspeita de mim. Posso sentir. Mas vai garantir que está certo antes de dar o bote.

— Isso não está em discussão. — Eu me levanto da poltrona de couro, enfiando a bolsa debaixo do braço, mais frustrada do que antes por ter que entregar minha arma.

Pressiono os dedos na escrivaninha de mogno, apoiando meu peso neles ao me curvar um pouco na direção de Hamburg.

— Três nomes, ou saio daqui e Victor Faust entra para espalhar os seus miolos naquele belo quadro do menino Jesus atrás de você.

Hamburg ri.

— Esse não é o menino Jesus.

Ele se levanta junto comigo, alto, enorme e ameaçador.

Enquanto vasculho minha mente e tento entender como ele descobriu que sou uma farsante, Hamburg se adianta e anuncia seu raciocínio como um chute na minha boca.

— É engraçado, Izabel, você vir aqui pedir nomes que não aparecem em uma lista que você... — diz, apontando para a minha bolsa — ... nem carrega consigo, porque como você saberia que os nomes que eu daria não estão nela?

Estou muito ferrada.

— Vou dizer o que eu acho — continua ele. — Acho que você veio aqui sozinha por causa de alguma vingança contra mim. — Ele balança o indicador. — Porque eu me lembro de cada detalhe da porra daquela noite. Cada merda de detalhe. Especialmente a sua expressão quando percebeu que Victor Faust tinha vindo matar minha esposa em vez de mim. Era a expressão de alguém pega de surpresa, que não fazia ideia de por que estava ali. Era a expressão de alguém que não está familiarizada com o jogo.

Ele tenta sorrir com gentileza, como se quisesse demonstrar alguma espécie de empatia pela minha situação, mas o que leio em seu rosto é cinismo.

— Acho que, se houvesse mais alguém aqui com você, ele já teria aparecido para salvá-la, porque é óbvio que você está ferrada.

A porta do quarto principal se abre, o guarda-costas entra e a tranca. Por uma fração de segundo, tive a esperança de que fosse Victor vindo me salvar na hora certa. Mas foi só um desejo. O guarda-costas me olha com desprezo. Hamburg acena para ele, que começa a tirar o cinto.

Meu coração afunda até o estômago.

— Sabe — diz Hamburg, dando a volta na escrivaninha —, na primeira vez que a gente se viu, lembro que fiz um acordo com Victor Faust. — Ele aponta para mim. — Você se lembra disso, não?

Hamburg sorri e apoia a mão gorda nas costas da poltrona na qual eu estava sentada, virando-a para mim.

Todo o meu corpo está tremendo; parece que o sangue que passa pelas minhas mãos virou ácido. Ele corre pelo meu coração e pela minha cabeça tão rápido que quase desmaio. Começo a tentar alcançar meu punhal, mas eles estão perto demais, aproximando-se pelos dois lados. Não tenho como enfrentar os dois ao mesmo tempo.

— Como assim? — pergunto, tropeçando nas palavras, tentando ganhar um pouco de tempo.

Hamburg revira os olhos.

— Ora, por favor, Izabel. — Ele gira um dedo no ar. — Apesar do que aconteceu naquela noite, fiquei decepcionado de verdade por vocês dois irem embora antes de cumprir o acordo.

— Eu diria que, em vista do que aconteceu, o acordo não vale mais nada.

Ele sorri para mim e se senta na poltrona de couro. Percebo Hamburg espiar de relance o guarda-costas, dando uma ordem só com o olhar.

Antes que eu consiga me virar, o segurança prende minhas duas mãos nas minhas costas.

— Você vai cometer um erro do caralho se fizer isso! — grito, tentando me livrar das garras do segurança.

Ele me leva à força até uma mesa quadrada e me joga sobre ela. Meus reflexos não são rápidos o suficiente e meu queixo bate no mármore duro. O gosto metálico do sangue enche minha boca.

— Me solte! — Tento chutá-lo. — Me solte agora!

Hamburg ri de novo.

— Vire a cabeça dela para esse lado — ordena ele.

Dois segundos depois, meu pescoço é torcido para o outro lado e mantido ali, minha bochecha esquerda pressionada contra o mármore frio.

— Quero ver a cara dela enquanto você a fode. — Hamburg me olha de novo. — Então vamos continuar do ponto onde paramos naquela noite, tudo bem? Você concorda, Izabel?

— Vai se foder!

— Ah, não, não — diz ele, ainda com o riso na voz. — Não sou eu quem vai foder você. Você não faz o meu tipo. — Seus olhos famintos percorrem o corpo do segurança que está me pressionando por trás.

— Eu vou matar você — digo, cuspindo por entre os dentes. A mão do segurança sobre a minha cabeça impede que eu a mexa. — Vou matar vocês dois! Me estupre! Vamos lá! Mas os dois vão estar mortos antes que eu saia daqui!

— Quem disse que você vai sair daqui? — provoca Hamburg.

O zíper da calça dele está aberto; sua mão direita está parada ao lado da braguilha, como se ele estivesse tentando manter algum autocontrole e não se masturbar ainda.

Então Hamburg acena com dois dedos para o guarda-costas, que me mantém imóvel segurando meus cabelos da nuca.

— Lembre-se disso — diz ele ao segurança. — Ela não vai sair daqui.

Sinto a mão direita do guarda-costas soltar meu cabelo e se mover entre as minhas pernas. Enquanto ele ergue meu vestido, aproveito para alcançar o punhal na minha coxa e tirá-lo da bainha, golpeando atrás em um ângulo desajeitado. O segurança grita de dor e me solta. Puxo o punhal ainda firme na mão, que está coberta de sangue. Ele cambaleia para trás, com a mão na base do pescoço, o sangue jorrando entre seus dedos.

— Sua puta do caralho! — ruge Hamburg, saltando da poltrona e vindo atrás de mim como um elefante descontrolado, a calça caindo de sua cintura flácida.

Corro na direção dele com o punhal levantado e colidimos no meio da sala. Seu peso me joga de bunda no chão e o punhal cai da minha mão, deslizando pelo piso ensanguentado. De pé, Hamburg se abaixa para me segurar, mas me reclino no chão e levanto o pé com toda a força, enfiando o salto da minha sandália na lateral do seu rosto. Ele geme e cambaleia para trás, com a mão na bochecha.

— Eu vou acabar com você! Puta que pariu! — berra ele.

Engatinho na direção do punhal, vendo o segurança no chão, em meio a uma poça de sangue. Ele está engasgando com os próprios fluidos; tentando em vão encher os pulmões de ar.

Pego o punhal com firmeza e rolo no chão enquanto Hamburg se aproxima, derrubando a poltrona de couro. Fico de pé e corro até a mesa, empurrando-a na direção dele. Hamburg tenta tirá-la da frente, mas o móvel balança sobre a base e ele acaba tropeçando. Seu corpo desaba no chão de barriga para baixo e a mesa cai quase na sua cabeça. Salto sobre suas costas e monto em seu corpo obeso. Meus joelhos mal tocam o chão. Agarro seu cabelo, puxo a cabeça dele para trás na minha direção e aperto o punhal em sua garganta, imobilizando-o em segundos.

— Pode me matar! Foda-se! Você não vai sair viva daqui mesmo. — A voz de Hamburg é rouca, sua respiração, rápida e ofegante, como se ele tivesse acabado de tentar correr uma maratona. O cheiro de seu suor e de seu medo invade minhas narinas.

Ocupada com a lâmina em sua garganta, me assusto com o som de batidas fortes na porta. A distração me pega desprevenida. Hamburg consegue se erguer debaixo de mim como um touro, rolando de lado e me derrubando no chão. Deixo cair o punhal em algum lugar, mas não tenho tempo para procurá-lo porque Hamburg consegue se levantar e parte para cima de mim. Ouço a voz de Stephens do outro lado da porta, que vibra com seus socos.

Rolo para sair do caminho antes que Hamburg consiga pular em cima de mim, pego o objeto mais próximo — um peso de papel de pedra, bem pesado, que estava na mesa antes de ser derrubada — e golpeio Hamburg com ele. O som do osso de seu rosto quebrando com o impacto faz meu estômago revirar. Hamburg cai para trás, cobrindo a cara com as mãos.

As batidas na porta ficam mais fortes. Numa fração de segundo, levanto a cabeça e vejo a porta sacudindo com violência no batente. Preciso sair daqui. Agora. Meu olhar varre a sala procurando o punhal, mas não há mais tempo.

Corro para a sala de vigilância, contornando os obstáculos.

Graças a Deus, há outra porta lá dentro. Abro a porta e desço correndo a escada de concreto, torcendo para que seja uma saída e eu não encontre mais ninguém no caminho.


CAPÍTULO CINCO

Sarai

Desço a escada de concreto de dois em dois degraus, segurando no corrimão de metal pintado com as mãos ensanguentadas, até chegar ao térreo. Uma placa vermelha com a palavra SAÍDA está à minha frente. Corro pela passagem mal-iluminada, onde uma lâmpada fluorescente pisca acima de mim e torna o lugar ainda mais ameaçador. Empurro com força a barra da porta com as duas mãos e ela se abre para um beco. Um homem de terno está sentado no capô de um carro, fumando, quando saio para a rua.

Eu fico paralisada.

Ele olha para mim.

Eu olho para ele.

Ele nota o sangue nas minhas mãos e olha de relance para a porta, depois para mim.

— Vá — diz ele, acenando para a caçamba de lixo à minha direita.

Sei que não tenho tempo para ficar confusa nem para perguntar por que ele está me deixando ir embora, mas pergunto assim mesmo.

— Por que você está...?

— Apenas vá!

Ouço passos ecoando na escada atrás da porta.

Lanço um olhar agradecido ao homem e dou a volta na caçamba, desço o beco e me afasto do restaurante. Ouço um tiro segundos depois que dobro a esquina e torço para que seja aquele homem fingindo atirar em mim.

Evito espaços abertos e corro por trás de prédios, protegida pela escuridão, tanto quanto minhas sandálias de salto alto permitem. Quando sinto que estou longe o suficiente para parar um pouco, tento me esconder atrás de outra caçamba e tiro as sandálias. Arranco a peruca loura e a jogo no lixo.

Não consigo respirar. Estou enjoada.

Meu Deus, estou enjoada...

Encosto na parede de tijolos atrás de mim, arqueando as costas e apoiando as mãos nos joelhos. Vomito com violência no chão, meu corpo rígido, o esôfago ardendo.

Pego as sandálias e saio correndo de novo na direção do hotel, tentando esconder o sangue das mãos e do vestido, mas percebo que não é tão fácil. Recebo alguns olhares desconfiados ao passar depressa pela recepção, mas tento ignorá-los e torço para que ninguém chame a polícia.

Em vez de arriscar ser vista por outras pessoas, subo pela escada até o oitavo andar. Quando chego lá, e depois de tudo o que corri, sinto que minhas pernas vão ceder. Encosto na parede e recupero o fôlego, com os joelhos tremendo descontroladamente. Meu peito dói, como se cada respiração trouxesse poeira, fumaça e cacos microscópicos de vidro para o fundo dos pulmões.

O quarto que divido com Eric está trancado e eu não tenho a chave. Aliás...

— Puta merda...

Jogo a cabeça para trás, fecho os olhos e suspiro, arrasada.

Não estou mais com a minha bolsa. Eu a perdi em algum momento da luta na sala de Hamburg. A chave do meu quarto. Meu celular. Minha arma. Meu punhal. Não tenho mais nada.

Bato na porta, mas Eric não está no quarto. Não esperava que estivesse, na verdade, já que não são nem onze da noite. Só para o caso de estar enganada, no entanto, tento o quarto de Dahlia.

— Dahl! Você está aí? — Bato na porta com pressa, tentando não incomodar os outros hóspedes.

Nenhuma resposta.

Já desistindo, jogo as sandálias no chão e apoio as mãos na parede. Minha cabeça desaba. Mas então ouço um clique baixinho e vejo a porta do quarto de Dahlia se abrindo devagar. Levanto a cabeça e a vejo parada ali.

Sem me demorar para questionar a expressão estranha no rosto dela, entro no quarto só para sair do corredor. Eric está sentado na poltrona perto da janela. Noto que seu cabelo está meio bagunçado. O de Dahlia também.

Meu instinto está tentando chamar minha atenção, mas não me importo. Acabei de apunhalar um homem no pescoço e de tentar matar outro. Quase fui estuprada. Estava correndo pelos becos de Los Angeles para fugir de homens armados que vinham atrás de mim. Nada que esses dois façam pode superar isso.

— Meu Deus, Sarai — diz Dahlia, aproximando-se de mim. — Isso é sangue?

A expressão estranha e silenciosa que ela exibia quando entrei no quarto desaparece em um instante quando ela me vê no quarto bem-iluminado. Seus olhos se arregalam, cheios de preocupação.

Eric se levanta da poltrona.

— Você está sangrando. — Ele também me olha de cima a baixo. — O que aconteceu?

Os olhos de Dahlia correm pela minha roupa e pelo meu cabelo preso dentro da touca da peruca.

— Por que... Hã, por que você está vestida assim?

Olho para mim mesma. Não sei o que dizer, então não digo nada. Eu me sinto como um cervo diante dos faróis de um carro, mas minha expressão continua firme e sem emoções, talvez um pouco confusa.

— Você encontrou Matt — acusa Dahlia, começando a levantar a voz. — Puta que pariu, Sarai. Você foi se encontrar com ele, não foi?

Sinto os dedos dela apertando meu antebraço.

Eu me desvencilho de Dahlia e caminho até o banheiro para tirar a touca do cabelo. Enquanto tiro os grampos, noto uma camisinha boiando na privada.

Eric entra no banheiro atrás de mim. Ele sabe que eu vi.

— Sarai, e-eu... Eu sinto muito — diz ele.

— Não se preocupe — respondo, tirando o último grampo e deixando-o na bancada creme.

Passo por Eric e volto para o quarto. Dahlia está me encarando, com o rosto cheio de vergonha e arrependimento.

— Eu...

Ergo a mão e olho para os dois.

— Não, é sério. Não estou brava.

— Como assim? — pergunta Dahlia.

Eric parece agitado. Ele põe a mão na nuca e passa os dedos pelo cabelo.

— Olhe, sem querer ofender — digo a Eric —, mas tenho fingido tudo com você desde a primeira vez que a gente ficou junto.

Ele arregala os olhos, embora tente não deixar que o choque e a mágoa da minha revelação transpareçam demais. Grande parte de mim se sente bem por dizer a verdade. Não por vingança, mas porque eu precisava tirar isso do peito. Mas admito que, depois de descobrir que os dois têm trepado pelas minhas costas, uma pequena parte de mim também fica feliz em magoá-lo. Acho que a vingança sempre encontra um caminho, mesmo nos gestos mais insignificantes.

— Fingido?

— Não tenho tempo para isso — digo, indo na direção da porta. — Vocês dois podem ficar juntos. Não tenho nada contra. Não estou brava, só não me importo mesmo. Preciso ir.

— Espere... Sarai.

Eu me viro para olhar Dahlia. Ela está muito chocada, mal sabe o que pensar. Depois de alguns segundos de silêncio, fico impaciente e a olho com cara de “vai, desembucha”.

— Para você... tudo bem mesmo?

Uau, não sirvo mesmo para o estilo de vida deles. O estilo de vida normal. Nem consigo entender essas coisas de namoro, melhores amigas, infidelidade, competição e joguinhos psicológicos. A cara que eles fazem, tão vazia e mesmo assim tão cheia de incredulidade e dúvida, por causa de uma situação que, para mim, não é tão importante... Tenho coisas mais graves com que me preocupar.

Suspiro, aborrecida com as perguntas vagas e confusas dos dois.

— Sim, por mim, tudo bem — digo, e então me viro para Eric, estendendo a mão. — Preciso da chave do nosso quarto.

Relutante, ele enfia a mão no bolso de trás e pega a chave. Tomo da sua mão, saio dali e vou para o quarto ao lado. Eric vem atrás e tenta falar comigo enquanto guardo minhas coisas na mala.

— Sarai, eu nunca quis...

Eu me viro de repente e o encaro.

— Tudo bem, só vou dizer isto uma vez, depois você muda de assunto ou volta para lá e fica com a Dahlia. Não estou nem aí para o que vocês dois fazem, mas, por favor, não apele para esse clichê de novela de que você nunca quis que isso acontecesse, porque... é muito idiota. — Eu rio baixinho, porque acho idiota mesmo. — Só falta você dizer que o problema não é comigo, é com você. Caramba, você faz ideia do que isso parece? É tão difícil assim acreditar quando digo que não me importo e que estou falando sério? Sem joguinhos. É verdade. — Balanço a cabeça, levanto as mãos e digo: — Não. Me. Importo.

Viro para a mala, fecho o zíper, abro a parte lateral e pego a chave do quarto secreto. Ainda bem que eu tinha uma cópia.

— Preciso ir — digo, andando até a porta e passando por Eric.

— Aonde você vai?

— Não posso contar, mas me escute, Eric, por favor. Se alguém aparecer me procurando, finja que não me conhece. Diga o mesmo para Dahlia. Finjam que nunca me viram na vida. Aliás, quero que vocês dois saiam hoje. Vão para qualquer lugar. Só... não fiquem aqui.

— Você vai me dizer o que aconteceu ou por que está toda ensanguentada? Sarai, você está me deixando assustado pra cacete.

— Eu vou ficar bem — digo, atenuando minha expressão. — Mas prometa que você e Dahlia vão fazer exatamente o que falei.

— Você vai me contar um dia?

— Não posso.

O silêncio entre nós fica mais pesado.

Enfim, abro a porta e saio para o corredor.

— Acho que sou eu quem deveria estar pedindo desculpas.

— Por quê?

Eric fica na porta, com os braços caídos ao lado do corpo.

— Por pensar em outra pessoa durante todo esse tempo em que eu estava com você. — Olho para o chão.

Nós nos encaramos por um breve momento e ninguém diz mais nada. Ambos sabemos que estamos errados. E acho que nós dois estamos aliviados por tudo ter vindo à tona.

Não há mais nada a dizer.

Eu me afasto pelo corredor na direção oposta à do meu quarto secreto e dou a volta por trás, para que Eric não veja aonde estou indo. Quando me tranco no quarto, só consigo desabar na cama. A exaustão, a dor e o choque de tudo o que aconteceu esta noite me atingem em cheio assim que a porta se fecha, e me engolem como uma onda. Eu me jogo de costas no colchão. Minhas panturrilhas doem tanto que duvido conseguir andar sem mancar amanhã.

Fico olhando para o teto escuro até ele desaparecer e eu pegar no sono.


CAPÍTULO SEIS

Sarai

Um tum! pesado me acorda, mais tarde naquela noite. Eu me levanto como uma catapulta.

Vejo dois homens no meu quarto: um desconhecido morto no chão e Victor Faust de pé sobre o corpo dele.

— Levante-se.

— Victor?

Não acredito que ele está aqui. Devo estar sonhando.

— Levante-se, Sarai. AGORA! — Victor me pega pelo cotovelo, me arranca da cama e me põe de pé.

Não consigo nem pegar minhas coisas, ele já está abrindo a porta e me puxando para o corredor com ele, segurando forte a minha mão.

Disparamos juntos pelo corredor e outro homem aparece virando a esquina, de arma em punho. Victor aponta sua 9mm com silenciador e o derruba antes que o cara consiga atirar. Ele passa pelo corpo me puxando, seus dedos fortes afundando na minha mão enquanto corremos para a escada. Ele abre a porta, me empurra para a frente e nós subimos depressa os degraus de concreto. Um andar. Três. Cinco. Minhas pernas estão me matando. Acho que não consigo andar por muito mais tempo. Enfim, no quinto andar, Victor me puxa para outro corredor e rumo a um elevador nos fundos.

Quando as portas do elevador se fecham e estamos só nós dois lá dentro, finalmente tenho a oportunidade de falar.

— Como você sabia que eu estava aqui? — Mal consigo recuperar o fôlego, esgotada pela correria infinita e pela adrenalina, mas acho que sobretudo porque Victor está de pé ao meu lado, segurando minha mão.

Meus olhos começam a arder com as lágrimas.

Engulo o choro.

— O que você estava pensando, Sarai?

— Eu...

Victor segura meu rosto com as duas mãos e me empurra contra a parede do elevador, pressionando ferozmente seus lábios nos meus. Sua língua se entrelaça na minha e sua boca tira meu fôlego em um beijo apaixonado que, enfim, faz meus joelhos cederem. Toda a força que eu estava usando para manter o corpo ereto desaparece quando os lábios dele me tocam. Ele me beija com fome, com raiva, e eu derreto em seus braços.

Então ele se afasta, as mãos fortes nos meus braços, me segurando contra a parede do elevador. Nós nos encaramos pelo que parece ser uma eternidade, nossos olhos paralisados em uma espécie de contemplação profunda, nossos lábios a centímetros de distância. Só quero prová-los de novo.

Mas ele não deixa.

— Responda — exige Victor, estreitando seus olhos perigosos em reprovação.

Já esqueci a pergunta.

Ele me sacode.

— Por que você veio aqui? Tem ideia do que você fez?

Balanço a cabeça em um movimento curto e rápido, parte de mim mais preocupada com seu olhar ameaçador do que com o que ele está dizendo.

A porta do elevador se abre no subsolo e eu não tenho tempo para responder, pois Victor mais uma vez pega minha mão e me puxa para que o siga. Serpenteamos por um grande depósito com caixas em pilhas altas encostadas nas paredes e depois por um longo corredor escuro que leva a um estacionamento. Victor enfim solta minha mão e eu o sigo até um carro parado entre dois furgões pretos com o logotipo do hotel nas laterais. Dois bipes ecoam pelo ambiente e os faróis do carro piscam quando nos aproximamos, iluminando a parede de concreto em frente. Sem perder tempo, me sento no banco do passageiro e fecho a porta.

Segundos depois, Victor está dirigindo casualmente pelo estacionamento até a rua.

— Eu queria que ele morresse — respondo, enfim.

Victor não me olha.

— Bom, você fez um excelente trabalho — rebate ele, sarcástico.

Ele vira para a direita no semáforo, e o carro ganha velocidade quando chegamos à rodovia.

Fico magoada por suas palavras, mas sei que ele tem razão, por isso não discuto. Fiz merda. Uma merda muito grande.

Mas não me dou conta do tamanho dela até Victor dizer:

— Os seus amigos podiam ter morrido. Você podia ter morrido.

Sinto meus olhos se arregalarem além dos limites e me viro mais um pouco para encará-lo.

— Ah, não... Victor, o quê... Eles estão bem?

Sinto que vou vomitar de novo.

Victor me olha por um instante.

— Estão ótimos. O primeiro quarto que os capangas de Hamburg revistaram estava vazio — diz ele, voltando a olhar para a estrada. — Eu cheguei quando eles estavam saindo. Segui um deles até o quarto onde você estava escondida, deixei que ele destrancasse a porta e então ataquei.

As chaves do quarto. Minhas duas chaves extras estavam na bolsa que perdi no restaurante de Hamburg. E os números dos quartos estavam escritos nas capinhas de papel que as protegiam. Eu estava tão preocupada em esconder minha arma e meu punhal que nem pensei em esconder as chaves.

— Merda! — Também olho para a estrada. — E-eu perdi a bolsa no restaurante. As chaves do meu quarto estavam dentro dela. Deixei um rastro para eles seguirem!

Felizmente, eu não tinha uma chave extra do quarto de Dahlia, senão ela e Eric já poderiam estar mortos.

Onde é que eu estava com a cabeça?!

— Não, você deixou literalmente as chaves do seu quarto com o nome do hotel gravado. Sarai, eu devia ter matado você há muito tempo e poupado toda essa confusão para cima de você e de mim.

Eu me viro para encará-lo; a raiva e a mágoa pesando no meu peito.

— Você não está falando sério.

Ele faz uma pausa e me olha. Suspira.

— Não, não estou falando sério.

— Nunca mais me diga isso. Nunca mais me diga uma coisa dessas, ou eu mato você e poupo a mim de toda essa confusão — rebato, desviando o olhar.

— Você não está falando sério — diz Victor.

Olho mais uma vez para aqueles olhos ameaçadores verde-azulados que me fizeram tanta falta.

— Não. Mas acho que isso seria o mais sensato.

— Bom, você não foi a campeã da sensatez hoje, então acho que estou seguro ao menos pelas próximas 24 horas.

Escondo o sorriso.

— Senti sua falta — digo de maneira distante, olhando para a estrada.

Victor não responde, mas admito que seria estranho se respondesse. A despeito de sua falta de emoção, porém, sei que ele também sentiu saudade de mim. Aquele beijo no elevador disse coisas que palavras jamais conseguiriam.

Ele pega uma saída e para o carro debaixo de um viaduto. Puxa o freio de mão e a área ao redor desaparece na escuridão quando ele desliga os faróis.

— O que a gente está fazendo aqui?

— Você precisa ligar para os seus amigos.

— Por quê?

Ele tira um celular do porta-luvas entre nós.

— Mande eles voltarem para o Arizona. Faça ou diga o que for preciso para que eles saiam de Los Angeles. Quanto antes, melhor.

Ele coloca o telefone na minha mão. De início, só olho para o aparelho, mas ele me pressiona com aquele olhar, aquele que grita “vamos lá, faça isso de uma vez”, mas que só alguém como eu, alguém que conhece Victor, seria capaz de notar.

Giro o celular nas mãos, depois o seguro firmemente e digito o número de Eric. Mas então mudo de ideia, desligo no primeiro toque e ligo para Dahlia.

Ela atende no quinto toque.

Respiro fundo e faço o que sei fazer melhor: minto.

— A verdade é que vocês me magoaram. Duvido que um dia eu consiga perdoar você ou Eric pelo que fizeram.

— Sarai... Meu Deus, me desculpe, estou me sentindo muito mal. A gente não queria que isso chegasse a esse ponto. Juro para você. Não sei o que aconteceu...

— Escute, Dahlia, por favor, só me escute.

Ela fica quieta.

Começo a choradeira. Nunca imaginei que eu seria capaz de chorar sob demanda e de forma tão falsa.

— Eu quero acreditar em você. Quero conseguir confiar em você de novo, mas você era minha melhor amiga e me traiu. Preciso de um tempo sozinha e quero que você e Eric voltem para o Arizona. Hoje. Acho que não vou aguentar ver vocês de novo... Espere, onde você está, agora?

Acabo de me dar conta de que, se ela e Eric estiverem no hotel, a essa altura ela já sabe que dois homens foram mortos a tiros no andar do quarto deles.

— A gente está em uma festa em um terraço — conta ela. — T-tudo bem por você? Achei que não tinha nada a ver a gente sair, mas o Eric falou que você insistiu...

— Não, tudo bem — digo, cortando-a. — Insisti mesmo. Onde ele está, agora?

— Deixei Eric lá no terraço para a gente poder conversar. Está muito barulhento lá em cima. Que número é esse de onde você está ligando?

— É o celular de um amigo. Perdi o meu. O Eric por acaso avisou que se alguém procurar por mim...

— Avisou, sim — interrompe Dahlia. — Que confusão é essa, afinal? Meu Deus, Sarai, esquece por um momento esse lance com Eric e me conta o que está acontecendo, por favor. O sangue. As roupas esquisitas que você estava usando e aquele troço na sua cabeça. Era uma touca de peruca? Você está metida em alguma encrenca, eu sei. Sei que você me odeia, e tem todo o direito de odiar, mas, por favor, conte o que aconteceu.

— Não posso contar, porra! — grito, deixando o choro distorcer minha voz. — Caramba, Dahlia, faça o que eu pedi. Pelo menos isso! Você deu para o meu namorado! Por favor, voltem para o Arizona, me deixem esfriar a cabeça e depois eu volto para casa. Talvez aí a gente possa conversar. Mas agora façam o que eu estou pedindo. Tudo bem?

Ela não responde por um momento, e um longo silêncio se forma entre nós.

— Tudo bem — concorda ela. — Vou dizer ao Eric que a gente precisa ir embora.

— Obrigada.

Estou apenas um pouco aliviada. Não vou me sentir bem com isso até saber que eles chegaram em casa sãos e salvos.

Desligo sem dizer mais uma palavra.

— Bom, isso foi bastante convincente — observa Victor, levemente impressionado.

— Acho que foi.

— Eu sei que a sua amiga acreditou — acrescenta ele. — Mas eu não acreditei em uma só palavra.

Eu me viro para ele. Victor me conhece tão bem quanto eu o conheço, parece.

— É porque nem uma palavra era verdade.

Ele deixa por isso mesmo e nós saímos de baixo do viaduto.

Chegamos a uma casa perdida no final de uma estrada isolada nos arredores da cidade, empoleirada no alto de uma colina com uma vista quase perfeita para a cidade lá embaixo. Uma piscina de formato irregular começa no lado esquerdo da casa e serpenteia por trás, a água azul-clara iluminada por lâmpadas submersas parece luminescente. O lugar está silencioso. Só ouço o vento passando pela mata cerrada que contorna o lado direito e os fundos da casa, impedindo uma visão em 360 graus da paisagem iluminada de Los Angeles. Quando nos aproximamos da porta, uma mulher robusta usando uniforme azul de empregada nos recebe. Ela tem cabelo preto encaracolado e pele morena. Suas bochechas são volumosas, envolvendo seus olhos castanho-escuros pequenos e brilhantes, que fitam atentamente Victor e a mim.

— Por favor, entrem — diz ela, com um sotaque hispânico familiar.

A mulher fecha a porta. A casa cheira a limpa-vidro e a uma mistura pouco natural de cheiros adocicados que só pode vir de algum tipo de aromatizador de ambientes artificial. Parece que todas as janelas foram abertas, permitindo que a brisa noturna de verão se espalhasse pela casa. Não se parece em nada com as mansões ricas onde já estive, mas é impecável e aconchegante, e penso que eu deveria pelo menos ter tomado um banho antes de vir. Minha pele e minhas roupas ainda estão manchadas de sangue...

Victor está usando uma calça preta e uma camisa apertada de mangas compridas que adere a cada músculo de seus braços e seu peito, com os punhos desabotoados e arregaçados até os cotovelos. A camisa está por fora da calça e os dois botões de cima estão abertos. Sapatos pretos chiques e informais calçam seus pés. Um relógio brilhante de prata adorna seu pulso direito, e não consigo deixar de notar a solitária veia grossa que percorre as costas de sua mão até o osso de seu pulso. Quando ele segue a empregada pela grande entrada e se vira momentaneamente de costas para mim, vejo o cabo da arma saindo da cintura de sua calça, com a barra da camisa branca enfiada atrás.

Ele me olha, para e estende o braço, em um gesto para que eu ande à sua frente. Tremo de leve quando sua mão toca minhas costas perto da cintura.

Antes que eu tenha tempo de me sentir deslocada ao lado dele, Fredrik, o amigo e cúmplice sueco de Victor que conheci no restaurante de Hamburg há tanto tempo, entra na sala pelas grandes portas de vidro que dão para o quintal dos fundos.


CAPÍTULO SETE

Sarai

— Você chegou cedo — comenta Fredrik com um sorriso mortal, porém inimaginavelmente sexy.

As roupas dele são bem parecidas com as de Victor, mas, em vez de camisa de botão, Fredrik está vestindo uma camiseta branca apertada que adere à sua forma esbelta e máscula. Ele está descalço.

A primeira vez que vi Fredrik, pensei que era impossível haver alguém mais bonito. Com cabelo macio, quase preto, e olhos escuros e misteriosos, suas feições parecem ter sido esculpidas por algum artista famoso. Mas sempre achei que havia algo de sombrio e assustador naquele homem. Um lado dele que eu, particularmente, não faço questão de conhecer. Para mim, basta o jeito como ele era quando nos encontramos: cordial, encantador e misterioso, uma linda máscara que ele usa para esconder a fera que há por trás.

Victor olha para seu relógio caro.

— Só dez minutos mais cedo — comenta ele.

Fredrik sorri ao se aproximar, os dentes brancos reluzindo contra a pele bronzeada.

— Sim, mas você sabe como eu sou.

Victor assente, mas não alonga o assunto. A mim, só resta imaginar o que aquilo significa.

— É bom ver você — diz Fredrik, observando-me do topo de sua altura considerável e presença avassaladora. Ele se inclina, pega minha mão e a beija, logo acima dos nós dos dedos. — Ouvi dizer que você matou um homem hoje.

Ele apruma as costas e solta minha mão. Um sorriso perturbador e orgulhoso surge em seu rosto, os cantos dos olhos se aquecendo com alguma lembrança ou... prazer, como se a ideia de matar alguém o deliciasse de alguma forma.

Olho para Victor à minha direita. Ele assente, respondendo à pergunta estampada no meu rosto. O guarda-costas que apunhalei no pescoço morreu?

Olho para Fredrik e respondo sem rodeios.

— Acho que matei.

Um leve sorriso se abre nos cantos dos lábios de Fredrik, e ele olha de relance para Victor, sem mover a cabeça.

— E você se sente bem com isso? — pergunta Fredrik.

— Para dizer a verdade, sim — respondo sem demora. — O desgraçado mereceu.

Fredrik e Victor parecem envolvidos em algum tipo de conversa secreta. Odeio isso.

Enfim, Fredrik diz para Victor em voz alta:

— Você arrumou sarna para se coçar, Faust.

Ele então se vira de costas para nós e anda na direção das portas de vidro. Nós o seguimos para o lado de fora, passando pela parte coberta do quintal e descendo uma escada de pedra que leva a um enorme pátio, também de pedra, que se abre em todas as direções. O pátio é decorado com mesas e cadeiras de ferro batido e uma cama com dossel ao ar livre.

Eu me sento ao lado de Victor em um sofá.

— Como é que você sabe? — pergunto a Fredrik, mas então me viro para Victor e digo: — E você ainda não me contou como sabia que eu estava aqui.

Na verdade, isso não importa muito, só quero encará-lo nos olhos de novo. Quero ficar sozinha com Victor, mas por enquanto vou precisar me contentar com os 7 centímetros entre nossos corpos, sentados lado a lado.

— Melinda Rochester me contou — explica Fredrik com um sorriso conivente. Começo a perguntar “E quem é Melinda Rochester”, mas ele diz: — Bem, ela contou para todo mundo, na verdade. Noticiário do Canal 7. Um homem morto a punhaladas atrás de um restaurante de Los Angeles.

Começo a me retorcer por dentro. Espero que as câmeras não tenham me mostrado com nitidez.

Eu me viro para Victor, com a preocupação transparecendo no rosto.

— Eu estava de peruca loura — digo, tentando encontrar alguma coisa, qualquer coisa que eu tenha feito certo. — Fiquei com a cabeça baixa... a maior parte do tempo.

Desisto. Sei que o que fiz vai continuar me perseguindo. Suspiro e olho para as mãos ensanguentadas no meu colo.

— E encontrar você foi fácil — continua Victor. — A sra. Gregory me ligou depois que você saiu do Arizona. Ela estava preocupada com a sua vinda para Los Angeles e achou que eu precisava saber.

Viro a cabeça para encará-lo.

— O quê? Dina sabia onde você estava? — Sinto a pele ao redor das sobrancelhas se enrijecendo.

— Não — responde ele, com delicadeza. — Ela não sabia onde eu estava, mas sabia como entrar em contato comigo.

Essas palavras me magoam. Engulo em seco a sensação de ser traída por eles.

— Falei para ela entrar em contato comigo só em caso de emergência — acrescenta Victor. — Caso algo acontecesse com você.

— Você deixou para Dina uma forma de entrar em contato — digo, ríspida —, mas para mim, nada. Não acredito que você fez isso.

— Eu queria que você tocasse a sua vida. Mas, caso os irmãos de Javier descobrissem onde você estava, ou você decidisse fazer uma proeza como a de hoje, eu queria ficar sabendo.

Não consigo olhar para Victor. Tento chegar mais alguns centímetros para o lado a fim de aumentar a distância entre nós. Ainda assim, mesmo que esteja magoada e enfurecida com ele, sinto vontade de me aproximar de novo. Mas me mantenho firme e me recuso a deixá-lo perceber que o poder que ele exerce sobre mim faz a raiva que sinto parecer um chilique.

— Não acredito que Dina escondeu isso de mim — digo em voz alta, ainda que esteja falando mais comigo mesma.

— Ela escondeu de você porque eu disse a ela quanto isso era importante.

— Bom, de qualquer maneira — interrompe Fredrik, sentando-se na poltrona ao lado do sofá —, parece que você se meteu em uma situação da qual não vai conseguir sair tão facilmente, se é que vai conseguir.

— Por que a gente está aqui? — pergunto, aborrecida.

Fredrik ri baixinho.

— Aonde mais você iria?

— Eu precisava tirar você do hotel — explica Victor.

— Espere um pouco. Eu não matei aquele homem atrás do restaurante. Tudo aconteceu na sala particular de Hamburg, no andar de cima.

Recordo o homem que vi do lado de fora, atrás do restaurante, aquele que me deixou fugir, e meu coração afunda.

— Hamburg não deixaria que a polícia acreditasse que o assassinato aconteceu lá dentro, porque eles confiscariam a memória da câmera de vigilância e veriam o que realmente aconteceu.

Não estou entendendo nada. Nadinha.

— Eles não iam querer que a polícia soubesse o que realmente aconteceu?

Fredrik se reclina na poltrona e ergue um pé descalço, apoiando o tornozelo sobre o outro joelho, e estende os braços sobre os da poltrona.

Victor balança a cabeça.

— Preciso mesmo explicar isso para você, Sarai?

Sua vaga irritação me pega de surpresa. Olho para ele e levo alguns segundos para entender tudo sem que ele precise explicar.

— Ah, entendi — digo, olhando um de cada vez. — Hamburg não quer que a polícia se envolva porque corre o risco de se expor. O que ele fez, então? Só levou o corpo para fora? Preparou a situação para parecer um assalto comum? Não muito diferente do que ele fez naquela noite em que a gente estava na mansão dele, imagino.

Paro por aí porque Fredrik está presente. Não sei qual o grau de intimidade entre ele e Victor, nem mesmo se Fredrik sabe o que aconteceu na noite em que Victor matou a esposa de Hamburg.

Os olhos de Victor sorriem de leve para mim: sua maneira de me mostrar quanto lhe agrada eu ter entendido tudo. Ainda fingindo estar aborrecida, não retribuo o olhar da forma que ele deve esperar.

A empregada aparece com um balde chique de gelo, de madeira, com três garrafas de cerveja dentro. Fredrik pega uma, então ela nos oferece. Victor pega uma garrafa, mas recuso, mal conseguindo olhar a mulher nos olhos. Estou absorta demais nos acontecimentos da noite, que não me saem da cabeça.

A empregada vai embora logo depois, sem dizer uma palavra.

— O que você quis dizer com os irmãos de Javier?

Victor abre sua garrafa e a põe na mesa.

— Dois deles, Luis e Diego, assumiram os negócios de Javier dias depois que você o matou.

Por um instante, o rosto de Javier surge em minha mente: sua expressão chocada e ainda orgulhosa, os olhos arregalados, o corpo caindo no chão segundos depois de eu meter uma bala em seu peito.

Afasto a imagem.

Eu me lembro de Luis e Diego. Diego é aquele que tentou me estuprar quando eu estava na fortaleza no México, aquele que Javier castrou como punição.

— Eles estão me procurando?

Victor toma um gole de cerveja e devolve a garrafa à mesa com calma.

— Que eu saiba, não. Estou monitorando a fortaleza há meses. Os irmãos de Javier são amadores. Não têm ideia do que fazer com tanto poder. Duvido até que vejam você como ameaça.

Fredrik toma um gole de cerveja e prende a garrafa entre as pernas.

— Não fique tão aliviada assim — diz ele. — É melhor ser perseguida por amadores do que por Hamburg e aquele braço direito dele.

Um nó nervoso se forma no fundo do meu estômago. Olho de relance para Victor, buscando respostas.

— Willem Stephens — esclarece Victor — faz todo o serviço sujo de Hamburg. Hamburg em si é covarde, tão perigoso quanto o pedófilo gente boa da vizinhança. Mal consegue atirar em um alvo imóvel, e trairia alguém em dois minutos para se salvar. — Ele arqueia uma sobrancelha. — Stephens, por outro lado, tem uma extensa formação militar, é ex-mercenário e trabalhou para uma Ordem do mercado negro em 1986.

— Uma o quê?

— Uma Ordem como a nossa — explica Victor —, mas que aceita contratos particulares. Eles fazem coisas que outros agentes se recusam a fazer, vendem seus serviços basicamente para qualquer um.

— Ah... Então, resumindo, ele mata gente inocente por dinheiro.

Lembro o que Victor me contou, meses atrás, sobre a natureza dos contratos particulares, como pessoas eram assassinadas por motivos fúteis como traição conjugal ou vingança. A Ordem de Victor só trabalha com crime, ameaças sérias a um grande número de pessoas ou ideias que poderiam ter um impacto negativo na sociedade ou na vida como um todo.

Engulo em seco.

— Bom, ele me viu, com certeza. — Levanto as mãos e tiro o cabelo do rosto, passando as mãos no alto da cabeça. — Foi ele quem me levou para o segundo andar, para a sala de Hamburg. — Olho para Victor. — Desculpa, Victor. Eu... eu não sabia de nada disso.

Fredrik ri baixinho e diz:

— Algo me diz que, mesmo se você soubesse, teria ido lá de qualquer maneira.

Desvio o olhar de Victor e olho para baixo de novo, nervosa, esfregando os dedos ensanguentados uns nos outros. Fredrik tem razão. Odeio admitir, mas ele tem razão. Eu teria ido para o restaurante mesmo assim. Teria tentado matar Hamburg mesmo assim. Mas, se eu soubesse de tudo isso, acho que teria pensado em um plano melhor.

De repente, sinto que alguma coisa toma meu corpo e me tira o fôlego.

— Victor... Meu celular... — Eu me levanto do sofá, com o cabelo castanho-avermelhado caindo pelos ombros, batendo em meus braços nas partes em que o sangue secou e formou uma crosta áspera. — O número de Dina está no meu celular. Merda. Merda! Victor, Stephens vai atrás dela! Preciso voltar para o Arizona!

Começo a seguir para a porta dos fundos, mas Victor me alcança antes que eu atravesse o caminho decorado com pedras lisas.

— Espere aí.

Olho para baixo e vejo os dedos dele em volta do meu pulso. Seus hipnóticos olhos verde-azulados me fitam com desejo e devoção. Devoção. Algo que nunca vi no olhar de Victor antes.

Fredrik fala atrás de nós, me tirando do transe em que Victor me colocou.

— Eu vou cuidar disso — diz ele.

Desvio o olhar de Victor para Fredrik, que então ganha importância, considerando que a vida de Dina está em jogo.

— Como? — pergunto.

Victor me leva de volta para o sofá.

Fredrik pega o celular da mesa à frente, procura um número e toca na tela para ligar. Então encosta o celular no ouvido.

Victor me faz sentar perto dele de novo. Estou concentrada demais em Fredrik no momento para notar que Victor fez questão de se sentar tão perto que sua coxa está encostada na minha. Quero aproveitar o momento de proximidade, mas não posso. Estou preocupada com Dina.

Fredrik se reclina na poltrona de novo, balançando o pé descalço apoiado no joelho. Seu rosto fica alerta quando alguém atende à ligação.

— Em quanto tempo você consegue chegar a Lake Havasu City? — pergunta Fredrik ao telefone. Ele ouve por um segundo e assente. — Mando o endereço por mensagem de texto assim que eu desligar. Vá para lá o mais rápido que puder. Uma mulher mora lá. Dina Gregory. — Ele me olha de relance, para se certificar de que disse o nome certo. Como não o corrijo, volta a falar ao telefone. — Tire-a da casa e a leve para Amelia, em Phoenix. Sim. Sim. Não, não pergunte nada a ela. Só tome cuidado para ninguém machucar Dina. Sim. Me ligue neste número assim que estiver com ela.

Fredrik assente mais algumas vezes. Meu coração está batendo tão forte que parece pronto para pular do peito. Espero que a pessoa com quem ele está falando consiga encontrar Dina a tempo.

Fredrik desliga e parece abrir uma tela de texto no celular. Ele olha para mim, mas é Victor quem dá o endereço da sra. Gregory. Fredrik o digita e deixa o celular na mesa.

— Meu contato está a apenas trinta minutos de lá — explica Fredrik, olhando primeiro para mim. Então se vira para Victor. — O que você quer que eu faça?

Ele levanta as costas da poltrona e apoia os cotovelos nos joelhos, deixando as mãos entre eles. Mesmo em uma posição relaxada, ele consegue parecer elegante, importante e perigoso.

— Ainda preciso que você verifique o que discutimos ontem — diz Victor, e fica ainda mais claro, para mim, que Fredrik recebe ordens dele, embora não pareça ser do tipo que recebe ordens de ninguém. Mas está claro que os dois têm uma relação forte. — E, se você não se importa, preciso da sua casa emprestada por esta noite.

Os olhos escuros de Fredrik me encaram, e o traço de um sorriso aparece em seu rosto. Ele se levanta e pega o celular da mesa, escondendo-o na mão.

— Não precisa dizer mais nada. Vou sair daqui em vinte minutos. Eu ia mesmo me encontrar com alguém hoje, então está combinado.

A atitude de Victor muda um pouco, o que percebo no mesmo instante. Ele está encarando Fredrik, do outro lado da mesa do pátio, com um olhar cansado e cauteloso.

— Você não vai fazer o que estou pensando...

Ouço com atenção sem nem ao menos tentar disfarçar. Eu quero que eles saibam que estou bisbilhotando, porque é frustrante nenhum dos dois me oferecer qualquer explicação sobre esses comentários internos.

Fredrik ergue um lado da boca em um meio sorriso. Ele balança a cabeça de leve.

— Não, esta noite, não, infelizmente. Mas já faz algum tempo. Vou precisar que você me ajude com isso em breve.

Os olhos dele passam por mim e sinto um calafrio percorrer minhas costas. Não consigo decidir se é um arrepio bom ou assustador.

— Você terá sua oportunidade logo, logo — assegura Victor.

Fredrik dá a volta na mesa.

— Lamento por ter que encurtar nossa reunião.

— Tudo bem — digo. — Obrigada por ajudar com Dina. Você avisa quando receber aquela ligação?

Fredrik assente.

— Com certeza. Farei isso.

— Obrigada.

Victor acompanha Fredrik até a porta de vidro e os dois a atravessam. Fico sentada, observando-os do outro lado do pátio de pedra e tentando ouvir o máximo que posso, mas eles fazem questão de falar em voz baixa. Isso também me deixa frustrada. E pretendo informar Victor disso.


CAPÍTULO OITO

Victor

Fredrik fecha a porta de correr feita de vidro.

— Ela não sabe nada sobre Niklas? — pergunta ele, como eu já previa.

— Não, mas vou ter que contar. Ela vai precisar ficar atenta o tempo todo. Agora mais do que nunca.

— Ela não pode ficar aqui por muito tempo — aconselha Fredrik, olhando, através do vidro, Sarai sentada no sofá lá fora e nos observando. — Você também não.

— Eu sei. Quando Niklas descobrir que ela participou do assassinato no restaurante de Hamburg, vai saber na mesma hora que também estou envolvido nisso. Ele não é bobo. Se Sarai está viva, Niklas vai saber que estou tentando ajudá-la.

— E como ele desconfia de que agora trabalho com você — acrescenta Fredrik —, ela corre tanto perigo perto de mim quanto de você.

— É verdade.

Fredrik balança a cabeça para mim, com um sorriso escondido no fundo dos olhos.

— Não entendo esse envolvimento. Respeito você como sempre, respeitei, Victor, mas nunca vou entender a necessidade de um homem amar uma mulher.

— Eu não estou apaixonado por ela. Ela só é importante para mim.

— Talvez não — retruca ele, indo para a cozinha. — Mas parece que o amor e o envolvimento trazem as mesmas consequências, meu amigo. — Sigo Fredrik até a cozinha iluminada e ele abre um armário. — Mas estou do seu lado. O que você precisar que eu faça para ajudar, é só pedir. — Ele aponta para mim perto do armário, agora com um pão na mão.

A empregada de Fredrik entra na cozinha, roliça e mais velha do que nós dois juntos, exatamente o tipo de mulher que jamais o atrairia, e foi por isso que ele a contratou. Ela lhe pergunta em espanhol se pode voltar para casa e ver a família mais cedo hoje. Fredrik responde em espanhol, concordando. Ela assente respeitosamente e passa por mim na sala. De soslaio, eu a observo pegar uma bolsa volumosa de couro marrom do chão, perto da espreguiçadeira, e colocá-la no ombro. Depois ela vai até a porta, fechando-a devagar ao sair.

Sarai está de pé nas sombras da sala quando desvio o olhar da porta. Nem ouvi a porta de vidro correr quando ela entrou, e pelo jeito Fredrik também não.

Ela vai para a cozinha iluminada, de braços cruzados, os dedos delicados segurando seus bíceps femininos, mas bem-definidos. Ela é linda demais, mesmo quando está desgrenhada assim.

— Quanto tempo vocês planejavam me deixar lá fora? — pergunta ela, com um traço de irritação na voz.

— Ninguém disse que você precisava ficar lá, gata — responde Fredrik.

Ele gosta dela, isso é óbvio para mim, e ele deve saber. Mas também sabe que vou matá-lo. Ainda assim, minha confiança em Fredrik é maior do que minha preocupação de que ele volte para o lado sombrio e a machuque. Fredrik Gustavsson é uma fera do tipo mais carnal, que adora mulheres e sangue, mas tem limites e critérios, além de levar a lealdade, o respeito e a amizade muito a sério. Sua lealdade a mim é, afinal, o motivo para ele trair a Ordem todos os dias me ajudando.

Sarai se aproxima de mim e me olha nos olhos, inclinando um pouco a cabeça para o lado. O cheiro de sua pele e o calor tênue que emana dela quase me fazem perder o controle. Tenho conseguido me conter bastante desde que a beijei no elevador. Pretendo continuar assim.

Ela não diz nada, mas continua me encarando como se esperasse alguma coisa. Fico confuso. Ela inclina a cabeça para o outro lado e seu olhar se suaviza, embora eu não saiba ao certo por quê. Parece maliciosa e cheia de expectativa.

Ouço Fredrik rir baixinho e a porta da geladeira se fechar, mas não tiro os olhos de Sarai.

— As coisas são tão mais fáceis do meu jeito. — Ouço-o dizer, com um sorriso na voz.

— Entre em contato comigo assim que tiver a informação sobre Niklas — peço, ainda olhando nos olhos de Sarai e ignorando o comentário dele. — E quando souber pelo seu contato se Dina Gregory está a salvo em Phoenix.

— Pode deixar — diz Fredrik, e então vai para a porta do corredor que leva ao seu quarto. Mas ele para e olha para nós. — Se você não se importa...

Enfim desvio o olhar de Sarai e dou atenção total a Fredrik.

— Não se preocupe — interrompo —, eu sei onde fica o quarto de hóspedes.

Ele enfia na boca um sanduíche que mal notei que ele preparava e morde, rasgando um pedaço de pão. Eu o vejo piscando para Sarai antes de desaparecer da sala. Foi algo inofensivo, uma menção ao que ele acha que pode acontecer entre nós quando sair, e não uma tentativa de flerte.

— Que informação sobre Niklas? — pergunta Sarai, seus traços suaves agora encobertos pela preocupação.

Estendo a mão e passo os dedos por algumas mechas do cabelo dela.

— Preciso contar muita coisa para você — anuncio, tirando a mão antes de perder o controle e acabar tocando nela mais do que pretendo. — Sei que você deve estar exausta. Por que não toma um banho e fica à vontade primeiro? Depois conversamos.

Um sorrisinho suave emerge em seus lábios, mas logo desaparece em seu rosto enrubescido.

— Você quer dizer que eu estou nojenta? — pergunta ela, tímida. — Esse é o seu jeito de me dizer que preciso lavar meu corpo nojento?

— Na verdade, sim — admito.

Por um momento ela faz uma careta e parece ofendida, mas então só balança a cabeça e dá risada. Admiro isso em Sarai. Admiro muita coisa nela.

— Tudo bem. — Sua expressão brincalhona fica séria de novo. — Mas você precisa me contar tudo, Victor. E eu sei que você deve ter muito para contar, mas saiba que também preciso dizer muita coisa para você.

Eu já esperava isso. E, antes que ela fique na ponta dos pés, incline o corpo na minha direção e me beije, já sei que, quando ela sair do banho, vou precisar decidir o que vamos fazer. Vou precisar tomar algumas decisões importantes, que nos afetarão.

Porque de uma coisa eu tenho certeza: Sarai não pode voltar para casa.


Sarai

Quando volto, Victor está na sala, acomodado na beira do sofá, curvado sobre a mesinha de centro feita de vidro que está cheia de pedaços de papel e fotografias. Entro, mas ele continua remexendo neles sem erguer a cabeça para me olhar. Só que ele não me engana, sei que sente a minha presença tanto quanto quero que ele sinta.

Vasculhei o guarda-roupa de Fredrik procurando uma camiseta branca, que vesti sobre meus seios nus. Infelizmente, tive que usar a mesma calcinha de antes, mas as cuecas boxer de Fredrik não são exatamente o tipo de lingerie que eu gostaria de usar para seduzir Victor. Só uma camiseta e uma calcinha. Claro que fiz questão de vestir o mínimo possível, porque desejo Victor e não tenho nenhuma vergonha de deixar isso claro. Mas ainda custo a acreditar que estou no mesmo cômodo que ele, depois de meses achando que ele havia ido embora para sempre.

Acho que o beijo no elevador é onde minha mente ficou suspensa, como se o tempo tivesse parado naquele momento e cada parte de mim ainda deseje que aquele instante continue. Contudo, o resto do mundo continua passando ao meu redor.

Eu me sento ao lado de Victor, recolhendo um pé descalço para o sofá e enfiando-o sob a minha coxa.

— O que é isso tudo? — Olho para os papéis e fotografias na mesa.

Ele mexe em alguns pedaços de papel, empilhando-os.

— É um serviço — explica ele, colocando a foto de um homem de camiseta regata na pequena pilha. — Agora eu trabalho por conta própria.

Isso me surpreende.

— Como assim? — Acho que sei o que ele quer dizer, mas custo a acreditar.

Ele pega a pilha de papéis e bate as laterais na mesa para ajeitar todas as folhas. Então enfia o maço em um envelope de papel pardo.

— Eu saí da Ordem, Sarai. — Ele olha para mim.

Victor aperta as pontas do fecho prateado para fechar o envelope.

Meus pensamentos se embaralham, minhas palavras ficam confusas na ponta da língua. Luto, desesperada, para acreditar no que ele acaba de me contar.

— Victor... mas... não...

— Sim — confirma ele, virando-se para mim e me olhando bem nos olhos. — É verdade. Eu me rebelei contra a Ordem, contra Vonnegut, e agora eles estão atrás de mim. — Ele volta a mexer nos outros papéis na mesa. — Mas ainda preciso trabalhar, por isso agora trabalho sozinho.

Balanço a cabeça sem parar, sem querer engolir a verdade. A ideia de Victor sendo caçado por aqueles que o fizeram ser como ele é, por qualquer um, faz um pânico febril correr pelas minhas veias.

Solto um longo suspiro.

— Mas... mas e Fredrik? E Niklas? Victor, eu... O que está acontecendo?

Ele respira fundo e deixa a folha de papel cair suavemente na mesa, então reclina as costas no sofá.

— Fredrik ainda trabalha para a Ordem. Está lá dentro. Ele vigia Niklas e... — seus olhos cruzam com os meus por um instante —... tem me ajudado a manter você a salvo.

Antes que eu consiga fazer mais perguntas presas na garganta, Victor se levanta e continua a falar, enquanto fico sentada e o observo com a boca semiaberta e as pernas dobradas sobre a almofada.

— Como você sabe, quando alguém está sob suspeita de trair a Ordem, é imediatamente eliminado. Mas acredito que Niklas deixou Fredrik vivo e não transmitiu suas preocupações a Vonnegut pelo simples fato de que Niklas está usando Fredrik para me encontrar. Assim como deixou você viva todo este tempo, esperando que um dia você o levasse a mim.

O que mais me choca não é o que Victor diz, mas o que ele deixa de fora. Tiro as duas pernas de cima do sofá e pressiono os pés no chão de madeira, apoiando as mãos nas almofadas.

— Victor, o que você está me dizendo? Quer dizer que... Niklas continua com Vonnegut?

Espero que não seja isso que ele esteja tentando me dizer. Espero de todo o coração que minha decisão de deixar Niklas vivo aquele dia no hotel, quando ele atirou em mim, não tenha sido o maior erro da minha vida.

Os olhos de Victor vagam para a porta de vidro, e sinto que uma espécie de sofrimento infinito o consome, mas ele não deixa transparecer.

— Você estava lá. Eu disse para o meu irmão que, se ele decidisse continuar na Ordem caso eu resolvesse sair, eu não ficaria bravo com ele. Dei a ele a minha palavra, Sarai. — Victor vai até a porta de vidro, cruza os braços e olha para a piscina azul iluminada que reluz sob o céu cinzento. — Agora é hora de Niklas brilhar, e não vou tirar isso dele.

— Que absurdo! — Salto do sofá com os punhos fechados. — Ele está atrás de você, não é? — Cerro os dentes e contorno a mesinha de centro. — Caralho, é isso, Victor? Para provar seu valor para Vonnegut, ele foi encarregado de matar você. Aquele merda do seu irmão traiu você. Ele acha que vai pegar o seu lugar na Ordem. Puta que pariu, não acredito...

— É o que é, Sarai — interrompe Victor, virando-se para me encarar. — Mas, neste momento, Niklas é a menor das minhas preocupações.

Cruzando os braços, começo a andar de um lado para outro, olhando os veios claros e escuros da madeira sob meus pés descalços. Minhas unhas ainda têm o esmalte vermelho-sangue de duas semanas atrás.

— Por que saiu da Ordem?

— Eu tive que sair. Não tinha escolha.

— Não acredito.

Victor suspira.

— Vonnegut descobriu sobre a gente — conta ele, ganhando minha atenção total. — Foi Samantha... na noite em que ela morreu. Antes que eu saísse da Ordem, encontrei Vonnegut em Berlim, o primeiro encontro frente a frente que tive com ele em meses. Foi em uma sala de interrogatório. Quatro paredes. Uma porta. Uma mesa. Duas cadeiras. Somente eu e Vonnegut sentados frente a frente, com uma luz brilhando no teto acima de nós. — Victor olha para trás pela porta de vidro e depois continua: — No início, eu estava certo de que ele tinha me levado para lá com a intenção de me matar. Eu estava preparado...

— Para morrer? — Se Victor responder que sim, vou dar um tapa na cara dele.

— Não — responde ele, e consigo respirar um pouco melhor. — Eu fui para lá preparado. Raptei a mulher de Vonnegut antes de ir encontrá-lo. Fredrik a manteve em uma sala, pronto para fazer... as coisas dele, caso fosse necessário.

No mesmo instante, quero perguntar o que são as “coisas” de Fredrik, mas deixo a pergunta de lado por enquanto e digo:

— Se Vonnegut quisesse matar você, a esposa dele seria a sua moeda de troca.

De costas para mim, ele assente.

— Samantha estava sendo vigiada pela Ordem. Provavelmente há muito tempo.

— Eles desconfiavam da traição dela? Por que não a mataram, então, como fizeram com a mãe de Niklas, ou como queriam fazer com Niklas?

Victor se vira para me encarar de novo.

— Eles não desconfiavam dela, Sarai, ela era... — Victor respira fundo e aperta os lábios.

— Ela era o quê? — Chego mais perto dele. Não gosto do rumo que a conversa está tomando.

— Ela era mais leal à Ordem do que eu jamais poderia ter imaginado — conta ele, e isso fere meu coração. — Sentado naquela sala com Vonnegut, quanto mais ele falava, mais eu começava a entender que Samantha me traiu da mesma forma que Niklas. Vonnegut me contou coisas que ele não tinha como saber. Ele sabia que eu ajudei você. Em algum momento antes de morrer, naquela noite, Samantha conseguiu passar informações a Vonnegut sobre nossa estadia por lá.

— Não acredito nisso. — Golpeio o ar com a mão diante de mim. — Samantha morreu tentando me proteger. Já falamos sobre isso. Não acredito em você, Victor. Ela era uma boa pessoa.

— Ela era boa manipuladora, Sarai, nada mais do que isso.

Balanço a cabeça, ainda sem acreditar.

— Foi Niklas quem contou a Vonnegut que você me ajudou. Só pode ter sido. Niklas sabia até que você tinha me levado para a casa de Samantha.

— Sim, mas Niklas não sabia que eu fiz Samantha provar nossa comida antes de a gente comer, naquela noite. Assim que Vonnegut mencionou quanto eu ainda desconfiava dela depois de tantos anos, eu soube que ela havia me traído.

— Mas isso não faz nenhum sentido. — Começo a andar pela sala de novo, de braços cruzados e com uma das mãos apoiada no rosto. — Por que ela me protegeria de Javier?

— Porque ela não era leal a Javier.

Jogo as mãos para o ar, atônita com aquela revelação.

— Não dá para confiar em ninguém — digo, me jogando no sofá e olhando para o nada.

— Não, não dá — concorda Victor, e eu olho para cima, detectando um significado oculto por trás de suas palavras. — Agora talvez você entenda por que eu não me envolvo com ninguém. Não é só o trabalho, Sarai. As pessoas em geral não são confiáveis, especialmente na minha profissão, na qual a confiança é tão rara que não vale a pena perder tempo e esforço procurando por ela.

— Mas você parece confiar em Fredrik — observo, olhando para Victor do sofá. — Por que me trouxe logo aqui? Não aprendeu a lição com Samantha?

Sua expressão fica um pouco mais sombria, ressentida pela minha acusação.

— Eu nunca disse que confiava em Fredrik. Mas no momento ele é meu único contato dentro da Ordem e, nos últimos sete meses, não fez nada que não o tornasse digno de confiança. Ao contrário, fez tudo para provar sua lealdade a mim.

— Mas isso não significa que seja verdade.

— Não, você tem razão, mas logo vou saber com cem por cento de certeza se Fredrik é confiável ou não.

— Como?

— Você vai descobrir comigo.

— Por que se dar a esse trabalho? Você disse que a confiança é tão rara que não vale o esforço.

— Você faz muitas perguntas.

— Pois é, acho que faço. E você não responde o suficiente.

— Não, acho que não. — Victor abre um sorrisinho, e meu coração se derrete instantaneamente em uma poça de mingau.

Desvio os olhos dos dele e disfarço meus sentimentos.

— Não estou segura aqui — digo, encarando-o novamente.

— Você não está segura em lugar nenhum — corrige Victor. — Mas, enquanto estiver comigo, nada vai acontecer com você.

— Quem está falando merda agora?

Ele levanta uma sobrancelha.

— Você não é meu herói, lembra? — digo para refrescar a memória de Victor. — Não é minha alma gêmea que jamais deixará que nada de ruim aconteça comigo. Devo confiar nos meus instintos primeiro e em você, se eu decidir confiar, por último. Você me disse isso certa vez.

— E continua sendo verdade.

— Então como pode dizer que nada vai me acontecer se eu estiver com você?

A expressão de Victor fica vazia, como se pela primeira vez na vida alguém o tivesse deixado sem palavras. Olho para seu rosto silencioso e sem emoção, e apenas seus olhos revelam um traço de torpor. Tenho a sensação de que ele falou sem pensar, que manifestou algo que sente de verdade, mas que jamais quis que eu soubesse: Victor quer ser meu herói, vai fazer qualquer coisa, tudo o que puder para me manter a salvo. Quer que eu confie totalmente nele.

E confio.

Ele volta para perto de mim e se senta ao meu lado. O cheiro de seu perfume é fraco, como se ele fizesse questão de usar o mínimo possível. Estou tonta de desejo. Ansiosa para sentir novamente seu toque, saborear seus lábios quentes, deixar que ele me tome como fez algumas noites antes que nos víssemos pela última vez. Não tenho pensado em nada além de Victor nos últimos oito meses da minha vida. Enquanto durmo. Como. Vejo TV. Transo. Me masturbo. Tomo banho. Cada coisa que fiz desde que ele me deixou naquele hospital com Dina fiz pensando nele.

— Você acha que Fredrik vai contar a Niklas onde a gente está? — Mudo de assunto por medo de deixar transparecer muita coisa cedo demais.

— Acho que se ele fosse fazer isso teria contado a Niklas o pouco que sabia sobre o seu paradeiro há muito tempo, e Niklas já teria tentado matar você — responde Victor.

— Tem alguma coisa... estranha em Fredrik. Você não sente?

Victor passa a mão pelo meu cabelo úmido. O gesto faz meu coração disparar.

— Você tem grande sensibilidade para as pessoas, Sarai — comenta ele, levando a mão ao meu queixo. — Tem razão sobre Fredrik. — Ele passa o polegar pelo meu lábio inferior. Um calafrio percorre o meio das minhas pernas. — Ele é... como dizer?... desequilibrado, de certa forma.

Minha respiração acelera, e sinto meus cílios tocando meu rosto quando os lábios de Victor cobrem os meus.

— Desequilibrado de que forma? — pergunto, ofegante, quando ele se afasta.

De olhos fechados, percebo que ele está observando a curva do meu rosto e meus lábios e sinto a respiração que sai suavemente de suas narinas.

Cada pelinho minúsculo se eriça quando a outra mão de Victor sobe e encontra minha cintura nua por baixo da camiseta. Seus dedos longos dançam sobre a pele do meu quadril e param por ali.

Abro os olhos e vejo os dele me encarando.

— Algum problema? — pergunta ele, e sua boca roça a minha de novo.

— Não, eu... eu só não esperava isso.

— Esperava o quê?

Sinto seus dedos levantando o elástico da minha calcinha. Minha cabeça está girando, sinto meu estômago se transformar em um emaranhado de músculos, trêmulo e nervoso.

— Isso — respondo, piscando. — Você está diferente — acrescento, baixinho.

— Culpa sua — diz Victor, e então seus lábios devoram os meus.

Ele me deita no sofá e se encaixa entre as minhas pernas.

Seu celular vibra na mesinha de centro, e percebo quanto sou humana quando xingo Fredrik por estragar aquele momento, mesmo que seja para me avisar de que Dina está a salvo.


CONTINUA

CAPÍTULO UM

Sarai

Já faz oito meses que fugi da fortaleza no México onde fui mantida contra minha vontade por nove anos. Estou livre. Levo uma vida “normal”, fazendo coisas normais com gente normal. Não fui mais atacada, ameaçada nem seguida por ninguém que ainda queira me matar. Tenho uma “melhor amiga”, Dahlia. Tenho a coisa mais parecida com uma mãe que já conheci, Dina Gregory. O que mais eu poderia querer? Parece egoísmo desejar qualquer outra coisa. Mas, apesar de tudo o que tenho, algo não mudou: continuo vivendo uma mentira.

Deixei amigos na Califórnia: Charlie, Lea, Alex e... Bri... Não, espera, quero dizer Brandi. Meu ex-namorado, Matt, era abusivo, por isso voltei para o Arizona. Ele me perseguiu por muito tempo depois que terminamos. Consegui uma ordem judicial para mantê-lo afastado, mas não funcionou. Ele atirou em mim há oito meses, mas não posso provar porque não cheguei a vê-lo. E tenho muito medo de denunciá-lo à polícia.

Claro que tudo isso é mentira.

São os pedaços da minha vida que acobertam o que realmente aconteceu comigo. Os pretextos para eu ter desaparecido aos 14 anos e ter ido parar em um hospital da Califórnia com um ferimento a bala. Jamais vou poder contar a Dina, Dahlia ou ao meu namorado, Eric, o que aconteceu de verdade: que fui levada para o México pela péssima versão de mãe que eu tinha, para morar com um chefão do tráfico. Jamais vou poder contar que fugi daquele lugar depois de nove anos e matei o homem que me manteve prisioneira por toda a minha adolescência. Quer dizer, claro que eu poderia contar a alguém, mas, se fizesse isso, só estaria pondo Victor em perigo.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/2_O_RETORNO_DE_IZABEL.jpg

 

Victor.

Não, nunca vou poder contar que um assassino me ajudou a fugir, ou que testemunhei Victor matando várias pessoas, inclusive a esposa de um empresário famoso e importante de Los Angeles. Nunca vou poder contar que, depois de tudo pelo que passei, depois de tudo o que vi, o que mais quero é fazer as malas e voltar para aquela vida perigosa. A vida com Victor.

Até hoje, falar o nome dele me acalma. Às vezes, quando estou acordada na cama à noite, murmuro seu nome só para ouvi-lo, porque preciso. Preciso dele. Não consigo tirá-lo da cabeça. Já tentei. Porra, e como tentei. Mas, não importa o que eu faça, continuo vivendo cada dia da minha vida pensando nele. Se está me vigiando. Se pensa em mim tanto quanto penso nele. Se ainda está vivo.

Pressiono o travesseiro contra a cabeça e fecho os olhos, imaginando Victor. Às vezes, é só assim que consigo gozar.

Eric aperta minhas coxas com as mãos e me imobiliza na cama, com o rosto enfiado no meio das minhas pernas.

Arqueio o quadril contra ele, roçando de leve contra sua língua frenética, até que ele faça meu corpo todo enrijecer e minhas coxas tremerem ao redor da sua cabeça.

— Meu Deus... — Estremeço enquanto gozo, então deixo os braços caírem entre as pernas, afundando os dedos no cabelo preto de Eric. — Caramba...

Sinto os lábios de Eric tocando minha barriga um pouco acima da pélvis.

Olho para o teto como sempre faço depois de um orgasmo, pois a culpa que sinto me deixa com vergonha de olhar para Eric. Ele é um cara superlegal. Meu namorado sexy de 27 anos, cabelo preto e olhos azuis, gentil, encantador, engraçado e perfeito. Perfeito para mim se eu nunca tivesse conhecido Victor Faust.

Estou arruinada pelo resto da vida.

Enxugo as gotas de suor da testa e Eric sobe pela cama, deitando-se ao meu lado.

— Você sempre faz isso — diz ele, brincando, enquanto cutuca minhas costelas com os nós dos dedos.

Como sinto muitas cócegas, eu me encolho e me viro para encará-lo. Sorrio com ternura e passo um dedo por seu cabelo.

— O que eu sempre faço?

— Esse negócio de ficar em silêncio. — Eric segura meu queixo entre o polegar e o indicador. — Eu faço você gozar e você fica bem quieta durante um tempão.

Eu sei e sinto muito, mas preciso apagar o rosto de Victor da minha cabeça antes de conseguir olhar você nos olhos. Sou uma pessoa horrível.

Eric me dá um beijo na testa.

— Isso se chama recuperação — brinco, beijando os dedos dele. — É totalmente inofensivo. Mas você deveria interpretar como um bom sinal. Você sabe o que está fazendo — digo, retribuindo o cutucão nas costelas.

E ele sabe mesmo o que está fazendo. Eric é ótimo na cama. Mas ainda sou emocionalmente muito ligada... viciada... em Victor, e tenho a sensação de que sempre serei.

Só consegui seguir a vida e me abrir a outros relacionamentos cinco meses depois que Victor foi embora. Conheci Eric no trabalho, na loja de conveniência. Ele comprou um saco de biscoitos e um energético. Depois disso, ele aparecia na loja duas, às vezes três vezes por semana. Eu não queria nada com ele. Queria Victor. Mas comecei a perder a esperança de que Victor um dia fosse voltar para mim.

Eric tenta passar um braço ao redor do meu corpo, mas me levanto casualmente e visto a calcinha. Ele não desconfia de nada, o que é bom. Não sinto vontade de ficar abraçadinha, mas a última coisa que quero é magoá-lo. Ele ergue os braços e entrelaça os dedos atrás da cabeça. Olha para mim, do outro lado do quarto, com um sorriso sedutor. Sempre faz isso quando não estou completamente vestida.

— Sarai.

— Oi. — Visto a camiseta e ajeito o rabo de cavalo.

— Eu sei que está em cima da hora — diz Eric —, mas queria ir com você e Dahlia para a Califórnia amanhã.

Merda.

— Mas você não disse que não ia conseguir folga no trabalho? — pergunto, vestindo o short e calçando os chinelos.

— Quando você perguntou se eu queria ir, não ia dar mesmo. Mas contrataram um funcionário novo, e meu chefe decidiu me dar folga.

Isso é uma péssima notícia. Não porque eu não o queira por perto — gosto de Eric, apesar da minha incapacidade de esquecer Victor Faust —, mas minha viagem de “férias” à Califórnia amanhã não é para fazer turismo, curtir a noite nem fazer compras na Rodeo Drive.

Estou indo até lá para matar um homem. Ou melhor, tentar matar um homem.

Já é ruim que Dahlia vá também, e já vai ser difícil guardar segredo de uma pessoa. Imagine duas.

— Você... não parece animada — comenta Eric, seu sorriso morrendo aos poucos.

Abro um sorriso largo e balanço a cabeça, voltando para perto dele e me sentando na beira da cama.

— Não, não, eu estou animada. É que você me pegou de surpresa. A gente vai sair às seis da manhã. É daqui a menos de oito horas. Você já fez as malas?

Eric dá uma risada e se estica na minha cama, me puxando para si. Eu me sento perto de sua cintura, apoiando um braço no colchão do outro lado dele, com os pés para fora da cama.

— Bom, eu só fiquei sabendo hoje à tarde, antes de sair do trabalho — explica ele. — Eu sei, está em cima da hora, mas só preciso enfiar umas coisas na mala e estou pronto.

Ele estende a mão e afasta do meu rosto os fios de cabelo que escaparam do rabo de cavalo.

— Ótimo! — minto, com um sorriso igualmente falso. — Então acho que está combinado.

Dina acorda antes de mim, às quatro da manhã. O cheiro de bacon é o que me desperta. Levanto da cama e entro debaixo do chuveiro antes de me sentar à mesa da cozinha. Um prato vazio já está à minha espera.

— Gostaria que você tivesse escolhido algum outro lugar para passar sua folga, Sarai — afirma Dina.

Ela se senta do outro lado da mesa e começa a encher seu prato. Pego alguns pedaços de bacon do monte e ponho no meu.

— Eu sei — digo —, mas, como falei para você, não vou deixar que meu ex me impeça de ver meus amigos.

Ela balança a cabeça cada vez mais grisalha e suspira.

Passei do limite em algum momento com meu amontoado de mentiras. Quando Victor levou Dina para o hospital em Los Angeles, depois que o irmão dele, Niklas, atirou em mim, ela não fazia ideia do que tinha acontecido. Só sabia que eu tinha levado um tiro. Demorei alguns meses até me sentir segura o suficiente para falar com ela sobre isso. Quer dizer, depois de bolar a história que eu ia contar. Foi aí que inventei o lance do ex-namorado violento. Eu deveria ter dito que fui assaltada. Por um desconhecido. A mentira seria muito mais fácil de manter. Agora que ela sabe que vou voltar para Los Angeles, está morrendo de preocupação, e já faz uns dois meses. Eu nem deveria ter contado que ia voltar lá.

Termino de comer o bacon e um pouco de ovos mexidos, junto com um copo de leite.

Dahlia e Eric chegam juntos assim que termino de escovar os dentes.

— Vamos logo, a gente precisa pegar a estrada — chama Dahlia, me apressando da porta. Seu cabelo castanho-claro está preso no alto da cabeça em um coque desalinhado de quem acabou de acordar.

Eu me despeço de Dina com um abraço.

— Eu vou ficar bem — digo a ela. — Prometo. Não vou nem chegar perto de onde ele mora.

Desta vez, chego até a imaginar um rosto masculino ao falar de alguém que não existe. Acho que já interpreto esse papel há tanto tempo que “Matt” e todos esses meus “amigos” de Los Angeles, de quem falo para todo mundo como se fossem reais, se tornaram reais no meu subconsciente.

Dina força um sorriso em seu rosto preocupado, e suas mãos soltam meus cotovelos.

— Você liga assim que chegar?

— Assim que eu entrar no quarto do hotel, ligo — respondo, assentindo.

Ela sorri e eu a abraço mais uma vez, antes de segui-los até o carro de Dahlia, que está esperando. Eric guarda minha mala no bagageiro, junto com as deles, e se senta no banco de trás.

— Hollywood, aí vamos nós! — exclama Dahlia.

Finjo metade da empolgação dela. Ainda bem que está muito cedo, senão Dahlia poderia intuir o verdadeiro motivo da minha falta de entusiasmo. Estico os braços para trás e bocejo, apoiando a cabeça no banco do carro. Sinto a mão de Eric no meu pescoço quando ele começa a massagear meus músculos.

— Não sei por que você quer ir a Los Angeles de carro — diz Dahlia. — Se a gente fosse de avião, não ia precisar acordar tão cedo. E você não estaria tão cansada e rabugenta.

Minha cabeça cai para a esquerda.

— Não estou rabugenta. Ainda mal falei com você.

Ela dá um sorrisinho.

— Exatamente. Sarai sem falar significa Sarai rabugenta.

— E se recuperando — acrescenta Eric.

Meu rosto fica vermelho e eu estico a mão atrás da cabeça, dando um tapinha de brincadeira na dele, que está fazendo maravilhas no meu pescoço. Fecho os olhos e vejo Victor.

Não de propósito.

Chegamos a Los Angeles depois de quatro horas na estrada. Eu não podia ir de avião porque não conseguiria levar minhas armas. É claro que Dahlia não pode saber disso. Ela acha apenas que quero apreciar a paisagem.

Tenho sete dias para fazer o que vim fazer. Isto é, se eu conseguir. Pensei no meu plano durante meses, em como vou fazer isso. Sei que é impossível entrar na mansão Hamburg. Para isso, eu precisaria ter um convite e socializar em público com o próprio Arthur Hamburg e seus convidados. Ele viu meu rosto. Bem, tecnicamente, viu mais do que meu rosto. Mas sinto que os acontecimentos daquela noite, quando Victor e eu enganamos Hamburg para que ele nos convidasse para ir ao seu quarto e conseguíssemos matar sua esposa, são algo que ele jamais vai esquecer, nem os mínimos detalhes.

Se tudo der certo, uma peruca loura platinada de cabelo curto e maquiagem escura e pesada vão esconder aquela identidade de cabelo longo e castanho que Hamburg reconheceria assim que eu aparecesse.


CAPÍTULO DOIS

Sarai

Passo o dia todo com Eric e Dahlia, fingindo me divertir para passar o tempo. Saímos para almoçar e para fazer um tour por Hollywood com um guia e visitar um museu antes de voltarmos para o hotel, exaustos. Quer dizer, finjo estar exausta o suficiente para querer dar o dia por encerrado. Na verdade, o que preciso é me preparar para ir ao restaurante de Hamburg ainda hoje.

Dahlia já acha que tem algo errado comigo.

— Você está ficando doente? — pergunta ela, estendendo a mão entre nossas espreguiçadeiras à beira da piscina e sentindo a temperatura da minha testa.

— Estou ótima — respondo. — Só cansada porque levantei muito cedo. E quando foi a última vez que andei tanto assim em um dia só?

Dahlia volta a se recostar em sua espreguiçadeira e ajeita os óculos de sol grandes e redondos no rosto.

— Bom, espero que não esteja cansada amanhã — diz Eric, do outro lado. — Tem tantas coisas que eu quero fazer. Não venho para Los Angeles desde que meus pais se divorciaram.

— Pois é. É a minha primeira vez aqui em dois anos — afirma Dahlia.

Um adolescente pula na piscina e a água respinga em nós. Ergo as costas da espreguiçadeira e agito a revista que estava lendo para tirar as gotas. Ponho os óculos escuros no alto da cabeça. Jogo as pernas para o lado e fico de pé.

— Acho que vou voltar para o quarto e tirar uma soneca — anuncio, pegando minha bolsa do chão.

Eric se ergue também e tira os óculos escuros.

— Se quiser, vou com você — oferece ele.

Agito a mão para ele, pedindo que não se levante.

— Não, fica aí e faz companhia para a Dahlia — sugiro, ajeitando a bolsa no ombro. Abaixo os óculos escuros de novo para que ele não perceba minha mentira.

— Tem certeza de que você está bem? — pergunta Dahlia. — Sarai, você está de férias, lembra? Veio para cá se divertir, não para cochilar.

— Acho que vou estar cem por cento amanhã. Só preciso de um banho quente e demorado e de uma boa noite de sono.

— Ok, vou acreditar — diz Dahlia. — Mas nem vem com doença para o meu lado. — Ela aponta o dedo para mim, com ar severo.

Eric fecha os dedos em torno do meu pulso e me puxa para perto.

— Tem certeza de que não quer que eu vá? — Ele me beija e eu correspondo antes de me levantar de vez.

— Tenho — respondo, baixinho, e saio na direção do elevador.

Assim que entro no quarto, tranco a porta com a corrente para que Eric e Dahlia não entrem de surpresa, jogo a bolsa no chão e abro meu laptop, digitando a senha. Enquanto o laptop inicia, olho pela janela e vejo meus amigos, figuras pequenas daquela distância, ainda à beira da piscina. Eu me sento diante da tela e, provavelmente pela centésima vez, olho cada página do site do restaurante de Hamburg, verificando de novo o horário de funcionamento e passando os olhos pelas fotos profissionais do lugar, dentro e fora. Na verdade, nada disso me ajuda muito com o que pretendo fazer, mas olho tudo de novo todo dia, de qualquer maneira.

Derrotada, bato a palma da mão com força no tampo da mesa.

— Droga! — exclamo, desabando na poltrona enquanto passo as mãos pelo cabelo.

Ainda não sei como vou conseguir ficar a sós com Hamburg sem ser vista. Sei que estou dando um passo maior do que a perna. Sei disso desde que tive essa ideia maluca, mas também sei que, se ficar apenas pensando a respeito, nunca vou passar dessa fase.

Vim para cá com um plano: entrar disfarçada no restaurante e agir como qualquer outro cliente. Sondar o lugar por uma noite. Saber onde ficam as saídas. As entradas para outras partes do prédio. Os banheiros. Minha prioridade número um, contudo, é encontrar a sala de onde Hamburg observa do alto seus clientes e ouve a conversa deles pelo minúsculo microfone escondido no arranjo de cada mesa. Então pretendo me enfiar na sala e cortar a garganta daquele porco.

Contudo, agora que estou aqui, a menos de seis quadras do restaurante, e agora que o tempo está passando tão depressa, estou menos confiante. Isso não é um filme. Sou uma idiota por achar que posso adentrar um lugar desses sem ser vista, tirar a vida de um homem sem chamar atenção e fugir sem ser capturada.

Apenas Victor conseguiria fazer algo assim.

Bato no tampo da mesa de novo, mais de leve desta vez, fecho o laptop e me levanto. Ando de um lado para outro no carpete vermelho e verde. E bem quando resolvo seguir pelo corredor para o quarto separado que reservei sem Dahlia e Eric saberem, a porta se abre um pouco, mas é travada pela corrente.

— Sarai? — chama Dahlia do outro lado. — Vai deixar a gente entrar?

Suspiro fundo e destranco a porta.

— Por que a corrente? — pergunta Eric, entrando atrás de Dahlia.

— Força do hábito.

Eu me jogo na ponta da cama king-size.

Os dois deixam suas coisas no chão. Dahlia se senta à mesa, ao lado da janela, e Eric se deita atravessado na cama ao meu lado, cruzando as pernas na altura dos calcanhares.

— Pensei que você ia tirar uma soneca — diz Dahlia.

Ela passa os dedos com cuidado pelo cabelo úmido, fazendo caretas quando se depara com alguma mecha mais embaraçada.

— Dahlia — digo, olhando para os dois. — Eu subi agora há pouco. Pensei que vocês iam ficar na piscina mais um tempo.

Espero ter conseguido disfarçar o aborrecimento na minha voz por eles terem vindo me encontrar tão cedo. Não consigo evitar: estou estressada demais, além de preocupada com a simples presença dos dois aqui comigo. Não quero que eles se machuquem nem que se envolvam de forma alguma com meu motivo para estar aqui.

— A gente pode sair e deixar você sozinha, se quiser — sugere Eric, baixinho, atrás de mim.

Eu me arrependo na mesma hora do que disse, porque é óbvio que não disfarcei o aborrecimento tão bem quanto esperava.

Inclino a cabeça para trás e suspiro, esticando o braço para tocar o tornozelo dele.

— Desculpa — digo, sorrindo para Dahlia. — Sabe, eu... — Então, de repente, uma desculpa perfeitamente plausível para o modo como tenho agido surge na minha cabeça, e a torneira das mentiras se abre. — Eu só fico meio nervosa por estar de volta a Los Angeles.

Dahlia faz cara de “ah, entendi”, empurra os pés de Eric para o lado e se senta perto de mim. Ela passa o braço por cima dos meus ombros e segura meu antebraço.

— Imaginei que o problema fosse esse.

Percebo que ela olha de relance para Eric e tenho a impressão de que foi sobre isso que os dois falaram enquanto ficaram na piscina, depois que fui embora.

Aposto que também foi por isso que decidiram subir tão cedo para me ver.

— A gente queria ver como você estava — acrescenta Eric atrás de mim, confirmando minha suspeita.

Sinto a cama se mexer quando ele se senta.

Eu me levanto antes que ele consiga me abraçar. É nesse exato momento que me dou conta de como tenho feito isso com frequência no último mês. Não sei por quanto tempo mais vou conseguir enganá-lo. Sei que deveria simplesmente contar o que sinto, que não gosto tanto de Eric quanto ele gosta de mim. Mas não consigo dizer a verdade. Eu precisaria inventar mais uma mentira, e estou tão atolada em mentiras que me sinto afogada nelas.

Ao mesmo tempo, deixei nossa relação durar tanto porque eu queria de verdade sentir por ele algo tão profundo quanto o que ele parece sentir por mim. Queria seguir em frente, esquecer Victor e ser feliz com a vida que ele me deixou.

Mas não consigo. Não consigo mesmo...

— Ele nem vai saber que você está aqui — diz Eric sobre “Matt”. — Além disso, mesmo que ele descobrisse, eu ia encher o cara de porrada assim que o visse.

Esboço um sorriso para Eric.

— Eu sei que você faria isso — digo, mas me sinto ainda pior, porque os únicos dois amigos que tenho no mundo não fazem nem ideia de quem sou.

Cruzo os braços, vou até a janela e olho para fora.

— Sarai — chama Dahlia. — Não queria dizer isso, mas, se você está tão preocupada com a possibilidade de Matt descobrir que você está em Los Angeles, acho que não é boa ideia visitar seus amigos aqui.

— Eu sei, você tem razão. Sei que eles não contariam para Matt, mas acho que é melhor eu ficar só com vocês dois enquanto estivermos aqui.

Eu me viro para encará-los.

— É um bom plano — diz Eric, com um sorriso radiante.

É um bom plano, com certeza, porque agora não preciso mais inventar outra desculpa para não apresentar os dois aos meus amigos que não existem.

Dahlia se aproxima de mim.

— A gente devia ter ido para a Flórida ou algum lugar assim, hein?

Olho pela janela de novo.

— Não — respondo. — Adoro esta cidade. E sei que vocês queriam muito vir para cá. — Dou um sorriso rápido. — Sugiro que a gente curta ao máximo esta semana.

Ela me empurra com o ombro de brincadeira.

— Essa é a Sarai que eu conheço — diz Dahlia, sorrindo.

É, só que não sou essa pessoa...

Ela vai até Eric e o puxa pelo braço, levantando-o da cama.

— Vamos sair daqui e deixar a mocinha descansar.

Eric se levanta e se aproxima de mim. Então pega meus braços e me vira para encará-lo. Com aqueles olhos azul-bebê, ele faz a melhor expressão amuada que consegue.

— Se precisar de mim para qualquer coisa, pode me chamar que eu venho.

Concordo com a cabeça e lhe ofereço um sorriso sincero. Ele merece, por ser tão legal comigo.

— Pode deixar.

Então eu os empurro porta afora com as duas mãos.

— Eu diria para vocês não se divertirem muito sem mim, mas isso seria pedir demais.

Dahlia ri baixinho ao sair para o corredor.

— Não, não é pedir muito. — Ela levanta dois dedos. — Palavra de escoteiro.

— Acho que não é assim que se faz, Dahl — diz Eric.

Ela faz um gesto para dispensar as palavras dele.

— Trate de dormir — sugere Dahlia. — Porque amanhã você vai precisar estar novinha em folha.

— De acordo — digo, assentindo.

— Tchau, amor — diz Eric antes de eu fechar a porta.

Fico com as costas apoiadas na porta e solto um suspiro longo e profundo.

Fingir é difícil demais. Bem mais difícil do que simplesmente ser eu mesma, por mais anormal e imprudente que eu seja.

— Eu sei o que preciso fazer — digo em voz alta.

Falar sozinha é minha nova mania, porque me ajuda a visualizar e entender melhor as coisas.

Volto para a janela e olho a cidade de Los Angeles, com os braços cruzados.

— Preciso de um disfarce, mas não para me esconder de Hamburg. Só das câmeras e de qualquer outra pessoa. Eu quero que Hamburg me veja. Só assim vou conseguir entrar.


CAPÍTULO TRÊS

Sarai

Dahlia e Eric só voltam para o quarto algumas horas mais tarde, depois de escurecer. Eu já tinha tomado banho, vestido short e camiseta e deixado a luz apagada para parecer que estava dormindo. Assim que ouvi o cartão passando pela porta, pulei na cama e me espalhei pelo colchão, como sempre faço quando durmo de verdade. Eric entrou na ponta dos pés, tentando não “me acordar”, mas me virei, soltei um resmungo e abri os olhos para mostrar que acordei. Ele pediu desculpas e perguntou se eu queria ir com ele e Dahlia a uma boate ali perto, insistindo que, se eu não fosse, ele também não iria. Mas logo rejeitei essa ideia. Percebi que ele queria muito ir e não posso culpá-lo: se eu estivesse no lugar dele, não iria querer ficar em um quarto escuro de hotel às oito da noite de uma sexta-feira, em uma das cidades mais animadas dos Estados Unidos.

Eric e Dahlia saírem era exatamente do que eu precisava. Passei aquelas duas horas inteiras tentando inventar uma desculpa para explicar a eles por que eu ia sair, aonde iria e por que eles não poderiam ir junto.

Eles resolveram isso para mim.

Minutos após Eric sair do quarto, espero Dahlia — em seu próprio quarto, ao lado do nosso — tirar o biquíni e se vestir. Pelo olho mágico da minha porta, eu os vejo indo embora pelo corredor. Conto até cem enquanto ando de um lado para outro sem parar. Então pego minha bolsa e vou até a porta. Ando depressa pelo corredor na direção oposta e chego ao quarto secreto, do outro lado do prédio.

Com certa paranoia de ser flagrada, vasculho minha bolsa e encontro tudo, menos a chave do quarto. Enfim consigo senti-la entre os dedos e me apresso para entrar, travando a porta com a corrente. Abro a mala ao pé da cama e tiro minha peruca curta platinada, passando os dedos para ajeitar as mechas desalinhadas, e então a deixo sobre o abajur ao lado para que não perca a forma.

Visto um Dolce & Gabbana curtinho e me maquio com cores escuras e pesadas, o que, depois de passar um tempão praticando em casa, faço bem. Então calço as sandálias de salto alto. Andar de salto é outra coisa que passei muito tempo tentando aprender. Meu alter ego, Izabel Seyfried, saberia andar de salto e o faria bem. Por isso, eu precisava acompanhar.

Em seguida, molho o cabelo e o divido em duas partes atrás. Enrolo cada metade e cruzo uma sobre a outra na nuca. Vários grampos depois, meu longo cabelo castanho está bem preso no couro cabeludo. Visto a touca da peruca e depois a própria peruca, ajustando-a por muito tempo até deixar tudo perfeito.

Por fim, prendo uma bainha de punhal em torno da coxa e a cubro com o tecido do vestido.

Fico de pé diante do espelho de corpo inteiro e me avalio de todos os ângulos possíveis. Estar loura é estranho. Satisfeita, pego a bolsinha preta e a enfio debaixo do braço, com a pequena pistola formando certo volume nela. Estico o braço para girar a maçaneta, mas deixo minha mão cair junto ao corpo.

“Que droga eu estou fazendo?”

O que precisa ser feito.

“E por que eu estou fazendo isso?”

Porque preciso.

Não consigo tirar da cabeça as coisas que aquele homem confessou, as pessoas que matou por causa de um fetiche sexual doentio. Todas as noites desde que Victor me deixou, quando fecho os olhos, vejo o rosto de Hamburg e aquele sorriso de gelar o sangue que ele abriu quando me curvei sobre a mesa, exposta na frente dele. Vejo o rosto de sua esposa, esquelético e combalido, seus olhos fundos turvados pela resignação. Ainda sinto até o fedor da urina que secou em suas roupas e no catre infestado onde ela dormia, naquele quarto escondido.

Meu peito se enche de ar e eu o prendo por vários segundos, antes de soltar um longo suspiro.

Não posso esquecer. A necessidade de matá-lo é como uma coceira no meio das costas. Não posso alcançar naturalmente, mas vou me curvar e torcer os braços até doerem para coçar.

Não posso esquecer...

E talvez... só talvez também acabe chamando a atenção de um certo assassino que não consigo me obrigar a esquecer.

Assim que passo pela porta, deixo Sarai para trás e me torno Izabel por uma noite.

Por não ter pensado de antemão na importância de ao menos alugar um carro chique, salto do táxi a duas quadras do restaurante e ando o resto do caminho. Izabel jamais seria vista andando de táxi.

— Mesa para um? — pergunta o recepcionista assim que entro no restaurante.

Inclino a cabeça e olho para ele com um ar irritado.

— Algum problema? Não posso fazer uma refeição sozinha? Ou você está dando em cima de mim? — Abro um sorrisinho e inclino a cabeça para o outro lado. Ele está ficando nervoso. — Você gostaria de jantar comigo... — olho para o nome bordado no paletó — ... Jeffrey? — Chego mais perto. Ele dá um passo constrangido para trás.

— Hã... — Ele hesita. — Peço desculpas, senhora...

Recuo, trincando os dentes.

— Nunca me chame de senhora — digo com rispidez. — Me leve até uma mesa. Para um.

Ele assente e pede que eu o siga. Quando chego à minha mesinha redonda com duas cadeiras, no meio do restaurante, me sento e deixo a bolsa ao lado. Um garçom se aproxima quando o recepcionista se afasta e me apresenta a carta de vinhos. Eu a rejeito com um movimento dos dedos.

— Quero apenas água com uma rodela de limão.

— Pois não, senhora — diz ele, mas deixo passar.

Enquanto o garçom se afasta, começo a examinar o lugar. Há uma placa indicando a saída à minha esquerda, bem longe, perto do corredor. Há outra à minha direita, próxima à escada que leva para o segundo piso. O restaurante está praticamente igual à primeira vez que vim: escuro, não muito cheio e bastante silencioso, embora desta vez eu ouça jazz baixinho vindo de algum lugar. Ao observar o recinto, paro de repente ao ver a mesa à qual me sentei com Victor quando vim com ele, meses atrás.

Eu me perco na memória, vendo tudo exatamente como aconteceu. Quando olho para as duas pessoas sentadas no outro lado do salão, só consigo me ver com Victor:

— Venha cá — diz ele, em um tom de voz mais delicado.

Deslizo os poucos centímetros que nos separam e me sento encostada a ele.

Seus dedos dançam pela minha nuca quando ele puxa minha cabeça para perto de si. Meu coração bate descompassado quando ele roça os lábios na lateral do meu rosto. De repente, sinto sua outra mão entrando pelo meio das minhas coxas e subindo por baixo do vestido. Minha respiração para. Devo abrir as pernas? Devo ficar imóvel e travá-las? Sei o que quero fazer, mas não sei o que devo fazer, e minha mente está a ponto de desistir.

— Tenho uma surpresa para você esta noite — murmura ele no meu ouvido.

Sua mão se aproxima mais do calor no meio das minhas pernas.

Gemo baixinho, tentando não deixar que ele perceba, embora tenha certeza absoluta de que percebeu.

— Que tipo de surpresa? — pergunto, com a cabeça inclinada para trás, apoiada em sua mão.

— Vai querer algo mais? — Ouço uma voz, e sou arrancada do meu devaneio.

O garçom está segurando o cardápio. Minha água com uma rodela de limão na borda do copo já está diante de mim.

Um pouco confusa de início, apenas assinto, mas faço que não em seguida.

— Ainda não sei — respondo, enfim. — Deixe o cardápio. Talvez eu peça mais tarde.

— Pois não — diz o garçom.

Ele deixa o cardápio na mesa e vai embora.

Olho para a varanda e para as mesas encostadas no balaústre requintado. Onde Hamburg pode estar? Sei que ele está no andar de cima porque Victor disse que ele ficava por lá. Mas onde? Eu me pergunto se ele já me viu, e no mesmo instante meu estômago se embrulha de nervoso.

Não, não posso parecer nervosa.

Endireito as costas na cadeira e tomo um gole da água. Deixo o dedo mindinho levantado, o que me faz parecer muito mais rica, ou apenas mais esnobe. Fico observando os clientes indo e vindo, escuto sua conversa supérflua e me pego imaginando qual dos casais que estão ali poderia acabar na mansão de Hamburg no fim de semana, ganhando muito dinheiro para deixar que ele os veja foder.

Então olho para o arranjo de flores vermelhas em um pequeno vaso de vidro no centro da minha mesa. Pego o celular na bolsa, finjo digitar um número e o coloco perto do ouvido, para que ninguém ache que estou falando sozinha.

— Este recado é para Arthur Hamburg — digo em voz baixa, inclinando-me um pouco para a frente a fim de que o microfone escondido no vaso de flores capte minha voz. — Com certeza você se lembra de mim, não é? Izabel Seyfried. Há quanto tempo, não?

Com cuidado, olho para os lados, esperando ver um ou dois homens parrudos de terno se aproximando de mim com armas em punho.

— Não estou sozinha — continuo —, por isso nem pense em fazer alguma idiotice. A gente precisa conversar.

Olhando para a varanda acima de mim, tento descobrir onde ele pode estar, torcendo para que esteja ali. Alguns minutos tensos se passam, e, quando começo a pensar que a noite foi em vão e que eu estava mesmo falando sozinha, noto um movimento no piso superior, logo acima da saída à minha direita. Meu coração bate forte quando vejo a figura alta e escura sair das sombras e descer a escada.

Eu me lembro desse homem de ombros largos, cabelo grisalho e uma covinha no meio do queixo. É o gerente do restaurante, Willem Stephens, que já encontrei aqui uma vez.

Ele se aproxima da minha mesa sem expressar nenhuma emoção, com as mãos enormes cruzadas à frente, as costas retas, o queixo anguloso imóvel.

— Boa noite, srta. Seyfried. — A voz dele é profunda e sinistra. — Posso perguntar onde está seu dono?

Levanto os olhos para encará-lo, dou um sorrisinho, tomo um gole da minha água e devolvo o copo à mesa, sem pressa. Cada fibra do meu ser está gritando, dizendo como fui idiota em vir até aqui. Por mais que eu saiba que é verdade, não importa. Não é o medo que me faz tremer por dentro, é a adrenalina.

— Victor Faust não é meu dono — explico, com calma. — Mas ele está aqui. Em algum lugar. — Um sorriso tênue e dissimulado toca meus lábios.

Os olhos de Stephens percorrem o salão sutilmente e voltam a me encarar.

— Por que está aqui? — pergunta ele, perdendo um pouco o ar de gerente sofisticado.

— Tenho negócios a discutir com Arthur Hamburg — respondo, confiante. — É do maior interesse dele marcar um encontro privado comigo. Aqui. Hoje. De preferência agora.

Tomo outro gole.

Noto que o pomo de adão de Stephens se move quando ele engole em seco, bem como os contornos de seu queixo quando ele cerra os dentes. Ele olha para o lugar de onde veio, no andar de cima, e percebo um aparelhinho preto escondido em seu ouvido esquerdo. Parece que ele está ouvindo alguém falar. Eu chutaria que é Hamburg.

Ele me encara de novo, com os olhos escuros e cheios de ódio, mas mantém o semblante inexpressivo com a mesma perfeição de Victor.

Ele descruza os braços, estende a mão direita para mim e diz:

— Por aqui.

Ele só deixa os braços penderem, relaxados, quando me levanto. Sigo Stephens pelo restaurante e escada acima, para o piso da varanda.

Apenas duas coisas podem acontecer: ou esta será minha primeira noite como assassina ou a última da minha vida.


CAPÍTULO QUATRO

Sarai

— Se encostar em mim — digo para o guarda-costas de terno à porta da sala particular de Hamburg —, enfio suas bolas em um moedor de carne.

As narinas do segurança se dilatam e ele olha para Stephens.

— Você solicitou uma reunião com o sr. Hamburg — diz Stephens atrás de mim. — É claro que vamos revistá-la antes para verificar se está armada.

Droga!

Calma. Fique calma. Faça o que Izabel faria.

Respiro fundo, encarando-os com desprezo e um ar ameaçador. Então jogo minha bolsinha preta no segurança. Ele pega a bolsa quando ela bate em seu peito.

— Acho que está bem claro que eu não conseguiria esconder uma arma em um vestido como este, a menos que a enfiasse na boceta — digo, olhando para Stephens. — Minha arma está na bolsa. Mas nem pense em tocar...

— Deixem a moça entrar — ordena da porta uma voz familiar.

É Hamburg, ainda balofo e grotesco como antes, usando um terno imenso que parece em vias de estourar se ele respirar fundo demais.

Abro um leve sorriso para o segurança, que me encara com olhos assassinos. Conheço esse olhar, até demais. O homem tira a pistola e me devolve a bolsa.

— Sr. Hamburg — diz Stephens —, eu deveria ficar na sala com o senhor.

Hamburg balança a papada, rejeitando a sugestão.

— Não, vá cuidar do restaurante. Se essas pessoas tivessem vindo me matar, não seriam tão óbvias. Eu vou ficar bem.

— Pelo menos deixe Marion à porta — sugere Stephens, olhando para o guarda-costas.

— Sim — concorda Hamburg. — Você fica aqui. Não deixe ninguém interromper nossa... — diz ele, me olhando com frieza — reunião, a menos que eu peça. Se em algum momento você não ouvir minha voz por mais de um minuto, entre na sala. Como precaução, é claro.

Ele abre um sorrisinho para mim.

— É claro. — Imito Hamburg e sorrio também.

Ele dá um passo para o lado e me convida a entrar.

— Pensei que isso tivesse acabado, srta. Seyfried.

Hamburg fecha a porta.

— Sente-se — pede ele.

A sala é bem grande, com paredes lisas e arredondadas, sem cantos, de um lado a outro. Uma série de grandes quadros retratando o que parece ser cenas bíblicas rodeia uma grande lareira de pedra. Cada imagem é emoldurada em uma caixa de vidro, com luzes na parte de baixo. A sala é pouco iluminada, como o restaurante, e o cheiro é de incenso ou talvez de óleo aromático de almíscar e lavanda. Na parede à minha esquerda, há uma porta aberta que leva a outra sala, onde a luz cinza-azulada de várias telas de TV brilha nas paredes. Chego mais perto para me sentar na poltrona de couro com encosto alto diante da escrivaninha e espio dentro da saleta. É como eu imaginava. As telas mostram várias mesas do restaurante.

Hamburg fecha essa porta também.

— Não, está longe de acabar — respondo, enfim.

Cruzo as pernas e mantenho a postura ereta, o queixo levantado com ar confiante e os olhos em Hamburg, enquanto ele atravessa a sala na minha direção. Puxo a barra do vestido para cobrir completamente o punhal preso na coxa. Minha bolsa está no meu colo.

— Vocês já tiraram minha esposa de mim. — A indignação transparece na voz dele. — Não acham que foi o suficiente?

— Infelizmente, não. — Abro um sorriso malicioso. — Não foi o suficiente para você e sua esposa tirarem uma vida? Não, não foi — respondo por ele. — Vocês tiraram muitas vidas.

Hamburg morde o interior da bochecha e se senta atrás da escrivaninha, de frente para mim. Ele apoia as mãos gordas sobre o tampo de mogno. Percebo quanto ele quer me matar ali mesmo onde estou. Mas não fará isso porque acredita que não estou sozinha. Ninguém em sã consciência faria algo assim, vir até aqui sozinha, inexperiente e desprevenida.

Ninguém, a não ser eu.

Preciso garantir que ele continue acreditando que tenho cúmplices até descobrir como vou matá-lo e sair da sala sem ser pega. O pedido de Hamburg para que o guarda-costas entrasse na sala depois de um minuto sem ouvir sua voz pôs mais um obstáculo no plano que, na verdade, nunca tive de fato.

— Bem, devo dizer uma coisa — diz Hamburg, mudando de tom. — Você é deslumbrante com qualquer tipo de peruca. Mas admito que prefiro a morena.

Ele acha que meu cabelo castanho-avermelhado era uma peruca. Ótimo.

— Você é doente. Sabe disso, certo? — Tamborilo com as unhas no braço da poltrona.

Hamburg abre um sorriso medonho. Estremeço por dentro, mas mantenho a compostura.

— Eu não matei aquelas pessoas de propósito. Elas sabiam no que estavam se metendo. Sabiam que, no calor do momento, alguém poderia perder o controle.

— Quantas?

Hamburg estreita os olhos.

— O que importa isso, srta. Seyfried? Uma. Cinco. Oito. Por que não diz logo o motivo da sua visita? Dinheiro? Informação? A chantagem assume muitas formas, e não seria a primeira vez que enfrento uma. Sou um veterano.

— Fale sobre a sua esposa — peço, ganhando tempo e fingindo ainda ser quem dá as cartas. — Antes de “ir direto ao assunto”, quero entender sua relação com ela.

Uma parte de mim quer saber de verdade. E estou incrivelmente nervosa; sinto um enxame zumbindo no meu estômago. Talvez jogar conversa fora ajude a acalmar minha mente.

Hamburg inclina a cabeça para o lado.

— Por quê?

— Apenas responda à pergunta.

— Eu a amava muito — responde ele, relutante. — Ela era a minha vida.

— Aquilo é amor? — pergunto, incrédula. — Você manchou a memória dela ao dizer que ela era uma viciada em drogas que se suicidou, só para salvar a própria pele, e chama isso de amor?

Noto uma luz se movendo no chão, por baixo da porta da sala de vigilância. Não havia ninguém lá dentro antes, ao menos que eu tivesse visto.

— Como a chantagem, o amor assume muitas formas. — Hamburg apoia as costas na poltrona de couro, que range, cruzando os dedos roliços sobre a enorme barriga. — Mary e eu éramos inseparáveis. Não éramos como outras pessoas, outros casais, mas o fato de sermos tão diferentes não significava que nos amávamos menos do que os outros. — Os olhos dele cruzam os meus por um momento. — Tivemos sorte por encontrar um ao outro.

— Sorte? — pergunto, pasma com o comentário. — Foi sorte duas pessoas doentes se encontrarem e se unirem para fazer coisas doentias com os outros? Não entendo.

Hamburg balança a cabeça como se fosse um velho sábio e eu fosse jovem demais para entender.

— Pessoas diferentes como Mary e eu...

— Doentes e dementes — corrijo. — Não diferentes.

— Chame como quiser — diz ele, com ar de resignação. — Quando você é tão diferente assim da sociedade, do que é aceitável, encontrar alguém como você é algo muito raro.

Sem perceber, cerro os dentes. Não porque Hamburg esteja me irritando, mas porque nunca imaginei que esse homem nojento pudesse me dizer qualquer coisa que me fizesse pensar na minha situação com Victor, ou qualquer coisa que eu pudesse entender.

Afasto esse pensamento.

A luz fraca sob a porta da sala de vigilância se move de novo. Finjo não ter notado, sem querer dar a Hamburg qualquer motivo para achar que estou pensando em outra saída.

— Vim aqui saber nomes — digo de repente, sem ter pensado bem a respeito.

— Que nomes?

— Dos seus clientes.

Algo muda nos olhos de Hamburg, ele vai tomar o controle da situação.

— Você quer os nomes dos meus clientes? — pergunta ele, desconfiado.

Que merda...

— Pensei que você e Victor Faust já estivessem de posse da minha lista de clientes.

Continue séria. Não perca a compostura. Merda!

— Sim, estamos, mas me refiro àqueles que você não mantinha nos registros.

Acho que vou vomitar. Parece que minha cabeça está pegando fogo. Prendo a respiração, torcendo para ter me livrado dessa.

Hamburg me examina em silêncio, vasculhando meu rosto e minha postura em busca de qualquer sinal de autoconfiança abalada. Ele coça o queixo gordo e cheio de dobras.

— Por que você acha que existe uma lista fantasma?

Suspiro meio aliviada, mas ainda não estou fora de perigo.

— Sempre existe uma lista fantasma — afirmo, embora não faça nem ideia do que estou dizendo. — Quero pelo menos três nomes que não estejam no registro que nós temos.

Sorrio, sentindo que recuperei o controle da situação.

Até ele falar:

— Diga você três nomes da lista que já tem, e eu dou o que você quer.

É oficial: perdi o controle.

Engulo em seco e me controlo antes de parecer “pega no flagra”.

— Você acha que eu carrego a lista na bolsa? — pergunto com sarcasmo, tentando continuar no jogo. — Nada de negociações ou meios-termos, sr. Hamburg. O senhor não está em condições de fazer nenhuma barganha.

— É mesmo? — pergunta ele, sorrindo.

Ele suspeita de mim. Posso sentir. Mas vai garantir que está certo antes de dar o bote.

— Isso não está em discussão. — Eu me levanto da poltrona de couro, enfiando a bolsa debaixo do braço, mais frustrada do que antes por ter que entregar minha arma.

Pressiono os dedos na escrivaninha de mogno, apoiando meu peso neles ao me curvar um pouco na direção de Hamburg.

— Três nomes, ou saio daqui e Victor Faust entra para espalhar os seus miolos naquele belo quadro do menino Jesus atrás de você.

Hamburg ri.

— Esse não é o menino Jesus.

Ele se levanta junto comigo, alto, enorme e ameaçador.

Enquanto vasculho minha mente e tento entender como ele descobriu que sou uma farsante, Hamburg se adianta e anuncia seu raciocínio como um chute na minha boca.

— É engraçado, Izabel, você vir aqui pedir nomes que não aparecem em uma lista que você... — diz, apontando para a minha bolsa — ... nem carrega consigo, porque como você saberia que os nomes que eu daria não estão nela?

Estou muito ferrada.

— Vou dizer o que eu acho — continua ele. — Acho que você veio aqui sozinha por causa de alguma vingança contra mim. — Ele balança o indicador. — Porque eu me lembro de cada detalhe da porra daquela noite. Cada merda de detalhe. Especialmente a sua expressão quando percebeu que Victor Faust tinha vindo matar minha esposa em vez de mim. Era a expressão de alguém pega de surpresa, que não fazia ideia de por que estava ali. Era a expressão de alguém que não está familiarizada com o jogo.

Ele tenta sorrir com gentileza, como se quisesse demonstrar alguma espécie de empatia pela minha situação, mas o que leio em seu rosto é cinismo.

— Acho que, se houvesse mais alguém aqui com você, ele já teria aparecido para salvá-la, porque é óbvio que você está ferrada.

A porta do quarto principal se abre, o guarda-costas entra e a tranca. Por uma fração de segundo, tive a esperança de que fosse Victor vindo me salvar na hora certa. Mas foi só um desejo. O guarda-costas me olha com desprezo. Hamburg acena para ele, que começa a tirar o cinto.

Meu coração afunda até o estômago.

— Sabe — diz Hamburg, dando a volta na escrivaninha —, na primeira vez que a gente se viu, lembro que fiz um acordo com Victor Faust. — Ele aponta para mim. — Você se lembra disso, não?

Hamburg sorri e apoia a mão gorda nas costas da poltrona na qual eu estava sentada, virando-a para mim.

Todo o meu corpo está tremendo; parece que o sangue que passa pelas minhas mãos virou ácido. Ele corre pelo meu coração e pela minha cabeça tão rápido que quase desmaio. Começo a tentar alcançar meu punhal, mas eles estão perto demais, aproximando-se pelos dois lados. Não tenho como enfrentar os dois ao mesmo tempo.

— Como assim? — pergunto, tropeçando nas palavras, tentando ganhar um pouco de tempo.

Hamburg revira os olhos.

— Ora, por favor, Izabel. — Ele gira um dedo no ar. — Apesar do que aconteceu naquela noite, fiquei decepcionado de verdade por vocês dois irem embora antes de cumprir o acordo.

— Eu diria que, em vista do que aconteceu, o acordo não vale mais nada.

Ele sorri para mim e se senta na poltrona de couro. Percebo Hamburg espiar de relance o guarda-costas, dando uma ordem só com o olhar.

Antes que eu consiga me virar, o segurança prende minhas duas mãos nas minhas costas.

— Você vai cometer um erro do caralho se fizer isso! — grito, tentando me livrar das garras do segurança.

Ele me leva à força até uma mesa quadrada e me joga sobre ela. Meus reflexos não são rápidos o suficiente e meu queixo bate no mármore duro. O gosto metálico do sangue enche minha boca.

— Me solte! — Tento chutá-lo. — Me solte agora!

Hamburg ri de novo.

— Vire a cabeça dela para esse lado — ordena ele.

Dois segundos depois, meu pescoço é torcido para o outro lado e mantido ali, minha bochecha esquerda pressionada contra o mármore frio.

— Quero ver a cara dela enquanto você a fode. — Hamburg me olha de novo. — Então vamos continuar do ponto onde paramos naquela noite, tudo bem? Você concorda, Izabel?

— Vai se foder!

— Ah, não, não — diz ele, ainda com o riso na voz. — Não sou eu quem vai foder você. Você não faz o meu tipo. — Seus olhos famintos percorrem o corpo do segurança que está me pressionando por trás.

— Eu vou matar você — digo, cuspindo por entre os dentes. A mão do segurança sobre a minha cabeça impede que eu a mexa. — Vou matar vocês dois! Me estupre! Vamos lá! Mas os dois vão estar mortos antes que eu saia daqui!

— Quem disse que você vai sair daqui? — provoca Hamburg.

O zíper da calça dele está aberto; sua mão direita está parada ao lado da braguilha, como se ele estivesse tentando manter algum autocontrole e não se masturbar ainda.

Então Hamburg acena com dois dedos para o guarda-costas, que me mantém imóvel segurando meus cabelos da nuca.

— Lembre-se disso — diz ele ao segurança. — Ela não vai sair daqui.

Sinto a mão direita do guarda-costas soltar meu cabelo e se mover entre as minhas pernas. Enquanto ele ergue meu vestido, aproveito para alcançar o punhal na minha coxa e tirá-lo da bainha, golpeando atrás em um ângulo desajeitado. O segurança grita de dor e me solta. Puxo o punhal ainda firme na mão, que está coberta de sangue. Ele cambaleia para trás, com a mão na base do pescoço, o sangue jorrando entre seus dedos.

— Sua puta do caralho! — ruge Hamburg, saltando da poltrona e vindo atrás de mim como um elefante descontrolado, a calça caindo de sua cintura flácida.

Corro na direção dele com o punhal levantado e colidimos no meio da sala. Seu peso me joga de bunda no chão e o punhal cai da minha mão, deslizando pelo piso ensanguentado. De pé, Hamburg se abaixa para me segurar, mas me reclino no chão e levanto o pé com toda a força, enfiando o salto da minha sandália na lateral do seu rosto. Ele geme e cambaleia para trás, com a mão na bochecha.

— Eu vou acabar com você! Puta que pariu! — berra ele.

Engatinho na direção do punhal, vendo o segurança no chão, em meio a uma poça de sangue. Ele está engasgando com os próprios fluidos; tentando em vão encher os pulmões de ar.

Pego o punhal com firmeza e rolo no chão enquanto Hamburg se aproxima, derrubando a poltrona de couro. Fico de pé e corro até a mesa, empurrando-a na direção dele. Hamburg tenta tirá-la da frente, mas o móvel balança sobre a base e ele acaba tropeçando. Seu corpo desaba no chão de barriga para baixo e a mesa cai quase na sua cabeça. Salto sobre suas costas e monto em seu corpo obeso. Meus joelhos mal tocam o chão. Agarro seu cabelo, puxo a cabeça dele para trás na minha direção e aperto o punhal em sua garganta, imobilizando-o em segundos.

— Pode me matar! Foda-se! Você não vai sair viva daqui mesmo. — A voz de Hamburg é rouca, sua respiração, rápida e ofegante, como se ele tivesse acabado de tentar correr uma maratona. O cheiro de seu suor e de seu medo invade minhas narinas.

Ocupada com a lâmina em sua garganta, me assusto com o som de batidas fortes na porta. A distração me pega desprevenida. Hamburg consegue se erguer debaixo de mim como um touro, rolando de lado e me derrubando no chão. Deixo cair o punhal em algum lugar, mas não tenho tempo para procurá-lo porque Hamburg consegue se levantar e parte para cima de mim. Ouço a voz de Stephens do outro lado da porta, que vibra com seus socos.

Rolo para sair do caminho antes que Hamburg consiga pular em cima de mim, pego o objeto mais próximo — um peso de papel de pedra, bem pesado, que estava na mesa antes de ser derrubada — e golpeio Hamburg com ele. O som do osso de seu rosto quebrando com o impacto faz meu estômago revirar. Hamburg cai para trás, cobrindo a cara com as mãos.

As batidas na porta ficam mais fortes. Numa fração de segundo, levanto a cabeça e vejo a porta sacudindo com violência no batente. Preciso sair daqui. Agora. Meu olhar varre a sala procurando o punhal, mas não há mais tempo.

Corro para a sala de vigilância, contornando os obstáculos.

Graças a Deus, há outra porta lá dentro. Abro a porta e desço correndo a escada de concreto, torcendo para que seja uma saída e eu não encontre mais ninguém no caminho.


CAPÍTULO CINCO

Sarai

Desço a escada de concreto de dois em dois degraus, segurando no corrimão de metal pintado com as mãos ensanguentadas, até chegar ao térreo. Uma placa vermelha com a palavra SAÍDA está à minha frente. Corro pela passagem mal-iluminada, onde uma lâmpada fluorescente pisca acima de mim e torna o lugar ainda mais ameaçador. Empurro com força a barra da porta com as duas mãos e ela se abre para um beco. Um homem de terno está sentado no capô de um carro, fumando, quando saio para a rua.

Eu fico paralisada.

Ele olha para mim.

Eu olho para ele.

Ele nota o sangue nas minhas mãos e olha de relance para a porta, depois para mim.

— Vá — diz ele, acenando para a caçamba de lixo à minha direita.

Sei que não tenho tempo para ficar confusa nem para perguntar por que ele está me deixando ir embora, mas pergunto assim mesmo.

— Por que você está...?

— Apenas vá!

Ouço passos ecoando na escada atrás da porta.

Lanço um olhar agradecido ao homem e dou a volta na caçamba, desço o beco e me afasto do restaurante. Ouço um tiro segundos depois que dobro a esquina e torço para que seja aquele homem fingindo atirar em mim.

Evito espaços abertos e corro por trás de prédios, protegida pela escuridão, tanto quanto minhas sandálias de salto alto permitem. Quando sinto que estou longe o suficiente para parar um pouco, tento me esconder atrás de outra caçamba e tiro as sandálias. Arranco a peruca loura e a jogo no lixo.

Não consigo respirar. Estou enjoada.

Meu Deus, estou enjoada...

Encosto na parede de tijolos atrás de mim, arqueando as costas e apoiando as mãos nos joelhos. Vomito com violência no chão, meu corpo rígido, o esôfago ardendo.

Pego as sandálias e saio correndo de novo na direção do hotel, tentando esconder o sangue das mãos e do vestido, mas percebo que não é tão fácil. Recebo alguns olhares desconfiados ao passar depressa pela recepção, mas tento ignorá-los e torço para que ninguém chame a polícia.

Em vez de arriscar ser vista por outras pessoas, subo pela escada até o oitavo andar. Quando chego lá, e depois de tudo o que corri, sinto que minhas pernas vão ceder. Encosto na parede e recupero o fôlego, com os joelhos tremendo descontroladamente. Meu peito dói, como se cada respiração trouxesse poeira, fumaça e cacos microscópicos de vidro para o fundo dos pulmões.

O quarto que divido com Eric está trancado e eu não tenho a chave. Aliás...

— Puta merda...

Jogo a cabeça para trás, fecho os olhos e suspiro, arrasada.

Não estou mais com a minha bolsa. Eu a perdi em algum momento da luta na sala de Hamburg. A chave do meu quarto. Meu celular. Minha arma. Meu punhal. Não tenho mais nada.

Bato na porta, mas Eric não está no quarto. Não esperava que estivesse, na verdade, já que não são nem onze da noite. Só para o caso de estar enganada, no entanto, tento o quarto de Dahlia.

— Dahl! Você está aí? — Bato na porta com pressa, tentando não incomodar os outros hóspedes.

Nenhuma resposta.

Já desistindo, jogo as sandálias no chão e apoio as mãos na parede. Minha cabeça desaba. Mas então ouço um clique baixinho e vejo a porta do quarto de Dahlia se abrindo devagar. Levanto a cabeça e a vejo parada ali.

Sem me demorar para questionar a expressão estranha no rosto dela, entro no quarto só para sair do corredor. Eric está sentado na poltrona perto da janela. Noto que seu cabelo está meio bagunçado. O de Dahlia também.

Meu instinto está tentando chamar minha atenção, mas não me importo. Acabei de apunhalar um homem no pescoço e de tentar matar outro. Quase fui estuprada. Estava correndo pelos becos de Los Angeles para fugir de homens armados que vinham atrás de mim. Nada que esses dois façam pode superar isso.

— Meu Deus, Sarai — diz Dahlia, aproximando-se de mim. — Isso é sangue?

A expressão estranha e silenciosa que ela exibia quando entrei no quarto desaparece em um instante quando ela me vê no quarto bem-iluminado. Seus olhos se arregalam, cheios de preocupação.

Eric se levanta da poltrona.

— Você está sangrando. — Ele também me olha de cima a baixo. — O que aconteceu?

Os olhos de Dahlia correm pela minha roupa e pelo meu cabelo preso dentro da touca da peruca.

— Por que... Hã, por que você está vestida assim?

Olho para mim mesma. Não sei o que dizer, então não digo nada. Eu me sinto como um cervo diante dos faróis de um carro, mas minha expressão continua firme e sem emoções, talvez um pouco confusa.

— Você encontrou Matt — acusa Dahlia, começando a levantar a voz. — Puta que pariu, Sarai. Você foi se encontrar com ele, não foi?

Sinto os dedos dela apertando meu antebraço.

Eu me desvencilho de Dahlia e caminho até o banheiro para tirar a touca do cabelo. Enquanto tiro os grampos, noto uma camisinha boiando na privada.

Eric entra no banheiro atrás de mim. Ele sabe que eu vi.

— Sarai, e-eu... Eu sinto muito — diz ele.

— Não se preocupe — respondo, tirando o último grampo e deixando-o na bancada creme.

Passo por Eric e volto para o quarto. Dahlia está me encarando, com o rosto cheio de vergonha e arrependimento.

— Eu...

Ergo a mão e olho para os dois.

— Não, é sério. Não estou brava.

— Como assim? — pergunta Dahlia.

Eric parece agitado. Ele põe a mão na nuca e passa os dedos pelo cabelo.

— Olhe, sem querer ofender — digo a Eric —, mas tenho fingido tudo com você desde a primeira vez que a gente ficou junto.

Ele arregala os olhos, embora tente não deixar que o choque e a mágoa da minha revelação transpareçam demais. Grande parte de mim se sente bem por dizer a verdade. Não por vingança, mas porque eu precisava tirar isso do peito. Mas admito que, depois de descobrir que os dois têm trepado pelas minhas costas, uma pequena parte de mim também fica feliz em magoá-lo. Acho que a vingança sempre encontra um caminho, mesmo nos gestos mais insignificantes.

— Fingido?

— Não tenho tempo para isso — digo, indo na direção da porta. — Vocês dois podem ficar juntos. Não tenho nada contra. Não estou brava, só não me importo mesmo. Preciso ir.

— Espere... Sarai.

Eu me viro para olhar Dahlia. Ela está muito chocada, mal sabe o que pensar. Depois de alguns segundos de silêncio, fico impaciente e a olho com cara de “vai, desembucha”.

— Para você... tudo bem mesmo?

Uau, não sirvo mesmo para o estilo de vida deles. O estilo de vida normal. Nem consigo entender essas coisas de namoro, melhores amigas, infidelidade, competição e joguinhos psicológicos. A cara que eles fazem, tão vazia e mesmo assim tão cheia de incredulidade e dúvida, por causa de uma situação que, para mim, não é tão importante... Tenho coisas mais graves com que me preocupar.

Suspiro, aborrecida com as perguntas vagas e confusas dos dois.

— Sim, por mim, tudo bem — digo, e então me viro para Eric, estendendo a mão. — Preciso da chave do nosso quarto.

Relutante, ele enfia a mão no bolso de trás e pega a chave. Tomo da sua mão, saio dali e vou para o quarto ao lado. Eric vem atrás e tenta falar comigo enquanto guardo minhas coisas na mala.

— Sarai, eu nunca quis...

Eu me viro de repente e o encaro.

— Tudo bem, só vou dizer isto uma vez, depois você muda de assunto ou volta para lá e fica com a Dahlia. Não estou nem aí para o que vocês dois fazem, mas, por favor, não apele para esse clichê de novela de que você nunca quis que isso acontecesse, porque... é muito idiota. — Eu rio baixinho, porque acho idiota mesmo. — Só falta você dizer que o problema não é comigo, é com você. Caramba, você faz ideia do que isso parece? É tão difícil assim acreditar quando digo que não me importo e que estou falando sério? Sem joguinhos. É verdade. — Balanço a cabeça, levanto as mãos e digo: — Não. Me. Importo.

Viro para a mala, fecho o zíper, abro a parte lateral e pego a chave do quarto secreto. Ainda bem que eu tinha uma cópia.

— Preciso ir — digo, andando até a porta e passando por Eric.

— Aonde você vai?

— Não posso contar, mas me escute, Eric, por favor. Se alguém aparecer me procurando, finja que não me conhece. Diga o mesmo para Dahlia. Finjam que nunca me viram na vida. Aliás, quero que vocês dois saiam hoje. Vão para qualquer lugar. Só... não fiquem aqui.

— Você vai me dizer o que aconteceu ou por que está toda ensanguentada? Sarai, você está me deixando assustado pra cacete.

— Eu vou ficar bem — digo, atenuando minha expressão. — Mas prometa que você e Dahlia vão fazer exatamente o que falei.

— Você vai me contar um dia?

— Não posso.

O silêncio entre nós fica mais pesado.

Enfim, abro a porta e saio para o corredor.

— Acho que sou eu quem deveria estar pedindo desculpas.

— Por quê?

Eric fica na porta, com os braços caídos ao lado do corpo.

— Por pensar em outra pessoa durante todo esse tempo em que eu estava com você. — Olho para o chão.

Nós nos encaramos por um breve momento e ninguém diz mais nada. Ambos sabemos que estamos errados. E acho que nós dois estamos aliviados por tudo ter vindo à tona.

Não há mais nada a dizer.

Eu me afasto pelo corredor na direção oposta à do meu quarto secreto e dou a volta por trás, para que Eric não veja aonde estou indo. Quando me tranco no quarto, só consigo desabar na cama. A exaustão, a dor e o choque de tudo o que aconteceu esta noite me atingem em cheio assim que a porta se fecha, e me engolem como uma onda. Eu me jogo de costas no colchão. Minhas panturrilhas doem tanto que duvido conseguir andar sem mancar amanhã.

Fico olhando para o teto escuro até ele desaparecer e eu pegar no sono.


CAPÍTULO SEIS

Sarai

Um tum! pesado me acorda, mais tarde naquela noite. Eu me levanto como uma catapulta.

Vejo dois homens no meu quarto: um desconhecido morto no chão e Victor Faust de pé sobre o corpo dele.

— Levante-se.

— Victor?

Não acredito que ele está aqui. Devo estar sonhando.

— Levante-se, Sarai. AGORA! — Victor me pega pelo cotovelo, me arranca da cama e me põe de pé.

Não consigo nem pegar minhas coisas, ele já está abrindo a porta e me puxando para o corredor com ele, segurando forte a minha mão.

Disparamos juntos pelo corredor e outro homem aparece virando a esquina, de arma em punho. Victor aponta sua 9mm com silenciador e o derruba antes que o cara consiga atirar. Ele passa pelo corpo me puxando, seus dedos fortes afundando na minha mão enquanto corremos para a escada. Ele abre a porta, me empurra para a frente e nós subimos depressa os degraus de concreto. Um andar. Três. Cinco. Minhas pernas estão me matando. Acho que não consigo andar por muito mais tempo. Enfim, no quinto andar, Victor me puxa para outro corredor e rumo a um elevador nos fundos.

Quando as portas do elevador se fecham e estamos só nós dois lá dentro, finalmente tenho a oportunidade de falar.

— Como você sabia que eu estava aqui? — Mal consigo recuperar o fôlego, esgotada pela correria infinita e pela adrenalina, mas acho que sobretudo porque Victor está de pé ao meu lado, segurando minha mão.

Meus olhos começam a arder com as lágrimas.

Engulo o choro.

— O que você estava pensando, Sarai?

— Eu...

Victor segura meu rosto com as duas mãos e me empurra contra a parede do elevador, pressionando ferozmente seus lábios nos meus. Sua língua se entrelaça na minha e sua boca tira meu fôlego em um beijo apaixonado que, enfim, faz meus joelhos cederem. Toda a força que eu estava usando para manter o corpo ereto desaparece quando os lábios dele me tocam. Ele me beija com fome, com raiva, e eu derreto em seus braços.

Então ele se afasta, as mãos fortes nos meus braços, me segurando contra a parede do elevador. Nós nos encaramos pelo que parece ser uma eternidade, nossos olhos paralisados em uma espécie de contemplação profunda, nossos lábios a centímetros de distância. Só quero prová-los de novo.

Mas ele não deixa.

— Responda — exige Victor, estreitando seus olhos perigosos em reprovação.

Já esqueci a pergunta.

Ele me sacode.

— Por que você veio aqui? Tem ideia do que você fez?

Balanço a cabeça em um movimento curto e rápido, parte de mim mais preocupada com seu olhar ameaçador do que com o que ele está dizendo.

A porta do elevador se abre no subsolo e eu não tenho tempo para responder, pois Victor mais uma vez pega minha mão e me puxa para que o siga. Serpenteamos por um grande depósito com caixas em pilhas altas encostadas nas paredes e depois por um longo corredor escuro que leva a um estacionamento. Victor enfim solta minha mão e eu o sigo até um carro parado entre dois furgões pretos com o logotipo do hotel nas laterais. Dois bipes ecoam pelo ambiente e os faróis do carro piscam quando nos aproximamos, iluminando a parede de concreto em frente. Sem perder tempo, me sento no banco do passageiro e fecho a porta.

Segundos depois, Victor está dirigindo casualmente pelo estacionamento até a rua.

— Eu queria que ele morresse — respondo, enfim.

Victor não me olha.

— Bom, você fez um excelente trabalho — rebate ele, sarcástico.

Ele vira para a direita no semáforo, e o carro ganha velocidade quando chegamos à rodovia.

Fico magoada por suas palavras, mas sei que ele tem razão, por isso não discuto. Fiz merda. Uma merda muito grande.

Mas não me dou conta do tamanho dela até Victor dizer:

— Os seus amigos podiam ter morrido. Você podia ter morrido.

Sinto meus olhos se arregalarem além dos limites e me viro mais um pouco para encará-lo.

— Ah, não... Victor, o quê... Eles estão bem?

Sinto que vou vomitar de novo.

Victor me olha por um instante.

— Estão ótimos. O primeiro quarto que os capangas de Hamburg revistaram estava vazio — diz ele, voltando a olhar para a estrada. — Eu cheguei quando eles estavam saindo. Segui um deles até o quarto onde você estava escondida, deixei que ele destrancasse a porta e então ataquei.

As chaves do quarto. Minhas duas chaves extras estavam na bolsa que perdi no restaurante de Hamburg. E os números dos quartos estavam escritos nas capinhas de papel que as protegiam. Eu estava tão preocupada em esconder minha arma e meu punhal que nem pensei em esconder as chaves.

— Merda! — Também olho para a estrada. — E-eu perdi a bolsa no restaurante. As chaves do meu quarto estavam dentro dela. Deixei um rastro para eles seguirem!

Felizmente, eu não tinha uma chave extra do quarto de Dahlia, senão ela e Eric já poderiam estar mortos.

Onde é que eu estava com a cabeça?!

— Não, você deixou literalmente as chaves do seu quarto com o nome do hotel gravado. Sarai, eu devia ter matado você há muito tempo e poupado toda essa confusão para cima de você e de mim.

Eu me viro para encará-lo; a raiva e a mágoa pesando no meu peito.

— Você não está falando sério.

Ele faz uma pausa e me olha. Suspira.

— Não, não estou falando sério.

— Nunca mais me diga isso. Nunca mais me diga uma coisa dessas, ou eu mato você e poupo a mim de toda essa confusão — rebato, desviando o olhar.

— Você não está falando sério — diz Victor.

Olho mais uma vez para aqueles olhos ameaçadores verde-azulados que me fizeram tanta falta.

— Não. Mas acho que isso seria o mais sensato.

— Bom, você não foi a campeã da sensatez hoje, então acho que estou seguro ao menos pelas próximas 24 horas.

Escondo o sorriso.

— Senti sua falta — digo de maneira distante, olhando para a estrada.

Victor não responde, mas admito que seria estranho se respondesse. A despeito de sua falta de emoção, porém, sei que ele também sentiu saudade de mim. Aquele beijo no elevador disse coisas que palavras jamais conseguiriam.

Ele pega uma saída e para o carro debaixo de um viaduto. Puxa o freio de mão e a área ao redor desaparece na escuridão quando ele desliga os faróis.

— O que a gente está fazendo aqui?

— Você precisa ligar para os seus amigos.

— Por quê?

Ele tira um celular do porta-luvas entre nós.

— Mande eles voltarem para o Arizona. Faça ou diga o que for preciso para que eles saiam de Los Angeles. Quanto antes, melhor.

Ele coloca o telefone na minha mão. De início, só olho para o aparelho, mas ele me pressiona com aquele olhar, aquele que grita “vamos lá, faça isso de uma vez”, mas que só alguém como eu, alguém que conhece Victor, seria capaz de notar.

Giro o celular nas mãos, depois o seguro firmemente e digito o número de Eric. Mas então mudo de ideia, desligo no primeiro toque e ligo para Dahlia.

Ela atende no quinto toque.

Respiro fundo e faço o que sei fazer melhor: minto.

— A verdade é que vocês me magoaram. Duvido que um dia eu consiga perdoar você ou Eric pelo que fizeram.

— Sarai... Meu Deus, me desculpe, estou me sentindo muito mal. A gente não queria que isso chegasse a esse ponto. Juro para você. Não sei o que aconteceu...

— Escute, Dahlia, por favor, só me escute.

Ela fica quieta.

Começo a choradeira. Nunca imaginei que eu seria capaz de chorar sob demanda e de forma tão falsa.

— Eu quero acreditar em você. Quero conseguir confiar em você de novo, mas você era minha melhor amiga e me traiu. Preciso de um tempo sozinha e quero que você e Eric voltem para o Arizona. Hoje. Acho que não vou aguentar ver vocês de novo... Espere, onde você está, agora?

Acabo de me dar conta de que, se ela e Eric estiverem no hotel, a essa altura ela já sabe que dois homens foram mortos a tiros no andar do quarto deles.

— A gente está em uma festa em um terraço — conta ela. — T-tudo bem por você? Achei que não tinha nada a ver a gente sair, mas o Eric falou que você insistiu...

— Não, tudo bem — digo, cortando-a. — Insisti mesmo. Onde ele está, agora?

— Deixei Eric lá no terraço para a gente poder conversar. Está muito barulhento lá em cima. Que número é esse de onde você está ligando?

— É o celular de um amigo. Perdi o meu. O Eric por acaso avisou que se alguém procurar por mim...

— Avisou, sim — interrompe Dahlia. — Que confusão é essa, afinal? Meu Deus, Sarai, esquece por um momento esse lance com Eric e me conta o que está acontecendo, por favor. O sangue. As roupas esquisitas que você estava usando e aquele troço na sua cabeça. Era uma touca de peruca? Você está metida em alguma encrenca, eu sei. Sei que você me odeia, e tem todo o direito de odiar, mas, por favor, conte o que aconteceu.

— Não posso contar, porra! — grito, deixando o choro distorcer minha voz. — Caramba, Dahlia, faça o que eu pedi. Pelo menos isso! Você deu para o meu namorado! Por favor, voltem para o Arizona, me deixem esfriar a cabeça e depois eu volto para casa. Talvez aí a gente possa conversar. Mas agora façam o que eu estou pedindo. Tudo bem?

Ela não responde por um momento, e um longo silêncio se forma entre nós.

— Tudo bem — concorda ela. — Vou dizer ao Eric que a gente precisa ir embora.

— Obrigada.

Estou apenas um pouco aliviada. Não vou me sentir bem com isso até saber que eles chegaram em casa sãos e salvos.

Desligo sem dizer mais uma palavra.

— Bom, isso foi bastante convincente — observa Victor, levemente impressionado.

— Acho que foi.

— Eu sei que a sua amiga acreditou — acrescenta ele. — Mas eu não acreditei em uma só palavra.

Eu me viro para ele. Victor me conhece tão bem quanto eu o conheço, parece.

— É porque nem uma palavra era verdade.

Ele deixa por isso mesmo e nós saímos de baixo do viaduto.

Chegamos a uma casa perdida no final de uma estrada isolada nos arredores da cidade, empoleirada no alto de uma colina com uma vista quase perfeita para a cidade lá embaixo. Uma piscina de formato irregular começa no lado esquerdo da casa e serpenteia por trás, a água azul-clara iluminada por lâmpadas submersas parece luminescente. O lugar está silencioso. Só ouço o vento passando pela mata cerrada que contorna o lado direito e os fundos da casa, impedindo uma visão em 360 graus da paisagem iluminada de Los Angeles. Quando nos aproximamos da porta, uma mulher robusta usando uniforme azul de empregada nos recebe. Ela tem cabelo preto encaracolado e pele morena. Suas bochechas são volumosas, envolvendo seus olhos castanho-escuros pequenos e brilhantes, que fitam atentamente Victor e a mim.

— Por favor, entrem — diz ela, com um sotaque hispânico familiar.

A mulher fecha a porta. A casa cheira a limpa-vidro e a uma mistura pouco natural de cheiros adocicados que só pode vir de algum tipo de aromatizador de ambientes artificial. Parece que todas as janelas foram abertas, permitindo que a brisa noturna de verão se espalhasse pela casa. Não se parece em nada com as mansões ricas onde já estive, mas é impecável e aconchegante, e penso que eu deveria pelo menos ter tomado um banho antes de vir. Minha pele e minhas roupas ainda estão manchadas de sangue...

Victor está usando uma calça preta e uma camisa apertada de mangas compridas que adere a cada músculo de seus braços e seu peito, com os punhos desabotoados e arregaçados até os cotovelos. A camisa está por fora da calça e os dois botões de cima estão abertos. Sapatos pretos chiques e informais calçam seus pés. Um relógio brilhante de prata adorna seu pulso direito, e não consigo deixar de notar a solitária veia grossa que percorre as costas de sua mão até o osso de seu pulso. Quando ele segue a empregada pela grande entrada e se vira momentaneamente de costas para mim, vejo o cabo da arma saindo da cintura de sua calça, com a barra da camisa branca enfiada atrás.

Ele me olha, para e estende o braço, em um gesto para que eu ande à sua frente. Tremo de leve quando sua mão toca minhas costas perto da cintura.

Antes que eu tenha tempo de me sentir deslocada ao lado dele, Fredrik, o amigo e cúmplice sueco de Victor que conheci no restaurante de Hamburg há tanto tempo, entra na sala pelas grandes portas de vidro que dão para o quintal dos fundos.


CAPÍTULO SETE

Sarai

— Você chegou cedo — comenta Fredrik com um sorriso mortal, porém inimaginavelmente sexy.

As roupas dele são bem parecidas com as de Victor, mas, em vez de camisa de botão, Fredrik está vestindo uma camiseta branca apertada que adere à sua forma esbelta e máscula. Ele está descalço.

A primeira vez que vi Fredrik, pensei que era impossível haver alguém mais bonito. Com cabelo macio, quase preto, e olhos escuros e misteriosos, suas feições parecem ter sido esculpidas por algum artista famoso. Mas sempre achei que havia algo de sombrio e assustador naquele homem. Um lado dele que eu, particularmente, não faço questão de conhecer. Para mim, basta o jeito como ele era quando nos encontramos: cordial, encantador e misterioso, uma linda máscara que ele usa para esconder a fera que há por trás.

Victor olha para seu relógio caro.

— Só dez minutos mais cedo — comenta ele.

Fredrik sorri ao se aproximar, os dentes brancos reluzindo contra a pele bronzeada.

— Sim, mas você sabe como eu sou.

Victor assente, mas não alonga o assunto. A mim, só resta imaginar o que aquilo significa.

— É bom ver você — diz Fredrik, observando-me do topo de sua altura considerável e presença avassaladora. Ele se inclina, pega minha mão e a beija, logo acima dos nós dos dedos. — Ouvi dizer que você matou um homem hoje.

Ele apruma as costas e solta minha mão. Um sorriso perturbador e orgulhoso surge em seu rosto, os cantos dos olhos se aquecendo com alguma lembrança ou... prazer, como se a ideia de matar alguém o deliciasse de alguma forma.

Olho para Victor à minha direita. Ele assente, respondendo à pergunta estampada no meu rosto. O guarda-costas que apunhalei no pescoço morreu?

Olho para Fredrik e respondo sem rodeios.

— Acho que matei.

Um leve sorriso se abre nos cantos dos lábios de Fredrik, e ele olha de relance para Victor, sem mover a cabeça.

— E você se sente bem com isso? — pergunta Fredrik.

— Para dizer a verdade, sim — respondo sem demora. — O desgraçado mereceu.

Fredrik e Victor parecem envolvidos em algum tipo de conversa secreta. Odeio isso.

Enfim, Fredrik diz para Victor em voz alta:

— Você arrumou sarna para se coçar, Faust.

Ele então se vira de costas para nós e anda na direção das portas de vidro. Nós o seguimos para o lado de fora, passando pela parte coberta do quintal e descendo uma escada de pedra que leva a um enorme pátio, também de pedra, que se abre em todas as direções. O pátio é decorado com mesas e cadeiras de ferro batido e uma cama com dossel ao ar livre.

Eu me sento ao lado de Victor em um sofá.

— Como é que você sabe? — pergunto a Fredrik, mas então me viro para Victor e digo: — E você ainda não me contou como sabia que eu estava aqui.

Na verdade, isso não importa muito, só quero encará-lo nos olhos de novo. Quero ficar sozinha com Victor, mas por enquanto vou precisar me contentar com os 7 centímetros entre nossos corpos, sentados lado a lado.

— Melinda Rochester me contou — explica Fredrik com um sorriso conivente. Começo a perguntar “E quem é Melinda Rochester”, mas ele diz: — Bem, ela contou para todo mundo, na verdade. Noticiário do Canal 7. Um homem morto a punhaladas atrás de um restaurante de Los Angeles.

Começo a me retorcer por dentro. Espero que as câmeras não tenham me mostrado com nitidez.

Eu me viro para Victor, com a preocupação transparecendo no rosto.

— Eu estava de peruca loura — digo, tentando encontrar alguma coisa, qualquer coisa que eu tenha feito certo. — Fiquei com a cabeça baixa... a maior parte do tempo.

Desisto. Sei que o que fiz vai continuar me perseguindo. Suspiro e olho para as mãos ensanguentadas no meu colo.

— E encontrar você foi fácil — continua Victor. — A sra. Gregory me ligou depois que você saiu do Arizona. Ela estava preocupada com a sua vinda para Los Angeles e achou que eu precisava saber.

Viro a cabeça para encará-lo.

— O quê? Dina sabia onde você estava? — Sinto a pele ao redor das sobrancelhas se enrijecendo.

— Não — responde ele, com delicadeza. — Ela não sabia onde eu estava, mas sabia como entrar em contato comigo.

Essas palavras me magoam. Engulo em seco a sensação de ser traída por eles.

— Falei para ela entrar em contato comigo só em caso de emergência — acrescenta Victor. — Caso algo acontecesse com você.

— Você deixou para Dina uma forma de entrar em contato — digo, ríspida —, mas para mim, nada. Não acredito que você fez isso.

— Eu queria que você tocasse a sua vida. Mas, caso os irmãos de Javier descobrissem onde você estava, ou você decidisse fazer uma proeza como a de hoje, eu queria ficar sabendo.

Não consigo olhar para Victor. Tento chegar mais alguns centímetros para o lado a fim de aumentar a distância entre nós. Ainda assim, mesmo que esteja magoada e enfurecida com ele, sinto vontade de me aproximar de novo. Mas me mantenho firme e me recuso a deixá-lo perceber que o poder que ele exerce sobre mim faz a raiva que sinto parecer um chilique.

— Não acredito que Dina escondeu isso de mim — digo em voz alta, ainda que esteja falando mais comigo mesma.

— Ela escondeu de você porque eu disse a ela quanto isso era importante.

— Bom, de qualquer maneira — interrompe Fredrik, sentando-se na poltrona ao lado do sofá —, parece que você se meteu em uma situação da qual não vai conseguir sair tão facilmente, se é que vai conseguir.

— Por que a gente está aqui? — pergunto, aborrecida.

Fredrik ri baixinho.

— Aonde mais você iria?

— Eu precisava tirar você do hotel — explica Victor.

— Espere um pouco. Eu não matei aquele homem atrás do restaurante. Tudo aconteceu na sala particular de Hamburg, no andar de cima.

Recordo o homem que vi do lado de fora, atrás do restaurante, aquele que me deixou fugir, e meu coração afunda.

— Hamburg não deixaria que a polícia acreditasse que o assassinato aconteceu lá dentro, porque eles confiscariam a memória da câmera de vigilância e veriam o que realmente aconteceu.

Não estou entendendo nada. Nadinha.

— Eles não iam querer que a polícia soubesse o que realmente aconteceu?

Fredrik se reclina na poltrona e ergue um pé descalço, apoiando o tornozelo sobre o outro joelho, e estende os braços sobre os da poltrona.

Victor balança a cabeça.

— Preciso mesmo explicar isso para você, Sarai?

Sua vaga irritação me pega de surpresa. Olho para ele e levo alguns segundos para entender tudo sem que ele precise explicar.

— Ah, entendi — digo, olhando um de cada vez. — Hamburg não quer que a polícia se envolva porque corre o risco de se expor. O que ele fez, então? Só levou o corpo para fora? Preparou a situação para parecer um assalto comum? Não muito diferente do que ele fez naquela noite em que a gente estava na mansão dele, imagino.

Paro por aí porque Fredrik está presente. Não sei qual o grau de intimidade entre ele e Victor, nem mesmo se Fredrik sabe o que aconteceu na noite em que Victor matou a esposa de Hamburg.

Os olhos de Victor sorriem de leve para mim: sua maneira de me mostrar quanto lhe agrada eu ter entendido tudo. Ainda fingindo estar aborrecida, não retribuo o olhar da forma que ele deve esperar.

A empregada aparece com um balde chique de gelo, de madeira, com três garrafas de cerveja dentro. Fredrik pega uma, então ela nos oferece. Victor pega uma garrafa, mas recuso, mal conseguindo olhar a mulher nos olhos. Estou absorta demais nos acontecimentos da noite, que não me saem da cabeça.

A empregada vai embora logo depois, sem dizer uma palavra.

— O que você quis dizer com os irmãos de Javier?

Victor abre sua garrafa e a põe na mesa.

— Dois deles, Luis e Diego, assumiram os negócios de Javier dias depois que você o matou.

Por um instante, o rosto de Javier surge em minha mente: sua expressão chocada e ainda orgulhosa, os olhos arregalados, o corpo caindo no chão segundos depois de eu meter uma bala em seu peito.

Afasto a imagem.

Eu me lembro de Luis e Diego. Diego é aquele que tentou me estuprar quando eu estava na fortaleza no México, aquele que Javier castrou como punição.

— Eles estão me procurando?

Victor toma um gole de cerveja e devolve a garrafa à mesa com calma.

— Que eu saiba, não. Estou monitorando a fortaleza há meses. Os irmãos de Javier são amadores. Não têm ideia do que fazer com tanto poder. Duvido até que vejam você como ameaça.

Fredrik toma um gole de cerveja e prende a garrafa entre as pernas.

— Não fique tão aliviada assim — diz ele. — É melhor ser perseguida por amadores do que por Hamburg e aquele braço direito dele.

Um nó nervoso se forma no fundo do meu estômago. Olho de relance para Victor, buscando respostas.

— Willem Stephens — esclarece Victor — faz todo o serviço sujo de Hamburg. Hamburg em si é covarde, tão perigoso quanto o pedófilo gente boa da vizinhança. Mal consegue atirar em um alvo imóvel, e trairia alguém em dois minutos para se salvar. — Ele arqueia uma sobrancelha. — Stephens, por outro lado, tem uma extensa formação militar, é ex-mercenário e trabalhou para uma Ordem do mercado negro em 1986.

— Uma o quê?

— Uma Ordem como a nossa — explica Victor —, mas que aceita contratos particulares. Eles fazem coisas que outros agentes se recusam a fazer, vendem seus serviços basicamente para qualquer um.

— Ah... Então, resumindo, ele mata gente inocente por dinheiro.

Lembro o que Victor me contou, meses atrás, sobre a natureza dos contratos particulares, como pessoas eram assassinadas por motivos fúteis como traição conjugal ou vingança. A Ordem de Victor só trabalha com crime, ameaças sérias a um grande número de pessoas ou ideias que poderiam ter um impacto negativo na sociedade ou na vida como um todo.

Engulo em seco.

— Bom, ele me viu, com certeza. — Levanto as mãos e tiro o cabelo do rosto, passando as mãos no alto da cabeça. — Foi ele quem me levou para o segundo andar, para a sala de Hamburg. — Olho para Victor. — Desculpa, Victor. Eu... eu não sabia de nada disso.

Fredrik ri baixinho e diz:

— Algo me diz que, mesmo se você soubesse, teria ido lá de qualquer maneira.

Desvio o olhar de Victor e olho para baixo de novo, nervosa, esfregando os dedos ensanguentados uns nos outros. Fredrik tem razão. Odeio admitir, mas ele tem razão. Eu teria ido para o restaurante mesmo assim. Teria tentado matar Hamburg mesmo assim. Mas, se eu soubesse de tudo isso, acho que teria pensado em um plano melhor.

De repente, sinto que alguma coisa toma meu corpo e me tira o fôlego.

— Victor... Meu celular... — Eu me levanto do sofá, com o cabelo castanho-avermelhado caindo pelos ombros, batendo em meus braços nas partes em que o sangue secou e formou uma crosta áspera. — O número de Dina está no meu celular. Merda. Merda! Victor, Stephens vai atrás dela! Preciso voltar para o Arizona!

Começo a seguir para a porta dos fundos, mas Victor me alcança antes que eu atravesse o caminho decorado com pedras lisas.

— Espere aí.

Olho para baixo e vejo os dedos dele em volta do meu pulso. Seus hipnóticos olhos verde-azulados me fitam com desejo e devoção. Devoção. Algo que nunca vi no olhar de Victor antes.

Fredrik fala atrás de nós, me tirando do transe em que Victor me colocou.

— Eu vou cuidar disso — diz ele.

Desvio o olhar de Victor para Fredrik, que então ganha importância, considerando que a vida de Dina está em jogo.

— Como? — pergunto.

Victor me leva de volta para o sofá.

Fredrik pega o celular da mesa à frente, procura um número e toca na tela para ligar. Então encosta o celular no ouvido.

Victor me faz sentar perto dele de novo. Estou concentrada demais em Fredrik no momento para notar que Victor fez questão de se sentar tão perto que sua coxa está encostada na minha. Quero aproveitar o momento de proximidade, mas não posso. Estou preocupada com Dina.

Fredrik se reclina na poltrona de novo, balançando o pé descalço apoiado no joelho. Seu rosto fica alerta quando alguém atende à ligação.

— Em quanto tempo você consegue chegar a Lake Havasu City? — pergunta Fredrik ao telefone. Ele ouve por um segundo e assente. — Mando o endereço por mensagem de texto assim que eu desligar. Vá para lá o mais rápido que puder. Uma mulher mora lá. Dina Gregory. — Ele me olha de relance, para se certificar de que disse o nome certo. Como não o corrijo, volta a falar ao telefone. — Tire-a da casa e a leve para Amelia, em Phoenix. Sim. Sim. Não, não pergunte nada a ela. Só tome cuidado para ninguém machucar Dina. Sim. Me ligue neste número assim que estiver com ela.

Fredrik assente mais algumas vezes. Meu coração está batendo tão forte que parece pronto para pular do peito. Espero que a pessoa com quem ele está falando consiga encontrar Dina a tempo.

Fredrik desliga e parece abrir uma tela de texto no celular. Ele olha para mim, mas é Victor quem dá o endereço da sra. Gregory. Fredrik o digita e deixa o celular na mesa.

— Meu contato está a apenas trinta minutos de lá — explica Fredrik, olhando primeiro para mim. Então se vira para Victor. — O que você quer que eu faça?

Ele levanta as costas da poltrona e apoia os cotovelos nos joelhos, deixando as mãos entre eles. Mesmo em uma posição relaxada, ele consegue parecer elegante, importante e perigoso.

— Ainda preciso que você verifique o que discutimos ontem — diz Victor, e fica ainda mais claro, para mim, que Fredrik recebe ordens dele, embora não pareça ser do tipo que recebe ordens de ninguém. Mas está claro que os dois têm uma relação forte. — E, se você não se importa, preciso da sua casa emprestada por esta noite.

Os olhos escuros de Fredrik me encaram, e o traço de um sorriso aparece em seu rosto. Ele se levanta e pega o celular da mesa, escondendo-o na mão.

— Não precisa dizer mais nada. Vou sair daqui em vinte minutos. Eu ia mesmo me encontrar com alguém hoje, então está combinado.

A atitude de Victor muda um pouco, o que percebo no mesmo instante. Ele está encarando Fredrik, do outro lado da mesa do pátio, com um olhar cansado e cauteloso.

— Você não vai fazer o que estou pensando...

Ouço com atenção sem nem ao menos tentar disfarçar. Eu quero que eles saibam que estou bisbilhotando, porque é frustrante nenhum dos dois me oferecer qualquer explicação sobre esses comentários internos.

Fredrik ergue um lado da boca em um meio sorriso. Ele balança a cabeça de leve.

— Não, esta noite, não, infelizmente. Mas já faz algum tempo. Vou precisar que você me ajude com isso em breve.

Os olhos dele passam por mim e sinto um calafrio percorrer minhas costas. Não consigo decidir se é um arrepio bom ou assustador.

— Você terá sua oportunidade logo, logo — assegura Victor.

Fredrik dá a volta na mesa.

— Lamento por ter que encurtar nossa reunião.

— Tudo bem — digo. — Obrigada por ajudar com Dina. Você avisa quando receber aquela ligação?

Fredrik assente.

— Com certeza. Farei isso.

— Obrigada.

Victor acompanha Fredrik até a porta de vidro e os dois a atravessam. Fico sentada, observando-os do outro lado do pátio de pedra e tentando ouvir o máximo que posso, mas eles fazem questão de falar em voz baixa. Isso também me deixa frustrada. E pretendo informar Victor disso.


CAPÍTULO OITO

Victor

Fredrik fecha a porta de correr feita de vidro.

— Ela não sabe nada sobre Niklas? — pergunta ele, como eu já previa.

— Não, mas vou ter que contar. Ela vai precisar ficar atenta o tempo todo. Agora mais do que nunca.

— Ela não pode ficar aqui por muito tempo — aconselha Fredrik, olhando, através do vidro, Sarai sentada no sofá lá fora e nos observando. — Você também não.

— Eu sei. Quando Niklas descobrir que ela participou do assassinato no restaurante de Hamburg, vai saber na mesma hora que também estou envolvido nisso. Ele não é bobo. Se Sarai está viva, Niklas vai saber que estou tentando ajudá-la.

— E como ele desconfia de que agora trabalho com você — acrescenta Fredrik —, ela corre tanto perigo perto de mim quanto de você.

— É verdade.

Fredrik balança a cabeça para mim, com um sorriso escondido no fundo dos olhos.

— Não entendo esse envolvimento. Respeito você como sempre, respeitei, Victor, mas nunca vou entender a necessidade de um homem amar uma mulher.

— Eu não estou apaixonado por ela. Ela só é importante para mim.

— Talvez não — retruca ele, indo para a cozinha. — Mas parece que o amor e o envolvimento trazem as mesmas consequências, meu amigo. — Sigo Fredrik até a cozinha iluminada e ele abre um armário. — Mas estou do seu lado. O que você precisar que eu faça para ajudar, é só pedir. — Ele aponta para mim perto do armário, agora com um pão na mão.

A empregada de Fredrik entra na cozinha, roliça e mais velha do que nós dois juntos, exatamente o tipo de mulher que jamais o atrairia, e foi por isso que ele a contratou. Ela lhe pergunta em espanhol se pode voltar para casa e ver a família mais cedo hoje. Fredrik responde em espanhol, concordando. Ela assente respeitosamente e passa por mim na sala. De soslaio, eu a observo pegar uma bolsa volumosa de couro marrom do chão, perto da espreguiçadeira, e colocá-la no ombro. Depois ela vai até a porta, fechando-a devagar ao sair.

Sarai está de pé nas sombras da sala quando desvio o olhar da porta. Nem ouvi a porta de vidro correr quando ela entrou, e pelo jeito Fredrik também não.

Ela vai para a cozinha iluminada, de braços cruzados, os dedos delicados segurando seus bíceps femininos, mas bem-definidos. Ela é linda demais, mesmo quando está desgrenhada assim.

— Quanto tempo vocês planejavam me deixar lá fora? — pergunta ela, com um traço de irritação na voz.

— Ninguém disse que você precisava ficar lá, gata — responde Fredrik.

Ele gosta dela, isso é óbvio para mim, e ele deve saber. Mas também sabe que vou matá-lo. Ainda assim, minha confiança em Fredrik é maior do que minha preocupação de que ele volte para o lado sombrio e a machuque. Fredrik Gustavsson é uma fera do tipo mais carnal, que adora mulheres e sangue, mas tem limites e critérios, além de levar a lealdade, o respeito e a amizade muito a sério. Sua lealdade a mim é, afinal, o motivo para ele trair a Ordem todos os dias me ajudando.

Sarai se aproxima de mim e me olha nos olhos, inclinando um pouco a cabeça para o lado. O cheiro de sua pele e o calor tênue que emana dela quase me fazem perder o controle. Tenho conseguido me conter bastante desde que a beijei no elevador. Pretendo continuar assim.

Ela não diz nada, mas continua me encarando como se esperasse alguma coisa. Fico confuso. Ela inclina a cabeça para o outro lado e seu olhar se suaviza, embora eu não saiba ao certo por quê. Parece maliciosa e cheia de expectativa.

Ouço Fredrik rir baixinho e a porta da geladeira se fechar, mas não tiro os olhos de Sarai.

— As coisas são tão mais fáceis do meu jeito. — Ouço-o dizer, com um sorriso na voz.

— Entre em contato comigo assim que tiver a informação sobre Niklas — peço, ainda olhando nos olhos de Sarai e ignorando o comentário dele. — E quando souber pelo seu contato se Dina Gregory está a salvo em Phoenix.

— Pode deixar — diz Fredrik, e então vai para a porta do corredor que leva ao seu quarto. Mas ele para e olha para nós. — Se você não se importa...

Enfim desvio o olhar de Sarai e dou atenção total a Fredrik.

— Não se preocupe — interrompo —, eu sei onde fica o quarto de hóspedes.

Ele enfia na boca um sanduíche que mal notei que ele preparava e morde, rasgando um pedaço de pão. Eu o vejo piscando para Sarai antes de desaparecer da sala. Foi algo inofensivo, uma menção ao que ele acha que pode acontecer entre nós quando sair, e não uma tentativa de flerte.

— Que informação sobre Niklas? — pergunta Sarai, seus traços suaves agora encobertos pela preocupação.

Estendo a mão e passo os dedos por algumas mechas do cabelo dela.

— Preciso contar muita coisa para você — anuncio, tirando a mão antes de perder o controle e acabar tocando nela mais do que pretendo. — Sei que você deve estar exausta. Por que não toma um banho e fica à vontade primeiro? Depois conversamos.

Um sorrisinho suave emerge em seus lábios, mas logo desaparece em seu rosto enrubescido.

— Você quer dizer que eu estou nojenta? — pergunta ela, tímida. — Esse é o seu jeito de me dizer que preciso lavar meu corpo nojento?

— Na verdade, sim — admito.

Por um momento ela faz uma careta e parece ofendida, mas então só balança a cabeça e dá risada. Admiro isso em Sarai. Admiro muita coisa nela.

— Tudo bem. — Sua expressão brincalhona fica séria de novo. — Mas você precisa me contar tudo, Victor. E eu sei que você deve ter muito para contar, mas saiba que também preciso dizer muita coisa para você.

Eu já esperava isso. E, antes que ela fique na ponta dos pés, incline o corpo na minha direção e me beije, já sei que, quando ela sair do banho, vou precisar decidir o que vamos fazer. Vou precisar tomar algumas decisões importantes, que nos afetarão.

Porque de uma coisa eu tenho certeza: Sarai não pode voltar para casa.


Sarai

Quando volto, Victor está na sala, acomodado na beira do sofá, curvado sobre a mesinha de centro feita de vidro que está cheia de pedaços de papel e fotografias. Entro, mas ele continua remexendo neles sem erguer a cabeça para me olhar. Só que ele não me engana, sei que sente a minha presença tanto quanto quero que ele sinta.

Vasculhei o guarda-roupa de Fredrik procurando uma camiseta branca, que vesti sobre meus seios nus. Infelizmente, tive que usar a mesma calcinha de antes, mas as cuecas boxer de Fredrik não são exatamente o tipo de lingerie que eu gostaria de usar para seduzir Victor. Só uma camiseta e uma calcinha. Claro que fiz questão de vestir o mínimo possível, porque desejo Victor e não tenho nenhuma vergonha de deixar isso claro. Mas ainda custo a acreditar que estou no mesmo cômodo que ele, depois de meses achando que ele havia ido embora para sempre.

Acho que o beijo no elevador é onde minha mente ficou suspensa, como se o tempo tivesse parado naquele momento e cada parte de mim ainda deseje que aquele instante continue. Contudo, o resto do mundo continua passando ao meu redor.

Eu me sento ao lado de Victor, recolhendo um pé descalço para o sofá e enfiando-o sob a minha coxa.

— O que é isso tudo? — Olho para os papéis e fotografias na mesa.

Ele mexe em alguns pedaços de papel, empilhando-os.

— É um serviço — explica ele, colocando a foto de um homem de camiseta regata na pequena pilha. — Agora eu trabalho por conta própria.

Isso me surpreende.

— Como assim? — Acho que sei o que ele quer dizer, mas custo a acreditar.

Ele pega a pilha de papéis e bate as laterais na mesa para ajeitar todas as folhas. Então enfia o maço em um envelope de papel pardo.

— Eu saí da Ordem, Sarai. — Ele olha para mim.

Victor aperta as pontas do fecho prateado para fechar o envelope.

Meus pensamentos se embaralham, minhas palavras ficam confusas na ponta da língua. Luto, desesperada, para acreditar no que ele acaba de me contar.

— Victor... mas... não...

— Sim — confirma ele, virando-se para mim e me olhando bem nos olhos. — É verdade. Eu me rebelei contra a Ordem, contra Vonnegut, e agora eles estão atrás de mim. — Ele volta a mexer nos outros papéis na mesa. — Mas ainda preciso trabalhar, por isso agora trabalho sozinho.

Balanço a cabeça sem parar, sem querer engolir a verdade. A ideia de Victor sendo caçado por aqueles que o fizeram ser como ele é, por qualquer um, faz um pânico febril correr pelas minhas veias.

Solto um longo suspiro.

— Mas... mas e Fredrik? E Niklas? Victor, eu... O que está acontecendo?

Ele respira fundo e deixa a folha de papel cair suavemente na mesa, então reclina as costas no sofá.

— Fredrik ainda trabalha para a Ordem. Está lá dentro. Ele vigia Niklas e... — seus olhos cruzam com os meus por um instante —... tem me ajudado a manter você a salvo.

Antes que eu consiga fazer mais perguntas presas na garganta, Victor se levanta e continua a falar, enquanto fico sentada e o observo com a boca semiaberta e as pernas dobradas sobre a almofada.

— Como você sabe, quando alguém está sob suspeita de trair a Ordem, é imediatamente eliminado. Mas acredito que Niklas deixou Fredrik vivo e não transmitiu suas preocupações a Vonnegut pelo simples fato de que Niklas está usando Fredrik para me encontrar. Assim como deixou você viva todo este tempo, esperando que um dia você o levasse a mim.

O que mais me choca não é o que Victor diz, mas o que ele deixa de fora. Tiro as duas pernas de cima do sofá e pressiono os pés no chão de madeira, apoiando as mãos nas almofadas.

— Victor, o que você está me dizendo? Quer dizer que... Niklas continua com Vonnegut?

Espero que não seja isso que ele esteja tentando me dizer. Espero de todo o coração que minha decisão de deixar Niklas vivo aquele dia no hotel, quando ele atirou em mim, não tenha sido o maior erro da minha vida.

Os olhos de Victor vagam para a porta de vidro, e sinto que uma espécie de sofrimento infinito o consome, mas ele não deixa transparecer.

— Você estava lá. Eu disse para o meu irmão que, se ele decidisse continuar na Ordem caso eu resolvesse sair, eu não ficaria bravo com ele. Dei a ele a minha palavra, Sarai. — Victor vai até a porta de vidro, cruza os braços e olha para a piscina azul iluminada que reluz sob o céu cinzento. — Agora é hora de Niklas brilhar, e não vou tirar isso dele.

— Que absurdo! — Salto do sofá com os punhos fechados. — Ele está atrás de você, não é? — Cerro os dentes e contorno a mesinha de centro. — Caralho, é isso, Victor? Para provar seu valor para Vonnegut, ele foi encarregado de matar você. Aquele merda do seu irmão traiu você. Ele acha que vai pegar o seu lugar na Ordem. Puta que pariu, não acredito...

— É o que é, Sarai — interrompe Victor, virando-se para me encarar. — Mas, neste momento, Niklas é a menor das minhas preocupações.

Cruzando os braços, começo a andar de um lado para outro, olhando os veios claros e escuros da madeira sob meus pés descalços. Minhas unhas ainda têm o esmalte vermelho-sangue de duas semanas atrás.

— Por que saiu da Ordem?

— Eu tive que sair. Não tinha escolha.

— Não acredito.

Victor suspira.

— Vonnegut descobriu sobre a gente — conta ele, ganhando minha atenção total. — Foi Samantha... na noite em que ela morreu. Antes que eu saísse da Ordem, encontrei Vonnegut em Berlim, o primeiro encontro frente a frente que tive com ele em meses. Foi em uma sala de interrogatório. Quatro paredes. Uma porta. Uma mesa. Duas cadeiras. Somente eu e Vonnegut sentados frente a frente, com uma luz brilhando no teto acima de nós. — Victor olha para trás pela porta de vidro e depois continua: — No início, eu estava certo de que ele tinha me levado para lá com a intenção de me matar. Eu estava preparado...

— Para morrer? — Se Victor responder que sim, vou dar um tapa na cara dele.

— Não — responde ele, e consigo respirar um pouco melhor. — Eu fui para lá preparado. Raptei a mulher de Vonnegut antes de ir encontrá-lo. Fredrik a manteve em uma sala, pronto para fazer... as coisas dele, caso fosse necessário.

No mesmo instante, quero perguntar o que são as “coisas” de Fredrik, mas deixo a pergunta de lado por enquanto e digo:

— Se Vonnegut quisesse matar você, a esposa dele seria a sua moeda de troca.

De costas para mim, ele assente.

— Samantha estava sendo vigiada pela Ordem. Provavelmente há muito tempo.

— Eles desconfiavam da traição dela? Por que não a mataram, então, como fizeram com a mãe de Niklas, ou como queriam fazer com Niklas?

Victor se vira para me encarar de novo.

— Eles não desconfiavam dela, Sarai, ela era... — Victor respira fundo e aperta os lábios.

— Ela era o quê? — Chego mais perto dele. Não gosto do rumo que a conversa está tomando.

— Ela era mais leal à Ordem do que eu jamais poderia ter imaginado — conta ele, e isso fere meu coração. — Sentado naquela sala com Vonnegut, quanto mais ele falava, mais eu começava a entender que Samantha me traiu da mesma forma que Niklas. Vonnegut me contou coisas que ele não tinha como saber. Ele sabia que eu ajudei você. Em algum momento antes de morrer, naquela noite, Samantha conseguiu passar informações a Vonnegut sobre nossa estadia por lá.

— Não acredito nisso. — Golpeio o ar com a mão diante de mim. — Samantha morreu tentando me proteger. Já falamos sobre isso. Não acredito em você, Victor. Ela era uma boa pessoa.

— Ela era boa manipuladora, Sarai, nada mais do que isso.

Balanço a cabeça, ainda sem acreditar.

— Foi Niklas quem contou a Vonnegut que você me ajudou. Só pode ter sido. Niklas sabia até que você tinha me levado para a casa de Samantha.

— Sim, mas Niklas não sabia que eu fiz Samantha provar nossa comida antes de a gente comer, naquela noite. Assim que Vonnegut mencionou quanto eu ainda desconfiava dela depois de tantos anos, eu soube que ela havia me traído.

— Mas isso não faz nenhum sentido. — Começo a andar pela sala de novo, de braços cruzados e com uma das mãos apoiada no rosto. — Por que ela me protegeria de Javier?

— Porque ela não era leal a Javier.

Jogo as mãos para o ar, atônita com aquela revelação.

— Não dá para confiar em ninguém — digo, me jogando no sofá e olhando para o nada.

— Não, não dá — concorda Victor, e eu olho para cima, detectando um significado oculto por trás de suas palavras. — Agora talvez você entenda por que eu não me envolvo com ninguém. Não é só o trabalho, Sarai. As pessoas em geral não são confiáveis, especialmente na minha profissão, na qual a confiança é tão rara que não vale a pena perder tempo e esforço procurando por ela.

— Mas você parece confiar em Fredrik — observo, olhando para Victor do sofá. — Por que me trouxe logo aqui? Não aprendeu a lição com Samantha?

Sua expressão fica um pouco mais sombria, ressentida pela minha acusação.

— Eu nunca disse que confiava em Fredrik. Mas no momento ele é meu único contato dentro da Ordem e, nos últimos sete meses, não fez nada que não o tornasse digno de confiança. Ao contrário, fez tudo para provar sua lealdade a mim.

— Mas isso não significa que seja verdade.

— Não, você tem razão, mas logo vou saber com cem por cento de certeza se Fredrik é confiável ou não.

— Como?

— Você vai descobrir comigo.

— Por que se dar a esse trabalho? Você disse que a confiança é tão rara que não vale o esforço.

— Você faz muitas perguntas.

— Pois é, acho que faço. E você não responde o suficiente.

— Não, acho que não. — Victor abre um sorrisinho, e meu coração se derrete instantaneamente em uma poça de mingau.

Desvio os olhos dos dele e disfarço meus sentimentos.

— Não estou segura aqui — digo, encarando-o novamente.

— Você não está segura em lugar nenhum — corrige Victor. — Mas, enquanto estiver comigo, nada vai acontecer com você.

— Quem está falando merda agora?

Ele levanta uma sobrancelha.

— Você não é meu herói, lembra? — digo para refrescar a memória de Victor. — Não é minha alma gêmea que jamais deixará que nada de ruim aconteça comigo. Devo confiar nos meus instintos primeiro e em você, se eu decidir confiar, por último. Você me disse isso certa vez.

— E continua sendo verdade.

— Então como pode dizer que nada vai me acontecer se eu estiver com você?

A expressão de Victor fica vazia, como se pela primeira vez na vida alguém o tivesse deixado sem palavras. Olho para seu rosto silencioso e sem emoção, e apenas seus olhos revelam um traço de torpor. Tenho a sensação de que ele falou sem pensar, que manifestou algo que sente de verdade, mas que jamais quis que eu soubesse: Victor quer ser meu herói, vai fazer qualquer coisa, tudo o que puder para me manter a salvo. Quer que eu confie totalmente nele.

E confio.

Ele volta para perto de mim e se senta ao meu lado. O cheiro de seu perfume é fraco, como se ele fizesse questão de usar o mínimo possível. Estou tonta de desejo. Ansiosa para sentir novamente seu toque, saborear seus lábios quentes, deixar que ele me tome como fez algumas noites antes que nos víssemos pela última vez. Não tenho pensado em nada além de Victor nos últimos oito meses da minha vida. Enquanto durmo. Como. Vejo TV. Transo. Me masturbo. Tomo banho. Cada coisa que fiz desde que ele me deixou naquele hospital com Dina fiz pensando nele.

— Você acha que Fredrik vai contar a Niklas onde a gente está? — Mudo de assunto por medo de deixar transparecer muita coisa cedo demais.

— Acho que se ele fosse fazer isso teria contado a Niklas o pouco que sabia sobre o seu paradeiro há muito tempo, e Niklas já teria tentado matar você — responde Victor.

— Tem alguma coisa... estranha em Fredrik. Você não sente?

Victor passa a mão pelo meu cabelo úmido. O gesto faz meu coração disparar.

— Você tem grande sensibilidade para as pessoas, Sarai — comenta ele, levando a mão ao meu queixo. — Tem razão sobre Fredrik. — Ele passa o polegar pelo meu lábio inferior. Um calafrio percorre o meio das minhas pernas. — Ele é... como dizer?... desequilibrado, de certa forma.

Minha respiração acelera, e sinto meus cílios tocando meu rosto quando os lábios de Victor cobrem os meus.

— Desequilibrado de que forma? — pergunto, ofegante, quando ele se afasta.

De olhos fechados, percebo que ele está observando a curva do meu rosto e meus lábios e sinto a respiração que sai suavemente de suas narinas.

Cada pelinho minúsculo se eriça quando a outra mão de Victor sobe e encontra minha cintura nua por baixo da camiseta. Seus dedos longos dançam sobre a pele do meu quadril e param por ali.

Abro os olhos e vejo os dele me encarando.

— Algum problema? — pergunta ele, e sua boca roça a minha de novo.

— Não, eu... eu só não esperava isso.

— Esperava o quê?

Sinto seus dedos levantando o elástico da minha calcinha. Minha cabeça está girando, sinto meu estômago se transformar em um emaranhado de músculos, trêmulo e nervoso.

— Isso — respondo, piscando. — Você está diferente — acrescento, baixinho.

— Culpa sua — diz Victor, e então seus lábios devoram os meus.

Ele me deita no sofá e se encaixa entre as minhas pernas.

Seu celular vibra na mesinha de centro, e percebo quanto sou humana quando xingo Fredrik por estragar aquele momento, mesmo que seja para me avisar de que Dina está a salvo.


CONTINUA

CAPÍTULO UM

Sarai

Já faz oito meses que fugi da fortaleza no México onde fui mantida contra minha vontade por nove anos. Estou livre. Levo uma vida “normal”, fazendo coisas normais com gente normal. Não fui mais atacada, ameaçada nem seguida por ninguém que ainda queira me matar. Tenho uma “melhor amiga”, Dahlia. Tenho a coisa mais parecida com uma mãe que já conheci, Dina Gregory. O que mais eu poderia querer? Parece egoísmo desejar qualquer outra coisa. Mas, apesar de tudo o que tenho, algo não mudou: continuo vivendo uma mentira.

Deixei amigos na Califórnia: Charlie, Lea, Alex e... Bri... Não, espera, quero dizer Brandi. Meu ex-namorado, Matt, era abusivo, por isso voltei para o Arizona. Ele me perseguiu por muito tempo depois que terminamos. Consegui uma ordem judicial para mantê-lo afastado, mas não funcionou. Ele atirou em mim há oito meses, mas não posso provar porque não cheguei a vê-lo. E tenho muito medo de denunciá-lo à polícia.

Claro que tudo isso é mentira.

São os pedaços da minha vida que acobertam o que realmente aconteceu comigo. Os pretextos para eu ter desaparecido aos 14 anos e ter ido parar em um hospital da Califórnia com um ferimento a bala. Jamais vou poder contar a Dina, Dahlia ou ao meu namorado, Eric, o que aconteceu de verdade: que fui levada para o México pela péssima versão de mãe que eu tinha, para morar com um chefão do tráfico. Jamais vou poder contar que fugi daquele lugar depois de nove anos e matei o homem que me manteve prisioneira por toda a minha adolescência. Quer dizer, claro que eu poderia contar a alguém, mas, se fizesse isso, só estaria pondo Victor em perigo.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/2_O_RETORNO_DE_IZABEL.jpg

 

Victor.

Não, nunca vou poder contar que um assassino me ajudou a fugir, ou que testemunhei Victor matando várias pessoas, inclusive a esposa de um empresário famoso e importante de Los Angeles. Nunca vou poder contar que, depois de tudo pelo que passei, depois de tudo o que vi, o que mais quero é fazer as malas e voltar para aquela vida perigosa. A vida com Victor.

Até hoje, falar o nome dele me acalma. Às vezes, quando estou acordada na cama à noite, murmuro seu nome só para ouvi-lo, porque preciso. Preciso dele. Não consigo tirá-lo da cabeça. Já tentei. Porra, e como tentei. Mas, não importa o que eu faça, continuo vivendo cada dia da minha vida pensando nele. Se está me vigiando. Se pensa em mim tanto quanto penso nele. Se ainda está vivo.

Pressiono o travesseiro contra a cabeça e fecho os olhos, imaginando Victor. Às vezes, é só assim que consigo gozar.

Eric aperta minhas coxas com as mãos e me imobiliza na cama, com o rosto enfiado no meio das minhas pernas.

Arqueio o quadril contra ele, roçando de leve contra sua língua frenética, até que ele faça meu corpo todo enrijecer e minhas coxas tremerem ao redor da sua cabeça.

— Meu Deus... — Estremeço enquanto gozo, então deixo os braços caírem entre as pernas, afundando os dedos no cabelo preto de Eric. — Caramba...

Sinto os lábios de Eric tocando minha barriga um pouco acima da pélvis.

Olho para o teto como sempre faço depois de um orgasmo, pois a culpa que sinto me deixa com vergonha de olhar para Eric. Ele é um cara superlegal. Meu namorado sexy de 27 anos, cabelo preto e olhos azuis, gentil, encantador, engraçado e perfeito. Perfeito para mim se eu nunca tivesse conhecido Victor Faust.

Estou arruinada pelo resto da vida.

Enxugo as gotas de suor da testa e Eric sobe pela cama, deitando-se ao meu lado.

— Você sempre faz isso — diz ele, brincando, enquanto cutuca minhas costelas com os nós dos dedos.

Como sinto muitas cócegas, eu me encolho e me viro para encará-lo. Sorrio com ternura e passo um dedo por seu cabelo.

— O que eu sempre faço?

— Esse negócio de ficar em silêncio. — Eric segura meu queixo entre o polegar e o indicador. — Eu faço você gozar e você fica bem quieta durante um tempão.

Eu sei e sinto muito, mas preciso apagar o rosto de Victor da minha cabeça antes de conseguir olhar você nos olhos. Sou uma pessoa horrível.

Eric me dá um beijo na testa.

— Isso se chama recuperação — brinco, beijando os dedos dele. — É totalmente inofensivo. Mas você deveria interpretar como um bom sinal. Você sabe o que está fazendo — digo, retribuindo o cutucão nas costelas.

E ele sabe mesmo o que está fazendo. Eric é ótimo na cama. Mas ainda sou emocionalmente muito ligada... viciada... em Victor, e tenho a sensação de que sempre serei.

Só consegui seguir a vida e me abrir a outros relacionamentos cinco meses depois que Victor foi embora. Conheci Eric no trabalho, na loja de conveniência. Ele comprou um saco de biscoitos e um energético. Depois disso, ele aparecia na loja duas, às vezes três vezes por semana. Eu não queria nada com ele. Queria Victor. Mas comecei a perder a esperança de que Victor um dia fosse voltar para mim.

Eric tenta passar um braço ao redor do meu corpo, mas me levanto casualmente e visto a calcinha. Ele não desconfia de nada, o que é bom. Não sinto vontade de ficar abraçadinha, mas a última coisa que quero é magoá-lo. Ele ergue os braços e entrelaça os dedos atrás da cabeça. Olha para mim, do outro lado do quarto, com um sorriso sedutor. Sempre faz isso quando não estou completamente vestida.

— Sarai.

— Oi. — Visto a camiseta e ajeito o rabo de cavalo.

— Eu sei que está em cima da hora — diz Eric —, mas queria ir com você e Dahlia para a Califórnia amanhã.

Merda.

— Mas você não disse que não ia conseguir folga no trabalho? — pergunto, vestindo o short e calçando os chinelos.

— Quando você perguntou se eu queria ir, não ia dar mesmo. Mas contrataram um funcionário novo, e meu chefe decidiu me dar folga.

Isso é uma péssima notícia. Não porque eu não o queira por perto — gosto de Eric, apesar da minha incapacidade de esquecer Victor Faust —, mas minha viagem de “férias” à Califórnia amanhã não é para fazer turismo, curtir a noite nem fazer compras na Rodeo Drive.

Estou indo até lá para matar um homem. Ou melhor, tentar matar um homem.

Já é ruim que Dahlia vá também, e já vai ser difícil guardar segredo de uma pessoa. Imagine duas.

— Você... não parece animada — comenta Eric, seu sorriso morrendo aos poucos.

Abro um sorriso largo e balanço a cabeça, voltando para perto dele e me sentando na beira da cama.

— Não, não, eu estou animada. É que você me pegou de surpresa. A gente vai sair às seis da manhã. É daqui a menos de oito horas. Você já fez as malas?

Eric dá uma risada e se estica na minha cama, me puxando para si. Eu me sento perto de sua cintura, apoiando um braço no colchão do outro lado dele, com os pés para fora da cama.

— Bom, eu só fiquei sabendo hoje à tarde, antes de sair do trabalho — explica ele. — Eu sei, está em cima da hora, mas só preciso enfiar umas coisas na mala e estou pronto.

Ele estende a mão e afasta do meu rosto os fios de cabelo que escaparam do rabo de cavalo.

— Ótimo! — minto, com um sorriso igualmente falso. — Então acho que está combinado.

Dina acorda antes de mim, às quatro da manhã. O cheiro de bacon é o que me desperta. Levanto da cama e entro debaixo do chuveiro antes de me sentar à mesa da cozinha. Um prato vazio já está à minha espera.

— Gostaria que você tivesse escolhido algum outro lugar para passar sua folga, Sarai — afirma Dina.

Ela se senta do outro lado da mesa e começa a encher seu prato. Pego alguns pedaços de bacon do monte e ponho no meu.

— Eu sei — digo —, mas, como falei para você, não vou deixar que meu ex me impeça de ver meus amigos.

Ela balança a cabeça cada vez mais grisalha e suspira.

Passei do limite em algum momento com meu amontoado de mentiras. Quando Victor levou Dina para o hospital em Los Angeles, depois que o irmão dele, Niklas, atirou em mim, ela não fazia ideia do que tinha acontecido. Só sabia que eu tinha levado um tiro. Demorei alguns meses até me sentir segura o suficiente para falar com ela sobre isso. Quer dizer, depois de bolar a história que eu ia contar. Foi aí que inventei o lance do ex-namorado violento. Eu deveria ter dito que fui assaltada. Por um desconhecido. A mentira seria muito mais fácil de manter. Agora que ela sabe que vou voltar para Los Angeles, está morrendo de preocupação, e já faz uns dois meses. Eu nem deveria ter contado que ia voltar lá.

Termino de comer o bacon e um pouco de ovos mexidos, junto com um copo de leite.

Dahlia e Eric chegam juntos assim que termino de escovar os dentes.

— Vamos logo, a gente precisa pegar a estrada — chama Dahlia, me apressando da porta. Seu cabelo castanho-claro está preso no alto da cabeça em um coque desalinhado de quem acabou de acordar.

Eu me despeço de Dina com um abraço.

— Eu vou ficar bem — digo a ela. — Prometo. Não vou nem chegar perto de onde ele mora.

Desta vez, chego até a imaginar um rosto masculino ao falar de alguém que não existe. Acho que já interpreto esse papel há tanto tempo que “Matt” e todos esses meus “amigos” de Los Angeles, de quem falo para todo mundo como se fossem reais, se tornaram reais no meu subconsciente.

Dina força um sorriso em seu rosto preocupado, e suas mãos soltam meus cotovelos.

— Você liga assim que chegar?

— Assim que eu entrar no quarto do hotel, ligo — respondo, assentindo.

Ela sorri e eu a abraço mais uma vez, antes de segui-los até o carro de Dahlia, que está esperando. Eric guarda minha mala no bagageiro, junto com as deles, e se senta no banco de trás.

— Hollywood, aí vamos nós! — exclama Dahlia.

Finjo metade da empolgação dela. Ainda bem que está muito cedo, senão Dahlia poderia intuir o verdadeiro motivo da minha falta de entusiasmo. Estico os braços para trás e bocejo, apoiando a cabeça no banco do carro. Sinto a mão de Eric no meu pescoço quando ele começa a massagear meus músculos.

— Não sei por que você quer ir a Los Angeles de carro — diz Dahlia. — Se a gente fosse de avião, não ia precisar acordar tão cedo. E você não estaria tão cansada e rabugenta.

Minha cabeça cai para a esquerda.

— Não estou rabugenta. Ainda mal falei com você.

Ela dá um sorrisinho.

— Exatamente. Sarai sem falar significa Sarai rabugenta.

— E se recuperando — acrescenta Eric.

Meu rosto fica vermelho e eu estico a mão atrás da cabeça, dando um tapinha de brincadeira na dele, que está fazendo maravilhas no meu pescoço. Fecho os olhos e vejo Victor.

Não de propósito.

Chegamos a Los Angeles depois de quatro horas na estrada. Eu não podia ir de avião porque não conseguiria levar minhas armas. É claro que Dahlia não pode saber disso. Ela acha apenas que quero apreciar a paisagem.

Tenho sete dias para fazer o que vim fazer. Isto é, se eu conseguir. Pensei no meu plano durante meses, em como vou fazer isso. Sei que é impossível entrar na mansão Hamburg. Para isso, eu precisaria ter um convite e socializar em público com o próprio Arthur Hamburg e seus convidados. Ele viu meu rosto. Bem, tecnicamente, viu mais do que meu rosto. Mas sinto que os acontecimentos daquela noite, quando Victor e eu enganamos Hamburg para que ele nos convidasse para ir ao seu quarto e conseguíssemos matar sua esposa, são algo que ele jamais vai esquecer, nem os mínimos detalhes.

Se tudo der certo, uma peruca loura platinada de cabelo curto e maquiagem escura e pesada vão esconder aquela identidade de cabelo longo e castanho que Hamburg reconheceria assim que eu aparecesse.


CAPÍTULO DOIS

Sarai

Passo o dia todo com Eric e Dahlia, fingindo me divertir para passar o tempo. Saímos para almoçar e para fazer um tour por Hollywood com um guia e visitar um museu antes de voltarmos para o hotel, exaustos. Quer dizer, finjo estar exausta o suficiente para querer dar o dia por encerrado. Na verdade, o que preciso é me preparar para ir ao restaurante de Hamburg ainda hoje.

Dahlia já acha que tem algo errado comigo.

— Você está ficando doente? — pergunta ela, estendendo a mão entre nossas espreguiçadeiras à beira da piscina e sentindo a temperatura da minha testa.

— Estou ótima — respondo. — Só cansada porque levantei muito cedo. E quando foi a última vez que andei tanto assim em um dia só?

Dahlia volta a se recostar em sua espreguiçadeira e ajeita os óculos de sol grandes e redondos no rosto.

— Bom, espero que não esteja cansada amanhã — diz Eric, do outro lado. — Tem tantas coisas que eu quero fazer. Não venho para Los Angeles desde que meus pais se divorciaram.

— Pois é. É a minha primeira vez aqui em dois anos — afirma Dahlia.

Um adolescente pula na piscina e a água respinga em nós. Ergo as costas da espreguiçadeira e agito a revista que estava lendo para tirar as gotas. Ponho os óculos escuros no alto da cabeça. Jogo as pernas para o lado e fico de pé.

— Acho que vou voltar para o quarto e tirar uma soneca — anuncio, pegando minha bolsa do chão.

Eric se ergue também e tira os óculos escuros.

— Se quiser, vou com você — oferece ele.

Agito a mão para ele, pedindo que não se levante.

— Não, fica aí e faz companhia para a Dahlia — sugiro, ajeitando a bolsa no ombro. Abaixo os óculos escuros de novo para que ele não perceba minha mentira.

— Tem certeza de que você está bem? — pergunta Dahlia. — Sarai, você está de férias, lembra? Veio para cá se divertir, não para cochilar.

— Acho que vou estar cem por cento amanhã. Só preciso de um banho quente e demorado e de uma boa noite de sono.

— Ok, vou acreditar — diz Dahlia. — Mas nem vem com doença para o meu lado. — Ela aponta o dedo para mim, com ar severo.

Eric fecha os dedos em torno do meu pulso e me puxa para perto.

— Tem certeza de que não quer que eu vá? — Ele me beija e eu correspondo antes de me levantar de vez.

— Tenho — respondo, baixinho, e saio na direção do elevador.

Assim que entro no quarto, tranco a porta com a corrente para que Eric e Dahlia não entrem de surpresa, jogo a bolsa no chão e abro meu laptop, digitando a senha. Enquanto o laptop inicia, olho pela janela e vejo meus amigos, figuras pequenas daquela distância, ainda à beira da piscina. Eu me sento diante da tela e, provavelmente pela centésima vez, olho cada página do site do restaurante de Hamburg, verificando de novo o horário de funcionamento e passando os olhos pelas fotos profissionais do lugar, dentro e fora. Na verdade, nada disso me ajuda muito com o que pretendo fazer, mas olho tudo de novo todo dia, de qualquer maneira.

Derrotada, bato a palma da mão com força no tampo da mesa.

— Droga! — exclamo, desabando na poltrona enquanto passo as mãos pelo cabelo.

Ainda não sei como vou conseguir ficar a sós com Hamburg sem ser vista. Sei que estou dando um passo maior do que a perna. Sei disso desde que tive essa ideia maluca, mas também sei que, se ficar apenas pensando a respeito, nunca vou passar dessa fase.

Vim para cá com um plano: entrar disfarçada no restaurante e agir como qualquer outro cliente. Sondar o lugar por uma noite. Saber onde ficam as saídas. As entradas para outras partes do prédio. Os banheiros. Minha prioridade número um, contudo, é encontrar a sala de onde Hamburg observa do alto seus clientes e ouve a conversa deles pelo minúsculo microfone escondido no arranjo de cada mesa. Então pretendo me enfiar na sala e cortar a garganta daquele porco.

Contudo, agora que estou aqui, a menos de seis quadras do restaurante, e agora que o tempo está passando tão depressa, estou menos confiante. Isso não é um filme. Sou uma idiota por achar que posso adentrar um lugar desses sem ser vista, tirar a vida de um homem sem chamar atenção e fugir sem ser capturada.

Apenas Victor conseguiria fazer algo assim.

Bato no tampo da mesa de novo, mais de leve desta vez, fecho o laptop e me levanto. Ando de um lado para outro no carpete vermelho e verde. E bem quando resolvo seguir pelo corredor para o quarto separado que reservei sem Dahlia e Eric saberem, a porta se abre um pouco, mas é travada pela corrente.

— Sarai? — chama Dahlia do outro lado. — Vai deixar a gente entrar?

Suspiro fundo e destranco a porta.

— Por que a corrente? — pergunta Eric, entrando atrás de Dahlia.

— Força do hábito.

Eu me jogo na ponta da cama king-size.

Os dois deixam suas coisas no chão. Dahlia se senta à mesa, ao lado da janela, e Eric se deita atravessado na cama ao meu lado, cruzando as pernas na altura dos calcanhares.

— Pensei que você ia tirar uma soneca — diz Dahlia.

Ela passa os dedos com cuidado pelo cabelo úmido, fazendo caretas quando se depara com alguma mecha mais embaraçada.

— Dahlia — digo, olhando para os dois. — Eu subi agora há pouco. Pensei que vocês iam ficar na piscina mais um tempo.

Espero ter conseguido disfarçar o aborrecimento na minha voz por eles terem vindo me encontrar tão cedo. Não consigo evitar: estou estressada demais, além de preocupada com a simples presença dos dois aqui comigo. Não quero que eles se machuquem nem que se envolvam de forma alguma com meu motivo para estar aqui.

— A gente pode sair e deixar você sozinha, se quiser — sugere Eric, baixinho, atrás de mim.

Eu me arrependo na mesma hora do que disse, porque é óbvio que não disfarcei o aborrecimento tão bem quanto esperava.

Inclino a cabeça para trás e suspiro, esticando o braço para tocar o tornozelo dele.

— Desculpa — digo, sorrindo para Dahlia. — Sabe, eu... — Então, de repente, uma desculpa perfeitamente plausível para o modo como tenho agido surge na minha cabeça, e a torneira das mentiras se abre. — Eu só fico meio nervosa por estar de volta a Los Angeles.

Dahlia faz cara de “ah, entendi”, empurra os pés de Eric para o lado e se senta perto de mim. Ela passa o braço por cima dos meus ombros e segura meu antebraço.

— Imaginei que o problema fosse esse.

Percebo que ela olha de relance para Eric e tenho a impressão de que foi sobre isso que os dois falaram enquanto ficaram na piscina, depois que fui embora.

Aposto que também foi por isso que decidiram subir tão cedo para me ver.

— A gente queria ver como você estava — acrescenta Eric atrás de mim, confirmando minha suspeita.

Sinto a cama se mexer quando ele se senta.

Eu me levanto antes que ele consiga me abraçar. É nesse exato momento que me dou conta de como tenho feito isso com frequência no último mês. Não sei por quanto tempo mais vou conseguir enganá-lo. Sei que deveria simplesmente contar o que sinto, que não gosto tanto de Eric quanto ele gosta de mim. Mas não consigo dizer a verdade. Eu precisaria inventar mais uma mentira, e estou tão atolada em mentiras que me sinto afogada nelas.

Ao mesmo tempo, deixei nossa relação durar tanto porque eu queria de verdade sentir por ele algo tão profundo quanto o que ele parece sentir por mim. Queria seguir em frente, esquecer Victor e ser feliz com a vida que ele me deixou.

Mas não consigo. Não consigo mesmo...

— Ele nem vai saber que você está aqui — diz Eric sobre “Matt”. — Além disso, mesmo que ele descobrisse, eu ia encher o cara de porrada assim que o visse.

Esboço um sorriso para Eric.

— Eu sei que você faria isso — digo, mas me sinto ainda pior, porque os únicos dois amigos que tenho no mundo não fazem nem ideia de quem sou.

Cruzo os braços, vou até a janela e olho para fora.

— Sarai — chama Dahlia. — Não queria dizer isso, mas, se você está tão preocupada com a possibilidade de Matt descobrir que você está em Los Angeles, acho que não é boa ideia visitar seus amigos aqui.

— Eu sei, você tem razão. Sei que eles não contariam para Matt, mas acho que é melhor eu ficar só com vocês dois enquanto estivermos aqui.

Eu me viro para encará-los.

— É um bom plano — diz Eric, com um sorriso radiante.

É um bom plano, com certeza, porque agora não preciso mais inventar outra desculpa para não apresentar os dois aos meus amigos que não existem.

Dahlia se aproxima de mim.

— A gente devia ter ido para a Flórida ou algum lugar assim, hein?

Olho pela janela de novo.

— Não — respondo. — Adoro esta cidade. E sei que vocês queriam muito vir para cá. — Dou um sorriso rápido. — Sugiro que a gente curta ao máximo esta semana.

Ela me empurra com o ombro de brincadeira.

— Essa é a Sarai que eu conheço — diz Dahlia, sorrindo.

É, só que não sou essa pessoa...

Ela vai até Eric e o puxa pelo braço, levantando-o da cama.

— Vamos sair daqui e deixar a mocinha descansar.

Eric se levanta e se aproxima de mim. Então pega meus braços e me vira para encará-lo. Com aqueles olhos azul-bebê, ele faz a melhor expressão amuada que consegue.

— Se precisar de mim para qualquer coisa, pode me chamar que eu venho.

Concordo com a cabeça e lhe ofereço um sorriso sincero. Ele merece, por ser tão legal comigo.

— Pode deixar.

Então eu os empurro porta afora com as duas mãos.

— Eu diria para vocês não se divertirem muito sem mim, mas isso seria pedir demais.

Dahlia ri baixinho ao sair para o corredor.

— Não, não é pedir muito. — Ela levanta dois dedos. — Palavra de escoteiro.

— Acho que não é assim que se faz, Dahl — diz Eric.

Ela faz um gesto para dispensar as palavras dele.

— Trate de dormir — sugere Dahlia. — Porque amanhã você vai precisar estar novinha em folha.

— De acordo — digo, assentindo.

— Tchau, amor — diz Eric antes de eu fechar a porta.

Fico com as costas apoiadas na porta e solto um suspiro longo e profundo.

Fingir é difícil demais. Bem mais difícil do que simplesmente ser eu mesma, por mais anormal e imprudente que eu seja.

— Eu sei o que preciso fazer — digo em voz alta.

Falar sozinha é minha nova mania, porque me ajuda a visualizar e entender melhor as coisas.

Volto para a janela e olho a cidade de Los Angeles, com os braços cruzados.

— Preciso de um disfarce, mas não para me esconder de Hamburg. Só das câmeras e de qualquer outra pessoa. Eu quero que Hamburg me veja. Só assim vou conseguir entrar.


CAPÍTULO TRÊS

Sarai

Dahlia e Eric só voltam para o quarto algumas horas mais tarde, depois de escurecer. Eu já tinha tomado banho, vestido short e camiseta e deixado a luz apagada para parecer que estava dormindo. Assim que ouvi o cartão passando pela porta, pulei na cama e me espalhei pelo colchão, como sempre faço quando durmo de verdade. Eric entrou na ponta dos pés, tentando não “me acordar”, mas me virei, soltei um resmungo e abri os olhos para mostrar que acordei. Ele pediu desculpas e perguntou se eu queria ir com ele e Dahlia a uma boate ali perto, insistindo que, se eu não fosse, ele também não iria. Mas logo rejeitei essa ideia. Percebi que ele queria muito ir e não posso culpá-lo: se eu estivesse no lugar dele, não iria querer ficar em um quarto escuro de hotel às oito da noite de uma sexta-feira, em uma das cidades mais animadas dos Estados Unidos.

Eric e Dahlia saírem era exatamente do que eu precisava. Passei aquelas duas horas inteiras tentando inventar uma desculpa para explicar a eles por que eu ia sair, aonde iria e por que eles não poderiam ir junto.

Eles resolveram isso para mim.

Minutos após Eric sair do quarto, espero Dahlia — em seu próprio quarto, ao lado do nosso — tirar o biquíni e se vestir. Pelo olho mágico da minha porta, eu os vejo indo embora pelo corredor. Conto até cem enquanto ando de um lado para outro sem parar. Então pego minha bolsa e vou até a porta. Ando depressa pelo corredor na direção oposta e chego ao quarto secreto, do outro lado do prédio.

Com certa paranoia de ser flagrada, vasculho minha bolsa e encontro tudo, menos a chave do quarto. Enfim consigo senti-la entre os dedos e me apresso para entrar, travando a porta com a corrente. Abro a mala ao pé da cama e tiro minha peruca curta platinada, passando os dedos para ajeitar as mechas desalinhadas, e então a deixo sobre o abajur ao lado para que não perca a forma.

Visto um Dolce & Gabbana curtinho e me maquio com cores escuras e pesadas, o que, depois de passar um tempão praticando em casa, faço bem. Então calço as sandálias de salto alto. Andar de salto é outra coisa que passei muito tempo tentando aprender. Meu alter ego, Izabel Seyfried, saberia andar de salto e o faria bem. Por isso, eu precisava acompanhar.

Em seguida, molho o cabelo e o divido em duas partes atrás. Enrolo cada metade e cruzo uma sobre a outra na nuca. Vários grampos depois, meu longo cabelo castanho está bem preso no couro cabeludo. Visto a touca da peruca e depois a própria peruca, ajustando-a por muito tempo até deixar tudo perfeito.

Por fim, prendo uma bainha de punhal em torno da coxa e a cubro com o tecido do vestido.

Fico de pé diante do espelho de corpo inteiro e me avalio de todos os ângulos possíveis. Estar loura é estranho. Satisfeita, pego a bolsinha preta e a enfio debaixo do braço, com a pequena pistola formando certo volume nela. Estico o braço para girar a maçaneta, mas deixo minha mão cair junto ao corpo.

“Que droga eu estou fazendo?”

O que precisa ser feito.

“E por que eu estou fazendo isso?”

Porque preciso.

Não consigo tirar da cabeça as coisas que aquele homem confessou, as pessoas que matou por causa de um fetiche sexual doentio. Todas as noites desde que Victor me deixou, quando fecho os olhos, vejo o rosto de Hamburg e aquele sorriso de gelar o sangue que ele abriu quando me curvei sobre a mesa, exposta na frente dele. Vejo o rosto de sua esposa, esquelético e combalido, seus olhos fundos turvados pela resignação. Ainda sinto até o fedor da urina que secou em suas roupas e no catre infestado onde ela dormia, naquele quarto escondido.

Meu peito se enche de ar e eu o prendo por vários segundos, antes de soltar um longo suspiro.

Não posso esquecer. A necessidade de matá-lo é como uma coceira no meio das costas. Não posso alcançar naturalmente, mas vou me curvar e torcer os braços até doerem para coçar.

Não posso esquecer...

E talvez... só talvez também acabe chamando a atenção de um certo assassino que não consigo me obrigar a esquecer.

Assim que passo pela porta, deixo Sarai para trás e me torno Izabel por uma noite.

Por não ter pensado de antemão na importância de ao menos alugar um carro chique, salto do táxi a duas quadras do restaurante e ando o resto do caminho. Izabel jamais seria vista andando de táxi.

— Mesa para um? — pergunta o recepcionista assim que entro no restaurante.

Inclino a cabeça e olho para ele com um ar irritado.

— Algum problema? Não posso fazer uma refeição sozinha? Ou você está dando em cima de mim? — Abro um sorrisinho e inclino a cabeça para o outro lado. Ele está ficando nervoso. — Você gostaria de jantar comigo... — olho para o nome bordado no paletó — ... Jeffrey? — Chego mais perto. Ele dá um passo constrangido para trás.

— Hã... — Ele hesita. — Peço desculpas, senhora...

Recuo, trincando os dentes.

— Nunca me chame de senhora — digo com rispidez. — Me leve até uma mesa. Para um.

Ele assente e pede que eu o siga. Quando chego à minha mesinha redonda com duas cadeiras, no meio do restaurante, me sento e deixo a bolsa ao lado. Um garçom se aproxima quando o recepcionista se afasta e me apresenta a carta de vinhos. Eu a rejeito com um movimento dos dedos.

— Quero apenas água com uma rodela de limão.

— Pois não, senhora — diz ele, mas deixo passar.

Enquanto o garçom se afasta, começo a examinar o lugar. Há uma placa indicando a saída à minha esquerda, bem longe, perto do corredor. Há outra à minha direita, próxima à escada que leva para o segundo piso. O restaurante está praticamente igual à primeira vez que vim: escuro, não muito cheio e bastante silencioso, embora desta vez eu ouça jazz baixinho vindo de algum lugar. Ao observar o recinto, paro de repente ao ver a mesa à qual me sentei com Victor quando vim com ele, meses atrás.

Eu me perco na memória, vendo tudo exatamente como aconteceu. Quando olho para as duas pessoas sentadas no outro lado do salão, só consigo me ver com Victor:

— Venha cá — diz ele, em um tom de voz mais delicado.

Deslizo os poucos centímetros que nos separam e me sento encostada a ele.

Seus dedos dançam pela minha nuca quando ele puxa minha cabeça para perto de si. Meu coração bate descompassado quando ele roça os lábios na lateral do meu rosto. De repente, sinto sua outra mão entrando pelo meio das minhas coxas e subindo por baixo do vestido. Minha respiração para. Devo abrir as pernas? Devo ficar imóvel e travá-las? Sei o que quero fazer, mas não sei o que devo fazer, e minha mente está a ponto de desistir.

— Tenho uma surpresa para você esta noite — murmura ele no meu ouvido.

Sua mão se aproxima mais do calor no meio das minhas pernas.

Gemo baixinho, tentando não deixar que ele perceba, embora tenha certeza absoluta de que percebeu.

— Que tipo de surpresa? — pergunto, com a cabeça inclinada para trás, apoiada em sua mão.

— Vai querer algo mais? — Ouço uma voz, e sou arrancada do meu devaneio.

O garçom está segurando o cardápio. Minha água com uma rodela de limão na borda do copo já está diante de mim.

Um pouco confusa de início, apenas assinto, mas faço que não em seguida.

— Ainda não sei — respondo, enfim. — Deixe o cardápio. Talvez eu peça mais tarde.

— Pois não — diz o garçom.

Ele deixa o cardápio na mesa e vai embora.

Olho para a varanda e para as mesas encostadas no balaústre requintado. Onde Hamburg pode estar? Sei que ele está no andar de cima porque Victor disse que ele ficava por lá. Mas onde? Eu me pergunto se ele já me viu, e no mesmo instante meu estômago se embrulha de nervoso.

Não, não posso parecer nervosa.

Endireito as costas na cadeira e tomo um gole da água. Deixo o dedo mindinho levantado, o que me faz parecer muito mais rica, ou apenas mais esnobe. Fico observando os clientes indo e vindo, escuto sua conversa supérflua e me pego imaginando qual dos casais que estão ali poderia acabar na mansão de Hamburg no fim de semana, ganhando muito dinheiro para deixar que ele os veja foder.

Então olho para o arranjo de flores vermelhas em um pequeno vaso de vidro no centro da minha mesa. Pego o celular na bolsa, finjo digitar um número e o coloco perto do ouvido, para que ninguém ache que estou falando sozinha.

— Este recado é para Arthur Hamburg — digo em voz baixa, inclinando-me um pouco para a frente a fim de que o microfone escondido no vaso de flores capte minha voz. — Com certeza você se lembra de mim, não é? Izabel Seyfried. Há quanto tempo, não?

Com cuidado, olho para os lados, esperando ver um ou dois homens parrudos de terno se aproximando de mim com armas em punho.

— Não estou sozinha — continuo —, por isso nem pense em fazer alguma idiotice. A gente precisa conversar.

Olhando para a varanda acima de mim, tento descobrir onde ele pode estar, torcendo para que esteja ali. Alguns minutos tensos se passam, e, quando começo a pensar que a noite foi em vão e que eu estava mesmo falando sozinha, noto um movimento no piso superior, logo acima da saída à minha direita. Meu coração bate forte quando vejo a figura alta e escura sair das sombras e descer a escada.

Eu me lembro desse homem de ombros largos, cabelo grisalho e uma covinha no meio do queixo. É o gerente do restaurante, Willem Stephens, que já encontrei aqui uma vez.

Ele se aproxima da minha mesa sem expressar nenhuma emoção, com as mãos enormes cruzadas à frente, as costas retas, o queixo anguloso imóvel.

— Boa noite, srta. Seyfried. — A voz dele é profunda e sinistra. — Posso perguntar onde está seu dono?

Levanto os olhos para encará-lo, dou um sorrisinho, tomo um gole da minha água e devolvo o copo à mesa, sem pressa. Cada fibra do meu ser está gritando, dizendo como fui idiota em vir até aqui. Por mais que eu saiba que é verdade, não importa. Não é o medo que me faz tremer por dentro, é a adrenalina.

— Victor Faust não é meu dono — explico, com calma. — Mas ele está aqui. Em algum lugar. — Um sorriso tênue e dissimulado toca meus lábios.

Os olhos de Stephens percorrem o salão sutilmente e voltam a me encarar.

— Por que está aqui? — pergunta ele, perdendo um pouco o ar de gerente sofisticado.

— Tenho negócios a discutir com Arthur Hamburg — respondo, confiante. — É do maior interesse dele marcar um encontro privado comigo. Aqui. Hoje. De preferência agora.

Tomo outro gole.

Noto que o pomo de adão de Stephens se move quando ele engole em seco, bem como os contornos de seu queixo quando ele cerra os dentes. Ele olha para o lugar de onde veio, no andar de cima, e percebo um aparelhinho preto escondido em seu ouvido esquerdo. Parece que ele está ouvindo alguém falar. Eu chutaria que é Hamburg.

Ele me encara de novo, com os olhos escuros e cheios de ódio, mas mantém o semblante inexpressivo com a mesma perfeição de Victor.

Ele descruza os braços, estende a mão direita para mim e diz:

— Por aqui.

Ele só deixa os braços penderem, relaxados, quando me levanto. Sigo Stephens pelo restaurante e escada acima, para o piso da varanda.

Apenas duas coisas podem acontecer: ou esta será minha primeira noite como assassina ou a última da minha vida.


CAPÍTULO QUATRO

Sarai

— Se encostar em mim — digo para o guarda-costas de terno à porta da sala particular de Hamburg —, enfio suas bolas em um moedor de carne.

As narinas do segurança se dilatam e ele olha para Stephens.

— Você solicitou uma reunião com o sr. Hamburg — diz Stephens atrás de mim. — É claro que vamos revistá-la antes para verificar se está armada.

Droga!

Calma. Fique calma. Faça o que Izabel faria.

Respiro fundo, encarando-os com desprezo e um ar ameaçador. Então jogo minha bolsinha preta no segurança. Ele pega a bolsa quando ela bate em seu peito.

— Acho que está bem claro que eu não conseguiria esconder uma arma em um vestido como este, a menos que a enfiasse na boceta — digo, olhando para Stephens. — Minha arma está na bolsa. Mas nem pense em tocar...

— Deixem a moça entrar — ordena da porta uma voz familiar.

É Hamburg, ainda balofo e grotesco como antes, usando um terno imenso que parece em vias de estourar se ele respirar fundo demais.

Abro um leve sorriso para o segurança, que me encara com olhos assassinos. Conheço esse olhar, até demais. O homem tira a pistola e me devolve a bolsa.

— Sr. Hamburg — diz Stephens —, eu deveria ficar na sala com o senhor.

Hamburg balança a papada, rejeitando a sugestão.

— Não, vá cuidar do restaurante. Se essas pessoas tivessem vindo me matar, não seriam tão óbvias. Eu vou ficar bem.

— Pelo menos deixe Marion à porta — sugere Stephens, olhando para o guarda-costas.

— Sim — concorda Hamburg. — Você fica aqui. Não deixe ninguém interromper nossa... — diz ele, me olhando com frieza — reunião, a menos que eu peça. Se em algum momento você não ouvir minha voz por mais de um minuto, entre na sala. Como precaução, é claro.

Ele abre um sorrisinho para mim.

— É claro. — Imito Hamburg e sorrio também.

Ele dá um passo para o lado e me convida a entrar.

— Pensei que isso tivesse acabado, srta. Seyfried.

Hamburg fecha a porta.

— Sente-se — pede ele.

A sala é bem grande, com paredes lisas e arredondadas, sem cantos, de um lado a outro. Uma série de grandes quadros retratando o que parece ser cenas bíblicas rodeia uma grande lareira de pedra. Cada imagem é emoldurada em uma caixa de vidro, com luzes na parte de baixo. A sala é pouco iluminada, como o restaurante, e o cheiro é de incenso ou talvez de óleo aromático de almíscar e lavanda. Na parede à minha esquerda, há uma porta aberta que leva a outra sala, onde a luz cinza-azulada de várias telas de TV brilha nas paredes. Chego mais perto para me sentar na poltrona de couro com encosto alto diante da escrivaninha e espio dentro da saleta. É como eu imaginava. As telas mostram várias mesas do restaurante.

Hamburg fecha essa porta também.

— Não, está longe de acabar — respondo, enfim.

Cruzo as pernas e mantenho a postura ereta, o queixo levantado com ar confiante e os olhos em Hamburg, enquanto ele atravessa a sala na minha direção. Puxo a barra do vestido para cobrir completamente o punhal preso na coxa. Minha bolsa está no meu colo.

— Vocês já tiraram minha esposa de mim. — A indignação transparece na voz dele. — Não acham que foi o suficiente?

— Infelizmente, não. — Abro um sorriso malicioso. — Não foi o suficiente para você e sua esposa tirarem uma vida? Não, não foi — respondo por ele. — Vocês tiraram muitas vidas.

Hamburg morde o interior da bochecha e se senta atrás da escrivaninha, de frente para mim. Ele apoia as mãos gordas sobre o tampo de mogno. Percebo quanto ele quer me matar ali mesmo onde estou. Mas não fará isso porque acredita que não estou sozinha. Ninguém em sã consciência faria algo assim, vir até aqui sozinha, inexperiente e desprevenida.

Ninguém, a não ser eu.

Preciso garantir que ele continue acreditando que tenho cúmplices até descobrir como vou matá-lo e sair da sala sem ser pega. O pedido de Hamburg para que o guarda-costas entrasse na sala depois de um minuto sem ouvir sua voz pôs mais um obstáculo no plano que, na verdade, nunca tive de fato.

— Bem, devo dizer uma coisa — diz Hamburg, mudando de tom. — Você é deslumbrante com qualquer tipo de peruca. Mas admito que prefiro a morena.

Ele acha que meu cabelo castanho-avermelhado era uma peruca. Ótimo.

— Você é doente. Sabe disso, certo? — Tamborilo com as unhas no braço da poltrona.

Hamburg abre um sorriso medonho. Estremeço por dentro, mas mantenho a compostura.

— Eu não matei aquelas pessoas de propósito. Elas sabiam no que estavam se metendo. Sabiam que, no calor do momento, alguém poderia perder o controle.

— Quantas?

Hamburg estreita os olhos.

— O que importa isso, srta. Seyfried? Uma. Cinco. Oito. Por que não diz logo o motivo da sua visita? Dinheiro? Informação? A chantagem assume muitas formas, e não seria a primeira vez que enfrento uma. Sou um veterano.

— Fale sobre a sua esposa — peço, ganhando tempo e fingindo ainda ser quem dá as cartas. — Antes de “ir direto ao assunto”, quero entender sua relação com ela.

Uma parte de mim quer saber de verdade. E estou incrivelmente nervosa; sinto um enxame zumbindo no meu estômago. Talvez jogar conversa fora ajude a acalmar minha mente.

Hamburg inclina a cabeça para o lado.

— Por quê?

— Apenas responda à pergunta.

— Eu a amava muito — responde ele, relutante. — Ela era a minha vida.

— Aquilo é amor? — pergunto, incrédula. — Você manchou a memória dela ao dizer que ela era uma viciada em drogas que se suicidou, só para salvar a própria pele, e chama isso de amor?

Noto uma luz se movendo no chão, por baixo da porta da sala de vigilância. Não havia ninguém lá dentro antes, ao menos que eu tivesse visto.

— Como a chantagem, o amor assume muitas formas. — Hamburg apoia as costas na poltrona de couro, que range, cruzando os dedos roliços sobre a enorme barriga. — Mary e eu éramos inseparáveis. Não éramos como outras pessoas, outros casais, mas o fato de sermos tão diferentes não significava que nos amávamos menos do que os outros. — Os olhos dele cruzam os meus por um momento. — Tivemos sorte por encontrar um ao outro.

— Sorte? — pergunto, pasma com o comentário. — Foi sorte duas pessoas doentes se encontrarem e se unirem para fazer coisas doentias com os outros? Não entendo.

Hamburg balança a cabeça como se fosse um velho sábio e eu fosse jovem demais para entender.

— Pessoas diferentes como Mary e eu...

— Doentes e dementes — corrijo. — Não diferentes.

— Chame como quiser — diz ele, com ar de resignação. — Quando você é tão diferente assim da sociedade, do que é aceitável, encontrar alguém como você é algo muito raro.

Sem perceber, cerro os dentes. Não porque Hamburg esteja me irritando, mas porque nunca imaginei que esse homem nojento pudesse me dizer qualquer coisa que me fizesse pensar na minha situação com Victor, ou qualquer coisa que eu pudesse entender.

Afasto esse pensamento.

A luz fraca sob a porta da sala de vigilância se move de novo. Finjo não ter notado, sem querer dar a Hamburg qualquer motivo para achar que estou pensando em outra saída.

— Vim aqui saber nomes — digo de repente, sem ter pensado bem a respeito.

— Que nomes?

— Dos seus clientes.

Algo muda nos olhos de Hamburg, ele vai tomar o controle da situação.

— Você quer os nomes dos meus clientes? — pergunta ele, desconfiado.

Que merda...

— Pensei que você e Victor Faust já estivessem de posse da minha lista de clientes.

Continue séria. Não perca a compostura. Merda!

— Sim, estamos, mas me refiro àqueles que você não mantinha nos registros.

Acho que vou vomitar. Parece que minha cabeça está pegando fogo. Prendo a respiração, torcendo para ter me livrado dessa.

Hamburg me examina em silêncio, vasculhando meu rosto e minha postura em busca de qualquer sinal de autoconfiança abalada. Ele coça o queixo gordo e cheio de dobras.

— Por que você acha que existe uma lista fantasma?

Suspiro meio aliviada, mas ainda não estou fora de perigo.

— Sempre existe uma lista fantasma — afirmo, embora não faça nem ideia do que estou dizendo. — Quero pelo menos três nomes que não estejam no registro que nós temos.

Sorrio, sentindo que recuperei o controle da situação.

Até ele falar:

— Diga você três nomes da lista que já tem, e eu dou o que você quer.

É oficial: perdi o controle.

Engulo em seco e me controlo antes de parecer “pega no flagra”.

— Você acha que eu carrego a lista na bolsa? — pergunto com sarcasmo, tentando continuar no jogo. — Nada de negociações ou meios-termos, sr. Hamburg. O senhor não está em condições de fazer nenhuma barganha.

— É mesmo? — pergunta ele, sorrindo.

Ele suspeita de mim. Posso sentir. Mas vai garantir que está certo antes de dar o bote.

— Isso não está em discussão. — Eu me levanto da poltrona de couro, enfiando a bolsa debaixo do braço, mais frustrada do que antes por ter que entregar minha arma.

Pressiono os dedos na escrivaninha de mogno, apoiando meu peso neles ao me curvar um pouco na direção de Hamburg.

— Três nomes, ou saio daqui e Victor Faust entra para espalhar os seus miolos naquele belo quadro do menino Jesus atrás de você.

Hamburg ri.

— Esse não é o menino Jesus.

Ele se levanta junto comigo, alto, enorme e ameaçador.

Enquanto vasculho minha mente e tento entender como ele descobriu que sou uma farsante, Hamburg se adianta e anuncia seu raciocínio como um chute na minha boca.

— É engraçado, Izabel, você vir aqui pedir nomes que não aparecem em uma lista que você... — diz, apontando para a minha bolsa — ... nem carrega consigo, porque como você saberia que os nomes que eu daria não estão nela?

Estou muito ferrada.

— Vou dizer o que eu acho — continua ele. — Acho que você veio aqui sozinha por causa de alguma vingança contra mim. — Ele balança o indicador. — Porque eu me lembro de cada detalhe da porra daquela noite. Cada merda de detalhe. Especialmente a sua expressão quando percebeu que Victor Faust tinha vindo matar minha esposa em vez de mim. Era a expressão de alguém pega de surpresa, que não fazia ideia de por que estava ali. Era a expressão de alguém que não está familiarizada com o jogo.

Ele tenta sorrir com gentileza, como se quisesse demonstrar alguma espécie de empatia pela minha situação, mas o que leio em seu rosto é cinismo.

— Acho que, se houvesse mais alguém aqui com você, ele já teria aparecido para salvá-la, porque é óbvio que você está ferrada.

A porta do quarto principal se abre, o guarda-costas entra e a tranca. Por uma fração de segundo, tive a esperança de que fosse Victor vindo me salvar na hora certa. Mas foi só um desejo. O guarda-costas me olha com desprezo. Hamburg acena para ele, que começa a tirar o cinto.

Meu coração afunda até o estômago.

— Sabe — diz Hamburg, dando a volta na escrivaninha —, na primeira vez que a gente se viu, lembro que fiz um acordo com Victor Faust. — Ele aponta para mim. — Você se lembra disso, não?

Hamburg sorri e apoia a mão gorda nas costas da poltrona na qual eu estava sentada, virando-a para mim.

Todo o meu corpo está tremendo; parece que o sangue que passa pelas minhas mãos virou ácido. Ele corre pelo meu coração e pela minha cabeça tão rápido que quase desmaio. Começo a tentar alcançar meu punhal, mas eles estão perto demais, aproximando-se pelos dois lados. Não tenho como enfrentar os dois ao mesmo tempo.

— Como assim? — pergunto, tropeçando nas palavras, tentando ganhar um pouco de tempo.

Hamburg revira os olhos.

— Ora, por favor, Izabel. — Ele gira um dedo no ar. — Apesar do que aconteceu naquela noite, fiquei decepcionado de verdade por vocês dois irem embora antes de cumprir o acordo.

— Eu diria que, em vista do que aconteceu, o acordo não vale mais nada.

Ele sorri para mim e se senta na poltrona de couro. Percebo Hamburg espiar de relance o guarda-costas, dando uma ordem só com o olhar.

Antes que eu consiga me virar, o segurança prende minhas duas mãos nas minhas costas.

— Você vai cometer um erro do caralho se fizer isso! — grito, tentando me livrar das garras do segurança.

Ele me leva à força até uma mesa quadrada e me joga sobre ela. Meus reflexos não são rápidos o suficiente e meu queixo bate no mármore duro. O gosto metálico do sangue enche minha boca.

— Me solte! — Tento chutá-lo. — Me solte agora!

Hamburg ri de novo.

— Vire a cabeça dela para esse lado — ordena ele.

Dois segundos depois, meu pescoço é torcido para o outro lado e mantido ali, minha bochecha esquerda pressionada contra o mármore frio.

— Quero ver a cara dela enquanto você a fode. — Hamburg me olha de novo. — Então vamos continuar do ponto onde paramos naquela noite, tudo bem? Você concorda, Izabel?

— Vai se foder!

— Ah, não, não — diz ele, ainda com o riso na voz. — Não sou eu quem vai foder você. Você não faz o meu tipo. — Seus olhos famintos percorrem o corpo do segurança que está me pressionando por trás.

— Eu vou matar você — digo, cuspindo por entre os dentes. A mão do segurança sobre a minha cabeça impede que eu a mexa. — Vou matar vocês dois! Me estupre! Vamos lá! Mas os dois vão estar mortos antes que eu saia daqui!

— Quem disse que você vai sair daqui? — provoca Hamburg.

O zíper da calça dele está aberto; sua mão direita está parada ao lado da braguilha, como se ele estivesse tentando manter algum autocontrole e não se masturbar ainda.

Então Hamburg acena com dois dedos para o guarda-costas, que me mantém imóvel segurando meus cabelos da nuca.

— Lembre-se disso — diz ele ao segurança. — Ela não vai sair daqui.

Sinto a mão direita do guarda-costas soltar meu cabelo e se mover entre as minhas pernas. Enquanto ele ergue meu vestido, aproveito para alcançar o punhal na minha coxa e tirá-lo da bainha, golpeando atrás em um ângulo desajeitado. O segurança grita de dor e me solta. Puxo o punhal ainda firme na mão, que está coberta de sangue. Ele cambaleia para trás, com a mão na base do pescoço, o sangue jorrando entre seus dedos.

— Sua puta do caralho! — ruge Hamburg, saltando da poltrona e vindo atrás de mim como um elefante descontrolado, a calça caindo de sua cintura flácida.

Corro na direção dele com o punhal levantado e colidimos no meio da sala. Seu peso me joga de bunda no chão e o punhal cai da minha mão, deslizando pelo piso ensanguentado. De pé, Hamburg se abaixa para me segurar, mas me reclino no chão e levanto o pé com toda a força, enfiando o salto da minha sandália na lateral do seu rosto. Ele geme e cambaleia para trás, com a mão na bochecha.

— Eu vou acabar com você! Puta que pariu! — berra ele.

Engatinho na direção do punhal, vendo o segurança no chão, em meio a uma poça de sangue. Ele está engasgando com os próprios fluidos; tentando em vão encher os pulmões de ar.

Pego o punhal com firmeza e rolo no chão enquanto Hamburg se aproxima, derrubando a poltrona de couro. Fico de pé e corro até a mesa, empurrando-a na direção dele. Hamburg tenta tirá-la da frente, mas o móvel balança sobre a base e ele acaba tropeçando. Seu corpo desaba no chão de barriga para baixo e a mesa cai quase na sua cabeça. Salto sobre suas costas e monto em seu corpo obeso. Meus joelhos mal tocam o chão. Agarro seu cabelo, puxo a cabeça dele para trás na minha direção e aperto o punhal em sua garganta, imobilizando-o em segundos.

— Pode me matar! Foda-se! Você não vai sair viva daqui mesmo. — A voz de Hamburg é rouca, sua respiração, rápida e ofegante, como se ele tivesse acabado de tentar correr uma maratona. O cheiro de seu suor e de seu medo invade minhas narinas.

Ocupada com a lâmina em sua garganta, me assusto com o som de batidas fortes na porta. A distração me pega desprevenida. Hamburg consegue se erguer debaixo de mim como um touro, rolando de lado e me derrubando no chão. Deixo cair o punhal em algum lugar, mas não tenho tempo para procurá-lo porque Hamburg consegue se levantar e parte para cima de mim. Ouço a voz de Stephens do outro lado da porta, que vibra com seus socos.

Rolo para sair do caminho antes que Hamburg consiga pular em cima de mim, pego o objeto mais próximo — um peso de papel de pedra, bem pesado, que estava na mesa antes de ser derrubada — e golpeio Hamburg com ele. O som do osso de seu rosto quebrando com o impacto faz meu estômago revirar. Hamburg cai para trás, cobrindo a cara com as mãos.

As batidas na porta ficam mais fortes. Numa fração de segundo, levanto a cabeça e vejo a porta sacudindo com violência no batente. Preciso sair daqui. Agora. Meu olhar varre a sala procurando o punhal, mas não há mais tempo.

Corro para a sala de vigilância, contornando os obstáculos.

Graças a Deus, há outra porta lá dentro. Abro a porta e desço correndo a escada de concreto, torcendo para que seja uma saída e eu não encontre mais ninguém no caminho.


CAPÍTULO CINCO

Sarai

Desço a escada de concreto de dois em dois degraus, segurando no corrimão de metal pintado com as mãos ensanguentadas, até chegar ao térreo. Uma placa vermelha com a palavra SAÍDA está à minha frente. Corro pela passagem mal-iluminada, onde uma lâmpada fluorescente pisca acima de mim e torna o lugar ainda mais ameaçador. Empurro com força a barra da porta com as duas mãos e ela se abre para um beco. Um homem de terno está sentado no capô de um carro, fumando, quando saio para a rua.

Eu fico paralisada.

Ele olha para mim.

Eu olho para ele.

Ele nota o sangue nas minhas mãos e olha de relance para a porta, depois para mim.

— Vá — diz ele, acenando para a caçamba de lixo à minha direita.

Sei que não tenho tempo para ficar confusa nem para perguntar por que ele está me deixando ir embora, mas pergunto assim mesmo.

— Por que você está...?

— Apenas vá!

Ouço passos ecoando na escada atrás da porta.

Lanço um olhar agradecido ao homem e dou a volta na caçamba, desço o beco e me afasto do restaurante. Ouço um tiro segundos depois que dobro a esquina e torço para que seja aquele homem fingindo atirar em mim.

Evito espaços abertos e corro por trás de prédios, protegida pela escuridão, tanto quanto minhas sandálias de salto alto permitem. Quando sinto que estou longe o suficiente para parar um pouco, tento me esconder atrás de outra caçamba e tiro as sandálias. Arranco a peruca loura e a jogo no lixo.

Não consigo respirar. Estou enjoada.

Meu Deus, estou enjoada...

Encosto na parede de tijolos atrás de mim, arqueando as costas e apoiando as mãos nos joelhos. Vomito com violência no chão, meu corpo rígido, o esôfago ardendo.

Pego as sandálias e saio correndo de novo na direção do hotel, tentando esconder o sangue das mãos e do vestido, mas percebo que não é tão fácil. Recebo alguns olhares desconfiados ao passar depressa pela recepção, mas tento ignorá-los e torço para que ninguém chame a polícia.

Em vez de arriscar ser vista por outras pessoas, subo pela escada até o oitavo andar. Quando chego lá, e depois de tudo o que corri, sinto que minhas pernas vão ceder. Encosto na parede e recupero o fôlego, com os joelhos tremendo descontroladamente. Meu peito dói, como se cada respiração trouxesse poeira, fumaça e cacos microscópicos de vidro para o fundo dos pulmões.

O quarto que divido com Eric está trancado e eu não tenho a chave. Aliás...

— Puta merda...

Jogo a cabeça para trás, fecho os olhos e suspiro, arrasada.

Não estou mais com a minha bolsa. Eu a perdi em algum momento da luta na sala de Hamburg. A chave do meu quarto. Meu celular. Minha arma. Meu punhal. Não tenho mais nada.

Bato na porta, mas Eric não está no quarto. Não esperava que estivesse, na verdade, já que não são nem onze da noite. Só para o caso de estar enganada, no entanto, tento o quarto de Dahlia.

— Dahl! Você está aí? — Bato na porta com pressa, tentando não incomodar os outros hóspedes.

Nenhuma resposta.

Já desistindo, jogo as sandálias no chão e apoio as mãos na parede. Minha cabeça desaba. Mas então ouço um clique baixinho e vejo a porta do quarto de Dahlia se abrindo devagar. Levanto a cabeça e a vejo parada ali.

Sem me demorar para questionar a expressão estranha no rosto dela, entro no quarto só para sair do corredor. Eric está sentado na poltrona perto da janela. Noto que seu cabelo está meio bagunçado. O de Dahlia também.

Meu instinto está tentando chamar minha atenção, mas não me importo. Acabei de apunhalar um homem no pescoço e de tentar matar outro. Quase fui estuprada. Estava correndo pelos becos de Los Angeles para fugir de homens armados que vinham atrás de mim. Nada que esses dois façam pode superar isso.

— Meu Deus, Sarai — diz Dahlia, aproximando-se de mim. — Isso é sangue?

A expressão estranha e silenciosa que ela exibia quando entrei no quarto desaparece em um instante quando ela me vê no quarto bem-iluminado. Seus olhos se arregalam, cheios de preocupação.

Eric se levanta da poltrona.

— Você está sangrando. — Ele também me olha de cima a baixo. — O que aconteceu?

Os olhos de Dahlia correm pela minha roupa e pelo meu cabelo preso dentro da touca da peruca.

— Por que... Hã, por que você está vestida assim?

Olho para mim mesma. Não sei o que dizer, então não digo nada. Eu me sinto como um cervo diante dos faróis de um carro, mas minha expressão continua firme e sem emoções, talvez um pouco confusa.

— Você encontrou Matt — acusa Dahlia, começando a levantar a voz. — Puta que pariu, Sarai. Você foi se encontrar com ele, não foi?

Sinto os dedos dela apertando meu antebraço.

Eu me desvencilho de Dahlia e caminho até o banheiro para tirar a touca do cabelo. Enquanto tiro os grampos, noto uma camisinha boiando na privada.

Eric entra no banheiro atrás de mim. Ele sabe que eu vi.

— Sarai, e-eu... Eu sinto muito — diz ele.

— Não se preocupe — respondo, tirando o último grampo e deixando-o na bancada creme.

Passo por Eric e volto para o quarto. Dahlia está me encarando, com o rosto cheio de vergonha e arrependimento.

— Eu...

Ergo a mão e olho para os dois.

— Não, é sério. Não estou brava.

— Como assim? — pergunta Dahlia.

Eric parece agitado. Ele põe a mão na nuca e passa os dedos pelo cabelo.

— Olhe, sem querer ofender — digo a Eric —, mas tenho fingido tudo com você desde a primeira vez que a gente ficou junto.

Ele arregala os olhos, embora tente não deixar que o choque e a mágoa da minha revelação transpareçam demais. Grande parte de mim se sente bem por dizer a verdade. Não por vingança, mas porque eu precisava tirar isso do peito. Mas admito que, depois de descobrir que os dois têm trepado pelas minhas costas, uma pequena parte de mim também fica feliz em magoá-lo. Acho que a vingança sempre encontra um caminho, mesmo nos gestos mais insignificantes.

— Fingido?

— Não tenho tempo para isso — digo, indo na direção da porta. — Vocês dois podem ficar juntos. Não tenho nada contra. Não estou brava, só não me importo mesmo. Preciso ir.

— Espere... Sarai.

Eu me viro para olhar Dahlia. Ela está muito chocada, mal sabe o que pensar. Depois de alguns segundos de silêncio, fico impaciente e a olho com cara de “vai, desembucha”.

— Para você... tudo bem mesmo?

Uau, não sirvo mesmo para o estilo de vida deles. O estilo de vida normal. Nem consigo entender essas coisas de namoro, melhores amigas, infidelidade, competição e joguinhos psicológicos. A cara que eles fazem, tão vazia e mesmo assim tão cheia de incredulidade e dúvida, por causa de uma situação que, para mim, não é tão importante... Tenho coisas mais graves com que me preocupar.

Suspiro, aborrecida com as perguntas vagas e confusas dos dois.

— Sim, por mim, tudo bem — digo, e então me viro para Eric, estendendo a mão. — Preciso da chave do nosso quarto.

Relutante, ele enfia a mão no bolso de trás e pega a chave. Tomo da sua mão, saio dali e vou para o quarto ao lado. Eric vem atrás e tenta falar comigo enquanto guardo minhas coisas na mala.

— Sarai, eu nunca quis...

Eu me viro de repente e o encaro.

— Tudo bem, só vou dizer isto uma vez, depois você muda de assunto ou volta para lá e fica com a Dahlia. Não estou nem aí para o que vocês dois fazem, mas, por favor, não apele para esse clichê de novela de que você nunca quis que isso acontecesse, porque... é muito idiota. — Eu rio baixinho, porque acho idiota mesmo. — Só falta você dizer que o problema não é comigo, é com você. Caramba, você faz ideia do que isso parece? É tão difícil assim acreditar quando digo que não me importo e que estou falando sério? Sem joguinhos. É verdade. — Balanço a cabeça, levanto as mãos e digo: — Não. Me. Importo.

Viro para a mala, fecho o zíper, abro a parte lateral e pego a chave do quarto secreto. Ainda bem que eu tinha uma cópia.

— Preciso ir — digo, andando até a porta e passando por Eric.

— Aonde você vai?

— Não posso contar, mas me escute, Eric, por favor. Se alguém aparecer me procurando, finja que não me conhece. Diga o mesmo para Dahlia. Finjam que nunca me viram na vida. Aliás, quero que vocês dois saiam hoje. Vão para qualquer lugar. Só... não fiquem aqui.

— Você vai me dizer o que aconteceu ou por que está toda ensanguentada? Sarai, você está me deixando assustado pra cacete.

— Eu vou ficar bem — digo, atenuando minha expressão. — Mas prometa que você e Dahlia vão fazer exatamente o que falei.

— Você vai me contar um dia?

— Não posso.

O silêncio entre nós fica mais pesado.

Enfim, abro a porta e saio para o corredor.

— Acho que sou eu quem deveria estar pedindo desculpas.

— Por quê?

Eric fica na porta, com os braços caídos ao lado do corpo.

— Por pensar em outra pessoa durante todo esse tempo em que eu estava com você. — Olho para o chão.

Nós nos encaramos por um breve momento e ninguém diz mais nada. Ambos sabemos que estamos errados. E acho que nós dois estamos aliviados por tudo ter vindo à tona.

Não há mais nada a dizer.

Eu me afasto pelo corredor na direção oposta à do meu quarto secreto e dou a volta por trás, para que Eric não veja aonde estou indo. Quando me tranco no quarto, só consigo desabar na cama. A exaustão, a dor e o choque de tudo o que aconteceu esta noite me atingem em cheio assim que a porta se fecha, e me engolem como uma onda. Eu me jogo de costas no colchão. Minhas panturrilhas doem tanto que duvido conseguir andar sem mancar amanhã.

Fico olhando para o teto escuro até ele desaparecer e eu pegar no sono.


CAPÍTULO SEIS

Sarai

Um tum! pesado me acorda, mais tarde naquela noite. Eu me levanto como uma catapulta.

Vejo dois homens no meu quarto: um desconhecido morto no chão e Victor Faust de pé sobre o corpo dele.

— Levante-se.

— Victor?

Não acredito que ele está aqui. Devo estar sonhando.

— Levante-se, Sarai. AGORA! — Victor me pega pelo cotovelo, me arranca da cama e me põe de pé.

Não consigo nem pegar minhas coisas, ele já está abrindo a porta e me puxando para o corredor com ele, segurando forte a minha mão.

Disparamos juntos pelo corredor e outro homem aparece virando a esquina, de arma em punho. Victor aponta sua 9mm com silenciador e o derruba antes que o cara consiga atirar. Ele passa pelo corpo me puxando, seus dedos fortes afundando na minha mão enquanto corremos para a escada. Ele abre a porta, me empurra para a frente e nós subimos depressa os degraus de concreto. Um andar. Três. Cinco. Minhas pernas estão me matando. Acho que não consigo andar por muito mais tempo. Enfim, no quinto andar, Victor me puxa para outro corredor e rumo a um elevador nos fundos.

Quando as portas do elevador se fecham e estamos só nós dois lá dentro, finalmente tenho a oportunidade de falar.

— Como você sabia que eu estava aqui? — Mal consigo recuperar o fôlego, esgotada pela correria infinita e pela adrenalina, mas acho que sobretudo porque Victor está de pé ao meu lado, segurando minha mão.

Meus olhos começam a arder com as lágrimas.

Engulo o choro.

— O que você estava pensando, Sarai?

— Eu...

Victor segura meu rosto com as duas mãos e me empurra contra a parede do elevador, pressionando ferozmente seus lábios nos meus. Sua língua se entrelaça na minha e sua boca tira meu fôlego em um beijo apaixonado que, enfim, faz meus joelhos cederem. Toda a força que eu estava usando para manter o corpo ereto desaparece quando os lábios dele me tocam. Ele me beija com fome, com raiva, e eu derreto em seus braços.

Então ele se afasta, as mãos fortes nos meus braços, me segurando contra a parede do elevador. Nós nos encaramos pelo que parece ser uma eternidade, nossos olhos paralisados em uma espécie de contemplação profunda, nossos lábios a centímetros de distância. Só quero prová-los de novo.

Mas ele não deixa.

— Responda — exige Victor, estreitando seus olhos perigosos em reprovação.

Já esqueci a pergunta.

Ele me sacode.

— Por que você veio aqui? Tem ideia do que você fez?

Balanço a cabeça em um movimento curto e rápido, parte de mim mais preocupada com seu olhar ameaçador do que com o que ele está dizendo.

A porta do elevador se abre no subsolo e eu não tenho tempo para responder, pois Victor mais uma vez pega minha mão e me puxa para que o siga. Serpenteamos por um grande depósito com caixas em pilhas altas encostadas nas paredes e depois por um longo corredor escuro que leva a um estacionamento. Victor enfim solta minha mão e eu o sigo até um carro parado entre dois furgões pretos com o logotipo do hotel nas laterais. Dois bipes ecoam pelo ambiente e os faróis do carro piscam quando nos aproximamos, iluminando a parede de concreto em frente. Sem perder tempo, me sento no banco do passageiro e fecho a porta.

Segundos depois, Victor está dirigindo casualmente pelo estacionamento até a rua.

— Eu queria que ele morresse — respondo, enfim.

Victor não me olha.

— Bom, você fez um excelente trabalho — rebate ele, sarcástico.

Ele vira para a direita no semáforo, e o carro ganha velocidade quando chegamos à rodovia.

Fico magoada por suas palavras, mas sei que ele tem razão, por isso não discuto. Fiz merda. Uma merda muito grande.

Mas não me dou conta do tamanho dela até Victor dizer:

— Os seus amigos podiam ter morrido. Você podia ter morrido.

Sinto meus olhos se arregalarem além dos limites e me viro mais um pouco para encará-lo.

— Ah, não... Victor, o quê... Eles estão bem?

Sinto que vou vomitar de novo.

Victor me olha por um instante.

— Estão ótimos. O primeiro quarto que os capangas de Hamburg revistaram estava vazio — diz ele, voltando a olhar para a estrada. — Eu cheguei quando eles estavam saindo. Segui um deles até o quarto onde você estava escondida, deixei que ele destrancasse a porta e então ataquei.

As chaves do quarto. Minhas duas chaves extras estavam na bolsa que perdi no restaurante de Hamburg. E os números dos quartos estavam escritos nas capinhas de papel que as protegiam. Eu estava tão preocupada em esconder minha arma e meu punhal que nem pensei em esconder as chaves.

— Merda! — Também olho para a estrada. — E-eu perdi a bolsa no restaurante. As chaves do meu quarto estavam dentro dela. Deixei um rastro para eles seguirem!

Felizmente, eu não tinha uma chave extra do quarto de Dahlia, senão ela e Eric já poderiam estar mortos.

Onde é que eu estava com a cabeça?!

— Não, você deixou literalmente as chaves do seu quarto com o nome do hotel gravado. Sarai, eu devia ter matado você há muito tempo e poupado toda essa confusão para cima de você e de mim.

Eu me viro para encará-lo; a raiva e a mágoa pesando no meu peito.

— Você não está falando sério.

Ele faz uma pausa e me olha. Suspira.

— Não, não estou falando sério.

— Nunca mais me diga isso. Nunca mais me diga uma coisa dessas, ou eu mato você e poupo a mim de toda essa confusão — rebato, desviando o olhar.

— Você não está falando sério — diz Victor.

Olho mais uma vez para aqueles olhos ameaçadores verde-azulados que me fizeram tanta falta.

— Não. Mas acho que isso seria o mais sensato.

— Bom, você não foi a campeã da sensatez hoje, então acho que estou seguro ao menos pelas próximas 24 horas.

Escondo o sorriso.

— Senti sua falta — digo de maneira distante, olhando para a estrada.

Victor não responde, mas admito que seria estranho se respondesse. A despeito de sua falta de emoção, porém, sei que ele também sentiu saudade de mim. Aquele beijo no elevador disse coisas que palavras jamais conseguiriam.

Ele pega uma saída e para o carro debaixo de um viaduto. Puxa o freio de mão e a área ao redor desaparece na escuridão quando ele desliga os faróis.

— O que a gente está fazendo aqui?

— Você precisa ligar para os seus amigos.

— Por quê?

Ele tira um celular do porta-luvas entre nós.

— Mande eles voltarem para o Arizona. Faça ou diga o que for preciso para que eles saiam de Los Angeles. Quanto antes, melhor.

Ele coloca o telefone na minha mão. De início, só olho para o aparelho, mas ele me pressiona com aquele olhar, aquele que grita “vamos lá, faça isso de uma vez”, mas que só alguém como eu, alguém que conhece Victor, seria capaz de notar.

Giro o celular nas mãos, depois o seguro firmemente e digito o número de Eric. Mas então mudo de ideia, desligo no primeiro toque e ligo para Dahlia.

Ela atende no quinto toque.

Respiro fundo e faço o que sei fazer melhor: minto.

— A verdade é que vocês me magoaram. Duvido que um dia eu consiga perdoar você ou Eric pelo que fizeram.

— Sarai... Meu Deus, me desculpe, estou me sentindo muito mal. A gente não queria que isso chegasse a esse ponto. Juro para você. Não sei o que aconteceu...

— Escute, Dahlia, por favor, só me escute.

Ela fica quieta.

Começo a choradeira. Nunca imaginei que eu seria capaz de chorar sob demanda e de forma tão falsa.

— Eu quero acreditar em você. Quero conseguir confiar em você de novo, mas você era minha melhor amiga e me traiu. Preciso de um tempo sozinha e quero que você e Eric voltem para o Arizona. Hoje. Acho que não vou aguentar ver vocês de novo... Espere, onde você está, agora?

Acabo de me dar conta de que, se ela e Eric estiverem no hotel, a essa altura ela já sabe que dois homens foram mortos a tiros no andar do quarto deles.

— A gente está em uma festa em um terraço — conta ela. — T-tudo bem por você? Achei que não tinha nada a ver a gente sair, mas o Eric falou que você insistiu...

— Não, tudo bem — digo, cortando-a. — Insisti mesmo. Onde ele está, agora?

— Deixei Eric lá no terraço para a gente poder conversar. Está muito barulhento lá em cima. Que número é esse de onde você está ligando?

— É o celular de um amigo. Perdi o meu. O Eric por acaso avisou que se alguém procurar por mim...

— Avisou, sim — interrompe Dahlia. — Que confusão é essa, afinal? Meu Deus, Sarai, esquece por um momento esse lance com Eric e me conta o que está acontecendo, por favor. O sangue. As roupas esquisitas que você estava usando e aquele troço na sua cabeça. Era uma touca de peruca? Você está metida em alguma encrenca, eu sei. Sei que você me odeia, e tem todo o direito de odiar, mas, por favor, conte o que aconteceu.

— Não posso contar, porra! — grito, deixando o choro distorcer minha voz. — Caramba, Dahlia, faça o que eu pedi. Pelo menos isso! Você deu para o meu namorado! Por favor, voltem para o Arizona, me deixem esfriar a cabeça e depois eu volto para casa. Talvez aí a gente possa conversar. Mas agora façam o que eu estou pedindo. Tudo bem?

Ela não responde por um momento, e um longo silêncio se forma entre nós.

— Tudo bem — concorda ela. — Vou dizer ao Eric que a gente precisa ir embora.

— Obrigada.

Estou apenas um pouco aliviada. Não vou me sentir bem com isso até saber que eles chegaram em casa sãos e salvos.

Desligo sem dizer mais uma palavra.

— Bom, isso foi bastante convincente — observa Victor, levemente impressionado.

— Acho que foi.

— Eu sei que a sua amiga acreditou — acrescenta ele. — Mas eu não acreditei em uma só palavra.

Eu me viro para ele. Victor me conhece tão bem quanto eu o conheço, parece.

— É porque nem uma palavra era verdade.

Ele deixa por isso mesmo e nós saímos de baixo do viaduto.

Chegamos a uma casa perdida no final de uma estrada isolada nos arredores da cidade, empoleirada no alto de uma colina com uma vista quase perfeita para a cidade lá embaixo. Uma piscina de formato irregular começa no lado esquerdo da casa e serpenteia por trás, a água azul-clara iluminada por lâmpadas submersas parece luminescente. O lugar está silencioso. Só ouço o vento passando pela mata cerrada que contorna o lado direito e os fundos da casa, impedindo uma visão em 360 graus da paisagem iluminada de Los Angeles. Quando nos aproximamos da porta, uma mulher robusta usando uniforme azul de empregada nos recebe. Ela tem cabelo preto encaracolado e pele morena. Suas bochechas são volumosas, envolvendo seus olhos castanho-escuros pequenos e brilhantes, que fitam atentamente Victor e a mim.

— Por favor, entrem — diz ela, com um sotaque hispânico familiar.

A mulher fecha a porta. A casa cheira a limpa-vidro e a uma mistura pouco natural de cheiros adocicados que só pode vir de algum tipo de aromatizador de ambientes artificial. Parece que todas as janelas foram abertas, permitindo que a brisa noturna de verão se espalhasse pela casa. Não se parece em nada com as mansões ricas onde já estive, mas é impecável e aconchegante, e penso que eu deveria pelo menos ter tomado um banho antes de vir. Minha pele e minhas roupas ainda estão manchadas de sangue...

Victor está usando uma calça preta e uma camisa apertada de mangas compridas que adere a cada músculo de seus braços e seu peito, com os punhos desabotoados e arregaçados até os cotovelos. A camisa está por fora da calça e os dois botões de cima estão abertos. Sapatos pretos chiques e informais calçam seus pés. Um relógio brilhante de prata adorna seu pulso direito, e não consigo deixar de notar a solitária veia grossa que percorre as costas de sua mão até o osso de seu pulso. Quando ele segue a empregada pela grande entrada e se vira momentaneamente de costas para mim, vejo o cabo da arma saindo da cintura de sua calça, com a barra da camisa branca enfiada atrás.

Ele me olha, para e estende o braço, em um gesto para que eu ande à sua frente. Tremo de leve quando sua mão toca minhas costas perto da cintura.

Antes que eu tenha tempo de me sentir deslocada ao lado dele, Fredrik, o amigo e cúmplice sueco de Victor que conheci no restaurante de Hamburg há tanto tempo, entra na sala pelas grandes portas de vidro que dão para o quintal dos fundos.


CAPÍTULO SETE

Sarai

— Você chegou cedo — comenta Fredrik com um sorriso mortal, porém inimaginavelmente sexy.

As roupas dele são bem parecidas com as de Victor, mas, em vez de camisa de botão, Fredrik está vestindo uma camiseta branca apertada que adere à sua forma esbelta e máscula. Ele está descalço.

A primeira vez que vi Fredrik, pensei que era impossível haver alguém mais bonito. Com cabelo macio, quase preto, e olhos escuros e misteriosos, suas feições parecem ter sido esculpidas por algum artista famoso. Mas sempre achei que havia algo de sombrio e assustador naquele homem. Um lado dele que eu, particularmente, não faço questão de conhecer. Para mim, basta o jeito como ele era quando nos encontramos: cordial, encantador e misterioso, uma linda máscara que ele usa para esconder a fera que há por trás.

Victor olha para seu relógio caro.

— Só dez minutos mais cedo — comenta ele.

Fredrik sorri ao se aproximar, os dentes brancos reluzindo contra a pele bronzeada.

— Sim, mas você sabe como eu sou.

Victor assente, mas não alonga o assunto. A mim, só resta imaginar o que aquilo significa.

— É bom ver você — diz Fredrik, observando-me do topo de sua altura considerável e presença avassaladora. Ele se inclina, pega minha mão e a beija, logo acima dos nós dos dedos. — Ouvi dizer que você matou um homem hoje.

Ele apruma as costas e solta minha mão. Um sorriso perturbador e orgulhoso surge em seu rosto, os cantos dos olhos se aquecendo com alguma lembrança ou... prazer, como se a ideia de matar alguém o deliciasse de alguma forma.

Olho para Victor à minha direita. Ele assente, respondendo à pergunta estampada no meu rosto. O guarda-costas que apunhalei no pescoço morreu?

Olho para Fredrik e respondo sem rodeios.

— Acho que matei.

Um leve sorriso se abre nos cantos dos lábios de Fredrik, e ele olha de relance para Victor, sem mover a cabeça.

— E você se sente bem com isso? — pergunta Fredrik.

— Para dizer a verdade, sim — respondo sem demora. — O desgraçado mereceu.

Fredrik e Victor parecem envolvidos em algum tipo de conversa secreta. Odeio isso.

Enfim, Fredrik diz para Victor em voz alta:

— Você arrumou sarna para se coçar, Faust.

Ele então se vira de costas para nós e anda na direção das portas de vidro. Nós o seguimos para o lado de fora, passando pela parte coberta do quintal e descendo uma escada de pedra que leva a um enorme pátio, também de pedra, que se abre em todas as direções. O pátio é decorado com mesas e cadeiras de ferro batido e uma cama com dossel ao ar livre.

Eu me sento ao lado de Victor em um sofá.

— Como é que você sabe? — pergunto a Fredrik, mas então me viro para Victor e digo: — E você ainda não me contou como sabia que eu estava aqui.

Na verdade, isso não importa muito, só quero encará-lo nos olhos de novo. Quero ficar sozinha com Victor, mas por enquanto vou precisar me contentar com os 7 centímetros entre nossos corpos, sentados lado a lado.

— Melinda Rochester me contou — explica Fredrik com um sorriso conivente. Começo a perguntar “E quem é Melinda Rochester”, mas ele diz: — Bem, ela contou para todo mundo, na verdade. Noticiário do Canal 7. Um homem morto a punhaladas atrás de um restaurante de Los Angeles.

Começo a me retorcer por dentro. Espero que as câmeras não tenham me mostrado com nitidez.

Eu me viro para Victor, com a preocupação transparecendo no rosto.

— Eu estava de peruca loura — digo, tentando encontrar alguma coisa, qualquer coisa que eu tenha feito certo. — Fiquei com a cabeça baixa... a maior parte do tempo.

Desisto. Sei que o que fiz vai continuar me perseguindo. Suspiro e olho para as mãos ensanguentadas no meu colo.

— E encontrar você foi fácil — continua Victor. — A sra. Gregory me ligou depois que você saiu do Arizona. Ela estava preocupada com a sua vinda para Los Angeles e achou que eu precisava saber.

Viro a cabeça para encará-lo.

— O quê? Dina sabia onde você estava? — Sinto a pele ao redor das sobrancelhas se enrijecendo.

— Não — responde ele, com delicadeza. — Ela não sabia onde eu estava, mas sabia como entrar em contato comigo.

Essas palavras me magoam. Engulo em seco a sensação de ser traída por eles.

— Falei para ela entrar em contato comigo só em caso de emergência — acrescenta Victor. — Caso algo acontecesse com você.

— Você deixou para Dina uma forma de entrar em contato — digo, ríspida —, mas para mim, nada. Não acredito que você fez isso.

— Eu queria que você tocasse a sua vida. Mas, caso os irmãos de Javier descobrissem onde você estava, ou você decidisse fazer uma proeza como a de hoje, eu queria ficar sabendo.

Não consigo olhar para Victor. Tento chegar mais alguns centímetros para o lado a fim de aumentar a distância entre nós. Ainda assim, mesmo que esteja magoada e enfurecida com ele, sinto vontade de me aproximar de novo. Mas me mantenho firme e me recuso a deixá-lo perceber que o poder que ele exerce sobre mim faz a raiva que sinto parecer um chilique.

— Não acredito que Dina escondeu isso de mim — digo em voz alta, ainda que esteja falando mais comigo mesma.

— Ela escondeu de você porque eu disse a ela quanto isso era importante.

— Bom, de qualquer maneira — interrompe Fredrik, sentando-se na poltrona ao lado do sofá —, parece que você se meteu em uma situação da qual não vai conseguir sair tão facilmente, se é que vai conseguir.

— Por que a gente está aqui? — pergunto, aborrecida.

Fredrik ri baixinho.

— Aonde mais você iria?

— Eu precisava tirar você do hotel — explica Victor.

— Espere um pouco. Eu não matei aquele homem atrás do restaurante. Tudo aconteceu na sala particular de Hamburg, no andar de cima.

Recordo o homem que vi do lado de fora, atrás do restaurante, aquele que me deixou fugir, e meu coração afunda.

— Hamburg não deixaria que a polícia acreditasse que o assassinato aconteceu lá dentro, porque eles confiscariam a memória da câmera de vigilância e veriam o que realmente aconteceu.

Não estou entendendo nada. Nadinha.

— Eles não iam querer que a polícia soubesse o que realmente aconteceu?

Fredrik se reclina na poltrona e ergue um pé descalço, apoiando o tornozelo sobre o outro joelho, e estende os braços sobre os da poltrona.

Victor balança a cabeça.

— Preciso mesmo explicar isso para você, Sarai?

Sua vaga irritação me pega de surpresa. Olho para ele e levo alguns segundos para entender tudo sem que ele precise explicar.

— Ah, entendi — digo, olhando um de cada vez. — Hamburg não quer que a polícia se envolva porque corre o risco de se expor. O que ele fez, então? Só levou o corpo para fora? Preparou a situação para parecer um assalto comum? Não muito diferente do que ele fez naquela noite em que a gente estava na mansão dele, imagino.

Paro por aí porque Fredrik está presente. Não sei qual o grau de intimidade entre ele e Victor, nem mesmo se Fredrik sabe o que aconteceu na noite em que Victor matou a esposa de Hamburg.

Os olhos de Victor sorriem de leve para mim: sua maneira de me mostrar quanto lhe agrada eu ter entendido tudo. Ainda fingindo estar aborrecida, não retribuo o olhar da forma que ele deve esperar.

A empregada aparece com um balde chique de gelo, de madeira, com três garrafas de cerveja dentro. Fredrik pega uma, então ela nos oferece. Victor pega uma garrafa, mas recuso, mal conseguindo olhar a mulher nos olhos. Estou absorta demais nos acontecimentos da noite, que não me saem da cabeça.

A empregada vai embora logo depois, sem dizer uma palavra.

— O que você quis dizer com os irmãos de Javier?

Victor abre sua garrafa e a põe na mesa.

— Dois deles, Luis e Diego, assumiram os negócios de Javier dias depois que você o matou.

Por um instante, o rosto de Javier surge em minha mente: sua expressão chocada e ainda orgulhosa, os olhos arregalados, o corpo caindo no chão segundos depois de eu meter uma bala em seu peito.

Afasto a imagem.

Eu me lembro de Luis e Diego. Diego é aquele que tentou me estuprar quando eu estava na fortaleza no México, aquele que Javier castrou como punição.

— Eles estão me procurando?

Victor toma um gole de cerveja e devolve a garrafa à mesa com calma.

— Que eu saiba, não. Estou monitorando a fortaleza há meses. Os irmãos de Javier são amadores. Não têm ideia do que fazer com tanto poder. Duvido até que vejam você como ameaça.

Fredrik toma um gole de cerveja e prende a garrafa entre as pernas.

— Não fique tão aliviada assim — diz ele. — É melhor ser perseguida por amadores do que por Hamburg e aquele braço direito dele.

Um nó nervoso se forma no fundo do meu estômago. Olho de relance para Victor, buscando respostas.

— Willem Stephens — esclarece Victor — faz todo o serviço sujo de Hamburg. Hamburg em si é covarde, tão perigoso quanto o pedófilo gente boa da vizinhança. Mal consegue atirar em um alvo imóvel, e trairia alguém em dois minutos para se salvar. — Ele arqueia uma sobrancelha. — Stephens, por outro lado, tem uma extensa formação militar, é ex-mercenário e trabalhou para uma Ordem do mercado negro em 1986.

— Uma o quê?

— Uma Ordem como a nossa — explica Victor —, mas que aceita contratos particulares. Eles fazem coisas que outros agentes se recusam a fazer, vendem seus serviços basicamente para qualquer um.

— Ah... Então, resumindo, ele mata gente inocente por dinheiro.

Lembro o que Victor me contou, meses atrás, sobre a natureza dos contratos particulares, como pessoas eram assassinadas por motivos fúteis como traição conjugal ou vingança. A Ordem de Victor só trabalha com crime, ameaças sérias a um grande número de pessoas ou ideias que poderiam ter um impacto negativo na sociedade ou na vida como um todo.

Engulo em seco.

— Bom, ele me viu, com certeza. — Levanto as mãos e tiro o cabelo do rosto, passando as mãos no alto da cabeça. — Foi ele quem me levou para o segundo andar, para a sala de Hamburg. — Olho para Victor. — Desculpa, Victor. Eu... eu não sabia de nada disso.

Fredrik ri baixinho e diz:

— Algo me diz que, mesmo se você soubesse, teria ido lá de qualquer maneira.

Desvio o olhar de Victor e olho para baixo de novo, nervosa, esfregando os dedos ensanguentados uns nos outros. Fredrik tem razão. Odeio admitir, mas ele tem razão. Eu teria ido para o restaurante mesmo assim. Teria tentado matar Hamburg mesmo assim. Mas, se eu soubesse de tudo isso, acho que teria pensado em um plano melhor.

De repente, sinto que alguma coisa toma meu corpo e me tira o fôlego.

— Victor... Meu celular... — Eu me levanto do sofá, com o cabelo castanho-avermelhado caindo pelos ombros, batendo em meus braços nas partes em que o sangue secou e formou uma crosta áspera. — O número de Dina está no meu celular. Merda. Merda! Victor, Stephens vai atrás dela! Preciso voltar para o Arizona!

Começo a seguir para a porta dos fundos, mas Victor me alcança antes que eu atravesse o caminho decorado com pedras lisas.

— Espere aí.

Olho para baixo e vejo os dedos dele em volta do meu pulso. Seus hipnóticos olhos verde-azulados me fitam com desejo e devoção. Devoção. Algo que nunca vi no olhar de Victor antes.

Fredrik fala atrás de nós, me tirando do transe em que Victor me colocou.

— Eu vou cuidar disso — diz ele.

Desvio o olhar de Victor para Fredrik, que então ganha importância, considerando que a vida de Dina está em jogo.

— Como? — pergunto.

Victor me leva de volta para o sofá.

Fredrik pega o celular da mesa à frente, procura um número e toca na tela para ligar. Então encosta o celular no ouvido.

Victor me faz sentar perto dele de novo. Estou concentrada demais em Fredrik no momento para notar que Victor fez questão de se sentar tão perto que sua coxa está encostada na minha. Quero aproveitar o momento de proximidade, mas não posso. Estou preocupada com Dina.

Fredrik se reclina na poltrona de novo, balançando o pé descalço apoiado no joelho. Seu rosto fica alerta quando alguém atende à ligação.

— Em quanto tempo você consegue chegar a Lake Havasu City? — pergunta Fredrik ao telefone. Ele ouve por um segundo e assente. — Mando o endereço por mensagem de texto assim que eu desligar. Vá para lá o mais rápido que puder. Uma mulher mora lá. Dina Gregory. — Ele me olha de relance, para se certificar de que disse o nome certo. Como não o corrijo, volta a falar ao telefone. — Tire-a da casa e a leve para Amelia, em Phoenix. Sim. Sim. Não, não pergunte nada a ela. Só tome cuidado para ninguém machucar Dina. Sim. Me ligue neste número assim que estiver com ela.

Fredrik assente mais algumas vezes. Meu coração está batendo tão forte que parece pronto para pular do peito. Espero que a pessoa com quem ele está falando consiga encontrar Dina a tempo.

Fredrik desliga e parece abrir uma tela de texto no celular. Ele olha para mim, mas é Victor quem dá o endereço da sra. Gregory. Fredrik o digita e deixa o celular na mesa.

— Meu contato está a apenas trinta minutos de lá — explica Fredrik, olhando primeiro para mim. Então se vira para Victor. — O que você quer que eu faça?

Ele levanta as costas da poltrona e apoia os cotovelos nos joelhos, deixando as mãos entre eles. Mesmo em uma posição relaxada, ele consegue parecer elegante, importante e perigoso.

— Ainda preciso que você verifique o que discutimos ontem — diz Victor, e fica ainda mais claro, para mim, que Fredrik recebe ordens dele, embora não pareça ser do tipo que recebe ordens de ninguém. Mas está claro que os dois têm uma relação forte. — E, se você não se importa, preciso da sua casa emprestada por esta noite.

Os olhos escuros de Fredrik me encaram, e o traço de um sorriso aparece em seu rosto. Ele se levanta e pega o celular da mesa, escondendo-o na mão.

— Não precisa dizer mais nada. Vou sair daqui em vinte minutos. Eu ia mesmo me encontrar com alguém hoje, então está combinado.

A atitude de Victor muda um pouco, o que percebo no mesmo instante. Ele está encarando Fredrik, do outro lado da mesa do pátio, com um olhar cansado e cauteloso.

— Você não vai fazer o que estou pensando...

Ouço com atenção sem nem ao menos tentar disfarçar. Eu quero que eles saibam que estou bisbilhotando, porque é frustrante nenhum dos dois me oferecer qualquer explicação sobre esses comentários internos.

Fredrik ergue um lado da boca em um meio sorriso. Ele balança a cabeça de leve.

— Não, esta noite, não, infelizmente. Mas já faz algum tempo. Vou precisar que você me ajude com isso em breve.

Os olhos dele passam por mim e sinto um calafrio percorrer minhas costas. Não consigo decidir se é um arrepio bom ou assustador.

— Você terá sua oportunidade logo, logo — assegura Victor.

Fredrik dá a volta na mesa.

— Lamento por ter que encurtar nossa reunião.

— Tudo bem — digo. — Obrigada por ajudar com Dina. Você avisa quando receber aquela ligação?

Fredrik assente.

— Com certeza. Farei isso.

— Obrigada.

Victor acompanha Fredrik até a porta de vidro e os dois a atravessam. Fico sentada, observando-os do outro lado do pátio de pedra e tentando ouvir o máximo que posso, mas eles fazem questão de falar em voz baixa. Isso também me deixa frustrada. E pretendo informar Victor disso.


CAPÍTULO OITO

Victor

Fredrik fecha a porta de correr feita de vidro.

— Ela não sabe nada sobre Niklas? — pergunta ele, como eu já previa.

— Não, mas vou ter que contar. Ela vai precisar ficar atenta o tempo todo. Agora mais do que nunca.

— Ela não pode ficar aqui por muito tempo — aconselha Fredrik, olhando, através do vidro, Sarai sentada no sofá lá fora e nos observando. — Você também não.

— Eu sei. Quando Niklas descobrir que ela participou do assassinato no restaurante de Hamburg, vai saber na mesma hora que também estou envolvido nisso. Ele não é bobo. Se Sarai está viva, Niklas vai saber que estou tentando ajudá-la.

— E como ele desconfia de que agora trabalho com você — acrescenta Fredrik —, ela corre tanto perigo perto de mim quanto de você.

— É verdade.

Fredrik balança a cabeça para mim, com um sorriso escondido no fundo dos olhos.

— Não entendo esse envolvimento. Respeito você como sempre, respeitei, Victor, mas nunca vou entender a necessidade de um homem amar uma mulher.

— Eu não estou apaixonado por ela. Ela só é importante para mim.

— Talvez não — retruca ele, indo para a cozinha. — Mas parece que o amor e o envolvimento trazem as mesmas consequências, meu amigo. — Sigo Fredrik até a cozinha iluminada e ele abre um armário. — Mas estou do seu lado. O que você precisar que eu faça para ajudar, é só pedir. — Ele aponta para mim perto do armário, agora com um pão na mão.

A empregada de Fredrik entra na cozinha, roliça e mais velha do que nós dois juntos, exatamente o tipo de mulher que jamais o atrairia, e foi por isso que ele a contratou. Ela lhe pergunta em espanhol se pode voltar para casa e ver a família mais cedo hoje. Fredrik responde em espanhol, concordando. Ela assente respeitosamente e passa por mim na sala. De soslaio, eu a observo pegar uma bolsa volumosa de couro marrom do chão, perto da espreguiçadeira, e colocá-la no ombro. Depois ela vai até a porta, fechando-a devagar ao sair.

Sarai está de pé nas sombras da sala quando desvio o olhar da porta. Nem ouvi a porta de vidro correr quando ela entrou, e pelo jeito Fredrik também não.

Ela vai para a cozinha iluminada, de braços cruzados, os dedos delicados segurando seus bíceps femininos, mas bem-definidos. Ela é linda demais, mesmo quando está desgrenhada assim.

— Quanto tempo vocês planejavam me deixar lá fora? — pergunta ela, com um traço de irritação na voz.

— Ninguém disse que você precisava ficar lá, gata — responde Fredrik.

Ele gosta dela, isso é óbvio para mim, e ele deve saber. Mas também sabe que vou matá-lo. Ainda assim, minha confiança em Fredrik é maior do que minha preocupação de que ele volte para o lado sombrio e a machuque. Fredrik Gustavsson é uma fera do tipo mais carnal, que adora mulheres e sangue, mas tem limites e critérios, além de levar a lealdade, o respeito e a amizade muito a sério. Sua lealdade a mim é, afinal, o motivo para ele trair a Ordem todos os dias me ajudando.

Sarai se aproxima de mim e me olha nos olhos, inclinando um pouco a cabeça para o lado. O cheiro de sua pele e o calor tênue que emana dela quase me fazem perder o controle. Tenho conseguido me conter bastante desde que a beijei no elevador. Pretendo continuar assim.

Ela não diz nada, mas continua me encarando como se esperasse alguma coisa. Fico confuso. Ela inclina a cabeça para o outro lado e seu olhar se suaviza, embora eu não saiba ao certo por quê. Parece maliciosa e cheia de expectativa.

Ouço Fredrik rir baixinho e a porta da geladeira se fechar, mas não tiro os olhos de Sarai.

— As coisas são tão mais fáceis do meu jeito. — Ouço-o dizer, com um sorriso na voz.

— Entre em contato comigo assim que tiver a informação sobre Niklas — peço, ainda olhando nos olhos de Sarai e ignorando o comentário dele. — E quando souber pelo seu contato se Dina Gregory está a salvo em Phoenix.

— Pode deixar — diz Fredrik, e então vai para a porta do corredor que leva ao seu quarto. Mas ele para e olha para nós. — Se você não se importa...

Enfim desvio o olhar de Sarai e dou atenção total a Fredrik.

— Não se preocupe — interrompo —, eu sei onde fica o quarto de hóspedes.

Ele enfia na boca um sanduíche que mal notei que ele preparava e morde, rasgando um pedaço de pão. Eu o vejo piscando para Sarai antes de desaparecer da sala. Foi algo inofensivo, uma menção ao que ele acha que pode acontecer entre nós quando sair, e não uma tentativa de flerte.

— Que informação sobre Niklas? — pergunta Sarai, seus traços suaves agora encobertos pela preocupação.

Estendo a mão e passo os dedos por algumas mechas do cabelo dela.

— Preciso contar muita coisa para você — anuncio, tirando a mão antes de perder o controle e acabar tocando nela mais do que pretendo. — Sei que você deve estar exausta. Por que não toma um banho e fica à vontade primeiro? Depois conversamos.

Um sorrisinho suave emerge em seus lábios, mas logo desaparece em seu rosto enrubescido.

— Você quer dizer que eu estou nojenta? — pergunta ela, tímida. — Esse é o seu jeito de me dizer que preciso lavar meu corpo nojento?

— Na verdade, sim — admito.

Por um momento ela faz uma careta e parece ofendida, mas então só balança a cabeça e dá risada. Admiro isso em Sarai. Admiro muita coisa nela.

— Tudo bem. — Sua expressão brincalhona fica séria de novo. — Mas você precisa me contar tudo, Victor. E eu sei que você deve ter muito para contar, mas saiba que também preciso dizer muita coisa para você.

Eu já esperava isso. E, antes que ela fique na ponta dos pés, incline o corpo na minha direção e me beije, já sei que, quando ela sair do banho, vou precisar decidir o que vamos fazer. Vou precisar tomar algumas decisões importantes, que nos afetarão.

Porque de uma coisa eu tenho certeza: Sarai não pode voltar para casa.


Sarai

Quando volto, Victor está na sala, acomodado na beira do sofá, curvado sobre a mesinha de centro feita de vidro que está cheia de pedaços de papel e fotografias. Entro, mas ele continua remexendo neles sem erguer a cabeça para me olhar. Só que ele não me engana, sei que sente a minha presença tanto quanto quero que ele sinta.

Vasculhei o guarda-roupa de Fredrik procurando uma camiseta branca, que vesti sobre meus seios nus. Infelizmente, tive que usar a mesma calcinha de antes, mas as cuecas boxer de Fredrik não são exatamente o tipo de lingerie que eu gostaria de usar para seduzir Victor. Só uma camiseta e uma calcinha. Claro que fiz questão de vestir o mínimo possível, porque desejo Victor e não tenho nenhuma vergonha de deixar isso claro. Mas ainda custo a acreditar que estou no mesmo cômodo que ele, depois de meses achando que ele havia ido embora para sempre.

Acho que o beijo no elevador é onde minha mente ficou suspensa, como se o tempo tivesse parado naquele momento e cada parte de mim ainda deseje que aquele instante continue. Contudo, o resto do mundo continua passando ao meu redor.

Eu me sento ao lado de Victor, recolhendo um pé descalço para o sofá e enfiando-o sob a minha coxa.

— O que é isso tudo? — Olho para os papéis e fotografias na mesa.

Ele mexe em alguns pedaços de papel, empilhando-os.

— É um serviço — explica ele, colocando a foto de um homem de camiseta regata na pequena pilha. — Agora eu trabalho por conta própria.

Isso me surpreende.

— Como assim? — Acho que sei o que ele quer dizer, mas custo a acreditar.

Ele pega a pilha de papéis e bate as laterais na mesa para ajeitar todas as folhas. Então enfia o maço em um envelope de papel pardo.

— Eu saí da Ordem, Sarai. — Ele olha para mim.

Victor aperta as pontas do fecho prateado para fechar o envelope.

Meus pensamentos se embaralham, minhas palavras ficam confusas na ponta da língua. Luto, desesperada, para acreditar no que ele acaba de me contar.

— Victor... mas... não...

— Sim — confirma ele, virando-se para mim e me olhando bem nos olhos. — É verdade. Eu me rebelei contra a Ordem, contra Vonnegut, e agora eles estão atrás de mim. — Ele volta a mexer nos outros papéis na mesa. — Mas ainda preciso trabalhar, por isso agora trabalho sozinho.

Balanço a cabeça sem parar, sem querer engolir a verdade. A ideia de Victor sendo caçado por aqueles que o fizeram ser como ele é, por qualquer um, faz um pânico febril correr pelas minhas veias.

Solto um longo suspiro.

— Mas... mas e Fredrik? E Niklas? Victor, eu... O que está acontecendo?

Ele respira fundo e deixa a folha de papel cair suavemente na mesa, então reclina as costas no sofá.

— Fredrik ainda trabalha para a Ordem. Está lá dentro. Ele vigia Niklas e... — seus olhos cruzam com os meus por um instante —... tem me ajudado a manter você a salvo.

Antes que eu consiga fazer mais perguntas presas na garganta, Victor se levanta e continua a falar, enquanto fico sentada e o observo com a boca semiaberta e as pernas dobradas sobre a almofada.

— Como você sabe, quando alguém está sob suspeita de trair a Ordem, é imediatamente eliminado. Mas acredito que Niklas deixou Fredrik vivo e não transmitiu suas preocupações a Vonnegut pelo simples fato de que Niklas está usando Fredrik para me encontrar. Assim como deixou você viva todo este tempo, esperando que um dia você o levasse a mim.

O que mais me choca não é o que Victor diz, mas o que ele deixa de fora. Tiro as duas pernas de cima do sofá e pressiono os pés no chão de madeira, apoiando as mãos nas almofadas.

— Victor, o que você está me dizendo? Quer dizer que... Niklas continua com Vonnegut?

Espero que não seja isso que ele esteja tentando me dizer. Espero de todo o coração que minha decisão de deixar Niklas vivo aquele dia no hotel, quando ele atirou em mim, não tenha sido o maior erro da minha vida.

Os olhos de Victor vagam para a porta de vidro, e sinto que uma espécie de sofrimento infinito o consome, mas ele não deixa transparecer.

— Você estava lá. Eu disse para o meu irmão que, se ele decidisse continuar na Ordem caso eu resolvesse sair, eu não ficaria bravo com ele. Dei a ele a minha palavra, Sarai. — Victor vai até a porta de vidro, cruza os braços e olha para a piscina azul iluminada que reluz sob o céu cinzento. — Agora é hora de Niklas brilhar, e não vou tirar isso dele.

— Que absurdo! — Salto do sofá com os punhos fechados. — Ele está atrás de você, não é? — Cerro os dentes e contorno a mesinha de centro. — Caralho, é isso, Victor? Para provar seu valor para Vonnegut, ele foi encarregado de matar você. Aquele merda do seu irmão traiu você. Ele acha que vai pegar o seu lugar na Ordem. Puta que pariu, não acredito...

— É o que é, Sarai — interrompe Victor, virando-se para me encarar. — Mas, neste momento, Niklas é a menor das minhas preocupações.

Cruzando os braços, começo a andar de um lado para outro, olhando os veios claros e escuros da madeira sob meus pés descalços. Minhas unhas ainda têm o esmalte vermelho-sangue de duas semanas atrás.

— Por que saiu da Ordem?

— Eu tive que sair. Não tinha escolha.

— Não acredito.

Victor suspira.

— Vonnegut descobriu sobre a gente — conta ele, ganhando minha atenção total. — Foi Samantha... na noite em que ela morreu. Antes que eu saísse da Ordem, encontrei Vonnegut em Berlim, o primeiro encontro frente a frente que tive com ele em meses. Foi em uma sala de interrogatório. Quatro paredes. Uma porta. Uma mesa. Duas cadeiras. Somente eu e Vonnegut sentados frente a frente, com uma luz brilhando no teto acima de nós. — Victor olha para trás pela porta de vidro e depois continua: — No início, eu estava certo de que ele tinha me levado para lá com a intenção de me matar. Eu estava preparado...

— Para morrer? — Se Victor responder que sim, vou dar um tapa na cara dele.

— Não — responde ele, e consigo respirar um pouco melhor. — Eu fui para lá preparado. Raptei a mulher de Vonnegut antes de ir encontrá-lo. Fredrik a manteve em uma sala, pronto para fazer... as coisas dele, caso fosse necessário.

No mesmo instante, quero perguntar o que são as “coisas” de Fredrik, mas deixo a pergunta de lado por enquanto e digo:

— Se Vonnegut quisesse matar você, a esposa dele seria a sua moeda de troca.

De costas para mim, ele assente.

— Samantha estava sendo vigiada pela Ordem. Provavelmente há muito tempo.

— Eles desconfiavam da traição dela? Por que não a mataram, então, como fizeram com a mãe de Niklas, ou como queriam fazer com Niklas?

Victor se vira para me encarar de novo.

— Eles não desconfiavam dela, Sarai, ela era... — Victor respira fundo e aperta os lábios.

— Ela era o quê? — Chego mais perto dele. Não gosto do rumo que a conversa está tomando.

— Ela era mais leal à Ordem do que eu jamais poderia ter imaginado — conta ele, e isso fere meu coração. — Sentado naquela sala com Vonnegut, quanto mais ele falava, mais eu começava a entender que Samantha me traiu da mesma forma que Niklas. Vonnegut me contou coisas que ele não tinha como saber. Ele sabia que eu ajudei você. Em algum momento antes de morrer, naquela noite, Samantha conseguiu passar informações a Vonnegut sobre nossa estadia por lá.

— Não acredito nisso. — Golpeio o ar com a mão diante de mim. — Samantha morreu tentando me proteger. Já falamos sobre isso. Não acredito em você, Victor. Ela era uma boa pessoa.

— Ela era boa manipuladora, Sarai, nada mais do que isso.

Balanço a cabeça, ainda sem acreditar.

— Foi Niklas quem contou a Vonnegut que você me ajudou. Só pode ter sido. Niklas sabia até que você tinha me levado para a casa de Samantha.

— Sim, mas Niklas não sabia que eu fiz Samantha provar nossa comida antes de a gente comer, naquela noite. Assim que Vonnegut mencionou quanto eu ainda desconfiava dela depois de tantos anos, eu soube que ela havia me traído.

— Mas isso não faz nenhum sentido. — Começo a andar pela sala de novo, de braços cruzados e com uma das mãos apoiada no rosto. — Por que ela me protegeria de Javier?

— Porque ela não era leal a Javier.

Jogo as mãos para o ar, atônita com aquela revelação.

— Não dá para confiar em ninguém — digo, me jogando no sofá e olhando para o nada.

— Não, não dá — concorda Victor, e eu olho para cima, detectando um significado oculto por trás de suas palavras. — Agora talvez você entenda por que eu não me envolvo com ninguém. Não é só o trabalho, Sarai. As pessoas em geral não são confiáveis, especialmente na minha profissão, na qual a confiança é tão rara que não vale a pena perder tempo e esforço procurando por ela.

— Mas você parece confiar em Fredrik — observo, olhando para Victor do sofá. — Por que me trouxe logo aqui? Não aprendeu a lição com Samantha?

Sua expressão fica um pouco mais sombria, ressentida pela minha acusação.

— Eu nunca disse que confiava em Fredrik. Mas no momento ele é meu único contato dentro da Ordem e, nos últimos sete meses, não fez nada que não o tornasse digno de confiança. Ao contrário, fez tudo para provar sua lealdade a mim.

— Mas isso não significa que seja verdade.

— Não, você tem razão, mas logo vou saber com cem por cento de certeza se Fredrik é confiável ou não.

— Como?

— Você vai descobrir comigo.

— Por que se dar a esse trabalho? Você disse que a confiança é tão rara que não vale o esforço.

— Você faz muitas perguntas.

— Pois é, acho que faço. E você não responde o suficiente.

— Não, acho que não. — Victor abre um sorrisinho, e meu coração se derrete instantaneamente em uma poça de mingau.

Desvio os olhos dos dele e disfarço meus sentimentos.

— Não estou segura aqui — digo, encarando-o novamente.

— Você não está segura em lugar nenhum — corrige Victor. — Mas, enquanto estiver comigo, nada vai acontecer com você.

— Quem está falando merda agora?

Ele levanta uma sobrancelha.

— Você não é meu herói, lembra? — digo para refrescar a memória de Victor. — Não é minha alma gêmea que jamais deixará que nada de ruim aconteça comigo. Devo confiar nos meus instintos primeiro e em você, se eu decidir confiar, por último. Você me disse isso certa vez.

— E continua sendo verdade.

— Então como pode dizer que nada vai me acontecer se eu estiver com você?

A expressão de Victor fica vazia, como se pela primeira vez na vida alguém o tivesse deixado sem palavras. Olho para seu rosto silencioso e sem emoção, e apenas seus olhos revelam um traço de torpor. Tenho a sensação de que ele falou sem pensar, que manifestou algo que sente de verdade, mas que jamais quis que eu soubesse: Victor quer ser meu herói, vai fazer qualquer coisa, tudo o que puder para me manter a salvo. Quer que eu confie totalmente nele.

E confio.

Ele volta para perto de mim e se senta ao meu lado. O cheiro de seu perfume é fraco, como se ele fizesse questão de usar o mínimo possível. Estou tonta de desejo. Ansiosa para sentir novamente seu toque, saborear seus lábios quentes, deixar que ele me tome como fez algumas noites antes que nos víssemos pela última vez. Não tenho pensado em nada além de Victor nos últimos oito meses da minha vida. Enquanto durmo. Como. Vejo TV. Transo. Me masturbo. Tomo banho. Cada coisa que fiz desde que ele me deixou naquele hospital com Dina fiz pensando nele.

— Você acha que Fredrik vai contar a Niklas onde a gente está? — Mudo de assunto por medo de deixar transparecer muita coisa cedo demais.

— Acho que se ele fosse fazer isso teria contado a Niklas o pouco que sabia sobre o seu paradeiro há muito tempo, e Niklas já teria tentado matar você — responde Victor.

— Tem alguma coisa... estranha em Fredrik. Você não sente?

Victor passa a mão pelo meu cabelo úmido. O gesto faz meu coração disparar.

— Você tem grande sensibilidade para as pessoas, Sarai — comenta ele, levando a mão ao meu queixo. — Tem razão sobre Fredrik. — Ele passa o polegar pelo meu lábio inferior. Um calafrio percorre o meio das minhas pernas. — Ele é... como dizer?... desequilibrado, de certa forma.

Minha respiração acelera, e sinto meus cílios tocando meu rosto quando os lábios de Victor cobrem os meus.

— Desequilibrado de que forma? — pergunto, ofegante, quando ele se afasta.

De olhos fechados, percebo que ele está observando a curva do meu rosto e meus lábios e sinto a respiração que sai suavemente de suas narinas.

Cada pelinho minúsculo se eriça quando a outra mão de Victor sobe e encontra minha cintura nua por baixo da camiseta. Seus dedos longos dançam sobre a pele do meu quadril e param por ali.

Abro os olhos e vejo os dele me encarando.

— Algum problema? — pergunta ele, e sua boca roça a minha de novo.

— Não, eu... eu só não esperava isso.

— Esperava o quê?

Sinto seus dedos levantando o elástico da minha calcinha. Minha cabeça está girando, sinto meu estômago se transformar em um emaranhado de músculos, trêmulo e nervoso.

— Isso — respondo, piscando. — Você está diferente — acrescento, baixinho.

— Culpa sua — diz Victor, e então seus lábios devoram os meus.

Ele me deita no sofá e se encaixa entre as minhas pernas.

Seu celular vibra na mesinha de centro, e percebo quanto sou humana quando xingo Fredrik por estragar aquele momento, mesmo que seja para me avisar de que Dina está a salvo.


CONTINUA

CAPÍTULO UM

Sarai

Já faz oito meses que fugi da fortaleza no México onde fui mantida contra minha vontade por nove anos. Estou livre. Levo uma vida “normal”, fazendo coisas normais com gente normal. Não fui mais atacada, ameaçada nem seguida por ninguém que ainda queira me matar. Tenho uma “melhor amiga”, Dahlia. Tenho a coisa mais parecida com uma mãe que já conheci, Dina Gregory. O que mais eu poderia querer? Parece egoísmo desejar qualquer outra coisa. Mas, apesar de tudo o que tenho, algo não mudou: continuo vivendo uma mentira.

Deixei amigos na Califórnia: Charlie, Lea, Alex e... Bri... Não, espera, quero dizer Brandi. Meu ex-namorado, Matt, era abusivo, por isso voltei para o Arizona. Ele me perseguiu por muito tempo depois que terminamos. Consegui uma ordem judicial para mantê-lo afastado, mas não funcionou. Ele atirou em mim há oito meses, mas não posso provar porque não cheguei a vê-lo. E tenho muito medo de denunciá-lo à polícia.

Claro que tudo isso é mentira.

São os pedaços da minha vida que acobertam o que realmente aconteceu comigo. Os pretextos para eu ter desaparecido aos 14 anos e ter ido parar em um hospital da Califórnia com um ferimento a bala. Jamais vou poder contar a Dina, Dahlia ou ao meu namorado, Eric, o que aconteceu de verdade: que fui levada para o México pela péssima versão de mãe que eu tinha, para morar com um chefão do tráfico. Jamais vou poder contar que fugi daquele lugar depois de nove anos e matei o homem que me manteve prisioneira por toda a minha adolescência. Quer dizer, claro que eu poderia contar a alguém, mas, se fizesse isso, só estaria pondo Victor em perigo.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/2_O_RETORNO_DE_IZABEL.jpg

 

Victor.

Não, nunca vou poder contar que um assassino me ajudou a fugir, ou que testemunhei Victor matando várias pessoas, inclusive a esposa de um empresário famoso e importante de Los Angeles. Nunca vou poder contar que, depois de tudo pelo que passei, depois de tudo o que vi, o que mais quero é fazer as malas e voltar para aquela vida perigosa. A vida com Victor.

Até hoje, falar o nome dele me acalma. Às vezes, quando estou acordada na cama à noite, murmuro seu nome só para ouvi-lo, porque preciso. Preciso dele. Não consigo tirá-lo da cabeça. Já tentei. Porra, e como tentei. Mas, não importa o que eu faça, continuo vivendo cada dia da minha vida pensando nele. Se está me vigiando. Se pensa em mim tanto quanto penso nele. Se ainda está vivo.

Pressiono o travesseiro contra a cabeça e fecho os olhos, imaginando Victor. Às vezes, é só assim que consigo gozar.

Eric aperta minhas coxas com as mãos e me imobiliza na cama, com o rosto enfiado no meio das minhas pernas.

Arqueio o quadril contra ele, roçando de leve contra sua língua frenética, até que ele faça meu corpo todo enrijecer e minhas coxas tremerem ao redor da sua cabeça.

— Meu Deus... — Estremeço enquanto gozo, então deixo os braços caírem entre as pernas, afundando os dedos no cabelo preto de Eric. — Caramba...

Sinto os lábios de Eric tocando minha barriga um pouco acima da pélvis.

Olho para o teto como sempre faço depois de um orgasmo, pois a culpa que sinto me deixa com vergonha de olhar para Eric. Ele é um cara superlegal. Meu namorado sexy de 27 anos, cabelo preto e olhos azuis, gentil, encantador, engraçado e perfeito. Perfeito para mim se eu nunca tivesse conhecido Victor Faust.

Estou arruinada pelo resto da vida.

Enxugo as gotas de suor da testa e Eric sobe pela cama, deitando-se ao meu lado.

— Você sempre faz isso — diz ele, brincando, enquanto cutuca minhas costelas com os nós dos dedos.

Como sinto muitas cócegas, eu me encolho e me viro para encará-lo. Sorrio com ternura e passo um dedo por seu cabelo.

— O que eu sempre faço?

— Esse negócio de ficar em silêncio. — Eric segura meu queixo entre o polegar e o indicador. — Eu faço você gozar e você fica bem quieta durante um tempão.

Eu sei e sinto muito, mas preciso apagar o rosto de Victor da minha cabeça antes de conseguir olhar você nos olhos. Sou uma pessoa horrível.

Eric me dá um beijo na testa.

— Isso se chama recuperação — brinco, beijando os dedos dele. — É totalmente inofensivo. Mas você deveria interpretar como um bom sinal. Você sabe o que está fazendo — digo, retribuindo o cutucão nas costelas.

E ele sabe mesmo o que está fazendo. Eric é ótimo na cama. Mas ainda sou emocionalmente muito ligada... viciada... em Victor, e tenho a sensação de que sempre serei.

Só consegui seguir a vida e me abrir a outros relacionamentos cinco meses depois que Victor foi embora. Conheci Eric no trabalho, na loja de conveniência. Ele comprou um saco de biscoitos e um energético. Depois disso, ele aparecia na loja duas, às vezes três vezes por semana. Eu não queria nada com ele. Queria Victor. Mas comecei a perder a esperança de que Victor um dia fosse voltar para mim.

Eric tenta passar um braço ao redor do meu corpo, mas me levanto casualmente e visto a calcinha. Ele não desconfia de nada, o que é bom. Não sinto vontade de ficar abraçadinha, mas a última coisa que quero é magoá-lo. Ele ergue os braços e entrelaça os dedos atrás da cabeça. Olha para mim, do outro lado do quarto, com um sorriso sedutor. Sempre faz isso quando não estou completamente vestida.

— Sarai.

— Oi. — Visto a camiseta e ajeito o rabo de cavalo.

— Eu sei que está em cima da hora — diz Eric —, mas queria ir com você e Dahlia para a Califórnia amanhã.

Merda.

— Mas você não disse que não ia conseguir folga no trabalho? — pergunto, vestindo o short e calçando os chinelos.

— Quando você perguntou se eu queria ir, não ia dar mesmo. Mas contrataram um funcionário novo, e meu chefe decidiu me dar folga.

Isso é uma péssima notícia. Não porque eu não o queira por perto — gosto de Eric, apesar da minha incapacidade de esquecer Victor Faust —, mas minha viagem de “férias” à Califórnia amanhã não é para fazer turismo, curtir a noite nem fazer compras na Rodeo Drive.

Estou indo até lá para matar um homem. Ou melhor, tentar matar um homem.

Já é ruim que Dahlia vá também, e já vai ser difícil guardar segredo de uma pessoa. Imagine duas.

— Você... não parece animada — comenta Eric, seu sorriso morrendo aos poucos.

Abro um sorriso largo e balanço a cabeça, voltando para perto dele e me sentando na beira da cama.

— Não, não, eu estou animada. É que você me pegou de surpresa. A gente vai sair às seis da manhã. É daqui a menos de oito horas. Você já fez as malas?

Eric dá uma risada e se estica na minha cama, me puxando para si. Eu me sento perto de sua cintura, apoiando um braço no colchão do outro lado dele, com os pés para fora da cama.

— Bom, eu só fiquei sabendo hoje à tarde, antes de sair do trabalho — explica ele. — Eu sei, está em cima da hora, mas só preciso enfiar umas coisas na mala e estou pronto.

Ele estende a mão e afasta do meu rosto os fios de cabelo que escaparam do rabo de cavalo.

— Ótimo! — minto, com um sorriso igualmente falso. — Então acho que está combinado.

Dina acorda antes de mim, às quatro da manhã. O cheiro de bacon é o que me desperta. Levanto da cama e entro debaixo do chuveiro antes de me sentar à mesa da cozinha. Um prato vazio já está à minha espera.

— Gostaria que você tivesse escolhido algum outro lugar para passar sua folga, Sarai — afirma Dina.

Ela se senta do outro lado da mesa e começa a encher seu prato. Pego alguns pedaços de bacon do monte e ponho no meu.

— Eu sei — digo —, mas, como falei para você, não vou deixar que meu ex me impeça de ver meus amigos.

Ela balança a cabeça cada vez mais grisalha e suspira.

Passei do limite em algum momento com meu amontoado de mentiras. Quando Victor levou Dina para o hospital em Los Angeles, depois que o irmão dele, Niklas, atirou em mim, ela não fazia ideia do que tinha acontecido. Só sabia que eu tinha levado um tiro. Demorei alguns meses até me sentir segura o suficiente para falar com ela sobre isso. Quer dizer, depois de bolar a história que eu ia contar. Foi aí que inventei o lance do ex-namorado violento. Eu deveria ter dito que fui assaltada. Por um desconhecido. A mentira seria muito mais fácil de manter. Agora que ela sabe que vou voltar para Los Angeles, está morrendo de preocupação, e já faz uns dois meses. Eu nem deveria ter contado que ia voltar lá.

Termino de comer o bacon e um pouco de ovos mexidos, junto com um copo de leite.

Dahlia e Eric chegam juntos assim que termino de escovar os dentes.

— Vamos logo, a gente precisa pegar a estrada — chama Dahlia, me apressando da porta. Seu cabelo castanho-claro está preso no alto da cabeça em um coque desalinhado de quem acabou de acordar.

Eu me despeço de Dina com um abraço.

— Eu vou ficar bem — digo a ela. — Prometo. Não vou nem chegar perto de onde ele mora.

Desta vez, chego até a imaginar um rosto masculino ao falar de alguém que não existe. Acho que já interpreto esse papel há tanto tempo que “Matt” e todos esses meus “amigos” de Los Angeles, de quem falo para todo mundo como se fossem reais, se tornaram reais no meu subconsciente.

Dina força um sorriso em seu rosto preocupado, e suas mãos soltam meus cotovelos.

— Você liga assim que chegar?

— Assim que eu entrar no quarto do hotel, ligo — respondo, assentindo.

Ela sorri e eu a abraço mais uma vez, antes de segui-los até o carro de Dahlia, que está esperando. Eric guarda minha mala no bagageiro, junto com as deles, e se senta no banco de trás.

— Hollywood, aí vamos nós! — exclama Dahlia.

Finjo metade da empolgação dela. Ainda bem que está muito cedo, senão Dahlia poderia intuir o verdadeiro motivo da minha falta de entusiasmo. Estico os braços para trás e bocejo, apoiando a cabeça no banco do carro. Sinto a mão de Eric no meu pescoço quando ele começa a massagear meus músculos.

— Não sei por que você quer ir a Los Angeles de carro — diz Dahlia. — Se a gente fosse de avião, não ia precisar acordar tão cedo. E você não estaria tão cansada e rabugenta.

Minha cabeça cai para a esquerda.

— Não estou rabugenta. Ainda mal falei com você.

Ela dá um sorrisinho.

— Exatamente. Sarai sem falar significa Sarai rabugenta.

— E se recuperando — acrescenta Eric.

Meu rosto fica vermelho e eu estico a mão atrás da cabeça, dando um tapinha de brincadeira na dele, que está fazendo maravilhas no meu pescoço. Fecho os olhos e vejo Victor.

Não de propósito.

Chegamos a Los Angeles depois de quatro horas na estrada. Eu não podia ir de avião porque não conseguiria levar minhas armas. É claro que Dahlia não pode saber disso. Ela acha apenas que quero apreciar a paisagem.

Tenho sete dias para fazer o que vim fazer. Isto é, se eu conseguir. Pensei no meu plano durante meses, em como vou fazer isso. Sei que é impossível entrar na mansão Hamburg. Para isso, eu precisaria ter um convite e socializar em público com o próprio Arthur Hamburg e seus convidados. Ele viu meu rosto. Bem, tecnicamente, viu mais do que meu rosto. Mas sinto que os acontecimentos daquela noite, quando Victor e eu enganamos Hamburg para que ele nos convidasse para ir ao seu quarto e conseguíssemos matar sua esposa, são algo que ele jamais vai esquecer, nem os mínimos detalhes.

Se tudo der certo, uma peruca loura platinada de cabelo curto e maquiagem escura e pesada vão esconder aquela identidade de cabelo longo e castanho que Hamburg reconheceria assim que eu aparecesse.


CAPÍTULO DOIS

Sarai

Passo o dia todo com Eric e Dahlia, fingindo me divertir para passar o tempo. Saímos para almoçar e para fazer um tour por Hollywood com um guia e visitar um museu antes de voltarmos para o hotel, exaustos. Quer dizer, finjo estar exausta o suficiente para querer dar o dia por encerrado. Na verdade, o que preciso é me preparar para ir ao restaurante de Hamburg ainda hoje.

Dahlia já acha que tem algo errado comigo.

— Você está ficando doente? — pergunta ela, estendendo a mão entre nossas espreguiçadeiras à beira da piscina e sentindo a temperatura da minha testa.

— Estou ótima — respondo. — Só cansada porque levantei muito cedo. E quando foi a última vez que andei tanto assim em um dia só?

Dahlia volta a se recostar em sua espreguiçadeira e ajeita os óculos de sol grandes e redondos no rosto.

— Bom, espero que não esteja cansada amanhã — diz Eric, do outro lado. — Tem tantas coisas que eu quero fazer. Não venho para Los Angeles desde que meus pais se divorciaram.

— Pois é. É a minha primeira vez aqui em dois anos — afirma Dahlia.

Um adolescente pula na piscina e a água respinga em nós. Ergo as costas da espreguiçadeira e agito a revista que estava lendo para tirar as gotas. Ponho os óculos escuros no alto da cabeça. Jogo as pernas para o lado e fico de pé.

— Acho que vou voltar para o quarto e tirar uma soneca — anuncio, pegando minha bolsa do chão.

Eric se ergue também e tira os óculos escuros.

— Se quiser, vou com você — oferece ele.

Agito a mão para ele, pedindo que não se levante.

— Não, fica aí e faz companhia para a Dahlia — sugiro, ajeitando a bolsa no ombro. Abaixo os óculos escuros de novo para que ele não perceba minha mentira.

— Tem certeza de que você está bem? — pergunta Dahlia. — Sarai, você está de férias, lembra? Veio para cá se divertir, não para cochilar.

— Acho que vou estar cem por cento amanhã. Só preciso de um banho quente e demorado e de uma boa noite de sono.

— Ok, vou acreditar — diz Dahlia. — Mas nem vem com doença para o meu lado. — Ela aponta o dedo para mim, com ar severo.

Eric fecha os dedos em torno do meu pulso e me puxa para perto.

— Tem certeza de que não quer que eu vá? — Ele me beija e eu correspondo antes de me levantar de vez.

— Tenho — respondo, baixinho, e saio na direção do elevador.

Assim que entro no quarto, tranco a porta com a corrente para que Eric e Dahlia não entrem de surpresa, jogo a bolsa no chão e abro meu laptop, digitando a senha. Enquanto o laptop inicia, olho pela janela e vejo meus amigos, figuras pequenas daquela distância, ainda à beira da piscina. Eu me sento diante da tela e, provavelmente pela centésima vez, olho cada página do site do restaurante de Hamburg, verificando de novo o horário de funcionamento e passando os olhos pelas fotos profissionais do lugar, dentro e fora. Na verdade, nada disso me ajuda muito com o que pretendo fazer, mas olho tudo de novo todo dia, de qualquer maneira.

Derrotada, bato a palma da mão com força no tampo da mesa.

— Droga! — exclamo, desabando na poltrona enquanto passo as mãos pelo cabelo.

Ainda não sei como vou conseguir ficar a sós com Hamburg sem ser vista. Sei que estou dando um passo maior do que a perna. Sei disso desde que tive essa ideia maluca, mas também sei que, se ficar apenas pensando a respeito, nunca vou passar dessa fase.

Vim para cá com um plano: entrar disfarçada no restaurante e agir como qualquer outro cliente. Sondar o lugar por uma noite. Saber onde ficam as saídas. As entradas para outras partes do prédio. Os banheiros. Minha prioridade número um, contudo, é encontrar a sala de onde Hamburg observa do alto seus clientes e ouve a conversa deles pelo minúsculo microfone escondido no arranjo de cada mesa. Então pretendo me enfiar na sala e cortar a garganta daquele porco.

Contudo, agora que estou aqui, a menos de seis quadras do restaurante, e agora que o tempo está passando tão depressa, estou menos confiante. Isso não é um filme. Sou uma idiota por achar que posso adentrar um lugar desses sem ser vista, tirar a vida de um homem sem chamar atenção e fugir sem ser capturada.

Apenas Victor conseguiria fazer algo assim.

Bato no tampo da mesa de novo, mais de leve desta vez, fecho o laptop e me levanto. Ando de um lado para outro no carpete vermelho e verde. E bem quando resolvo seguir pelo corredor para o quarto separado que reservei sem Dahlia e Eric saberem, a porta se abre um pouco, mas é travada pela corrente.

— Sarai? — chama Dahlia do outro lado. — Vai deixar a gente entrar?

Suspiro fundo e destranco a porta.

— Por que a corrente? — pergunta Eric, entrando atrás de Dahlia.

— Força do hábito.

Eu me jogo na ponta da cama king-size.

Os dois deixam suas coisas no chão. Dahlia se senta à mesa, ao lado da janela, e Eric se deita atravessado na cama ao meu lado, cruzando as pernas na altura dos calcanhares.

— Pensei que você ia tirar uma soneca — diz Dahlia.

Ela passa os dedos com cuidado pelo cabelo úmido, fazendo caretas quando se depara com alguma mecha mais embaraçada.

— Dahlia — digo, olhando para os dois. — Eu subi agora há pouco. Pensei que vocês iam ficar na piscina mais um tempo.

Espero ter conseguido disfarçar o aborrecimento na minha voz por eles terem vindo me encontrar tão cedo. Não consigo evitar: estou estressada demais, além de preocupada com a simples presença dos dois aqui comigo. Não quero que eles se machuquem nem que se envolvam de forma alguma com meu motivo para estar aqui.

— A gente pode sair e deixar você sozinha, se quiser — sugere Eric, baixinho, atrás de mim.

Eu me arrependo na mesma hora do que disse, porque é óbvio que não disfarcei o aborrecimento tão bem quanto esperava.

Inclino a cabeça para trás e suspiro, esticando o braço para tocar o tornozelo dele.

— Desculpa — digo, sorrindo para Dahlia. — Sabe, eu... — Então, de repente, uma desculpa perfeitamente plausível para o modo como tenho agido surge na minha cabeça, e a torneira das mentiras se abre. — Eu só fico meio nervosa por estar de volta a Los Angeles.

Dahlia faz cara de “ah, entendi”, empurra os pés de Eric para o lado e se senta perto de mim. Ela passa o braço por cima dos meus ombros e segura meu antebraço.

— Imaginei que o problema fosse esse.

Percebo que ela olha de relance para Eric e tenho a impressão de que foi sobre isso que os dois falaram enquanto ficaram na piscina, depois que fui embora.

Aposto que também foi por isso que decidiram subir tão cedo para me ver.

— A gente queria ver como você estava — acrescenta Eric atrás de mim, confirmando minha suspeita.

Sinto a cama se mexer quando ele se senta.

Eu me levanto antes que ele consiga me abraçar. É nesse exato momento que me dou conta de como tenho feito isso com frequência no último mês. Não sei por quanto tempo mais vou conseguir enganá-lo. Sei que deveria simplesmente contar o que sinto, que não gosto tanto de Eric quanto ele gosta de mim. Mas não consigo dizer a verdade. Eu precisaria inventar mais uma mentira, e estou tão atolada em mentiras que me sinto afogada nelas.

Ao mesmo tempo, deixei nossa relação durar tanto porque eu queria de verdade sentir por ele algo tão profundo quanto o que ele parece sentir por mim. Queria seguir em frente, esquecer Victor e ser feliz com a vida que ele me deixou.

Mas não consigo. Não consigo mesmo...

— Ele nem vai saber que você está aqui — diz Eric sobre “Matt”. — Além disso, mesmo que ele descobrisse, eu ia encher o cara de porrada assim que o visse.

Esboço um sorriso para Eric.

— Eu sei que você faria isso — digo, mas me sinto ainda pior, porque os únicos dois amigos que tenho no mundo não fazem nem ideia de quem sou.

Cruzo os braços, vou até a janela e olho para fora.

— Sarai — chama Dahlia. — Não queria dizer isso, mas, se você está tão preocupada com a possibilidade de Matt descobrir que você está em Los Angeles, acho que não é boa ideia visitar seus amigos aqui.

— Eu sei, você tem razão. Sei que eles não contariam para Matt, mas acho que é melhor eu ficar só com vocês dois enquanto estivermos aqui.

Eu me viro para encará-los.

— É um bom plano — diz Eric, com um sorriso radiante.

É um bom plano, com certeza, porque agora não preciso mais inventar outra desculpa para não apresentar os dois aos meus amigos que não existem.

Dahlia se aproxima de mim.

— A gente devia ter ido para a Flórida ou algum lugar assim, hein?

Olho pela janela de novo.

— Não — respondo. — Adoro esta cidade. E sei que vocês queriam muito vir para cá. — Dou um sorriso rápido. — Sugiro que a gente curta ao máximo esta semana.

Ela me empurra com o ombro de brincadeira.

— Essa é a Sarai que eu conheço — diz Dahlia, sorrindo.

É, só que não sou essa pessoa...

Ela vai até Eric e o puxa pelo braço, levantando-o da cama.

— Vamos sair daqui e deixar a mocinha descansar.

Eric se levanta e se aproxima de mim. Então pega meus braços e me vira para encará-lo. Com aqueles olhos azul-bebê, ele faz a melhor expressão amuada que consegue.

— Se precisar de mim para qualquer coisa, pode me chamar que eu venho.

Concordo com a cabeça e lhe ofereço um sorriso sincero. Ele merece, por ser tão legal comigo.

— Pode deixar.

Então eu os empurro porta afora com as duas mãos.

— Eu diria para vocês não se divertirem muito sem mim, mas isso seria pedir demais.

Dahlia ri baixinho ao sair para o corredor.

— Não, não é pedir muito. — Ela levanta dois dedos. — Palavra de escoteiro.

— Acho que não é assim que se faz, Dahl — diz Eric.

Ela faz um gesto para dispensar as palavras dele.

— Trate de dormir — sugere Dahlia. — Porque amanhã você vai precisar estar novinha em folha.

— De acordo — digo, assentindo.

— Tchau, amor — diz Eric antes de eu fechar a porta.

Fico com as costas apoiadas na porta e solto um suspiro longo e profundo.

Fingir é difícil demais. Bem mais difícil do que simplesmente ser eu mesma, por mais anormal e imprudente que eu seja.

— Eu sei o que preciso fazer — digo em voz alta.

Falar sozinha é minha nova mania, porque me ajuda a visualizar e entender melhor as coisas.

Volto para a janela e olho a cidade de Los Angeles, com os braços cruzados.

— Preciso de um disfarce, mas não para me esconder de Hamburg. Só das câmeras e de qualquer outra pessoa. Eu quero que Hamburg me veja. Só assim vou conseguir entrar.


CAPÍTULO TRÊS

Sarai

Dahlia e Eric só voltam para o quarto algumas horas mais tarde, depois de escurecer. Eu já tinha tomado banho, vestido short e camiseta e deixado a luz apagada para parecer que estava dormindo. Assim que ouvi o cartão passando pela porta, pulei na cama e me espalhei pelo colchão, como sempre faço quando durmo de verdade. Eric entrou na ponta dos pés, tentando não “me acordar”, mas me virei, soltei um resmungo e abri os olhos para mostrar que acordei. Ele pediu desculpas e perguntou se eu queria ir com ele e Dahlia a uma boate ali perto, insistindo que, se eu não fosse, ele também não iria. Mas logo rejeitei essa ideia. Percebi que ele queria muito ir e não posso culpá-lo: se eu estivesse no lugar dele, não iria querer ficar em um quarto escuro de hotel às oito da noite de uma sexta-feira, em uma das cidades mais animadas dos Estados Unidos.

Eric e Dahlia saírem era exatamente do que eu precisava. Passei aquelas duas horas inteiras tentando inventar uma desculpa para explicar a eles por que eu ia sair, aonde iria e por que eles não poderiam ir junto.

Eles resolveram isso para mim.

Minutos após Eric sair do quarto, espero Dahlia — em seu próprio quarto, ao lado do nosso — tirar o biquíni e se vestir. Pelo olho mágico da minha porta, eu os vejo indo embora pelo corredor. Conto até cem enquanto ando de um lado para outro sem parar. Então pego minha bolsa e vou até a porta. Ando depressa pelo corredor na direção oposta e chego ao quarto secreto, do outro lado do prédio.

Com certa paranoia de ser flagrada, vasculho minha bolsa e encontro tudo, menos a chave do quarto. Enfim consigo senti-la entre os dedos e me apresso para entrar, travando a porta com a corrente. Abro a mala ao pé da cama e tiro minha peruca curta platinada, passando os dedos para ajeitar as mechas desalinhadas, e então a deixo sobre o abajur ao lado para que não perca a forma.

Visto um Dolce & Gabbana curtinho e me maquio com cores escuras e pesadas, o que, depois de passar um tempão praticando em casa, faço bem. Então calço as sandálias de salto alto. Andar de salto é outra coisa que passei muito tempo tentando aprender. Meu alter ego, Izabel Seyfried, saberia andar de salto e o faria bem. Por isso, eu precisava acompanhar.

Em seguida, molho o cabelo e o divido em duas partes atrás. Enrolo cada metade e cruzo uma sobre a outra na nuca. Vários grampos depois, meu longo cabelo castanho está bem preso no couro cabeludo. Visto a touca da peruca e depois a própria peruca, ajustando-a por muito tempo até deixar tudo perfeito.

Por fim, prendo uma bainha de punhal em torno da coxa e a cubro com o tecido do vestido.

Fico de pé diante do espelho de corpo inteiro e me avalio de todos os ângulos possíveis. Estar loura é estranho. Satisfeita, pego a bolsinha preta e a enfio debaixo do braço, com a pequena pistola formando certo volume nela. Estico o braço para girar a maçaneta, mas deixo minha mão cair junto ao corpo.

“Que droga eu estou fazendo?”

O que precisa ser feito.

“E por que eu estou fazendo isso?”

Porque preciso.

Não consigo tirar da cabeça as coisas que aquele homem confessou, as pessoas que matou por causa de um fetiche sexual doentio. Todas as noites desde que Victor me deixou, quando fecho os olhos, vejo o rosto de Hamburg e aquele sorriso de gelar o sangue que ele abriu quando me curvei sobre a mesa, exposta na frente dele. Vejo o rosto de sua esposa, esquelético e combalido, seus olhos fundos turvados pela resignação. Ainda sinto até o fedor da urina que secou em suas roupas e no catre infestado onde ela dormia, naquele quarto escondido.

Meu peito se enche de ar e eu o prendo por vários segundos, antes de soltar um longo suspiro.

Não posso esquecer. A necessidade de matá-lo é como uma coceira no meio das costas. Não posso alcançar naturalmente, mas vou me curvar e torcer os braços até doerem para coçar.

Não posso esquecer...

E talvez... só talvez também acabe chamando a atenção de um certo assassino que não consigo me obrigar a esquecer.

Assim que passo pela porta, deixo Sarai para trás e me torno Izabel por uma noite.

Por não ter pensado de antemão na importância de ao menos alugar um carro chique, salto do táxi a duas quadras do restaurante e ando o resto do caminho. Izabel jamais seria vista andando de táxi.

— Mesa para um? — pergunta o recepcionista assim que entro no restaurante.

Inclino a cabeça e olho para ele com um ar irritado.

— Algum problema? Não posso fazer uma refeição sozinha? Ou você está dando em cima de mim? — Abro um sorrisinho e inclino a cabeça para o outro lado. Ele está ficando nervoso. — Você gostaria de jantar comigo... — olho para o nome bordado no paletó — ... Jeffrey? — Chego mais perto. Ele dá um passo constrangido para trás.

— Hã... — Ele hesita. — Peço desculpas, senhora...

Recuo, trincando os dentes.

— Nunca me chame de senhora — digo com rispidez. — Me leve até uma mesa. Para um.

Ele assente e pede que eu o siga. Quando chego à minha mesinha redonda com duas cadeiras, no meio do restaurante, me sento e deixo a bolsa ao lado. Um garçom se aproxima quando o recepcionista se afasta e me apresenta a carta de vinhos. Eu a rejeito com um movimento dos dedos.

— Quero apenas água com uma rodela de limão.

— Pois não, senhora — diz ele, mas deixo passar.

Enquanto o garçom se afasta, começo a examinar o lugar. Há uma placa indicando a saída à minha esquerda, bem longe, perto do corredor. Há outra à minha direita, próxima à escada que leva para o segundo piso. O restaurante está praticamente igual à primeira vez que vim: escuro, não muito cheio e bastante silencioso, embora desta vez eu ouça jazz baixinho vindo de algum lugar. Ao observar o recinto, paro de repente ao ver a mesa à qual me sentei com Victor quando vim com ele, meses atrás.

Eu me perco na memória, vendo tudo exatamente como aconteceu. Quando olho para as duas pessoas sentadas no outro lado do salão, só consigo me ver com Victor:

— Venha cá — diz ele, em um tom de voz mais delicado.

Deslizo os poucos centímetros que nos separam e me sento encostada a ele.

Seus dedos dançam pela minha nuca quando ele puxa minha cabeça para perto de si. Meu coração bate descompassado quando ele roça os lábios na lateral do meu rosto. De repente, sinto sua outra mão entrando pelo meio das minhas coxas e subindo por baixo do vestido. Minha respiração para. Devo abrir as pernas? Devo ficar imóvel e travá-las? Sei o que quero fazer, mas não sei o que devo fazer, e minha mente está a ponto de desistir.

— Tenho uma surpresa para você esta noite — murmura ele no meu ouvido.

Sua mão se aproxima mais do calor no meio das minhas pernas.

Gemo baixinho, tentando não deixar que ele perceba, embora tenha certeza absoluta de que percebeu.

— Que tipo de surpresa? — pergunto, com a cabeça inclinada para trás, apoiada em sua mão.

— Vai querer algo mais? — Ouço uma voz, e sou arrancada do meu devaneio.

O garçom está segurando o cardápio. Minha água com uma rodela de limão na borda do copo já está diante de mim.

Um pouco confusa de início, apenas assinto, mas faço que não em seguida.

— Ainda não sei — respondo, enfim. — Deixe o cardápio. Talvez eu peça mais tarde.

— Pois não — diz o garçom.

Ele deixa o cardápio na mesa e vai embora.

Olho para a varanda e para as mesas encostadas no balaústre requintado. Onde Hamburg pode estar? Sei que ele está no andar de cima porque Victor disse que ele ficava por lá. Mas onde? Eu me pergunto se ele já me viu, e no mesmo instante meu estômago se embrulha de nervoso.

Não, não posso parecer nervosa.

Endireito as costas na cadeira e tomo um gole da água. Deixo o dedo mindinho levantado, o que me faz parecer muito mais rica, ou apenas mais esnobe. Fico observando os clientes indo e vindo, escuto sua conversa supérflua e me pego imaginando qual dos casais que estão ali poderia acabar na mansão de Hamburg no fim de semana, ganhando muito dinheiro para deixar que ele os veja foder.

Então olho para o arranjo de flores vermelhas em um pequeno vaso de vidro no centro da minha mesa. Pego o celular na bolsa, finjo digitar um número e o coloco perto do ouvido, para que ninguém ache que estou falando sozinha.

— Este recado é para Arthur Hamburg — digo em voz baixa, inclinando-me um pouco para a frente a fim de que o microfone escondido no vaso de flores capte minha voz. — Com certeza você se lembra de mim, não é? Izabel Seyfried. Há quanto tempo, não?

Com cuidado, olho para os lados, esperando ver um ou dois homens parrudos de terno se aproximando de mim com armas em punho.

— Não estou sozinha — continuo —, por isso nem pense em fazer alguma idiotice. A gente precisa conversar.

Olhando para a varanda acima de mim, tento descobrir onde ele pode estar, torcendo para que esteja ali. Alguns minutos tensos se passam, e, quando começo a pensar que a noite foi em vão e que eu estava mesmo falando sozinha, noto um movimento no piso superior, logo acima da saída à minha direita. Meu coração bate forte quando vejo a figura alta e escura sair das sombras e descer a escada.

Eu me lembro desse homem de ombros largos, cabelo grisalho e uma covinha no meio do queixo. É o gerente do restaurante, Willem Stephens, que já encontrei aqui uma vez.

Ele se aproxima da minha mesa sem expressar nenhuma emoção, com as mãos enormes cruzadas à frente, as costas retas, o queixo anguloso imóvel.

— Boa noite, srta. Seyfried. — A voz dele é profunda e sinistra. — Posso perguntar onde está seu dono?

Levanto os olhos para encará-lo, dou um sorrisinho, tomo um gole da minha água e devolvo o copo à mesa, sem pressa. Cada fibra do meu ser está gritando, dizendo como fui idiota em vir até aqui. Por mais que eu saiba que é verdade, não importa. Não é o medo que me faz tremer por dentro, é a adrenalina.

— Victor Faust não é meu dono — explico, com calma. — Mas ele está aqui. Em algum lugar. — Um sorriso tênue e dissimulado toca meus lábios.

Os olhos de Stephens percorrem o salão sutilmente e voltam a me encarar.

— Por que está aqui? — pergunta ele, perdendo um pouco o ar de gerente sofisticado.

— Tenho negócios a discutir com Arthur Hamburg — respondo, confiante. — É do maior interesse dele marcar um encontro privado comigo. Aqui. Hoje. De preferência agora.

Tomo outro gole.

Noto que o pomo de adão de Stephens se move quando ele engole em seco, bem como os contornos de seu queixo quando ele cerra os dentes. Ele olha para o lugar de onde veio, no andar de cima, e percebo um aparelhinho preto escondido em seu ouvido esquerdo. Parece que ele está ouvindo alguém falar. Eu chutaria que é Hamburg.

Ele me encara de novo, com os olhos escuros e cheios de ódio, mas mantém o semblante inexpressivo com a mesma perfeição de Victor.

Ele descruza os braços, estende a mão direita para mim e diz:

— Por aqui.

Ele só deixa os braços penderem, relaxados, quando me levanto. Sigo Stephens pelo restaurante e escada acima, para o piso da varanda.

Apenas duas coisas podem acontecer: ou esta será minha primeira noite como assassina ou a última da minha vida.


CAPÍTULO QUATRO

Sarai

— Se encostar em mim — digo para o guarda-costas de terno à porta da sala particular de Hamburg —, enfio suas bolas em um moedor de carne.

As narinas do segurança se dilatam e ele olha para Stephens.

— Você solicitou uma reunião com o sr. Hamburg — diz Stephens atrás de mim. — É claro que vamos revistá-la antes para verificar se está armada.

Droga!

Calma. Fique calma. Faça o que Izabel faria.

Respiro fundo, encarando-os com desprezo e um ar ameaçador. Então jogo minha bolsinha preta no segurança. Ele pega a bolsa quando ela bate em seu peito.

— Acho que está bem claro que eu não conseguiria esconder uma arma em um vestido como este, a menos que a enfiasse na boceta — digo, olhando para Stephens. — Minha arma está na bolsa. Mas nem pense em tocar...

— Deixem a moça entrar — ordena da porta uma voz familiar.

É Hamburg, ainda balofo e grotesco como antes, usando um terno imenso que parece em vias de estourar se ele respirar fundo demais.

Abro um leve sorriso para o segurança, que me encara com olhos assassinos. Conheço esse olhar, até demais. O homem tira a pistola e me devolve a bolsa.

— Sr. Hamburg — diz Stephens —, eu deveria ficar na sala com o senhor.

Hamburg balança a papada, rejeitando a sugestão.

— Não, vá cuidar do restaurante. Se essas pessoas tivessem vindo me matar, não seriam tão óbvias. Eu vou ficar bem.

— Pelo menos deixe Marion à porta — sugere Stephens, olhando para o guarda-costas.

— Sim — concorda Hamburg. — Você fica aqui. Não deixe ninguém interromper nossa... — diz ele, me olhando com frieza — reunião, a menos que eu peça. Se em algum momento você não ouvir minha voz por mais de um minuto, entre na sala. Como precaução, é claro.

Ele abre um sorrisinho para mim.

— É claro. — Imito Hamburg e sorrio também.

Ele dá um passo para o lado e me convida a entrar.

— Pensei que isso tivesse acabado, srta. Seyfried.

Hamburg fecha a porta.

— Sente-se — pede ele.

A sala é bem grande, com paredes lisas e arredondadas, sem cantos, de um lado a outro. Uma série de grandes quadros retratando o que parece ser cenas bíblicas rodeia uma grande lareira de pedra. Cada imagem é emoldurada em uma caixa de vidro, com luzes na parte de baixo. A sala é pouco iluminada, como o restaurante, e o cheiro é de incenso ou talvez de óleo aromático de almíscar e lavanda. Na parede à minha esquerda, há uma porta aberta que leva a outra sala, onde a luz cinza-azulada de várias telas de TV brilha nas paredes. Chego mais perto para me sentar na poltrona de couro com encosto alto diante da escrivaninha e espio dentro da saleta. É como eu imaginava. As telas mostram várias mesas do restaurante.

Hamburg fecha essa porta também.

— Não, está longe de acabar — respondo, enfim.

Cruzo as pernas e mantenho a postura ereta, o queixo levantado com ar confiante e os olhos em Hamburg, enquanto ele atravessa a sala na minha direção. Puxo a barra do vestido para cobrir completamente o punhal preso na coxa. Minha bolsa está no meu colo.

— Vocês já tiraram minha esposa de mim. — A indignação transparece na voz dele. — Não acham que foi o suficiente?

— Infelizmente, não. — Abro um sorriso malicioso. — Não foi o suficiente para você e sua esposa tirarem uma vida? Não, não foi — respondo por ele. — Vocês tiraram muitas vidas.

Hamburg morde o interior da bochecha e se senta atrás da escrivaninha, de frente para mim. Ele apoia as mãos gordas sobre o tampo de mogno. Percebo quanto ele quer me matar ali mesmo onde estou. Mas não fará isso porque acredita que não estou sozinha. Ninguém em sã consciência faria algo assim, vir até aqui sozinha, inexperiente e desprevenida.

Ninguém, a não ser eu.

Preciso garantir que ele continue acreditando que tenho cúmplices até descobrir como vou matá-lo e sair da sala sem ser pega. O pedido de Hamburg para que o guarda-costas entrasse na sala depois de um minuto sem ouvir sua voz pôs mais um obstáculo no plano que, na verdade, nunca tive de fato.

— Bem, devo dizer uma coisa — diz Hamburg, mudando de tom. — Você é deslumbrante com qualquer tipo de peruca. Mas admito que prefiro a morena.

Ele acha que meu cabelo castanho-avermelhado era uma peruca. Ótimo.

— Você é doente. Sabe disso, certo? — Tamborilo com as unhas no braço da poltrona.

Hamburg abre um sorriso medonho. Estremeço por dentro, mas mantenho a compostura.

— Eu não matei aquelas pessoas de propósito. Elas sabiam no que estavam se metendo. Sabiam que, no calor do momento, alguém poderia perder o controle.

— Quantas?

Hamburg estreita os olhos.

— O que importa isso, srta. Seyfried? Uma. Cinco. Oito. Por que não diz logo o motivo da sua visita? Dinheiro? Informação? A chantagem assume muitas formas, e não seria a primeira vez que enfrento uma. Sou um veterano.

— Fale sobre a sua esposa — peço, ganhando tempo e fingindo ainda ser quem dá as cartas. — Antes de “ir direto ao assunto”, quero entender sua relação com ela.

Uma parte de mim quer saber de verdade. E estou incrivelmente nervosa; sinto um enxame zumbindo no meu estômago. Talvez jogar conversa fora ajude a acalmar minha mente.

Hamburg inclina a cabeça para o lado.

— Por quê?

— Apenas responda à pergunta.

— Eu a amava muito — responde ele, relutante. — Ela era a minha vida.

— Aquilo é amor? — pergunto, incrédula. — Você manchou a memória dela ao dizer que ela era uma viciada em drogas que se suicidou, só para salvar a própria pele, e chama isso de amor?

Noto uma luz se movendo no chão, por baixo da porta da sala de vigilância. Não havia ninguém lá dentro antes, ao menos que eu tivesse visto.

— Como a chantagem, o amor assume muitas formas. — Hamburg apoia as costas na poltrona de couro, que range, cruzando os dedos roliços sobre a enorme barriga. — Mary e eu éramos inseparáveis. Não éramos como outras pessoas, outros casais, mas o fato de sermos tão diferentes não significava que nos amávamos menos do que os outros. — Os olhos dele cruzam os meus por um momento. — Tivemos sorte por encontrar um ao outro.

— Sorte? — pergunto, pasma com o comentário. — Foi sorte duas pessoas doentes se encontrarem e se unirem para fazer coisas doentias com os outros? Não entendo.

Hamburg balança a cabeça como se fosse um velho sábio e eu fosse jovem demais para entender.

— Pessoas diferentes como Mary e eu...

— Doentes e dementes — corrijo. — Não diferentes.

— Chame como quiser — diz ele, com ar de resignação. — Quando você é tão diferente assim da sociedade, do que é aceitável, encontrar alguém como você é algo muito raro.

Sem perceber, cerro os dentes. Não porque Hamburg esteja me irritando, mas porque nunca imaginei que esse homem nojento pudesse me dizer qualquer coisa que me fizesse pensar na minha situação com Victor, ou qualquer coisa que eu pudesse entender.

Afasto esse pensamento.

A luz fraca sob a porta da sala de vigilância se move de novo. Finjo não ter notado, sem querer dar a Hamburg qualquer motivo para achar que estou pensando em outra saída.

— Vim aqui saber nomes — digo de repente, sem ter pensado bem a respeito.

— Que nomes?

— Dos seus clientes.

Algo muda nos olhos de Hamburg, ele vai tomar o controle da situação.

— Você quer os nomes dos meus clientes? — pergunta ele, desconfiado.

Que merda...

— Pensei que você e Victor Faust já estivessem de posse da minha lista de clientes.

Continue séria. Não perca a compostura. Merda!

— Sim, estamos, mas me refiro àqueles que você não mantinha nos registros.

Acho que vou vomitar. Parece que minha cabeça está pegando fogo. Prendo a respiração, torcendo para ter me livrado dessa.

Hamburg me examina em silêncio, vasculhando meu rosto e minha postura em busca de qualquer sinal de autoconfiança abalada. Ele coça o queixo gordo e cheio de dobras.

— Por que você acha que existe uma lista fantasma?

Suspiro meio aliviada, mas ainda não estou fora de perigo.

— Sempre existe uma lista fantasma — afirmo, embora não faça nem ideia do que estou dizendo. — Quero pelo menos três nomes que não estejam no registro que nós temos.

Sorrio, sentindo que recuperei o controle da situação.

Até ele falar:

— Diga você três nomes da lista que já tem, e eu dou o que você quer.

É oficial: perdi o controle.

Engulo em seco e me controlo antes de parecer “pega no flagra”.

— Você acha que eu carrego a lista na bolsa? — pergunto com sarcasmo, tentando continuar no jogo. — Nada de negociações ou meios-termos, sr. Hamburg. O senhor não está em condições de fazer nenhuma barganha.

— É mesmo? — pergunta ele, sorrindo.

Ele suspeita de mim. Posso sentir. Mas vai garantir que está certo antes de dar o bote.

— Isso não está em discussão. — Eu me levanto da poltrona de couro, enfiando a bolsa debaixo do braço, mais frustrada do que antes por ter que entregar minha arma.

Pressiono os dedos na escrivaninha de mogno, apoiando meu peso neles ao me curvar um pouco na direção de Hamburg.

— Três nomes, ou saio daqui e Victor Faust entra para espalhar os seus miolos naquele belo quadro do menino Jesus atrás de você.

Hamburg ri.

— Esse não é o menino Jesus.

Ele se levanta junto comigo, alto, enorme e ameaçador.

Enquanto vasculho minha mente e tento entender como ele descobriu que sou uma farsante, Hamburg se adianta e anuncia seu raciocínio como um chute na minha boca.

— É engraçado, Izabel, você vir aqui pedir nomes que não aparecem em uma lista que você... — diz, apontando para a minha bolsa — ... nem carrega consigo, porque como você saberia que os nomes que eu daria não estão nela?

Estou muito ferrada.

— Vou dizer o que eu acho — continua ele. — Acho que você veio aqui sozinha por causa de alguma vingança contra mim. — Ele balança o indicador. — Porque eu me lembro de cada detalhe da porra daquela noite. Cada merda de detalhe. Especialmente a sua expressão quando percebeu que Victor Faust tinha vindo matar minha esposa em vez de mim. Era a expressão de alguém pega de surpresa, que não fazia ideia de por que estava ali. Era a expressão de alguém que não está familiarizada com o jogo.

Ele tenta sorrir com gentileza, como se quisesse demonstrar alguma espécie de empatia pela minha situação, mas o que leio em seu rosto é cinismo.

— Acho que, se houvesse mais alguém aqui com você, ele já teria aparecido para salvá-la, porque é óbvio que você está ferrada.

A porta do quarto principal se abre, o guarda-costas entra e a tranca. Por uma fração de segundo, tive a esperança de que fosse Victor vindo me salvar na hora certa. Mas foi só um desejo. O guarda-costas me olha com desprezo. Hamburg acena para ele, que começa a tirar o cinto.

Meu coração afunda até o estômago.

— Sabe — diz Hamburg, dando a volta na escrivaninha —, na primeira vez que a gente se viu, lembro que fiz um acordo com Victor Faust. — Ele aponta para mim. — Você se lembra disso, não?

Hamburg sorri e apoia a mão gorda nas costas da poltrona na qual eu estava sentada, virando-a para mim.

Todo o meu corpo está tremendo; parece que o sangue que passa pelas minhas mãos virou ácido. Ele corre pelo meu coração e pela minha cabeça tão rápido que quase desmaio. Começo a tentar alcançar meu punhal, mas eles estão perto demais, aproximando-se pelos dois lados. Não tenho como enfrentar os dois ao mesmo tempo.

— Como assim? — pergunto, tropeçando nas palavras, tentando ganhar um pouco de tempo.

Hamburg revira os olhos.

— Ora, por favor, Izabel. — Ele gira um dedo no ar. — Apesar do que aconteceu naquela noite, fiquei decepcionado de verdade por vocês dois irem embora antes de cumprir o acordo.

— Eu diria que, em vista do que aconteceu, o acordo não vale mais nada.

Ele sorri para mim e se senta na poltrona de couro. Percebo Hamburg espiar de relance o guarda-costas, dando uma ordem só com o olhar.

Antes que eu consiga me virar, o segurança prende minhas duas mãos nas minhas costas.

— Você vai cometer um erro do caralho se fizer isso! — grito, tentando me livrar das garras do segurança.

Ele me leva à força até uma mesa quadrada e me joga sobre ela. Meus reflexos não são rápidos o suficiente e meu queixo bate no mármore duro. O gosto metálico do sangue enche minha boca.

— Me solte! — Tento chutá-lo. — Me solte agora!

Hamburg ri de novo.

— Vire a cabeça dela para esse lado — ordena ele.

Dois segundos depois, meu pescoço é torcido para o outro lado e mantido ali, minha bochecha esquerda pressionada contra o mármore frio.

— Quero ver a cara dela enquanto você a fode. — Hamburg me olha de novo. — Então vamos continuar do ponto onde paramos naquela noite, tudo bem? Você concorda, Izabel?

— Vai se foder!

— Ah, não, não — diz ele, ainda com o riso na voz. — Não sou eu quem vai foder você. Você não faz o meu tipo. — Seus olhos famintos percorrem o corpo do segurança que está me pressionando por trás.

— Eu vou matar você — digo, cuspindo por entre os dentes. A mão do segurança sobre a minha cabeça impede que eu a mexa. — Vou matar vocês dois! Me estupre! Vamos lá! Mas os dois vão estar mortos antes que eu saia daqui!

— Quem disse que você vai sair daqui? — provoca Hamburg.

O zíper da calça dele está aberto; sua mão direita está parada ao lado da braguilha, como se ele estivesse tentando manter algum autocontrole e não se masturbar ainda.

Então Hamburg acena com dois dedos para o guarda-costas, que me mantém imóvel segurando meus cabelos da nuca.

— Lembre-se disso — diz ele ao segurança. — Ela não vai sair daqui.

Sinto a mão direita do guarda-costas soltar meu cabelo e se mover entre as minhas pernas. Enquanto ele ergue meu vestido, aproveito para alcançar o punhal na minha coxa e tirá-lo da bainha, golpeando atrás em um ângulo desajeitado. O segurança grita de dor e me solta. Puxo o punhal ainda firme na mão, que está coberta de sangue. Ele cambaleia para trás, com a mão na base do pescoço, o sangue jorrando entre seus dedos.

— Sua puta do caralho! — ruge Hamburg, saltando da poltrona e vindo atrás de mim como um elefante descontrolado, a calça caindo de sua cintura flácida.

Corro na direção dele com o punhal levantado e colidimos no meio da sala. Seu peso me joga de bunda no chão e o punhal cai da minha mão, deslizando pelo piso ensanguentado. De pé, Hamburg se abaixa para me segurar, mas me reclino no chão e levanto o pé com toda a força, enfiando o salto da minha sandália na lateral do seu rosto. Ele geme e cambaleia para trás, com a mão na bochecha.

— Eu vou acabar com você! Puta que pariu! — berra ele.

Engatinho na direção do punhal, vendo o segurança no chão, em meio a uma poça de sangue. Ele está engasgando com os próprios fluidos; tentando em vão encher os pulmões de ar.

Pego o punhal com firmeza e rolo no chão enquanto Hamburg se aproxima, derrubando a poltrona de couro. Fico de pé e corro até a mesa, empurrando-a na direção dele. Hamburg tenta tirá-la da frente, mas o móvel balança sobre a base e ele acaba tropeçando. Seu corpo desaba no chão de barriga para baixo e a mesa cai quase na sua cabeça. Salto sobre suas costas e monto em seu corpo obeso. Meus joelhos mal tocam o chão. Agarro seu cabelo, puxo a cabeça dele para trás na minha direção e aperto o punhal em sua garganta, imobilizando-o em segundos.

— Pode me matar! Foda-se! Você não vai sair viva daqui mesmo. — A voz de Hamburg é rouca, sua respiração, rápida e ofegante, como se ele tivesse acabado de tentar correr uma maratona. O cheiro de seu suor e de seu medo invade minhas narinas.

Ocupada com a lâmina em sua garganta, me assusto com o som de batidas fortes na porta. A distração me pega desprevenida. Hamburg consegue se erguer debaixo de mim como um touro, rolando de lado e me derrubando no chão. Deixo cair o punhal em algum lugar, mas não tenho tempo para procurá-lo porque Hamburg consegue se levantar e parte para cima de mim. Ouço a voz de Stephens do outro lado da porta, que vibra com seus socos.

Rolo para sair do caminho antes que Hamburg consiga pular em cima de mim, pego o objeto mais próximo — um peso de papel de pedra, bem pesado, que estava na mesa antes de ser derrubada — e golpeio Hamburg com ele. O som do osso de seu rosto quebrando com o impacto faz meu estômago revirar. Hamburg cai para trás, cobrindo a cara com as mãos.

As batidas na porta ficam mais fortes. Numa fração de segundo, levanto a cabeça e vejo a porta sacudindo com violência no batente. Preciso sair daqui. Agora. Meu olhar varre a sala procurando o punhal, mas não há mais tempo.

Corro para a sala de vigilância, contornando os obstáculos.

Graças a Deus, há outra porta lá dentro. Abro a porta e desço correndo a escada de concreto, torcendo para que seja uma saída e eu não encontre mais ninguém no caminho.


CAPÍTULO CINCO

Sarai

Desço a escada de concreto de dois em dois degraus, segurando no corrimão de metal pintado com as mãos ensanguentadas, até chegar ao térreo. Uma placa vermelha com a palavra SAÍDA está à minha frente. Corro pela passagem mal-iluminada, onde uma lâmpada fluorescente pisca acima de mim e torna o lugar ainda mais ameaçador. Empurro com força a barra da porta com as duas mãos e ela se abre para um beco. Um homem de terno está sentado no capô de um carro, fumando, quando saio para a rua.

Eu fico paralisada.

Ele olha para mim.

Eu olho para ele.

Ele nota o sangue nas minhas mãos e olha de relance para a porta, depois para mim.

— Vá — diz ele, acenando para a caçamba de lixo à minha direita.

Sei que não tenho tempo para ficar confusa nem para perguntar por que ele está me deixando ir embora, mas pergunto assim mesmo.

— Por que você está...?

— Apenas vá!

Ouço passos ecoando na escada atrás da porta.

Lanço um olhar agradecido ao homem e dou a volta na caçamba, desço o beco e me afasto do restaurante. Ouço um tiro segundos depois que dobro a esquina e torço para que seja aquele homem fingindo atirar em mim.

Evito espaços abertos e corro por trás de prédios, protegida pela escuridão, tanto quanto minhas sandálias de salto alto permitem. Quando sinto que estou longe o suficiente para parar um pouco, tento me esconder atrás de outra caçamba e tiro as sandálias. Arranco a peruca loura e a jogo no lixo.

Não consigo respirar. Estou enjoada.

Meu Deus, estou enjoada...

Encosto na parede de tijolos atrás de mim, arqueando as costas e apoiando as mãos nos joelhos. Vomito com violência no chão, meu corpo rígido, o esôfago ardendo.

Pego as sandálias e saio correndo de novo na direção do hotel, tentando esconder o sangue das mãos e do vestido, mas percebo que não é tão fácil. Recebo alguns olhares desconfiados ao passar depressa pela recepção, mas tento ignorá-los e torço para que ninguém chame a polícia.

Em vez de arriscar ser vista por outras pessoas, subo pela escada até o oitavo andar. Quando chego lá, e depois de tudo o que corri, sinto que minhas pernas vão ceder. Encosto na parede e recupero o fôlego, com os joelhos tremendo descontroladamente. Meu peito dói, como se cada respiração trouxesse poeira, fumaça e cacos microscópicos de vidro para o fundo dos pulmões.

O quarto que divido com Eric está trancado e eu não tenho a chave. Aliás...

— Puta merda...

Jogo a cabeça para trás, fecho os olhos e suspiro, arrasada.

Não estou mais com a minha bolsa. Eu a perdi em algum momento da luta na sala de Hamburg. A chave do meu quarto. Meu celular. Minha arma. Meu punhal. Não tenho mais nada.

Bato na porta, mas Eric não está no quarto. Não esperava que estivesse, na verdade, já que não são nem onze da noite. Só para o caso de estar enganada, no entanto, tento o quarto de Dahlia.

— Dahl! Você está aí? — Bato na porta com pressa, tentando não incomodar os outros hóspedes.

Nenhuma resposta.

Já desistindo, jogo as sandálias no chão e apoio as mãos na parede. Minha cabeça desaba. Mas então ouço um clique baixinho e vejo a porta do quarto de Dahlia se abrindo devagar. Levanto a cabeça e a vejo parada ali.

Sem me demorar para questionar a expressão estranha no rosto dela, entro no quarto só para sair do corredor. Eric está sentado na poltrona perto da janela. Noto que seu cabelo está meio bagunçado. O de Dahlia também.

Meu instinto está tentando chamar minha atenção, mas não me importo. Acabei de apunhalar um homem no pescoço e de tentar matar outro. Quase fui estuprada. Estava correndo pelos becos de Los Angeles para fugir de homens armados que vinham atrás de mim. Nada que esses dois façam pode superar isso.

— Meu Deus, Sarai — diz Dahlia, aproximando-se de mim. — Isso é sangue?

A expressão estranha e silenciosa que ela exibia quando entrei no quarto desaparece em um instante quando ela me vê no quarto bem-iluminado. Seus olhos se arregalam, cheios de preocupação.

Eric se levanta da poltrona.

— Você está sangrando. — Ele também me olha de cima a baixo. — O que aconteceu?

Os olhos de Dahlia correm pela minha roupa e pelo meu cabelo preso dentro da touca da peruca.

— Por que... Hã, por que você está vestida assim?

Olho para mim mesma. Não sei o que dizer, então não digo nada. Eu me sinto como um cervo diante dos faróis de um carro, mas minha expressão continua firme e sem emoções, talvez um pouco confusa.

— Você encontrou Matt — acusa Dahlia, começando a levantar a voz. — Puta que pariu, Sarai. Você foi se encontrar com ele, não foi?

Sinto os dedos dela apertando meu antebraço.

Eu me desvencilho de Dahlia e caminho até o banheiro para tirar a touca do cabelo. Enquanto tiro os grampos, noto uma camisinha boiando na privada.

Eric entra no banheiro atrás de mim. Ele sabe que eu vi.

— Sarai, e-eu... Eu sinto muito — diz ele.

— Não se preocupe — respondo, tirando o último grampo e deixando-o na bancada creme.

Passo por Eric e volto para o quarto. Dahlia está me encarando, com o rosto cheio de vergonha e arrependimento.

— Eu...

Ergo a mão e olho para os dois.

— Não, é sério. Não estou brava.

— Como assim? — pergunta Dahlia.

Eric parece agitado. Ele põe a mão na nuca e passa os dedos pelo cabelo.

— Olhe, sem querer ofender — digo a Eric —, mas tenho fingido tudo com você desde a primeira vez que a gente ficou junto.

Ele arregala os olhos, embora tente não deixar que o choque e a mágoa da minha revelação transpareçam demais. Grande parte de mim se sente bem por dizer a verdade. Não por vingança, mas porque eu precisava tirar isso do peito. Mas admito que, depois de descobrir que os dois têm trepado pelas minhas costas, uma pequena parte de mim também fica feliz em magoá-lo. Acho que a vingança sempre encontra um caminho, mesmo nos gestos mais insignificantes.

— Fingido?

— Não tenho tempo para isso — digo, indo na direção da porta. — Vocês dois podem ficar juntos. Não tenho nada contra. Não estou brava, só não me importo mesmo. Preciso ir.

— Espere... Sarai.

Eu me viro para olhar Dahlia. Ela está muito chocada, mal sabe o que pensar. Depois de alguns segundos de silêncio, fico impaciente e a olho com cara de “vai, desembucha”.

— Para você... tudo bem mesmo?

Uau, não sirvo mesmo para o estilo de vida deles. O estilo de vida normal. Nem consigo entender essas coisas de namoro, melhores amigas, infidelidade, competição e joguinhos psicológicos. A cara que eles fazem, tão vazia e mesmo assim tão cheia de incredulidade e dúvida, por causa de uma situação que, para mim, não é tão importante... Tenho coisas mais graves com que me preocupar.

Suspiro, aborrecida com as perguntas vagas e confusas dos dois.

— Sim, por mim, tudo bem — digo, e então me viro para Eric, estendendo a mão. — Preciso da chave do nosso quarto.

Relutante, ele enfia a mão no bolso de trás e pega a chave. Tomo da sua mão, saio dali e vou para o quarto ao lado. Eric vem atrás e tenta falar comigo enquanto guardo minhas coisas na mala.

— Sarai, eu nunca quis...

Eu me viro de repente e o encaro.

— Tudo bem, só vou dizer isto uma vez, depois você muda de assunto ou volta para lá e fica com a Dahlia. Não estou nem aí para o que vocês dois fazem, mas, por favor, não apele para esse clichê de novela de que você nunca quis que isso acontecesse, porque... é muito idiota. — Eu rio baixinho, porque acho idiota mesmo. — Só falta você dizer que o problema não é comigo, é com você. Caramba, você faz ideia do que isso parece? É tão difícil assim acreditar quando digo que não me importo e que estou falando sério? Sem joguinhos. É verdade. — Balanço a cabeça, levanto as mãos e digo: — Não. Me. Importo.

Viro para a mala, fecho o zíper, abro a parte lateral e pego a chave do quarto secreto. Ainda bem que eu tinha uma cópia.

— Preciso ir — digo, andando até a porta e passando por Eric.

— Aonde você vai?

— Não posso contar, mas me escute, Eric, por favor. Se alguém aparecer me procurando, finja que não me conhece. Diga o mesmo para Dahlia. Finjam que nunca me viram na vida. Aliás, quero que vocês dois saiam hoje. Vão para qualquer lugar. Só... não fiquem aqui.

— Você vai me dizer o que aconteceu ou por que está toda ensanguentada? Sarai, você está me deixando assustado pra cacete.

— Eu vou ficar bem — digo, atenuando minha expressão. — Mas prometa que você e Dahlia vão fazer exatamente o que falei.

— Você vai me contar um dia?

— Não posso.

O silêncio entre nós fica mais pesado.

Enfim, abro a porta e saio para o corredor.

— Acho que sou eu quem deveria estar pedindo desculpas.

— Por quê?

Eric fica na porta, com os braços caídos ao lado do corpo.

— Por pensar em outra pessoa durante todo esse tempo em que eu estava com você. — Olho para o chão.

Nós nos encaramos por um breve momento e ninguém diz mais nada. Ambos sabemos que estamos errados. E acho que nós dois estamos aliviados por tudo ter vindo à tona.

Não há mais nada a dizer.

Eu me afasto pelo corredor na direção oposta à do meu quarto secreto e dou a volta por trás, para que Eric não veja aonde estou indo. Quando me tranco no quarto, só consigo desabar na cama. A exaustão, a dor e o choque de tudo o que aconteceu esta noite me atingem em cheio assim que a porta se fecha, e me engolem como uma onda. Eu me jogo de costas no colchão. Minhas panturrilhas doem tanto que duvido conseguir andar sem mancar amanhã.

Fico olhando para o teto escuro até ele desaparecer e eu pegar no sono.


CAPÍTULO SEIS

Sarai

Um tum! pesado me acorda, mais tarde naquela noite. Eu me levanto como uma catapulta.

Vejo dois homens no meu quarto: um desconhecido morto no chão e Victor Faust de pé sobre o corpo dele.

— Levante-se.

— Victor?

Não acredito que ele está aqui. Devo estar sonhando.

— Levante-se, Sarai. AGORA! — Victor me pega pelo cotovelo, me arranca da cama e me põe de pé.

Não consigo nem pegar minhas coisas, ele já está abrindo a porta e me puxando para o corredor com ele, segurando forte a minha mão.

Disparamos juntos pelo corredor e outro homem aparece virando a esquina, de arma em punho. Victor aponta sua 9mm com silenciador e o derruba antes que o cara consiga atirar. Ele passa pelo corpo me puxando, seus dedos fortes afundando na minha mão enquanto corremos para a escada. Ele abre a porta, me empurra para a frente e nós subimos depressa os degraus de concreto. Um andar. Três. Cinco. Minhas pernas estão me matando. Acho que não consigo andar por muito mais tempo. Enfim, no quinto andar, Victor me puxa para outro corredor e rumo a um elevador nos fundos.

Quando as portas do elevador se fecham e estamos só nós dois lá dentro, finalmente tenho a oportunidade de falar.

— Como você sabia que eu estava aqui? — Mal consigo recuperar o fôlego, esgotada pela correria infinita e pela adrenalina, mas acho que sobretudo porque Victor está de pé ao meu lado, segurando minha mão.

Meus olhos começam a arder com as lágrimas.

Engulo o choro.

— O que você estava pensando, Sarai?

— Eu...

Victor segura meu rosto com as duas mãos e me empurra contra a parede do elevador, pressionando ferozmente seus lábios nos meus. Sua língua se entrelaça na minha e sua boca tira meu fôlego em um beijo apaixonado que, enfim, faz meus joelhos cederem. Toda a força que eu estava usando para manter o corpo ereto desaparece quando os lábios dele me tocam. Ele me beija com fome, com raiva, e eu derreto em seus braços.

Então ele se afasta, as mãos fortes nos meus braços, me segurando contra a parede do elevador. Nós nos encaramos pelo que parece ser uma eternidade, nossos olhos paralisados em uma espécie de contemplação profunda, nossos lábios a centímetros de distância. Só quero prová-los de novo.

Mas ele não deixa.

— Responda — exige Victor, estreitando seus olhos perigosos em reprovação.

Já esqueci a pergunta.

Ele me sacode.

— Por que você veio aqui? Tem ideia do que você fez?

Balanço a cabeça em um movimento curto e rápido, parte de mim mais preocupada com seu olhar ameaçador do que com o que ele está dizendo.

A porta do elevador se abre no subsolo e eu não tenho tempo para responder, pois Victor mais uma vez pega minha mão e me puxa para que o siga. Serpenteamos por um grande depósito com caixas em pilhas altas encostadas nas paredes e depois por um longo corredor escuro que leva a um estacionamento. Victor enfim solta minha mão e eu o sigo até um carro parado entre dois furgões pretos com o logotipo do hotel nas laterais. Dois bipes ecoam pelo ambiente e os faróis do carro piscam quando nos aproximamos, iluminando a parede de concreto em frente. Sem perder tempo, me sento no banco do passageiro e fecho a porta.

Segundos depois, Victor está dirigindo casualmente pelo estacionamento até a rua.

— Eu queria que ele morresse — respondo, enfim.

Victor não me olha.

— Bom, você fez um excelente trabalho — rebate ele, sarcástico.

Ele vira para a direita no semáforo, e o carro ganha velocidade quando chegamos à rodovia.

Fico magoada por suas palavras, mas sei que ele tem razão, por isso não discuto. Fiz merda. Uma merda muito grande.

Mas não me dou conta do tamanho dela até Victor dizer:

— Os seus amigos podiam ter morrido. Você podia ter morrido.

Sinto meus olhos se arregalarem além dos limites e me viro mais um pouco para encará-lo.

— Ah, não... Victor, o quê... Eles estão bem?

Sinto que vou vomitar de novo.

Victor me olha por um instante.

— Estão ótimos. O primeiro quarto que os capangas de Hamburg revistaram estava vazio — diz ele, voltando a olhar para a estrada. — Eu cheguei quando eles estavam saindo. Segui um deles até o quarto onde você estava escondida, deixei que ele destrancasse a porta e então ataquei.

As chaves do quarto. Minhas duas chaves extras estavam na bolsa que perdi no restaurante de Hamburg. E os números dos quartos estavam escritos nas capinhas de papel que as protegiam. Eu estava tão preocupada em esconder minha arma e meu punhal que nem pensei em esconder as chaves.

— Merda! — Também olho para a estrada. — E-eu perdi a bolsa no restaurante. As chaves do meu quarto estavam dentro dela. Deixei um rastro para eles seguirem!

Felizmente, eu não tinha uma chave extra do quarto de Dahlia, senão ela e Eric já poderiam estar mortos.

Onde é que eu estava com a cabeça?!

— Não, você deixou literalmente as chaves do seu quarto com o nome do hotel gravado. Sarai, eu devia ter matado você há muito tempo e poupado toda essa confusão para cima de você e de mim.

Eu me viro para encará-lo; a raiva e a mágoa pesando no meu peito.

— Você não está falando sério.

Ele faz uma pausa e me olha. Suspira.

— Não, não estou falando sério.

— Nunca mais me diga isso. Nunca mais me diga uma coisa dessas, ou eu mato você e poupo a mim de toda essa confusão — rebato, desviando o olhar.

— Você não está falando sério — diz Victor.

Olho mais uma vez para aqueles olhos ameaçadores verde-azulados que me fizeram tanta falta.

— Não. Mas acho que isso seria o mais sensato.

— Bom, você não foi a campeã da sensatez hoje, então acho que estou seguro ao menos pelas próximas 24 horas.

Escondo o sorriso.

— Senti sua falta — digo de maneira distante, olhando para a estrada.

Victor não responde, mas admito que seria estranho se respondesse. A despeito de sua falta de emoção, porém, sei que ele também sentiu saudade de mim. Aquele beijo no elevador disse coisas que palavras jamais conseguiriam.

Ele pega uma saída e para o carro debaixo de um viaduto. Puxa o freio de mão e a área ao redor desaparece na escuridão quando ele desliga os faróis.

— O que a gente está fazendo aqui?

— Você precisa ligar para os seus amigos.

— Por quê?

Ele tira um celular do porta-luvas entre nós.

— Mande eles voltarem para o Arizona. Faça ou diga o que for preciso para que eles saiam de Los Angeles. Quanto antes, melhor.

Ele coloca o telefone na minha mão. De início, só olho para o aparelho, mas ele me pressiona com aquele olhar, aquele que grita “vamos lá, faça isso de uma vez”, mas que só alguém como eu, alguém que conhece Victor, seria capaz de notar.

Giro o celular nas mãos, depois o seguro firmemente e digito o número de Eric. Mas então mudo de ideia, desligo no primeiro toque e ligo para Dahlia.

Ela atende no quinto toque.

Respiro fundo e faço o que sei fazer melhor: minto.

— A verdade é que vocês me magoaram. Duvido que um dia eu consiga perdoar você ou Eric pelo que fizeram.

— Sarai... Meu Deus, me desculpe, estou me sentindo muito mal. A gente não queria que isso chegasse a esse ponto. Juro para você. Não sei o que aconteceu...

— Escute, Dahlia, por favor, só me escute.

Ela fica quieta.

Começo a choradeira. Nunca imaginei que eu seria capaz de chorar sob demanda e de forma tão falsa.

— Eu quero acreditar em você. Quero conseguir confiar em você de novo, mas você era minha melhor amiga e me traiu. Preciso de um tempo sozinha e quero que você e Eric voltem para o Arizona. Hoje. Acho que não vou aguentar ver vocês de novo... Espere, onde você está, agora?

Acabo de me dar conta de que, se ela e Eric estiverem no hotel, a essa altura ela já sabe que dois homens foram mortos a tiros no andar do quarto deles.

— A gente está em uma festa em um terraço — conta ela. — T-tudo bem por você? Achei que não tinha nada a ver a gente sair, mas o Eric falou que você insistiu...

— Não, tudo bem — digo, cortando-a. — Insisti mesmo. Onde ele está, agora?

— Deixei Eric lá no terraço para a gente poder conversar. Está muito barulhento lá em cima. Que número é esse de onde você está ligando?

— É o celular de um amigo. Perdi o meu. O Eric por acaso avisou que se alguém procurar por mim...

— Avisou, sim — interrompe Dahlia. — Que confusão é essa, afinal? Meu Deus, Sarai, esquece por um momento esse lance com Eric e me conta o que está acontecendo, por favor. O sangue. As roupas esquisitas que você estava usando e aquele troço na sua cabeça. Era uma touca de peruca? Você está metida em alguma encrenca, eu sei. Sei que você me odeia, e tem todo o direito de odiar, mas, por favor, conte o que aconteceu.

— Não posso contar, porra! — grito, deixando o choro distorcer minha voz. — Caramba, Dahlia, faça o que eu pedi. Pelo menos isso! Você deu para o meu namorado! Por favor, voltem para o Arizona, me deixem esfriar a cabeça e depois eu volto para casa. Talvez aí a gente possa conversar. Mas agora façam o que eu estou pedindo. Tudo bem?

Ela não responde por um momento, e um longo silêncio se forma entre nós.

— Tudo bem — concorda ela. — Vou dizer ao Eric que a gente precisa ir embora.

— Obrigada.

Estou apenas um pouco aliviada. Não vou me sentir bem com isso até saber que eles chegaram em casa sãos e salvos.

Desligo sem dizer mais uma palavra.

— Bom, isso foi bastante convincente — observa Victor, levemente impressionado.

— Acho que foi.

— Eu sei que a sua amiga acreditou — acrescenta ele. — Mas eu não acreditei em uma só palavra.

Eu me viro para ele. Victor me conhece tão bem quanto eu o conheço, parece.

— É porque nem uma palavra era verdade.

Ele deixa por isso mesmo e nós saímos de baixo do viaduto.

Chegamos a uma casa perdida no final de uma estrada isolada nos arredores da cidade, empoleirada no alto de uma colina com uma vista quase perfeita para a cidade lá embaixo. Uma piscina de formato irregular começa no lado esquerdo da casa e serpenteia por trás, a água azul-clara iluminada por lâmpadas submersas parece luminescente. O lugar está silencioso. Só ouço o vento passando pela mata cerrada que contorna o lado direito e os fundos da casa, impedindo uma visão em 360 graus da paisagem iluminada de Los Angeles. Quando nos aproximamos da porta, uma mulher robusta usando uniforme azul de empregada nos recebe. Ela tem cabelo preto encaracolado e pele morena. Suas bochechas são volumosas, envolvendo seus olhos castanho-escuros pequenos e brilhantes, que fitam atentamente Victor e a mim.

— Por favor, entrem — diz ela, com um sotaque hispânico familiar.

A mulher fecha a porta. A casa cheira a limpa-vidro e a uma mistura pouco natural de cheiros adocicados que só pode vir de algum tipo de aromatizador de ambientes artificial. Parece que todas as janelas foram abertas, permitindo que a brisa noturna de verão se espalhasse pela casa. Não se parece em nada com as mansões ricas onde já estive, mas é impecável e aconchegante, e penso que eu deveria pelo menos ter tomado um banho antes de vir. Minha pele e minhas roupas ainda estão manchadas de sangue...

Victor está usando uma calça preta e uma camisa apertada de mangas compridas que adere a cada músculo de seus braços e seu peito, com os punhos desabotoados e arregaçados até os cotovelos. A camisa está por fora da calça e os dois botões de cima estão abertos. Sapatos pretos chiques e informais calçam seus pés. Um relógio brilhante de prata adorna seu pulso direito, e não consigo deixar de notar a solitária veia grossa que percorre as costas de sua mão até o osso de seu pulso. Quando ele segue a empregada pela grande entrada e se vira momentaneamente de costas para mim, vejo o cabo da arma saindo da cintura de sua calça, com a barra da camisa branca enfiada atrás.

Ele me olha, para e estende o braço, em um gesto para que eu ande à sua frente. Tremo de leve quando sua mão toca minhas costas perto da cintura.

Antes que eu tenha tempo de me sentir deslocada ao lado dele, Fredrik, o amigo e cúmplice sueco de Victor que conheci no restaurante de Hamburg há tanto tempo, entra na sala pelas grandes portas de vidro que dão para o quintal dos fundos.


CAPÍTULO SETE

Sarai

— Você chegou cedo — comenta Fredrik com um sorriso mortal, porém inimaginavelmente sexy.

As roupas dele são bem parecidas com as de Victor, mas, em vez de camisa de botão, Fredrik está vestindo uma camiseta branca apertada que adere à sua forma esbelta e máscula. Ele está descalço.

A primeira vez que vi Fredrik, pensei que era impossível haver alguém mais bonito. Com cabelo macio, quase preto, e olhos escuros e misteriosos, suas feições parecem ter sido esculpidas por algum artista famoso. Mas sempre achei que havia algo de sombrio e assustador naquele homem. Um lado dele que eu, particularmente, não faço questão de conhecer. Para mim, basta o jeito como ele era quando nos encontramos: cordial, encantador e misterioso, uma linda máscara que ele usa para esconder a fera que há por trás.

Victor olha para seu relógio caro.

— Só dez minutos mais cedo — comenta ele.

Fredrik sorri ao se aproximar, os dentes brancos reluzindo contra a pele bronzeada.

— Sim, mas você sabe como eu sou.

Victor assente, mas não alonga o assunto. A mim, só resta imaginar o que aquilo significa.

— É bom ver você — diz Fredrik, observando-me do topo de sua altura considerável e presença avassaladora. Ele se inclina, pega minha mão e a beija, logo acima dos nós dos dedos. — Ouvi dizer que você matou um homem hoje.

Ele apruma as costas e solta minha mão. Um sorriso perturbador e orgulhoso surge em seu rosto, os cantos dos olhos se aquecendo com alguma lembrança ou... prazer, como se a ideia de matar alguém o deliciasse de alguma forma.

Olho para Victor à minha direita. Ele assente, respondendo à pergunta estampada no meu rosto. O guarda-costas que apunhalei no pescoço morreu?

Olho para Fredrik e respondo sem rodeios.

— Acho que matei.

Um leve sorriso se abre nos cantos dos lábios de Fredrik, e ele olha de relance para Victor, sem mover a cabeça.

— E você se sente bem com isso? — pergunta Fredrik.

— Para dizer a verdade, sim — respondo sem demora. — O desgraçado mereceu.

Fredrik e Victor parecem envolvidos em algum tipo de conversa secreta. Odeio isso.

Enfim, Fredrik diz para Victor em voz alta:

— Você arrumou sarna para se coçar, Faust.

Ele então se vira de costas para nós e anda na direção das portas de vidro. Nós o seguimos para o lado de fora, passando pela parte coberta do quintal e descendo uma escada de pedra que leva a um enorme pátio, também de pedra, que se abre em todas as direções. O pátio é decorado com mesas e cadeiras de ferro batido e uma cama com dossel ao ar livre.

Eu me sento ao lado de Victor em um sofá.

— Como é que você sabe? — pergunto a Fredrik, mas então me viro para Victor e digo: — E você ainda não me contou como sabia que eu estava aqui.

Na verdade, isso não importa muito, só quero encará-lo nos olhos de novo. Quero ficar sozinha com Victor, mas por enquanto vou precisar me contentar com os 7 centímetros entre nossos corpos, sentados lado a lado.

— Melinda Rochester me contou — explica Fredrik com um sorriso conivente. Começo a perguntar “E quem é Melinda Rochester”, mas ele diz: — Bem, ela contou para todo mundo, na verdade. Noticiário do Canal 7. Um homem morto a punhaladas atrás de um restaurante de Los Angeles.

Começo a me retorcer por dentro. Espero que as câmeras não tenham me mostrado com nitidez.

Eu me viro para Victor, com a preocupação transparecendo no rosto.

— Eu estava de peruca loura — digo, tentando encontrar alguma coisa, qualquer coisa que eu tenha feito certo. — Fiquei com a cabeça baixa... a maior parte do tempo.

Desisto. Sei que o que fiz vai continuar me perseguindo. Suspiro e olho para as mãos ensanguentadas no meu colo.

— E encontrar você foi fácil — continua Victor. — A sra. Gregory me ligou depois que você saiu do Arizona. Ela estava preocupada com a sua vinda para Los Angeles e achou que eu precisava saber.

Viro a cabeça para encará-lo.

— O quê? Dina sabia onde você estava? — Sinto a pele ao redor das sobrancelhas se enrijecendo.

— Não — responde ele, com delicadeza. — Ela não sabia onde eu estava, mas sabia como entrar em contato comigo.

Essas palavras me magoam. Engulo em seco a sensação de ser traída por eles.

— Falei para ela entrar em contato comigo só em caso de emergência — acrescenta Victor. — Caso algo acontecesse com você.

— Você deixou para Dina uma forma de entrar em contato — digo, ríspida —, mas para mim, nada. Não acredito que você fez isso.

— Eu queria que você tocasse a sua vida. Mas, caso os irmãos de Javier descobrissem onde você estava, ou você decidisse fazer uma proeza como a de hoje, eu queria ficar sabendo.

Não consigo olhar para Victor. Tento chegar mais alguns centímetros para o lado a fim de aumentar a distância entre nós. Ainda assim, mesmo que esteja magoada e enfurecida com ele, sinto vontade de me aproximar de novo. Mas me mantenho firme e me recuso a deixá-lo perceber que o poder que ele exerce sobre mim faz a raiva que sinto parecer um chilique.

— Não acredito que Dina escondeu isso de mim — digo em voz alta, ainda que esteja falando mais comigo mesma.

— Ela escondeu de você porque eu disse a ela quanto isso era importante.

— Bom, de qualquer maneira — interrompe Fredrik, sentando-se na poltrona ao lado do sofá —, parece que você se meteu em uma situação da qual não vai conseguir sair tão facilmente, se é que vai conseguir.

— Por que a gente está aqui? — pergunto, aborrecida.

Fredrik ri baixinho.

— Aonde mais você iria?

— Eu precisava tirar você do hotel — explica Victor.

— Espere um pouco. Eu não matei aquele homem atrás do restaurante. Tudo aconteceu na sala particular de Hamburg, no andar de cima.

Recordo o homem que vi do lado de fora, atrás do restaurante, aquele que me deixou fugir, e meu coração afunda.

— Hamburg não deixaria que a polícia acreditasse que o assassinato aconteceu lá dentro, porque eles confiscariam a memória da câmera de vigilância e veriam o que realmente aconteceu.

Não estou entendendo nada. Nadinha.

— Eles não iam querer que a polícia soubesse o que realmente aconteceu?

Fredrik se reclina na poltrona e ergue um pé descalço, apoiando o tornozelo sobre o outro joelho, e estende os braços sobre os da poltrona.

Victor balança a cabeça.

— Preciso mesmo explicar isso para você, Sarai?

Sua vaga irritação me pega de surpresa. Olho para ele e levo alguns segundos para entender tudo sem que ele precise explicar.

— Ah, entendi — digo, olhando um de cada vez. — Hamburg não quer que a polícia se envolva porque corre o risco de se expor. O que ele fez, então? Só levou o corpo para fora? Preparou a situação para parecer um assalto comum? Não muito diferente do que ele fez naquela noite em que a gente estava na mansão dele, imagino.

Paro por aí porque Fredrik está presente. Não sei qual o grau de intimidade entre ele e Victor, nem mesmo se Fredrik sabe o que aconteceu na noite em que Victor matou a esposa de Hamburg.

Os olhos de Victor sorriem de leve para mim: sua maneira de me mostrar quanto lhe agrada eu ter entendido tudo. Ainda fingindo estar aborrecida, não retribuo o olhar da forma que ele deve esperar.

A empregada aparece com um balde chique de gelo, de madeira, com três garrafas de cerveja dentro. Fredrik pega uma, então ela nos oferece. Victor pega uma garrafa, mas recuso, mal conseguindo olhar a mulher nos olhos. Estou absorta demais nos acontecimentos da noite, que não me saem da cabeça.

A empregada vai embora logo depois, sem dizer uma palavra.

— O que você quis dizer com os irmãos de Javier?

Victor abre sua garrafa e a põe na mesa.

— Dois deles, Luis e Diego, assumiram os negócios de Javier dias depois que você o matou.

Por um instante, o rosto de Javier surge em minha mente: sua expressão chocada e ainda orgulhosa, os olhos arregalados, o corpo caindo no chão segundos depois de eu meter uma bala em seu peito.

Afasto a imagem.

Eu me lembro de Luis e Diego. Diego é aquele que tentou me estuprar quando eu estava na fortaleza no México, aquele que Javier castrou como punição.

— Eles estão me procurando?

Victor toma um gole de cerveja e devolve a garrafa à mesa com calma.

— Que eu saiba, não. Estou monitorando a fortaleza há meses. Os irmãos de Javier são amadores. Não têm ideia do que fazer com tanto poder. Duvido até que vejam você como ameaça.

Fredrik toma um gole de cerveja e prende a garrafa entre as pernas.

— Não fique tão aliviada assim — diz ele. — É melhor ser perseguida por amadores do que por Hamburg e aquele braço direito dele.

Um nó nervoso se forma no fundo do meu estômago. Olho de relance para Victor, buscando respostas.

— Willem Stephens — esclarece Victor — faz todo o serviço sujo de Hamburg. Hamburg em si é covarde, tão perigoso quanto o pedófilo gente boa da vizinhança. Mal consegue atirar em um alvo imóvel, e trairia alguém em dois minutos para se salvar. — Ele arqueia uma sobrancelha. — Stephens, por outro lado, tem uma extensa formação militar, é ex-mercenário e trabalhou para uma Ordem do mercado negro em 1986.

— Uma o quê?

— Uma Ordem como a nossa — explica Victor —, mas que aceita contratos particulares. Eles fazem coisas que outros agentes se recusam a fazer, vendem seus serviços basicamente para qualquer um.

— Ah... Então, resumindo, ele mata gente inocente por dinheiro.

Lembro o que Victor me contou, meses atrás, sobre a natureza dos contratos particulares, como pessoas eram assassinadas por motivos fúteis como traição conjugal ou vingança. A Ordem de Victor só trabalha com crime, ameaças sérias a um grande número de pessoas ou ideias que poderiam ter um impacto negativo na sociedade ou na vida como um todo.

Engulo em seco.

— Bom, ele me viu, com certeza. — Levanto as mãos e tiro o cabelo do rosto, passando as mãos no alto da cabeça. — Foi ele quem me levou para o segundo andar, para a sala de Hamburg. — Olho para Victor. — Desculpa, Victor. Eu... eu não sabia de nada disso.

Fredrik ri baixinho e diz:

— Algo me diz que, mesmo se você soubesse, teria ido lá de qualquer maneira.

Desvio o olhar de Victor e olho para baixo de novo, nervosa, esfregando os dedos ensanguentados uns nos outros. Fredrik tem razão. Odeio admitir, mas ele tem razão. Eu teria ido para o restaurante mesmo assim. Teria tentado matar Hamburg mesmo assim. Mas, se eu soubesse de tudo isso, acho que teria pensado em um plano melhor.

De repente, sinto que alguma coisa toma meu corpo e me tira o fôlego.

— Victor... Meu celular... — Eu me levanto do sofá, com o cabelo castanho-avermelhado caindo pelos ombros, batendo em meus braços nas partes em que o sangue secou e formou uma crosta áspera. — O número de Dina está no meu celular. Merda. Merda! Victor, Stephens vai atrás dela! Preciso voltar para o Arizona!

Começo a seguir para a porta dos fundos, mas Victor me alcança antes que eu atravesse o caminho decorado com pedras lisas.

— Espere aí.

Olho para baixo e vejo os dedos dele em volta do meu pulso. Seus hipnóticos olhos verde-azulados me fitam com desejo e devoção. Devoção. Algo que nunca vi no olhar de Victor antes.

Fredrik fala atrás de nós, me tirando do transe em que Victor me colocou.

— Eu vou cuidar disso — diz ele.

Desvio o olhar de Victor para Fredrik, que então ganha importância, considerando que a vida de Dina está em jogo.

— Como? — pergunto.

Victor me leva de volta para o sofá.

Fredrik pega o celular da mesa à frente, procura um número e toca na tela para ligar. Então encosta o celular no ouvido.

Victor me faz sentar perto dele de novo. Estou concentrada demais em Fredrik no momento para notar que Victor fez questão de se sentar tão perto que sua coxa está encostada na minha. Quero aproveitar o momento de proximidade, mas não posso. Estou preocupada com Dina.

Fredrik se reclina na poltrona de novo, balançando o pé descalço apoiado no joelho. Seu rosto fica alerta quando alguém atende à ligação.

— Em quanto tempo você consegue chegar a Lake Havasu City? — pergunta Fredrik ao telefone. Ele ouve por um segundo e assente. — Mando o endereço por mensagem de texto assim que eu desligar. Vá para lá o mais rápido que puder. Uma mulher mora lá. Dina Gregory. — Ele me olha de relance, para se certificar de que disse o nome certo. Como não o corrijo, volta a falar ao telefone. — Tire-a da casa e a leve para Amelia, em Phoenix. Sim. Sim. Não, não pergunte nada a ela. Só tome cuidado para ninguém machucar Dina. Sim. Me ligue neste número assim que estiver com ela.

Fredrik assente mais algumas vezes. Meu coração está batendo tão forte que parece pronto para pular do peito. Espero que a pessoa com quem ele está falando consiga encontrar Dina a tempo.

Fredrik desliga e parece abrir uma tela de texto no celular. Ele olha para mim, mas é Victor quem dá o endereço da sra. Gregory. Fredrik o digita e deixa o celular na mesa.

— Meu contato está a apenas trinta minutos de lá — explica Fredrik, olhando primeiro para mim. Então se vira para Victor. — O que você quer que eu faça?

Ele levanta as costas da poltrona e apoia os cotovelos nos joelhos, deixando as mãos entre eles. Mesmo em uma posição relaxada, ele consegue parecer elegante, importante e perigoso.

— Ainda preciso que você verifique o que discutimos ontem — diz Victor, e fica ainda mais claro, para mim, que Fredrik recebe ordens dele, embora não pareça ser do tipo que recebe ordens de ninguém. Mas está claro que os dois têm uma relação forte. — E, se você não se importa, preciso da sua casa emprestada por esta noite.

Os olhos escuros de Fredrik me encaram, e o traço de um sorriso aparece em seu rosto. Ele se levanta e pega o celular da mesa, escondendo-o na mão.

— Não precisa dizer mais nada. Vou sair daqui em vinte minutos. Eu ia mesmo me encontrar com alguém hoje, então está combinado.

A atitude de Victor muda um pouco, o que percebo no mesmo instante. Ele está encarando Fredrik, do outro lado da mesa do pátio, com um olhar cansado e cauteloso.

— Você não vai fazer o que estou pensando...

Ouço com atenção sem nem ao menos tentar disfarçar. Eu quero que eles saibam que estou bisbilhotando, porque é frustrante nenhum dos dois me oferecer qualquer explicação sobre esses comentários internos.

Fredrik ergue um lado da boca em um meio sorriso. Ele balança a cabeça de leve.

— Não, esta noite, não, infelizmente. Mas já faz algum tempo. Vou precisar que você me ajude com isso em breve.

Os olhos dele passam por mim e sinto um calafrio percorrer minhas costas. Não consigo decidir se é um arrepio bom ou assustador.

— Você terá sua oportunidade logo, logo — assegura Victor.

Fredrik dá a volta na mesa.

— Lamento por ter que encurtar nossa reunião.

— Tudo bem — digo. — Obrigada por ajudar com Dina. Você avisa quando receber aquela ligação?

Fredrik assente.

— Com certeza. Farei isso.

— Obrigada.

Victor acompanha Fredrik até a porta de vidro e os dois a atravessam. Fico sentada, observando-os do outro lado do pátio de pedra e tentando ouvir o máximo que posso, mas eles fazem questão de falar em voz baixa. Isso também me deixa frustrada. E pretendo informar Victor disso.


CAPÍTULO OITO

Victor

Fredrik fecha a porta de correr feita de vidro.

— Ela não sabe nada sobre Niklas? — pergunta ele, como eu já previa.

— Não, mas vou ter que contar. Ela vai precisar ficar atenta o tempo todo. Agora mais do que nunca.

— Ela não pode ficar aqui por muito tempo — aconselha Fredrik, olhando, através do vidro, Sarai sentada no sofá lá fora e nos observando. — Você também não.

— Eu sei. Quando Niklas descobrir que ela participou do assassinato no restaurante de Hamburg, vai saber na mesma hora que também estou envolvido nisso. Ele não é bobo. Se Sarai está viva, Niklas vai saber que estou tentando ajudá-la.

— E como ele desconfia de que agora trabalho com você — acrescenta Fredrik —, ela corre tanto perigo perto de mim quanto de você.

— É verdade.

Fredrik balança a cabeça para mim, com um sorriso escondido no fundo dos olhos.

— Não entendo esse envolvimento. Respeito você como sempre, respeitei, Victor, mas nunca vou entender a necessidade de um homem amar uma mulher.

— Eu não estou apaixonado por ela. Ela só é importante para mim.

— Talvez não — retruca ele, indo para a cozinha. — Mas parece que o amor e o envolvimento trazem as mesmas consequências, meu amigo. — Sigo Fredrik até a cozinha iluminada e ele abre um armário. — Mas estou do seu lado. O que você precisar que eu faça para ajudar, é só pedir. — Ele aponta para mim perto do armário, agora com um pão na mão.

A empregada de Fredrik entra na cozinha, roliça e mais velha do que nós dois juntos, exatamente o tipo de mulher que jamais o atrairia, e foi por isso que ele a contratou. Ela lhe pergunta em espanhol se pode voltar para casa e ver a família mais cedo hoje. Fredrik responde em espanhol, concordando. Ela assente respeitosamente e passa por mim na sala. De soslaio, eu a observo pegar uma bolsa volumosa de couro marrom do chão, perto da espreguiçadeira, e colocá-la no ombro. Depois ela vai até a porta, fechando-a devagar ao sair.

Sarai está de pé nas sombras da sala quando desvio o olhar da porta. Nem ouvi a porta de vidro correr quando ela entrou, e pelo jeito Fredrik também não.

Ela vai para a cozinha iluminada, de braços cruzados, os dedos delicados segurando seus bíceps femininos, mas bem-definidos. Ela é linda demais, mesmo quando está desgrenhada assim.

— Quanto tempo vocês planejavam me deixar lá fora? — pergunta ela, com um traço de irritação na voz.

— Ninguém disse que você precisava ficar lá, gata — responde Fredrik.

Ele gosta dela, isso é óbvio para mim, e ele deve saber. Mas também sabe que vou matá-lo. Ainda assim, minha confiança em Fredrik é maior do que minha preocupação de que ele volte para o lado sombrio e a machuque. Fredrik Gustavsson é uma fera do tipo mais carnal, que adora mulheres e sangue, mas tem limites e critérios, além de levar a lealdade, o respeito e a amizade muito a sério. Sua lealdade a mim é, afinal, o motivo para ele trair a Ordem todos os dias me ajudando.

Sarai se aproxima de mim e me olha nos olhos, inclinando um pouco a cabeça para o lado. O cheiro de sua pele e o calor tênue que emana dela quase me fazem perder o controle. Tenho conseguido me conter bastante desde que a beijei no elevador. Pretendo continuar assim.

Ela não diz nada, mas continua me encarando como se esperasse alguma coisa. Fico confuso. Ela inclina a cabeça para o outro lado e seu olhar se suaviza, embora eu não saiba ao certo por quê. Parece maliciosa e cheia de expectativa.

Ouço Fredrik rir baixinho e a porta da geladeira se fechar, mas não tiro os olhos de Sarai.

— As coisas são tão mais fáceis do meu jeito. — Ouço-o dizer, com um sorriso na voz.

— Entre em contato comigo assim que tiver a informação sobre Niklas — peço, ainda olhando nos olhos de Sarai e ignorando o comentário dele. — E quando souber pelo seu contato se Dina Gregory está a salvo em Phoenix.

— Pode deixar — diz Fredrik, e então vai para a porta do corredor que leva ao seu quarto. Mas ele para e olha para nós. — Se você não se importa...

Enfim desvio o olhar de Sarai e dou atenção total a Fredrik.

— Não se preocupe — interrompo —, eu sei onde fica o quarto de hóspedes.

Ele enfia na boca um sanduíche que mal notei que ele preparava e morde, rasgando um pedaço de pão. Eu o vejo piscando para Sarai antes de desaparecer da sala. Foi algo inofensivo, uma menção ao que ele acha que pode acontecer entre nós quando sair, e não uma tentativa de flerte.

— Que informação sobre Niklas? — pergunta Sarai, seus traços suaves agora encobertos pela preocupação.

Estendo a mão e passo os dedos por algumas mechas do cabelo dela.

— Preciso contar muita coisa para você — anuncio, tirando a mão antes de perder o controle e acabar tocando nela mais do que pretendo. — Sei que você deve estar exausta. Por que não toma um banho e fica à vontade primeiro? Depois conversamos.

Um sorrisinho suave emerge em seus lábios, mas logo desaparece em seu rosto enrubescido.

— Você quer dizer que eu estou nojenta? — pergunta ela, tímida. — Esse é o seu jeito de me dizer que preciso lavar meu corpo nojento?

— Na verdade, sim — admito.

Por um momento ela faz uma careta e parece ofendida, mas então só balança a cabeça e dá risada. Admiro isso em Sarai. Admiro muita coisa nela.

— Tudo bem. — Sua expressão brincalhona fica séria de novo. — Mas você precisa me contar tudo, Victor. E eu sei que você deve ter muito para contar, mas saiba que também preciso dizer muita coisa para você.

Eu já esperava isso. E, antes que ela fique na ponta dos pés, incline o corpo na minha direção e me beije, já sei que, quando ela sair do banho, vou precisar decidir o que vamos fazer. Vou precisar tomar algumas decisões importantes, que nos afetarão.

Porque de uma coisa eu tenho certeza: Sarai não pode voltar para casa.


Sarai

Quando volto, Victor está na sala, acomodado na beira do sofá, curvado sobre a mesinha de centro feita de vidro que está cheia de pedaços de papel e fotografias. Entro, mas ele continua remexendo neles sem erguer a cabeça para me olhar. Só que ele não me engana, sei que sente a minha presença tanto quanto quero que ele sinta.

Vasculhei o guarda-roupa de Fredrik procurando uma camiseta branca, que vesti sobre meus seios nus. Infelizmente, tive que usar a mesma calcinha de antes, mas as cuecas boxer de Fredrik não são exatamente o tipo de lingerie que eu gostaria de usar para seduzir Victor. Só uma camiseta e uma calcinha. Claro que fiz questão de vestir o mínimo possível, porque desejo Victor e não tenho nenhuma vergonha de deixar isso claro. Mas ainda custo a acreditar que estou no mesmo cômodo que ele, depois de meses achando que ele havia ido embora para sempre.

Acho que o beijo no elevador é onde minha mente ficou suspensa, como se o tempo tivesse parado naquele momento e cada parte de mim ainda deseje que aquele instante continue. Contudo, o resto do mundo continua passando ao meu redor.

Eu me sento ao lado de Victor, recolhendo um pé descalço para o sofá e enfiando-o sob a minha coxa.

— O que é isso tudo? — Olho para os papéis e fotografias na mesa.

Ele mexe em alguns pedaços de papel, empilhando-os.

— É um serviço — explica ele, colocando a foto de um homem de camiseta regata na pequena pilha. — Agora eu trabalho por conta própria.

Isso me surpreende.

— Como assim? — Acho que sei o que ele quer dizer, mas custo a acreditar.

Ele pega a pilha de papéis e bate as laterais na mesa para ajeitar todas as folhas. Então enfia o maço em um envelope de papel pardo.

— Eu saí da Ordem, Sarai. — Ele olha para mim.

Victor aperta as pontas do fecho prateado para fechar o envelope.

Meus pensamentos se embaralham, minhas palavras ficam confusas na ponta da língua. Luto, desesperada, para acreditar no que ele acaba de me contar.

— Victor... mas... não...

— Sim — confirma ele, virando-se para mim e me olhando bem nos olhos. — É verdade. Eu me rebelei contra a Ordem, contra Vonnegut, e agora eles estão atrás de mim. — Ele volta a mexer nos outros papéis na mesa. — Mas ainda preciso trabalhar, por isso agora trabalho sozinho.

Balanço a cabeça sem parar, sem querer engolir a verdade. A ideia de Victor sendo caçado por aqueles que o fizeram ser como ele é, por qualquer um, faz um pânico febril correr pelas minhas veias.

Solto um longo suspiro.

— Mas... mas e Fredrik? E Niklas? Victor, eu... O que está acontecendo?

Ele respira fundo e deixa a folha de papel cair suavemente na mesa, então reclina as costas no sofá.

— Fredrik ainda trabalha para a Ordem. Está lá dentro. Ele vigia Niklas e... — seus olhos cruzam com os meus por um instante —... tem me ajudado a manter você a salvo.

Antes que eu consiga fazer mais perguntas presas na garganta, Victor se levanta e continua a falar, enquanto fico sentada e o observo com a boca semiaberta e as pernas dobradas sobre a almofada.

— Como você sabe, quando alguém está sob suspeita de trair a Ordem, é imediatamente eliminado. Mas acredito que Niklas deixou Fredrik vivo e não transmitiu suas preocupações a Vonnegut pelo simples fato de que Niklas está usando Fredrik para me encontrar. Assim como deixou você viva todo este tempo, esperando que um dia você o levasse a mim.

O que mais me choca não é o que Victor diz, mas o que ele deixa de fora. Tiro as duas pernas de cima do sofá e pressiono os pés no chão de madeira, apoiando as mãos nas almofadas.

— Victor, o que você está me dizendo? Quer dizer que... Niklas continua com Vonnegut?

Espero que não seja isso que ele esteja tentando me dizer. Espero de todo o coração que minha decisão de deixar Niklas vivo aquele dia no hotel, quando ele atirou em mim, não tenha sido o maior erro da minha vida.

Os olhos de Victor vagam para a porta de vidro, e sinto que uma espécie de sofrimento infinito o consome, mas ele não deixa transparecer.

— Você estava lá. Eu disse para o meu irmão que, se ele decidisse continuar na Ordem caso eu resolvesse sair, eu não ficaria bravo com ele. Dei a ele a minha palavra, Sarai. — Victor vai até a porta de vidro, cruza os braços e olha para a piscina azul iluminada que reluz sob o céu cinzento. — Agora é hora de Niklas brilhar, e não vou tirar isso dele.

— Que absurdo! — Salto do sofá com os punhos fechados. — Ele está atrás de você, não é? — Cerro os dentes e contorno a mesinha de centro. — Caralho, é isso, Victor? Para provar seu valor para Vonnegut, ele foi encarregado de matar você. Aquele merda do seu irmão traiu você. Ele acha que vai pegar o seu lugar na Ordem. Puta que pariu, não acredito...

— É o que é, Sarai — interrompe Victor, virando-se para me encarar. — Mas, neste momento, Niklas é a menor das minhas preocupações.

Cruzando os braços, começo a andar de um lado para outro, olhando os veios claros e escuros da madeira sob meus pés descalços. Minhas unhas ainda têm o esmalte vermelho-sangue de duas semanas atrás.

— Por que saiu da Ordem?

— Eu tive que sair. Não tinha escolha.

— Não acredito.

Victor suspira.

— Vonnegut descobriu sobre a gente — conta ele, ganhando minha atenção total. — Foi Samantha... na noite em que ela morreu. Antes que eu saísse da Ordem, encontrei Vonnegut em Berlim, o primeiro encontro frente a frente que tive com ele em meses. Foi em uma sala de interrogatório. Quatro paredes. Uma porta. Uma mesa. Duas cadeiras. Somente eu e Vonnegut sentados frente a frente, com uma luz brilhando no teto acima de nós. — Victor olha para trás pela porta de vidro e depois continua: — No início, eu estava certo de que ele tinha me levado para lá com a intenção de me matar. Eu estava preparado...

— Para morrer? — Se Victor responder que sim, vou dar um tapa na cara dele.

— Não — responde ele, e consigo respirar um pouco melhor. — Eu fui para lá preparado. Raptei a mulher de Vonnegut antes de ir encontrá-lo. Fredrik a manteve em uma sala, pronto para fazer... as coisas dele, caso fosse necessário.

No mesmo instante, quero perguntar o que são as “coisas” de Fredrik, mas deixo a pergunta de lado por enquanto e digo:

— Se Vonnegut quisesse matar você, a esposa dele seria a sua moeda de troca.

De costas para mim, ele assente.

— Samantha estava sendo vigiada pela Ordem. Provavelmente há muito tempo.

— Eles desconfiavam da traição dela? Por que não a mataram, então, como fizeram com a mãe de Niklas, ou como queriam fazer com Niklas?

Victor se vira para me encarar de novo.

— Eles não desconfiavam dela, Sarai, ela era... — Victor respira fundo e aperta os lábios.

— Ela era o quê? — Chego mais perto dele. Não gosto do rumo que a conversa está tomando.

— Ela era mais leal à Ordem do que eu jamais poderia ter imaginado — conta ele, e isso fere meu coração. — Sentado naquela sala com Vonnegut, quanto mais ele falava, mais eu começava a entender que Samantha me traiu da mesma forma que Niklas. Vonnegut me contou coisas que ele não tinha como saber. Ele sabia que eu ajudei você. Em algum momento antes de morrer, naquela noite, Samantha conseguiu passar informações a Vonnegut sobre nossa estadia por lá.

— Não acredito nisso. — Golpeio o ar com a mão diante de mim. — Samantha morreu tentando me proteger. Já falamos sobre isso. Não acredito em você, Victor. Ela era uma boa pessoa.

— Ela era boa manipuladora, Sarai, nada mais do que isso.

Balanço a cabeça, ainda sem acreditar.

— Foi Niklas quem contou a Vonnegut que você me ajudou. Só pode ter sido. Niklas sabia até que você tinha me levado para a casa de Samantha.

— Sim, mas Niklas não sabia que eu fiz Samantha provar nossa comida antes de a gente comer, naquela noite. Assim que Vonnegut mencionou quanto eu ainda desconfiava dela depois de tantos anos, eu soube que ela havia me traído.

— Mas isso não faz nenhum sentido. — Começo a andar pela sala de novo, de braços cruzados e com uma das mãos apoiada no rosto. — Por que ela me protegeria de Javier?

— Porque ela não era leal a Javier.

Jogo as mãos para o ar, atônita com aquela revelação.

— Não dá para confiar em ninguém — digo, me jogando no sofá e olhando para o nada.

— Não, não dá — concorda Victor, e eu olho para cima, detectando um significado oculto por trás de suas palavras. — Agora talvez você entenda por que eu não me envolvo com ninguém. Não é só o trabalho, Sarai. As pessoas em geral não são confiáveis, especialmente na minha profissão, na qual a confiança é tão rara que não vale a pena perder tempo e esforço procurando por ela.

— Mas você parece confiar em Fredrik — observo, olhando para Victor do sofá. — Por que me trouxe logo aqui? Não aprendeu a lição com Samantha?

Sua expressão fica um pouco mais sombria, ressentida pela minha acusação.

— Eu nunca disse que confiava em Fredrik. Mas no momento ele é meu único contato dentro da Ordem e, nos últimos sete meses, não fez nada que não o tornasse digno de confiança. Ao contrário, fez tudo para provar sua lealdade a mim.

— Mas isso não significa que seja verdade.

— Não, você tem razão, mas logo vou saber com cem por cento de certeza se Fredrik é confiável ou não.

— Como?

— Você vai descobrir comigo.

— Por que se dar a esse trabalho? Você disse que a confiança é tão rara que não vale o esforço.

— Você faz muitas perguntas.

— Pois é, acho que faço. E você não responde o suficiente.

— Não, acho que não. — Victor abre um sorrisinho, e meu coração se derrete instantaneamente em uma poça de mingau.

Desvio os olhos dos dele e disfarço meus sentimentos.

— Não estou segura aqui — digo, encarando-o novamente.

— Você não está segura em lugar nenhum — corrige Victor. — Mas, enquanto estiver comigo, nada vai acontecer com você.

— Quem está falando merda agora?

Ele levanta uma sobrancelha.

— Você não é meu herói, lembra? — digo para refrescar a memória de Victor. — Não é minha alma gêmea que jamais deixará que nada de ruim aconteça comigo. Devo confiar nos meus instintos primeiro e em você, se eu decidir confiar, por último. Você me disse isso certa vez.

— E continua sendo verdade.

— Então como pode dizer que nada vai me acontecer se eu estiver com você?

A expressão de Victor fica vazia, como se pela primeira vez na vida alguém o tivesse deixado sem palavras. Olho para seu rosto silencioso e sem emoção, e apenas seus olhos revelam um traço de torpor. Tenho a sensação de que ele falou sem pensar, que manifestou algo que sente de verdade, mas que jamais quis que eu soubesse: Victor quer ser meu herói, vai fazer qualquer coisa, tudo o que puder para me manter a salvo. Quer que eu confie totalmente nele.

E confio.

Ele volta para perto de mim e se senta ao meu lado. O cheiro de seu perfume é fraco, como se ele fizesse questão de usar o mínimo possível. Estou tonta de desejo. Ansiosa para sentir novamente seu toque, saborear seus lábios quentes, deixar que ele me tome como fez algumas noites antes que nos víssemos pela última vez. Não tenho pensado em nada além de Victor nos últimos oito meses da minha vida. Enquanto durmo. Como. Vejo TV. Transo. Me masturbo. Tomo banho. Cada coisa que fiz desde que ele me deixou naquele hospital com Dina fiz pensando nele.

— Você acha que Fredrik vai contar a Niklas onde a gente está? — Mudo de assunto por medo de deixar transparecer muita coisa cedo demais.

— Acho que se ele fosse fazer isso teria contado a Niklas o pouco que sabia sobre o seu paradeiro há muito tempo, e Niklas já teria tentado matar você — responde Victor.

— Tem alguma coisa... estranha em Fredrik. Você não sente?

Victor passa a mão pelo meu cabelo úmido. O gesto faz meu coração disparar.

— Você tem grande sensibilidade para as pessoas, Sarai — comenta ele, levando a mão ao meu queixo. — Tem razão sobre Fredrik. — Ele passa o polegar pelo meu lábio inferior. Um calafrio percorre o meio das minhas pernas. — Ele é... como dizer?... desequilibrado, de certa forma.

Minha respiração acelera, e sinto meus cílios tocando meu rosto quando os lábios de Victor cobrem os meus.

— Desequilibrado de que forma? — pergunto, ofegante, quando ele se afasta.

De olhos fechados, percebo que ele está observando a curva do meu rosto e meus lábios e sinto a respiração que sai suavemente de suas narinas.

Cada pelinho minúsculo se eriça quando a outra mão de Victor sobe e encontra minha cintura nua por baixo da camiseta. Seus dedos longos dançam sobre a pele do meu quadril e param por ali.

Abro os olhos e vejo os dele me encarando.

— Algum problema? — pergunta ele, e sua boca roça a minha de novo.

— Não, eu... eu só não esperava isso.

— Esperava o quê?

Sinto seus dedos levantando o elástico da minha calcinha. Minha cabeça está girando, sinto meu estômago se transformar em um emaranhado de músculos, trêmulo e nervoso.

— Isso — respondo, piscando. — Você está diferente — acrescento, baixinho.

— Culpa sua — diz Victor, e então seus lábios devoram os meus.

Ele me deita no sofá e se encaixa entre as minhas pernas.

Seu celular vibra na mesinha de centro, e percebo quanto sou humana quando xingo Fredrik por estragar aquele momento, mesmo que seja para me avisar de que Dina está a salvo.


CONTINUA

CAPÍTULO UM

Sarai

Já faz oito meses que fugi da fortaleza no México onde fui mantida contra minha vontade por nove anos. Estou livre. Levo uma vida “normal”, fazendo coisas normais com gente normal. Não fui mais atacada, ameaçada nem seguida por ninguém que ainda queira me matar. Tenho uma “melhor amiga”, Dahlia. Tenho a coisa mais parecida com uma mãe que já conheci, Dina Gregory. O que mais eu poderia querer? Parece egoísmo desejar qualquer outra coisa. Mas, apesar de tudo o que tenho, algo não mudou: continuo vivendo uma mentira.

Deixei amigos na Califórnia: Charlie, Lea, Alex e... Bri... Não, espera, quero dizer Brandi. Meu ex-namorado, Matt, era abusivo, por isso voltei para o Arizona. Ele me perseguiu por muito tempo depois que terminamos. Consegui uma ordem judicial para mantê-lo afastado, mas não funcionou. Ele atirou em mim há oito meses, mas não posso provar porque não cheguei a vê-lo. E tenho muito medo de denunciá-lo à polícia.

Claro que tudo isso é mentira.

São os pedaços da minha vida que acobertam o que realmente aconteceu comigo. Os pretextos para eu ter desaparecido aos 14 anos e ter ido parar em um hospital da Califórnia com um ferimento a bala. Jamais vou poder contar a Dina, Dahlia ou ao meu namorado, Eric, o que aconteceu de verdade: que fui levada para o México pela péssima versão de mãe que eu tinha, para morar com um chefão do tráfico. Jamais vou poder contar que fugi daquele lugar depois de nove anos e matei o homem que me manteve prisioneira por toda a minha adolescência. Quer dizer, claro que eu poderia contar a alguém, mas, se fizesse isso, só estaria pondo Victor em perigo.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/2_O_RETORNO_DE_IZABEL.jpg

 

Victor.

Não, nunca vou poder contar que um assassino me ajudou a fugir, ou que testemunhei Victor matando várias pessoas, inclusive a esposa de um empresário famoso e importante de Los Angeles. Nunca vou poder contar que, depois de tudo pelo que passei, depois de tudo o que vi, o que mais quero é fazer as malas e voltar para aquela vida perigosa. A vida com Victor.

Até hoje, falar o nome dele me acalma. Às vezes, quando estou acordada na cama à noite, murmuro seu nome só para ouvi-lo, porque preciso. Preciso dele. Não consigo tirá-lo da cabeça. Já tentei. Porra, e como tentei. Mas, não importa o que eu faça, continuo vivendo cada dia da minha vida pensando nele. Se está me vigiando. Se pensa em mim tanto quanto penso nele. Se ainda está vivo.

Pressiono o travesseiro contra a cabeça e fecho os olhos, imaginando Victor. Às vezes, é só assim que consigo gozar.

Eric aperta minhas coxas com as mãos e me imobiliza na cama, com o rosto enfiado no meio das minhas pernas.

Arqueio o quadril contra ele, roçando de leve contra sua língua frenética, até que ele faça meu corpo todo enrijecer e minhas coxas tremerem ao redor da sua cabeça.

— Meu Deus... — Estremeço enquanto gozo, então deixo os braços caírem entre as pernas, afundando os dedos no cabelo preto de Eric. — Caramba...

Sinto os lábios de Eric tocando minha barriga um pouco acima da pélvis.

Olho para o teto como sempre faço depois de um orgasmo, pois a culpa que sinto me deixa com vergonha de olhar para Eric. Ele é um cara superlegal. Meu namorado sexy de 27 anos, cabelo preto e olhos azuis, gentil, encantador, engraçado e perfeito. Perfeito para mim se eu nunca tivesse conhecido Victor Faust.

Estou arruinada pelo resto da vida.

Enxugo as gotas de suor da testa e Eric sobe pela cama, deitando-se ao meu lado.

— Você sempre faz isso — diz ele, brincando, enquanto cutuca minhas costelas com os nós dos dedos.

Como sinto muitas cócegas, eu me encolho e me viro para encará-lo. Sorrio com ternura e passo um dedo por seu cabelo.

— O que eu sempre faço?

— Esse negócio de ficar em silêncio. — Eric segura meu queixo entre o polegar e o indicador. — Eu faço você gozar e você fica bem quieta durante um tempão.

Eu sei e sinto muito, mas preciso apagar o rosto de Victor da minha cabeça antes de conseguir olhar você nos olhos. Sou uma pessoa horrível.

Eric me dá um beijo na testa.

— Isso se chama recuperação — brinco, beijando os dedos dele. — É totalmente inofensivo. Mas você deveria interpretar como um bom sinal. Você sabe o que está fazendo — digo, retribuindo o cutucão nas costelas.

E ele sabe mesmo o que está fazendo. Eric é ótimo na cama. Mas ainda sou emocionalmente muito ligada... viciada... em Victor, e tenho a sensação de que sempre serei.

Só consegui seguir a vida e me abrir a outros relacionamentos cinco meses depois que Victor foi embora. Conheci Eric no trabalho, na loja de conveniência. Ele comprou um saco de biscoitos e um energético. Depois disso, ele aparecia na loja duas, às vezes três vezes por semana. Eu não queria nada com ele. Queria Victor. Mas comecei a perder a esperança de que Victor um dia fosse voltar para mim.

Eric tenta passar um braço ao redor do meu corpo, mas me levanto casualmente e visto a calcinha. Ele não desconfia de nada, o que é bom. Não sinto vontade de ficar abraçadinha, mas a última coisa que quero é magoá-lo. Ele ergue os braços e entrelaça os dedos atrás da cabeça. Olha para mim, do outro lado do quarto, com um sorriso sedutor. Sempre faz isso quando não estou completamente vestida.

— Sarai.

— Oi. — Visto a camiseta e ajeito o rabo de cavalo.

— Eu sei que está em cima da hora — diz Eric —, mas queria ir com você e Dahlia para a Califórnia amanhã.

Merda.

— Mas você não disse que não ia conseguir folga no trabalho? — pergunto, vestindo o short e calçando os chinelos.

— Quando você perguntou se eu queria ir, não ia dar mesmo. Mas contrataram um funcionário novo, e meu chefe decidiu me dar folga.

Isso é uma péssima notícia. Não porque eu não o queira por perto — gosto de Eric, apesar da minha incapacidade de esquecer Victor Faust —, mas minha viagem de “férias” à Califórnia amanhã não é para fazer turismo, curtir a noite nem fazer compras na Rodeo Drive.

Estou indo até lá para matar um homem. Ou melhor, tentar matar um homem.

Já é ruim que Dahlia vá também, e já vai ser difícil guardar segredo de uma pessoa. Imagine duas.

— Você... não parece animada — comenta Eric, seu sorriso morrendo aos poucos.

Abro um sorriso largo e balanço a cabeça, voltando para perto dele e me sentando na beira da cama.

— Não, não, eu estou animada. É que você me pegou de surpresa. A gente vai sair às seis da manhã. É daqui a menos de oito horas. Você já fez as malas?

Eric dá uma risada e se estica na minha cama, me puxando para si. Eu me sento perto de sua cintura, apoiando um braço no colchão do outro lado dele, com os pés para fora da cama.

— Bom, eu só fiquei sabendo hoje à tarde, antes de sair do trabalho — explica ele. — Eu sei, está em cima da hora, mas só preciso enfiar umas coisas na mala e estou pronto.

Ele estende a mão e afasta do meu rosto os fios de cabelo que escaparam do rabo de cavalo.

— Ótimo! — minto, com um sorriso igualmente falso. — Então acho que está combinado.

Dina acorda antes de mim, às quatro da manhã. O cheiro de bacon é o que me desperta. Levanto da cama e entro debaixo do chuveiro antes de me sentar à mesa da cozinha. Um prato vazio já está à minha espera.

— Gostaria que você tivesse escolhido algum outro lugar para passar sua folga, Sarai — afirma Dina.

Ela se senta do outro lado da mesa e começa a encher seu prato. Pego alguns pedaços de bacon do monte e ponho no meu.

— Eu sei — digo —, mas, como falei para você, não vou deixar que meu ex me impeça de ver meus amigos.

Ela balança a cabeça cada vez mais grisalha e suspira.

Passei do limite em algum momento com meu amontoado de mentiras. Quando Victor levou Dina para o hospital em Los Angeles, depois que o irmão dele, Niklas, atirou em mim, ela não fazia ideia do que tinha acontecido. Só sabia que eu tinha levado um tiro. Demorei alguns meses até me sentir segura o suficiente para falar com ela sobre isso. Quer dizer, depois de bolar a história que eu ia contar. Foi aí que inventei o lance do ex-namorado violento. Eu deveria ter dito que fui assaltada. Por um desconhecido. A mentira seria muito mais fácil de manter. Agora que ela sabe que vou voltar para Los Angeles, está morrendo de preocupação, e já faz uns dois meses. Eu nem deveria ter contado que ia voltar lá.

Termino de comer o bacon e um pouco de ovos mexidos, junto com um copo de leite.

Dahlia e Eric chegam juntos assim que termino de escovar os dentes.

— Vamos logo, a gente precisa pegar a estrada — chama Dahlia, me apressando da porta. Seu cabelo castanho-claro está preso no alto da cabeça em um coque desalinhado de quem acabou de acordar.

Eu me despeço de Dina com um abraço.

— Eu vou ficar bem — digo a ela. — Prometo. Não vou nem chegar perto de onde ele mora.

Desta vez, chego até a imaginar um rosto masculino ao falar de alguém que não existe. Acho que já interpreto esse papel há tanto tempo que “Matt” e todos esses meus “amigos” de Los Angeles, de quem falo para todo mundo como se fossem reais, se tornaram reais no meu subconsciente.

Dina força um sorriso em seu rosto preocupado, e suas mãos soltam meus cotovelos.

— Você liga assim que chegar?

— Assim que eu entrar no quarto do hotel, ligo — respondo, assentindo.

Ela sorri e eu a abraço mais uma vez, antes de segui-los até o carro de Dahlia, que está esperando. Eric guarda minha mala no bagageiro, junto com as deles, e se senta no banco de trás.

— Hollywood, aí vamos nós! — exclama Dahlia.

Finjo metade da empolgação dela. Ainda bem que está muito cedo, senão Dahlia poderia intuir o verdadeiro motivo da minha falta de entusiasmo. Estico os braços para trás e bocejo, apoiando a cabeça no banco do carro. Sinto a mão de Eric no meu pescoço quando ele começa a massagear meus músculos.

— Não sei por que você quer ir a Los Angeles de carro — diz Dahlia. — Se a gente fosse de avião, não ia precisar acordar tão cedo. E você não estaria tão cansada e rabugenta.

Minha cabeça cai para a esquerda.

— Não estou rabugenta. Ainda mal falei com você.

Ela dá um sorrisinho.

— Exatamente. Sarai sem falar significa Sarai rabugenta.

— E se recuperando — acrescenta Eric.

Meu rosto fica vermelho e eu estico a mão atrás da cabeça, dando um tapinha de brincadeira na dele, que está fazendo maravilhas no meu pescoço. Fecho os olhos e vejo Victor.

Não de propósito.

Chegamos a Los Angeles depois de quatro horas na estrada. Eu não podia ir de avião porque não conseguiria levar minhas armas. É claro que Dahlia não pode saber disso. Ela acha apenas que quero apreciar a paisagem.

Tenho sete dias para fazer o que vim fazer. Isto é, se eu conseguir. Pensei no meu plano durante meses, em como vou fazer isso. Sei que é impossível entrar na mansão Hamburg. Para isso, eu precisaria ter um convite e socializar em público com o próprio Arthur Hamburg e seus convidados. Ele viu meu rosto. Bem, tecnicamente, viu mais do que meu rosto. Mas sinto que os acontecimentos daquela noite, quando Victor e eu enganamos Hamburg para que ele nos convidasse para ir ao seu quarto e conseguíssemos matar sua esposa, são algo que ele jamais vai esquecer, nem os mínimos detalhes.

Se tudo der certo, uma peruca loura platinada de cabelo curto e maquiagem escura e pesada vão esconder aquela identidade de cabelo longo e castanho que Hamburg reconheceria assim que eu aparecesse.


CAPÍTULO DOIS

Sarai

Passo o dia todo com Eric e Dahlia, fingindo me divertir para passar o tempo. Saímos para almoçar e para fazer um tour por Hollywood com um guia e visitar um museu antes de voltarmos para o hotel, exaustos. Quer dizer, finjo estar exausta o suficiente para querer dar o dia por encerrado. Na verdade, o que preciso é me preparar para ir ao restaurante de Hamburg ainda hoje.

Dahlia já acha que tem algo errado comigo.

— Você está ficando doente? — pergunta ela, estendendo a mão entre nossas espreguiçadeiras à beira da piscina e sentindo a temperatura da minha testa.

— Estou ótima — respondo. — Só cansada porque levantei muito cedo. E quando foi a última vez que andei tanto assim em um dia só?

Dahlia volta a se recostar em sua espreguiçadeira e ajeita os óculos de sol grandes e redondos no rosto.

— Bom, espero que não esteja cansada amanhã — diz Eric, do outro lado. — Tem tantas coisas que eu quero fazer. Não venho para Los Angeles desde que meus pais se divorciaram.

— Pois é. É a minha primeira vez aqui em dois anos — afirma Dahlia.

Um adolescente pula na piscina e a água respinga em nós. Ergo as costas da espreguiçadeira e agito a revista que estava lendo para tirar as gotas. Ponho os óculos escuros no alto da cabeça. Jogo as pernas para o lado e fico de pé.

— Acho que vou voltar para o quarto e tirar uma soneca — anuncio, pegando minha bolsa do chão.

Eric se ergue também e tira os óculos escuros.

— Se quiser, vou com você — oferece ele.

Agito a mão para ele, pedindo que não se levante.

— Não, fica aí e faz companhia para a Dahlia — sugiro, ajeitando a bolsa no ombro. Abaixo os óculos escuros de novo para que ele não perceba minha mentira.

— Tem certeza de que você está bem? — pergunta Dahlia. — Sarai, você está de férias, lembra? Veio para cá se divertir, não para cochilar.

— Acho que vou estar cem por cento amanhã. Só preciso de um banho quente e demorado e de uma boa noite de sono.

— Ok, vou acreditar — diz Dahlia. — Mas nem vem com doença para o meu lado. — Ela aponta o dedo para mim, com ar severo.

Eric fecha os dedos em torno do meu pulso e me puxa para perto.

— Tem certeza de que não quer que eu vá? — Ele me beija e eu correspondo antes de me levantar de vez.

— Tenho — respondo, baixinho, e saio na direção do elevador.

Assim que entro no quarto, tranco a porta com a corrente para que Eric e Dahlia não entrem de surpresa, jogo a bolsa no chão e abro meu laptop, digitando a senha. Enquanto o laptop inicia, olho pela janela e vejo meus amigos, figuras pequenas daquela distância, ainda à beira da piscina. Eu me sento diante da tela e, provavelmente pela centésima vez, olho cada página do site do restaurante de Hamburg, verificando de novo o horário de funcionamento e passando os olhos pelas fotos profissionais do lugar, dentro e fora. Na verdade, nada disso me ajuda muito com o que pretendo fazer, mas olho tudo de novo todo dia, de qualquer maneira.

Derrotada, bato a palma da mão com força no tampo da mesa.

— Droga! — exclamo, desabando na poltrona enquanto passo as mãos pelo cabelo.

Ainda não sei como vou conseguir ficar a sós com Hamburg sem ser vista. Sei que estou dando um passo maior do que a perna. Sei disso desde que tive essa ideia maluca, mas também sei que, se ficar apenas pensando a respeito, nunca vou passar dessa fase.

Vim para cá com um plano: entrar disfarçada no restaurante e agir como qualquer outro cliente. Sondar o lugar por uma noite. Saber onde ficam as saídas. As entradas para outras partes do prédio. Os banheiros. Minha prioridade número um, contudo, é encontrar a sala de onde Hamburg observa do alto seus clientes e ouve a conversa deles pelo minúsculo microfone escondido no arranjo de cada mesa. Então pretendo me enfiar na sala e cortar a garganta daquele porco.

Contudo, agora que estou aqui, a menos de seis quadras do restaurante, e agora que o tempo está passando tão depressa, estou menos confiante. Isso não é um filme. Sou uma idiota por achar que posso adentrar um lugar desses sem ser vista, tirar a vida de um homem sem chamar atenção e fugir sem ser capturada.

Apenas Victor conseguiria fazer algo assim.

Bato no tampo da mesa de novo, mais de leve desta vez, fecho o laptop e me levanto. Ando de um lado para outro no carpete vermelho e verde. E bem quando resolvo seguir pelo corredor para o quarto separado que reservei sem Dahlia e Eric saberem, a porta se abre um pouco, mas é travada pela corrente.

— Sarai? — chama Dahlia do outro lado. — Vai deixar a gente entrar?

Suspiro fundo e destranco a porta.

— Por que a corrente? — pergunta Eric, entrando atrás de Dahlia.

— Força do hábito.

Eu me jogo na ponta da cama king-size.

Os dois deixam suas coisas no chão. Dahlia se senta à mesa, ao lado da janela, e Eric se deita atravessado na cama ao meu lado, cruzando as pernas na altura dos calcanhares.

— Pensei que você ia tirar uma soneca — diz Dahlia.

Ela passa os dedos com cuidado pelo cabelo úmido, fazendo caretas quando se depara com alguma mecha mais embaraçada.

— Dahlia — digo, olhando para os dois. — Eu subi agora há pouco. Pensei que vocês iam ficar na piscina mais um tempo.

Espero ter conseguido disfarçar o aborrecimento na minha voz por eles terem vindo me encontrar tão cedo. Não consigo evitar: estou estressada demais, além de preocupada com a simples presença dos dois aqui comigo. Não quero que eles se machuquem nem que se envolvam de forma alguma com meu motivo para estar aqui.

— A gente pode sair e deixar você sozinha, se quiser — sugere Eric, baixinho, atrás de mim.

Eu me arrependo na mesma hora do que disse, porque é óbvio que não disfarcei o aborrecimento tão bem quanto esperava.

Inclino a cabeça para trás e suspiro, esticando o braço para tocar o tornozelo dele.

— Desculpa — digo, sorrindo para Dahlia. — Sabe, eu... — Então, de repente, uma desculpa perfeitamente plausível para o modo como tenho agido surge na minha cabeça, e a torneira das mentiras se abre. — Eu só fico meio nervosa por estar de volta a Los Angeles.

Dahlia faz cara de “ah, entendi”, empurra os pés de Eric para o lado e se senta perto de mim. Ela passa o braço por cima dos meus ombros e segura meu antebraço.

— Imaginei que o problema fosse esse.

Percebo que ela olha de relance para Eric e tenho a impressão de que foi sobre isso que os dois falaram enquanto ficaram na piscina, depois que fui embora.

Aposto que também foi por isso que decidiram subir tão cedo para me ver.

— A gente queria ver como você estava — acrescenta Eric atrás de mim, confirmando minha suspeita.

Sinto a cama se mexer quando ele se senta.

Eu me levanto antes que ele consiga me abraçar. É nesse exato momento que me dou conta de como tenho feito isso com frequência no último mês. Não sei por quanto tempo mais vou conseguir enganá-lo. Sei que deveria simplesmente contar o que sinto, que não gosto tanto de Eric quanto ele gosta de mim. Mas não consigo dizer a verdade. Eu precisaria inventar mais uma mentira, e estou tão atolada em mentiras que me sinto afogada nelas.

Ao mesmo tempo, deixei nossa relação durar tanto porque eu queria de verdade sentir por ele algo tão profundo quanto o que ele parece sentir por mim. Queria seguir em frente, esquecer Victor e ser feliz com a vida que ele me deixou.

Mas não consigo. Não consigo mesmo...

— Ele nem vai saber que você está aqui — diz Eric sobre “Matt”. — Além disso, mesmo que ele descobrisse, eu ia encher o cara de porrada assim que o visse.

Esboço um sorriso para Eric.

— Eu sei que você faria isso — digo, mas me sinto ainda pior, porque os únicos dois amigos que tenho no mundo não fazem nem ideia de quem sou.

Cruzo os braços, vou até a janela e olho para fora.

— Sarai — chama Dahlia. — Não queria dizer isso, mas, se você está tão preocupada com a possibilidade de Matt descobrir que você está em Los Angeles, acho que não é boa ideia visitar seus amigos aqui.

— Eu sei, você tem razão. Sei que eles não contariam para Matt, mas acho que é melhor eu ficar só com vocês dois enquanto estivermos aqui.

Eu me viro para encará-los.

— É um bom plano — diz Eric, com um sorriso radiante.

É um bom plano, com certeza, porque agora não preciso mais inventar outra desculpa para não apresentar os dois aos meus amigos que não existem.

Dahlia se aproxima de mim.

— A gente devia ter ido para a Flórida ou algum lugar assim, hein?

Olho pela janela de novo.

— Não — respondo. — Adoro esta cidade. E sei que vocês queriam muito vir para cá. — Dou um sorriso rápido. — Sugiro que a gente curta ao máximo esta semana.

Ela me empurra com o ombro de brincadeira.

— Essa é a Sarai que eu conheço — diz Dahlia, sorrindo.

É, só que não sou essa pessoa...

Ela vai até Eric e o puxa pelo braço, levantando-o da cama.

— Vamos sair daqui e deixar a mocinha descansar.

Eric se levanta e se aproxima de mim. Então pega meus braços e me vira para encará-lo. Com aqueles olhos azul-bebê, ele faz a melhor expressão amuada que consegue.

— Se precisar de mim para qualquer coisa, pode me chamar que eu venho.

Concordo com a cabeça e lhe ofereço um sorriso sincero. Ele merece, por ser tão legal comigo.

— Pode deixar.

Então eu os empurro porta afora com as duas mãos.

— Eu diria para vocês não se divertirem muito sem mim, mas isso seria pedir demais.

Dahlia ri baixinho ao sair para o corredor.

— Não, não é pedir muito. — Ela levanta dois dedos. — Palavra de escoteiro.

— Acho que não é assim que se faz, Dahl — diz Eric.

Ela faz um gesto para dispensar as palavras dele.

— Trate de dormir — sugere Dahlia. — Porque amanhã você vai precisar estar novinha em folha.

— De acordo — digo, assentindo.

— Tchau, amor — diz Eric antes de eu fechar a porta.

Fico com as costas apoiadas na porta e solto um suspiro longo e profundo.

Fingir é difícil demais. Bem mais difícil do que simplesmente ser eu mesma, por mais anormal e imprudente que eu seja.

— Eu sei o que preciso fazer — digo em voz alta.

Falar sozinha é minha nova mania, porque me ajuda a visualizar e entender melhor as coisas.

Volto para a janela e olho a cidade de Los Angeles, com os braços cruzados.

— Preciso de um disfarce, mas não para me esconder de Hamburg. Só das câmeras e de qualquer outra pessoa. Eu quero que Hamburg me veja. Só assim vou conseguir entrar.


CAPÍTULO TRÊS

Sarai

Dahlia e Eric só voltam para o quarto algumas horas mais tarde, depois de escurecer. Eu já tinha tomado banho, vestido short e camiseta e deixado a luz apagada para parecer que estava dormindo. Assim que ouvi o cartão passando pela porta, pulei na cama e me espalhei pelo colchão, como sempre faço quando durmo de verdade. Eric entrou na ponta dos pés, tentando não “me acordar”, mas me virei, soltei um resmungo e abri os olhos para mostrar que acordei. Ele pediu desculpas e perguntou se eu queria ir com ele e Dahlia a uma boate ali perto, insistindo que, se eu não fosse, ele também não iria. Mas logo rejeitei essa ideia. Percebi que ele queria muito ir e não posso culpá-lo: se eu estivesse no lugar dele, não iria querer ficar em um quarto escuro de hotel às oito da noite de uma sexta-feira, em uma das cidades mais animadas dos Estados Unidos.

Eric e Dahlia saírem era exatamente do que eu precisava. Passei aquelas duas horas inteiras tentando inventar uma desculpa para explicar a eles por que eu ia sair, aonde iria e por que eles não poderiam ir junto.

Eles resolveram isso para mim.

Minutos após Eric sair do quarto, espero Dahlia — em seu próprio quarto, ao lado do nosso — tirar o biquíni e se vestir. Pelo olho mágico da minha porta, eu os vejo indo embora pelo corredor. Conto até cem enquanto ando de um lado para outro sem parar. Então pego minha bolsa e vou até a porta. Ando depressa pelo corredor na direção oposta e chego ao quarto secreto, do outro lado do prédio.

Com certa paranoia de ser flagrada, vasculho minha bolsa e encontro tudo, menos a chave do quarto. Enfim consigo senti-la entre os dedos e me apresso para entrar, travando a porta com a corrente. Abro a mala ao pé da cama e tiro minha peruca curta platinada, passando os dedos para ajeitar as mechas desalinhadas, e então a deixo sobre o abajur ao lado para que não perca a forma.

Visto um Dolce & Gabbana curtinho e me maquio com cores escuras e pesadas, o que, depois de passar um tempão praticando em casa, faço bem. Então calço as sandálias de salto alto. Andar de salto é outra coisa que passei muito tempo tentando aprender. Meu alter ego, Izabel Seyfried, saberia andar de salto e o faria bem. Por isso, eu precisava acompanhar.

Em seguida, molho o cabelo e o divido em duas partes atrás. Enrolo cada metade e cruzo uma sobre a outra na nuca. Vários grampos depois, meu longo cabelo castanho está bem preso no couro cabeludo. Visto a touca da peruca e depois a própria peruca, ajustando-a por muito tempo até deixar tudo perfeito.

Por fim, prendo uma bainha de punhal em torno da coxa e a cubro com o tecido do vestido.

Fico de pé diante do espelho de corpo inteiro e me avalio de todos os ângulos possíveis. Estar loura é estranho. Satisfeita, pego a bolsinha preta e a enfio debaixo do braço, com a pequena pistola formando certo volume nela. Estico o braço para girar a maçaneta, mas deixo minha mão cair junto ao corpo.

“Que droga eu estou fazendo?”

O que precisa ser feito.

“E por que eu estou fazendo isso?”

Porque preciso.

Não consigo tirar da cabeça as coisas que aquele homem confessou, as pessoas que matou por causa de um fetiche sexual doentio. Todas as noites desde que Victor me deixou, quando fecho os olhos, vejo o rosto de Hamburg e aquele sorriso de gelar o sangue que ele abriu quando me curvei sobre a mesa, exposta na frente dele. Vejo o rosto de sua esposa, esquelético e combalido, seus olhos fundos turvados pela resignação. Ainda sinto até o fedor da urina que secou em suas roupas e no catre infestado onde ela dormia, naquele quarto escondido.

Meu peito se enche de ar e eu o prendo por vários segundos, antes de soltar um longo suspiro.

Não posso esquecer. A necessidade de matá-lo é como uma coceira no meio das costas. Não posso alcançar naturalmente, mas vou me curvar e torcer os braços até doerem para coçar.

Não posso esquecer...

E talvez... só talvez também acabe chamando a atenção de um certo assassino que não consigo me obrigar a esquecer.

Assim que passo pela porta, deixo Sarai para trás e me torno Izabel por uma noite.

Por não ter pensado de antemão na importância de ao menos alugar um carro chique, salto do táxi a duas quadras do restaurante e ando o resto do caminho. Izabel jamais seria vista andando de táxi.

— Mesa para um? — pergunta o recepcionista assim que entro no restaurante.

Inclino a cabeça e olho para ele com um ar irritado.

— Algum problema? Não posso fazer uma refeição sozinha? Ou você está dando em cima de mim? — Abro um sorrisinho e inclino a cabeça para o outro lado. Ele está ficando nervoso. — Você gostaria de jantar comigo... — olho para o nome bordado no paletó — ... Jeffrey? — Chego mais perto. Ele dá um passo constrangido para trás.

— Hã... — Ele hesita. — Peço desculpas, senhora...

Recuo, trincando os dentes.

— Nunca me chame de senhora — digo com rispidez. — Me leve até uma mesa. Para um.

Ele assente e pede que eu o siga. Quando chego à minha mesinha redonda com duas cadeiras, no meio do restaurante, me sento e deixo a bolsa ao lado. Um garçom se aproxima quando o recepcionista se afasta e me apresenta a carta de vinhos. Eu a rejeito com um movimento dos dedos.

— Quero apenas água com uma rodela de limão.

— Pois não, senhora — diz ele, mas deixo passar.

Enquanto o garçom se afasta, começo a examinar o lugar. Há uma placa indicando a saída à minha esquerda, bem longe, perto do corredor. Há outra à minha direita, próxima à escada que leva para o segundo piso. O restaurante está praticamente igual à primeira vez que vim: escuro, não muito cheio e bastante silencioso, embora desta vez eu ouça jazz baixinho vindo de algum lugar. Ao observar o recinto, paro de repente ao ver a mesa à qual me sentei com Victor quando vim com ele, meses atrás.

Eu me perco na memória, vendo tudo exatamente como aconteceu. Quando olho para as duas pessoas sentadas no outro lado do salão, só consigo me ver com Victor:

— Venha cá — diz ele, em um tom de voz mais delicado.

Deslizo os poucos centímetros que nos separam e me sento encostada a ele.

Seus dedos dançam pela minha nuca quando ele puxa minha cabeça para perto de si. Meu coração bate descompassado quando ele roça os lábios na lateral do meu rosto. De repente, sinto sua outra mão entrando pelo meio das minhas coxas e subindo por baixo do vestido. Minha respiração para. Devo abrir as pernas? Devo ficar imóvel e travá-las? Sei o que quero fazer, mas não sei o que devo fazer, e minha mente está a ponto de desistir.

— Tenho uma surpresa para você esta noite — murmura ele no meu ouvido.

Sua mão se aproxima mais do calor no meio das minhas pernas.

Gemo baixinho, tentando não deixar que ele perceba, embora tenha certeza absoluta de que percebeu.

— Que tipo de surpresa? — pergunto, com a cabeça inclinada para trás, apoiada em sua mão.

— Vai querer algo mais? — Ouço uma voz, e sou arrancada do meu devaneio.

O garçom está segurando o cardápio. Minha água com uma rodela de limão na borda do copo já está diante de mim.

Um pouco confusa de início, apenas assinto, mas faço que não em seguida.

— Ainda não sei — respondo, enfim. — Deixe o cardápio. Talvez eu peça mais tarde.

— Pois não — diz o garçom.

Ele deixa o cardápio na mesa e vai embora.

Olho para a varanda e para as mesas encostadas no balaústre requintado. Onde Hamburg pode estar? Sei que ele está no andar de cima porque Victor disse que ele ficava por lá. Mas onde? Eu me pergunto se ele já me viu, e no mesmo instante meu estômago se embrulha de nervoso.

Não, não posso parecer nervosa.

Endireito as costas na cadeira e tomo um gole da água. Deixo o dedo mindinho levantado, o que me faz parecer muito mais rica, ou apenas mais esnobe. Fico observando os clientes indo e vindo, escuto sua conversa supérflua e me pego imaginando qual dos casais que estão ali poderia acabar na mansão de Hamburg no fim de semana, ganhando muito dinheiro para deixar que ele os veja foder.

Então olho para o arranjo de flores vermelhas em um pequeno vaso de vidro no centro da minha mesa. Pego o celular na bolsa, finjo digitar um número e o coloco perto do ouvido, para que ninguém ache que estou falando sozinha.

— Este recado é para Arthur Hamburg — digo em voz baixa, inclinando-me um pouco para a frente a fim de que o microfone escondido no vaso de flores capte minha voz. — Com certeza você se lembra de mim, não é? Izabel Seyfried. Há quanto tempo, não?

Com cuidado, olho para os lados, esperando ver um ou dois homens parrudos de terno se aproximando de mim com armas em punho.

— Não estou sozinha — continuo —, por isso nem pense em fazer alguma idiotice. A gente precisa conversar.

Olhando para a varanda acima de mim, tento descobrir onde ele pode estar, torcendo para que esteja ali. Alguns minutos tensos se passam, e, quando começo a pensar que a noite foi em vão e que eu estava mesmo falando sozinha, noto um movimento no piso superior, logo acima da saída à minha direita. Meu coração bate forte quando vejo a figura alta e escura sair das sombras e descer a escada.

Eu me lembro desse homem de ombros largos, cabelo grisalho e uma covinha no meio do queixo. É o gerente do restaurante, Willem Stephens, que já encontrei aqui uma vez.

Ele se aproxima da minha mesa sem expressar nenhuma emoção, com as mãos enormes cruzadas à frente, as costas retas, o queixo anguloso imóvel.

— Boa noite, srta. Seyfried. — A voz dele é profunda e sinistra. — Posso perguntar onde está seu dono?

Levanto os olhos para encará-lo, dou um sorrisinho, tomo um gole da minha água e devolvo o copo à mesa, sem pressa. Cada fibra do meu ser está gritando, dizendo como fui idiota em vir até aqui. Por mais que eu saiba que é verdade, não importa. Não é o medo que me faz tremer por dentro, é a adrenalina.

— Victor Faust não é meu dono — explico, com calma. — Mas ele está aqui. Em algum lugar. — Um sorriso tênue e dissimulado toca meus lábios.

Os olhos de Stephens percorrem o salão sutilmente e voltam a me encarar.

— Por que está aqui? — pergunta ele, perdendo um pouco o ar de gerente sofisticado.

— Tenho negócios a discutir com Arthur Hamburg — respondo, confiante. — É do maior interesse dele marcar um encontro privado comigo. Aqui. Hoje. De preferência agora.

Tomo outro gole.

Noto que o pomo de adão de Stephens se move quando ele engole em seco, bem como os contornos de seu queixo quando ele cerra os dentes. Ele olha para o lugar de onde veio, no andar de cima, e percebo um aparelhinho preto escondido em seu ouvido esquerdo. Parece que ele está ouvindo alguém falar. Eu chutaria que é Hamburg.

Ele me encara de novo, com os olhos escuros e cheios de ódio, mas mantém o semblante inexpressivo com a mesma perfeição de Victor.

Ele descruza os braços, estende a mão direita para mim e diz:

— Por aqui.

Ele só deixa os braços penderem, relaxados, quando me levanto. Sigo Stephens pelo restaurante e escada acima, para o piso da varanda.

Apenas duas coisas podem acontecer: ou esta será minha primeira noite como assassina ou a última da minha vida.


CAPÍTULO QUATRO

Sarai

— Se encostar em mim — digo para o guarda-costas de terno à porta da sala particular de Hamburg —, enfio suas bolas em um moedor de carne.

As narinas do segurança se dilatam e ele olha para Stephens.

— Você solicitou uma reunião com o sr. Hamburg — diz Stephens atrás de mim. — É claro que vamos revistá-la antes para verificar se está armada.

Droga!

Calma. Fique calma. Faça o que Izabel faria.

Respiro fundo, encarando-os com desprezo e um ar ameaçador. Então jogo minha bolsinha preta no segurança. Ele pega a bolsa quando ela bate em seu peito.

— Acho que está bem claro que eu não conseguiria esconder uma arma em um vestido como este, a menos que a enfiasse na boceta — digo, olhando para Stephens. — Minha arma está na bolsa. Mas nem pense em tocar...

— Deixem a moça entrar — ordena da porta uma voz familiar.

É Hamburg, ainda balofo e grotesco como antes, usando um terno imenso que parece em vias de estourar se ele respirar fundo demais.

Abro um leve sorriso para o segurança, que me encara com olhos assassinos. Conheço esse olhar, até demais. O homem tira a pistola e me devolve a bolsa.

— Sr. Hamburg — diz Stephens —, eu deveria ficar na sala com o senhor.

Hamburg balança a papada, rejeitando a sugestão.

— Não, vá cuidar do restaurante. Se essas pessoas tivessem vindo me matar, não seriam tão óbvias. Eu vou ficar bem.

— Pelo menos deixe Marion à porta — sugere Stephens, olhando para o guarda-costas.

— Sim — concorda Hamburg. — Você fica aqui. Não deixe ninguém interromper nossa... — diz ele, me olhando com frieza — reunião, a menos que eu peça. Se em algum momento você não ouvir minha voz por mais de um minuto, entre na sala. Como precaução, é claro.

Ele abre um sorrisinho para mim.

— É claro. — Imito Hamburg e sorrio também.

Ele dá um passo para o lado e me convida a entrar.

— Pensei que isso tivesse acabado, srta. Seyfried.

Hamburg fecha a porta.

— Sente-se — pede ele.

A sala é bem grande, com paredes lisas e arredondadas, sem cantos, de um lado a outro. Uma série de grandes quadros retratando o que parece ser cenas bíblicas rodeia uma grande lareira de pedra. Cada imagem é emoldurada em uma caixa de vidro, com luzes na parte de baixo. A sala é pouco iluminada, como o restaurante, e o cheiro é de incenso ou talvez de óleo aromático de almíscar e lavanda. Na parede à minha esquerda, há uma porta aberta que leva a outra sala, onde a luz cinza-azulada de várias telas de TV brilha nas paredes. Chego mais perto para me sentar na poltrona de couro com encosto alto diante da escrivaninha e espio dentro da saleta. É como eu imaginava. As telas mostram várias mesas do restaurante.

Hamburg fecha essa porta também.

— Não, está longe de acabar — respondo, enfim.

Cruzo as pernas e mantenho a postura ereta, o queixo levantado com ar confiante e os olhos em Hamburg, enquanto ele atravessa a sala na minha direção. Puxo a barra do vestido para cobrir completamente o punhal preso na coxa. Minha bolsa está no meu colo.

— Vocês já tiraram minha esposa de mim. — A indignação transparece na voz dele. — Não acham que foi o suficiente?

— Infelizmente, não. — Abro um sorriso malicioso. — Não foi o suficiente para você e sua esposa tirarem uma vida? Não, não foi — respondo por ele. — Vocês tiraram muitas vidas.

Hamburg morde o interior da bochecha e se senta atrás da escrivaninha, de frente para mim. Ele apoia as mãos gordas sobre o tampo de mogno. Percebo quanto ele quer me matar ali mesmo onde estou. Mas não fará isso porque acredita que não estou sozinha. Ninguém em sã consciência faria algo assim, vir até aqui sozinha, inexperiente e desprevenida.

Ninguém, a não ser eu.

Preciso garantir que ele continue acreditando que tenho cúmplices até descobrir como vou matá-lo e sair da sala sem ser pega. O pedido de Hamburg para que o guarda-costas entrasse na sala depois de um minuto sem ouvir sua voz pôs mais um obstáculo no plano que, na verdade, nunca tive de fato.

— Bem, devo dizer uma coisa — diz Hamburg, mudando de tom. — Você é deslumbrante com qualquer tipo de peruca. Mas admito que prefiro a morena.

Ele acha que meu cabelo castanho-avermelhado era uma peruca. Ótimo.

— Você é doente. Sabe disso, certo? — Tamborilo com as unhas no braço da poltrona.

Hamburg abre um sorriso medonho. Estremeço por dentro, mas mantenho a compostura.

— Eu não matei aquelas pessoas de propósito. Elas sabiam no que estavam se metendo. Sabiam que, no calor do momento, alguém poderia perder o controle.

— Quantas?

Hamburg estreita os olhos.

— O que importa isso, srta. Seyfried? Uma. Cinco. Oito. Por que não diz logo o motivo da sua visita? Dinheiro? Informação? A chantagem assume muitas formas, e não seria a primeira vez que enfrento uma. Sou um veterano.

— Fale sobre a sua esposa — peço, ganhando tempo e fingindo ainda ser quem dá as cartas. — Antes de “ir direto ao assunto”, quero entender sua relação com ela.

Uma parte de mim quer saber de verdade. E estou incrivelmente nervosa; sinto um enxame zumbindo no meu estômago. Talvez jogar conversa fora ajude a acalmar minha mente.

Hamburg inclina a cabeça para o lado.

— Por quê?

— Apenas responda à pergunta.

— Eu a amava muito — responde ele, relutante. — Ela era a minha vida.

— Aquilo é amor? — pergunto, incrédula. — Você manchou a memória dela ao dizer que ela era uma viciada em drogas que se suicidou, só para salvar a própria pele, e chama isso de amor?

Noto uma luz se movendo no chão, por baixo da porta da sala de vigilância. Não havia ninguém lá dentro antes, ao menos que eu tivesse visto.

— Como a chantagem, o amor assume muitas formas. — Hamburg apoia as costas na poltrona de couro, que range, cruzando os dedos roliços sobre a enorme barriga. — Mary e eu éramos inseparáveis. Não éramos como outras pessoas, outros casais, mas o fato de sermos tão diferentes não significava que nos amávamos menos do que os outros. — Os olhos dele cruzam os meus por um momento. — Tivemos sorte por encontrar um ao outro.

— Sorte? — pergunto, pasma com o comentário. — Foi sorte duas pessoas doentes se encontrarem e se unirem para fazer coisas doentias com os outros? Não entendo.

Hamburg balança a cabeça como se fosse um velho sábio e eu fosse jovem demais para entender.

— Pessoas diferentes como Mary e eu...

— Doentes e dementes — corrijo. — Não diferentes.

— Chame como quiser — diz ele, com ar de resignação. — Quando você é tão diferente assim da sociedade, do que é aceitável, encontrar alguém como você é algo muito raro.

Sem perceber, cerro os dentes. Não porque Hamburg esteja me irritando, mas porque nunca imaginei que esse homem nojento pudesse me dizer qualquer coisa que me fizesse pensar na minha situação com Victor, ou qualquer coisa que eu pudesse entender.

Afasto esse pensamento.

A luz fraca sob a porta da sala de vigilância se move de novo. Finjo não ter notado, sem querer dar a Hamburg qualquer motivo para achar que estou pensando em outra saída.

— Vim aqui saber nomes — digo de repente, sem ter pensado bem a respeito.

— Que nomes?

— Dos seus clientes.

Algo muda nos olhos de Hamburg, ele vai tomar o controle da situação.

— Você quer os nomes dos meus clientes? — pergunta ele, desconfiado.

Que merda...

— Pensei que você e Victor Faust já estivessem de posse da minha lista de clientes.

Continue séria. Não perca a compostura. Merda!

— Sim, estamos, mas me refiro àqueles que você não mantinha nos registros.

Acho que vou vomitar. Parece que minha cabeça está pegando fogo. Prendo a respiração, torcendo para ter me livrado dessa.

Hamburg me examina em silêncio, vasculhando meu rosto e minha postura em busca de qualquer sinal de autoconfiança abalada. Ele coça o queixo gordo e cheio de dobras.

— Por que você acha que existe uma lista fantasma?

Suspiro meio aliviada, mas ainda não estou fora de perigo.

— Sempre existe uma lista fantasma — afirmo, embora não faça nem ideia do que estou dizendo. — Quero pelo menos três nomes que não estejam no registro que nós temos.

Sorrio, sentindo que recuperei o controle da situação.

Até ele falar:

— Diga você três nomes da lista que já tem, e eu dou o que você quer.

É oficial: perdi o controle.

Engulo em seco e me controlo antes de parecer “pega no flagra”.

— Você acha que eu carrego a lista na bolsa? — pergunto com sarcasmo, tentando continuar no jogo. — Nada de negociações ou meios-termos, sr. Hamburg. O senhor não está em condições de fazer nenhuma barganha.

— É mesmo? — pergunta ele, sorrindo.

Ele suspeita de mim. Posso sentir. Mas vai garantir que está certo antes de dar o bote.

— Isso não está em discussão. — Eu me levanto da poltrona de couro, enfiando a bolsa debaixo do braço, mais frustrada do que antes por ter que entregar minha arma.

Pressiono os dedos na escrivaninha de mogno, apoiando meu peso neles ao me curvar um pouco na direção de Hamburg.

— Três nomes, ou saio daqui e Victor Faust entra para espalhar os seus miolos naquele belo quadro do menino Jesus atrás de você.

Hamburg ri.

— Esse não é o menino Jesus.

Ele se levanta junto comigo, alto, enorme e ameaçador.

Enquanto vasculho minha mente e tento entender como ele descobriu que sou uma farsante, Hamburg se adianta e anuncia seu raciocínio como um chute na minha boca.

— É engraçado, Izabel, você vir aqui pedir nomes que não aparecem em uma lista que você... — diz, apontando para a minha bolsa — ... nem carrega consigo, porque como você saberia que os nomes que eu daria não estão nela?

Estou muito ferrada.

— Vou dizer o que eu acho — continua ele. — Acho que você veio aqui sozinha por causa de alguma vingança contra mim. — Ele balança o indicador. — Porque eu me lembro de cada detalhe da porra daquela noite. Cada merda de detalhe. Especialmente a sua expressão quando percebeu que Victor Faust tinha vindo matar minha esposa em vez de mim. Era a expressão de alguém pega de surpresa, que não fazia ideia de por que estava ali. Era a expressão de alguém que não está familiarizada com o jogo.

Ele tenta sorrir com gentileza, como se quisesse demonstrar alguma espécie de empatia pela minha situação, mas o que leio em seu rosto é cinismo.

— Acho que, se houvesse mais alguém aqui com você, ele já teria aparecido para salvá-la, porque é óbvio que você está ferrada.

A porta do quarto principal se abre, o guarda-costas entra e a tranca. Por uma fração de segundo, tive a esperança de que fosse Victor vindo me salvar na hora certa. Mas foi só um desejo. O guarda-costas me olha com desprezo. Hamburg acena para ele, que começa a tirar o cinto.

Meu coração afunda até o estômago.

— Sabe — diz Hamburg, dando a volta na escrivaninha —, na primeira vez que a gente se viu, lembro que fiz um acordo com Victor Faust. — Ele aponta para mim. — Você se lembra disso, não?

Hamburg sorri e apoia a mão gorda nas costas da poltrona na qual eu estava sentada, virando-a para mim.

Todo o meu corpo está tremendo; parece que o sangue que passa pelas minhas mãos virou ácido. Ele corre pelo meu coração e pela minha cabeça tão rápido que quase desmaio. Começo a tentar alcançar meu punhal, mas eles estão perto demais, aproximando-se pelos dois lados. Não tenho como enfrentar os dois ao mesmo tempo.

— Como assim? — pergunto, tropeçando nas palavras, tentando ganhar um pouco de tempo.

Hamburg revira os olhos.

— Ora, por favor, Izabel. — Ele gira um dedo no ar. — Apesar do que aconteceu naquela noite, fiquei decepcionado de verdade por vocês dois irem embora antes de cumprir o acordo.

— Eu diria que, em vista do que aconteceu, o acordo não vale mais nada.

Ele sorri para mim e se senta na poltrona de couro. Percebo Hamburg espiar de relance o guarda-costas, dando uma ordem só com o olhar.

Antes que eu consiga me virar, o segurança prende minhas duas mãos nas minhas costas.

— Você vai cometer um erro do caralho se fizer isso! — grito, tentando me livrar das garras do segurança.

Ele me leva à força até uma mesa quadrada e me joga sobre ela. Meus reflexos não são rápidos o suficiente e meu queixo bate no mármore duro. O gosto metálico do sangue enche minha boca.

— Me solte! — Tento chutá-lo. — Me solte agora!

Hamburg ri de novo.

— Vire a cabeça dela para esse lado — ordena ele.

Dois segundos depois, meu pescoço é torcido para o outro lado e mantido ali, minha bochecha esquerda pressionada contra o mármore frio.

— Quero ver a cara dela enquanto você a fode. — Hamburg me olha de novo. — Então vamos continuar do ponto onde paramos naquela noite, tudo bem? Você concorda, Izabel?

— Vai se foder!

— Ah, não, não — diz ele, ainda com o riso na voz. — Não sou eu quem vai foder você. Você não faz o meu tipo. — Seus olhos famintos percorrem o corpo do segurança que está me pressionando por trás.

— Eu vou matar você — digo, cuspindo por entre os dentes. A mão do segurança sobre a minha cabeça impede que eu a mexa. — Vou matar vocês dois! Me estupre! Vamos lá! Mas os dois vão estar mortos antes que eu saia daqui!

— Quem disse que você vai sair daqui? — provoca Hamburg.

O zíper da calça dele está aberto; sua mão direita está parada ao lado da braguilha, como se ele estivesse tentando manter algum autocontrole e não se masturbar ainda.

Então Hamburg acena com dois dedos para o guarda-costas, que me mantém imóvel segurando meus cabelos da nuca.

— Lembre-se disso — diz ele ao segurança. — Ela não vai sair daqui.

Sinto a mão direita do guarda-costas soltar meu cabelo e se mover entre as minhas pernas. Enquanto ele ergue meu vestido, aproveito para alcançar o punhal na minha coxa e tirá-lo da bainha, golpeando atrás em um ângulo desajeitado. O segurança grita de dor e me solta. Puxo o punhal ainda firme na mão, que está coberta de sangue. Ele cambaleia para trás, com a mão na base do pescoço, o sangue jorrando entre seus dedos.

— Sua puta do caralho! — ruge Hamburg, saltando da poltrona e vindo atrás de mim como um elefante descontrolado, a calça caindo de sua cintura flácida.

Corro na direção dele com o punhal levantado e colidimos no meio da sala. Seu peso me joga de bunda no chão e o punhal cai da minha mão, deslizando pelo piso ensanguentado. De pé, Hamburg se abaixa para me segurar, mas me reclino no chão e levanto o pé com toda a força, enfiando o salto da minha sandália na lateral do seu rosto. Ele geme e cambaleia para trás, com a mão na bochecha.

— Eu vou acabar com você! Puta que pariu! — berra ele.

Engatinho na direção do punhal, vendo o segurança no chão, em meio a uma poça de sangue. Ele está engasgando com os próprios fluidos; tentando em vão encher os pulmões de ar.

Pego o punhal com firmeza e rolo no chão enquanto Hamburg se aproxima, derrubando a poltrona de couro. Fico de pé e corro até a mesa, empurrando-a na direção dele. Hamburg tenta tirá-la da frente, mas o móvel balança sobre a base e ele acaba tropeçando. Seu corpo desaba no chão de barriga para baixo e a mesa cai quase na sua cabeça. Salto sobre suas costas e monto em seu corpo obeso. Meus joelhos mal tocam o chão. Agarro seu cabelo, puxo a cabeça dele para trás na minha direção e aperto o punhal em sua garganta, imobilizando-o em segundos.

— Pode me matar! Foda-se! Você não vai sair viva daqui mesmo. — A voz de Hamburg é rouca, sua respiração, rápida e ofegante, como se ele tivesse acabado de tentar correr uma maratona. O cheiro de seu suor e de seu medo invade minhas narinas.

Ocupada com a lâmina em sua garganta, me assusto com o som de batidas fortes na porta. A distração me pega desprevenida. Hamburg consegue se erguer debaixo de mim como um touro, rolando de lado e me derrubando no chão. Deixo cair o punhal em algum lugar, mas não tenho tempo para procurá-lo porque Hamburg consegue se levantar e parte para cima de mim. Ouço a voz de Stephens do outro lado da porta, que vibra com seus socos.

Rolo para sair do caminho antes que Hamburg consiga pular em cima de mim, pego o objeto mais próximo — um peso de papel de pedra, bem pesado, que estava na mesa antes de ser derrubada — e golpeio Hamburg com ele. O som do osso de seu rosto quebrando com o impacto faz meu estômago revirar. Hamburg cai para trás, cobrindo a cara com as mãos.

As batidas na porta ficam mais fortes. Numa fração de segundo, levanto a cabeça e vejo a porta sacudindo com violência no batente. Preciso sair daqui. Agora. Meu olhar varre a sala procurando o punhal, mas não há mais tempo.

Corro para a sala de vigilância, contornando os obstáculos.

Graças a Deus, há outra porta lá dentro. Abro a porta e desço correndo a escada de concreto, torcendo para que seja uma saída e eu não encontre mais ninguém no caminho.


CAPÍTULO CINCO

Sarai

Desço a escada de concreto de dois em dois degraus, segurando no corrimão de metal pintado com as mãos ensanguentadas, até chegar ao térreo. Uma placa vermelha com a palavra SAÍDA está à minha frente. Corro pela passagem mal-iluminada, onde uma lâmpada fluorescente pisca acima de mim e torna o lugar ainda mais ameaçador. Empurro com força a barra da porta com as duas mãos e ela se abre para um beco. Um homem de terno está sentado no capô de um carro, fumando, quando saio para a rua.

Eu fico paralisada.

Ele olha para mim.

Eu olho para ele.

Ele nota o sangue nas minhas mãos e olha de relance para a porta, depois para mim.

— Vá — diz ele, acenando para a caçamba de lixo à minha direita.

Sei que não tenho tempo para ficar confusa nem para perguntar por que ele está me deixando ir embora, mas pergunto assim mesmo.

— Por que você está...?

— Apenas vá!

Ouço passos ecoando na escada atrás da porta.

Lanço um olhar agradecido ao homem e dou a volta na caçamba, desço o beco e me afasto do restaurante. Ouço um tiro segundos depois que dobro a esquina e torço para que seja aquele homem fingindo atirar em mim.

Evito espaços abertos e corro por trás de prédios, protegida pela escuridão, tanto quanto minhas sandálias de salto alto permitem. Quando sinto que estou longe o suficiente para parar um pouco, tento me esconder atrás de outra caçamba e tiro as sandálias. Arranco a peruca loura e a jogo no lixo.

Não consigo respirar. Estou enjoada.

Meu Deus, estou enjoada...

Encosto na parede de tijolos atrás de mim, arqueando as costas e apoiando as mãos nos joelhos. Vomito com violência no chão, meu corpo rígido, o esôfago ardendo.

Pego as sandálias e saio correndo de novo na direção do hotel, tentando esconder o sangue das mãos e do vestido, mas percebo que não é tão fácil. Recebo alguns olhares desconfiados ao passar depressa pela recepção, mas tento ignorá-los e torço para que ninguém chame a polícia.

Em vez de arriscar ser vista por outras pessoas, subo pela escada até o oitavo andar. Quando chego lá, e depois de tudo o que corri, sinto que minhas pernas vão ceder. Encosto na parede e recupero o fôlego, com os joelhos tremendo descontroladamente. Meu peito dói, como se cada respiração trouxesse poeira, fumaça e cacos microscópicos de vidro para o fundo dos pulmões.

O quarto que divido com Eric está trancado e eu não tenho a chave. Aliás...

— Puta merda...

Jogo a cabeça para trás, fecho os olhos e suspiro, arrasada.

Não estou mais com a minha bolsa. Eu a perdi em algum momento da luta na sala de Hamburg. A chave do meu quarto. Meu celular. Minha arma. Meu punhal. Não tenho mais nada.

Bato na porta, mas Eric não está no quarto. Não esperava que estivesse, na verdade, já que não são nem onze da noite. Só para o caso de estar enganada, no entanto, tento o quarto de Dahlia.

— Dahl! Você está aí? — Bato na porta com pressa, tentando não incomodar os outros hóspedes.

Nenhuma resposta.

Já desistindo, jogo as sandálias no chão e apoio as mãos na parede. Minha cabeça desaba. Mas então ouço um clique baixinho e vejo a porta do quarto de Dahlia se abrindo devagar. Levanto a cabeça e a vejo parada ali.

Sem me demorar para questionar a expressão estranha no rosto dela, entro no quarto só para sair do corredor. Eric está sentado na poltrona perto da janela. Noto que seu cabelo está meio bagunçado. O de Dahlia também.

Meu instinto está tentando chamar minha atenção, mas não me importo. Acabei de apunhalar um homem no pescoço e de tentar matar outro. Quase fui estuprada. Estava correndo pelos becos de Los Angeles para fugir de homens armados que vinham atrás de mim. Nada que esses dois façam pode superar isso.

— Meu Deus, Sarai — diz Dahlia, aproximando-se de mim. — Isso é sangue?

A expressão estranha e silenciosa que ela exibia quando entrei no quarto desaparece em um instante quando ela me vê no quarto bem-iluminado. Seus olhos se arregalam, cheios de preocupação.

Eric se levanta da poltrona.

— Você está sangrando. — Ele também me olha de cima a baixo. — O que aconteceu?

Os olhos de Dahlia correm pela minha roupa e pelo meu cabelo preso dentro da touca da peruca.

— Por que... Hã, por que você está vestida assim?

Olho para mim mesma. Não sei o que dizer, então não digo nada. Eu me sinto como um cervo diante dos faróis de um carro, mas minha expressão continua firme e sem emoções, talvez um pouco confusa.

— Você encontrou Matt — acusa Dahlia, começando a levantar a voz. — Puta que pariu, Sarai. Você foi se encontrar com ele, não foi?

Sinto os dedos dela apertando meu antebraço.

Eu me desvencilho de Dahlia e caminho até o banheiro para tirar a touca do cabelo. Enquanto tiro os grampos, noto uma camisinha boiando na privada.

Eric entra no banheiro atrás de mim. Ele sabe que eu vi.

— Sarai, e-eu... Eu sinto muito — diz ele.

— Não se preocupe — respondo, tirando o último grampo e deixando-o na bancada creme.

Passo por Eric e volto para o quarto. Dahlia está me encarando, com o rosto cheio de vergonha e arrependimento.

— Eu...

Ergo a mão e olho para os dois.

— Não, é sério. Não estou brava.

— Como assim? — pergunta Dahlia.

Eric parece agitado. Ele põe a mão na nuca e passa os dedos pelo cabelo.

— Olhe, sem querer ofender — digo a Eric —, mas tenho fingido tudo com você desde a primeira vez que a gente ficou junto.

Ele arregala os olhos, embora tente não deixar que o choque e a mágoa da minha revelação transpareçam demais. Grande parte de mim se sente bem por dizer a verdade. Não por vingança, mas porque eu precisava tirar isso do peito. Mas admito que, depois de descobrir que os dois têm trepado pelas minhas costas, uma pequena parte de mim também fica feliz em magoá-lo. Acho que a vingança sempre encontra um caminho, mesmo nos gestos mais insignificantes.

— Fingido?

— Não tenho tempo para isso — digo, indo na direção da porta. — Vocês dois podem ficar juntos. Não tenho nada contra. Não estou brava, só não me importo mesmo. Preciso ir.

— Espere... Sarai.

Eu me viro para olhar Dahlia. Ela está muito chocada, mal sabe o que pensar. Depois de alguns segundos de silêncio, fico impaciente e a olho com cara de “vai, desembucha”.

— Para você... tudo bem mesmo?

Uau, não sirvo mesmo para o estilo de vida deles. O estilo de vida normal. Nem consigo entender essas coisas de namoro, melhores amigas, infidelidade, competição e joguinhos psicológicos. A cara que eles fazem, tão vazia e mesmo assim tão cheia de incredulidade e dúvida, por causa de uma situação que, para mim, não é tão importante... Tenho coisas mais graves com que me preocupar.

Suspiro, aborrecida com as perguntas vagas e confusas dos dois.

— Sim, por mim, tudo bem — digo, e então me viro para Eric, estendendo a mão. — Preciso da chave do nosso quarto.

Relutante, ele enfia a mão no bolso de trás e pega a chave. Tomo da sua mão, saio dali e vou para o quarto ao lado. Eric vem atrás e tenta falar comigo enquanto guardo minhas coisas na mala.

— Sarai, eu nunca quis...

Eu me viro de repente e o encaro.

— Tudo bem, só vou dizer isto uma vez, depois você muda de assunto ou volta para lá e fica com a Dahlia. Não estou nem aí para o que vocês dois fazem, mas, por favor, não apele para esse clichê de novela de que você nunca quis que isso acontecesse, porque... é muito idiota. — Eu rio baixinho, porque acho idiota mesmo. — Só falta você dizer que o problema não é comigo, é com você. Caramba, você faz ideia do que isso parece? É tão difícil assim acreditar quando digo que não me importo e que estou falando sério? Sem joguinhos. É verdade. — Balanço a cabeça, levanto as mãos e digo: — Não. Me. Importo.

Viro para a mala, fecho o zíper, abro a parte lateral e pego a chave do quarto secreto. Ainda bem que eu tinha uma cópia.

— Preciso ir — digo, andando até a porta e passando por Eric.

— Aonde você vai?

— Não posso contar, mas me escute, Eric, por favor. Se alguém aparecer me procurando, finja que não me conhece. Diga o mesmo para Dahlia. Finjam que nunca me viram na vida. Aliás, quero que vocês dois saiam hoje. Vão para qualquer lugar. Só... não fiquem aqui.

— Você vai me dizer o que aconteceu ou por que está toda ensanguentada? Sarai, você está me deixando assustado pra cacete.

— Eu vou ficar bem — digo, atenuando minha expressão. — Mas prometa que você e Dahlia vão fazer exatamente o que falei.

— Você vai me contar um dia?

— Não posso.

O silêncio entre nós fica mais pesado.

Enfim, abro a porta e saio para o corredor.

— Acho que sou eu quem deveria estar pedindo desculpas.

— Por quê?

Eric fica na porta, com os braços caídos ao lado do corpo.

— Por pensar em outra pessoa durante todo esse tempo em que eu estava com você. — Olho para o chão.

Nós nos encaramos por um breve momento e ninguém diz mais nada. Ambos sabemos que estamos errados. E acho que nós dois estamos aliviados por tudo ter vindo à tona.

Não há mais nada a dizer.

Eu me afasto pelo corredor na direção oposta à do meu quarto secreto e dou a volta por trás, para que Eric não veja aonde estou indo. Quando me tranco no quarto, só consigo desabar na cama. A exaustão, a dor e o choque de tudo o que aconteceu esta noite me atingem em cheio assim que a porta se fecha, e me engolem como uma onda. Eu me jogo de costas no colchão. Minhas panturrilhas doem tanto que duvido conseguir andar sem mancar amanhã.

Fico olhando para o teto escuro até ele desaparecer e eu pegar no sono.


CAPÍTULO SEIS

Sarai

Um tum! pesado me acorda, mais tarde naquela noite. Eu me levanto como uma catapulta.

Vejo dois homens no meu quarto: um desconhecido morto no chão e Victor Faust de pé sobre o corpo dele.

— Levante-se.

— Victor?

Não acredito que ele está aqui. Devo estar sonhando.

— Levante-se, Sarai. AGORA! — Victor me pega pelo cotovelo, me arranca da cama e me põe de pé.

Não consigo nem pegar minhas coisas, ele já está abrindo a porta e me puxando para o corredor com ele, segurando forte a minha mão.

Disparamos juntos pelo corredor e outro homem aparece virando a esquina, de arma em punho. Victor aponta sua 9mm com silenciador e o derruba antes que o cara consiga atirar. Ele passa pelo corpo me puxando, seus dedos fortes afundando na minha mão enquanto corremos para a escada. Ele abre a porta, me empurra para a frente e nós subimos depressa os degraus de concreto. Um andar. Três. Cinco. Minhas pernas estão me matando. Acho que não consigo andar por muito mais tempo. Enfim, no quinto andar, Victor me puxa para outro corredor e rumo a um elevador nos fundos.

Quando as portas do elevador se fecham e estamos só nós dois lá dentro, finalmente tenho a oportunidade de falar.

— Como você sabia que eu estava aqui? — Mal consigo recuperar o fôlego, esgotada pela correria infinita e pela adrenalina, mas acho que sobretudo porque Victor está de pé ao meu lado, segurando minha mão.

Meus olhos começam a arder com as lágrimas.

Engulo o choro.

— O que você estava pensando, Sarai?

— Eu...

Victor segura meu rosto com as duas mãos e me empurra contra a parede do elevador, pressionando ferozmente seus lábios nos meus. Sua língua se entrelaça na minha e sua boca tira meu fôlego em um beijo apaixonado que, enfim, faz meus joelhos cederem. Toda a força que eu estava usando para manter o corpo ereto desaparece quando os lábios dele me tocam. Ele me beija com fome, com raiva, e eu derreto em seus braços.

Então ele se afasta, as mãos fortes nos meus braços, me segurando contra a parede do elevador. Nós nos encaramos pelo que parece ser uma eternidade, nossos olhos paralisados em uma espécie de contemplação profunda, nossos lábios a centímetros de distância. Só quero prová-los de novo.

Mas ele não deixa.

— Responda — exige Victor, estreitando seus olhos perigosos em reprovação.

Já esqueci a pergunta.

Ele me sacode.

— Por que você veio aqui? Tem ideia do que você fez?

Balanço a cabeça em um movimento curto e rápido, parte de mim mais preocupada com seu olhar ameaçador do que com o que ele está dizendo.

A porta do elevador se abre no subsolo e eu não tenho tempo para responder, pois Victor mais uma vez pega minha mão e me puxa para que o siga. Serpenteamos por um grande depósito com caixas em pilhas altas encostadas nas paredes e depois por um longo corredor escuro que leva a um estacionamento. Victor enfim solta minha mão e eu o sigo até um carro parado entre dois furgões pretos com o logotipo do hotel nas laterais. Dois bipes ecoam pelo ambiente e os faróis do carro piscam quando nos aproximamos, iluminando a parede de concreto em frente. Sem perder tempo, me sento no banco do passageiro e fecho a porta.

Segundos depois, Victor está dirigindo casualmente pelo estacionamento até a rua.

— Eu queria que ele morresse — respondo, enfim.

Victor não me olha.

— Bom, você fez um excelente trabalho — rebate ele, sarcástico.

Ele vira para a direita no semáforo, e o carro ganha velocidade quando chegamos à rodovia.

Fico magoada por suas palavras, mas sei que ele tem razão, por isso não discuto. Fiz merda. Uma merda muito grande.

Mas não me dou conta do tamanho dela até Victor dizer:

— Os seus amigos podiam ter morrido. Você podia ter morrido.

Sinto meus olhos se arregalarem além dos limites e me viro mais um pouco para encará-lo.

— Ah, não... Victor, o quê... Eles estão bem?

Sinto que vou vomitar de novo.

Victor me olha por um instante.

— Estão ótimos. O primeiro quarto que os capangas de Hamburg revistaram estava vazio — diz ele, voltando a olhar para a estrada. — Eu cheguei quando eles estavam saindo. Segui um deles até o quarto onde você estava escondida, deixei que ele destrancasse a porta e então ataquei.

As chaves do quarto. Minhas duas chaves extras estavam na bolsa que perdi no restaurante de Hamburg. E os números dos quartos estavam escritos nas capinhas de papel que as protegiam. Eu estava tão preocupada em esconder minha arma e meu punhal que nem pensei em esconder as chaves.

— Merda! — Também olho para a estrada. — E-eu perdi a bolsa no restaurante. As chaves do meu quarto estavam dentro dela. Deixei um rastro para eles seguirem!

Felizmente, eu não tinha uma chave extra do quarto de Dahlia, senão ela e Eric já poderiam estar mortos.

Onde é que eu estava com a cabeça?!

— Não, você deixou literalmente as chaves do seu quarto com o nome do hotel gravado. Sarai, eu devia ter matado você há muito tempo e poupado toda essa confusão para cima de você e de mim.

Eu me viro para encará-lo; a raiva e a mágoa pesando no meu peito.

— Você não está falando sério.

Ele faz uma pausa e me olha. Suspira.

— Não, não estou falando sério.

— Nunca mais me diga isso. Nunca mais me diga uma coisa dessas, ou eu mato você e poupo a mim de toda essa confusão — rebato, desviando o olhar.

— Você não está falando sério — diz Victor.

Olho mais uma vez para aqueles olhos ameaçadores verde-azulados que me fizeram tanta falta.

— Não. Mas acho que isso seria o mais sensato.

— Bom, você não foi a campeã da sensatez hoje, então acho que estou seguro ao menos pelas próximas 24 horas.

Escondo o sorriso.

— Senti sua falta — digo de maneira distante, olhando para a estrada.

Victor não responde, mas admito que seria estranho se respondesse. A despeito de sua falta de emoção, porém, sei que ele também sentiu saudade de mim. Aquele beijo no elevador disse coisas que palavras jamais conseguiriam.

Ele pega uma saída e para o carro debaixo de um viaduto. Puxa o freio de mão e a área ao redor desaparece na escuridão quando ele desliga os faróis.

— O que a gente está fazendo aqui?

— Você precisa ligar para os seus amigos.

— Por quê?

Ele tira um celular do porta-luvas entre nós.

— Mande eles voltarem para o Arizona. Faça ou diga o que for preciso para que eles saiam de Los Angeles. Quanto antes, melhor.

Ele coloca o telefone na minha mão. De início, só olho para o aparelho, mas ele me pressiona com aquele olhar, aquele que grita “vamos lá, faça isso de uma vez”, mas que só alguém como eu, alguém que conhece Victor, seria capaz de notar.

Giro o celular nas mãos, depois o seguro firmemente e digito o número de Eric. Mas então mudo de ideia, desligo no primeiro toque e ligo para Dahlia.

Ela atende no quinto toque.

Respiro fundo e faço o que sei fazer melhor: minto.

— A verdade é que vocês me magoaram. Duvido que um dia eu consiga perdoar você ou Eric pelo que fizeram.

— Sarai... Meu Deus, me desculpe, estou me sentindo muito mal. A gente não queria que isso chegasse a esse ponto. Juro para você. Não sei o que aconteceu...

— Escute, Dahlia, por favor, só me escute.

Ela fica quieta.

Começo a choradeira. Nunca imaginei que eu seria capaz de chorar sob demanda e de forma tão falsa.

— Eu quero acreditar em você. Quero conseguir confiar em você de novo, mas você era minha melhor amiga e me traiu. Preciso de um tempo sozinha e quero que você e Eric voltem para o Arizona. Hoje. Acho que não vou aguentar ver vocês de novo... Espere, onde você está, agora?

Acabo de me dar conta de que, se ela e Eric estiverem no hotel, a essa altura ela já sabe que dois homens foram mortos a tiros no andar do quarto deles.

— A gente está em uma festa em um terraço — conta ela. — T-tudo bem por você? Achei que não tinha nada a ver a gente sair, mas o Eric falou que você insistiu...

— Não, tudo bem — digo, cortando-a. — Insisti mesmo. Onde ele está, agora?

— Deixei Eric lá no terraço para a gente poder conversar. Está muito barulhento lá em cima. Que número é esse de onde você está ligando?

— É o celular de um amigo. Perdi o meu. O Eric por acaso avisou que se alguém procurar por mim...

— Avisou, sim — interrompe Dahlia. — Que confusão é essa, afinal? Meu Deus, Sarai, esquece por um momento esse lance com Eric e me conta o que está acontecendo, por favor. O sangue. As roupas esquisitas que você estava usando e aquele troço na sua cabeça. Era uma touca de peruca? Você está metida em alguma encrenca, eu sei. Sei que você me odeia, e tem todo o direito de odiar, mas, por favor, conte o que aconteceu.

— Não posso contar, porra! — grito, deixando o choro distorcer minha voz. — Caramba, Dahlia, faça o que eu pedi. Pelo menos isso! Você deu para o meu namorado! Por favor, voltem para o Arizona, me deixem esfriar a cabeça e depois eu volto para casa. Talvez aí a gente possa conversar. Mas agora façam o que eu estou pedindo. Tudo bem?

Ela não responde por um momento, e um longo silêncio se forma entre nós.

— Tudo bem — concorda ela. — Vou dizer ao Eric que a gente precisa ir embora.

— Obrigada.

Estou apenas um pouco aliviada. Não vou me sentir bem com isso até saber que eles chegaram em casa sãos e salvos.

Desligo sem dizer mais uma palavra.

— Bom, isso foi bastante convincente — observa Victor, levemente impressionado.

— Acho que foi.

— Eu sei que a sua amiga acreditou — acrescenta ele. — Mas eu não acreditei em uma só palavra.

Eu me viro para ele. Victor me conhece tão bem quanto eu o conheço, parece.

— É porque nem uma palavra era verdade.

Ele deixa por isso mesmo e nós saímos de baixo do viaduto.

Chegamos a uma casa perdida no final de uma estrada isolada nos arredores da cidade, empoleirada no alto de uma colina com uma vista quase perfeita para a cidade lá embaixo. Uma piscina de formato irregular começa no lado esquerdo da casa e serpenteia por trás, a água azul-clara iluminada por lâmpadas submersas parece luminescente. O lugar está silencioso. Só ouço o vento passando pela mata cerrada que contorna o lado direito e os fundos da casa, impedindo uma visão em 360 graus da paisagem iluminada de Los Angeles. Quando nos aproximamos da porta, uma mulher robusta usando uniforme azul de empregada nos recebe. Ela tem cabelo preto encaracolado e pele morena. Suas bochechas são volumosas, envolvendo seus olhos castanho-escuros pequenos e brilhantes, que fitam atentamente Victor e a mim.

— Por favor, entrem — diz ela, com um sotaque hispânico familiar.

A mulher fecha a porta. A casa cheira a limpa-vidro e a uma mistura pouco natural de cheiros adocicados que só pode vir de algum tipo de aromatizador de ambientes artificial. Parece que todas as janelas foram abertas, permitindo que a brisa noturna de verão se espalhasse pela casa. Não se parece em nada com as mansões ricas onde já estive, mas é impecável e aconchegante, e penso que eu deveria pelo menos ter tomado um banho antes de vir. Minha pele e minhas roupas ainda estão manchadas de sangue...

Victor está usando uma calça preta e uma camisa apertada de mangas compridas que adere a cada músculo de seus braços e seu peito, com os punhos desabotoados e arregaçados até os cotovelos. A camisa está por fora da calça e os dois botões de cima estão abertos. Sapatos pretos chiques e informais calçam seus pés. Um relógio brilhante de prata adorna seu pulso direito, e não consigo deixar de notar a solitária veia grossa que percorre as costas de sua mão até o osso de seu pulso. Quando ele segue a empregada pela grande entrada e se vira momentaneamente de costas para mim, vejo o cabo da arma saindo da cintura de sua calça, com a barra da camisa branca enfiada atrás.

Ele me olha, para e estende o braço, em um gesto para que eu ande à sua frente. Tremo de leve quando sua mão toca minhas costas perto da cintura.

Antes que eu tenha tempo de me sentir deslocada ao lado dele, Fredrik, o amigo e cúmplice sueco de Victor que conheci no restaurante de Hamburg há tanto tempo, entra na sala pelas grandes portas de vidro que dão para o quintal dos fundos.


CAPÍTULO SETE

Sarai

— Você chegou cedo — comenta Fredrik com um sorriso mortal, porém inimaginavelmente sexy.

As roupas dele são bem parecidas com as de Victor, mas, em vez de camisa de botão, Fredrik está vestindo uma camiseta branca apertada que adere à sua forma esbelta e máscula. Ele está descalço.

A primeira vez que vi Fredrik, pensei que era impossível haver alguém mais bonito. Com cabelo macio, quase preto, e olhos escuros e misteriosos, suas feições parecem ter sido esculpidas por algum artista famoso. Mas sempre achei que havia algo de sombrio e assustador naquele homem. Um lado dele que eu, particularmente, não faço questão de conhecer. Para mim, basta o jeito como ele era quando nos encontramos: cordial, encantador e misterioso, uma linda máscara que ele usa para esconder a fera que há por trás.

Victor olha para seu relógio caro.

— Só dez minutos mais cedo — comenta ele.

Fredrik sorri ao se aproximar, os dentes brancos reluzindo contra a pele bronzeada.

— Sim, mas você sabe como eu sou.

Victor assente, mas não alonga o assunto. A mim, só resta imaginar o que aquilo significa.

— É bom ver você — diz Fredrik, observando-me do topo de sua altura considerável e presença avassaladora. Ele se inclina, pega minha mão e a beija, logo acima dos nós dos dedos. — Ouvi dizer que você matou um homem hoje.

Ele apruma as costas e solta minha mão. Um sorriso perturbador e orgulhoso surge em seu rosto, os cantos dos olhos se aquecendo com alguma lembrança ou... prazer, como se a ideia de matar alguém o deliciasse de alguma forma.

Olho para Victor à minha direita. Ele assente, respondendo à pergunta estampada no meu rosto. O guarda-costas que apunhalei no pescoço morreu?

Olho para Fredrik e respondo sem rodeios.

— Acho que matei.

Um leve sorriso se abre nos cantos dos lábios de Fredrik, e ele olha de relance para Victor, sem mover a cabeça.

— E você se sente bem com isso? — pergunta Fredrik.

— Para dizer a verdade, sim — respondo sem demora. — O desgraçado mereceu.

Fredrik e Victor parecem envolvidos em algum tipo de conversa secreta. Odeio isso.

Enfim, Fredrik diz para Victor em voz alta:

— Você arrumou sarna para se coçar, Faust.

Ele então se vira de costas para nós e anda na direção das portas de vidro. Nós o seguimos para o lado de fora, passando pela parte coberta do quintal e descendo uma escada de pedra que leva a um enorme pátio, também de pedra, que se abre em todas as direções. O pátio é decorado com mesas e cadeiras de ferro batido e uma cama com dossel ao ar livre.

Eu me sento ao lado de Victor em um sofá.

— Como é que você sabe? — pergunto a Fredrik, mas então me viro para Victor e digo: — E você ainda não me contou como sabia que eu estava aqui.

Na verdade, isso não importa muito, só quero encará-lo nos olhos de novo. Quero ficar sozinha com Victor, mas por enquanto vou precisar me contentar com os 7 centímetros entre nossos corpos, sentados lado a lado.

— Melinda Rochester me contou — explica Fredrik com um sorriso conivente. Começo a perguntar “E quem é Melinda Rochester”, mas ele diz: — Bem, ela contou para todo mundo, na verdade. Noticiário do Canal 7. Um homem morto a punhaladas atrás de um restaurante de Los Angeles.

Começo a me retorcer por dentro. Espero que as câmeras não tenham me mostrado com nitidez.

Eu me viro para Victor, com a preocupação transparecendo no rosto.

— Eu estava de peruca loura — digo, tentando encontrar alguma coisa, qualquer coisa que eu tenha feito certo. — Fiquei com a cabeça baixa... a maior parte do tempo.

Desisto. Sei que o que fiz vai continuar me perseguindo. Suspiro e olho para as mãos ensanguentadas no meu colo.

— E encontrar você foi fácil — continua Victor. — A sra. Gregory me ligou depois que você saiu do Arizona. Ela estava preocupada com a sua vinda para Los Angeles e achou que eu precisava saber.

Viro a cabeça para encará-lo.

— O quê? Dina sabia onde você estava? — Sinto a pele ao redor das sobrancelhas se enrijecendo.

— Não — responde ele, com delicadeza. — Ela não sabia onde eu estava, mas sabia como entrar em contato comigo.

Essas palavras me magoam. Engulo em seco a sensação de ser traída por eles.

— Falei para ela entrar em contato comigo só em caso de emergência — acrescenta Victor. — Caso algo acontecesse com você.

— Você deixou para Dina uma forma de entrar em contato — digo, ríspida —, mas para mim, nada. Não acredito que você fez isso.

— Eu queria que você tocasse a sua vida. Mas, caso os irmãos de Javier descobrissem onde você estava, ou você decidisse fazer uma proeza como a de hoje, eu queria ficar sabendo.

Não consigo olhar para Victor. Tento chegar mais alguns centímetros para o lado a fim de aumentar a distância entre nós. Ainda assim, mesmo que esteja magoada e enfurecida com ele, sinto vontade de me aproximar de novo. Mas me mantenho firme e me recuso a deixá-lo perceber que o poder que ele exerce sobre mim faz a raiva que sinto parecer um chilique.

— Não acredito que Dina escondeu isso de mim — digo em voz alta, ainda que esteja falando mais comigo mesma.

— Ela escondeu de você porque eu disse a ela quanto isso era importante.

— Bom, de qualquer maneira — interrompe Fredrik, sentando-se na poltrona ao lado do sofá —, parece que você se meteu em uma situação da qual não vai conseguir sair tão facilmente, se é que vai conseguir.

— Por que a gente está aqui? — pergunto, aborrecida.

Fredrik ri baixinho.

— Aonde mais você iria?

— Eu precisava tirar você do hotel — explica Victor.

— Espere um pouco. Eu não matei aquele homem atrás do restaurante. Tudo aconteceu na sala particular de Hamburg, no andar de cima.

Recordo o homem que vi do lado de fora, atrás do restaurante, aquele que me deixou fugir, e meu coração afunda.

— Hamburg não deixaria que a polícia acreditasse que o assassinato aconteceu lá dentro, porque eles confiscariam a memória da câmera de vigilância e veriam o que realmente aconteceu.

Não estou entendendo nada. Nadinha.

— Eles não iam querer que a polícia soubesse o que realmente aconteceu?

Fredrik se reclina na poltrona e ergue um pé descalço, apoiando o tornozelo sobre o outro joelho, e estende os braços sobre os da poltrona.

Victor balança a cabeça.

— Preciso mesmo explicar isso para você, Sarai?

Sua vaga irritação me pega de surpresa. Olho para ele e levo alguns segundos para entender tudo sem que ele precise explicar.

— Ah, entendi — digo, olhando um de cada vez. — Hamburg não quer que a polícia se envolva porque corre o risco de se expor. O que ele fez, então? Só levou o corpo para fora? Preparou a situação para parecer um assalto comum? Não muito diferente do que ele fez naquela noite em que a gente estava na mansão dele, imagino.

Paro por aí porque Fredrik está presente. Não sei qual o grau de intimidade entre ele e Victor, nem mesmo se Fredrik sabe o que aconteceu na noite em que Victor matou a esposa de Hamburg.

Os olhos de Victor sorriem de leve para mim: sua maneira de me mostrar quanto lhe agrada eu ter entendido tudo. Ainda fingindo estar aborrecida, não retribuo o olhar da forma que ele deve esperar.

A empregada aparece com um balde chique de gelo, de madeira, com três garrafas de cerveja dentro. Fredrik pega uma, então ela nos oferece. Victor pega uma garrafa, mas recuso, mal conseguindo olhar a mulher nos olhos. Estou absorta demais nos acontecimentos da noite, que não me saem da cabeça.

A empregada vai embora logo depois, sem dizer uma palavra.

— O que você quis dizer com os irmãos de Javier?

Victor abre sua garrafa e a põe na mesa.

— Dois deles, Luis e Diego, assumiram os negócios de Javier dias depois que você o matou.

Por um instante, o rosto de Javier surge em minha mente: sua expressão chocada e ainda orgulhosa, os olhos arregalados, o corpo caindo no chão segundos depois de eu meter uma bala em seu peito.

Afasto a imagem.

Eu me lembro de Luis e Diego. Diego é aquele que tentou me estuprar quando eu estava na fortaleza no México, aquele que Javier castrou como punição.

— Eles estão me procurando?

Victor toma um gole de cerveja e devolve a garrafa à mesa com calma.

— Que eu saiba, não. Estou monitorando a fortaleza há meses. Os irmãos de Javier são amadores. Não têm ideia do que fazer com tanto poder. Duvido até que vejam você como ameaça.

Fredrik toma um gole de cerveja e prende a garrafa entre as pernas.

— Não fique tão aliviada assim — diz ele. — É melhor ser perseguida por amadores do que por Hamburg e aquele braço direito dele.

Um nó nervoso se forma no fundo do meu estômago. Olho de relance para Victor, buscando respostas.

— Willem Stephens — esclarece Victor — faz todo o serviço sujo de Hamburg. Hamburg em si é covarde, tão perigoso quanto o pedófilo gente boa da vizinhança. Mal consegue atirar em um alvo imóvel, e trairia alguém em dois minutos para se salvar. — Ele arqueia uma sobrancelha. — Stephens, por outro lado, tem uma extensa formação militar, é ex-mercenário e trabalhou para uma Ordem do mercado negro em 1986.

— Uma o quê?

— Uma Ordem como a nossa — explica Victor —, mas que aceita contratos particulares. Eles fazem coisas que outros agentes se recusam a fazer, vendem seus serviços basicamente para qualquer um.

— Ah... Então, resumindo, ele mata gente inocente por dinheiro.

Lembro o que Victor me contou, meses atrás, sobre a natureza dos contratos particulares, como pessoas eram assassinadas por motivos fúteis como traição conjugal ou vingança. A Ordem de Victor só trabalha com crime, ameaças sérias a um grande número de pessoas ou ideias que poderiam ter um impacto negativo na sociedade ou na vida como um todo.

Engulo em seco.

— Bom, ele me viu, com certeza. — Levanto as mãos e tiro o cabelo do rosto, passando as mãos no alto da cabeça. — Foi ele quem me levou para o segundo andar, para a sala de Hamburg. — Olho para Victor. — Desculpa, Victor. Eu... eu não sabia de nada disso.

Fredrik ri baixinho e diz:

— Algo me diz que, mesmo se você soubesse, teria ido lá de qualquer maneira.

Desvio o olhar de Victor e olho para baixo de novo, nervosa, esfregando os dedos ensanguentados uns nos outros. Fredrik tem razão. Odeio admitir, mas ele tem razão. Eu teria ido para o restaurante mesmo assim. Teria tentado matar Hamburg mesmo assim. Mas, se eu soubesse de tudo isso, acho que teria pensado em um plano melhor.

De repente, sinto que alguma coisa toma meu corpo e me tira o fôlego.

— Victor... Meu celular... — Eu me levanto do sofá, com o cabelo castanho-avermelhado caindo pelos ombros, batendo em meus braços nas partes em que o sangue secou e formou uma crosta áspera. — O número de Dina está no meu celular. Merda. Merda! Victor, Stephens vai atrás dela! Preciso voltar para o Arizona!

Começo a seguir para a porta dos fundos, mas Victor me alcança antes que eu atravesse o caminho decorado com pedras lisas.

— Espere aí.

Olho para baixo e vejo os dedos dele em volta do meu pulso. Seus hipnóticos olhos verde-azulados me fitam com desejo e devoção. Devoção. Algo que nunca vi no olhar de Victor antes.

Fredrik fala atrás de nós, me tirando do transe em que Victor me colocou.

— Eu vou cuidar disso — diz ele.

Desvio o olhar de Victor para Fredrik, que então ganha importância, considerando que a vida de Dina está em jogo.

— Como? — pergunto.

Victor me leva de volta para o sofá.

Fredrik pega o celular da mesa à frente, procura um número e toca na tela para ligar. Então encosta o celular no ouvido.

Victor me faz sentar perto dele de novo. Estou concentrada demais em Fredrik no momento para notar que Victor fez questão de se sentar tão perto que sua coxa está encostada na minha. Quero aproveitar o momento de proximidade, mas não posso. Estou preocupada com Dina.

Fredrik se reclina na poltrona de novo, balançando o pé descalço apoiado no joelho. Seu rosto fica alerta quando alguém atende à ligação.

— Em quanto tempo você consegue chegar a Lake Havasu City? — pergunta Fredrik ao telefone. Ele ouve por um segundo e assente. — Mando o endereço por mensagem de texto assim que eu desligar. Vá para lá o mais rápido que puder. Uma mulher mora lá. Dina Gregory. — Ele me olha de relance, para se certificar de que disse o nome certo. Como não o corrijo, volta a falar ao telefone. — Tire-a da casa e a leve para Amelia, em Phoenix. Sim. Sim. Não, não pergunte nada a ela. Só tome cuidado para ninguém machucar Dina. Sim. Me ligue neste número assim que estiver com ela.

Fredrik assente mais algumas vezes. Meu coração está batendo tão forte que parece pronto para pular do peito. Espero que a pessoa com quem ele está falando consiga encontrar Dina a tempo.

Fredrik desliga e parece abrir uma tela de texto no celular. Ele olha para mim, mas é Victor quem dá o endereço da sra. Gregory. Fredrik o digita e deixa o celular na mesa.

— Meu contato está a apenas trinta minutos de lá — explica Fredrik, olhando primeiro para mim. Então se vira para Victor. — O que você quer que eu faça?

Ele levanta as costas da poltrona e apoia os cotovelos nos joelhos, deixando as mãos entre eles. Mesmo em uma posição relaxada, ele consegue parecer elegante, importante e perigoso.

— Ainda preciso que você verifique o que discutimos ontem — diz Victor, e fica ainda mais claro, para mim, que Fredrik recebe ordens dele, embora não pareça ser do tipo que recebe ordens de ninguém. Mas está claro que os dois têm uma relação forte. — E, se você não se importa, preciso da sua casa emprestada por esta noite.

Os olhos escuros de Fredrik me encaram, e o traço de um sorriso aparece em seu rosto. Ele se levanta e pega o celular da mesa, escondendo-o na mão.

— Não precisa dizer mais nada. Vou sair daqui em vinte minutos. Eu ia mesmo me encontrar com alguém hoje, então está combinado.

A atitude de Victor muda um pouco, o que percebo no mesmo instante. Ele está encarando Fredrik, do outro lado da mesa do pátio, com um olhar cansado e cauteloso.

— Você não vai fazer o que estou pensando...

Ouço com atenção sem nem ao menos tentar disfarçar. Eu quero que eles saibam que estou bisbilhotando, porque é frustrante nenhum dos dois me oferecer qualquer explicação sobre esses comentários internos.

Fredrik ergue um lado da boca em um meio sorriso. Ele balança a cabeça de leve.

— Não, esta noite, não, infelizmente. Mas já faz algum tempo. Vou precisar que você me ajude com isso em breve.

Os olhos dele passam por mim e sinto um calafrio percorrer minhas costas. Não consigo decidir se é um arrepio bom ou assustador.

— Você terá sua oportunidade logo, logo — assegura Victor.

Fredrik dá a volta na mesa.

— Lamento por ter que encurtar nossa reunião.

— Tudo bem — digo. — Obrigada por ajudar com Dina. Você avisa quando receber aquela ligação?

Fredrik assente.

— Com certeza. Farei isso.

— Obrigada.

Victor acompanha Fredrik até a porta de vidro e os dois a atravessam. Fico sentada, observando-os do outro lado do pátio de pedra e tentando ouvir o máximo que posso, mas eles fazem questão de falar em voz baixa. Isso também me deixa frustrada. E pretendo informar Victor disso.


CAPÍTULO OITO

Victor

Fredrik fecha a porta de correr feita de vidro.

— Ela não sabe nada sobre Niklas? — pergunta ele, como eu já previa.

— Não, mas vou ter que contar. Ela vai precisar ficar atenta o tempo todo. Agora mais do que nunca.

— Ela não pode ficar aqui por muito tempo — aconselha Fredrik, olhando, através do vidro, Sarai sentada no sofá lá fora e nos observando. — Você também não.

— Eu sei. Quando Niklas descobrir que ela participou do assassinato no restaurante de Hamburg, vai saber na mesma hora que também estou envolvido nisso. Ele não é bobo. Se Sarai está viva, Niklas vai saber que estou tentando ajudá-la.

— E como ele desconfia de que agora trabalho com você — acrescenta Fredrik —, ela corre tanto perigo perto de mim quanto de você.

— É verdade.

Fredrik balança a cabeça para mim, com um sorriso escondido no fundo dos olhos.

— Não entendo esse envolvimento. Respeito você como sempre, respeitei, Victor, mas nunca vou entender a necessidade de um homem amar uma mulher.

— Eu não estou apaixonado por ela. Ela só é importante para mim.

— Talvez não — retruca ele, indo para a cozinha. — Mas parece que o amor e o envolvimento trazem as mesmas consequências, meu amigo. — Sigo Fredrik até a cozinha iluminada e ele abre um armário. — Mas estou do seu lado. O que você precisar que eu faça para ajudar, é só pedir. — Ele aponta para mim perto do armário, agora com um pão na mão.

A empregada de Fredrik entra na cozinha, roliça e mais velha do que nós dois juntos, exatamente o tipo de mulher que jamais o atrairia, e foi por isso que ele a contratou. Ela lhe pergunta em espanhol se pode voltar para casa e ver a família mais cedo hoje. Fredrik responde em espanhol, concordando. Ela assente respeitosamente e passa por mim na sala. De soslaio, eu a observo pegar uma bolsa volumosa de couro marrom do chão, perto da espreguiçadeira, e colocá-la no ombro. Depois ela vai até a porta, fechando-a devagar ao sair.

Sarai está de pé nas sombras da sala quando desvio o olhar da porta. Nem ouvi a porta de vidro correr quando ela entrou, e pelo jeito Fredrik também não.

Ela vai para a cozinha iluminada, de braços cruzados, os dedos delicados segurando seus bíceps femininos, mas bem-definidos. Ela é linda demais, mesmo quando está desgrenhada assim.

— Quanto tempo vocês planejavam me deixar lá fora? — pergunta ela, com um traço de irritação na voz.

— Ninguém disse que você precisava ficar lá, gata — responde Fredrik.

Ele gosta dela, isso é óbvio para mim, e ele deve saber. Mas também sabe que vou matá-lo. Ainda assim, minha confiança em Fredrik é maior do que minha preocupação de que ele volte para o lado sombrio e a machuque. Fredrik Gustavsson é uma fera do tipo mais carnal, que adora mulheres e sangue, mas tem limites e critérios, além de levar a lealdade, o respeito e a amizade muito a sério. Sua lealdade a mim é, afinal, o motivo para ele trair a Ordem todos os dias me ajudando.

Sarai se aproxima de mim e me olha nos olhos, inclinando um pouco a cabeça para o lado. O cheiro de sua pele e o calor tênue que emana dela quase me fazem perder o controle. Tenho conseguido me conter bastante desde que a beijei no elevador. Pretendo continuar assim.

Ela não diz nada, mas continua me encarando como se esperasse alguma coisa. Fico confuso. Ela inclina a cabeça para o outro lado e seu olhar se suaviza, embora eu não saiba ao certo por quê. Parece maliciosa e cheia de expectativa.

Ouço Fredrik rir baixinho e a porta da geladeira se fechar, mas não tiro os olhos de Sarai.

— As coisas são tão mais fáceis do meu jeito. — Ouço-o dizer, com um sorriso na voz.

— Entre em contato comigo assim que tiver a informação sobre Niklas — peço, ainda olhando nos olhos de Sarai e ignorando o comentário dele. — E quando souber pelo seu contato se Dina Gregory está a salvo em Phoenix.

— Pode deixar — diz Fredrik, e então vai para a porta do corredor que leva ao seu quarto. Mas ele para e olha para nós. — Se você não se importa...

Enfim desvio o olhar de Sarai e dou atenção total a Fredrik.

— Não se preocupe — interrompo —, eu sei onde fica o quarto de hóspedes.

Ele enfia na boca um sanduíche que mal notei que ele preparava e morde, rasgando um pedaço de pão. Eu o vejo piscando para Sarai antes de desaparecer da sala. Foi algo inofensivo, uma menção ao que ele acha que pode acontecer entre nós quando sair, e não uma tentativa de flerte.

— Que informação sobre Niklas? — pergunta Sarai, seus traços suaves agora encobertos pela preocupação.

Estendo a mão e passo os dedos por algumas mechas do cabelo dela.

— Preciso contar muita coisa para você — anuncio, tirando a mão antes de perder o controle e acabar tocando nela mais do que pretendo. — Sei que você deve estar exausta. Por que não toma um banho e fica à vontade primeiro? Depois conversamos.

Um sorrisinho suave emerge em seus lábios, mas logo desaparece em seu rosto enrubescido.

— Você quer dizer que eu estou nojenta? — pergunta ela, tímida. — Esse é o seu jeito de me dizer que preciso lavar meu corpo nojento?

— Na verdade, sim — admito.

Por um momento ela faz uma careta e parece ofendida, mas então só balança a cabeça e dá risada. Admiro isso em Sarai. Admiro muita coisa nela.

— Tudo bem. — Sua expressão brincalhona fica séria de novo. — Mas você precisa me contar tudo, Victor. E eu sei que você deve ter muito para contar, mas saiba que também preciso dizer muita coisa para você.

Eu já esperava isso. E, antes que ela fique na ponta dos pés, incline o corpo na minha direção e me beije, já sei que, quando ela sair do banho, vou precisar decidir o que vamos fazer. Vou precisar tomar algumas decisões importantes, que nos afetarão.

Porque de uma coisa eu tenho certeza: Sarai não pode voltar para casa.


Sarai

Quando volto, Victor está na sala, acomodado na beira do sofá, curvado sobre a mesinha de centro feita de vidro que está cheia de pedaços de papel e fotografias. Entro, mas ele continua remexendo neles sem erguer a cabeça para me olhar. Só que ele não me engana, sei que sente a minha presença tanto quanto quero que ele sinta.

Vasculhei o guarda-roupa de Fredrik procurando uma camiseta branca, que vesti sobre meus seios nus. Infelizmente, tive que usar a mesma calcinha de antes, mas as cuecas boxer de Fredrik não são exatamente o tipo de lingerie que eu gostaria de usar para seduzir Victor. Só uma camiseta e uma calcinha. Claro que fiz questão de vestir o mínimo possível, porque desejo Victor e não tenho nenhuma vergonha de deixar isso claro. Mas ainda custo a acreditar que estou no mesmo cômodo que ele, depois de meses achando que ele havia ido embora para sempre.

Acho que o beijo no elevador é onde minha mente ficou suspensa, como se o tempo tivesse parado naquele momento e cada parte de mim ainda deseje que aquele instante continue. Contudo, o resto do mundo continua passando ao meu redor.

Eu me sento ao lado de Victor, recolhendo um pé descalço para o sofá e enfiando-o sob a minha coxa.

— O que é isso tudo? — Olho para os papéis e fotografias na mesa.

Ele mexe em alguns pedaços de papel, empilhando-os.

— É um serviço — explica ele, colocando a foto de um homem de camiseta regata na pequena pilha. — Agora eu trabalho por conta própria.

Isso me surpreende.

— Como assim? — Acho que sei o que ele quer dizer, mas custo a acreditar.

Ele pega a pilha de papéis e bate as laterais na mesa para ajeitar todas as folhas. Então enfia o maço em um envelope de papel pardo.

— Eu saí da Ordem, Sarai. — Ele olha para mim.

Victor aperta as pontas do fecho prateado para fechar o envelope.

Meus pensamentos se embaralham, minhas palavras ficam confusas na ponta da língua. Luto, desesperada, para acreditar no que ele acaba de me contar.

— Victor... mas... não...

— Sim — confirma ele, virando-se para mim e me olhando bem nos olhos. — É verdade. Eu me rebelei contra a Ordem, contra Vonnegut, e agora eles estão atrás de mim. — Ele volta a mexer nos outros papéis na mesa. — Mas ainda preciso trabalhar, por isso agora trabalho sozinho.

Balanço a cabeça sem parar, sem querer engolir a verdade. A ideia de Victor sendo caçado por aqueles que o fizeram ser como ele é, por qualquer um, faz um pânico febril correr pelas minhas veias.

Solto um longo suspiro.

— Mas... mas e Fredrik? E Niklas? Victor, eu... O que está acontecendo?

Ele respira fundo e deixa a folha de papel cair suavemente na mesa, então reclina as costas no sofá.

— Fredrik ainda trabalha para a Ordem. Está lá dentro. Ele vigia Niklas e... — seus olhos cruzam com os meus por um instante —... tem me ajudado a manter você a salvo.

Antes que eu consiga fazer mais perguntas presas na garganta, Victor se levanta e continua a falar, enquanto fico sentada e o observo com a boca semiaberta e as pernas dobradas sobre a almofada.

— Como você sabe, quando alguém está sob suspeita de trair a Ordem, é imediatamente eliminado. Mas acredito que Niklas deixou Fredrik vivo e não transmitiu suas preocupações a Vonnegut pelo simples fato de que Niklas está usando Fredrik para me encontrar. Assim como deixou você viva todo este tempo, esperando que um dia você o levasse a mim.

O que mais me choca não é o que Victor diz, mas o que ele deixa de fora. Tiro as duas pernas de cima do sofá e pressiono os pés no chão de madeira, apoiando as mãos nas almofadas.

— Victor, o que você está me dizendo? Quer dizer que... Niklas continua com Vonnegut?

Espero que não seja isso que ele esteja tentando me dizer. Espero de todo o coração que minha decisão de deixar Niklas vivo aquele dia no hotel, quando ele atirou em mim, não tenha sido o maior erro da minha vida.

Os olhos de Victor vagam para a porta de vidro, e sinto que uma espécie de sofrimento infinito o consome, mas ele não deixa transparecer.

— Você estava lá. Eu disse para o meu irmão que, se ele decidisse continuar na Ordem caso eu resolvesse sair, eu não ficaria bravo com ele. Dei a ele a minha palavra, Sarai. — Victor vai até a porta de vidro, cruza os braços e olha para a piscina azul iluminada que reluz sob o céu cinzento. — Agora é hora de Niklas brilhar, e não vou tirar isso dele.

— Que absurdo! — Salto do sofá com os punhos fechados. — Ele está atrás de você, não é? — Cerro os dentes e contorno a mesinha de centro. — Caralho, é isso, Victor? Para provar seu valor para Vonnegut, ele foi encarregado de matar você. Aquele merda do seu irmão traiu você. Ele acha que vai pegar o seu lugar na Ordem. Puta que pariu, não acredito...

— É o que é, Sarai — interrompe Victor, virando-se para me encarar. — Mas, neste momento, Niklas é a menor das minhas preocupações.

Cruzando os braços, começo a andar de um lado para outro, olhando os veios claros e escuros da madeira sob meus pés descalços. Minhas unhas ainda têm o esmalte vermelho-sangue de duas semanas atrás.

— Por que saiu da Ordem?

— Eu tive que sair. Não tinha escolha.

— Não acredito.

Victor suspira.

— Vonnegut descobriu sobre a gente — conta ele, ganhando minha atenção total. — Foi Samantha... na noite em que ela morreu. Antes que eu saísse da Ordem, encontrei Vonnegut em Berlim, o primeiro encontro frente a frente que tive com ele em meses. Foi em uma sala de interrogatório. Quatro paredes. Uma porta. Uma mesa. Duas cadeiras. Somente eu e Vonnegut sentados frente a frente, com uma luz brilhando no teto acima de nós. — Victor olha para trás pela porta de vidro e depois continua: — No início, eu estava certo de que ele tinha me levado para lá com a intenção de me matar. Eu estava preparado...

— Para morrer? — Se Victor responder que sim, vou dar um tapa na cara dele.

— Não — responde ele, e consigo respirar um pouco melhor. — Eu fui para lá preparado. Raptei a mulher de Vonnegut antes de ir encontrá-lo. Fredrik a manteve em uma sala, pronto para fazer... as coisas dele, caso fosse necessário.

No mesmo instante, quero perguntar o que são as “coisas” de Fredrik, mas deixo a pergunta de lado por enquanto e digo:

— Se Vonnegut quisesse matar você, a esposa dele seria a sua moeda de troca.

De costas para mim, ele assente.

— Samantha estava sendo vigiada pela Ordem. Provavelmente há muito tempo.

— Eles desconfiavam da traição dela? Por que não a mataram, então, como fizeram com a mãe de Niklas, ou como queriam fazer com Niklas?

Victor se vira para me encarar de novo.

— Eles não desconfiavam dela, Sarai, ela era... — Victor respira fundo e aperta os lábios.

— Ela era o quê? — Chego mais perto dele. Não gosto do rumo que a conversa está tomando.

— Ela era mais leal à Ordem do que eu jamais poderia ter imaginado — conta ele, e isso fere meu coração. — Sentado naquela sala com Vonnegut, quanto mais ele falava, mais eu começava a entender que Samantha me traiu da mesma forma que Niklas. Vonnegut me contou coisas que ele não tinha como saber. Ele sabia que eu ajudei você. Em algum momento antes de morrer, naquela noite, Samantha conseguiu passar informações a Vonnegut sobre nossa estadia por lá.

— Não acredito nisso. — Golpeio o ar com a mão diante de mim. — Samantha morreu tentando me proteger. Já falamos sobre isso. Não acredito em você, Victor. Ela era uma boa pessoa.

— Ela era boa manipuladora, Sarai, nada mais do que isso.

Balanço a cabeça, ainda sem acreditar.

— Foi Niklas quem contou a Vonnegut que você me ajudou. Só pode ter sido. Niklas sabia até que você tinha me levado para a casa de Samantha.

— Sim, mas Niklas não sabia que eu fiz Samantha provar nossa comida antes de a gente comer, naquela noite. Assim que Vonnegut mencionou quanto eu ainda desconfiava dela depois de tantos anos, eu soube que ela havia me traído.

— Mas isso não faz nenhum sentido. — Começo a andar pela sala de novo, de braços cruzados e com uma das mãos apoiada no rosto. — Por que ela me protegeria de Javier?

— Porque ela não era leal a Javier.

Jogo as mãos para o ar, atônita com aquela revelação.

— Não dá para confiar em ninguém — digo, me jogando no sofá e olhando para o nada.

— Não, não dá — concorda Victor, e eu olho para cima, detectando um significado oculto por trás de suas palavras. — Agora talvez você entenda por que eu não me envolvo com ninguém. Não é só o trabalho, Sarai. As pessoas em geral não são confiáveis, especialmente na minha profissão, na qual a confiança é tão rara que não vale a pena perder tempo e esforço procurando por ela.

— Mas você parece confiar em Fredrik — observo, olhando para Victor do sofá. — Por que me trouxe logo aqui? Não aprendeu a lição com Samantha?

Sua expressão fica um pouco mais sombria, ressentida pela minha acusação.

— Eu nunca disse que confiava em Fredrik. Mas no momento ele é meu único contato dentro da Ordem e, nos últimos sete meses, não fez nada que não o tornasse digno de confiança. Ao contrário, fez tudo para provar sua lealdade a mim.

— Mas isso não significa que seja verdade.

— Não, você tem razão, mas logo vou saber com cem por cento de certeza se Fredrik é confiável ou não.

— Como?

— Você vai descobrir comigo.

— Por que se dar a esse trabalho? Você disse que a confiança é tão rara que não vale o esforço.

— Você faz muitas perguntas.

— Pois é, acho que faço. E você não responde o suficiente.

— Não, acho que não. — Victor abre um sorrisinho, e meu coração se derrete instantaneamente em uma poça de mingau.

Desvio os olhos dos dele e disfarço meus sentimentos.

— Não estou segura aqui — digo, encarando-o novamente.

— Você não está segura em lugar nenhum — corrige Victor. — Mas, enquanto estiver comigo, nada vai acontecer com você.

— Quem está falando merda agora?

Ele levanta uma sobrancelha.

— Você não é meu herói, lembra? — digo para refrescar a memória de Victor. — Não é minha alma gêmea que jamais deixará que nada de ruim aconteça comigo. Devo confiar nos meus instintos primeiro e em você, se eu decidir confiar, por último. Você me disse isso certa vez.

— E continua sendo verdade.

— Então como pode dizer que nada vai me acontecer se eu estiver com você?

A expressão de Victor fica vazia, como se pela primeira vez na vida alguém o tivesse deixado sem palavras. Olho para seu rosto silencioso e sem emoção, e apenas seus olhos revelam um traço de torpor. Tenho a sensação de que ele falou sem pensar, que manifestou algo que sente de verdade, mas que jamais quis que eu soubesse: Victor quer ser meu herói, vai fazer qualquer coisa, tudo o que puder para me manter a salvo. Quer que eu confie totalmente nele.

E confio.

Ele volta para perto de mim e se senta ao meu lado. O cheiro de seu perfume é fraco, como se ele fizesse questão de usar o mínimo possível. Estou tonta de desejo. Ansiosa para sentir novamente seu toque, saborear seus lábios quentes, deixar que ele me tome como fez algumas noites antes que nos víssemos pela última vez. Não tenho pensado em nada além de Victor nos últimos oito meses da minha vida. Enquanto durmo. Como. Vejo TV. Transo. Me masturbo. Tomo banho. Cada coisa que fiz desde que ele me deixou naquele hospital com Dina fiz pensando nele.

— Você acha que Fredrik vai contar a Niklas onde a gente está? — Mudo de assunto por medo de deixar transparecer muita coisa cedo demais.

— Acho que se ele fosse fazer isso teria contado a Niklas o pouco que sabia sobre o seu paradeiro há muito tempo, e Niklas já teria tentado matar você — responde Victor.

— Tem alguma coisa... estranha em Fredrik. Você não sente?

Victor passa a mão pelo meu cabelo úmido. O gesto faz meu coração disparar.

— Você tem grande sensibilidade para as pessoas, Sarai — comenta ele, levando a mão ao meu queixo. — Tem razão sobre Fredrik. — Ele passa o polegar pelo meu lábio inferior. Um calafrio percorre o meio das minhas pernas. — Ele é... como dizer?... desequilibrado, de certa forma.

Minha respiração acelera, e sinto meus cílios tocando meu rosto quando os lábios de Victor cobrem os meus.

— Desequilibrado de que forma? — pergunto, ofegante, quando ele se afasta.

De olhos fechados, percebo que ele está observando a curva do meu rosto e meus lábios e sinto a respiração que sai suavemente de suas narinas.

Cada pelinho minúsculo se eriça quando a outra mão de Victor sobe e encontra minha cintura nua por baixo da camiseta. Seus dedos longos dançam sobre a pele do meu quadril e param por ali.

Abro os olhos e vejo os dele me encarando.

— Algum problema? — pergunta ele, e sua boca roça a minha de novo.

— Não, eu... eu só não esperava isso.

— Esperava o quê?

Sinto seus dedos levantando o elástico da minha calcinha. Minha cabeça está girando, sinto meu estômago se transformar em um emaranhado de músculos, trêmulo e nervoso.

— Isso — respondo, piscando. — Você está diferente — acrescento, baixinho.

— Culpa sua — diz Victor, e então seus lábios devoram os meus.

Ele me deita no sofá e se encaixa entre as minhas pernas.

Seu celular vibra na mesinha de centro, e percebo quanto sou humana quando xingo Fredrik por estragar aquele momento, mesmo que seja para me avisar de que Dina está a salvo.


CONTINUA

CAPÍTULO UM

Sarai

Já faz oito meses que fugi da fortaleza no México onde fui mantida contra minha vontade por nove anos. Estou livre. Levo uma vida “normal”, fazendo coisas normais com gente normal. Não fui mais atacada, ameaçada nem seguida por ninguém que ainda queira me matar. Tenho uma “melhor amiga”, Dahlia. Tenho a coisa mais parecida com uma mãe que já conheci, Dina Gregory. O que mais eu poderia querer? Parece egoísmo desejar qualquer outra coisa. Mas, apesar de tudo o que tenho, algo não mudou: continuo vivendo uma mentira.

Deixei amigos na Califórnia: Charlie, Lea, Alex e... Bri... Não, espera, quero dizer Brandi. Meu ex-namorado, Matt, era abusivo, por isso voltei para o Arizona. Ele me perseguiu por muito tempo depois que terminamos. Consegui uma ordem judicial para mantê-lo afastado, mas não funcionou. Ele atirou em mim há oito meses, mas não posso provar porque não cheguei a vê-lo. E tenho muito medo de denunciá-lo à polícia.

Claro que tudo isso é mentira.

São os pedaços da minha vida que acobertam o que realmente aconteceu comigo. Os pretextos para eu ter desaparecido aos 14 anos e ter ido parar em um hospital da Califórnia com um ferimento a bala. Jamais vou poder contar a Dina, Dahlia ou ao meu namorado, Eric, o que aconteceu de verdade: que fui levada para o México pela péssima versão de mãe que eu tinha, para morar com um chefão do tráfico. Jamais vou poder contar que fugi daquele lugar depois de nove anos e matei o homem que me manteve prisioneira por toda a minha adolescência. Quer dizer, claro que eu poderia contar a alguém, mas, se fizesse isso, só estaria pondo Victor em perigo.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/2_O_RETORNO_DE_IZABEL.jpg

 

Victor.

Não, nunca vou poder contar que um assassino me ajudou a fugir, ou que testemunhei Victor matando várias pessoas, inclusive a esposa de um empresário famoso e importante de Los Angeles. Nunca vou poder contar que, depois de tudo pelo que passei, depois de tudo o que vi, o que mais quero é fazer as malas e voltar para aquela vida perigosa. A vida com Victor.

Até hoje, falar o nome dele me acalma. Às vezes, quando estou acordada na cama à noite, murmuro seu nome só para ouvi-lo, porque preciso. Preciso dele. Não consigo tirá-lo da cabeça. Já tentei. Porra, e como tentei. Mas, não importa o que eu faça, continuo vivendo cada dia da minha vida pensando nele. Se está me vigiando. Se pensa em mim tanto quanto penso nele. Se ainda está vivo.

Pressiono o travesseiro contra a cabeça e fecho os olhos, imaginando Victor. Às vezes, é só assim que consigo gozar.

Eric aperta minhas coxas com as mãos e me imobiliza na cama, com o rosto enfiado no meio das minhas pernas.

Arqueio o quadril contra ele, roçando de leve contra sua língua frenética, até que ele faça meu corpo todo enrijecer e minhas coxas tremerem ao redor da sua cabeça.

— Meu Deus... — Estremeço enquanto gozo, então deixo os braços caírem entre as pernas, afundando os dedos no cabelo preto de Eric. — Caramba...

Sinto os lábios de Eric tocando minha barriga um pouco acima da pélvis.

Olho para o teto como sempre faço depois de um orgasmo, pois a culpa que sinto me deixa com vergonha de olhar para Eric. Ele é um cara superlegal. Meu namorado sexy de 27 anos, cabelo preto e olhos azuis, gentil, encantador, engraçado e perfeito. Perfeito para mim se eu nunca tivesse conhecido Victor Faust.

Estou arruinada pelo resto da vida.

Enxugo as gotas de suor da testa e Eric sobe pela cama, deitando-se ao meu lado.

— Você sempre faz isso — diz ele, brincando, enquanto cutuca minhas costelas com os nós dos dedos.

Como sinto muitas cócegas, eu me encolho e me viro para encará-lo. Sorrio com ternura e passo um dedo por seu cabelo.

— O que eu sempre faço?

— Esse negócio de ficar em silêncio. — Eric segura meu queixo entre o polegar e o indicador. — Eu faço você gozar e você fica bem quieta durante um tempão.

Eu sei e sinto muito, mas preciso apagar o rosto de Victor da minha cabeça antes de conseguir olhar você nos olhos. Sou uma pessoa horrível.

Eric me dá um beijo na testa.

— Isso se chama recuperação — brinco, beijando os dedos dele. — É totalmente inofensivo. Mas você deveria interpretar como um bom sinal. Você sabe o que está fazendo — digo, retribuindo o cutucão nas costelas.

E ele sabe mesmo o que está fazendo. Eric é ótimo na cama. Mas ainda sou emocionalmente muito ligada... viciada... em Victor, e tenho a sensação de que sempre serei.

Só consegui seguir a vida e me abrir a outros relacionamentos cinco meses depois que Victor foi embora. Conheci Eric no trabalho, na loja de conveniência. Ele comprou um saco de biscoitos e um energético. Depois disso, ele aparecia na loja duas, às vezes três vezes por semana. Eu não queria nada com ele. Queria Victor. Mas comecei a perder a esperança de que Victor um dia fosse voltar para mim.

Eric tenta passar um braço ao redor do meu corpo, mas me levanto casualmente e visto a calcinha. Ele não desconfia de nada, o que é bom. Não sinto vontade de ficar abraçadinha, mas a última coisa que quero é magoá-lo. Ele ergue os braços e entrelaça os dedos atrás da cabeça. Olha para mim, do outro lado do quarto, com um sorriso sedutor. Sempre faz isso quando não estou completamente vestida.

— Sarai.

— Oi. — Visto a camiseta e ajeito o rabo de cavalo.

— Eu sei que está em cima da hora — diz Eric —, mas queria ir com você e Dahlia para a Califórnia amanhã.

Merda.

— Mas você não disse que não ia conseguir folga no trabalho? — pergunto, vestindo o short e calçando os chinelos.

— Quando você perguntou se eu queria ir, não ia dar mesmo. Mas contrataram um funcionário novo, e meu chefe decidiu me dar folga.

Isso é uma péssima notícia. Não porque eu não o queira por perto — gosto de Eric, apesar da minha incapacidade de esquecer Victor Faust —, mas minha viagem de “férias” à Califórnia amanhã não é para fazer turismo, curtir a noite nem fazer compras na Rodeo Drive.

Estou indo até lá para matar um homem. Ou melhor, tentar matar um homem.

Já é ruim que Dahlia vá também, e já vai ser difícil guardar segredo de uma pessoa. Imagine duas.

— Você... não parece animada — comenta Eric, seu sorriso morrendo aos poucos.

Abro um sorriso largo e balanço a cabeça, voltando para perto dele e me sentando na beira da cama.

— Não, não, eu estou animada. É que você me pegou de surpresa. A gente vai sair às seis da manhã. É daqui a menos de oito horas. Você já fez as malas?

Eric dá uma risada e se estica na minha cama, me puxando para si. Eu me sento perto de sua cintura, apoiando um braço no colchão do outro lado dele, com os pés para fora da cama.

— Bom, eu só fiquei sabendo hoje à tarde, antes de sair do trabalho — explica ele. — Eu sei, está em cima da hora, mas só preciso enfiar umas coisas na mala e estou pronto.

Ele estende a mão e afasta do meu rosto os fios de cabelo que escaparam do rabo de cavalo.

— Ótimo! — minto, com um sorriso igualmente falso. — Então acho que está combinado.

Dina acorda antes de mim, às quatro da manhã. O cheiro de bacon é o que me desperta. Levanto da cama e entro debaixo do chuveiro antes de me sentar à mesa da cozinha. Um prato vazio já está à minha espera.

— Gostaria que você tivesse escolhido algum outro lugar para passar sua folga, Sarai — afirma Dina.

Ela se senta do outro lado da mesa e começa a encher seu prato. Pego alguns pedaços de bacon do monte e ponho no meu.

— Eu sei — digo —, mas, como falei para você, não vou deixar que meu ex me impeça de ver meus amigos.

Ela balança a cabeça cada vez mais grisalha e suspira.

Passei do limite em algum momento com meu amontoado de mentiras. Quando Victor levou Dina para o hospital em Los Angeles, depois que o irmão dele, Niklas, atirou em mim, ela não fazia ideia do que tinha acontecido. Só sabia que eu tinha levado um tiro. Demorei alguns meses até me sentir segura o suficiente para falar com ela sobre isso. Quer dizer, depois de bolar a história que eu ia contar. Foi aí que inventei o lance do ex-namorado violento. Eu deveria ter dito que fui assaltada. Por um desconhecido. A mentira seria muito mais fácil de manter. Agora que ela sabe que vou voltar para Los Angeles, está morrendo de preocupação, e já faz uns dois meses. Eu nem deveria ter contado que ia voltar lá.

Termino de comer o bacon e um pouco de ovos mexidos, junto com um copo de leite.

Dahlia e Eric chegam juntos assim que termino de escovar os dentes.

— Vamos logo, a gente precisa pegar a estrada — chama Dahlia, me apressando da porta. Seu cabelo castanho-claro está preso no alto da cabeça em um coque desalinhado de quem acabou de acordar.

Eu me despeço de Dina com um abraço.

— Eu vou ficar bem — digo a ela. — Prometo. Não vou nem chegar perto de onde ele mora.

Desta vez, chego até a imaginar um rosto masculino ao falar de alguém que não existe. Acho que já interpreto esse papel há tanto tempo que “Matt” e todos esses meus “amigos” de Los Angeles, de quem falo para todo mundo como se fossem reais, se tornaram reais no meu subconsciente.

Dina força um sorriso em seu rosto preocupado, e suas mãos soltam meus cotovelos.

— Você liga assim que chegar?

— Assim que eu entrar no quarto do hotel, ligo — respondo, assentindo.

Ela sorri e eu a abraço mais uma vez, antes de segui-los até o carro de Dahlia, que está esperando. Eric guarda minha mala no bagageiro, junto com as deles, e se senta no banco de trás.

— Hollywood, aí vamos nós! — exclama Dahlia.

Finjo metade da empolgação dela. Ainda bem que está muito cedo, senão Dahlia poderia intuir o verdadeiro motivo da minha falta de entusiasmo. Estico os braços para trás e bocejo, apoiando a cabeça no banco do carro. Sinto a mão de Eric no meu pescoço quando ele começa a massagear meus músculos.

— Não sei por que você quer ir a Los Angeles de carro — diz Dahlia. — Se a gente fosse de avião, não ia precisar acordar tão cedo. E você não estaria tão cansada e rabugenta.

Minha cabeça cai para a esquerda.

— Não estou rabugenta. Ainda mal falei com você.

Ela dá um sorrisinho.

— Exatamente. Sarai sem falar significa Sarai rabugenta.

— E se recuperando — acrescenta Eric.

Meu rosto fica vermelho e eu estico a mão atrás da cabeça, dando um tapinha de brincadeira na dele, que está fazendo maravilhas no meu pescoço. Fecho os olhos e vejo Victor.

Não de propósito.

Chegamos a Los Angeles depois de quatro horas na estrada. Eu não podia ir de avião porque não conseguiria levar minhas armas. É claro que Dahlia não pode saber disso. Ela acha apenas que quero apreciar a paisagem.

Tenho sete dias para fazer o que vim fazer. Isto é, se eu conseguir. Pensei no meu plano durante meses, em como vou fazer isso. Sei que é impossível entrar na mansão Hamburg. Para isso, eu precisaria ter um convite e socializar em público com o próprio Arthur Hamburg e seus convidados. Ele viu meu rosto. Bem, tecnicamente, viu mais do que meu rosto. Mas sinto que os acontecimentos daquela noite, quando Victor e eu enganamos Hamburg para que ele nos convidasse para ir ao seu quarto e conseguíssemos matar sua esposa, são algo que ele jamais vai esquecer, nem os mínimos detalhes.

Se tudo der certo, uma peruca loura platinada de cabelo curto e maquiagem escura e pesada vão esconder aquela identidade de cabelo longo e castanho que Hamburg reconheceria assim que eu aparecesse.


CAPÍTULO DOIS

Sarai

Passo o dia todo com Eric e Dahlia, fingindo me divertir para passar o tempo. Saímos para almoçar e para fazer um tour por Hollywood com um guia e visitar um museu antes de voltarmos para o hotel, exaustos. Quer dizer, finjo estar exausta o suficiente para querer dar o dia por encerrado. Na verdade, o que preciso é me preparar para ir ao restaurante de Hamburg ainda hoje.

Dahlia já acha que tem algo errado comigo.

— Você está ficando doente? — pergunta ela, estendendo a mão entre nossas espreguiçadeiras à beira da piscina e sentindo a temperatura da minha testa.

— Estou ótima — respondo. — Só cansada porque levantei muito cedo. E quando foi a última vez que andei tanto assim em um dia só?

Dahlia volta a se recostar em sua espreguiçadeira e ajeita os óculos de sol grandes e redondos no rosto.

— Bom, espero que não esteja cansada amanhã — diz Eric, do outro lado. — Tem tantas coisas que eu quero fazer. Não venho para Los Angeles desde que meus pais se divorciaram.

— Pois é. É a minha primeira vez aqui em dois anos — afirma Dahlia.

Um adolescente pula na piscina e a água respinga em nós. Ergo as costas da espreguiçadeira e agito a revista que estava lendo para tirar as gotas. Ponho os óculos escuros no alto da cabeça. Jogo as pernas para o lado e fico de pé.

— Acho que vou voltar para o quarto e tirar uma soneca — anuncio, pegando minha bolsa do chão.

Eric se ergue também e tira os óculos escuros.

— Se quiser, vou com você — oferece ele.

Agito a mão para ele, pedindo que não se levante.

— Não, fica aí e faz companhia para a Dahlia — sugiro, ajeitando a bolsa no ombro. Abaixo os óculos escuros de novo para que ele não perceba minha mentira.

— Tem certeza de que você está bem? — pergunta Dahlia. — Sarai, você está de férias, lembra? Veio para cá se divertir, não para cochilar.

— Acho que vou estar cem por cento amanhã. Só preciso de um banho quente e demorado e de uma boa noite de sono.

— Ok, vou acreditar — diz Dahlia. — Mas nem vem com doença para o meu lado. — Ela aponta o dedo para mim, com ar severo.

Eric fecha os dedos em torno do meu pulso e me puxa para perto.

— Tem certeza de que não quer que eu vá? — Ele me beija e eu correspondo antes de me levantar de vez.

— Tenho — respondo, baixinho, e saio na direção do elevador.

Assim que entro no quarto, tranco a porta com a corrente para que Eric e Dahlia não entrem de surpresa, jogo a bolsa no chão e abro meu laptop, digitando a senha. Enquanto o laptop inicia, olho pela janela e vejo meus amigos, figuras pequenas daquela distância, ainda à beira da piscina. Eu me sento diante da tela e, provavelmente pela centésima vez, olho cada página do site do restaurante de Hamburg, verificando de novo o horário de funcionamento e passando os olhos pelas fotos profissionais do lugar, dentro e fora. Na verdade, nada disso me ajuda muito com o que pretendo fazer, mas olho tudo de novo todo dia, de qualquer maneira.

Derrotada, bato a palma da mão com força no tampo da mesa.

— Droga! — exclamo, desabando na poltrona enquanto passo as mãos pelo cabelo.

Ainda não sei como vou conseguir ficar a sós com Hamburg sem ser vista. Sei que estou dando um passo maior do que a perna. Sei disso desde que tive essa ideia maluca, mas também sei que, se ficar apenas pensando a respeito, nunca vou passar dessa fase.

Vim para cá com um plano: entrar disfarçada no restaurante e agir como qualquer outro cliente. Sondar o lugar por uma noite. Saber onde ficam as saídas. As entradas para outras partes do prédio. Os banheiros. Minha prioridade número um, contudo, é encontrar a sala de onde Hamburg observa do alto seus clientes e ouve a conversa deles pelo minúsculo microfone escondido no arranjo de cada mesa. Então pretendo me enfiar na sala e cortar a garganta daquele porco.

Contudo, agora que estou aqui, a menos de seis quadras do restaurante, e agora que o tempo está passando tão depressa, estou menos confiante. Isso não é um filme. Sou uma idiota por achar que posso adentrar um lugar desses sem ser vista, tirar a vida de um homem sem chamar atenção e fugir sem ser capturada.

Apenas Victor conseguiria fazer algo assim.

Bato no tampo da mesa de novo, mais de leve desta vez, fecho o laptop e me levanto. Ando de um lado para outro no carpete vermelho e verde. E bem quando resolvo seguir pelo corredor para o quarto separado que reservei sem Dahlia e Eric saberem, a porta se abre um pouco, mas é travada pela corrente.

— Sarai? — chama Dahlia do outro lado. — Vai deixar a gente entrar?

Suspiro fundo e destranco a porta.

— Por que a corrente? — pergunta Eric, entrando atrás de Dahlia.

— Força do hábito.

Eu me jogo na ponta da cama king-size.

Os dois deixam suas coisas no chão. Dahlia se senta à mesa, ao lado da janela, e Eric se deita atravessado na cama ao meu lado, cruzando as pernas na altura dos calcanhares.

— Pensei que você ia tirar uma soneca — diz Dahlia.

Ela passa os dedos com cuidado pelo cabelo úmido, fazendo caretas quando se depara com alguma mecha mais embaraçada.

— Dahlia — digo, olhando para os dois. — Eu subi agora há pouco. Pensei que vocês iam ficar na piscina mais um tempo.

Espero ter conseguido disfarçar o aborrecimento na minha voz por eles terem vindo me encontrar tão cedo. Não consigo evitar: estou estressada demais, além de preocupada com a simples presença dos dois aqui comigo. Não quero que eles se machuquem nem que se envolvam de forma alguma com meu motivo para estar aqui.

— A gente pode sair e deixar você sozinha, se quiser — sugere Eric, baixinho, atrás de mim.

Eu me arrependo na mesma hora do que disse, porque é óbvio que não disfarcei o aborrecimento tão bem quanto esperava.

Inclino a cabeça para trás e suspiro, esticando o braço para tocar o tornozelo dele.

— Desculpa — digo, sorrindo para Dahlia. — Sabe, eu... — Então, de repente, uma desculpa perfeitamente plausível para o modo como tenho agido surge na minha cabeça, e a torneira das mentiras se abre. — Eu só fico meio nervosa por estar de volta a Los Angeles.

Dahlia faz cara de “ah, entendi”, empurra os pés de Eric para o lado e se senta perto de mim. Ela passa o braço por cima dos meus ombros e segura meu antebraço.

— Imaginei que o problema fosse esse.

Percebo que ela olha de relance para Eric e tenho a impressão de que foi sobre isso que os dois falaram enquanto ficaram na piscina, depois que fui embora.

Aposto que também foi por isso que decidiram subir tão cedo para me ver.

— A gente queria ver como você estava — acrescenta Eric atrás de mim, confirmando minha suspeita.

Sinto a cama se mexer quando ele se senta.

Eu me levanto antes que ele consiga me abraçar. É nesse exato momento que me dou conta de como tenho feito isso com frequência no último mês. Não sei por quanto tempo mais vou conseguir enganá-lo. Sei que deveria simplesmente contar o que sinto, que não gosto tanto de Eric quanto ele gosta de mim. Mas não consigo dizer a verdade. Eu precisaria inventar mais uma mentira, e estou tão atolada em mentiras que me sinto afogada nelas.

Ao mesmo tempo, deixei nossa relação durar tanto porque eu queria de verdade sentir por ele algo tão profundo quanto o que ele parece sentir por mim. Queria seguir em frente, esquecer Victor e ser feliz com a vida que ele me deixou.

Mas não consigo. Não consigo mesmo...

— Ele nem vai saber que você está aqui — diz Eric sobre “Matt”. — Além disso, mesmo que ele descobrisse, eu ia encher o cara de porrada assim que o visse.

Esboço um sorriso para Eric.

— Eu sei que você faria isso — digo, mas me sinto ainda pior, porque os únicos dois amigos que tenho no mundo não fazem nem ideia de quem sou.

Cruzo os braços, vou até a janela e olho para fora.

— Sarai — chama Dahlia. — Não queria dizer isso, mas, se você está tão preocupada com a possibilidade de Matt descobrir que você está em Los Angeles, acho que não é boa ideia visitar seus amigos aqui.

— Eu sei, você tem razão. Sei que eles não contariam para Matt, mas acho que é melhor eu ficar só com vocês dois enquanto estivermos aqui.

Eu me viro para encará-los.

— É um bom plano — diz Eric, com um sorriso radiante.

É um bom plano, com certeza, porque agora não preciso mais inventar outra desculpa para não apresentar os dois aos meus amigos que não existem.

Dahlia se aproxima de mim.

— A gente devia ter ido para a Flórida ou algum lugar assim, hein?

Olho pela janela de novo.

— Não — respondo. — Adoro esta cidade. E sei que vocês queriam muito vir para cá. — Dou um sorriso rápido. — Sugiro que a gente curta ao máximo esta semana.

Ela me empurra com o ombro de brincadeira.

— Essa é a Sarai que eu conheço — diz Dahlia, sorrindo.

É, só que não sou essa pessoa...

Ela vai até Eric e o puxa pelo braço, levantando-o da cama.

— Vamos sair daqui e deixar a mocinha descansar.

Eric se levanta e se aproxima de mim. Então pega meus braços e me vira para encará-lo. Com aqueles olhos azul-bebê, ele faz a melhor expressão amuada que consegue.

— Se precisar de mim para qualquer coisa, pode me chamar que eu venho.

Concordo com a cabeça e lhe ofereço um sorriso sincero. Ele merece, por ser tão legal comigo.

— Pode deixar.

Então eu os empurro porta afora com as duas mãos.

— Eu diria para vocês não se divertirem muito sem mim, mas isso seria pedir demais.

Dahlia ri baixinho ao sair para o corredor.

— Não, não é pedir muito. — Ela levanta dois dedos. — Palavra de escoteiro.

— Acho que não é assim que se faz, Dahl — diz Eric.

Ela faz um gesto para dispensar as palavras dele.

— Trate de dormir — sugere Dahlia. — Porque amanhã você vai precisar estar novinha em folha.

— De acordo — digo, assentindo.

— Tchau, amor — diz Eric antes de eu fechar a porta.

Fico com as costas apoiadas na porta e solto um suspiro longo e profundo.

Fingir é difícil demais. Bem mais difícil do que simplesmente ser eu mesma, por mais anormal e imprudente que eu seja.

— Eu sei o que preciso fazer — digo em voz alta.

Falar sozinha é minha nova mania, porque me ajuda a visualizar e entender melhor as coisas.

Volto para a janela e olho a cidade de Los Angeles, com os braços cruzados.

— Preciso de um disfarce, mas não para me esconder de Hamburg. Só das câmeras e de qualquer outra pessoa. Eu quero que Hamburg me veja. Só assim vou conseguir entrar.


CAPÍTULO TRÊS

Sarai

Dahlia e Eric só voltam para o quarto algumas horas mais tarde, depois de escurecer. Eu já tinha tomado banho, vestido short e camiseta e deixado a luz apagada para parecer que estava dormindo. Assim que ouvi o cartão passando pela porta, pulei na cama e me espalhei pelo colchão, como sempre faço quando durmo de verdade. Eric entrou na ponta dos pés, tentando não “me acordar”, mas me virei, soltei um resmungo e abri os olhos para mostrar que acordei. Ele pediu desculpas e perguntou se eu queria ir com ele e Dahlia a uma boate ali perto, insistindo que, se eu não fosse, ele também não iria. Mas logo rejeitei essa ideia. Percebi que ele queria muito ir e não posso culpá-lo: se eu estivesse no lugar dele, não iria querer ficar em um quarto escuro de hotel às oito da noite de uma sexta-feira, em uma das cidades mais animadas dos Estados Unidos.

Eric e Dahlia saírem era exatamente do que eu precisava. Passei aquelas duas horas inteiras tentando inventar uma desculpa para explicar a eles por que eu ia sair, aonde iria e por que eles não poderiam ir junto.

Eles resolveram isso para mim.

Minutos após Eric sair do quarto, espero Dahlia — em seu próprio quarto, ao lado do nosso — tirar o biquíni e se vestir. Pelo olho mágico da minha porta, eu os vejo indo embora pelo corredor. Conto até cem enquanto ando de um lado para outro sem parar. Então pego minha bolsa e vou até a porta. Ando depressa pelo corredor na direção oposta e chego ao quarto secreto, do outro lado do prédio.

Com certa paranoia de ser flagrada, vasculho minha bolsa e encontro tudo, menos a chave do quarto. Enfim consigo senti-la entre os dedos e me apresso para entrar, travando a porta com a corrente. Abro a mala ao pé da cama e tiro minha peruca curta platinada, passando os dedos para ajeitar as mechas desalinhadas, e então a deixo sobre o abajur ao lado para que não perca a forma.

Visto um Dolce & Gabbana curtinho e me maquio com cores escuras e pesadas, o que, depois de passar um tempão praticando em casa, faço bem. Então calço as sandálias de salto alto. Andar de salto é outra coisa que passei muito tempo tentando aprender. Meu alter ego, Izabel Seyfried, saberia andar de salto e o faria bem. Por isso, eu precisava acompanhar.

Em seguida, molho o cabelo e o divido em duas partes atrás. Enrolo cada metade e cruzo uma sobre a outra na nuca. Vários grampos depois, meu longo cabelo castanho está bem preso no couro cabeludo. Visto a touca da peruca e depois a própria peruca, ajustando-a por muito tempo até deixar tudo perfeito.

Por fim, prendo uma bainha de punhal em torno da coxa e a cubro com o tecido do vestido.

Fico de pé diante do espelho de corpo inteiro e me avalio de todos os ângulos possíveis. Estar loura é estranho. Satisfeita, pego a bolsinha preta e a enfio debaixo do braço, com a pequena pistola formando certo volume nela. Estico o braço para girar a maçaneta, mas deixo minha mão cair junto ao corpo.

“Que droga eu estou fazendo?”

O que precisa ser feito.

“E por que eu estou fazendo isso?”

Porque preciso.

Não consigo tirar da cabeça as coisas que aquele homem confessou, as pessoas que matou por causa de um fetiche sexual doentio. Todas as noites desde que Victor me deixou, quando fecho os olhos, vejo o rosto de Hamburg e aquele sorriso de gelar o sangue que ele abriu quando me curvei sobre a mesa, exposta na frente dele. Vejo o rosto de sua esposa, esquelético e combalido, seus olhos fundos turvados pela resignação. Ainda sinto até o fedor da urina que secou em suas roupas e no catre infestado onde ela dormia, naquele quarto escondido.

Meu peito se enche de ar e eu o prendo por vários segundos, antes de soltar um longo suspiro.

Não posso esquecer. A necessidade de matá-lo é como uma coceira no meio das costas. Não posso alcançar naturalmente, mas vou me curvar e torcer os braços até doerem para coçar.

Não posso esquecer...

E talvez... só talvez também acabe chamando a atenção de um certo assassino que não consigo me obrigar a esquecer.

Assim que passo pela porta, deixo Sarai para trás e me torno Izabel por uma noite.

Por não ter pensado de antemão na importância de ao menos alugar um carro chique, salto do táxi a duas quadras do restaurante e ando o resto do caminho. Izabel jamais seria vista andando de táxi.

— Mesa para um? — pergunta o recepcionista assim que entro no restaurante.

Inclino a cabeça e olho para ele com um ar irritado.

— Algum problema? Não posso fazer uma refeição sozinha? Ou você está dando em cima de mim? — Abro um sorrisinho e inclino a cabeça para o outro lado. Ele está ficando nervoso. — Você gostaria de jantar comigo... — olho para o nome bordado no paletó — ... Jeffrey? — Chego mais perto. Ele dá um passo constrangido para trás.

— Hã... — Ele hesita. — Peço desculpas, senhora...

Recuo, trincando os dentes.

— Nunca me chame de senhora — digo com rispidez. — Me leve até uma mesa. Para um.

Ele assente e pede que eu o siga. Quando chego à minha mesinha redonda com duas cadeiras, no meio do restaurante, me sento e deixo a bolsa ao lado. Um garçom se aproxima quando o recepcionista se afasta e me apresenta a carta de vinhos. Eu a rejeito com um movimento dos dedos.

— Quero apenas água com uma rodela de limão.

— Pois não, senhora — diz ele, mas deixo passar.

Enquanto o garçom se afasta, começo a examinar o lugar. Há uma placa indicando a saída à minha esquerda, bem longe, perto do corredor. Há outra à minha direita, próxima à escada que leva para o segundo piso. O restaurante está praticamente igual à primeira vez que vim: escuro, não muito cheio e bastante silencioso, embora desta vez eu ouça jazz baixinho vindo de algum lugar. Ao observar o recinto, paro de repente ao ver a mesa à qual me sentei com Victor quando vim com ele, meses atrás.

Eu me perco na memória, vendo tudo exatamente como aconteceu. Quando olho para as duas pessoas sentadas no outro lado do salão, só consigo me ver com Victor:

— Venha cá — diz ele, em um tom de voz mais delicado.

Deslizo os poucos centímetros que nos separam e me sento encostada a ele.

Seus dedos dançam pela minha nuca quando ele puxa minha cabeça para perto de si. Meu coração bate descompassado quando ele roça os lábios na lateral do meu rosto. De repente, sinto sua outra mão entrando pelo meio das minhas coxas e subindo por baixo do vestido. Minha respiração para. Devo abrir as pernas? Devo ficar imóvel e travá-las? Sei o que quero fazer, mas não sei o que devo fazer, e minha mente está a ponto de desistir.

— Tenho uma surpresa para você esta noite — murmura ele no meu ouvido.

Sua mão se aproxima mais do calor no meio das minhas pernas.

Gemo baixinho, tentando não deixar que ele perceba, embora tenha certeza absoluta de que percebeu.

— Que tipo de surpresa? — pergunto, com a cabeça inclinada para trás, apoiada em sua mão.

— Vai querer algo mais? — Ouço uma voz, e sou arrancada do meu devaneio.

O garçom está segurando o cardápio. Minha água com uma rodela de limão na borda do copo já está diante de mim.

Um pouco confusa de início, apenas assinto, mas faço que não em seguida.

— Ainda não sei — respondo, enfim. — Deixe o cardápio. Talvez eu peça mais tarde.

— Pois não — diz o garçom.

Ele deixa o cardápio na mesa e vai embora.

Olho para a varanda e para as mesas encostadas no balaústre requintado. Onde Hamburg pode estar? Sei que ele está no andar de cima porque Victor disse que ele ficava por lá. Mas onde? Eu me pergunto se ele já me viu, e no mesmo instante meu estômago se embrulha de nervoso.

Não, não posso parecer nervosa.

Endireito as costas na cadeira e tomo um gole da água. Deixo o dedo mindinho levantado, o que me faz parecer muito mais rica, ou apenas mais esnobe. Fico observando os clientes indo e vindo, escuto sua conversa supérflua e me pego imaginando qual dos casais que estão ali poderia acabar na mansão de Hamburg no fim de semana, ganhando muito dinheiro para deixar que ele os veja foder.

Então olho para o arranjo de flores vermelhas em um pequeno vaso de vidro no centro da minha mesa. Pego o celular na bolsa, finjo digitar um número e o coloco perto do ouvido, para que ninguém ache que estou falando sozinha.

— Este recado é para Arthur Hamburg — digo em voz baixa, inclinando-me um pouco para a frente a fim de que o microfone escondido no vaso de flores capte minha voz. — Com certeza você se lembra de mim, não é? Izabel Seyfried. Há quanto tempo, não?

Com cuidado, olho para os lados, esperando ver um ou dois homens parrudos de terno se aproximando de mim com armas em punho.

— Não estou sozinha — continuo —, por isso nem pense em fazer alguma idiotice. A gente precisa conversar.

Olhando para a varanda acima de mim, tento descobrir onde ele pode estar, torcendo para que esteja ali. Alguns minutos tensos se passam, e, quando começo a pensar que a noite foi em vão e que eu estava mesmo falando sozinha, noto um movimento no piso superior, logo acima da saída à minha direita. Meu coração bate forte quando vejo a figura alta e escura sair das sombras e descer a escada.

Eu me lembro desse homem de ombros largos, cabelo grisalho e uma covinha no meio do queixo. É o gerente do restaurante, Willem Stephens, que já encontrei aqui uma vez.

Ele se aproxima da minha mesa sem expressar nenhuma emoção, com as mãos enormes cruzadas à frente, as costas retas, o queixo anguloso imóvel.

— Boa noite, srta. Seyfried. — A voz dele é profunda e sinistra. — Posso perguntar onde está seu dono?

Levanto os olhos para encará-lo, dou um sorrisinho, tomo um gole da minha água e devolvo o copo à mesa, sem pressa. Cada fibra do meu ser está gritando, dizendo como fui idiota em vir até aqui. Por mais que eu saiba que é verdade, não importa. Não é o medo que me faz tremer por dentro, é a adrenalina.

— Victor Faust não é meu dono — explico, com calma. — Mas ele está aqui. Em algum lugar. — Um sorriso tênue e dissimulado toca meus lábios.

Os olhos de Stephens percorrem o salão sutilmente e voltam a me encarar.

— Por que está aqui? — pergunta ele, perdendo um pouco o ar de gerente sofisticado.

— Tenho negócios a discutir com Arthur Hamburg — respondo, confiante. — É do maior interesse dele marcar um encontro privado comigo. Aqui. Hoje. De preferência agora.

Tomo outro gole.

Noto que o pomo de adão de Stephens se move quando ele engole em seco, bem como os contornos de seu queixo quando ele cerra os dentes. Ele olha para o lugar de onde veio, no andar de cima, e percebo um aparelhinho preto escondido em seu ouvido esquerdo. Parece que ele está ouvindo alguém falar. Eu chutaria que é Hamburg.

Ele me encara de novo, com os olhos escuros e cheios de ódio, mas mantém o semblante inexpressivo com a mesma perfeição de Victor.

Ele descruza os braços, estende a mão direita para mim e diz:

— Por aqui.

Ele só deixa os braços penderem, relaxados, quando me levanto. Sigo Stephens pelo restaurante e escada acima, para o piso da varanda.

Apenas duas coisas podem acontecer: ou esta será minha primeira noite como assassina ou a última da minha vida.


CAPÍTULO QUATRO

Sarai

— Se encostar em mim — digo para o guarda-costas de terno à porta da sala particular de Hamburg —, enfio suas bolas em um moedor de carne.

As narinas do segurança se dilatam e ele olha para Stephens.

— Você solicitou uma reunião com o sr. Hamburg — diz Stephens atrás de mim. — É claro que vamos revistá-la antes para verificar se está armada.

Droga!

Calma. Fique calma. Faça o que Izabel faria.

Respiro fundo, encarando-os com desprezo e um ar ameaçador. Então jogo minha bolsinha preta no segurança. Ele pega a bolsa quando ela bate em seu peito.

— Acho que está bem claro que eu não conseguiria esconder uma arma em um vestido como este, a menos que a enfiasse na boceta — digo, olhando para Stephens. — Minha arma está na bolsa. Mas nem pense em tocar...

— Deixem a moça entrar — ordena da porta uma voz familiar.

É Hamburg, ainda balofo e grotesco como antes, usando um terno imenso que parece em vias de estourar se ele respirar fundo demais.

Abro um leve sorriso para o segurança, que me encara com olhos assassinos. Conheço esse olhar, até demais. O homem tira a pistola e me devolve a bolsa.

— Sr. Hamburg — diz Stephens —, eu deveria ficar na sala com o senhor.

Hamburg balança a papada, rejeitando a sugestão.

— Não, vá cuidar do restaurante. Se essas pessoas tivessem vindo me matar, não seriam tão óbvias. Eu vou ficar bem.

— Pelo menos deixe Marion à porta — sugere Stephens, olhando para o guarda-costas.

— Sim — concorda Hamburg. — Você fica aqui. Não deixe ninguém interromper nossa... — diz ele, me olhando com frieza — reunião, a menos que eu peça. Se em algum momento você não ouvir minha voz por mais de um minuto, entre na sala. Como precaução, é claro.

Ele abre um sorrisinho para mim.

— É claro. — Imito Hamburg e sorrio também.

Ele dá um passo para o lado e me convida a entrar.

— Pensei que isso tivesse acabado, srta. Seyfried.

Hamburg fecha a porta.

— Sente-se — pede ele.

A sala é bem grande, com paredes lisas e arredondadas, sem cantos, de um lado a outro. Uma série de grandes quadros retratando o que parece ser cenas bíblicas rodeia uma grande lareira de pedra. Cada imagem é emoldurada em uma caixa de vidro, com luzes na parte de baixo. A sala é pouco iluminada, como o restaurante, e o cheiro é de incenso ou talvez de óleo aromático de almíscar e lavanda. Na parede à minha esquerda, há uma porta aberta que leva a outra sala, onde a luz cinza-azulada de várias telas de TV brilha nas paredes. Chego mais perto para me sentar na poltrona de couro com encosto alto diante da escrivaninha e espio dentro da saleta. É como eu imaginava. As telas mostram várias mesas do restaurante.

Hamburg fecha essa porta também.

— Não, está longe de acabar — respondo, enfim.

Cruzo as pernas e mantenho a postura ereta, o queixo levantado com ar confiante e os olhos em Hamburg, enquanto ele atravessa a sala na minha direção. Puxo a barra do vestido para cobrir completamente o punhal preso na coxa. Minha bolsa está no meu colo.

— Vocês já tiraram minha esposa de mim. — A indignação transparece na voz dele. — Não acham que foi o suficiente?

— Infelizmente, não. — Abro um sorriso malicioso. — Não foi o suficiente para você e sua esposa tirarem uma vida? Não, não foi — respondo por ele. — Vocês tiraram muitas vidas.

Hamburg morde o interior da bochecha e se senta atrás da escrivaninha, de frente para mim. Ele apoia as mãos gordas sobre o tampo de mogno. Percebo quanto ele quer me matar ali mesmo onde estou. Mas não fará isso porque acredita que não estou sozinha. Ninguém em sã consciência faria algo assim, vir até aqui sozinha, inexperiente e desprevenida.

Ninguém, a não ser eu.

Preciso garantir que ele continue acreditando que tenho cúmplices até descobrir como vou matá-lo e sair da sala sem ser pega. O pedido de Hamburg para que o guarda-costas entrasse na sala depois de um minuto sem ouvir sua voz pôs mais um obstáculo no plano que, na verdade, nunca tive de fato.

— Bem, devo dizer uma coisa — diz Hamburg, mudando de tom. — Você é deslumbrante com qualquer tipo de peruca. Mas admito que prefiro a morena.

Ele acha que meu cabelo castanho-avermelhado era uma peruca. Ótimo.

— Você é doente. Sabe disso, certo? — Tamborilo com as unhas no braço da poltrona.

Hamburg abre um sorriso medonho. Estremeço por dentro, mas mantenho a compostura.

— Eu não matei aquelas pessoas de propósito. Elas sabiam no que estavam se metendo. Sabiam que, no calor do momento, alguém poderia perder o controle.

— Quantas?

Hamburg estreita os olhos.

— O que importa isso, srta. Seyfried? Uma. Cinco. Oito. Por que não diz logo o motivo da sua visita? Dinheiro? Informação? A chantagem assume muitas formas, e não seria a primeira vez que enfrento uma. Sou um veterano.

— Fale sobre a sua esposa — peço, ganhando tempo e fingindo ainda ser quem dá as cartas. — Antes de “ir direto ao assunto”, quero entender sua relação com ela.

Uma parte de mim quer saber de verdade. E estou incrivelmente nervosa; sinto um enxame zumbindo no meu estômago. Talvez jogar conversa fora ajude a acalmar minha mente.

Hamburg inclina a cabeça para o lado.

— Por quê?

— Apenas responda à pergunta.

— Eu a amava muito — responde ele, relutante. — Ela era a minha vida.

— Aquilo é amor? — pergunto, incrédula. — Você manchou a memória dela ao dizer que ela era uma viciada em drogas que se suicidou, só para salvar a própria pele, e chama isso de amor?

Noto uma luz se movendo no chão, por baixo da porta da sala de vigilância. Não havia ninguém lá dentro antes, ao menos que eu tivesse visto.

— Como a chantagem, o amor assume muitas formas. — Hamburg apoia as costas na poltrona de couro, que range, cruzando os dedos roliços sobre a enorme barriga. — Mary e eu éramos inseparáveis. Não éramos como outras pessoas, outros casais, mas o fato de sermos tão diferentes não significava que nos amávamos menos do que os outros. — Os olhos dele cruzam os meus por um momento. — Tivemos sorte por encontrar um ao outro.

— Sorte? — pergunto, pasma com o comentário. — Foi sorte duas pessoas doentes se encontrarem e se unirem para fazer coisas doentias com os outros? Não entendo.

Hamburg balança a cabeça como se fosse um velho sábio e eu fosse jovem demais para entender.

— Pessoas diferentes como Mary e eu...

— Doentes e dementes — corrijo. — Não diferentes.

— Chame como quiser — diz ele, com ar de resignação. — Quando você é tão diferente assim da sociedade, do que é aceitável, encontrar alguém como você é algo muito raro.

Sem perceber, cerro os dentes. Não porque Hamburg esteja me irritando, mas porque nunca imaginei que esse homem nojento pudesse me dizer qualquer coisa que me fizesse pensar na minha situação com Victor, ou qualquer coisa que eu pudesse entender.

Afasto esse pensamento.

A luz fraca sob a porta da sala de vigilância se move de novo. Finjo não ter notado, sem querer dar a Hamburg qualquer motivo para achar que estou pensando em outra saída.

— Vim aqui saber nomes — digo de repente, sem ter pensado bem a respeito.

— Que nomes?

— Dos seus clientes.

Algo muda nos olhos de Hamburg, ele vai tomar o controle da situação.

— Você quer os nomes dos meus clientes? — pergunta ele, desconfiado.

Que merda...

— Pensei que você e Victor Faust já estivessem de posse da minha lista de clientes.

Continue séria. Não perca a compostura. Merda!

— Sim, estamos, mas me refiro àqueles que você não mantinha nos registros.

Acho que vou vomitar. Parece que minha cabeça está pegando fogo. Prendo a respiração, torcendo para ter me livrado dessa.

Hamburg me examina em silêncio, vasculhando meu rosto e minha postura em busca de qualquer sinal de autoconfiança abalada. Ele coça o queixo gordo e cheio de dobras.

— Por que você acha que existe uma lista fantasma?

Suspiro meio aliviada, mas ainda não estou fora de perigo.

— Sempre existe uma lista fantasma — afirmo, embora não faça nem ideia do que estou dizendo. — Quero pelo menos três nomes que não estejam no registro que nós temos.

Sorrio, sentindo que recuperei o controle da situação.

Até ele falar:

— Diga você três nomes da lista que já tem, e eu dou o que você quer.

É oficial: perdi o controle.

Engulo em seco e me controlo antes de parecer “pega no flagra”.

— Você acha que eu carrego a lista na bolsa? — pergunto com sarcasmo, tentando continuar no jogo. — Nada de negociações ou meios-termos, sr. Hamburg. O senhor não está em condições de fazer nenhuma barganha.

— É mesmo? — pergunta ele, sorrindo.

Ele suspeita de mim. Posso sentir. Mas vai garantir que está certo antes de dar o bote.

— Isso não está em discussão. — Eu me levanto da poltrona de couro, enfiando a bolsa debaixo do braço, mais frustrada do que antes por ter que entregar minha arma.

Pressiono os dedos na escrivaninha de mogno, apoiando meu peso neles ao me curvar um pouco na direção de Hamburg.

— Três nomes, ou saio daqui e Victor Faust entra para espalhar os seus miolos naquele belo quadro do menino Jesus atrás de você.

Hamburg ri.

— Esse não é o menino Jesus.

Ele se levanta junto comigo, alto, enorme e ameaçador.

Enquanto vasculho minha mente e tento entender como ele descobriu que sou uma farsante, Hamburg se adianta e anuncia seu raciocínio como um chute na minha boca.

— É engraçado, Izabel, você vir aqui pedir nomes que não aparecem em uma lista que você... — diz, apontando para a minha bolsa — ... nem carrega consigo, porque como você saberia que os nomes que eu daria não estão nela?

Estou muito ferrada.

— Vou dizer o que eu acho — continua ele. — Acho que você veio aqui sozinha por causa de alguma vingança contra mim. — Ele balança o indicador. — Porque eu me lembro de cada detalhe da porra daquela noite. Cada merda de detalhe. Especialmente a sua expressão quando percebeu que Victor Faust tinha vindo matar minha esposa em vez de mim. Era a expressão de alguém pega de surpresa, que não fazia ideia de por que estava ali. Era a expressão de alguém que não está familiarizada com o jogo.

Ele tenta sorrir com gentileza, como se quisesse demonstrar alguma espécie de empatia pela minha situação, mas o que leio em seu rosto é cinismo.

— Acho que, se houvesse mais alguém aqui com você, ele já teria aparecido para salvá-la, porque é óbvio que você está ferrada.

A porta do quarto principal se abre, o guarda-costas entra e a tranca. Por uma fração de segundo, tive a esperança de que fosse Victor vindo me salvar na hora certa. Mas foi só um desejo. O guarda-costas me olha com desprezo. Hamburg acena para ele, que começa a tirar o cinto.

Meu coração afunda até o estômago.

— Sabe — diz Hamburg, dando a volta na escrivaninha —, na primeira vez que a gente se viu, lembro que fiz um acordo com Victor Faust. — Ele aponta para mim. — Você se lembra disso, não?

Hamburg sorri e apoia a mão gorda nas costas da poltrona na qual eu estava sentada, virando-a para mim.

Todo o meu corpo está tremendo; parece que o sangue que passa pelas minhas mãos virou ácido. Ele corre pelo meu coração e pela minha cabeça tão rápido que quase desmaio. Começo a tentar alcançar meu punhal, mas eles estão perto demais, aproximando-se pelos dois lados. Não tenho como enfrentar os dois ao mesmo tempo.

— Como assim? — pergunto, tropeçando nas palavras, tentando ganhar um pouco de tempo.

Hamburg revira os olhos.

— Ora, por favor, Izabel. — Ele gira um dedo no ar. — Apesar do que aconteceu naquela noite, fiquei decepcionado de verdade por vocês dois irem embora antes de cumprir o acordo.

— Eu diria que, em vista do que aconteceu, o acordo não vale mais nada.

Ele sorri para mim e se senta na poltrona de couro. Percebo Hamburg espiar de relance o guarda-costas, dando uma ordem só com o olhar.

Antes que eu consiga me virar, o segurança prende minhas duas mãos nas minhas costas.

— Você vai cometer um erro do caralho se fizer isso! — grito, tentando me livrar das garras do segurança.

Ele me leva à força até uma mesa quadrada e me joga sobre ela. Meus reflexos não são rápidos o suficiente e meu queixo bate no mármore duro. O gosto metálico do sangue enche minha boca.

— Me solte! — Tento chutá-lo. — Me solte agora!

Hamburg ri de novo.

— Vire a cabeça dela para esse lado — ordena ele.

Dois segundos depois, meu pescoço é torcido para o outro lado e mantido ali, minha bochecha esquerda pressionada contra o mármore frio.

— Quero ver a cara dela enquanto você a fode. — Hamburg me olha de novo. — Então vamos continuar do ponto onde paramos naquela noite, tudo bem? Você concorda, Izabel?

— Vai se foder!

— Ah, não, não — diz ele, ainda com o riso na voz. — Não sou eu quem vai foder você. Você não faz o meu tipo. — Seus olhos famintos percorrem o corpo do segurança que está me pressionando por trás.

— Eu vou matar você — digo, cuspindo por entre os dentes. A mão do segurança sobre a minha cabeça impede que eu a mexa. — Vou matar vocês dois! Me estupre! Vamos lá! Mas os dois vão estar mortos antes que eu saia daqui!

— Quem disse que você vai sair daqui? — provoca Hamburg.

O zíper da calça dele está aberto; sua mão direita está parada ao lado da braguilha, como se ele estivesse tentando manter algum autocontrole e não se masturbar ainda.

Então Hamburg acena com dois dedos para o guarda-costas, que me mantém imóvel segurando meus cabelos da nuca.

— Lembre-se disso — diz ele ao segurança. — Ela não vai sair daqui.

Sinto a mão direita do guarda-costas soltar meu cabelo e se mover entre as minhas pernas. Enquanto ele ergue meu vestido, aproveito para alcançar o punhal na minha coxa e tirá-lo da bainha, golpeando atrás em um ângulo desajeitado. O segurança grita de dor e me solta. Puxo o punhal ainda firme na mão, que está coberta de sangue. Ele cambaleia para trás, com a mão na base do pescoço, o sangue jorrando entre seus dedos.

— Sua puta do caralho! — ruge Hamburg, saltando da poltrona e vindo atrás de mim como um elefante descontrolado, a calça caindo de sua cintura flácida.

Corro na direção dele com o punhal levantado e colidimos no meio da sala. Seu peso me joga de bunda no chão e o punhal cai da minha mão, deslizando pelo piso ensanguentado. De pé, Hamburg se abaixa para me segurar, mas me reclino no chão e levanto o pé com toda a força, enfiando o salto da minha sandália na lateral do seu rosto. Ele geme e cambaleia para trás, com a mão na bochecha.

— Eu vou acabar com você! Puta que pariu! — berra ele.

Engatinho na direção do punhal, vendo o segurança no chão, em meio a uma poça de sangue. Ele está engasgando com os próprios fluidos; tentando em vão encher os pulmões de ar.

Pego o punhal com firmeza e rolo no chão enquanto Hamburg se aproxima, derrubando a poltrona de couro. Fico de pé e corro até a mesa, empurrando-a na direção dele. Hamburg tenta tirá-la da frente, mas o móvel balança sobre a base e ele acaba tropeçando. Seu corpo desaba no chão de barriga para baixo e a mesa cai quase na sua cabeça. Salto sobre suas costas e monto em seu corpo obeso. Meus joelhos mal tocam o chão. Agarro seu cabelo, puxo a cabeça dele para trás na minha direção e aperto o punhal em sua garganta, imobilizando-o em segundos.

— Pode me matar! Foda-se! Você não vai sair viva daqui mesmo. — A voz de Hamburg é rouca, sua respiração, rápida e ofegante, como se ele tivesse acabado de tentar correr uma maratona. O cheiro de seu suor e de seu medo invade minhas narinas.

Ocupada com a lâmina em sua garganta, me assusto com o som de batidas fortes na porta. A distração me pega desprevenida. Hamburg consegue se erguer debaixo de mim como um touro, rolando de lado e me derrubando no chão. Deixo cair o punhal em algum lugar, mas não tenho tempo para procurá-lo porque Hamburg consegue se levantar e parte para cima de mim. Ouço a voz de Stephens do outro lado da porta, que vibra com seus socos.

Rolo para sair do caminho antes que Hamburg consiga pular em cima de mim, pego o objeto mais próximo — um peso de papel de pedra, bem pesado, que estava na mesa antes de ser derrubada — e golpeio Hamburg com ele. O som do osso de seu rosto quebrando com o impacto faz meu estômago revirar. Hamburg cai para trás, cobrindo a cara com as mãos.

As batidas na porta ficam mais fortes. Numa fração de segundo, levanto a cabeça e vejo a porta sacudindo com violência no batente. Preciso sair daqui. Agora. Meu olhar varre a sala procurando o punhal, mas não há mais tempo.

Corro para a sala de vigilância, contornando os obstáculos.

Graças a Deus, há outra porta lá dentro. Abro a porta e desço correndo a escada de concreto, torcendo para que seja uma saída e eu não encontre mais ninguém no caminho.


CAPÍTULO CINCO

Sarai

Desço a escada de concreto de dois em dois degraus, segurando no corrimão de metal pintado com as mãos ensanguentadas, até chegar ao térreo. Uma placa vermelha com a palavra SAÍDA está à minha frente. Corro pela passagem mal-iluminada, onde uma lâmpada fluorescente pisca acima de mim e torna o lugar ainda mais ameaçador. Empurro com força a barra da porta com as duas mãos e ela se abre para um beco. Um homem de terno está sentado no capô de um carro, fumando, quando saio para a rua.

Eu fico paralisada.

Ele olha para mim.

Eu olho para ele.

Ele nota o sangue nas minhas mãos e olha de relance para a porta, depois para mim.

— Vá — diz ele, acenando para a caçamba de lixo à minha direita.

Sei que não tenho tempo para ficar confusa nem para perguntar por que ele está me deixando ir embora, mas pergunto assim mesmo.

— Por que você está...?

— Apenas vá!

Ouço passos ecoando na escada atrás da porta.

Lanço um olhar agradecido ao homem e dou a volta na caçamba, desço o beco e me afasto do restaurante. Ouço um tiro segundos depois que dobro a esquina e torço para que seja aquele homem fingindo atirar em mim.

Evito espaços abertos e corro por trás de prédios, protegida pela escuridão, tanto quanto minhas sandálias de salto alto permitem. Quando sinto que estou longe o suficiente para parar um pouco, tento me esconder atrás de outra caçamba e tiro as sandálias. Arranco a peruca loura e a jogo no lixo.

Não consigo respirar. Estou enjoada.

Meu Deus, estou enjoada...

Encosto na parede de tijolos atrás de mim, arqueando as costas e apoiando as mãos nos joelhos. Vomito com violência no chão, meu corpo rígido, o esôfago ardendo.

Pego as sandálias e saio correndo de novo na direção do hotel, tentando esconder o sangue das mãos e do vestido, mas percebo que não é tão fácil. Recebo alguns olhares desconfiados ao passar depressa pela recepção, mas tento ignorá-los e torço para que ninguém chame a polícia.

Em vez de arriscar ser vista por outras pessoas, subo pela escada até o oitavo andar. Quando chego lá, e depois de tudo o que corri, sinto que minhas pernas vão ceder. Encosto na parede e recupero o fôlego, com os joelhos tremendo descontroladamente. Meu peito dói, como se cada respiração trouxesse poeira, fumaça e cacos microscópicos de vidro para o fundo dos pulmões.

O quarto que divido com Eric está trancado e eu não tenho a chave. Aliás...

— Puta merda...

Jogo a cabeça para trás, fecho os olhos e suspiro, arrasada.

Não estou mais com a minha bolsa. Eu a perdi em algum momento da luta na sala de Hamburg. A chave do meu quarto. Meu celular. Minha arma. Meu punhal. Não tenho mais nada.

Bato na porta, mas Eric não está no quarto. Não esperava que estivesse, na verdade, já que não são nem onze da noite. Só para o caso de estar enganada, no entanto, tento o quarto de Dahlia.

— Dahl! Você está aí? — Bato na porta com pressa, tentando não incomodar os outros hóspedes.

Nenhuma resposta.

Já desistindo, jogo as sandálias no chão e apoio as mãos na parede. Minha cabeça desaba. Mas então ouço um clique baixinho e vejo a porta do quarto de Dahlia se abrindo devagar. Levanto a cabeça e a vejo parada ali.

Sem me demorar para questionar a expressão estranha no rosto dela, entro no quarto só para sair do corredor. Eric está sentado na poltrona perto da janela. Noto que seu cabelo está meio bagunçado. O de Dahlia também.

Meu instinto está tentando chamar minha atenção, mas não me importo. Acabei de apunhalar um homem no pescoço e de tentar matar outro. Quase fui estuprada. Estava correndo pelos becos de Los Angeles para fugir de homens armados que vinham atrás de mim. Nada que esses dois façam pode superar isso.

— Meu Deus, Sarai — diz Dahlia, aproximando-se de mim. — Isso é sangue?

A expressão estranha e silenciosa que ela exibia quando entrei no quarto desaparece em um instante quando ela me vê no quarto bem-iluminado. Seus olhos se arregalam, cheios de preocupação.

Eric se levanta da poltrona.

— Você está sangrando. — Ele também me olha de cima a baixo. — O que aconteceu?

Os olhos de Dahlia correm pela minha roupa e pelo meu cabelo preso dentro da touca da peruca.

— Por que... Hã, por que você está vestida assim?

Olho para mim mesma. Não sei o que dizer, então não digo nada. Eu me sinto como um cervo diante dos faróis de um carro, mas minha expressão continua firme e sem emoções, talvez um pouco confusa.

— Você encontrou Matt — acusa Dahlia, começando a levantar a voz. — Puta que pariu, Sarai. Você foi se encontrar com ele, não foi?

Sinto os dedos dela apertando meu antebraço.

Eu me desvencilho de Dahlia e caminho até o banheiro para tirar a touca do cabelo. Enquanto tiro os grampos, noto uma camisinha boiando na privada.

Eric entra no banheiro atrás de mim. Ele sabe que eu vi.

— Sarai, e-eu... Eu sinto muito — diz ele.

— Não se preocupe — respondo, tirando o último grampo e deixando-o na bancada creme.

Passo por Eric e volto para o quarto. Dahlia está me encarando, com o rosto cheio de vergonha e arrependimento.

— Eu...

Ergo a mão e olho para os dois.

— Não, é sério. Não estou brava.

— Como assim? — pergunta Dahlia.

Eric parece agitado. Ele põe a mão na nuca e passa os dedos pelo cabelo.

— Olhe, sem querer ofender — digo a Eric —, mas tenho fingido tudo com você desde a primeira vez que a gente ficou junto.

Ele arregala os olhos, embora tente não deixar que o choque e a mágoa da minha revelação transpareçam demais. Grande parte de mim se sente bem por dizer a verdade. Não por vingança, mas porque eu precisava tirar isso do peito. Mas admito que, depois de descobrir que os dois têm trepado pelas minhas costas, uma pequena parte de mim também fica feliz em magoá-lo. Acho que a vingança sempre encontra um caminho, mesmo nos gestos mais insignificantes.

— Fingido?

— Não tenho tempo para isso — digo, indo na direção da porta. — Vocês dois podem ficar juntos. Não tenho nada contra. Não estou brava, só não me importo mesmo. Preciso ir.

— Espere... Sarai.

Eu me viro para olhar Dahlia. Ela está muito chocada, mal sabe o que pensar. Depois de alguns segundos de silêncio, fico impaciente e a olho com cara de “vai, desembucha”.

— Para você... tudo bem mesmo?

Uau, não sirvo mesmo para o estilo de vida deles. O estilo de vida normal. Nem consigo entender essas coisas de namoro, melhores amigas, infidelidade, competição e joguinhos psicológicos. A cara que eles fazem, tão vazia e mesmo assim tão cheia de incredulidade e dúvida, por causa de uma situação que, para mim, não é tão importante... Tenho coisas mais graves com que me preocupar.

Suspiro, aborrecida com as perguntas vagas e confusas dos dois.

— Sim, por mim, tudo bem — digo, e então me viro para Eric, estendendo a mão. — Preciso da chave do nosso quarto.

Relutante, ele enfia a mão no bolso de trás e pega a chave. Tomo da sua mão, saio dali e vou para o quarto ao lado. Eric vem atrás e tenta falar comigo enquanto guardo minhas coisas na mala.

— Sarai, eu nunca quis...

Eu me viro de repente e o encaro.

— Tudo bem, só vou dizer isto uma vez, depois você muda de assunto ou volta para lá e fica com a Dahlia. Não estou nem aí para o que vocês dois fazem, mas, por favor, não apele para esse clichê de novela de que você nunca quis que isso acontecesse, porque... é muito idiota. — Eu rio baixinho, porque acho idiota mesmo. — Só falta você dizer que o problema não é comigo, é com você. Caramba, você faz ideia do que isso parece? É tão difícil assim acreditar quando digo que não me importo e que estou falando sério? Sem joguinhos. É verdade. — Balanço a cabeça, levanto as mãos e digo: — Não. Me. Importo.

Viro para a mala, fecho o zíper, abro a parte lateral e pego a chave do quarto secreto. Ainda bem que eu tinha uma cópia.

— Preciso ir — digo, andando até a porta e passando por Eric.

— Aonde você vai?

— Não posso contar, mas me escute, Eric, por favor. Se alguém aparecer me procurando, finja que não me conhece. Diga o mesmo para Dahlia. Finjam que nunca me viram na vida. Aliás, quero que vocês dois saiam hoje. Vão para qualquer lugar. Só... não fiquem aqui.

— Você vai me dizer o que aconteceu ou por que está toda ensanguentada? Sarai, você está me deixando assustado pra cacete.

— Eu vou ficar bem — digo, atenuando minha expressão. — Mas prometa que você e Dahlia vão fazer exatamente o que falei.

— Você vai me contar um dia?

— Não posso.

O silêncio entre nós fica mais pesado.

Enfim, abro a porta e saio para o corredor.

— Acho que sou eu quem deveria estar pedindo desculpas.

— Por quê?

Eric fica na porta, com os braços caídos ao lado do corpo.

— Por pensar em outra pessoa durante todo esse tempo em que eu estava com você. — Olho para o chão.

Nós nos encaramos por um breve momento e ninguém diz mais nada. Ambos sabemos que estamos errados. E acho que nós dois estamos aliviados por tudo ter vindo à tona.

Não há mais nada a dizer.

Eu me afasto pelo corredor na direção oposta à do meu quarto secreto e dou a volta por trás, para que Eric não veja aonde estou indo. Quando me tranco no quarto, só consigo desabar na cama. A exaustão, a dor e o choque de tudo o que aconteceu esta noite me atingem em cheio assim que a porta se fecha, e me engolem como uma onda. Eu me jogo de costas no colchão. Minhas panturrilhas doem tanto que duvido conseguir andar sem mancar amanhã.

Fico olhando para o teto escuro até ele desaparecer e eu pegar no sono.


CAPÍTULO SEIS

Sarai

Um tum! pesado me acorda, mais tarde naquela noite. Eu me levanto como uma catapulta.

Vejo dois homens no meu quarto: um desconhecido morto no chão e Victor Faust de pé sobre o corpo dele.

— Levante-se.

— Victor?

Não acredito que ele está aqui. Devo estar sonhando.

— Levante-se, Sarai. AGORA! — Victor me pega pelo cotovelo, me arranca da cama e me põe de pé.

Não consigo nem pegar minhas coisas, ele já está abrindo a porta e me puxando para o corredor com ele, segurando forte a minha mão.

Disparamos juntos pelo corredor e outro homem aparece virando a esquina, de arma em punho. Victor aponta sua 9mm com silenciador e o derruba antes que o cara consiga atirar. Ele passa pelo corpo me puxando, seus dedos fortes afundando na minha mão enquanto corremos para a escada. Ele abre a porta, me empurra para a frente e nós subimos depressa os degraus de concreto. Um andar. Três. Cinco. Minhas pernas estão me matando. Acho que não consigo andar por muito mais tempo. Enfim, no quinto andar, Victor me puxa para outro corredor e rumo a um elevador nos fundos.

Quando as portas do elevador se fecham e estamos só nós dois lá dentro, finalmente tenho a oportunidade de falar.

— Como você sabia que eu estava aqui? — Mal consigo recuperar o fôlego, esgotada pela correria infinita e pela adrenalina, mas acho que sobretudo porque Victor está de pé ao meu lado, segurando minha mão.

Meus olhos começam a arder com as lágrimas.

Engulo o choro.

— O que você estava pensando, Sarai?

— Eu...

Victor segura meu rosto com as duas mãos e me empurra contra a parede do elevador, pressionando ferozmente seus lábios nos meus. Sua língua se entrelaça na minha e sua boca tira meu fôlego em um beijo apaixonado que, enfim, faz meus joelhos cederem. Toda a força que eu estava usando para manter o corpo ereto desaparece quando os lábios dele me tocam. Ele me beija com fome, com raiva, e eu derreto em seus braços.

Então ele se afasta, as mãos fortes nos meus braços, me segurando contra a parede do elevador. Nós nos encaramos pelo que parece ser uma eternidade, nossos olhos paralisados em uma espécie de contemplação profunda, nossos lábios a centímetros de distância. Só quero prová-los de novo.

Mas ele não deixa.

— Responda — exige Victor, estreitando seus olhos perigosos em reprovação.

Já esqueci a pergunta.

Ele me sacode.

— Por que você veio aqui? Tem ideia do que você fez?

Balanço a cabeça em um movimento curto e rápido, parte de mim mais preocupada com seu olhar ameaçador do que com o que ele está dizendo.

A porta do elevador se abre no subsolo e eu não tenho tempo para responder, pois Victor mais uma vez pega minha mão e me puxa para que o siga. Serpenteamos por um grande depósito com caixas em pilhas altas encostadas nas paredes e depois por um longo corredor escuro que leva a um estacionamento. Victor enfim solta minha mão e eu o sigo até um carro parado entre dois furgões pretos com o logotipo do hotel nas laterais. Dois bipes ecoam pelo ambiente e os faróis do carro piscam quando nos aproximamos, iluminando a parede de concreto em frente. Sem perder tempo, me sento no banco do passageiro e fecho a porta.

Segundos depois, Victor está dirigindo casualmente pelo estacionamento até a rua.

— Eu queria que ele morresse — respondo, enfim.

Victor não me olha.

— Bom, você fez um excelente trabalho — rebate ele, sarcástico.

Ele vira para a direita no semáforo, e o carro ganha velocidade quando chegamos à rodovia.

Fico magoada por suas palavras, mas sei que ele tem razão, por isso não discuto. Fiz merda. Uma merda muito grande.

Mas não me dou conta do tamanho dela até Victor dizer:

— Os seus amigos podiam ter morrido. Você podia ter morrido.

Sinto meus olhos se arregalarem além dos limites e me viro mais um pouco para encará-lo.

— Ah, não... Victor, o quê... Eles estão bem?

Sinto que vou vomitar de novo.

Victor me olha por um instante.

— Estão ótimos. O primeiro quarto que os capangas de Hamburg revistaram estava vazio — diz ele, voltando a olhar para a estrada. — Eu cheguei quando eles estavam saindo. Segui um deles até o quarto onde você estava escondida, deixei que ele destrancasse a porta e então ataquei.

As chaves do quarto. Minhas duas chaves extras estavam na bolsa que perdi no restaurante de Hamburg. E os números dos quartos estavam escritos nas capinhas de papel que as protegiam. Eu estava tão preocupada em esconder minha arma e meu punhal que nem pensei em esconder as chaves.

— Merda! — Também olho para a estrada. — E-eu perdi a bolsa no restaurante. As chaves do meu quarto estavam dentro dela. Deixei um rastro para eles seguirem!

Felizmente, eu não tinha uma chave extra do quarto de Dahlia, senão ela e Eric já poderiam estar mortos.

Onde é que eu estava com a cabeça?!

— Não, você deixou literalmente as chaves do seu quarto com o nome do hotel gravado. Sarai, eu devia ter matado você há muito tempo e poupado toda essa confusão para cima de você e de mim.

Eu me viro para encará-lo; a raiva e a mágoa pesando no meu peito.

— Você não está falando sério.

Ele faz uma pausa e me olha. Suspira.

— Não, não estou falando sério.

— Nunca mais me diga isso. Nunca mais me diga uma coisa dessas, ou eu mato você e poupo a mim de toda essa confusão — rebato, desviando o olhar.

— Você não está falando sério — diz Victor.

Olho mais uma vez para aqueles olhos ameaçadores verde-azulados que me fizeram tanta falta.

— Não. Mas acho que isso seria o mais sensato.

— Bom, você não foi a campeã da sensatez hoje, então acho que estou seguro ao menos pelas próximas 24 horas.

Escondo o sorriso.

— Senti sua falta — digo de maneira distante, olhando para a estrada.

Victor não responde, mas admito que seria estranho se respondesse. A despeito de sua falta de emoção, porém, sei que ele também sentiu saudade de mim. Aquele beijo no elevador disse coisas que palavras jamais conseguiriam.

Ele pega uma saída e para o carro debaixo de um viaduto. Puxa o freio de mão e a área ao redor desaparece na escuridão quando ele desliga os faróis.

— O que a gente está fazendo aqui?

— Você precisa ligar para os seus amigos.

— Por quê?

Ele tira um celular do porta-luvas entre nós.

— Mande eles voltarem para o Arizona. Faça ou diga o que for preciso para que eles saiam de Los Angeles. Quanto antes, melhor.

Ele coloca o telefone na minha mão. De início, só olho para o aparelho, mas ele me pressiona com aquele olhar, aquele que grita “vamos lá, faça isso de uma vez”, mas que só alguém como eu, alguém que conhece Victor, seria capaz de notar.

Giro o celular nas mãos, depois o seguro firmemente e digito o número de Eric. Mas então mudo de ideia, desligo no primeiro toque e ligo para Dahlia.

Ela atende no quinto toque.

Respiro fundo e faço o que sei fazer melhor: minto.

— A verdade é que vocês me magoaram. Duvido que um dia eu consiga perdoar você ou Eric pelo que fizeram.

— Sarai... Meu Deus, me desculpe, estou me sentindo muito mal. A gente não queria que isso chegasse a esse ponto. Juro para você. Não sei o que aconteceu...

— Escute, Dahlia, por favor, só me escute.

Ela fica quieta.

Começo a choradeira. Nunca imaginei que eu seria capaz de chorar sob demanda e de forma tão falsa.

— Eu quero acreditar em você. Quero conseguir confiar em você de novo, mas você era minha melhor amiga e me traiu. Preciso de um tempo sozinha e quero que você e Eric voltem para o Arizona. Hoje. Acho que não vou aguentar ver vocês de novo... Espere, onde você está, agora?

Acabo de me dar conta de que, se ela e Eric estiverem no hotel, a essa altura ela já sabe que dois homens foram mortos a tiros no andar do quarto deles.

— A gente está em uma festa em um terraço — conta ela. — T-tudo bem por você? Achei que não tinha nada a ver a gente sair, mas o Eric falou que você insistiu...

— Não, tudo bem — digo, cortando-a. — Insisti mesmo. Onde ele está, agora?

— Deixei Eric lá no terraço para a gente poder conversar. Está muito barulhento lá em cima. Que número é esse de onde você está ligando?

— É o celular de um amigo. Perdi o meu. O Eric por acaso avisou que se alguém procurar por mim...

— Avisou, sim — interrompe Dahlia. — Que confusão é essa, afinal? Meu Deus, Sarai, esquece por um momento esse lance com Eric e me conta o que está acontecendo, por favor. O sangue. As roupas esquisitas que você estava usando e aquele troço na sua cabeça. Era uma touca de peruca? Você está metida em alguma encrenca, eu sei. Sei que você me odeia, e tem todo o direito de odiar, mas, por favor, conte o que aconteceu.

— Não posso contar, porra! — grito, deixando o choro distorcer minha voz. — Caramba, Dahlia, faça o que eu pedi. Pelo menos isso! Você deu para o meu namorado! Por favor, voltem para o Arizona, me deixem esfriar a cabeça e depois eu volto para casa. Talvez aí a gente possa conversar. Mas agora façam o que eu estou pedindo. Tudo bem?

Ela não responde por um momento, e um longo silêncio se forma entre nós.

— Tudo bem — concorda ela. — Vou dizer ao Eric que a gente precisa ir embora.

— Obrigada.

Estou apenas um pouco aliviada. Não vou me sentir bem com isso até saber que eles chegaram em casa sãos e salvos.

Desligo sem dizer mais uma palavra.

— Bom, isso foi bastante convincente — observa Victor, levemente impressionado.

— Acho que foi.

— Eu sei que a sua amiga acreditou — acrescenta ele. — Mas eu não acreditei em uma só palavra.

Eu me viro para ele. Victor me conhece tão bem quanto eu o conheço, parece.

— É porque nem uma palavra era verdade.

Ele deixa por isso mesmo e nós saímos de baixo do viaduto.

Chegamos a uma casa perdida no final de uma estrada isolada nos arredores da cidade, empoleirada no alto de uma colina com uma vista quase perfeita para a cidade lá embaixo. Uma piscina de formato irregular começa no lado esquerdo da casa e serpenteia por trás, a água azul-clara iluminada por lâmpadas submersas parece luminescente. O lugar está silencioso. Só ouço o vento passando pela mata cerrada que contorna o lado direito e os fundos da casa, impedindo uma visão em 360 graus da paisagem iluminada de Los Angeles. Quando nos aproximamos da porta, uma mulher robusta usando uniforme azul de empregada nos recebe. Ela tem cabelo preto encaracolado e pele morena. Suas bochechas são volumosas, envolvendo seus olhos castanho-escuros pequenos e brilhantes, que fitam atentamente Victor e a mim.

— Por favor, entrem — diz ela, com um sotaque hispânico familiar.

A mulher fecha a porta. A casa cheira a limpa-vidro e a uma mistura pouco natural de cheiros adocicados que só pode vir de algum tipo de aromatizador de ambientes artificial. Parece que todas as janelas foram abertas, permitindo que a brisa noturna de verão se espalhasse pela casa. Não se parece em nada com as mansões ricas onde já estive, mas é impecável e aconchegante, e penso que eu deveria pelo menos ter tomado um banho antes de vir. Minha pele e minhas roupas ainda estão manchadas de sangue...

Victor está usando uma calça preta e uma camisa apertada de mangas compridas que adere a cada músculo de seus braços e seu peito, com os punhos desabotoados e arregaçados até os cotovelos. A camisa está por fora da calça e os dois botões de cima estão abertos. Sapatos pretos chiques e informais calçam seus pés. Um relógio brilhante de prata adorna seu pulso direito, e não consigo deixar de notar a solitária veia grossa que percorre as costas de sua mão até o osso de seu pulso. Quando ele segue a empregada pela grande entrada e se vira momentaneamente de costas para mim, vejo o cabo da arma saindo da cintura de sua calça, com a barra da camisa branca enfiada atrás.

Ele me olha, para e estende o braço, em um gesto para que eu ande à sua frente. Tremo de leve quando sua mão toca minhas costas perto da cintura.

Antes que eu tenha tempo de me sentir deslocada ao lado dele, Fredrik, o amigo e cúmplice sueco de Victor que conheci no restaurante de Hamburg há tanto tempo, entra na sala pelas grandes portas de vidro que dão para o quintal dos fundos.


CAPÍTULO SETE

Sarai

— Você chegou cedo — comenta Fredrik com um sorriso mortal, porém inimaginavelmente sexy.

As roupas dele são bem parecidas com as de Victor, mas, em vez de camisa de botão, Fredrik está vestindo uma camiseta branca apertada que adere à sua forma esbelta e máscula. Ele está descalço.

A primeira vez que vi Fredrik, pensei que era impossível haver alguém mais bonito. Com cabelo macio, quase preto, e olhos escuros e misteriosos, suas feições parecem ter sido esculpidas por algum artista famoso. Mas sempre achei que havia algo de sombrio e assustador naquele homem. Um lado dele que eu, particularmente, não faço questão de conhecer. Para mim, basta o jeito como ele era quando nos encontramos: cordial, encantador e misterioso, uma linda máscara que ele usa para esconder a fera que há por trás.

Victor olha para seu relógio caro.

— Só dez minutos mais cedo — comenta ele.

Fredrik sorri ao se aproximar, os dentes brancos reluzindo contra a pele bronzeada.

— Sim, mas você sabe como eu sou.

Victor assente, mas não alonga o assunto. A mim, só resta imaginar o que aquilo significa.

— É bom ver você — diz Fredrik, observando-me do topo de sua altura considerável e presença avassaladora. Ele se inclina, pega minha mão e a beija, logo acima dos nós dos dedos. — Ouvi dizer que você matou um homem hoje.

Ele apruma as costas e solta minha mão. Um sorriso perturbador e orgulhoso surge em seu rosto, os cantos dos olhos se aquecendo com alguma lembrança ou... prazer, como se a ideia de matar alguém o deliciasse de alguma forma.

Olho para Victor à minha direita. Ele assente, respondendo à pergunta estampada no meu rosto. O guarda-costas que apunhalei no pescoço morreu?

Olho para Fredrik e respondo sem rodeios.

— Acho que matei.

Um leve sorriso se abre nos cantos dos lábios de Fredrik, e ele olha de relance para Victor, sem mover a cabeça.

— E você se sente bem com isso? — pergunta Fredrik.

— Para dizer a verdade, sim — respondo sem demora. — O desgraçado mereceu.

Fredrik e Victor parecem envolvidos em algum tipo de conversa secreta. Odeio isso.

Enfim, Fredrik diz para Victor em voz alta:

— Você arrumou sarna para se coçar, Faust.

Ele então se vira de costas para nós e anda na direção das portas de vidro. Nós o seguimos para o lado de fora, passando pela parte coberta do quintal e descendo uma escada de pedra que leva a um enorme pátio, também de pedra, que se abre em todas as direções. O pátio é decorado com mesas e cadeiras de ferro batido e uma cama com dossel ao ar livre.

Eu me sento ao lado de Victor em um sofá.

— Como é que você sabe? — pergunto a Fredrik, mas então me viro para Victor e digo: — E você ainda não me contou como sabia que eu estava aqui.

Na verdade, isso não importa muito, só quero encará-lo nos olhos de novo. Quero ficar sozinha com Victor, mas por enquanto vou precisar me contentar com os 7 centímetros entre nossos corpos, sentados lado a lado.

— Melinda Rochester me contou — explica Fredrik com um sorriso conivente. Começo a perguntar “E quem é Melinda Rochester”, mas ele diz: — Bem, ela contou para todo mundo, na verdade. Noticiário do Canal 7. Um homem morto a punhaladas atrás de um restaurante de Los Angeles.

Começo a me retorcer por dentro. Espero que as câmeras não tenham me mostrado com nitidez.

Eu me viro para Victor, com a preocupação transparecendo no rosto.

— Eu estava de peruca loura — digo, tentando encontrar alguma coisa, qualquer coisa que eu tenha feito certo. — Fiquei com a cabeça baixa... a maior parte do tempo.

Desisto. Sei que o que fiz vai continuar me perseguindo. Suspiro e olho para as mãos ensanguentadas no meu colo.

— E encontrar você foi fácil — continua Victor. — A sra. Gregory me ligou depois que você saiu do Arizona. Ela estava preocupada com a sua vinda para Los Angeles e achou que eu precisava saber.

Viro a cabeça para encará-lo.

— O quê? Dina sabia onde você estava? — Sinto a pele ao redor das sobrancelhas se enrijecendo.

— Não — responde ele, com delicadeza. — Ela não sabia onde eu estava, mas sabia como entrar em contato comigo.

Essas palavras me magoam. Engulo em seco a sensação de ser traída por eles.

— Falei para ela entrar em contato comigo só em caso de emergência — acrescenta Victor. — Caso algo acontecesse com você.

— Você deixou para Dina uma forma de entrar em contato — digo, ríspida —, mas para mim, nada. Não acredito que você fez isso.

— Eu queria que você tocasse a sua vida. Mas, caso os irmãos de Javier descobrissem onde você estava, ou você decidisse fazer uma proeza como a de hoje, eu queria ficar sabendo.

Não consigo olhar para Victor. Tento chegar mais alguns centímetros para o lado a fim de aumentar a distância entre nós. Ainda assim, mesmo que esteja magoada e enfurecida com ele, sinto vontade de me aproximar de novo. Mas me mantenho firme e me recuso a deixá-lo perceber que o poder que ele exerce sobre mim faz a raiva que sinto parecer um chilique.

— Não acredito que Dina escondeu isso de mim — digo em voz alta, ainda que esteja falando mais comigo mesma.

— Ela escondeu de você porque eu disse a ela quanto isso era importante.

— Bom, de qualquer maneira — interrompe Fredrik, sentando-se na poltrona ao lado do sofá —, parece que você se meteu em uma situação da qual não vai conseguir sair tão facilmente, se é que vai conseguir.

— Por que a gente está aqui? — pergunto, aborrecida.

Fredrik ri baixinho.

— Aonde mais você iria?

— Eu precisava tirar você do hotel — explica Victor.

— Espere um pouco. Eu não matei aquele homem atrás do restaurante. Tudo aconteceu na sala particular de Hamburg, no andar de cima.

Recordo o homem que vi do lado de fora, atrás do restaurante, aquele que me deixou fugir, e meu coração afunda.

— Hamburg não deixaria que a polícia acreditasse que o assassinato aconteceu lá dentro, porque eles confiscariam a memória da câmera de vigilância e veriam o que realmente aconteceu.

Não estou entendendo nada. Nadinha.

— Eles não iam querer que a polícia soubesse o que realmente aconteceu?

Fredrik se reclina na poltrona e ergue um pé descalço, apoiando o tornozelo sobre o outro joelho, e estende os braços sobre os da poltrona.

Victor balança a cabeça.

— Preciso mesmo explicar isso para você, Sarai?

Sua vaga irritação me pega de surpresa. Olho para ele e levo alguns segundos para entender tudo sem que ele precise explicar.

— Ah, entendi — digo, olhando um de cada vez. — Hamburg não quer que a polícia se envolva porque corre o risco de se expor. O que ele fez, então? Só levou o corpo para fora? Preparou a situação para parecer um assalto comum? Não muito diferente do que ele fez naquela noite em que a gente estava na mansão dele, imagino.

Paro por aí porque Fredrik está presente. Não sei qual o grau de intimidade entre ele e Victor, nem mesmo se Fredrik sabe o que aconteceu na noite em que Victor matou a esposa de Hamburg.

Os olhos de Victor sorriem de leve para mim: sua maneira de me mostrar quanto lhe agrada eu ter entendido tudo. Ainda fingindo estar aborrecida, não retribuo o olhar da forma que ele deve esperar.

A empregada aparece com um balde chique de gelo, de madeira, com três garrafas de cerveja dentro. Fredrik pega uma, então ela nos oferece. Victor pega uma garrafa, mas recuso, mal conseguindo olhar a mulher nos olhos. Estou absorta demais nos acontecimentos da noite, que não me saem da cabeça.

A empregada vai embora logo depois, sem dizer uma palavra.

— O que você quis dizer com os irmãos de Javier?

Victor abre sua garrafa e a põe na mesa.

— Dois deles, Luis e Diego, assumiram os negócios de Javier dias depois que você o matou.

Por um instante, o rosto de Javier surge em minha mente: sua expressão chocada e ainda orgulhosa, os olhos arregalados, o corpo caindo no chão segundos depois de eu meter uma bala em seu peito.

Afasto a imagem.

Eu me lembro de Luis e Diego. Diego é aquele que tentou me estuprar quando eu estava na fortaleza no México, aquele que Javier castrou como punição.

— Eles estão me procurando?

Victor toma um gole de cerveja e devolve a garrafa à mesa com calma.

— Que eu saiba, não. Estou monitorando a fortaleza há meses. Os irmãos de Javier são amadores. Não têm ideia do que fazer com tanto poder. Duvido até que vejam você como ameaça.

Fredrik toma um gole de cerveja e prende a garrafa entre as pernas.

— Não fique tão aliviada assim — diz ele. — É melhor ser perseguida por amadores do que por Hamburg e aquele braço direito dele.

Um nó nervoso se forma no fundo do meu estômago. Olho de relance para Victor, buscando respostas.

— Willem Stephens — esclarece Victor — faz todo o serviço sujo de Hamburg. Hamburg em si é covarde, tão perigoso quanto o pedófilo gente boa da vizinhança. Mal consegue atirar em um alvo imóvel, e trairia alguém em dois minutos para se salvar. — Ele arqueia uma sobrancelha. — Stephens, por outro lado, tem uma extensa formação militar, é ex-mercenário e trabalhou para uma Ordem do mercado negro em 1986.

— Uma o quê?

— Uma Ordem como a nossa — explica Victor —, mas que aceita contratos particulares. Eles fazem coisas que outros agentes se recusam a fazer, vendem seus serviços basicamente para qualquer um.

— Ah... Então, resumindo, ele mata gente inocente por dinheiro.

Lembro o que Victor me contou, meses atrás, sobre a natureza dos contratos particulares, como pessoas eram assassinadas por motivos fúteis como traição conjugal ou vingança. A Ordem de Victor só trabalha com crime, ameaças sérias a um grande número de pessoas ou ideias que poderiam ter um impacto negativo na sociedade ou na vida como um todo.

Engulo em seco.

— Bom, ele me viu, com certeza. — Levanto as mãos e tiro o cabelo do rosto, passando as mãos no alto da cabeça. — Foi ele quem me levou para o segundo andar, para a sala de Hamburg. — Olho para Victor. — Desculpa, Victor. Eu... eu não sabia de nada disso.

Fredrik ri baixinho e diz:

— Algo me diz que, mesmo se você soubesse, teria ido lá de qualquer maneira.

Desvio o olhar de Victor e olho para baixo de novo, nervosa, esfregando os dedos ensanguentados uns nos outros. Fredrik tem razão. Odeio admitir, mas ele tem razão. Eu teria ido para o restaurante mesmo assim. Teria tentado matar Hamburg mesmo assim. Mas, se eu soubesse de tudo isso, acho que teria pensado em um plano melhor.

De repente, sinto que alguma coisa toma meu corpo e me tira o fôlego.

— Victor... Meu celular... — Eu me levanto do sofá, com o cabelo castanho-avermelhado caindo pelos ombros, batendo em meus braços nas partes em que o sangue secou e formou uma crosta áspera. — O número de Dina está no meu celular. Merda. Merda! Victor, Stephens vai atrás dela! Preciso voltar para o Arizona!

Começo a seguir para a porta dos fundos, mas Victor me alcança antes que eu atravesse o caminho decorado com pedras lisas.

— Espere aí.

Olho para baixo e vejo os dedos dele em volta do meu pulso. Seus hipnóticos olhos verde-azulados me fitam com desejo e devoção. Devoção. Algo que nunca vi no olhar de Victor antes.

Fredrik fala atrás de nós, me tirando do transe em que Victor me colocou.

— Eu vou cuidar disso — diz ele.

Desvio o olhar de Victor para Fredrik, que então ganha importância, considerando que a vida de Dina está em jogo.

— Como? — pergunto.

Victor me leva de volta para o sofá.

Fredrik pega o celular da mesa à frente, procura um número e toca na tela para ligar. Então encosta o celular no ouvido.

Victor me faz sentar perto dele de novo. Estou concentrada demais em Fredrik no momento para notar que Victor fez questão de se sentar tão perto que sua coxa está encostada na minha. Quero aproveitar o momento de proximidade, mas não posso. Estou preocupada com Dina.

Fredrik se reclina na poltrona de novo, balançando o pé descalço apoiado no joelho. Seu rosto fica alerta quando alguém atende à ligação.

— Em quanto tempo você consegue chegar a Lake Havasu City? — pergunta Fredrik ao telefone. Ele ouve por um segundo e assente. — Mando o endereço por mensagem de texto assim que eu desligar. Vá para lá o mais rápido que puder. Uma mulher mora lá. Dina Gregory. — Ele me olha de relance, para se certificar de que disse o nome certo. Como não o corrijo, volta a falar ao telefone. — Tire-a da casa e a leve para Amelia, em Phoenix. Sim. Sim. Não, não pergunte nada a ela. Só tome cuidado para ninguém machucar Dina. Sim. Me ligue neste número assim que estiver com ela.

Fredrik assente mais algumas vezes. Meu coração está batendo tão forte que parece pronto para pular do peito. Espero que a pessoa com quem ele está falando consiga encontrar Dina a tempo.

Fredrik desliga e parece abrir uma tela de texto no celular. Ele olha para mim, mas é Victor quem dá o endereço da sra. Gregory. Fredrik o digita e deixa o celular na mesa.

— Meu contato está a apenas trinta minutos de lá — explica Fredrik, olhando primeiro para mim. Então se vira para Victor. — O que você quer que eu faça?

Ele levanta as costas da poltrona e apoia os cotovelos nos joelhos, deixando as mãos entre eles. Mesmo em uma posição relaxada, ele consegue parecer elegante, importante e perigoso.

— Ainda preciso que você verifique o que discutimos ontem — diz Victor, e fica ainda mais claro, para mim, que Fredrik recebe ordens dele, embora não pareça ser do tipo que recebe ordens de ninguém. Mas está claro que os dois têm uma relação forte. — E, se você não se importa, preciso da sua casa emprestada por esta noite.

Os olhos escuros de Fredrik me encaram, e o traço de um sorriso aparece em seu rosto. Ele se levanta e pega o celular da mesa, escondendo-o na mão.

— Não precisa dizer mais nada. Vou sair daqui em vinte minutos. Eu ia mesmo me encontrar com alguém hoje, então está combinado.

A atitude de Victor muda um pouco, o que percebo no mesmo instante. Ele está encarando Fredrik, do outro lado da mesa do pátio, com um olhar cansado e cauteloso.

— Você não vai fazer o que estou pensando...

Ouço com atenção sem nem ao menos tentar disfarçar. Eu quero que eles saibam que estou bisbilhotando, porque é frustrante nenhum dos dois me oferecer qualquer explicação sobre esses comentários internos.

Fredrik ergue um lado da boca em um meio sorriso. Ele balança a cabeça de leve.

— Não, esta noite, não, infelizmente. Mas já faz algum tempo. Vou precisar que você me ajude com isso em breve.

Os olhos dele passam por mim e sinto um calafrio percorrer minhas costas. Não consigo decidir se é um arrepio bom ou assustador.

— Você terá sua oportunidade logo, logo — assegura Victor.

Fredrik dá a volta na mesa.

— Lamento por ter que encurtar nossa reunião.

— Tudo bem — digo. — Obrigada por ajudar com Dina. Você avisa quando receber aquela ligação?

Fredrik assente.

— Com certeza. Farei isso.

— Obrigada.

Victor acompanha Fredrik até a porta de vidro e os dois a atravessam. Fico sentada, observando-os do outro lado do pátio de pedra e tentando ouvir o máximo que posso, mas eles fazem questão de falar em voz baixa. Isso também me deixa frustrada. E pretendo informar Victor disso.


CAPÍTULO OITO

Victor

Fredrik fecha a porta de correr feita de vidro.

— Ela não sabe nada sobre Niklas? — pergunta ele, como eu já previa.

— Não, mas vou ter que contar. Ela vai precisar ficar atenta o tempo todo. Agora mais do que nunca.

— Ela não pode ficar aqui por muito tempo — aconselha Fredrik, olhando, através do vidro, Sarai sentada no sofá lá fora e nos observando. — Você também não.

— Eu sei. Quando Niklas descobrir que ela participou do assassinato no restaurante de Hamburg, vai saber na mesma hora que também estou envolvido nisso. Ele não é bobo. Se Sarai está viva, Niklas vai saber que estou tentando ajudá-la.

— E como ele desconfia de que agora trabalho com você — acrescenta Fredrik —, ela corre tanto perigo perto de mim quanto de você.

— É verdade.

Fredrik balança a cabeça para mim, com um sorriso escondido no fundo dos olhos.

— Não entendo esse envolvimento. Respeito você como sempre, respeitei, Victor, mas nunca vou entender a necessidade de um homem amar uma mulher.

— Eu não estou apaixonado por ela. Ela só é importante para mim.

— Talvez não — retruca ele, indo para a cozinha. — Mas parece que o amor e o envolvimento trazem as mesmas consequências, meu amigo. — Sigo Fredrik até a cozinha iluminada e ele abre um armário. — Mas estou do seu lado. O que você precisar que eu faça para ajudar, é só pedir. — Ele aponta para mim perto do armário, agora com um pão na mão.

A empregada de Fredrik entra na cozinha, roliça e mais velha do que nós dois juntos, exatamente o tipo de mulher que jamais o atrairia, e foi por isso que ele a contratou. Ela lhe pergunta em espanhol se pode voltar para casa e ver a família mais cedo hoje. Fredrik responde em espanhol, concordando. Ela assente respeitosamente e passa por mim na sala. De soslaio, eu a observo pegar uma bolsa volumosa de couro marrom do chão, perto da espreguiçadeira, e colocá-la no ombro. Depois ela vai até a porta, fechando-a devagar ao sair.

Sarai está de pé nas sombras da sala quando desvio o olhar da porta. Nem ouvi a porta de vidro correr quando ela entrou, e pelo jeito Fredrik também não.

Ela vai para a cozinha iluminada, de braços cruzados, os dedos delicados segurando seus bíceps femininos, mas bem-definidos. Ela é linda demais, mesmo quando está desgrenhada assim.

— Quanto tempo vocês planejavam me deixar lá fora? — pergunta ela, com um traço de irritação na voz.

— Ninguém disse que você precisava ficar lá, gata — responde Fredrik.

Ele gosta dela, isso é óbvio para mim, e ele deve saber. Mas também sabe que vou matá-lo. Ainda assim, minha confiança em Fredrik é maior do que minha preocupação de que ele volte para o lado sombrio e a machuque. Fredrik Gustavsson é uma fera do tipo mais carnal, que adora mulheres e sangue, mas tem limites e critérios, além de levar a lealdade, o respeito e a amizade muito a sério. Sua lealdade a mim é, afinal, o motivo para ele trair a Ordem todos os dias me ajudando.

Sarai se aproxima de mim e me olha nos olhos, inclinando um pouco a cabeça para o lado. O cheiro de sua pele e o calor tênue que emana dela quase me fazem perder o controle. Tenho conseguido me conter bastante desde que a beijei no elevador. Pretendo continuar assim.

Ela não diz nada, mas continua me encarando como se esperasse alguma coisa. Fico confuso. Ela inclina a cabeça para o outro lado e seu olhar se suaviza, embora eu não saiba ao certo por quê. Parece maliciosa e cheia de expectativa.

Ouço Fredrik rir baixinho e a porta da geladeira se fechar, mas não tiro os olhos de Sarai.

— As coisas são tão mais fáceis do meu jeito. — Ouço-o dizer, com um sorriso na voz.

— Entre em contato comigo assim que tiver a informação sobre Niklas — peço, ainda olhando nos olhos de Sarai e ignorando o comentário dele. — E quando souber pelo seu contato se Dina Gregory está a salvo em Phoenix.

— Pode deixar — diz Fredrik, e então vai para a porta do corredor que leva ao seu quarto. Mas ele para e olha para nós. — Se você não se importa...

Enfim desvio o olhar de Sarai e dou atenção total a Fredrik.

— Não se preocupe — interrompo —, eu sei onde fica o quarto de hóspedes.

Ele enfia na boca um sanduíche que mal notei que ele preparava e morde, rasgando um pedaço de pão. Eu o vejo piscando para Sarai antes de desaparecer da sala. Foi algo inofensivo, uma menção ao que ele acha que pode acontecer entre nós quando sair, e não uma tentativa de flerte.

— Que informação sobre Niklas? — pergunta Sarai, seus traços suaves agora encobertos pela preocupação.

Estendo a mão e passo os dedos por algumas mechas do cabelo dela.

— Preciso contar muita coisa para você — anuncio, tirando a mão antes de perder o controle e acabar tocando nela mais do que pretendo. — Sei que você deve estar exausta. Por que não toma um banho e fica à vontade primeiro? Depois conversamos.

Um sorrisinho suave emerge em seus lábios, mas logo desaparece em seu rosto enrubescido.

— Você quer dizer que eu estou nojenta? — pergunta ela, tímida. — Esse é o seu jeito de me dizer que preciso lavar meu corpo nojento?

— Na verdade, sim — admito.

Por um momento ela faz uma careta e parece ofendida, mas então só balança a cabeça e dá risada. Admiro isso em Sarai. Admiro muita coisa nela.

— Tudo bem. — Sua expressão brincalhona fica séria de novo. — Mas você precisa me contar tudo, Victor. E eu sei que você deve ter muito para contar, mas saiba que também preciso dizer muita coisa para você.

Eu já esperava isso. E, antes que ela fique na ponta dos pés, incline o corpo na minha direção e me beije, já sei que, quando ela sair do banho, vou precisar decidir o que vamos fazer. Vou precisar tomar algumas decisões importantes, que nos afetarão.

Porque de uma coisa eu tenho certeza: Sarai não pode voltar para casa.


Sarai

Quando volto, Victor está na sala, acomodado na beira do sofá, curvado sobre a mesinha de centro feita de vidro que está cheia de pedaços de papel e fotografias. Entro, mas ele continua remexendo neles sem erguer a cabeça para me olhar. Só que ele não me engana, sei que sente a minha presença tanto quanto quero que ele sinta.

Vasculhei o guarda-roupa de Fredrik procurando uma camiseta branca, que vesti sobre meus seios nus. Infelizmente, tive que usar a mesma calcinha de antes, mas as cuecas boxer de Fredrik não são exatamente o tipo de lingerie que eu gostaria de usar para seduzir Victor. Só uma camiseta e uma calcinha. Claro que fiz questão de vestir o mínimo possível, porque desejo Victor e não tenho nenhuma vergonha de deixar isso claro. Mas ainda custo a acreditar que estou no mesmo cômodo que ele, depois de meses achando que ele havia ido embora para sempre.

Acho que o beijo no elevador é onde minha mente ficou suspensa, como se o tempo tivesse parado naquele momento e cada parte de mim ainda deseje que aquele instante continue. Contudo, o resto do mundo continua passando ao meu redor.

Eu me sento ao lado de Victor, recolhendo um pé descalço para o sofá e enfiando-o sob a minha coxa.

— O que é isso tudo? — Olho para os papéis e fotografias na mesa.

Ele mexe em alguns pedaços de papel, empilhando-os.

— É um serviço — explica ele, colocando a foto de um homem de camiseta regata na pequena pilha. — Agora eu trabalho por conta própria.

Isso me surpreende.

— Como assim? — Acho que sei o que ele quer dizer, mas custo a acreditar.

Ele pega a pilha de papéis e bate as laterais na mesa para ajeitar todas as folhas. Então enfia o maço em um envelope de papel pardo.

— Eu saí da Ordem, Sarai. — Ele olha para mim.

Victor aperta as pontas do fecho prateado para fechar o envelope.

Meus pensamentos se embaralham, minhas palavras ficam confusas na ponta da língua. Luto, desesperada, para acreditar no que ele acaba de me contar.

— Victor... mas... não...

— Sim — confirma ele, virando-se para mim e me olhando bem nos olhos. — É verdade. Eu me rebelei contra a Ordem, contra Vonnegut, e agora eles estão atrás de mim. — Ele volta a mexer nos outros papéis na mesa. — Mas ainda preciso trabalhar, por isso agora trabalho sozinho.

Balanço a cabeça sem parar, sem querer engolir a verdade. A ideia de Victor sendo caçado por aqueles que o fizeram ser como ele é, por qualquer um, faz um pânico febril correr pelas minhas veias.

Solto um longo suspiro.

— Mas... mas e Fredrik? E Niklas? Victor, eu... O que está acontecendo?

Ele respira fundo e deixa a folha de papel cair suavemente na mesa, então reclina as costas no sofá.

— Fredrik ainda trabalha para a Ordem. Está lá dentro. Ele vigia Niklas e... — seus olhos cruzam com os meus por um instante —... tem me ajudado a manter você a salvo.

Antes que eu consiga fazer mais perguntas presas na garganta, Victor se levanta e continua a falar, enquanto fico sentada e o observo com a boca semiaberta e as pernas dobradas sobre a almofada.

— Como você sabe, quando alguém está sob suspeita de trair a Ordem, é imediatamente eliminado. Mas acredito que Niklas deixou Fredrik vivo e não transmitiu suas preocupações a Vonnegut pelo simples fato de que Niklas está usando Fredrik para me encontrar. Assim como deixou você viva todo este tempo, esperando que um dia você o levasse a mim.

O que mais me choca não é o que Victor diz, mas o que ele deixa de fora. Tiro as duas pernas de cima do sofá e pressiono os pés no chão de madeira, apoiando as mãos nas almofadas.

— Victor, o que você está me dizendo? Quer dizer que... Niklas continua com Vonnegut?

Espero que não seja isso que ele esteja tentando me dizer. Espero de todo o coração que minha decisão de deixar Niklas vivo aquele dia no hotel, quando ele atirou em mim, não tenha sido o maior erro da minha vida.

Os olhos de Victor vagam para a porta de vidro, e sinto que uma espécie de sofrimento infinito o consome, mas ele não deixa transparecer.

— Você estava lá. Eu disse para o meu irmão que, se ele decidisse continuar na Ordem caso eu resolvesse sair, eu não ficaria bravo com ele. Dei a ele a minha palavra, Sarai. — Victor vai até a porta de vidro, cruza os braços e olha para a piscina azul iluminada que reluz sob o céu cinzento. — Agora é hora de Niklas brilhar, e não vou tirar isso dele.

— Que absurdo! — Salto do sofá com os punhos fechados. — Ele está atrás de você, não é? — Cerro os dentes e contorno a mesinha de centro. — Caralho, é isso, Victor? Para provar seu valor para Vonnegut, ele foi encarregado de matar você. Aquele merda do seu irmão traiu você. Ele acha que vai pegar o seu lugar na Ordem. Puta que pariu, não acredito...

— É o que é, Sarai — interrompe Victor, virando-se para me encarar. — Mas, neste momento, Niklas é a menor das minhas preocupações.

Cruzando os braços, começo a andar de um lado para outro, olhando os veios claros e escuros da madeira sob meus pés descalços. Minhas unhas ainda têm o esmalte vermelho-sangue de duas semanas atrás.

— Por que saiu da Ordem?

— Eu tive que sair. Não tinha escolha.

— Não acredito.

Victor suspira.

— Vonnegut descobriu sobre a gente — conta ele, ganhando minha atenção total. — Foi Samantha... na noite em que ela morreu. Antes que eu saísse da Ordem, encontrei Vonnegut em Berlim, o primeiro encontro frente a frente que tive com ele em meses. Foi em uma sala de interrogatório. Quatro paredes. Uma porta. Uma mesa. Duas cadeiras. Somente eu e Vonnegut sentados frente a frente, com uma luz brilhando no teto acima de nós. — Victor olha para trás pela porta de vidro e depois continua: — No início, eu estava certo de que ele tinha me levado para lá com a intenção de me matar. Eu estava preparado...

— Para morrer? — Se Victor responder que sim, vou dar um tapa na cara dele.

— Não — responde ele, e consigo respirar um pouco melhor. — Eu fui para lá preparado. Raptei a mulher de Vonnegut antes de ir encontrá-lo. Fredrik a manteve em uma sala, pronto para fazer... as coisas dele, caso fosse necessário.

No mesmo instante, quero perguntar o que são as “coisas” de Fredrik, mas deixo a pergunta de lado por enquanto e digo:

— Se Vonnegut quisesse matar você, a esposa dele seria a sua moeda de troca.

De costas para mim, ele assente.

— Samantha estava sendo vigiada pela Ordem. Provavelmente há muito tempo.

— Eles desconfiavam da traição dela? Por que não a mataram, então, como fizeram com a mãe de Niklas, ou como queriam fazer com Niklas?

Victor se vira para me encarar de novo.

— Eles não desconfiavam dela, Sarai, ela era... — Victor respira fundo e aperta os lábios.

— Ela era o quê? — Chego mais perto dele. Não gosto do rumo que a conversa está tomando.

— Ela era mais leal à Ordem do que eu jamais poderia ter imaginado — conta ele, e isso fere meu coração. — Sentado naquela sala com Vonnegut, quanto mais ele falava, mais eu começava a entender que Samantha me traiu da mesma forma que Niklas. Vonnegut me contou coisas que ele não tinha como saber. Ele sabia que eu ajudei você. Em algum momento antes de morrer, naquela noite, Samantha conseguiu passar informações a Vonnegut sobre nossa estadia por lá.

— Não acredito nisso. — Golpeio o ar com a mão diante de mim. — Samantha morreu tentando me proteger. Já falamos sobre isso. Não acredito em você, Victor. Ela era uma boa pessoa.

— Ela era boa manipuladora, Sarai, nada mais do que isso.

Balanço a cabeça, ainda sem acreditar.

— Foi Niklas quem contou a Vonnegut que você me ajudou. Só pode ter sido. Niklas sabia até que você tinha me levado para a casa de Samantha.

— Sim, mas Niklas não sabia que eu fiz Samantha provar nossa comida antes de a gente comer, naquela noite. Assim que Vonnegut mencionou quanto eu ainda desconfiava dela depois de tantos anos, eu soube que ela havia me traído.

— Mas isso não faz nenhum sentido. — Começo a andar pela sala de novo, de braços cruzados e com uma das mãos apoiada no rosto. — Por que ela me protegeria de Javier?

— Porque ela não era leal a Javier.

Jogo as mãos para o ar, atônita com aquela revelação.

— Não dá para confiar em ninguém — digo, me jogando no sofá e olhando para o nada.

— Não, não dá — concorda Victor, e eu olho para cima, detectando um significado oculto por trás de suas palavras. — Agora talvez você entenda por que eu não me envolvo com ninguém. Não é só o trabalho, Sarai. As pessoas em geral não são confiáveis, especialmente na minha profissão, na qual a confiança é tão rara que não vale a pena perder tempo e esforço procurando por ela.

— Mas você parece confiar em Fredrik — observo, olhando para Victor do sofá. — Por que me trouxe logo aqui? Não aprendeu a lição com Samantha?

Sua expressão fica um pouco mais sombria, ressentida pela minha acusação.

— Eu nunca disse que confiava em Fredrik. Mas no momento ele é meu único contato dentro da Ordem e, nos últimos sete meses, não fez nada que não o tornasse digno de confiança. Ao contrário, fez tudo para provar sua lealdade a mim.

— Mas isso não significa que seja verdade.

— Não, você tem razão, mas logo vou saber com cem por cento de certeza se Fredrik é confiável ou não.

— Como?

— Você vai descobrir comigo.

— Por que se dar a esse trabalho? Você disse que a confiança é tão rara que não vale o esforço.

— Você faz muitas perguntas.

— Pois é, acho que faço. E você não responde o suficiente.

— Não, acho que não. — Victor abre um sorrisinho, e meu coração se derrete instantaneamente em uma poça de mingau.

Desvio os olhos dos dele e disfarço meus sentimentos.

— Não estou segura aqui — digo, encarando-o novamente.

— Você não está segura em lugar nenhum — corrige Victor. — Mas, enquanto estiver comigo, nada vai acontecer com você.

— Quem está falando merda agora?

Ele levanta uma sobrancelha.

— Você não é meu herói, lembra? — digo para refrescar a memória de Victor. — Não é minha alma gêmea que jamais deixará que nada de ruim aconteça comigo. Devo confiar nos meus instintos primeiro e em você, se eu decidir confiar, por último. Você me disse isso certa vez.

— E continua sendo verdade.

— Então como pode dizer que nada vai me acontecer se eu estiver com você?

A expressão de Victor fica vazia, como se pela primeira vez na vida alguém o tivesse deixado sem palavras. Olho para seu rosto silencioso e sem emoção, e apenas seus olhos revelam um traço de torpor. Tenho a sensação de que ele falou sem pensar, que manifestou algo que sente de verdade, mas que jamais quis que eu soubesse: Victor quer ser meu herói, vai fazer qualquer coisa, tudo o que puder para me manter a salvo. Quer que eu confie totalmente nele.

E confio.

Ele volta para perto de mim e se senta ao meu lado. O cheiro de seu perfume é fraco, como se ele fizesse questão de usar o mínimo possível. Estou tonta de desejo. Ansiosa para sentir novamente seu toque, saborear seus lábios quentes, deixar que ele me tome como fez algumas noites antes que nos víssemos pela última vez. Não tenho pensado em nada além de Victor nos últimos oito meses da minha vida. Enquanto durmo. Como. Vejo TV. Transo. Me masturbo. Tomo banho. Cada coisa que fiz desde que ele me deixou naquele hospital com Dina fiz pensando nele.

— Você acha que Fredrik vai contar a Niklas onde a gente está? — Mudo de assunto por medo de deixar transparecer muita coisa cedo demais.

— Acho que se ele fosse fazer isso teria contado a Niklas o pouco que sabia sobre o seu paradeiro há muito tempo, e Niklas já teria tentado matar você — responde Victor.

— Tem alguma coisa... estranha em Fredrik. Você não sente?

Victor passa a mão pelo meu cabelo úmido. O gesto faz meu coração disparar.

— Você tem grande sensibilidade para as pessoas, Sarai — comenta ele, levando a mão ao meu queixo. — Tem razão sobre Fredrik. — Ele passa o polegar pelo meu lábio inferior. Um calafrio percorre o meio das minhas pernas. — Ele é... como dizer?... desequilibrado, de certa forma.

Minha respiração acelera, e sinto meus cílios tocando meu rosto quando os lábios de Victor cobrem os meus.

— Desequilibrado de que forma? — pergunto, ofegante, quando ele se afasta.

De olhos fechados, percebo que ele está observando a curva do meu rosto e meus lábios e sinto a respiração que sai suavemente de suas narinas.

Cada pelinho minúsculo se eriça quando a outra mão de Victor sobe e encontra minha cintura nua por baixo da camiseta. Seus dedos longos dançam sobre a pele do meu quadril e param por ali.

Abro os olhos e vejo os dele me encarando.

— Algum problema? — pergunta ele, e sua boca roça a minha de novo.

— Não, eu... eu só não esperava isso.

— Esperava o quê?

Sinto seus dedos levantando o elástico da minha calcinha. Minha cabeça está girando, sinto meu estômago se transformar em um emaranhado de músculos, trêmulo e nervoso.

— Isso — respondo, piscando. — Você está diferente — acrescento, baixinho.

— Culpa sua — diz Victor, e então seus lábios devoram os meus.

Ele me deita no sofá e se encaixa entre as minhas pernas.

Seu celular vibra na mesinha de centro, e percebo quanto sou humana quando xingo Fredrik por estragar aquele momento, mesmo que seja para me avisar de que Dina está a salvo.


CONTINUA

CAPÍTULO UM

Sarai

Já faz oito meses que fugi da fortaleza no México onde fui mantida contra minha vontade por nove anos. Estou livre. Levo uma vida “normal”, fazendo coisas normais com gente normal. Não fui mais atacada, ameaçada nem seguida por ninguém que ainda queira me matar. Tenho uma “melhor amiga”, Dahlia. Tenho a coisa mais parecida com uma mãe que já conheci, Dina Gregory. O que mais eu poderia querer? Parece egoísmo desejar qualquer outra coisa. Mas, apesar de tudo o que tenho, algo não mudou: continuo vivendo uma mentira.

Deixei amigos na Califórnia: Charlie, Lea, Alex e... Bri... Não, espera, quero dizer Brandi. Meu ex-namorado, Matt, era abusivo, por isso voltei para o Arizona. Ele me perseguiu por muito tempo depois que terminamos. Consegui uma ordem judicial para mantê-lo afastado, mas não funcionou. Ele atirou em mim há oito meses, mas não posso provar porque não cheguei a vê-lo. E tenho muito medo de denunciá-lo à polícia.

Claro que tudo isso é mentira.

São os pedaços da minha vida que acobertam o que realmente aconteceu comigo. Os pretextos para eu ter desaparecido aos 14 anos e ter ido parar em um hospital da Califórnia com um ferimento a bala. Jamais vou poder contar a Dina, Dahlia ou ao meu namorado, Eric, o que aconteceu de verdade: que fui levada para o México pela péssima versão de mãe que eu tinha, para morar com um chefão do tráfico. Jamais vou poder contar que fugi daquele lugar depois de nove anos e matei o homem que me manteve prisioneira por toda a minha adolescência. Quer dizer, claro que eu poderia contar a alguém, mas, se fizesse isso, só estaria pondo Victor em perigo.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/2_O_RETORNO_DE_IZABEL.jpg

 

Victor.

Não, nunca vou poder contar que um assassino me ajudou a fugir, ou que testemunhei Victor matando várias pessoas, inclusive a esposa de um empresário famoso e importante de Los Angeles. Nunca vou poder contar que, depois de tudo pelo que passei, depois de tudo o que vi, o que mais quero é fazer as malas e voltar para aquela vida perigosa. A vida com Victor.

Até hoje, falar o nome dele me acalma. Às vezes, quando estou acordada na cama à noite, murmuro seu nome só para ouvi-lo, porque preciso. Preciso dele. Não consigo tirá-lo da cabeça. Já tentei. Porra, e como tentei. Mas, não importa o que eu faça, continuo vivendo cada dia da minha vida pensando nele. Se está me vigiando. Se pensa em mim tanto quanto penso nele. Se ainda está vivo.

Pressiono o travesseiro contra a cabeça e fecho os olhos, imaginando Victor. Às vezes, é só assim que consigo gozar.

Eric aperta minhas coxas com as mãos e me imobiliza na cama, com o rosto enfiado no meio das minhas pernas.

Arqueio o quadril contra ele, roçando de leve contra sua língua frenética, até que ele faça meu corpo todo enrijecer e minhas coxas tremerem ao redor da sua cabeça.

— Meu Deus... — Estremeço enquanto gozo, então deixo os braços caírem entre as pernas, afundando os dedos no cabelo preto de Eric. — Caramba...

Sinto os lábios de Eric tocando minha barriga um pouco acima da pélvis.

Olho para o teto como sempre faço depois de um orgasmo, pois a culpa que sinto me deixa com vergonha de olhar para Eric. Ele é um cara superlegal. Meu namorado sexy de 27 anos, cabelo preto e olhos azuis, gentil, encantador, engraçado e perfeito. Perfeito para mim se eu nunca tivesse conhecido Victor Faust.

Estou arruinada pelo resto da vida.

Enxugo as gotas de suor da testa e Eric sobe pela cama, deitando-se ao meu lado.

— Você sempre faz isso — diz ele, brincando, enquanto cutuca minhas costelas com os nós dos dedos.

Como sinto muitas cócegas, eu me encolho e me viro para encará-lo. Sorrio com ternura e passo um dedo por seu cabelo.

— O que eu sempre faço?

— Esse negócio de ficar em silêncio. — Eric segura meu queixo entre o polegar e o indicador. — Eu faço você gozar e você fica bem quieta durante um tempão.

Eu sei e sinto muito, mas preciso apagar o rosto de Victor da minha cabeça antes de conseguir olhar você nos olhos. Sou uma pessoa horrível.

Eric me dá um beijo na testa.

— Isso se chama recuperação — brinco, beijando os dedos dele. — É totalmente inofensivo. Mas você deveria interpretar como um bom sinal. Você sabe o que está fazendo — digo, retribuindo o cutucão nas costelas.

E ele sabe mesmo o que está fazendo. Eric é ótimo na cama. Mas ainda sou emocionalmente muito ligada... viciada... em Victor, e tenho a sensação de que sempre serei.

Só consegui seguir a vida e me abrir a outros relacionamentos cinco meses depois que Victor foi embora. Conheci Eric no trabalho, na loja de conveniência. Ele comprou um saco de biscoitos e um energético. Depois disso, ele aparecia na loja duas, às vezes três vezes por semana. Eu não queria nada com ele. Queria Victor. Mas comecei a perder a esperança de que Victor um dia fosse voltar para mim.

Eric tenta passar um braço ao redor do meu corpo, mas me levanto casualmente e visto a calcinha. Ele não desconfia de nada, o que é bom. Não sinto vontade de ficar abraçadinha, mas a última coisa que quero é magoá-lo. Ele ergue os braços e entrelaça os dedos atrás da cabeça. Olha para mim, do outro lado do quarto, com um sorriso sedutor. Sempre faz isso quando não estou completamente vestida.

— Sarai.

— Oi. — Visto a camiseta e ajeito o rabo de cavalo.

— Eu sei que está em cima da hora — diz Eric —, mas queria ir com você e Dahlia para a Califórnia amanhã.

Merda.

— Mas você não disse que não ia conseguir folga no trabalho? — pergunto, vestindo o short e calçando os chinelos.

— Quando você perguntou se eu queria ir, não ia dar mesmo. Mas contrataram um funcionário novo, e meu chefe decidiu me dar folga.

Isso é uma péssima notícia. Não porque eu não o queira por perto — gosto de Eric, apesar da minha incapacidade de esquecer Victor Faust —, mas minha viagem de “férias” à Califórnia amanhã não é para fazer turismo, curtir a noite nem fazer compras na Rodeo Drive.

Estou indo até lá para matar um homem. Ou melhor, tentar matar um homem.

Já é ruim que Dahlia vá também, e já vai ser difícil guardar segredo de uma pessoa. Imagine duas.

— Você... não parece animada — comenta Eric, seu sorriso morrendo aos poucos.

Abro um sorriso largo e balanço a cabeça, voltando para perto dele e me sentando na beira da cama.

— Não, não, eu estou animada. É que você me pegou de surpresa. A gente vai sair às seis da manhã. É daqui a menos de oito horas. Você já fez as malas?

Eric dá uma risada e se estica na minha cama, me puxando para si. Eu me sento perto de sua cintura, apoiando um braço no colchão do outro lado dele, com os pés para fora da cama.

— Bom, eu só fiquei sabendo hoje à tarde, antes de sair do trabalho — explica ele. — Eu sei, está em cima da hora, mas só preciso enfiar umas coisas na mala e estou pronto.

Ele estende a mão e afasta do meu rosto os fios de cabelo que escaparam do rabo de cavalo.

— Ótimo! — minto, com um sorriso igualmente falso. — Então acho que está combinado.

Dina acorda antes de mim, às quatro da manhã. O cheiro de bacon é o que me desperta. Levanto da cama e entro debaixo do chuveiro antes de me sentar à mesa da cozinha. Um prato vazio já está à minha espera.

— Gostaria que você tivesse escolhido algum outro lugar para passar sua folga, Sarai — afirma Dina.

Ela se senta do outro lado da mesa e começa a encher seu prato. Pego alguns pedaços de bacon do monte e ponho no meu.

— Eu sei — digo —, mas, como falei para você, não vou deixar que meu ex me impeça de ver meus amigos.

Ela balança a cabeça cada vez mais grisalha e suspira.

Passei do limite em algum momento com meu amontoado de mentiras. Quando Victor levou Dina para o hospital em Los Angeles, depois que o irmão dele, Niklas, atirou em mim, ela não fazia ideia do que tinha acontecido. Só sabia que eu tinha levado um tiro. Demorei alguns meses até me sentir segura o suficiente para falar com ela sobre isso. Quer dizer, depois de bolar a história que eu ia contar. Foi aí que inventei o lance do ex-namorado violento. Eu deveria ter dito que fui assaltada. Por um desconhecido. A mentira seria muito mais fácil de manter. Agora que ela sabe que vou voltar para Los Angeles, está morrendo de preocupação, e já faz uns dois meses. Eu nem deveria ter contado que ia voltar lá.

Termino de comer o bacon e um pouco de ovos mexidos, junto com um copo de leite.

Dahlia e Eric chegam juntos assim que termino de escovar os dentes.

— Vamos logo, a gente precisa pegar a estrada — chama Dahlia, me apressando da porta. Seu cabelo castanho-claro está preso no alto da cabeça em um coque desalinhado de quem acabou de acordar.

Eu me despeço de Dina com um abraço.

— Eu vou ficar bem — digo a ela. — Prometo. Não vou nem chegar perto de onde ele mora.

Desta vez, chego até a imaginar um rosto masculino ao falar de alguém que não existe. Acho que já interpreto esse papel há tanto tempo que “Matt” e todos esses meus “amigos” de Los Angeles, de quem falo para todo mundo como se fossem reais, se tornaram reais no meu subconsciente.

Dina força um sorriso em seu rosto preocupado, e suas mãos soltam meus cotovelos.

— Você liga assim que chegar?

— Assim que eu entrar no quarto do hotel, ligo — respondo, assentindo.

Ela sorri e eu a abraço mais uma vez, antes de segui-los até o carro de Dahlia, que está esperando. Eric guarda minha mala no bagageiro, junto com as deles, e se senta no banco de trás.

— Hollywood, aí vamos nós! — exclama Dahlia.

Finjo metade da empolgação dela. Ainda bem que está muito cedo, senão Dahlia poderia intuir o verdadeiro motivo da minha falta de entusiasmo. Estico os braços para trás e bocejo, apoiando a cabeça no banco do carro. Sinto a mão de Eric no meu pescoço quando ele começa a massagear meus músculos.

— Não sei por que você quer ir a Los Angeles de carro — diz Dahlia. — Se a gente fosse de avião, não ia precisar acordar tão cedo. E você não estaria tão cansada e rabugenta.

Minha cabeça cai para a esquerda.

— Não estou rabugenta. Ainda mal falei com você.

Ela dá um sorrisinho.

— Exatamente. Sarai sem falar significa Sarai rabugenta.

— E se recuperando — acrescenta Eric.

Meu rosto fica vermelho e eu estico a mão atrás da cabeça, dando um tapinha de brincadeira na dele, que está fazendo maravilhas no meu pescoço. Fecho os olhos e vejo Victor.

Não de propósito.

Chegamos a Los Angeles depois de quatro horas na estrada. Eu não podia ir de avião porque não conseguiria levar minhas armas. É claro que Dahlia não pode saber disso. Ela acha apenas que quero apreciar a paisagem.

Tenho sete dias para fazer o que vim fazer. Isto é, se eu conseguir. Pensei no meu plano durante meses, em como vou fazer isso. Sei que é impossível entrar na mansão Hamburg. Para isso, eu precisaria ter um convite e socializar em público com o próprio Arthur Hamburg e seus convidados. Ele viu meu rosto. Bem, tecnicamente, viu mais do que meu rosto. Mas sinto que os acontecimentos daquela noite, quando Victor e eu enganamos Hamburg para que ele nos convidasse para ir ao seu quarto e conseguíssemos matar sua esposa, são algo que ele jamais vai esquecer, nem os mínimos detalhes.

Se tudo der certo, uma peruca loura platinada de cabelo curto e maquiagem escura e pesada vão esconder aquela identidade de cabelo longo e castanho que Hamburg reconheceria assim que eu aparecesse.


CAPÍTULO DOIS

Sarai

Passo o dia todo com Eric e Dahlia, fingindo me divertir para passar o tempo. Saímos para almoçar e para fazer um tour por Hollywood com um guia e visitar um museu antes de voltarmos para o hotel, exaustos. Quer dizer, finjo estar exausta o suficiente para querer dar o dia por encerrado. Na verdade, o que preciso é me preparar para ir ao restaurante de Hamburg ainda hoje.

Dahlia já acha que tem algo errado comigo.

— Você está ficando doente? — pergunta ela, estendendo a mão entre nossas espreguiçadeiras à beira da piscina e sentindo a temperatura da minha testa.

— Estou ótima — respondo. — Só cansada porque levantei muito cedo. E quando foi a última vez que andei tanto assim em um dia só?

Dahlia volta a se recostar em sua espreguiçadeira e ajeita os óculos de sol grandes e redondos no rosto.

— Bom, espero que não esteja cansada amanhã — diz Eric, do outro lado. — Tem tantas coisas que eu quero fazer. Não venho para Los Angeles desde que meus pais se divorciaram.

— Pois é. É a minha primeira vez aqui em dois anos — afirma Dahlia.

Um adolescente pula na piscina e a água respinga em nós. Ergo as costas da espreguiçadeira e agito a revista que estava lendo para tirar as gotas. Ponho os óculos escuros no alto da cabeça. Jogo as pernas para o lado e fico de pé.

— Acho que vou voltar para o quarto e tirar uma soneca — anuncio, pegando minha bolsa do chão.

Eric se ergue também e tira os óculos escuros.

— Se quiser, vou com você — oferece ele.

Agito a mão para ele, pedindo que não se levante.

— Não, fica aí e faz companhia para a Dahlia — sugiro, ajeitando a bolsa no ombro. Abaixo os óculos escuros de novo para que ele não perceba minha mentira.

— Tem certeza de que você está bem? — pergunta Dahlia. — Sarai, você está de férias, lembra? Veio para cá se divertir, não para cochilar.

— Acho que vou estar cem por cento amanhã. Só preciso de um banho quente e demorado e de uma boa noite de sono.

— Ok, vou acreditar — diz Dahlia. — Mas nem vem com doença para o meu lado. — Ela aponta o dedo para mim, com ar severo.

Eric fecha os dedos em torno do meu pulso e me puxa para perto.

— Tem certeza de que não quer que eu vá? — Ele me beija e eu correspondo antes de me levantar de vez.

— Tenho — respondo, baixinho, e saio na direção do elevador.

Assim que entro no quarto, tranco a porta com a corrente para que Eric e Dahlia não entrem de surpresa, jogo a bolsa no chão e abro meu laptop, digitando a senha. Enquanto o laptop inicia, olho pela janela e vejo meus amigos, figuras pequenas daquela distância, ainda à beira da piscina. Eu me sento diante da tela e, provavelmente pela centésima vez, olho cada página do site do restaurante de Hamburg, verificando de novo o horário de funcionamento e passando os olhos pelas fotos profissionais do lugar, dentro e fora. Na verdade, nada disso me ajuda muito com o que pretendo fazer, mas olho tudo de novo todo dia, de qualquer maneira.

Derrotada, bato a palma da mão com força no tampo da mesa.

— Droga! — exclamo, desabando na poltrona enquanto passo as mãos pelo cabelo.

Ainda não sei como vou conseguir ficar a sós com Hamburg sem ser vista. Sei que estou dando um passo maior do que a perna. Sei disso desde que tive essa ideia maluca, mas também sei que, se ficar apenas pensando a respeito, nunca vou passar dessa fase.

Vim para cá com um plano: entrar disfarçada no restaurante e agir como qualquer outro cliente. Sondar o lugar por uma noite. Saber onde ficam as saídas. As entradas para outras partes do prédio. Os banheiros. Minha prioridade número um, contudo, é encontrar a sala de onde Hamburg observa do alto seus clientes e ouve a conversa deles pelo minúsculo microfone escondido no arranjo de cada mesa. Então pretendo me enfiar na sala e cortar a garganta daquele porco.

Contudo, agora que estou aqui, a menos de seis quadras do restaurante, e agora que o tempo está passando tão depressa, estou menos confiante. Isso não é um filme. Sou uma idiota por achar que posso adentrar um lugar desses sem ser vista, tirar a vida de um homem sem chamar atenção e fugir sem ser capturada.

Apenas Victor conseguiria fazer algo assim.

Bato no tampo da mesa de novo, mais de leve desta vez, fecho o laptop e me levanto. Ando de um lado para outro no carpete vermelho e verde. E bem quando resolvo seguir pelo corredor para o quarto separado que reservei sem Dahlia e Eric saberem, a porta se abre um pouco, mas é travada pela corrente.

— Sarai? — chama Dahlia do outro lado. — Vai deixar a gente entrar?

Suspiro fundo e destranco a porta.

— Por que a corrente? — pergunta Eric, entrando atrás de Dahlia.

— Força do hábito.

Eu me jogo na ponta da cama king-size.

Os dois deixam suas coisas no chão. Dahlia se senta à mesa, ao lado da janela, e Eric se deita atravessado na cama ao meu lado, cruzando as pernas na altura dos calcanhares.

— Pensei que você ia tirar uma soneca — diz Dahlia.

Ela passa os dedos com cuidado pelo cabelo úmido, fazendo caretas quando se depara com alguma mecha mais embaraçada.

— Dahlia — digo, olhando para os dois. — Eu subi agora há pouco. Pensei que vocês iam ficar na piscina mais um tempo.

Espero ter conseguido disfarçar o aborrecimento na minha voz por eles terem vindo me encontrar tão cedo. Não consigo evitar: estou estressada demais, além de preocupada com a simples presença dos dois aqui comigo. Não quero que eles se machuquem nem que se envolvam de forma alguma com meu motivo para estar aqui.

— A gente pode sair e deixar você sozinha, se quiser — sugere Eric, baixinho, atrás de mim.

Eu me arrependo na mesma hora do que disse, porque é óbvio que não disfarcei o aborrecimento tão bem quanto esperava.

Inclino a cabeça para trás e suspiro, esticando o braço para tocar o tornozelo dele.

— Desculpa — digo, sorrindo para Dahlia. — Sabe, eu... — Então, de repente, uma desculpa perfeitamente plausível para o modo como tenho agido surge na minha cabeça, e a torneira das mentiras se abre. — Eu só fico meio nervosa por estar de volta a Los Angeles.

Dahlia faz cara de “ah, entendi”, empurra os pés de Eric para o lado e se senta perto de mim. Ela passa o braço por cima dos meus ombros e segura meu antebraço.

— Imaginei que o problema fosse esse.

Percebo que ela olha de relance para Eric e tenho a impressão de que foi sobre isso que os dois falaram enquanto ficaram na piscina, depois que fui embora.

Aposto que também foi por isso que decidiram subir tão cedo para me ver.

— A gente queria ver como você estava — acrescenta Eric atrás de mim, confirmando minha suspeita.

Sinto a cama se mexer quando ele se senta.

Eu me levanto antes que ele consiga me abraçar. É nesse exato momento que me dou conta de como tenho feito isso com frequência no último mês. Não sei por quanto tempo mais vou conseguir enganá-lo. Sei que deveria simplesmente contar o que sinto, que não gosto tanto de Eric quanto ele gosta de mim. Mas não consigo dizer a verdade. Eu precisaria inventar mais uma mentira, e estou tão atolada em mentiras que me sinto afogada nelas.

Ao mesmo tempo, deixei nossa relação durar tanto porque eu queria de verdade sentir por ele algo tão profundo quanto o que ele parece sentir por mim. Queria seguir em frente, esquecer Victor e ser feliz com a vida que ele me deixou.

Mas não consigo. Não consigo mesmo...

— Ele nem vai saber que você está aqui — diz Eric sobre “Matt”. — Além disso, mesmo que ele descobrisse, eu ia encher o cara de porrada assim que o visse.

Esboço um sorriso para Eric.

— Eu sei que você faria isso — digo, mas me sinto ainda pior, porque os únicos dois amigos que tenho no mundo não fazem nem ideia de quem sou.

Cruzo os braços, vou até a janela e olho para fora.

— Sarai — chama Dahlia. — Não queria dizer isso, mas, se você está tão preocupada com a possibilidade de Matt descobrir que você está em Los Angeles, acho que não é boa ideia visitar seus amigos aqui.

— Eu sei, você tem razão. Sei que eles não contariam para Matt, mas acho que é melhor eu ficar só com vocês dois enquanto estivermos aqui.

Eu me viro para encará-los.

— É um bom plano — diz Eric, com um sorriso radiante.

É um bom plano, com certeza, porque agora não preciso mais inventar outra desculpa para não apresentar os dois aos meus amigos que não existem.

Dahlia se aproxima de mim.

— A gente devia ter ido para a Flórida ou algum lugar assim, hein?

Olho pela janela de novo.

— Não — respondo. — Adoro esta cidade. E sei que vocês queriam muito vir para cá. — Dou um sorriso rápido. — Sugiro que a gente curta ao máximo esta semana.

Ela me empurra com o ombro de brincadeira.

— Essa é a Sarai que eu conheço — diz Dahlia, sorrindo.

É, só que não sou essa pessoa...

Ela vai até Eric e o puxa pelo braço, levantando-o da cama.

— Vamos sair daqui e deixar a mocinha descansar.

Eric se levanta e se aproxima de mim. Então pega meus braços e me vira para encará-lo. Com aqueles olhos azul-bebê, ele faz a melhor expressão amuada que consegue.

— Se precisar de mim para qualquer coisa, pode me chamar que eu venho.

Concordo com a cabeça e lhe ofereço um sorriso sincero. Ele merece, por ser tão legal comigo.

— Pode deixar.

Então eu os empurro porta afora com as duas mãos.

— Eu diria para vocês não se divertirem muito sem mim, mas isso seria pedir demais.

Dahlia ri baixinho ao sair para o corredor.

— Não, não é pedir muito. — Ela levanta dois dedos. — Palavra de escoteiro.

— Acho que não é assim que se faz, Dahl — diz Eric.

Ela faz um gesto para dispensar as palavras dele.

— Trate de dormir — sugere Dahlia. — Porque amanhã você vai precisar estar novinha em folha.

— De acordo — digo, assentindo.

— Tchau, amor — diz Eric antes de eu fechar a porta.

Fico com as costas apoiadas na porta e solto um suspiro longo e profundo.

Fingir é difícil demais. Bem mais difícil do que simplesmente ser eu mesma, por mais anormal e imprudente que eu seja.

— Eu sei o que preciso fazer — digo em voz alta.

Falar sozinha é minha nova mania, porque me ajuda a visualizar e entender melhor as coisas.

Volto para a janela e olho a cidade de Los Angeles, com os braços cruzados.

— Preciso de um disfarce, mas não para me esconder de Hamburg. Só das câmeras e de qualquer outra pessoa. Eu quero que Hamburg me veja. Só assim vou conseguir entrar.


CAPÍTULO TRÊS

Sarai

Dahlia e Eric só voltam para o quarto algumas horas mais tarde, depois de escurecer. Eu já tinha tomado banho, vestido short e camiseta e deixado a luz apagada para parecer que estava dormindo. Assim que ouvi o cartão passando pela porta, pulei na cama e me espalhei pelo colchão, como sempre faço quando durmo de verdade. Eric entrou na ponta dos pés, tentando não “me acordar”, mas me virei, soltei um resmungo e abri os olhos para mostrar que acordei. Ele pediu desculpas e perguntou se eu queria ir com ele e Dahlia a uma boate ali perto, insistindo que, se eu não fosse, ele também não iria. Mas logo rejeitei essa ideia. Percebi que ele queria muito ir e não posso culpá-lo: se eu estivesse no lugar dele, não iria querer ficar em um quarto escuro de hotel às oito da noite de uma sexta-feira, em uma das cidades mais animadas dos Estados Unidos.

Eric e Dahlia saírem era exatamente do que eu precisava. Passei aquelas duas horas inteiras tentando inventar uma desculpa para explicar a eles por que eu ia sair, aonde iria e por que eles não poderiam ir junto.

Eles resolveram isso para mim.

Minutos após Eric sair do quarto, espero Dahlia — em seu próprio quarto, ao lado do nosso — tirar o biquíni e se vestir. Pelo olho mágico da minha porta, eu os vejo indo embora pelo corredor. Conto até cem enquanto ando de um lado para outro sem parar. Então pego minha bolsa e vou até a porta. Ando depressa pelo corredor na direção oposta e chego ao quarto secreto, do outro lado do prédio.

Com certa paranoia de ser flagrada, vasculho minha bolsa e encontro tudo, menos a chave do quarto. Enfim consigo senti-la entre os dedos e me apresso para entrar, travando a porta com a corrente. Abro a mala ao pé da cama e tiro minha peruca curta platinada, passando os dedos para ajeitar as mechas desalinhadas, e então a deixo sobre o abajur ao lado para que não perca a forma.

Visto um Dolce & Gabbana curtinho e me maquio com cores escuras e pesadas, o que, depois de passar um tempão praticando em casa, faço bem. Então calço as sandálias de salto alto. Andar de salto é outra coisa que passei muito tempo tentando aprender. Meu alter ego, Izabel Seyfried, saberia andar de salto e o faria bem. Por isso, eu precisava acompanhar.

Em seguida, molho o cabelo e o divido em duas partes atrás. Enrolo cada metade e cruzo uma sobre a outra na nuca. Vários grampos depois, meu longo cabelo castanho está bem preso no couro cabeludo. Visto a touca da peruca e depois a própria peruca, ajustando-a por muito tempo até deixar tudo perfeito.

Por fim, prendo uma bainha de punhal em torno da coxa e a cubro com o tecido do vestido.

Fico de pé diante do espelho de corpo inteiro e me avalio de todos os ângulos possíveis. Estar loura é estranho. Satisfeita, pego a bolsinha preta e a enfio debaixo do braço, com a pequena pistola formando certo volume nela. Estico o braço para girar a maçaneta, mas deixo minha mão cair junto ao corpo.

“Que droga eu estou fazendo?”

O que precisa ser feito.

“E por que eu estou fazendo isso?”

Porque preciso.

Não consigo tirar da cabeça as coisas que aquele homem confessou, as pessoas que matou por causa de um fetiche sexual doentio. Todas as noites desde que Victor me deixou, quando fecho os olhos, vejo o rosto de Hamburg e aquele sorriso de gelar o sangue que ele abriu quando me curvei sobre a mesa, exposta na frente dele. Vejo o rosto de sua esposa, esquelético e combalido, seus olhos fundos turvados pela resignação. Ainda sinto até o fedor da urina que secou em suas roupas e no catre infestado onde ela dormia, naquele quarto escondido.

Meu peito se enche de ar e eu o prendo por vários segundos, antes de soltar um longo suspiro.

Não posso esquecer. A necessidade de matá-lo é como uma coceira no meio das costas. Não posso alcançar naturalmente, mas vou me curvar e torcer os braços até doerem para coçar.

Não posso esquecer...

E talvez... só talvez também acabe chamando a atenção de um certo assassino que não consigo me obrigar a esquecer.

Assim que passo pela porta, deixo Sarai para trás e me torno Izabel por uma noite.

Por não ter pensado de antemão na importância de ao menos alugar um carro chique, salto do táxi a duas quadras do restaurante e ando o resto do caminho. Izabel jamais seria vista andando de táxi.

— Mesa para um? — pergunta o recepcionista assim que entro no restaurante.

Inclino a cabeça e olho para ele com um ar irritado.

— Algum problema? Não posso fazer uma refeição sozinha? Ou você está dando em cima de mim? — Abro um sorrisinho e inclino a cabeça para o outro lado. Ele está ficando nervoso. — Você gostaria de jantar comigo... — olho para o nome bordado no paletó — ... Jeffrey? — Chego mais perto. Ele dá um passo constrangido para trás.

— Hã... — Ele hesita. — Peço desculpas, senhora...

Recuo, trincando os dentes.

— Nunca me chame de senhora — digo com rispidez. — Me leve até uma mesa. Para um.

Ele assente e pede que eu o siga. Quando chego à minha mesinha redonda com duas cadeiras, no meio do restaurante, me sento e deixo a bolsa ao lado. Um garçom se aproxima quando o recepcionista se afasta e me apresenta a carta de vinhos. Eu a rejeito com um movimento dos dedos.

— Quero apenas água com uma rodela de limão.

— Pois não, senhora — diz ele, mas deixo passar.

Enquanto o garçom se afasta, começo a examinar o lugar. Há uma placa indicando a saída à minha esquerda, bem longe, perto do corredor. Há outra à minha direita, próxima à escada que leva para o segundo piso. O restaurante está praticamente igual à primeira vez que vim: escuro, não muito cheio e bastante silencioso, embora desta vez eu ouça jazz baixinho vindo de algum lugar. Ao observar o recinto, paro de repente ao ver a mesa à qual me sentei com Victor quando vim com ele, meses atrás.

Eu me perco na memória, vendo tudo exatamente como aconteceu. Quando olho para as duas pessoas sentadas no outro lado do salão, só consigo me ver com Victor:

— Venha cá — diz ele, em um tom de voz mais delicado.

Deslizo os poucos centímetros que nos separam e me sento encostada a ele.

Seus dedos dançam pela minha nuca quando ele puxa minha cabeça para perto de si. Meu coração bate descompassado quando ele roça os lábios na lateral do meu rosto. De repente, sinto sua outra mão entrando pelo meio das minhas coxas e subindo por baixo do vestido. Minha respiração para. Devo abrir as pernas? Devo ficar imóvel e travá-las? Sei o que quero fazer, mas não sei o que devo fazer, e minha mente está a ponto de desistir.

— Tenho uma surpresa para você esta noite — murmura ele no meu ouvido.

Sua mão se aproxima mais do calor no meio das minhas pernas.

Gemo baixinho, tentando não deixar que ele perceba, embora tenha certeza absoluta de que percebeu.

— Que tipo de surpresa? — pergunto, com a cabeça inclinada para trás, apoiada em sua mão.

— Vai querer algo mais? — Ouço uma voz, e sou arrancada do meu devaneio.

O garçom está segurando o cardápio. Minha água com uma rodela de limão na borda do copo já está diante de mim.

Um pouco confusa de início, apenas assinto, mas faço que não em seguida.

— Ainda não sei — respondo, enfim. — Deixe o cardápio. Talvez eu peça mais tarde.

— Pois não — diz o garçom.

Ele deixa o cardápio na mesa e vai embora.

Olho para a varanda e para as mesas encostadas no balaústre requintado. Onde Hamburg pode estar? Sei que ele está no andar de cima porque Victor disse que ele ficava por lá. Mas onde? Eu me pergunto se ele já me viu, e no mesmo instante meu estômago se embrulha de nervoso.

Não, não posso parecer nervosa.

Endireito as costas na cadeira e tomo um gole da água. Deixo o dedo mindinho levantado, o que me faz parecer muito mais rica, ou apenas mais esnobe. Fico observando os clientes indo e vindo, escuto sua conversa supérflua e me pego imaginando qual dos casais que estão ali poderia acabar na mansão de Hamburg no fim de semana, ganhando muito dinheiro para deixar que ele os veja foder.

Então olho para o arranjo de flores vermelhas em um pequeno vaso de vidro no centro da minha mesa. Pego o celular na bolsa, finjo digitar um número e o coloco perto do ouvido, para que ninguém ache que estou falando sozinha.

— Este recado é para Arthur Hamburg — digo em voz baixa, inclinando-me um pouco para a frente a fim de que o microfone escondido no vaso de flores capte minha voz. — Com certeza você se lembra de mim, não é? Izabel Seyfried. Há quanto tempo, não?

Com cuidado, olho para os lados, esperando ver um ou dois homens parrudos de terno se aproximando de mim com armas em punho.

— Não estou sozinha — continuo —, por isso nem pense em fazer alguma idiotice. A gente precisa conversar.

Olhando para a varanda acima de mim, tento descobrir onde ele pode estar, torcendo para que esteja ali. Alguns minutos tensos se passam, e, quando começo a pensar que a noite foi em vão e que eu estava mesmo falando sozinha, noto um movimento no piso superior, logo acima da saída à minha direita. Meu coração bate forte quando vejo a figura alta e escura sair das sombras e descer a escada.

Eu me lembro desse homem de ombros largos, cabelo grisalho e uma covinha no meio do queixo. É o gerente do restaurante, Willem Stephens, que já encontrei aqui uma vez.

Ele se aproxima da minha mesa sem expressar nenhuma emoção, com as mãos enormes cruzadas à frente, as costas retas, o queixo anguloso imóvel.

— Boa noite, srta. Seyfried. — A voz dele é profunda e sinistra. — Posso perguntar onde está seu dono?

Levanto os olhos para encará-lo, dou um sorrisinho, tomo um gole da minha água e devolvo o copo à mesa, sem pressa. Cada fibra do meu ser está gritando, dizendo como fui idiota em vir até aqui. Por mais que eu saiba que é verdade, não importa. Não é o medo que me faz tremer por dentro, é a adrenalina.

— Victor Faust não é meu dono — explico, com calma. — Mas ele está aqui. Em algum lugar. — Um sorriso tênue e dissimulado toca meus lábios.

Os olhos de Stephens percorrem o salão sutilmente e voltam a me encarar.

— Por que está aqui? — pergunta ele, perdendo um pouco o ar de gerente sofisticado.

— Tenho negócios a discutir com Arthur Hamburg — respondo, confiante. — É do maior interesse dele marcar um encontro privado comigo. Aqui. Hoje. De preferência agora.

Tomo outro gole.

Noto que o pomo de adão de Stephens se move quando ele engole em seco, bem como os contornos de seu queixo quando ele cerra os dentes. Ele olha para o lugar de onde veio, no andar de cima, e percebo um aparelhinho preto escondido em seu ouvido esquerdo. Parece que ele está ouvindo alguém falar. Eu chutaria que é Hamburg.

Ele me encara de novo, com os olhos escuros e cheios de ódio, mas mantém o semblante inexpressivo com a mesma perfeição de Victor.

Ele descruza os braços, estende a mão direita para mim e diz:

— Por aqui.

Ele só deixa os braços penderem, relaxados, quando me levanto. Sigo Stephens pelo restaurante e escada acima, para o piso da varanda.

Apenas duas coisas podem acontecer: ou esta será minha primeira noite como assassina ou a última da minha vida.


CAPÍTULO QUATRO

Sarai

— Se encostar em mim — digo para o guarda-costas de terno à porta da sala particular de Hamburg —, enfio suas bolas em um moedor de carne.

As narinas do segurança se dilatam e ele olha para Stephens.

— Você solicitou uma reunião com o sr. Hamburg — diz Stephens atrás de mim. — É claro que vamos revistá-la antes para verificar se está armada.

Droga!

Calma. Fique calma. Faça o que Izabel faria.

Respiro fundo, encarando-os com desprezo e um ar ameaçador. Então jogo minha bolsinha preta no segurança. Ele pega a bolsa quando ela bate em seu peito.

— Acho que está bem claro que eu não conseguiria esconder uma arma em um vestido como este, a menos que a enfiasse na boceta — digo, olhando para Stephens. — Minha arma está na bolsa. Mas nem pense em tocar...

— Deixem a moça entrar — ordena da porta uma voz familiar.

É Hamburg, ainda balofo e grotesco como antes, usando um terno imenso que parece em vias de estourar se ele respirar fundo demais.

Abro um leve sorriso para o segurança, que me encara com olhos assassinos. Conheço esse olhar, até demais. O homem tira a pistola e me devolve a bolsa.

— Sr. Hamburg — diz Stephens —, eu deveria ficar na sala com o senhor.

Hamburg balança a papada, rejeitando a sugestão.

— Não, vá cuidar do restaurante. Se essas pessoas tivessem vindo me matar, não seriam tão óbvias. Eu vou ficar bem.

— Pelo menos deixe Marion à porta — sugere Stephens, olhando para o guarda-costas.

— Sim — concorda Hamburg. — Você fica aqui. Não deixe ninguém interromper nossa... — diz ele, me olhando com frieza — reunião, a menos que eu peça. Se em algum momento você não ouvir minha voz por mais de um minuto, entre na sala. Como precaução, é claro.

Ele abre um sorrisinho para mim.

— É claro. — Imito Hamburg e sorrio também.

Ele dá um passo para o lado e me convida a entrar.

— Pensei que isso tivesse acabado, srta. Seyfried.

Hamburg fecha a porta.

— Sente-se — pede ele.

A sala é bem grande, com paredes lisas e arredondadas, sem cantos, de um lado a outro. Uma série de grandes quadros retratando o que parece ser cenas bíblicas rodeia uma grande lareira de pedra. Cada imagem é emoldurada em uma caixa de vidro, com luzes na parte de baixo. A sala é pouco iluminada, como o restaurante, e o cheiro é de incenso ou talvez de óleo aromático de almíscar e lavanda. Na parede à minha esquerda, há uma porta aberta que leva a outra sala, onde a luz cinza-azulada de várias telas de TV brilha nas paredes. Chego mais perto para me sentar na poltrona de couro com encosto alto diante da escrivaninha e espio dentro da saleta. É como eu imaginava. As telas mostram várias mesas do restaurante.

Hamburg fecha essa porta também.

— Não, está longe de acabar — respondo, enfim.

Cruzo as pernas e mantenho a postura ereta, o queixo levantado com ar confiante e os olhos em Hamburg, enquanto ele atravessa a sala na minha direção. Puxo a barra do vestido para cobrir completamente o punhal preso na coxa. Minha bolsa está no meu colo.

— Vocês já tiraram minha esposa de mim. — A indignação transparece na voz dele. — Não acham que foi o suficiente?

— Infelizmente, não. — Abro um sorriso malicioso. — Não foi o suficiente para você e sua esposa tirarem uma vida? Não, não foi — respondo por ele. — Vocês tiraram muitas vidas.

Hamburg morde o interior da bochecha e se senta atrás da escrivaninha, de frente para mim. Ele apoia as mãos gordas sobre o tampo de mogno. Percebo quanto ele quer me matar ali mesmo onde estou. Mas não fará isso porque acredita que não estou sozinha. Ninguém em sã consciência faria algo assim, vir até aqui sozinha, inexperiente e desprevenida.

Ninguém, a não ser eu.

Preciso garantir que ele continue acreditando que tenho cúmplices até descobrir como vou matá-lo e sair da sala sem ser pega. O pedido de Hamburg para que o guarda-costas entrasse na sala depois de um minuto sem ouvir sua voz pôs mais um obstáculo no plano que, na verdade, nunca tive de fato.

— Bem, devo dizer uma coisa — diz Hamburg, mudando de tom. — Você é deslumbrante com qualquer tipo de peruca. Mas admito que prefiro a morena.

Ele acha que meu cabelo castanho-avermelhado era uma peruca. Ótimo.

— Você é doente. Sabe disso, certo? — Tamborilo com as unhas no braço da poltrona.

Hamburg abre um sorriso medonho. Estremeço por dentro, mas mantenho a compostura.

— Eu não matei aquelas pessoas de propósito. Elas sabiam no que estavam se metendo. Sabiam que, no calor do momento, alguém poderia perder o controle.

— Quantas?

Hamburg estreita os olhos.

— O que importa isso, srta. Seyfried? Uma. Cinco. Oito. Por que não diz logo o motivo da sua visita? Dinheiro? Informação? A chantagem assume muitas formas, e não seria a primeira vez que enfrento uma. Sou um veterano.

— Fale sobre a sua esposa — peço, ganhando tempo e fingindo ainda ser quem dá as cartas. — Antes de “ir direto ao assunto”, quero entender sua relação com ela.

Uma parte de mim quer saber de verdade. E estou incrivelmente nervosa; sinto um enxame zumbindo no meu estômago. Talvez jogar conversa fora ajude a acalmar minha mente.

Hamburg inclina a cabeça para o lado.

— Por quê?

— Apenas responda à pergunta.

— Eu a amava muito — responde ele, relutante. — Ela era a minha vida.

— Aquilo é amor? — pergunto, incrédula. — Você manchou a memória dela ao dizer que ela era uma viciada em drogas que se suicidou, só para salvar a própria pele, e chama isso de amor?

Noto uma luz se movendo no chão, por baixo da porta da sala de vigilância. Não havia ninguém lá dentro antes, ao menos que eu tivesse visto.

— Como a chantagem, o amor assume muitas formas. — Hamburg apoia as costas na poltrona de couro, que range, cruzando os dedos roliços sobre a enorme barriga. — Mary e eu éramos inseparáveis. Não éramos como outras pessoas, outros casais, mas o fato de sermos tão diferentes não significava que nos amávamos menos do que os outros. — Os olhos dele cruzam os meus por um momento. — Tivemos sorte por encontrar um ao outro.

— Sorte? — pergunto, pasma com o comentário. — Foi sorte duas pessoas doentes se encontrarem e se unirem para fazer coisas doentias com os outros? Não entendo.

Hamburg balança a cabeça como se fosse um velho sábio e eu fosse jovem demais para entender.

— Pessoas diferentes como Mary e eu...

— Doentes e dementes — corrijo. — Não diferentes.

— Chame como quiser — diz ele, com ar de resignação. — Quando você é tão diferente assim da sociedade, do que é aceitável, encontrar alguém como você é algo muito raro.

Sem perceber, cerro os dentes. Não porque Hamburg esteja me irritando, mas porque nunca imaginei que esse homem nojento pudesse me dizer qualquer coisa que me fizesse pensar na minha situação com Victor, ou qualquer coisa que eu pudesse entender.

Afasto esse pensamento.

A luz fraca sob a porta da sala de vigilância se move de novo. Finjo não ter notado, sem querer dar a Hamburg qualquer motivo para achar que estou pensando em outra saída.

— Vim aqui saber nomes — digo de repente, sem ter pensado bem a respeito.

— Que nomes?

— Dos seus clientes.

Algo muda nos olhos de Hamburg, ele vai tomar o controle da situação.

— Você quer os nomes dos meus clientes? — pergunta ele, desconfiado.

Que merda...

— Pensei que você e Victor Faust já estivessem de posse da minha lista de clientes.

Continue séria. Não perca a compostura. Merda!

— Sim, estamos, mas me refiro àqueles que você não mantinha nos registros.

Acho que vou vomitar. Parece que minha cabeça está pegando fogo. Prendo a respiração, torcendo para ter me livrado dessa.

Hamburg me examina em silêncio, vasculhando meu rosto e minha postura em busca de qualquer sinal de autoconfiança abalada. Ele coça o queixo gordo e cheio de dobras.

— Por que você acha que existe uma lista fantasma?

Suspiro meio aliviada, mas ainda não estou fora de perigo.

— Sempre existe uma lista fantasma — afirmo, embora não faça nem ideia do que estou dizendo. — Quero pelo menos três nomes que não estejam no registro que nós temos.

Sorrio, sentindo que recuperei o controle da situação.

Até ele falar:

— Diga você três nomes da lista que já tem, e eu dou o que você quer.

É oficial: perdi o controle.

Engulo em seco e me controlo antes de parecer “pega no flagra”.

— Você acha que eu carrego a lista na bolsa? — pergunto com sarcasmo, tentando continuar no jogo. — Nada de negociações ou meios-termos, sr. Hamburg. O senhor não está em condições de fazer nenhuma barganha.

— É mesmo? — pergunta ele, sorrindo.

Ele suspeita de mim. Posso sentir. Mas vai garantir que está certo antes de dar o bote.

— Isso não está em discussão. — Eu me levanto da poltrona de couro, enfiando a bolsa debaixo do braço, mais frustrada do que antes por ter que entregar minha arma.

Pressiono os dedos na escrivaninha de mogno, apoiando meu peso neles ao me curvar um pouco na direção de Hamburg.

— Três nomes, ou saio daqui e Victor Faust entra para espalhar os seus miolos naquele belo quadro do menino Jesus atrás de você.

Hamburg ri.

— Esse não é o menino Jesus.

Ele se levanta junto comigo, alto, enorme e ameaçador.

Enquanto vasculho minha mente e tento entender como ele descobriu que sou uma farsante, Hamburg se adianta e anuncia seu raciocínio como um chute na minha boca.

— É engraçado, Izabel, você vir aqui pedir nomes que não aparecem em uma lista que você... — diz, apontando para a minha bolsa — ... nem carrega consigo, porque como você saberia que os nomes que eu daria não estão nela?

Estou muito ferrada.

— Vou dizer o que eu acho — continua ele. — Acho que você veio aqui sozinha por causa de alguma vingança contra mim. — Ele balança o indicador. — Porque eu me lembro de cada detalhe da porra daquela noite. Cada merda de detalhe. Especialmente a sua expressão quando percebeu que Victor Faust tinha vindo matar minha esposa em vez de mim. Era a expressão de alguém pega de surpresa, que não fazia ideia de por que estava ali. Era a expressão de alguém que não está familiarizada com o jogo.

Ele tenta sorrir com gentileza, como se quisesse demonstrar alguma espécie de empatia pela minha situação, mas o que leio em seu rosto é cinismo.

— Acho que, se houvesse mais alguém aqui com você, ele já teria aparecido para salvá-la, porque é óbvio que você está ferrada.

A porta do quarto principal se abre, o guarda-costas entra e a tranca. Por uma fração de segundo, tive a esperança de que fosse Victor vindo me salvar na hora certa. Mas foi só um desejo. O guarda-costas me olha com desprezo. Hamburg acena para ele, que começa a tirar o cinto.

Meu coração afunda até o estômago.

— Sabe — diz Hamburg, dando a volta na escrivaninha —, na primeira vez que a gente se viu, lembro que fiz um acordo com Victor Faust. — Ele aponta para mim. — Você se lembra disso, não?

Hamburg sorri e apoia a mão gorda nas costas da poltrona na qual eu estava sentada, virando-a para mim.

Todo o meu corpo está tremendo; parece que o sangue que passa pelas minhas mãos virou ácido. Ele corre pelo meu coração e pela minha cabeça tão rápido que quase desmaio. Começo a tentar alcançar meu punhal, mas eles estão perto demais, aproximando-se pelos dois lados. Não tenho como enfrentar os dois ao mesmo tempo.

— Como assim? — pergunto, tropeçando nas palavras, tentando ganhar um pouco de tempo.

Hamburg revira os olhos.

— Ora, por favor, Izabel. — Ele gira um dedo no ar. — Apesar do que aconteceu naquela noite, fiquei decepcionado de verdade por vocês dois irem embora antes de cumprir o acordo.

— Eu diria que, em vista do que aconteceu, o acordo não vale mais nada.

Ele sorri para mim e se senta na poltrona de couro. Percebo Hamburg espiar de relance o guarda-costas, dando uma ordem só com o olhar.

Antes que eu consiga me virar, o segurança prende minhas duas mãos nas minhas costas.

— Você vai cometer um erro do caralho se fizer isso! — grito, tentando me livrar das garras do segurança.

Ele me leva à força até uma mesa quadrada e me joga sobre ela. Meus reflexos não são rápidos o suficiente e meu queixo bate no mármore duro. O gosto metálico do sangue enche minha boca.

— Me solte! — Tento chutá-lo. — Me solte agora!

Hamburg ri de novo.

— Vire a cabeça dela para esse lado — ordena ele.

Dois segundos depois, meu pescoço é torcido para o outro lado e mantido ali, minha bochecha esquerda pressionada contra o mármore frio.

— Quero ver a cara dela enquanto você a fode. — Hamburg me olha de novo. — Então vamos continuar do ponto onde paramos naquela noite, tudo bem? Você concorda, Izabel?

— Vai se foder!

— Ah, não, não — diz ele, ainda com o riso na voz. — Não sou eu quem vai foder você. Você não faz o meu tipo. — Seus olhos famintos percorrem o corpo do segurança que está me pressionando por trás.

— Eu vou matar você — digo, cuspindo por entre os dentes. A mão do segurança sobre a minha cabeça impede que eu a mexa. — Vou matar vocês dois! Me estupre! Vamos lá! Mas os dois vão estar mortos antes que eu saia daqui!

— Quem disse que você vai sair daqui? — provoca Hamburg.

O zíper da calça dele está aberto; sua mão direita está parada ao lado da braguilha, como se ele estivesse tentando manter algum autocontrole e não se masturbar ainda.

Então Hamburg acena com dois dedos para o guarda-costas, que me mantém imóvel segurando meus cabelos da nuca.

— Lembre-se disso — diz ele ao segurança. — Ela não vai sair daqui.

Sinto a mão direita do guarda-costas soltar meu cabelo e se mover entre as minhas pernas. Enquanto ele ergue meu vestido, aproveito para alcançar o punhal na minha coxa e tirá-lo da bainha, golpeando atrás em um ângulo desajeitado. O segurança grita de dor e me solta. Puxo o punhal ainda firme na mão, que está coberta de sangue. Ele cambaleia para trás, com a mão na base do pescoço, o sangue jorrando entre seus dedos.

— Sua puta do caralho! — ruge Hamburg, saltando da poltrona e vindo atrás de mim como um elefante descontrolado, a calça caindo de sua cintura flácida.

Corro na direção dele com o punhal levantado e colidimos no meio da sala. Seu peso me joga de bunda no chão e o punhal cai da minha mão, deslizando pelo piso ensanguentado. De pé, Hamburg se abaixa para me segurar, mas me reclino no chão e levanto o pé com toda a força, enfiando o salto da minha sandália na lateral do seu rosto. Ele geme e cambaleia para trás, com a mão na bochecha.

— Eu vou acabar com você! Puta que pariu! — berra ele.

Engatinho na direção do punhal, vendo o segurança no chão, em meio a uma poça de sangue. Ele está engasgando com os próprios fluidos; tentando em vão encher os pulmões de ar.

Pego o punhal com firmeza e rolo no chão enquanto Hamburg se aproxima, derrubando a poltrona de couro. Fico de pé e corro até a mesa, empurrando-a na direção dele. Hamburg tenta tirá-la da frente, mas o móvel balança sobre a base e ele acaba tropeçando. Seu corpo desaba no chão de barriga para baixo e a mesa cai quase na sua cabeça. Salto sobre suas costas e monto em seu corpo obeso. Meus joelhos mal tocam o chão. Agarro seu cabelo, puxo a cabeça dele para trás na minha direção e aperto o punhal em sua garganta, imobilizando-o em segundos.

— Pode me matar! Foda-se! Você não vai sair viva daqui mesmo. — A voz de Hamburg é rouca, sua respiração, rápida e ofegante, como se ele tivesse acabado de tentar correr uma maratona. O cheiro de seu suor e de seu medo invade minhas narinas.

Ocupada com a lâmina em sua garganta, me assusto com o som de batidas fortes na porta. A distração me pega desprevenida. Hamburg consegue se erguer debaixo de mim como um touro, rolando de lado e me derrubando no chão. Deixo cair o punhal em algum lugar, mas não tenho tempo para procurá-lo porque Hamburg consegue se levantar e parte para cima de mim. Ouço a voz de Stephens do outro lado da porta, que vibra com seus socos.

Rolo para sair do caminho antes que Hamburg consiga pular em cima de mim, pego o objeto mais próximo — um peso de papel de pedra, bem pesado, que estava na mesa antes de ser derrubada — e golpeio Hamburg com ele. O som do osso de seu rosto quebrando com o impacto faz meu estômago revirar. Hamburg cai para trás, cobrindo a cara com as mãos.

As batidas na porta ficam mais fortes. Numa fração de segundo, levanto a cabeça e vejo a porta sacudindo com violência no batente. Preciso sair daqui. Agora. Meu olhar varre a sala procurando o punhal, mas não há mais tempo.

Corro para a sala de vigilância, contornando os obstáculos.

Graças a Deus, há outra porta lá dentro. Abro a porta e desço correndo a escada de concreto, torcendo para que seja uma saída e eu não encontre mais ninguém no caminho.


CAPÍTULO CINCO

Sarai

Desço a escada de concreto de dois em dois degraus, segurando no corrimão de metal pintado com as mãos ensanguentadas, até chegar ao térreo. Uma placa vermelha com a palavra SAÍDA está à minha frente. Corro pela passagem mal-iluminada, onde uma lâmpada fluorescente pisca acima de mim e torna o lugar ainda mais ameaçador. Empurro com força a barra da porta com as duas mãos e ela se abre para um beco. Um homem de terno está sentado no capô de um carro, fumando, quando saio para a rua.

Eu fico paralisada.

Ele olha para mim.

Eu olho para ele.

Ele nota o sangue nas minhas mãos e olha de relance para a porta, depois para mim.

— Vá — diz ele, acenando para a caçamba de lixo à minha direita.

Sei que não tenho tempo para ficar confusa nem para perguntar por que ele está me deixando ir embora, mas pergunto assim mesmo.

— Por que você está...?

— Apenas vá!

Ouço passos ecoando na escada atrás da porta.

Lanço um olhar agradecido ao homem e dou a volta na caçamba, desço o beco e me afasto do restaurante. Ouço um tiro segundos depois que dobro a esquina e torço para que seja aquele homem fingindo atirar em mim.

Evito espaços abertos e corro por trás de prédios, protegida pela escuridão, tanto quanto minhas sandálias de salto alto permitem. Quando sinto que estou longe o suficiente para parar um pouco, tento me esconder atrás de outra caçamba e tiro as sandálias. Arranco a peruca loura e a jogo no lixo.

Não consigo respirar. Estou enjoada.

Meu Deus, estou enjoada...

Encosto na parede de tijolos atrás de mim, arqueando as costas e apoiando as mãos nos joelhos. Vomito com violência no chão, meu corpo rígido, o esôfago ardendo.

Pego as sandálias e saio correndo de novo na direção do hotel, tentando esconder o sangue das mãos e do vestido, mas percebo que não é tão fácil. Recebo alguns olhares desconfiados ao passar depressa pela recepção, mas tento ignorá-los e torço para que ninguém chame a polícia.

Em vez de arriscar ser vista por outras pessoas, subo pela escada até o oitavo andar. Quando chego lá, e depois de tudo o que corri, sinto que minhas pernas vão ceder. Encosto na parede e recupero o fôlego, com os joelhos tremendo descontroladamente. Meu peito dói, como se cada respiração trouxesse poeira, fumaça e cacos microscópicos de vidro para o fundo dos pulmões.

O quarto que divido com Eric está trancado e eu não tenho a chave. Aliás...

— Puta merda...

Jogo a cabeça para trás, fecho os olhos e suspiro, arrasada.

Não estou mais com a minha bolsa. Eu a perdi em algum momento da luta na sala de Hamburg. A chave do meu quarto. Meu celular. Minha arma. Meu punhal. Não tenho mais nada.

Bato na porta, mas Eric não está no quarto. Não esperava que estivesse, na verdade, já que não são nem onze da noite. Só para o caso de estar enganada, no entanto, tento o quarto de Dahlia.

— Dahl! Você está aí? — Bato na porta com pressa, tentando não incomodar os outros hóspedes.

Nenhuma resposta.

Já desistindo, jogo as sandálias no chão e apoio as mãos na parede. Minha cabeça desaba. Mas então ouço um clique baixinho e vejo a porta do quarto de Dahlia se abrindo devagar. Levanto a cabeça e a vejo parada ali.

Sem me demorar para questionar a expressão estranha no rosto dela, entro no quarto só para sair do corredor. Eric está sentado na poltrona perto da janela. Noto que seu cabelo está meio bagunçado. O de Dahlia também.

Meu instinto está tentando chamar minha atenção, mas não me importo. Acabei de apunhalar um homem no pescoço e de tentar matar outro. Quase fui estuprada. Estava correndo pelos becos de Los Angeles para fugir de homens armados que vinham atrás de mim. Nada que esses dois façam pode superar isso.

— Meu Deus, Sarai — diz Dahlia, aproximando-se de mim. — Isso é sangue?

A expressão estranha e silenciosa que ela exibia quando entrei no quarto desaparece em um instante quando ela me vê no quarto bem-iluminado. Seus olhos se arregalam, cheios de preocupação.

Eric se levanta da poltrona.

— Você está sangrando. — Ele também me olha de cima a baixo. — O que aconteceu?

Os olhos de Dahlia correm pela minha roupa e pelo meu cabelo preso dentro da touca da peruca.

— Por que... Hã, por que você está vestida assim?

Olho para mim mesma. Não sei o que dizer, então não digo nada. Eu me sinto como um cervo diante dos faróis de um carro, mas minha expressão continua firme e sem emoções, talvez um pouco confusa.

— Você encontrou Matt — acusa Dahlia, começando a levantar a voz. — Puta que pariu, Sarai. Você foi se encontrar com ele, não foi?

Sinto os dedos dela apertando meu antebraço.

Eu me desvencilho de Dahlia e caminho até o banheiro para tirar a touca do cabelo. Enquanto tiro os grampos, noto uma camisinha boiando na privada.

Eric entra no banheiro atrás de mim. Ele sabe que eu vi.

— Sarai, e-eu... Eu sinto muito — diz ele.

— Não se preocupe — respondo, tirando o último grampo e deixando-o na bancada creme.

Passo por Eric e volto para o quarto. Dahlia está me encarando, com o rosto cheio de vergonha e arrependimento.

— Eu...

Ergo a mão e olho para os dois.

— Não, é sério. Não estou brava.

— Como assim? — pergunta Dahlia.

Eric parece agitado. Ele põe a mão na nuca e passa os dedos pelo cabelo.

— Olhe, sem querer ofender — digo a Eric —, mas tenho fingido tudo com você desde a primeira vez que a gente ficou junto.

Ele arregala os olhos, embora tente não deixar que o choque e a mágoa da minha revelação transpareçam demais. Grande parte de mim se sente bem por dizer a verdade. Não por vingança, mas porque eu precisava tirar isso do peito. Mas admito que, depois de descobrir que os dois têm trepado pelas minhas costas, uma pequena parte de mim também fica feliz em magoá-lo. Acho que a vingança sempre encontra um caminho, mesmo nos gestos mais insignificantes.

— Fingido?

— Não tenho tempo para isso — digo, indo na direção da porta. — Vocês dois podem ficar juntos. Não tenho nada contra. Não estou brava, só não me importo mesmo. Preciso ir.

— Espere... Sarai.

Eu me viro para olhar Dahlia. Ela está muito chocada, mal sabe o que pensar. Depois de alguns segundos de silêncio, fico impaciente e a olho com cara de “vai, desembucha”.

— Para você... tudo bem mesmo?

Uau, não sirvo mesmo para o estilo de vida deles. O estilo de vida normal. Nem consigo entender essas coisas de namoro, melhores amigas, infidelidade, competição e joguinhos psicológicos. A cara que eles fazem, tão vazia e mesmo assim tão cheia de incredulidade e dúvida, por causa de uma situação que, para mim, não é tão importante... Tenho coisas mais graves com que me preocupar.

Suspiro, aborrecida com as perguntas vagas e confusas dos dois.

— Sim, por mim, tudo bem — digo, e então me viro para Eric, estendendo a mão. — Preciso da chave do nosso quarto.

Relutante, ele enfia a mão no bolso de trás e pega a chave. Tomo da sua mão, saio dali e vou para o quarto ao lado. Eric vem atrás e tenta falar comigo enquanto guardo minhas coisas na mala.

— Sarai, eu nunca quis...

Eu me viro de repente e o encaro.

— Tudo bem, só vou dizer isto uma vez, depois você muda de assunto ou volta para lá e fica com a Dahlia. Não estou nem aí para o que vocês dois fazem, mas, por favor, não apele para esse clichê de novela de que você nunca quis que isso acontecesse, porque... é muito idiota. — Eu rio baixinho, porque acho idiota mesmo. — Só falta você dizer que o problema não é comigo, é com você. Caramba, você faz ideia do que isso parece? É tão difícil assim acreditar quando digo que não me importo e que estou falando sério? Sem joguinhos. É verdade. — Balanço a cabeça, levanto as mãos e digo: — Não. Me. Importo.

Viro para a mala, fecho o zíper, abro a parte lateral e pego a chave do quarto secreto. Ainda bem que eu tinha uma cópia.

— Preciso ir — digo, andando até a porta e passando por Eric.

— Aonde você vai?

— Não posso contar, mas me escute, Eric, por favor. Se alguém aparecer me procurando, finja que não me conhece. Diga o mesmo para Dahlia. Finjam que nunca me viram na vida. Aliás, quero que vocês dois saiam hoje. Vão para qualquer lugar. Só... não fiquem aqui.

— Você vai me dizer o que aconteceu ou por que está toda ensanguentada? Sarai, você está me deixando assustado pra cacete.

— Eu vou ficar bem — digo, atenuando minha expressão. — Mas prometa que você e Dahlia vão fazer exatamente o que falei.

— Você vai me contar um dia?

— Não posso.

O silêncio entre nós fica mais pesado.

Enfim, abro a porta e saio para o corredor.

— Acho que sou eu quem deveria estar pedindo desculpas.

— Por quê?

Eric fica na porta, com os braços caídos ao lado do corpo.

— Por pensar em outra pessoa durante todo esse tempo em que eu estava com você. — Olho para o chão.

Nós nos encaramos por um breve momento e ninguém diz mais nada. Ambos sabemos que estamos errados. E acho que nós dois estamos aliviados por tudo ter vindo à tona.

Não há mais nada a dizer.

Eu me afasto pelo corredor na direção oposta à do meu quarto secreto e dou a volta por trás, para que Eric não veja aonde estou indo. Quando me tranco no quarto, só consigo desabar na cama. A exaustão, a dor e o choque de tudo o que aconteceu esta noite me atingem em cheio assim que a porta se fecha, e me engolem como uma onda. Eu me jogo de costas no colchão. Minhas panturrilhas doem tanto que duvido conseguir andar sem mancar amanhã.

Fico olhando para o teto escuro até ele desaparecer e eu pegar no sono.


CAPÍTULO SEIS

Sarai

Um tum! pesado me acorda, mais tarde naquela noite. Eu me levanto como uma catapulta.

Vejo dois homens no meu quarto: um desconhecido morto no chão e Victor Faust de pé sobre o corpo dele.

— Levante-se.

— Victor?

Não acredito que ele está aqui. Devo estar sonhando.

— Levante-se, Sarai. AGORA! — Victor me pega pelo cotovelo, me arranca da cama e me põe de pé.

Não consigo nem pegar minhas coisas, ele já está abrindo a porta e me puxando para o corredor com ele, segurando forte a minha mão.

Disparamos juntos pelo corredor e outro homem aparece virando a esquina, de arma em punho. Victor aponta sua 9mm com silenciador e o derruba antes que o cara consiga atirar. Ele passa pelo corpo me puxando, seus dedos fortes afundando na minha mão enquanto corremos para a escada. Ele abre a porta, me empurra para a frente e nós subimos depressa os degraus de concreto. Um andar. Três. Cinco. Minhas pernas estão me matando. Acho que não consigo andar por muito mais tempo. Enfim, no quinto andar, Victor me puxa para outro corredor e rumo a um elevador nos fundos.

Quando as portas do elevador se fecham e estamos só nós dois lá dentro, finalmente tenho a oportunidade de falar.

— Como você sabia que eu estava aqui? — Mal consigo recuperar o fôlego, esgotada pela correria infinita e pela adrenalina, mas acho que sobretudo porque Victor está de pé ao meu lado, segurando minha mão.

Meus olhos começam a arder com as lágrimas.

Engulo o choro.

— O que você estava pensando, Sarai?

— Eu...

Victor segura meu rosto com as duas mãos e me empurra contra a parede do elevador, pressionando ferozmente seus lábios nos meus. Sua língua se entrelaça na minha e sua boca tira meu fôlego em um beijo apaixonado que, enfim, faz meus joelhos cederem. Toda a força que eu estava usando para manter o corpo ereto desaparece quando os lábios dele me tocam. Ele me beija com fome, com raiva, e eu derreto em seus braços.

Então ele se afasta, as mãos fortes nos meus braços, me segurando contra a parede do elevador. Nós nos encaramos pelo que parece ser uma eternidade, nossos olhos paralisados em uma espécie de contemplação profunda, nossos lábios a centímetros de distância. Só quero prová-los de novo.

Mas ele não deixa.

— Responda — exige Victor, estreitando seus olhos perigosos em reprovação.

Já esqueci a pergunta.

Ele me sacode.

— Por que você veio aqui? Tem ideia do que você fez?

Balanço a cabeça em um movimento curto e rápido, parte de mim mais preocupada com seu olhar ameaçador do que com o que ele está dizendo.

A porta do elevador se abre no subsolo e eu não tenho tempo para responder, pois Victor mais uma vez pega minha mão e me puxa para que o siga. Serpenteamos por um grande depósito com caixas em pilhas altas encostadas nas paredes e depois por um longo corredor escuro que leva a um estacionamento. Victor enfim solta minha mão e eu o sigo até um carro parado entre dois furgões pretos com o logotipo do hotel nas laterais. Dois bipes ecoam pelo ambiente e os faróis do carro piscam quando nos aproximamos, iluminando a parede de concreto em frente. Sem perder tempo, me sento no banco do passageiro e fecho a porta.

Segundos depois, Victor está dirigindo casualmente pelo estacionamento até a rua.

— Eu queria que ele morresse — respondo, enfim.

Victor não me olha.

— Bom, você fez um excelente trabalho — rebate ele, sarcástico.

Ele vira para a direita no semáforo, e o carro ganha velocidade quando chegamos à rodovia.

Fico magoada por suas palavras, mas sei que ele tem razão, por isso não discuto. Fiz merda. Uma merda muito grande.

Mas não me dou conta do tamanho dela até Victor dizer:

— Os seus amigos podiam ter morrido. Você podia ter morrido.

Sinto meus olhos se arregalarem além dos limites e me viro mais um pouco para encará-lo.

— Ah, não... Victor, o quê... Eles estão bem?

Sinto que vou vomitar de novo.

Victor me olha por um instante.

— Estão ótimos. O primeiro quarto que os capangas de Hamburg revistaram estava vazio — diz ele, voltando a olhar para a estrada. — Eu cheguei quando eles estavam saindo. Segui um deles até o quarto onde você estava escondida, deixei que ele destrancasse a porta e então ataquei.

As chaves do quarto. Minhas duas chaves extras estavam na bolsa que perdi no restaurante de Hamburg. E os números dos quartos estavam escritos nas capinhas de papel que as protegiam. Eu estava tão preocupada em esconder minha arma e meu punhal que nem pensei em esconder as chaves.

— Merda! — Também olho para a estrada. — E-eu perdi a bolsa no restaurante. As chaves do meu quarto estavam dentro dela. Deixei um rastro para eles seguirem!

Felizmente, eu não tinha uma chave extra do quarto de Dahlia, senão ela e Eric já poderiam estar mortos.

Onde é que eu estava com a cabeça?!

— Não, você deixou literalmente as chaves do seu quarto com o nome do hotel gravado. Sarai, eu devia ter matado você há muito tempo e poupado toda essa confusão para cima de você e de mim.

Eu me viro para encará-lo; a raiva e a mágoa pesando no meu peito.

— Você não está falando sério.

Ele faz uma pausa e me olha. Suspira.

— Não, não estou falando sério.

— Nunca mais me diga isso. Nunca mais me diga uma coisa dessas, ou eu mato você e poupo a mim de toda essa confusão — rebato, desviando o olhar.

— Você não está falando sério — diz Victor.

Olho mais uma vez para aqueles olhos ameaçadores verde-azulados que me fizeram tanta falta.

— Não. Mas acho que isso seria o mais sensato.

— Bom, você não foi a campeã da sensatez hoje, então acho que estou seguro ao menos pelas próximas 24 horas.

Escondo o sorriso.

— Senti sua falta — digo de maneira distante, olhando para a estrada.

Victor não responde, mas admito que seria estranho se respondesse. A despeito de sua falta de emoção, porém, sei que ele também sentiu saudade de mim. Aquele beijo no elevador disse coisas que palavras jamais conseguiriam.

Ele pega uma saída e para o carro debaixo de um viaduto. Puxa o freio de mão e a área ao redor desaparece na escuridão quando ele desliga os faróis.

— O que a gente está fazendo aqui?

— Você precisa ligar para os seus amigos.

— Por quê?

Ele tira um celular do porta-luvas entre nós.

— Mande eles voltarem para o Arizona. Faça ou diga o que for preciso para que eles saiam de Los Angeles. Quanto antes, melhor.

Ele coloca o telefone na minha mão. De início, só olho para o aparelho, mas ele me pressiona com aquele olhar, aquele que grita “vamos lá, faça isso de uma vez”, mas que só alguém como eu, alguém que conhece Victor, seria capaz de notar.

Giro o celular nas mãos, depois o seguro firmemente e digito o número de Eric. Mas então mudo de ideia, desligo no primeiro toque e ligo para Dahlia.

Ela atende no quinto toque.

Respiro fundo e faço o que sei fazer melhor: minto.

— A verdade é que vocês me magoaram. Duvido que um dia eu consiga perdoar você ou Eric pelo que fizeram.

— Sarai... Meu Deus, me desculpe, estou me sentindo muito mal. A gente não queria que isso chegasse a esse ponto. Juro para você. Não sei o que aconteceu...

— Escute, Dahlia, por favor, só me escute.

Ela fica quieta.

Começo a choradeira. Nunca imaginei que eu seria capaz de chorar sob demanda e de forma tão falsa.

— Eu quero acreditar em você. Quero conseguir confiar em você de novo, mas você era minha melhor amiga e me traiu. Preciso de um tempo sozinha e quero que você e Eric voltem para o Arizona. Hoje. Acho que não vou aguentar ver vocês de novo... Espere, onde você está, agora?

Acabo de me dar conta de que, se ela e Eric estiverem no hotel, a essa altura ela já sabe que dois homens foram mortos a tiros no andar do quarto deles.

— A gente está em uma festa em um terraço — conta ela. — T-tudo bem por você? Achei que não tinha nada a ver a gente sair, mas o Eric falou que você insistiu...

— Não, tudo bem — digo, cortando-a. — Insisti mesmo. Onde ele está, agora?

— Deixei Eric lá no terraço para a gente poder conversar. Está muito barulhento lá em cima. Que número é esse de onde você está ligando?

— É o celular de um amigo. Perdi o meu. O Eric por acaso avisou que se alguém procurar por mim...

— Avisou, sim — interrompe Dahlia. — Que confusão é essa, afinal? Meu Deus, Sarai, esquece por um momento esse lance com Eric e me conta o que está acontecendo, por favor. O sangue. As roupas esquisitas que você estava usando e aquele troço na sua cabeça. Era uma touca de peruca? Você está metida em alguma encrenca, eu sei. Sei que você me odeia, e tem todo o direito de odiar, mas, por favor, conte o que aconteceu.

— Não posso contar, porra! — grito, deixando o choro distorcer minha voz. — Caramba, Dahlia, faça o que eu pedi. Pelo menos isso! Você deu para o meu namorado! Por favor, voltem para o Arizona, me deixem esfriar a cabeça e depois eu volto para casa. Talvez aí a gente possa conversar. Mas agora façam o que eu estou pedindo. Tudo bem?

Ela não responde por um momento, e um longo silêncio se forma entre nós.

— Tudo bem — concorda ela. — Vou dizer ao Eric que a gente precisa ir embora.

— Obrigada.

Estou apenas um pouco aliviada. Não vou me sentir bem com isso até saber que eles chegaram em casa sãos e salvos.

Desligo sem dizer mais uma palavra.

— Bom, isso foi bastante convincente — observa Victor, levemente impressionado.

— Acho que foi.

— Eu sei que a sua amiga acreditou — acrescenta ele. — Mas eu não acreditei em uma só palavra.

Eu me viro para ele. Victor me conhece tão bem quanto eu o conheço, parece.

— É porque nem uma palavra era verdade.

Ele deixa por isso mesmo e nós saímos de baixo do viaduto.

Chegamos a uma casa perdida no final de uma estrada isolada nos arredores da cidade, empoleirada no alto de uma colina com uma vista quase perfeita para a cidade lá embaixo. Uma piscina de formato irregular começa no lado esquerdo da casa e serpenteia por trás, a água azul-clara iluminada por lâmpadas submersas parece luminescente. O lugar está silencioso. Só ouço o vento passando pela mata cerrada que contorna o lado direito e os fundos da casa, impedindo uma visão em 360 graus da paisagem iluminada de Los Angeles. Quando nos aproximamos da porta, uma mulher robusta usando uniforme azul de empregada nos recebe. Ela tem cabelo preto encaracolado e pele morena. Suas bochechas são volumosas, envolvendo seus olhos castanho-escuros pequenos e brilhantes, que fitam atentamente Victor e a mim.

— Por favor, entrem — diz ela, com um sotaque hispânico familiar.

A mulher fecha a porta. A casa cheira a limpa-vidro e a uma mistura pouco natural de cheiros adocicados que só pode vir de algum tipo de aromatizador de ambientes artificial. Parece que todas as janelas foram abertas, permitindo que a brisa noturna de verão se espalhasse pela casa. Não se parece em nada com as mansões ricas onde já estive, mas é impecável e aconchegante, e penso que eu deveria pelo menos ter tomado um banho antes de vir. Minha pele e minhas roupas ainda estão manchadas de sangue...

Victor está usando uma calça preta e uma camisa apertada de mangas compridas que adere a cada músculo de seus braços e seu peito, com os punhos desabotoados e arregaçados até os cotovelos. A camisa está por fora da calça e os dois botões de cima estão abertos. Sapatos pretos chiques e informais calçam seus pés. Um relógio brilhante de prata adorna seu pulso direito, e não consigo deixar de notar a solitária veia grossa que percorre as costas de sua mão até o osso de seu pulso. Quando ele segue a empregada pela grande entrada e se vira momentaneamente de costas para mim, vejo o cabo da arma saindo da cintura de sua calça, com a barra da camisa branca enfiada atrás.

Ele me olha, para e estende o braço, em um gesto para que eu ande à sua frente. Tremo de leve quando sua mão toca minhas costas perto da cintura.

Antes que eu tenha tempo de me sentir deslocada ao lado dele, Fredrik, o amigo e cúmplice sueco de Victor que conheci no restaurante de Hamburg há tanto tempo, entra na sala pelas grandes portas de vidro que dão para o quintal dos fundos.


CAPÍTULO SETE

Sarai

— Você chegou cedo — comenta Fredrik com um sorriso mortal, porém inimaginavelmente sexy.

As roupas dele são bem parecidas com as de Victor, mas, em vez de camisa de botão, Fredrik está vestindo uma camiseta branca apertada que adere à sua forma esbelta e máscula. Ele está descalço.

A primeira vez que vi Fredrik, pensei que era impossível haver alguém mais bonito. Com cabelo macio, quase preto, e olhos escuros e misteriosos, suas feições parecem ter sido esculpidas por algum artista famoso. Mas sempre achei que havia algo de sombrio e assustador naquele homem. Um lado dele que eu, particularmente, não faço questão de conhecer. Para mim, basta o jeito como ele era quando nos encontramos: cordial, encantador e misterioso, uma linda máscara que ele usa para esconder a fera que há por trás.

Victor olha para seu relógio caro.

— Só dez minutos mais cedo — comenta ele.

Fredrik sorri ao se aproximar, os dentes brancos reluzindo contra a pele bronzeada.

— Sim, mas você sabe como eu sou.

Victor assente, mas não alonga o assunto. A mim, só resta imaginar o que aquilo significa.

— É bom ver você — diz Fredrik, observando-me do topo de sua altura considerável e presença avassaladora. Ele se inclina, pega minha mão e a beija, logo acima dos nós dos dedos. — Ouvi dizer que você matou um homem hoje.

Ele apruma as costas e solta minha mão. Um sorriso perturbador e orgulhoso surge em seu rosto, os cantos dos olhos se aquecendo com alguma lembrança ou... prazer, como se a ideia de matar alguém o deliciasse de alguma forma.

Olho para Victor à minha direita. Ele assente, respondendo à pergunta estampada no meu rosto. O guarda-costas que apunhalei no pescoço morreu?

Olho para Fredrik e respondo sem rodeios.

— Acho que matei.

Um leve sorriso se abre nos cantos dos lábios de Fredrik, e ele olha de relance para Victor, sem mover a cabeça.

— E você se sente bem com isso? — pergunta Fredrik.

— Para dizer a verdade, sim — respondo sem demora. — O desgraçado mereceu.

Fredrik e Victor parecem envolvidos em algum tipo de conversa secreta. Odeio isso.

Enfim, Fredrik diz para Victor em voz alta:

— Você arrumou sarna para se coçar, Faust.

Ele então se vira de costas para nós e anda na direção das portas de vidro. Nós o seguimos para o lado de fora, passando pela parte coberta do quintal e descendo uma escada de pedra que leva a um enorme pátio, também de pedra, que se abre em todas as direções. O pátio é decorado com mesas e cadeiras de ferro batido e uma cama com dossel ao ar livre.

Eu me sento ao lado de Victor em um sofá.

— Como é que você sabe? — pergunto a Fredrik, mas então me viro para Victor e digo: — E você ainda não me contou como sabia que eu estava aqui.

Na verdade, isso não importa muito, só quero encará-lo nos olhos de novo. Quero ficar sozinha com Victor, mas por enquanto vou precisar me contentar com os 7 centímetros entre nossos corpos, sentados lado a lado.

— Melinda Rochester me contou — explica Fredrik com um sorriso conivente. Começo a perguntar “E quem é Melinda Rochester”, mas ele diz: — Bem, ela contou para todo mundo, na verdade. Noticiário do Canal 7. Um homem morto a punhaladas atrás de um restaurante de Los Angeles.

Começo a me retorcer por dentro. Espero que as câmeras não tenham me mostrado com nitidez.

Eu me viro para Victor, com a preocupação transparecendo no rosto.

— Eu estava de peruca loura — digo, tentando encontrar alguma coisa, qualquer coisa que eu tenha feito certo. — Fiquei com a cabeça baixa... a maior parte do tempo.

Desisto. Sei que o que fiz vai continuar me perseguindo. Suspiro e olho para as mãos ensanguentadas no meu colo.

— E encontrar você foi fácil — continua Victor. — A sra. Gregory me ligou depois que você saiu do Arizona. Ela estava preocupada com a sua vinda para Los Angeles e achou que eu precisava saber.

Viro a cabeça para encará-lo.

— O quê? Dina sabia onde você estava? — Sinto a pele ao redor das sobrancelhas se enrijecendo.

— Não — responde ele, com delicadeza. — Ela não sabia onde eu estava, mas sabia como entrar em contato comigo.

Essas palavras me magoam. Engulo em seco a sensação de ser traída por eles.

— Falei para ela entrar em contato comigo só em caso de emergência — acrescenta Victor. — Caso algo acontecesse com você.

— Você deixou para Dina uma forma de entrar em contato — digo, ríspida —, mas para mim, nada. Não acredito que você fez isso.

— Eu queria que você tocasse a sua vida. Mas, caso os irmãos de Javier descobrissem onde você estava, ou você decidisse fazer uma proeza como a de hoje, eu queria ficar sabendo.

Não consigo olhar para Victor. Tento chegar mais alguns centímetros para o lado a fim de aumentar a distância entre nós. Ainda assim, mesmo que esteja magoada e enfurecida com ele, sinto vontade de me aproximar de novo. Mas me mantenho firme e me recuso a deixá-lo perceber que o poder que ele exerce sobre mim faz a raiva que sinto parecer um chilique.

— Não acredito que Dina escondeu isso de mim — digo em voz alta, ainda que esteja falando mais comigo mesma.

— Ela escondeu de você porque eu disse a ela quanto isso era importante.

— Bom, de qualquer maneira — interrompe Fredrik, sentando-se na poltrona ao lado do sofá —, parece que você se meteu em uma situação da qual não vai conseguir sair tão facilmente, se é que vai conseguir.

— Por que a gente está aqui? — pergunto, aborrecida.

Fredrik ri baixinho.

— Aonde mais você iria?

— Eu precisava tirar você do hotel — explica Victor.

— Espere um pouco. Eu não matei aquele homem atrás do restaurante. Tudo aconteceu na sala particular de Hamburg, no andar de cima.

Recordo o homem que vi do lado de fora, atrás do restaurante, aquele que me deixou fugir, e meu coração afunda.

— Hamburg não deixaria que a polícia acreditasse que o assassinato aconteceu lá dentro, porque eles confiscariam a memória da câmera de vigilância e veriam o que realmente aconteceu.

Não estou entendendo nada. Nadinha.

— Eles não iam querer que a polícia soubesse o que realmente aconteceu?

Fredrik se reclina na poltrona e ergue um pé descalço, apoiando o tornozelo sobre o outro joelho, e estende os braços sobre os da poltrona.

Victor balança a cabeça.

— Preciso mesmo explicar isso para você, Sarai?

Sua vaga irritação me pega de surpresa. Olho para ele e levo alguns segundos para entender tudo sem que ele precise explicar.

— Ah, entendi — digo, olhando um de cada vez. — Hamburg não quer que a polícia se envolva porque corre o risco de se expor. O que ele fez, então? Só levou o corpo para fora? Preparou a situação para parecer um assalto comum? Não muito diferente do que ele fez naquela noite em que a gente estava na mansão dele, imagino.

Paro por aí porque Fredrik está presente. Não sei qual o grau de intimidade entre ele e Victor, nem mesmo se Fredrik sabe o que aconteceu na noite em que Victor matou a esposa de Hamburg.

Os olhos de Victor sorriem de leve para mim: sua maneira de me mostrar quanto lhe agrada eu ter entendido tudo. Ainda fingindo estar aborrecida, não retribuo o olhar da forma que ele deve esperar.

A empregada aparece com um balde chique de gelo, de madeira, com três garrafas de cerveja dentro. Fredrik pega uma, então ela nos oferece. Victor pega uma garrafa, mas recuso, mal conseguindo olhar a mulher nos olhos. Estou absorta demais nos acontecimentos da noite, que não me saem da cabeça.

A empregada vai embora logo depois, sem dizer uma palavra.

— O que você quis dizer com os irmãos de Javier?

Victor abre sua garrafa e a põe na mesa.

— Dois deles, Luis e Diego, assumiram os negócios de Javier dias depois que você o matou.

Por um instante, o rosto de Javier surge em minha mente: sua expressão chocada e ainda orgulhosa, os olhos arregalados, o corpo caindo no chão segundos depois de eu meter uma bala em seu peito.

Afasto a imagem.

Eu me lembro de Luis e Diego. Diego é aquele que tentou me estuprar quando eu estava na fortaleza no México, aquele que Javier castrou como punição.

— Eles estão me procurando?

Victor toma um gole de cerveja e devolve a garrafa à mesa com calma.

— Que eu saiba, não. Estou monitorando a fortaleza há meses. Os irmãos de Javier são amadores. Não têm ideia do que fazer com tanto poder. Duvido até que vejam você como ameaça.

Fredrik toma um gole de cerveja e prende a garrafa entre as pernas.

— Não fique tão aliviada assim — diz ele. — É melhor ser perseguida por amadores do que por Hamburg e aquele braço direito dele.

Um nó nervoso se forma no fundo do meu estômago. Olho de relance para Victor, buscando respostas.

— Willem Stephens — esclarece Victor — faz todo o serviço sujo de Hamburg. Hamburg em si é covarde, tão perigoso quanto o pedófilo gente boa da vizinhança. Mal consegue atirar em um alvo imóvel, e trairia alguém em dois minutos para se salvar. — Ele arqueia uma sobrancelha. — Stephens, por outro lado, tem uma extensa formação militar, é ex-mercenário e trabalhou para uma Ordem do mercado negro em 1986.

— Uma o quê?

— Uma Ordem como a nossa — explica Victor —, mas que aceita contratos particulares. Eles fazem coisas que outros agentes se recusam a fazer, vendem seus serviços basicamente para qualquer um.

— Ah... Então, resumindo, ele mata gente inocente por dinheiro.

Lembro o que Victor me contou, meses atrás, sobre a natureza dos contratos particulares, como pessoas eram assassinadas por motivos fúteis como traição conjugal ou vingança. A Ordem de Victor só trabalha com crime, ameaças sérias a um grande número de pessoas ou ideias que poderiam ter um impacto negativo na sociedade ou na vida como um todo.

Engulo em seco.

— Bom, ele me viu, com certeza. — Levanto as mãos e tiro o cabelo do rosto, passando as mãos no alto da cabeça. — Foi ele quem me levou para o segundo andar, para a sala de Hamburg. — Olho para Victor. — Desculpa, Victor. Eu... eu não sabia de nada disso.

Fredrik ri baixinho e diz:

— Algo me diz que, mesmo se você soubesse, teria ido lá de qualquer maneira.

Desvio o olhar de Victor e olho para baixo de novo, nervosa, esfregando os dedos ensanguentados uns nos outros. Fredrik tem razão. Odeio admitir, mas ele tem razão. Eu teria ido para o restaurante mesmo assim. Teria tentado matar Hamburg mesmo assim. Mas, se eu soubesse de tudo isso, acho que teria pensado em um plano melhor.

De repente, sinto que alguma coisa toma meu corpo e me tira o fôlego.

— Victor... Meu celular... — Eu me levanto do sofá, com o cabelo castanho-avermelhado caindo pelos ombros, batendo em meus braços nas partes em que o sangue secou e formou uma crosta áspera. — O número de Dina está no meu celular. Merda. Merda! Victor, Stephens vai atrás dela! Preciso voltar para o Arizona!

Começo a seguir para a porta dos fundos, mas Victor me alcança antes que eu atravesse o caminho decorado com pedras lisas.

— Espere aí.

Olho para baixo e vejo os dedos dele em volta do meu pulso. Seus hipnóticos olhos verde-azulados me fitam com desejo e devoção. Devoção. Algo que nunca vi no olhar de Victor antes.

Fredrik fala atrás de nós, me tirando do transe em que Victor me colocou.

— Eu vou cuidar disso — diz ele.

Desvio o olhar de Victor para Fredrik, que então ganha importância, considerando que a vida de Dina está em jogo.

— Como? — pergunto.

Victor me leva de volta para o sofá.

Fredrik pega o celular da mesa à frente, procura um número e toca na tela para ligar. Então encosta o celular no ouvido.

Victor me faz sentar perto dele de novo. Estou concentrada demais em Fredrik no momento para notar que Victor fez questão de se sentar tão perto que sua coxa está encostada na minha. Quero aproveitar o momento de proximidade, mas não posso. Estou preocupada com Dina.

Fredrik se reclina na poltrona de novo, balançando o pé descalço apoiado no joelho. Seu rosto fica alerta quando alguém atende à ligação.

— Em quanto tempo você consegue chegar a Lake Havasu City? — pergunta Fredrik ao telefone. Ele ouve por um segundo e assente. — Mando o endereço por mensagem de texto assim que eu desligar. Vá para lá o mais rápido que puder. Uma mulher mora lá. Dina Gregory. — Ele me olha de relance, para se certificar de que disse o nome certo. Como não o corrijo, volta a falar ao telefone. — Tire-a da casa e a leve para Amelia, em Phoenix. Sim. Sim. Não, não pergunte nada a ela. Só tome cuidado para ninguém machucar Dina. Sim. Me ligue neste número assim que estiver com ela.

Fredrik assente mais algumas vezes. Meu coração está batendo tão forte que parece pronto para pular do peito. Espero que a pessoa com quem ele está falando consiga encontrar Dina a tempo.

Fredrik desliga e parece abrir uma tela de texto no celular. Ele olha para mim, mas é Victor quem dá o endereço da sra. Gregory. Fredrik o digita e deixa o celular na mesa.

— Meu contato está a apenas trinta minutos de lá — explica Fredrik, olhando primeiro para mim. Então se vira para Victor. — O que você quer que eu faça?

Ele levanta as costas da poltrona e apoia os cotovelos nos joelhos, deixando as mãos entre eles. Mesmo em uma posição relaxada, ele consegue parecer elegante, importante e perigoso.

— Ainda preciso que você verifique o que discutimos ontem — diz Victor, e fica ainda mais claro, para mim, que Fredrik recebe ordens dele, embora não pareça ser do tipo que recebe ordens de ninguém. Mas está claro que os dois têm uma relação forte. — E, se você não se importa, preciso da sua casa emprestada por esta noite.

Os olhos escuros de Fredrik me encaram, e o traço de um sorriso aparece em seu rosto. Ele se levanta e pega o celular da mesa, escondendo-o na mão.

— Não precisa dizer mais nada. Vou sair daqui em vinte minutos. Eu ia mesmo me encontrar com alguém hoje, então está combinado.

A atitude de Victor muda um pouco, o que percebo no mesmo instante. Ele está encarando Fredrik, do outro lado da mesa do pátio, com um olhar cansado e cauteloso.

— Você não vai fazer o que estou pensando...

Ouço com atenção sem nem ao menos tentar disfarçar. Eu quero que eles saibam que estou bisbilhotando, porque é frustrante nenhum dos dois me oferecer qualquer explicação sobre esses comentários internos.

Fredrik ergue um lado da boca em um meio sorriso. Ele balança a cabeça de leve.

— Não, esta noite, não, infelizmente. Mas já faz algum tempo. Vou precisar que você me ajude com isso em breve.

Os olhos dele passam por mim e sinto um calafrio percorrer minhas costas. Não consigo decidir se é um arrepio bom ou assustador.

— Você terá sua oportunidade logo, logo — assegura Victor.

Fredrik dá a volta na mesa.

— Lamento por ter que encurtar nossa reunião.

— Tudo bem — digo. — Obrigada por ajudar com Dina. Você avisa quando receber aquela ligação?

Fredrik assente.

— Com certeza. Farei isso.

— Obrigada.

Victor acompanha Fredrik até a porta de vidro e os dois a atravessam. Fico sentada, observando-os do outro lado do pátio de pedra e tentando ouvir o máximo que posso, mas eles fazem questão de falar em voz baixa. Isso também me deixa frustrada. E pretendo informar Victor disso.


CAPÍTULO OITO

Victor

Fredrik fecha a porta de correr feita de vidro.

— Ela não sabe nada sobre Niklas? — pergunta ele, como eu já previa.

— Não, mas vou ter que contar. Ela vai precisar ficar atenta o tempo todo. Agora mais do que nunca.

— Ela não pode ficar aqui por muito tempo — aconselha Fredrik, olhando, através do vidro, Sarai sentada no sofá lá fora e nos observando. — Você também não.

— Eu sei. Quando Niklas descobrir que ela participou do assassinato no restaurante de Hamburg, vai saber na mesma hora que também estou envolvido nisso. Ele não é bobo. Se Sarai está viva, Niklas vai saber que estou tentando ajudá-la.

— E como ele desconfia de que agora trabalho com você — acrescenta Fredrik —, ela corre tanto perigo perto de mim quanto de você.

— É verdade.

Fredrik balança a cabeça para mim, com um sorriso escondido no fundo dos olhos.

— Não entendo esse envolvimento. Respeito você como sempre, respeitei, Victor, mas nunca vou entender a necessidade de um homem amar uma mulher.

— Eu não estou apaixonado por ela. Ela só é importante para mim.

— Talvez não — retruca ele, indo para a cozinha. — Mas parece que o amor e o envolvimento trazem as mesmas consequências, meu amigo. — Sigo Fredrik até a cozinha iluminada e ele abre um armário. — Mas estou do seu lado. O que você precisar que eu faça para ajudar, é só pedir. — Ele aponta para mim perto do armário, agora com um pão na mão.

A empregada de Fredrik entra na cozinha, roliça e mais velha do que nós dois juntos, exatamente o tipo de mulher que jamais o atrairia, e foi por isso que ele a contratou. Ela lhe pergunta em espanhol se pode voltar para casa e ver a família mais cedo hoje. Fredrik responde em espanhol, concordando. Ela assente respeitosamente e passa por mim na sala. De soslaio, eu a observo pegar uma bolsa volumosa de couro marrom do chão, perto da espreguiçadeira, e colocá-la no ombro. Depois ela vai até a porta, fechando-a devagar ao sair.

Sarai está de pé nas sombras da sala quando desvio o olhar da porta. Nem ouvi a porta de vidro correr quando ela entrou, e pelo jeito Fredrik também não.

Ela vai para a cozinha iluminada, de braços cruzados, os dedos delicados segurando seus bíceps femininos, mas bem-definidos. Ela é linda demais, mesmo quando está desgrenhada assim.

— Quanto tempo vocês planejavam me deixar lá fora? — pergunta ela, com um traço de irritação na voz.

— Ninguém disse que você precisava ficar lá, gata — responde Fredrik.

Ele gosta dela, isso é óbvio para mim, e ele deve saber. Mas também sabe que vou matá-lo. Ainda assim, minha confiança em Fredrik é maior do que minha preocupação de que ele volte para o lado sombrio e a machuque. Fredrik Gustavsson é uma fera do tipo mais carnal, que adora mulheres e sangue, mas tem limites e critérios, além de levar a lealdade, o respeito e a amizade muito a sério. Sua lealdade a mim é, afinal, o motivo para ele trair a Ordem todos os dias me ajudando.

Sarai se aproxima de mim e me olha nos olhos, inclinando um pouco a cabeça para o lado. O cheiro de sua pele e o calor tênue que emana dela quase me fazem perder o controle. Tenho conseguido me conter bastante desde que a beijei no elevador. Pretendo continuar assim.

Ela não diz nada, mas continua me encarando como se esperasse alguma coisa. Fico confuso. Ela inclina a cabeça para o outro lado e seu olhar se suaviza, embora eu não saiba ao certo por quê. Parece maliciosa e cheia de expectativa.

Ouço Fredrik rir baixinho e a porta da geladeira se fechar, mas não tiro os olhos de Sarai.

— As coisas são tão mais fáceis do meu jeito. — Ouço-o dizer, com um sorriso na voz.

— Entre em contato comigo assim que tiver a informação sobre Niklas — peço, ainda olhando nos olhos de Sarai e ignorando o comentário dele. — E quando souber pelo seu contato se Dina Gregory está a salvo em Phoenix.

— Pode deixar — diz Fredrik, e então vai para a porta do corredor que leva ao seu quarto. Mas ele para e olha para nós. — Se você não se importa...

Enfim desvio o olhar de Sarai e dou atenção total a Fredrik.

— Não se preocupe — interrompo —, eu sei onde fica o quarto de hóspedes.

Ele enfia na boca um sanduíche que mal notei que ele preparava e morde, rasgando um pedaço de pão. Eu o vejo piscando para Sarai antes de desaparecer da sala. Foi algo inofensivo, uma menção ao que ele acha que pode acontecer entre nós quando sair, e não uma tentativa de flerte.

— Que informação sobre Niklas? — pergunta Sarai, seus traços suaves agora encobertos pela preocupação.

Estendo a mão e passo os dedos por algumas mechas do cabelo dela.

— Preciso contar muita coisa para você — anuncio, tirando a mão antes de perder o controle e acabar tocando nela mais do que pretendo. — Sei que você deve estar exausta. Por que não toma um banho e fica à vontade primeiro? Depois conversamos.

Um sorrisinho suave emerge em seus lábios, mas logo desaparece em seu rosto enrubescido.

— Você quer dizer que eu estou nojenta? — pergunta ela, tímida. — Esse é o seu jeito de me dizer que preciso lavar meu corpo nojento?

— Na verdade, sim — admito.

Por um momento ela faz uma careta e parece ofendida, mas então só balança a cabeça e dá risada. Admiro isso em Sarai. Admiro muita coisa nela.

— Tudo bem. — Sua expressão brincalhona fica séria de novo. — Mas você precisa me contar tudo, Victor. E eu sei que você deve ter muito para contar, mas saiba que também preciso dizer muita coisa para você.

Eu já esperava isso. E, antes que ela fique na ponta dos pés, incline o corpo na minha direção e me beije, já sei que, quando ela sair do banho, vou precisar decidir o que vamos fazer. Vou precisar tomar algumas decisões importantes, que nos afetarão.

Porque de uma coisa eu tenho certeza: Sarai não pode voltar para casa.


Sarai

Quando volto, Victor está na sala, acomodado na beira do sofá, curvado sobre a mesinha de centro feita de vidro que está cheia de pedaços de papel e fotografias. Entro, mas ele continua remexendo neles sem erguer a cabeça para me olhar. Só que ele não me engana, sei que sente a minha presença tanto quanto quero que ele sinta.

Vasculhei o guarda-roupa de Fredrik procurando uma camiseta branca, que vesti sobre meus seios nus. Infelizmente, tive que usar a mesma calcinha de antes, mas as cuecas boxer de Fredrik não são exatamente o tipo de lingerie que eu gostaria de usar para seduzir Victor. Só uma camiseta e uma calcinha. Claro que fiz questão de vestir o mínimo possível, porque desejo Victor e não tenho nenhuma vergonha de deixar isso claro. Mas ainda custo a acreditar que estou no mesmo cômodo que ele, depois de meses achando que ele havia ido embora para sempre.

Acho que o beijo no elevador é onde minha mente ficou suspensa, como se o tempo tivesse parado naquele momento e cada parte de mim ainda deseje que aquele instante continue. Contudo, o resto do mundo continua passando ao meu redor.

Eu me sento ao lado de Victor, recolhendo um pé descalço para o sofá e enfiando-o sob a minha coxa.

— O que é isso tudo? — Olho para os papéis e fotografias na mesa.

Ele mexe em alguns pedaços de papel, empilhando-os.

— É um serviço — explica ele, colocando a foto de um homem de camiseta regata na pequena pilha. — Agora eu trabalho por conta própria.

Isso me surpreende.

— Como assim? — Acho que sei o que ele quer dizer, mas custo a acreditar.

Ele pega a pilha de papéis e bate as laterais na mesa para ajeitar todas as folhas. Então enfia o maço em um envelope de papel pardo.

— Eu saí da Ordem, Sarai. — Ele olha para mim.

Victor aperta as pontas do fecho prateado para fechar o envelope.

Meus pensamentos se embaralham, minhas palavras ficam confusas na ponta da língua. Luto, desesperada, para acreditar no que ele acaba de me contar.

— Victor... mas... não...

— Sim — confirma ele, virando-se para mim e me olhando bem nos olhos. — É verdade. Eu me rebelei contra a Ordem, contra Vonnegut, e agora eles estão atrás de mim. — Ele volta a mexer nos outros papéis na mesa. — Mas ainda preciso trabalhar, por isso agora trabalho sozinho.

Balanço a cabeça sem parar, sem querer engolir a verdade. A ideia de Victor sendo caçado por aqueles que o fizeram ser como ele é, por qualquer um, faz um pânico febril correr pelas minhas veias.

Solto um longo suspiro.

— Mas... mas e Fredrik? E Niklas? Victor, eu... O que está acontecendo?

Ele respira fundo e deixa a folha de papel cair suavemente na mesa, então reclina as costas no sofá.

— Fredrik ainda trabalha para a Ordem. Está lá dentro. Ele vigia Niklas e... — seus olhos cruzam com os meus por um instante —... tem me ajudado a manter você a salvo.

Antes que eu consiga fazer mais perguntas presas na garganta, Victor se levanta e continua a falar, enquanto fico sentada e o observo com a boca semiaberta e as pernas dobradas sobre a almofada.

— Como você sabe, quando alguém está sob suspeita de trair a Ordem, é imediatamente eliminado. Mas acredito que Niklas deixou Fredrik vivo e não transmitiu suas preocupações a Vonnegut pelo simples fato de que Niklas está usando Fredrik para me encontrar. Assim como deixou você viva todo este tempo, esperando que um dia você o levasse a mim.

O que mais me choca não é o que Victor diz, mas o que ele deixa de fora. Tiro as duas pernas de cima do sofá e pressiono os pés no chão de madeira, apoiando as mãos nas almofadas.

— Victor, o que você está me dizendo? Quer dizer que... Niklas continua com Vonnegut?

Espero que não seja isso que ele esteja tentando me dizer. Espero de todo o coração que minha decisão de deixar Niklas vivo aquele dia no hotel, quando ele atirou em mim, não tenha sido o maior erro da minha vida.

Os olhos de Victor vagam para a porta de vidro, e sinto que uma espécie de sofrimento infinito o consome, mas ele não deixa transparecer.

— Você estava lá. Eu disse para o meu irmão que, se ele decidisse continuar na Ordem caso eu resolvesse sair, eu não ficaria bravo com ele. Dei a ele a minha palavra, Sarai. — Victor vai até a porta de vidro, cruza os braços e olha para a piscina azul iluminada que reluz sob o céu cinzento. — Agora é hora de Niklas brilhar, e não vou tirar isso dele.

— Que absurdo! — Salto do sofá com os punhos fechados. — Ele está atrás de você, não é? — Cerro os dentes e contorno a mesinha de centro. — Caralho, é isso, Victor? Para provar seu valor para Vonnegut, ele foi encarregado de matar você. Aquele merda do seu irmão traiu você. Ele acha que vai pegar o seu lugar na Ordem. Puta que pariu, não acredito...

— É o que é, Sarai — interrompe Victor, virando-se para me encarar. — Mas, neste momento, Niklas é a menor das minhas preocupações.

Cruzando os braços, começo a andar de um lado para outro, olhando os veios claros e escuros da madeira sob meus pés descalços. Minhas unhas ainda têm o esmalte vermelho-sangue de duas semanas atrás.

— Por que saiu da Ordem?

— Eu tive que sair. Não tinha escolha.

— Não acredito.

Victor suspira.

— Vonnegut descobriu sobre a gente — conta ele, ganhando minha atenção total. — Foi Samantha... na noite em que ela morreu. Antes que eu saísse da Ordem, encontrei Vonnegut em Berlim, o primeiro encontro frente a frente que tive com ele em meses. Foi em uma sala de interrogatório. Quatro paredes. Uma porta. Uma mesa. Duas cadeiras. Somente eu e Vonnegut sentados frente a frente, com uma luz brilhando no teto acima de nós. — Victor olha para trás pela porta de vidro e depois continua: — No início, eu estava certo de que ele tinha me levado para lá com a intenção de me matar. Eu estava preparado...

— Para morrer? — Se Victor responder que sim, vou dar um tapa na cara dele.

— Não — responde ele, e consigo respirar um pouco melhor. — Eu fui para lá preparado. Raptei a mulher de Vonnegut antes de ir encontrá-lo. Fredrik a manteve em uma sala, pronto para fazer... as coisas dele, caso fosse necessário.

No mesmo instante, quero perguntar o que são as “coisas” de Fredrik, mas deixo a pergunta de lado por enquanto e digo:

— Se Vonnegut quisesse matar você, a esposa dele seria a sua moeda de troca.

De costas para mim, ele assente.

— Samantha estava sendo vigiada pela Ordem. Provavelmente há muito tempo.

— Eles desconfiavam da traição dela? Por que não a mataram, então, como fizeram com a mãe de Niklas, ou como queriam fazer com Niklas?

Victor se vira para me encarar de novo.

— Eles não desconfiavam dela, Sarai, ela era... — Victor respira fundo e aperta os lábios.

— Ela era o quê? — Chego mais perto dele. Não gosto do rumo que a conversa está tomando.

— Ela era mais leal à Ordem do que eu jamais poderia ter imaginado — conta ele, e isso fere meu coração. — Sentado naquela sala com Vonnegut, quanto mais ele falava, mais eu começava a entender que Samantha me traiu da mesma forma que Niklas. Vonnegut me contou coisas que ele não tinha como saber. Ele sabia que eu ajudei você. Em algum momento antes de morrer, naquela noite, Samantha conseguiu passar informações a Vonnegut sobre nossa estadia por lá.

— Não acredito nisso. — Golpeio o ar com a mão diante de mim. — Samantha morreu tentando me proteger. Já falamos sobre isso. Não acredito em você, Victor. Ela era uma boa pessoa.

— Ela era boa manipuladora, Sarai, nada mais do que isso.

Balanço a cabeça, ainda sem acreditar.

— Foi Niklas quem contou a Vonnegut que você me ajudou. Só pode ter sido. Niklas sabia até que você tinha me levado para a casa de Samantha.

— Sim, mas Niklas não sabia que eu fiz Samantha provar nossa comida antes de a gente comer, naquela noite. Assim que Vonnegut mencionou quanto eu ainda desconfiava dela depois de tantos anos, eu soube que ela havia me traído.

— Mas isso não faz nenhum sentido. — Começo a andar pela sala de novo, de braços cruzados e com uma das mãos apoiada no rosto. — Por que ela me protegeria de Javier?

— Porque ela não era leal a Javier.

Jogo as mãos para o ar, atônita com aquela revelação.

— Não dá para confiar em ninguém — digo, me jogando no sofá e olhando para o nada.

— Não, não dá — concorda Victor, e eu olho para cima, detectando um significado oculto por trás de suas palavras. — Agora talvez você entenda por que eu não me envolvo com ninguém. Não é só o trabalho, Sarai. As pessoas em geral não são confiáveis, especialmente na minha profissão, na qual a confiança é tão rara que não vale a pena perder tempo e esforço procurando por ela.

— Mas você parece confiar em Fredrik — observo, olhando para Victor do sofá. — Por que me trouxe logo aqui? Não aprendeu a lição com Samantha?

Sua expressão fica um pouco mais sombria, ressentida pela minha acusação.

— Eu nunca disse que confiava em Fredrik. Mas no momento ele é meu único contato dentro da Ordem e, nos últimos sete meses, não fez nada que não o tornasse digno de confiança. Ao contrário, fez tudo para provar sua lealdade a mim.

— Mas isso não significa que seja verdade.

— Não, você tem razão, mas logo vou saber com cem por cento de certeza se Fredrik é confiável ou não.

— Como?

— Você vai descobrir comigo.

— Por que se dar a esse trabalho? Você disse que a confiança é tão rara que não vale o esforço.

— Você faz muitas perguntas.

— Pois é, acho que faço. E você não responde o suficiente.

— Não, acho que não. — Victor abre um sorrisinho, e meu coração se derrete instantaneamente em uma poça de mingau.

Desvio os olhos dos dele e disfarço meus sentimentos.

— Não estou segura aqui — digo, encarando-o novamente.

— Você não está segura em lugar nenhum — corrige Victor. — Mas, enquanto estiver comigo, nada vai acontecer com você.

— Quem está falando merda agora?

Ele levanta uma sobrancelha.

— Você não é meu herói, lembra? — digo para refrescar a memória de Victor. — Não é minha alma gêmea que jamais deixará que nada de ruim aconteça comigo. Devo confiar nos meus instintos primeiro e em você, se eu decidir confiar, por último. Você me disse isso certa vez.

— E continua sendo verdade.

— Então como pode dizer que nada vai me acontecer se eu estiver com você?

A expressão de Victor fica vazia, como se pela primeira vez na vida alguém o tivesse deixado sem palavras. Olho para seu rosto silencioso e sem emoção, e apenas seus olhos revelam um traço de torpor. Tenho a sensação de que ele falou sem pensar, que manifestou algo que sente de verdade, mas que jamais quis que eu soubesse: Victor quer ser meu herói, vai fazer qualquer coisa, tudo o que puder para me manter a salvo. Quer que eu confie totalmente nele.

E confio.

Ele volta para perto de mim e se senta ao meu lado. O cheiro de seu perfume é fraco, como se ele fizesse questão de usar o mínimo possível. Estou tonta de desejo. Ansiosa para sentir novamente seu toque, saborear seus lábios quentes, deixar que ele me tome como fez algumas noites antes que nos víssemos pela última vez. Não tenho pensado em nada além de Victor nos últimos oito meses da minha vida. Enquanto durmo. Como. Vejo TV. Transo. Me masturbo. Tomo banho. Cada coisa que fiz desde que ele me deixou naquele hospital com Dina fiz pensando nele.

— Você acha que Fredrik vai contar a Niklas onde a gente está? — Mudo de assunto por medo de deixar transparecer muita coisa cedo demais.

— Acho que se ele fosse fazer isso teria contado a Niklas o pouco que sabia sobre o seu paradeiro há muito tempo, e Niklas já teria tentado matar você — responde Victor.

— Tem alguma coisa... estranha em Fredrik. Você não sente?

Victor passa a mão pelo meu cabelo úmido. O gesto faz meu coração disparar.

— Você tem grande sensibilidade para as pessoas, Sarai — comenta ele, levando a mão ao meu queixo. — Tem razão sobre Fredrik. — Ele passa o polegar pelo meu lábio inferior. Um calafrio percorre o meio das minhas pernas. — Ele é... como dizer?... desequilibrado, de certa forma.

Minha respiração acelera, e sinto meus cílios tocando meu rosto quando os lábios de Victor cobrem os meus.

— Desequilibrado de que forma? — pergunto, ofegante, quando ele se afasta.

De olhos fechados, percebo que ele está observando a curva do meu rosto e meus lábios e sinto a respiração que sai suavemente de suas narinas.

Cada pelinho minúsculo se eriça quando a outra mão de Victor sobe e encontra minha cintura nua por baixo da camiseta. Seus dedos longos dançam sobre a pele do meu quadril e param por ali.

Abro os olhos e vejo os dele me encarando.

— Algum problema? — pergunta ele, e sua boca roça a minha de novo.

— Não, eu... eu só não esperava isso.

— Esperava o quê?

Sinto seus dedos levantando o elástico da minha calcinha. Minha cabeça está girando, sinto meu estômago se transformar em um emaranhado de músculos, trêmulo e nervoso.

— Isso — respondo, piscando. — Você está diferente — acrescento, baixinho.

— Culpa sua — diz Victor, e então seus lábios devoram os meus.

Ele me deita no sofá e se encaixa entre as minhas pernas.

Seu celular vibra na mesinha de centro, e percebo quanto sou humana quando xingo Fredrik por estragar aquele momento, mesmo que seja para me avisar de que Dina está a salvo.


CONTINUA

CAPÍTULO UM

Sarai

Já faz oito meses que fugi da fortaleza no México onde fui mantida contra minha vontade por nove anos. Estou livre. Levo uma vida “normal”, fazendo coisas normais com gente normal. Não fui mais atacada, ameaçada nem seguida por ninguém que ainda queira me matar. Tenho uma “melhor amiga”, Dahlia. Tenho a coisa mais parecida com uma mãe que já conheci, Dina Gregory. O que mais eu poderia querer? Parece egoísmo desejar qualquer outra coisa. Mas, apesar de tudo o que tenho, algo não mudou: continuo vivendo uma mentira.

Deixei amigos na Califórnia: Charlie, Lea, Alex e... Bri... Não, espera, quero dizer Brandi. Meu ex-namorado, Matt, era abusivo, por isso voltei para o Arizona. Ele me perseguiu por muito tempo depois que terminamos. Consegui uma ordem judicial para mantê-lo afastado, mas não funcionou. Ele atirou em mim há oito meses, mas não posso provar porque não cheguei a vê-lo. E tenho muito medo de denunciá-lo à polícia.

Claro que tudo isso é mentira.

São os pedaços da minha vida que acobertam o que realmente aconteceu comigo. Os pretextos para eu ter desaparecido aos 14 anos e ter ido parar em um hospital da Califórnia com um ferimento a bala. Jamais vou poder contar a Dina, Dahlia ou ao meu namorado, Eric, o que aconteceu de verdade: que fui levada para o México pela péssima versão de mãe que eu tinha, para morar com um chefão do tráfico. Jamais vou poder contar que fugi daquele lugar depois de nove anos e matei o homem que me manteve prisioneira por toda a minha adolescência. Quer dizer, claro que eu poderia contar a alguém, mas, se fizesse isso, só estaria pondo Victor em perigo.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/2_O_RETORNO_DE_IZABEL.jpg

 

Victor.

Não, nunca vou poder contar que um assassino me ajudou a fugir, ou que testemunhei Victor matando várias pessoas, inclusive a esposa de um empresário famoso e importante de Los Angeles. Nunca vou poder contar que, depois de tudo pelo que passei, depois de tudo o que vi, o que mais quero é fazer as malas e voltar para aquela vida perigosa. A vida com Victor.

Até hoje, falar o nome dele me acalma. Às vezes, quando estou acordada na cama à noite, murmuro seu nome só para ouvi-lo, porque preciso. Preciso dele. Não consigo tirá-lo da cabeça. Já tentei. Porra, e como tentei. Mas, não importa o que eu faça, continuo vivendo cada dia da minha vida pensando nele. Se está me vigiando. Se pensa em mim tanto quanto penso nele. Se ainda está vivo.

Pressiono o travesseiro contra a cabeça e fecho os olhos, imaginando Victor. Às vezes, é só assim que consigo gozar.

Eric aperta minhas coxas com as mãos e me imobiliza na cama, com o rosto enfiado no meio das minhas pernas.

Arqueio o quadril contra ele, roçando de leve contra sua língua frenética, até que ele faça meu corpo todo enrijecer e minhas coxas tremerem ao redor da sua cabeça.

— Meu Deus... — Estremeço enquanto gozo, então deixo os braços caírem entre as pernas, afundando os dedos no cabelo preto de Eric. — Caramba...

Sinto os lábios de Eric tocando minha barriga um pouco acima da pélvis.

Olho para o teto como sempre faço depois de um orgasmo, pois a culpa que sinto me deixa com vergonha de olhar para Eric. Ele é um cara superlegal. Meu namorado sexy de 27 anos, cabelo preto e olhos azuis, gentil, encantador, engraçado e perfeito. Perfeito para mim se eu nunca tivesse conhecido Victor Faust.

Estou arruinada pelo resto da vida.

Enxugo as gotas de suor da testa e Eric sobe pela cama, deitando-se ao meu lado.

— Você sempre faz isso — diz ele, brincando, enquanto cutuca minhas costelas com os nós dos dedos.

Como sinto muitas cócegas, eu me encolho e me viro para encará-lo. Sorrio com ternura e passo um dedo por seu cabelo.

— O que eu sempre faço?

— Esse negócio de ficar em silêncio. — Eric segura meu queixo entre o polegar e o indicador. — Eu faço você gozar e você fica bem quieta durante um tempão.

Eu sei e sinto muito, mas preciso apagar o rosto de Victor da minha cabeça antes de conseguir olhar você nos olhos. Sou uma pessoa horrível.

Eric me dá um beijo na testa.

— Isso se chama recuperação — brinco, beijando os dedos dele. — É totalmente inofensivo. Mas você deveria interpretar como um bom sinal. Você sabe o que está fazendo — digo, retribuindo o cutucão nas costelas.

E ele sabe mesmo o que está fazendo. Eric é ótimo na cama. Mas ainda sou emocionalmente muito ligada... viciada... em Victor, e tenho a sensação de que sempre serei.

Só consegui seguir a vida e me abrir a outros relacionamentos cinco meses depois que Victor foi embora. Conheci Eric no trabalho, na loja de conveniência. Ele comprou um saco de biscoitos e um energético. Depois disso, ele aparecia na loja duas, às vezes três vezes por semana. Eu não queria nada com ele. Queria Victor. Mas comecei a perder a esperança de que Victor um dia fosse voltar para mim.

Eric tenta passar um braço ao redor do meu corpo, mas me levanto casualmente e visto a calcinha. Ele não desconfia de nada, o que é bom. Não sinto vontade de ficar abraçadinha, mas a última coisa que quero é magoá-lo. Ele ergue os braços e entrelaça os dedos atrás da cabeça. Olha para mim, do outro lado do quarto, com um sorriso sedutor. Sempre faz isso quando não estou completamente vestida.

— Sarai.

— Oi. — Visto a camiseta e ajeito o rabo de cavalo.

— Eu sei que está em cima da hora — diz Eric —, mas queria ir com você e Dahlia para a Califórnia amanhã.

Merda.

— Mas você não disse que não ia conseguir folga no trabalho? — pergunto, vestindo o short e calçando os chinelos.

— Quando você perguntou se eu queria ir, não ia dar mesmo. Mas contrataram um funcionário novo, e meu chefe decidiu me dar folga.

Isso é uma péssima notícia. Não porque eu não o queira por perto — gosto de Eric, apesar da minha incapacidade de esquecer Victor Faust —, mas minha viagem de “férias” à Califórnia amanhã não é para fazer turismo, curtir a noite nem fazer compras na Rodeo Drive.

Estou indo até lá para matar um homem. Ou melhor, tentar matar um homem.

Já é ruim que Dahlia vá também, e já vai ser difícil guardar segredo de uma pessoa. Imagine duas.

— Você... não parece animada — comenta Eric, seu sorriso morrendo aos poucos.

Abro um sorriso largo e balanço a cabeça, voltando para perto dele e me sentando na beira da cama.

— Não, não, eu estou animada. É que você me pegou de surpresa. A gente vai sair às seis da manhã. É daqui a menos de oito horas. Você já fez as malas?

Eric dá uma risada e se estica na minha cama, me puxando para si. Eu me sento perto de sua cintura, apoiando um braço no colchão do outro lado dele, com os pés para fora da cama.

— Bom, eu só fiquei sabendo hoje à tarde, antes de sair do trabalho — explica ele. — Eu sei, está em cima da hora, mas só preciso enfiar umas coisas na mala e estou pronto.

Ele estende a mão e afasta do meu rosto os fios de cabelo que escaparam do rabo de cavalo.

— Ótimo! — minto, com um sorriso igualmente falso. — Então acho que está combinado.

Dina acorda antes de mim, às quatro da manhã. O cheiro de bacon é o que me desperta. Levanto da cama e entro debaixo do chuveiro antes de me sentar à mesa da cozinha. Um prato vazio já está à minha espera.

— Gostaria que você tivesse escolhido algum outro lugar para passar sua folga, Sarai — afirma Dina.

Ela se senta do outro lado da mesa e começa a encher seu prato. Pego alguns pedaços de bacon do monte e ponho no meu.

— Eu sei — digo —, mas, como falei para você, não vou deixar que meu ex me impeça de ver meus amigos.

Ela balança a cabeça cada vez mais grisalha e suspira.

Passei do limite em algum momento com meu amontoado de mentiras. Quando Victor levou Dina para o hospital em Los Angeles, depois que o irmão dele, Niklas, atirou em mim, ela não fazia ideia do que tinha acontecido. Só sabia que eu tinha levado um tiro. Demorei alguns meses até me sentir segura o suficiente para falar com ela sobre isso. Quer dizer, depois de bolar a história que eu ia contar. Foi aí que inventei o lance do ex-namorado violento. Eu deveria ter dito que fui assaltada. Por um desconhecido. A mentira seria muito mais fácil de manter. Agora que ela sabe que vou voltar para Los Angeles, está morrendo de preocupação, e já faz uns dois meses. Eu nem deveria ter contado que ia voltar lá.

Termino de comer o bacon e um pouco de ovos mexidos, junto com um copo de leite.

Dahlia e Eric chegam juntos assim que termino de escovar os dentes.

— Vamos logo, a gente precisa pegar a estrada — chama Dahlia, me apressando da porta. Seu cabelo castanho-claro está preso no alto da cabeça em um coque desalinhado de quem acabou de acordar.

Eu me despeço de Dina com um abraço.

— Eu vou ficar bem — digo a ela. — Prometo. Não vou nem chegar perto de onde ele mora.

Desta vez, chego até a imaginar um rosto masculino ao falar de alguém que não existe. Acho que já interpreto esse papel há tanto tempo que “Matt” e todos esses meus “amigos” de Los Angeles, de quem falo para todo mundo como se fossem reais, se tornaram reais no meu subconsciente.

Dina força um sorriso em seu rosto preocupado, e suas mãos soltam meus cotovelos.

— Você liga assim que chegar?

— Assim que eu entrar no quarto do hotel, ligo — respondo, assentindo.

Ela sorri e eu a abraço mais uma vez, antes de segui-los até o carro de Dahlia, que está esperando. Eric guarda minha mala no bagageiro, junto com as deles, e se senta no banco de trás.

— Hollywood, aí vamos nós! — exclama Dahlia.

Finjo metade da empolgação dela. Ainda bem que está muito cedo, senão Dahlia poderia intuir o verdadeiro motivo da minha falta de entusiasmo. Estico os braços para trás e bocejo, apoiando a cabeça no banco do carro. Sinto a mão de Eric no meu pescoço quando ele começa a massagear meus músculos.

— Não sei por que você quer ir a Los Angeles de carro — diz Dahlia. — Se a gente fosse de avião, não ia precisar acordar tão cedo. E você não estaria tão cansada e rabugenta.

Minha cabeça cai para a esquerda.

— Não estou rabugenta. Ainda mal falei com você.

Ela dá um sorrisinho.

— Exatamente. Sarai sem falar significa Sarai rabugenta.

— E se recuperando — acrescenta Eric.

Meu rosto fica vermelho e eu estico a mão atrás da cabeça, dando um tapinha de brincadeira na dele, que está fazendo maravilhas no meu pescoço. Fecho os olhos e vejo Victor.

Não de propósito.

Chegamos a Los Angeles depois de quatro horas na estrada. Eu não podia ir de avião porque não conseguiria levar minhas armas. É claro que Dahlia não pode saber disso. Ela acha apenas que quero apreciar a paisagem.

Tenho sete dias para fazer o que vim fazer. Isto é, se eu conseguir. Pensei no meu plano durante meses, em como vou fazer isso. Sei que é impossível entrar na mansão Hamburg. Para isso, eu precisaria ter um convite e socializar em público com o próprio Arthur Hamburg e seus convidados. Ele viu meu rosto. Bem, tecnicamente, viu mais do que meu rosto. Mas sinto que os acontecimentos daquela noite, quando Victor e eu enganamos Hamburg para que ele nos convidasse para ir ao seu quarto e conseguíssemos matar sua esposa, são algo que ele jamais vai esquecer, nem os mínimos detalhes.

Se tudo der certo, uma peruca loura platinada de cabelo curto e maquiagem escura e pesada vão esconder aquela identidade de cabelo longo e castanho que Hamburg reconheceria assim que eu aparecesse.


CAPÍTULO DOIS

Sarai

Passo o dia todo com Eric e Dahlia, fingindo me divertir para passar o tempo. Saímos para almoçar e para fazer um tour por Hollywood com um guia e visitar um museu antes de voltarmos para o hotel, exaustos. Quer dizer, finjo estar exausta o suficiente para querer dar o dia por encerrado. Na verdade, o que preciso é me preparar para ir ao restaurante de Hamburg ainda hoje.

Dahlia já acha que tem algo errado comigo.

— Você está ficando doente? — pergunta ela, estendendo a mão entre nossas espreguiçadeiras à beira da piscina e sentindo a temperatura da minha testa.

— Estou ótima — respondo. — Só cansada porque levantei muito cedo. E quando foi a última vez que andei tanto assim em um dia só?

Dahlia volta a se recostar em sua espreguiçadeira e ajeita os óculos de sol grandes e redondos no rosto.

— Bom, espero que não esteja cansada amanhã — diz Eric, do outro lado. — Tem tantas coisas que eu quero fazer. Não venho para Los Angeles desde que meus pais se divorciaram.

— Pois é. É a minha primeira vez aqui em dois anos — afirma Dahlia.

Um adolescente pula na piscina e a água respinga em nós. Ergo as costas da espreguiçadeira e agito a revista que estava lendo para tirar as gotas. Ponho os óculos escuros no alto da cabeça. Jogo as pernas para o lado e fico de pé.

— Acho que vou voltar para o quarto e tirar uma soneca — anuncio, pegando minha bolsa do chão.

Eric se ergue também e tira os óculos escuros.

— Se quiser, vou com você — oferece ele.

Agito a mão para ele, pedindo que não se levante.

— Não, fica aí e faz companhia para a Dahlia — sugiro, ajeitando a bolsa no ombro. Abaixo os óculos escuros de novo para que ele não perceba minha mentira.

— Tem certeza de que você está bem? — pergunta Dahlia. — Sarai, você está de férias, lembra? Veio para cá se divertir, não para cochilar.

— Acho que vou estar cem por cento amanhã. Só preciso de um banho quente e demorado e de uma boa noite de sono.

— Ok, vou acreditar — diz Dahlia. — Mas nem vem com doença para o meu lado. — Ela aponta o dedo para mim, com ar severo.

Eric fecha os dedos em torno do meu pulso e me puxa para perto.

— Tem certeza de que não quer que eu vá? — Ele me beija e eu correspondo antes de me levantar de vez.

— Tenho — respondo, baixinho, e saio na direção do elevador.

Assim que entro no quarto, tranco a porta com a corrente para que Eric e Dahlia não entrem de surpresa, jogo a bolsa no chão e abro meu laptop, digitando a senha. Enquanto o laptop inicia, olho pela janela e vejo meus amigos, figuras pequenas daquela distância, ainda à beira da piscina. Eu me sento diante da tela e, provavelmente pela centésima vez, olho cada página do site do restaurante de Hamburg, verificando de novo o horário de funcionamento e passando os olhos pelas fotos profissionais do lugar, dentro e fora. Na verdade, nada disso me ajuda muito com o que pretendo fazer, mas olho tudo de novo todo dia, de qualquer maneira.

Derrotada, bato a palma da mão com força no tampo da mesa.

— Droga! — exclamo, desabando na poltrona enquanto passo as mãos pelo cabelo.

Ainda não sei como vou conseguir ficar a sós com Hamburg sem ser vista. Sei que estou dando um passo maior do que a perna. Sei disso desde que tive essa ideia maluca, mas também sei que, se ficar apenas pensando a respeito, nunca vou passar dessa fase.

Vim para cá com um plano: entrar disfarçada no restaurante e agir como qualquer outro cliente. Sondar o lugar por uma noite. Saber onde ficam as saídas. As entradas para outras partes do prédio. Os banheiros. Minha prioridade número um, contudo, é encontrar a sala de onde Hamburg observa do alto seus clientes e ouve a conversa deles pelo minúsculo microfone escondido no arranjo de cada mesa. Então pretendo me enfiar na sala e cortar a garganta daquele porco.

Contudo, agora que estou aqui, a menos de seis quadras do restaurante, e agora que o tempo está passando tão depressa, estou menos confiante. Isso não é um filme. Sou uma idiota por achar que posso adentrar um lugar desses sem ser vista, tirar a vida de um homem sem chamar atenção e fugir sem ser capturada.

Apenas Victor conseguiria fazer algo assim.

Bato no tampo da mesa de novo, mais de leve desta vez, fecho o laptop e me levanto. Ando de um lado para outro no carpete vermelho e verde. E bem quando resolvo seguir pelo corredor para o quarto separado que reservei sem Dahlia e Eric saberem, a porta se abre um pouco, mas é travada pela corrente.

— Sarai? — chama Dahlia do outro lado. — Vai deixar a gente entrar?

Suspiro fundo e destranco a porta.

— Por que a corrente? — pergunta Eric, entrando atrás de Dahlia.

— Força do hábito.

Eu me jogo na ponta da cama king-size.

Os dois deixam suas coisas no chão. Dahlia se senta à mesa, ao lado da janela, e Eric se deita atravessado na cama ao meu lado, cruzando as pernas na altura dos calcanhares.

— Pensei que você ia tirar uma soneca — diz Dahlia.

Ela passa os dedos com cuidado pelo cabelo úmido, fazendo caretas quando se depara com alguma mecha mais embaraçada.

— Dahlia — digo, olhando para os dois. — Eu subi agora há pouco. Pensei que vocês iam ficar na piscina mais um tempo.

Espero ter conseguido disfarçar o aborrecimento na minha voz por eles terem vindo me encontrar tão cedo. Não consigo evitar: estou estressada demais, além de preocupada com a simples presença dos dois aqui comigo. Não quero que eles se machuquem nem que se envolvam de forma alguma com meu motivo para estar aqui.

— A gente pode sair e deixar você sozinha, se quiser — sugere Eric, baixinho, atrás de mim.

Eu me arrependo na mesma hora do que disse, porque é óbvio que não disfarcei o aborrecimento tão bem quanto esperava.

Inclino a cabeça para trás e suspiro, esticando o braço para tocar o tornozelo dele.

— Desculpa — digo, sorrindo para Dahlia. — Sabe, eu... — Então, de repente, uma desculpa perfeitamente plausível para o modo como tenho agido surge na minha cabeça, e a torneira das mentiras se abre. — Eu só fico meio nervosa por estar de volta a Los Angeles.

Dahlia faz cara de “ah, entendi”, empurra os pés de Eric para o lado e se senta perto de mim. Ela passa o braço por cima dos meus ombros e segura meu antebraço.

— Imaginei que o problema fosse esse.

Percebo que ela olha de relance para Eric e tenho a impressão de que foi sobre isso que os dois falaram enquanto ficaram na piscina, depois que fui embora.

Aposto que também foi por isso que decidiram subir tão cedo para me ver.

— A gente queria ver como você estava — acrescenta Eric atrás de mim, confirmando minha suspeita.

Sinto a cama se mexer quando ele se senta.

Eu me levanto antes que ele consiga me abraçar. É nesse exato momento que me dou conta de como tenho feito isso com frequência no último mês. Não sei por quanto tempo mais vou conseguir enganá-lo. Sei que deveria simplesmente contar o que sinto, que não gosto tanto de Eric quanto ele gosta de mim. Mas não consigo dizer a verdade. Eu precisaria inventar mais uma mentira, e estou tão atolada em mentiras que me sinto afogada nelas.

Ao mesmo tempo, deixei nossa relação durar tanto porque eu queria de verdade sentir por ele algo tão profundo quanto o que ele parece sentir por mim. Queria seguir em frente, esquecer Victor e ser feliz com a vida que ele me deixou.

Mas não consigo. Não consigo mesmo...

— Ele nem vai saber que você está aqui — diz Eric sobre “Matt”. — Além disso, mesmo que ele descobrisse, eu ia encher o cara de porrada assim que o visse.

Esboço um sorriso para Eric.

— Eu sei que você faria isso — digo, mas me sinto ainda pior, porque os únicos dois amigos que tenho no mundo não fazem nem ideia de quem sou.

Cruzo os braços, vou até a janela e olho para fora.

— Sarai — chama Dahlia. — Não queria dizer isso, mas, se você está tão preocupada com a possibilidade de Matt descobrir que você está em Los Angeles, acho que não é boa ideia visitar seus amigos aqui.

— Eu sei, você tem razão. Sei que eles não contariam para Matt, mas acho que é melhor eu ficar só com vocês dois enquanto estivermos aqui.

Eu me viro para encará-los.

— É um bom plano — diz Eric, com um sorriso radiante.

É um bom plano, com certeza, porque agora não preciso mais inventar outra desculpa para não apresentar os dois aos meus amigos que não existem.

Dahlia se aproxima de mim.

— A gente devia ter ido para a Flórida ou algum lugar assim, hein?

Olho pela janela de novo.

— Não — respondo. — Adoro esta cidade. E sei que vocês queriam muito vir para cá. — Dou um sorriso rápido. — Sugiro que a gente curta ao máximo esta semana.

Ela me empurra com o ombro de brincadeira.

— Essa é a Sarai que eu conheço — diz Dahlia, sorrindo.

É, só que não sou essa pessoa...

Ela vai até Eric e o puxa pelo braço, levantando-o da cama.

— Vamos sair daqui e deixar a mocinha descansar.

Eric se levanta e se aproxima de mim. Então pega meus braços e me vira para encará-lo. Com aqueles olhos azul-bebê, ele faz a melhor expressão amuada que consegue.

— Se precisar de mim para qualquer coisa, pode me chamar que eu venho.

Concordo com a cabeça e lhe ofereço um sorriso sincero. Ele merece, por ser tão legal comigo.

— Pode deixar.

Então eu os empurro porta afora com as duas mãos.

— Eu diria para vocês não se divertirem muito sem mim, mas isso seria pedir demais.

Dahlia ri baixinho ao sair para o corredor.

— Não, não é pedir muito. — Ela levanta dois dedos. — Palavra de escoteiro.

— Acho que não é assim que se faz, Dahl — diz Eric.

Ela faz um gesto para dispensar as palavras dele.

— Trate de dormir — sugere Dahlia. — Porque amanhã você vai precisar estar novinha em folha.

— De acordo — digo, assentindo.

— Tchau, amor — diz Eric antes de eu fechar a porta.

Fico com as costas apoiadas na porta e solto um suspiro longo e profundo.

Fingir é difícil demais. Bem mais difícil do que simplesmente ser eu mesma, por mais anormal e imprudente que eu seja.

— Eu sei o que preciso fazer — digo em voz alta.

Falar sozinha é minha nova mania, porque me ajuda a visualizar e entender melhor as coisas.

Volto para a janela e olho a cidade de Los Angeles, com os braços cruzados.

— Preciso de um disfarce, mas não para me esconder de Hamburg. Só das câmeras e de qualquer outra pessoa. Eu quero que Hamburg me veja. Só assim vou conseguir entrar.


CAPÍTULO TRÊS

Sarai

Dahlia e Eric só voltam para o quarto algumas horas mais tarde, depois de escurecer. Eu já tinha tomado banho, vestido short e camiseta e deixado a luz apagada para parecer que estava dormindo. Assim que ouvi o cartão passando pela porta, pulei na cama e me espalhei pelo colchão, como sempre faço quando durmo de verdade. Eric entrou na ponta dos pés, tentando não “me acordar”, mas me virei, soltei um resmungo e abri os olhos para mostrar que acordei. Ele pediu desculpas e perguntou se eu queria ir com ele e Dahlia a uma boate ali perto, insistindo que, se eu não fosse, ele também não iria. Mas logo rejeitei essa ideia. Percebi que ele queria muito ir e não posso culpá-lo: se eu estivesse no lugar dele, não iria querer ficar em um quarto escuro de hotel às oito da noite de uma sexta-feira, em uma das cidades mais animadas dos Estados Unidos.

Eric e Dahlia saírem era exatamente do que eu precisava. Passei aquelas duas horas inteiras tentando inventar uma desculpa para explicar a eles por que eu ia sair, aonde iria e por que eles não poderiam ir junto.

Eles resolveram isso para mim.

Minutos após Eric sair do quarto, espero Dahlia — em seu próprio quarto, ao lado do nosso — tirar o biquíni e se vestir. Pelo olho mágico da minha porta, eu os vejo indo embora pelo corredor. Conto até cem enquanto ando de um lado para outro sem parar. Então pego minha bolsa e vou até a porta. Ando depressa pelo corredor na direção oposta e chego ao quarto secreto, do outro lado do prédio.

Com certa paranoia de ser flagrada, vasculho minha bolsa e encontro tudo, menos a chave do quarto. Enfim consigo senti-la entre os dedos e me apresso para entrar, travando a porta com a corrente. Abro a mala ao pé da cama e tiro minha peruca curta platinada, passando os dedos para ajeitar as mechas desalinhadas, e então a deixo sobre o abajur ao lado para que não perca a forma.

Visto um Dolce & Gabbana curtinho e me maquio com cores escuras e pesadas, o que, depois de passar um tempão praticando em casa, faço bem. Então calço as sandálias de salto alto. Andar de salto é outra coisa que passei muito tempo tentando aprender. Meu alter ego, Izabel Seyfried, saberia andar de salto e o faria bem. Por isso, eu precisava acompanhar.

Em seguida, molho o cabelo e o divido em duas partes atrás. Enrolo cada metade e cruzo uma sobre a outra na nuca. Vários grampos depois, meu longo cabelo castanho está bem preso no couro cabeludo. Visto a touca da peruca e depois a própria peruca, ajustando-a por muito tempo até deixar tudo perfeito.

Por fim, prendo uma bainha de punhal em torno da coxa e a cubro com o tecido do vestido.

Fico de pé diante do espelho de corpo inteiro e me avalio de todos os ângulos possíveis. Estar loura é estranho. Satisfeita, pego a bolsinha preta e a enfio debaixo do braço, com a pequena pistola formando certo volume nela. Estico o braço para girar a maçaneta, mas deixo minha mão cair junto ao corpo.

“Que droga eu estou fazendo?”

O que precisa ser feito.

“E por que eu estou fazendo isso?”

Porque preciso.

Não consigo tirar da cabeça as coisas que aquele homem confessou, as pessoas que matou por causa de um fetiche sexual doentio. Todas as noites desde que Victor me deixou, quando fecho os olhos, vejo o rosto de Hamburg e aquele sorriso de gelar o sangue que ele abriu quando me curvei sobre a mesa, exposta na frente dele. Vejo o rosto de sua esposa, esquelético e combalido, seus olhos fundos turvados pela resignação. Ainda sinto até o fedor da urina que secou em suas roupas e no catre infestado onde ela dormia, naquele quarto escondido.

Meu peito se enche de ar e eu o prendo por vários segundos, antes de soltar um longo suspiro.

Não posso esquecer. A necessidade de matá-lo é como uma coceira no meio das costas. Não posso alcançar naturalmente, mas vou me curvar e torcer os braços até doerem para coçar.

Não posso esquecer...

E talvez... só talvez também acabe chamando a atenção de um certo assassino que não consigo me obrigar a esquecer.

Assim que passo pela porta, deixo Sarai para trás e me torno Izabel por uma noite.

Por não ter pensado de antemão na importância de ao menos alugar um carro chique, salto do táxi a duas quadras do restaurante e ando o resto do caminho. Izabel jamais seria vista andando de táxi.

— Mesa para um? — pergunta o recepcionista assim que entro no restaurante.

Inclino a cabeça e olho para ele com um ar irritado.

— Algum problema? Não posso fazer uma refeição sozinha? Ou você está dando em cima de mim? — Abro um sorrisinho e inclino a cabeça para o outro lado. Ele está ficando nervoso. — Você gostaria de jantar comigo... — olho para o nome bordado no paletó — ... Jeffrey? — Chego mais perto. Ele dá um passo constrangido para trás.

— Hã... — Ele hesita. — Peço desculpas, senhora...

Recuo, trincando os dentes.

— Nunca me chame de senhora — digo com rispidez. — Me leve até uma mesa. Para um.

Ele assente e pede que eu o siga. Quando chego à minha mesinha redonda com duas cadeiras, no meio do restaurante, me sento e deixo a bolsa ao lado. Um garçom se aproxima quando o recepcionista se afasta e me apresenta a carta de vinhos. Eu a rejeito com um movimento dos dedos.

— Quero apenas água com uma rodela de limão.

— Pois não, senhora — diz ele, mas deixo passar.

Enquanto o garçom se afasta, começo a examinar o lugar. Há uma placa indicando a saída à minha esquerda, bem longe, perto do corredor. Há outra à minha direita, próxima à escada que leva para o segundo piso. O restaurante está praticamente igual à primeira vez que vim: escuro, não muito cheio e bastante silencioso, embora desta vez eu ouça jazz baixinho vindo de algum lugar. Ao observar o recinto, paro de repente ao ver a mesa à qual me sentei com Victor quando vim com ele, meses atrás.

Eu me perco na memória, vendo tudo exatamente como aconteceu. Quando olho para as duas pessoas sentadas no outro lado do salão, só consigo me ver com Victor:

— Venha cá — diz ele, em um tom de voz mais delicado.

Deslizo os poucos centímetros que nos separam e me sento encostada a ele.

Seus dedos dançam pela minha nuca quando ele puxa minha cabeça para perto de si. Meu coração bate descompassado quando ele roça os lábios na lateral do meu rosto. De repente, sinto sua outra mão entrando pelo meio das minhas coxas e subindo por baixo do vestido. Minha respiração para. Devo abrir as pernas? Devo ficar imóvel e travá-las? Sei o que quero fazer, mas não sei o que devo fazer, e minha mente está a ponto de desistir.

— Tenho uma surpresa para você esta noite — murmura ele no meu ouvido.

Sua mão se aproxima mais do calor no meio das minhas pernas.

Gemo baixinho, tentando não deixar que ele perceba, embora tenha certeza absoluta de que percebeu.

— Que tipo de surpresa? — pergunto, com a cabeça inclinada para trás, apoiada em sua mão.

— Vai querer algo mais? — Ouço uma voz, e sou arrancada do meu devaneio.

O garçom está segurando o cardápio. Minha água com uma rodela de limão na borda do copo já está diante de mim.

Um pouco confusa de início, apenas assinto, mas faço que não em seguida.

— Ainda não sei — respondo, enfim. — Deixe o cardápio. Talvez eu peça mais tarde.

— Pois não — diz o garçom.

Ele deixa o cardápio na mesa e vai embora.

Olho para a varanda e para as mesas encostadas no balaústre requintado. Onde Hamburg pode estar? Sei que ele está no andar de cima porque Victor disse que ele ficava por lá. Mas onde? Eu me pergunto se ele já me viu, e no mesmo instante meu estômago se embrulha de nervoso.

Não, não posso parecer nervosa.

Endireito as costas na cadeira e tomo um gole da água. Deixo o dedo mindinho levantado, o que me faz parecer muito mais rica, ou apenas mais esnobe. Fico observando os clientes indo e vindo, escuto sua conversa supérflua e me pego imaginando qual dos casais que estão ali poderia acabar na mansão de Hamburg no fim de semana, ganhando muito dinheiro para deixar que ele os veja foder.

Então olho para o arranjo de flores vermelhas em um pequeno vaso de vidro no centro da minha mesa. Pego o celular na bolsa, finjo digitar um número e o coloco perto do ouvido, para que ninguém ache que estou falando sozinha.

— Este recado é para Arthur Hamburg — digo em voz baixa, inclinando-me um pouco para a frente a fim de que o microfone escondido no vaso de flores capte minha voz. — Com certeza você se lembra de mim, não é? Izabel Seyfried. Há quanto tempo, não?

Com cuidado, olho para os lados, esperando ver um ou dois homens parrudos de terno se aproximando de mim com armas em punho.

— Não estou sozinha — continuo —, por isso nem pense em fazer alguma idiotice. A gente precisa conversar.

Olhando para a varanda acima de mim, tento descobrir onde ele pode estar, torcendo para que esteja ali. Alguns minutos tensos se passam, e, quando começo a pensar que a noite foi em vão e que eu estava mesmo falando sozinha, noto um movimento no piso superior, logo acima da saída à minha direita. Meu coração bate forte quando vejo a figura alta e escura sair das sombras e descer a escada.

Eu me lembro desse homem de ombros largos, cabelo grisalho e uma covinha no meio do queixo. É o gerente do restaurante, Willem Stephens, que já encontrei aqui uma vez.

Ele se aproxima da minha mesa sem expressar nenhuma emoção, com as mãos enormes cruzadas à frente, as costas retas, o queixo anguloso imóvel.

— Boa noite, srta. Seyfried. — A voz dele é profunda e sinistra. — Posso perguntar onde está seu dono?

Levanto os olhos para encará-lo, dou um sorrisinho, tomo um gole da minha água e devolvo o copo à mesa, sem pressa. Cada fibra do meu ser está gritando, dizendo como fui idiota em vir até aqui. Por mais que eu saiba que é verdade, não importa. Não é o medo que me faz tremer por dentro, é a adrenalina.

— Victor Faust não é meu dono — explico, com calma. — Mas ele está aqui. Em algum lugar. — Um sorriso tênue e dissimulado toca meus lábios.

Os olhos de Stephens percorrem o salão sutilmente e voltam a me encarar.

— Por que está aqui? — pergunta ele, perdendo um pouco o ar de gerente sofisticado.

— Tenho negócios a discutir com Arthur Hamburg — respondo, confiante. — É do maior interesse dele marcar um encontro privado comigo. Aqui. Hoje. De preferência agora.

Tomo outro gole.

Noto que o pomo de adão de Stephens se move quando ele engole em seco, bem como os contornos de seu queixo quando ele cerra os dentes. Ele olha para o lugar de onde veio, no andar de cima, e percebo um aparelhinho preto escondido em seu ouvido esquerdo. Parece que ele está ouvindo alguém falar. Eu chutaria que é Hamburg.

Ele me encara de novo, com os olhos escuros e cheios de ódio, mas mantém o semblante inexpressivo com a mesma perfeição de Victor.

Ele descruza os braços, estende a mão direita para mim e diz:

— Por aqui.

Ele só deixa os braços penderem, relaxados, quando me levanto. Sigo Stephens pelo restaurante e escada acima, para o piso da varanda.

Apenas duas coisas podem acontecer: ou esta será minha primeira noite como assassina ou a última da minha vida.


CAPÍTULO QUATRO

Sarai

— Se encostar em mim — digo para o guarda-costas de terno à porta da sala particular de Hamburg —, enfio suas bolas em um moedor de carne.

As narinas do segurança se dilatam e ele olha para Stephens.

— Você solicitou uma reunião com o sr. Hamburg — diz Stephens atrás de mim. — É claro que vamos revistá-la antes para verificar se está armada.

Droga!

Calma. Fique calma. Faça o que Izabel faria.

Respiro fundo, encarando-os com desprezo e um ar ameaçador. Então jogo minha bolsinha preta no segurança. Ele pega a bolsa quando ela bate em seu peito.

— Acho que está bem claro que eu não conseguiria esconder uma arma em um vestido como este, a menos que a enfiasse na boceta — digo, olhando para Stephens. — Minha arma está na bolsa. Mas nem pense em tocar...

— Deixem a moça entrar — ordena da porta uma voz familiar.

É Hamburg, ainda balofo e grotesco como antes, usando um terno imenso que parece em vias de estourar se ele respirar fundo demais.

Abro um leve sorriso para o segurança, que me encara com olhos assassinos. Conheço esse olhar, até demais. O homem tira a pistola e me devolve a bolsa.

— Sr. Hamburg — diz Stephens —, eu deveria ficar na sala com o senhor.

Hamburg balança a papada, rejeitando a sugestão.

— Não, vá cuidar do restaurante. Se essas pessoas tivessem vindo me matar, não seriam tão óbvias. Eu vou ficar bem.

— Pelo menos deixe Marion à porta — sugere Stephens, olhando para o guarda-costas.

— Sim — concorda Hamburg. — Você fica aqui. Não deixe ninguém interromper nossa... — diz ele, me olhando com frieza — reunião, a menos que eu peça. Se em algum momento você não ouvir minha voz por mais de um minuto, entre na sala. Como precaução, é claro.

Ele abre um sorrisinho para mim.

— É claro. — Imito Hamburg e sorrio também.

Ele dá um passo para o lado e me convida a entrar.

— Pensei que isso tivesse acabado, srta. Seyfried.

Hamburg fecha a porta.

— Sente-se — pede ele.

A sala é bem grande, com paredes lisas e arredondadas, sem cantos, de um lado a outro. Uma série de grandes quadros retratando o que parece ser cenas bíblicas rodeia uma grande lareira de pedra. Cada imagem é emoldurada em uma caixa de vidro, com luzes na parte de baixo. A sala é pouco iluminada, como o restaurante, e o cheiro é de incenso ou talvez de óleo aromático de almíscar e lavanda. Na parede à minha esquerda, há uma porta aberta que leva a outra sala, onde a luz cinza-azulada de várias telas de TV brilha nas paredes. Chego mais perto para me sentar na poltrona de couro com encosto alto diante da escrivaninha e espio dentro da saleta. É como eu imaginava. As telas mostram várias mesas do restaurante.

Hamburg fecha essa porta também.

— Não, está longe de acabar — respondo, enfim.

Cruzo as pernas e mantenho a postura ereta, o queixo levantado com ar confiante e os olhos em Hamburg, enquanto ele atravessa a sala na minha direção. Puxo a barra do vestido para cobrir completamente o punhal preso na coxa. Minha bolsa está no meu colo.

— Vocês já tiraram minha esposa de mim. — A indignação transparece na voz dele. — Não acham que foi o suficiente?

— Infelizmente, não. — Abro um sorriso malicioso. — Não foi o suficiente para você e sua esposa tirarem uma vida? Não, não foi — respondo por ele. — Vocês tiraram muitas vidas.

Hamburg morde o interior da bochecha e se senta atrás da escrivaninha, de frente para mim. Ele apoia as mãos gordas sobre o tampo de mogno. Percebo quanto ele quer me matar ali mesmo onde estou. Mas não fará isso porque acredita que não estou sozinha. Ninguém em sã consciência faria algo assim, vir até aqui sozinha, inexperiente e desprevenida.

Ninguém, a não ser eu.

Preciso garantir que ele continue acreditando que tenho cúmplices até descobrir como vou matá-lo e sair da sala sem ser pega. O pedido de Hamburg para que o guarda-costas entrasse na sala depois de um minuto sem ouvir sua voz pôs mais um obstáculo no plano que, na verdade, nunca tive de fato.

— Bem, devo dizer uma coisa — diz Hamburg, mudando de tom. — Você é deslumbrante com qualquer tipo de peruca. Mas admito que prefiro a morena.

Ele acha que meu cabelo castanho-avermelhado era uma peruca. Ótimo.

— Você é doente. Sabe disso, certo? — Tamborilo com as unhas no braço da poltrona.

Hamburg abre um sorriso medonho. Estremeço por dentro, mas mantenho a compostura.

— Eu não matei aquelas pessoas de propósito. Elas sabiam no que estavam se metendo. Sabiam que, no calor do momento, alguém poderia perder o controle.

— Quantas?

Hamburg estreita os olhos.

— O que importa isso, srta. Seyfried? Uma. Cinco. Oito. Por que não diz logo o motivo da sua visita? Dinheiro? Informação? A chantagem assume muitas formas, e não seria a primeira vez que enfrento uma. Sou um veterano.

— Fale sobre a sua esposa — peço, ganhando tempo e fingindo ainda ser quem dá as cartas. — Antes de “ir direto ao assunto”, quero entender sua relação com ela.

Uma parte de mim quer saber de verdade. E estou incrivelmente nervosa; sinto um enxame zumbindo no meu estômago. Talvez jogar conversa fora ajude a acalmar minha mente.

Hamburg inclina a cabeça para o lado.

— Por quê?

— Apenas responda à pergunta.

— Eu a amava muito — responde ele, relutante. — Ela era a minha vida.

— Aquilo é amor? — pergunto, incrédula. — Você manchou a memória dela ao dizer que ela era uma viciada em drogas que se suicidou, só para salvar a própria pele, e chama isso de amor?

Noto uma luz se movendo no chão, por baixo da porta da sala de vigilância. Não havia ninguém lá dentro antes, ao menos que eu tivesse visto.

— Como a chantagem, o amor assume muitas formas. — Hamburg apoia as costas na poltrona de couro, que range, cruzando os dedos roliços sobre a enorme barriga. — Mary e eu éramos inseparáveis. Não éramos como outras pessoas, outros casais, mas o fato de sermos tão diferentes não significava que nos amávamos menos do que os outros. — Os olhos dele cruzam os meus por um momento. — Tivemos sorte por encontrar um ao outro.

— Sorte? — pergunto, pasma com o comentário. — Foi sorte duas pessoas doentes se encontrarem e se unirem para fazer coisas doentias com os outros? Não entendo.

Hamburg balança a cabeça como se fosse um velho sábio e eu fosse jovem demais para entender.

— Pessoas diferentes como Mary e eu...

— Doentes e dementes — corrijo. — Não diferentes.

— Chame como quiser — diz ele, com ar de resignação. — Quando você é tão diferente assim da sociedade, do que é aceitável, encontrar alguém como você é algo muito raro.

Sem perceber, cerro os dentes. Não porque Hamburg esteja me irritando, mas porque nunca imaginei que esse homem nojento pudesse me dizer qualquer coisa que me fizesse pensar na minha situação com Victor, ou qualquer coisa que eu pudesse entender.

Afasto esse pensamento.

A luz fraca sob a porta da sala de vigilância se move de novo. Finjo não ter notado, sem querer dar a Hamburg qualquer motivo para achar que estou pensando em outra saída.

— Vim aqui saber nomes — digo de repente, sem ter pensado bem a respeito.

— Que nomes?

— Dos seus clientes.

Algo muda nos olhos de Hamburg, ele vai tomar o controle da situação.

— Você quer os nomes dos meus clientes? — pergunta ele, desconfiado.

Que merda...

— Pensei que você e Victor Faust já estivessem de posse da minha lista de clientes.

Continue séria. Não perca a compostura. Merda!

— Sim, estamos, mas me refiro àqueles que você não mantinha nos registros.

Acho que vou vomitar. Parece que minha cabeça está pegando fogo. Prendo a respiração, torcendo para ter me livrado dessa.

Hamburg me examina em silêncio, vasculhando meu rosto e minha postura em busca de qualquer sinal de autoconfiança abalada. Ele coça o queixo gordo e cheio de dobras.

— Por que você acha que existe uma lista fantasma?

Suspiro meio aliviada, mas ainda não estou fora de perigo.

— Sempre existe uma lista fantasma — afirmo, embora não faça nem ideia do que estou dizendo. — Quero pelo menos três nomes que não estejam no registro que nós temos.

Sorrio, sentindo que recuperei o controle da situação.

Até ele falar:

— Diga você três nomes da lista que já tem, e eu dou o que você quer.

É oficial: perdi o controle.

Engulo em seco e me controlo antes de parecer “pega no flagra”.

— Você acha que eu carrego a lista na bolsa? — pergunto com sarcasmo, tentando continuar no jogo. — Nada de negociações ou meios-termos, sr. Hamburg. O senhor não está em condições de fazer nenhuma barganha.

— É mesmo? — pergunta ele, sorrindo.

Ele suspeita de mim. Posso sentir. Mas vai garantir que está certo antes de dar o bote.

— Isso não está em discussão. — Eu me levanto da poltrona de couro, enfiando a bolsa debaixo do braço, mais frustrada do que antes por ter que entregar minha arma.

Pressiono os dedos na escrivaninha de mogno, apoiando meu peso neles ao me curvar um pouco na direção de Hamburg.

— Três nomes, ou saio daqui e Victor Faust entra para espalhar os seus miolos naquele belo quadro do menino Jesus atrás de você.

Hamburg ri.

— Esse não é o menino Jesus.

Ele se levanta junto comigo, alto, enorme e ameaçador.

Enquanto vasculho minha mente e tento entender como ele descobriu que sou uma farsante, Hamburg se adianta e anuncia seu raciocínio como um chute na minha boca.

— É engraçado, Izabel, você vir aqui pedir nomes que não aparecem em uma lista que você... — diz, apontando para a minha bolsa — ... nem carrega consigo, porque como você saberia que os nomes que eu daria não estão nela?

Estou muito ferrada.

— Vou dizer o que eu acho — continua ele. — Acho que você veio aqui sozinha por causa de alguma vingança contra mim. — Ele balança o indicador. — Porque eu me lembro de cada detalhe da porra daquela noite. Cada merda de detalhe. Especialmente a sua expressão quando percebeu que Victor Faust tinha vindo matar minha esposa em vez de mim. Era a expressão de alguém pega de surpresa, que não fazia ideia de por que estava ali. Era a expressão de alguém que não está familiarizada com o jogo.

Ele tenta sorrir com gentileza, como se quisesse demonstrar alguma espécie de empatia pela minha situação, mas o que leio em seu rosto é cinismo.

— Acho que, se houvesse mais alguém aqui com você, ele já teria aparecido para salvá-la, porque é óbvio que você está ferrada.

A porta do quarto principal se abre, o guarda-costas entra e a tranca. Por uma fração de segundo, tive a esperança de que fosse Victor vindo me salvar na hora certa. Mas foi só um desejo. O guarda-costas me olha com desprezo. Hamburg acena para ele, que começa a tirar o cinto.

Meu coração afunda até o estômago.

— Sabe — diz Hamburg, dando a volta na escrivaninha —, na primeira vez que a gente se viu, lembro que fiz um acordo com Victor Faust. — Ele aponta para mim. — Você se lembra disso, não?

Hamburg sorri e apoia a mão gorda nas costas da poltrona na qual eu estava sentada, virando-a para mim.

Todo o meu corpo está tremendo; parece que o sangue que passa pelas minhas mãos virou ácido. Ele corre pelo meu coração e pela minha cabeça tão rápido que quase desmaio. Começo a tentar alcançar meu punhal, mas eles estão perto demais, aproximando-se pelos dois lados. Não tenho como enfrentar os dois ao mesmo tempo.

— Como assim? — pergunto, tropeçando nas palavras, tentando ganhar um pouco de tempo.

Hamburg revira os olhos.

— Ora, por favor, Izabel. — Ele gira um dedo no ar. — Apesar do que aconteceu naquela noite, fiquei decepcionado de verdade por vocês dois irem embora antes de cumprir o acordo.

— Eu diria que, em vista do que aconteceu, o acordo não vale mais nada.

Ele sorri para mim e se senta na poltrona de couro. Percebo Hamburg espiar de relance o guarda-costas, dando uma ordem só com o olhar.

Antes que eu consiga me virar, o segurança prende minhas duas mãos nas minhas costas.

— Você vai cometer um erro do caralho se fizer isso! — grito, tentando me livrar das garras do segurança.

Ele me leva à força até uma mesa quadrada e me joga sobre ela. Meus reflexos não são rápidos o suficiente e meu queixo bate no mármore duro. O gosto metálico do sangue enche minha boca.

— Me solte! — Tento chutá-lo. — Me solte agora!

Hamburg ri de novo.

— Vire a cabeça dela para esse lado — ordena ele.

Dois segundos depois, meu pescoço é torcido para o outro lado e mantido ali, minha bochecha esquerda pressionada contra o mármore frio.

— Quero ver a cara dela enquanto você a fode. — Hamburg me olha de novo. — Então vamos continuar do ponto onde paramos naquela noite, tudo bem? Você concorda, Izabel?

— Vai se foder!

— Ah, não, não — diz ele, ainda com o riso na voz. — Não sou eu quem vai foder você. Você não faz o meu tipo. — Seus olhos famintos percorrem o corpo do segurança que está me pressionando por trás.

— Eu vou matar você — digo, cuspindo por entre os dentes. A mão do segurança sobre a minha cabeça impede que eu a mexa. — Vou matar vocês dois! Me estupre! Vamos lá! Mas os dois vão estar mortos antes que eu saia daqui!

— Quem disse que você vai sair daqui? — provoca Hamburg.

O zíper da calça dele está aberto; sua mão direita está parada ao lado da braguilha, como se ele estivesse tentando manter algum autocontrole e não se masturbar ainda.

Então Hamburg acena com dois dedos para o guarda-costas, que me mantém imóvel segurando meus cabelos da nuca.

— Lembre-se disso — diz ele ao segurança. — Ela não vai sair daqui.

Sinto a mão direita do guarda-costas soltar meu cabelo e se mover entre as minhas pernas. Enquanto ele ergue meu vestido, aproveito para alcançar o punhal na minha coxa e tirá-lo da bainha, golpeando atrás em um ângulo desajeitado. O segurança grita de dor e me solta. Puxo o punhal ainda firme na mão, que está coberta de sangue. Ele cambaleia para trás, com a mão na base do pescoço, o sangue jorrando entre seus dedos.

— Sua puta do caralho! — ruge Hamburg, saltando da poltrona e vindo atrás de mim como um elefante descontrolado, a calça caindo de sua cintura flácida.

Corro na direção dele com o punhal levantado e colidimos no meio da sala. Seu peso me joga de bunda no chão e o punhal cai da minha mão, deslizando pelo piso ensanguentado. De pé, Hamburg se abaixa para me segurar, mas me reclino no chão e levanto o pé com toda a força, enfiando o salto da minha sandália na lateral do seu rosto. Ele geme e cambaleia para trás, com a mão na bochecha.

— Eu vou acabar com você! Puta que pariu! — berra ele.

Engatinho na direção do punhal, vendo o segurança no chão, em meio a uma poça de sangue. Ele está engasgando com os próprios fluidos; tentando em vão encher os pulmões de ar.

Pego o punhal com firmeza e rolo no chão enquanto Hamburg se aproxima, derrubando a poltrona de couro. Fico de pé e corro até a mesa, empurrando-a na direção dele. Hamburg tenta tirá-la da frente, mas o móvel balança sobre a base e ele acaba tropeçando. Seu corpo desaba no chão de barriga para baixo e a mesa cai quase na sua cabeça. Salto sobre suas costas e monto em seu corpo obeso. Meus joelhos mal tocam o chão. Agarro seu cabelo, puxo a cabeça dele para trás na minha direção e aperto o punhal em sua garganta, imobilizando-o em segundos.

— Pode me matar! Foda-se! Você não vai sair viva daqui mesmo. — A voz de Hamburg é rouca, sua respiração, rápida e ofegante, como se ele tivesse acabado de tentar correr uma maratona. O cheiro de seu suor e de seu medo invade minhas narinas.

Ocupada com a lâmina em sua garganta, me assusto com o som de batidas fortes na porta. A distração me pega desprevenida. Hamburg consegue se erguer debaixo de mim como um touro, rolando de lado e me derrubando no chão. Deixo cair o punhal em algum lugar, mas não tenho tempo para procurá-lo porque Hamburg consegue se levantar e parte para cima de mim. Ouço a voz de Stephens do outro lado da porta, que vibra com seus socos.

Rolo para sair do caminho antes que Hamburg consiga pular em cima de mim, pego o objeto mais próximo — um peso de papel de pedra, bem pesado, que estava na mesa antes de ser derrubada — e golpeio Hamburg com ele. O som do osso de seu rosto quebrando com o impacto faz meu estômago revirar. Hamburg cai para trás, cobrindo a cara com as mãos.

As batidas na porta ficam mais fortes. Numa fração de segundo, levanto a cabeça e vejo a porta sacudindo com violência no batente. Preciso sair daqui. Agora. Meu olhar varre a sala procurando o punhal, mas não há mais tempo.

Corro para a sala de vigilância, contornando os obstáculos.

Graças a Deus, há outra porta lá dentro. Abro a porta e desço correndo a escada de concreto, torcendo para que seja uma saída e eu não encontre mais ninguém no caminho.


CAPÍTULO CINCO

Sarai

Desço a escada de concreto de dois em dois degraus, segurando no corrimão de metal pintado com as mãos ensanguentadas, até chegar ao térreo. Uma placa vermelha com a palavra SAÍDA está à minha frente. Corro pela passagem mal-iluminada, onde uma lâmpada fluorescente pisca acima de mim e torna o lugar ainda mais ameaçador. Empurro com força a barra da porta com as duas mãos e ela se abre para um beco. Um homem de terno está sentado no capô de um carro, fumando, quando saio para a rua.

Eu fico paralisada.

Ele olha para mim.

Eu olho para ele.

Ele nota o sangue nas minhas mãos e olha de relance para a porta, depois para mim.

— Vá — diz ele, acenando para a caçamba de lixo à minha direita.

Sei que não tenho tempo para ficar confusa nem para perguntar por que ele está me deixando ir embora, mas pergunto assim mesmo.

— Por que você está...?

— Apenas vá!

Ouço passos ecoando na escada atrás da porta.

Lanço um olhar agradecido ao homem e dou a volta na caçamba, desço o beco e me afasto do restaurante. Ouço um tiro segundos depois que dobro a esquina e torço para que seja aquele homem fingindo atirar em mim.

Evito espaços abertos e corro por trás de prédios, protegida pela escuridão, tanto quanto minhas sandálias de salto alto permitem. Quando sinto que estou longe o suficiente para parar um pouco, tento me esconder atrás de outra caçamba e tiro as sandálias. Arranco a peruca loura e a jogo no lixo.

Não consigo respirar. Estou enjoada.

Meu Deus, estou enjoada...

Encosto na parede de tijolos atrás de mim, arqueando as costas e apoiando as mãos nos joelhos. Vomito com violência no chão, meu corpo rígido, o esôfago ardendo.

Pego as sandálias e saio correndo de novo na direção do hotel, tentando esconder o sangue das mãos e do vestido, mas percebo que não é tão fácil. Recebo alguns olhares desconfiados ao passar depressa pela recepção, mas tento ignorá-los e torço para que ninguém chame a polícia.

Em vez de arriscar ser vista por outras pessoas, subo pela escada até o oitavo andar. Quando chego lá, e depois de tudo o que corri, sinto que minhas pernas vão ceder. Encosto na parede e recupero o fôlego, com os joelhos tremendo descontroladamente. Meu peito dói, como se cada respiração trouxesse poeira, fumaça e cacos microscópicos de vidro para o fundo dos pulmões.

O quarto que divido com Eric está trancado e eu não tenho a chave. Aliás...

— Puta merda...

Jogo a cabeça para trás, fecho os olhos e suspiro, arrasada.

Não estou mais com a minha bolsa. Eu a perdi em algum momento da luta na sala de Hamburg. A chave do meu quarto. Meu celular. Minha arma. Meu punhal. Não tenho mais nada.

Bato na porta, mas Eric não está no quarto. Não esperava que estivesse, na verdade, já que não são nem onze da noite. Só para o caso de estar enganada, no entanto, tento o quarto de Dahlia.

— Dahl! Você está aí? — Bato na porta com pressa, tentando não incomodar os outros hóspedes.

Nenhuma resposta.

Já desistindo, jogo as sandálias no chão e apoio as mãos na parede. Minha cabeça desaba. Mas então ouço um clique baixinho e vejo a porta do quarto de Dahlia se abrindo devagar. Levanto a cabeça e a vejo parada ali.

Sem me demorar para questionar a expressão estranha no rosto dela, entro no quarto só para sair do corredor. Eric está sentado na poltrona perto da janela. Noto que seu cabelo está meio bagunçado. O de Dahlia também.

Meu instinto está tentando chamar minha atenção, mas não me importo. Acabei de apunhalar um homem no pescoço e de tentar matar outro. Quase fui estuprada. Estava correndo pelos becos de Los Angeles para fugir de homens armados que vinham atrás de mim. Nada que esses dois façam pode superar isso.

— Meu Deus, Sarai — diz Dahlia, aproximando-se de mim. — Isso é sangue?

A expressão estranha e silenciosa que ela exibia quando entrei no quarto desaparece em um instante quando ela me vê no quarto bem-iluminado. Seus olhos se arregalam, cheios de preocupação.

Eric se levanta da poltrona.

— Você está sangrando. — Ele também me olha de cima a baixo. — O que aconteceu?

Os olhos de Dahlia correm pela minha roupa e pelo meu cabelo preso dentro da touca da peruca.

— Por que... Hã, por que você está vestida assim?

Olho para mim mesma. Não sei o que dizer, então não digo nada. Eu me sinto como um cervo diante dos faróis de um carro, mas minha expressão continua firme e sem emoções, talvez um pouco confusa.

— Você encontrou Matt — acusa Dahlia, começando a levantar a voz. — Puta que pariu, Sarai. Você foi se encontrar com ele, não foi?

Sinto os dedos dela apertando meu antebraço.

Eu me desvencilho de Dahlia e caminho até o banheiro para tirar a touca do cabelo. Enquanto tiro os grampos, noto uma camisinha boiando na privada.

Eric entra no banheiro atrás de mim. Ele sabe que eu vi.

— Sarai, e-eu... Eu sinto muito — diz ele.

— Não se preocupe — respondo, tirando o último grampo e deixando-o na bancada creme.

Passo por Eric e volto para o quarto. Dahlia está me encarando, com o rosto cheio de vergonha e arrependimento.

— Eu...

Ergo a mão e olho para os dois.

— Não, é sério. Não estou brava.

— Como assim? — pergunta Dahlia.

Eric parece agitado. Ele põe a mão na nuca e passa os dedos pelo cabelo.

— Olhe, sem querer ofender — digo a Eric —, mas tenho fingido tudo com você desde a primeira vez que a gente ficou junto.

Ele arregala os olhos, embora tente não deixar que o choque e a mágoa da minha revelação transpareçam demais. Grande parte de mim se sente bem por dizer a verdade. Não por vingança, mas porque eu precisava tirar isso do peito. Mas admito que, depois de descobrir que os dois têm trepado pelas minhas costas, uma pequena parte de mim também fica feliz em magoá-lo. Acho que a vingança sempre encontra um caminho, mesmo nos gestos mais insignificantes.

— Fingido?

— Não tenho tempo para isso — digo, indo na direção da porta. — Vocês dois podem ficar juntos. Não tenho nada contra. Não estou brava, só não me importo mesmo. Preciso ir.

— Espere... Sarai.

Eu me viro para olhar Dahlia. Ela está muito chocada, mal sabe o que pensar. Depois de alguns segundos de silêncio, fico impaciente e a olho com cara de “vai, desembucha”.

— Para você... tudo bem mesmo?

Uau, não sirvo mesmo para o estilo de vida deles. O estilo de vida normal. Nem consigo entender essas coisas de namoro, melhores amigas, infidelidade, competição e joguinhos psicológicos. A cara que eles fazem, tão vazia e mesmo assim tão cheia de incredulidade e dúvida, por causa de uma situação que, para mim, não é tão importante... Tenho coisas mais graves com que me preocupar.

Suspiro, aborrecida com as perguntas vagas e confusas dos dois.

— Sim, por mim, tudo bem — digo, e então me viro para Eric, estendendo a mão. — Preciso da chave do nosso quarto.

Relutante, ele enfia a mão no bolso de trás e pega a chave. Tomo da sua mão, saio dali e vou para o quarto ao lado. Eric vem atrás e tenta falar comigo enquanto guardo minhas coisas na mala.

— Sarai, eu nunca quis...

Eu me viro de repente e o encaro.

— Tudo bem, só vou dizer isto uma vez, depois você muda de assunto ou volta para lá e fica com a Dahlia. Não estou nem aí para o que vocês dois fazem, mas, por favor, não apele para esse clichê de novela de que você nunca quis que isso acontecesse, porque... é muito idiota. — Eu rio baixinho, porque acho idiota mesmo. — Só falta você dizer que o problema não é comigo, é com você. Caramba, você faz ideia do que isso parece? É tão difícil assim acreditar quando digo que não me importo e que estou falando sério? Sem joguinhos. É verdade. — Balanço a cabeça, levanto as mãos e digo: — Não. Me. Importo.

Viro para a mala, fecho o zíper, abro a parte lateral e pego a chave do quarto secreto. Ainda bem que eu tinha uma cópia.

— Preciso ir — digo, andando até a porta e passando por Eric.

— Aonde você vai?

— Não posso contar, mas me escute, Eric, por favor. Se alguém aparecer me procurando, finja que não me conhece. Diga o mesmo para Dahlia. Finjam que nunca me viram na vida. Aliás, quero que vocês dois saiam hoje. Vão para qualquer lugar. Só... não fiquem aqui.

— Você vai me dizer o que aconteceu ou por que está toda ensanguentada? Sarai, você está me deixando assustado pra cacete.

— Eu vou ficar bem — digo, atenuando minha expressão. — Mas prometa que você e Dahlia vão fazer exatamente o que falei.

— Você vai me contar um dia?

— Não posso.

O silêncio entre nós fica mais pesado.

Enfim, abro a porta e saio para o corredor.

— Acho que sou eu quem deveria estar pedindo desculpas.

— Por quê?

Eric fica na porta, com os braços caídos ao lado do corpo.

— Por pensar em outra pessoa durante todo esse tempo em que eu estava com você. — Olho para o chão.

Nós nos encaramos por um breve momento e ninguém diz mais nada. Ambos sabemos que estamos errados. E acho que nós dois estamos aliviados por tudo ter vindo à tona.

Não há mais nada a dizer.

Eu me afasto pelo corredor na direção oposta à do meu quarto secreto e dou a volta por trás, para que Eric não veja aonde estou indo. Quando me tranco no quarto, só consigo desabar na cama. A exaustão, a dor e o choque de tudo o que aconteceu esta noite me atingem em cheio assim que a porta se fecha, e me engolem como uma onda. Eu me jogo de costas no colchão. Minhas panturrilhas doem tanto que duvido conseguir andar sem mancar amanhã.

Fico olhando para o teto escuro até ele desaparecer e eu pegar no sono.


CAPÍTULO SEIS

Sarai

Um tum! pesado me acorda, mais tarde naquela noite. Eu me levanto como uma catapulta.

Vejo dois homens no meu quarto: um desconhecido morto no chão e Victor Faust de pé sobre o corpo dele.

— Levante-se.

— Victor?

Não acredito que ele está aqui. Devo estar sonhando.

— Levante-se, Sarai. AGORA! — Victor me pega pelo cotovelo, me arranca da cama e me põe de pé.

Não consigo nem pegar minhas coisas, ele já está abrindo a porta e me puxando para o corredor com ele, segurando forte a minha mão.

Disparamos juntos pelo corredor e outro homem aparece virando a esquina, de arma em punho. Victor aponta sua 9mm com silenciador e o derruba antes que o cara consiga atirar. Ele passa pelo corpo me puxando, seus dedos fortes afundando na minha mão enquanto corremos para a escada. Ele abre a porta, me empurra para a frente e nós subimos depressa os degraus de concreto. Um andar. Três. Cinco. Minhas pernas estão me matando. Acho que não consigo andar por muito mais tempo. Enfim, no quinto andar, Victor me puxa para outro corredor e rumo a um elevador nos fundos.

Quando as portas do elevador se fecham e estamos só nós dois lá dentro, finalmente tenho a oportunidade de falar.

— Como você sabia que eu estava aqui? — Mal consigo recuperar o fôlego, esgotada pela correria infinita e pela adrenalina, mas acho que sobretudo porque Victor está de pé ao meu lado, segurando minha mão.

Meus olhos começam a arder com as lágrimas.

Engulo o choro.

— O que você estava pensando, Sarai?

— Eu...

Victor segura meu rosto com as duas mãos e me empurra contra a parede do elevador, pressionando ferozmente seus lábios nos meus. Sua língua se entrelaça na minha e sua boca tira meu fôlego em um beijo apaixonado que, enfim, faz meus joelhos cederem. Toda a força que eu estava usando para manter o corpo ereto desaparece quando os lábios dele me tocam. Ele me beija com fome, com raiva, e eu derreto em seus braços.

Então ele se afasta, as mãos fortes nos meus braços, me segurando contra a parede do elevador. Nós nos encaramos pelo que parece ser uma eternidade, nossos olhos paralisados em uma espécie de contemplação profunda, nossos lábios a centímetros de distância. Só quero prová-los de novo.

Mas ele não deixa.

— Responda — exige Victor, estreitando seus olhos perigosos em reprovação.

Já esqueci a pergunta.

Ele me sacode.

— Por que você veio aqui? Tem ideia do que você fez?

Balanço a cabeça em um movimento curto e rápido, parte de mim mais preocupada com seu olhar ameaçador do que com o que ele está dizendo.

A porta do elevador se abre no subsolo e eu não tenho tempo para responder, pois Victor mais uma vez pega minha mão e me puxa para que o siga. Serpenteamos por um grande depósito com caixas em pilhas altas encostadas nas paredes e depois por um longo corredor escuro que leva a um estacionamento. Victor enfim solta minha mão e eu o sigo até um carro parado entre dois furgões pretos com o logotipo do hotel nas laterais. Dois bipes ecoam pelo ambiente e os faróis do carro piscam quando nos aproximamos, iluminando a parede de concreto em frente. Sem perder tempo, me sento no banco do passageiro e fecho a porta.

Segundos depois, Victor está dirigindo casualmente pelo estacionamento até a rua.

— Eu queria que ele morresse — respondo, enfim.

Victor não me olha.

— Bom, você fez um excelente trabalho — rebate ele, sarcástico.

Ele vira para a direita no semáforo, e o carro ganha velocidade quando chegamos à rodovia.

Fico magoada por suas palavras, mas sei que ele tem razão, por isso não discuto. Fiz merda. Uma merda muito grande.

Mas não me dou conta do tamanho dela até Victor dizer:

— Os seus amigos podiam ter morrido. Você podia ter morrido.

Sinto meus olhos se arregalarem além dos limites e me viro mais um pouco para encará-lo.

— Ah, não... Victor, o quê... Eles estão bem?

Sinto que vou vomitar de novo.

Victor me olha por um instante.

— Estão ótimos. O primeiro quarto que os capangas de Hamburg revistaram estava vazio — diz ele, voltando a olhar para a estrada. — Eu cheguei quando eles estavam saindo. Segui um deles até o quarto onde você estava escondida, deixei que ele destrancasse a porta e então ataquei.

As chaves do quarto. Minhas duas chaves extras estavam na bolsa que perdi no restaurante de Hamburg. E os números dos quartos estavam escritos nas capinhas de papel que as protegiam. Eu estava tão preocupada em esconder minha arma e meu punhal que nem pensei em esconder as chaves.

— Merda! — Também olho para a estrada. — E-eu perdi a bolsa no restaurante. As chaves do meu quarto estavam dentro dela. Deixei um rastro para eles seguirem!

Felizmente, eu não tinha uma chave extra do quarto de Dahlia, senão ela e Eric já poderiam estar mortos.

Onde é que eu estava com a cabeça?!

— Não, você deixou literalmente as chaves do seu quarto com o nome do hotel gravado. Sarai, eu devia ter matado você há muito tempo e poupado toda essa confusão para cima de você e de mim.

Eu me viro para encará-lo; a raiva e a mágoa pesando no meu peito.

— Você não está falando sério.

Ele faz uma pausa e me olha. Suspira.

— Não, não estou falando sério.

— Nunca mais me diga isso. Nunca mais me diga uma coisa dessas, ou eu mato você e poupo a mim de toda essa confusão — rebato, desviando o olhar.

— Você não está falando sério — diz Victor.

Olho mais uma vez para aqueles olhos ameaçadores verde-azulados que me fizeram tanta falta.

— Não. Mas acho que isso seria o mais sensato.

— Bom, você não foi a campeã da sensatez hoje, então acho que estou seguro ao menos pelas próximas 24 horas.

Escondo o sorriso.

— Senti sua falta — digo de maneira distante, olhando para a estrada.

Victor não responde, mas admito que seria estranho se respondesse. A despeito de sua falta de emoção, porém, sei que ele também sentiu saudade de mim. Aquele beijo no elevador disse coisas que palavras jamais conseguiriam.

Ele pega uma saída e para o carro debaixo de um viaduto. Puxa o freio de mão e a área ao redor desaparece na escuridão quando ele desliga os faróis.

— O que a gente está fazendo aqui?

— Você precisa ligar para os seus amigos.

— Por quê?

Ele tira um celular do porta-luvas entre nós.

— Mande eles voltarem para o Arizona. Faça ou diga o que for preciso para que eles saiam de Los Angeles. Quanto antes, melhor.

Ele coloca o telefone na minha mão. De início, só olho para o aparelho, mas ele me pressiona com aquele olhar, aquele que grita “vamos lá, faça isso de uma vez”, mas que só alguém como eu, alguém que conhece Victor, seria capaz de notar.

Giro o celular nas mãos, depois o seguro firmemente e digito o número de Eric. Mas então mudo de ideia, desligo no primeiro toque e ligo para Dahlia.

Ela atende no quinto toque.

Respiro fundo e faço o que sei fazer melhor: minto.

— A verdade é que vocês me magoaram. Duvido que um dia eu consiga perdoar você ou Eric pelo que fizeram.

— Sarai... Meu Deus, me desculpe, estou me sentindo muito mal. A gente não queria que isso chegasse a esse ponto. Juro para você. Não sei o que aconteceu...

— Escute, Dahlia, por favor, só me escute.

Ela fica quieta.

Começo a choradeira. Nunca imaginei que eu seria capaz de chorar sob demanda e de forma tão falsa.

— Eu quero acreditar em você. Quero conseguir confiar em você de novo, mas você era minha melhor amiga e me traiu. Preciso de um tempo sozinha e quero que você e Eric voltem para o Arizona. Hoje. Acho que não vou aguentar ver vocês de novo... Espere, onde você está, agora?

Acabo de me dar conta de que, se ela e Eric estiverem no hotel, a essa altura ela já sabe que dois homens foram mortos a tiros no andar do quarto deles.

— A gente está em uma festa em um terraço — conta ela. — T-tudo bem por você? Achei que não tinha nada a ver a gente sair, mas o Eric falou que você insistiu...

— Não, tudo bem — digo, cortando-a. — Insisti mesmo. Onde ele está, agora?

— Deixei Eric lá no terraço para a gente poder conversar. Está muito barulhento lá em cima. Que número é esse de onde você está ligando?

— É o celular de um amigo. Perdi o meu. O Eric por acaso avisou que se alguém procurar por mim...

— Avisou, sim — interrompe Dahlia. — Que confusão é essa, afinal? Meu Deus, Sarai, esquece por um momento esse lance com Eric e me conta o que está acontecendo, por favor. O sangue. As roupas esquisitas que você estava usando e aquele troço na sua cabeça. Era uma touca de peruca? Você está metida em alguma encrenca, eu sei. Sei que você me odeia, e tem todo o direito de odiar, mas, por favor, conte o que aconteceu.

— Não posso contar, porra! — grito, deixando o choro distorcer minha voz. — Caramba, Dahlia, faça o que eu pedi. Pelo menos isso! Você deu para o meu namorado! Por favor, voltem para o Arizona, me deixem esfriar a cabeça e depois eu volto para casa. Talvez aí a gente possa conversar. Mas agora façam o que eu estou pedindo. Tudo bem?

Ela não responde por um momento, e um longo silêncio se forma entre nós.

— Tudo bem — concorda ela. — Vou dizer ao Eric que a gente precisa ir embora.

— Obrigada.

Estou apenas um pouco aliviada. Não vou me sentir bem com isso até saber que eles chegaram em casa sãos e salvos.

Desligo sem dizer mais uma palavra.

— Bom, isso foi bastante convincente — observa Victor, levemente impressionado.

— Acho que foi.

— Eu sei que a sua amiga acreditou — acrescenta ele. — Mas eu não acreditei em uma só palavra.

Eu me viro para ele. Victor me conhece tão bem quanto eu o conheço, parece.

— É porque nem uma palavra era verdade.

Ele deixa por isso mesmo e nós saímos de baixo do viaduto.

Chegamos a uma casa perdida no final de uma estrada isolada nos arredores da cidade, empoleirada no alto de uma colina com uma vista quase perfeita para a cidade lá embaixo. Uma piscina de formato irregular começa no lado esquerdo da casa e serpenteia por trás, a água azul-clara iluminada por lâmpadas submersas parece luminescente. O lugar está silencioso. Só ouço o vento passando pela mata cerrada que contorna o lado direito e os fundos da casa, impedindo uma visão em 360 graus da paisagem iluminada de Los Angeles. Quando nos aproximamos da porta, uma mulher robusta usando uniforme azul de empregada nos recebe. Ela tem cabelo preto encaracolado e pele morena. Suas bochechas são volumosas, envolvendo seus olhos castanho-escuros pequenos e brilhantes, que fitam atentamente Victor e a mim.

— Por favor, entrem — diz ela, com um sotaque hispânico familiar.

A mulher fecha a porta. A casa cheira a limpa-vidro e a uma mistura pouco natural de cheiros adocicados que só pode vir de algum tipo de aromatizador de ambientes artificial. Parece que todas as janelas foram abertas, permitindo que a brisa noturna de verão se espalhasse pela casa. Não se parece em nada com as mansões ricas onde já estive, mas é impecável e aconchegante, e penso que eu deveria pelo menos ter tomado um banho antes de vir. Minha pele e minhas roupas ainda estão manchadas de sangue...

Victor está usando uma calça preta e uma camisa apertada de mangas compridas que adere a cada músculo de seus braços e seu peito, com os punhos desabotoados e arregaçados até os cotovelos. A camisa está por fora da calça e os dois botões de cima estão abertos. Sapatos pretos chiques e informais calçam seus pés. Um relógio brilhante de prata adorna seu pulso direito, e não consigo deixar de notar a solitária veia grossa que percorre as costas de sua mão até o osso de seu pulso. Quando ele segue a empregada pela grande entrada e se vira momentaneamente de costas para mim, vejo o cabo da arma saindo da cintura de sua calça, com a barra da camisa branca enfiada atrás.

Ele me olha, para e estende o braço, em um gesto para que eu ande à sua frente. Tremo de leve quando sua mão toca minhas costas perto da cintura.

Antes que eu tenha tempo de me sentir deslocada ao lado dele, Fredrik, o amigo e cúmplice sueco de Victor que conheci no restaurante de Hamburg há tanto tempo, entra na sala pelas grandes portas de vidro que dão para o quintal dos fundos.


CAPÍTULO SETE

Sarai

— Você chegou cedo — comenta Fredrik com um sorriso mortal, porém inimaginavelmente sexy.

As roupas dele são bem parecidas com as de Victor, mas, em vez de camisa de botão, Fredrik está vestindo uma camiseta branca apertada que adere à sua forma esbelta e máscula. Ele está descalço.

A primeira vez que vi Fredrik, pensei que era impossível haver alguém mais bonito. Com cabelo macio, quase preto, e olhos escuros e misteriosos, suas feições parecem ter sido esculpidas por algum artista famoso. Mas sempre achei que havia algo de sombrio e assustador naquele homem. Um lado dele que eu, particularmente, não faço questão de conhecer. Para mim, basta o jeito como ele era quando nos encontramos: cordial, encantador e misterioso, uma linda máscara que ele usa para esconder a fera que há por trás.

Victor olha para seu relógio caro.

— Só dez minutos mais cedo — comenta ele.

Fredrik sorri ao se aproximar, os dentes brancos reluzindo contra a pele bronzeada.

— Sim, mas você sabe como eu sou.

Victor assente, mas não alonga o assunto. A mim, só resta imaginar o que aquilo significa.

— É bom ver você — diz Fredrik, observando-me do topo de sua altura considerável e presença avassaladora. Ele se inclina, pega minha mão e a beija, logo acima dos nós dos dedos. — Ouvi dizer que você matou um homem hoje.

Ele apruma as costas e solta minha mão. Um sorriso perturbador e orgulhoso surge em seu rosto, os cantos dos olhos se aquecendo com alguma lembrança ou... prazer, como se a ideia de matar alguém o deliciasse de alguma forma.

Olho para Victor à minha direita. Ele assente, respondendo à pergunta estampada no meu rosto. O guarda-costas que apunhalei no pescoço morreu?

Olho para Fredrik e respondo sem rodeios.

— Acho que matei.

Um leve sorriso se abre nos cantos dos lábios de Fredrik, e ele olha de relance para Victor, sem mover a cabeça.

— E você se sente bem com isso? — pergunta Fredrik.

— Para dizer a verdade, sim — respondo sem demora. — O desgraçado mereceu.

Fredrik e Victor parecem envolvidos em algum tipo de conversa secreta. Odeio isso.

Enfim, Fredrik diz para Victor em voz alta:

— Você arrumou sarna para se coçar, Faust.

Ele então se vira de costas para nós e anda na direção das portas de vidro. Nós o seguimos para o lado de fora, passando pela parte coberta do quintal e descendo uma escada de pedra que leva a um enorme pátio, também de pedra, que se abre em todas as direções. O pátio é decorado com mesas e cadeiras de ferro batido e uma cama com dossel ao ar livre.

Eu me sento ao lado de Victor em um sofá.

— Como é que você sabe? — pergunto a Fredrik, mas então me viro para Victor e digo: — E você ainda não me contou como sabia que eu estava aqui.

Na verdade, isso não importa muito, só quero encará-lo nos olhos de novo. Quero ficar sozinha com Victor, mas por enquanto vou precisar me contentar com os 7 centímetros entre nossos corpos, sentados lado a lado.

— Melinda Rochester me contou — explica Fredrik com um sorriso conivente. Começo a perguntar “E quem é Melinda Rochester”, mas ele diz: — Bem, ela contou para todo mundo, na verdade. Noticiário do Canal 7. Um homem morto a punhaladas atrás de um restaurante de Los Angeles.

Começo a me retorcer por dentro. Espero que as câmeras não tenham me mostrado com nitidez.

Eu me viro para Victor, com a preocupação transparecendo no rosto.

— Eu estava de peruca loura — digo, tentando encontrar alguma coisa, qualquer coisa que eu tenha feito certo. — Fiquei com a cabeça baixa... a maior parte do tempo.

Desisto. Sei que o que fiz vai continuar me perseguindo. Suspiro e olho para as mãos ensanguentadas no meu colo.

— E encontrar você foi fácil — continua Victor. — A sra. Gregory me ligou depois que você saiu do Arizona. Ela estava preocupada com a sua vinda para Los Angeles e achou que eu precisava saber.

Viro a cabeça para encará-lo.

— O quê? Dina sabia onde você estava? — Sinto a pele ao redor das sobrancelhas se enrijecendo.

— Não — responde ele, com delicadeza. — Ela não sabia onde eu estava, mas sabia como entrar em contato comigo.

Essas palavras me magoam. Engulo em seco a sensação de ser traída por eles.

— Falei para ela entrar em contato comigo só em caso de emergência — acrescenta Victor. — Caso algo acontecesse com você.

— Você deixou para Dina uma forma de entrar em contato — digo, ríspida —, mas para mim, nada. Não acredito que você fez isso.

— Eu queria que você tocasse a sua vida. Mas, caso os irmãos de Javier descobrissem onde você estava, ou você decidisse fazer uma proeza como a de hoje, eu queria ficar sabendo.

Não consigo olhar para Victor. Tento chegar mais alguns centímetros para o lado a fim de aumentar a distância entre nós. Ainda assim, mesmo que esteja magoada e enfurecida com ele, sinto vontade de me aproximar de novo. Mas me mantenho firme e me recuso a deixá-lo perceber que o poder que ele exerce sobre mim faz a raiva que sinto parecer um chilique.

— Não acredito que Dina escondeu isso de mim — digo em voz alta, ainda que esteja falando mais comigo mesma.

— Ela escondeu de você porque eu disse a ela quanto isso era importante.

— Bom, de qualquer maneira — interrompe Fredrik, sentando-se na poltrona ao lado do sofá —, parece que você se meteu em uma situação da qual não vai conseguir sair tão facilmente, se é que vai conseguir.

— Por que a gente está aqui? — pergunto, aborrecida.

Fredrik ri baixinho.

— Aonde mais você iria?

— Eu precisava tirar você do hotel — explica Victor.

— Espere um pouco. Eu não matei aquele homem atrás do restaurante. Tudo aconteceu na sala particular de Hamburg, no andar de cima.

Recordo o homem que vi do lado de fora, atrás do restaurante, aquele que me deixou fugir, e meu coração afunda.

— Hamburg não deixaria que a polícia acreditasse que o assassinato aconteceu lá dentro, porque eles confiscariam a memória da câmera de vigilância e veriam o que realmente aconteceu.

Não estou entendendo nada. Nadinha.

— Eles não iam querer que a polícia soubesse o que realmente aconteceu?

Fredrik se reclina na poltrona e ergue um pé descalço, apoiando o tornozelo sobre o outro joelho, e estende os braços sobre os da poltrona.

Victor balança a cabeça.

— Preciso mesmo explicar isso para você, Sarai?

Sua vaga irritação me pega de surpresa. Olho para ele e levo alguns segundos para entender tudo sem que ele precise explicar.

— Ah, entendi — digo, olhando um de cada vez. — Hamburg não quer que a polícia se envolva porque corre o risco de se expor. O que ele fez, então? Só levou o corpo para fora? Preparou a situação para parecer um assalto comum? Não muito diferente do que ele fez naquela noite em que a gente estava na mansão dele, imagino.

Paro por aí porque Fredrik está presente. Não sei qual o grau de intimidade entre ele e Victor, nem mesmo se Fredrik sabe o que aconteceu na noite em que Victor matou a esposa de Hamburg.

Os olhos de Victor sorriem de leve para mim: sua maneira de me mostrar quanto lhe agrada eu ter entendido tudo. Ainda fingindo estar aborrecida, não retribuo o olhar da forma que ele deve esperar.

A empregada aparece com um balde chique de gelo, de madeira, com três garrafas de cerveja dentro. Fredrik pega uma, então ela nos oferece. Victor pega uma garrafa, mas recuso, mal conseguindo olhar a mulher nos olhos. Estou absorta demais nos acontecimentos da noite, que não me saem da cabeça.

A empregada vai embora logo depois, sem dizer uma palavra.

— O que você quis dizer com os irmãos de Javier?

Victor abre sua garrafa e a põe na mesa.

— Dois deles, Luis e Diego, assumiram os negócios de Javier dias depois que você o matou.

Por um instante, o rosto de Javier surge em minha mente: sua expressão chocada e ainda orgulhosa, os olhos arregalados, o corpo caindo no chão segundos depois de eu meter uma bala em seu peito.

Afasto a imagem.

Eu me lembro de Luis e Diego. Diego é aquele que tentou me estuprar quando eu estava na fortaleza no México, aquele que Javier castrou como punição.

— Eles estão me procurando?

Victor toma um gole de cerveja e devolve a garrafa à mesa com calma.

— Que eu saiba, não. Estou monitorando a fortaleza há meses. Os irmãos de Javier são amadores. Não têm ideia do que fazer com tanto poder. Duvido até que vejam você como ameaça.

Fredrik toma um gole de cerveja e prende a garrafa entre as pernas.

— Não fique tão aliviada assim — diz ele. — É melhor ser perseguida por amadores do que por Hamburg e aquele braço direito dele.

Um nó nervoso se forma no fundo do meu estômago. Olho de relance para Victor, buscando respostas.

— Willem Stephens — esclarece Victor — faz todo o serviço sujo de Hamburg. Hamburg em si é covarde, tão perigoso quanto o pedófilo gente boa da vizinhança. Mal consegue atirar em um alvo imóvel, e trairia alguém em dois minutos para se salvar. — Ele arqueia uma sobrancelha. — Stephens, por outro lado, tem uma extensa formação militar, é ex-mercenário e trabalhou para uma Ordem do mercado negro em 1986.

— Uma o quê?

— Uma Ordem como a nossa — explica Victor —, mas que aceita contratos particulares. Eles fazem coisas que outros agentes se recusam a fazer, vendem seus serviços basicamente para qualquer um.

— Ah... Então, resumindo, ele mata gente inocente por dinheiro.

Lembro o que Victor me contou, meses atrás, sobre a natureza dos contratos particulares, como pessoas eram assassinadas por motivos fúteis como traição conjugal ou vingança. A Ordem de Victor só trabalha com crime, ameaças sérias a um grande número de pessoas ou ideias que poderiam ter um impacto negativo na sociedade ou na vida como um todo.

Engulo em seco.

— Bom, ele me viu, com certeza. — Levanto as mãos e tiro o cabelo do rosto, passando as mãos no alto da cabeça. — Foi ele quem me levou para o segundo andar, para a sala de Hamburg. — Olho para Victor. — Desculpa, Victor. Eu... eu não sabia de nada disso.

Fredrik ri baixinho e diz:

— Algo me diz que, mesmo se você soubesse, teria ido lá de qualquer maneira.

Desvio o olhar de Victor e olho para baixo de novo, nervosa, esfregando os dedos ensanguentados uns nos outros. Fredrik tem razão. Odeio admitir, mas ele tem razão. Eu teria ido para o restaurante mesmo assim. Teria tentado matar Hamburg mesmo assim. Mas, se eu soubesse de tudo isso, acho que teria pensado em um plano melhor.

De repente, sinto que alguma coisa toma meu corpo e me tira o fôlego.

— Victor... Meu celular... — Eu me levanto do sofá, com o cabelo castanho-avermelhado caindo pelos ombros, batendo em meus braços nas partes em que o sangue secou e formou uma crosta áspera. — O número de Dina está no meu celular. Merda. Merda! Victor, Stephens vai atrás dela! Preciso voltar para o Arizona!

Começo a seguir para a porta dos fundos, mas Victor me alcança antes que eu atravesse o caminho decorado com pedras lisas.

— Espere aí.

Olho para baixo e vejo os dedos dele em volta do meu pulso. Seus hipnóticos olhos verde-azulados me fitam com desejo e devoção. Devoção. Algo que nunca vi no olhar de Victor antes.

Fredrik fala atrás de nós, me tirando do transe em que Victor me colocou.

— Eu vou cuidar disso — diz ele.

Desvio o olhar de Victor para Fredrik, que então ganha importância, considerando que a vida de Dina está em jogo.

— Como? — pergunto.

Victor me leva de volta para o sofá.

Fredrik pega o celular da mesa à frente, procura um número e toca na tela para ligar. Então encosta o celular no ouvido.

Victor me faz sentar perto dele de novo. Estou concentrada demais em Fredrik no momento para notar que Victor fez questão de se sentar tão perto que sua coxa está encostada na minha. Quero aproveitar o momento de proximidade, mas não posso. Estou preocupada com Dina.

Fredrik se reclina na poltrona de novo, balançando o pé descalço apoiado no joelho. Seu rosto fica alerta quando alguém atende à ligação.

— Em quanto tempo você consegue chegar a Lake Havasu City? — pergunta Fredrik ao telefone. Ele ouve por um segundo e assente. — Mando o endereço por mensagem de texto assim que eu desligar. Vá para lá o mais rápido que puder. Uma mulher mora lá. Dina Gregory. — Ele me olha de relance, para se certificar de que disse o nome certo. Como não o corrijo, volta a falar ao telefone. — Tire-a da casa e a leve para Amelia, em Phoenix. Sim. Sim. Não, não pergunte nada a ela. Só tome cuidado para ninguém machucar Dina. Sim. Me ligue neste número assim que estiver com ela.

Fredrik assente mais algumas vezes. Meu coração está batendo tão forte que parece pronto para pular do peito. Espero que a pessoa com quem ele está falando consiga encontrar Dina a tempo.

Fredrik desliga e parece abrir uma tela de texto no celular. Ele olha para mim, mas é Victor quem dá o endereço da sra. Gregory. Fredrik o digita e deixa o celular na mesa.

— Meu contato está a apenas trinta minutos de lá — explica Fredrik, olhando primeiro para mim. Então se vira para Victor. — O que você quer que eu faça?

Ele levanta as costas da poltrona e apoia os cotovelos nos joelhos, deixando as mãos entre eles. Mesmo em uma posição relaxada, ele consegue parecer elegante, importante e perigoso.

— Ainda preciso que você verifique o que discutimos ontem — diz Victor, e fica ainda mais claro, para mim, que Fredrik recebe ordens dele, embora não pareça ser do tipo que recebe ordens de ninguém. Mas está claro que os dois têm uma relação forte. — E, se você não se importa, preciso da sua casa emprestada por esta noite.

Os olhos escuros de Fredrik me encaram, e o traço de um sorriso aparece em seu rosto. Ele se levanta e pega o celular da mesa, escondendo-o na mão.

— Não precisa dizer mais nada. Vou sair daqui em vinte minutos. Eu ia mesmo me encontrar com alguém hoje, então está combinado.

A atitude de Victor muda um pouco, o que percebo no mesmo instante. Ele está encarando Fredrik, do outro lado da mesa do pátio, com um olhar cansado e cauteloso.

— Você não vai fazer o que estou pensando...

Ouço com atenção sem nem ao menos tentar disfarçar. Eu quero que eles saibam que estou bisbilhotando, porque é frustrante nenhum dos dois me oferecer qualquer explicação sobre esses comentários internos.

Fredrik ergue um lado da boca em um meio sorriso. Ele balança a cabeça de leve.

— Não, esta noite, não, infelizmente. Mas já faz algum tempo. Vou precisar que você me ajude com isso em breve.

Os olhos dele passam por mim e sinto um calafrio percorrer minhas costas. Não consigo decidir se é um arrepio bom ou assustador.

— Você terá sua oportunidade logo, logo — assegura Victor.

Fredrik dá a volta na mesa.

— Lamento por ter que encurtar nossa reunião.

— Tudo bem — digo. — Obrigada por ajudar com Dina. Você avisa quando receber aquela ligação?

Fredrik assente.

— Com certeza. Farei isso.

— Obrigada.

Victor acompanha Fredrik até a porta de vidro e os dois a atravessam. Fico sentada, observando-os do outro lado do pátio de pedra e tentando ouvir o máximo que posso, mas eles fazem questão de falar em voz baixa. Isso também me deixa frustrada. E pretendo informar Victor disso.


CAPÍTULO OITO

Victor

Fredrik fecha a porta de correr feita de vidro.

— Ela não sabe nada sobre Niklas? — pergunta ele, como eu já previa.

— Não, mas vou ter que contar. Ela vai precisar ficar atenta o tempo todo. Agora mais do que nunca.

— Ela não pode ficar aqui por muito tempo — aconselha Fredrik, olhando, através do vidro, Sarai sentada no sofá lá fora e nos observando. — Você também não.

— Eu sei. Quando Niklas descobrir que ela participou do assassinato no restaurante de Hamburg, vai saber na mesma hora que também estou envolvido nisso. Ele não é bobo. Se Sarai está viva, Niklas vai saber que estou tentando ajudá-la.

— E como ele desconfia de que agora trabalho com você — acrescenta Fredrik —, ela corre tanto perigo perto de mim quanto de você.

— É verdade.

Fredrik balança a cabeça para mim, com um sorriso escondido no fundo dos olhos.

— Não entendo esse envolvimento. Respeito você como sempre, respeitei, Victor, mas nunca vou entender a necessidade de um homem amar uma mulher.

— Eu não estou apaixonado por ela. Ela só é importante para mim.

— Talvez não — retruca ele, indo para a cozinha. — Mas parece que o amor e o envolvimento trazem as mesmas consequências, meu amigo. — Sigo Fredrik até a cozinha iluminada e ele abre um armário. — Mas estou do seu lado. O que você precisar que eu faça para ajudar, é só pedir. — Ele aponta para mim perto do armário, agora com um pão na mão.

A empregada de Fredrik entra na cozinha, roliça e mais velha do que nós dois juntos, exatamente o tipo de mulher que jamais o atrairia, e foi por isso que ele a contratou. Ela lhe pergunta em espanhol se pode voltar para casa e ver a família mais cedo hoje. Fredrik responde em espanhol, concordando. Ela assente respeitosamente e passa por mim na sala. De soslaio, eu a observo pegar uma bolsa volumosa de couro marrom do chão, perto da espreguiçadeira, e colocá-la no ombro. Depois ela vai até a porta, fechando-a devagar ao sair.

Sarai está de pé nas sombras da sala quando desvio o olhar da porta. Nem ouvi a porta de vidro correr quando ela entrou, e pelo jeito Fredrik também não.

Ela vai para a cozinha iluminada, de braços cruzados, os dedos delicados segurando seus bíceps femininos, mas bem-definidos. Ela é linda demais, mesmo quando está desgrenhada assim.

— Quanto tempo vocês planejavam me deixar lá fora? — pergunta ela, com um traço de irritação na voz.

— Ninguém disse que você precisava ficar lá, gata — responde Fredrik.

Ele gosta dela, isso é óbvio para mim, e ele deve saber. Mas também sabe que vou matá-lo. Ainda assim, minha confiança em Fredrik é maior do que minha preocupação de que ele volte para o lado sombrio e a machuque. Fredrik Gustavsson é uma fera do tipo mais carnal, que adora mulheres e sangue, mas tem limites e critérios, além de levar a lealdade, o respeito e a amizade muito a sério. Sua lealdade a mim é, afinal, o motivo para ele trair a Ordem todos os dias me ajudando.

Sarai se aproxima de mim e me olha nos olhos, inclinando um pouco a cabeça para o lado. O cheiro de sua pele e o calor tênue que emana dela quase me fazem perder o controle. Tenho conseguido me conter bastante desde que a beijei no elevador. Pretendo continuar assim.

Ela não diz nada, mas continua me encarando como se esperasse alguma coisa. Fico confuso. Ela inclina a cabeça para o outro lado e seu olhar se suaviza, embora eu não saiba ao certo por quê. Parece maliciosa e cheia de expectativa.

Ouço Fredrik rir baixinho e a porta da geladeira se fechar, mas não tiro os olhos de Sarai.

— As coisas são tão mais fáceis do meu jeito. — Ouço-o dizer, com um sorriso na voz.

— Entre em contato comigo assim que tiver a informação sobre Niklas — peço, ainda olhando nos olhos de Sarai e ignorando o comentário dele. — E quando souber pelo seu contato se Dina Gregory está a salvo em Phoenix.

— Pode deixar — diz Fredrik, e então vai para a porta do corredor que leva ao seu quarto. Mas ele para e olha para nós. — Se você não se importa...

Enfim desvio o olhar de Sarai e dou atenção total a Fredrik.

— Não se preocupe — interrompo —, eu sei onde fica o quarto de hóspedes.

Ele enfia na boca um sanduíche que mal notei que ele preparava e morde, rasgando um pedaço de pão. Eu o vejo piscando para Sarai antes de desaparecer da sala. Foi algo inofensivo, uma menção ao que ele acha que pode acontecer entre nós quando sair, e não uma tentativa de flerte.

— Que informação sobre Niklas? — pergunta Sarai, seus traços suaves agora encobertos pela preocupação.

Estendo a mão e passo os dedos por algumas mechas do cabelo dela.

— Preciso contar muita coisa para você — anuncio, tirando a mão antes de perder o controle e acabar tocando nela mais do que pretendo. — Sei que você deve estar exausta. Por que não toma um banho e fica à vontade primeiro? Depois conversamos.

Um sorrisinho suave emerge em seus lábios, mas logo desaparece em seu rosto enrubescido.

— Você quer dizer que eu estou nojenta? — pergunta ela, tímida. — Esse é o seu jeito de me dizer que preciso lavar meu corpo nojento?

— Na verdade, sim — admito.

Por um momento ela faz uma careta e parece ofendida, mas então só balança a cabeça e dá risada. Admiro isso em Sarai. Admiro muita coisa nela.

— Tudo bem. — Sua expressão brincalhona fica séria de novo. — Mas você precisa me contar tudo, Victor. E eu sei que você deve ter muito para contar, mas saiba que também preciso dizer muita coisa para você.

Eu já esperava isso. E, antes que ela fique na ponta dos pés, incline o corpo na minha direção e me beije, já sei que, quando ela sair do banho, vou precisar decidir o que vamos fazer. Vou precisar tomar algumas decisões importantes, que nos afetarão.

Porque de uma coisa eu tenho certeza: Sarai não pode voltar para casa.


Sarai

Quando volto, Victor está na sala, acomodado na beira do sofá, curvado sobre a mesinha de centro feita de vidro que está cheia de pedaços de papel e fotografias. Entro, mas ele continua remexendo neles sem erguer a cabeça para me olhar. Só que ele não me engana, sei que sente a minha presença tanto quanto quero que ele sinta.

Vasculhei o guarda-roupa de Fredrik procurando uma camiseta branca, que vesti sobre meus seios nus. Infelizmente, tive que usar a mesma calcinha de antes, mas as cuecas boxer de Fredrik não são exatamente o tipo de lingerie que eu gostaria de usar para seduzir Victor. Só uma camiseta e uma calcinha. Claro que fiz questão de vestir o mínimo possível, porque desejo Victor e não tenho nenhuma vergonha de deixar isso claro. Mas ainda custo a acreditar que estou no mesmo cômodo que ele, depois de meses achando que ele havia ido embora para sempre.

Acho que o beijo no elevador é onde minha mente ficou suspensa, como se o tempo tivesse parado naquele momento e cada parte de mim ainda deseje que aquele instante continue. Contudo, o resto do mundo continua passando ao meu redor.

Eu me sento ao lado de Victor, recolhendo um pé descalço para o sofá e enfiando-o sob a minha coxa.

— O que é isso tudo? — Olho para os papéis e fotografias na mesa.

Ele mexe em alguns pedaços de papel, empilhando-os.

— É um serviço — explica ele, colocando a foto de um homem de camiseta regata na pequena pilha. — Agora eu trabalho por conta própria.

Isso me surpreende.

— Como assim? — Acho que sei o que ele quer dizer, mas custo a acreditar.

Ele pega a pilha de papéis e bate as laterais na mesa para ajeitar todas as folhas. Então enfia o maço em um envelope de papel pardo.

— Eu saí da Ordem, Sarai. — Ele olha para mim.

Victor aperta as pontas do fecho prateado para fechar o envelope.

Meus pensamentos se embaralham, minhas palavras ficam confusas na ponta da língua. Luto, desesperada, para acreditar no que ele acaba de me contar.

— Victor... mas... não...

— Sim — confirma ele, virando-se para mim e me olhando bem nos olhos. — É verdade. Eu me rebelei contra a Ordem, contra Vonnegut, e agora eles estão atrás de mim. — Ele volta a mexer nos outros papéis na mesa. — Mas ainda preciso trabalhar, por isso agora trabalho sozinho.

Balanço a cabeça sem parar, sem querer engolir a verdade. A ideia de Victor sendo caçado por aqueles que o fizeram ser como ele é, por qualquer um, faz um pânico febril correr pelas minhas veias.

Solto um longo suspiro.

— Mas... mas e Fredrik? E Niklas? Victor, eu... O que está acontecendo?

Ele respira fundo e deixa a folha de papel cair suavemente na mesa, então reclina as costas no sofá.

— Fredrik ainda trabalha para a Ordem. Está lá dentro. Ele vigia Niklas e... — seus olhos cruzam com os meus por um instante —... tem me ajudado a manter você a salvo.

Antes que eu consiga fazer mais perguntas presas na garganta, Victor se levanta e continua a falar, enquanto fico sentada e o observo com a boca semiaberta e as pernas dobradas sobre a almofada.

— Como você sabe, quando alguém está sob suspeita de trair a Ordem, é imediatamente eliminado. Mas acredito que Niklas deixou Fredrik vivo e não transmitiu suas preocupações a Vonnegut pelo simples fato de que Niklas está usando Fredrik para me encontrar. Assim como deixou você viva todo este tempo, esperando que um dia você o levasse a mim.

O que mais me choca não é o que Victor diz, mas o que ele deixa de fora. Tiro as duas pernas de cima do sofá e pressiono os pés no chão de madeira, apoiando as mãos nas almofadas.

— Victor, o que você está me dizendo? Quer dizer que... Niklas continua com Vonnegut?

Espero que não seja isso que ele esteja tentando me dizer. Espero de todo o coração que minha decisão de deixar Niklas vivo aquele dia no hotel, quando ele atirou em mim, não tenha sido o maior erro da minha vida.

Os olhos de Victor vagam para a porta de vidro, e sinto que uma espécie de sofrimento infinito o consome, mas ele não deixa transparecer.

— Você estava lá. Eu disse para o meu irmão que, se ele decidisse continuar na Ordem caso eu resolvesse sair, eu não ficaria bravo com ele. Dei a ele a minha palavra, Sarai. — Victor vai até a porta de vidro, cruza os braços e olha para a piscina azul iluminada que reluz sob o céu cinzento. — Agora é hora de Niklas brilhar, e não vou tirar isso dele.

— Que absurdo! — Salto do sofá com os punhos fechados. — Ele está atrás de você, não é? — Cerro os dentes e contorno a mesinha de centro. — Caralho, é isso, Victor? Para provar seu valor para Vonnegut, ele foi encarregado de matar você. Aquele merda do seu irmão traiu você. Ele acha que vai pegar o seu lugar na Ordem. Puta que pariu, não acredito...

— É o que é, Sarai — interrompe Victor, virando-se para me encarar. — Mas, neste momento, Niklas é a menor das minhas preocupações.

Cruzando os braços, começo a andar de um lado para outro, olhando os veios claros e escuros da madeira sob meus pés descalços. Minhas unhas ainda têm o esmalte vermelho-sangue de duas semanas atrás.

— Por que saiu da Ordem?

— Eu tive que sair. Não tinha escolha.

— Não acredito.

Victor suspira.

— Vonnegut descobriu sobre a gente — conta ele, ganhando minha atenção total. — Foi Samantha... na noite em que ela morreu. Antes que eu saísse da Ordem, encontrei Vonnegut em Berlim, o primeiro encontro frente a frente que tive com ele em meses. Foi em uma sala de interrogatório. Quatro paredes. Uma porta. Uma mesa. Duas cadeiras. Somente eu e Vonnegut sentados frente a frente, com uma luz brilhando no teto acima de nós. — Victor olha para trás pela porta de vidro e depois continua: — No início, eu estava certo de que ele tinha me levado para lá com a intenção de me matar. Eu estava preparado...

— Para morrer? — Se Victor responder que sim, vou dar um tapa na cara dele.

— Não — responde ele, e consigo respirar um pouco melhor. — Eu fui para lá preparado. Raptei a mulher de Vonnegut antes de ir encontrá-lo. Fredrik a manteve em uma sala, pronto para fazer... as coisas dele, caso fosse necessário.

No mesmo instante, quero perguntar o que são as “coisas” de Fredrik, mas deixo a pergunta de lado por enquanto e digo:

— Se Vonnegut quisesse matar você, a esposa dele seria a sua moeda de troca.

De costas para mim, ele assente.

— Samantha estava sendo vigiada pela Ordem. Provavelmente há muito tempo.

— Eles desconfiavam da traição dela? Por que não a mataram, então, como fizeram com a mãe de Niklas, ou como queriam fazer com Niklas?

Victor se vira para me encarar de novo.

— Eles não desconfiavam dela, Sarai, ela era... — Victor respira fundo e aperta os lábios.

— Ela era o quê? — Chego mais perto dele. Não gosto do rumo que a conversa está tomando.

— Ela era mais leal à Ordem do que eu jamais poderia ter imaginado — conta ele, e isso fere meu coração. — Sentado naquela sala com Vonnegut, quanto mais ele falava, mais eu começava a entender que Samantha me traiu da mesma forma que Niklas. Vonnegut me contou coisas que ele não tinha como saber. Ele sabia que eu ajudei você. Em algum momento antes de morrer, naquela noite, Samantha conseguiu passar informações a Vonnegut sobre nossa estadia por lá.

— Não acredito nisso. — Golpeio o ar com a mão diante de mim. — Samantha morreu tentando me proteger. Já falamos sobre isso. Não acredito em você, Victor. Ela era uma boa pessoa.

— Ela era boa manipuladora, Sarai, nada mais do que isso.

Balanço a cabeça, ainda sem acreditar.

— Foi Niklas quem contou a Vonnegut que você me ajudou. Só pode ter sido. Niklas sabia até que você tinha me levado para a casa de Samantha.

— Sim, mas Niklas não sabia que eu fiz Samantha provar nossa comida antes de a gente comer, naquela noite. Assim que Vonnegut mencionou quanto eu ainda desconfiava dela depois de tantos anos, eu soube que ela havia me traído.

— Mas isso não faz nenhum sentido. — Começo a andar pela sala de novo, de braços cruzados e com uma das mãos apoiada no rosto. — Por que ela me protegeria de Javier?

— Porque ela não era leal a Javier.

Jogo as mãos para o ar, atônita com aquela revelação.

— Não dá para confiar em ninguém — digo, me jogando no sofá e olhando para o nada.

— Não, não dá — concorda Victor, e eu olho para cima, detectando um significado oculto por trás de suas palavras. — Agora talvez você entenda por que eu não me envolvo com ninguém. Não é só o trabalho, Sarai. As pessoas em geral não são confiáveis, especialmente na minha profissão, na qual a confiança é tão rara que não vale a pena perder tempo e esforço procurando por ela.

— Mas você parece confiar em Fredrik — observo, olhando para Victor do sofá. — Por que me trouxe logo aqui? Não aprendeu a lição com Samantha?

Sua expressão fica um pouco mais sombria, ressentida pela minha acusação.

— Eu nunca disse que confiava em Fredrik. Mas no momento ele é meu único contato dentro da Ordem e, nos últimos sete meses, não fez nada que não o tornasse digno de confiança. Ao contrário, fez tudo para provar sua lealdade a mim.

— Mas isso não significa que seja verdade.

— Não, você tem razão, mas logo vou saber com cem por cento de certeza se Fredrik é confiável ou não.

— Como?

— Você vai descobrir comigo.

— Por que se dar a esse trabalho? Você disse que a confiança é tão rara que não vale o esforço.

— Você faz muitas perguntas.

— Pois é, acho que faço. E você não responde o suficiente.

— Não, acho que não. — Victor abre um sorrisinho, e meu coração se derrete instantaneamente em uma poça de mingau.

Desvio os olhos dos dele e disfarço meus sentimentos.

— Não estou segura aqui — digo, encarando-o novamente.

— Você não está segura em lugar nenhum — corrige Victor. — Mas, enquanto estiver comigo, nada vai acontecer com você.

— Quem está falando merda agora?

Ele levanta uma sobrancelha.

— Você não é meu herói, lembra? — digo para refrescar a memória de Victor. — Não é minha alma gêmea que jamais deixará que nada de ruim aconteça comigo. Devo confiar nos meus instintos primeiro e em você, se eu decidir confiar, por último. Você me disse isso certa vez.

— E continua sendo verdade.

— Então como pode dizer que nada vai me acontecer se eu estiver com você?

A expressão de Victor fica vazia, como se pela primeira vez na vida alguém o tivesse deixado sem palavras. Olho para seu rosto silencioso e sem emoção, e apenas seus olhos revelam um traço de torpor. Tenho a sensação de que ele falou sem pensar, que manifestou algo que sente de verdade, mas que jamais quis que eu soubesse: Victor quer ser meu herói, vai fazer qualquer coisa, tudo o que puder para me manter a salvo. Quer que eu confie totalmente nele.

E confio.

Ele volta para perto de mim e se senta ao meu lado. O cheiro de seu perfume é fraco, como se ele fizesse questão de usar o mínimo possível. Estou tonta de desejo. Ansiosa para sentir novamente seu toque, saborear seus lábios quentes, deixar que ele me tome como fez algumas noites antes que nos víssemos pela última vez. Não tenho pensado em nada além de Victor nos últimos oito meses da minha vida. Enquanto durmo. Como. Vejo TV. Transo. Me masturbo. Tomo banho. Cada coisa que fiz desde que ele me deixou naquele hospital com Dina fiz pensando nele.

— Você acha que Fredrik vai contar a Niklas onde a gente está? — Mudo de assunto por medo de deixar transparecer muita coisa cedo demais.

— Acho que se ele fosse fazer isso teria contado a Niklas o pouco que sabia sobre o seu paradeiro há muito tempo, e Niklas já teria tentado matar você — responde Victor.

— Tem alguma coisa... estranha em Fredrik. Você não sente?

Victor passa a mão pelo meu cabelo úmido. O gesto faz meu coração disparar.

— Você tem grande sensibilidade para as pessoas, Sarai — comenta ele, levando a mão ao meu queixo. — Tem razão sobre Fredrik. — Ele passa o polegar pelo meu lábio inferior. Um calafrio percorre o meio das minhas pernas. — Ele é... como dizer?... desequilibrado, de certa forma.

Minha respiração acelera, e sinto meus cílios tocando meu rosto quando os lábios de Victor cobrem os meus.

— Desequilibrado de que forma? — pergunto, ofegante, quando ele se afasta.

De olhos fechados, percebo que ele está observando a curva do meu rosto e meus lábios e sinto a respiração que sai suavemente de suas narinas.

Cada pelinho minúsculo se eriça quando a outra mão de Victor sobe e encontra minha cintura nua por baixo da camiseta. Seus dedos longos dançam sobre a pele do meu quadril e param por ali.

Abro os olhos e vejo os dele me encarando.

— Algum problema? — pergunta ele, e sua boca roça a minha de novo.

— Não, eu... eu só não esperava isso.

— Esperava o quê?

Sinto seus dedos levantando o elástico da minha calcinha. Minha cabeça está girando, sinto meu estômago se transformar em um emaranhado de músculos, trêmulo e nervoso.

— Isso — respondo, piscando. — Você está diferente — acrescento, baixinho.

— Culpa sua — diz Victor, e então seus lábios devoram os meus.

Ele me deita no sofá e se encaixa entre as minhas pernas.

Seu celular vibra na mesinha de centro, e percebo quanto sou humana quando xingo Fredrik por estragar aquele momento, mesmo que seja para me avisar de que Dina está a salvo.


CONTINUA

CAPÍTULO UM

Sarai

Já faz oito meses que fugi da fortaleza no México onde fui mantida contra minha vontade por nove anos. Estou livre. Levo uma vida “normal”, fazendo coisas normais com gente normal. Não fui mais atacada, ameaçada nem seguida por ninguém que ainda queira me matar. Tenho uma “melhor amiga”, Dahlia. Tenho a coisa mais parecida com uma mãe que já conheci, Dina Gregory. O que mais eu poderia querer? Parece egoísmo desejar qualquer outra coisa. Mas, apesar de tudo o que tenho, algo não mudou: continuo vivendo uma mentira.

Deixei amigos na Califórnia: Charlie, Lea, Alex e... Bri... Não, espera, quero dizer Brandi. Meu ex-namorado, Matt, era abusivo, por isso voltei para o Arizona. Ele me perseguiu por muito tempo depois que terminamos. Consegui uma ordem judicial para mantê-lo afastado, mas não funcionou. Ele atirou em mim há oito meses, mas não posso provar porque não cheguei a vê-lo. E tenho muito medo de denunciá-lo à polícia.

Claro que tudo isso é mentira.

São os pedaços da minha vida que acobertam o que realmente aconteceu comigo. Os pretextos para eu ter desaparecido aos 14 anos e ter ido parar em um hospital da Califórnia com um ferimento a bala. Jamais vou poder contar a Dina, Dahlia ou ao meu namorado, Eric, o que aconteceu de verdade: que fui levada para o México pela péssima versão de mãe que eu tinha, para morar com um chefão do tráfico. Jamais vou poder contar que fugi daquele lugar depois de nove anos e matei o homem que me manteve prisioneira por toda a minha adolescência. Quer dizer, claro que eu poderia contar a alguém, mas, se fizesse isso, só estaria pondo Victor em perigo.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/2_O_RETORNO_DE_IZABEL.jpg

 

Victor.

Não, nunca vou poder contar que um assassino me ajudou a fugir, ou que testemunhei Victor matando várias pessoas, inclusive a esposa de um empresário famoso e importante de Los Angeles. Nunca vou poder contar que, depois de tudo pelo que passei, depois de tudo o que vi, o que mais quero é fazer as malas e voltar para aquela vida perigosa. A vida com Victor.

Até hoje, falar o nome dele me acalma. Às vezes, quando estou acordada na cama à noite, murmuro seu nome só para ouvi-lo, porque preciso. Preciso dele. Não consigo tirá-lo da cabeça. Já tentei. Porra, e como tentei. Mas, não importa o que eu faça, continuo vivendo cada dia da minha vida pensando nele. Se está me vigiando. Se pensa em mim tanto quanto penso nele. Se ainda está vivo.

Pressiono o travesseiro contra a cabeça e fecho os olhos, imaginando Victor. Às vezes, é só assim que consigo gozar.

Eric aperta minhas coxas com as mãos e me imobiliza na cama, com o rosto enfiado no meio das minhas pernas.

Arqueio o quadril contra ele, roçando de leve contra sua língua frenética, até que ele faça meu corpo todo enrijecer e minhas coxas tremerem ao redor da sua cabeça.

— Meu Deus... — Estremeço enquanto gozo, então deixo os braços caírem entre as pernas, afundando os dedos no cabelo preto de Eric. — Caramba...

Sinto os lábios de Eric tocando minha barriga um pouco acima da pélvis.

Olho para o teto como sempre faço depois de um orgasmo, pois a culpa que sinto me deixa com vergonha de olhar para Eric. Ele é um cara superlegal. Meu namorado sexy de 27 anos, cabelo preto e olhos azuis, gentil, encantador, engraçado e perfeito. Perfeito para mim se eu nunca tivesse conhecido Victor Faust.

Estou arruinada pelo resto da vida.

Enxugo as gotas de suor da testa e Eric sobe pela cama, deitando-se ao meu lado.

— Você sempre faz isso — diz ele, brincando, enquanto cutuca minhas costelas com os nós dos dedos.

Como sinto muitas cócegas, eu me encolho e me viro para encará-lo. Sorrio com ternura e passo um dedo por seu cabelo.

— O que eu sempre faço?

— Esse negócio de ficar em silêncio. — Eric segura meu queixo entre o polegar e o indicador. — Eu faço você gozar e você fica bem quieta durante um tempão.

Eu sei e sinto muito, mas preciso apagar o rosto de Victor da minha cabeça antes de conseguir olhar você nos olhos. Sou uma pessoa horrível.

Eric me dá um beijo na testa.

— Isso se chama recuperação — brinco, beijando os dedos dele. — É totalmente inofensivo. Mas você deveria interpretar como um bom sinal. Você sabe o que está fazendo — digo, retribuindo o cutucão nas costelas.

E ele sabe mesmo o que está fazendo. Eric é ótimo na cama. Mas ainda sou emocionalmente muito ligada... viciada... em Victor, e tenho a sensação de que sempre serei.

Só consegui seguir a vida e me abrir a outros relacionamentos cinco meses depois que Victor foi embora. Conheci Eric no trabalho, na loja de conveniência. Ele comprou um saco de biscoitos e um energético. Depois disso, ele aparecia na loja duas, às vezes três vezes por semana. Eu não queria nada com ele. Queria Victor. Mas comecei a perder a esperança de que Victor um dia fosse voltar para mim.

Eric tenta passar um braço ao redor do meu corpo, mas me levanto casualmente e visto a calcinha. Ele não desconfia de nada, o que é bom. Não sinto vontade de ficar abraçadinha, mas a última coisa que quero é magoá-lo. Ele ergue os braços e entrelaça os dedos atrás da cabeça. Olha para mim, do outro lado do quarto, com um sorriso sedutor. Sempre faz isso quando não estou completamente vestida.

— Sarai.

— Oi. — Visto a camiseta e ajeito o rabo de cavalo.

— Eu sei que está em cima da hora — diz Eric —, mas queria ir com você e Dahlia para a Califórnia amanhã.

Merda.

— Mas você não disse que não ia conseguir folga no trabalho? — pergunto, vestindo o short e calçando os chinelos.

— Quando você perguntou se eu queria ir, não ia dar mesmo. Mas contrataram um funcionário novo, e meu chefe decidiu me dar folga.

Isso é uma péssima notícia. Não porque eu não o queira por perto — gosto de Eric, apesar da minha incapacidade de esquecer Victor Faust —, mas minha viagem de “férias” à Califórnia amanhã não é para fazer turismo, curtir a noite nem fazer compras na Rodeo Drive.

Estou indo até lá para matar um homem. Ou melhor, tentar matar um homem.

Já é ruim que Dahlia vá também, e já vai ser difícil guardar segredo de uma pessoa. Imagine duas.

— Você... não parece animada — comenta Eric, seu sorriso morrendo aos poucos.

Abro um sorriso largo e balanço a cabeça, voltando para perto dele e me sentando na beira da cama.

— Não, não, eu estou animada. É que você me pegou de surpresa. A gente vai sair às seis da manhã. É daqui a menos de oito horas. Você já fez as malas?

Eric dá uma risada e se estica na minha cama, me puxando para si. Eu me sento perto de sua cintura, apoiando um braço no colchão do outro lado dele, com os pés para fora da cama.

— Bom, eu só fiquei sabendo hoje à tarde, antes de sair do trabalho — explica ele. — Eu sei, está em cima da hora, mas só preciso enfiar umas coisas na mala e estou pronto.

Ele estende a mão e afasta do meu rosto os fios de cabelo que escaparam do rabo de cavalo.

— Ótimo! — minto, com um sorriso igualmente falso. — Então acho que está combinado.

Dina acorda antes de mim, às quatro da manhã. O cheiro de bacon é o que me desperta. Levanto da cama e entro debaixo do chuveiro antes de me sentar à mesa da cozinha. Um prato vazio já está à minha espera.

— Gostaria que você tivesse escolhido algum outro lugar para passar sua folga, Sarai — afirma Dina.

Ela se senta do outro lado da mesa e começa a encher seu prato. Pego alguns pedaços de bacon do monte e ponho no meu.

— Eu sei — digo —, mas, como falei para você, não vou deixar que meu ex me impeça de ver meus amigos.

Ela balança a cabeça cada vez mais grisalha e suspira.

Passei do limite em algum momento com meu amontoado de mentiras. Quando Victor levou Dina para o hospital em Los Angeles, depois que o irmão dele, Niklas, atirou em mim, ela não fazia ideia do que tinha acontecido. Só sabia que eu tinha levado um tiro. Demorei alguns meses até me sentir segura o suficiente para falar com ela sobre isso. Quer dizer, depois de bolar a história que eu ia contar. Foi aí que inventei o lance do ex-namorado violento. Eu deveria ter dito que fui assaltada. Por um desconhecido. A mentira seria muito mais fácil de manter. Agora que ela sabe que vou voltar para Los Angeles, está morrendo de preocupação, e já faz uns dois meses. Eu nem deveria ter contado que ia voltar lá.

Termino de comer o bacon e um pouco de ovos mexidos, junto com um copo de leite.

Dahlia e Eric chegam juntos assim que termino de escovar os dentes.

— Vamos logo, a gente precisa pegar a estrada — chama Dahlia, me apressando da porta. Seu cabelo castanho-claro está preso no alto da cabeça em um coque desalinhado de quem acabou de acordar.

Eu me despeço de Dina com um abraço.

— Eu vou ficar bem — digo a ela. — Prometo. Não vou nem chegar perto de onde ele mora.

Desta vez, chego até a imaginar um rosto masculino ao falar de alguém que não existe. Acho que já interpreto esse papel há tanto tempo que “Matt” e todos esses meus “amigos” de Los Angeles, de quem falo para todo mundo como se fossem reais, se tornaram reais no meu subconsciente.

Dina força um sorriso em seu rosto preocupado, e suas mãos soltam meus cotovelos.

— Você liga assim que chegar?

— Assim que eu entrar no quarto do hotel, ligo — respondo, assentindo.

Ela sorri e eu a abraço mais uma vez, antes de segui-los até o carro de Dahlia, que está esperando. Eric guarda minha mala no bagageiro, junto com as deles, e se senta no banco de trás.

— Hollywood, aí vamos nós! — exclama Dahlia.

Finjo metade da empolgação dela. Ainda bem que está muito cedo, senão Dahlia poderia intuir o verdadeiro motivo da minha falta de entusiasmo. Estico os braços para trás e bocejo, apoiando a cabeça no banco do carro. Sinto a mão de Eric no meu pescoço quando ele começa a massagear meus músculos.

— Não sei por que você quer ir a Los Angeles de carro — diz Dahlia. — Se a gente fosse de avião, não ia precisar acordar tão cedo. E você não estaria tão cansada e rabugenta.

Minha cabeça cai para a esquerda.

— Não estou rabugenta. Ainda mal falei com você.

Ela dá um sorrisinho.

— Exatamente. Sarai sem falar significa Sarai rabugenta.

— E se recuperando — acrescenta Eric.

Meu rosto fica vermelho e eu estico a mão atrás da cabeça, dando um tapinha de brincadeira na dele, que está fazendo maravilhas no meu pescoço. Fecho os olhos e vejo Victor.

Não de propósito.

Chegamos a Los Angeles depois de quatro horas na estrada. Eu não podia ir de avião porque não conseguiria levar minhas armas. É claro que Dahlia não pode saber disso. Ela acha apenas que quero apreciar a paisagem.

Tenho sete dias para fazer o que vim fazer. Isto é, se eu conseguir. Pensei no meu plano durante meses, em como vou fazer isso. Sei que é impossível entrar na mansão Hamburg. Para isso, eu precisaria ter um convite e socializar em público com o próprio Arthur Hamburg e seus convidados. Ele viu meu rosto. Bem, tecnicamente, viu mais do que meu rosto. Mas sinto que os acontecimentos daquela noite, quando Victor e eu enganamos Hamburg para que ele nos convidasse para ir ao seu quarto e conseguíssemos matar sua esposa, são algo que ele jamais vai esquecer, nem os mínimos detalhes.

Se tudo der certo, uma peruca loura platinada de cabelo curto e maquiagem escura e pesada vão esconder aquela identidade de cabelo longo e castanho que Hamburg reconheceria assim que eu aparecesse.


CAPÍTULO DOIS

Sarai

Passo o dia todo com Eric e Dahlia, fingindo me divertir para passar o tempo. Saímos para almoçar e para fazer um tour por Hollywood com um guia e visitar um museu antes de voltarmos para o hotel, exaustos. Quer dizer, finjo estar exausta o suficiente para querer dar o dia por encerrado. Na verdade, o que preciso é me preparar para ir ao restaurante de Hamburg ainda hoje.

Dahlia já acha que tem algo errado comigo.

— Você está ficando doente? — pergunta ela, estendendo a mão entre nossas espreguiçadeiras à beira da piscina e sentindo a temperatura da minha testa.

— Estou ótima — respondo. — Só cansada porque levantei muito cedo. E quando foi a última vez que andei tanto assim em um dia só?

Dahlia volta a se recostar em sua espreguiçadeira e ajeita os óculos de sol grandes e redondos no rosto.

— Bom, espero que não esteja cansada amanhã — diz Eric, do outro lado. — Tem tantas coisas que eu quero fazer. Não venho para Los Angeles desde que meus pais se divorciaram.

— Pois é. É a minha primeira vez aqui em dois anos — afirma Dahlia.

Um adolescente pula na piscina e a água respinga em nós. Ergo as costas da espreguiçadeira e agito a revista que estava lendo para tirar as gotas. Ponho os óculos escuros no alto da cabeça. Jogo as pernas para o lado e fico de pé.

— Acho que vou voltar para o quarto e tirar uma soneca — anuncio, pegando minha bolsa do chão.

Eric se ergue também e tira os óculos escuros.

— Se quiser, vou com você — oferece ele.

Agito a mão para ele, pedindo que não se levante.

— Não, fica aí e faz companhia para a Dahlia — sugiro, ajeitando a bolsa no ombro. Abaixo os óculos escuros de novo para que ele não perceba minha mentira.

— Tem certeza de que você está bem? — pergunta Dahlia. — Sarai, você está de férias, lembra? Veio para cá se divertir, não para cochilar.

— Acho que vou estar cem por cento amanhã. Só preciso de um banho quente e demorado e de uma boa noite de sono.

— Ok, vou acreditar — diz Dahlia. — Mas nem vem com doença para o meu lado. — Ela aponta o dedo para mim, com ar severo.

Eric fecha os dedos em torno do meu pulso e me puxa para perto.

— Tem certeza de que não quer que eu vá? — Ele me beija e eu correspondo antes de me levantar de vez.

— Tenho — respondo, baixinho, e saio na direção do elevador.

Assim que entro no quarto, tranco a porta com a corrente para que Eric e Dahlia não entrem de surpresa, jogo a bolsa no chão e abro meu laptop, digitando a senha. Enquanto o laptop inicia, olho pela janela e vejo meus amigos, figuras pequenas daquela distância, ainda à beira da piscina. Eu me sento diante da tela e, provavelmente pela centésima vez, olho cada página do site do restaurante de Hamburg, verificando de novo o horário de funcionamento e passando os olhos pelas fotos profissionais do lugar, dentro e fora. Na verdade, nada disso me ajuda muito com o que pretendo fazer, mas olho tudo de novo todo dia, de qualquer maneira.

Derrotada, bato a palma da mão com força no tampo da mesa.

— Droga! — exclamo, desabando na poltrona enquanto passo as mãos pelo cabelo.

Ainda não sei como vou conseguir ficar a sós com Hamburg sem ser vista. Sei que estou dando um passo maior do que a perna. Sei disso desde que tive essa ideia maluca, mas também sei que, se ficar apenas pensando a respeito, nunca vou passar dessa fase.

Vim para cá com um plano: entrar disfarçada no restaurante e agir como qualquer outro cliente. Sondar o lugar por uma noite. Saber onde ficam as saídas. As entradas para outras partes do prédio. Os banheiros. Minha prioridade número um, contudo, é encontrar a sala de onde Hamburg observa do alto seus clientes e ouve a conversa deles pelo minúsculo microfone escondido no arranjo de cada mesa. Então pretendo me enfiar na sala e cortar a garganta daquele porco.

Contudo, agora que estou aqui, a menos de seis quadras do restaurante, e agora que o tempo está passando tão depressa, estou menos confiante. Isso não é um filme. Sou uma idiota por achar que posso adentrar um lugar desses sem ser vista, tirar a vida de um homem sem chamar atenção e fugir sem ser capturada.

Apenas Victor conseguiria fazer algo assim.

Bato no tampo da mesa de novo, mais de leve desta vez, fecho o laptop e me levanto. Ando de um lado para outro no carpete vermelho e verde. E bem quando resolvo seguir pelo corredor para o quarto separado que reservei sem Dahlia e Eric saberem, a porta se abre um pouco, mas é travada pela corrente.

— Sarai? — chama Dahlia do outro lado. — Vai deixar a gente entrar?

Suspiro fundo e destranco a porta.

— Por que a corrente? — pergunta Eric, entrando atrás de Dahlia.

— Força do hábito.

Eu me jogo na ponta da cama king-size.

Os dois deixam suas coisas no chão. Dahlia se senta à mesa, ao lado da janela, e Eric se deita atravessado na cama ao meu lado, cruzando as pernas na altura dos calcanhares.

— Pensei que você ia tirar uma soneca — diz Dahlia.

Ela passa os dedos com cuidado pelo cabelo úmido, fazendo caretas quando se depara com alguma mecha mais embaraçada.

— Dahlia — digo, olhando para os dois. — Eu subi agora há pouco. Pensei que vocês iam ficar na piscina mais um tempo.

Espero ter conseguido disfarçar o aborrecimento na minha voz por eles terem vindo me encontrar tão cedo. Não consigo evitar: estou estressada demais, além de preocupada com a simples presença dos dois aqui comigo. Não quero que eles se machuquem nem que se envolvam de forma alguma com meu motivo para estar aqui.

— A gente pode sair e deixar você sozinha, se quiser — sugere Eric, baixinho, atrás de mim.

Eu me arrependo na mesma hora do que disse, porque é óbvio que não disfarcei o aborrecimento tão bem quanto esperava.

Inclino a cabeça para trás e suspiro, esticando o braço para tocar o tornozelo dele.

— Desculpa — digo, sorrindo para Dahlia. — Sabe, eu... — Então, de repente, uma desculpa perfeitamente plausível para o modo como tenho agido surge na minha cabeça, e a torneira das mentiras se abre. — Eu só fico meio nervosa por estar de volta a Los Angeles.

Dahlia faz cara de “ah, entendi”, empurra os pés de Eric para o lado e se senta perto de mim. Ela passa o braço por cima dos meus ombros e segura meu antebraço.

— Imaginei que o problema fosse esse.

Percebo que ela olha de relance para Eric e tenho a impressão de que foi sobre isso que os dois falaram enquanto ficaram na piscina, depois que fui embora.

Aposto que também foi por isso que decidiram subir tão cedo para me ver.

— A gente queria ver como você estava — acrescenta Eric atrás de mim, confirmando minha suspeita.

Sinto a cama se mexer quando ele se senta.

Eu me levanto antes que ele consiga me abraçar. É nesse exato momento que me dou conta de como tenho feito isso com frequência no último mês. Não sei por quanto tempo mais vou conseguir enganá-lo. Sei que deveria simplesmente contar o que sinto, que não gosto tanto de Eric quanto ele gosta de mim. Mas não consigo dizer a verdade. Eu precisaria inventar mais uma mentira, e estou tão atolada em mentiras que me sinto afogada nelas.

Ao mesmo tempo, deixei nossa relação durar tanto porque eu queria de verdade sentir por ele algo tão profundo quanto o que ele parece sentir por mim. Queria seguir em frente, esquecer Victor e ser feliz com a vida que ele me deixou.

Mas não consigo. Não consigo mesmo...

— Ele nem vai saber que você está aqui — diz Eric sobre “Matt”. — Além disso, mesmo que ele descobrisse, eu ia encher o cara de porrada assim que o visse.

Esboço um sorriso para Eric.

— Eu sei que você faria isso — digo, mas me sinto ainda pior, porque os únicos dois amigos que tenho no mundo não fazem nem ideia de quem sou.

Cruzo os braços, vou até a janela e olho para fora.

— Sarai — chama Dahlia. — Não queria dizer isso, mas, se você está tão preocupada com a possibilidade de Matt descobrir que você está em Los Angeles, acho que não é boa ideia visitar seus amigos aqui.

— Eu sei, você tem razão. Sei que eles não contariam para Matt, mas acho que é melhor eu ficar só com vocês dois enquanto estivermos aqui.

Eu me viro para encará-los.

— É um bom plano — diz Eric, com um sorriso radiante.

É um bom plano, com certeza, porque agora não preciso mais inventar outra desculpa para não apresentar os dois aos meus amigos que não existem.

Dahlia se aproxima de mim.

— A gente devia ter ido para a Flórida ou algum lugar assim, hein?

Olho pela janela de novo.

— Não — respondo. — Adoro esta cidade. E sei que vocês queriam muito vir para cá. — Dou um sorriso rápido. — Sugiro que a gente curta ao máximo esta semana.

Ela me empurra com o ombro de brincadeira.

— Essa é a Sarai que eu conheço — diz Dahlia, sorrindo.

É, só que não sou essa pessoa...

Ela vai até Eric e o puxa pelo braço, levantando-o da cama.

— Vamos sair daqui e deixar a mocinha descansar.

Eric se levanta e se aproxima de mim. Então pega meus braços e me vira para encará-lo. Com aqueles olhos azul-bebê, ele faz a melhor expressão amuada que consegue.

— Se precisar de mim para qualquer coisa, pode me chamar que eu venho.

Concordo com a cabeça e lhe ofereço um sorriso sincero. Ele merece, por ser tão legal comigo.

— Pode deixar.

Então eu os empurro porta afora com as duas mãos.

— Eu diria para vocês não se divertirem muito sem mim, mas isso seria pedir demais.

Dahlia ri baixinho ao sair para o corredor.

— Não, não é pedir muito. — Ela levanta dois dedos. — Palavra de escoteiro.

— Acho que não é assim que se faz, Dahl — diz Eric.

Ela faz um gesto para dispensar as palavras dele.

— Trate de dormir — sugere Dahlia. — Porque amanhã você vai precisar estar novinha em folha.

— De acordo — digo, assentindo.

— Tchau, amor — diz Eric antes de eu fechar a porta.

Fico com as costas apoiadas na porta e solto um suspiro longo e profundo.

Fingir é difícil demais. Bem mais difícil do que simplesmente ser eu mesma, por mais anormal e imprudente que eu seja.

— Eu sei o que preciso fazer — digo em voz alta.

Falar sozinha é minha nova mania, porque me ajuda a visualizar e entender melhor as coisas.

Volto para a janela e olho a cidade de Los Angeles, com os braços cruzados.

— Preciso de um disfarce, mas não para me esconder de Hamburg. Só das câmeras e de qualquer outra pessoa. Eu quero que Hamburg me veja. Só assim vou conseguir entrar.


CAPÍTULO TRÊS

Sarai

Dahlia e Eric só voltam para o quarto algumas horas mais tarde, depois de escurecer. Eu já tinha tomado banho, vestido short e camiseta e deixado a luz apagada para parecer que estava dormindo. Assim que ouvi o cartão passando pela porta, pulei na cama e me espalhei pelo colchão, como sempre faço quando durmo de verdade. Eric entrou na ponta dos pés, tentando não “me acordar”, mas me virei, soltei um resmungo e abri os olhos para mostrar que acordei. Ele pediu desculpas e perguntou se eu queria ir com ele e Dahlia a uma boate ali perto, insistindo que, se eu não fosse, ele também não iria. Mas logo rejeitei essa ideia. Percebi que ele queria muito ir e não posso culpá-lo: se eu estivesse no lugar dele, não iria querer ficar em um quarto escuro de hotel às oito da noite de uma sexta-feira, em uma das cidades mais animadas dos Estados Unidos.

Eric e Dahlia saírem era exatamente do que eu precisava. Passei aquelas duas horas inteiras tentando inventar uma desculpa para explicar a eles por que eu ia sair, aonde iria e por que eles não poderiam ir junto.

Eles resolveram isso para mim.

Minutos após Eric sair do quarto, espero Dahlia — em seu próprio quarto, ao lado do nosso — tirar o biquíni e se vestir. Pelo olho mágico da minha porta, eu os vejo indo embora pelo corredor. Conto até cem enquanto ando de um lado para outro sem parar. Então pego minha bolsa e vou até a porta. Ando depressa pelo corredor na direção oposta e chego ao quarto secreto, do outro lado do prédio.

Com certa paranoia de ser flagrada, vasculho minha bolsa e encontro tudo, menos a chave do quarto. Enfim consigo senti-la entre os dedos e me apresso para entrar, travando a porta com a corrente. Abro a mala ao pé da cama e tiro minha peruca curta platinada, passando os dedos para ajeitar as mechas desalinhadas, e então a deixo sobre o abajur ao lado para que não perca a forma.

Visto um Dolce & Gabbana curtinho e me maquio com cores escuras e pesadas, o que, depois de passar um tempão praticando em casa, faço bem. Então calço as sandálias de salto alto. Andar de salto é outra coisa que passei muito tempo tentando aprender. Meu alter ego, Izabel Seyfried, saberia andar de salto e o faria bem. Por isso, eu precisava acompanhar.

Em seguida, molho o cabelo e o divido em duas partes atrás. Enrolo cada metade e cruzo uma sobre a outra na nuca. Vários grampos depois, meu longo cabelo castanho está bem preso no couro cabeludo. Visto a touca da peruca e depois a própria peruca, ajustando-a por muito tempo até deixar tudo perfeito.

Por fim, prendo uma bainha de punhal em torno da coxa e a cubro com o tecido do vestido.

Fico de pé diante do espelho de corpo inteiro e me avalio de todos os ângulos possíveis. Estar loura é estranho. Satisfeita, pego a bolsinha preta e a enfio debaixo do braço, com a pequena pistola formando certo volume nela. Estico o braço para girar a maçaneta, mas deixo minha mão cair junto ao corpo.

“Que droga eu estou fazendo?”

O que precisa ser feito.

“E por que eu estou fazendo isso?”

Porque preciso.

Não consigo tirar da cabeça as coisas que aquele homem confessou, as pessoas que matou por causa de um fetiche sexual doentio. Todas as noites desde que Victor me deixou, quando fecho os olhos, vejo o rosto de Hamburg e aquele sorriso de gelar o sangue que ele abriu quando me curvei sobre a mesa, exposta na frente dele. Vejo o rosto de sua esposa, esquelético e combalido, seus olhos fundos turvados pela resignação. Ainda sinto até o fedor da urina que secou em suas roupas e no catre infestado onde ela dormia, naquele quarto escondido.

Meu peito se enche de ar e eu o prendo por vários segundos, antes de soltar um longo suspiro.

Não posso esquecer. A necessidade de matá-lo é como uma coceira no meio das costas. Não posso alcançar naturalmente, mas vou me curvar e torcer os braços até doerem para coçar.

Não posso esquecer...

E talvez... só talvez também acabe chamando a atenção de um certo assassino que não consigo me obrigar a esquecer.

Assim que passo pela porta, deixo Sarai para trás e me torno Izabel por uma noite.

Por não ter pensado de antemão na importância de ao menos alugar um carro chique, salto do táxi a duas quadras do restaurante e ando o resto do caminho. Izabel jamais seria vista andando de táxi.

— Mesa para um? — pergunta o recepcionista assim que entro no restaurante.

Inclino a cabeça e olho para ele com um ar irritado.

— Algum problema? Não posso fazer uma refeição sozinha? Ou você está dando em cima de mim? — Abro um sorrisinho e inclino a cabeça para o outro lado. Ele está ficando nervoso. — Você gostaria de jantar comigo... — olho para o nome bordado no paletó — ... Jeffrey? — Chego mais perto. Ele dá um passo constrangido para trás.

— Hã... — Ele hesita. — Peço desculpas, senhora...

Recuo, trincando os dentes.

— Nunca me chame de senhora — digo com rispidez. — Me leve até uma mesa. Para um.

Ele assente e pede que eu o siga. Quando chego à minha mesinha redonda com duas cadeiras, no meio do restaurante, me sento e deixo a bolsa ao lado. Um garçom se aproxima quando o recepcionista se afasta e me apresenta a carta de vinhos. Eu a rejeito com um movimento dos dedos.

— Quero apenas água com uma rodela de limão.

— Pois não, senhora — diz ele, mas deixo passar.

Enquanto o garçom se afasta, começo a examinar o lugar. Há uma placa indicando a saída à minha esquerda, bem longe, perto do corredor. Há outra à minha direita, próxima à escada que leva para o segundo piso. O restaurante está praticamente igual à primeira vez que vim: escuro, não muito cheio e bastante silencioso, embora desta vez eu ouça jazz baixinho vindo de algum lugar. Ao observar o recinto, paro de repente ao ver a mesa à qual me sentei com Victor quando vim com ele, meses atrás.

Eu me perco na memória, vendo tudo exatamente como aconteceu. Quando olho para as duas pessoas sentadas no outro lado do salão, só consigo me ver com Victor:

— Venha cá — diz ele, em um tom de voz mais delicado.

Deslizo os poucos centímetros que nos separam e me sento encostada a ele.

Seus dedos dançam pela minha nuca quando ele puxa minha cabeça para perto de si. Meu coração bate descompassado quando ele roça os lábios na lateral do meu rosto. De repente, sinto sua outra mão entrando pelo meio das minhas coxas e subindo por baixo do vestido. Minha respiração para. Devo abrir as pernas? Devo ficar imóvel e travá-las? Sei o que quero fazer, mas não sei o que devo fazer, e minha mente está a ponto de desistir.

— Tenho uma surpresa para você esta noite — murmura ele no meu ouvido.

Sua mão se aproxima mais do calor no meio das minhas pernas.

Gemo baixinho, tentando não deixar que ele perceba, embora tenha certeza absoluta de que percebeu.

— Que tipo de surpresa? — pergunto, com a cabeça inclinada para trás, apoiada em sua mão.

— Vai querer algo mais? — Ouço uma voz, e sou arrancada do meu devaneio.

O garçom está segurando o cardápio. Minha água com uma rodela de limão na borda do copo já está diante de mim.

Um pouco confusa de início, apenas assinto, mas faço que não em seguida.

— Ainda não sei — respondo, enfim. — Deixe o cardápio. Talvez eu peça mais tarde.

— Pois não — diz o garçom.

Ele deixa o cardápio na mesa e vai embora.

Olho para a varanda e para as mesas encostadas no balaústre requintado. Onde Hamburg pode estar? Sei que ele está no andar de cima porque Victor disse que ele ficava por lá. Mas onde? Eu me pergunto se ele já me viu, e no mesmo instante meu estômago se embrulha de nervoso.

Não, não posso parecer nervosa.

Endireito as costas na cadeira e tomo um gole da água. Deixo o dedo mindinho levantado, o que me faz parecer muito mais rica, ou apenas mais esnobe. Fico observando os clientes indo e vindo, escuto sua conversa supérflua e me pego imaginando qual dos casais que estão ali poderia acabar na mansão de Hamburg no fim de semana, ganhando muito dinheiro para deixar que ele os veja foder.

Então olho para o arranjo de flores vermelhas em um pequeno vaso de vidro no centro da minha mesa. Pego o celular na bolsa, finjo digitar um número e o coloco perto do ouvido, para que ninguém ache que estou falando sozinha.

— Este recado é para Arthur Hamburg — digo em voz baixa, inclinando-me um pouco para a frente a fim de que o microfone escondido no vaso de flores capte minha voz. — Com certeza você se lembra de mim, não é? Izabel Seyfried. Há quanto tempo, não?

Com cuidado, olho para os lados, esperando ver um ou dois homens parrudos de terno se aproximando de mim com armas em punho.

— Não estou sozinha — continuo —, por isso nem pense em fazer alguma idiotice. A gente precisa conversar.

Olhando para a varanda acima de mim, tento descobrir onde ele pode estar, torcendo para que esteja ali. Alguns minutos tensos se passam, e, quando começo a pensar que a noite foi em vão e que eu estava mesmo falando sozinha, noto um movimento no piso superior, logo acima da saída à minha direita. Meu coração bate forte quando vejo a figura alta e escura sair das sombras e descer a escada.

Eu me lembro desse homem de ombros largos, cabelo grisalho e uma covinha no meio do queixo. É o gerente do restaurante, Willem Stephens, que já encontrei aqui uma vez.

Ele se aproxima da minha mesa sem expressar nenhuma emoção, com as mãos enormes cruzadas à frente, as costas retas, o queixo anguloso imóvel.

— Boa noite, srta. Seyfried. — A voz dele é profunda e sinistra. — Posso perguntar onde está seu dono?

Levanto os olhos para encará-lo, dou um sorrisinho, tomo um gole da minha água e devolvo o copo à mesa, sem pressa. Cada fibra do meu ser está gritando, dizendo como fui idiota em vir até aqui. Por mais que eu saiba que é verdade, não importa. Não é o medo que me faz tremer por dentro, é a adrenalina.

— Victor Faust não é meu dono — explico, com calma. — Mas ele está aqui. Em algum lugar. — Um sorriso tênue e dissimulado toca meus lábios.

Os olhos de Stephens percorrem o salão sutilmente e voltam a me encarar.

— Por que está aqui? — pergunta ele, perdendo um pouco o ar de gerente sofisticado.

— Tenho negócios a discutir com Arthur Hamburg — respondo, confiante. — É do maior interesse dele marcar um encontro privado comigo. Aqui. Hoje. De preferência agora.

Tomo outro gole.

Noto que o pomo de adão de Stephens se move quando ele engole em seco, bem como os contornos de seu queixo quando ele cerra os dentes. Ele olha para o lugar de onde veio, no andar de cima, e percebo um aparelhinho preto escondido em seu ouvido esquerdo. Parece que ele está ouvindo alguém falar. Eu chutaria que é Hamburg.

Ele me encara de novo, com os olhos escuros e cheios de ódio, mas mantém o semblante inexpressivo com a mesma perfeição de Victor.

Ele descruza os braços, estende a mão direita para mim e diz:

— Por aqui.

Ele só deixa os braços penderem, relaxados, quando me levanto. Sigo Stephens pelo restaurante e escada acima, para o piso da varanda.

Apenas duas coisas podem acontecer: ou esta será minha primeira noite como assassina ou a última da minha vida.


CAPÍTULO QUATRO

Sarai

— Se encostar em mim — digo para o guarda-costas de terno à porta da sala particular de Hamburg —, enfio suas bolas em um moedor de carne.

As narinas do segurança se dilatam e ele olha para Stephens.

— Você solicitou uma reunião com o sr. Hamburg — diz Stephens atrás de mim. — É claro que vamos revistá-la antes para verificar se está armada.

Droga!

Calma. Fique calma. Faça o que Izabel faria.

Respiro fundo, encarando-os com desprezo e um ar ameaçador. Então jogo minha bolsinha preta no segurança. Ele pega a bolsa quando ela bate em seu peito.

— Acho que está bem claro que eu não conseguiria esconder uma arma em um vestido como este, a menos que a enfiasse na boceta — digo, olhando para Stephens. — Minha arma está na bolsa. Mas nem pense em tocar...

— Deixem a moça entrar — ordena da porta uma voz familiar.

É Hamburg, ainda balofo e grotesco como antes, usando um terno imenso que parece em vias de estourar se ele respirar fundo demais.

Abro um leve sorriso para o segurança, que me encara com olhos assassinos. Conheço esse olhar, até demais. O homem tira a pistola e me devolve a bolsa.

— Sr. Hamburg — diz Stephens —, eu deveria ficar na sala com o senhor.

Hamburg balança a papada, rejeitando a sugestão.

— Não, vá cuidar do restaurante. Se essas pessoas tivessem vindo me matar, não seriam tão óbvias. Eu vou ficar bem.

— Pelo menos deixe Marion à porta — sugere Stephens, olhando para o guarda-costas.

— Sim — concorda Hamburg. — Você fica aqui. Não deixe ninguém interromper nossa... — diz ele, me olhando com frieza — reunião, a menos que eu peça. Se em algum momento você não ouvir minha voz por mais de um minuto, entre na sala. Como precaução, é claro.

Ele abre um sorrisinho para mim.

— É claro. — Imito Hamburg e sorrio também.

Ele dá um passo para o lado e me convida a entrar.

— Pensei que isso tivesse acabado, srta. Seyfried.

Hamburg fecha a porta.

— Sente-se — pede ele.

A sala é bem grande, com paredes lisas e arredondadas, sem cantos, de um lado a outro. Uma série de grandes quadros retratando o que parece ser cenas bíblicas rodeia uma grande lareira de pedra. Cada imagem é emoldurada em uma caixa de vidro, com luzes na parte de baixo. A sala é pouco iluminada, como o restaurante, e o cheiro é de incenso ou talvez de óleo aromático de almíscar e lavanda. Na parede à minha esquerda, há uma porta aberta que leva a outra sala, onde a luz cinza-azulada de várias telas de TV brilha nas paredes. Chego mais perto para me sentar na poltrona de couro com encosto alto diante da escrivaninha e espio dentro da saleta. É como eu imaginava. As telas mostram várias mesas do restaurante.

Hamburg fecha essa porta também.

— Não, está longe de acabar — respondo, enfim.

Cruzo as pernas e mantenho a postura ereta, o queixo levantado com ar confiante e os olhos em Hamburg, enquanto ele atravessa a sala na minha direção. Puxo a barra do vestido para cobrir completamente o punhal preso na coxa. Minha bolsa está no meu colo.

— Vocês já tiraram minha esposa de mim. — A indignação transparece na voz dele. — Não acham que foi o suficiente?

— Infelizmente, não. — Abro um sorriso malicioso. — Não foi o suficiente para você e sua esposa tirarem uma vida? Não, não foi — respondo por ele. — Vocês tiraram muitas vidas.

Hamburg morde o interior da bochecha e se senta atrás da escrivaninha, de frente para mim. Ele apoia as mãos gordas sobre o tampo de mogno. Percebo quanto ele quer me matar ali mesmo onde estou. Mas não fará isso porque acredita que não estou sozinha. Ninguém em sã consciência faria algo assim, vir até aqui sozinha, inexperiente e desprevenida.

Ninguém, a não ser eu.

Preciso garantir que ele continue acreditando que tenho cúmplices até descobrir como vou matá-lo e sair da sala sem ser pega. O pedido de Hamburg para que o guarda-costas entrasse na sala depois de um minuto sem ouvir sua voz pôs mais um obstáculo no plano que, na verdade, nunca tive de fato.

— Bem, devo dizer uma coisa — diz Hamburg, mudando de tom. — Você é deslumbrante com qualquer tipo de peruca. Mas admito que prefiro a morena.

Ele acha que meu cabelo castanho-avermelhado era uma peruca. Ótimo.

— Você é doente. Sabe disso, certo? — Tamborilo com as unhas no braço da poltrona.

Hamburg abre um sorriso medonho. Estremeço por dentro, mas mantenho a compostura.

— Eu não matei aquelas pessoas de propósito. Elas sabiam no que estavam se metendo. Sabiam que, no calor do momento, alguém poderia perder o controle.

— Quantas?

Hamburg estreita os olhos.

— O que importa isso, srta. Seyfried? Uma. Cinco. Oito. Por que não diz logo o motivo da sua visita? Dinheiro? Informação? A chantagem assume muitas formas, e não seria a primeira vez que enfrento uma. Sou um veterano.

— Fale sobre a sua esposa — peço, ganhando tempo e fingindo ainda ser quem dá as cartas. — Antes de “ir direto ao assunto”, quero entender sua relação com ela.

Uma parte de mim quer saber de verdade. E estou incrivelmente nervosa; sinto um enxame zumbindo no meu estômago. Talvez jogar conversa fora ajude a acalmar minha mente.

Hamburg inclina a cabeça para o lado.

— Por quê?

— Apenas responda à pergunta.

— Eu a amava muito — responde ele, relutante. — Ela era a minha vida.

— Aquilo é amor? — pergunto, incrédula. — Você manchou a memória dela ao dizer que ela era uma viciada em drogas que se suicidou, só para salvar a própria pele, e chama isso de amor?

Noto uma luz se movendo no chão, por baixo da porta da sala de vigilância. Não havia ninguém lá dentro antes, ao menos que eu tivesse visto.

— Como a chantagem, o amor assume muitas formas. — Hamburg apoia as costas na poltrona de couro, que range, cruzando os dedos roliços sobre a enorme barriga. — Mary e eu éramos inseparáveis. Não éramos como outras pessoas, outros casais, mas o fato de sermos tão diferentes não significava que nos amávamos menos do que os outros. — Os olhos dele cruzam os meus por um momento. — Tivemos sorte por encontrar um ao outro.

— Sorte? — pergunto, pasma com o comentário. — Foi sorte duas pessoas doentes se encontrarem e se unirem para fazer coisas doentias com os outros? Não entendo.

Hamburg balança a cabeça como se fosse um velho sábio e eu fosse jovem demais para entender.

— Pessoas diferentes como Mary e eu...

— Doentes e dementes — corrijo. — Não diferentes.

— Chame como quiser — diz ele, com ar de resignação. — Quando você é tão diferente assim da sociedade, do que é aceitável, encontrar alguém como você é algo muito raro.

Sem perceber, cerro os dentes. Não porque Hamburg esteja me irritando, mas porque nunca imaginei que esse homem nojento pudesse me dizer qualquer coisa que me fizesse pensar na minha situação com Victor, ou qualquer coisa que eu pudesse entender.

Afasto esse pensamento.

A luz fraca sob a porta da sala de vigilância se move de novo. Finjo não ter notado, sem querer dar a Hamburg qualquer motivo para achar que estou pensando em outra saída.

— Vim aqui saber nomes — digo de repente, sem ter pensado bem a respeito.

— Que nomes?

— Dos seus clientes.

Algo muda nos olhos de Hamburg, ele vai tomar o controle da situação.

— Você quer os nomes dos meus clientes? — pergunta ele, desconfiado.

Que merda...

— Pensei que você e Victor Faust já estivessem de posse da minha lista de clientes.

Continue séria. Não perca a compostura. Merda!

— Sim, estamos, mas me refiro àqueles que você não mantinha nos registros.

Acho que vou vomitar. Parece que minha cabeça está pegando fogo. Prendo a respiração, torcendo para ter me livrado dessa.

Hamburg me examina em silêncio, vasculhando meu rosto e minha postura em busca de qualquer sinal de autoconfiança abalada. Ele coça o queixo gordo e cheio de dobras.

— Por que você acha que existe uma lista fantasma?

Suspiro meio aliviada, mas ainda não estou fora de perigo.

— Sempre existe uma lista fantasma — afirmo, embora não faça nem ideia do que estou dizendo. — Quero pelo menos três nomes que não estejam no registro que nós temos.

Sorrio, sentindo que recuperei o controle da situação.

Até ele falar:

— Diga você três nomes da lista que já tem, e eu dou o que você quer.

É oficial: perdi o controle.

Engulo em seco e me controlo antes de parecer “pega no flagra”.

— Você acha que eu carrego a lista na bolsa? — pergunto com sarcasmo, tentando continuar no jogo. — Nada de negociações ou meios-termos, sr. Hamburg. O senhor não está em condições de fazer nenhuma barganha.

— É mesmo? — pergunta ele, sorrindo.

Ele suspeita de mim. Posso sentir. Mas vai garantir que está certo antes de dar o bote.

— Isso não está em discussão. — Eu me levanto da poltrona de couro, enfiando a bolsa debaixo do braço, mais frustrada do que antes por ter que entregar minha arma.

Pressiono os dedos na escrivaninha de mogno, apoiando meu peso neles ao me curvar um pouco na direção de Hamburg.

— Três nomes, ou saio daqui e Victor Faust entra para espalhar os seus miolos naquele belo quadro do menino Jesus atrás de você.

Hamburg ri.

— Esse não é o menino Jesus.

Ele se levanta junto comigo, alto, enorme e ameaçador.

Enquanto vasculho minha mente e tento entender como ele descobriu que sou uma farsante, Hamburg se adianta e anuncia seu raciocínio como um chute na minha boca.

— É engraçado, Izabel, você vir aqui pedir nomes que não aparecem em uma lista que você... — diz, apontando para a minha bolsa — ... nem carrega consigo, porque como você saberia que os nomes que eu daria não estão nela?

Estou muito ferrada.

— Vou dizer o que eu acho — continua ele. — Acho que você veio aqui sozinha por causa de alguma vingança contra mim. — Ele balança o indicador. — Porque eu me lembro de cada detalhe da porra daquela noite. Cada merda de detalhe. Especialmente a sua expressão quando percebeu que Victor Faust tinha vindo matar minha esposa em vez de mim. Era a expressão de alguém pega de surpresa, que não fazia ideia de por que estava ali. Era a expressão de alguém que não está familiarizada com o jogo.

Ele tenta sorrir com gentileza, como se quisesse demonstrar alguma espécie de empatia pela minha situação, mas o que leio em seu rosto é cinismo.

— Acho que, se houvesse mais alguém aqui com você, ele já teria aparecido para salvá-la, porque é óbvio que você está ferrada.

A porta do quarto principal se abre, o guarda-costas entra e a tranca. Por uma fração de segundo, tive a esperança de que fosse Victor vindo me salvar na hora certa. Mas foi só um desejo. O guarda-costas me olha com desprezo. Hamburg acena para ele, que começa a tirar o cinto.

Meu coração afunda até o estômago.

— Sabe — diz Hamburg, dando a volta na escrivaninha —, na primeira vez que a gente se viu, lembro que fiz um acordo com Victor Faust. — Ele aponta para mim. — Você se lembra disso, não?

Hamburg sorri e apoia a mão gorda nas costas da poltrona na qual eu estava sentada, virando-a para mim.

Todo o meu corpo está tremendo; parece que o sangue que passa pelas minhas mãos virou ácido. Ele corre pelo meu coração e pela minha cabeça tão rápido que quase desmaio. Começo a tentar alcançar meu punhal, mas eles estão perto demais, aproximando-se pelos dois lados. Não tenho como enfrentar os dois ao mesmo tempo.

— Como assim? — pergunto, tropeçando nas palavras, tentando ganhar um pouco de tempo.

Hamburg revira os olhos.

— Ora, por favor, Izabel. — Ele gira um dedo no ar. — Apesar do que aconteceu naquela noite, fiquei decepcionado de verdade por vocês dois irem embora antes de cumprir o acordo.

— Eu diria que, em vista do que aconteceu, o acordo não vale mais nada.

Ele sorri para mim e se senta na poltrona de couro. Percebo Hamburg espiar de relance o guarda-costas, dando uma ordem só com o olhar.

Antes que eu consiga me virar, o segurança prende minhas duas mãos nas minhas costas.

— Você vai cometer um erro do caralho se fizer isso! — grito, tentando me livrar das garras do segurança.

Ele me leva à força até uma mesa quadrada e me joga sobre ela. Meus reflexos não são rápidos o suficiente e meu queixo bate no mármore duro. O gosto metálico do sangue enche minha boca.

— Me solte! — Tento chutá-lo. — Me solte agora!

Hamburg ri de novo.

— Vire a cabeça dela para esse lado — ordena ele.

Dois segundos depois, meu pescoço é torcido para o outro lado e mantido ali, minha bochecha esquerda pressionada contra o mármore frio.

— Quero ver a cara dela enquanto você a fode. — Hamburg me olha de novo. — Então vamos continuar do ponto onde paramos naquela noite, tudo bem? Você concorda, Izabel?

— Vai se foder!

— Ah, não, não — diz ele, ainda com o riso na voz. — Não sou eu quem vai foder você. Você não faz o meu tipo. — Seus olhos famintos percorrem o corpo do segurança que está me pressionando por trás.

— Eu vou matar você — digo, cuspindo por entre os dentes. A mão do segurança sobre a minha cabeça impede que eu a mexa. — Vou matar vocês dois! Me estupre! Vamos lá! Mas os dois vão estar mortos antes que eu saia daqui!

— Quem disse que você vai sair daqui? — provoca Hamburg.

O zíper da calça dele está aberto; sua mão direita está parada ao lado da braguilha, como se ele estivesse tentando manter algum autocontrole e não se masturbar ainda.

Então Hamburg acena com dois dedos para o guarda-costas, que me mantém imóvel segurando meus cabelos da nuca.

— Lembre-se disso — diz ele ao segurança. — Ela não vai sair daqui.

Sinto a mão direita do guarda-costas soltar meu cabelo e se mover entre as minhas pernas. Enquanto ele ergue meu vestido, aproveito para alcançar o punhal na minha coxa e tirá-lo da bainha, golpeando atrás em um ângulo desajeitado. O segurança grita de dor e me solta. Puxo o punhal ainda firme na mão, que está coberta de sangue. Ele cambaleia para trás, com a mão na base do pescoço, o sangue jorrando entre seus dedos.

— Sua puta do caralho! — ruge Hamburg, saltando da poltrona e vindo atrás de mim como um elefante descontrolado, a calça caindo de sua cintura flácida.

Corro na direção dele com o punhal levantado e colidimos no meio da sala. Seu peso me joga de bunda no chão e o punhal cai da minha mão, deslizando pelo piso ensanguentado. De pé, Hamburg se abaixa para me segurar, mas me reclino no chão e levanto o pé com toda a força, enfiando o salto da minha sandália na lateral do seu rosto. Ele geme e cambaleia para trás, com a mão na bochecha.

— Eu vou acabar com você! Puta que pariu! — berra ele.

Engatinho na direção do punhal, vendo o segurança no chão, em meio a uma poça de sangue. Ele está engasgando com os próprios fluidos; tentando em vão encher os pulmões de ar.

Pego o punhal com firmeza e rolo no chão enquanto Hamburg se aproxima, derrubando a poltrona de couro. Fico de pé e corro até a mesa, empurrando-a na direção dele. Hamburg tenta tirá-la da frente, mas o móvel balança sobre a base e ele acaba tropeçando. Seu corpo desaba no chão de barriga para baixo e a mesa cai quase na sua cabeça. Salto sobre suas costas e monto em seu corpo obeso. Meus joelhos mal tocam o chão. Agarro seu cabelo, puxo a cabeça dele para trás na minha direção e aperto o punhal em sua garganta, imobilizando-o em segundos.

— Pode me matar! Foda-se! Você não vai sair viva daqui mesmo. — A voz de Hamburg é rouca, sua respiração, rápida e ofegante, como se ele tivesse acabado de tentar correr uma maratona. O cheiro de seu suor e de seu medo invade minhas narinas.

Ocupada com a lâmina em sua garganta, me assusto com o som de batidas fortes na porta. A distração me pega desprevenida. Hamburg consegue se erguer debaixo de mim como um touro, rolando de lado e me derrubando no chão. Deixo cair o punhal em algum lugar, mas não tenho tempo para procurá-lo porque Hamburg consegue se levantar e parte para cima de mim. Ouço a voz de Stephens do outro lado da porta, que vibra com seus socos.

Rolo para sair do caminho antes que Hamburg consiga pular em cima de mim, pego o objeto mais próximo — um peso de papel de pedra, bem pesado, que estava na mesa antes de ser derrubada — e golpeio Hamburg com ele. O som do osso de seu rosto quebrando com o impacto faz meu estômago revirar. Hamburg cai para trás, cobrindo a cara com as mãos.

As batidas na porta ficam mais fortes. Numa fração de segundo, levanto a cabeça e vejo a porta sacudindo com violência no batente. Preciso sair daqui. Agora. Meu olhar varre a sala procurando o punhal, mas não há mais tempo.

Corro para a sala de vigilância, contornando os obstáculos.

Graças a Deus, há outra porta lá dentro. Abro a porta e desço correndo a escada de concreto, torcendo para que seja uma saída e eu não encontre mais ninguém no caminho.


CAPÍTULO CINCO

Sarai

Desço a escada de concreto de dois em dois degraus, segurando no corrimão de metal pintado com as mãos ensanguentadas, até chegar ao térreo. Uma placa vermelha com a palavra SAÍDA está à minha frente. Corro pela passagem mal-iluminada, onde uma lâmpada fluorescente pisca acima de mim e torna o lugar ainda mais ameaçador. Empurro com força a barra da porta com as duas mãos e ela se abre para um beco. Um homem de terno está sentado no capô de um carro, fumando, quando saio para a rua.

Eu fico paralisada.

Ele olha para mim.

Eu olho para ele.

Ele nota o sangue nas minhas mãos e olha de relance para a porta, depois para mim.

— Vá — diz ele, acenando para a caçamba de lixo à minha direita.

Sei que não tenho tempo para ficar confusa nem para perguntar por que ele está me deixando ir embora, mas pergunto assim mesmo.

— Por que você está...?

— Apenas vá!

Ouço passos ecoando na escada atrás da porta.

Lanço um olhar agradecido ao homem e dou a volta na caçamba, desço o beco e me afasto do restaurante. Ouço um tiro segundos depois que dobro a esquina e torço para que seja aquele homem fingindo atirar em mim.

Evito espaços abertos e corro por trás de prédios, protegida pela escuridão, tanto quanto minhas sandálias de salto alto permitem. Quando sinto que estou longe o suficiente para parar um pouco, tento me esconder atrás de outra caçamba e tiro as sandálias. Arranco a peruca loura e a jogo no lixo.

Não consigo respirar. Estou enjoada.

Meu Deus, estou enjoada...

Encosto na parede de tijolos atrás de mim, arqueando as costas e apoiando as mãos nos joelhos. Vomito com violência no chão, meu corpo rígido, o esôfago ardendo.

Pego as sandálias e saio correndo de novo na direção do hotel, tentando esconder o sangue das mãos e do vestido, mas percebo que não é tão fácil. Recebo alguns olhares desconfiados ao passar depressa pela recepção, mas tento ignorá-los e torço para que ninguém chame a polícia.

Em vez de arriscar ser vista por outras pessoas, subo pela escada até o oitavo andar. Quando chego lá, e depois de tudo o que corri, sinto que minhas pernas vão ceder. Encosto na parede e recupero o fôlego, com os joelhos tremendo descontroladamente. Meu peito dói, como se cada respiração trouxesse poeira, fumaça e cacos microscópicos de vidro para o fundo dos pulmões.

O quarto que divido com Eric está trancado e eu não tenho a chave. Aliás...

— Puta merda...

Jogo a cabeça para trás, fecho os olhos e suspiro, arrasada.

Não estou mais com a minha bolsa. Eu a perdi em algum momento da luta na sala de Hamburg. A chave do meu quarto. Meu celular. Minha arma. Meu punhal. Não tenho mais nada.

Bato na porta, mas Eric não está no quarto. Não esperava que estivesse, na verdade, já que não são nem onze da noite. Só para o caso de estar enganada, no entanto, tento o quarto de Dahlia.

— Dahl! Você está aí? — Bato na porta com pressa, tentando não incomodar os outros hóspedes.

Nenhuma resposta.

Já desistindo, jogo as sandálias no chão e apoio as mãos na parede. Minha cabeça desaba. Mas então ouço um clique baixinho e vejo a porta do quarto de Dahlia se abrindo devagar. Levanto a cabeça e a vejo parada ali.

Sem me demorar para questionar a expressão estranha no rosto dela, entro no quarto só para sair do corredor. Eric está sentado na poltrona perto da janela. Noto que seu cabelo está meio bagunçado. O de Dahlia também.

Meu instinto está tentando chamar minha atenção, mas não me importo. Acabei de apunhalar um homem no pescoço e de tentar matar outro. Quase fui estuprada. Estava correndo pelos becos de Los Angeles para fugir de homens armados que vinham atrás de mim. Nada que esses dois façam pode superar isso.

— Meu Deus, Sarai — diz Dahlia, aproximando-se de mim. — Isso é sangue?

A expressão estranha e silenciosa que ela exibia quando entrei no quarto desaparece em um instante quando ela me vê no quarto bem-iluminado. Seus olhos se arregalam, cheios de preocupação.

Eric se levanta da poltrona.

— Você está sangrando. — Ele também me olha de cima a baixo. — O que aconteceu?

Os olhos de Dahlia correm pela minha roupa e pelo meu cabelo preso dentro da touca da peruca.

— Por que... Hã, por que você está vestida assim?

Olho para mim mesma. Não sei o que dizer, então não digo nada. Eu me sinto como um cervo diante dos faróis de um carro, mas minha expressão continua firme e sem emoções, talvez um pouco confusa.

— Você encontrou Matt — acusa Dahlia, começando a levantar a voz. — Puta que pariu, Sarai. Você foi se encontrar com ele, não foi?

Sinto os dedos dela apertando meu antebraço.

Eu me desvencilho de Dahlia e caminho até o banheiro para tirar a touca do cabelo. Enquanto tiro os grampos, noto uma camisinha boiando na privada.

Eric entra no banheiro atrás de mim. Ele sabe que eu vi.

— Sarai, e-eu... Eu sinto muito — diz ele.

— Não se preocupe — respondo, tirando o último grampo e deixando-o na bancada creme.

Passo por Eric e volto para o quarto. Dahlia está me encarando, com o rosto cheio de vergonha e arrependimento.

— Eu...

Ergo a mão e olho para os dois.

— Não, é sério. Não estou brava.

— Como assim? — pergunta Dahlia.

Eric parece agitado. Ele põe a mão na nuca e passa os dedos pelo cabelo.

— Olhe, sem querer ofender — digo a Eric —, mas tenho fingido tudo com você desde a primeira vez que a gente ficou junto.

Ele arregala os olhos, embora tente não deixar que o choque e a mágoa da minha revelação transpareçam demais. Grande parte de mim se sente bem por dizer a verdade. Não por vingança, mas porque eu precisava tirar isso do peito. Mas admito que, depois de descobrir que os dois têm trepado pelas minhas costas, uma pequena parte de mim também fica feliz em magoá-lo. Acho que a vingança sempre encontra um caminho, mesmo nos gestos mais insignificantes.

— Fingido?

— Não tenho tempo para isso — digo, indo na direção da porta. — Vocês dois podem ficar juntos. Não tenho nada contra. Não estou brava, só não me importo mesmo. Preciso ir.

— Espere... Sarai.

Eu me viro para olhar Dahlia. Ela está muito chocada, mal sabe o que pensar. Depois de alguns segundos de silêncio, fico impaciente e a olho com cara de “vai, desembucha”.

— Para você... tudo bem mesmo?

Uau, não sirvo mesmo para o estilo de vida deles. O estilo de vida normal. Nem consigo entender essas coisas de namoro, melhores amigas, infidelidade, competição e joguinhos psicológicos. A cara que eles fazem, tão vazia e mesmo assim tão cheia de incredulidade e dúvida, por causa de uma situação que, para mim, não é tão importante... Tenho coisas mais graves com que me preocupar.

Suspiro, aborrecida com as perguntas vagas e confusas dos dois.

— Sim, por mim, tudo bem — digo, e então me viro para Eric, estendendo a mão. — Preciso da chave do nosso quarto.

Relutante, ele enfia a mão no bolso de trás e pega a chave. Tomo da sua mão, saio dali e vou para o quarto ao lado. Eric vem atrás e tenta falar comigo enquanto guardo minhas coisas na mala.

— Sarai, eu nunca quis...

Eu me viro de repente e o encaro.

— Tudo bem, só vou dizer isto uma vez, depois você muda de assunto ou volta para lá e fica com a Dahlia. Não estou nem aí para o que vocês dois fazem, mas, por favor, não apele para esse clichê de novela de que você nunca quis que isso acontecesse, porque... é muito idiota. — Eu rio baixinho, porque acho idiota mesmo. — Só falta você dizer que o problema não é comigo, é com você. Caramba, você faz ideia do que isso parece? É tão difícil assim acreditar quando digo que não me importo e que estou falando sério? Sem joguinhos. É verdade. — Balanço a cabeça, levanto as mãos e digo: — Não. Me. Importo.

Viro para a mala, fecho o zíper, abro a parte lateral e pego a chave do quarto secreto. Ainda bem que eu tinha uma cópia.

— Preciso ir — digo, andando até a porta e passando por Eric.

— Aonde você vai?

— Não posso contar, mas me escute, Eric, por favor. Se alguém aparecer me procurando, finja que não me conhece. Diga o mesmo para Dahlia. Finjam que nunca me viram na vida. Aliás, quero que vocês dois saiam hoje. Vão para qualquer lugar. Só... não fiquem aqui.

— Você vai me dizer o que aconteceu ou por que está toda ensanguentada? Sarai, você está me deixando assustado pra cacete.

— Eu vou ficar bem — digo, atenuando minha expressão. — Mas prometa que você e Dahlia vão fazer exatamente o que falei.

— Você vai me contar um dia?

— Não posso.

O silêncio entre nós fica mais pesado.

Enfim, abro a porta e saio para o corredor.

— Acho que sou eu quem deveria estar pedindo desculpas.

— Por quê?

Eric fica na porta, com os braços caídos ao lado do corpo.

— Por pensar em outra pessoa durante todo esse tempo em que eu estava com você. — Olho para o chão.

Nós nos encaramos por um breve momento e ninguém diz mais nada. Ambos sabemos que estamos errados. E acho que nós dois estamos aliviados por tudo ter vindo à tona.

Não há mais nada a dizer.

Eu me afasto pelo corredor na direção oposta à do meu quarto secreto e dou a volta por trás, para que Eric não veja aonde estou indo. Quando me tranco no quarto, só consigo desabar na cama. A exaustão, a dor e o choque de tudo o que aconteceu esta noite me atingem em cheio assim que a porta se fecha, e me engolem como uma onda. Eu me jogo de costas no colchão. Minhas panturrilhas doem tanto que duvido conseguir andar sem mancar amanhã.

Fico olhando para o teto escuro até ele desaparecer e eu pegar no sono.


CAPÍTULO SEIS

Sarai

Um tum! pesado me acorda, mais tarde naquela noite. Eu me levanto como uma catapulta.

Vejo dois homens no meu quarto: um desconhecido morto no chão e Victor Faust de pé sobre o corpo dele.

— Levante-se.

— Victor?

Não acredito que ele está aqui. Devo estar sonhando.

— Levante-se, Sarai. AGORA! — Victor me pega pelo cotovelo, me arranca da cama e me põe de pé.

Não consigo nem pegar minhas coisas, ele já está abrindo a porta e me puxando para o corredor com ele, segurando forte a minha mão.

Disparamos juntos pelo corredor e outro homem aparece virando a esquina, de arma em punho. Victor aponta sua 9mm com silenciador e o derruba antes que o cara consiga atirar. Ele passa pelo corpo me puxando, seus dedos fortes afundando na minha mão enquanto corremos para a escada. Ele abre a porta, me empurra para a frente e nós subimos depressa os degraus de concreto. Um andar. Três. Cinco. Minhas pernas estão me matando. Acho que não consigo andar por muito mais tempo. Enfim, no quinto andar, Victor me puxa para outro corredor e rumo a um elevador nos fundos.

Quando as portas do elevador se fecham e estamos só nós dois lá dentro, finalmente tenho a oportunidade de falar.

— Como você sabia que eu estava aqui? — Mal consigo recuperar o fôlego, esgotada pela correria infinita e pela adrenalina, mas acho que sobretudo porque Victor está de pé ao meu lado, segurando minha mão.

Meus olhos começam a arder com as lágrimas.

Engulo o choro.

— O que você estava pensando, Sarai?

— Eu...

Victor segura meu rosto com as duas mãos e me empurra contra a parede do elevador, pressionando ferozmente seus lábios nos meus. Sua língua se entrelaça na minha e sua boca tira meu fôlego em um beijo apaixonado que, enfim, faz meus joelhos cederem. Toda a força que eu estava usando para manter o corpo ereto desaparece quando os lábios dele me tocam. Ele me beija com fome, com raiva, e eu derreto em seus braços.

Então ele se afasta, as mãos fortes nos meus braços, me segurando contra a parede do elevador. Nós nos encaramos pelo que parece ser uma eternidade, nossos olhos paralisados em uma espécie de contemplação profunda, nossos lábios a centímetros de distância. Só quero prová-los de novo.

Mas ele não deixa.

— Responda — exige Victor, estreitando seus olhos perigosos em reprovação.

Já esqueci a pergunta.

Ele me sacode.

— Por que você veio aqui? Tem ideia do que você fez?

Balanço a cabeça em um movimento curto e rápido, parte de mim mais preocupada com seu olhar ameaçador do que com o que ele está dizendo.

A porta do elevador se abre no subsolo e eu não tenho tempo para responder, pois Victor mais uma vez pega minha mão e me puxa para que o siga. Serpenteamos por um grande depósito com caixas em pilhas altas encostadas nas paredes e depois por um longo corredor escuro que leva a um estacionamento. Victor enfim solta minha mão e eu o sigo até um carro parado entre dois furgões pretos com o logotipo do hotel nas laterais. Dois bipes ecoam pelo ambiente e os faróis do carro piscam quando nos aproximamos, iluminando a parede de concreto em frente. Sem perder tempo, me sento no banco do passageiro e fecho a porta.

Segundos depois, Victor está dirigindo casualmente pelo estacionamento até a rua.

— Eu queria que ele morresse — respondo, enfim.

Victor não me olha.

— Bom, você fez um excelente trabalho — rebate ele, sarcástico.

Ele vira para a direita no semáforo, e o carro ganha velocidade quando chegamos à rodovia.

Fico magoada por suas palavras, mas sei que ele tem razão, por isso não discuto. Fiz merda. Uma merda muito grande.

Mas não me dou conta do tamanho dela até Victor dizer:

— Os seus amigos podiam ter morrido. Você podia ter morrido.

Sinto meus olhos se arregalarem além dos limites e me viro mais um pouco para encará-lo.

— Ah, não... Victor, o quê... Eles estão bem?

Sinto que vou vomitar de novo.

Victor me olha por um instante.

— Estão ótimos. O primeiro quarto que os capangas de Hamburg revistaram estava vazio — diz ele, voltando a olhar para a estrada. — Eu cheguei quando eles estavam saindo. Segui um deles até o quarto onde você estava escondida, deixei que ele destrancasse a porta e então ataquei.

As chaves do quarto. Minhas duas chaves extras estavam na bolsa que perdi no restaurante de Hamburg. E os números dos quartos estavam escritos nas capinhas de papel que as protegiam. Eu estava tão preocupada em esconder minha arma e meu punhal que nem pensei em esconder as chaves.

— Merda! — Também olho para a estrada. — E-eu perdi a bolsa no restaurante. As chaves do meu quarto estavam dentro dela. Deixei um rastro para eles seguirem!

Felizmente, eu não tinha uma chave extra do quarto de Dahlia, senão ela e Eric já poderiam estar mortos.

Onde é que eu estava com a cabeça?!

— Não, você deixou literalmente as chaves do seu quarto com o nome do hotel gravado. Sarai, eu devia ter matado você há muito tempo e poupado toda essa confusão para cima de você e de mim.

Eu me viro para encará-lo; a raiva e a mágoa pesando no meu peito.

— Você não está falando sério.

Ele faz uma pausa e me olha. Suspira.

— Não, não estou falando sério.

— Nunca mais me diga isso. Nunca mais me diga uma coisa dessas, ou eu mato você e poupo a mim de toda essa confusão — rebato, desviando o olhar.

— Você não está falando sério — diz Victor.

Olho mais uma vez para aqueles olhos ameaçadores verde-azulados que me fizeram tanta falta.

— Não. Mas acho que isso seria o mais sensato.

— Bom, você não foi a campeã da sensatez hoje, então acho que estou seguro ao menos pelas próximas 24 horas.

Escondo o sorriso.

— Senti sua falta — digo de maneira distante, olhando para a estrada.

Victor não responde, mas admito que seria estranho se respondesse. A despeito de sua falta de emoção, porém, sei que ele também sentiu saudade de mim. Aquele beijo no elevador disse coisas que palavras jamais conseguiriam.

Ele pega uma saída e para o carro debaixo de um viaduto. Puxa o freio de mão e a área ao redor desaparece na escuridão quando ele desliga os faróis.

— O que a gente está fazendo aqui?

— Você precisa ligar para os seus amigos.

— Por quê?

Ele tira um celular do porta-luvas entre nós.

— Mande eles voltarem para o Arizona. Faça ou diga o que for preciso para que eles saiam de Los Angeles. Quanto antes, melhor.

Ele coloca o telefone na minha mão. De início, só olho para o aparelho, mas ele me pressiona com aquele olhar, aquele que grita “vamos lá, faça isso de uma vez”, mas que só alguém como eu, alguém que conhece Victor, seria capaz de notar.

Giro o celular nas mãos, depois o seguro firmemente e digito o número de Eric. Mas então mudo de ideia, desligo no primeiro toque e ligo para Dahlia.

Ela atende no quinto toque.

Respiro fundo e faço o que sei fazer melhor: minto.

— A verdade é que vocês me magoaram. Duvido que um dia eu consiga perdoar você ou Eric pelo que fizeram.

— Sarai... Meu Deus, me desculpe, estou me sentindo muito mal. A gente não queria que isso chegasse a esse ponto. Juro para você. Não sei o que aconteceu...

— Escute, Dahlia, por favor, só me escute.

Ela fica quieta.

Começo a choradeira. Nunca imaginei que eu seria capaz de chorar sob demanda e de forma tão falsa.

— Eu quero acreditar em você. Quero conseguir confiar em você de novo, mas você era minha melhor amiga e me traiu. Preciso de um tempo sozinha e quero que você e Eric voltem para o Arizona. Hoje. Acho que não vou aguentar ver vocês de novo... Espere, onde você está, agora?

Acabo de me dar conta de que, se ela e Eric estiverem no hotel, a essa altura ela já sabe que dois homens foram mortos a tiros no andar do quarto deles.

— A gente está em uma festa em um terraço — conta ela. — T-tudo bem por você? Achei que não tinha nada a ver a gente sair, mas o Eric falou que você insistiu...

— Não, tudo bem — digo, cortando-a. — Insisti mesmo. Onde ele está, agora?

— Deixei Eric lá no terraço para a gente poder conversar. Está muito barulhento lá em cima. Que número é esse de onde você está ligando?

— É o celular de um amigo. Perdi o meu. O Eric por acaso avisou que se alguém procurar por mim...

— Avisou, sim — interrompe Dahlia. — Que confusão é essa, afinal? Meu Deus, Sarai, esquece por um momento esse lance com Eric e me conta o que está acontecendo, por favor. O sangue. As roupas esquisitas que você estava usando e aquele troço na sua cabeça. Era uma touca de peruca? Você está metida em alguma encrenca, eu sei. Sei que você me odeia, e tem todo o direito de odiar, mas, por favor, conte o que aconteceu.

— Não posso contar, porra! — grito, deixando o choro distorcer minha voz. — Caramba, Dahlia, faça o que eu pedi. Pelo menos isso! Você deu para o meu namorado! Por favor, voltem para o Arizona, me deixem esfriar a cabeça e depois eu volto para casa. Talvez aí a gente possa conversar. Mas agora façam o que eu estou pedindo. Tudo bem?

Ela não responde por um momento, e um longo silêncio se forma entre nós.

— Tudo bem — concorda ela. — Vou dizer ao Eric que a gente precisa ir embora.

— Obrigada.

Estou apenas um pouco aliviada. Não vou me sentir bem com isso até saber que eles chegaram em casa sãos e salvos.

Desligo sem dizer mais uma palavra.

— Bom, isso foi bastante convincente — observa Victor, levemente impressionado.

— Acho que foi.

— Eu sei que a sua amiga acreditou — acrescenta ele. — Mas eu não acreditei em uma só palavra.

Eu me viro para ele. Victor me conhece tão bem quanto eu o conheço, parece.

— É porque nem uma palavra era verdade.

Ele deixa por isso mesmo e nós saímos de baixo do viaduto.

Chegamos a uma casa perdida no final de uma estrada isolada nos arredores da cidade, empoleirada no alto de uma colina com uma vista quase perfeita para a cidade lá embaixo. Uma piscina de formato irregular começa no lado esquerdo da casa e serpenteia por trás, a água azul-clara iluminada por lâmpadas submersas parece luminescente. O lugar está silencioso. Só ouço o vento passando pela mata cerrada que contorna o lado direito e os fundos da casa, impedindo uma visão em 360 graus da paisagem iluminada de Los Angeles. Quando nos aproximamos da porta, uma mulher robusta usando uniforme azul de empregada nos recebe. Ela tem cabelo preto encaracolado e pele morena. Suas bochechas são volumosas, envolvendo seus olhos castanho-escuros pequenos e brilhantes, que fitam atentamente Victor e a mim.

— Por favor, entrem — diz ela, com um sotaque hispânico familiar.

A mulher fecha a porta. A casa cheira a limpa-vidro e a uma mistura pouco natural de cheiros adocicados que só pode vir de algum tipo de aromatizador de ambientes artificial. Parece que todas as janelas foram abertas, permitindo que a brisa noturna de verão se espalhasse pela casa. Não se parece em nada com as mansões ricas onde já estive, mas é impecável e aconchegante, e penso que eu deveria pelo menos ter tomado um banho antes de vir. Minha pele e minhas roupas ainda estão manchadas de sangue...

Victor está usando uma calça preta e uma camisa apertada de mangas compridas que adere a cada músculo de seus braços e seu peito, com os punhos desabotoados e arregaçados até os cotovelos. A camisa está por fora da calça e os dois botões de cima estão abertos. Sapatos pretos chiques e informais calçam seus pés. Um relógio brilhante de prata adorna seu pulso direito, e não consigo deixar de notar a solitária veia grossa que percorre as costas de sua mão até o osso de seu pulso. Quando ele segue a empregada pela grande entrada e se vira momentaneamente de costas para mim, vejo o cabo da arma saindo da cintura de sua calça, com a barra da camisa branca enfiada atrás.

Ele me olha, para e estende o braço, em um gesto para que eu ande à sua frente. Tremo de leve quando sua mão toca minhas costas perto da cintura.

Antes que eu tenha tempo de me sentir deslocada ao lado dele, Fredrik, o amigo e cúmplice sueco de Victor que conheci no restaurante de Hamburg há tanto tempo, entra na sala pelas grandes portas de vidro que dão para o quintal dos fundos.


CAPÍTULO SETE

Sarai

— Você chegou cedo — comenta Fredrik com um sorriso mortal, porém inimaginavelmente sexy.

As roupas dele são bem parecidas com as de Victor, mas, em vez de camisa de botão, Fredrik está vestindo uma camiseta branca apertada que adere à sua forma esbelta e máscula. Ele está descalço.

A primeira vez que vi Fredrik, pensei que era impossível haver alguém mais bonito. Com cabelo macio, quase preto, e olhos escuros e misteriosos, suas feições parecem ter sido esculpidas por algum artista famoso. Mas sempre achei que havia algo de sombrio e assustador naquele homem. Um lado dele que eu, particularmente, não faço questão de conhecer. Para mim, basta o jeito como ele era quando nos encontramos: cordial, encantador e misterioso, uma linda máscara que ele usa para esconder a fera que há por trás.

Victor olha para seu relógio caro.

— Só dez minutos mais cedo — comenta ele.

Fredrik sorri ao se aproximar, os dentes brancos reluzindo contra a pele bronzeada.

— Sim, mas você sabe como eu sou.

Victor assente, mas não alonga o assunto. A mim, só resta imaginar o que aquilo significa.

— É bom ver você — diz Fredrik, observando-me do topo de sua altura considerável e presença avassaladora. Ele se inclina, pega minha mão e a beija, logo acima dos nós dos dedos. — Ouvi dizer que você matou um homem hoje.

Ele apruma as costas e solta minha mão. Um sorriso perturbador e orgulhoso surge em seu rosto, os cantos dos olhos se aquecendo com alguma lembrança ou... prazer, como se a ideia de matar alguém o deliciasse de alguma forma.

Olho para Victor à minha direita. Ele assente, respondendo à pergunta estampada no meu rosto. O guarda-costas que apunhalei no pescoço morreu?

Olho para Fredrik e respondo sem rodeios.

— Acho que matei.

Um leve sorriso se abre nos cantos dos lábios de Fredrik, e ele olha de relance para Victor, sem mover a cabeça.

— E você se sente bem com isso? — pergunta Fredrik.

— Para dizer a verdade, sim — respondo sem demora. — O desgraçado mereceu.

Fredrik e Victor parecem envolvidos em algum tipo de conversa secreta. Odeio isso.

Enfim, Fredrik diz para Victor em voz alta:

— Você arrumou sarna para se coçar, Faust.

Ele então se vira de costas para nós e anda na direção das portas de vidro. Nós o seguimos para o lado de fora, passando pela parte coberta do quintal e descendo uma escada de pedra que leva a um enorme pátio, também de pedra, que se abre em todas as direções. O pátio é decorado com mesas e cadeiras de ferro batido e uma cama com dossel ao ar livre.

Eu me sento ao lado de Victor em um sofá.

— Como é que você sabe? — pergunto a Fredrik, mas então me viro para Victor e digo: — E você ainda não me contou como sabia que eu estava aqui.

Na verdade, isso não importa muito, só quero encará-lo nos olhos de novo. Quero ficar sozinha com Victor, mas por enquanto vou precisar me contentar com os 7 centímetros entre nossos corpos, sentados lado a lado.

— Melinda Rochester me contou — explica Fredrik com um sorriso conivente. Começo a perguntar “E quem é Melinda Rochester”, mas ele diz: — Bem, ela contou para todo mundo, na verdade. Noticiário do Canal 7. Um homem morto a punhaladas atrás de um restaurante de Los Angeles.

Começo a me retorcer por dentro. Espero que as câmeras não tenham me mostrado com nitidez.

Eu me viro para Victor, com a preocupação transparecendo no rosto.

— Eu estava de peruca loura — digo, tentando encontrar alguma coisa, qualquer coisa que eu tenha feito certo. — Fiquei com a cabeça baixa... a maior parte do tempo.

Desisto. Sei que o que fiz vai continuar me perseguindo. Suspiro e olho para as mãos ensanguentadas no meu colo.

— E encontrar você foi fácil — continua Victor. — A sra. Gregory me ligou depois que você saiu do Arizona. Ela estava preocupada com a sua vinda para Los Angeles e achou que eu precisava saber.

Viro a cabeça para encará-lo.

— O quê? Dina sabia onde você estava? — Sinto a pele ao redor das sobrancelhas se enrijecendo.

— Não — responde ele, com delicadeza. — Ela não sabia onde eu estava, mas sabia como entrar em contato comigo.

Essas palavras me magoam. Engulo em seco a sensação de ser traída por eles.

— Falei para ela entrar em contato comigo só em caso de emergência — acrescenta Victor. — Caso algo acontecesse com você.

— Você deixou para Dina uma forma de entrar em contato — digo, ríspida —, mas para mim, nada. Não acredito que você fez isso.

— Eu queria que você tocasse a sua vida. Mas, caso os irmãos de Javier descobrissem onde você estava, ou você decidisse fazer uma proeza como a de hoje, eu queria ficar sabendo.

Não consigo olhar para Victor. Tento chegar mais alguns centímetros para o lado a fim de aumentar a distância entre nós. Ainda assim, mesmo que esteja magoada e enfurecida com ele, sinto vontade de me aproximar de novo. Mas me mantenho firme e me recuso a deixá-lo perceber que o poder que ele exerce sobre mim faz a raiva que sinto parecer um chilique.

— Não acredito que Dina escondeu isso de mim — digo em voz alta, ainda que esteja falando mais comigo mesma.

— Ela escondeu de você porque eu disse a ela quanto isso era importante.

— Bom, de qualquer maneira — interrompe Fredrik, sentando-se na poltrona ao lado do sofá —, parece que você se meteu em uma situação da qual não vai conseguir sair tão facilmente, se é que vai conseguir.

— Por que a gente está aqui? — pergunto, aborrecida.

Fredrik ri baixinho.

— Aonde mais você iria?

— Eu precisava tirar você do hotel — explica Victor.

— Espere um pouco. Eu não matei aquele homem atrás do restaurante. Tudo aconteceu na sala particular de Hamburg, no andar de cima.

Recordo o homem que vi do lado de fora, atrás do restaurante, aquele que me deixou fugir, e meu coração afunda.

— Hamburg não deixaria que a polícia acreditasse que o assassinato aconteceu lá dentro, porque eles confiscariam a memória da câmera de vigilância e veriam o que realmente aconteceu.

Não estou entendendo nada. Nadinha.

— Eles não iam querer que a polícia soubesse o que realmente aconteceu?

Fredrik se reclina na poltrona e ergue um pé descalço, apoiando o tornozelo sobre o outro joelho, e estende os braços sobre os da poltrona.

Victor balança a cabeça.

— Preciso mesmo explicar isso para você, Sarai?

Sua vaga irritação me pega de surpresa. Olho para ele e levo alguns segundos para entender tudo sem que ele precise explicar.

— Ah, entendi — digo, olhando um de cada vez. — Hamburg não quer que a polícia se envolva porque corre o risco de se expor. O que ele fez, então? Só levou o corpo para fora? Preparou a situação para parecer um assalto comum? Não muito diferente do que ele fez naquela noite em que a gente estava na mansão dele, imagino.

Paro por aí porque Fredrik está presente. Não sei qual o grau de intimidade entre ele e Victor, nem mesmo se Fredrik sabe o que aconteceu na noite em que Victor matou a esposa de Hamburg.

Os olhos de Victor sorriem de leve para mim: sua maneira de me mostrar quanto lhe agrada eu ter entendido tudo. Ainda fingindo estar aborrecida, não retribuo o olhar da forma que ele deve esperar.

A empregada aparece com um balde chique de gelo, de madeira, com três garrafas de cerveja dentro. Fredrik pega uma, então ela nos oferece. Victor pega uma garrafa, mas recuso, mal conseguindo olhar a mulher nos olhos. Estou absorta demais nos acontecimentos da noite, que não me saem da cabeça.

A empregada vai embora logo depois, sem dizer uma palavra.

— O que você quis dizer com os irmãos de Javier?

Victor abre sua garrafa e a põe na mesa.

— Dois deles, Luis e Diego, assumiram os negócios de Javier dias depois que você o matou.

Por um instante, o rosto de Javier surge em minha mente: sua expressão chocada e ainda orgulhosa, os olhos arregalados, o corpo caindo no chão segundos depois de eu meter uma bala em seu peito.

Afasto a imagem.

Eu me lembro de Luis e Diego. Diego é aquele que tentou me estuprar quando eu estava na fortaleza no México, aquele que Javier castrou como punição.

— Eles estão me procurando?

Victor toma um gole de cerveja e devolve a garrafa à mesa com calma.

— Que eu saiba, não. Estou monitorando a fortaleza há meses. Os irmãos de Javier são amadores. Não têm ideia do que fazer com tanto poder. Duvido até que vejam você como ameaça.

Fredrik toma um gole de cerveja e prende a garrafa entre as pernas.

— Não fique tão aliviada assim — diz ele. — É melhor ser perseguida por amadores do que por Hamburg e aquele braço direito dele.

Um nó nervoso se forma no fundo do meu estômago. Olho de relance para Victor, buscando respostas.

— Willem Stephens — esclarece Victor — faz todo o serviço sujo de Hamburg. Hamburg em si é covarde, tão perigoso quanto o pedófilo gente boa da vizinhança. Mal consegue atirar em um alvo imóvel, e trairia alguém em dois minutos para se salvar. — Ele arqueia uma sobrancelha. — Stephens, por outro lado, tem uma extensa formação militar, é ex-mercenário e trabalhou para uma Ordem do mercado negro em 1986.

— Uma o quê?

— Uma Ordem como a nossa — explica Victor —, mas que aceita contratos particulares. Eles fazem coisas que outros agentes se recusam a fazer, vendem seus serviços basicamente para qualquer um.

— Ah... Então, resumindo, ele mata gente inocente por dinheiro.

Lembro o que Victor me contou, meses atrás, sobre a natureza dos contratos particulares, como pessoas eram assassinadas por motivos fúteis como traição conjugal ou vingança. A Ordem de Victor só trabalha com crime, ameaças sérias a um grande número de pessoas ou ideias que poderiam ter um impacto negativo na sociedade ou na vida como um todo.

Engulo em seco.

— Bom, ele me viu, com certeza. — Levanto as mãos e tiro o cabelo do rosto, passando as mãos no alto da cabeça. — Foi ele quem me levou para o segundo andar, para a sala de Hamburg. — Olho para Victor. — Desculpa, Victor. Eu... eu não sabia de nada disso.

Fredrik ri baixinho e diz:

— Algo me diz que, mesmo se você soubesse, teria ido lá de qualquer maneira.

Desvio o olhar de Victor e olho para baixo de novo, nervosa, esfregando os dedos ensanguentados uns nos outros. Fredrik tem razão. Odeio admitir, mas ele tem razão. Eu teria ido para o restaurante mesmo assim. Teria tentado matar Hamburg mesmo assim. Mas, se eu soubesse de tudo isso, acho que teria pensado em um plano melhor.

De repente, sinto que alguma coisa toma meu corpo e me tira o fôlego.

— Victor... Meu celular... — Eu me levanto do sofá, com o cabelo castanho-avermelhado caindo pelos ombros, batendo em meus braços nas partes em que o sangue secou e formou uma crosta áspera. — O número de Dina está no meu celular. Merda. Merda! Victor, Stephens vai atrás dela! Preciso voltar para o Arizona!

Começo a seguir para a porta dos fundos, mas Victor me alcança antes que eu atravesse o caminho decorado com pedras lisas.

— Espere aí.

Olho para baixo e vejo os dedos dele em volta do meu pulso. Seus hipnóticos olhos verde-azulados me fitam com desejo e devoção. Devoção. Algo que nunca vi no olhar de Victor antes.

Fredrik fala atrás de nós, me tirando do transe em que Victor me colocou.

— Eu vou cuidar disso — diz ele.

Desvio o olhar de Victor para Fredrik, que então ganha importância, considerando que a vida de Dina está em jogo.

— Como? — pergunto.

Victor me leva de volta para o sofá.

Fredrik pega o celular da mesa à frente, procura um número e toca na tela para ligar. Então encosta o celular no ouvido.

Victor me faz sentar perto dele de novo. Estou concentrada demais em Fredrik no momento para notar que Victor fez questão de se sentar tão perto que sua coxa está encostada na minha. Quero aproveitar o momento de proximidade, mas não posso. Estou preocupada com Dina.

Fredrik se reclina na poltrona de novo, balançando o pé descalço apoiado no joelho. Seu rosto fica alerta quando alguém atende à ligação.

— Em quanto tempo você consegue chegar a Lake Havasu City? — pergunta Fredrik ao telefone. Ele ouve por um segundo e assente. — Mando o endereço por mensagem de texto assim que eu desligar. Vá para lá o mais rápido que puder. Uma mulher mora lá. Dina Gregory. — Ele me olha de relance, para se certificar de que disse o nome certo. Como não o corrijo, volta a falar ao telefone. — Tire-a da casa e a leve para Amelia, em Phoenix. Sim. Sim. Não, não pergunte nada a ela. Só tome cuidado para ninguém machucar Dina. Sim. Me ligue neste número assim que estiver com ela.

Fredrik assente mais algumas vezes. Meu coração está batendo tão forte que parece pronto para pular do peito. Espero que a pessoa com quem ele está falando consiga encontrar Dina a tempo.

Fredrik desliga e parece abrir uma tela de texto no celular. Ele olha para mim, mas é Victor quem dá o endereço da sra. Gregory. Fredrik o digita e deixa o celular na mesa.

— Meu contato está a apenas trinta minutos de lá — explica Fredrik, olhando primeiro para mim. Então se vira para Victor. — O que você quer que eu faça?

Ele levanta as costas da poltrona e apoia os cotovelos nos joelhos, deixando as mãos entre eles. Mesmo em uma posição relaxada, ele consegue parecer elegante, importante e perigoso.

— Ainda preciso que você verifique o que discutimos ontem — diz Victor, e fica ainda mais claro, para mim, que Fredrik recebe ordens dele, embora não pareça ser do tipo que recebe ordens de ninguém. Mas está claro que os dois têm uma relação forte. — E, se você não se importa, preciso da sua casa emprestada por esta noite.

Os olhos escuros de Fredrik me encaram, e o traço de um sorriso aparece em seu rosto. Ele se levanta e pega o celular da mesa, escondendo-o na mão.

— Não precisa dizer mais nada. Vou sair daqui em vinte minutos. Eu ia mesmo me encontrar com alguém hoje, então está combinado.

A atitude de Victor muda um pouco, o que percebo no mesmo instante. Ele está encarando Fredrik, do outro lado da mesa do pátio, com um olhar cansado e cauteloso.

— Você não vai fazer o que estou pensando...

Ouço com atenção sem nem ao menos tentar disfarçar. Eu quero que eles saibam que estou bisbilhotando, porque é frustrante nenhum dos dois me oferecer qualquer explicação sobre esses comentários internos.

Fredrik ergue um lado da boca em um meio sorriso. Ele balança a cabeça de leve.

— Não, esta noite, não, infelizmente. Mas já faz algum tempo. Vou precisar que você me ajude com isso em breve.

Os olhos dele passam por mim e sinto um calafrio percorrer minhas costas. Não consigo decidir se é um arrepio bom ou assustador.

— Você terá sua oportunidade logo, logo — assegura Victor.

Fredrik dá a volta na mesa.

— Lamento por ter que encurtar nossa reunião.

— Tudo bem — digo. — Obrigada por ajudar com Dina. Você avisa quando receber aquela ligação?

Fredrik assente.

— Com certeza. Farei isso.

— Obrigada.

Victor acompanha Fredrik até a porta de vidro e os dois a atravessam. Fico sentada, observando-os do outro lado do pátio de pedra e tentando ouvir o máximo que posso, mas eles fazem questão de falar em voz baixa. Isso também me deixa frustrada. E pretendo informar Victor disso.


CAPÍTULO OITO

Victor

Fredrik fecha a porta de correr feita de vidro.

— Ela não sabe nada sobre Niklas? — pergunta ele, como eu já previa.

— Não, mas vou ter que contar. Ela vai precisar ficar atenta o tempo todo. Agora mais do que nunca.

— Ela não pode ficar aqui por muito tempo — aconselha Fredrik, olhando, através do vidro, Sarai sentada no sofá lá fora e nos observando. — Você também não.

— Eu sei. Quando Niklas descobrir que ela participou do assassinato no restaurante de Hamburg, vai saber na mesma hora que também estou envolvido nisso. Ele não é bobo. Se Sarai está viva, Niklas vai saber que estou tentando ajudá-la.

— E como ele desconfia de que agora trabalho com você — acrescenta Fredrik —, ela corre tanto perigo perto de mim quanto de você.

— É verdade.

Fredrik balança a cabeça para mim, com um sorriso escondido no fundo dos olhos.

— Não entendo esse envolvimento. Respeito você como sempre, respeitei, Victor, mas nunca vou entender a necessidade de um homem amar uma mulher.

— Eu não estou apaixonado por ela. Ela só é importante para mim.

— Talvez não — retruca ele, indo para a cozinha. — Mas parece que o amor e o envolvimento trazem as mesmas consequências, meu amigo. — Sigo Fredrik até a cozinha iluminada e ele abre um armário. — Mas estou do seu lado. O que você precisar que eu faça para ajudar, é só pedir. — Ele aponta para mim perto do armário, agora com um pão na mão.

A empregada de Fredrik entra na cozinha, roliça e mais velha do que nós dois juntos, exatamente o tipo de mulher que jamais o atrairia, e foi por isso que ele a contratou. Ela lhe pergunta em espanhol se pode voltar para casa e ver a família mais cedo hoje. Fredrik responde em espanhol, concordando. Ela assente respeitosamente e passa por mim na sala. De soslaio, eu a observo pegar uma bolsa volumosa de couro marrom do chão, perto da espreguiçadeira, e colocá-la no ombro. Depois ela vai até a porta, fechando-a devagar ao sair.

Sarai está de pé nas sombras da sala quando desvio o olhar da porta. Nem ouvi a porta de vidro correr quando ela entrou, e pelo jeito Fredrik também não.

Ela vai para a cozinha iluminada, de braços cruzados, os dedos delicados segurando seus bíceps femininos, mas bem-definidos. Ela é linda demais, mesmo quando está desgrenhada assim.

— Quanto tempo vocês planejavam me deixar lá fora? — pergunta ela, com um traço de irritação na voz.

— Ninguém disse que você precisava ficar lá, gata — responde Fredrik.

Ele gosta dela, isso é óbvio para mim, e ele deve saber. Mas também sabe que vou matá-lo. Ainda assim, minha confiança em Fredrik é maior do que minha preocupação de que ele volte para o lado sombrio e a machuque. Fredrik Gustavsson é uma fera do tipo mais carnal, que adora mulheres e sangue, mas tem limites e critérios, além de levar a lealdade, o respeito e a amizade muito a sério. Sua lealdade a mim é, afinal, o motivo para ele trair a Ordem todos os dias me ajudando.

Sarai se aproxima de mim e me olha nos olhos, inclinando um pouco a cabeça para o lado. O cheiro de sua pele e o calor tênue que emana dela quase me fazem perder o controle. Tenho conseguido me conter bastante desde que a beijei no elevador. Pretendo continuar assim.

Ela não diz nada, mas continua me encarando como se esperasse alguma coisa. Fico confuso. Ela inclina a cabeça para o outro lado e seu olhar se suaviza, embora eu não saiba ao certo por quê. Parece maliciosa e cheia de expectativa.

Ouço Fredrik rir baixinho e a porta da geladeira se fechar, mas não tiro os olhos de Sarai.

— As coisas são tão mais fáceis do meu jeito. — Ouço-o dizer, com um sorriso na voz.

— Entre em contato comigo assim que tiver a informação sobre Niklas — peço, ainda olhando nos olhos de Sarai e ignorando o comentário dele. — E quando souber pelo seu contato se Dina Gregory está a salvo em Phoenix.

— Pode deixar — diz Fredrik, e então vai para a porta do corredor que leva ao seu quarto. Mas ele para e olha para nós. — Se você não se importa...

Enfim desvio o olhar de Sarai e dou atenção total a Fredrik.

— Não se preocupe — interrompo —, eu sei onde fica o quarto de hóspedes.

Ele enfia na boca um sanduíche que mal notei que ele preparava e morde, rasgando um pedaço de pão. Eu o vejo piscando para Sarai antes de desaparecer da sala. Foi algo inofensivo, uma menção ao que ele acha que pode acontecer entre nós quando sair, e não uma tentativa de flerte.

— Que informação sobre Niklas? — pergunta Sarai, seus traços suaves agora encobertos pela preocupação.

Estendo a mão e passo os dedos por algumas mechas do cabelo dela.

— Preciso contar muita coisa para você — anuncio, tirando a mão antes de perder o controle e acabar tocando nela mais do que pretendo. — Sei que você deve estar exausta. Por que não toma um banho e fica à vontade primeiro? Depois conversamos.

Um sorrisinho suave emerge em seus lábios, mas logo desaparece em seu rosto enrubescido.

— Você quer dizer que eu estou nojenta? — pergunta ela, tímida. — Esse é o seu jeito de me dizer que preciso lavar meu corpo nojento?

— Na verdade, sim — admito.

Por um momento ela faz uma careta e parece ofendida, mas então só balança a cabeça e dá risada. Admiro isso em Sarai. Admiro muita coisa nela.

— Tudo bem. — Sua expressão brincalhona fica séria de novo. — Mas você precisa me contar tudo, Victor. E eu sei que você deve ter muito para contar, mas saiba que também preciso dizer muita coisa para você.

Eu já esperava isso. E, antes que ela fique na ponta dos pés, incline o corpo na minha direção e me beije, já sei que, quando ela sair do banho, vou precisar decidir o que vamos fazer. Vou precisar tomar algumas decisões importantes, que nos afetarão.

Porque de uma coisa eu tenho certeza: Sarai não pode voltar para casa.


Sarai

Quando volto, Victor está na sala, acomodado na beira do sofá, curvado sobre a mesinha de centro feita de vidro que está cheia de pedaços de papel e fotografias. Entro, mas ele continua remexendo neles sem erguer a cabeça para me olhar. Só que ele não me engana, sei que sente a minha presença tanto quanto quero que ele sinta.

Vasculhei o guarda-roupa de Fredrik procurando uma camiseta branca, que vesti sobre meus seios nus. Infelizmente, tive que usar a mesma calcinha de antes, mas as cuecas boxer de Fredrik não são exatamente o tipo de lingerie que eu gostaria de usar para seduzir Victor. Só uma camiseta e uma calcinha. Claro que fiz questão de vestir o mínimo possível, porque desejo Victor e não tenho nenhuma vergonha de deixar isso claro. Mas ainda custo a acreditar que estou no mesmo cômodo que ele, depois de meses achando que ele havia ido embora para sempre.

Acho que o beijo no elevador é onde minha mente ficou suspensa, como se o tempo tivesse parado naquele momento e cada parte de mim ainda deseje que aquele instante continue. Contudo, o resto do mundo continua passando ao meu redor.

Eu me sento ao lado de Victor, recolhendo um pé descalço para o sofá e enfiando-o sob a minha coxa.

— O que é isso tudo? — Olho para os papéis e fotografias na mesa.

Ele mexe em alguns pedaços de papel, empilhando-os.

— É um serviço — explica ele, colocando a foto de um homem de camiseta regata na pequena pilha. — Agora eu trabalho por conta própria.

Isso me surpreende.

— Como assim? — Acho que sei o que ele quer dizer, mas custo a acreditar.

Ele pega a pilha de papéis e bate as laterais na mesa para ajeitar todas as folhas. Então enfia o maço em um envelope de papel pardo.

— Eu saí da Ordem, Sarai. — Ele olha para mim.

Victor aperta as pontas do fecho prateado para fechar o envelope.

Meus pensamentos se embaralham, minhas palavras ficam confusas na ponta da língua. Luto, desesperada, para acreditar no que ele acaba de me contar.

— Victor... mas... não...

— Sim — confirma ele, virando-se para mim e me olhando bem nos olhos. — É verdade. Eu me rebelei contra a Ordem, contra Vonnegut, e agora eles estão atrás de mim. — Ele volta a mexer nos outros papéis na mesa. — Mas ainda preciso trabalhar, por isso agora trabalho sozinho.

Balanço a cabeça sem parar, sem querer engolir a verdade. A ideia de Victor sendo caçado por aqueles que o fizeram ser como ele é, por qualquer um, faz um pânico febril correr pelas minhas veias.

Solto um longo suspiro.

— Mas... mas e Fredrik? E Niklas? Victor, eu... O que está acontecendo?

Ele respira fundo e deixa a folha de papel cair suavemente na mesa, então reclina as costas no sofá.

— Fredrik ainda trabalha para a Ordem. Está lá dentro. Ele vigia Niklas e... — seus olhos cruzam com os meus por um instante —... tem me ajudado a manter você a salvo.

Antes que eu consiga fazer mais perguntas presas na garganta, Victor se levanta e continua a falar, enquanto fico sentada e o observo com a boca semiaberta e as pernas dobradas sobre a almofada.

— Como você sabe, quando alguém está sob suspeita de trair a Ordem, é imediatamente eliminado. Mas acredito que Niklas deixou Fredrik vivo e não transmitiu suas preocupações a Vonnegut pelo simples fato de que Niklas está usando Fredrik para me encontrar. Assim como deixou você viva todo este tempo, esperando que um dia você o levasse a mim.

O que mais me choca não é o que Victor diz, mas o que ele deixa de fora. Tiro as duas pernas de cima do sofá e pressiono os pés no chão de madeira, apoiando as mãos nas almofadas.

— Victor, o que você está me dizendo? Quer dizer que... Niklas continua com Vonnegut?

Espero que não seja isso que ele esteja tentando me dizer. Espero de todo o coração que minha decisão de deixar Niklas vivo aquele dia no hotel, quando ele atirou em mim, não tenha sido o maior erro da minha vida.

Os olhos de Victor vagam para a porta de vidro, e sinto que uma espécie de sofrimento infinito o consome, mas ele não deixa transparecer.

— Você estava lá. Eu disse para o meu irmão que, se ele decidisse continuar na Ordem caso eu resolvesse sair, eu não ficaria bravo com ele. Dei a ele a minha palavra, Sarai. — Victor vai até a porta de vidro, cruza os braços e olha para a piscina azul iluminada que reluz sob o céu cinzento. — Agora é hora de Niklas brilhar, e não vou tirar isso dele.

— Que absurdo! — Salto do sofá com os punhos fechados. — Ele está atrás de você, não é? — Cerro os dentes e contorno a mesinha de centro. — Caralho, é isso, Victor? Para provar seu valor para Vonnegut, ele foi encarregado de matar você. Aquele merda do seu irmão traiu você. Ele acha que vai pegar o seu lugar na Ordem. Puta que pariu, não acredito...

— É o que é, Sarai — interrompe Victor, virando-se para me encarar. — Mas, neste momento, Niklas é a menor das minhas preocupações.

Cruzando os braços, começo a andar de um lado para outro, olhando os veios claros e escuros da madeira sob meus pés descalços. Minhas unhas ainda têm o esmalte vermelho-sangue de duas semanas atrás.

— Por que saiu da Ordem?

— Eu tive que sair. Não tinha escolha.

— Não acredito.

Victor suspira.

— Vonnegut descobriu sobre a gente — conta ele, ganhando minha atenção total. — Foi Samantha... na noite em que ela morreu. Antes que eu saísse da Ordem, encontrei Vonnegut em Berlim, o primeiro encontro frente a frente que tive com ele em meses. Foi em uma sala de interrogatório. Quatro paredes. Uma porta. Uma mesa. Duas cadeiras. Somente eu e Vonnegut sentados frente a frente, com uma luz brilhando no teto acima de nós. — Victor olha para trás pela porta de vidro e depois continua: — No início, eu estava certo de que ele tinha me levado para lá com a intenção de me matar. Eu estava preparado...

— Para morrer? — Se Victor responder que sim, vou dar um tapa na cara dele.

— Não — responde ele, e consigo respirar um pouco melhor. — Eu fui para lá preparado. Raptei a mulher de Vonnegut antes de ir encontrá-lo. Fredrik a manteve em uma sala, pronto para fazer... as coisas dele, caso fosse necessário.

No mesmo instante, quero perguntar o que são as “coisas” de Fredrik, mas deixo a pergunta de lado por enquanto e digo:

— Se Vonnegut quisesse matar você, a esposa dele seria a sua moeda de troca.

De costas para mim, ele assente.

— Samantha estava sendo vigiada pela Ordem. Provavelmente há muito tempo.

— Eles desconfiavam da traição dela? Por que não a mataram, então, como fizeram com a mãe de Niklas, ou como queriam fazer com Niklas?

Victor se vira para me encarar de novo.

— Eles não desconfiavam dela, Sarai, ela era... — Victor respira fundo e aperta os lábios.

— Ela era o quê? — Chego mais perto dele. Não gosto do rumo que a conversa está tomando.

— Ela era mais leal à Ordem do que eu jamais poderia ter imaginado — conta ele, e isso fere meu coração. — Sentado naquela sala com Vonnegut, quanto mais ele falava, mais eu começava a entender que Samantha me traiu da mesma forma que Niklas. Vonnegut me contou coisas que ele não tinha como saber. Ele sabia que eu ajudei você. Em algum momento antes de morrer, naquela noite, Samantha conseguiu passar informações a Vonnegut sobre nossa estadia por lá.

— Não acredito nisso. — Golpeio o ar com a mão diante de mim. — Samantha morreu tentando me proteger. Já falamos sobre isso. Não acredito em você, Victor. Ela era uma boa pessoa.

— Ela era boa manipuladora, Sarai, nada mais do que isso.

Balanço a cabeça, ainda sem acreditar.

— Foi Niklas quem contou a Vonnegut que você me ajudou. Só pode ter sido. Niklas sabia até que você tinha me levado para a casa de Samantha.

— Sim, mas Niklas não sabia que eu fiz Samantha provar nossa comida antes de a gente comer, naquela noite. Assim que Vonnegut mencionou quanto eu ainda desconfiava dela depois de tantos anos, eu soube que ela havia me traído.

— Mas isso não faz nenhum sentido. — Começo a andar pela sala de novo, de braços cruzados e com uma das mãos apoiada no rosto. — Por que ela me protegeria de Javier?

— Porque ela não era leal a Javier.

Jogo as mãos para o ar, atônita com aquela revelação.

— Não dá para confiar em ninguém — digo, me jogando no sofá e olhando para o nada.

— Não, não dá — concorda Victor, e eu olho para cima, detectando um significado oculto por trás de suas palavras. — Agora talvez você entenda por que eu não me envolvo com ninguém. Não é só o trabalho, Sarai. As pessoas em geral não são confiáveis, especialmente na minha profissão, na qual a confiança é tão rara que não vale a pena perder tempo e esforço procurando por ela.

— Mas você parece confiar em Fredrik — observo, olhando para Victor do sofá. — Por que me trouxe logo aqui? Não aprendeu a lição com Samantha?

Sua expressão fica um pouco mais sombria, ressentida pela minha acusação.

— Eu nunca disse que confiava em Fredrik. Mas no momento ele é meu único contato dentro da Ordem e, nos últimos sete meses, não fez nada que não o tornasse digno de confiança. Ao contrário, fez tudo para provar sua lealdade a mim.

— Mas isso não significa que seja verdade.

— Não, você tem razão, mas logo vou saber com cem por cento de certeza se Fredrik é confiável ou não.

— Como?

— Você vai descobrir comigo.

— Por que se dar a esse trabalho? Você disse que a confiança é tão rara que não vale o esforço.

— Você faz muitas perguntas.

— Pois é, acho que faço. E você não responde o suficiente.

— Não, acho que não. — Victor abre um sorrisinho, e meu coração se derrete instantaneamente em uma poça de mingau.

Desvio os olhos dos dele e disfarço meus sentimentos.

— Não estou segura aqui — digo, encarando-o novamente.

— Você não está segura em lugar nenhum — corrige Victor. — Mas, enquanto estiver comigo, nada vai acontecer com você.

— Quem está falando merda agora?

Ele levanta uma sobrancelha.

— Você não é meu herói, lembra? — digo para refrescar a memória de Victor. — Não é minha alma gêmea que jamais deixará que nada de ruim aconteça comigo. Devo confiar nos meus instintos primeiro e em você, se eu decidir confiar, por último. Você me disse isso certa vez.

— E continua sendo verdade.

— Então como pode dizer que nada vai me acontecer se eu estiver com você?

A expressão de Victor fica vazia, como se pela primeira vez na vida alguém o tivesse deixado sem palavras. Olho para seu rosto silencioso e sem emoção, e apenas seus olhos revelam um traço de torpor. Tenho a sensação de que ele falou sem pensar, que manifestou algo que sente de verdade, mas que jamais quis que eu soubesse: Victor quer ser meu herói, vai fazer qualquer coisa, tudo o que puder para me manter a salvo. Quer que eu confie totalmente nele.

E confio.

Ele volta para perto de mim e se senta ao meu lado. O cheiro de seu perfume é fraco, como se ele fizesse questão de usar o mínimo possível. Estou tonta de desejo. Ansiosa para sentir novamente seu toque, saborear seus lábios quentes, deixar que ele me tome como fez algumas noites antes que nos víssemos pela última vez. Não tenho pensado em nada além de Victor nos últimos oito meses da minha vida. Enquanto durmo. Como. Vejo TV. Transo. Me masturbo. Tomo banho. Cada coisa que fiz desde que ele me deixou naquele hospital com Dina fiz pensando nele.

— Você acha que Fredrik vai contar a Niklas onde a gente está? — Mudo de assunto por medo de deixar transparecer muita coisa cedo demais.

— Acho que se ele fosse fazer isso teria contado a Niklas o pouco que sabia sobre o seu paradeiro há muito tempo, e Niklas já teria tentado matar você — responde Victor.

— Tem alguma coisa... estranha em Fredrik. Você não sente?

Victor passa a mão pelo meu cabelo úmido. O gesto faz meu coração disparar.

— Você tem grande sensibilidade para as pessoas, Sarai — comenta ele, levando a mão ao meu queixo. — Tem razão sobre Fredrik. — Ele passa o polegar pelo meu lábio inferior. Um calafrio percorre o meio das minhas pernas. — Ele é... como dizer?... desequilibrado, de certa forma.

Minha respiração acelera, e sinto meus cílios tocando meu rosto quando os lábios de Victor cobrem os meus.

— Desequilibrado de que forma? — pergunto, ofegante, quando ele se afasta.

De olhos fechados, percebo que ele está observando a curva do meu rosto e meus lábios e sinto a respiração que sai suavemente de suas narinas.

Cada pelinho minúsculo se eriça quando a outra mão de Victor sobe e encontra minha cintura nua por baixo da camiseta. Seus dedos longos dançam sobre a pele do meu quadril e param por ali.

Abro os olhos e vejo os dele me encarando.

— Algum problema? — pergunta ele, e sua boca roça a minha de novo.

— Não, eu... eu só não esperava isso.

— Esperava o quê?

Sinto seus dedos levantando o elástico da minha calcinha. Minha cabeça está girando, sinto meu estômago se transformar em um emaranhado de músculos, trêmulo e nervoso.

— Isso — respondo, piscando. — Você está diferente — acrescento, baixinho.

— Culpa sua — diz Victor, e então seus lábios devoram os meus.

Ele me deita no sofá e se encaixa entre as minhas pernas.

Seu celular vibra na mesinha de centro, e percebo quanto sou humana quando xingo Fredrik por estragar aquele momento, mesmo que seja para me avisar de que Dina está a salvo.


CONTINUA

CAPÍTULO UM

Sarai

Já faz oito meses que fugi da fortaleza no México onde fui mantida contra minha vontade por nove anos. Estou livre. Levo uma vida “normal”, fazendo coisas normais com gente normal. Não fui mais atacada, ameaçada nem seguida por ninguém que ainda queira me matar. Tenho uma “melhor amiga”, Dahlia. Tenho a coisa mais parecida com uma mãe que já conheci, Dina Gregory. O que mais eu poderia querer? Parece egoísmo desejar qualquer outra coisa. Mas, apesar de tudo o que tenho, algo não mudou: continuo vivendo uma mentira.

Deixei amigos na Califórnia: Charlie, Lea, Alex e... Bri... Não, espera, quero dizer Brandi. Meu ex-namorado, Matt, era abusivo, por isso voltei para o Arizona. Ele me perseguiu por muito tempo depois que terminamos. Consegui uma ordem judicial para mantê-lo afastado, mas não funcionou. Ele atirou em mim há oito meses, mas não posso provar porque não cheguei a vê-lo. E tenho muito medo de denunciá-lo à polícia.

Claro que tudo isso é mentira.

São os pedaços da minha vida que acobertam o que realmente aconteceu comigo. Os pretextos para eu ter desaparecido aos 14 anos e ter ido parar em um hospital da Califórnia com um ferimento a bala. Jamais vou poder contar a Dina, Dahlia ou ao meu namorado, Eric, o que aconteceu de verdade: que fui levada para o México pela péssima versão de mãe que eu tinha, para morar com um chefão do tráfico. Jamais vou poder contar que fugi daquele lugar depois de nove anos e matei o homem que me manteve prisioneira por toda a minha adolescência. Quer dizer, claro que eu poderia contar a alguém, mas, se fizesse isso, só estaria pondo Victor em perigo.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/2_O_RETORNO_DE_IZABEL.jpg

 

Victor.

Não, nunca vou poder contar que um assassino me ajudou a fugir, ou que testemunhei Victor matando várias pessoas, inclusive a esposa de um empresário famoso e importante de Los Angeles. Nunca vou poder contar que, depois de tudo pelo que passei, depois de tudo o que vi, o que mais quero é fazer as malas e voltar para aquela vida perigosa. A vida com Victor.

Até hoje, falar o nome dele me acalma. Às vezes, quando estou acordada na cama à noite, murmuro seu nome só para ouvi-lo, porque preciso. Preciso dele. Não consigo tirá-lo da cabeça. Já tentei. Porra, e como tentei. Mas, não importa o que eu faça, continuo vivendo cada dia da minha vida pensando nele. Se está me vigiando. Se pensa em mim tanto quanto penso nele. Se ainda está vivo.

Pressiono o travesseiro contra a cabeça e fecho os olhos, imaginando Victor. Às vezes, é só assim que consigo gozar.

Eric aperta minhas coxas com as mãos e me imobiliza na cama, com o rosto enfiado no meio das minhas pernas.

Arqueio o quadril contra ele, roçando de leve contra sua língua frenética, até que ele faça meu corpo todo enrijecer e minhas coxas tremerem ao redor da sua cabeça.

— Meu Deus... — Estremeço enquanto gozo, então deixo os braços caírem entre as pernas, afundando os dedos no cabelo preto de Eric. — Caramba...

Sinto os lábios de Eric tocando minha barriga um pouco acima da pélvis.

Olho para o teto como sempre faço depois de um orgasmo, pois a culpa que sinto me deixa com vergonha de olhar para Eric. Ele é um cara superlegal. Meu namorado sexy de 27 anos, cabelo preto e olhos azuis, gentil, encantador, engraçado e perfeito. Perfeito para mim se eu nunca tivesse conhecido Victor Faust.

Estou arruinada pelo resto da vida.

Enxugo as gotas de suor da testa e Eric sobe pela cama, deitando-se ao meu lado.

— Você sempre faz isso — diz ele, brincando, enquanto cutuca minhas costelas com os nós dos dedos.

Como sinto muitas cócegas, eu me encolho e me viro para encará-lo. Sorrio com ternura e passo um dedo por seu cabelo.

— O que eu sempre faço?

— Esse negócio de ficar em silêncio. — Eric segura meu queixo entre o polegar e o indicador. — Eu faço você gozar e você fica bem quieta durante um tempão.

Eu sei e sinto muito, mas preciso apagar o rosto de Victor da minha cabeça antes de conseguir olhar você nos olhos. Sou uma pessoa horrível.

Eric me dá um beijo na testa.

— Isso se chama recuperação — brinco, beijando os dedos dele. — É totalmente inofensivo. Mas você deveria interpretar como um bom sinal. Você sabe o que está fazendo — digo, retribuindo o cutucão nas costelas.

E ele sabe mesmo o que está fazendo. Eric é ótimo na cama. Mas ainda sou emocionalmente muito ligada... viciada... em Victor, e tenho a sensação de que sempre serei.

Só consegui seguir a vida e me abrir a outros relacionamentos cinco meses depois que Victor foi embora. Conheci Eric no trabalho, na loja de conveniência. Ele comprou um saco de biscoitos e um energético. Depois disso, ele aparecia na loja duas, às vezes três vezes por semana. Eu não queria nada com ele. Queria Victor. Mas comecei a perder a esperança de que Victor um dia fosse voltar para mim.

Eric tenta passar um braço ao redor do meu corpo, mas me levanto casualmente e visto a calcinha. Ele não desconfia de nada, o que é bom. Não sinto vontade de ficar abraçadinha, mas a última coisa que quero é magoá-lo. Ele ergue os braços e entrelaça os dedos atrás da cabeça. Olha para mim, do outro lado do quarto, com um sorriso sedutor. Sempre faz isso quando não estou completamente vestida.

— Sarai.

— Oi. — Visto a camiseta e ajeito o rabo de cavalo.

— Eu sei que está em cima da hora — diz Eric —, mas queria ir com você e Dahlia para a Califórnia amanhã.

Merda.

— Mas você não disse que não ia conseguir folga no trabalho? — pergunto, vestindo o short e calçando os chinelos.

— Quando você perguntou se eu queria ir, não ia dar mesmo. Mas contrataram um funcionário novo, e meu chefe decidiu me dar folga.

Isso é uma péssima notícia. Não porque eu não o queira por perto — gosto de Eric, apesar da minha incapacidade de esquecer Victor Faust —, mas minha viagem de “férias” à Califórnia amanhã não é para fazer turismo, curtir a noite nem fazer compras na Rodeo Drive.

Estou indo até lá para matar um homem. Ou melhor, tentar matar um homem.

Já é ruim que Dahlia vá também, e já vai ser difícil guardar segredo de uma pessoa. Imagine duas.

— Você... não parece animada — comenta Eric, seu sorriso morrendo aos poucos.

Abro um sorriso largo e balanço a cabeça, voltando para perto dele e me sentando na beira da cama.

— Não, não, eu estou animada. É que você me pegou de surpresa. A gente vai sair às seis da manhã. É daqui a menos de oito horas. Você já fez as malas?

Eric dá uma risada e se estica na minha cama, me puxando para si. Eu me sento perto de sua cintura, apoiando um braço no colchão do outro lado dele, com os pés para fora da cama.

— Bom, eu só fiquei sabendo hoje à tarde, antes de sair do trabalho — explica ele. — Eu sei, está em cima da hora, mas só preciso enfiar umas coisas na mala e estou pronto.

Ele estende a mão e afasta do meu rosto os fios de cabelo que escaparam do rabo de cavalo.

— Ótimo! — minto, com um sorriso igualmente falso. — Então acho que está combinado.

Dina acorda antes de mim, às quatro da manhã. O cheiro de bacon é o que me desperta. Levanto da cama e entro debaixo do chuveiro antes de me sentar à mesa da cozinha. Um prato vazio já está à minha espera.

— Gostaria que você tivesse escolhido algum outro lugar para passar sua folga, Sarai — afirma Dina.

Ela se senta do outro lado da mesa e começa a encher seu prato. Pego alguns pedaços de bacon do monte e ponho no meu.

— Eu sei — digo —, mas, como falei para você, não vou deixar que meu ex me impeça de ver meus amigos.

Ela balança a cabeça cada vez mais grisalha e suspira.

Passei do limite em algum momento com meu amontoado de mentiras. Quando Victor levou Dina para o hospital em Los Angeles, depois que o irmão dele, Niklas, atirou em mim, ela não fazia ideia do que tinha acontecido. Só sabia que eu tinha levado um tiro. Demorei alguns meses até me sentir segura o suficiente para falar com ela sobre isso. Quer dizer, depois de bolar a história que eu ia contar. Foi aí que inventei o lance do ex-namorado violento. Eu deveria ter dito que fui assaltada. Por um desconhecido. A mentira seria muito mais fácil de manter. Agora que ela sabe que vou voltar para Los Angeles, está morrendo de preocupação, e já faz uns dois meses. Eu nem deveria ter contado que ia voltar lá.

Termino de comer o bacon e um pouco de ovos mexidos, junto com um copo de leite.

Dahlia e Eric chegam juntos assim que termino de escovar os dentes.

— Vamos logo, a gente precisa pegar a estrada — chama Dahlia, me apressando da porta. Seu cabelo castanho-claro está preso no alto da cabeça em um coque desalinhado de quem acabou de acordar.

Eu me despeço de Dina com um abraço.

— Eu vou ficar bem — digo a ela. — Prometo. Não vou nem chegar perto de onde ele mora.

Desta vez, chego até a imaginar um rosto masculino ao falar de alguém que não existe. Acho que já interpreto esse papel há tanto tempo que “Matt” e todos esses meus “amigos” de Los Angeles, de quem falo para todo mundo como se fossem reais, se tornaram reais no meu subconsciente.

Dina força um sorriso em seu rosto preocupado, e suas mãos soltam meus cotovelos.

— Você liga assim que chegar?

— Assim que eu entrar no quarto do hotel, ligo — respondo, assentindo.

Ela sorri e eu a abraço mais uma vez, antes de segui-los até o carro de Dahlia, que está esperando. Eric guarda minha mala no bagageiro, junto com as deles, e se senta no banco de trás.

— Hollywood, aí vamos nós! — exclama Dahlia.

Finjo metade da empolgação dela. Ainda bem que está muito cedo, senão Dahlia poderia intuir o verdadeiro motivo da minha falta de entusiasmo. Estico os braços para trás e bocejo, apoiando a cabeça no banco do carro. Sinto a mão de Eric no meu pescoço quando ele começa a massagear meus músculos.

— Não sei por que você quer ir a Los Angeles de carro — diz Dahlia. — Se a gente fosse de avião, não ia precisar acordar tão cedo. E você não estaria tão cansada e rabugenta.

Minha cabeça cai para a esquerda.

— Não estou rabugenta. Ainda mal falei com você.

Ela dá um sorrisinho.

— Exatamente. Sarai sem falar significa Sarai rabugenta.

— E se recuperando — acrescenta Eric.

Meu rosto fica vermelho e eu estico a mão atrás da cabeça, dando um tapinha de brincadeira na dele, que está fazendo maravilhas no meu pescoço. Fecho os olhos e vejo Victor.

Não de propósito.

Chegamos a Los Angeles depois de quatro horas na estrada. Eu não podia ir de avião porque não conseguiria levar minhas armas. É claro que Dahlia não pode saber disso. Ela acha apenas que quero apreciar a paisagem.

Tenho sete dias para fazer o que vim fazer. Isto é, se eu conseguir. Pensei no meu plano durante meses, em como vou fazer isso. Sei que é impossível entrar na mansão Hamburg. Para isso, eu precisaria ter um convite e socializar em público com o próprio Arthur Hamburg e seus convidados. Ele viu meu rosto. Bem, tecnicamente, viu mais do que meu rosto. Mas sinto que os acontecimentos daquela noite, quando Victor e eu enganamos Hamburg para que ele nos convidasse para ir ao seu quarto e conseguíssemos matar sua esposa, são algo que ele jamais vai esquecer, nem os mínimos detalhes.

Se tudo der certo, uma peruca loura platinada de cabelo curto e maquiagem escura e pesada vão esconder aquela identidade de cabelo longo e castanho que Hamburg reconheceria assim que eu aparecesse.


CAPÍTULO DOIS

Sarai

Passo o dia todo com Eric e Dahlia, fingindo me divertir para passar o tempo. Saímos para almoçar e para fazer um tour por Hollywood com um guia e visitar um museu antes de voltarmos para o hotel, exaustos. Quer dizer, finjo estar exausta o suficiente para querer dar o dia por encerrado. Na verdade, o que preciso é me preparar para ir ao restaurante de Hamburg ainda hoje.

Dahlia já acha que tem algo errado comigo.

— Você está ficando doente? — pergunta ela, estendendo a mão entre nossas espreguiçadeiras à beira da piscina e sentindo a temperatura da minha testa.

— Estou ótima — respondo. — Só cansada porque levantei muito cedo. E quando foi a última vez que andei tanto assim em um dia só?

Dahlia volta a se recostar em sua espreguiçadeira e ajeita os óculos de sol grandes e redondos no rosto.

— Bom, espero que não esteja cansada amanhã — diz Eric, do outro lado. — Tem tantas coisas que eu quero fazer. Não venho para Los Angeles desde que meus pais se divorciaram.

— Pois é. É a minha primeira vez aqui em dois anos — afirma Dahlia.

Um adolescente pula na piscina e a água respinga em nós. Ergo as costas da espreguiçadeira e agito a revista que estava lendo para tirar as gotas. Ponho os óculos escuros no alto da cabeça. Jogo as pernas para o lado e fico de pé.

— Acho que vou voltar para o quarto e tirar uma soneca — anuncio, pegando minha bolsa do chão.

Eric se ergue também e tira os óculos escuros.

— Se quiser, vou com você — oferece ele.

Agito a mão para ele, pedindo que não se levante.

— Não, fica aí e faz companhia para a Dahlia — sugiro, ajeitando a bolsa no ombro. Abaixo os óculos escuros de novo para que ele não perceba minha mentira.

— Tem certeza de que você está bem? — pergunta Dahlia. — Sarai, você está de férias, lembra? Veio para cá se divertir, não para cochilar.

— Acho que vou estar cem por cento amanhã. Só preciso de um banho quente e demorado e de uma boa noite de sono.

— Ok, vou acreditar — diz Dahlia. — Mas nem vem com doença para o meu lado. — Ela aponta o dedo para mim, com ar severo.

Eric fecha os dedos em torno do meu pulso e me puxa para perto.

— Tem certeza de que não quer que eu vá? — Ele me beija e eu correspondo antes de me levantar de vez.

— Tenho — respondo, baixinho, e saio na direção do elevador.

Assim que entro no quarto, tranco a porta com a corrente para que Eric e Dahlia não entrem de surpresa, jogo a bolsa no chão e abro meu laptop, digitando a senha. Enquanto o laptop inicia, olho pela janela e vejo meus amigos, figuras pequenas daquela distância, ainda à beira da piscina. Eu me sento diante da tela e, provavelmente pela centésima vez, olho cada página do site do restaurante de Hamburg, verificando de novo o horário de funcionamento e passando os olhos pelas fotos profissionais do lugar, dentro e fora. Na verdade, nada disso me ajuda muito com o que pretendo fazer, mas olho tudo de novo todo dia, de qualquer maneira.

Derrotada, bato a palma da mão com força no tampo da mesa.

— Droga! — exclamo, desabando na poltrona enquanto passo as mãos pelo cabelo.

Ainda não sei como vou conseguir ficar a sós com Hamburg sem ser vista. Sei que estou dando um passo maior do que a perna. Sei disso desde que tive essa ideia maluca, mas também sei que, se ficar apenas pensando a respeito, nunca vou passar dessa fase.

Vim para cá com um plano: entrar disfarçada no restaurante e agir como qualquer outro cliente. Sondar o lugar por uma noite. Saber onde ficam as saídas. As entradas para outras partes do prédio. Os banheiros. Minha prioridade número um, contudo, é encontrar a sala de onde Hamburg observa do alto seus clientes e ouve a conversa deles pelo minúsculo microfone escondido no arranjo de cada mesa. Então pretendo me enfiar na sala e cortar a garganta daquele porco.

Contudo, agora que estou aqui, a menos de seis quadras do restaurante, e agora que o tempo está passando tão depressa, estou menos confiante. Isso não é um filme. Sou uma idiota por achar que posso adentrar um lugar desses sem ser vista, tirar a vida de um homem sem chamar atenção e fugir sem ser capturada.

Apenas Victor conseguiria fazer algo assim.

Bato no tampo da mesa de novo, mais de leve desta vez, fecho o laptop e me levanto. Ando de um lado para outro no carpete vermelho e verde. E bem quando resolvo seguir pelo corredor para o quarto separado que reservei sem Dahlia e Eric saberem, a porta se abre um pouco, mas é travada pela corrente.

— Sarai? — chama Dahlia do outro lado. — Vai deixar a gente entrar?

Suspiro fundo e destranco a porta.

— Por que a corrente? — pergunta Eric, entrando atrás de Dahlia.

— Força do hábito.

Eu me jogo na ponta da cama king-size.

Os dois deixam suas coisas no chão. Dahlia se senta à mesa, ao lado da janela, e Eric se deita atravessado na cama ao meu lado, cruzando as pernas na altura dos calcanhares.

— Pensei que você ia tirar uma soneca — diz Dahlia.

Ela passa os dedos com cuidado pelo cabelo úmido, fazendo caretas quando se depara com alguma mecha mais embaraçada.

— Dahlia — digo, olhando para os dois. — Eu subi agora há pouco. Pensei que vocês iam ficar na piscina mais um tempo.

Espero ter conseguido disfarçar o aborrecimento na minha voz por eles terem vindo me encontrar tão cedo. Não consigo evitar: estou estressada demais, além de preocupada com a simples presença dos dois aqui comigo. Não quero que eles se machuquem nem que se envolvam de forma alguma com meu motivo para estar aqui.

— A gente pode sair e deixar você sozinha, se quiser — sugere Eric, baixinho, atrás de mim.

Eu me arrependo na mesma hora do que disse, porque é óbvio que não disfarcei o aborrecimento tão bem quanto esperava.

Inclino a cabeça para trás e suspiro, esticando o braço para tocar o tornozelo dele.

— Desculpa — digo, sorrindo para Dahlia. — Sabe, eu... — Então, de repente, uma desculpa perfeitamente plausível para o modo como tenho agido surge na minha cabeça, e a torneira das mentiras se abre. — Eu só fico meio nervosa por estar de volta a Los Angeles.

Dahlia faz cara de “ah, entendi”, empurra os pés de Eric para o lado e se senta perto de mim. Ela passa o braço por cima dos meus ombros e segura meu antebraço.

— Imaginei que o problema fosse esse.

Percebo que ela olha de relance para Eric e tenho a impressão de que foi sobre isso que os dois falaram enquanto ficaram na piscina, depois que fui embora.

Aposto que também foi por isso que decidiram subir tão cedo para me ver.

— A gente queria ver como você estava — acrescenta Eric atrás de mim, confirmando minha suspeita.

Sinto a cama se mexer quando ele se senta.

Eu me levanto antes que ele consiga me abraçar. É nesse exato momento que me dou conta de como tenho feito isso com frequência no último mês. Não sei por quanto tempo mais vou conseguir enganá-lo. Sei que deveria simplesmente contar o que sinto, que não gosto tanto de Eric quanto ele gosta de mim. Mas não consigo dizer a verdade. Eu precisaria inventar mais uma mentira, e estou tão atolada em mentiras que me sinto afogada nelas.

Ao mesmo tempo, deixei nossa relação durar tanto porque eu queria de verdade sentir por ele algo tão profundo quanto o que ele parece sentir por mim. Queria seguir em frente, esquecer Victor e ser feliz com a vida que ele me deixou.

Mas não consigo. Não consigo mesmo...

— Ele nem vai saber que você está aqui — diz Eric sobre “Matt”. — Além disso, mesmo que ele descobrisse, eu ia encher o cara de porrada assim que o visse.

Esboço um sorriso para Eric.

— Eu sei que você faria isso — digo, mas me sinto ainda pior, porque os únicos dois amigos que tenho no mundo não fazem nem ideia de quem sou.

Cruzo os braços, vou até a janela e olho para fora.

— Sarai — chama Dahlia. — Não queria dizer isso, mas, se você está tão preocupada com a possibilidade de Matt descobrir que você está em Los Angeles, acho que não é boa ideia visitar seus amigos aqui.

— Eu sei, você tem razão. Sei que eles não contariam para Matt, mas acho que é melhor eu ficar só com vocês dois enquanto estivermos aqui.

Eu me viro para encará-los.

— É um bom plano — diz Eric, com um sorriso radiante.

É um bom plano, com certeza, porque agora não preciso mais inventar outra desculpa para não apresentar os dois aos meus amigos que não existem.

Dahlia se aproxima de mim.

— A gente devia ter ido para a Flórida ou algum lugar assim, hein?

Olho pela janela de novo.

— Não — respondo. — Adoro esta cidade. E sei que vocês queriam muito vir para cá. — Dou um sorriso rápido. — Sugiro que a gente curta ao máximo esta semana.

Ela me empurra com o ombro de brincadeira.

— Essa é a Sarai que eu conheço — diz Dahlia, sorrindo.

É, só que não sou essa pessoa...

Ela vai até Eric e o puxa pelo braço, levantando-o da cama.

— Vamos sair daqui e deixar a mocinha descansar.

Eric se levanta e se aproxima de mim. Então pega meus braços e me vira para encará-lo. Com aqueles olhos azul-bebê, ele faz a melhor expressão amuada que consegue.

— Se precisar de mim para qualquer coisa, pode me chamar que eu venho.

Concordo com a cabeça e lhe ofereço um sorriso sincero. Ele merece, por ser tão legal comigo.

— Pode deixar.

Então eu os empurro porta afora com as duas mãos.

— Eu diria para vocês não se divertirem muito sem mim, mas isso seria pedir demais.

Dahlia ri baixinho ao sair para o corredor.

— Não, não é pedir muito. — Ela levanta dois dedos. — Palavra de escoteiro.

— Acho que não é assim que se faz, Dahl — diz Eric.

Ela faz um gesto para dispensar as palavras dele.

— Trate de dormir — sugere Dahlia. — Porque amanhã você vai precisar estar novinha em folha.

— De acordo — digo, assentindo.

— Tchau, amor — diz Eric antes de eu fechar a porta.

Fico com as costas apoiadas na porta e solto um suspiro longo e profundo.

Fingir é difícil demais. Bem mais difícil do que simplesmente ser eu mesma, por mais anormal e imprudente que eu seja.

— Eu sei o que preciso fazer — digo em voz alta.

Falar sozinha é minha nova mania, porque me ajuda a visualizar e entender melhor as coisas.

Volto para a janela e olho a cidade de Los Angeles, com os braços cruzados.

— Preciso de um disfarce, mas não para me esconder de Hamburg. Só das câmeras e de qualquer outra pessoa. Eu quero que Hamburg me veja. Só assim vou conseguir entrar.


CAPÍTULO TRÊS

Sarai

Dahlia e Eric só voltam para o quarto algumas horas mais tarde, depois de escurecer. Eu já tinha tomado banho, vestido short e camiseta e deixado a luz apagada para parecer que estava dormindo. Assim que ouvi o cartão passando pela porta, pulei na cama e me espalhei pelo colchão, como sempre faço quando durmo de verdade. Eric entrou na ponta dos pés, tentando não “me acordar”, mas me virei, soltei um resmungo e abri os olhos para mostrar que acordei. Ele pediu desculpas e perguntou se eu queria ir com ele e Dahlia a uma boate ali perto, insistindo que, se eu não fosse, ele também não iria. Mas logo rejeitei essa ideia. Percebi que ele queria muito ir e não posso culpá-lo: se eu estivesse no lugar dele, não iria querer ficar em um quarto escuro de hotel às oito da noite de uma sexta-feira, em uma das cidades mais animadas dos Estados Unidos.

Eric e Dahlia saírem era exatamente do que eu precisava. Passei aquelas duas horas inteiras tentando inventar uma desculpa para explicar a eles por que eu ia sair, aonde iria e por que eles não poderiam ir junto.

Eles resolveram isso para mim.

Minutos após Eric sair do quarto, espero Dahlia — em seu próprio quarto, ao lado do nosso — tirar o biquíni e se vestir. Pelo olho mágico da minha porta, eu os vejo indo embora pelo corredor. Conto até cem enquanto ando de um lado para outro sem parar. Então pego minha bolsa e vou até a porta. Ando depressa pelo corredor na direção oposta e chego ao quarto secreto, do outro lado do prédio.

Com certa paranoia de ser flagrada, vasculho minha bolsa e encontro tudo, menos a chave do quarto. Enfim consigo senti-la entre os dedos e me apresso para entrar, travando a porta com a corrente. Abro a mala ao pé da cama e tiro minha peruca curta platinada, passando os dedos para ajeitar as mechas desalinhadas, e então a deixo sobre o abajur ao lado para que não perca a forma.

Visto um Dolce & Gabbana curtinho e me maquio com cores escuras e pesadas, o que, depois de passar um tempão praticando em casa, faço bem. Então calço as sandálias de salto alto. Andar de salto é outra coisa que passei muito tempo tentando aprender. Meu alter ego, Izabel Seyfried, saberia andar de salto e o faria bem. Por isso, eu precisava acompanhar.

Em seguida, molho o cabelo e o divido em duas partes atrás. Enrolo cada metade e cruzo uma sobre a outra na nuca. Vários grampos depois, meu longo cabelo castanho está bem preso no couro cabeludo. Visto a touca da peruca e depois a própria peruca, ajustando-a por muito tempo até deixar tudo perfeito.

Por fim, prendo uma bainha de punhal em torno da coxa e a cubro com o tecido do vestido.

Fico de pé diante do espelho de corpo inteiro e me avalio de todos os ângulos possíveis. Estar loura é estranho. Satisfeita, pego a bolsinha preta e a enfio debaixo do braço, com a pequena pistola formando certo volume nela. Estico o braço para girar a maçaneta, mas deixo minha mão cair junto ao corpo.

“Que droga eu estou fazendo?”

O que precisa ser feito.

“E por que eu estou fazendo isso?”

Porque preciso.

Não consigo tirar da cabeça as coisas que aquele homem confessou, as pessoas que matou por causa de um fetiche sexual doentio. Todas as noites desde que Victor me deixou, quando fecho os olhos, vejo o rosto de Hamburg e aquele sorriso de gelar o sangue que ele abriu quando me curvei sobre a mesa, exposta na frente dele. Vejo o rosto de sua esposa, esquelético e combalido, seus olhos fundos turvados pela resignação. Ainda sinto até o fedor da urina que secou em suas roupas e no catre infestado onde ela dormia, naquele quarto escondido.

Meu peito se enche de ar e eu o prendo por vários segundos, antes de soltar um longo suspiro.

Não posso esquecer. A necessidade de matá-lo é como uma coceira no meio das costas. Não posso alcançar naturalmente, mas vou me curvar e torcer os braços até doerem para coçar.

Não posso esquecer...

E talvez... só talvez também acabe chamando a atenção de um certo assassino que não consigo me obrigar a esquecer.

Assim que passo pela porta, deixo Sarai para trás e me torno Izabel por uma noite.

Por não ter pensado de antemão na importância de ao menos alugar um carro chique, salto do táxi a duas quadras do restaurante e ando o resto do caminho. Izabel jamais seria vista andando de táxi.

— Mesa para um? — pergunta o recepcionista assim que entro no restaurante.

Inclino a cabeça e olho para ele com um ar irritado.

— Algum problema? Não posso fazer uma refeição sozinha? Ou você está dando em cima de mim? — Abro um sorrisinho e inclino a cabeça para o outro lado. Ele está ficando nervoso. — Você gostaria de jantar comigo... — olho para o nome bordado no paletó — ... Jeffrey? — Chego mais perto. Ele dá um passo constrangido para trás.

— Hã... — Ele hesita. — Peço desculpas, senhora...

Recuo, trincando os dentes.

— Nunca me chame de senhora — digo com rispidez. — Me leve até uma mesa. Para um.

Ele assente e pede que eu o siga. Quando chego à minha mesinha redonda com duas cadeiras, no meio do restaurante, me sento e deixo a bolsa ao lado. Um garçom se aproxima quando o recepcionista se afasta e me apresenta a carta de vinhos. Eu a rejeito com um movimento dos dedos.

— Quero apenas água com uma rodela de limão.

— Pois não, senhora — diz ele, mas deixo passar.

Enquanto o garçom se afasta, começo a examinar o lugar. Há uma placa indicando a saída à minha esquerda, bem longe, perto do corredor. Há outra à minha direita, próxima à escada que leva para o segundo piso. O restaurante está praticamente igual à primeira vez que vim: escuro, não muito cheio e bastante silencioso, embora desta vez eu ouça jazz baixinho vindo de algum lugar. Ao observar o recinto, paro de repente ao ver a mesa à qual me sentei com Victor quando vim com ele, meses atrás.

Eu me perco na memória, vendo tudo exatamente como aconteceu. Quando olho para as duas pessoas sentadas no outro lado do salão, só consigo me ver com Victor:

— Venha cá — diz ele, em um tom de voz mais delicado.

Deslizo os poucos centímetros que nos separam e me sento encostada a ele.

Seus dedos dançam pela minha nuca quando ele puxa minha cabeça para perto de si. Meu coração bate descompassado quando ele roça os lábios na lateral do meu rosto. De repente, sinto sua outra mão entrando pelo meio das minhas coxas e subindo por baixo do vestido. Minha respiração para. Devo abrir as pernas? Devo ficar imóvel e travá-las? Sei o que quero fazer, mas não sei o que devo fazer, e minha mente está a ponto de desistir.

— Tenho uma surpresa para você esta noite — murmura ele no meu ouvido.

Sua mão se aproxima mais do calor no meio das minhas pernas.

Gemo baixinho, tentando não deixar que ele perceba, embora tenha certeza absoluta de que percebeu.

— Que tipo de surpresa? — pergunto, com a cabeça inclinada para trás, apoiada em sua mão.

— Vai querer algo mais? — Ouço uma voz, e sou arrancada do meu devaneio.

O garçom está segurando o cardápio. Minha água com uma rodela de limão na borda do copo já está diante de mim.

Um pouco confusa de início, apenas assinto, mas faço que não em seguida.

— Ainda não sei — respondo, enfim. — Deixe o cardápio. Talvez eu peça mais tarde.

— Pois não — diz o garçom.

Ele deixa o cardápio na mesa e vai embora.

Olho para a varanda e para as mesas encostadas no balaústre requintado. Onde Hamburg pode estar? Sei que ele está no andar de cima porque Victor disse que ele ficava por lá. Mas onde? Eu me pergunto se ele já me viu, e no mesmo instante meu estômago se embrulha de nervoso.

Não, não posso parecer nervosa.

Endireito as costas na cadeira e tomo um gole da água. Deixo o dedo mindinho levantado, o que me faz parecer muito mais rica, ou apenas mais esnobe. Fico observando os clientes indo e vindo, escuto sua conversa supérflua e me pego imaginando qual dos casais que estão ali poderia acabar na mansão de Hamburg no fim de semana, ganhando muito dinheiro para deixar que ele os veja foder.

Então olho para o arranjo de flores vermelhas em um pequeno vaso de vidro no centro da minha mesa. Pego o celular na bolsa, finjo digitar um número e o coloco perto do ouvido, para que ninguém ache que estou falando sozinha.

— Este recado é para Arthur Hamburg — digo em voz baixa, inclinando-me um pouco para a frente a fim de que o microfone escondido no vaso de flores capte minha voz. — Com certeza você se lembra de mim, não é? Izabel Seyfried. Há quanto tempo, não?

Com cuidado, olho para os lados, esperando ver um ou dois homens parrudos de terno se aproximando de mim com armas em punho.

— Não estou sozinha — continuo —, por isso nem pense em fazer alguma idiotice. A gente precisa conversar.

Olhando para a varanda acima de mim, tento descobrir onde ele pode estar, torcendo para que esteja ali. Alguns minutos tensos se passam, e, quando começo a pensar que a noite foi em vão e que eu estava mesmo falando sozinha, noto um movimento no piso superior, logo acima da saída à minha direita. Meu coração bate forte quando vejo a figura alta e escura sair das sombras e descer a escada.

Eu me lembro desse homem de ombros largos, cabelo grisalho e uma covinha no meio do queixo. É o gerente do restaurante, Willem Stephens, que já encontrei aqui uma vez.

Ele se aproxima da minha mesa sem expressar nenhuma emoção, com as mãos enormes cruzadas à frente, as costas retas, o queixo anguloso imóvel.

— Boa noite, srta. Seyfried. — A voz dele é profunda e sinistra. — Posso perguntar onde está seu dono?

Levanto os olhos para encará-lo, dou um sorrisinho, tomo um gole da minha água e devolvo o copo à mesa, sem pressa. Cada fibra do meu ser está gritando, dizendo como fui idiota em vir até aqui. Por mais que eu saiba que é verdade, não importa. Não é o medo que me faz tremer por dentro, é a adrenalina.

— Victor Faust não é meu dono — explico, com calma. — Mas ele está aqui. Em algum lugar. — Um sorriso tênue e dissimulado toca meus lábios.

Os olhos de Stephens percorrem o salão sutilmente e voltam a me encarar.

— Por que está aqui? — pergunta ele, perdendo um pouco o ar de gerente sofisticado.

— Tenho negócios a discutir com Arthur Hamburg — respondo, confiante. — É do maior interesse dele marcar um encontro privado comigo. Aqui. Hoje. De preferência agora.

Tomo outro gole.

Noto que o pomo de adão de Stephens se move quando ele engole em seco, bem como os contornos de seu queixo quando ele cerra os dentes. Ele olha para o lugar de onde veio, no andar de cima, e percebo um aparelhinho preto escondido em seu ouvido esquerdo. Parece que ele está ouvindo alguém falar. Eu chutaria que é Hamburg.

Ele me encara de novo, com os olhos escuros e cheios de ódio, mas mantém o semblante inexpressivo com a mesma perfeição de Victor.

Ele descruza os braços, estende a mão direita para mim e diz:

— Por aqui.

Ele só deixa os braços penderem, relaxados, quando me levanto. Sigo Stephens pelo restaurante e escada acima, para o piso da varanda.

Apenas duas coisas podem acontecer: ou esta será minha primeira noite como assassina ou a última da minha vida.


CAPÍTULO QUATRO

Sarai

— Se encostar em mim — digo para o guarda-costas de terno à porta da sala particular de Hamburg —, enfio suas bolas em um moedor de carne.

As narinas do segurança se dilatam e ele olha para Stephens.

— Você solicitou uma reunião com o sr. Hamburg — diz Stephens atrás de mim. — É claro que vamos revistá-la antes para verificar se está armada.

Droga!

Calma. Fique calma. Faça o que Izabel faria.

Respiro fundo, encarando-os com desprezo e um ar ameaçador. Então jogo minha bolsinha preta no segurança. Ele pega a bolsa quando ela bate em seu peito.

— Acho que está bem claro que eu não conseguiria esconder uma arma em um vestido como este, a menos que a enfiasse na boceta — digo, olhando para Stephens. — Minha arma está na bolsa. Mas nem pense em tocar...

— Deixem a moça entrar — ordena da porta uma voz familiar.

É Hamburg, ainda balofo e grotesco como antes, usando um terno imenso que parece em vias de estourar se ele respirar fundo demais.

Abro um leve sorriso para o segurança, que me encara com olhos assassinos. Conheço esse olhar, até demais. O homem tira a pistola e me devolve a bolsa.

— Sr. Hamburg — diz Stephens —, eu deveria ficar na sala com o senhor.

Hamburg balança a papada, rejeitando a sugestão.

— Não, vá cuidar do restaurante. Se essas pessoas tivessem vindo me matar, não seriam tão óbvias. Eu vou ficar bem.

— Pelo menos deixe Marion à porta — sugere Stephens, olhando para o guarda-costas.

— Sim — concorda Hamburg. — Você fica aqui. Não deixe ninguém interromper nossa... — diz ele, me olhando com frieza — reunião, a menos que eu peça. Se em algum momento você não ouvir minha voz por mais de um minuto, entre na sala. Como precaução, é claro.

Ele abre um sorrisinho para mim.

— É claro. — Imito Hamburg e sorrio também.

Ele dá um passo para o lado e me convida a entrar.

— Pensei que isso tivesse acabado, srta. Seyfried.

Hamburg fecha a porta.

— Sente-se — pede ele.

A sala é bem grande, com paredes lisas e arredondadas, sem cantos, de um lado a outro. Uma série de grandes quadros retratando o que parece ser cenas bíblicas rodeia uma grande lareira de pedra. Cada imagem é emoldurada em uma caixa de vidro, com luzes na parte de baixo. A sala é pouco iluminada, como o restaurante, e o cheiro é de incenso ou talvez de óleo aromático de almíscar e lavanda. Na parede à minha esquerda, há uma porta aberta que leva a outra sala, onde a luz cinza-azulada de várias telas de TV brilha nas paredes. Chego mais perto para me sentar na poltrona de couro com encosto alto diante da escrivaninha e espio dentro da saleta. É como eu imaginava. As telas mostram várias mesas do restaurante.

Hamburg fecha essa porta também.

— Não, está longe de acabar — respondo, enfim.

Cruzo as pernas e mantenho a postura ereta, o queixo levantado com ar confiante e os olhos em Hamburg, enquanto ele atravessa a sala na minha direção. Puxo a barra do vestido para cobrir completamente o punhal preso na coxa. Minha bolsa está no meu colo.

— Vocês já tiraram minha esposa de mim. — A indignação transparece na voz dele. — Não acham que foi o suficiente?

— Infelizmente, não. — Abro um sorriso malicioso. — Não foi o suficiente para você e sua esposa tirarem uma vida? Não, não foi — respondo por ele. — Vocês tiraram muitas vidas.

Hamburg morde o interior da bochecha e se senta atrás da escrivaninha, de frente para mim. Ele apoia as mãos gordas sobre o tampo de mogno. Percebo quanto ele quer me matar ali mesmo onde estou. Mas não fará isso porque acredita que não estou sozinha. Ninguém em sã consciência faria algo assim, vir até aqui sozinha, inexperiente e desprevenida.

Ninguém, a não ser eu.

Preciso garantir que ele continue acreditando que tenho cúmplices até descobrir como vou matá-lo e sair da sala sem ser pega. O pedido de Hamburg para que o guarda-costas entrasse na sala depois de um minuto sem ouvir sua voz pôs mais um obstáculo no plano que, na verdade, nunca tive de fato.

— Bem, devo dizer uma coisa — diz Hamburg, mudando de tom. — Você é deslumbrante com qualquer tipo de peruca. Mas admito que prefiro a morena.

Ele acha que meu cabelo castanho-avermelhado era uma peruca. Ótimo.

— Você é doente. Sabe disso, certo? — Tamborilo com as unhas no braço da poltrona.

Hamburg abre um sorriso medonho. Estremeço por dentro, mas mantenho a compostura.

— Eu não matei aquelas pessoas de propósito. Elas sabiam no que estavam se metendo. Sabiam que, no calor do momento, alguém poderia perder o controle.

— Quantas?

Hamburg estreita os olhos.

— O que importa isso, srta. Seyfried? Uma. Cinco. Oito. Por que não diz logo o motivo da sua visita? Dinheiro? Informação? A chantagem assume muitas formas, e não seria a primeira vez que enfrento uma. Sou um veterano.

— Fale sobre a sua esposa — peço, ganhando tempo e fingindo ainda ser quem dá as cartas. — Antes de “ir direto ao assunto”, quero entender sua relação com ela.

Uma parte de mim quer saber de verdade. E estou incrivelmente nervosa; sinto um enxame zumbindo no meu estômago. Talvez jogar conversa fora ajude a acalmar minha mente.

Hamburg inclina a cabeça para o lado.

— Por quê?

— Apenas responda à pergunta.

— Eu a amava muito — responde ele, relutante. — Ela era a minha vida.

— Aquilo é amor? — pergunto, incrédula. — Você manchou a memória dela ao dizer que ela era uma viciada em drogas que se suicidou, só para salvar a própria pele, e chama isso de amor?

Noto uma luz se movendo no chão, por baixo da porta da sala de vigilância. Não havia ninguém lá dentro antes, ao menos que eu tivesse visto.

— Como a chantagem, o amor assume muitas formas. — Hamburg apoia as costas na poltrona de couro, que range, cruzando os dedos roliços sobre a enorme barriga. — Mary e eu éramos inseparáveis. Não éramos como outras pessoas, outros casais, mas o fato de sermos tão diferentes não significava que nos amávamos menos do que os outros. — Os olhos dele cruzam os meus por um momento. — Tivemos sorte por encontrar um ao outro.

— Sorte? — pergunto, pasma com o comentário. — Foi sorte duas pessoas doentes se encontrarem e se unirem para fazer coisas doentias com os outros? Não entendo.

Hamburg balança a cabeça como se fosse um velho sábio e eu fosse jovem demais para entender.

— Pessoas diferentes como Mary e eu...

— Doentes e dementes — corrijo. — Não diferentes.

— Chame como quiser — diz ele, com ar de resignação. — Quando você é tão diferente assim da sociedade, do que é aceitável, encontrar alguém como você é algo muito raro.

Sem perceber, cerro os dentes. Não porque Hamburg esteja me irritando, mas porque nunca imaginei que esse homem nojento pudesse me dizer qualquer coisa que me fizesse pensar na minha situação com Victor, ou qualquer coisa que eu pudesse entender.

Afasto esse pensamento.

A luz fraca sob a porta da sala de vigilância se move de novo. Finjo não ter notado, sem querer dar a Hamburg qualquer motivo para achar que estou pensando em outra saída.

— Vim aqui saber nomes — digo de repente, sem ter pensado bem a respeito.

— Que nomes?

— Dos seus clientes.

Algo muda nos olhos de Hamburg, ele vai tomar o controle da situação.

— Você quer os nomes dos meus clientes? — pergunta ele, desconfiado.

Que merda...

— Pensei que você e Victor Faust já estivessem de posse da minha lista de clientes.

Continue séria. Não perca a compostura. Merda!

— Sim, estamos, mas me refiro àqueles que você não mantinha nos registros.

Acho que vou vomitar. Parece que minha cabeça está pegando fogo. Prendo a respiração, torcendo para ter me livrado dessa.

Hamburg me examina em silêncio, vasculhando meu rosto e minha postura em busca de qualquer sinal de autoconfiança abalada. Ele coça o queixo gordo e cheio de dobras.

— Por que você acha que existe uma lista fantasma?

Suspiro meio aliviada, mas ainda não estou fora de perigo.

— Sempre existe uma lista fantasma — afirmo, embora não faça nem ideia do que estou dizendo. — Quero pelo menos três nomes que não estejam no registro que nós temos.

Sorrio, sentindo que recuperei o controle da situação.

Até ele falar:

— Diga você três nomes da lista que já tem, e eu dou o que você quer.

É oficial: perdi o controle.

Engulo em seco e me controlo antes de parecer “pega no flagra”.

— Você acha que eu carrego a lista na bolsa? — pergunto com sarcasmo, tentando continuar no jogo. — Nada de negociações ou meios-termos, sr. Hamburg. O senhor não está em condições de fazer nenhuma barganha.

— É mesmo? — pergunta ele, sorrindo.

Ele suspeita de mim. Posso sentir. Mas vai garantir que está certo antes de dar o bote.

— Isso não está em discussão. — Eu me levanto da poltrona de couro, enfiando a bolsa debaixo do braço, mais frustrada do que antes por ter que entregar minha arma.

Pressiono os dedos na escrivaninha de mogno, apoiando meu peso neles ao me curvar um pouco na direção de Hamburg.

— Três nomes, ou saio daqui e Victor Faust entra para espalhar os seus miolos naquele belo quadro do menino Jesus atrás de você.

Hamburg ri.

— Esse não é o menino Jesus.

Ele se levanta junto comigo, alto, enorme e ameaçador.

Enquanto vasculho minha mente e tento entender como ele descobriu que sou uma farsante, Hamburg se adianta e anuncia seu raciocínio como um chute na minha boca.

— É engraçado, Izabel, você vir aqui pedir nomes que não aparecem em uma lista que você... — diz, apontando para a minha bolsa — ... nem carrega consigo, porque como você saberia que os nomes que eu daria não estão nela?

Estou muito ferrada.

— Vou dizer o que eu acho — continua ele. — Acho que você veio aqui sozinha por causa de alguma vingança contra mim. — Ele balança o indicador. — Porque eu me lembro de cada detalhe da porra daquela noite. Cada merda de detalhe. Especialmente a sua expressão quando percebeu que Victor Faust tinha vindo matar minha esposa em vez de mim. Era a expressão de alguém pega de surpresa, que não fazia ideia de por que estava ali. Era a expressão de alguém que não está familiarizada com o jogo.

Ele tenta sorrir com gentileza, como se quisesse demonstrar alguma espécie de empatia pela minha situação, mas o que leio em seu rosto é cinismo.

— Acho que, se houvesse mais alguém aqui com você, ele já teria aparecido para salvá-la, porque é óbvio que você está ferrada.

A porta do quarto principal se abre, o guarda-costas entra e a tranca. Por uma fração de segundo, tive a esperança de que fosse Victor vindo me salvar na hora certa. Mas foi só um desejo. O guarda-costas me olha com desprezo. Hamburg acena para ele, que começa a tirar o cinto.

Meu coração afunda até o estômago.

— Sabe — diz Hamburg, dando a volta na escrivaninha —, na primeira vez que a gente se viu, lembro que fiz um acordo com Victor Faust. — Ele aponta para mim. — Você se lembra disso, não?

Hamburg sorri e apoia a mão gorda nas costas da poltrona na qual eu estava sentada, virando-a para mim.

Todo o meu corpo está tremendo; parece que o sangue que passa pelas minhas mãos virou ácido. Ele corre pelo meu coração e pela minha cabeça tão rápido que quase desmaio. Começo a tentar alcançar meu punhal, mas eles estão perto demais, aproximando-se pelos dois lados. Não tenho como enfrentar os dois ao mesmo tempo.

— Como assim? — pergunto, tropeçando nas palavras, tentando ganhar um pouco de tempo.

Hamburg revira os olhos.

— Ora, por favor, Izabel. — Ele gira um dedo no ar. — Apesar do que aconteceu naquela noite, fiquei decepcionado de verdade por vocês dois irem embora antes de cumprir o acordo.

— Eu diria que, em vista do que aconteceu, o acordo não vale mais nada.

Ele sorri para mim e se senta na poltrona de couro. Percebo Hamburg espiar de relance o guarda-costas, dando uma ordem só com o olhar.

Antes que eu consiga me virar, o segurança prende minhas duas mãos nas minhas costas.

— Você vai cometer um erro do caralho se fizer isso! — grito, tentando me livrar das garras do segurança.

Ele me leva à força até uma mesa quadrada e me joga sobre ela. Meus reflexos não são rápidos o suficiente e meu queixo bate no mármore duro. O gosto metálico do sangue enche minha boca.

— Me solte! — Tento chutá-lo. — Me solte agora!

Hamburg ri de novo.

— Vire a cabeça dela para esse lado — ordena ele.

Dois segundos depois, meu pescoço é torcido para o outro lado e mantido ali, minha bochecha esquerda pressionada contra o mármore frio.

— Quero ver a cara dela enquanto você a fode. — Hamburg me olha de novo. — Então vamos continuar do ponto onde paramos naquela noite, tudo bem? Você concorda, Izabel?

— Vai se foder!

— Ah, não, não — diz ele, ainda com o riso na voz. — Não sou eu quem vai foder você. Você não faz o meu tipo. — Seus olhos famintos percorrem o corpo do segurança que está me pressionando por trás.

— Eu vou matar você — digo, cuspindo por entre os dentes. A mão do segurança sobre a minha cabeça impede que eu a mexa. — Vou matar vocês dois! Me estupre! Vamos lá! Mas os dois vão estar mortos antes que eu saia daqui!

— Quem disse que você vai sair daqui? — provoca Hamburg.

O zíper da calça dele está aberto; sua mão direita está parada ao lado da braguilha, como se ele estivesse tentando manter algum autocontrole e não se masturbar ainda.

Então Hamburg acena com dois dedos para o guarda-costas, que me mantém imóvel segurando meus cabelos da nuca.

— Lembre-se disso — diz ele ao segurança. — Ela não vai sair daqui.

Sinto a mão direita do guarda-costas soltar meu cabelo e se mover entre as minhas pernas. Enquanto ele ergue meu vestido, aproveito para alcançar o punhal na minha coxa e tirá-lo da bainha, golpeando atrás em um ângulo desajeitado. O segurança grita de dor e me solta. Puxo o punhal ainda firme na mão, que está coberta de sangue. Ele cambaleia para trás, com a mão na base do pescoço, o sangue jorrando entre seus dedos.

— Sua puta do caralho! — ruge Hamburg, saltando da poltrona e vindo atrás de mim como um elefante descontrolado, a calça caindo de sua cintura flácida.

Corro na direção dele com o punhal levantado e colidimos no meio da sala. Seu peso me joga de bunda no chão e o punhal cai da minha mão, deslizando pelo piso ensanguentado. De pé, Hamburg se abaixa para me segurar, mas me reclino no chão e levanto o pé com toda a força, enfiando o salto da minha sandália na lateral do seu rosto. Ele geme e cambaleia para trás, com a mão na bochecha.

— Eu vou acabar com você! Puta que pariu! — berra ele.

Engatinho na direção do punhal, vendo o segurança no chão, em meio a uma poça de sangue. Ele está engasgando com os próprios fluidos; tentando em vão encher os pulmões de ar.

Pego o punhal com firmeza e rolo no chão enquanto Hamburg se aproxima, derrubando a poltrona de couro. Fico de pé e corro até a mesa, empurrando-a na direção dele. Hamburg tenta tirá-la da frente, mas o móvel balança sobre a base e ele acaba tropeçando. Seu corpo desaba no chão de barriga para baixo e a mesa cai quase na sua cabeça. Salto sobre suas costas e monto em seu corpo obeso. Meus joelhos mal tocam o chão. Agarro seu cabelo, puxo a cabeça dele para trás na minha direção e aperto o punhal em sua garganta, imobilizando-o em segundos.

— Pode me matar! Foda-se! Você não vai sair viva daqui mesmo. — A voz de Hamburg é rouca, sua respiração, rápida e ofegante, como se ele tivesse acabado de tentar correr uma maratona. O cheiro de seu suor e de seu medo invade minhas narinas.

Ocupada com a lâmina em sua garganta, me assusto com o som de batidas fortes na porta. A distração me pega desprevenida. Hamburg consegue se erguer debaixo de mim como um touro, rolando de lado e me derrubando no chão. Deixo cair o punhal em algum lugar, mas não tenho tempo para procurá-lo porque Hamburg consegue se levantar e parte para cima de mim. Ouço a voz de Stephens do outro lado da porta, que vibra com seus socos.

Rolo para sair do caminho antes que Hamburg consiga pular em cima de mim, pego o objeto mais próximo — um peso de papel de pedra, bem pesado, que estava na mesa antes de ser derrubada — e golpeio Hamburg com ele. O som do osso de seu rosto quebrando com o impacto faz meu estômago revirar. Hamburg cai para trás, cobrindo a cara com as mãos.

As batidas na porta ficam mais fortes. Numa fração de segundo, levanto a cabeça e vejo a porta sacudindo com violência no batente. Preciso sair daqui. Agora. Meu olhar varre a sala procurando o punhal, mas não há mais tempo.

Corro para a sala de vigilância, contornando os obstáculos.

Graças a Deus, há outra porta lá dentro. Abro a porta e desço correndo a escada de concreto, torcendo para que seja uma saída e eu não encontre mais ninguém no caminho.


CAPÍTULO CINCO

Sarai

Desço a escada de concreto de dois em dois degraus, segurando no corrimão de metal pintado com as mãos ensanguentadas, até chegar ao térreo. Uma placa vermelha com a palavra SAÍDA está à minha frente. Corro pela passagem mal-iluminada, onde uma lâmpada fluorescente pisca acima de mim e torna o lugar ainda mais ameaçador. Empurro com força a barra da porta com as duas mãos e ela se abre para um beco. Um homem de terno está sentado no capô de um carro, fumando, quando saio para a rua.

Eu fico paralisada.

Ele olha para mim.

Eu olho para ele.

Ele nota o sangue nas minhas mãos e olha de relance para a porta, depois para mim.

— Vá — diz ele, acenando para a caçamba de lixo à minha direita.

Sei que não tenho tempo para ficar confusa nem para perguntar por que ele está me deixando ir embora, mas pergunto assim mesmo.

— Por que você está...?

— Apenas vá!

Ouço passos ecoando na escada atrás da porta.

Lanço um olhar agradecido ao homem e dou a volta na caçamba, desço o beco e me afasto do restaurante. Ouço um tiro segundos depois que dobro a esquina e torço para que seja aquele homem fingindo atirar em mim.

Evito espaços abertos e corro por trás de prédios, protegida pela escuridão, tanto quanto minhas sandálias de salto alto permitem. Quando sinto que estou longe o suficiente para parar um pouco, tento me esconder atrás de outra caçamba e tiro as sandálias. Arranco a peruca loura e a jogo no lixo.

Não consigo respirar. Estou enjoada.

Meu Deus, estou enjoada...

Encosto na parede de tijolos atrás de mim, arqueando as costas e apoiando as mãos nos joelhos. Vomito com violência no chão, meu corpo rígido, o esôfago ardendo.

Pego as sandálias e saio correndo de novo na direção do hotel, tentando esconder o sangue das mãos e do vestido, mas percebo que não é tão fácil. Recebo alguns olhares desconfiados ao passar depressa pela recepção, mas tento ignorá-los e torço para que ninguém chame a polícia.

Em vez de arriscar ser vista por outras pessoas, subo pela escada até o oitavo andar. Quando chego lá, e depois de tudo o que corri, sinto que minhas pernas vão ceder. Encosto na parede e recupero o fôlego, com os joelhos tremendo descontroladamente. Meu peito dói, como se cada respiração trouxesse poeira, fumaça e cacos microscópicos de vidro para o fundo dos pulmões.

O quarto que divido com Eric está trancado e eu não tenho a chave. Aliás...

— Puta merda...

Jogo a cabeça para trás, fecho os olhos e suspiro, arrasada.

Não estou mais com a minha bolsa. Eu a perdi em algum momento da luta na sala de Hamburg. A chave do meu quarto. Meu celular. Minha arma. Meu punhal. Não tenho mais nada.

Bato na porta, mas Eric não está no quarto. Não esperava que estivesse, na verdade, já que não são nem onze da noite. Só para o caso de estar enganada, no entanto, tento o quarto de Dahlia.

— Dahl! Você está aí? — Bato na porta com pressa, tentando não incomodar os outros hóspedes.

Nenhuma resposta.

Já desistindo, jogo as sandálias no chão e apoio as mãos na parede. Minha cabeça desaba. Mas então ouço um clique baixinho e vejo a porta do quarto de Dahlia se abrindo devagar. Levanto a cabeça e a vejo parada ali.

Sem me demorar para questionar a expressão estranha no rosto dela, entro no quarto só para sair do corredor. Eric está sentado na poltrona perto da janela. Noto que seu cabelo está meio bagunçado. O de Dahlia também.

Meu instinto está tentando chamar minha atenção, mas não me importo. Acabei de apunhalar um homem no pescoço e de tentar matar outro. Quase fui estuprada. Estava correndo pelos becos de Los Angeles para fugir de homens armados que vinham atrás de mim. Nada que esses dois façam pode superar isso.

— Meu Deus, Sarai — diz Dahlia, aproximando-se de mim. — Isso é sangue?

A expressão estranha e silenciosa que ela exibia quando entrei no quarto desaparece em um instante quando ela me vê no quarto bem-iluminado. Seus olhos se arregalam, cheios de preocupação.

Eric se levanta da poltrona.

— Você está sangrando. — Ele também me olha de cima a baixo. — O que aconteceu?

Os olhos de Dahlia correm pela minha roupa e pelo meu cabelo preso dentro da touca da peruca.

— Por que... Hã, por que você está vestida assim?

Olho para mim mesma. Não sei o que dizer, então não digo nada. Eu me sinto como um cervo diante dos faróis de um carro, mas minha expressão continua firme e sem emoções, talvez um pouco confusa.

— Você encontrou Matt — acusa Dahlia, começando a levantar a voz. — Puta que pariu, Sarai. Você foi se encontrar com ele, não foi?

Sinto os dedos dela apertando meu antebraço.

Eu me desvencilho de Dahlia e caminho até o banheiro para tirar a touca do cabelo. Enquanto tiro os grampos, noto uma camisinha boiando na privada.

Eric entra no banheiro atrás de mim. Ele sabe que eu vi.

— Sarai, e-eu... Eu sinto muito — diz ele.

— Não se preocupe — respondo, tirando o último grampo e deixando-o na bancada creme.

Passo por Eric e volto para o quarto. Dahlia está me encarando, com o rosto cheio de vergonha e arrependimento.

— Eu...

Ergo a mão e olho para os dois.

— Não, é sério. Não estou brava.

— Como assim? — pergunta Dahlia.

Eric parece agitado. Ele põe a mão na nuca e passa os dedos pelo cabelo.

— Olhe, sem querer ofender — digo a Eric —, mas tenho fingido tudo com você desde a primeira vez que a gente ficou junto.

Ele arregala os olhos, embora tente não deixar que o choque e a mágoa da minha revelação transpareçam demais. Grande parte de mim se sente bem por dizer a verdade. Não por vingança, mas porque eu precisava tirar isso do peito. Mas admito que, depois de descobrir que os dois têm trepado pelas minhas costas, uma pequena parte de mim também fica feliz em magoá-lo. Acho que a vingança sempre encontra um caminho, mesmo nos gestos mais insignificantes.

— Fingido?

— Não tenho tempo para isso — digo, indo na direção da porta. — Vocês dois podem ficar juntos. Não tenho nada contra. Não estou brava, só não me importo mesmo. Preciso ir.

— Espere... Sarai.

Eu me viro para olhar Dahlia. Ela está muito chocada, mal sabe o que pensar. Depois de alguns segundos de silêncio, fico impaciente e a olho com cara de “vai, desembucha”.

— Para você... tudo bem mesmo?

Uau, não sirvo mesmo para o estilo de vida deles. O estilo de vida normal. Nem consigo entender essas coisas de namoro, melhores amigas, infidelidade, competição e joguinhos psicológicos. A cara que eles fazem, tão vazia e mesmo assim tão cheia de incredulidade e dúvida, por causa de uma situação que, para mim, não é tão importante... Tenho coisas mais graves com que me preocupar.

Suspiro, aborrecida com as perguntas vagas e confusas dos dois.

— Sim, por mim, tudo bem — digo, e então me viro para Eric, estendendo a mão. — Preciso da chave do nosso quarto.

Relutante, ele enfia a mão no bolso de trás e pega a chave. Tomo da sua mão, saio dali e vou para o quarto ao lado. Eric vem atrás e tenta falar comigo enquanto guardo minhas coisas na mala.

— Sarai, eu nunca quis...

Eu me viro de repente e o encaro.

— Tudo bem, só vou dizer isto uma vez, depois você muda de assunto ou volta para lá e fica com a Dahlia. Não estou nem aí para o que vocês dois fazem, mas, por favor, não apele para esse clichê de novela de que você nunca quis que isso acontecesse, porque... é muito idiota. — Eu rio baixinho, porque acho idiota mesmo. — Só falta você dizer que o problema não é comigo, é com você. Caramba, você faz ideia do que isso parece? É tão difícil assim acreditar quando digo que não me importo e que estou falando sério? Sem joguinhos. É verdade. — Balanço a cabeça, levanto as mãos e digo: — Não. Me. Importo.

Viro para a mala, fecho o zíper, abro a parte lateral e pego a chave do quarto secreto. Ainda bem que eu tinha uma cópia.

— Preciso ir — digo, andando até a porta e passando por Eric.

— Aonde você vai?

— Não posso contar, mas me escute, Eric, por favor. Se alguém aparecer me procurando, finja que não me conhece. Diga o mesmo para Dahlia. Finjam que nunca me viram na vida. Aliás, quero que vocês dois saiam hoje. Vão para qualquer lugar. Só... não fiquem aqui.

— Você vai me dizer o que aconteceu ou por que está toda ensanguentada? Sarai, você está me deixando assustado pra cacete.

— Eu vou ficar bem — digo, atenuando minha expressão. — Mas prometa que você e Dahlia vão fazer exatamente o que falei.

— Você vai me contar um dia?

— Não posso.

O silêncio entre nós fica mais pesado.

Enfim, abro a porta e saio para o corredor.

— Acho que sou eu quem deveria estar pedindo desculpas.

— Por quê?

Eric fica na porta, com os braços caídos ao lado do corpo.

— Por pensar em outra pessoa durante todo esse tempo em que eu estava com você. — Olho para o chão.

Nós nos encaramos por um breve momento e ninguém diz mais nada. Ambos sabemos que estamos errados. E acho que nós dois estamos aliviados por tudo ter vindo à tona.

Não há mais nada a dizer.

Eu me afasto pelo corredor na direção oposta à do meu quarto secreto e dou a volta por trás, para que Eric não veja aonde estou indo. Quando me tranco no quarto, só consigo desabar na cama. A exaustão, a dor e o choque de tudo o que aconteceu esta noite me atingem em cheio assim que a porta se fecha, e me engolem como uma onda. Eu me jogo de costas no colchão. Minhas panturrilhas doem tanto que duvido conseguir andar sem mancar amanhã.

Fico olhando para o teto escuro até ele desaparecer e eu pegar no sono.


CAPÍTULO SEIS

Sarai

Um tum! pesado me acorda, mais tarde naquela noite. Eu me levanto como uma catapulta.

Vejo dois homens no meu quarto: um desconhecido morto no chão e Victor Faust de pé sobre o corpo dele.

— Levante-se.

— Victor?

Não acredito que ele está aqui. Devo estar sonhando.

— Levante-se, Sarai. AGORA! — Victor me pega pelo cotovelo, me arranca da cama e me põe de pé.

Não consigo nem pegar minhas coisas, ele já está abrindo a porta e me puxando para o corredor com ele, segurando forte a minha mão.

Disparamos juntos pelo corredor e outro homem aparece virando a esquina, de arma em punho. Victor aponta sua 9mm com silenciador e o derruba antes que o cara consiga atirar. Ele passa pelo corpo me puxando, seus dedos fortes afundando na minha mão enquanto corremos para a escada. Ele abre a porta, me empurra para a frente e nós subimos depressa os degraus de concreto. Um andar. Três. Cinco. Minhas pernas estão me matando. Acho que não consigo andar por muito mais tempo. Enfim, no quinto andar, Victor me puxa para outro corredor e rumo a um elevador nos fundos.

Quando as portas do elevador se fecham e estamos só nós dois lá dentro, finalmente tenho a oportunidade de falar.

— Como você sabia que eu estava aqui? — Mal consigo recuperar o fôlego, esgotada pela correria infinita e pela adrenalina, mas acho que sobretudo porque Victor está de pé ao meu lado, segurando minha mão.

Meus olhos começam a arder com as lágrimas.

Engulo o choro.

— O que você estava pensando, Sarai?

— Eu...

Victor segura meu rosto com as duas mãos e me empurra contra a parede do elevador, pressionando ferozmente seus lábios nos meus. Sua língua se entrelaça na minha e sua boca tira meu fôlego em um beijo apaixonado que, enfim, faz meus joelhos cederem. Toda a força que eu estava usando para manter o corpo ereto desaparece quando os lábios dele me tocam. Ele me beija com fome, com raiva, e eu derreto em seus braços.

Então ele se afasta, as mãos fortes nos meus braços, me segurando contra a parede do elevador. Nós nos encaramos pelo que parece ser uma eternidade, nossos olhos paralisados em uma espécie de contemplação profunda, nossos lábios a centímetros de distância. Só quero prová-los de novo.

Mas ele não deixa.

— Responda — exige Victor, estreitando seus olhos perigosos em reprovação.

Já esqueci a pergunta.

Ele me sacode.

— Por que você veio aqui? Tem ideia do que você fez?

Balanço a cabeça em um movimento curto e rápido, parte de mim mais preocupada com seu olhar ameaçador do que com o que ele está dizendo.

A porta do elevador se abre no subsolo e eu não tenho tempo para responder, pois Victor mais uma vez pega minha mão e me puxa para que o siga. Serpenteamos por um grande depósito com caixas em pilhas altas encostadas nas paredes e depois por um longo corredor escuro que leva a um estacionamento. Victor enfim solta minha mão e eu o sigo até um carro parado entre dois furgões pretos com o logotipo do hotel nas laterais. Dois bipes ecoam pelo ambiente e os faróis do carro piscam quando nos aproximamos, iluminando a parede de concreto em frente. Sem perder tempo, me sento no banco do passageiro e fecho a porta.

Segundos depois, Victor está dirigindo casualmente pelo estacionamento até a rua.

— Eu queria que ele morresse — respondo, enfim.

Victor não me olha.

— Bom, você fez um excelente trabalho — rebate ele, sarcástico.

Ele vira para a direita no semáforo, e o carro ganha velocidade quando chegamos à rodovia.

Fico magoada por suas palavras, mas sei que ele tem razão, por isso não discuto. Fiz merda. Uma merda muito grande.

Mas não me dou conta do tamanho dela até Victor dizer:

— Os seus amigos podiam ter morrido. Você podia ter morrido.

Sinto meus olhos se arregalarem além dos limites e me viro mais um pouco para encará-lo.

— Ah, não... Victor, o quê... Eles estão bem?

Sinto que vou vomitar de novo.

Victor me olha por um instante.

— Estão ótimos. O primeiro quarto que os capangas de Hamburg revistaram estava vazio — diz ele, voltando a olhar para a estrada. — Eu cheguei quando eles estavam saindo. Segui um deles até o quarto onde você estava escondida, deixei que ele destrancasse a porta e então ataquei.

As chaves do quarto. Minhas duas chaves extras estavam na bolsa que perdi no restaurante de Hamburg. E os números dos quartos estavam escritos nas capinhas de papel que as protegiam. Eu estava tão preocupada em esconder minha arma e meu punhal que nem pensei em esconder as chaves.

— Merda! — Também olho para a estrada. — E-eu perdi a bolsa no restaurante. As chaves do meu quarto estavam dentro dela. Deixei um rastro para eles seguirem!

Felizmente, eu não tinha uma chave extra do quarto de Dahlia, senão ela e Eric já poderiam estar mortos.

Onde é que eu estava com a cabeça?!

— Não, você deixou literalmente as chaves do seu quarto com o nome do hotel gravado. Sarai, eu devia ter matado você há muito tempo e poupado toda essa confusão para cima de você e de mim.

Eu me viro para encará-lo; a raiva e a mágoa pesando no meu peito.

— Você não está falando sério.

Ele faz uma pausa e me olha. Suspira.

— Não, não estou falando sério.

— Nunca mais me diga isso. Nunca mais me diga uma coisa dessas, ou eu mato você e poupo a mim de toda essa confusão — rebato, desviando o olhar.

— Você não está falando sério — diz Victor.

Olho mais uma vez para aqueles olhos ameaçadores verde-azulados que me fizeram tanta falta.

— Não. Mas acho que isso seria o mais sensato.

— Bom, você não foi a campeã da sensatez hoje, então acho que estou seguro ao menos pelas próximas 24 horas.

Escondo o sorriso.

— Senti sua falta — digo de maneira distante, olhando para a estrada.

Victor não responde, mas admito que seria estranho se respondesse. A despeito de sua falta de emoção, porém, sei que ele também sentiu saudade de mim. Aquele beijo no elevador disse coisas que palavras jamais conseguiriam.

Ele pega uma saída e para o carro debaixo de um viaduto. Puxa o freio de mão e a área ao redor desaparece na escuridão quando ele desliga os faróis.

— O que a gente está fazendo aqui?

— Você precisa ligar para os seus amigos.

— Por quê?

Ele tira um celular do porta-luvas entre nós.

— Mande eles voltarem para o Arizona. Faça ou diga o que for preciso para que eles saiam de Los Angeles. Quanto antes, melhor.

Ele coloca o telefone na minha mão. De início, só olho para o aparelho, mas ele me pressiona com aquele olhar, aquele que grita “vamos lá, faça isso de uma vez”, mas que só alguém como eu, alguém que conhece Victor, seria capaz de notar.

Giro o celular nas mãos, depois o seguro firmemente e digito o número de Eric. Mas então mudo de ideia, desligo no primeiro toque e ligo para Dahlia.

Ela atende no quinto toque.

Respiro fundo e faço o que sei fazer melhor: minto.

— A verdade é que vocês me magoaram. Duvido que um dia eu consiga perdoar você ou Eric pelo que fizeram.

— Sarai... Meu Deus, me desculpe, estou me sentindo muito mal. A gente não queria que isso chegasse a esse ponto. Juro para você. Não sei o que aconteceu...

— Escute, Dahlia, por favor, só me escute.

Ela fica quieta.

Começo a choradeira. Nunca imaginei que eu seria capaz de chorar sob demanda e de forma tão falsa.

— Eu quero acreditar em você. Quero conseguir confiar em você de novo, mas você era minha melhor amiga e me traiu. Preciso de um tempo sozinha e quero que você e Eric voltem para o Arizona. Hoje. Acho que não vou aguentar ver vocês de novo... Espere, onde você está, agora?

Acabo de me dar conta de que, se ela e Eric estiverem no hotel, a essa altura ela já sabe que dois homens foram mortos a tiros no andar do quarto deles.

— A gente está em uma festa em um terraço — conta ela. — T-tudo bem por você? Achei que não tinha nada a ver a gente sair, mas o Eric falou que você insistiu...

— Não, tudo bem — digo, cortando-a. — Insisti mesmo. Onde ele está, agora?

— Deixei Eric lá no terraço para a gente poder conversar. Está muito barulhento lá em cima. Que número é esse de onde você está ligando?

— É o celular de um amigo. Perdi o meu. O Eric por acaso avisou que se alguém procurar por mim...

— Avisou, sim — interrompe Dahlia. — Que confusão é essa, afinal? Meu Deus, Sarai, esquece por um momento esse lance com Eric e me conta o que está acontecendo, por favor. O sangue. As roupas esquisitas que você estava usando e aquele troço na sua cabeça. Era uma touca de peruca? Você está metida em alguma encrenca, eu sei. Sei que você me odeia, e tem todo o direito de odiar, mas, por favor, conte o que aconteceu.

— Não posso contar, porra! — grito, deixando o choro distorcer minha voz. — Caramba, Dahlia, faça o que eu pedi. Pelo menos isso! Você deu para o meu namorado! Por favor, voltem para o Arizona, me deixem esfriar a cabeça e depois eu volto para casa. Talvez aí a gente possa conversar. Mas agora façam o que eu estou pedindo. Tudo bem?

Ela não responde por um momento, e um longo silêncio se forma entre nós.

— Tudo bem — concorda ela. — Vou dizer ao Eric que a gente precisa ir embora.

— Obrigada.

Estou apenas um pouco aliviada. Não vou me sentir bem com isso até saber que eles chegaram em casa sãos e salvos.

Desligo sem dizer mais uma palavra.

— Bom, isso foi bastante convincente — observa Victor, levemente impressionado.

— Acho que foi.

— Eu sei que a sua amiga acreditou — acrescenta ele. — Mas eu não acreditei em uma só palavra.

Eu me viro para ele. Victor me conhece tão bem quanto eu o conheço, parece.

— É porque nem uma palavra era verdade.

Ele deixa por isso mesmo e nós saímos de baixo do viaduto.

Chegamos a uma casa perdida no final de uma estrada isolada nos arredores da cidade, empoleirada no alto de uma colina com uma vista quase perfeita para a cidade lá embaixo. Uma piscina de formato irregular começa no lado esquerdo da casa e serpenteia por trás, a água azul-clara iluminada por lâmpadas submersas parece luminescente. O lugar está silencioso. Só ouço o vento passando pela mata cerrada que contorna o lado direito e os fundos da casa, impedindo uma visão em 360 graus da paisagem iluminada de Los Angeles. Quando nos aproximamos da porta, uma mulher robusta usando uniforme azul de empregada nos recebe. Ela tem cabelo preto encaracolado e pele morena. Suas bochechas são volumosas, envolvendo seus olhos castanho-escuros pequenos e brilhantes, que fitam atentamente Victor e a mim.

— Por favor, entrem — diz ela, com um sotaque hispânico familiar.

A mulher fecha a porta. A casa cheira a limpa-vidro e a uma mistura pouco natural de cheiros adocicados que só pode vir de algum tipo de aromatizador de ambientes artificial. Parece que todas as janelas foram abertas, permitindo que a brisa noturna de verão se espalhasse pela casa. Não se parece em nada com as mansões ricas onde já estive, mas é impecável e aconchegante, e penso que eu deveria pelo menos ter tomado um banho antes de vir. Minha pele e minhas roupas ainda estão manchadas de sangue...

Victor está usando uma calça preta e uma camisa apertada de mangas compridas que adere a cada músculo de seus braços e seu peito, com os punhos desabotoados e arregaçados até os cotovelos. A camisa está por fora da calça e os dois botões de cima estão abertos. Sapatos pretos chiques e informais calçam seus pés. Um relógio brilhante de prata adorna seu pulso direito, e não consigo deixar de notar a solitária veia grossa que percorre as costas de sua mão até o osso de seu pulso. Quando ele segue a empregada pela grande entrada e se vira momentaneamente de costas para mim, vejo o cabo da arma saindo da cintura de sua calça, com a barra da camisa branca enfiada atrás.

Ele me olha, para e estende o braço, em um gesto para que eu ande à sua frente. Tremo de leve quando sua mão toca minhas costas perto da cintura.

Antes que eu tenha tempo de me sentir deslocada ao lado dele, Fredrik, o amigo e cúmplice sueco de Victor que conheci no restaurante de Hamburg há tanto tempo, entra na sala pelas grandes portas de vidro que dão para o quintal dos fundos.


CAPÍTULO SETE

Sarai

— Você chegou cedo — comenta Fredrik com um sorriso mortal, porém inimaginavelmente sexy.

As roupas dele são bem parecidas com as de Victor, mas, em vez de camisa de botão, Fredrik está vestindo uma camiseta branca apertada que adere à sua forma esbelta e máscula. Ele está descalço.

A primeira vez que vi Fredrik, pensei que era impossível haver alguém mais bonito. Com cabelo macio, quase preto, e olhos escuros e misteriosos, suas feições parecem ter sido esculpidas por algum artista famoso. Mas sempre achei que havia algo de sombrio e assustador naquele homem. Um lado dele que eu, particularmente, não faço questão de conhecer. Para mim, basta o jeito como ele era quando nos encontramos: cordial, encantador e misterioso, uma linda máscara que ele usa para esconder a fera que há por trás.

Victor olha para seu relógio caro.

— Só dez minutos mais cedo — comenta ele.

Fredrik sorri ao se aproximar, os dentes brancos reluzindo contra a pele bronzeada.

— Sim, mas você sabe como eu sou.

Victor assente, mas não alonga o assunto. A mim, só resta imaginar o que aquilo significa.

— É bom ver você — diz Fredrik, observando-me do topo de sua altura considerável e presença avassaladora. Ele se inclina, pega minha mão e a beija, logo acima dos nós dos dedos. — Ouvi dizer que você matou um homem hoje.

Ele apruma as costas e solta minha mão. Um sorriso perturbador e orgulhoso surge em seu rosto, os cantos dos olhos se aquecendo com alguma lembrança ou... prazer, como se a ideia de matar alguém o deliciasse de alguma forma.

Olho para Victor à minha direita. Ele assente, respondendo à pergunta estampada no meu rosto. O guarda-costas que apunhalei no pescoço morreu?

Olho para Fredrik e respondo sem rodeios.

— Acho que matei.

Um leve sorriso se abre nos cantos dos lábios de Fredrik, e ele olha de relance para Victor, sem mover a cabeça.

— E você se sente bem com isso? — pergunta Fredrik.

— Para dizer a verdade, sim — respondo sem demora. — O desgraçado mereceu.

Fredrik e Victor parecem envolvidos em algum tipo de conversa secreta. Odeio isso.

Enfim, Fredrik diz para Victor em voz alta:

— Você arrumou sarna para se coçar, Faust.

Ele então se vira de costas para nós e anda na direção das portas de vidro. Nós o seguimos para o lado de fora, passando pela parte coberta do quintal e descendo uma escada de pedra que leva a um enorme pátio, também de pedra, que se abre em todas as direções. O pátio é decorado com mesas e cadeiras de ferro batido e uma cama com dossel ao ar livre.

Eu me sento ao lado de Victor em um sofá.

— Como é que você sabe? — pergunto a Fredrik, mas então me viro para Victor e digo: — E você ainda não me contou como sabia que eu estava aqui.

Na verdade, isso não importa muito, só quero encará-lo nos olhos de novo. Quero ficar sozinha com Victor, mas por enquanto vou precisar me contentar com os 7 centímetros entre nossos corpos, sentados lado a lado.

— Melinda Rochester me contou — explica Fredrik com um sorriso conivente. Começo a perguntar “E quem é Melinda Rochester”, mas ele diz: — Bem, ela contou para todo mundo, na verdade. Noticiário do Canal 7. Um homem morto a punhaladas atrás de um restaurante de Los Angeles.

Começo a me retorcer por dentro. Espero que as câmeras não tenham me mostrado com nitidez.

Eu me viro para Victor, com a preocupação transparecendo no rosto.

— Eu estava de peruca loura — digo, tentando encontrar alguma coisa, qualquer coisa que eu tenha feito certo. — Fiquei com a cabeça baixa... a maior parte do tempo.

Desisto. Sei que o que fiz vai continuar me perseguindo. Suspiro e olho para as mãos ensanguentadas no meu colo.

— E encontrar você foi fácil — continua Victor. — A sra. Gregory me ligou depois que você saiu do Arizona. Ela estava preocupada com a sua vinda para Los Angeles e achou que eu precisava saber.

Viro a cabeça para encará-lo.

— O quê? Dina sabia onde você estava? — Sinto a pele ao redor das sobrancelhas se enrijecendo.

— Não — responde ele, com delicadeza. — Ela não sabia onde eu estava, mas sabia como entrar em contato comigo.

Essas palavras me magoam. Engulo em seco a sensação de ser traída por eles.

— Falei para ela entrar em contato comigo só em caso de emergência — acrescenta Victor. — Caso algo acontecesse com você.

— Você deixou para Dina uma forma de entrar em contato — digo, ríspida —, mas para mim, nada. Não acredito que você fez isso.

— Eu queria que você tocasse a sua vida. Mas, caso os irmãos de Javier descobrissem onde você estava, ou você decidisse fazer uma proeza como a de hoje, eu queria ficar sabendo.

Não consigo olhar para Victor. Tento chegar mais alguns centímetros para o lado a fim de aumentar a distância entre nós. Ainda assim, mesmo que esteja magoada e enfurecida com ele, sinto vontade de me aproximar de novo. Mas me mantenho firme e me recuso a deixá-lo perceber que o poder que ele exerce sobre mim faz a raiva que sinto parecer um chilique.

— Não acredito que Dina escondeu isso de mim — digo em voz alta, ainda que esteja falando mais comigo mesma.

— Ela escondeu de você porque eu disse a ela quanto isso era importante.

— Bom, de qualquer maneira — interrompe Fredrik, sentando-se na poltrona ao lado do sofá —, parece que você se meteu em uma situação da qual não vai conseguir sair tão facilmente, se é que vai conseguir.

— Por que a gente está aqui? — pergunto, aborrecida.

Fredrik ri baixinho.

— Aonde mais você iria?

— Eu precisava tirar você do hotel — explica Victor.

— Espere um pouco. Eu não matei aquele homem atrás do restaurante. Tudo aconteceu na sala particular de Hamburg, no andar de cima.

Recordo o homem que vi do lado de fora, atrás do restaurante, aquele que me deixou fugir, e meu coração afunda.

— Hamburg não deixaria que a polícia acreditasse que o assassinato aconteceu lá dentro, porque eles confiscariam a memória da câmera de vigilância e veriam o que realmente aconteceu.

Não estou entendendo nada. Nadinha.

— Eles não iam querer que a polícia soubesse o que realmente aconteceu?

Fredrik se reclina na poltrona e ergue um pé descalço, apoiando o tornozelo sobre o outro joelho, e estende os braços sobre os da poltrona.

Victor balança a cabeça.

— Preciso mesmo explicar isso para você, Sarai?

Sua vaga irritação me pega de surpresa. Olho para ele e levo alguns segundos para entender tudo sem que ele precise explicar.

— Ah, entendi — digo, olhando um de cada vez. — Hamburg não quer que a polícia se envolva porque corre o risco de se expor. O que ele fez, então? Só levou o corpo para fora? Preparou a situação para parecer um assalto comum? Não muito diferente do que ele fez naquela noite em que a gente estava na mansão dele, imagino.

Paro por aí porque Fredrik está presente. Não sei qual o grau de intimidade entre ele e Victor, nem mesmo se Fredrik sabe o que aconteceu na noite em que Victor matou a esposa de Hamburg.

Os olhos de Victor sorriem de leve para mim: sua maneira de me mostrar quanto lhe agrada eu ter entendido tudo. Ainda fingindo estar aborrecida, não retribuo o olhar da forma que ele deve esperar.

A empregada aparece com um balde chique de gelo, de madeira, com três garrafas de cerveja dentro. Fredrik pega uma, então ela nos oferece. Victor pega uma garrafa, mas recuso, mal conseguindo olhar a mulher nos olhos. Estou absorta demais nos acontecimentos da noite, que não me saem da cabeça.

A empregada vai embora logo depois, sem dizer uma palavra.

— O que você quis dizer com os irmãos de Javier?

Victor abre sua garrafa e a põe na mesa.

— Dois deles, Luis e Diego, assumiram os negócios de Javier dias depois que você o matou.

Por um instante, o rosto de Javier surge em minha mente: sua expressão chocada e ainda orgulhosa, os olhos arregalados, o corpo caindo no chão segundos depois de eu meter uma bala em seu peito.

Afasto a imagem.

Eu me lembro de Luis e Diego. Diego é aquele que tentou me estuprar quando eu estava na fortaleza no México, aquele que Javier castrou como punição.

— Eles estão me procurando?

Victor toma um gole de cerveja e devolve a garrafa à mesa com calma.

— Que eu saiba, não. Estou monitorando a fortaleza há meses. Os irmãos de Javier são amadores. Não têm ideia do que fazer com tanto poder. Duvido até que vejam você como ameaça.

Fredrik toma um gole de cerveja e prende a garrafa entre as pernas.

— Não fique tão aliviada assim — diz ele. — É melhor ser perseguida por amadores do que por Hamburg e aquele braço direito dele.

Um nó nervoso se forma no fundo do meu estômago. Olho de relance para Victor, buscando respostas.

— Willem Stephens — esclarece Victor — faz todo o serviço sujo de Hamburg. Hamburg em si é covarde, tão perigoso quanto o pedófilo gente boa da vizinhança. Mal consegue atirar em um alvo imóvel, e trairia alguém em dois minutos para se salvar. — Ele arqueia uma sobrancelha. — Stephens, por outro lado, tem uma extensa formação militar, é ex-mercenário e trabalhou para uma Ordem do mercado negro em 1986.

— Uma o quê?

— Uma Ordem como a nossa — explica Victor —, mas que aceita contratos particulares. Eles fazem coisas que outros agentes se recusam a fazer, vendem seus serviços basicamente para qualquer um.

— Ah... Então, resumindo, ele mata gente inocente por dinheiro.

Lembro o que Victor me contou, meses atrás, sobre a natureza dos contratos particulares, como pessoas eram assassinadas por motivos fúteis como traição conjugal ou vingança. A Ordem de Victor só trabalha com crime, ameaças sérias a um grande número de pessoas ou ideias que poderiam ter um impacto negativo na sociedade ou na vida como um todo.

Engulo em seco.

— Bom, ele me viu, com certeza. — Levanto as mãos e tiro o cabelo do rosto, passando as mãos no alto da cabeça. — Foi ele quem me levou para o segundo andar, para a sala de Hamburg. — Olho para Victor. — Desculpa, Victor. Eu... eu não sabia de nada disso.

Fredrik ri baixinho e diz:

— Algo me diz que, mesmo se você soubesse, teria ido lá de qualquer maneira.

Desvio o olhar de Victor e olho para baixo de novo, nervosa, esfregando os dedos ensanguentados uns nos outros. Fredrik tem razão. Odeio admitir, mas ele tem razão. Eu teria ido para o restaurante mesmo assim. Teria tentado matar Hamburg mesmo assim. Mas, se eu soubesse de tudo isso, acho que teria pensado em um plano melhor.

De repente, sinto que alguma coisa toma meu corpo e me tira o fôlego.

— Victor... Meu celular... — Eu me levanto do sofá, com o cabelo castanho-avermelhado caindo pelos ombros, batendo em meus braços nas partes em que o sangue secou e formou uma crosta áspera. — O número de Dina está no meu celular. Merda. Merda! Victor, Stephens vai atrás dela! Preciso voltar para o Arizona!

Começo a seguir para a porta dos fundos, mas Victor me alcança antes que eu atravesse o caminho decorado com pedras lisas.

— Espere aí.

Olho para baixo e vejo os dedos dele em volta do meu pulso. Seus hipnóticos olhos verde-azulados me fitam com desejo e devoção. Devoção. Algo que nunca vi no olhar de Victor antes.

Fredrik fala atrás de nós, me tirando do transe em que Victor me colocou.

— Eu vou cuidar disso — diz ele.

Desvio o olhar de Victor para Fredrik, que então ganha importância, considerando que a vida de Dina está em jogo.

— Como? — pergunto.

Victor me leva de volta para o sofá.

Fredrik pega o celular da mesa à frente, procura um número e toca na tela para ligar. Então encosta o celular no ouvido.

Victor me faz sentar perto dele de novo. Estou concentrada demais em Fredrik no momento para notar que Victor fez questão de se sentar tão perto que sua coxa está encostada na minha. Quero aproveitar o momento de proximidade, mas não posso. Estou preocupada com Dina.

Fredrik se reclina na poltrona de novo, balançando o pé descalço apoiado no joelho. Seu rosto fica alerta quando alguém atende à ligação.

— Em quanto tempo você consegue chegar a Lake Havasu City? — pergunta Fredrik ao telefone. Ele ouve por um segundo e assente. — Mando o endereço por mensagem de texto assim que eu desligar. Vá para lá o mais rápido que puder. Uma mulher mora lá. Dina Gregory. — Ele me olha de relance, para se certificar de que disse o nome certo. Como não o corrijo, volta a falar ao telefone. — Tire-a da casa e a leve para Amelia, em Phoenix. Sim. Sim. Não, não pergunte nada a ela. Só tome cuidado para ninguém machucar Dina. Sim. Me ligue neste número assim que estiver com ela.

Fredrik assente mais algumas vezes. Meu coração está batendo tão forte que parece pronto para pular do peito. Espero que a pessoa com quem ele está falando consiga encontrar Dina a tempo.

Fredrik desliga e parece abrir uma tela de texto no celular. Ele olha para mim, mas é Victor quem dá o endereço da sra. Gregory. Fredrik o digita e deixa o celular na mesa.

— Meu contato está a apenas trinta minutos de lá — explica Fredrik, olhando primeiro para mim. Então se vira para Victor. — O que você quer que eu faça?

Ele levanta as costas da poltrona e apoia os cotovelos nos joelhos, deixando as mãos entre eles. Mesmo em uma posição relaxada, ele consegue parecer elegante, importante e perigoso.

— Ainda preciso que você verifique o que discutimos ontem — diz Victor, e fica ainda mais claro, para mim, que Fredrik recebe ordens dele, embora não pareça ser do tipo que recebe ordens de ninguém. Mas está claro que os dois têm uma relação forte. — E, se você não se importa, preciso da sua casa emprestada por esta noite.

Os olhos escuros de Fredrik me encaram, e o traço de um sorriso aparece em seu rosto. Ele se levanta e pega o celular da mesa, escondendo-o na mão.

— Não precisa dizer mais nada. Vou sair daqui em vinte minutos. Eu ia mesmo me encontrar com alguém hoje, então está combinado.

A atitude de Victor muda um pouco, o que percebo no mesmo instante. Ele está encarando Fredrik, do outro lado da mesa do pátio, com um olhar cansado e cauteloso.

— Você não vai fazer o que estou pensando...

Ouço com atenção sem nem ao menos tentar disfarçar. Eu quero que eles saibam que estou bisbilhotando, porque é frustrante nenhum dos dois me oferecer qualquer explicação sobre esses comentários internos.

Fredrik ergue um lado da boca em um meio sorriso. Ele balança a cabeça de leve.

— Não, esta noite, não, infelizmente. Mas já faz algum tempo. Vou precisar que você me ajude com isso em breve.

Os olhos dele passam por mim e sinto um calafrio percorrer minhas costas. Não consigo decidir se é um arrepio bom ou assustador.

— Você terá sua oportunidade logo, logo — assegura Victor.

Fredrik dá a volta na mesa.

— Lamento por ter que encurtar nossa reunião.

— Tudo bem — digo. — Obrigada por ajudar com Dina. Você avisa quando receber aquela ligação?

Fredrik assente.

— Com certeza. Farei isso.

— Obrigada.

Victor acompanha Fredrik até a porta de vidro e os dois a atravessam. Fico sentada, observando-os do outro lado do pátio de pedra e tentando ouvir o máximo que posso, mas eles fazem questão de falar em voz baixa. Isso também me deixa frustrada. E pretendo informar Victor disso.


CAPÍTULO OITO

Victor

Fredrik fecha a porta de correr feita de vidro.

— Ela não sabe nada sobre Niklas? — pergunta ele, como eu já previa.

— Não, mas vou ter que contar. Ela vai precisar ficar atenta o tempo todo. Agora mais do que nunca.

— Ela não pode ficar aqui por muito tempo — aconselha Fredrik, olhando, através do vidro, Sarai sentada no sofá lá fora e nos observando. — Você também não.

— Eu sei. Quando Niklas descobrir que ela participou do assassinato no restaurante de Hamburg, vai saber na mesma hora que também estou envolvido nisso. Ele não é bobo. Se Sarai está viva, Niklas vai saber que estou tentando ajudá-la.

— E como ele desconfia de que agora trabalho com você — acrescenta Fredrik —, ela corre tanto perigo perto de mim quanto de você.

— É verdade.

Fredrik balança a cabeça para mim, com um sorriso escondido no fundo dos olhos.

— Não entendo esse envolvimento. Respeito você como sempre, respeitei, Victor, mas nunca vou entender a necessidade de um homem amar uma mulher.

— Eu não estou apaixonado por ela. Ela só é importante para mim.

— Talvez não — retruca ele, indo para a cozinha. — Mas parece que o amor e o envolvimento trazem as mesmas consequências, meu amigo. — Sigo Fredrik até a cozinha iluminada e ele abre um armário. — Mas estou do seu lado. O que você precisar que eu faça para ajudar, é só pedir. — Ele aponta para mim perto do armário, agora com um pão na mão.

A empregada de Fredrik entra na cozinha, roliça e mais velha do que nós dois juntos, exatamente o tipo de mulher que jamais o atrairia, e foi por isso que ele a contratou. Ela lhe pergunta em espanhol se pode voltar para casa e ver a família mais cedo hoje. Fredrik responde em espanhol, concordando. Ela assente respeitosamente e passa por mim na sala. De soslaio, eu a observo pegar uma bolsa volumosa de couro marrom do chão, perto da espreguiçadeira, e colocá-la no ombro. Depois ela vai até a porta, fechando-a devagar ao sair.

Sarai está de pé nas sombras da sala quando desvio o olhar da porta. Nem ouvi a porta de vidro correr quando ela entrou, e pelo jeito Fredrik também não.

Ela vai para a cozinha iluminada, de braços cruzados, os dedos delicados segurando seus bíceps femininos, mas bem-definidos. Ela é linda demais, mesmo quando está desgrenhada assim.

— Quanto tempo vocês planejavam me deixar lá fora? — pergunta ela, com um traço de irritação na voz.

— Ninguém disse que você precisava ficar lá, gata — responde Fredrik.

Ele gosta dela, isso é óbvio para mim, e ele deve saber. Mas também sabe que vou matá-lo. Ainda assim, minha confiança em Fredrik é maior do que minha preocupação de que ele volte para o lado sombrio e a machuque. Fredrik Gustavsson é uma fera do tipo mais carnal, que adora mulheres e sangue, mas tem limites e critérios, além de levar a lealdade, o respeito e a amizade muito a sério. Sua lealdade a mim é, afinal, o motivo para ele trair a Ordem todos os dias me ajudando.

Sarai se aproxima de mim e me olha nos olhos, inclinando um pouco a cabeça para o lado. O cheiro de sua pele e o calor tênue que emana dela quase me fazem perder o controle. Tenho conseguido me conter bastante desde que a beijei no elevador. Pretendo continuar assim.

Ela não diz nada, mas continua me encarando como se esperasse alguma coisa. Fico confuso. Ela inclina a cabeça para o outro lado e seu olhar se suaviza, embora eu não saiba ao certo por quê. Parece maliciosa e cheia de expectativa.

Ouço Fredrik rir baixinho e a porta da geladeira se fechar, mas não tiro os olhos de Sarai.

— As coisas são tão mais fáceis do meu jeito. — Ouço-o dizer, com um sorriso na voz.

— Entre em contato comigo assim que tiver a informação sobre Niklas — peço, ainda olhando nos olhos de Sarai e ignorando o comentário dele. — E quando souber pelo seu contato se Dina Gregory está a salvo em Phoenix.

— Pode deixar — diz Fredrik, e então vai para a porta do corredor que leva ao seu quarto. Mas ele para e olha para nós. — Se você não se importa...

Enfim desvio o olhar de Sarai e dou atenção total a Fredrik.

— Não se preocupe — interrompo —, eu sei onde fica o quarto de hóspedes.

Ele enfia na boca um sanduíche que mal notei que ele preparava e morde, rasgando um pedaço de pão. Eu o vejo piscando para Sarai antes de desaparecer da sala. Foi algo inofensivo, uma menção ao que ele acha que pode acontecer entre nós quando sair, e não uma tentativa de flerte.

— Que informação sobre Niklas? — pergunta Sarai, seus traços suaves agora encobertos pela preocupação.

Estendo a mão e passo os dedos por algumas mechas do cabelo dela.

— Preciso contar muita coisa para você — anuncio, tirando a mão antes de perder o controle e acabar tocando nela mais do que pretendo. — Sei que você deve estar exausta. Por que não toma um banho e fica à vontade primeiro? Depois conversamos.

Um sorrisinho suave emerge em seus lábios, mas logo desaparece em seu rosto enrubescido.

— Você quer dizer que eu estou nojenta? — pergunta ela, tímida. — Esse é o seu jeito de me dizer que preciso lavar meu corpo nojento?

— Na verdade, sim — admito.

Por um momento ela faz uma careta e parece ofendida, mas então só balança a cabeça e dá risada. Admiro isso em Sarai. Admiro muita coisa nela.

— Tudo bem. — Sua expressão brincalhona fica séria de novo. — Mas você precisa me contar tudo, Victor. E eu sei que você deve ter muito para contar, mas saiba que também preciso dizer muita coisa para você.

Eu já esperava isso. E, antes que ela fique na ponta dos pés, incline o corpo na minha direção e me beije, já sei que, quando ela sair do banho, vou precisar decidir o que vamos fazer. Vou precisar tomar algumas decisões importantes, que nos afetarão.

Porque de uma coisa eu tenho certeza: Sarai não pode voltar para casa.


Sarai

Quando volto, Victor está na sala, acomodado na beira do sofá, curvado sobre a mesinha de centro feita de vidro que está cheia de pedaços de papel e fotografias. Entro, mas ele continua remexendo neles sem erguer a cabeça para me olhar. Só que ele não me engana, sei que sente a minha presença tanto quanto quero que ele sinta.

Vasculhei o guarda-roupa de Fredrik procurando uma camiseta branca, que vesti sobre meus seios nus. Infelizmente, tive que usar a mesma calcinha de antes, mas as cuecas boxer de Fredrik não são exatamente o tipo de lingerie que eu gostaria de usar para seduzir Victor. Só uma camiseta e uma calcinha. Claro que fiz questão de vestir o mínimo possível, porque desejo Victor e não tenho nenhuma vergonha de deixar isso claro. Mas ainda custo a acreditar que estou no mesmo cômodo que ele, depois de meses achando que ele havia ido embora para sempre.

Acho que o beijo no elevador é onde minha mente ficou suspensa, como se o tempo tivesse parado naquele momento e cada parte de mim ainda deseje que aquele instante continue. Contudo, o resto do mundo continua passando ao meu redor.

Eu me sento ao lado de Victor, recolhendo um pé descalço para o sofá e enfiando-o sob a minha coxa.

— O que é isso tudo? — Olho para os papéis e fotografias na mesa.

Ele mexe em alguns pedaços de papel, empilhando-os.

— É um serviço — explica ele, colocando a foto de um homem de camiseta regata na pequena pilha. — Agora eu trabalho por conta própria.

Isso me surpreende.

— Como assim? — Acho que sei o que ele quer dizer, mas custo a acreditar.

Ele pega a pilha de papéis e bate as laterais na mesa para ajeitar todas as folhas. Então enfia o maço em um envelope de papel pardo.

— Eu saí da Ordem, Sarai. — Ele olha para mim.

Victor aperta as pontas do fecho prateado para fechar o envelope.

Meus pensamentos se embaralham, minhas palavras ficam confusas na ponta da língua. Luto, desesperada, para acreditar no que ele acaba de me contar.

— Victor... mas... não...

— Sim — confirma ele, virando-se para mim e me olhando bem nos olhos. — É verdade. Eu me rebelei contra a Ordem, contra Vonnegut, e agora eles estão atrás de mim. — Ele volta a mexer nos outros papéis na mesa. — Mas ainda preciso trabalhar, por isso agora trabalho sozinho.

Balanço a cabeça sem parar, sem querer engolir a verdade. A ideia de Victor sendo caçado por aqueles que o fizeram ser como ele é, por qualquer um, faz um pânico febril correr pelas minhas veias.

Solto um longo suspiro.

— Mas... mas e Fredrik? E Niklas? Victor, eu... O que está acontecendo?

Ele respira fundo e deixa a folha de papel cair suavemente na mesa, então reclina as costas no sofá.

— Fredrik ainda trabalha para a Ordem. Está lá dentro. Ele vigia Niklas e... — seus olhos cruzam com os meus por um instante —... tem me ajudado a manter você a salvo.

Antes que eu consiga fazer mais perguntas presas na garganta, Victor se levanta e continua a falar, enquanto fico sentada e o observo com a boca semiaberta e as pernas dobradas sobre a almofada.

— Como você sabe, quando alguém está sob suspeita de trair a Ordem, é imediatamente eliminado. Mas acredito que Niklas deixou Fredrik vivo e não transmitiu suas preocupações a Vonnegut pelo simples fato de que Niklas está usando Fredrik para me encontrar. Assim como deixou você viva todo este tempo, esperando que um dia você o levasse a mim.

O que mais me choca não é o que Victor diz, mas o que ele deixa de fora. Tiro as duas pernas de cima do sofá e pressiono os pés no chão de madeira, apoiando as mãos nas almofadas.

— Victor, o que você está me dizendo? Quer dizer que... Niklas continua com Vonnegut?

Espero que não seja isso que ele esteja tentando me dizer. Espero de todo o coração que minha decisão de deixar Niklas vivo aquele dia no hotel, quando ele atirou em mim, não tenha sido o maior erro da minha vida.

Os olhos de Victor vagam para a porta de vidro, e sinto que uma espécie de sofrimento infinito o consome, mas ele não deixa transparecer.

— Você estava lá. Eu disse para o meu irmão que, se ele decidisse continuar na Ordem caso eu resolvesse sair, eu não ficaria bravo com ele. Dei a ele a minha palavra, Sarai. — Victor vai até a porta de vidro, cruza os braços e olha para a piscina azul iluminada que reluz sob o céu cinzento. — Agora é hora de Niklas brilhar, e não vou tirar isso dele.

— Que absurdo! — Salto do sofá com os punhos fechados. — Ele está atrás de você, não é? — Cerro os dentes e contorno a mesinha de centro. — Caralho, é isso, Victor? Para provar seu valor para Vonnegut, ele foi encarregado de matar você. Aquele merda do seu irmão traiu você. Ele acha que vai pegar o seu lugar na Ordem. Puta que pariu, não acredito...

— É o que é, Sarai — interrompe Victor, virando-se para me encarar. — Mas, neste momento, Niklas é a menor das minhas preocupações.

Cruzando os braços, começo a andar de um lado para outro, olhando os veios claros e escuros da madeira sob meus pés descalços. Minhas unhas ainda têm o esmalte vermelho-sangue de duas semanas atrás.

— Por que saiu da Ordem?

— Eu tive que sair. Não tinha escolha.

— Não acredito.

Victor suspira.

— Vonnegut descobriu sobre a gente — conta ele, ganhando minha atenção total. — Foi Samantha... na noite em que ela morreu. Antes que eu saísse da Ordem, encontrei Vonnegut em Berlim, o primeiro encontro frente a frente que tive com ele em meses. Foi em uma sala de interrogatório. Quatro paredes. Uma porta. Uma mesa. Duas cadeiras. Somente eu e Vonnegut sentados frente a frente, com uma luz brilhando no teto acima de nós. — Victor olha para trás pela porta de vidro e depois continua: — No início, eu estava certo de que ele tinha me levado para lá com a intenção de me matar. Eu estava preparado...

— Para morrer? — Se Victor responder que sim, vou dar um tapa na cara dele.

— Não — responde ele, e consigo respirar um pouco melhor. — Eu fui para lá preparado. Raptei a mulher de Vonnegut antes de ir encontrá-lo. Fredrik a manteve em uma sala, pronto para fazer... as coisas dele, caso fosse necessário.

No mesmo instante, quero perguntar o que são as “coisas” de Fredrik, mas deixo a pergunta de lado por enquanto e digo:

— Se Vonnegut quisesse matar você, a esposa dele seria a sua moeda de troca.

De costas para mim, ele assente.

— Samantha estava sendo vigiada pela Ordem. Provavelmente há muito tempo.

— Eles desconfiavam da traição dela? Por que não a mataram, então, como fizeram com a mãe de Niklas, ou como queriam fazer com Niklas?

Victor se vira para me encarar de novo.

— Eles não desconfiavam dela, Sarai, ela era... — Victor respira fundo e aperta os lábios.

— Ela era o quê? — Chego mais perto dele. Não gosto do rumo que a conversa está tomando.

— Ela era mais leal à Ordem do que eu jamais poderia ter imaginado — conta ele, e isso fere meu coração. — Sentado naquela sala com Vonnegut, quanto mais ele falava, mais eu começava a entender que Samantha me traiu da mesma forma que Niklas. Vonnegut me contou coisas que ele não tinha como saber. Ele sabia que eu ajudei você. Em algum momento antes de morrer, naquela noite, Samantha conseguiu passar informações a Vonnegut sobre nossa estadia por lá.

— Não acredito nisso. — Golpeio o ar com a mão diante de mim. — Samantha morreu tentando me proteger. Já falamos sobre isso. Não acredito em você, Victor. Ela era uma boa pessoa.

— Ela era boa manipuladora, Sarai, nada mais do que isso.

Balanço a cabeça, ainda sem acreditar.

— Foi Niklas quem contou a Vonnegut que você me ajudou. Só pode ter sido. Niklas sabia até que você tinha me levado para a casa de Samantha.

— Sim, mas Niklas não sabia que eu fiz Samantha provar nossa comida antes de a gente comer, naquela noite. Assim que Vonnegut mencionou quanto eu ainda desconfiava dela depois de tantos anos, eu soube que ela havia me traído.

— Mas isso não faz nenhum sentido. — Começo a andar pela sala de novo, de braços cruzados e com uma das mãos apoiada no rosto. — Por que ela me protegeria de Javier?

— Porque ela não era leal a Javier.

Jogo as mãos para o ar, atônita com aquela revelação.

— Não dá para confiar em ninguém — digo, me jogando no sofá e olhando para o nada.

— Não, não dá — concorda Victor, e eu olho para cima, detectando um significado oculto por trás de suas palavras. — Agora talvez você entenda por que eu não me envolvo com ninguém. Não é só o trabalho, Sarai. As pessoas em geral não são confiáveis, especialmente na minha profissão, na qual a confiança é tão rara que não vale a pena perder tempo e esforço procurando por ela.

— Mas você parece confiar em Fredrik — observo, olhando para Victor do sofá. — Por que me trouxe logo aqui? Não aprendeu a lição com Samantha?

Sua expressão fica um pouco mais sombria, ressentida pela minha acusação.

— Eu nunca disse que confiava em Fredrik. Mas no momento ele é meu único contato dentro da Ordem e, nos últimos sete meses, não fez nada que não o tornasse digno de confiança. Ao contrário, fez tudo para provar sua lealdade a mim.

— Mas isso não significa que seja verdade.

— Não, você tem razão, mas logo vou saber com cem por cento de certeza se Fredrik é confiável ou não.

— Como?

— Você vai descobrir comigo.

— Por que se dar a esse trabalho? Você disse que a confiança é tão rara que não vale o esforço.

— Você faz muitas perguntas.

— Pois é, acho que faço. E você não responde o suficiente.

— Não, acho que não. — Victor abre um sorrisinho, e meu coração se derrete instantaneamente em uma poça de mingau.

Desvio os olhos dos dele e disfarço meus sentimentos.

— Não estou segura aqui — digo, encarando-o novamente.

— Você não está segura em lugar nenhum — corrige Victor. — Mas, enquanto estiver comigo, nada vai acontecer com você.

— Quem está falando merda agora?

Ele levanta uma sobrancelha.

— Você não é meu herói, lembra? — digo para refrescar a memória de Victor. — Não é minha alma gêmea que jamais deixará que nada de ruim aconteça comigo. Devo confiar nos meus instintos primeiro e em você, se eu decidir confiar, por último. Você me disse isso certa vez.

— E continua sendo verdade.

— Então como pode dizer que nada vai me acontecer se eu estiver com você?

A expressão de Victor fica vazia, como se pela primeira vez na vida alguém o tivesse deixado sem palavras. Olho para seu rosto silencioso e sem emoção, e apenas seus olhos revelam um traço de torpor. Tenho a sensação de que ele falou sem pensar, que manifestou algo que sente de verdade, mas que jamais quis que eu soubesse: Victor quer ser meu herói, vai fazer qualquer coisa, tudo o que puder para me manter a salvo. Quer que eu confie totalmente nele.

E confio.

Ele volta para perto de mim e se senta ao meu lado. O cheiro de seu perfume é fraco, como se ele fizesse questão de usar o mínimo possível. Estou tonta de desejo. Ansiosa para sentir novamente seu toque, saborear seus lábios quentes, deixar que ele me tome como fez algumas noites antes que nos víssemos pela última vez. Não tenho pensado em nada além de Victor nos últimos oito meses da minha vida. Enquanto durmo. Como. Vejo TV. Transo. Me masturbo. Tomo banho. Cada coisa que fiz desde que ele me deixou naquele hospital com Dina fiz pensando nele.

— Você acha que Fredrik vai contar a Niklas onde a gente está? — Mudo de assunto por medo de deixar transparecer muita coisa cedo demais.

— Acho que se ele fosse fazer isso teria contado a Niklas o pouco que sabia sobre o seu paradeiro há muito tempo, e Niklas já teria tentado matar você — responde Victor.

— Tem alguma coisa... estranha em Fredrik. Você não sente?

Victor passa a mão pelo meu cabelo úmido. O gesto faz meu coração disparar.

— Você tem grande sensibilidade para as pessoas, Sarai — comenta ele, levando a mão ao meu queixo. — Tem razão sobre Fredrik. — Ele passa o polegar pelo meu lábio inferior. Um calafrio percorre o meio das minhas pernas. — Ele é... como dizer?... desequilibrado, de certa forma.

Minha respiração acelera, e sinto meus cílios tocando meu rosto quando os lábios de Victor cobrem os meus.

— Desequilibrado de que forma? — pergunto, ofegante, quando ele se afasta.

De olhos fechados, percebo que ele está observando a curva do meu rosto e meus lábios e sinto a respiração que sai suavemente de suas narinas.

Cada pelinho minúsculo se eriça quando a outra mão de Victor sobe e encontra minha cintura nua por baixo da camiseta. Seus dedos longos dançam sobre a pele do meu quadril e param por ali.

Abro os olhos e vejo os dele me encarando.

— Algum problema? — pergunta ele, e sua boca roça a minha de novo.

— Não, eu... eu só não esperava isso.

— Esperava o quê?

Sinto seus dedos levantando o elástico da minha calcinha. Minha cabeça está girando, sinto meu estômago se transformar em um emaranhado de músculos, trêmulo e nervoso.

— Isso — respondo, piscando. — Você está diferente — acrescento, baixinho.

— Culpa sua — diz Victor, e então seus lábios devoram os meus.

Ele me deita no sofá e se encaixa entre as minhas pernas.

Seu celular vibra na mesinha de centro, e percebo quanto sou humana quando xingo Fredrik por estragar aquele momento, mesmo que seja para me avisar de que Dina está a salvo.


CONTINUA

CAPÍTULO UM

Sarai

Já faz oito meses que fugi da fortaleza no México onde fui mantida contra minha vontade por nove anos. Estou livre. Levo uma vida “normal”, fazendo coisas normais com gente normal. Não fui mais atacada, ameaçada nem seguida por ninguém que ainda queira me matar. Tenho uma “melhor amiga”, Dahlia. Tenho a coisa mais parecida com uma mãe que já conheci, Dina Gregory. O que mais eu poderia querer? Parece egoísmo desejar qualquer outra coisa. Mas, apesar de tudo o que tenho, algo não mudou: continuo vivendo uma mentira.

Deixei amigos na Califórnia: Charlie, Lea, Alex e... Bri... Não, espera, quero dizer Brandi. Meu ex-namorado, Matt, era abusivo, por isso voltei para o Arizona. Ele me perseguiu por muito tempo depois que terminamos. Consegui uma ordem judicial para mantê-lo afastado, mas não funcionou. Ele atirou em mim há oito meses, mas não posso provar porque não cheguei a vê-lo. E tenho muito medo de denunciá-lo à polícia.

Claro que tudo isso é mentira.

São os pedaços da minha vida que acobertam o que realmente aconteceu comigo. Os pretextos para eu ter desaparecido aos 14 anos e ter ido parar em um hospital da Califórnia com um ferimento a bala. Jamais vou poder contar a Dina, Dahlia ou ao meu namorado, Eric, o que aconteceu de verdade: que fui levada para o México pela péssima versão de mãe que eu tinha, para morar com um chefão do tráfico. Jamais vou poder contar que fugi daquele lugar depois de nove anos e matei o homem que me manteve prisioneira por toda a minha adolescência. Quer dizer, claro que eu poderia contar a alguém, mas, se fizesse isso, só estaria pondo Victor em perigo.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/2_O_RETORNO_DE_IZABEL.jpg

 

Victor.

Não, nunca vou poder contar que um assassino me ajudou a fugir, ou que testemunhei Victor matando várias pessoas, inclusive a esposa de um empresário famoso e importante de Los Angeles. Nunca vou poder contar que, depois de tudo pelo que passei, depois de tudo o que vi, o que mais quero é fazer as malas e voltar para aquela vida perigosa. A vida com Victor.

Até hoje, falar o nome dele me acalma. Às vezes, quando estou acordada na cama à noite, murmuro seu nome só para ouvi-lo, porque preciso. Preciso dele. Não consigo tirá-lo da cabeça. Já tentei. Porra, e como tentei. Mas, não importa o que eu faça, continuo vivendo cada dia da minha vida pensando nele. Se está me vigiando. Se pensa em mim tanto quanto penso nele. Se ainda está vivo.

Pressiono o travesseiro contra a cabeça e fecho os olhos, imaginando Victor. Às vezes, é só assim que consigo gozar.

Eric aperta minhas coxas com as mãos e me imobiliza na cama, com o rosto enfiado no meio das minhas pernas.

Arqueio o quadril contra ele, roçando de leve contra sua língua frenética, até que ele faça meu corpo todo enrijecer e minhas coxas tremerem ao redor da sua cabeça.

— Meu Deus... — Estremeço enquanto gozo, então deixo os braços caírem entre as pernas, afundando os dedos no cabelo preto de Eric. — Caramba...

Sinto os lábios de Eric tocando minha barriga um pouco acima da pélvis.

Olho para o teto como sempre faço depois de um orgasmo, pois a culpa que sinto me deixa com vergonha de olhar para Eric. Ele é um cara superlegal. Meu namorado sexy de 27 anos, cabelo preto e olhos azuis, gentil, encantador, engraçado e perfeito. Perfeito para mim se eu nunca tivesse conhecido Victor Faust.

Estou arruinada pelo resto da vida.

Enxugo as gotas de suor da testa e Eric sobe pela cama, deitando-se ao meu lado.

— Você sempre faz isso — diz ele, brincando, enquanto cutuca minhas costelas com os nós dos dedos.

Como sinto muitas cócegas, eu me encolho e me viro para encará-lo. Sorrio com ternura e passo um dedo por seu cabelo.

— O que eu sempre faço?

— Esse negócio de ficar em silêncio. — Eric segura meu queixo entre o polegar e o indicador. — Eu faço você gozar e você fica bem quieta durante um tempão.

Eu sei e sinto muito, mas preciso apagar o rosto de Victor da minha cabeça antes de conseguir olhar você nos olhos. Sou uma pessoa horrível.

Eric me dá um beijo na testa.

— Isso se chama recuperação — brinco, beijando os dedos dele. — É totalmente inofensivo. Mas você deveria interpretar como um bom sinal. Você sabe o que está fazendo — digo, retribuindo o cutucão nas costelas.

E ele sabe mesmo o que está fazendo. Eric é ótimo na cama. Mas ainda sou emocionalmente muito ligada... viciada... em Victor, e tenho a sensação de que sempre serei.

Só consegui seguir a vida e me abrir a outros relacionamentos cinco meses depois que Victor foi embora. Conheci Eric no trabalho, na loja de conveniência. Ele comprou um saco de biscoitos e um energético. Depois disso, ele aparecia na loja duas, às vezes três vezes por semana. Eu não queria nada com ele. Queria Victor. Mas comecei a perder a esperança de que Victor um dia fosse voltar para mim.

Eric tenta passar um braço ao redor do meu corpo, mas me levanto casualmente e visto a calcinha. Ele não desconfia de nada, o que é bom. Não sinto vontade de ficar abraçadinha, mas a última coisa que quero é magoá-lo. Ele ergue os braços e entrelaça os dedos atrás da cabeça. Olha para mim, do outro lado do quarto, com um sorriso sedutor. Sempre faz isso quando não estou completamente vestida.

— Sarai.

— Oi. — Visto a camiseta e ajeito o rabo de cavalo.

— Eu sei que está em cima da hora — diz Eric —, mas queria ir com você e Dahlia para a Califórnia amanhã.

Merda.

— Mas você não disse que não ia conseguir folga no trabalho? — pergunto, vestindo o short e calçando os chinelos.

— Quando você perguntou se eu queria ir, não ia dar mesmo. Mas contrataram um funcionário novo, e meu chefe decidiu me dar folga.

Isso é uma péssima notícia. Não porque eu não o queira por perto — gosto de Eric, apesar da minha incapacidade de esquecer Victor Faust —, mas minha viagem de “férias” à Califórnia amanhã não é para fazer turismo, curtir a noite nem fazer compras na Rodeo Drive.

Estou indo até lá para matar um homem. Ou melhor, tentar matar um homem.

Já é ruim que Dahlia vá também, e já vai ser difícil guardar segredo de uma pessoa. Imagine duas.

— Você... não parece animada — comenta Eric, seu sorriso morrendo aos poucos.

Abro um sorriso largo e balanço a cabeça, voltando para perto dele e me sentando na beira da cama.

— Não, não, eu estou animada. É que você me pegou de surpresa. A gente vai sair às seis da manhã. É daqui a menos de oito horas. Você já fez as malas?

Eric dá uma risada e se estica na minha cama, me puxando para si. Eu me sento perto de sua cintura, apoiando um braço no colchão do outro lado dele, com os pés para fora da cama.

— Bom, eu só fiquei sabendo hoje à tarde, antes de sair do trabalho — explica ele. — Eu sei, está em cima da hora, mas só preciso enfiar umas coisas na mala e estou pronto.

Ele estende a mão e afasta do meu rosto os fios de cabelo que escaparam do rabo de cavalo.

— Ótimo! — minto, com um sorriso igualmente falso. — Então acho que está combinado.

Dina acorda antes de mim, às quatro da manhã. O cheiro de bacon é o que me desperta. Levanto da cama e entro debaixo do chuveiro antes de me sentar à mesa da cozinha. Um prato vazio já está à minha espera.

— Gostaria que você tivesse escolhido algum outro lugar para passar sua folga, Sarai — afirma Dina.

Ela se senta do outro lado da mesa e começa a encher seu prato. Pego alguns pedaços de bacon do monte e ponho no meu.

— Eu sei — digo —, mas, como falei para você, não vou deixar que meu ex me impeça de ver meus amigos.

Ela balança a cabeça cada vez mais grisalha e suspira.

Passei do limite em algum momento com meu amontoado de mentiras. Quando Victor levou Dina para o hospital em Los Angeles, depois que o irmão dele, Niklas, atirou em mim, ela não fazia ideia do que tinha acontecido. Só sabia que eu tinha levado um tiro. Demorei alguns meses até me sentir segura o suficiente para falar com ela sobre isso. Quer dizer, depois de bolar a história que eu ia contar. Foi aí que inventei o lance do ex-namorado violento. Eu deveria ter dito que fui assaltada. Por um desconhecido. A mentira seria muito mais fácil de manter. Agora que ela sabe que vou voltar para Los Angeles, está morrendo de preocupação, e já faz uns dois meses. Eu nem deveria ter contado que ia voltar lá.

Termino de comer o bacon e um pouco de ovos mexidos, junto com um copo de leite.

Dahlia e Eric chegam juntos assim que termino de escovar os dentes.

— Vamos logo, a gente precisa pegar a estrada — chama Dahlia, me apressando da porta. Seu cabelo castanho-claro está preso no alto da cabeça em um coque desalinhado de quem acabou de acordar.

Eu me despeço de Dina com um abraço.

— Eu vou ficar bem — digo a ela. — Prometo. Não vou nem chegar perto de onde ele mora.

Desta vez, chego até a imaginar um rosto masculino ao falar de alguém que não existe. Acho que já interpreto esse papel há tanto tempo que “Matt” e todos esses meus “amigos” de Los Angeles, de quem falo para todo mundo como se fossem reais, se tornaram reais no meu subconsciente.

Dina força um sorriso em seu rosto preocupado, e suas mãos soltam meus cotovelos.

— Você liga assim que chegar?

— Assim que eu entrar no quarto do hotel, ligo — respondo, assentindo.

Ela sorri e eu a abraço mais uma vez, antes de segui-los até o carro de Dahlia, que está esperando. Eric guarda minha mala no bagageiro, junto com as deles, e se senta no banco de trás.

— Hollywood, aí vamos nós! — exclama Dahlia.

Finjo metade da empolgação dela. Ainda bem que está muito cedo, senão Dahlia poderia intuir o verdadeiro motivo da minha falta de entusiasmo. Estico os braços para trás e bocejo, apoiando a cabeça no banco do carro. Sinto a mão de Eric no meu pescoço quando ele começa a massagear meus músculos.

— Não sei por que você quer ir a Los Angeles de carro — diz Dahlia. — Se a gente fosse de avião, não ia precisar acordar tão cedo. E você não estaria tão cansada e rabugenta.

Minha cabeça cai para a esquerda.

— Não estou rabugenta. Ainda mal falei com você.

Ela dá um sorrisinho.

— Exatamente. Sarai sem falar significa Sarai rabugenta.

— E se recuperando — acrescenta Eric.

Meu rosto fica vermelho e eu estico a mão atrás da cabeça, dando um tapinha de brincadeira na dele, que está fazendo maravilhas no meu pescoço. Fecho os olhos e vejo Victor.

Não de propósito.

Chegamos a Los Angeles depois de quatro horas na estrada. Eu não podia ir de avião porque não conseguiria levar minhas armas. É claro que Dahlia não pode saber disso. Ela acha apenas que quero apreciar a paisagem.

Tenho sete dias para fazer o que vim fazer. Isto é, se eu conseguir. Pensei no meu plano durante meses, em como vou fazer isso. Sei que é impossível entrar na mansão Hamburg. Para isso, eu precisaria ter um convite e socializar em público com o próprio Arthur Hamburg e seus convidados. Ele viu meu rosto. Bem, tecnicamente, viu mais do que meu rosto. Mas sinto que os acontecimentos daquela noite, quando Victor e eu enganamos Hamburg para que ele nos convidasse para ir ao seu quarto e conseguíssemos matar sua esposa, são algo que ele jamais vai esquecer, nem os mínimos detalhes.

Se tudo der certo, uma peruca loura platinada de cabelo curto e maquiagem escura e pesada vão esconder aquela identidade de cabelo longo e castanho que Hamburg reconheceria assim que eu aparecesse.


CAPÍTULO DOIS

Sarai

Passo o dia todo com Eric e Dahlia, fingindo me divertir para passar o tempo. Saímos para almoçar e para fazer um tour por Hollywood com um guia e visitar um museu antes de voltarmos para o hotel, exaustos. Quer dizer, finjo estar exausta o suficiente para querer dar o dia por encerrado. Na verdade, o que preciso é me preparar para ir ao restaurante de Hamburg ainda hoje.

Dahlia já acha que tem algo errado comigo.

— Você está ficando doente? — pergunta ela, estendendo a mão entre nossas espreguiçadeiras à beira da piscina e sentindo a temperatura da minha testa.

— Estou ótima — respondo. — Só cansada porque levantei muito cedo. E quando foi a última vez que andei tanto assim em um dia só?

Dahlia volta a se recostar em sua espreguiçadeira e ajeita os óculos de sol grandes e redondos no rosto.

— Bom, espero que não esteja cansada amanhã — diz Eric, do outro lado. — Tem tantas coisas que eu quero fazer. Não venho para Los Angeles desde que meus pais se divorciaram.

— Pois é. É a minha primeira vez aqui em dois anos — afirma Dahlia.

Um adolescente pula na piscina e a água respinga em nós. Ergo as costas da espreguiçadeira e agito a revista que estava lendo para tirar as gotas. Ponho os óculos escuros no alto da cabeça. Jogo as pernas para o lado e fico de pé.

— Acho que vou voltar para o quarto e tirar uma soneca — anuncio, pegando minha bolsa do chão.

Eric se ergue também e tira os óculos escuros.

— Se quiser, vou com você — oferece ele.

Agito a mão para ele, pedindo que não se levante.

— Não, fica aí e faz companhia para a Dahlia — sugiro, ajeitando a bolsa no ombro. Abaixo os óculos escuros de novo para que ele não perceba minha mentira.

— Tem certeza de que você está bem? — pergunta Dahlia. — Sarai, você está de férias, lembra? Veio para cá se divertir, não para cochilar.

— Acho que vou estar cem por cento amanhã. Só preciso de um banho quente e demorado e de uma boa noite de sono.

— Ok, vou acreditar — diz Dahlia. — Mas nem vem com doença para o meu lado. — Ela aponta o dedo para mim, com ar severo.

Eric fecha os dedos em torno do meu pulso e me puxa para perto.

— Tem certeza de que não quer que eu vá? — Ele me beija e eu correspondo antes de me levantar de vez.

— Tenho — respondo, baixinho, e saio na direção do elevador.

Assim que entro no quarto, tranco a porta com a corrente para que Eric e Dahlia não entrem de surpresa, jogo a bolsa no chão e abro meu laptop, digitando a senha. Enquanto o laptop inicia, olho pela janela e vejo meus amigos, figuras pequenas daquela distância, ainda à beira da piscina. Eu me sento diante da tela e, provavelmente pela centésima vez, olho cada página do site do restaurante de Hamburg, verificando de novo o horário de funcionamento e passando os olhos pelas fotos profissionais do lugar, dentro e fora. Na verdade, nada disso me ajuda muito com o que pretendo fazer, mas olho tudo de novo todo dia, de qualquer maneira.

Derrotada, bato a palma da mão com força no tampo da mesa.

— Droga! — exclamo, desabando na poltrona enquanto passo as mãos pelo cabelo.

Ainda não sei como vou conseguir ficar a sós com Hamburg sem ser vista. Sei que estou dando um passo maior do que a perna. Sei disso desde que tive essa ideia maluca, mas também sei que, se ficar apenas pensando a respeito, nunca vou passar dessa fase.

Vim para cá com um plano: entrar disfarçada no restaurante e agir como qualquer outro cliente. Sondar o lugar por uma noite. Saber onde ficam as saídas. As entradas para outras partes do prédio. Os banheiros. Minha prioridade número um, contudo, é encontrar a sala de onde Hamburg observa do alto seus clientes e ouve a conversa deles pelo minúsculo microfone escondido no arranjo de cada mesa. Então pretendo me enfiar na sala e cortar a garganta daquele porco.

Contudo, agora que estou aqui, a menos de seis quadras do restaurante, e agora que o tempo está passando tão depressa, estou menos confiante. Isso não é um filme. Sou uma idiota por achar que posso adentrar um lugar desses sem ser vista, tirar a vida de um homem sem chamar atenção e fugir sem ser capturada.

Apenas Victor conseguiria fazer algo assim.

Bato no tampo da mesa de novo, mais de leve desta vez, fecho o laptop e me levanto. Ando de um lado para outro no carpete vermelho e verde. E bem quando resolvo seguir pelo corredor para o quarto separado que reservei sem Dahlia e Eric saberem, a porta se abre um pouco, mas é travada pela corrente.

— Sarai? — chama Dahlia do outro lado. — Vai deixar a gente entrar?

Suspiro fundo e destranco a porta.

— Por que a corrente? — pergunta Eric, entrando atrás de Dahlia.

— Força do hábito.

Eu me jogo na ponta da cama king-size.

Os dois deixam suas coisas no chão. Dahlia se senta à mesa, ao lado da janela, e Eric se deita atravessado na cama ao meu lado, cruzando as pernas na altura dos calcanhares.

— Pensei que você ia tirar uma soneca — diz Dahlia.

Ela passa os dedos com cuidado pelo cabelo úmido, fazendo caretas quando se depara com alguma mecha mais embaraçada.

— Dahlia — digo, olhando para os dois. — Eu subi agora há pouco. Pensei que vocês iam ficar na piscina mais um tempo.

Espero ter conseguido disfarçar o aborrecimento na minha voz por eles terem vindo me encontrar tão cedo. Não consigo evitar: estou estressada demais, além de preocupada com a simples presença dos dois aqui comigo. Não quero que eles se machuquem nem que se envolvam de forma alguma com meu motivo para estar aqui.

— A gente pode sair e deixar você sozinha, se quiser — sugere Eric, baixinho, atrás de mim.

Eu me arrependo na mesma hora do que disse, porque é óbvio que não disfarcei o aborrecimento tão bem quanto esperava.

Inclino a cabeça para trás e suspiro, esticando o braço para tocar o tornozelo dele.

— Desculpa — digo, sorrindo para Dahlia. — Sabe, eu... — Então, de repente, uma desculpa perfeitamente plausível para o modo como tenho agido surge na minha cabeça, e a torneira das mentiras se abre. — Eu só fico meio nervosa por estar de volta a Los Angeles.

Dahlia faz cara de “ah, entendi”, empurra os pés de Eric para o lado e se senta perto de mim. Ela passa o braço por cima dos meus ombros e segura meu antebraço.

— Imaginei que o problema fosse esse.

Percebo que ela olha de relance para Eric e tenho a impressão de que foi sobre isso que os dois falaram enquanto ficaram na piscina, depois que fui embora.

Aposto que também foi por isso que decidiram subir tão cedo para me ver.

— A gente queria ver como você estava — acrescenta Eric atrás de mim, confirmando minha suspeita.

Sinto a cama se mexer quando ele se senta.

Eu me levanto antes que ele consiga me abraçar. É nesse exato momento que me dou conta de como tenho feito isso com frequência no último mês. Não sei por quanto tempo mais vou conseguir enganá-lo. Sei que deveria simplesmente contar o que sinto, que não gosto tanto de Eric quanto ele gosta de mim. Mas não consigo dizer a verdade. Eu precisaria inventar mais uma mentira, e estou tão atolada em mentiras que me sinto afogada nelas.

Ao mesmo tempo, deixei nossa relação durar tanto porque eu queria de verdade sentir por ele algo tão profundo quanto o que ele parece sentir por mim. Queria seguir em frente, esquecer Victor e ser feliz com a vida que ele me deixou.

Mas não consigo. Não consigo mesmo...

— Ele nem vai saber que você está aqui — diz Eric sobre “Matt”. — Além disso, mesmo que ele descobrisse, eu ia encher o cara de porrada assim que o visse.

Esboço um sorriso para Eric.

— Eu sei que você faria isso — digo, mas me sinto ainda pior, porque os únicos dois amigos que tenho no mundo não fazem nem ideia de quem sou.

Cruzo os braços, vou até a janela e olho para fora.

— Sarai — chama Dahlia. — Não queria dizer isso, mas, se você está tão preocupada com a possibilidade de Matt descobrir que você está em Los Angeles, acho que não é boa ideia visitar seus amigos aqui.

— Eu sei, você tem razão. Sei que eles não contariam para Matt, mas acho que é melhor eu ficar só com vocês dois enquanto estivermos aqui.

Eu me viro para encará-los.

— É um bom plano — diz Eric, com um sorriso radiante.

É um bom plano, com certeza, porque agora não preciso mais inventar outra desculpa para não apresentar os dois aos meus amigos que não existem.

Dahlia se aproxima de mim.

— A gente devia ter ido para a Flórida ou algum lugar assim, hein?

Olho pela janela de novo.

— Não — respondo. — Adoro esta cidade. E sei que vocês queriam muito vir para cá. — Dou um sorriso rápido. — Sugiro que a gente curta ao máximo esta semana.

Ela me empurra com o ombro de brincadeira.

— Essa é a Sarai que eu conheço — diz Dahlia, sorrindo.

É, só que não sou essa pessoa...

Ela vai até Eric e o puxa pelo braço, levantando-o da cama.

— Vamos sair daqui e deixar a mocinha descansar.

Eric se levanta e se aproxima de mim. Então pega meus braços e me vira para encará-lo. Com aqueles olhos azul-bebê, ele faz a melhor expressão amuada que consegue.

— Se precisar de mim para qualquer coisa, pode me chamar que eu venho.

Concordo com a cabeça e lhe ofereço um sorriso sincero. Ele merece, por ser tão legal comigo.

— Pode deixar.

Então eu os empurro porta afora com as duas mãos.

— Eu diria para vocês não se divertirem muito sem mim, mas isso seria pedir demais.

Dahlia ri baixinho ao sair para o corredor.

— Não, não é pedir muito. — Ela levanta dois dedos. — Palavra de escoteiro.

— Acho que não é assim que se faz, Dahl — diz Eric.

Ela faz um gesto para dispensar as palavras dele.

— Trate de dormir — sugere Dahlia. — Porque amanhã você vai precisar estar novinha em folha.

— De acordo — digo, assentindo.

— Tchau, amor — diz Eric antes de eu fechar a porta.

Fico com as costas apoiadas na porta e solto um suspiro longo e profundo.

Fingir é difícil demais. Bem mais difícil do que simplesmente ser eu mesma, por mais anormal e imprudente que eu seja.

— Eu sei o que preciso fazer — digo em voz alta.

Falar sozinha é minha nova mania, porque me ajuda a visualizar e entender melhor as coisas.

Volto para a janela e olho a cidade de Los Angeles, com os braços cruzados.

— Preciso de um disfarce, mas não para me esconder de Hamburg. Só das câmeras e de qualquer outra pessoa. Eu quero que Hamburg me veja. Só assim vou conseguir entrar.


CAPÍTULO TRÊS

Sarai

Dahlia e Eric só voltam para o quarto algumas horas mais tarde, depois de escurecer. Eu já tinha tomado banho, vestido short e camiseta e deixado a luz apagada para parecer que estava dormindo. Assim que ouvi o cartão passando pela porta, pulei na cama e me espalhei pelo colchão, como sempre faço quando durmo de verdade. Eric entrou na ponta dos pés, tentando não “me acordar”, mas me virei, soltei um resmungo e abri os olhos para mostrar que acordei. Ele pediu desculpas e perguntou se eu queria ir com ele e Dahlia a uma boate ali perto, insistindo que, se eu não fosse, ele também não iria. Mas logo rejeitei essa ideia. Percebi que ele queria muito ir e não posso culpá-lo: se eu estivesse no lugar dele, não iria querer ficar em um quarto escuro de hotel às oito da noite de uma sexta-feira, em uma das cidades mais animadas dos Estados Unidos.

Eric e Dahlia saírem era exatamente do que eu precisava. Passei aquelas duas horas inteiras tentando inventar uma desculpa para explicar a eles por que eu ia sair, aonde iria e por que eles não poderiam ir junto.

Eles resolveram isso para mim.

Minutos após Eric sair do quarto, espero Dahlia — em seu próprio quarto, ao lado do nosso — tirar o biquíni e se vestir. Pelo olho mágico da minha porta, eu os vejo indo embora pelo corredor. Conto até cem enquanto ando de um lado para outro sem parar. Então pego minha bolsa e vou até a porta. Ando depressa pelo corredor na direção oposta e chego ao quarto secreto, do outro lado do prédio.

Com certa paranoia de ser flagrada, vasculho minha bolsa e encontro tudo, menos a chave do quarto. Enfim consigo senti-la entre os dedos e me apresso para entrar, travando a porta com a corrente. Abro a mala ao pé da cama e tiro minha peruca curta platinada, passando os dedos para ajeitar as mechas desalinhadas, e então a deixo sobre o abajur ao lado para que não perca a forma.

Visto um Dolce & Gabbana curtinho e me maquio com cores escuras e pesadas, o que, depois de passar um tempão praticando em casa, faço bem. Então calço as sandálias de salto alto. Andar de salto é outra coisa que passei muito tempo tentando aprender. Meu alter ego, Izabel Seyfried, saberia andar de salto e o faria bem. Por isso, eu precisava acompanhar.

Em seguida, molho o cabelo e o divido em duas partes atrás. Enrolo cada metade e cruzo uma sobre a outra na nuca. Vários grampos depois, meu longo cabelo castanho está bem preso no couro cabeludo. Visto a touca da peruca e depois a própria peruca, ajustando-a por muito tempo até deixar tudo perfeito.

Por fim, prendo uma bainha de punhal em torno da coxa e a cubro com o tecido do vestido.

Fico de pé diante do espelho de corpo inteiro e me avalio de todos os ângulos possíveis. Estar loura é estranho. Satisfeita, pego a bolsinha preta e a enfio debaixo do braço, com a pequena pistola formando certo volume nela. Estico o braço para girar a maçaneta, mas deixo minha mão cair junto ao corpo.

“Que droga eu estou fazendo?”

O que precisa ser feito.

“E por que eu estou fazendo isso?”

Porque preciso.

Não consigo tirar da cabeça as coisas que aquele homem confessou, as pessoas que matou por causa de um fetiche sexual doentio. Todas as noites desde que Victor me deixou, quando fecho os olhos, vejo o rosto de Hamburg e aquele sorriso de gelar o sangue que ele abriu quando me curvei sobre a mesa, exposta na frente dele. Vejo o rosto de sua esposa, esquelético e combalido, seus olhos fundos turvados pela resignação. Ainda sinto até o fedor da urina que secou em suas roupas e no catre infestado onde ela dormia, naquele quarto escondido.

Meu peito se enche de ar e eu o prendo por vários segundos, antes de soltar um longo suspiro.

Não posso esquecer. A necessidade de matá-lo é como uma coceira no meio das costas. Não posso alcançar naturalmente, mas vou me curvar e torcer os braços até doerem para coçar.

Não posso esquecer...

E talvez... só talvez também acabe chamando a atenção de um certo assassino que não consigo me obrigar a esquecer.

Assim que passo pela porta, deixo Sarai para trás e me torno Izabel por uma noite.

Por não ter pensado de antemão na importância de ao menos alugar um carro chique, salto do táxi a duas quadras do restaurante e ando o resto do caminho. Izabel jamais seria vista andando de táxi.

— Mesa para um? — pergunta o recepcionista assim que entro no restaurante.

Inclino a cabeça e olho para ele com um ar irritado.

— Algum problema? Não posso fazer uma refeição sozinha? Ou você está dando em cima de mim? — Abro um sorrisinho e inclino a cabeça para o outro lado. Ele está ficando nervoso. — Você gostaria de jantar comigo... — olho para o nome bordado no paletó — ... Jeffrey? — Chego mais perto. Ele dá um passo constrangido para trás.

— Hã... — Ele hesita. — Peço desculpas, senhora...

Recuo, trincando os dentes.

— Nunca me chame de senhora — digo com rispidez. — Me leve até uma mesa. Para um.

Ele assente e pede que eu o siga. Quando chego à minha mesinha redonda com duas cadeiras, no meio do restaurante, me sento e deixo a bolsa ao lado. Um garçom se aproxima quando o recepcionista se afasta e me apresenta a carta de vinhos. Eu a rejeito com um movimento dos dedos.

— Quero apenas água com uma rodela de limão.

— Pois não, senhora — diz ele, mas deixo passar.

Enquanto o garçom se afasta, começo a examinar o lugar. Há uma placa indicando a saída à minha esquerda, bem longe, perto do corredor. Há outra à minha direita, próxima à escada que leva para o segundo piso. O restaurante está praticamente igual à primeira vez que vim: escuro, não muito cheio e bastante silencioso, embora desta vez eu ouça jazz baixinho vindo de algum lugar. Ao observar o recinto, paro de repente ao ver a mesa à qual me sentei com Victor quando vim com ele, meses atrás.

Eu me perco na memória, vendo tudo exatamente como aconteceu. Quando olho para as duas pessoas sentadas no outro lado do salão, só consigo me ver com Victor:

— Venha cá — diz ele, em um tom de voz mais delicado.

Deslizo os poucos centímetros que nos separam e me sento encostada a ele.

Seus dedos dançam pela minha nuca quando ele puxa minha cabeça para perto de si. Meu coração bate descompassado quando ele roça os lábios na lateral do meu rosto. De repente, sinto sua outra mão entrando pelo meio das minhas coxas e subindo por baixo do vestido. Minha respiração para. Devo abrir as pernas? Devo ficar imóvel e travá-las? Sei o que quero fazer, mas não sei o que devo fazer, e minha mente está a ponto de desistir.

— Tenho uma surpresa para você esta noite — murmura ele no meu ouvido.

Sua mão se aproxima mais do calor no meio das minhas pernas.

Gemo baixinho, tentando não deixar que ele perceba, embora tenha certeza absoluta de que percebeu.

— Que tipo de surpresa? — pergunto, com a cabeça inclinada para trás, apoiada em sua mão.

— Vai querer algo mais? — Ouço uma voz, e sou arrancada do meu devaneio.

O garçom está segurando o cardápio. Minha água com uma rodela de limão na borda do copo já está diante de mim.

Um pouco confusa de início, apenas assinto, mas faço que não em seguida.

— Ainda não sei — respondo, enfim. — Deixe o cardápio. Talvez eu peça mais tarde.

— Pois não — diz o garçom.

Ele deixa o cardápio na mesa e vai embora.

Olho para a varanda e para as mesas encostadas no balaústre requintado. Onde Hamburg pode estar? Sei que ele está no andar de cima porque Victor disse que ele ficava por lá. Mas onde? Eu me pergunto se ele já me viu, e no mesmo instante meu estômago se embrulha de nervoso.

Não, não posso parecer nervosa.

Endireito as costas na cadeira e tomo um gole da água. Deixo o dedo mindinho levantado, o que me faz parecer muito mais rica, ou apenas mais esnobe. Fico observando os clientes indo e vindo, escuto sua conversa supérflua e me pego imaginando qual dos casais que estão ali poderia acabar na mansão de Hamburg no fim de semana, ganhando muito dinheiro para deixar que ele os veja foder.

Então olho para o arranjo de flores vermelhas em um pequeno vaso de vidro no centro da minha mesa. Pego o celular na bolsa, finjo digitar um número e o coloco perto do ouvido, para que ninguém ache que estou falando sozinha.

— Este recado é para Arthur Hamburg — digo em voz baixa, inclinando-me um pouco para a frente a fim de que o microfone escondido no vaso de flores capte minha voz. — Com certeza você se lembra de mim, não é? Izabel Seyfried. Há quanto tempo, não?

Com cuidado, olho para os lados, esperando ver um ou dois homens parrudos de terno se aproximando de mim com armas em punho.

— Não estou sozinha — continuo —, por isso nem pense em fazer alguma idiotice. A gente precisa conversar.

Olhando para a varanda acima de mim, tento descobrir onde ele pode estar, torcendo para que esteja ali. Alguns minutos tensos se passam, e, quando começo a pensar que a noite foi em vão e que eu estava mesmo falando sozinha, noto um movimento no piso superior, logo acima da saída à minha direita. Meu coração bate forte quando vejo a figura alta e escura sair das sombras e descer a escada.

Eu me lembro desse homem de ombros largos, cabelo grisalho e uma covinha no meio do queixo. É o gerente do restaurante, Willem Stephens, que já encontrei aqui uma vez.

Ele se aproxima da minha mesa sem expressar nenhuma emoção, com as mãos enormes cruzadas à frente, as costas retas, o queixo anguloso imóvel.

— Boa noite, srta. Seyfried. — A voz dele é profunda e sinistra. — Posso perguntar onde está seu dono?

Levanto os olhos para encará-lo, dou um sorrisinho, tomo um gole da minha água e devolvo o copo à mesa, sem pressa. Cada fibra do meu ser está gritando, dizendo como fui idiota em vir até aqui. Por mais que eu saiba que é verdade, não importa. Não é o medo que me faz tremer por dentro, é a adrenalina.

— Victor Faust não é meu dono — explico, com calma. — Mas ele está aqui. Em algum lugar. — Um sorriso tênue e dissimulado toca meus lábios.

Os olhos de Stephens percorrem o salão sutilmente e voltam a me encarar.

— Por que está aqui? — pergunta ele, perdendo um pouco o ar de gerente sofisticado.

— Tenho negócios a discutir com Arthur Hamburg — respondo, confiante. — É do maior interesse dele marcar um encontro privado comigo. Aqui. Hoje. De preferência agora.

Tomo outro gole.

Noto que o pomo de adão de Stephens se move quando ele engole em seco, bem como os contornos de seu queixo quando ele cerra os dentes. Ele olha para o lugar de onde veio, no andar de cima, e percebo um aparelhinho preto escondido em seu ouvido esquerdo. Parece que ele está ouvindo alguém falar. Eu chutaria que é Hamburg.

Ele me encara de novo, com os olhos escuros e cheios de ódio, mas mantém o semblante inexpressivo com a mesma perfeição de Victor.

Ele descruza os braços, estende a mão direita para mim e diz:

— Por aqui.

Ele só deixa os braços penderem, relaxados, quando me levanto. Sigo Stephens pelo restaurante e escada acima, para o piso da varanda.

Apenas duas coisas podem acontecer: ou esta será minha primeira noite como assassina ou a última da minha vida.


CAPÍTULO QUATRO

Sarai

— Se encostar em mim — digo para o guarda-costas de terno à porta da sala particular de Hamburg —, enfio suas bolas em um moedor de carne.

As narinas do segurança se dilatam e ele olha para Stephens.

— Você solicitou uma reunião com o sr. Hamburg — diz Stephens atrás de mim. — É claro que vamos revistá-la antes para verificar se está armada.

Droga!

Calma. Fique calma. Faça o que Izabel faria.

Respiro fundo, encarando-os com desprezo e um ar ameaçador. Então jogo minha bolsinha preta no segurança. Ele pega a bolsa quando ela bate em seu peito.

— Acho que está bem claro que eu não conseguiria esconder uma arma em um vestido como este, a menos que a enfiasse na boceta — digo, olhando para Stephens. — Minha arma está na bolsa. Mas nem pense em tocar...

— Deixem a moça entrar — ordena da porta uma voz familiar.

É Hamburg, ainda balofo e grotesco como antes, usando um terno imenso que parece em vias de estourar se ele respirar fundo demais.

Abro um leve sorriso para o segurança, que me encara com olhos assassinos. Conheço esse olhar, até demais. O homem tira a pistola e me devolve a bolsa.

— Sr. Hamburg — diz Stephens —, eu deveria ficar na sala com o senhor.

Hamburg balança a papada, rejeitando a sugestão.

— Não, vá cuidar do restaurante. Se essas pessoas tivessem vindo me matar, não seriam tão óbvias. Eu vou ficar bem.

— Pelo menos deixe Marion à porta — sugere Stephens, olhando para o guarda-costas.

— Sim — concorda Hamburg. — Você fica aqui. Não deixe ninguém interromper nossa... — diz ele, me olhando com frieza — reunião, a menos que eu peça. Se em algum momento você não ouvir minha voz por mais de um minuto, entre na sala. Como precaução, é claro.

Ele abre um sorrisinho para mim.

— É claro. — Imito Hamburg e sorrio também.

Ele dá um passo para o lado e me convida a entrar.

— Pensei que isso tivesse acabado, srta. Seyfried.

Hamburg fecha a porta.

— Sente-se — pede ele.

A sala é bem grande, com paredes lisas e arredondadas, sem cantos, de um lado a outro. Uma série de grandes quadros retratando o que parece ser cenas bíblicas rodeia uma grande lareira de pedra. Cada imagem é emoldurada em uma caixa de vidro, com luzes na parte de baixo. A sala é pouco iluminada, como o restaurante, e o cheiro é de incenso ou talvez de óleo aromático de almíscar e lavanda. Na parede à minha esquerda, há uma porta aberta que leva a outra sala, onde a luz cinza-azulada de várias telas de TV brilha nas paredes. Chego mais perto para me sentar na poltrona de couro com encosto alto diante da escrivaninha e espio dentro da saleta. É como eu imaginava. As telas mostram várias mesas do restaurante.

Hamburg fecha essa porta também.

— Não, está longe de acabar — respondo, enfim.

Cruzo as pernas e mantenho a postura ereta, o queixo levantado com ar confiante e os olhos em Hamburg, enquanto ele atravessa a sala na minha direção. Puxo a barra do vestido para cobrir completamente o punhal preso na coxa. Minha bolsa está no meu colo.

— Vocês já tiraram minha esposa de mim. — A indignação transparece na voz dele. — Não acham que foi o suficiente?

— Infelizmente, não. — Abro um sorriso malicioso. — Não foi o suficiente para você e sua esposa tirarem uma vida? Não, não foi — respondo por ele. — Vocês tiraram muitas vidas.

Hamburg morde o interior da bochecha e se senta atrás da escrivaninha, de frente para mim. Ele apoia as mãos gordas sobre o tampo de mogno. Percebo quanto ele quer me matar ali mesmo onde estou. Mas não fará isso porque acredita que não estou sozinha. Ninguém em sã consciência faria algo assim, vir até aqui sozinha, inexperiente e desprevenida.

Ninguém, a não ser eu.

Preciso garantir que ele continue acreditando que tenho cúmplices até descobrir como vou matá-lo e sair da sala sem ser pega. O pedido de Hamburg para que o guarda-costas entrasse na sala depois de um minuto sem ouvir sua voz pôs mais um obstáculo no plano que, na verdade, nunca tive de fato.

— Bem, devo dizer uma coisa — diz Hamburg, mudando de tom. — Você é deslumbrante com qualquer tipo de peruca. Mas admito que prefiro a morena.

Ele acha que meu cabelo castanho-avermelhado era uma peruca. Ótimo.

— Você é doente. Sabe disso, certo? — Tamborilo com as unhas no braço da poltrona.

Hamburg abre um sorriso medonho. Estremeço por dentro, mas mantenho a compostura.

— Eu não matei aquelas pessoas de propósito. Elas sabiam no que estavam se metendo. Sabiam que, no calor do momento, alguém poderia perder o controle.

— Quantas?

Hamburg estreita os olhos.

— O que importa isso, srta. Seyfried? Uma. Cinco. Oito. Por que não diz logo o motivo da sua visita? Dinheiro? Informação? A chantagem assume muitas formas, e não seria a primeira vez que enfrento uma. Sou um veterano.

— Fale sobre a sua esposa — peço, ganhando tempo e fingindo ainda ser quem dá as cartas. — Antes de “ir direto ao assunto”, quero entender sua relação com ela.

Uma parte de mim quer saber de verdade. E estou incrivelmente nervosa; sinto um enxame zumbindo no meu estômago. Talvez jogar conversa fora ajude a acalmar minha mente.

Hamburg inclina a cabeça para o lado.

— Por quê?

— Apenas responda à pergunta.

— Eu a amava muito — responde ele, relutante. — Ela era a minha vida.

— Aquilo é amor? — pergunto, incrédula. — Você manchou a memória dela ao dizer que ela era uma viciada em drogas que se suicidou, só para salvar a própria pele, e chama isso de amor?

Noto uma luz se movendo no chão, por baixo da porta da sala de vigilância. Não havia ninguém lá dentro antes, ao menos que eu tivesse visto.

— Como a chantagem, o amor assume muitas formas. — Hamburg apoia as costas na poltrona de couro, que range, cruzando os dedos roliços sobre a enorme barriga. — Mary e eu éramos inseparáveis. Não éramos como outras pessoas, outros casais, mas o fato de sermos tão diferentes não significava que nos amávamos menos do que os outros. — Os olhos dele cruzam os meus por um momento. — Tivemos sorte por encontrar um ao outro.

— Sorte? — pergunto, pasma com o comentário. — Foi sorte duas pessoas doentes se encontrarem e se unirem para fazer coisas doentias com os outros? Não entendo.

Hamburg balança a cabeça como se fosse um velho sábio e eu fosse jovem demais para entender.

— Pessoas diferentes como Mary e eu...

— Doentes e dementes — corrijo. — Não diferentes.

— Chame como quiser — diz ele, com ar de resignação. — Quando você é tão diferente assim da sociedade, do que é aceitável, encontrar alguém como você é algo muito raro.

Sem perceber, cerro os dentes. Não porque Hamburg esteja me irritando, mas porque nunca imaginei que esse homem nojento pudesse me dizer qualquer coisa que me fizesse pensar na minha situação com Victor, ou qualquer coisa que eu pudesse entender.

Afasto esse pensamento.

A luz fraca sob a porta da sala de vigilância se move de novo. Finjo não ter notado, sem querer dar a Hamburg qualquer motivo para achar que estou pensando em outra saída.

— Vim aqui saber nomes — digo de repente, sem ter pensado bem a respeito.

— Que nomes?

— Dos seus clientes.

Algo muda nos olhos de Hamburg, ele vai tomar o controle da situação.

— Você quer os nomes dos meus clientes? — pergunta ele, desconfiado.

Que merda...

— Pensei que você e Victor Faust já estivessem de posse da minha lista de clientes.

Continue séria. Não perca a compostura. Merda!

— Sim, estamos, mas me refiro àqueles que você não mantinha nos registros.

Acho que vou vomitar. Parece que minha cabeça está pegando fogo. Prendo a respiração, torcendo para ter me livrado dessa.

Hamburg me examina em silêncio, vasculhando meu rosto e minha postura em busca de qualquer sinal de autoconfiança abalada. Ele coça o queixo gordo e cheio de dobras.

— Por que você acha que existe uma lista fantasma?

Suspiro meio aliviada, mas ainda não estou fora de perigo.

— Sempre existe uma lista fantasma — afirmo, embora não faça nem ideia do que estou dizendo. — Quero pelo menos três nomes que não estejam no registro que nós temos.

Sorrio, sentindo que recuperei o controle da situação.

Até ele falar:

— Diga você três nomes da lista que já tem, e eu dou o que você quer.

É oficial: perdi o controle.

Engulo em seco e me controlo antes de parecer “pega no flagra”.

— Você acha que eu carrego a lista na bolsa? — pergunto com sarcasmo, tentando continuar no jogo. — Nada de negociações ou meios-termos, sr. Hamburg. O senhor não está em condições de fazer nenhuma barganha.

— É mesmo? — pergunta ele, sorrindo.

Ele suspeita de mim. Posso sentir. Mas vai garantir que está certo antes de dar o bote.

— Isso não está em discussão. — Eu me levanto da poltrona de couro, enfiando a bolsa debaixo do braço, mais frustrada do que antes por ter que entregar minha arma.

Pressiono os dedos na escrivaninha de mogno, apoiando meu peso neles ao me curvar um pouco na direção de Hamburg.

— Três nomes, ou saio daqui e Victor Faust entra para espalhar os seus miolos naquele belo quadro do menino Jesus atrás de você.

Hamburg ri.

— Esse não é o menino Jesus.

Ele se levanta junto comigo, alto, enorme e ameaçador.

Enquanto vasculho minha mente e tento entender como ele descobriu que sou uma farsante, Hamburg se adianta e anuncia seu raciocínio como um chute na minha boca.

— É engraçado, Izabel, você vir aqui pedir nomes que não aparecem em uma lista que você... — diz, apontando para a minha bolsa — ... nem carrega consigo, porque como você saberia que os nomes que eu daria não estão nela?

Estou muito ferrada.

— Vou dizer o que eu acho — continua ele. — Acho que você veio aqui sozinha por causa de alguma vingança contra mim. — Ele balança o indicador. — Porque eu me lembro de cada detalhe da porra daquela noite. Cada merda de detalhe. Especialmente a sua expressão quando percebeu que Victor Faust tinha vindo matar minha esposa em vez de mim. Era a expressão de alguém pega de surpresa, que não fazia ideia de por que estava ali. Era a expressão de alguém que não está familiarizada com o jogo.

Ele tenta sorrir com gentileza, como se quisesse demonstrar alguma espécie de empatia pela minha situação, mas o que leio em seu rosto é cinismo.

— Acho que, se houvesse mais alguém aqui com você, ele já teria aparecido para salvá-la, porque é óbvio que você está ferrada.

A porta do quarto principal se abre, o guarda-costas entra e a tranca. Por uma fração de segundo, tive a esperança de que fosse Victor vindo me salvar na hora certa. Mas foi só um desejo. O guarda-costas me olha com desprezo. Hamburg acena para ele, que começa a tirar o cinto.

Meu coração afunda até o estômago.

— Sabe — diz Hamburg, dando a volta na escrivaninha —, na primeira vez que a gente se viu, lembro que fiz um acordo com Victor Faust. — Ele aponta para mim. — Você se lembra disso, não?

Hamburg sorri e apoia a mão gorda nas costas da poltrona na qual eu estava sentada, virando-a para mim.

Todo o meu corpo está tremendo; parece que o sangue que passa pelas minhas mãos virou ácido. Ele corre pelo meu coração e pela minha cabeça tão rápido que quase desmaio. Começo a tentar alcançar meu punhal, mas eles estão perto demais, aproximando-se pelos dois lados. Não tenho como enfrentar os dois ao mesmo tempo.

— Como assim? — pergunto, tropeçando nas palavras, tentando ganhar um pouco de tempo.

Hamburg revira os olhos.

— Ora, por favor, Izabel. — Ele gira um dedo no ar. — Apesar do que aconteceu naquela noite, fiquei decepcionado de verdade por vocês dois irem embora antes de cumprir o acordo.

— Eu diria que, em vista do que aconteceu, o acordo não vale mais nada.

Ele sorri para mim e se senta na poltrona de couro. Percebo Hamburg espiar de relance o guarda-costas, dando uma ordem só com o olhar.

Antes que eu consiga me virar, o segurança prende minhas duas mãos nas minhas costas.

— Você vai cometer um erro do caralho se fizer isso! — grito, tentando me livrar das garras do segurança.

Ele me leva à força até uma mesa quadrada e me joga sobre ela. Meus reflexos não são rápidos o suficiente e meu queixo bate no mármore duro. O gosto metálico do sangue enche minha boca.

— Me solte! — Tento chutá-lo. — Me solte agora!

Hamburg ri de novo.

— Vire a cabeça dela para esse lado — ordena ele.

Dois segundos depois, meu pescoço é torcido para o outro lado e mantido ali, minha bochecha esquerda pressionada contra o mármore frio.

— Quero ver a cara dela enquanto você a fode. — Hamburg me olha de novo. — Então vamos continuar do ponto onde paramos naquela noite, tudo bem? Você concorda, Izabel?

— Vai se foder!

— Ah, não, não — diz ele, ainda com o riso na voz. — Não sou eu quem vai foder você. Você não faz o meu tipo. — Seus olhos famintos percorrem o corpo do segurança que está me pressionando por trás.

— Eu vou matar você — digo, cuspindo por entre os dentes. A mão do segurança sobre a minha cabeça impede que eu a mexa. — Vou matar vocês dois! Me estupre! Vamos lá! Mas os dois vão estar mortos antes que eu saia daqui!

— Quem disse que você vai sair daqui? — provoca Hamburg.

O zíper da calça dele está aberto; sua mão direita está parada ao lado da braguilha, como se ele estivesse tentando manter algum autocontrole e não se masturbar ainda.

Então Hamburg acena com dois dedos para o guarda-costas, que me mantém imóvel segurando meus cabelos da nuca.

— Lembre-se disso — diz ele ao segurança. — Ela não vai sair daqui.

Sinto a mão direita do guarda-costas soltar meu cabelo e se mover entre as minhas pernas. Enquanto ele ergue meu vestido, aproveito para alcançar o punhal na minha coxa e tirá-lo da bainha, golpeando atrás em um ângulo desajeitado. O segurança grita de dor e me solta. Puxo o punhal ainda firme na mão, que está coberta de sangue. Ele cambaleia para trás, com a mão na base do pescoço, o sangue jorrando entre seus dedos.

— Sua puta do caralho! — ruge Hamburg, saltando da poltrona e vindo atrás de mim como um elefante descontrolado, a calça caindo de sua cintura flácida.

Corro na direção dele com o punhal levantado e colidimos no meio da sala. Seu peso me joga de bunda no chão e o punhal cai da minha mão, deslizando pelo piso ensanguentado. De pé, Hamburg se abaixa para me segurar, mas me reclino no chão e levanto o pé com toda a força, enfiando o salto da minha sandália na lateral do seu rosto. Ele geme e cambaleia para trás, com a mão na bochecha.

— Eu vou acabar com você! Puta que pariu! — berra ele.

Engatinho na direção do punhal, vendo o segurança no chão, em meio a uma poça de sangue. Ele está engasgando com os próprios fluidos; tentando em vão encher os pulmões de ar.

Pego o punhal com firmeza e rolo no chão enquanto Hamburg se aproxima, derrubando a poltrona de couro. Fico de pé e corro até a mesa, empurrando-a na direção dele. Hamburg tenta tirá-la da frente, mas o móvel balança sobre a base e ele acaba tropeçando. Seu corpo desaba no chão de barriga para baixo e a mesa cai quase na sua cabeça. Salto sobre suas costas e monto em seu corpo obeso. Meus joelhos mal tocam o chão. Agarro seu cabelo, puxo a cabeça dele para trás na minha direção e aperto o punhal em sua garganta, imobilizando-o em segundos.

— Pode me matar! Foda-se! Você não vai sair viva daqui mesmo. — A voz de Hamburg é rouca, sua respiração, rápida e ofegante, como se ele tivesse acabado de tentar correr uma maratona. O cheiro de seu suor e de seu medo invade minhas narinas.

Ocupada com a lâmina em sua garganta, me assusto com o som de batidas fortes na porta. A distração me pega desprevenida. Hamburg consegue se erguer debaixo de mim como um touro, rolando de lado e me derrubando no chão. Deixo cair o punhal em algum lugar, mas não tenho tempo para procurá-lo porque Hamburg consegue se levantar e parte para cima de mim. Ouço a voz de Stephens do outro lado da porta, que vibra com seus socos.

Rolo para sair do caminho antes que Hamburg consiga pular em cima de mim, pego o objeto mais próximo — um peso de papel de pedra, bem pesado, que estava na mesa antes de ser derrubada — e golpeio Hamburg com ele. O som do osso de seu rosto quebrando com o impacto faz meu estômago revirar. Hamburg cai para trás, cobrindo a cara com as mãos.

As batidas na porta ficam mais fortes. Numa fração de segundo, levanto a cabeça e vejo a porta sacudindo com violência no batente. Preciso sair daqui. Agora. Meu olhar varre a sala procurando o punhal, mas não há mais tempo.

Corro para a sala de vigilância, contornando os obstáculos.

Graças a Deus, há outra porta lá dentro. Abro a porta e desço correndo a escada de concreto, torcendo para que seja uma saída e eu não encontre mais ninguém no caminho.


CAPÍTULO CINCO

Sarai

Desço a escada de concreto de dois em dois degraus, segurando no corrimão de metal pintado com as mãos ensanguentadas, até chegar ao térreo. Uma placa vermelha com a palavra SAÍDA está à minha frente. Corro pela passagem mal-iluminada, onde uma lâmpada fluorescente pisca acima de mim e torna o lugar ainda mais ameaçador. Empurro com força a barra da porta com as duas mãos e ela se abre para um beco. Um homem de terno está sentado no capô de um carro, fumando, quando saio para a rua.

Eu fico paralisada.

Ele olha para mim.

Eu olho para ele.

Ele nota o sangue nas minhas mãos e olha de relance para a porta, depois para mim.

— Vá — diz ele, acenando para a caçamba de lixo à minha direita.

Sei que não tenho tempo para ficar confusa nem para perguntar por que ele está me deixando ir embora, mas pergunto assim mesmo.

— Por que você está...?

— Apenas vá!

Ouço passos ecoando na escada atrás da porta.

Lanço um olhar agradecido ao homem e dou a volta na caçamba, desço o beco e me afasto do restaurante. Ouço um tiro segundos depois que dobro a esquina e torço para que seja aquele homem fingindo atirar em mim.

Evito espaços abertos e corro por trás de prédios, protegida pela escuridão, tanto quanto minhas sandálias de salto alto permitem. Quando sinto que estou longe o suficiente para parar um pouco, tento me esconder atrás de outra caçamba e tiro as sandálias. Arranco a peruca loura e a jogo no lixo.

Não consigo respirar. Estou enjoada.

Meu Deus, estou enjoada...

Encosto na parede de tijolos atrás de mim, arqueando as costas e apoiando as mãos nos joelhos. Vomito com violência no chão, meu corpo rígido, o esôfago ardendo.

Pego as sandálias e saio correndo de novo na direção do hotel, tentando esconder o sangue das mãos e do vestido, mas percebo que não é tão fácil. Recebo alguns olhares desconfiados ao passar depressa pela recepção, mas tento ignorá-los e torço para que ninguém chame a polícia.

Em vez de arriscar ser vista por outras pessoas, subo pela escada até o oitavo andar. Quando chego lá, e depois de tudo o que corri, sinto que minhas pernas vão ceder. Encosto na parede e recupero o fôlego, com os joelhos tremendo descontroladamente. Meu peito dói, como se cada respiração trouxesse poeira, fumaça e cacos microscópicos de vidro para o fundo dos pulmões.

O quarto que divido com Eric está trancado e eu não tenho a chave. Aliás...

— Puta merda...

Jogo a cabeça para trás, fecho os olhos e suspiro, arrasada.

Não estou mais com a minha bolsa. Eu a perdi em algum momento da luta na sala de Hamburg. A chave do meu quarto. Meu celular. Minha arma. Meu punhal. Não tenho mais nada.

Bato na porta, mas Eric não está no quarto. Não esperava que estivesse, na verdade, já que não são nem onze da noite. Só para o caso de estar enganada, no entanto, tento o quarto de Dahlia.

— Dahl! Você está aí? — Bato na porta com pressa, tentando não incomodar os outros hóspedes.

Nenhuma resposta.

Já desistindo, jogo as sandálias no chão e apoio as mãos na parede. Minha cabeça desaba. Mas então ouço um clique baixinho e vejo a porta do quarto de Dahlia se abrindo devagar. Levanto a cabeça e a vejo parada ali.

Sem me demorar para questionar a expressão estranha no rosto dela, entro no quarto só para sair do corredor. Eric está sentado na poltrona perto da janela. Noto que seu cabelo está meio bagunçado. O de Dahlia também.

Meu instinto está tentando chamar minha atenção, mas não me importo. Acabei de apunhalar um homem no pescoço e de tentar matar outro. Quase fui estuprada. Estava correndo pelos becos de Los Angeles para fugir de homens armados que vinham atrás de mim. Nada que esses dois façam pode superar isso.

— Meu Deus, Sarai — diz Dahlia, aproximando-se de mim. — Isso é sangue?

A expressão estranha e silenciosa que ela exibia quando entrei no quarto desaparece em um instante quando ela me vê no quarto bem-iluminado. Seus olhos se arregalam, cheios de preocupação.

Eric se levanta da poltrona.

— Você está sangrando. — Ele também me olha de cima a baixo. — O que aconteceu?

Os olhos de Dahlia correm pela minha roupa e pelo meu cabelo preso dentro da touca da peruca.

— Por que... Hã, por que você está vestida assim?

Olho para mim mesma. Não sei o que dizer, então não digo nada. Eu me sinto como um cervo diante dos faróis de um carro, mas minha expressão continua firme e sem emoções, talvez um pouco confusa.

— Você encontrou Matt — acusa Dahlia, começando a levantar a voz. — Puta que pariu, Sarai. Você foi se encontrar com ele, não foi?

Sinto os dedos dela apertando meu antebraço.

Eu me desvencilho de Dahlia e caminho até o banheiro para tirar a touca do cabelo. Enquanto tiro os grampos, noto uma camisinha boiando na privada.

Eric entra no banheiro atrás de mim. Ele sabe que eu vi.

— Sarai, e-eu... Eu sinto muito — diz ele.

— Não se preocupe — respondo, tirando o último grampo e deixando-o na bancada creme.

Passo por Eric e volto para o quarto. Dahlia está me encarando, com o rosto cheio de vergonha e arrependimento.

— Eu...

Ergo a mão e olho para os dois.

— Não, é sério. Não estou brava.

— Como assim? — pergunta Dahlia.

Eric parece agitado. Ele põe a mão na nuca e passa os dedos pelo cabelo.

— Olhe, sem querer ofender — digo a Eric —, mas tenho fingido tudo com você desde a primeira vez que a gente ficou junto.

Ele arregala os olhos, embora tente não deixar que o choque e a mágoa da minha revelação transpareçam demais. Grande parte de mim se sente bem por dizer a verdade. Não por vingança, mas porque eu precisava tirar isso do peito. Mas admito que, depois de descobrir que os dois têm trepado pelas minhas costas, uma pequena parte de mim também fica feliz em magoá-lo. Acho que a vingança sempre encontra um caminho, mesmo nos gestos mais insignificantes.

— Fingido?

— Não tenho tempo para isso — digo, indo na direção da porta. — Vocês dois podem ficar juntos. Não tenho nada contra. Não estou brava, só não me importo mesmo. Preciso ir.

— Espere... Sarai.

Eu me viro para olhar Dahlia. Ela está muito chocada, mal sabe o que pensar. Depois de alguns segundos de silêncio, fico impaciente e a olho com cara de “vai, desembucha”.

— Para você... tudo bem mesmo?

Uau, não sirvo mesmo para o estilo de vida deles. O estilo de vida normal. Nem consigo entender essas coisas de namoro, melhores amigas, infidelidade, competição e joguinhos psicológicos. A cara que eles fazem, tão vazia e mesmo assim tão cheia de incredulidade e dúvida, por causa de uma situação que, para mim, não é tão importante... Tenho coisas mais graves com que me preocupar.

Suspiro, aborrecida com as perguntas vagas e confusas dos dois.

— Sim, por mim, tudo bem — digo, e então me viro para Eric, estendendo a mão. — Preciso da chave do nosso quarto.

Relutante, ele enfia a mão no bolso de trás e pega a chave. Tomo da sua mão, saio dali e vou para o quarto ao lado. Eric vem atrás e tenta falar comigo enquanto guardo minhas coisas na mala.

— Sarai, eu nunca quis...

Eu me viro de repente e o encaro.

— Tudo bem, só vou dizer isto uma vez, depois você muda de assunto ou volta para lá e fica com a Dahlia. Não estou nem aí para o que vocês dois fazem, mas, por favor, não apele para esse clichê de novela de que você nunca quis que isso acontecesse, porque... é muito idiota. — Eu rio baixinho, porque acho idiota mesmo. — Só falta você dizer que o problema não é comigo, é com você. Caramba, você faz ideia do que isso parece? É tão difícil assim acreditar quando digo que não me importo e que estou falando sério? Sem joguinhos. É verdade. — Balanço a cabeça, levanto as mãos e digo: — Não. Me. Importo.

Viro para a mala, fecho o zíper, abro a parte lateral e pego a chave do quarto secreto. Ainda bem que eu tinha uma cópia.

— Preciso ir — digo, andando até a porta e passando por Eric.

— Aonde você vai?

— Não posso contar, mas me escute, Eric, por favor. Se alguém aparecer me procurando, finja que não me conhece. Diga o mesmo para Dahlia. Finjam que nunca me viram na vida. Aliás, quero que vocês dois saiam hoje. Vão para qualquer lugar. Só... não fiquem aqui.

— Você vai me dizer o que aconteceu ou por que está toda ensanguentada? Sarai, você está me deixando assustado pra cacete.

— Eu vou ficar bem — digo, atenuando minha expressão. — Mas prometa que você e Dahlia vão fazer exatamente o que falei.

— Você vai me contar um dia?

— Não posso.

O silêncio entre nós fica mais pesado.

Enfim, abro a porta e saio para o corredor.

— Acho que sou eu quem deveria estar pedindo desculpas.

— Por quê?

Eric fica na porta, com os braços caídos ao lado do corpo.

— Por pensar em outra pessoa durante todo esse tempo em que eu estava com você. — Olho para o chão.

Nós nos encaramos por um breve momento e ninguém diz mais nada. Ambos sabemos que estamos errados. E acho que nós dois estamos aliviados por tudo ter vindo à tona.

Não há mais nada a dizer.

Eu me afasto pelo corredor na direção oposta à do meu quarto secreto e dou a volta por trás, para que Eric não veja aonde estou indo. Quando me tranco no quarto, só consigo desabar na cama. A exaustão, a dor e o choque de tudo o que aconteceu esta noite me atingem em cheio assim que a porta se fecha, e me engolem como uma onda. Eu me jogo de costas no colchão. Minhas panturrilhas doem tanto que duvido conseguir andar sem mancar amanhã.

Fico olhando para o teto escuro até ele desaparecer e eu pegar no sono.


CAPÍTULO SEIS

Sarai

Um tum! pesado me acorda, mais tarde naquela noite. Eu me levanto como uma catapulta.

Vejo dois homens no meu quarto: um desconhecido morto no chão e Victor Faust de pé sobre o corpo dele.

— Levante-se.

— Victor?

Não acredito que ele está aqui. Devo estar sonhando.

— Levante-se, Sarai. AGORA! — Victor me pega pelo cotovelo, me arranca da cama e me põe de pé.

Não consigo nem pegar minhas coisas, ele já está abrindo a porta e me puxando para o corredor com ele, segurando forte a minha mão.

Disparamos juntos pelo corredor e outro homem aparece virando a esquina, de arma em punho. Victor aponta sua 9mm com silenciador e o derruba antes que o cara consiga atirar. Ele passa pelo corpo me puxando, seus dedos fortes afundando na minha mão enquanto corremos para a escada. Ele abre a porta, me empurra para a frente e nós subimos depressa os degraus de concreto. Um andar. Três. Cinco. Minhas pernas estão me matando. Acho que não consigo andar por muito mais tempo. Enfim, no quinto andar, Victor me puxa para outro corredor e rumo a um elevador nos fundos.

Quando as portas do elevador se fecham e estamos só nós dois lá dentro, finalmente tenho a oportunidade de falar.

— Como você sabia que eu estava aqui? — Mal consigo recuperar o fôlego, esgotada pela correria infinita e pela adrenalina, mas acho que sobretudo porque Victor está de pé ao meu lado, segurando minha mão.

Meus olhos começam a arder com as lágrimas.

Engulo o choro.

— O que você estava pensando, Sarai?

— Eu...

Victor segura meu rosto com as duas mãos e me empurra contra a parede do elevador, pressionando ferozmente seus lábios nos meus. Sua língua se entrelaça na minha e sua boca tira meu fôlego em um beijo apaixonado que, enfim, faz meus joelhos cederem. Toda a força que eu estava usando para manter o corpo ereto desaparece quando os lábios dele me tocam. Ele me beija com fome, com raiva, e eu derreto em seus braços.

Então ele se afasta, as mãos fortes nos meus braços, me segurando contra a parede do elevador. Nós nos encaramos pelo que parece ser uma eternidade, nossos olhos paralisados em uma espécie de contemplação profunda, nossos lábios a centímetros de distância. Só quero prová-los de novo.

Mas ele não deixa.

— Responda — exige Victor, estreitando seus olhos perigosos em reprovação.

Já esqueci a pergunta.

Ele me sacode.

— Por que você veio aqui? Tem ideia do que você fez?

Balanço a cabeça em um movimento curto e rápido, parte de mim mais preocupada com seu olhar ameaçador do que com o que ele está dizendo.

A porta do elevador se abre no subsolo e eu não tenho tempo para responder, pois Victor mais uma vez pega minha mão e me puxa para que o siga. Serpenteamos por um grande depósito com caixas em pilhas altas encostadas nas paredes e depois por um longo corredor escuro que leva a um estacionamento. Victor enfim solta minha mão e eu o sigo até um carro parado entre dois furgões pretos com o logotipo do hotel nas laterais. Dois bipes ecoam pelo ambiente e os faróis do carro piscam quando nos aproximamos, iluminando a parede de concreto em frente. Sem perder tempo, me sento no banco do passageiro e fecho a porta.

Segundos depois, Victor está dirigindo casualmente pelo estacionamento até a rua.

— Eu queria que ele morresse — respondo, enfim.

Victor não me olha.

— Bom, você fez um excelente trabalho — rebate ele, sarcástico.

Ele vira para a direita no semáforo, e o carro ganha velocidade quando chegamos à rodovia.

Fico magoada por suas palavras, mas sei que ele tem razão, por isso não discuto. Fiz merda. Uma merda muito grande.

Mas não me dou conta do tamanho dela até Victor dizer:

— Os seus amigos podiam ter morrido. Você podia ter morrido.

Sinto meus olhos se arregalarem além dos limites e me viro mais um pouco para encará-lo.

— Ah, não... Victor, o quê... Eles estão bem?

Sinto que vou vomitar de novo.

Victor me olha por um instante.

— Estão ótimos. O primeiro quarto que os capangas de Hamburg revistaram estava vazio — diz ele, voltando a olhar para a estrada. — Eu cheguei quando eles estavam saindo. Segui um deles até o quarto onde você estava escondida, deixei que ele destrancasse a porta e então ataquei.

As chaves do quarto. Minhas duas chaves extras estavam na bolsa que perdi no restaurante de Hamburg. E os números dos quartos estavam escritos nas capinhas de papel que as protegiam. Eu estava tão preocupada em esconder minha arma e meu punhal que nem pensei em esconder as chaves.

— Merda! — Também olho para a estrada. — E-eu perdi a bolsa no restaurante. As chaves do meu quarto estavam dentro dela. Deixei um rastro para eles seguirem!

Felizmente, eu não tinha uma chave extra do quarto de Dahlia, senão ela e Eric já poderiam estar mortos.

Onde é que eu estava com a cabeça?!

— Não, você deixou literalmente as chaves do seu quarto com o nome do hotel gravado. Sarai, eu devia ter matado você há muito tempo e poupado toda essa confusão para cima de você e de mim.

Eu me viro para encará-lo; a raiva e a mágoa pesando no meu peito.

— Você não está falando sério.

Ele faz uma pausa e me olha. Suspira.

— Não, não estou falando sério.

— Nunca mais me diga isso. Nunca mais me diga uma coisa dessas, ou eu mato você e poupo a mim de toda essa confusão — rebato, desviando o olhar.

— Você não está falando sério — diz Victor.

Olho mais uma vez para aqueles olhos ameaçadores verde-azulados que me fizeram tanta falta.

— Não. Mas acho que isso seria o mais sensato.

— Bom, você não foi a campeã da sensatez hoje, então acho que estou seguro ao menos pelas próximas 24 horas.

Escondo o sorriso.

— Senti sua falta — digo de maneira distante, olhando para a estrada.

Victor não responde, mas admito que seria estranho se respondesse. A despeito de sua falta de emoção, porém, sei que ele também sentiu saudade de mim. Aquele beijo no elevador disse coisas que palavras jamais conseguiriam.

Ele pega uma saída e para o carro debaixo de um viaduto. Puxa o freio de mão e a área ao redor desaparece na escuridão quando ele desliga os faróis.

— O que a gente está fazendo aqui?

— Você precisa ligar para os seus amigos.

— Por quê?

Ele tira um celular do porta-luvas entre nós.

— Mande eles voltarem para o Arizona. Faça ou diga o que for preciso para que eles saiam de Los Angeles. Quanto antes, melhor.

Ele coloca o telefone na minha mão. De início, só olho para o aparelho, mas ele me pressiona com aquele olhar, aquele que grita “vamos lá, faça isso de uma vez”, mas que só alguém como eu, alguém que conhece Victor, seria capaz de notar.

Giro o celular nas mãos, depois o seguro firmemente e digito o número de Eric. Mas então mudo de ideia, desligo no primeiro toque e ligo para Dahlia.

Ela atende no quinto toque.

Respiro fundo e faço o que sei fazer melhor: minto.

— A verdade é que vocês me magoaram. Duvido que um dia eu consiga perdoar você ou Eric pelo que fizeram.

— Sarai... Meu Deus, me desculpe, estou me sentindo muito mal. A gente não queria que isso chegasse a esse ponto. Juro para você. Não sei o que aconteceu...

— Escute, Dahlia, por favor, só me escute.

Ela fica quieta.

Começo a choradeira. Nunca imaginei que eu seria capaz de chorar sob demanda e de forma tão falsa.

— Eu quero acreditar em você. Quero conseguir confiar em você de novo, mas você era minha melhor amiga e me traiu. Preciso de um tempo sozinha e quero que você e Eric voltem para o Arizona. Hoje. Acho que não vou aguentar ver vocês de novo... Espere, onde você está, agora?

Acabo de me dar conta de que, se ela e Eric estiverem no hotel, a essa altura ela já sabe que dois homens foram mortos a tiros no andar do quarto deles.

— A gente está em uma festa em um terraço — conta ela. — T-tudo bem por você? Achei que não tinha nada a ver a gente sair, mas o Eric falou que você insistiu...

— Não, tudo bem — digo, cortando-a. — Insisti mesmo. Onde ele está, agora?

— Deixei Eric lá no terraço para a gente poder conversar. Está muito barulhento lá em cima. Que número é esse de onde você está ligando?

— É o celular de um amigo. Perdi o meu. O Eric por acaso avisou que se alguém procurar por mim...

— Avisou, sim — interrompe Dahlia. — Que confusão é essa, afinal? Meu Deus, Sarai, esquece por um momento esse lance com Eric e me conta o que está acontecendo, por favor. O sangue. As roupas esquisitas que você estava usando e aquele troço na sua cabeça. Era uma touca de peruca? Você está metida em alguma encrenca, eu sei. Sei que você me odeia, e tem todo o direito de odiar, mas, por favor, conte o que aconteceu.

— Não posso contar, porra! — grito, deixando o choro distorcer minha voz. — Caramba, Dahlia, faça o que eu pedi. Pelo menos isso! Você deu para o meu namorado! Por favor, voltem para o Arizona, me deixem esfriar a cabeça e depois eu volto para casa. Talvez aí a gente possa conversar. Mas agora façam o que eu estou pedindo. Tudo bem?

Ela não responde por um momento, e um longo silêncio se forma entre nós.

— Tudo bem — concorda ela. — Vou dizer ao Eric que a gente precisa ir embora.

— Obrigada.

Estou apenas um pouco aliviada. Não vou me sentir bem com isso até saber que eles chegaram em casa sãos e salvos.

Desligo sem dizer mais uma palavra.

— Bom, isso foi bastante convincente — observa Victor, levemente impressionado.

— Acho que foi.

— Eu sei que a sua amiga acreditou — acrescenta ele. — Mas eu não acreditei em uma só palavra.

Eu me viro para ele. Victor me conhece tão bem quanto eu o conheço, parece.

— É porque nem uma palavra era verdade.

Ele deixa por isso mesmo e nós saímos de baixo do viaduto.

Chegamos a uma casa perdida no final de uma estrada isolada nos arredores da cidade, empoleirada no alto de uma colina com uma vista quase perfeita para a cidade lá embaixo. Uma piscina de formato irregular começa no lado esquerdo da casa e serpenteia por trás, a água azul-clara iluminada por lâmpadas submersas parece luminescente. O lugar está silencioso. Só ouço o vento passando pela mata cerrada que contorna o lado direito e os fundos da casa, impedindo uma visão em 360 graus da paisagem iluminada de Los Angeles. Quando nos aproximamos da porta, uma mulher robusta usando uniforme azul de empregada nos recebe. Ela tem cabelo preto encaracolado e pele morena. Suas bochechas são volumosas, envolvendo seus olhos castanho-escuros pequenos e brilhantes, que fitam atentamente Victor e a mim.

— Por favor, entrem — diz ela, com um sotaque hispânico familiar.

A mulher fecha a porta. A casa cheira a limpa-vidro e a uma mistura pouco natural de cheiros adocicados que só pode vir de algum tipo de aromatizador de ambientes artificial. Parece que todas as janelas foram abertas, permitindo que a brisa noturna de verão se espalhasse pela casa. Não se parece em nada com as mansões ricas onde já estive, mas é impecável e aconchegante, e penso que eu deveria pelo menos ter tomado um banho antes de vir. Minha pele e minhas roupas ainda estão manchadas de sangue...

Victor está usando uma calça preta e uma camisa apertada de mangas compridas que adere a cada músculo de seus braços e seu peito, com os punhos desabotoados e arregaçados até os cotovelos. A camisa está por fora da calça e os dois botões de cima estão abertos. Sapatos pretos chiques e informais calçam seus pés. Um relógio brilhante de prata adorna seu pulso direito, e não consigo deixar de notar a solitária veia grossa que percorre as costas de sua mão até o osso de seu pulso. Quando ele segue a empregada pela grande entrada e se vira momentaneamente de costas para mim, vejo o cabo da arma saindo da cintura de sua calça, com a barra da camisa branca enfiada atrás.

Ele me olha, para e estende o braço, em um gesto para que eu ande à sua frente. Tremo de leve quando sua mão toca minhas costas perto da cintura.

Antes que eu tenha tempo de me sentir deslocada ao lado dele, Fredrik, o amigo e cúmplice sueco de Victor que conheci no restaurante de Hamburg há tanto tempo, entra na sala pelas grandes portas de vidro que dão para o quintal dos fundos.


CAPÍTULO SETE

Sarai

— Você chegou cedo — comenta Fredrik com um sorriso mortal, porém inimaginavelmente sexy.

As roupas dele são bem parecidas com as de Victor, mas, em vez de camisa de botão, Fredrik está vestindo uma camiseta branca apertada que adere à sua forma esbelta e máscula. Ele está descalço.

A primeira vez que vi Fredrik, pensei que era impossível haver alguém mais bonito. Com cabelo macio, quase preto, e olhos escuros e misteriosos, suas feições parecem ter sido esculpidas por algum artista famoso. Mas sempre achei que havia algo de sombrio e assustador naquele homem. Um lado dele que eu, particularmente, não faço questão de conhecer. Para mim, basta o jeito como ele era quando nos encontramos: cordial, encantador e misterioso, uma linda máscara que ele usa para esconder a fera que há por trás.

Victor olha para seu relógio caro.

— Só dez minutos mais cedo — comenta ele.

Fredrik sorri ao se aproximar, os dentes brancos reluzindo contra a pele bronzeada.

— Sim, mas você sabe como eu sou.

Victor assente, mas não alonga o assunto. A mim, só resta imaginar o que aquilo significa.

— É bom ver você — diz Fredrik, observando-me do topo de sua altura considerável e presença avassaladora. Ele se inclina, pega minha mão e a beija, logo acima dos nós dos dedos. — Ouvi dizer que você matou um homem hoje.

Ele apruma as costas e solta minha mão. Um sorriso perturbador e orgulhoso surge em seu rosto, os cantos dos olhos se aquecendo com alguma lembrança ou... prazer, como se a ideia de matar alguém o deliciasse de alguma forma.

Olho para Victor à minha direita. Ele assente, respondendo à pergunta estampada no meu rosto. O guarda-costas que apunhalei no pescoço morreu?

Olho para Fredrik e respondo sem rodeios.

— Acho que matei.

Um leve sorriso se abre nos cantos dos lábios de Fredrik, e ele olha de relance para Victor, sem mover a cabeça.

— E você se sente bem com isso? — pergunta Fredrik.

— Para dizer a verdade, sim — respondo sem demora. — O desgraçado mereceu.

Fredrik e Victor parecem envolvidos em algum tipo de conversa secreta. Odeio isso.

Enfim, Fredrik diz para Victor em voz alta:

— Você arrumou sarna para se coçar, Faust.

Ele então se vira de costas para nós e anda na direção das portas de vidro. Nós o seguimos para o lado de fora, passando pela parte coberta do quintal e descendo uma escada de pedra que leva a um enorme pátio, também de pedra, que se abre em todas as direções. O pátio é decorado com mesas e cadeiras de ferro batido e uma cama com dossel ao ar livre.

Eu me sento ao lado de Victor em um sofá.

— Como é que você sabe? — pergunto a Fredrik, mas então me viro para Victor e digo: — E você ainda não me contou como sabia que eu estava aqui.

Na verdade, isso não importa muito, só quero encará-lo nos olhos de novo. Quero ficar sozinha com Victor, mas por enquanto vou precisar me contentar com os 7 centímetros entre nossos corpos, sentados lado a lado.

— Melinda Rochester me contou — explica Fredrik com um sorriso conivente. Começo a perguntar “E quem é Melinda Rochester”, mas ele diz: — Bem, ela contou para todo mundo, na verdade. Noticiário do Canal 7. Um homem morto a punhaladas atrás de um restaurante de Los Angeles.

Começo a me retorcer por dentro. Espero que as câmeras não tenham me mostrado com nitidez.

Eu me viro para Victor, com a preocupação transparecendo no rosto.

— Eu estava de peruca loura — digo, tentando encontrar alguma coisa, qualquer coisa que eu tenha feito certo. — Fiquei com a cabeça baixa... a maior parte do tempo.

Desisto. Sei que o que fiz vai continuar me perseguindo. Suspiro e olho para as mãos ensanguentadas no meu colo.

— E encontrar você foi fácil — continua Victor. — A sra. Gregory me ligou depois que você saiu do Arizona. Ela estava preocupada com a sua vinda para Los Angeles e achou que eu precisava saber.

Viro a cabeça para encará-lo.

— O quê? Dina sabia onde você estava? — Sinto a pele ao redor das sobrancelhas se enrijecendo.

— Não — responde ele, com delicadeza. — Ela não sabia onde eu estava, mas sabia como entrar em contato comigo.

Essas palavras me magoam. Engulo em seco a sensação de ser traída por eles.

— Falei para ela entrar em contato comigo só em caso de emergência — acrescenta Victor. — Caso algo acontecesse com você.

— Você deixou para Dina uma forma de entrar em contato — digo, ríspida —, mas para mim, nada. Não acredito que você fez isso.

— Eu queria que você tocasse a sua vida. Mas, caso os irmãos de Javier descobrissem onde você estava, ou você decidisse fazer uma proeza como a de hoje, eu queria ficar sabendo.

Não consigo olhar para Victor. Tento chegar mais alguns centímetros para o lado a fim de aumentar a distância entre nós. Ainda assim, mesmo que esteja magoada e enfurecida com ele, sinto vontade de me aproximar de novo. Mas me mantenho firme e me recuso a deixá-lo perceber que o poder que ele exerce sobre mim faz a raiva que sinto parecer um chilique.

— Não acredito que Dina escondeu isso de mim — digo em voz alta, ainda que esteja falando mais comigo mesma.

— Ela escondeu de você porque eu disse a ela quanto isso era importante.

— Bom, de qualquer maneira — interrompe Fredrik, sentando-se na poltrona ao lado do sofá —, parece que você se meteu em uma situação da qual não vai conseguir sair tão facilmente, se é que vai conseguir.

— Por que a gente está aqui? — pergunto, aborrecida.

Fredrik ri baixinho.

— Aonde mais você iria?

— Eu precisava tirar você do hotel — explica Victor.

— Espere um pouco. Eu não matei aquele homem atrás do restaurante. Tudo aconteceu na sala particular de Hamburg, no andar de cima.

Recordo o homem que vi do lado de fora, atrás do restaurante, aquele que me deixou fugir, e meu coração afunda.

— Hamburg não deixaria que a polícia acreditasse que o assassinato aconteceu lá dentro, porque eles confiscariam a memória da câmera de vigilância e veriam o que realmente aconteceu.

Não estou entendendo nada. Nadinha.

— Eles não iam querer que a polícia soubesse o que realmente aconteceu?

Fredrik se reclina na poltrona e ergue um pé descalço, apoiando o tornozelo sobre o outro joelho, e estende os braços sobre os da poltrona.

Victor balança a cabeça.

— Preciso mesmo explicar isso para você, Sarai?

Sua vaga irritação me pega de surpresa. Olho para ele e levo alguns segundos para entender tudo sem que ele precise explicar.

— Ah, entendi — digo, olhando um de cada vez. — Hamburg não quer que a polícia se envolva porque corre o risco de se expor. O que ele fez, então? Só levou o corpo para fora? Preparou a situação para parecer um assalto comum? Não muito diferente do que ele fez naquela noite em que a gente estava na mansão dele, imagino.

Paro por aí porque Fredrik está presente. Não sei qual o grau de intimidade entre ele e Victor, nem mesmo se Fredrik sabe o que aconteceu na noite em que Victor matou a esposa de Hamburg.

Os olhos de Victor sorriem de leve para mim: sua maneira de me mostrar quanto lhe agrada eu ter entendido tudo. Ainda fingindo estar aborrecida, não retribuo o olhar da forma que ele deve esperar.

A empregada aparece com um balde chique de gelo, de madeira, com três garrafas de cerveja dentro. Fredrik pega uma, então ela nos oferece. Victor pega uma garrafa, mas recuso, mal conseguindo olhar a mulher nos olhos. Estou absorta demais nos acontecimentos da noite, que não me saem da cabeça.

A empregada vai embora logo depois, sem dizer uma palavra.

— O que você quis dizer com os irmãos de Javier?

Victor abre sua garrafa e a põe na mesa.

— Dois deles, Luis e Diego, assumiram os negócios de Javier dias depois que você o matou.

Por um instante, o rosto de Javier surge em minha mente: sua expressão chocada e ainda orgulhosa, os olhos arregalados, o corpo caindo no chão segundos depois de eu meter uma bala em seu peito.

Afasto a imagem.

Eu me lembro de Luis e Diego. Diego é aquele que tentou me estuprar quando eu estava na fortaleza no México, aquele que Javier castrou como punição.

— Eles estão me procurando?

Victor toma um gole de cerveja e devolve a garrafa à mesa com calma.

— Que eu saiba, não. Estou monitorando a fortaleza há meses. Os irmãos de Javier são amadores. Não têm ideia do que fazer com tanto poder. Duvido até que vejam você como ameaça.

Fredrik toma um gole de cerveja e prende a garrafa entre as pernas.

— Não fique tão aliviada assim — diz ele. — É melhor ser perseguida por amadores do que por Hamburg e aquele braço direito dele.

Um nó nervoso se forma no fundo do meu estômago. Olho de relance para Victor, buscando respostas.

— Willem Stephens — esclarece Victor — faz todo o serviço sujo de Hamburg. Hamburg em si é covarde, tão perigoso quanto o pedófilo gente boa da vizinhança. Mal consegue atirar em um alvo imóvel, e trairia alguém em dois minutos para se salvar. — Ele arqueia uma sobrancelha. — Stephens, por outro lado, tem uma extensa formação militar, é ex-mercenário e trabalhou para uma Ordem do mercado negro em 1986.

— Uma o quê?

— Uma Ordem como a nossa — explica Victor —, mas que aceita contratos particulares. Eles fazem coisas que outros agentes se recusam a fazer, vendem seus serviços basicamente para qualquer um.

— Ah... Então, resumindo, ele mata gente inocente por dinheiro.

Lembro o que Victor me contou, meses atrás, sobre a natureza dos contratos particulares, como pessoas eram assassinadas por motivos fúteis como traição conjugal ou vingança. A Ordem de Victor só trabalha com crime, ameaças sérias a um grande número de pessoas ou ideias que poderiam ter um impacto negativo na sociedade ou na vida como um todo.

Engulo em seco.

— Bom, ele me viu, com certeza. — Levanto as mãos e tiro o cabelo do rosto, passando as mãos no alto da cabeça. — Foi ele quem me levou para o segundo andar, para a sala de Hamburg. — Olho para Victor. — Desculpa, Victor. Eu... eu não sabia de nada disso.

Fredrik ri baixinho e diz:

— Algo me diz que, mesmo se você soubesse, teria ido lá de qualquer maneira.

Desvio o olhar de Victor e olho para baixo de novo, nervosa, esfregando os dedos ensanguentados uns nos outros. Fredrik tem razão. Odeio admitir, mas ele tem razão. Eu teria ido para o restaurante mesmo assim. Teria tentado matar Hamburg mesmo assim. Mas, se eu soubesse de tudo isso, acho que teria pensado em um plano melhor.

De repente, sinto que alguma coisa toma meu corpo e me tira o fôlego.

— Victor... Meu celular... — Eu me levanto do sofá, com o cabelo castanho-avermelhado caindo pelos ombros, batendo em meus braços nas partes em que o sangue secou e formou uma crosta áspera. — O número de Dina está no meu celular. Merda. Merda! Victor, Stephens vai atrás dela! Preciso voltar para o Arizona!

Começo a seguir para a porta dos fundos, mas Victor me alcança antes que eu atravesse o caminho decorado com pedras lisas.

— Espere aí.

Olho para baixo e vejo os dedos dele em volta do meu pulso. Seus hipnóticos olhos verde-azulados me fitam com desejo e devoção. Devoção. Algo que nunca vi no olhar de Victor antes.

Fredrik fala atrás de nós, me tirando do transe em que Victor me colocou.

— Eu vou cuidar disso — diz ele.

Desvio o olhar de Victor para Fredrik, que então ganha importância, considerando que a vida de Dina está em jogo.

— Como? — pergunto.

Victor me leva de volta para o sofá.

Fredrik pega o celular da mesa à frente, procura um número e toca na tela para ligar. Então encosta o celular no ouvido.

Victor me faz sentar perto dele de novo. Estou concentrada demais em Fredrik no momento para notar que Victor fez questão de se sentar tão perto que sua coxa está encostada na minha. Quero aproveitar o momento de proximidade, mas não posso. Estou preocupada com Dina.

Fredrik se reclina na poltrona de novo, balançando o pé descalço apoiado no joelho. Seu rosto fica alerta quando alguém atende à ligação.

— Em quanto tempo você consegue chegar a Lake Havasu City? — pergunta Fredrik ao telefone. Ele ouve por um segundo e assente. — Mando o endereço por mensagem de texto assim que eu desligar. Vá para lá o mais rápido que puder. Uma mulher mora lá. Dina Gregory. — Ele me olha de relance, para se certificar de que disse o nome certo. Como não o corrijo, volta a falar ao telefone. — Tire-a da casa e a leve para Amelia, em Phoenix. Sim. Sim. Não, não pergunte nada a ela. Só tome cuidado para ninguém machucar Dina. Sim. Me ligue neste número assim que estiver com ela.

Fredrik assente mais algumas vezes. Meu coração está batendo tão forte que parece pronto para pular do peito. Espero que a pessoa com quem ele está falando consiga encontrar Dina a tempo.

Fredrik desliga e parece abrir uma tela de texto no celular. Ele olha para mim, mas é Victor quem dá o endereço da sra. Gregory. Fredrik o digita e deixa o celular na mesa.

— Meu contato está a apenas trinta minutos de lá — explica Fredrik, olhando primeiro para mim. Então se vira para Victor. — O que você quer que eu faça?

Ele levanta as costas da poltrona e apoia os cotovelos nos joelhos, deixando as mãos entre eles. Mesmo em uma posição relaxada, ele consegue parecer elegante, importante e perigoso.

— Ainda preciso que você verifique o que discutimos ontem — diz Victor, e fica ainda mais claro, para mim, que Fredrik recebe ordens dele, embora não pareça ser do tipo que recebe ordens de ninguém. Mas está claro que os dois têm uma relação forte. — E, se você não se importa, preciso da sua casa emprestada por esta noite.

Os olhos escuros de Fredrik me encaram, e o traço de um sorriso aparece em seu rosto. Ele se levanta e pega o celular da mesa, escondendo-o na mão.

— Não precisa dizer mais nada. Vou sair daqui em vinte minutos. Eu ia mesmo me encontrar com alguém hoje, então está combinado.

A atitude de Victor muda um pouco, o que percebo no mesmo instante. Ele está encarando Fredrik, do outro lado da mesa do pátio, com um olhar cansado e cauteloso.

— Você não vai fazer o que estou pensando...

Ouço com atenção sem nem ao menos tentar disfarçar. Eu quero que eles saibam que estou bisbilhotando, porque é frustrante nenhum dos dois me oferecer qualquer explicação sobre esses comentários internos.

Fredrik ergue um lado da boca em um meio sorriso. Ele balança a cabeça de leve.

— Não, esta noite, não, infelizmente. Mas já faz algum tempo. Vou precisar que você me ajude com isso em breve.

Os olhos dele passam por mim e sinto um calafrio percorrer minhas costas. Não consigo decidir se é um arrepio bom ou assustador.

— Você terá sua oportunidade logo, logo — assegura Victor.

Fredrik dá a volta na mesa.

— Lamento por ter que encurtar nossa reunião.

— Tudo bem — digo. — Obrigada por ajudar com Dina. Você avisa quando receber aquela ligação?

Fredrik assente.

— Com certeza. Farei isso.

— Obrigada.

Victor acompanha Fredrik até a porta de vidro e os dois a atravessam. Fico sentada, observando-os do outro lado do pátio de pedra e tentando ouvir o máximo que posso, mas eles fazem questão de falar em voz baixa. Isso também me deixa frustrada. E pretendo informar Victor disso.


CAPÍTULO OITO

Victor

Fredrik fecha a porta de correr feita de vidro.

— Ela não sabe nada sobre Niklas? — pergunta ele, como eu já previa.

— Não, mas vou ter que contar. Ela vai precisar ficar atenta o tempo todo. Agora mais do que nunca.

— Ela não pode ficar aqui por muito tempo — aconselha Fredrik, olhando, através do vidro, Sarai sentada no sofá lá fora e nos observando. — Você também não.

— Eu sei. Quando Niklas descobrir que ela participou do assassinato no restaurante de Hamburg, vai saber na mesma hora que também estou envolvido nisso. Ele não é bobo. Se Sarai está viva, Niklas vai saber que estou tentando ajudá-la.

— E como ele desconfia de que agora trabalho com você — acrescenta Fredrik —, ela corre tanto perigo perto de mim quanto de você.

— É verdade.

Fredrik balança a cabeça para mim, com um sorriso escondido no fundo dos olhos.

— Não entendo esse envolvimento. Respeito você como sempre, respeitei, Victor, mas nunca vou entender a necessidade de um homem amar uma mulher.

— Eu não estou apaixonado por ela. Ela só é importante para mim.

— Talvez não — retruca ele, indo para a cozinha. — Mas parece que o amor e o envolvimento trazem as mesmas consequências, meu amigo. — Sigo Fredrik até a cozinha iluminada e ele abre um armário. — Mas estou do seu lado. O que você precisar que eu faça para ajudar, é só pedir. — Ele aponta para mim perto do armário, agora com um pão na mão.

A empregada de Fredrik entra na cozinha, roliça e mais velha do que nós dois juntos, exatamente o tipo de mulher que jamais o atrairia, e foi por isso que ele a contratou. Ela lhe pergunta em espanhol se pode voltar para casa e ver a família mais cedo hoje. Fredrik responde em espanhol, concordando. Ela assente respeitosamente e passa por mim na sala. De soslaio, eu a observo pegar uma bolsa volumosa de couro marrom do chão, perto da espreguiçadeira, e colocá-la no ombro. Depois ela vai até a porta, fechando-a devagar ao sair.

Sarai está de pé nas sombras da sala quando desvio o olhar da porta. Nem ouvi a porta de vidro correr quando ela entrou, e pelo jeito Fredrik também não.

Ela vai para a cozinha iluminada, de braços cruzados, os dedos delicados segurando seus bíceps femininos, mas bem-definidos. Ela é linda demais, mesmo quando está desgrenhada assim.

— Quanto tempo vocês planejavam me deixar lá fora? — pergunta ela, com um traço de irritação na voz.

— Ninguém disse que você precisava ficar lá, gata — responde Fredrik.

Ele gosta dela, isso é óbvio para mim, e ele deve saber. Mas também sabe que vou matá-lo. Ainda assim, minha confiança em Fredrik é maior do que minha preocupação de que ele volte para o lado sombrio e a machuque. Fredrik Gustavsson é uma fera do tipo mais carnal, que adora mulheres e sangue, mas tem limites e critérios, além de levar a lealdade, o respeito e a amizade muito a sério. Sua lealdade a mim é, afinal, o motivo para ele trair a Ordem todos os dias me ajudando.

Sarai se aproxima de mim e me olha nos olhos, inclinando um pouco a cabeça para o lado. O cheiro de sua pele e o calor tênue que emana dela quase me fazem perder o controle. Tenho conseguido me conter bastante desde que a beijei no elevador. Pretendo continuar assim.

Ela não diz nada, mas continua me encarando como se esperasse alguma coisa. Fico confuso. Ela inclina a cabeça para o outro lado e seu olhar se suaviza, embora eu não saiba ao certo por quê. Parece maliciosa e cheia de expectativa.

Ouço Fredrik rir baixinho e a porta da geladeira se fechar, mas não tiro os olhos de Sarai.

— As coisas são tão mais fáceis do meu jeito. — Ouço-o dizer, com um sorriso na voz.

— Entre em contato comigo assim que tiver a informação sobre Niklas — peço, ainda olhando nos olhos de Sarai e ignorando o comentário dele. — E quando souber pelo seu contato se Dina Gregory está a salvo em Phoenix.

— Pode deixar — diz Fredrik, e então vai para a porta do corredor que leva ao seu quarto. Mas ele para e olha para nós. — Se você não se importa...

Enfim desvio o olhar de Sarai e dou atenção total a Fredrik.

— Não se preocupe — interrompo —, eu sei onde fica o quarto de hóspedes.

Ele enfia na boca um sanduíche que mal notei que ele preparava e morde, rasgando um pedaço de pão. Eu o vejo piscando para Sarai antes de desaparecer da sala. Foi algo inofensivo, uma menção ao que ele acha que pode acontecer entre nós quando sair, e não uma tentativa de flerte.

— Que informação sobre Niklas? — pergunta Sarai, seus traços suaves agora encobertos pela preocupação.

Estendo a mão e passo os dedos por algumas mechas do cabelo dela.

— Preciso contar muita coisa para você — anuncio, tirando a mão antes de perder o controle e acabar tocando nela mais do que pretendo. — Sei que você deve estar exausta. Por que não toma um banho e fica à vontade primeiro? Depois conversamos.

Um sorrisinho suave emerge em seus lábios, mas logo desaparece em seu rosto enrubescido.

— Você quer dizer que eu estou nojenta? — pergunta ela, tímida. — Esse é o seu jeito de me dizer que preciso lavar meu corpo nojento?

— Na verdade, sim — admito.

Por um momento ela faz uma careta e parece ofendida, mas então só balança a cabeça e dá risada. Admiro isso em Sarai. Admiro muita coisa nela.

— Tudo bem. — Sua expressão brincalhona fica séria de novo. — Mas você precisa me contar tudo, Victor. E eu sei que você deve ter muito para contar, mas saiba que também preciso dizer muita coisa para você.

Eu já esperava isso. E, antes que ela fique na ponta dos pés, incline o corpo na minha direção e me beije, já sei que, quando ela sair do banho, vou precisar decidir o que vamos fazer. Vou precisar tomar algumas decisões importantes, que nos afetarão.

Porque de uma coisa eu tenho certeza: Sarai não pode voltar para casa.


Sarai

Quando volto, Victor está na sala, acomodado na beira do sofá, curvado sobre a mesinha de centro feita de vidro que está cheia de pedaços de papel e fotografias. Entro, mas ele continua remexendo neles sem erguer a cabeça para me olhar. Só que ele não me engana, sei que sente a minha presença tanto quanto quero que ele sinta.

Vasculhei o guarda-roupa de Fredrik procurando uma camiseta branca, que vesti sobre meus seios nus. Infelizmente, tive que usar a mesma calcinha de antes, mas as cuecas boxer de Fredrik não são exatamente o tipo de lingerie que eu gostaria de usar para seduzir Victor. Só uma camiseta e uma calcinha. Claro que fiz questão de vestir o mínimo possível, porque desejo Victor e não tenho nenhuma vergonha de deixar isso claro. Mas ainda custo a acreditar que estou no mesmo cômodo que ele, depois de meses achando que ele havia ido embora para sempre.

Acho que o beijo no elevador é onde minha mente ficou suspensa, como se o tempo tivesse parado naquele momento e cada parte de mim ainda deseje que aquele instante continue. Contudo, o resto do mundo continua passando ao meu redor.

Eu me sento ao lado de Victor, recolhendo um pé descalço para o sofá e enfiando-o sob a minha coxa.

— O que é isso tudo? — Olho para os papéis e fotografias na mesa.

Ele mexe em alguns pedaços de papel, empilhando-os.

— É um serviço — explica ele, colocando a foto de um homem de camiseta regata na pequena pilha. — Agora eu trabalho por conta própria.

Isso me surpreende.

— Como assim? — Acho que sei o que ele quer dizer, mas custo a acreditar.

Ele pega a pilha de papéis e bate as laterais na mesa para ajeitar todas as folhas. Então enfia o maço em um envelope de papel pardo.

— Eu saí da Ordem, Sarai. — Ele olha para mim.

Victor aperta as pontas do fecho prateado para fechar o envelope.

Meus pensamentos se embaralham, minhas palavras ficam confusas na ponta da língua. Luto, desesperada, para acreditar no que ele acaba de me contar.

— Victor... mas... não...

— Sim — confirma ele, virando-se para mim e me olhando bem nos olhos. — É verdade. Eu me rebelei contra a Ordem, contra Vonnegut, e agora eles estão atrás de mim. — Ele volta a mexer nos outros papéis na mesa. — Mas ainda preciso trabalhar, por isso agora trabalho sozinho.

Balanço a cabeça sem parar, sem querer engolir a verdade. A ideia de Victor sendo caçado por aqueles que o fizeram ser como ele é, por qualquer um, faz um pânico febril correr pelas minhas veias.

Solto um longo suspiro.

— Mas... mas e Fredrik? E Niklas? Victor, eu... O que está acontecendo?

Ele respira fundo e deixa a folha de papel cair suavemente na mesa, então reclina as costas no sofá.

— Fredrik ainda trabalha para a Ordem. Está lá dentro. Ele vigia Niklas e... — seus olhos cruzam com os meus por um instante —... tem me ajudado a manter você a salvo.

Antes que eu consiga fazer mais perguntas presas na garganta, Victor se levanta e continua a falar, enquanto fico sentada e o observo com a boca semiaberta e as pernas dobradas sobre a almofada.

— Como você sabe, quando alguém está sob suspeita de trair a Ordem, é imediatamente eliminado. Mas acredito que Niklas deixou Fredrik vivo e não transmitiu suas preocupações a Vonnegut pelo simples fato de que Niklas está usando Fredrik para me encontrar. Assim como deixou você viva todo este tempo, esperando que um dia você o levasse a mim.

O que mais me choca não é o que Victor diz, mas o que ele deixa de fora. Tiro as duas pernas de cima do sofá e pressiono os pés no chão de madeira, apoiando as mãos nas almofadas.

— Victor, o que você está me dizendo? Quer dizer que... Niklas continua com Vonnegut?

Espero que não seja isso que ele esteja tentando me dizer. Espero de todo o coração que minha decisão de deixar Niklas vivo aquele dia no hotel, quando ele atirou em mim, não tenha sido o maior erro da minha vida.

Os olhos de Victor vagam para a porta de vidro, e sinto que uma espécie de sofrimento infinito o consome, mas ele não deixa transparecer.

— Você estava lá. Eu disse para o meu irmão que, se ele decidisse continuar na Ordem caso eu resolvesse sair, eu não ficaria bravo com ele. Dei a ele a minha palavra, Sarai. — Victor vai até a porta de vidro, cruza os braços e olha para a piscina azul iluminada que reluz sob o céu cinzento. — Agora é hora de Niklas brilhar, e não vou tirar isso dele.

— Que absurdo! — Salto do sofá com os punhos fechados. — Ele está atrás de você, não é? — Cerro os dentes e contorno a mesinha de centro. — Caralho, é isso, Victor? Para provar seu valor para Vonnegut, ele foi encarregado de matar você. Aquele merda do seu irmão traiu você. Ele acha que vai pegar o seu lugar na Ordem. Puta que pariu, não acredito...

— É o que é, Sarai — interrompe Victor, virando-se para me encarar. — Mas, neste momento, Niklas é a menor das minhas preocupações.

Cruzando os braços, começo a andar de um lado para outro, olhando os veios claros e escuros da madeira sob meus pés descalços. Minhas unhas ainda têm o esmalte vermelho-sangue de duas semanas atrás.

— Por que saiu da Ordem?

— Eu tive que sair. Não tinha escolha.

— Não acredito.

Victor suspira.

— Vonnegut descobriu sobre a gente — conta ele, ganhando minha atenção total. — Foi Samantha... na noite em que ela morreu. Antes que eu saísse da Ordem, encontrei Vonnegut em Berlim, o primeiro encontro frente a frente que tive com ele em meses. Foi em uma sala de interrogatório. Quatro paredes. Uma porta. Uma mesa. Duas cadeiras. Somente eu e Vonnegut sentados frente a frente, com uma luz brilhando no teto acima de nós. — Victor olha para trás pela porta de vidro e depois continua: — No início, eu estava certo de que ele tinha me levado para lá com a intenção de me matar. Eu estava preparado...

— Para morrer? — Se Victor responder que sim, vou dar um tapa na cara dele.

— Não — responde ele, e consigo respirar um pouco melhor. — Eu fui para lá preparado. Raptei a mulher de Vonnegut antes de ir encontrá-lo. Fredrik a manteve em uma sala, pronto para fazer... as coisas dele, caso fosse necessário.

No mesmo instante, quero perguntar o que são as “coisas” de Fredrik, mas deixo a pergunta de lado por enquanto e digo:

— Se Vonnegut quisesse matar você, a esposa dele seria a sua moeda de troca.

De costas para mim, ele assente.

— Samantha estava sendo vigiada pela Ordem. Provavelmente há muito tempo.

— Eles desconfiavam da traição dela? Por que não a mataram, então, como fizeram com a mãe de Niklas, ou como queriam fazer com Niklas?

Victor se vira para me encarar de novo.

— Eles não desconfiavam dela, Sarai, ela era... — Victor respira fundo e aperta os lábios.

— Ela era o quê? — Chego mais perto dele. Não gosto do rumo que a conversa está tomando.

— Ela era mais leal à Ordem do que eu jamais poderia ter imaginado — conta ele, e isso fere meu coração. — Sentado naquela sala com Vonnegut, quanto mais ele falava, mais eu começava a entender que Samantha me traiu da mesma forma que Niklas. Vonnegut me contou coisas que ele não tinha como saber. Ele sabia que eu ajudei você. Em algum momento antes de morrer, naquela noite, Samantha conseguiu passar informações a Vonnegut sobre nossa estadia por lá.

— Não acredito nisso. — Golpeio o ar com a mão diante de mim. — Samantha morreu tentando me proteger. Já falamos sobre isso. Não acredito em você, Victor. Ela era uma boa pessoa.

— Ela era boa manipuladora, Sarai, nada mais do que isso.

Balanço a cabeça, ainda sem acreditar.

— Foi Niklas quem contou a Vonnegut que você me ajudou. Só pode ter sido. Niklas sabia até que você tinha me levado para a casa de Samantha.

— Sim, mas Niklas não sabia que eu fiz Samantha provar nossa comida antes de a gente comer, naquela noite. Assim que Vonnegut mencionou quanto eu ainda desconfiava dela depois de tantos anos, eu soube que ela havia me traído.

— Mas isso não faz nenhum sentido. — Começo a andar pela sala de novo, de braços cruzados e com uma das mãos apoiada no rosto. — Por que ela me protegeria de Javier?

— Porque ela não era leal a Javier.

Jogo as mãos para o ar, atônita com aquela revelação.

— Não dá para confiar em ninguém — digo, me jogando no sofá e olhando para o nada.

— Não, não dá — concorda Victor, e eu olho para cima, detectando um significado oculto por trás de suas palavras. — Agora talvez você entenda por que eu não me envolvo com ninguém. Não é só o trabalho, Sarai. As pessoas em geral não são confiáveis, especialmente na minha profissão, na qual a confiança é tão rara que não vale a pena perder tempo e esforço procurando por ela.

— Mas você parece confiar em Fredrik — observo, olhando para Victor do sofá. — Por que me trouxe logo aqui? Não aprendeu a lição com Samantha?

Sua expressão fica um pouco mais sombria, ressentida pela minha acusação.

— Eu nunca disse que confiava em Fredrik. Mas no momento ele é meu único contato dentro da Ordem e, nos últimos sete meses, não fez nada que não o tornasse digno de confiança. Ao contrário, fez tudo para provar sua lealdade a mim.

— Mas isso não significa que seja verdade.

— Não, você tem razão, mas logo vou saber com cem por cento de certeza se Fredrik é confiável ou não.

— Como?

— Você vai descobrir comigo.

— Por que se dar a esse trabalho? Você disse que a confiança é tão rara que não vale o esforço.

— Você faz muitas perguntas.

— Pois é, acho que faço. E você não responde o suficiente.

— Não, acho que não. — Victor abre um sorrisinho, e meu coração se derrete instantaneamente em uma poça de mingau.

Desvio os olhos dos dele e disfarço meus sentimentos.

— Não estou segura aqui — digo, encarando-o novamente.

— Você não está segura em lugar nenhum — corrige Victor. — Mas, enquanto estiver comigo, nada vai acontecer com você.

— Quem está falando merda agora?

Ele levanta uma sobrancelha.

— Você não é meu herói, lembra? — digo para refrescar a memória de Victor. — Não é minha alma gêmea que jamais deixará que nada de ruim aconteça comigo. Devo confiar nos meus instintos primeiro e em você, se eu decidir confiar, por último. Você me disse isso certa vez.

— E continua sendo verdade.

— Então como pode dizer que nada vai me acontecer se eu estiver com você?

A expressão de Victor fica vazia, como se pela primeira vez na vida alguém o tivesse deixado sem palavras. Olho para seu rosto silencioso e sem emoção, e apenas seus olhos revelam um traço de torpor. Tenho a sensação de que ele falou sem pensar, que manifestou algo que sente de verdade, mas que jamais quis que eu soubesse: Victor quer ser meu herói, vai fazer qualquer coisa, tudo o que puder para me manter a salvo. Quer que eu confie totalmente nele.

E confio.

Ele volta para perto de mim e se senta ao meu lado. O cheiro de seu perfume é fraco, como se ele fizesse questão de usar o mínimo possível. Estou tonta de desejo. Ansiosa para sentir novamente seu toque, saborear seus lábios quentes, deixar que ele me tome como fez algumas noites antes que nos víssemos pela última vez. Não tenho pensado em nada além de Victor nos últimos oito meses da minha vida. Enquanto durmo. Como. Vejo TV. Transo. Me masturbo. Tomo banho. Cada coisa que fiz desde que ele me deixou naquele hospital com Dina fiz pensando nele.

— Você acha que Fredrik vai contar a Niklas onde a gente está? — Mudo de assunto por medo de deixar transparecer muita coisa cedo demais.

— Acho que se ele fosse fazer isso teria contado a Niklas o pouco que sabia sobre o seu paradeiro há muito tempo, e Niklas já teria tentado matar você — responde Victor.

— Tem alguma coisa... estranha em Fredrik. Você não sente?

Victor passa a mão pelo meu cabelo úmido. O gesto faz meu coração disparar.

— Você tem grande sensibilidade para as pessoas, Sarai — comenta ele, levando a mão ao meu queixo. — Tem razão sobre Fredrik. — Ele passa o polegar pelo meu lábio inferior. Um calafrio percorre o meio das minhas pernas. — Ele é... como dizer?... desequilibrado, de certa forma.

Minha respiração acelera, e sinto meus cílios tocando meu rosto quando os lábios de Victor cobrem os meus.

— Desequilibrado de que forma? — pergunto, ofegante, quando ele se afasta.

De olhos fechados, percebo que ele está observando a curva do meu rosto e meus lábios e sinto a respiração que sai suavemente de suas narinas.

Cada pelinho minúsculo se eriça quando a outra mão de Victor sobe e encontra minha cintura nua por baixo da camiseta. Seus dedos longos dançam sobre a pele do meu quadril e param por ali.

Abro os olhos e vejo os dele me encarando.

— Algum problema? — pergunta ele, e sua boca roça a minha de novo.

— Não, eu... eu só não esperava isso.

— Esperava o quê?

Sinto seus dedos levantando o elástico da minha calcinha. Minha cabeça está girando, sinto meu estômago se transformar em um emaranhado de músculos, trêmulo e nervoso.

— Isso — respondo, piscando. — Você está diferente — acrescento, baixinho.

— Culpa sua — diz Victor, e então seus lábios devoram os meus.

Ele me deita no sofá e se encaixa entre as minhas pernas.

Seu celular vibra na mesinha de centro, e percebo quanto sou humana quando xingo Fredrik por estragar aquele momento, mesmo que seja para me avisar de que Dina está a salvo.


CONTINUA

CAPÍTULO UM

Sarai

Já faz oito meses que fugi da fortaleza no México onde fui mantida contra minha vontade por nove anos. Estou livre. Levo uma vida “normal”, fazendo coisas normais com gente normal. Não fui mais atacada, ameaçada nem seguida por ninguém que ainda queira me matar. Tenho uma “melhor amiga”, Dahlia. Tenho a coisa mais parecida com uma mãe que já conheci, Dina Gregory. O que mais eu poderia querer? Parece egoísmo desejar qualquer outra coisa. Mas, apesar de tudo o que tenho, algo não mudou: continuo vivendo uma mentira.

Deixei amigos na Califórnia: Charlie, Lea, Alex e... Bri... Não, espera, quero dizer Brandi. Meu ex-namorado, Matt, era abusivo, por isso voltei para o Arizona. Ele me perseguiu por muito tempo depois que terminamos. Consegui uma ordem judicial para mantê-lo afastado, mas não funcionou. Ele atirou em mim há oito meses, mas não posso provar porque não cheguei a vê-lo. E tenho muito medo de denunciá-lo à polícia.

Claro que tudo isso é mentira.

São os pedaços da minha vida que acobertam o que realmente aconteceu comigo. Os pretextos para eu ter desaparecido aos 14 anos e ter ido parar em um hospital da Califórnia com um ferimento a bala. Jamais vou poder contar a Dina, Dahlia ou ao meu namorado, Eric, o que aconteceu de verdade: que fui levada para o México pela péssima versão de mãe que eu tinha, para morar com um chefão do tráfico. Jamais vou poder contar que fugi daquele lugar depois de nove anos e matei o homem que me manteve prisioneira por toda a minha adolescência. Quer dizer, claro que eu poderia contar a alguém, mas, se fizesse isso, só estaria pondo Victor em perigo.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/2_O_RETORNO_DE_IZABEL.jpg

 

Victor.

Não, nunca vou poder contar que um assassino me ajudou a fugir, ou que testemunhei Victor matando várias pessoas, inclusive a esposa de um empresário famoso e importante de Los Angeles. Nunca vou poder contar que, depois de tudo pelo que passei, depois de tudo o que vi, o que mais quero é fazer as malas e voltar para aquela vida perigosa. A vida com Victor.

Até hoje, falar o nome dele me acalma. Às vezes, quando estou acordada na cama à noite, murmuro seu nome só para ouvi-lo, porque preciso. Preciso dele. Não consigo tirá-lo da cabeça. Já tentei. Porra, e como tentei. Mas, não importa o que eu faça, continuo vivendo cada dia da minha vida pensando nele. Se está me vigiando. Se pensa em mim tanto quanto penso nele. Se ainda está vivo.

Pressiono o travesseiro contra a cabeça e fecho os olhos, imaginando Victor. Às vezes, é só assim que consigo gozar.

Eric aperta minhas coxas com as mãos e me imobiliza na cama, com o rosto enfiado no meio das minhas pernas.

Arqueio o quadril contra ele, roçando de leve contra sua língua frenética, até que ele faça meu corpo todo enrijecer e minhas coxas tremerem ao redor da sua cabeça.

— Meu Deus... — Estremeço enquanto gozo, então deixo os braços caírem entre as pernas, afundando os dedos no cabelo preto de Eric. — Caramba...

Sinto os lábios de Eric tocando minha barriga um pouco acima da pélvis.

Olho para o teto como sempre faço depois de um orgasmo, pois a culpa que sinto me deixa com vergonha de olhar para Eric. Ele é um cara superlegal. Meu namorado sexy de 27 anos, cabelo preto e olhos azuis, gentil, encantador, engraçado e perfeito. Perfeito para mim se eu nunca tivesse conhecido Victor Faust.

Estou arruinada pelo resto da vida.

Enxugo as gotas de suor da testa e Eric sobe pela cama, deitando-se ao meu lado.

— Você sempre faz isso — diz ele, brincando, enquanto cutuca minhas costelas com os nós dos dedos.

Como sinto muitas cócegas, eu me encolho e me viro para encará-lo. Sorrio com ternura e passo um dedo por seu cabelo.

— O que eu sempre faço?

— Esse negócio de ficar em silêncio. — Eric segura meu queixo entre o polegar e o indicador. — Eu faço você gozar e você fica bem quieta durante um tempão.

Eu sei e sinto muito, mas preciso apagar o rosto de Victor da minha cabeça antes de conseguir olhar você nos olhos. Sou uma pessoa horrível.

Eric me dá um beijo na testa.

— Isso se chama recuperação — brinco, beijando os dedos dele. — É totalmente inofensivo. Mas você deveria interpretar como um bom sinal. Você sabe o que está fazendo — digo, retribuindo o cutucão nas costelas.

E ele sabe mesmo o que está fazendo. Eric é ótimo na cama. Mas ainda sou emocionalmente muito ligada... viciada... em Victor, e tenho a sensação de que sempre serei.

Só consegui seguir a vida e me abrir a outros relacionamentos cinco meses depois que Victor foi embora. Conheci Eric no trabalho, na loja de conveniência. Ele comprou um saco de biscoitos e um energético. Depois disso, ele aparecia na loja duas, às vezes três vezes por semana. Eu não queria nada com ele. Queria Victor. Mas comecei a perder a esperança de que Victor um dia fosse voltar para mim.

Eric tenta passar um braço ao redor do meu corpo, mas me levanto casualmente e visto a calcinha. Ele não desconfia de nada, o que é bom. Não sinto vontade de ficar abraçadinha, mas a última coisa que quero é magoá-lo. Ele ergue os braços e entrelaça os dedos atrás da cabeça. Olha para mim, do outro lado do quarto, com um sorriso sedutor. Sempre faz isso quando não estou completamente vestida.

— Sarai.

— Oi. — Visto a camiseta e ajeito o rabo de cavalo.

— Eu sei que está em cima da hora — diz Eric —, mas queria ir com você e Dahlia para a Califórnia amanhã.

Merda.

— Mas você não disse que não ia conseguir folga no trabalho? — pergunto, vestindo o short e calçando os chinelos.

— Quando você perguntou se eu queria ir, não ia dar mesmo. Mas contrataram um funcionário novo, e meu chefe decidiu me dar folga.

Isso é uma péssima notícia. Não porque eu não o queira por perto — gosto de Eric, apesar da minha incapacidade de esquecer Victor Faust —, mas minha viagem de “férias” à Califórnia amanhã não é para fazer turismo, curtir a noite nem fazer compras na Rodeo Drive.

Estou indo até lá para matar um homem. Ou melhor, tentar matar um homem.

Já é ruim que Dahlia vá também, e já vai ser difícil guardar segredo de uma pessoa. Imagine duas.

— Você... não parece animada — comenta Eric, seu sorriso morrendo aos poucos.

Abro um sorriso largo e balanço a cabeça, voltando para perto dele e me sentando na beira da cama.

— Não, não, eu estou animada. É que você me pegou de surpresa. A gente vai sair às seis da manhã. É daqui a menos de oito horas. Você já fez as malas?

Eric dá uma risada e se estica na minha cama, me puxando para si. Eu me sento perto de sua cintura, apoiando um braço no colchão do outro lado dele, com os pés para fora da cama.

— Bom, eu só fiquei sabendo hoje à tarde, antes de sair do trabalho — explica ele. — Eu sei, está em cima da hora, mas só preciso enfiar umas coisas na mala e estou pronto.

Ele estende a mão e afasta do meu rosto os fios de cabelo que escaparam do rabo de cavalo.

— Ótimo! — minto, com um sorriso igualmente falso. — Então acho que está combinado.

Dina acorda antes de mim, às quatro da manhã. O cheiro de bacon é o que me desperta. Levanto da cama e entro debaixo do chuveiro antes de me sentar à mesa da cozinha. Um prato vazio já está à minha espera.

— Gostaria que você tivesse escolhido algum outro lugar para passar sua folga, Sarai — afirma Dina.

Ela se senta do outro lado da mesa e começa a encher seu prato. Pego alguns pedaços de bacon do monte e ponho no meu.

— Eu sei — digo —, mas, como falei para você, não vou deixar que meu ex me impeça de ver meus amigos.

Ela balança a cabeça cada vez mais grisalha e suspira.

Passei do limite em algum momento com meu amontoado de mentiras. Quando Victor levou Dina para o hospital em Los Angeles, depois que o irmão dele, Niklas, atirou em mim, ela não fazia ideia do que tinha acontecido. Só sabia que eu tinha levado um tiro. Demorei alguns meses até me sentir segura o suficiente para falar com ela sobre isso. Quer dizer, depois de bolar a história que eu ia contar. Foi aí que inventei o lance do ex-namorado violento. Eu deveria ter dito que fui assaltada. Por um desconhecido. A mentira seria muito mais fácil de manter. Agora que ela sabe que vou voltar para Los Angeles, está morrendo de preocupação, e já faz uns dois meses. Eu nem deveria ter contado que ia voltar lá.

Termino de comer o bacon e um pouco de ovos mexidos, junto com um copo de leite.

Dahlia e Eric chegam juntos assim que termino de escovar os dentes.

— Vamos logo, a gente precisa pegar a estrada — chama Dahlia, me apressando da porta. Seu cabelo castanho-claro está preso no alto da cabeça em um coque desalinhado de quem acabou de acordar.

Eu me despeço de Dina com um abraço.

— Eu vou ficar bem — digo a ela. — Prometo. Não vou nem chegar perto de onde ele mora.

Desta vez, chego até a imaginar um rosto masculino ao falar de alguém que não existe. Acho que já interpreto esse papel há tanto tempo que “Matt” e todos esses meus “amigos” de Los Angeles, de quem falo para todo mundo como se fossem reais, se tornaram reais no meu subconsciente.

Dina força um sorriso em seu rosto preocupado, e suas mãos soltam meus cotovelos.

— Você liga assim que chegar?

— Assim que eu entrar no quarto do hotel, ligo — respondo, assentindo.

Ela sorri e eu a abraço mais uma vez, antes de segui-los até o carro de Dahlia, que está esperando. Eric guarda minha mala no bagageiro, junto com as deles, e se senta no banco de trás.

— Hollywood, aí vamos nós! — exclama Dahlia.

Finjo metade da empolgação dela. Ainda bem que está muito cedo, senão Dahlia poderia intuir o verdadeiro motivo da minha falta de entusiasmo. Estico os braços para trás e bocejo, apoiando a cabeça no banco do carro. Sinto a mão de Eric no meu pescoço quando ele começa a massagear meus músculos.

— Não sei por que você quer ir a Los Angeles de carro — diz Dahlia. — Se a gente fosse de avião, não ia precisar acordar tão cedo. E você não estaria tão cansada e rabugenta.

Minha cabeça cai para a esquerda.

— Não estou rabugenta. Ainda mal falei com você.

Ela dá um sorrisinho.

— Exatamente. Sarai sem falar significa Sarai rabugenta.

— E se recuperando — acrescenta Eric.

Meu rosto fica vermelho e eu estico a mão atrás da cabeça, dando um tapinha de brincadeira na dele, que está fazendo maravilhas no meu pescoço. Fecho os olhos e vejo Victor.

Não de propósito.

Chegamos a Los Angeles depois de quatro horas na estrada. Eu não podia ir de avião porque não conseguiria levar minhas armas. É claro que Dahlia não pode saber disso. Ela acha apenas que quero apreciar a paisagem.

Tenho sete dias para fazer o que vim fazer. Isto é, se eu conseguir. Pensei no meu plano durante meses, em como vou fazer isso. Sei que é impossível entrar na mansão Hamburg. Para isso, eu precisaria ter um convite e socializar em público com o próprio Arthur Hamburg e seus convidados. Ele viu meu rosto. Bem, tecnicamente, viu mais do que meu rosto. Mas sinto que os acontecimentos daquela noite, quando Victor e eu enganamos Hamburg para que ele nos convidasse para ir ao seu quarto e conseguíssemos matar sua esposa, são algo que ele jamais vai esquecer, nem os mínimos detalhes.

Se tudo der certo, uma peruca loura platinada de cabelo curto e maquiagem escura e pesada vão esconder aquela identidade de cabelo longo e castanho que Hamburg reconheceria assim que eu aparecesse.


CAPÍTULO DOIS

Sarai

Passo o dia todo com Eric e Dahlia, fingindo me divertir para passar o tempo. Saímos para almoçar e para fazer um tour por Hollywood com um guia e visitar um museu antes de voltarmos para o hotel, exaustos. Quer dizer, finjo estar exausta o suficiente para querer dar o dia por encerrado. Na verdade, o que preciso é me preparar para ir ao restaurante de Hamburg ainda hoje.

Dahlia já acha que tem algo errado comigo.

— Você está ficando doente? — pergunta ela, estendendo a mão entre nossas espreguiçadeiras à beira da piscina e sentindo a temperatura da minha testa.

— Estou ótima — respondo. — Só cansada porque levantei muito cedo. E quando foi a última vez que andei tanto assim em um dia só?

Dahlia volta a se recostar em sua espreguiçadeira e ajeita os óculos de sol grandes e redondos no rosto.

— Bom, espero que não esteja cansada amanhã — diz Eric, do outro lado. — Tem tantas coisas que eu quero fazer. Não venho para Los Angeles desde que meus pais se divorciaram.

— Pois é. É a minha primeira vez aqui em dois anos — afirma Dahlia.

Um adolescente pula na piscina e a água respinga em nós. Ergo as costas da espreguiçadeira e agito a revista que estava lendo para tirar as gotas. Ponho os óculos escuros no alto da cabeça. Jogo as pernas para o lado e fico de pé.

— Acho que vou voltar para o quarto e tirar uma soneca — anuncio, pegando minha bolsa do chão.

Eric se ergue também e tira os óculos escuros.

— Se quiser, vou com você — oferece ele.

Agito a mão para ele, pedindo que não se levante.

— Não, fica aí e faz companhia para a Dahlia — sugiro, ajeitando a bolsa no ombro. Abaixo os óculos escuros de novo para que ele não perceba minha mentira.

— Tem certeza de que você está bem? — pergunta Dahlia. — Sarai, você está de férias, lembra? Veio para cá se divertir, não para cochilar.

— Acho que vou estar cem por cento amanhã. Só preciso de um banho quente e demorado e de uma boa noite de sono.

— Ok, vou acreditar — diz Dahlia. — Mas nem vem com doença para o meu lado. — Ela aponta o dedo para mim, com ar severo.

Eric fecha os dedos em torno do meu pulso e me puxa para perto.

— Tem certeza de que não quer que eu vá? — Ele me beija e eu correspondo antes de me levantar de vez.

— Tenho — respondo, baixinho, e saio na direção do elevador.

Assim que entro no quarto, tranco a porta com a corrente para que Eric e Dahlia não entrem de surpresa, jogo a bolsa no chão e abro meu laptop, digitando a senha. Enquanto o laptop inicia, olho pela janela e vejo meus amigos, figuras pequenas daquela distância, ainda à beira da piscina. Eu me sento diante da tela e, provavelmente pela centésima vez, olho cada página do site do restaurante de Hamburg, verificando de novo o horário de funcionamento e passando os olhos pelas fotos profissionais do lugar, dentro e fora. Na verdade, nada disso me ajuda muito com o que pretendo fazer, mas olho tudo de novo todo dia, de qualquer maneira.

Derrotada, bato a palma da mão com força no tampo da mesa.

— Droga! — exclamo, desabando na poltrona enquanto passo as mãos pelo cabelo.

Ainda não sei como vou conseguir ficar a sós com Hamburg sem ser vista. Sei que estou dando um passo maior do que a perna. Sei disso desde que tive essa ideia maluca, mas também sei que, se ficar apenas pensando a respeito, nunca vou passar dessa fase.

Vim para cá com um plano: entrar disfarçada no restaurante e agir como qualquer outro cliente. Sondar o lugar por uma noite. Saber onde ficam as saídas. As entradas para outras partes do prédio. Os banheiros. Minha prioridade número um, contudo, é encontrar a sala de onde Hamburg observa do alto seus clientes e ouve a conversa deles pelo minúsculo microfone escondido no arranjo de cada mesa. Então pretendo me enfiar na sala e cortar a garganta daquele porco.

Contudo, agora que estou aqui, a menos de seis quadras do restaurante, e agora que o tempo está passando tão depressa, estou menos confiante. Isso não é um filme. Sou uma idiota por achar que posso adentrar um lugar desses sem ser vista, tirar a vida de um homem sem chamar atenção e fugir sem ser capturada.

Apenas Victor conseguiria fazer algo assim.

Bato no tampo da mesa de novo, mais de leve desta vez, fecho o laptop e me levanto. Ando de um lado para outro no carpete vermelho e verde. E bem quando resolvo seguir pelo corredor para o quarto separado que reservei sem Dahlia e Eric saberem, a porta se abre um pouco, mas é travada pela corrente.

— Sarai? — chama Dahlia do outro lado. — Vai deixar a gente entrar?

Suspiro fundo e destranco a porta.

— Por que a corrente? — pergunta Eric, entrando atrás de Dahlia.

— Força do hábito.

Eu me jogo na ponta da cama king-size.

Os dois deixam suas coisas no chão. Dahlia se senta à mesa, ao lado da janela, e Eric se deita atravessado na cama ao meu lado, cruzando as pernas na altura dos calcanhares.

— Pensei que você ia tirar uma soneca — diz Dahlia.

Ela passa os dedos com cuidado pelo cabelo úmido, fazendo caretas quando se depara com alguma mecha mais embaraçada.

— Dahlia — digo, olhando para os dois. — Eu subi agora há pouco. Pensei que vocês iam ficar na piscina mais um tempo.

Espero ter conseguido disfarçar o aborrecimento na minha voz por eles terem vindo me encontrar tão cedo. Não consigo evitar: estou estressada demais, além de preocupada com a simples presença dos dois aqui comigo. Não quero que eles se machuquem nem que se envolvam de forma alguma com meu motivo para estar aqui.

— A gente pode sair e deixar você sozinha, se quiser — sugere Eric, baixinho, atrás de mim.

Eu me arrependo na mesma hora do que disse, porque é óbvio que não disfarcei o aborrecimento tão bem quanto esperava.

Inclino a cabeça para trás e suspiro, esticando o braço para tocar o tornozelo dele.

— Desculpa — digo, sorrindo para Dahlia. — Sabe, eu... — Então, de repente, uma desculpa perfeitamente plausível para o modo como tenho agido surge na minha cabeça, e a torneira das mentiras se abre. — Eu só fico meio nervosa por estar de volta a Los Angeles.

Dahlia faz cara de “ah, entendi”, empurra os pés de Eric para o lado e se senta perto de mim. Ela passa o braço por cima dos meus ombros e segura meu antebraço.

— Imaginei que o problema fosse esse.

Percebo que ela olha de relance para Eric e tenho a impressão de que foi sobre isso que os dois falaram enquanto ficaram na piscina, depois que fui embora.

Aposto que também foi por isso que decidiram subir tão cedo para me ver.

— A gente queria ver como você estava — acrescenta Eric atrás de mim, confirmando minha suspeita.

Sinto a cama se mexer quando ele se senta.

Eu me levanto antes que ele consiga me abraçar. É nesse exato momento que me dou conta de como tenho feito isso com frequência no último mês. Não sei por quanto tempo mais vou conseguir enganá-lo. Sei que deveria simplesmente contar o que sinto, que não gosto tanto de Eric quanto ele gosta de mim. Mas não consigo dizer a verdade. Eu precisaria inventar mais uma mentira, e estou tão atolada em mentiras que me sinto afogada nelas.

Ao mesmo tempo, deixei nossa relação durar tanto porque eu queria de verdade sentir por ele algo tão profundo quanto o que ele parece sentir por mim. Queria seguir em frente, esquecer Victor e ser feliz com a vida que ele me deixou.

Mas não consigo. Não consigo mesmo...

— Ele nem vai saber que você está aqui — diz Eric sobre “Matt”. — Além disso, mesmo que ele descobrisse, eu ia encher o cara de porrada assim que o visse.

Esboço um sorriso para Eric.

— Eu sei que você faria isso — digo, mas me sinto ainda pior, porque os únicos dois amigos que tenho no mundo não fazem nem ideia de quem sou.

Cruzo os braços, vou até a janela e olho para fora.

— Sarai — chama Dahlia. — Não queria dizer isso, mas, se você está tão preocupada com a possibilidade de Matt descobrir que você está em Los Angeles, acho que não é boa ideia visitar seus amigos aqui.

— Eu sei, você tem razão. Sei que eles não contariam para Matt, mas acho que é melhor eu ficar só com vocês dois enquanto estivermos aqui.

Eu me viro para encará-los.

— É um bom plano — diz Eric, com um sorriso radiante.

É um bom plano, com certeza, porque agora não preciso mais inventar outra desculpa para não apresentar os dois aos meus amigos que não existem.

Dahlia se aproxima de mim.

— A gente devia ter ido para a Flórida ou algum lugar assim, hein?

Olho pela janela de novo.

— Não — respondo. — Adoro esta cidade. E sei que vocês queriam muito vir para cá. — Dou um sorriso rápido. — Sugiro que a gente curta ao máximo esta semana.

Ela me empurra com o ombro de brincadeira.

— Essa é a Sarai que eu conheço — diz Dahlia, sorrindo.

É, só que não sou essa pessoa...

Ela vai até Eric e o puxa pelo braço, levantando-o da cama.

— Vamos sair daqui e deixar a mocinha descansar.

Eric se levanta e se aproxima de mim. Então pega meus braços e me vira para encará-lo. Com aqueles olhos azul-bebê, ele faz a melhor expressão amuada que consegue.

— Se precisar de mim para qualquer coisa, pode me chamar que eu venho.

Concordo com a cabeça e lhe ofereço um sorriso sincero. Ele merece, por ser tão legal comigo.

— Pode deixar.

Então eu os empurro porta afora com as duas mãos.

— Eu diria para vocês não se divertirem muito sem mim, mas isso seria pedir demais.

Dahlia ri baixinho ao sair para o corredor.

— Não, não é pedir muito. — Ela levanta dois dedos. — Palavra de escoteiro.

— Acho que não é assim que se faz, Dahl — diz Eric.

Ela faz um gesto para dispensar as palavras dele.

— Trate de dormir — sugere Dahlia. — Porque amanhã você vai precisar estar novinha em folha.

— De acordo — digo, assentindo.

— Tchau, amor — diz Eric antes de eu fechar a porta.

Fico com as costas apoiadas na porta e solto um suspiro longo e profundo.

Fingir é difícil demais. Bem mais difícil do que simplesmente ser eu mesma, por mais anormal e imprudente que eu seja.

— Eu sei o que preciso fazer — digo em voz alta.

Falar sozinha é minha nova mania, porque me ajuda a visualizar e entender melhor as coisas.

Volto para a janela e olho a cidade de Los Angeles, com os braços cruzados.

— Preciso de um disfarce, mas não para me esconder de Hamburg. Só das câmeras e de qualquer outra pessoa. Eu quero que Hamburg me veja. Só assim vou conseguir entrar.


CAPÍTULO TRÊS

Sarai

Dahlia e Eric só voltam para o quarto algumas horas mais tarde, depois de escurecer. Eu já tinha tomado banho, vestido short e camiseta e deixado a luz apagada para parecer que estava dormindo. Assim que ouvi o cartão passando pela porta, pulei na cama e me espalhei pelo colchão, como sempre faço quando durmo de verdade. Eric entrou na ponta dos pés, tentando não “me acordar”, mas me virei, soltei um resmungo e abri os olhos para mostrar que acordei. Ele pediu desculpas e perguntou se eu queria ir com ele e Dahlia a uma boate ali perto, insistindo que, se eu não fosse, ele também não iria. Mas logo rejeitei essa ideia. Percebi que ele queria muito ir e não posso culpá-lo: se eu estivesse no lugar dele, não iria querer ficar em um quarto escuro de hotel às oito da noite de uma sexta-feira, em uma das cidades mais animadas dos Estados Unidos.

Eric e Dahlia saírem era exatamente do que eu precisava. Passei aquelas duas horas inteiras tentando inventar uma desculpa para explicar a eles por que eu ia sair, aonde iria e por que eles não poderiam ir junto.

Eles resolveram isso para mim.

Minutos após Eric sair do quarto, espero Dahlia — em seu próprio quarto, ao lado do nosso — tirar o biquíni e se vestir. Pelo olho mágico da minha porta, eu os vejo indo embora pelo corredor. Conto até cem enquanto ando de um lado para outro sem parar. Então pego minha bolsa e vou até a porta. Ando depressa pelo corredor na direção oposta e chego ao quarto secreto, do outro lado do prédio.

Com certa paranoia de ser flagrada, vasculho minha bolsa e encontro tudo, menos a chave do quarto. Enfim consigo senti-la entre os dedos e me apresso para entrar, travando a porta com a corrente. Abro a mala ao pé da cama e tiro minha peruca curta platinada, passando os dedos para ajeitar as mechas desalinhadas, e então a deixo sobre o abajur ao lado para que não perca a forma.

Visto um Dolce & Gabbana curtinho e me maquio com cores escuras e pesadas, o que, depois de passar um tempão praticando em casa, faço bem. Então calço as sandálias de salto alto. Andar de salto é outra coisa que passei muito tempo tentando aprender. Meu alter ego, Izabel Seyfried, saberia andar de salto e o faria bem. Por isso, eu precisava acompanhar.

Em seguida, molho o cabelo e o divido em duas partes atrás. Enrolo cada metade e cruzo uma sobre a outra na nuca. Vários grampos depois, meu longo cabelo castanho está bem preso no couro cabeludo. Visto a touca da peruca e depois a própria peruca, ajustando-a por muito tempo até deixar tudo perfeito.

Por fim, prendo uma bainha de punhal em torno da coxa e a cubro com o tecido do vestido.

Fico de pé diante do espelho de corpo inteiro e me avalio de todos os ângulos possíveis. Estar loura é estranho. Satisfeita, pego a bolsinha preta e a enfio debaixo do braço, com a pequena pistola formando certo volume nela. Estico o braço para girar a maçaneta, mas deixo minha mão cair junto ao corpo.

“Que droga eu estou fazendo?”

O que precisa ser feito.

“E por que eu estou fazendo isso?”

Porque preciso.

Não consigo tirar da cabeça as coisas que aquele homem confessou, as pessoas que matou por causa de um fetiche sexual doentio. Todas as noites desde que Victor me deixou, quando fecho os olhos, vejo o rosto de Hamburg e aquele sorriso de gelar o sangue que ele abriu quando me curvei sobre a mesa, exposta na frente dele. Vejo o rosto de sua esposa, esquelético e combalido, seus olhos fundos turvados pela resignação. Ainda sinto até o fedor da urina que secou em suas roupas e no catre infestado onde ela dormia, naquele quarto escondido.

Meu peito se enche de ar e eu o prendo por vários segundos, antes de soltar um longo suspiro.

Não posso esquecer. A necessidade de matá-lo é como uma coceira no meio das costas. Não posso alcançar naturalmente, mas vou me curvar e torcer os braços até doerem para coçar.

Não posso esquecer...

E talvez... só talvez também acabe chamando a atenção de um certo assassino que não consigo me obrigar a esquecer.

Assim que passo pela porta, deixo Sarai para trás e me torno Izabel por uma noite.

Por não ter pensado de antemão na importância de ao menos alugar um carro chique, salto do táxi a duas quadras do restaurante e ando o resto do caminho. Izabel jamais seria vista andando de táxi.

— Mesa para um? — pergunta o recepcionista assim que entro no restaurante.

Inclino a cabeça e olho para ele com um ar irritado.

— Algum problema? Não posso fazer uma refeição sozinha? Ou você está dando em cima de mim? — Abro um sorrisinho e inclino a cabeça para o outro lado. Ele está ficando nervoso. — Você gostaria de jantar comigo... — olho para o nome bordado no paletó — ... Jeffrey? — Chego mais perto. Ele dá um passo constrangido para trás.

— Hã... — Ele hesita. — Peço desculpas, senhora...

Recuo, trincando os dentes.

— Nunca me chame de senhora — digo com rispidez. — Me leve até uma mesa. Para um.

Ele assente e pede que eu o siga. Quando chego à minha mesinha redonda com duas cadeiras, no meio do restaurante, me sento e deixo a bolsa ao lado. Um garçom se aproxima quando o recepcionista se afasta e me apresenta a carta de vinhos. Eu a rejeito com um movimento dos dedos.

— Quero apenas água com uma rodela de limão.

— Pois não, senhora — diz ele, mas deixo passar.

Enquanto o garçom se afasta, começo a examinar o lugar. Há uma placa indicando a saída à minha esquerda, bem longe, perto do corredor. Há outra à minha direita, próxima à escada que leva para o segundo piso. O restaurante está praticamente igual à primeira vez que vim: escuro, não muito cheio e bastante silencioso, embora desta vez eu ouça jazz baixinho vindo de algum lugar. Ao observar o recinto, paro de repente ao ver a mesa à qual me sentei com Victor quando vim com ele, meses atrás.

Eu me perco na memória, vendo tudo exatamente como aconteceu. Quando olho para as duas pessoas sentadas no outro lado do salão, só consigo me ver com Victor:

— Venha cá — diz ele, em um tom de voz mais delicado.

Deslizo os poucos centímetros que nos separam e me sento encostada a ele.

Seus dedos dançam pela minha nuca quando ele puxa minha cabeça para perto de si. Meu coração bate descompassado quando ele roça os lábios na lateral do meu rosto. De repente, sinto sua outra mão entrando pelo meio das minhas coxas e subindo por baixo do vestido. Minha respiração para. Devo abrir as pernas? Devo ficar imóvel e travá-las? Sei o que quero fazer, mas não sei o que devo fazer, e minha mente está a ponto de desistir.

— Tenho uma surpresa para você esta noite — murmura ele no meu ouvido.

Sua mão se aproxima mais do calor no meio das minhas pernas.

Gemo baixinho, tentando não deixar que ele perceba, embora tenha certeza absoluta de que percebeu.

— Que tipo de surpresa? — pergunto, com a cabeça inclinada para trás, apoiada em sua mão.

— Vai querer algo mais? — Ouço uma voz, e sou arrancada do meu devaneio.

O garçom está segurando o cardápio. Minha água com uma rodela de limão na borda do copo já está diante de mim.

Um pouco confusa de início, apenas assinto, mas faço que não em seguida.

— Ainda não sei — respondo, enfim. — Deixe o cardápio. Talvez eu peça mais tarde.

— Pois não — diz o garçom.

Ele deixa o cardápio na mesa e vai embora.

Olho para a varanda e para as mesas encostadas no balaústre requintado. Onde Hamburg pode estar? Sei que ele está no andar de cima porque Victor disse que ele ficava por lá. Mas onde? Eu me pergunto se ele já me viu, e no mesmo instante meu estômago se embrulha de nervoso.

Não, não posso parecer nervosa.

Endireito as costas na cadeira e tomo um gole da água. Deixo o dedo mindinho levantado, o que me faz parecer muito mais rica, ou apenas mais esnobe. Fico observando os clientes indo e vindo, escuto sua conversa supérflua e me pego imaginando qual dos casais que estão ali poderia acabar na mansão de Hamburg no fim de semana, ganhando muito dinheiro para deixar que ele os veja foder.

Então olho para o arranjo de flores vermelhas em um pequeno vaso de vidro no centro da minha mesa. Pego o celular na bolsa, finjo digitar um número e o coloco perto do ouvido, para que ninguém ache que estou falando sozinha.

— Este recado é para Arthur Hamburg — digo em voz baixa, inclinando-me um pouco para a frente a fim de que o microfone escondido no vaso de flores capte minha voz. — Com certeza você se lembra de mim, não é? Izabel Seyfried. Há quanto tempo, não?

Com cuidado, olho para os lados, esperando ver um ou dois homens parrudos de terno se aproximando de mim com armas em punho.

— Não estou sozinha — continuo —, por isso nem pense em fazer alguma idiotice. A gente precisa conversar.

Olhando para a varanda acima de mim, tento descobrir onde ele pode estar, torcendo para que esteja ali. Alguns minutos tensos se passam, e, quando começo a pensar que a noite foi em vão e que eu estava mesmo falando sozinha, noto um movimento no piso superior, logo acima da saída à minha direita. Meu coração bate forte quando vejo a figura alta e escura sair das sombras e descer a escada.

Eu me lembro desse homem de ombros largos, cabelo grisalho e uma covinha no meio do queixo. É o gerente do restaurante, Willem Stephens, que já encontrei aqui uma vez.

Ele se aproxima da minha mesa sem expressar nenhuma emoção, com as mãos enormes cruzadas à frente, as costas retas, o queixo anguloso imóvel.

— Boa noite, srta. Seyfried. — A voz dele é profunda e sinistra. — Posso perguntar onde está seu dono?

Levanto os olhos para encará-lo, dou um sorrisinho, tomo um gole da minha água e devolvo o copo à mesa, sem pressa. Cada fibra do meu ser está gritando, dizendo como fui idiota em vir até aqui. Por mais que eu saiba que é verdade, não importa. Não é o medo que me faz tremer por dentro, é a adrenalina.

— Victor Faust não é meu dono — explico, com calma. — Mas ele está aqui. Em algum lugar. — Um sorriso tênue e dissimulado toca meus lábios.

Os olhos de Stephens percorrem o salão sutilmente e voltam a me encarar.

— Por que está aqui? — pergunta ele, perdendo um pouco o ar de gerente sofisticado.

— Tenho negócios a discutir com Arthur Hamburg — respondo, confiante. — É do maior interesse dele marcar um encontro privado comigo. Aqui. Hoje. De preferência agora.

Tomo outro gole.

Noto que o pomo de adão de Stephens se move quando ele engole em seco, bem como os contornos de seu queixo quando ele cerra os dentes. Ele olha para o lugar de onde veio, no andar de cima, e percebo um aparelhinho preto escondido em seu ouvido esquerdo. Parece que ele está ouvindo alguém falar. Eu chutaria que é Hamburg.

Ele me encara de novo, com os olhos escuros e cheios de ódio, mas mantém o semblante inexpressivo com a mesma perfeição de Victor.

Ele descruza os braços, estende a mão direita para mim e diz:

— Por aqui.

Ele só deixa os braços penderem, relaxados, quando me levanto. Sigo Stephens pelo restaurante e escada acima, para o piso da varanda.

Apenas duas coisas podem acontecer: ou esta será minha primeira noite como assassina ou a última da minha vida.


CAPÍTULO QUATRO

Sarai

— Se encostar em mim — digo para o guarda-costas de terno à porta da sala particular de Hamburg —, enfio suas bolas em um moedor de carne.

As narinas do segurança se dilatam e ele olha para Stephens.

— Você solicitou uma reunião com o sr. Hamburg — diz Stephens atrás de mim. — É claro que vamos revistá-la antes para verificar se está armada.

Droga!

Calma. Fique calma. Faça o que Izabel faria.

Respiro fundo, encarando-os com desprezo e um ar ameaçador. Então jogo minha bolsinha preta no segurança. Ele pega a bolsa quando ela bate em seu peito.

— Acho que está bem claro que eu não conseguiria esconder uma arma em um vestido como este, a menos que a enfiasse na boceta — digo, olhando para Stephens. — Minha arma está na bolsa. Mas nem pense em tocar...

— Deixem a moça entrar — ordena da porta uma voz familiar.

É Hamburg, ainda balofo e grotesco como antes, usando um terno imenso que parece em vias de estourar se ele respirar fundo demais.

Abro um leve sorriso para o segurança, que me encara com olhos assassinos. Conheço esse olhar, até demais. O homem tira a pistola e me devolve a bolsa.

— Sr. Hamburg — diz Stephens —, eu deveria ficar na sala com o senhor.

Hamburg balança a papada, rejeitando a sugestão.

— Não, vá cuidar do restaurante. Se essas pessoas tivessem vindo me matar, não seriam tão óbvias. Eu vou ficar bem.

— Pelo menos deixe Marion à porta — sugere Stephens, olhando para o guarda-costas.

— Sim — concorda Hamburg. — Você fica aqui. Não deixe ninguém interromper nossa... — diz ele, me olhando com frieza — reunião, a menos que eu peça. Se em algum momento você não ouvir minha voz por mais de um minuto, entre na sala. Como precaução, é claro.

Ele abre um sorrisinho para mim.

— É claro. — Imito Hamburg e sorrio também.

Ele dá um passo para o lado e me convida a entrar.

— Pensei que isso tivesse acabado, srta. Seyfried.

Hamburg fecha a porta.

— Sente-se — pede ele.

A sala é bem grande, com paredes lisas e arredondadas, sem cantos, de um lado a outro. Uma série de grandes quadros retratando o que parece ser cenas bíblicas rodeia uma grande lareira de pedra. Cada imagem é emoldurada em uma caixa de vidro, com luzes na parte de baixo. A sala é pouco iluminada, como o restaurante, e o cheiro é de incenso ou talvez de óleo aromático de almíscar e lavanda. Na parede à minha esquerda, há uma porta aberta que leva a outra sala, onde a luz cinza-azulada de várias telas de TV brilha nas paredes. Chego mais perto para me sentar na poltrona de couro com encosto alto diante da escrivaninha e espio dentro da saleta. É como eu imaginava. As telas mostram várias mesas do restaurante.

Hamburg fecha essa porta também.

— Não, está longe de acabar — respondo, enfim.

Cruzo as pernas e mantenho a postura ereta, o queixo levantado com ar confiante e os olhos em Hamburg, enquanto ele atravessa a sala na minha direção. Puxo a barra do vestido para cobrir completamente o punhal preso na coxa. Minha bolsa está no meu colo.

— Vocês já tiraram minha esposa de mim. — A indignação transparece na voz dele. — Não acham que foi o suficiente?

— Infelizmente, não. — Abro um sorriso malicioso. — Não foi o suficiente para você e sua esposa tirarem uma vida? Não, não foi — respondo por ele. — Vocês tiraram muitas vidas.

Hamburg morde o interior da bochecha e se senta atrás da escrivaninha, de frente para mim. Ele apoia as mãos gordas sobre o tampo de mogno. Percebo quanto ele quer me matar ali mesmo onde estou. Mas não fará isso porque acredita que não estou sozinha. Ninguém em sã consciência faria algo assim, vir até aqui sozinha, inexperiente e desprevenida.

Ninguém, a não ser eu.

Preciso garantir que ele continue acreditando que tenho cúmplices até descobrir como vou matá-lo e sair da sala sem ser pega. O pedido de Hamburg para que o guarda-costas entrasse na sala depois de um minuto sem ouvir sua voz pôs mais um obstáculo no plano que, na verdade, nunca tive de fato.

— Bem, devo dizer uma coisa — diz Hamburg, mudando de tom. — Você é deslumbrante com qualquer tipo de peruca. Mas admito que prefiro a morena.

Ele acha que meu cabelo castanho-avermelhado era uma peruca. Ótimo.

— Você é doente. Sabe disso, certo? — Tamborilo com as unhas no braço da poltrona.

Hamburg abre um sorriso medonho. Estremeço por dentro, mas mantenho a compostura.

— Eu não matei aquelas pessoas de propósito. Elas sabiam no que estavam se metendo. Sabiam que, no calor do momento, alguém poderia perder o controle.

— Quantas?

Hamburg estreita os olhos.

— O que importa isso, srta. Seyfried? Uma. Cinco. Oito. Por que não diz logo o motivo da sua visita? Dinheiro? Informação? A chantagem assume muitas formas, e não seria a primeira vez que enfrento uma. Sou um veterano.

— Fale sobre a sua esposa — peço, ganhando tempo e fingindo ainda ser quem dá as cartas. — Antes de “ir direto ao assunto”, quero entender sua relação com ela.

Uma parte de mim quer saber de verdade. E estou incrivelmente nervosa; sinto um enxame zumbindo no meu estômago. Talvez jogar conversa fora ajude a acalmar minha mente.

Hamburg inclina a cabeça para o lado.

— Por quê?

— Apenas responda à pergunta.

— Eu a amava muito — responde ele, relutante. — Ela era a minha vida.

— Aquilo é amor? — pergunto, incrédula. — Você manchou a memória dela ao dizer que ela era uma viciada em drogas que se suicidou, só para salvar a própria pele, e chama isso de amor?

Noto uma luz se movendo no chão, por baixo da porta da sala de vigilância. Não havia ninguém lá dentro antes, ao menos que eu tivesse visto.

— Como a chantagem, o amor assume muitas formas. — Hamburg apoia as costas na poltrona de couro, que range, cruzando os dedos roliços sobre a enorme barriga. — Mary e eu éramos inseparáveis. Não éramos como outras pessoas, outros casais, mas o fato de sermos tão diferentes não significava que nos amávamos menos do que os outros. — Os olhos dele cruzam os meus por um momento. — Tivemos sorte por encontrar um ao outro.

— Sorte? — pergunto, pasma com o comentário. — Foi sorte duas pessoas doentes se encontrarem e se unirem para fazer coisas doentias com os outros? Não entendo.

Hamburg balança a cabeça como se fosse um velho sábio e eu fosse jovem demais para entender.

— Pessoas diferentes como Mary e eu...

— Doentes e dementes — corrijo. — Não diferentes.

— Chame como quiser — diz ele, com ar de resignação. — Quando você é tão diferente assim da sociedade, do que é aceitável, encontrar alguém como você é algo muito raro.

Sem perceber, cerro os dentes. Não porque Hamburg esteja me irritando, mas porque nunca imaginei que esse homem nojento pudesse me dizer qualquer coisa que me fizesse pensar na minha situação com Victor, ou qualquer coisa que eu pudesse entender.

Afasto esse pensamento.

A luz fraca sob a porta da sala de vigilância se move de novo. Finjo não ter notado, sem querer dar a Hamburg qualquer motivo para achar que estou pensando em outra saída.

— Vim aqui saber nomes — digo de repente, sem ter pensado bem a respeito.

— Que nomes?

— Dos seus clientes.

Algo muda nos olhos de Hamburg, ele vai tomar o controle da situação.

— Você quer os nomes dos meus clientes? — pergunta ele, desconfiado.

Que merda...

— Pensei que você e Victor Faust já estivessem de posse da minha lista de clientes.

Continue séria. Não perca a compostura. Merda!

— Sim, estamos, mas me refiro àqueles que você não mantinha nos registros.

Acho que vou vomitar. Parece que minha cabeça está pegando fogo. Prendo a respiração, torcendo para ter me livrado dessa.

Hamburg me examina em silêncio, vasculhando meu rosto e minha postura em busca de qualquer sinal de autoconfiança abalada. Ele coça o queixo gordo e cheio de dobras.

— Por que você acha que existe uma lista fantasma?

Suspiro meio aliviada, mas ainda não estou fora de perigo.

— Sempre existe uma lista fantasma — afirmo, embora não faça nem ideia do que estou dizendo. — Quero pelo menos três nomes que não estejam no registro que nós temos.

Sorrio, sentindo que recuperei o controle da situação.

Até ele falar:

— Diga você três nomes da lista que já tem, e eu dou o que você quer.

É oficial: perdi o controle.

Engulo em seco e me controlo antes de parecer “pega no flagra”.

— Você acha que eu carrego a lista na bolsa? — pergunto com sarcasmo, tentando continuar no jogo. — Nada de negociações ou meios-termos, sr. Hamburg. O senhor não está em condições de fazer nenhuma barganha.

— É mesmo? — pergunta ele, sorrindo.

Ele suspeita de mim. Posso sentir. Mas vai garantir que está certo antes de dar o bote.

— Isso não está em discussão. — Eu me levanto da poltrona de couro, enfiando a bolsa debaixo do braço, mais frustrada do que antes por ter que entregar minha arma.

Pressiono os dedos na escrivaninha de mogno, apoiando meu peso neles ao me curvar um pouco na direção de Hamburg.

— Três nomes, ou saio daqui e Victor Faust entra para espalhar os seus miolos naquele belo quadro do menino Jesus atrás de você.

Hamburg ri.

— Esse não é o menino Jesus.

Ele se levanta junto comigo, alto, enorme e ameaçador.

Enquanto vasculho minha mente e tento entender como ele descobriu que sou uma farsante, Hamburg se adianta e anuncia seu raciocínio como um chute na minha boca.

— É engraçado, Izabel, você vir aqui pedir nomes que não aparecem em uma lista que você... — diz, apontando para a minha bolsa — ... nem carrega consigo, porque como você saberia que os nomes que eu daria não estão nela?

Estou muito ferrada.

— Vou dizer o que eu acho — continua ele. — Acho que você veio aqui sozinha por causa de alguma vingança contra mim. — Ele balança o indicador. — Porque eu me lembro de cada detalhe da porra daquela noite. Cada merda de detalhe. Especialmente a sua expressão quando percebeu que Victor Faust tinha vindo matar minha esposa em vez de mim. Era a expressão de alguém pega de surpresa, que não fazia ideia de por que estava ali. Era a expressão de alguém que não está familiarizada com o jogo.

Ele tenta sorrir com gentileza, como se quisesse demonstrar alguma espécie de empatia pela minha situação, mas o que leio em seu rosto é cinismo.

— Acho que, se houvesse mais alguém aqui com você, ele já teria aparecido para salvá-la, porque é óbvio que você está ferrada.

A porta do quarto principal se abre, o guarda-costas entra e a tranca. Por uma fração de segundo, tive a esperança de que fosse Victor vindo me salvar na hora certa. Mas foi só um desejo. O guarda-costas me olha com desprezo. Hamburg acena para ele, que começa a tirar o cinto.

Meu coração afunda até o estômago.

— Sabe — diz Hamburg, dando a volta na escrivaninha —, na primeira vez que a gente se viu, lembro que fiz um acordo com Victor Faust. — Ele aponta para mim. — Você se lembra disso, não?

Hamburg sorri e apoia a mão gorda nas costas da poltrona na qual eu estava sentada, virando-a para mim.

Todo o meu corpo está tremendo; parece que o sangue que passa pelas minhas mãos virou ácido. Ele corre pelo meu coração e pela minha cabeça tão rápido que quase desmaio. Começo a tentar alcançar meu punhal, mas eles estão perto demais, aproximando-se pelos dois lados. Não tenho como enfrentar os dois ao mesmo tempo.

— Como assim? — pergunto, tropeçando nas palavras, tentando ganhar um pouco de tempo.

Hamburg revira os olhos.

— Ora, por favor, Izabel. — Ele gira um dedo no ar. — Apesar do que aconteceu naquela noite, fiquei decepcionado de verdade por vocês dois irem embora antes de cumprir o acordo.

— Eu diria que, em vista do que aconteceu, o acordo não vale mais nada.

Ele sorri para mim e se senta na poltrona de couro. Percebo Hamburg espiar de relance o guarda-costas, dando uma ordem só com o olhar.

Antes que eu consiga me virar, o segurança prende minhas duas mãos nas minhas costas.

— Você vai cometer um erro do caralho se fizer isso! — grito, tentando me livrar das garras do segurança.

Ele me leva à força até uma mesa quadrada e me joga sobre ela. Meus reflexos não são rápidos o suficiente e meu queixo bate no mármore duro. O gosto metálico do sangue enche minha boca.

— Me solte! — Tento chutá-lo. — Me solte agora!

Hamburg ri de novo.

— Vire a cabeça dela para esse lado — ordena ele.

Dois segundos depois, meu pescoço é torcido para o outro lado e mantido ali, minha bochecha esquerda pressionada contra o mármore frio.

— Quero ver a cara dela enquanto você a fode. — Hamburg me olha de novo. — Então vamos continuar do ponto onde paramos naquela noite, tudo bem? Você concorda, Izabel?

— Vai se foder!

— Ah, não, não — diz ele, ainda com o riso na voz. — Não sou eu quem vai foder você. Você não faz o meu tipo. — Seus olhos famintos percorrem o corpo do segurança que está me pressionando por trás.

— Eu vou matar você — digo, cuspindo por entre os dentes. A mão do segurança sobre a minha cabeça impede que eu a mexa. — Vou matar vocês dois! Me estupre! Vamos lá! Mas os dois vão estar mortos antes que eu saia daqui!

— Quem disse que você vai sair daqui? — provoca Hamburg.

O zíper da calça dele está aberto; sua mão direita está parada ao lado da braguilha, como se ele estivesse tentando manter algum autocontrole e não se masturbar ainda.

Então Hamburg acena com dois dedos para o guarda-costas, que me mantém imóvel segurando meus cabelos da nuca.

— Lembre-se disso — diz ele ao segurança. — Ela não vai sair daqui.

Sinto a mão direita do guarda-costas soltar meu cabelo e se mover entre as minhas pernas. Enquanto ele ergue meu vestido, aproveito para alcançar o punhal na minha coxa e tirá-lo da bainha, golpeando atrás em um ângulo desajeitado. O segurança grita de dor e me solta. Puxo o punhal ainda firme na mão, que está coberta de sangue. Ele cambaleia para trás, com a mão na base do pescoço, o sangue jorrando entre seus dedos.

— Sua puta do caralho! — ruge Hamburg, saltando da poltrona e vindo atrás de mim como um elefante descontrolado, a calça caindo de sua cintura flácida.

Corro na direção dele com o punhal levantado e colidimos no meio da sala. Seu peso me joga de bunda no chão e o punhal cai da minha mão, deslizando pelo piso ensanguentado. De pé, Hamburg se abaixa para me segurar, mas me reclino no chão e levanto o pé com toda a força, enfiando o salto da minha sandália na lateral do seu rosto. Ele geme e cambaleia para trás, com a mão na bochecha.

— Eu vou acabar com você! Puta que pariu! — berra ele.

Engatinho na direção do punhal, vendo o segurança no chão, em meio a uma poça de sangue. Ele está engasgando com os próprios fluidos; tentando em vão encher os pulmões de ar.

Pego o punhal com firmeza e rolo no chão enquanto Hamburg se aproxima, derrubando a poltrona de couro. Fico de pé e corro até a mesa, empurrando-a na direção dele. Hamburg tenta tirá-la da frente, mas o móvel balança sobre a base e ele acaba tropeçando. Seu corpo desaba no chão de barriga para baixo e a mesa cai quase na sua cabeça. Salto sobre suas costas e monto em seu corpo obeso. Meus joelhos mal tocam o chão. Agarro seu cabelo, puxo a cabeça dele para trás na minha direção e aperto o punhal em sua garganta, imobilizando-o em segundos.

— Pode me matar! Foda-se! Você não vai sair viva daqui mesmo. — A voz de Hamburg é rouca, sua respiração, rápida e ofegante, como se ele tivesse acabado de tentar correr uma maratona. O cheiro de seu suor e de seu medo invade minhas narinas.

Ocupada com a lâmina em sua garganta, me assusto com o som de batidas fortes na porta. A distração me pega desprevenida. Hamburg consegue se erguer debaixo de mim como um touro, rolando de lado e me derrubando no chão. Deixo cair o punhal em algum lugar, mas não tenho tempo para procurá-lo porque Hamburg consegue se levantar e parte para cima de mim. Ouço a voz de Stephens do outro lado da porta, que vibra com seus socos.

Rolo para sair do caminho antes que Hamburg consiga pular em cima de mim, pego o objeto mais próximo — um peso de papel de pedra, bem pesado, que estava na mesa antes de ser derrubada — e golpeio Hamburg com ele. O som do osso de seu rosto quebrando com o impacto faz meu estômago revirar. Hamburg cai para trás, cobrindo a cara com as mãos.

As batidas na porta ficam mais fortes. Numa fração de segundo, levanto a cabeça e vejo a porta sacudindo com violência no batente. Preciso sair daqui. Agora. Meu olhar varre a sala procurando o punhal, mas não há mais tempo.

Corro para a sala de vigilância, contornando os obstáculos.

Graças a Deus, há outra porta lá dentro. Abro a porta e desço correndo a escada de concreto, torcendo para que seja uma saída e eu não encontre mais ninguém no caminho.


CAPÍTULO CINCO

Sarai

Desço a escada de concreto de dois em dois degraus, segurando no corrimão de metal pintado com as mãos ensanguentadas, até chegar ao térreo. Uma placa vermelha com a palavra SAÍDA está à minha frente. Corro pela passagem mal-iluminada, onde uma lâmpada fluorescente pisca acima de mim e torna o lugar ainda mais ameaçador. Empurro com força a barra da porta com as duas mãos e ela se abre para um beco. Um homem de terno está sentado no capô de um carro, fumando, quando saio para a rua.

Eu fico paralisada.

Ele olha para mim.

Eu olho para ele.

Ele nota o sangue nas minhas mãos e olha de relance para a porta, depois para mim.

— Vá — diz ele, acenando para a caçamba de lixo à minha direita.

Sei que não tenho tempo para ficar confusa nem para perguntar por que ele está me deixando ir embora, mas pergunto assim mesmo.

— Por que você está...?

— Apenas vá!

Ouço passos ecoando na escada atrás da porta.

Lanço um olhar agradecido ao homem e dou a volta na caçamba, desço o beco e me afasto do restaurante. Ouço um tiro segundos depois que dobro a esquina e torço para que seja aquele homem fingindo atirar em mim.

Evito espaços abertos e corro por trás de prédios, protegida pela escuridão, tanto quanto minhas sandálias de salto alto permitem. Quando sinto que estou longe o suficiente para parar um pouco, tento me esconder atrás de outra caçamba e tiro as sandálias. Arranco a peruca loura e a jogo no lixo.

Não consigo respirar. Estou enjoada.

Meu Deus, estou enjoada...

Encosto na parede de tijolos atrás de mim, arqueando as costas e apoiando as mãos nos joelhos. Vomito com violência no chão, meu corpo rígido, o esôfago ardendo.

Pego as sandálias e saio correndo de novo na direção do hotel, tentando esconder o sangue das mãos e do vestido, mas percebo que não é tão fácil. Recebo alguns olhares desconfiados ao passar depressa pela recepção, mas tento ignorá-los e torço para que ninguém chame a polícia.

Em vez de arriscar ser vista por outras pessoas, subo pela escada até o oitavo andar. Quando chego lá, e depois de tudo o que corri, sinto que minhas pernas vão ceder. Encosto na parede e recupero o fôlego, com os joelhos tremendo descontroladamente. Meu peito dói, como se cada respiração trouxesse poeira, fumaça e cacos microscópicos de vidro para o fundo dos pulmões.

O quarto que divido com Eric está trancado e eu não tenho a chave. Aliás...

— Puta merda...

Jogo a cabeça para trás, fecho os olhos e suspiro, arrasada.

Não estou mais com a minha bolsa. Eu a perdi em algum momento da luta na sala de Hamburg. A chave do meu quarto. Meu celular. Minha arma. Meu punhal. Não tenho mais nada.

Bato na porta, mas Eric não está no quarto. Não esperava que estivesse, na verdade, já que não são nem onze da noite. Só para o caso de estar enganada, no entanto, tento o quarto de Dahlia.

— Dahl! Você está aí? — Bato na porta com pressa, tentando não incomodar os outros hóspedes.

Nenhuma resposta.

Já desistindo, jogo as sandálias no chão e apoio as mãos na parede. Minha cabeça desaba. Mas então ouço um clique baixinho e vejo a porta do quarto de Dahlia se abrindo devagar. Levanto a cabeça e a vejo parada ali.

Sem me demorar para questionar a expressão estranha no rosto dela, entro no quarto só para sair do corredor. Eric está sentado na poltrona perto da janela. Noto que seu cabelo está meio bagunçado. O de Dahlia também.

Meu instinto está tentando chamar minha atenção, mas não me importo. Acabei de apunhalar um homem no pescoço e de tentar matar outro. Quase fui estuprada. Estava correndo pelos becos de Los Angeles para fugir de homens armados que vinham atrás de mim. Nada que esses dois façam pode superar isso.

— Meu Deus, Sarai — diz Dahlia, aproximando-se de mim. — Isso é sangue?

A expressão estranha e silenciosa que ela exibia quando entrei no quarto desaparece em um instante quando ela me vê no quarto bem-iluminado. Seus olhos se arregalam, cheios de preocupação.

Eric se levanta da poltrona.

— Você está sangrando. — Ele também me olha de cima a baixo. — O que aconteceu?

Os olhos de Dahlia correm pela minha roupa e pelo meu cabelo preso dentro da touca da peruca.

— Por que... Hã, por que você está vestida assim?

Olho para mim mesma. Não sei o que dizer, então não digo nada. Eu me sinto como um cervo diante dos faróis de um carro, mas minha expressão continua firme e sem emoções, talvez um pouco confusa.

— Você encontrou Matt — acusa Dahlia, começando a levantar a voz. — Puta que pariu, Sarai. Você foi se encontrar com ele, não foi?

Sinto os dedos dela apertando meu antebraço.

Eu me desvencilho de Dahlia e caminho até o banheiro para tirar a touca do cabelo. Enquanto tiro os grampos, noto uma camisinha boiando na privada.

Eric entra no banheiro atrás de mim. Ele sabe que eu vi.

— Sarai, e-eu... Eu sinto muito — diz ele.

— Não se preocupe — respondo, tirando o último grampo e deixando-o na bancada creme.

Passo por Eric e volto para o quarto. Dahlia está me encarando, com o rosto cheio de vergonha e arrependimento.

— Eu...

Ergo a mão e olho para os dois.

— Não, é sério. Não estou brava.

— Como assim? — pergunta Dahlia.

Eric parece agitado. Ele põe a mão na nuca e passa os dedos pelo cabelo.

— Olhe, sem querer ofender — digo a Eric —, mas tenho fingido tudo com você desde a primeira vez que a gente ficou junto.

Ele arregala os olhos, embora tente não deixar que o choque e a mágoa da minha revelação transpareçam demais. Grande parte de mim se sente bem por dizer a verdade. Não por vingança, mas porque eu precisava tirar isso do peito. Mas admito que, depois de descobrir que os dois têm trepado pelas minhas costas, uma pequena parte de mim também fica feliz em magoá-lo. Acho que a vingança sempre encontra um caminho, mesmo nos gestos mais insignificantes.

— Fingido?

— Não tenho tempo para isso — digo, indo na direção da porta. — Vocês dois podem ficar juntos. Não tenho nada contra. Não estou brava, só não me importo mesmo. Preciso ir.

— Espere... Sarai.

Eu me viro para olhar Dahlia. Ela está muito chocada, mal sabe o que pensar. Depois de alguns segundos de silêncio, fico impaciente e a olho com cara de “vai, desembucha”.

— Para você... tudo bem mesmo?

Uau, não sirvo mesmo para o estilo de vida deles. O estilo de vida normal. Nem consigo entender essas coisas de namoro, melhores amigas, infidelidade, competição e joguinhos psicológicos. A cara que eles fazem, tão vazia e mesmo assim tão cheia de incredulidade e dúvida, por causa de uma situação que, para mim, não é tão importante... Tenho coisas mais graves com que me preocupar.

Suspiro, aborrecida com as perguntas vagas e confusas dos dois.

— Sim, por mim, tudo bem — digo, e então me viro para Eric, estendendo a mão. — Preciso da chave do nosso quarto.

Relutante, ele enfia a mão no bolso de trás e pega a chave. Tomo da sua mão, saio dali e vou para o quarto ao lado. Eric vem atrás e tenta falar comigo enquanto guardo minhas coisas na mala.

— Sarai, eu nunca quis...

Eu me viro de repente e o encaro.

— Tudo bem, só vou dizer isto uma vez, depois você muda de assunto ou volta para lá e fica com a Dahlia. Não estou nem aí para o que vocês dois fazem, mas, por favor, não apele para esse clichê de novela de que você nunca quis que isso acontecesse, porque... é muito idiota. — Eu rio baixinho, porque acho idiota mesmo. — Só falta você dizer que o problema não é comigo, é com você. Caramba, você faz ideia do que isso parece? É tão difícil assim acreditar quando digo que não me importo e que estou falando sério? Sem joguinhos. É verdade. — Balanço a cabeça, levanto as mãos e digo: — Não. Me. Importo.

Viro para a mala, fecho o zíper, abro a parte lateral e pego a chave do quarto secreto. Ainda bem que eu tinha uma cópia.

— Preciso ir — digo, andando até a porta e passando por Eric.

— Aonde você vai?

— Não posso contar, mas me escute, Eric, por favor. Se alguém aparecer me procurando, finja que não me conhece. Diga o mesmo para Dahlia. Finjam que nunca me viram na vida. Aliás, quero que vocês dois saiam hoje. Vão para qualquer lugar. Só... não fiquem aqui.

— Você vai me dizer o que aconteceu ou por que está toda ensanguentada? Sarai, você está me deixando assustado pra cacete.

— Eu vou ficar bem — digo, atenuando minha expressão. — Mas prometa que você e Dahlia vão fazer exatamente o que falei.

— Você vai me contar um dia?

— Não posso.

O silêncio entre nós fica mais pesado.

Enfim, abro a porta e saio para o corredor.

— Acho que sou eu quem deveria estar pedindo desculpas.

— Por quê?

Eric fica na porta, com os braços caídos ao lado do corpo.

— Por pensar em outra pessoa durante todo esse tempo em que eu estava com você. — Olho para o chão.

Nós nos encaramos por um breve momento e ninguém diz mais nada. Ambos sabemos que estamos errados. E acho que nós dois estamos aliviados por tudo ter vindo à tona.

Não há mais nada a dizer.

Eu me afasto pelo corredor na direção oposta à do meu quarto secreto e dou a volta por trás, para que Eric não veja aonde estou indo. Quando me tranco no quarto, só consigo desabar na cama. A exaustão, a dor e o choque de tudo o que aconteceu esta noite me atingem em cheio assim que a porta se fecha, e me engolem como uma onda. Eu me jogo de costas no colchão. Minhas panturrilhas doem tanto que duvido conseguir andar sem mancar amanhã.

Fico olhando para o teto escuro até ele desaparecer e eu pegar no sono.


CAPÍTULO SEIS

Sarai

Um tum! pesado me acorda, mais tarde naquela noite. Eu me levanto como uma catapulta.

Vejo dois homens no meu quarto: um desconhecido morto no chão e Victor Faust de pé sobre o corpo dele.

— Levante-se.

— Victor?

Não acredito que ele está aqui. Devo estar sonhando.

— Levante-se, Sarai. AGORA! — Victor me pega pelo cotovelo, me arranca da cama e me põe de pé.

Não consigo nem pegar minhas coisas, ele já está abrindo a porta e me puxando para o corredor com ele, segurando forte a minha mão.

Disparamos juntos pelo corredor e outro homem aparece virando a esquina, de arma em punho. Victor aponta sua 9mm com silenciador e o derruba antes que o cara consiga atirar. Ele passa pelo corpo me puxando, seus dedos fortes afundando na minha mão enquanto corremos para a escada. Ele abre a porta, me empurra para a frente e nós subimos depressa os degraus de concreto. Um andar. Três. Cinco. Minhas pernas estão me matando. Acho que não consigo andar por muito mais tempo. Enfim, no quinto andar, Victor me puxa para outro corredor e rumo a um elevador nos fundos.

Quando as portas do elevador se fecham e estamos só nós dois lá dentro, finalmente tenho a oportunidade de falar.

— Como você sabia que eu estava aqui? — Mal consigo recuperar o fôlego, esgotada pela correria infinita e pela adrenalina, mas acho que sobretudo porque Victor está de pé ao meu lado, segurando minha mão.

Meus olhos começam a arder com as lágrimas.

Engulo o choro.

— O que você estava pensando, Sarai?

— Eu...

Victor segura meu rosto com as duas mãos e me empurra contra a parede do elevador, pressionando ferozmente seus lábios nos meus. Sua língua se entrelaça na minha e sua boca tira meu fôlego em um beijo apaixonado que, enfim, faz meus joelhos cederem. Toda a força que eu estava usando para manter o corpo ereto desaparece quando os lábios dele me tocam. Ele me beija com fome, com raiva, e eu derreto em seus braços.

Então ele se afasta, as mãos fortes nos meus braços, me segurando contra a parede do elevador. Nós nos encaramos pelo que parece ser uma eternidade, nossos olhos paralisados em uma espécie de contemplação profunda, nossos lábios a centímetros de distância. Só quero prová-los de novo.

Mas ele não deixa.

— Responda — exige Victor, estreitando seus olhos perigosos em reprovação.

Já esqueci a pergunta.

Ele me sacode.

— Por que você veio aqui? Tem ideia do que você fez?

Balanço a cabeça em um movimento curto e rápido, parte de mim mais preocupada com seu olhar ameaçador do que com o que ele está dizendo.

A porta do elevador se abre no subsolo e eu não tenho tempo para responder, pois Victor mais uma vez pega minha mão e me puxa para que o siga. Serpenteamos por um grande depósito com caixas em pilhas altas encostadas nas paredes e depois por um longo corredor escuro que leva a um estacionamento. Victor enfim solta minha mão e eu o sigo até um carro parado entre dois furgões pretos com o logotipo do hotel nas laterais. Dois bipes ecoam pelo ambiente e os faróis do carro piscam quando nos aproximamos, iluminando a parede de concreto em frente. Sem perder tempo, me sento no banco do passageiro e fecho a porta.

Segundos depois, Victor está dirigindo casualmente pelo estacionamento até a rua.

— Eu queria que ele morresse — respondo, enfim.

Victor não me olha.

— Bom, você fez um excelente trabalho — rebate ele, sarcástico.

Ele vira para a direita no semáforo, e o carro ganha velocidade quando chegamos à rodovia.

Fico magoada por suas palavras, mas sei que ele tem razão, por isso não discuto. Fiz merda. Uma merda muito grande.

Mas não me dou conta do tamanho dela até Victor dizer:

— Os seus amigos podiam ter morrido. Você podia ter morrido.

Sinto meus olhos se arregalarem além dos limites e me viro mais um pouco para encará-lo.

— Ah, não... Victor, o quê... Eles estão bem?

Sinto que vou vomitar de novo.

Victor me olha por um instante.

— Estão ótimos. O primeiro quarto que os capangas de Hamburg revistaram estava vazio — diz ele, voltando a olhar para a estrada. — Eu cheguei quando eles estavam saindo. Segui um deles até o quarto onde você estava escondida, deixei que ele destrancasse a porta e então ataquei.

As chaves do quarto. Minhas duas chaves extras estavam na bolsa que perdi no restaurante de Hamburg. E os números dos quartos estavam escritos nas capinhas de papel que as protegiam. Eu estava tão preocupada em esconder minha arma e meu punhal que nem pensei em esconder as chaves.

— Merda! — Também olho para a estrada. — E-eu perdi a bolsa no restaurante. As chaves do meu quarto estavam dentro dela. Deixei um rastro para eles seguirem!

Felizmente, eu não tinha uma chave extra do quarto de Dahlia, senão ela e Eric já poderiam estar mortos.

Onde é que eu estava com a cabeça?!

— Não, você deixou literalmente as chaves do seu quarto com o nome do hotel gravado. Sarai, eu devia ter matado você há muito tempo e poupado toda essa confusão para cima de você e de mim.

Eu me viro para encará-lo; a raiva e a mágoa pesando no meu peito.

— Você não está falando sério.

Ele faz uma pausa e me olha. Suspira.

— Não, não estou falando sério.

— Nunca mais me diga isso. Nunca mais me diga uma coisa dessas, ou eu mato você e poupo a mim de toda essa confusão — rebato, desviando o olhar.

— Você não está falando sério — diz Victor.

Olho mais uma vez para aqueles olhos ameaçadores verde-azulados que me fizeram tanta falta.

— Não. Mas acho que isso seria o mais sensato.

— Bom, você não foi a campeã da sensatez hoje, então acho que estou seguro ao menos pelas próximas 24 horas.

Escondo o sorriso.

— Senti sua falta — digo de maneira distante, olhando para a estrada.

Victor não responde, mas admito que seria estranho se respondesse. A despeito de sua falta de emoção, porém, sei que ele também sentiu saudade de mim. Aquele beijo no elevador disse coisas que palavras jamais conseguiriam.

Ele pega uma saída e para o carro debaixo de um viaduto. Puxa o freio de mão e a área ao redor desaparece na escuridão quando ele desliga os faróis.

— O que a gente está fazendo aqui?

— Você precisa ligar para os seus amigos.

— Por quê?

Ele tira um celular do porta-luvas entre nós.

— Mande eles voltarem para o Arizona. Faça ou diga o que for preciso para que eles saiam de Los Angeles. Quanto antes, melhor.

Ele coloca o telefone na minha mão. De início, só olho para o aparelho, mas ele me pressiona com aquele olhar, aquele que grita “vamos lá, faça isso de uma vez”, mas que só alguém como eu, alguém que conhece Victor, seria capaz de notar.

Giro o celular nas mãos, depois o seguro firmemente e digito o número de Eric. Mas então mudo de ideia, desligo no primeiro toque e ligo para Dahlia.

Ela atende no quinto toque.

Respiro fundo e faço o que sei fazer melhor: minto.

— A verdade é que vocês me magoaram. Duvido que um dia eu consiga perdoar você ou Eric pelo que fizeram.

— Sarai... Meu Deus, me desculpe, estou me sentindo muito mal. A gente não queria que isso chegasse a esse ponto. Juro para você. Não sei o que aconteceu...

— Escute, Dahlia, por favor, só me escute.

Ela fica quieta.

Começo a choradeira. Nunca imaginei que eu seria capaz de chorar sob demanda e de forma tão falsa.

— Eu quero acreditar em você. Quero conseguir confiar em você de novo, mas você era minha melhor amiga e me traiu. Preciso de um tempo sozinha e quero que você e Eric voltem para o Arizona. Hoje. Acho que não vou aguentar ver vocês de novo... Espere, onde você está, agora?

Acabo de me dar conta de que, se ela e Eric estiverem no hotel, a essa altura ela já sabe que dois homens foram mortos a tiros no andar do quarto deles.

— A gente está em uma festa em um terraço — conta ela. — T-tudo bem por você? Achei que não tinha nada a ver a gente sair, mas o Eric falou que você insistiu...

— Não, tudo bem — digo, cortando-a. — Insisti mesmo. Onde ele está, agora?

— Deixei Eric lá no terraço para a gente poder conversar. Está muito barulhento lá em cima. Que número é esse de onde você está ligando?

— É o celular de um amigo. Perdi o meu. O Eric por acaso avisou que se alguém procurar por mim...

— Avisou, sim — interrompe Dahlia. — Que confusão é essa, afinal? Meu Deus, Sarai, esquece por um momento esse lance com Eric e me conta o que está acontecendo, por favor. O sangue. As roupas esquisitas que você estava usando e aquele troço na sua cabeça. Era uma touca de peruca? Você está metida em alguma encrenca, eu sei. Sei que você me odeia, e tem todo o direito de odiar, mas, por favor, conte o que aconteceu.

— Não posso contar, porra! — grito, deixando o choro distorcer minha voz. — Caramba, Dahlia, faça o que eu pedi. Pelo menos isso! Você deu para o meu namorado! Por favor, voltem para o Arizona, me deixem esfriar a cabeça e depois eu volto para casa. Talvez aí a gente possa conversar. Mas agora façam o que eu estou pedindo. Tudo bem?

Ela não responde por um momento, e um longo silêncio se forma entre nós.

— Tudo bem — concorda ela. — Vou dizer ao Eric que a gente precisa ir embora.

— Obrigada.

Estou apenas um pouco aliviada. Não vou me sentir bem com isso até saber que eles chegaram em casa sãos e salvos.

Desligo sem dizer mais uma palavra.

— Bom, isso foi bastante convincente — observa Victor, levemente impressionado.

— Acho que foi.

— Eu sei que a sua amiga acreditou — acrescenta ele. — Mas eu não acreditei em uma só palavra.

Eu me viro para ele. Victor me conhece tão bem quanto eu o conheço, parece.

— É porque nem uma palavra era verdade.

Ele deixa por isso mesmo e nós saímos de baixo do viaduto.

Chegamos a uma casa perdida no final de uma estrada isolada nos arredores da cidade, empoleirada no alto de uma colina com uma vista quase perfeita para a cidade lá embaixo. Uma piscina de formato irregular começa no lado esquerdo da casa e serpenteia por trás, a água azul-clara iluminada por lâmpadas submersas parece luminescente. O lugar está silencioso. Só ouço o vento passando pela mata cerrada que contorna o lado direito e os fundos da casa, impedindo uma visão em 360 graus da paisagem iluminada de Los Angeles. Quando nos aproximamos da porta, uma mulher robusta usando uniforme azul de empregada nos recebe. Ela tem cabelo preto encaracolado e pele morena. Suas bochechas são volumosas, envolvendo seus olhos castanho-escuros pequenos e brilhantes, que fitam atentamente Victor e a mim.

— Por favor, entrem — diz ela, com um sotaque hispânico familiar.

A mulher fecha a porta. A casa cheira a limpa-vidro e a uma mistura pouco natural de cheiros adocicados que só pode vir de algum tipo de aromatizador de ambientes artificial. Parece que todas as janelas foram abertas, permitindo que a brisa noturna de verão se espalhasse pela casa. Não se parece em nada com as mansões ricas onde já estive, mas é impecável e aconchegante, e penso que eu deveria pelo menos ter tomado um banho antes de vir. Minha pele e minhas roupas ainda estão manchadas de sangue...

Victor está usando uma calça preta e uma camisa apertada de mangas compridas que adere a cada músculo de seus braços e seu peito, com os punhos desabotoados e arregaçados até os cotovelos. A camisa está por fora da calça e os dois botões de cima estão abertos. Sapatos pretos chiques e informais calçam seus pés. Um relógio brilhante de prata adorna seu pulso direito, e não consigo deixar de notar a solitária veia grossa que percorre as costas de sua mão até o osso de seu pulso. Quando ele segue a empregada pela grande entrada e se vira momentaneamente de costas para mim, vejo o cabo da arma saindo da cintura de sua calça, com a barra da camisa branca enfiada atrás.

Ele me olha, para e estende o braço, em um gesto para que eu ande à sua frente. Tremo de leve quando sua mão toca minhas costas perto da cintura.

Antes que eu tenha tempo de me sentir deslocada ao lado dele, Fredrik, o amigo e cúmplice sueco de Victor que conheci no restaurante de Hamburg há tanto tempo, entra na sala pelas grandes portas de vidro que dão para o quintal dos fundos.


CAPÍTULO SETE

Sarai

— Você chegou cedo — comenta Fredrik com um sorriso mortal, porém inimaginavelmente sexy.

As roupas dele são bem parecidas com as de Victor, mas, em vez de camisa de botão, Fredrik está vestindo uma camiseta branca apertada que adere à sua forma esbelta e máscula. Ele está descalço.

A primeira vez que vi Fredrik, pensei que era impossível haver alguém mais bonito. Com cabelo macio, quase preto, e olhos escuros e misteriosos, suas feições parecem ter sido esculpidas por algum artista famoso. Mas sempre achei que havia algo de sombrio e assustador naquele homem. Um lado dele que eu, particularmente, não faço questão de conhecer. Para mim, basta o jeito como ele era quando nos encontramos: cordial, encantador e misterioso, uma linda máscara que ele usa para esconder a fera que há por trás.

Victor olha para seu relógio caro.

— Só dez minutos mais cedo — comenta ele.

Fredrik sorri ao se aproximar, os dentes brancos reluzindo contra a pele bronzeada.

— Sim, mas você sabe como eu sou.

Victor assente, mas não alonga o assunto. A mim, só resta imaginar o que aquilo significa.

— É bom ver você — diz Fredrik, observando-me do topo de sua altura considerável e presença avassaladora. Ele se inclina, pega minha mão e a beija, logo acima dos nós dos dedos. — Ouvi dizer que você matou um homem hoje.

Ele apruma as costas e solta minha mão. Um sorriso perturbador e orgulhoso surge em seu rosto, os cantos dos olhos se aquecendo com alguma lembrança ou... prazer, como se a ideia de matar alguém o deliciasse de alguma forma.

Olho para Victor à minha direita. Ele assente, respondendo à pergunta estampada no meu rosto. O guarda-costas que apunhalei no pescoço morreu?

Olho para Fredrik e respondo sem rodeios.

— Acho que matei.

Um leve sorriso se abre nos cantos dos lábios de Fredrik, e ele olha de relance para Victor, sem mover a cabeça.

— E você se sente bem com isso? — pergunta Fredrik.

— Para dizer a verdade, sim — respondo sem demora. — O desgraçado mereceu.

Fredrik e Victor parecem envolvidos em algum tipo de conversa secreta. Odeio isso.

Enfim, Fredrik diz para Victor em voz alta:

— Você arrumou sarna para se coçar, Faust.

Ele então se vira de costas para nós e anda na direção das portas de vidro. Nós o seguimos para o lado de fora, passando pela parte coberta do quintal e descendo uma escada de pedra que leva a um enorme pátio, também de pedra, que se abre em todas as direções. O pátio é decorado com mesas e cadeiras de ferro batido e uma cama com dossel ao ar livre.

Eu me sento ao lado de Victor em um sofá.

— Como é que você sabe? — pergunto a Fredrik, mas então me viro para Victor e digo: — E você ainda não me contou como sabia que eu estava aqui.

Na verdade, isso não importa muito, só quero encará-lo nos olhos de novo. Quero ficar sozinha com Victor, mas por enquanto vou precisar me contentar com os 7 centímetros entre nossos corpos, sentados lado a lado.

— Melinda Rochester me contou — explica Fredrik com um sorriso conivente. Começo a perguntar “E quem é Melinda Rochester”, mas ele diz: — Bem, ela contou para todo mundo, na verdade. Noticiário do Canal 7. Um homem morto a punhaladas atrás de um restaurante de Los Angeles.

Começo a me retorcer por dentro. Espero que as câmeras não tenham me mostrado com nitidez.

Eu me viro para Victor, com a preocupação transparecendo no rosto.

— Eu estava de peruca loura — digo, tentando encontrar alguma coisa, qualquer coisa que eu tenha feito certo. — Fiquei com a cabeça baixa... a maior parte do tempo.

Desisto. Sei que o que fiz vai continuar me perseguindo. Suspiro e olho para as mãos ensanguentadas no meu colo.

— E encontrar você foi fácil — continua Victor. — A sra. Gregory me ligou depois que você saiu do Arizona. Ela estava preocupada com a sua vinda para Los Angeles e achou que eu precisava saber.

Viro a cabeça para encará-lo.

— O quê? Dina sabia onde você estava? — Sinto a pele ao redor das sobrancelhas se enrijecendo.

— Não — responde ele, com delicadeza. — Ela não sabia onde eu estava, mas sabia como entrar em contato comigo.

Essas palavras me magoam. Engulo em seco a sensação de ser traída por eles.

— Falei para ela entrar em contato comigo só em caso de emergência — acrescenta Victor. — Caso algo acontecesse com você.

— Você deixou para Dina uma forma de entrar em contato — digo, ríspida —, mas para mim, nada. Não acredito que você fez isso.

— Eu queria que você tocasse a sua vida. Mas, caso os irmãos de Javier descobrissem onde você estava, ou você decidisse fazer uma proeza como a de hoje, eu queria ficar sabendo.

Não consigo olhar para Victor. Tento chegar mais alguns centímetros para o lado a fim de aumentar a distância entre nós. Ainda assim, mesmo que esteja magoada e enfurecida com ele, sinto vontade de me aproximar de novo. Mas me mantenho firme e me recuso a deixá-lo perceber que o poder que ele exerce sobre mim faz a raiva que sinto parecer um chilique.

— Não acredito que Dina escondeu isso de mim — digo em voz alta, ainda que esteja falando mais comigo mesma.

— Ela escondeu de você porque eu disse a ela quanto isso era importante.

— Bom, de qualquer maneira — interrompe Fredrik, sentando-se na poltrona ao lado do sofá —, parece que você se meteu em uma situação da qual não vai conseguir sair tão facilmente, se é que vai conseguir.

— Por que a gente está aqui? — pergunto, aborrecida.

Fredrik ri baixinho.

— Aonde mais você iria?

— Eu precisava tirar você do hotel — explica Victor.

— Espere um pouco. Eu não matei aquele homem atrás do restaurante. Tudo aconteceu na sala particular de Hamburg, no andar de cima.

Recordo o homem que vi do lado de fora, atrás do restaurante, aquele que me deixou fugir, e meu coração afunda.

— Hamburg não deixaria que a polícia acreditasse que o assassinato aconteceu lá dentro, porque eles confiscariam a memória da câmera de vigilância e veriam o que realmente aconteceu.

Não estou entendendo nada. Nadinha.

— Eles não iam querer que a polícia soubesse o que realmente aconteceu?

Fredrik se reclina na poltrona e ergue um pé descalço, apoiando o tornozelo sobre o outro joelho, e estende os braços sobre os da poltrona.

Victor balança a cabeça.

— Preciso mesmo explicar isso para você, Sarai?

Sua vaga irritação me pega de surpresa. Olho para ele e levo alguns segundos para entender tudo sem que ele precise explicar.

— Ah, entendi — digo, olhando um de cada vez. — Hamburg não quer que a polícia se envolva porque corre o risco de se expor. O que ele fez, então? Só levou o corpo para fora? Preparou a situação para parecer um assalto comum? Não muito diferente do que ele fez naquela noite em que a gente estava na mansão dele, imagino.

Paro por aí porque Fredrik está presente. Não sei qual o grau de intimidade entre ele e Victor, nem mesmo se Fredrik sabe o que aconteceu na noite em que Victor matou a esposa de Hamburg.

Os olhos de Victor sorriem de leve para mim: sua maneira de me mostrar quanto lhe agrada eu ter entendido tudo. Ainda fingindo estar aborrecida, não retribuo o olhar da forma que ele deve esperar.

A empregada aparece com um balde chique de gelo, de madeira, com três garrafas de cerveja dentro. Fredrik pega uma, então ela nos oferece. Victor pega uma garrafa, mas recuso, mal conseguindo olhar a mulher nos olhos. Estou absorta demais nos acontecimentos da noite, que não me saem da cabeça.

A empregada vai embora logo depois, sem dizer uma palavra.

— O que você quis dizer com os irmãos de Javier?

Victor abre sua garrafa e a põe na mesa.

— Dois deles, Luis e Diego, assumiram os negócios de Javier dias depois que você o matou.

Por um instante, o rosto de Javier surge em minha mente: sua expressão chocada e ainda orgulhosa, os olhos arregalados, o corpo caindo no chão segundos depois de eu meter uma bala em seu peito.

Afasto a imagem.

Eu me lembro de Luis e Diego. Diego é aquele que tentou me estuprar quando eu estava na fortaleza no México, aquele que Javier castrou como punição.

— Eles estão me procurando?

Victor toma um gole de cerveja e devolve a garrafa à mesa com calma.

— Que eu saiba, não. Estou monitorando a fortaleza há meses. Os irmãos de Javier são amadores. Não têm ideia do que fazer com tanto poder. Duvido até que vejam você como ameaça.

Fredrik toma um gole de cerveja e prende a garrafa entre as pernas.

— Não fique tão aliviada assim — diz ele. — É melhor ser perseguida por amadores do que por Hamburg e aquele braço direito dele.

Um nó nervoso se forma no fundo do meu estômago. Olho de relance para Victor, buscando respostas.

— Willem Stephens — esclarece Victor — faz todo o serviço sujo de Hamburg. Hamburg em si é covarde, tão perigoso quanto o pedófilo gente boa da vizinhança. Mal consegue atirar em um alvo imóvel, e trairia alguém em dois minutos para se salvar. — Ele arqueia uma sobrancelha. — Stephens, por outro lado, tem uma extensa formação militar, é ex-mercenário e trabalhou para uma Ordem do mercado negro em 1986.

— Uma o quê?

— Uma Ordem como a nossa — explica Victor —, mas que aceita contratos particulares. Eles fazem coisas que outros agentes se recusam a fazer, vendem seus serviços basicamente para qualquer um.

— Ah... Então, resumindo, ele mata gente inocente por dinheiro.

Lembro o que Victor me contou, meses atrás, sobre a natureza dos contratos particulares, como pessoas eram assassinadas por motivos fúteis como traição conjugal ou vingança. A Ordem de Victor só trabalha com crime, ameaças sérias a um grande número de pessoas ou ideias que poderiam ter um impacto negativo na sociedade ou na vida como um todo.

Engulo em seco.

— Bom, ele me viu, com certeza. — Levanto as mãos e tiro o cabelo do rosto, passando as mãos no alto da cabeça. — Foi ele quem me levou para o segundo andar, para a sala de Hamburg. — Olho para Victor. — Desculpa, Victor. Eu... eu não sabia de nada disso.

Fredrik ri baixinho e diz:

— Algo me diz que, mesmo se você soubesse, teria ido lá de qualquer maneira.

Desvio o olhar de Victor e olho para baixo de novo, nervosa, esfregando os dedos ensanguentados uns nos outros. Fredrik tem razão. Odeio admitir, mas ele tem razão. Eu teria ido para o restaurante mesmo assim. Teria tentado matar Hamburg mesmo assim. Mas, se eu soubesse de tudo isso, acho que teria pensado em um plano melhor.

De repente, sinto que alguma coisa toma meu corpo e me tira o fôlego.

— Victor... Meu celular... — Eu me levanto do sofá, com o cabelo castanho-avermelhado caindo pelos ombros, batendo em meus braços nas partes em que o sangue secou e formou uma crosta áspera. — O número de Dina está no meu celular. Merda. Merda! Victor, Stephens vai atrás dela! Preciso voltar para o Arizona!

Começo a seguir para a porta dos fundos, mas Victor me alcança antes que eu atravesse o caminho decorado com pedras lisas.

— Espere aí.

Olho para baixo e vejo os dedos dele em volta do meu pulso. Seus hipnóticos olhos verde-azulados me fitam com desejo e devoção. Devoção. Algo que nunca vi no olhar de Victor antes.

Fredrik fala atrás de nós, me tirando do transe em que Victor me colocou.

— Eu vou cuidar disso — diz ele.

Desvio o olhar de Victor para Fredrik, que então ganha importância, considerando que a vida de Dina está em jogo.

— Como? — pergunto.

Victor me leva de volta para o sofá.

Fredrik pega o celular da mesa à frente, procura um número e toca na tela para ligar. Então encosta o celular no ouvido.

Victor me faz sentar perto dele de novo. Estou concentrada demais em Fredrik no momento para notar que Victor fez questão de se sentar tão perto que sua coxa está encostada na minha. Quero aproveitar o momento de proximidade, mas não posso. Estou preocupada com Dina.

Fredrik se reclina na poltrona de novo, balançando o pé descalço apoiado no joelho. Seu rosto fica alerta quando alguém atende à ligação.

— Em quanto tempo você consegue chegar a Lake Havasu City? — pergunta Fredrik ao telefone. Ele ouve por um segundo e assente. — Mando o endereço por mensagem de texto assim que eu desligar. Vá para lá o mais rápido que puder. Uma mulher mora lá. Dina Gregory. — Ele me olha de relance, para se certificar de que disse o nome certo. Como não o corrijo, volta a falar ao telefone. — Tire-a da casa e a leve para Amelia, em Phoenix. Sim. Sim. Não, não pergunte nada a ela. Só tome cuidado para ninguém machucar Dina. Sim. Me ligue neste número assim que estiver com ela.

Fredrik assente mais algumas vezes. Meu coração está batendo tão forte que parece pronto para pular do peito. Espero que a pessoa com quem ele está falando consiga encontrar Dina a tempo.

Fredrik desliga e parece abrir uma tela de texto no celular. Ele olha para mim, mas é Victor quem dá o endereço da sra. Gregory. Fredrik o digita e deixa o celular na mesa.

— Meu contato está a apenas trinta minutos de lá — explica Fredrik, olhando primeiro para mim. Então se vira para Victor. — O que você quer que eu faça?

Ele levanta as costas da poltrona e apoia os cotovelos nos joelhos, deixando as mãos entre eles. Mesmo em uma posição relaxada, ele consegue parecer elegante, importante e perigoso.

— Ainda preciso que você verifique o que discutimos ontem — diz Victor, e fica ainda mais claro, para mim, que Fredrik recebe ordens dele, embora não pareça ser do tipo que recebe ordens de ninguém. Mas está claro que os dois têm uma relação forte. — E, se você não se importa, preciso da sua casa emprestada por esta noite.

Os olhos escuros de Fredrik me encaram, e o traço de um sorriso aparece em seu rosto. Ele se levanta e pega o celular da mesa, escondendo-o na mão.

— Não precisa dizer mais nada. Vou sair daqui em vinte minutos. Eu ia mesmo me encontrar com alguém hoje, então está combinado.

A atitude de Victor muda um pouco, o que percebo no mesmo instante. Ele está encarando Fredrik, do outro lado da mesa do pátio, com um olhar cansado e cauteloso.

— Você não vai fazer o que estou pensando...

Ouço com atenção sem nem ao menos tentar disfarçar. Eu quero que eles saibam que estou bisbilhotando, porque é frustrante nenhum dos dois me oferecer qualquer explicação sobre esses comentários internos.

Fredrik ergue um lado da boca em um meio sorriso. Ele balança a cabeça de leve.

— Não, esta noite, não, infelizmente. Mas já faz algum tempo. Vou precisar que você me ajude com isso em breve.

Os olhos dele passam por mim e sinto um calafrio percorrer minhas costas. Não consigo decidir se é um arrepio bom ou assustador.

— Você terá sua oportunidade logo, logo — assegura Victor.

Fredrik dá a volta na mesa.

— Lamento por ter que encurtar nossa reunião.

— Tudo bem — digo. — Obrigada por ajudar com Dina. Você avisa quando receber aquela ligação?

Fredrik assente.

— Com certeza. Farei isso.

— Obrigada.

Victor acompanha Fredrik até a porta de vidro e os dois a atravessam. Fico sentada, observando-os do outro lado do pátio de pedra e tentando ouvir o máximo que posso, mas eles fazem questão de falar em voz baixa. Isso também me deixa frustrada. E pretendo informar Victor disso.


CAPÍTULO OITO

Victor

Fredrik fecha a porta de correr feita de vidro.

— Ela não sabe nada sobre Niklas? — pergunta ele, como eu já previa.

— Não, mas vou ter que contar. Ela vai precisar ficar atenta o tempo todo. Agora mais do que nunca.

— Ela não pode ficar aqui por muito tempo — aconselha Fredrik, olhando, através do vidro, Sarai sentada no sofá lá fora e nos observando. — Você também não.

— Eu sei. Quando Niklas descobrir que ela participou do assassinato no restaurante de Hamburg, vai saber na mesma hora que também estou envolvido nisso. Ele não é bobo. Se Sarai está viva, Niklas vai saber que estou tentando ajudá-la.

— E como ele desconfia de que agora trabalho com você — acrescenta Fredrik —, ela corre tanto perigo perto de mim quanto de você.

— É verdade.

Fredrik balança a cabeça para mim, com um sorriso escondido no fundo dos olhos.

— Não entendo esse envolvimento. Respeito você como sempre, respeitei, Victor, mas nunca vou entender a necessidade de um homem amar uma mulher.

— Eu não estou apaixonado por ela. Ela só é importante para mim.

— Talvez não — retruca ele, indo para a cozinha. — Mas parece que o amor e o envolvimento trazem as mesmas consequências, meu amigo. — Sigo Fredrik até a cozinha iluminada e ele abre um armário. — Mas estou do seu lado. O que você precisar que eu faça para ajudar, é só pedir. — Ele aponta para mim perto do armário, agora com um pão na mão.

A empregada de Fredrik entra na cozinha, roliça e mais velha do que nós dois juntos, exatamente o tipo de mulher que jamais o atrairia, e foi por isso que ele a contratou. Ela lhe pergunta em espanhol se pode voltar para casa e ver a família mais cedo hoje. Fredrik responde em espanhol, concordando. Ela assente respeitosamente e passa por mim na sala. De soslaio, eu a observo pegar uma bolsa volumosa de couro marrom do chão, perto da espreguiçadeira, e colocá-la no ombro. Depois ela vai até a porta, fechando-a devagar ao sair.

Sarai está de pé nas sombras da sala quando desvio o olhar da porta. Nem ouvi a porta de vidro correr quando ela entrou, e pelo jeito Fredrik também não.

Ela vai para a cozinha iluminada, de braços cruzados, os dedos delicados segurando seus bíceps femininos, mas bem-definidos. Ela é linda demais, mesmo quando está desgrenhada assim.

— Quanto tempo vocês planejavam me deixar lá fora? — pergunta ela, com um traço de irritação na voz.

— Ninguém disse que você precisava ficar lá, gata — responde Fredrik.

Ele gosta dela, isso é óbvio para mim, e ele deve saber. Mas também sabe que vou matá-lo. Ainda assim, minha confiança em Fredrik é maior do que minha preocupação de que ele volte para o lado sombrio e a machuque. Fredrik Gustavsson é uma fera do tipo mais carnal, que adora mulheres e sangue, mas tem limites e critérios, além de levar a lealdade, o respeito e a amizade muito a sério. Sua lealdade a mim é, afinal, o motivo para ele trair a Ordem todos os dias me ajudando.

Sarai se aproxima de mim e me olha nos olhos, inclinando um pouco a cabeça para o lado. O cheiro de sua pele e o calor tênue que emana dela quase me fazem perder o controle. Tenho conseguido me conter bastante desde que a beijei no elevador. Pretendo continuar assim.

Ela não diz nada, mas continua me encarando como se esperasse alguma coisa. Fico confuso. Ela inclina a cabeça para o outro lado e seu olhar se suaviza, embora eu não saiba ao certo por quê. Parece maliciosa e cheia de expectativa.

Ouço Fredrik rir baixinho e a porta da geladeira se fechar, mas não tiro os olhos de Sarai.

— As coisas são tão mais fáceis do meu jeito. — Ouço-o dizer, com um sorriso na voz.

— Entre em contato comigo assim que tiver a informação sobre Niklas — peço, ainda olhando nos olhos de Sarai e ignorando o comentário dele. — E quando souber pelo seu contato se Dina Gregory está a salvo em Phoenix.

— Pode deixar — diz Fredrik, e então vai para a porta do corredor que leva ao seu quarto. Mas ele para e olha para nós. — Se você não se importa...

Enfim desvio o olhar de Sarai e dou atenção total a Fredrik.

— Não se preocupe — interrompo —, eu sei onde fica o quarto de hóspedes.

Ele enfia na boca um sanduíche que mal notei que ele preparava e morde, rasgando um pedaço de pão. Eu o vejo piscando para Sarai antes de desaparecer da sala. Foi algo inofensivo, uma menção ao que ele acha que pode acontecer entre nós quando sair, e não uma tentativa de flerte.

— Que informação sobre Niklas? — pergunta Sarai, seus traços suaves agora encobertos pela preocupação.

Estendo a mão e passo os dedos por algumas mechas do cabelo dela.

— Preciso contar muita coisa para você — anuncio, tirando a mão antes de perder o controle e acabar tocando nela mais do que pretendo. — Sei que você deve estar exausta. Por que não toma um banho e fica à vontade primeiro? Depois conversamos.

Um sorrisinho suave emerge em seus lábios, mas logo desaparece em seu rosto enrubescido.

— Você quer dizer que eu estou nojenta? — pergunta ela, tímida. — Esse é o seu jeito de me dizer que preciso lavar meu corpo nojento?

— Na verdade, sim — admito.

Por um momento ela faz uma careta e parece ofendida, mas então só balança a cabeça e dá risada. Admiro isso em Sarai. Admiro muita coisa nela.

— Tudo bem. — Sua expressão brincalhona fica séria de novo. — Mas você precisa me contar tudo, Victor. E eu sei que você deve ter muito para contar, mas saiba que também preciso dizer muita coisa para você.

Eu já esperava isso. E, antes que ela fique na ponta dos pés, incline o corpo na minha direção e me beije, já sei que, quando ela sair do banho, vou precisar decidir o que vamos fazer. Vou precisar tomar algumas decisões importantes, que nos afetarão.

Porque de uma coisa eu tenho certeza: Sarai não pode voltar para casa.


Sarai

Quando volto, Victor está na sala, acomodado na beira do sofá, curvado sobre a mesinha de centro feita de vidro que está cheia de pedaços de papel e fotografias. Entro, mas ele continua remexendo neles sem erguer a cabeça para me olhar. Só que ele não me engana, sei que sente a minha presença tanto quanto quero que ele sinta.

Vasculhei o guarda-roupa de Fredrik procurando uma camiseta branca, que vesti sobre meus seios nus. Infelizmente, tive que usar a mesma calcinha de antes, mas as cuecas boxer de Fredrik não são exatamente o tipo de lingerie que eu gostaria de usar para seduzir Victor. Só uma camiseta e uma calcinha. Claro que fiz questão de vestir o mínimo possível, porque desejo Victor e não tenho nenhuma vergonha de deixar isso claro. Mas ainda custo a acreditar que estou no mesmo cômodo que ele, depois de meses achando que ele havia ido embora para sempre.

Acho que o beijo no elevador é onde minha mente ficou suspensa, como se o tempo tivesse parado naquele momento e cada parte de mim ainda deseje que aquele instante continue. Contudo, o resto do mundo continua passando ao meu redor.

Eu me sento ao lado de Victor, recolhendo um pé descalço para o sofá e enfiando-o sob a minha coxa.

— O que é isso tudo? — Olho para os papéis e fotografias na mesa.

Ele mexe em alguns pedaços de papel, empilhando-os.

— É um serviço — explica ele, colocando a foto de um homem de camiseta regata na pequena pilha. — Agora eu trabalho por conta própria.

Isso me surpreende.

— Como assim? — Acho que sei o que ele quer dizer, mas custo a acreditar.

Ele pega a pilha de papéis e bate as laterais na mesa para ajeitar todas as folhas. Então enfia o maço em um envelope de papel pardo.

— Eu saí da Ordem, Sarai. — Ele olha para mim.

Victor aperta as pontas do fecho prateado para fechar o envelope.

Meus pensamentos se embaralham, minhas palavras ficam confusas na ponta da língua. Luto, desesperada, para acreditar no que ele acaba de me contar.

— Victor... mas... não...

— Sim — confirma ele, virando-se para mim e me olhando bem nos olhos. — É verdade. Eu me rebelei contra a Ordem, contra Vonnegut, e agora eles estão atrás de mim. — Ele volta a mexer nos outros papéis na mesa. — Mas ainda preciso trabalhar, por isso agora trabalho sozinho.

Balanço a cabeça sem parar, sem querer engolir a verdade. A ideia de Victor sendo caçado por aqueles que o fizeram ser como ele é, por qualquer um, faz um pânico febril correr pelas minhas veias.

Solto um longo suspiro.

— Mas... mas e Fredrik? E Niklas? Victor, eu... O que está acontecendo?

Ele respira fundo e deixa a folha de papel cair suavemente na mesa, então reclina as costas no sofá.

— Fredrik ainda trabalha para a Ordem. Está lá dentro. Ele vigia Niklas e... — seus olhos cruzam com os meus por um instante —... tem me ajudado a manter você a salvo.

Antes que eu consiga fazer mais perguntas presas na garganta, Victor se levanta e continua a falar, enquanto fico sentada e o observo com a boca semiaberta e as pernas dobradas sobre a almofada.

— Como você sabe, quando alguém está sob suspeita de trair a Ordem, é imediatamente eliminado. Mas acredito que Niklas deixou Fredrik vivo e não transmitiu suas preocupações a Vonnegut pelo simples fato de que Niklas está usando Fredrik para me encontrar. Assim como deixou você viva todo este tempo, esperando que um dia você o levasse a mim.

O que mais me choca não é o que Victor diz, mas o que ele deixa de fora. Tiro as duas pernas de cima do sofá e pressiono os pés no chão de madeira, apoiando as mãos nas almofadas.

— Victor, o que você está me dizendo? Quer dizer que... Niklas continua com Vonnegut?

Espero que não seja isso que ele esteja tentando me dizer. Espero de todo o coração que minha decisão de deixar Niklas vivo aquele dia no hotel, quando ele atirou em mim, não tenha sido o maior erro da minha vida.

Os olhos de Victor vagam para a porta de vidro, e sinto que uma espécie de sofrimento infinito o consome, mas ele não deixa transparecer.

— Você estava lá. Eu disse para o meu irmão que, se ele decidisse continuar na Ordem caso eu resolvesse sair, eu não ficaria bravo com ele. Dei a ele a minha palavra, Sarai. — Victor vai até a porta de vidro, cruza os braços e olha para a piscina azul iluminada que reluz sob o céu cinzento. — Agora é hora de Niklas brilhar, e não vou tirar isso dele.

— Que absurdo! — Salto do sofá com os punhos fechados. — Ele está atrás de você, não é? — Cerro os dentes e contorno a mesinha de centro. — Caralho, é isso, Victor? Para provar seu valor para Vonnegut, ele foi encarregado de matar você. Aquele merda do seu irmão traiu você. Ele acha que vai pegar o seu lugar na Ordem. Puta que pariu, não acredito...

— É o que é, Sarai — interrompe Victor, virando-se para me encarar. — Mas, neste momento, Niklas é a menor das minhas preocupações.

Cruzando os braços, começo a andar de um lado para outro, olhando os veios claros e escuros da madeira sob meus pés descalços. Minhas unhas ainda têm o esmalte vermelho-sangue de duas semanas atrás.

— Por que saiu da Ordem?

— Eu tive que sair. Não tinha escolha.

— Não acredito.

Victor suspira.

— Vonnegut descobriu sobre a gente — conta ele, ganhando minha atenção total. — Foi Samantha... na noite em que ela morreu. Antes que eu saísse da Ordem, encontrei Vonnegut em Berlim, o primeiro encontro frente a frente que tive com ele em meses. Foi em uma sala de interrogatório. Quatro paredes. Uma porta. Uma mesa. Duas cadeiras. Somente eu e Vonnegut sentados frente a frente, com uma luz brilhando no teto acima de nós. — Victor olha para trás pela porta de vidro e depois continua: — No início, eu estava certo de que ele tinha me levado para lá com a intenção de me matar. Eu estava preparado...

— Para morrer? — Se Victor responder que sim, vou dar um tapa na cara dele.

— Não — responde ele, e consigo respirar um pouco melhor. — Eu fui para lá preparado. Raptei a mulher de Vonnegut antes de ir encontrá-lo. Fredrik a manteve em uma sala, pronto para fazer... as coisas dele, caso fosse necessário.

No mesmo instante, quero perguntar o que são as “coisas” de Fredrik, mas deixo a pergunta de lado por enquanto e digo:

— Se Vonnegut quisesse matar você, a esposa dele seria a sua moeda de troca.

De costas para mim, ele assente.

— Samantha estava sendo vigiada pela Ordem. Provavelmente há muito tempo.

— Eles desconfiavam da traição dela? Por que não a mataram, então, como fizeram com a mãe de Niklas, ou como queriam fazer com Niklas?

Victor se vira para me encarar de novo.

— Eles não desconfiavam dela, Sarai, ela era... — Victor respira fundo e aperta os lábios.

— Ela era o quê? — Chego mais perto dele. Não gosto do rumo que a conversa está tomando.

— Ela era mais leal à Ordem do que eu jamais poderia ter imaginado — conta ele, e isso fere meu coração. — Sentado naquela sala com Vonnegut, quanto mais ele falava, mais eu começava a entender que Samantha me traiu da mesma forma que Niklas. Vonnegut me contou coisas que ele não tinha como saber. Ele sabia que eu ajudei você. Em algum momento antes de morrer, naquela noite, Samantha conseguiu passar informações a Vonnegut sobre nossa estadia por lá.

— Não acredito nisso. — Golpeio o ar com a mão diante de mim. — Samantha morreu tentando me proteger. Já falamos sobre isso. Não acredito em você, Victor. Ela era uma boa pessoa.

— Ela era boa manipuladora, Sarai, nada mais do que isso.

Balanço a cabeça, ainda sem acreditar.

— Foi Niklas quem contou a Vonnegut que você me ajudou. Só pode ter sido. Niklas sabia até que você tinha me levado para a casa de Samantha.

— Sim, mas Niklas não sabia que eu fiz Samantha provar nossa comida antes de a gente comer, naquela noite. Assim que Vonnegut mencionou quanto eu ainda desconfiava dela depois de tantos anos, eu soube que ela havia me traído.

— Mas isso não faz nenhum sentido. — Começo a andar pela sala de novo, de braços cruzados e com uma das mãos apoiada no rosto. — Por que ela me protegeria de Javier?

— Porque ela não era leal a Javier.

Jogo as mãos para o ar, atônita com aquela revelação.

— Não dá para confiar em ninguém — digo, me jogando no sofá e olhando para o nada.

— Não, não dá — concorda Victor, e eu olho para cima, detectando um significado oculto por trás de suas palavras. — Agora talvez você entenda por que eu não me envolvo com ninguém. Não é só o trabalho, Sarai. As pessoas em geral não são confiáveis, especialmente na minha profissão, na qual a confiança é tão rara que não vale a pena perder tempo e esforço procurando por ela.

— Mas você parece confiar em Fredrik — observo, olhando para Victor do sofá. — Por que me trouxe logo aqui? Não aprendeu a lição com Samantha?

Sua expressão fica um pouco mais sombria, ressentida pela minha acusação.

— Eu nunca disse que confiava em Fredrik. Mas no momento ele é meu único contato dentro da Ordem e, nos últimos sete meses, não fez nada que não o tornasse digno de confiança. Ao contrário, fez tudo para provar sua lealdade a mim.

— Mas isso não significa que seja verdade.

— Não, você tem razão, mas logo vou saber com cem por cento de certeza se Fredrik é confiável ou não.

— Como?

— Você vai descobrir comigo.

— Por que se dar a esse trabalho? Você disse que a confiança é tão rara que não vale o esforço.

— Você faz muitas perguntas.

— Pois é, acho que faço. E você não responde o suficiente.

— Não, acho que não. — Victor abre um sorrisinho, e meu coração se derrete instantaneamente em uma poça de mingau.

Desvio os olhos dos dele e disfarço meus sentimentos.

— Não estou segura aqui — digo, encarando-o novamente.

— Você não está segura em lugar nenhum — corrige Victor. — Mas, enquanto estiver comigo, nada vai acontecer com você.

— Quem está falando merda agora?

Ele levanta uma sobrancelha.

— Você não é meu herói, lembra? — digo para refrescar a memória de Victor. — Não é minha alma gêmea que jamais deixará que nada de ruim aconteça comigo. Devo confiar nos meus instintos primeiro e em você, se eu decidir confiar, por último. Você me disse isso certa vez.

— E continua sendo verdade.

— Então como pode dizer que nada vai me acontecer se eu estiver com você?

A expressão de Victor fica vazia, como se pela primeira vez na vida alguém o tivesse deixado sem palavras. Olho para seu rosto silencioso e sem emoção, e apenas seus olhos revelam um traço de torpor. Tenho a sensação de que ele falou sem pensar, que manifestou algo que sente de verdade, mas que jamais quis que eu soubesse: Victor quer ser meu herói, vai fazer qualquer coisa, tudo o que puder para me manter a salvo. Quer que eu confie totalmente nele.

E confio.

Ele volta para perto de mim e se senta ao meu lado. O cheiro de seu perfume é fraco, como se ele fizesse questão de usar o mínimo possível. Estou tonta de desejo. Ansiosa para sentir novamente seu toque, saborear seus lábios quentes, deixar que ele me tome como fez algumas noites antes que nos víssemos pela última vez. Não tenho pensado em nada além de Victor nos últimos oito meses da minha vida. Enquanto durmo. Como. Vejo TV. Transo. Me masturbo. Tomo banho. Cada coisa que fiz desde que ele me deixou naquele hospital com Dina fiz pensando nele.

— Você acha que Fredrik vai contar a Niklas onde a gente está? — Mudo de assunto por medo de deixar transparecer muita coisa cedo demais.

— Acho que se ele fosse fazer isso teria contado a Niklas o pouco que sabia sobre o seu paradeiro há muito tempo, e Niklas já teria tentado matar você — responde Victor.

— Tem alguma coisa... estranha em Fredrik. Você não sente?

Victor passa a mão pelo meu cabelo úmido. O gesto faz meu coração disparar.

— Você tem grande sensibilidade para as pessoas, Sarai — comenta ele, levando a mão ao meu queixo. — Tem razão sobre Fredrik. — Ele passa o polegar pelo meu lábio inferior. Um calafrio percorre o meio das minhas pernas. — Ele é... como dizer?... desequilibrado, de certa forma.

Minha respiração acelera, e sinto meus cílios tocando meu rosto quando os lábios de Victor cobrem os meus.

— Desequilibrado de que forma? — pergunto, ofegante, quando ele se afasta.

De olhos fechados, percebo que ele está observando a curva do meu rosto e meus lábios e sinto a respiração que sai suavemente de suas narinas.

Cada pelinho minúsculo se eriça quando a outra mão de Victor sobe e encontra minha cintura nua por baixo da camiseta. Seus dedos longos dançam sobre a pele do meu quadril e param por ali.

Abro os olhos e vejo os dele me encarando.

— Algum problema? — pergunta ele, e sua boca roça a minha de novo.

— Não, eu... eu só não esperava isso.

— Esperava o quê?

Sinto seus dedos levantando o elástico da minha calcinha. Minha cabeça está girando, sinto meu estômago se transformar em um emaranhado de músculos, trêmulo e nervoso.

— Isso — respondo, piscando. — Você está diferente — acrescento, baixinho.

— Culpa sua — diz Victor, e então seus lábios devoram os meus.

Ele me deita no sofá e se encaixa entre as minhas pernas.

Seu celular vibra na mesinha de centro, e percebo quanto sou humana quando xingo Fredrik por estragar aquele momento, mesmo que seja para me avisar de que Dina está a salvo.


CONTINUA

CAPÍTULO UM

Sarai

Já faz oito meses que fugi da fortaleza no México onde fui mantida contra minha vontade por nove anos. Estou livre. Levo uma vida “normal”, fazendo coisas normais com gente normal. Não fui mais atacada, ameaçada nem seguida por ninguém que ainda queira me matar. Tenho uma “melhor amiga”, Dahlia. Tenho a coisa mais parecida com uma mãe que já conheci, Dina Gregory. O que mais eu poderia querer? Parece egoísmo desejar qualquer outra coisa. Mas, apesar de tudo o que tenho, algo não mudou: continuo vivendo uma mentira.

Deixei amigos na Califórnia: Charlie, Lea, Alex e... Bri... Não, espera, quero dizer Brandi. Meu ex-namorado, Matt, era abusivo, por isso voltei para o Arizona. Ele me perseguiu por muito tempo depois que terminamos. Consegui uma ordem judicial para mantê-lo afastado, mas não funcionou. Ele atirou em mim há oito meses, mas não posso provar porque não cheguei a vê-lo. E tenho muito medo de denunciá-lo à polícia.

Claro que tudo isso é mentira.

São os pedaços da minha vida que acobertam o que realmente aconteceu comigo. Os pretextos para eu ter desaparecido aos 14 anos e ter ido parar em um hospital da Califórnia com um ferimento a bala. Jamais vou poder contar a Dina, Dahlia ou ao meu namorado, Eric, o que aconteceu de verdade: que fui levada para o México pela péssima versão de mãe que eu tinha, para morar com um chefão do tráfico. Jamais vou poder contar que fugi daquele lugar depois de nove anos e matei o homem que me manteve prisioneira por toda a minha adolescência. Quer dizer, claro que eu poderia contar a alguém, mas, se fizesse isso, só estaria pondo Victor em perigo.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/2_O_RETORNO_DE_IZABEL.jpg

 

Victor.

Não, nunca vou poder contar que um assassino me ajudou a fugir, ou que testemunhei Victor matando várias pessoas, inclusive a esposa de um empresário famoso e importante de Los Angeles. Nunca vou poder contar que, depois de tudo pelo que passei, depois de tudo o que vi, o que mais quero é fazer as malas e voltar para aquela vida perigosa. A vida com Victor.

Até hoje, falar o nome dele me acalma. Às vezes, quando estou acordada na cama à noite, murmuro seu nome só para ouvi-lo, porque preciso. Preciso dele. Não consigo tirá-lo da cabeça. Já tentei. Porra, e como tentei. Mas, não importa o que eu faça, continuo vivendo cada dia da minha vida pensando nele. Se está me vigiando. Se pensa em mim tanto quanto penso nele. Se ainda está vivo.

Pressiono o travesseiro contra a cabeça e fecho os olhos, imaginando Victor. Às vezes, é só assim que consigo gozar.

Eric aperta minhas coxas com as mãos e me imobiliza na cama, com o rosto enfiado no meio das minhas pernas.

Arqueio o quadril contra ele, roçando de leve contra sua língua frenética, até que ele faça meu corpo todo enrijecer e minhas coxas tremerem ao redor da sua cabeça.

— Meu Deus... — Estremeço enquanto gozo, então deixo os braços caírem entre as pernas, afundando os dedos no cabelo preto de Eric. — Caramba...

Sinto os lábios de Eric tocando minha barriga um pouco acima da pélvis.

Olho para o teto como sempre faço depois de um orgasmo, pois a culpa que sinto me deixa com vergonha de olhar para Eric. Ele é um cara superlegal. Meu namorado sexy de 27 anos, cabelo preto e olhos azuis, gentil, encantador, engraçado e perfeito. Perfeito para mim se eu nunca tivesse conhecido Victor Faust.

Estou arruinada pelo resto da vida.

Enxugo as gotas de suor da testa e Eric sobe pela cama, deitando-se ao meu lado.

— Você sempre faz isso — diz ele, brincando, enquanto cutuca minhas costelas com os nós dos dedos.

Como sinto muitas cócegas, eu me encolho e me viro para encará-lo. Sorrio com ternura e passo um dedo por seu cabelo.

— O que eu sempre faço?

— Esse negócio de ficar em silêncio. — Eric segura meu queixo entre o polegar e o indicador. — Eu faço você gozar e você fica bem quieta durante um tempão.

Eu sei e sinto muito, mas preciso apagar o rosto de Victor da minha cabeça antes de conseguir olhar você nos olhos. Sou uma pessoa horrível.

Eric me dá um beijo na testa.

— Isso se chama recuperação — brinco, beijando os dedos dele. — É totalmente inofensivo. Mas você deveria interpretar como um bom sinal. Você sabe o que está fazendo — digo, retribuindo o cutucão nas costelas.

E ele sabe mesmo o que está fazendo. Eric é ótimo na cama. Mas ainda sou emocionalmente muito ligada... viciada... em Victor, e tenho a sensação de que sempre serei.

Só consegui seguir a vida e me abrir a outros relacionamentos cinco meses depois que Victor foi embora. Conheci Eric no trabalho, na loja de conveniência. Ele comprou um saco de biscoitos e um energético. Depois disso, ele aparecia na loja duas, às vezes três vezes por semana. Eu não queria nada com ele. Queria Victor. Mas comecei a perder a esperança de que Victor um dia fosse voltar para mim.

Eric tenta passar um braço ao redor do meu corpo, mas me levanto casualmente e visto a calcinha. Ele não desconfia de nada, o que é bom. Não sinto vontade de ficar abraçadinha, mas a última coisa que quero é magoá-lo. Ele ergue os braços e entrelaça os dedos atrás da cabeça. Olha para mim, do outro lado do quarto, com um sorriso sedutor. Sempre faz isso quando não estou completamente vestida.

— Sarai.

— Oi. — Visto a camiseta e ajeito o rabo de cavalo.

— Eu sei que está em cima da hora — diz Eric —, mas queria ir com você e Dahlia para a Califórnia amanhã.

Merda.

— Mas você não disse que não ia conseguir folga no trabalho? — pergunto, vestindo o short e calçando os chinelos.

— Quando você perguntou se eu queria ir, não ia dar mesmo. Mas contrataram um funcionário novo, e meu chefe decidiu me dar folga.

Isso é uma péssima notícia. Não porque eu não o queira por perto — gosto de Eric, apesar da minha incapacidade de esquecer Victor Faust —, mas minha viagem de “férias” à Califórnia amanhã não é para fazer turismo, curtir a noite nem fazer compras na Rodeo Drive.

Estou indo até lá para matar um homem. Ou melhor, tentar matar um homem.

Já é ruim que Dahlia vá também, e já vai ser difícil guardar segredo de uma pessoa. Imagine duas.

— Você... não parece animada — comenta Eric, seu sorriso morrendo aos poucos.

Abro um sorriso largo e balanço a cabeça, voltando para perto dele e me sentando na beira da cama.

— Não, não, eu estou animada. É que você me pegou de surpresa. A gente vai sair às seis da manhã. É daqui a menos de oito horas. Você já fez as malas?

Eric dá uma risada e se estica na minha cama, me puxando para si. Eu me sento perto de sua cintura, apoiando um braço no colchão do outro lado dele, com os pés para fora da cama.

— Bom, eu só fiquei sabendo hoje à tarde, antes de sair do trabalho — explica ele. — Eu sei, está em cima da hora, mas só preciso enfiar umas coisas na mala e estou pronto.

Ele estende a mão e afasta do meu rosto os fios de cabelo que escaparam do rabo de cavalo.

— Ótimo! — minto, com um sorriso igualmente falso. — Então acho que está combinado.

Dina acorda antes de mim, às quatro da manhã. O cheiro de bacon é o que me desperta. Levanto da cama e entro debaixo do chuveiro antes de me sentar à mesa da cozinha. Um prato vazio já está à minha espera.

— Gostaria que você tivesse escolhido algum outro lugar para passar sua folga, Sarai — afirma Dina.

Ela se senta do outro lado da mesa e começa a encher seu prato. Pego alguns pedaços de bacon do monte e ponho no meu.

— Eu sei — digo —, mas, como falei para você, não vou deixar que meu ex me impeça de ver meus amigos.

Ela balança a cabeça cada vez mais grisalha e suspira.

Passei do limite em algum momento com meu amontoado de mentiras. Quando Victor levou Dina para o hospital em Los Angeles, depois que o irmão dele, Niklas, atirou em mim, ela não fazia ideia do que tinha acontecido. Só sabia que eu tinha levado um tiro. Demorei alguns meses até me sentir segura o suficiente para falar com ela sobre isso. Quer dizer, depois de bolar a história que eu ia contar. Foi aí que inventei o lance do ex-namorado violento. Eu deveria ter dito que fui assaltada. Por um desconhecido. A mentira seria muito mais fácil de manter. Agora que ela sabe que vou voltar para Los Angeles, está morrendo de preocupação, e já faz uns dois meses. Eu nem deveria ter contado que ia voltar lá.

Termino de comer o bacon e um pouco de ovos mexidos, junto com um copo de leite.

Dahlia e Eric chegam juntos assim que termino de escovar os dentes.

— Vamos logo, a gente precisa pegar a estrada — chama Dahlia, me apressando da porta. Seu cabelo castanho-claro está preso no alto da cabeça em um coque desalinhado de quem acabou de acordar.

Eu me despeço de Dina com um abraço.

— Eu vou ficar bem — digo a ela. — Prometo. Não vou nem chegar perto de onde ele mora.

Desta vez, chego até a imaginar um rosto masculino ao falar de alguém que não existe. Acho que já interpreto esse papel há tanto tempo que “Matt” e todos esses meus “amigos” de Los Angeles, de quem falo para todo mundo como se fossem reais, se tornaram reais no meu subconsciente.

Dina força um sorriso em seu rosto preocupado, e suas mãos soltam meus cotovelos.

— Você liga assim que chegar?

— Assim que eu entrar no quarto do hotel, ligo — respondo, assentindo.

Ela sorri e eu a abraço mais uma vez, antes de segui-los até o carro de Dahlia, que está esperando. Eric guarda minha mala no bagageiro, junto com as deles, e se senta no banco de trás.

— Hollywood, aí vamos nós! — exclama Dahlia.

Finjo metade da empolgação dela. Ainda bem que está muito cedo, senão Dahlia poderia intuir o verdadeiro motivo da minha falta de entusiasmo. Estico os braços para trás e bocejo, apoiando a cabeça no banco do carro. Sinto a mão de Eric no meu pescoço quando ele começa a massagear meus músculos.

— Não sei por que você quer ir a Los Angeles de carro — diz Dahlia. — Se a gente fosse de avião, não ia precisar acordar tão cedo. E você não estaria tão cansada e rabugenta.

Minha cabeça cai para a esquerda.

— Não estou rabugenta. Ainda mal falei com você.

Ela dá um sorrisinho.

— Exatamente. Sarai sem falar significa Sarai rabugenta.

— E se recuperando — acrescenta Eric.

Meu rosto fica vermelho e eu estico a mão atrás da cabeça, dando um tapinha de brincadeira na dele, que está fazendo maravilhas no meu pescoço. Fecho os olhos e vejo Victor.

Não de propósito.

Chegamos a Los Angeles depois de quatro horas na estrada. Eu não podia ir de avião porque não conseguiria levar minhas armas. É claro que Dahlia não pode saber disso. Ela acha apenas que quero apreciar a paisagem.

Tenho sete dias para fazer o que vim fazer. Isto é, se eu conseguir. Pensei no meu plano durante meses, em como vou fazer isso. Sei que é impossível entrar na mansão Hamburg. Para isso, eu precisaria ter um convite e socializar em público com o próprio Arthur Hamburg e seus convidados. Ele viu meu rosto. Bem, tecnicamente, viu mais do que meu rosto. Mas sinto que os acontecimentos daquela noite, quando Victor e eu enganamos Hamburg para que ele nos convidasse para ir ao seu quarto e conseguíssemos matar sua esposa, são algo que ele jamais vai esquecer, nem os mínimos detalhes.

Se tudo der certo, uma peruca loura platinada de cabelo curto e maquiagem escura e pesada vão esconder aquela identidade de cabelo longo e castanho que Hamburg reconheceria assim que eu aparecesse.


CAPÍTULO DOIS

Sarai

Passo o dia todo com Eric e Dahlia, fingindo me divertir para passar o tempo. Saímos para almoçar e para fazer um tour por Hollywood com um guia e visitar um museu antes de voltarmos para o hotel, exaustos. Quer dizer, finjo estar exausta o suficiente para querer dar o dia por encerrado. Na verdade, o que preciso é me preparar para ir ao restaurante de Hamburg ainda hoje.

Dahlia já acha que tem algo errado comigo.

— Você está ficando doente? — pergunta ela, estendendo a mão entre nossas espreguiçadeiras à beira da piscina e sentindo a temperatura da minha testa.

— Estou ótima — respondo. — Só cansada porque levantei muito cedo. E quando foi a última vez que andei tanto assim em um dia só?

Dahlia volta a se recostar em sua espreguiçadeira e ajeita os óculos de sol grandes e redondos no rosto.

— Bom, espero que não esteja cansada amanhã — diz Eric, do outro lado. — Tem tantas coisas que eu quero fazer. Não venho para Los Angeles desde que meus pais se divorciaram.

— Pois é. É a minha primeira vez aqui em dois anos — afirma Dahlia.

Um adolescente pula na piscina e a água respinga em nós. Ergo as costas da espreguiçadeira e agito a revista que estava lendo para tirar as gotas. Ponho os óculos escuros no alto da cabeça. Jogo as pernas para o lado e fico de pé.

— Acho que vou voltar para o quarto e tirar uma soneca — anuncio, pegando minha bolsa do chão.

Eric se ergue também e tira os óculos escuros.

— Se quiser, vou com você — oferece ele.

Agito a mão para ele, pedindo que não se levante.

— Não, fica aí e faz companhia para a Dahlia — sugiro, ajeitando a bolsa no ombro. Abaixo os óculos escuros de novo para que ele não perceba minha mentira.

— Tem certeza de que você está bem? — pergunta Dahlia. — Sarai, você está de férias, lembra? Veio para cá se divertir, não para cochilar.

— Acho que vou estar cem por cento amanhã. Só preciso de um banho quente e demorado e de uma boa noite de sono.

— Ok, vou acreditar — diz Dahlia. — Mas nem vem com doença para o meu lado. — Ela aponta o dedo para mim, com ar severo.

Eric fecha os dedos em torno do meu pulso e me puxa para perto.

— Tem certeza de que não quer que eu vá? — Ele me beija e eu correspondo antes de me levantar de vez.

— Tenho — respondo, baixinho, e saio na direção do elevador.

Assim que entro no quarto, tranco a porta com a corrente para que Eric e Dahlia não entrem de surpresa, jogo a bolsa no chão e abro meu laptop, digitando a senha. Enquanto o laptop inicia, olho pela janela e vejo meus amigos, figuras pequenas daquela distância, ainda à beira da piscina. Eu me sento diante da tela e, provavelmente pela centésima vez, olho cada página do site do restaurante de Hamburg, verificando de novo o horário de funcionamento e passando os olhos pelas fotos profissionais do lugar, dentro e fora. Na verdade, nada disso me ajuda muito com o que pretendo fazer, mas olho tudo de novo todo dia, de qualquer maneira.

Derrotada, bato a palma da mão com força no tampo da mesa.

— Droga! — exclamo, desabando na poltrona enquanto passo as mãos pelo cabelo.

Ainda não sei como vou conseguir ficar a sós com Hamburg sem ser vista. Sei que estou dando um passo maior do que a perna. Sei disso desde que tive essa ideia maluca, mas também sei que, se ficar apenas pensando a respeito, nunca vou passar dessa fase.

Vim para cá com um plano: entrar disfarçada no restaurante e agir como qualquer outro cliente. Sondar o lugar por uma noite. Saber onde ficam as saídas. As entradas para outras partes do prédio. Os banheiros. Minha prioridade número um, contudo, é encontrar a sala de onde Hamburg observa do alto seus clientes e ouve a conversa deles pelo minúsculo microfone escondido no arranjo de cada mesa. Então pretendo me enfiar na sala e cortar a garganta daquele porco.

Contudo, agora que estou aqui, a menos de seis quadras do restaurante, e agora que o tempo está passando tão depressa, estou menos confiante. Isso não é um filme. Sou uma idiota por achar que posso adentrar um lugar desses sem ser vista, tirar a vida de um homem sem chamar atenção e fugir sem ser capturada.

Apenas Victor conseguiria fazer algo assim.

Bato no tampo da mesa de novo, mais de leve desta vez, fecho o laptop e me levanto. Ando de um lado para outro no carpete vermelho e verde. E bem quando resolvo seguir pelo corredor para o quarto separado que reservei sem Dahlia e Eric saberem, a porta se abre um pouco, mas é travada pela corrente.

— Sarai? — chama Dahlia do outro lado. — Vai deixar a gente entrar?

Suspiro fundo e destranco a porta.

— Por que a corrente? — pergunta Eric, entrando atrás de Dahlia.

— Força do hábito.

Eu me jogo na ponta da cama king-size.

Os dois deixam suas coisas no chão. Dahlia se senta à mesa, ao lado da janela, e Eric se deita atravessado na cama ao meu lado, cruzando as pernas na altura dos calcanhares.

— Pensei que você ia tirar uma soneca — diz Dahlia.

Ela passa os dedos com cuidado pelo cabelo úmido, fazendo caretas quando se depara com alguma mecha mais embaraçada.

— Dahlia — digo, olhando para os dois. — Eu subi agora há pouco. Pensei que vocês iam ficar na piscina mais um tempo.

Espero ter conseguido disfarçar o aborrecimento na minha voz por eles terem vindo me encontrar tão cedo. Não consigo evitar: estou estressada demais, além de preocupada com a simples presença dos dois aqui comigo. Não quero que eles se machuquem nem que se envolvam de forma alguma com meu motivo para estar aqui.

— A gente pode sair e deixar você sozinha, se quiser — sugere Eric, baixinho, atrás de mim.

Eu me arrependo na mesma hora do que disse, porque é óbvio que não disfarcei o aborrecimento tão bem quanto esperava.

Inclino a cabeça para trás e suspiro, esticando o braço para tocar o tornozelo dele.

— Desculpa — digo, sorrindo para Dahlia. — Sabe, eu... — Então, de repente, uma desculpa perfeitamente plausível para o modo como tenho agido surge na minha cabeça, e a torneira das mentiras se abre. — Eu só fico meio nervosa por estar de volta a Los Angeles.

Dahlia faz cara de “ah, entendi”, empurra os pés de Eric para o lado e se senta perto de mim. Ela passa o braço por cima dos meus ombros e segura meu antebraço.

— Imaginei que o problema fosse esse.

Percebo que ela olha de relance para Eric e tenho a impressão de que foi sobre isso que os dois falaram enquanto ficaram na piscina, depois que fui embora.

Aposto que também foi por isso que decidiram subir tão cedo para me ver.

— A gente queria ver como você estava — acrescenta Eric atrás de mim, confirmando minha suspeita.

Sinto a cama se mexer quando ele se senta.

Eu me levanto antes que ele consiga me abraçar. É nesse exato momento que me dou conta de como tenho feito isso com frequência no último mês. Não sei por quanto tempo mais vou conseguir enganá-lo. Sei que deveria simplesmente contar o que sinto, que não gosto tanto de Eric quanto ele gosta de mim. Mas não consigo dizer a verdade. Eu precisaria inventar mais uma mentira, e estou tão atolada em mentiras que me sinto afogada nelas.

Ao mesmo tempo, deixei nossa relação durar tanto porque eu queria de verdade sentir por ele algo tão profundo quanto o que ele parece sentir por mim. Queria seguir em frente, esquecer Victor e ser feliz com a vida que ele me deixou.

Mas não consigo. Não consigo mesmo...

— Ele nem vai saber que você está aqui — diz Eric sobre “Matt”. — Além disso, mesmo que ele descobrisse, eu ia encher o cara de porrada assim que o visse.

Esboço um sorriso para Eric.

— Eu sei que você faria isso — digo, mas me sinto ainda pior, porque os únicos dois amigos que tenho no mundo não fazem nem ideia de quem sou.

Cruzo os braços, vou até a janela e olho para fora.

— Sarai — chama Dahlia. — Não queria dizer isso, mas, se você está tão preocupada com a possibilidade de Matt descobrir que você está em Los Angeles, acho que não é boa ideia visitar seus amigos aqui.

— Eu sei, você tem razão. Sei que eles não contariam para Matt, mas acho que é melhor eu ficar só com vocês dois enquanto estivermos aqui.

Eu me viro para encará-los.

— É um bom plano — diz Eric, com um sorriso radiante.

É um bom plano, com certeza, porque agora não preciso mais inventar outra desculpa para não apresentar os dois aos meus amigos que não existem.

Dahlia se aproxima de mim.

— A gente devia ter ido para a Flórida ou algum lugar assim, hein?

Olho pela janela de novo.

— Não — respondo. — Adoro esta cidade. E sei que vocês queriam muito vir para cá. — Dou um sorriso rápido. — Sugiro que a gente curta ao máximo esta semana.

Ela me empurra com o ombro de brincadeira.

— Essa é a Sarai que eu conheço — diz Dahlia, sorrindo.

É, só que não sou essa pessoa...

Ela vai até Eric e o puxa pelo braço, levantando-o da cama.

— Vamos sair daqui e deixar a mocinha descansar.

Eric se levanta e se aproxima de mim. Então pega meus braços e me vira para encará-lo. Com aqueles olhos azul-bebê, ele faz a melhor expressão amuada que consegue.

— Se precisar de mim para qualquer coisa, pode me chamar que eu venho.

Concordo com a cabeça e lhe ofereço um sorriso sincero. Ele merece, por ser tão legal comigo.

— Pode deixar.

Então eu os empurro porta afora com as duas mãos.

— Eu diria para vocês não se divertirem muito sem mim, mas isso seria pedir demais.

Dahlia ri baixinho ao sair para o corredor.

— Não, não é pedir muito. — Ela levanta dois dedos. — Palavra de escoteiro.

— Acho que não é assim que se faz, Dahl — diz Eric.

Ela faz um gesto para dispensar as palavras dele.

— Trate de dormir — sugere Dahlia. — Porque amanhã você vai precisar estar novinha em folha.

— De acordo — digo, assentindo.

— Tchau, amor — diz Eric antes de eu fechar a porta.

Fico com as costas apoiadas na porta e solto um suspiro longo e profundo.

Fingir é difícil demais. Bem mais difícil do que simplesmente ser eu mesma, por mais anormal e imprudente que eu seja.

— Eu sei o que preciso fazer — digo em voz alta.

Falar sozinha é minha nova mania, porque me ajuda a visualizar e entender melhor as coisas.

Volto para a janela e olho a cidade de Los Angeles, com os braços cruzados.

— Preciso de um disfarce, mas não para me esconder de Hamburg. Só das câmeras e de qualquer outra pessoa. Eu quero que Hamburg me veja. Só assim vou conseguir entrar.


CAPÍTULO TRÊS

Sarai

Dahlia e Eric só voltam para o quarto algumas horas mais tarde, depois de escurecer. Eu já tinha tomado banho, vestido short e camiseta e deixado a luz apagada para parecer que estava dormindo. Assim que ouvi o cartão passando pela porta, pulei na cama e me espalhei pelo colchão, como sempre faço quando durmo de verdade. Eric entrou na ponta dos pés, tentando não “me acordar”, mas me virei, soltei um resmungo e abri os olhos para mostrar que acordei. Ele pediu desculpas e perguntou se eu queria ir com ele e Dahlia a uma boate ali perto, insistindo que, se eu não fosse, ele também não iria. Mas logo rejeitei essa ideia. Percebi que ele queria muito ir e não posso culpá-lo: se eu estivesse no lugar dele, não iria querer ficar em um quarto escuro de hotel às oito da noite de uma sexta-feira, em uma das cidades mais animadas dos Estados Unidos.

Eric e Dahlia saírem era exatamente do que eu precisava. Passei aquelas duas horas inteiras tentando inventar uma desculpa para explicar a eles por que eu ia sair, aonde iria e por que eles não poderiam ir junto.

Eles resolveram isso para mim.

Minutos após Eric sair do quarto, espero Dahlia — em seu próprio quarto, ao lado do nosso — tirar o biquíni e se vestir. Pelo olho mágico da minha porta, eu os vejo indo embora pelo corredor. Conto até cem enquanto ando de um lado para outro sem parar. Então pego minha bolsa e vou até a porta. Ando depressa pelo corredor na direção oposta e chego ao quarto secreto, do outro lado do prédio.

Com certa paranoia de ser flagrada, vasculho minha bolsa e encontro tudo, menos a chave do quarto. Enfim consigo senti-la entre os dedos e me apresso para entrar, travando a porta com a corrente. Abro a mala ao pé da cama e tiro minha peruca curta platinada, passando os dedos para ajeitar as mechas desalinhadas, e então a deixo sobre o abajur ao lado para que não perca a forma.

Visto um Dolce & Gabbana curtinho e me maquio com cores escuras e pesadas, o que, depois de passar um tempão praticando em casa, faço bem. Então calço as sandálias de salto alto. Andar de salto é outra coisa que passei muito tempo tentando aprender. Meu alter ego, Izabel Seyfried, saberia andar de salto e o faria bem. Por isso, eu precisava acompanhar.

Em seguida, molho o cabelo e o divido em duas partes atrás. Enrolo cada metade e cruzo uma sobre a outra na nuca. Vários grampos depois, meu longo cabelo castanho está bem preso no couro cabeludo. Visto a touca da peruca e depois a própria peruca, ajustando-a por muito tempo até deixar tudo perfeito.

Por fim, prendo uma bainha de punhal em torno da coxa e a cubro com o tecido do vestido.

Fico de pé diante do espelho de corpo inteiro e me avalio de todos os ângulos possíveis. Estar loura é estranho. Satisfeita, pego a bolsinha preta e a enfio debaixo do braço, com a pequena pistola formando certo volume nela. Estico o braço para girar a maçaneta, mas deixo minha mão cair junto ao corpo.

“Que droga eu estou fazendo?”

O que precisa ser feito.

“E por que eu estou fazendo isso?”

Porque preciso.

Não consigo tirar da cabeça as coisas que aquele homem confessou, as pessoas que matou por causa de um fetiche sexual doentio. Todas as noites desde que Victor me deixou, quando fecho os olhos, vejo o rosto de Hamburg e aquele sorriso de gelar o sangue que ele abriu quando me curvei sobre a mesa, exposta na frente dele. Vejo o rosto de sua esposa, esquelético e combalido, seus olhos fundos turvados pela resignação. Ainda sinto até o fedor da urina que secou em suas roupas e no catre infestado onde ela dormia, naquele quarto escondido.

Meu peito se enche de ar e eu o prendo por vários segundos, antes de soltar um longo suspiro.

Não posso esquecer. A necessidade de matá-lo é como uma coceira no meio das costas. Não posso alcançar naturalmente, mas vou me curvar e torcer os braços até doerem para coçar.

Não posso esquecer...

E talvez... só talvez também acabe chamando a atenção de um certo assassino que não consigo me obrigar a esquecer.

Assim que passo pela porta, deixo Sarai para trás e me torno Izabel por uma noite.

Por não ter pensado de antemão na importância de ao menos alugar um carro chique, salto do táxi a duas quadras do restaurante e ando o resto do caminho. Izabel jamais seria vista andando de táxi.

— Mesa para um? — pergunta o recepcionista assim que entro no restaurante.

Inclino a cabeça e olho para ele com um ar irritado.

— Algum problema? Não posso fazer uma refeição sozinha? Ou você está dando em cima de mim? — Abro um sorrisinho e inclino a cabeça para o outro lado. Ele está ficando nervoso. — Você gostaria de jantar comigo... — olho para o nome bordado no paletó — ... Jeffrey? — Chego mais perto. Ele dá um passo constrangido para trás.

— Hã... — Ele hesita. — Peço desculpas, senhora...

Recuo, trincando os dentes.

— Nunca me chame de senhora — digo com rispidez. — Me leve até uma mesa. Para um.

Ele assente e pede que eu o siga. Quando chego à minha mesinha redonda com duas cadeiras, no meio do restaurante, me sento e deixo a bolsa ao lado. Um garçom se aproxima quando o recepcionista se afasta e me apresenta a carta de vinhos. Eu a rejeito com um movimento dos dedos.

— Quero apenas água com uma rodela de limão.

— Pois não, senhora — diz ele, mas deixo passar.

Enquanto o garçom se afasta, começo a examinar o lugar. Há uma placa indicando a saída à minha esquerda, bem longe, perto do corredor. Há outra à minha direita, próxima à escada que leva para o segundo piso. O restaurante está praticamente igual à primeira vez que vim: escuro, não muito cheio e bastante silencioso, embora desta vez eu ouça jazz baixinho vindo de algum lugar. Ao observar o recinto, paro de repente ao ver a mesa à qual me sentei com Victor quando vim com ele, meses atrás.

Eu me perco na memória, vendo tudo exatamente como aconteceu. Quando olho para as duas pessoas sentadas no outro lado do salão, só consigo me ver com Victor:

— Venha cá — diz ele, em um tom de voz mais delicado.

Deslizo os poucos centímetros que nos separam e me sento encostada a ele.

Seus dedos dançam pela minha nuca quando ele puxa minha cabeça para perto de si. Meu coração bate descompassado quando ele roça os lábios na lateral do meu rosto. De repente, sinto sua outra mão entrando pelo meio das minhas coxas e subindo por baixo do vestido. Minha respiração para. Devo abrir as pernas? Devo ficar imóvel e travá-las? Sei o que quero fazer, mas não sei o que devo fazer, e minha mente está a ponto de desistir.

— Tenho uma surpresa para você esta noite — murmura ele no meu ouvido.

Sua mão se aproxima mais do calor no meio das minhas pernas.

Gemo baixinho, tentando não deixar que ele perceba, embora tenha certeza absoluta de que percebeu.

— Que tipo de surpresa? — pergunto, com a cabeça inclinada para trás, apoiada em sua mão.

— Vai querer algo mais? — Ouço uma voz, e sou arrancada do meu devaneio.

O garçom está segurando o cardápio. Minha água com uma rodela de limão na borda do copo já está diante de mim.

Um pouco confusa de início, apenas assinto, mas faço que não em seguida.

— Ainda não sei — respondo, enfim. — Deixe o cardápio. Talvez eu peça mais tarde.

— Pois não — diz o garçom.

Ele deixa o cardápio na mesa e vai embora.

Olho para a varanda e para as mesas encostadas no balaústre requintado. Onde Hamburg pode estar? Sei que ele está no andar de cima porque Victor disse que ele ficava por lá. Mas onde? Eu me pergunto se ele já me viu, e no mesmo instante meu estômago se embrulha de nervoso.

Não, não posso parecer nervosa.

Endireito as costas na cadeira e tomo um gole da água. Deixo o dedo mindinho levantado, o que me faz parecer muito mais rica, ou apenas mais esnobe. Fico observando os clientes indo e vindo, escuto sua conversa supérflua e me pego imaginando qual dos casais que estão ali poderia acabar na mansão de Hamburg no fim de semana, ganhando muito dinheiro para deixar que ele os veja foder.

Então olho para o arranjo de flores vermelhas em um pequeno vaso de vidro no centro da minha mesa. Pego o celular na bolsa, finjo digitar um número e o coloco perto do ouvido, para que ninguém ache que estou falando sozinha.

— Este recado é para Arthur Hamburg — digo em voz baixa, inclinando-me um pouco para a frente a fim de que o microfone escondido no vaso de flores capte minha voz. — Com certeza você se lembra de mim, não é? Izabel Seyfried. Há quanto tempo, não?

Com cuidado, olho para os lados, esperando ver um ou dois homens parrudos de terno se aproximando de mim com armas em punho.

— Não estou sozinha — continuo —, por isso nem pense em fazer alguma idiotice. A gente precisa conversar.

Olhando para a varanda acima de mim, tento descobrir onde ele pode estar, torcendo para que esteja ali. Alguns minutos tensos se passam, e, quando começo a pensar que a noite foi em vão e que eu estava mesmo falando sozinha, noto um movimento no piso superior, logo acima da saída à minha direita. Meu coração bate forte quando vejo a figura alta e escura sair das sombras e descer a escada.

Eu me lembro desse homem de ombros largos, cabelo grisalho e uma covinha no meio do queixo. É o gerente do restaurante, Willem Stephens, que já encontrei aqui uma vez.

Ele se aproxima da minha mesa sem expressar nenhuma emoção, com as mãos enormes cruzadas à frente, as costas retas, o queixo anguloso imóvel.

— Boa noite, srta. Seyfried. — A voz dele é profunda e sinistra. — Posso perguntar onde está seu dono?

Levanto os olhos para encará-lo, dou um sorrisinho, tomo um gole da minha água e devolvo o copo à mesa, sem pressa. Cada fibra do meu ser está gritando, dizendo como fui idiota em vir até aqui. Por mais que eu saiba que é verdade, não importa. Não é o medo que me faz tremer por dentro, é a adrenalina.

— Victor Faust não é meu dono — explico, com calma. — Mas ele está aqui. Em algum lugar. — Um sorriso tênue e dissimulado toca meus lábios.

Os olhos de Stephens percorrem o salão sutilmente e voltam a me encarar.

— Por que está aqui? — pergunta ele, perdendo um pouco o ar de gerente sofisticado.

— Tenho negócios a discutir com Arthur Hamburg — respondo, confiante. — É do maior interesse dele marcar um encontro privado comigo. Aqui. Hoje. De preferência agora.

Tomo outro gole.

Noto que o pomo de adão de Stephens se move quando ele engole em seco, bem como os contornos de seu queixo quando ele cerra os dentes. Ele olha para o lugar de onde veio, no andar de cima, e percebo um aparelhinho preto escondido em seu ouvido esquerdo. Parece que ele está ouvindo alguém falar. Eu chutaria que é Hamburg.

Ele me encara de novo, com os olhos escuros e cheios de ódio, mas mantém o semblante inexpressivo com a mesma perfeição de Victor.

Ele descruza os braços, estende a mão direita para mim e diz:

— Por aqui.

Ele só deixa os braços penderem, relaxados, quando me levanto. Sigo Stephens pelo restaurante e escada acima, para o piso da varanda.

Apenas duas coisas podem acontecer: ou esta será minha primeira noite como assassina ou a última da minha vida.


CAPÍTULO QUATRO

Sarai

— Se encostar em mim — digo para o guarda-costas de terno à porta da sala particular de Hamburg —, enfio suas bolas em um moedor de carne.

As narinas do segurança se dilatam e ele olha para Stephens.

— Você solicitou uma reunião com o sr. Hamburg — diz Stephens atrás de mim. — É claro que vamos revistá-la antes para verificar se está armada.

Droga!

Calma. Fique calma. Faça o que Izabel faria.

Respiro fundo, encarando-os com desprezo e um ar ameaçador. Então jogo minha bolsinha preta no segurança. Ele pega a bolsa quando ela bate em seu peito.

— Acho que está bem claro que eu não conseguiria esconder uma arma em um vestido como este, a menos que a enfiasse na boceta — digo, olhando para Stephens. — Minha arma está na bolsa. Mas nem pense em tocar...

— Deixem a moça entrar — ordena da porta uma voz familiar.

É Hamburg, ainda balofo e grotesco como antes, usando um terno imenso que parece em vias de estourar se ele respirar fundo demais.

Abro um leve sorriso para o segurança, que me encara com olhos assassinos. Conheço esse olhar, até demais. O homem tira a pistola e me devolve a bolsa.

— Sr. Hamburg — diz Stephens —, eu deveria ficar na sala com o senhor.

Hamburg balança a papada, rejeitando a sugestão.

— Não, vá cuidar do restaurante. Se essas pessoas tivessem vindo me matar, não seriam tão óbvias. Eu vou ficar bem.

— Pelo menos deixe Marion à porta — sugere Stephens, olhando para o guarda-costas.

— Sim — concorda Hamburg. — Você fica aqui. Não deixe ninguém interromper nossa... — diz ele, me olhando com frieza — reunião, a menos que eu peça. Se em algum momento você não ouvir minha voz por mais de um minuto, entre na sala. Como precaução, é claro.

Ele abre um sorrisinho para mim.

— É claro. — Imito Hamburg e sorrio também.

Ele dá um passo para o lado e me convida a entrar.

— Pensei que isso tivesse acabado, srta. Seyfried.

Hamburg fecha a porta.

— Sente-se — pede ele.

A sala é bem grande, com paredes lisas e arredondadas, sem cantos, de um lado a outro. Uma série de grandes quadros retratando o que parece ser cenas bíblicas rodeia uma grande lareira de pedra. Cada imagem é emoldurada em uma caixa de vidro, com luzes na parte de baixo. A sala é pouco iluminada, como o restaurante, e o cheiro é de incenso ou talvez de óleo aromático de almíscar e lavanda. Na parede à minha esquerda, há uma porta aberta que leva a outra sala, onde a luz cinza-azulada de várias telas de TV brilha nas paredes. Chego mais perto para me sentar na poltrona de couro com encosto alto diante da escrivaninha e espio dentro da saleta. É como eu imaginava. As telas mostram várias mesas do restaurante.

Hamburg fecha essa porta também.

— Não, está longe de acabar — respondo, enfim.

Cruzo as pernas e mantenho a postura ereta, o queixo levantado com ar confiante e os olhos em Hamburg, enquanto ele atravessa a sala na minha direção. Puxo a barra do vestido para cobrir completamente o punhal preso na coxa. Minha bolsa está no meu colo.

— Vocês já tiraram minha esposa de mim. — A indignação transparece na voz dele. — Não acham que foi o suficiente?

— Infelizmente, não. — Abro um sorriso malicioso. — Não foi o suficiente para você e sua esposa tirarem uma vida? Não, não foi — respondo por ele. — Vocês tiraram muitas vidas.

Hamburg morde o interior da bochecha e se senta atrás da escrivaninha, de frente para mim. Ele apoia as mãos gordas sobre o tampo de mogno. Percebo quanto ele quer me matar ali mesmo onde estou. Mas não fará isso porque acredita que não estou sozinha. Ninguém em sã consciência faria algo assim, vir até aqui sozinha, inexperiente e desprevenida.

Ninguém, a não ser eu.

Preciso garantir que ele continue acreditando que tenho cúmplices até descobrir como vou matá-lo e sair da sala sem ser pega. O pedido de Hamburg para que o guarda-costas entrasse na sala depois de um minuto sem ouvir sua voz pôs mais um obstáculo no plano que, na verdade, nunca tive de fato.

— Bem, devo dizer uma coisa — diz Hamburg, mudando de tom. — Você é deslumbrante com qualquer tipo de peruca. Mas admito que prefiro a morena.

Ele acha que meu cabelo castanho-avermelhado era uma peruca. Ótimo.

— Você é doente. Sabe disso, certo? — Tamborilo com as unhas no braço da poltrona.

Hamburg abre um sorriso medonho. Estremeço por dentro, mas mantenho a compostura.

— Eu não matei aquelas pessoas de propósito. Elas sabiam no que estavam se metendo. Sabiam que, no calor do momento, alguém poderia perder o controle.

— Quantas?

Hamburg estreita os olhos.

— O que importa isso, srta. Seyfried? Uma. Cinco. Oito. Por que não diz logo o motivo da sua visita? Dinheiro? Informação? A chantagem assume muitas formas, e não seria a primeira vez que enfrento uma. Sou um veterano.

— Fale sobre a sua esposa — peço, ganhando tempo e fingindo ainda ser quem dá as cartas. — Antes de “ir direto ao assunto”, quero entender sua relação com ela.

Uma parte de mim quer saber de verdade. E estou incrivelmente nervosa; sinto um enxame zumbindo no meu estômago. Talvez jogar conversa fora ajude a acalmar minha mente.

Hamburg inclina a cabeça para o lado.

— Por quê?

— Apenas responda à pergunta.

— Eu a amava muito — responde ele, relutante. — Ela era a minha vida.

— Aquilo é amor? — pergunto, incrédula. — Você manchou a memória dela ao dizer que ela era uma viciada em drogas que se suicidou, só para salvar a própria pele, e chama isso de amor?

Noto uma luz se movendo no chão, por baixo da porta da sala de vigilância. Não havia ninguém lá dentro antes, ao menos que eu tivesse visto.

— Como a chantagem, o amor assume muitas formas. — Hamburg apoia as costas na poltrona de couro, que range, cruzando os dedos roliços sobre a enorme barriga. — Mary e eu éramos inseparáveis. Não éramos como outras pessoas, outros casais, mas o fato de sermos tão diferentes não significava que nos amávamos menos do que os outros. — Os olhos dele cruzam os meus por um momento. — Tivemos sorte por encontrar um ao outro.

— Sorte? — pergunto, pasma com o comentário. — Foi sorte duas pessoas doentes se encontrarem e se unirem para fazer coisas doentias com os outros? Não entendo.

Hamburg balança a cabeça como se fosse um velho sábio e eu fosse jovem demais para entender.

— Pessoas diferentes como Mary e eu...

— Doentes e dementes — corrijo. — Não diferentes.

— Chame como quiser — diz ele, com ar de resignação. — Quando você é tão diferente assim da sociedade, do que é aceitável, encontrar alguém como você é algo muito raro.

Sem perceber, cerro os dentes. Não porque Hamburg esteja me irritando, mas porque nunca imaginei que esse homem nojento pudesse me dizer qualquer coisa que me fizesse pensar na minha situação com Victor, ou qualquer coisa que eu pudesse entender.

Afasto esse pensamento.

A luz fraca sob a porta da sala de vigilância se move de novo. Finjo não ter notado, sem querer dar a Hamburg qualquer motivo para achar que estou pensando em outra saída.

— Vim aqui saber nomes — digo de repente, sem ter pensado bem a respeito.

— Que nomes?

— Dos seus clientes.

Algo muda nos olhos de Hamburg, ele vai tomar o controle da situação.

— Você quer os nomes dos meus clientes? — pergunta ele, desconfiado.

Que merda...

— Pensei que você e Victor Faust já estivessem de posse da minha lista de clientes.

Continue séria. Não perca a compostura. Merda!

— Sim, estamos, mas me refiro àqueles que você não mantinha nos registros.

Acho que vou vomitar. Parece que minha cabeça está pegando fogo. Prendo a respiração, torcendo para ter me livrado dessa.

Hamburg me examina em silêncio, vasculhando meu rosto e minha postura em busca de qualquer sinal de autoconfiança abalada. Ele coça o queixo gordo e cheio de dobras.

— Por que você acha que existe uma lista fantasma?

Suspiro meio aliviada, mas ainda não estou fora de perigo.

— Sempre existe uma lista fantasma — afirmo, embora não faça nem ideia do que estou dizendo. — Quero pelo menos três nomes que não estejam no registro que nós temos.

Sorrio, sentindo que recuperei o controle da situação.

Até ele falar:

— Diga você três nomes da lista que já tem, e eu dou o que você quer.

É oficial: perdi o controle.

Engulo em seco e me controlo antes de parecer “pega no flagra”.

— Você acha que eu carrego a lista na bolsa? — pergunto com sarcasmo, tentando continuar no jogo. — Nada de negociações ou meios-termos, sr. Hamburg. O senhor não está em condições de fazer nenhuma barganha.

— É mesmo? — pergunta ele, sorrindo.

Ele suspeita de mim. Posso sentir. Mas vai garantir que está certo antes de dar o bote.

— Isso não está em discussão. — Eu me levanto da poltrona de couro, enfiando a bolsa debaixo do braço, mais frustrada do que antes por ter que entregar minha arma.

Pressiono os dedos na escrivaninha de mogno, apoiando meu peso neles ao me curvar um pouco na direção de Hamburg.

— Três nomes, ou saio daqui e Victor Faust entra para espalhar os seus miolos naquele belo quadro do menino Jesus atrás de você.

Hamburg ri.

— Esse não é o menino Jesus.

Ele se levanta junto comigo, alto, enorme e ameaçador.

Enquanto vasculho minha mente e tento entender como ele descobriu que sou uma farsante, Hamburg se adianta e anuncia seu raciocínio como um chute na minha boca.

— É engraçado, Izabel, você vir aqui pedir nomes que não aparecem em uma lista que você... — diz, apontando para a minha bolsa — ... nem carrega consigo, porque como você saberia que os nomes que eu daria não estão nela?

Estou muito ferrada.

— Vou dizer o que eu acho — continua ele. — Acho que você veio aqui sozinha por causa de alguma vingança contra mim. — Ele balança o indicador. — Porque eu me lembro de cada detalhe da porra daquela noite. Cada merda de detalhe. Especialmente a sua expressão quando percebeu que Victor Faust tinha vindo matar minha esposa em vez de mim. Era a expressão de alguém pega de surpresa, que não fazia ideia de por que estava ali. Era a expressão de alguém que não está familiarizada com o jogo.

Ele tenta sorrir com gentileza, como se quisesse demonstrar alguma espécie de empatia pela minha situação, mas o que leio em seu rosto é cinismo.

— Acho que, se houvesse mais alguém aqui com você, ele já teria aparecido para salvá-la, porque é óbvio que você está ferrada.

A porta do quarto principal se abre, o guarda-costas entra e a tranca. Por uma fração de segundo, tive a esperança de que fosse Victor vindo me salvar na hora certa. Mas foi só um desejo. O guarda-costas me olha com desprezo. Hamburg acena para ele, que começa a tirar o cinto.

Meu coração afunda até o estômago.

— Sabe — diz Hamburg, dando a volta na escrivaninha —, na primeira vez que a gente se viu, lembro que fiz um acordo com Victor Faust. — Ele aponta para mim. — Você se lembra disso, não?

Hamburg sorri e apoia a mão gorda nas costas da poltrona na qual eu estava sentada, virando-a para mim.

Todo o meu corpo está tremendo; parece que o sangue que passa pelas minhas mãos virou ácido. Ele corre pelo meu coração e pela minha cabeça tão rápido que quase desmaio. Começo a tentar alcançar meu punhal, mas eles estão perto demais, aproximando-se pelos dois lados. Não tenho como enfrentar os dois ao mesmo tempo.

— Como assim? — pergunto, tropeçando nas palavras, tentando ganhar um pouco de tempo.

Hamburg revira os olhos.

— Ora, por favor, Izabel. — Ele gira um dedo no ar. — Apesar do que aconteceu naquela noite, fiquei decepcionado de verdade por vocês dois irem embora antes de cumprir o acordo.

— Eu diria que, em vista do que aconteceu, o acordo não vale mais nada.

Ele sorri para mim e se senta na poltrona de couro. Percebo Hamburg espiar de relance o guarda-costas, dando uma ordem só com o olhar.

Antes que eu consiga me virar, o segurança prende minhas duas mãos nas minhas costas.

— Você vai cometer um erro do caralho se fizer isso! — grito, tentando me livrar das garras do segurança.

Ele me leva à força até uma mesa quadrada e me joga sobre ela. Meus reflexos não são rápidos o suficiente e meu queixo bate no mármore duro. O gosto metálico do sangue enche minha boca.

— Me solte! — Tento chutá-lo. — Me solte agora!

Hamburg ri de novo.

— Vire a cabeça dela para esse lado — ordena ele.

Dois segundos depois, meu pescoço é torcido para o outro lado e mantido ali, minha bochecha esquerda pressionada contra o mármore frio.

— Quero ver a cara dela enquanto você a fode. — Hamburg me olha de novo. — Então vamos continuar do ponto onde paramos naquela noite, tudo bem? Você concorda, Izabel?

— Vai se foder!

— Ah, não, não — diz ele, ainda com o riso na voz. — Não sou eu quem vai foder você. Você não faz o meu tipo. — Seus olhos famintos percorrem o corpo do segurança que está me pressionando por trás.

— Eu vou matar você — digo, cuspindo por entre os dentes. A mão do segurança sobre a minha cabeça impede que eu a mexa. — Vou matar vocês dois! Me estupre! Vamos lá! Mas os dois vão estar mortos antes que eu saia daqui!

— Quem disse que você vai sair daqui? — provoca Hamburg.

O zíper da calça dele está aberto; sua mão direita está parada ao lado da braguilha, como se ele estivesse tentando manter algum autocontrole e não se masturbar ainda.

Então Hamburg acena com dois dedos para o guarda-costas, que me mantém imóvel segurando meus cabelos da nuca.

— Lembre-se disso — diz ele ao segurança. — Ela não vai sair daqui.

Sinto a mão direita do guarda-costas soltar meu cabelo e se mover entre as minhas pernas. Enquanto ele ergue meu vestido, aproveito para alcançar o punhal na minha coxa e tirá-lo da bainha, golpeando atrás em um ângulo desajeitado. O segurança grita de dor e me solta. Puxo o punhal ainda firme na mão, que está coberta de sangue. Ele cambaleia para trás, com a mão na base do pescoço, o sangue jorrando entre seus dedos.

— Sua puta do caralho! — ruge Hamburg, saltando da poltrona e vindo atrás de mim como um elefante descontrolado, a calça caindo de sua cintura flácida.

Corro na direção dele com o punhal levantado e colidimos no meio da sala. Seu peso me joga de bunda no chão e o punhal cai da minha mão, deslizando pelo piso ensanguentado. De pé, Hamburg se abaixa para me segurar, mas me reclino no chão e levanto o pé com toda a força, enfiando o salto da minha sandália na lateral do seu rosto. Ele geme e cambaleia para trás, com a mão na bochecha.

— Eu vou acabar com você! Puta que pariu! — berra ele.

Engatinho na direção do punhal, vendo o segurança no chão, em meio a uma poça de sangue. Ele está engasgando com os próprios fluidos; tentando em vão encher os pulmões de ar.

Pego o punhal com firmeza e rolo no chão enquanto Hamburg se aproxima, derrubando a poltrona de couro. Fico de pé e corro até a mesa, empurrando-a na direção dele. Hamburg tenta tirá-la da frente, mas o móvel balança sobre a base e ele acaba tropeçando. Seu corpo desaba no chão de barriga para baixo e a mesa cai quase na sua cabeça. Salto sobre suas costas e monto em seu corpo obeso. Meus joelhos mal tocam o chão. Agarro seu cabelo, puxo a cabeça dele para trás na minha direção e aperto o punhal em sua garganta, imobilizando-o em segundos.

— Pode me matar! Foda-se! Você não vai sair viva daqui mesmo. — A voz de Hamburg é rouca, sua respiração, rápida e ofegante, como se ele tivesse acabado de tentar correr uma maratona. O cheiro de seu suor e de seu medo invade minhas narinas.

Ocupada com a lâmina em sua garganta, me assusto com o som de batidas fortes na porta. A distração me pega desprevenida. Hamburg consegue se erguer debaixo de mim como um touro, rolando de lado e me derrubando no chão. Deixo cair o punhal em algum lugar, mas não tenho tempo para procurá-lo porque Hamburg consegue se levantar e parte para cima de mim. Ouço a voz de Stephens do outro lado da porta, que vibra com seus socos.

Rolo para sair do caminho antes que Hamburg consiga pular em cima de mim, pego o objeto mais próximo — um peso de papel de pedra, bem pesado, que estava na mesa antes de ser derrubada — e golpeio Hamburg com ele. O som do osso de seu rosto quebrando com o impacto faz meu estômago revirar. Hamburg cai para trás, cobrindo a cara com as mãos.

As batidas na porta ficam mais fortes. Numa fração de segundo, levanto a cabeça e vejo a porta sacudindo com violência no batente. Preciso sair daqui. Agora. Meu olhar varre a sala procurando o punhal, mas não há mais tempo.

Corro para a sala de vigilância, contornando os obstáculos.

Graças a Deus, há outra porta lá dentro. Abro a porta e desço correndo a escada de concreto, torcendo para que seja uma saída e eu não encontre mais ninguém no caminho.


CAPÍTULO CINCO

Sarai

Desço a escada de concreto de dois em dois degraus, segurando no corrimão de metal pintado com as mãos ensanguentadas, até chegar ao térreo. Uma placa vermelha com a palavra SAÍDA está à minha frente. Corro pela passagem mal-iluminada, onde uma lâmpada fluorescente pisca acima de mim e torna o lugar ainda mais ameaçador. Empurro com força a barra da porta com as duas mãos e ela se abre para um beco. Um homem de terno está sentado no capô de um carro, fumando, quando saio para a rua.

Eu fico paralisada.

Ele olha para mim.

Eu olho para ele.

Ele nota o sangue nas minhas mãos e olha de relance para a porta, depois para mim.

— Vá — diz ele, acenando para a caçamba de lixo à minha direita.

Sei que não tenho tempo para ficar confusa nem para perguntar por que ele está me deixando ir embora, mas pergunto assim mesmo.

— Por que você está...?

— Apenas vá!

Ouço passos ecoando na escada atrás da porta.

Lanço um olhar agradecido ao homem e dou a volta na caçamba, desço o beco e me afasto do restaurante. Ouço um tiro segundos depois que dobro a esquina e torço para que seja aquele homem fingindo atirar em mim.

Evito espaços abertos e corro por trás de prédios, protegida pela escuridão, tanto quanto minhas sandálias de salto alto permitem. Quando sinto que estou longe o suficiente para parar um pouco, tento me esconder atrás de outra caçamba e tiro as sandálias. Arranco a peruca loura e a jogo no lixo.

Não consigo respirar. Estou enjoada.

Meu Deus, estou enjoada...

Encosto na parede de tijolos atrás de mim, arqueando as costas e apoiando as mãos nos joelhos. Vomito com violência no chão, meu corpo rígido, o esôfago ardendo.

Pego as sandálias e saio correndo de novo na direção do hotel, tentando esconder o sangue das mãos e do vestido, mas percebo que não é tão fácil. Recebo alguns olhares desconfiados ao passar depressa pela recepção, mas tento ignorá-los e torço para que ninguém chame a polícia.

Em vez de arriscar ser vista por outras pessoas, subo pela escada até o oitavo andar. Quando chego lá, e depois de tudo o que corri, sinto que minhas pernas vão ceder. Encosto na parede e recupero o fôlego, com os joelhos tremendo descontroladamente. Meu peito dói, como se cada respiração trouxesse poeira, fumaça e cacos microscópicos de vidro para o fundo dos pulmões.

O quarto que divido com Eric está trancado e eu não tenho a chave. Aliás...

— Puta merda...

Jogo a cabeça para trás, fecho os olhos e suspiro, arrasada.

Não estou mais com a minha bolsa. Eu a perdi em algum momento da luta na sala de Hamburg. A chave do meu quarto. Meu celular. Minha arma. Meu punhal. Não tenho mais nada.

Bato na porta, mas Eric não está no quarto. Não esperava que estivesse, na verdade, já que não são nem onze da noite. Só para o caso de estar enganada, no entanto, tento o quarto de Dahlia.

— Dahl! Você está aí? — Bato na porta com pressa, tentando não incomodar os outros hóspedes.

Nenhuma resposta.

Já desistindo, jogo as sandálias no chão e apoio as mãos na parede. Minha cabeça desaba. Mas então ouço um clique baixinho e vejo a porta do quarto de Dahlia se abrindo devagar. Levanto a cabeça e a vejo parada ali.

Sem me demorar para questionar a expressão estranha no rosto dela, entro no quarto só para sair do corredor. Eric está sentado na poltrona perto da janela. Noto que seu cabelo está meio bagunçado. O de Dahlia também.

Meu instinto está tentando chamar minha atenção, mas não me importo. Acabei de apunhalar um homem no pescoço e de tentar matar outro. Quase fui estuprada. Estava correndo pelos becos de Los Angeles para fugir de homens armados que vinham atrás de mim. Nada que esses dois façam pode superar isso.

— Meu Deus, Sarai — diz Dahlia, aproximando-se de mim. — Isso é sangue?

A expressão estranha e silenciosa que ela exibia quando entrei no quarto desaparece em um instante quando ela me vê no quarto bem-iluminado. Seus olhos se arregalam, cheios de preocupação.

Eric se levanta da poltrona.

— Você está sangrando. — Ele também me olha de cima a baixo. — O que aconteceu?

Os olhos de Dahlia correm pela minha roupa e pelo meu cabelo preso dentro da touca da peruca.

— Por que... Hã, por que você está vestida assim?

Olho para mim mesma. Não sei o que dizer, então não digo nada. Eu me sinto como um cervo diante dos faróis de um carro, mas minha expressão continua firme e sem emoções, talvez um pouco confusa.

— Você encontrou Matt — acusa Dahlia, começando a levantar a voz. — Puta que pariu, Sarai. Você foi se encontrar com ele, não foi?

Sinto os dedos dela apertando meu antebraço.

Eu me desvencilho de Dahlia e caminho até o banheiro para tirar a touca do cabelo. Enquanto tiro os grampos, noto uma camisinha boiando na privada.

Eric entra no banheiro atrás de mim. Ele sabe que eu vi.

— Sarai, e-eu... Eu sinto muito — diz ele.

— Não se preocupe — respondo, tirando o último grampo e deixando-o na bancada creme.

Passo por Eric e volto para o quarto. Dahlia está me encarando, com o rosto cheio de vergonha e arrependimento.

— Eu...

Ergo a mão e olho para os dois.

— Não, é sério. Não estou brava.

— Como assim? — pergunta Dahlia.

Eric parece agitado. Ele põe a mão na nuca e passa os dedos pelo cabelo.

— Olhe, sem querer ofender — digo a Eric —, mas tenho fingido tudo com você desde a primeira vez que a gente ficou junto.

Ele arregala os olhos, embora tente não deixar que o choque e a mágoa da minha revelação transpareçam demais. Grande parte de mim se sente bem por dizer a verdade. Não por vingança, mas porque eu precisava tirar isso do peito. Mas admito que, depois de descobrir que os dois têm trepado pelas minhas costas, uma pequena parte de mim também fica feliz em magoá-lo. Acho que a vingança sempre encontra um caminho, mesmo nos gestos mais insignificantes.

— Fingido?

— Não tenho tempo para isso — digo, indo na direção da porta. — Vocês dois podem ficar juntos. Não tenho nada contra. Não estou brava, só não me importo mesmo. Preciso ir.

— Espere... Sarai.

Eu me viro para olhar Dahlia. Ela está muito chocada, mal sabe o que pensar. Depois de alguns segundos de silêncio, fico impaciente e a olho com cara de “vai, desembucha”.

— Para você... tudo bem mesmo?

Uau, não sirvo mesmo para o estilo de vida deles. O estilo de vida normal. Nem consigo entender essas coisas de namoro, melhores amigas, infidelidade, competição e joguinhos psicológicos. A cara que eles fazem, tão vazia e mesmo assim tão cheia de incredulidade e dúvida, por causa de uma situação que, para mim, não é tão importante... Tenho coisas mais graves com que me preocupar.

Suspiro, aborrecida com as perguntas vagas e confusas dos dois.

— Sim, por mim, tudo bem — digo, e então me viro para Eric, estendendo a mão. — Preciso da chave do nosso quarto.

Relutante, ele enfia a mão no bolso de trás e pega a chave. Tomo da sua mão, saio dali e vou para o quarto ao lado. Eric vem atrás e tenta falar comigo enquanto guardo minhas coisas na mala.

— Sarai, eu nunca quis...

Eu me viro de repente e o encaro.

— Tudo bem, só vou dizer isto uma vez, depois você muda de assunto ou volta para lá e fica com a Dahlia. Não estou nem aí para o que vocês dois fazem, mas, por favor, não apele para esse clichê de novela de que você nunca quis que isso acontecesse, porque... é muito idiota. — Eu rio baixinho, porque acho idiota mesmo. — Só falta você dizer que o problema não é comigo, é com você. Caramba, você faz ideia do que isso parece? É tão difícil assim acreditar quando digo que não me importo e que estou falando sério? Sem joguinhos. É verdade. — Balanço a cabeça, levanto as mãos e digo: — Não. Me. Importo.

Viro para a mala, fecho o zíper, abro a parte lateral e pego a chave do quarto secreto. Ainda bem que eu tinha uma cópia.

— Preciso ir — digo, andando até a porta e passando por Eric.

— Aonde você vai?

— Não posso contar, mas me escute, Eric, por favor. Se alguém aparecer me procurando, finja que não me conhece. Diga o mesmo para Dahlia. Finjam que nunca me viram na vida. Aliás, quero que vocês dois saiam hoje. Vão para qualquer lugar. Só... não fiquem aqui.

— Você vai me dizer o que aconteceu ou por que está toda ensanguentada? Sarai, você está me deixando assustado pra cacete.

— Eu vou ficar bem — digo, atenuando minha expressão. — Mas prometa que você e Dahlia vão fazer exatamente o que falei.

— Você vai me contar um dia?

— Não posso.

O silêncio entre nós fica mais pesado.

Enfim, abro a porta e saio para o corredor.

— Acho que sou eu quem deveria estar pedindo desculpas.

— Por quê?

Eric fica na porta, com os braços caídos ao lado do corpo.

— Por pensar em outra pessoa durante todo esse tempo em que eu estava com você. — Olho para o chão.

Nós nos encaramos por um breve momento e ninguém diz mais nada. Ambos sabemos que estamos errados. E acho que nós dois estamos aliviados por tudo ter vindo à tona.

Não há mais nada a dizer.

Eu me afasto pelo corredor na direção oposta à do meu quarto secreto e dou a volta por trás, para que Eric não veja aonde estou indo. Quando me tranco no quarto, só consigo desabar na cama. A exaustão, a dor e o choque de tudo o que aconteceu esta noite me atingem em cheio assim que a porta se fecha, e me engolem como uma onda. Eu me jogo de costas no colchão. Minhas panturrilhas doem tanto que duvido conseguir andar sem mancar amanhã.

Fico olhando para o teto escuro até ele desaparecer e eu pegar no sono.


CAPÍTULO SEIS

Sarai

Um tum! pesado me acorda, mais tarde naquela noite. Eu me levanto como uma catapulta.

Vejo dois homens no meu quarto: um desconhecido morto no chão e Victor Faust de pé sobre o corpo dele.

— Levante-se.

— Victor?

Não acredito que ele está aqui. Devo estar sonhando.

— Levante-se, Sarai. AGORA! — Victor me pega pelo cotovelo, me arranca da cama e me põe de pé.

Não consigo nem pegar minhas coisas, ele já está abrindo a porta e me puxando para o corredor com ele, segurando forte a minha mão.

Disparamos juntos pelo corredor e outro homem aparece virando a esquina, de arma em punho. Victor aponta sua 9mm com silenciador e o derruba antes que o cara consiga atirar. Ele passa pelo corpo me puxando, seus dedos fortes afundando na minha mão enquanto corremos para a escada. Ele abre a porta, me empurra para a frente e nós subimos depressa os degraus de concreto. Um andar. Três. Cinco. Minhas pernas estão me matando. Acho que não consigo andar por muito mais tempo. Enfim, no quinto andar, Victor me puxa para outro corredor e rumo a um elevador nos fundos.

Quando as portas do elevador se fecham e estamos só nós dois lá dentro, finalmente tenho a oportunidade de falar.

— Como você sabia que eu estava aqui? — Mal consigo recuperar o fôlego, esgotada pela correria infinita e pela adrenalina, mas acho que sobretudo porque Victor está de pé ao meu lado, segurando minha mão.

Meus olhos começam a arder com as lágrimas.

Engulo o choro.

— O que você estava pensando, Sarai?

— Eu...

Victor segura meu rosto com as duas mãos e me empurra contra a parede do elevador, pressionando ferozmente seus lábios nos meus. Sua língua se entrelaça na minha e sua boca tira meu fôlego em um beijo apaixonado que, enfim, faz meus joelhos cederem. Toda a força que eu estava usando para manter o corpo ereto desaparece quando os lábios dele me tocam. Ele me beija com fome, com raiva, e eu derreto em seus braços.

Então ele se afasta, as mãos fortes nos meus braços, me segurando contra a parede do elevador. Nós nos encaramos pelo que parece ser uma eternidade, nossos olhos paralisados em uma espécie de contemplação profunda, nossos lábios a centímetros de distância. Só quero prová-los de novo.

Mas ele não deixa.

— Responda — exige Victor, estreitando seus olhos perigosos em reprovação.

Já esqueci a pergunta.

Ele me sacode.

— Por que você veio aqui? Tem ideia do que você fez?

Balanço a cabeça em um movimento curto e rápido, parte de mim mais preocupada com seu olhar ameaçador do que com o que ele está dizendo.

A porta do elevador se abre no subsolo e eu não tenho tempo para responder, pois Victor mais uma vez pega minha mão e me puxa para que o siga. Serpenteamos por um grande depósito com caixas em pilhas altas encostadas nas paredes e depois por um longo corredor escuro que leva a um estacionamento. Victor enfim solta minha mão e eu o sigo até um carro parado entre dois furgões pretos com o logotipo do hotel nas laterais. Dois bipes ecoam pelo ambiente e os faróis do carro piscam quando nos aproximamos, iluminando a parede de concreto em frente. Sem perder tempo, me sento no banco do passageiro e fecho a porta.

Segundos depois, Victor está dirigindo casualmente pelo estacionamento até a rua.

— Eu queria que ele morresse — respondo, enfim.

Victor não me olha.

— Bom, você fez um excelente trabalho — rebate ele, sarcástico.

Ele vira para a direita no semáforo, e o carro ganha velocidade quando chegamos à rodovia.

Fico magoada por suas palavras, mas sei que ele tem razão, por isso não discuto. Fiz merda. Uma merda muito grande.

Mas não me dou conta do tamanho dela até Victor dizer:

— Os seus amigos podiam ter morrido. Você podia ter morrido.

Sinto meus olhos se arregalarem além dos limites e me viro mais um pouco para encará-lo.

— Ah, não... Victor, o quê... Eles estão bem?

Sinto que vou vomitar de novo.

Victor me olha por um instante.

— Estão ótimos. O primeiro quarto que os capangas de Hamburg revistaram estava vazio — diz ele, voltando a olhar para a estrada. — Eu cheguei quando eles estavam saindo. Segui um deles até o quarto onde você estava escondida, deixei que ele destrancasse a porta e então ataquei.

As chaves do quarto. Minhas duas chaves extras estavam na bolsa que perdi no restaurante de Hamburg. E os números dos quartos estavam escritos nas capinhas de papel que as protegiam. Eu estava tão preocupada em esconder minha arma e meu punhal que nem pensei em esconder as chaves.

— Merda! — Também olho para a estrada. — E-eu perdi a bolsa no restaurante. As chaves do meu quarto estavam dentro dela. Deixei um rastro para eles seguirem!

Felizmente, eu não tinha uma chave extra do quarto de Dahlia, senão ela e Eric já poderiam estar mortos.

Onde é que eu estava com a cabeça?!

— Não, você deixou literalmente as chaves do seu quarto com o nome do hotel gravado. Sarai, eu devia ter matado você há muito tempo e poupado toda essa confusão para cima de você e de mim.

Eu me viro para encará-lo; a raiva e a mágoa pesando no meu peito.

— Você não está falando sério.

Ele faz uma pausa e me olha. Suspira.

— Não, não estou falando sério.

— Nunca mais me diga isso. Nunca mais me diga uma coisa dessas, ou eu mato você e poupo a mim de toda essa confusão — rebato, desviando o olhar.

— Você não está falando sério — diz Victor.

Olho mais uma vez para aqueles olhos ameaçadores verde-azulados que me fizeram tanta falta.

— Não. Mas acho que isso seria o mais sensato.

— Bom, você não foi a campeã da sensatez hoje, então acho que estou seguro ao menos pelas próximas 24 horas.

Escondo o sorriso.

— Senti sua falta — digo de maneira distante, olhando para a estrada.

Victor não responde, mas admito que seria estranho se respondesse. A despeito de sua falta de emoção, porém, sei que ele também sentiu saudade de mim. Aquele beijo no elevador disse coisas que palavras jamais conseguiriam.

Ele pega uma saída e para o carro debaixo de um viaduto. Puxa o freio de mão e a área ao redor desaparece na escuridão quando ele desliga os faróis.

— O que a gente está fazendo aqui?

— Você precisa ligar para os seus amigos.

— Por quê?

Ele tira um celular do porta-luvas entre nós.

— Mande eles voltarem para o Arizona. Faça ou diga o que for preciso para que eles saiam de Los Angeles. Quanto antes, melhor.

Ele coloca o telefone na minha mão. De início, só olho para o aparelho, mas ele me pressiona com aquele olhar, aquele que grita “vamos lá, faça isso de uma vez”, mas que só alguém como eu, alguém que conhece Victor, seria capaz de notar.

Giro o celular nas mãos, depois o seguro firmemente e digito o número de Eric. Mas então mudo de ideia, desligo no primeiro toque e ligo para Dahlia.

Ela atende no quinto toque.

Respiro fundo e faço o que sei fazer melhor: minto.

— A verdade é que vocês me magoaram. Duvido que um dia eu consiga perdoar você ou Eric pelo que fizeram.

— Sarai... Meu Deus, me desculpe, estou me sentindo muito mal. A gente não queria que isso chegasse a esse ponto. Juro para você. Não sei o que aconteceu...

— Escute, Dahlia, por favor, só me escute.

Ela fica quieta.

Começo a choradeira. Nunca imaginei que eu seria capaz de chorar sob demanda e de forma tão falsa.

— Eu quero acreditar em você. Quero conseguir confiar em você de novo, mas você era minha melhor amiga e me traiu. Preciso de um tempo sozinha e quero que você e Eric voltem para o Arizona. Hoje. Acho que não vou aguentar ver vocês de novo... Espere, onde você está, agora?

Acabo de me dar conta de que, se ela e Eric estiverem no hotel, a essa altura ela já sabe que dois homens foram mortos a tiros no andar do quarto deles.

— A gente está em uma festa em um terraço — conta ela. — T-tudo bem por você? Achei que não tinha nada a ver a gente sair, mas o Eric falou que você insistiu...

— Não, tudo bem — digo, cortando-a. — Insisti mesmo. Onde ele está, agora?

— Deixei Eric lá no terraço para a gente poder conversar. Está muito barulhento lá em cima. Que número é esse de onde você está ligando?

— É o celular de um amigo. Perdi o meu. O Eric por acaso avisou que se alguém procurar por mim...

— Avisou, sim — interrompe Dahlia. — Que confusão é essa, afinal? Meu Deus, Sarai, esquece por um momento esse lance com Eric e me conta o que está acontecendo, por favor. O sangue. As roupas esquisitas que você estava usando e aquele troço na sua cabeça. Era uma touca de peruca? Você está metida em alguma encrenca, eu sei. Sei que você me odeia, e tem todo o direito de odiar, mas, por favor, conte o que aconteceu.

— Não posso contar, porra! — grito, deixando o choro distorcer minha voz. — Caramba, Dahlia, faça o que eu pedi. Pelo menos isso! Você deu para o meu namorado! Por favor, voltem para o Arizona, me deixem esfriar a cabeça e depois eu volto para casa. Talvez aí a gente possa conversar. Mas agora façam o que eu estou pedindo. Tudo bem?

Ela não responde por um momento, e um longo silêncio se forma entre nós.

— Tudo bem — concorda ela. — Vou dizer ao Eric que a gente precisa ir embora.

— Obrigada.

Estou apenas um pouco aliviada. Não vou me sentir bem com isso até saber que eles chegaram em casa sãos e salvos.

Desligo sem dizer mais uma palavra.

— Bom, isso foi bastante convincente — observa Victor, levemente impressionado.

— Acho que foi.

— Eu sei que a sua amiga acreditou — acrescenta ele. — Mas eu não acreditei em uma só palavra.

Eu me viro para ele. Victor me conhece tão bem quanto eu o conheço, parece.

— É porque nem uma palavra era verdade.

Ele deixa por isso mesmo e nós saímos de baixo do viaduto.

Chegamos a uma casa perdida no final de uma estrada isolada nos arredores da cidade, empoleirada no alto de uma colina com uma vista quase perfeita para a cidade lá embaixo. Uma piscina de formato irregular começa no lado esquerdo da casa e serpenteia por trás, a água azul-clara iluminada por lâmpadas submersas parece luminescente. O lugar está silencioso. Só ouço o vento passando pela mata cerrada que contorna o lado direito e os fundos da casa, impedindo uma visão em 360 graus da paisagem iluminada de Los Angeles. Quando nos aproximamos da porta, uma mulher robusta usando uniforme azul de empregada nos recebe. Ela tem cabelo preto encaracolado e pele morena. Suas bochechas são volumosas, envolvendo seus olhos castanho-escuros pequenos e brilhantes, que fitam atentamente Victor e a mim.

— Por favor, entrem — diz ela, com um sotaque hispânico familiar.

A mulher fecha a porta. A casa cheira a limpa-vidro e a uma mistura pouco natural de cheiros adocicados que só pode vir de algum tipo de aromatizador de ambientes artificial. Parece que todas as janelas foram abertas, permitindo que a brisa noturna de verão se espalhasse pela casa. Não se parece em nada com as mansões ricas onde já estive, mas é impecável e aconchegante, e penso que eu deveria pelo menos ter tomado um banho antes de vir. Minha pele e minhas roupas ainda estão manchadas de sangue...

Victor está usando uma calça preta e uma camisa apertada de mangas compridas que adere a cada músculo de seus braços e seu peito, com os punhos desabotoados e arregaçados até os cotovelos. A camisa está por fora da calça e os dois botões de cima estão abertos. Sapatos pretos chiques e informais calçam seus pés. Um relógio brilhante de prata adorna seu pulso direito, e não consigo deixar de notar a solitária veia grossa que percorre as costas de sua mão até o osso de seu pulso. Quando ele segue a empregada pela grande entrada e se vira momentaneamente de costas para mim, vejo o cabo da arma saindo da cintura de sua calça, com a barra da camisa branca enfiada atrás.

Ele me olha, para e estende o braço, em um gesto para que eu ande à sua frente. Tremo de leve quando sua mão toca minhas costas perto da cintura.

Antes que eu tenha tempo de me sentir deslocada ao lado dele, Fredrik, o amigo e cúmplice sueco de Victor que conheci no restaurante de Hamburg há tanto tempo, entra na sala pelas grandes portas de vidro que dão para o quintal dos fundos.


CAPÍTULO SETE

Sarai

— Você chegou cedo — comenta Fredrik com um sorriso mortal, porém inimaginavelmente sexy.

As roupas dele são bem parecidas com as de Victor, mas, em vez de camisa de botão, Fredrik está vestindo uma camiseta branca apertada que adere à sua forma esbelta e máscula. Ele está descalço.

A primeira vez que vi Fredrik, pensei que era impossível haver alguém mais bonito. Com cabelo macio, quase preto, e olhos escuros e misteriosos, suas feições parecem ter sido esculpidas por algum artista famoso. Mas sempre achei que havia algo de sombrio e assustador naquele homem. Um lado dele que eu, particularmente, não faço questão de conhecer. Para mim, basta o jeito como ele era quando nos encontramos: cordial, encantador e misterioso, uma linda máscara que ele usa para esconder a fera que há por trás.

Victor olha para seu relógio caro.

— Só dez minutos mais cedo — comenta ele.

Fredrik sorri ao se aproximar, os dentes brancos reluzindo contra a pele bronzeada.

— Sim, mas você sabe como eu sou.

Victor assente, mas não alonga o assunto. A mim, só resta imaginar o que aquilo significa.

— É bom ver você — diz Fredrik, observando-me do topo de sua altura considerável e presença avassaladora. Ele se inclina, pega minha mão e a beija, logo acima dos nós dos dedos. — Ouvi dizer que você matou um homem hoje.

Ele apruma as costas e solta minha mão. Um sorriso perturbador e orgulhoso surge em seu rosto, os cantos dos olhos se aquecendo com alguma lembrança ou... prazer, como se a ideia de matar alguém o deliciasse de alguma forma.

Olho para Victor à minha direita. Ele assente, respondendo à pergunta estampada no meu rosto. O guarda-costas que apunhalei no pescoço morreu?

Olho para Fredrik e respondo sem rodeios.

— Acho que matei.

Um leve sorriso se abre nos cantos dos lábios de Fredrik, e ele olha de relance para Victor, sem mover a cabeça.

— E você se sente bem com isso? — pergunta Fredrik.

— Para dizer a verdade, sim — respondo sem demora. — O desgraçado mereceu.

Fredrik e Victor parecem envolvidos em algum tipo de conversa secreta. Odeio isso.

Enfim, Fredrik diz para Victor em voz alta:

— Você arrumou sarna para se coçar, Faust.

Ele então se vira de costas para nós e anda na direção das portas de vidro. Nós o seguimos para o lado de fora, passando pela parte coberta do quintal e descendo uma escada de pedra que leva a um enorme pátio, também de pedra, que se abre em todas as direções. O pátio é decorado com mesas e cadeiras de ferro batido e uma cama com dossel ao ar livre.

Eu me sento ao lado de Victor em um sofá.

— Como é que você sabe? — pergunto a Fredrik, mas então me viro para Victor e digo: — E você ainda não me contou como sabia que eu estava aqui.

Na verdade, isso não importa muito, só quero encará-lo nos olhos de novo. Quero ficar sozinha com Victor, mas por enquanto vou precisar me contentar com os 7 centímetros entre nossos corpos, sentados lado a lado.

— Melinda Rochester me contou — explica Fredrik com um sorriso conivente. Começo a perguntar “E quem é Melinda Rochester”, mas ele diz: — Bem, ela contou para todo mundo, na verdade. Noticiário do Canal 7. Um homem morto a punhaladas atrás de um restaurante de Los Angeles.

Começo a me retorcer por dentro. Espero que as câmeras não tenham me mostrado com nitidez.

Eu me viro para Victor, com a preocupação transparecendo no rosto.

— Eu estava de peruca loura — digo, tentando encontrar alguma coisa, qualquer coisa que eu tenha feito certo. — Fiquei com a cabeça baixa... a maior parte do tempo.

Desisto. Sei que o que fiz vai continuar me perseguindo. Suspiro e olho para as mãos ensanguentadas no meu colo.

— E encontrar você foi fácil — continua Victor. — A sra. Gregory me ligou depois que você saiu do Arizona. Ela estava preocupada com a sua vinda para Los Angeles e achou que eu precisava saber.

Viro a cabeça para encará-lo.

— O quê? Dina sabia onde você estava? — Sinto a pele ao redor das sobrancelhas se enrijecendo.

— Não — responde ele, com delicadeza. — Ela não sabia onde eu estava, mas sabia como entrar em contato comigo.

Essas palavras me magoam. Engulo em seco a sensação de ser traída por eles.

— Falei para ela entrar em contato comigo só em caso de emergência — acrescenta Victor. — Caso algo acontecesse com você.

— Você deixou para Dina uma forma de entrar em contato — digo, ríspida —, mas para mim, nada. Não acredito que você fez isso.

— Eu queria que você tocasse a sua vida. Mas, caso os irmãos de Javier descobrissem onde você estava, ou você decidisse fazer uma proeza como a de hoje, eu queria ficar sabendo.

Não consigo olhar para Victor. Tento chegar mais alguns centímetros para o lado a fim de aumentar a distância entre nós. Ainda assim, mesmo que esteja magoada e enfurecida com ele, sinto vontade de me aproximar de novo. Mas me mantenho firme e me recuso a deixá-lo perceber que o poder que ele exerce sobre mim faz a raiva que sinto parecer um chilique.

— Não acredito que Dina escondeu isso de mim — digo em voz alta, ainda que esteja falando mais comigo mesma.

— Ela escondeu de você porque eu disse a ela quanto isso era importante.

— Bom, de qualquer maneira — interrompe Fredrik, sentando-se na poltrona ao lado do sofá —, parece que você se meteu em uma situação da qual não vai conseguir sair tão facilmente, se é que vai conseguir.

— Por que a gente está aqui? — pergunto, aborrecida.

Fredrik ri baixinho.

— Aonde mais você iria?

— Eu precisava tirar você do hotel — explica Victor.

— Espere um pouco. Eu não matei aquele homem atrás do restaurante. Tudo aconteceu na sala particular de Hamburg, no andar de cima.

Recordo o homem que vi do lado de fora, atrás do restaurante, aquele que me deixou fugir, e meu coração afunda.

— Hamburg não deixaria que a polícia acreditasse que o assassinato aconteceu lá dentro, porque eles confiscariam a memória da câmera de vigilância e veriam o que realmente aconteceu.

Não estou entendendo nada. Nadinha.

— Eles não iam querer que a polícia soubesse o que realmente aconteceu?

Fredrik se reclina na poltrona e ergue um pé descalço, apoiando o tornozelo sobre o outro joelho, e estende os braços sobre os da poltrona.

Victor balança a cabeça.

— Preciso mesmo explicar isso para você, Sarai?

Sua vaga irritação me pega de surpresa. Olho para ele e levo alguns segundos para entender tudo sem que ele precise explicar.

— Ah, entendi — digo, olhando um de cada vez. — Hamburg não quer que a polícia se envolva porque corre o risco de se expor. O que ele fez, então? Só levou o corpo para fora? Preparou a situação para parecer um assalto comum? Não muito diferente do que ele fez naquela noite em que a gente estava na mansão dele, imagino.

Paro por aí porque Fredrik está presente. Não sei qual o grau de intimidade entre ele e Victor, nem mesmo se Fredrik sabe o que aconteceu na noite em que Victor matou a esposa de Hamburg.

Os olhos de Victor sorriem de leve para mim: sua maneira de me mostrar quanto lhe agrada eu ter entendido tudo. Ainda fingindo estar aborrecida, não retribuo o olhar da forma que ele deve esperar.

A empregada aparece com um balde chique de gelo, de madeira, com três garrafas de cerveja dentro. Fredrik pega uma, então ela nos oferece. Victor pega uma garrafa, mas recuso, mal conseguindo olhar a mulher nos olhos. Estou absorta demais nos acontecimentos da noite, que não me saem da cabeça.

A empregada vai embora logo depois, sem dizer uma palavra.

— O que você quis dizer com os irmãos de Javier?

Victor abre sua garrafa e a põe na mesa.

— Dois deles, Luis e Diego, assumiram os negócios de Javier dias depois que você o matou.

Por um instante, o rosto de Javier surge em minha mente: sua expressão chocada e ainda orgulhosa, os olhos arregalados, o corpo caindo no chão segundos depois de eu meter uma bala em seu peito.

Afasto a imagem.

Eu me lembro de Luis e Diego. Diego é aquele que tentou me estuprar quando eu estava na fortaleza no México, aquele que Javier castrou como punição.

— Eles estão me procurando?

Victor toma um gole de cerveja e devolve a garrafa à mesa com calma.

— Que eu saiba, não. Estou monitorando a fortaleza há meses. Os irmãos de Javier são amadores. Não têm ideia do que fazer com tanto poder. Duvido até que vejam você como ameaça.

Fredrik toma um gole de cerveja e prende a garrafa entre as pernas.

— Não fique tão aliviada assim — diz ele. — É melhor ser perseguida por amadores do que por Hamburg e aquele braço direito dele.

Um nó nervoso se forma no fundo do meu estômago. Olho de relance para Victor, buscando respostas.

— Willem Stephens — esclarece Victor — faz todo o serviço sujo de Hamburg. Hamburg em si é covarde, tão perigoso quanto o pedófilo gente boa da vizinhança. Mal consegue atirar em um alvo imóvel, e trairia alguém em dois minutos para se salvar. — Ele arqueia uma sobrancelha. — Stephens, por outro lado, tem uma extensa formação militar, é ex-mercenário e trabalhou para uma Ordem do mercado negro em 1986.

— Uma o quê?

— Uma Ordem como a nossa — explica Victor —, mas que aceita contratos particulares. Eles fazem coisas que outros agentes se recusam a fazer, vendem seus serviços basicamente para qualquer um.

— Ah... Então, resumindo, ele mata gente inocente por dinheiro.

Lembro o que Victor me contou, meses atrás, sobre a natureza dos contratos particulares, como pessoas eram assassinadas por motivos fúteis como traição conjugal ou vingança. A Ordem de Victor só trabalha com crime, ameaças sérias a um grande número de pessoas ou ideias que poderiam ter um impacto negativo na sociedade ou na vida como um todo.

Engulo em seco.

— Bom, ele me viu, com certeza. — Levanto as mãos e tiro o cabelo do rosto, passando as mãos no alto da cabeça. — Foi ele quem me levou para o segundo andar, para a sala de Hamburg. — Olho para Victor. — Desculpa, Victor. Eu... eu não sabia de nada disso.

Fredrik ri baixinho e diz:

— Algo me diz que, mesmo se você soubesse, teria ido lá de qualquer maneira.

Desvio o olhar de Victor e olho para baixo de novo, nervosa, esfregando os dedos ensanguentados uns nos outros. Fredrik tem razão. Odeio admitir, mas ele tem razão. Eu teria ido para o restaurante mesmo assim. Teria tentado matar Hamburg mesmo assim. Mas, se eu soubesse de tudo isso, acho que teria pensado em um plano melhor.

De repente, sinto que alguma coisa toma meu corpo e me tira o fôlego.

— Victor... Meu celular... — Eu me levanto do sofá, com o cabelo castanho-avermelhado caindo pelos ombros, batendo em meus braços nas partes em que o sangue secou e formou uma crosta áspera. — O número de Dina está no meu celular. Merda. Merda! Victor, Stephens vai atrás dela! Preciso voltar para o Arizona!

Começo a seguir para a porta dos fundos, mas Victor me alcança antes que eu atravesse o caminho decorado com pedras lisas.

— Espere aí.

Olho para baixo e vejo os dedos dele em volta do meu pulso. Seus hipnóticos olhos verde-azulados me fitam com desejo e devoção. Devoção. Algo que nunca vi no olhar de Victor antes.

Fredrik fala atrás de nós, me tirando do transe em que Victor me colocou.

— Eu vou cuidar disso — diz ele.

Desvio o olhar de Victor para Fredrik, que então ganha importância, considerando que a vida de Dina está em jogo.

— Como? — pergunto.

Victor me leva de volta para o sofá.

Fredrik pega o celular da mesa à frente, procura um número e toca na tela para ligar. Então encosta o celular no ouvido.

Victor me faz sentar perto dele de novo. Estou concentrada demais em Fredrik no momento para notar que Victor fez questão de se sentar tão perto que sua coxa está encostada na minha. Quero aproveitar o momento de proximidade, mas não posso. Estou preocupada com Dina.

Fredrik se reclina na poltrona de novo, balançando o pé descalço apoiado no joelho. Seu rosto fica alerta quando alguém atende à ligação.

— Em quanto tempo você consegue chegar a Lake Havasu City? — pergunta Fredrik ao telefone. Ele ouve por um segundo e assente. — Mando o endereço por mensagem de texto assim que eu desligar. Vá para lá o mais rápido que puder. Uma mulher mora lá. Dina Gregory. — Ele me olha de relance, para se certificar de que disse o nome certo. Como não o corrijo, volta a falar ao telefone. — Tire-a da casa e a leve para Amelia, em Phoenix. Sim. Sim. Não, não pergunte nada a ela. Só tome cuidado para ninguém machucar Dina. Sim. Me ligue neste número assim que estiver com ela.

Fredrik assente mais algumas vezes. Meu coração está batendo tão forte que parece pronto para pular do peito. Espero que a pessoa com quem ele está falando consiga encontrar Dina a tempo.

Fredrik desliga e parece abrir uma tela de texto no celular. Ele olha para mim, mas é Victor quem dá o endereço da sra. Gregory. Fredrik o digita e deixa o celular na mesa.

— Meu contato está a apenas trinta minutos de lá — explica Fredrik, olhando primeiro para mim. Então se vira para Victor. — O que você quer que eu faça?

Ele levanta as costas da poltrona e apoia os cotovelos nos joelhos, deixando as mãos entre eles. Mesmo em uma posição relaxada, ele consegue parecer elegante, importante e perigoso.

— Ainda preciso que você verifique o que discutimos ontem — diz Victor, e fica ainda mais claro, para mim, que Fredrik recebe ordens dele, embora não pareça ser do tipo que recebe ordens de ninguém. Mas está claro que os dois têm uma relação forte. — E, se você não se importa, preciso da sua casa emprestada por esta noite.

Os olhos escuros de Fredrik me encaram, e o traço de um sorriso aparece em seu rosto. Ele se levanta e pega o celular da mesa, escondendo-o na mão.

— Não precisa dizer mais nada. Vou sair daqui em vinte minutos. Eu ia mesmo me encontrar com alguém hoje, então está combinado.

A atitude de Victor muda um pouco, o que percebo no mesmo instante. Ele está encarando Fredrik, do outro lado da mesa do pátio, com um olhar cansado e cauteloso.

— Você não vai fazer o que estou pensando...

Ouço com atenção sem nem ao menos tentar disfarçar. Eu quero que eles saibam que estou bisbilhotando, porque é frustrante nenhum dos dois me oferecer qualquer explicação sobre esses comentários internos.

Fredrik ergue um lado da boca em um meio sorriso. Ele balança a cabeça de leve.

— Não, esta noite, não, infelizmente. Mas já faz algum tempo. Vou precisar que você me ajude com isso em breve.

Os olhos dele passam por mim e sinto um calafrio percorrer minhas costas. Não consigo decidir se é um arrepio bom ou assustador.

— Você terá sua oportunidade logo, logo — assegura Victor.

Fredrik dá a volta na mesa.

— Lamento por ter que encurtar nossa reunião.

— Tudo bem — digo. — Obrigada por ajudar com Dina. Você avisa quando receber aquela ligação?

Fredrik assente.

— Com certeza. Farei isso.

— Obrigada.

Victor acompanha Fredrik até a porta de vidro e os dois a atravessam. Fico sentada, observando-os do outro lado do pátio de pedra e tentando ouvir o máximo que posso, mas eles fazem questão de falar em voz baixa. Isso também me deixa frustrada. E pretendo informar Victor disso.


CAPÍTULO OITO

Victor

Fredrik fecha a porta de correr feita de vidro.

— Ela não sabe nada sobre Niklas? — pergunta ele, como eu já previa.

— Não, mas vou ter que contar. Ela vai precisar ficar atenta o tempo todo. Agora mais do que nunca.

— Ela não pode ficar aqui por muito tempo — aconselha Fredrik, olhando, através do vidro, Sarai sentada no sofá lá fora e nos observando. — Você também não.

— Eu sei. Quando Niklas descobrir que ela participou do assassinato no restaurante de Hamburg, vai saber na mesma hora que também estou envolvido nisso. Ele não é bobo. Se Sarai está viva, Niklas vai saber que estou tentando ajudá-la.

— E como ele desconfia de que agora trabalho com você — acrescenta Fredrik —, ela corre tanto perigo perto de mim quanto de você.

— É verdade.

Fredrik balança a cabeça para mim, com um sorriso escondido no fundo dos olhos.

— Não entendo esse envolvimento. Respeito você como sempre, respeitei, Victor, mas nunca vou entender a necessidade de um homem amar uma mulher.

— Eu não estou apaixonado por ela. Ela só é importante para mim.

— Talvez não — retruca ele, indo para a cozinha. — Mas parece que o amor e o envolvimento trazem as mesmas consequências, meu amigo. — Sigo Fredrik até a cozinha iluminada e ele abre um armário. — Mas estou do seu lado. O que você precisar que eu faça para ajudar, é só pedir. — Ele aponta para mim perto do armário, agora com um pão na mão.

A empregada de Fredrik entra na cozinha, roliça e mais velha do que nós dois juntos, exatamente o tipo de mulher que jamais o atrairia, e foi por isso que ele a contratou. Ela lhe pergunta em espanhol se pode voltar para casa e ver a família mais cedo hoje. Fredrik responde em espanhol, concordando. Ela assente respeitosamente e passa por mim na sala. De soslaio, eu a observo pegar uma bolsa volumosa de couro marrom do chão, perto da espreguiçadeira, e colocá-la no ombro. Depois ela vai até a porta, fechando-a devagar ao sair.

Sarai está de pé nas sombras da sala quando desvio o olhar da porta. Nem ouvi a porta de vidro correr quando ela entrou, e pelo jeito Fredrik também não.

Ela vai para a cozinha iluminada, de braços cruzados, os dedos delicados segurando seus bíceps femininos, mas bem-definidos. Ela é linda demais, mesmo quando está desgrenhada assim.

— Quanto tempo vocês planejavam me deixar lá fora? — pergunta ela, com um traço de irritação na voz.

— Ninguém disse que você precisava ficar lá, gata — responde Fredrik.

Ele gosta dela, isso é óbvio para mim, e ele deve saber. Mas também sabe que vou matá-lo. Ainda assim, minha confiança em Fredrik é maior do que minha preocupação de que ele volte para o lado sombrio e a machuque. Fredrik Gustavsson é uma fera do tipo mais carnal, que adora mulheres e sangue, mas tem limites e critérios, além de levar a lealdade, o respeito e a amizade muito a sério. Sua lealdade a mim é, afinal, o motivo para ele trair a Ordem todos os dias me ajudando.

Sarai se aproxima de mim e me olha nos olhos, inclinando um pouco a cabeça para o lado. O cheiro de sua pele e o calor tênue que emana dela quase me fazem perder o controle. Tenho conseguido me conter bastante desde que a beijei no elevador. Pretendo continuar assim.

Ela não diz nada, mas continua me encarando como se esperasse alguma coisa. Fico confuso. Ela inclina a cabeça para o outro lado e seu olhar se suaviza, embora eu não saiba ao certo por quê. Parece maliciosa e cheia de expectativa.

Ouço Fredrik rir baixinho e a porta da geladeira se fechar, mas não tiro os olhos de Sarai.

— As coisas são tão mais fáceis do meu jeito. — Ouço-o dizer, com um sorriso na voz.

— Entre em contato comigo assim que tiver a informação sobre Niklas — peço, ainda olhando nos olhos de Sarai e ignorando o comentário dele. — E quando souber pelo seu contato se Dina Gregory está a salvo em Phoenix.

— Pode deixar — diz Fredrik, e então vai para a porta do corredor que leva ao seu quarto. Mas ele para e olha para nós. — Se você não se importa...

Enfim desvio o olhar de Sarai e dou atenção total a Fredrik.

— Não se preocupe — interrompo —, eu sei onde fica o quarto de hóspedes.

Ele enfia na boca um sanduíche que mal notei que ele preparava e morde, rasgando um pedaço de pão. Eu o vejo piscando para Sarai antes de desaparecer da sala. Foi algo inofensivo, uma menção ao que ele acha que pode acontecer entre nós quando sair, e não uma tentativa de flerte.

— Que informação sobre Niklas? — pergunta Sarai, seus traços suaves agora encobertos pela preocupação.

Estendo a mão e passo os dedos por algumas mechas do cabelo dela.

— Preciso contar muita coisa para você — anuncio, tirando a mão antes de perder o controle e acabar tocando nela mais do que pretendo. — Sei que você deve estar exausta. Por que não toma um banho e fica à vontade primeiro? Depois conversamos.

Um sorrisinho suave emerge em seus lábios, mas logo desaparece em seu rosto enrubescido.

— Você quer dizer que eu estou nojenta? — pergunta ela, tímida. — Esse é o seu jeito de me dizer que preciso lavar meu corpo nojento?

— Na verdade, sim — admito.

Por um momento ela faz uma careta e parece ofendida, mas então só balança a cabeça e dá risada. Admiro isso em Sarai. Admiro muita coisa nela.

— Tudo bem. — Sua expressão brincalhona fica séria de novo. — Mas você precisa me contar tudo, Victor. E eu sei que você deve ter muito para contar, mas saiba que também preciso dizer muita coisa para você.

Eu já esperava isso. E, antes que ela fique na ponta dos pés, incline o corpo na minha direção e me beije, já sei que, quando ela sair do banho, vou precisar decidir o que vamos fazer. Vou precisar tomar algumas decisões importantes, que nos afetarão.

Porque de uma coisa eu tenho certeza: Sarai não pode voltar para casa.


Sarai

Quando volto, Victor está na sala, acomodado na beira do sofá, curvado sobre a mesinha de centro feita de vidro que está cheia de pedaços de papel e fotografias. Entro, mas ele continua remexendo neles sem erguer a cabeça para me olhar. Só que ele não me engana, sei que sente a minha presença tanto quanto quero que ele sinta.

Vasculhei o guarda-roupa de Fredrik procurando uma camiseta branca, que vesti sobre meus seios nus. Infelizmente, tive que usar a mesma calcinha de antes, mas as cuecas boxer de Fredrik não são exatamente o tipo de lingerie que eu gostaria de usar para seduzir Victor. Só uma camiseta e uma calcinha. Claro que fiz questão de vestir o mínimo possível, porque desejo Victor e não tenho nenhuma vergonha de deixar isso claro. Mas ainda custo a acreditar que estou no mesmo cômodo que ele, depois de meses achando que ele havia ido embora para sempre.

Acho que o beijo no elevador é onde minha mente ficou suspensa, como se o tempo tivesse parado naquele momento e cada parte de mim ainda deseje que aquele instante continue. Contudo, o resto do mundo continua passando ao meu redor.

Eu me sento ao lado de Victor, recolhendo um pé descalço para o sofá e enfiando-o sob a minha coxa.

— O que é isso tudo? — Olho para os papéis e fotografias na mesa.

Ele mexe em alguns pedaços de papel, empilhando-os.

— É um serviço — explica ele, colocando a foto de um homem de camiseta regata na pequena pilha. — Agora eu trabalho por conta própria.

Isso me surpreende.

— Como assim? — Acho que sei o que ele quer dizer, mas custo a acreditar.

Ele pega a pilha de papéis e bate as laterais na mesa para ajeitar todas as folhas. Então enfia o maço em um envelope de papel pardo.

— Eu saí da Ordem, Sarai. — Ele olha para mim.

Victor aperta as pontas do fecho prateado para fechar o envelope.

Meus pensamentos se embaralham, minhas palavras ficam confusas na ponta da língua. Luto, desesperada, para acreditar no que ele acaba de me contar.

— Victor... mas... não...

— Sim — confirma ele, virando-se para mim e me olhando bem nos olhos. — É verdade. Eu me rebelei contra a Ordem, contra Vonnegut, e agora eles estão atrás de mim. — Ele volta a mexer nos outros papéis na mesa. — Mas ainda preciso trabalhar, por isso agora trabalho sozinho.

Balanço a cabeça sem parar, sem querer engolir a verdade. A ideia de Victor sendo caçado por aqueles que o fizeram ser como ele é, por qualquer um, faz um pânico febril correr pelas minhas veias.

Solto um longo suspiro.

— Mas... mas e Fredrik? E Niklas? Victor, eu... O que está acontecendo?

Ele respira fundo e deixa a folha de papel cair suavemente na mesa, então reclina as costas no sofá.

— Fredrik ainda trabalha para a Ordem. Está lá dentro. Ele vigia Niklas e... — seus olhos cruzam com os meus por um instante —... tem me ajudado a manter você a salvo.

Antes que eu consiga fazer mais perguntas presas na garganta, Victor se levanta e continua a falar, enquanto fico sentada e o observo com a boca semiaberta e as pernas dobradas sobre a almofada.

— Como você sabe, quando alguém está sob suspeita de trair a Ordem, é imediatamente eliminado. Mas acredito que Niklas deixou Fredrik vivo e não transmitiu suas preocupações a Vonnegut pelo simples fato de que Niklas está usando Fredrik para me encontrar. Assim como deixou você viva todo este tempo, esperando que um dia você o levasse a mim.

O que mais me choca não é o que Victor diz, mas o que ele deixa de fora. Tiro as duas pernas de cima do sofá e pressiono os pés no chão de madeira, apoiando as mãos nas almofadas.

— Victor, o que você está me dizendo? Quer dizer que... Niklas continua com Vonnegut?

Espero que não seja isso que ele esteja tentando me dizer. Espero de todo o coração que minha decisão de deixar Niklas vivo aquele dia no hotel, quando ele atirou em mim, não tenha sido o maior erro da minha vida.

Os olhos de Victor vagam para a porta de vidro, e sinto que uma espécie de sofrimento infinito o consome, mas ele não deixa transparecer.

— Você estava lá. Eu disse para o meu irmão que, se ele decidisse continuar na Ordem caso eu resolvesse sair, eu não ficaria bravo com ele. Dei a ele a minha palavra, Sarai. — Victor vai até a porta de vidro, cruza os braços e olha para a piscina azul iluminada que reluz sob o céu cinzento. — Agora é hora de Niklas brilhar, e não vou tirar isso dele.

— Que absurdo! — Salto do sofá com os punhos fechados. — Ele está atrás de você, não é? — Cerro os dentes e contorno a mesinha de centro. — Caralho, é isso, Victor? Para provar seu valor para Vonnegut, ele foi encarregado de matar você. Aquele merda do seu irmão traiu você. Ele acha que vai pegar o seu lugar na Ordem. Puta que pariu, não acredito...

— É o que é, Sarai — interrompe Victor, virando-se para me encarar. — Mas, neste momento, Niklas é a menor das minhas preocupações.

Cruzando os braços, começo a andar de um lado para outro, olhando os veios claros e escuros da madeira sob meus pés descalços. Minhas unhas ainda têm o esmalte vermelho-sangue de duas semanas atrás.

— Por que saiu da Ordem?

— Eu tive que sair. Não tinha escolha.

— Não acredito.

Victor suspira.

— Vonnegut descobriu sobre a gente — conta ele, ganhando minha atenção total. — Foi Samantha... na noite em que ela morreu. Antes que eu saísse da Ordem, encontrei Vonnegut em Berlim, o primeiro encontro frente a frente que tive com ele em meses. Foi em uma sala de interrogatório. Quatro paredes. Uma porta. Uma mesa. Duas cadeiras. Somente eu e Vonnegut sentados frente a frente, com uma luz brilhando no teto acima de nós. — Victor olha para trás pela porta de vidro e depois continua: — No início, eu estava certo de que ele tinha me levado para lá com a intenção de me matar. Eu estava preparado...

— Para morrer? — Se Victor responder que sim, vou dar um tapa na cara dele.

— Não — responde ele, e consigo respirar um pouco melhor. — Eu fui para lá preparado. Raptei a mulher de Vonnegut antes de ir encontrá-lo. Fredrik a manteve em uma sala, pronto para fazer... as coisas dele, caso fosse necessário.

No mesmo instante, quero perguntar o que são as “coisas” de Fredrik, mas deixo a pergunta de lado por enquanto e digo:

— Se Vonnegut quisesse matar você, a esposa dele seria a sua moeda de troca.

De costas para mim, ele assente.

— Samantha estava sendo vigiada pela Ordem. Provavelmente há muito tempo.

— Eles desconfiavam da traição dela? Por que não a mataram, então, como fizeram com a mãe de Niklas, ou como queriam fazer com Niklas?

Victor se vira para me encarar de novo.

— Eles não desconfiavam dela, Sarai, ela era... — Victor respira fundo e aperta os lábios.

— Ela era o quê? — Chego mais perto dele. Não gosto do rumo que a conversa está tomando.

— Ela era mais leal à Ordem do que eu jamais poderia ter imaginado — conta ele, e isso fere meu coração. — Sentado naquela sala com Vonnegut, quanto mais ele falava, mais eu começava a entender que Samantha me traiu da mesma forma que Niklas. Vonnegut me contou coisas que ele não tinha como saber. Ele sabia que eu ajudei você. Em algum momento antes de morrer, naquela noite, Samantha conseguiu passar informações a Vonnegut sobre nossa estadia por lá.

— Não acredito nisso. — Golpeio o ar com a mão diante de mim. — Samantha morreu tentando me proteger. Já falamos sobre isso. Não acredito em você, Victor. Ela era uma boa pessoa.

— Ela era boa manipuladora, Sarai, nada mais do que isso.

Balanço a cabeça, ainda sem acreditar.

— Foi Niklas quem contou a Vonnegut que você me ajudou. Só pode ter sido. Niklas sabia até que você tinha me levado para a casa de Samantha.

— Sim, mas Niklas não sabia que eu fiz Samantha provar nossa comida antes de a gente comer, naquela noite. Assim que Vonnegut mencionou quanto eu ainda desconfiava dela depois de tantos anos, eu soube que ela havia me traído.

— Mas isso não faz nenhum sentido. — Começo a andar pela sala de novo, de braços cruzados e com uma das mãos apoiada no rosto. — Por que ela me protegeria de Javier?

— Porque ela não era leal a Javier.

Jogo as mãos para o ar, atônita com aquela revelação.

— Não dá para confiar em ninguém — digo, me jogando no sofá e olhando para o nada.

— Não, não dá — concorda Victor, e eu olho para cima, detectando um significado oculto por trás de suas palavras. — Agora talvez você entenda por que eu não me envolvo com ninguém. Não é só o trabalho, Sarai. As pessoas em geral não são confiáveis, especialmente na minha profissão, na qual a confiança é tão rara que não vale a pena perder tempo e esforço procurando por ela.

— Mas você parece confiar em Fredrik — observo, olhando para Victor do sofá. — Por que me trouxe logo aqui? Não aprendeu a lição com Samantha?

Sua expressão fica um pouco mais sombria, ressentida pela minha acusação.

— Eu nunca disse que confiava em Fredrik. Mas no momento ele é meu único contato dentro da Ordem e, nos últimos sete meses, não fez nada que não o tornasse digno de confiança. Ao contrário, fez tudo para provar sua lealdade a mim.

— Mas isso não significa que seja verdade.

— Não, você tem razão, mas logo vou saber com cem por cento de certeza se Fredrik é confiável ou não.

— Como?

— Você vai descobrir comigo.

— Por que se dar a esse trabalho? Você disse que a confiança é tão rara que não vale o esforço.

— Você faz muitas perguntas.

— Pois é, acho que faço. E você não responde o suficiente.

— Não, acho que não. — Victor abre um sorrisinho, e meu coração se derrete instantaneamente em uma poça de mingau.

Desvio os olhos dos dele e disfarço meus sentimentos.

— Não estou segura aqui — digo, encarando-o novamente.

— Você não está segura em lugar nenhum — corrige Victor. — Mas, enquanto estiver comigo, nada vai acontecer com você.

— Quem está falando merda agora?

Ele levanta uma sobrancelha.

— Você não é meu herói, lembra? — digo para refrescar a memória de Victor. — Não é minha alma gêmea que jamais deixará que nada de ruim aconteça comigo. Devo confiar nos meus instintos primeiro e em você, se eu decidir confiar, por último. Você me disse isso certa vez.

— E continua sendo verdade.

— Então como pode dizer que nada vai me acontecer se eu estiver com você?

A expressão de Victor fica vazia, como se pela primeira vez na vida alguém o tivesse deixado sem palavras. Olho para seu rosto silencioso e sem emoção, e apenas seus olhos revelam um traço de torpor. Tenho a sensação de que ele falou sem pensar, que manifestou algo que sente de verdade, mas que jamais quis que eu soubesse: Victor quer ser meu herói, vai fazer qualquer coisa, tudo o que puder para me manter a salvo. Quer que eu confie totalmente nele.

E confio.

Ele volta para perto de mim e se senta ao meu lado. O cheiro de seu perfume é fraco, como se ele fizesse questão de usar o mínimo possível. Estou tonta de desejo. Ansiosa para sentir novamente seu toque, saborear seus lábios quentes, deixar que ele me tome como fez algumas noites antes que nos víssemos pela última vez. Não tenho pensado em nada além de Victor nos últimos oito meses da minha vida. Enquanto durmo. Como. Vejo TV. Transo. Me masturbo. Tomo banho. Cada coisa que fiz desde que ele me deixou naquele hospital com Dina fiz pensando nele.

— Você acha que Fredrik vai contar a Niklas onde a gente está? — Mudo de assunto por medo de deixar transparecer muita coisa cedo demais.

— Acho que se ele fosse fazer isso teria contado a Niklas o pouco que sabia sobre o seu paradeiro há muito tempo, e Niklas já teria tentado matar você — responde Victor.

— Tem alguma coisa... estranha em Fredrik. Você não sente?

Victor passa a mão pelo meu cabelo úmido. O gesto faz meu coração disparar.

— Você tem grande sensibilidade para as pessoas, Sarai — comenta ele, levando a mão ao meu queixo. — Tem razão sobre Fredrik. — Ele passa o polegar pelo meu lábio inferior. Um calafrio percorre o meio das minhas pernas. — Ele é... como dizer?... desequilibrado, de certa forma.

Minha respiração acelera, e sinto meus cílios tocando meu rosto quando os lábios de Victor cobrem os meus.

— Desequilibrado de que forma? — pergunto, ofegante, quando ele se afasta.

De olhos fechados, percebo que ele está observando a curva do meu rosto e meus lábios e sinto a respiração que sai suavemente de suas narinas.

Cada pelinho minúsculo se eriça quando a outra mão de Victor sobe e encontra minha cintura nua por baixo da camiseta. Seus dedos longos dançam sobre a pele do meu quadril e param por ali.

Abro os olhos e vejo os dele me encarando.

— Algum problema? — pergunta ele, e sua boca roça a minha de novo.

— Não, eu... eu só não esperava isso.

— Esperava o quê?

Sinto seus dedos levantando o elástico da minha calcinha. Minha cabeça está girando, sinto meu estômago se transformar em um emaranhado de músculos, trêmulo e nervoso.

— Isso — respondo, piscando. — Você está diferente — acrescento, baixinho.

— Culpa sua — diz Victor, e então seus lábios devoram os meus.

Ele me deita no sofá e se encaixa entre as minhas pernas.

Seu celular vibra na mesinha de centro, e percebo quanto sou humana quando xingo Fredrik por estragar aquele momento, mesmo que seja para me avisar de que Dina está a salvo.


CONTINUA

CAPÍTULO UM

Sarai

Já faz oito meses que fugi da fortaleza no México onde fui mantida contra minha vontade por nove anos. Estou livre. Levo uma vida “normal”, fazendo coisas normais com gente normal. Não fui mais atacada, ameaçada nem seguida por ninguém que ainda queira me matar. Tenho uma “melhor amiga”, Dahlia. Tenho a coisa mais parecida com uma mãe que já conheci, Dina Gregory. O que mais eu poderia querer? Parece egoísmo desejar qualquer outra coisa. Mas, apesar de tudo o que tenho, algo não mudou: continuo vivendo uma mentira.

Deixei amigos na Califórnia: Charlie, Lea, Alex e... Bri... Não, espera, quero dizer Brandi. Meu ex-namorado, Matt, era abusivo, por isso voltei para o Arizona. Ele me perseguiu por muito tempo depois que terminamos. Consegui uma ordem judicial para mantê-lo afastado, mas não funcionou. Ele atirou em mim há oito meses, mas não posso provar porque não cheguei a vê-lo. E tenho muito medo de denunciá-lo à polícia.

Claro que tudo isso é mentira.

São os pedaços da minha vida que acobertam o que realmente aconteceu comigo. Os pretextos para eu ter desaparecido aos 14 anos e ter ido parar em um hospital da Califórnia com um ferimento a bala. Jamais vou poder contar a Dina, Dahlia ou ao meu namorado, Eric, o que aconteceu de verdade: que fui levada para o México pela péssima versão de mãe que eu tinha, para morar com um chefão do tráfico. Jamais vou poder contar que fugi daquele lugar depois de nove anos e matei o homem que me manteve prisioneira por toda a minha adolescência. Quer dizer, claro que eu poderia contar a alguém, mas, se fizesse isso, só estaria pondo Victor em perigo.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/2_O_RETORNO_DE_IZABEL.jpg

 

Victor.

Não, nunca vou poder contar que um assassino me ajudou a fugir, ou que testemunhei Victor matando várias pessoas, inclusive a esposa de um empresário famoso e importante de Los Angeles. Nunca vou poder contar que, depois de tudo pelo que passei, depois de tudo o que vi, o que mais quero é fazer as malas e voltar para aquela vida perigosa. A vida com Victor.

Até hoje, falar o nome dele me acalma. Às vezes, quando estou acordada na cama à noite, murmuro seu nome só para ouvi-lo, porque preciso. Preciso dele. Não consigo tirá-lo da cabeça. Já tentei. Porra, e como tentei. Mas, não importa o que eu faça, continuo vivendo cada dia da minha vida pensando nele. Se está me vigiando. Se pensa em mim tanto quanto penso nele. Se ainda está vivo.

Pressiono o travesseiro contra a cabeça e fecho os olhos, imaginando Victor. Às vezes, é só assim que consigo gozar.

Eric aperta minhas coxas com as mãos e me imobiliza na cama, com o rosto enfiado no meio das minhas pernas.

Arqueio o quadril contra ele, roçando de leve contra sua língua frenética, até que ele faça meu corpo todo enrijecer e minhas coxas tremerem ao redor da sua cabeça.

— Meu Deus... — Estremeço enquanto gozo, então deixo os braços caírem entre as pernas, afundando os dedos no cabelo preto de Eric. — Caramba...

Sinto os lábios de Eric tocando minha barriga um pouco acima da pélvis.

Olho para o teto como sempre faço depois de um orgasmo, pois a culpa que sinto me deixa com vergonha de olhar para Eric. Ele é um cara superlegal. Meu namorado sexy de 27 anos, cabelo preto e olhos azuis, gentil, encantador, engraçado e perfeito. Perfeito para mim se eu nunca tivesse conhecido Victor Faust.

Estou arruinada pelo resto da vida.

Enxugo as gotas de suor da testa e Eric sobe pela cama, deitando-se ao meu lado.

— Você sempre faz isso — diz ele, brincando, enquanto cutuca minhas costelas com os nós dos dedos.

Como sinto muitas cócegas, eu me encolho e me viro para encará-lo. Sorrio com ternura e passo um dedo por seu cabelo.

— O que eu sempre faço?

— Esse negócio de ficar em silêncio. — Eric segura meu queixo entre o polegar e o indicador. — Eu faço você gozar e você fica bem quieta durante um tempão.

Eu sei e sinto muito, mas preciso apagar o rosto de Victor da minha cabeça antes de conseguir olhar você nos olhos. Sou uma pessoa horrível.

Eric me dá um beijo na testa.

— Isso se chama recuperação — brinco, beijando os dedos dele. — É totalmente inofensivo. Mas você deveria interpretar como um bom sinal. Você sabe o que está fazendo — digo, retribuindo o cutucão nas costelas.

E ele sabe mesmo o que está fazendo. Eric é ótimo na cama. Mas ainda sou emocionalmente muito ligada... viciada... em Victor, e tenho a sensação de que sempre serei.

Só consegui seguir a vida e me abrir a outros relacionamentos cinco meses depois que Victor foi embora. Conheci Eric no trabalho, na loja de conveniência. Ele comprou um saco de biscoitos e um energético. Depois disso, ele aparecia na loja duas, às vezes três vezes por semana. Eu não queria nada com ele. Queria Victor. Mas comecei a perder a esperança de que Victor um dia fosse voltar para mim.

Eric tenta passar um braço ao redor do meu corpo, mas me levanto casualmente e visto a calcinha. Ele não desconfia de nada, o que é bom. Não sinto vontade de ficar abraçadinha, mas a última coisa que quero é magoá-lo. Ele ergue os braços e entrelaça os dedos atrás da cabeça. Olha para mim, do outro lado do quarto, com um sorriso sedutor. Sempre faz isso quando não estou completamente vestida.

— Sarai.

— Oi. — Visto a camiseta e ajeito o rabo de cavalo.

— Eu sei que está em cima da hora — diz Eric —, mas queria ir com você e Dahlia para a Califórnia amanhã.

Merda.

— Mas você não disse que não ia conseguir folga no trabalho? — pergunto, vestindo o short e calçando os chinelos.

— Quando você perguntou se eu queria ir, não ia dar mesmo. Mas contrataram um funcionário novo, e meu chefe decidiu me dar folga.

Isso é uma péssima notícia. Não porque eu não o queira por perto — gosto de Eric, apesar da minha incapacidade de esquecer Victor Faust —, mas minha viagem de “férias” à Califórnia amanhã não é para fazer turismo, curtir a noite nem fazer compras na Rodeo Drive.

Estou indo até lá para matar um homem. Ou melhor, tentar matar um homem.

Já é ruim que Dahlia vá também, e já vai ser difícil guardar segredo de uma pessoa. Imagine duas.

— Você... não parece animada — comenta Eric, seu sorriso morrendo aos poucos.

Abro um sorriso largo e balanço a cabeça, voltando para perto dele e me sentando na beira da cama.

— Não, não, eu estou animada. É que você me pegou de surpresa. A gente vai sair às seis da manhã. É daqui a menos de oito horas. Você já fez as malas?

Eric dá uma risada e se estica na minha cama, me puxando para si. Eu me sento perto de sua cintura, apoiando um braço no colchão do outro lado dele, com os pés para fora da cama.

— Bom, eu só fiquei sabendo hoje à tarde, antes de sair do trabalho — explica ele. — Eu sei, está em cima da hora, mas só preciso enfiar umas coisas na mala e estou pronto.

Ele estende a mão e afasta do meu rosto os fios de cabelo que escaparam do rabo de cavalo.

— Ótimo! — minto, com um sorriso igualmente falso. — Então acho que está combinado.

Dina acorda antes de mim, às quatro da manhã. O cheiro de bacon é o que me desperta. Levanto da cama e entro debaixo do chuveiro antes de me sentar à mesa da cozinha. Um prato vazio já está à minha espera.

— Gostaria que você tivesse escolhido algum outro lugar para passar sua folga, Sarai — afirma Dina.

Ela se senta do outro lado da mesa e começa a encher seu prato. Pego alguns pedaços de bacon do monte e ponho no meu.

— Eu sei — digo —, mas, como falei para você, não vou deixar que meu ex me impeça de ver meus amigos.

Ela balança a cabeça cada vez mais grisalha e suspira.

Passei do limite em algum momento com meu amontoado de mentiras. Quando Victor levou Dina para o hospital em Los Angeles, depois que o irmão dele, Niklas, atirou em mim, ela não fazia ideia do que tinha acontecido. Só sabia que eu tinha levado um tiro. Demorei alguns meses até me sentir segura o suficiente para falar com ela sobre isso. Quer dizer, depois de bolar a história que eu ia contar. Foi aí que inventei o lance do ex-namorado violento. Eu deveria ter dito que fui assaltada. Por um desconhecido. A mentira seria muito mais fácil de manter. Agora que ela sabe que vou voltar para Los Angeles, está morrendo de preocupação, e já faz uns dois meses. Eu nem deveria ter contado que ia voltar lá.

Termino de comer o bacon e um pouco de ovos mexidos, junto com um copo de leite.

Dahlia e Eric chegam juntos assim que termino de escovar os dentes.

— Vamos logo, a gente precisa pegar a estrada — chama Dahlia, me apressando da porta. Seu cabelo castanho-claro está preso no alto da cabeça em um coque desalinhado de quem acabou de acordar.

Eu me despeço de Dina com um abraço.

— Eu vou ficar bem — digo a ela. — Prometo. Não vou nem chegar perto de onde ele mora.

Desta vez, chego até a imaginar um rosto masculino ao falar de alguém que não existe. Acho que já interpreto esse papel há tanto tempo que “Matt” e todos esses meus “amigos” de Los Angeles, de quem falo para todo mundo como se fossem reais, se tornaram reais no meu subconsciente.

Dina força um sorriso em seu rosto preocupado, e suas mãos soltam meus cotovelos.

— Você liga assim que chegar?

— Assim que eu entrar no quarto do hotel, ligo — respondo, assentindo.

Ela sorri e eu a abraço mais uma vez, antes de segui-los até o carro de Dahlia, que está esperando. Eric guarda minha mala no bagageiro, junto com as deles, e se senta no banco de trás.

— Hollywood, aí vamos nós! — exclama Dahlia.

Finjo metade da empolgação dela. Ainda bem que está muito cedo, senão Dahlia poderia intuir o verdadeiro motivo da minha falta de entusiasmo. Estico os braços para trás e bocejo, apoiando a cabeça no banco do carro. Sinto a mão de Eric no meu pescoço quando ele começa a massagear meus músculos.

— Não sei por que você quer ir a Los Angeles de carro — diz Dahlia. — Se a gente fosse de avião, não ia precisar acordar tão cedo. E você não estaria tão cansada e rabugenta.

Minha cabeça cai para a esquerda.

— Não estou rabugenta. Ainda mal falei com você.

Ela dá um sorrisinho.

— Exatamente. Sarai sem falar significa Sarai rabugenta.

— E se recuperando — acrescenta Eric.

Meu rosto fica vermelho e eu estico a mão atrás da cabeça, dando um tapinha de brincadeira na dele, que está fazendo maravilhas no meu pescoço. Fecho os olhos e vejo Victor.

Não de propósito.

Chegamos a Los Angeles depois de quatro horas na estrada. Eu não podia ir de avião porque não conseguiria levar minhas armas. É claro que Dahlia não pode saber disso. Ela acha apenas que quero apreciar a paisagem.

Tenho sete dias para fazer o que vim fazer. Isto é, se eu conseguir. Pensei no meu plano durante meses, em como vou fazer isso. Sei que é impossível entrar na mansão Hamburg. Para isso, eu precisaria ter um convite e socializar em público com o próprio Arthur Hamburg e seus convidados. Ele viu meu rosto. Bem, tecnicamente, viu mais do que meu rosto. Mas sinto que os acontecimentos daquela noite, quando Victor e eu enganamos Hamburg para que ele nos convidasse para ir ao seu quarto e conseguíssemos matar sua esposa, são algo que ele jamais vai esquecer, nem os mínimos detalhes.

Se tudo der certo, uma peruca loura platinada de cabelo curto e maquiagem escura e pesada vão esconder aquela identidade de cabelo longo e castanho que Hamburg reconheceria assim que eu aparecesse.


CAPÍTULO DOIS

Sarai

Passo o dia todo com Eric e Dahlia, fingindo me divertir para passar o tempo. Saímos para almoçar e para fazer um tour por Hollywood com um guia e visitar um museu antes de voltarmos para o hotel, exaustos. Quer dizer, finjo estar exausta o suficiente para querer dar o dia por encerrado. Na verdade, o que preciso é me preparar para ir ao restaurante de Hamburg ainda hoje.

Dahlia já acha que tem algo errado comigo.

— Você está ficando doente? — pergunta ela, estendendo a mão entre nossas espreguiçadeiras à beira da piscina e sentindo a temperatura da minha testa.

— Estou ótima — respondo. — Só cansada porque levantei muito cedo. E quando foi a última vez que andei tanto assim em um dia só?

Dahlia volta a se recostar em sua espreguiçadeira e ajeita os óculos de sol grandes e redondos no rosto.

— Bom, espero que não esteja cansada amanhã — diz Eric, do outro lado. — Tem tantas coisas que eu quero fazer. Não venho para Los Angeles desde que meus pais se divorciaram.

— Pois é. É a minha primeira vez aqui em dois anos — afirma Dahlia.

Um adolescente pula na piscina e a água respinga em nós. Ergo as costas da espreguiçadeira e agito a revista que estava lendo para tirar as gotas. Ponho os óculos escuros no alto da cabeça. Jogo as pernas para o lado e fico de pé.

— Acho que vou voltar para o quarto e tirar uma soneca — anuncio, pegando minha bolsa do chão.

Eric se ergue também e tira os óculos escuros.

— Se quiser, vou com você — oferece ele.

Agito a mão para ele, pedindo que não se levante.

— Não, fica aí e faz companhia para a Dahlia — sugiro, ajeitando a bolsa no ombro. Abaixo os óculos escuros de novo para que ele não perceba minha mentira.

— Tem certeza de que você está bem? — pergunta Dahlia. — Sarai, você está de férias, lembra? Veio para cá se divertir, não para cochilar.

— Acho que vou estar cem por cento amanhã. Só preciso de um banho quente e demorado e de uma boa noite de sono.

— Ok, vou acreditar — diz Dahlia. — Mas nem vem com doença para o meu lado. — Ela aponta o dedo para mim, com ar severo.

Eric fecha os dedos em torno do meu pulso e me puxa para perto.

— Tem certeza de que não quer que eu vá? — Ele me beija e eu correspondo antes de me levantar de vez.

— Tenho — respondo, baixinho, e saio na direção do elevador.

Assim que entro no quarto, tranco a porta com a corrente para que Eric e Dahlia não entrem de surpresa, jogo a bolsa no chão e abro meu laptop, digitando a senha. Enquanto o laptop inicia, olho pela janela e vejo meus amigos, figuras pequenas daquela distância, ainda à beira da piscina. Eu me sento diante da tela e, provavelmente pela centésima vez, olho cada página do site do restaurante de Hamburg, verificando de novo o horário de funcionamento e passando os olhos pelas fotos profissionais do lugar, dentro e fora. Na verdade, nada disso me ajuda muito com o que pretendo fazer, mas olho tudo de novo todo dia, de qualquer maneira.

Derrotada, bato a palma da mão com força no tampo da mesa.

— Droga! — exclamo, desabando na poltrona enquanto passo as mãos pelo cabelo.

Ainda não sei como vou conseguir ficar a sós com Hamburg sem ser vista. Sei que estou dando um passo maior do que a perna. Sei disso desde que tive essa ideia maluca, mas também sei que, se ficar apenas pensando a respeito, nunca vou passar dessa fase.

Vim para cá com um plano: entrar disfarçada no restaurante e agir como qualquer outro cliente. Sondar o lugar por uma noite. Saber onde ficam as saídas. As entradas para outras partes do prédio. Os banheiros. Minha prioridade número um, contudo, é encontrar a sala de onde Hamburg observa do alto seus clientes e ouve a conversa deles pelo minúsculo microfone escondido no arranjo de cada mesa. Então pretendo me enfiar na sala e cortar a garganta daquele porco.

Contudo, agora que estou aqui, a menos de seis quadras do restaurante, e agora que o tempo está passando tão depressa, estou menos confiante. Isso não é um filme. Sou uma idiota por achar que posso adentrar um lugar desses sem ser vista, tirar a vida de um homem sem chamar atenção e fugir sem ser capturada.

Apenas Victor conseguiria fazer algo assim.

Bato no tampo da mesa de novo, mais de leve desta vez, fecho o laptop e me levanto. Ando de um lado para outro no carpete vermelho e verde. E bem quando resolvo seguir pelo corredor para o quarto separado que reservei sem Dahlia e Eric saberem, a porta se abre um pouco, mas é travada pela corrente.

— Sarai? — chama Dahlia do outro lado. — Vai deixar a gente entrar?

Suspiro fundo e destranco a porta.

— Por que a corrente? — pergunta Eric, entrando atrás de Dahlia.

— Força do hábito.

Eu me jogo na ponta da cama king-size.

Os dois deixam suas coisas no chão. Dahlia se senta à mesa, ao lado da janela, e Eric se deita atravessado na cama ao meu lado, cruzando as pernas na altura dos calcanhares.

— Pensei que você ia tirar uma soneca — diz Dahlia.

Ela passa os dedos com cuidado pelo cabelo úmido, fazendo caretas quando se depara com alguma mecha mais embaraçada.

— Dahlia — digo, olhando para os dois. — Eu subi agora há pouco. Pensei que vocês iam ficar na piscina mais um tempo.

Espero ter conseguido disfarçar o aborrecimento na minha voz por eles terem vindo me encontrar tão cedo. Não consigo evitar: estou estressada demais, além de preocupada com a simples presença dos dois aqui comigo. Não quero que eles se machuquem nem que se envolvam de forma alguma com meu motivo para estar aqui.

— A gente pode sair e deixar você sozinha, se quiser — sugere Eric, baixinho, atrás de mim.

Eu me arrependo na mesma hora do que disse, porque é óbvio que não disfarcei o aborrecimento tão bem quanto esperava.

Inclino a cabeça para trás e suspiro, esticando o braço para tocar o tornozelo dele.

— Desculpa — digo, sorrindo para Dahlia. — Sabe, eu... — Então, de repente, uma desculpa perfeitamente plausível para o modo como tenho agido surge na minha cabeça, e a torneira das mentiras se abre. — Eu só fico meio nervosa por estar de volta a Los Angeles.

Dahlia faz cara de “ah, entendi”, empurra os pés de Eric para o lado e se senta perto de mim. Ela passa o braço por cima dos meus ombros e segura meu antebraço.

— Imaginei que o problema fosse esse.

Percebo que ela olha de relance para Eric e tenho a impressão de que foi sobre isso que os dois falaram enquanto ficaram na piscina, depois que fui embora.

Aposto que também foi por isso que decidiram subir tão cedo para me ver.

— A gente queria ver como você estava — acrescenta Eric atrás de mim, confirmando minha suspeita.

Sinto a cama se mexer quando ele se senta.

Eu me levanto antes que ele consiga me abraçar. É nesse exato momento que me dou conta de como tenho feito isso com frequência no último mês. Não sei por quanto tempo mais vou conseguir enganá-lo. Sei que deveria simplesmente contar o que sinto, que não gosto tanto de Eric quanto ele gosta de mim. Mas não consigo dizer a verdade. Eu precisaria inventar mais uma mentira, e estou tão atolada em mentiras que me sinto afogada nelas.

Ao mesmo tempo, deixei nossa relação durar tanto porque eu queria de verdade sentir por ele algo tão profundo quanto o que ele parece sentir por mim. Queria seguir em frente, esquecer Victor e ser feliz com a vida que ele me deixou.

Mas não consigo. Não consigo mesmo...

— Ele nem vai saber que você está aqui — diz Eric sobre “Matt”. — Além disso, mesmo que ele descobrisse, eu ia encher o cara de porrada assim que o visse.

Esboço um sorriso para Eric.

— Eu sei que você faria isso — digo, mas me sinto ainda pior, porque os únicos dois amigos que tenho no mundo não fazem nem ideia de quem sou.

Cruzo os braços, vou até a janela e olho para fora.

— Sarai — chama Dahlia. — Não queria dizer isso, mas, se você está tão preocupada com a possibilidade de Matt descobrir que você está em Los Angeles, acho que não é boa ideia visitar seus amigos aqui.

— Eu sei, você tem razão. Sei que eles não contariam para Matt, mas acho que é melhor eu ficar só com vocês dois enquanto estivermos aqui.

Eu me viro para encará-los.

— É um bom plano — diz Eric, com um sorriso radiante.

É um bom plano, com certeza, porque agora não preciso mais inventar outra desculpa para não apresentar os dois aos meus amigos que não existem.

Dahlia se aproxima de mim.

— A gente devia ter ido para a Flórida ou algum lugar assim, hein?

Olho pela janela de novo.

— Não — respondo. — Adoro esta cidade. E sei que vocês queriam muito vir para cá. — Dou um sorriso rápido. — Sugiro que a gente curta ao máximo esta semana.

Ela me empurra com o ombro de brincadeira.

— Essa é a Sarai que eu conheço — diz Dahlia, sorrindo.

É, só que não sou essa pessoa...

Ela vai até Eric e o puxa pelo braço, levantando-o da cama.

— Vamos sair daqui e deixar a mocinha descansar.

Eric se levanta e se aproxima de mim. Então pega meus braços e me vira para encará-lo. Com aqueles olhos azul-bebê, ele faz a melhor expressão amuada que consegue.

— Se precisar de mim para qualquer coisa, pode me chamar que eu venho.

Concordo com a cabeça e lhe ofereço um sorriso sincero. Ele merece, por ser tão legal comigo.

— Pode deixar.

Então eu os empurro porta afora com as duas mãos.

— Eu diria para vocês não se divertirem muito sem mim, mas isso seria pedir demais.

Dahlia ri baixinho ao sair para o corredor.

— Não, não é pedir muito. — Ela levanta dois dedos. — Palavra de escoteiro.

— Acho que não é assim que se faz, Dahl — diz Eric.

Ela faz um gesto para dispensar as palavras dele.

— Trate de dormir — sugere Dahlia. — Porque amanhã você vai precisar estar novinha em folha.

— De acordo — digo, assentindo.

— Tchau, amor — diz Eric antes de eu fechar a porta.

Fico com as costas apoiadas na porta e solto um suspiro longo e profundo.

Fingir é difícil demais. Bem mais difícil do que simplesmente ser eu mesma, por mais anormal e imprudente que eu seja.

— Eu sei o que preciso fazer — digo em voz alta.

Falar sozinha é minha nova mania, porque me ajuda a visualizar e entender melhor as coisas.

Volto para a janela e olho a cidade de Los Angeles, com os braços cruzados.

— Preciso de um disfarce, mas não para me esconder de Hamburg. Só das câmeras e de qualquer outra pessoa. Eu quero que Hamburg me veja. Só assim vou conseguir entrar.


CAPÍTULO TRÊS

Sarai

Dahlia e Eric só voltam para o quarto algumas horas mais tarde, depois de escurecer. Eu já tinha tomado banho, vestido short e camiseta e deixado a luz apagada para parecer que estava dormindo. Assim que ouvi o cartão passando pela porta, pulei na cama e me espalhei pelo colchão, como sempre faço quando durmo de verdade. Eric entrou na ponta dos pés, tentando não “me acordar”, mas me virei, soltei um resmungo e abri os olhos para mostrar que acordei. Ele pediu desculpas e perguntou se eu queria ir com ele e Dahlia a uma boate ali perto, insistindo que, se eu não fosse, ele também não iria. Mas logo rejeitei essa ideia. Percebi que ele queria muito ir e não posso culpá-lo: se eu estivesse no lugar dele, não iria querer ficar em um quarto escuro de hotel às oito da noite de uma sexta-feira, em uma das cidades mais animadas dos Estados Unidos.

Eric e Dahlia saírem era exatamente do que eu precisava. Passei aquelas duas horas inteiras tentando inventar uma desculpa para explicar a eles por que eu ia sair, aonde iria e por que eles não poderiam ir junto.

Eles resolveram isso para mim.

Minutos após Eric sair do quarto, espero Dahlia — em seu próprio quarto, ao lado do nosso — tirar o biquíni e se vestir. Pelo olho mágico da minha porta, eu os vejo indo embora pelo corredor. Conto até cem enquanto ando de um lado para outro sem parar. Então pego minha bolsa e vou até a porta. Ando depressa pelo corredor na direção oposta e chego ao quarto secreto, do outro lado do prédio.

Com certa paranoia de ser flagrada, vasculho minha bolsa e encontro tudo, menos a chave do quarto. Enfim consigo senti-la entre os dedos e me apresso para entrar, travando a porta com a corrente. Abro a mala ao pé da cama e tiro minha peruca curta platinada, passando os dedos para ajeitar as mechas desalinhadas, e então a deixo sobre o abajur ao lado para que não perca a forma.

Visto um Dolce & Gabbana curtinho e me maquio com cores escuras e pesadas, o que, depois de passar um tempão praticando em casa, faço bem. Então calço as sandálias de salto alto. Andar de salto é outra coisa que passei muito tempo tentando aprender. Meu alter ego, Izabel Seyfried, saberia andar de salto e o faria bem. Por isso, eu precisava acompanhar.

Em seguida, molho o cabelo e o divido em duas partes atrás. Enrolo cada metade e cruzo uma sobre a outra na nuca. Vários grampos depois, meu longo cabelo castanho está bem preso no couro cabeludo. Visto a touca da peruca e depois a própria peruca, ajustando-a por muito tempo até deixar tudo perfeito.

Por fim, prendo uma bainha de punhal em torno da coxa e a cubro com o tecido do vestido.

Fico de pé diante do espelho de corpo inteiro e me avalio de todos os ângulos possíveis. Estar loura é estranho. Satisfeita, pego a bolsinha preta e a enfio debaixo do braço, com a pequena pistola formando certo volume nela. Estico o braço para girar a maçaneta, mas deixo minha mão cair junto ao corpo.

“Que droga eu estou fazendo?”

O que precisa ser feito.

“E por que eu estou fazendo isso?”

Porque preciso.

Não consigo tirar da cabeça as coisas que aquele homem confessou, as pessoas que matou por causa de um fetiche sexual doentio. Todas as noites desde que Victor me deixou, quando fecho os olhos, vejo o rosto de Hamburg e aquele sorriso de gelar o sangue que ele abriu quando me curvei sobre a mesa, exposta na frente dele. Vejo o rosto de sua esposa, esquelético e combalido, seus olhos fundos turvados pela resignação. Ainda sinto até o fedor da urina que secou em suas roupas e no catre infestado onde ela dormia, naquele quarto escondido.

Meu peito se enche de ar e eu o prendo por vários segundos, antes de soltar um longo suspiro.

Não posso esquecer. A necessidade de matá-lo é como uma coceira no meio das costas. Não posso alcançar naturalmente, mas vou me curvar e torcer os braços até doerem para coçar.

Não posso esquecer...

E talvez... só talvez também acabe chamando a atenção de um certo assassino que não consigo me obrigar a esquecer.

Assim que passo pela porta, deixo Sarai para trás e me torno Izabel por uma noite.

Por não ter pensado de antemão na importância de ao menos alugar um carro chique, salto do táxi a duas quadras do restaurante e ando o resto do caminho. Izabel jamais seria vista andando de táxi.

— Mesa para um? — pergunta o recepcionista assim que entro no restaurante.

Inclino a cabeça e olho para ele com um ar irritado.

— Algum problema? Não posso fazer uma refeição sozinha? Ou você está dando em cima de mim? — Abro um sorrisinho e inclino a cabeça para o outro lado. Ele está ficando nervoso. — Você gostaria de jantar comigo... — olho para o nome bordado no paletó — ... Jeffrey? — Chego mais perto. Ele dá um passo constrangido para trás.

— Hã... — Ele hesita. — Peço desculpas, senhora...

Recuo, trincando os dentes.

— Nunca me chame de senhora — digo com rispidez. — Me leve até uma mesa. Para um.

Ele assente e pede que eu o siga. Quando chego à minha mesinha redonda com duas cadeiras, no meio do restaurante, me sento e deixo a bolsa ao lado. Um garçom se aproxima quando o recepcionista se afasta e me apresenta a carta de vinhos. Eu a rejeito com um movimento dos dedos.

— Quero apenas água com uma rodela de limão.

— Pois não, senhora — diz ele, mas deixo passar.

Enquanto o garçom se afasta, começo a examinar o lugar. Há uma placa indicando a saída à minha esquerda, bem longe, perto do corredor. Há outra à minha direita, próxima à escada que leva para o segundo piso. O restaurante está praticamente igual à primeira vez que vim: escuro, não muito cheio e bastante silencioso, embora desta vez eu ouça jazz baixinho vindo de algum lugar. Ao observar o recinto, paro de repente ao ver a mesa à qual me sentei com Victor quando vim com ele, meses atrás.

Eu me perco na memória, vendo tudo exatamente como aconteceu. Quando olho para as duas pessoas sentadas no outro lado do salão, só consigo me ver com Victor:

— Venha cá — diz ele, em um tom de voz mais delicado.

Deslizo os poucos centímetros que nos separam e me sento encostada a ele.

Seus dedos dançam pela minha nuca quando ele puxa minha cabeça para perto de si. Meu coração bate descompassado quando ele roça os lábios na lateral do meu rosto. De repente, sinto sua outra mão entrando pelo meio das minhas coxas e subindo por baixo do vestido. Minha respiração para. Devo abrir as pernas? Devo ficar imóvel e travá-las? Sei o que quero fazer, mas não sei o que devo fazer, e minha mente está a ponto de desistir.

— Tenho uma surpresa para você esta noite — murmura ele no meu ouvido.

Sua mão se aproxima mais do calor no meio das minhas pernas.

Gemo baixinho, tentando não deixar que ele perceba, embora tenha certeza absoluta de que percebeu.

— Que tipo de surpresa? — pergunto, com a cabeça inclinada para trás, apoiada em sua mão.

— Vai querer algo mais? — Ouço uma voz, e sou arrancada do meu devaneio.

O garçom está segurando o cardápio. Minha água com uma rodela de limão na borda do copo já está diante de mim.

Um pouco confusa de início, apenas assinto, mas faço que não em seguida.

— Ainda não sei — respondo, enfim. — Deixe o cardápio. Talvez eu peça mais tarde.

— Pois não — diz o garçom.

Ele deixa o cardápio na mesa e vai embora.

Olho para a varanda e para as mesas encostadas no balaústre requintado. Onde Hamburg pode estar? Sei que ele está no andar de cima porque Victor disse que ele ficava por lá. Mas onde? Eu me pergunto se ele já me viu, e no mesmo instante meu estômago se embrulha de nervoso.

Não, não posso parecer nervosa.

Endireito as costas na cadeira e tomo um gole da água. Deixo o dedo mindinho levantado, o que me faz parecer muito mais rica, ou apenas mais esnobe. Fico observando os clientes indo e vindo, escuto sua conversa supérflua e me pego imaginando qual dos casais que estão ali poderia acabar na mansão de Hamburg no fim de semana, ganhando muito dinheiro para deixar que ele os veja foder.

Então olho para o arranjo de flores vermelhas em um pequeno vaso de vidro no centro da minha mesa. Pego o celular na bolsa, finjo digitar um número e o coloco perto do ouvido, para que ninguém ache que estou falando sozinha.

— Este recado é para Arthur Hamburg — digo em voz baixa, inclinando-me um pouco para a frente a fim de que o microfone escondido no vaso de flores capte minha voz. — Com certeza você se lembra de mim, não é? Izabel Seyfried. Há quanto tempo, não?

Com cuidado, olho para os lados, esperando ver um ou dois homens parrudos de terno se aproximando de mim com armas em punho.

— Não estou sozinha — continuo —, por isso nem pense em fazer alguma idiotice. A gente precisa conversar.

Olhando para a varanda acima de mim, tento descobrir onde ele pode estar, torcendo para que esteja ali. Alguns minutos tensos se passam, e, quando começo a pensar que a noite foi em vão e que eu estava mesmo falando sozinha, noto um movimento no piso superior, logo acima da saída à minha direita. Meu coração bate forte quando vejo a figura alta e escura sair das sombras e descer a escada.

Eu me lembro desse homem de ombros largos, cabelo grisalho e uma covinha no meio do queixo. É o gerente do restaurante, Willem Stephens, que já encontrei aqui uma vez.

Ele se aproxima da minha mesa sem expressar nenhuma emoção, com as mãos enormes cruzadas à frente, as costas retas, o queixo anguloso imóvel.

— Boa noite, srta. Seyfried. — A voz dele é profunda e sinistra. — Posso perguntar onde está seu dono?

Levanto os olhos para encará-lo, dou um sorrisinho, tomo um gole da minha água e devolvo o copo à mesa, sem pressa. Cada fibra do meu ser está gritando, dizendo como fui idiota em vir até aqui. Por mais que eu saiba que é verdade, não importa. Não é o medo que me faz tremer por dentro, é a adrenalina.

— Victor Faust não é meu dono — explico, com calma. — Mas ele está aqui. Em algum lugar. — Um sorriso tênue e dissimulado toca meus lábios.

Os olhos de Stephens percorrem o salão sutilmente e voltam a me encarar.

— Por que está aqui? — pergunta ele, perdendo um pouco o ar de gerente sofisticado.

— Tenho negócios a discutir com Arthur Hamburg — respondo, confiante. — É do maior interesse dele marcar um encontro privado comigo. Aqui. Hoje. De preferência agora.

Tomo outro gole.

Noto que o pomo de adão de Stephens se move quando ele engole em seco, bem como os contornos de seu queixo quando ele cerra os dentes. Ele olha para o lugar de onde veio, no andar de cima, e percebo um aparelhinho preto escondido em seu ouvido esquerdo. Parece que ele está ouvindo alguém falar. Eu chutaria que é Hamburg.

Ele me encara de novo, com os olhos escuros e cheios de ódio, mas mantém o semblante inexpressivo com a mesma perfeição de Victor.

Ele descruza os braços, estende a mão direita para mim e diz:

— Por aqui.

Ele só deixa os braços penderem, relaxados, quando me levanto. Sigo Stephens pelo restaurante e escada acima, para o piso da varanda.

Apenas duas coisas podem acontecer: ou esta será minha primeira noite como assassina ou a última da minha vida.


CAPÍTULO QUATRO

Sarai

— Se encostar em mim — digo para o guarda-costas de terno à porta da sala particular de Hamburg —, enfio suas bolas em um moedor de carne.

As narinas do segurança se dilatam e ele olha para Stephens.

— Você solicitou uma reunião com o sr. Hamburg — diz Stephens atrás de mim. — É claro que vamos revistá-la antes para verificar se está armada.

Droga!

Calma. Fique calma. Faça o que Izabel faria.

Respiro fundo, encarando-os com desprezo e um ar ameaçador. Então jogo minha bolsinha preta no segurança. Ele pega a bolsa quando ela bate em seu peito.

— Acho que está bem claro que eu não conseguiria esconder uma arma em um vestido como este, a menos que a enfiasse na boceta — digo, olhando para Stephens. — Minha arma está na bolsa. Mas nem pense em tocar...

— Deixem a moça entrar — ordena da porta uma voz familiar.

É Hamburg, ainda balofo e grotesco como antes, usando um terno imenso que parece em vias de estourar se ele respirar fundo demais.

Abro um leve sorriso para o segurança, que me encara com olhos assassinos. Conheço esse olhar, até demais. O homem tira a pistola e me devolve a bolsa.

— Sr. Hamburg — diz Stephens —, eu deveria ficar na sala com o senhor.

Hamburg balança a papada, rejeitando a sugestão.

— Não, vá cuidar do restaurante. Se essas pessoas tivessem vindo me matar, não seriam tão óbvias. Eu vou ficar bem.

— Pelo menos deixe Marion à porta — sugere Stephens, olhando para o guarda-costas.

— Sim — concorda Hamburg. — Você fica aqui. Não deixe ninguém interromper nossa... — diz ele, me olhando com frieza — reunião, a menos que eu peça. Se em algum momento você não ouvir minha voz por mais de um minuto, entre na sala. Como precaução, é claro.

Ele abre um sorrisinho para mim.

— É claro. — Imito Hamburg e sorrio também.

Ele dá um passo para o lado e me convida a entrar.

— Pensei que isso tivesse acabado, srta. Seyfried.

Hamburg fecha a porta.

— Sente-se — pede ele.

A sala é bem grande, com paredes lisas e arredondadas, sem cantos, de um lado a outro. Uma série de grandes quadros retratando o que parece ser cenas bíblicas rodeia uma grande lareira de pedra. Cada imagem é emoldurada em uma caixa de vidro, com luzes na parte de baixo. A sala é pouco iluminada, como o restaurante, e o cheiro é de incenso ou talvez de óleo aromático de almíscar e lavanda. Na parede à minha esquerda, há uma porta aberta que leva a outra sala, onde a luz cinza-azulada de várias telas de TV brilha nas paredes. Chego mais perto para me sentar na poltrona de couro com encosto alto diante da escrivaninha e espio dentro da saleta. É como eu imaginava. As telas mostram várias mesas do restaurante.

Hamburg fecha essa porta também.

— Não, está longe de acabar — respondo, enfim.

Cruzo as pernas e mantenho a postura ereta, o queixo levantado com ar confiante e os olhos em Hamburg, enquanto ele atravessa a sala na minha direção. Puxo a barra do vestido para cobrir completamente o punhal preso na coxa. Minha bolsa está no meu colo.

— Vocês já tiraram minha esposa de mim. — A indignação transparece na voz dele. — Não acham que foi o suficiente?

— Infelizmente, não. — Abro um sorriso malicioso. — Não foi o suficiente para você e sua esposa tirarem uma vida? Não, não foi — respondo por ele. — Vocês tiraram muitas vidas.

Hamburg morde o interior da bochecha e se senta atrás da escrivaninha, de frente para mim. Ele apoia as mãos gordas sobre o tampo de mogno. Percebo quanto ele quer me matar ali mesmo onde estou. Mas não fará isso porque acredita que não estou sozinha. Ninguém em sã consciência faria algo assim, vir até aqui sozinha, inexperiente e desprevenida.

Ninguém, a não ser eu.

Preciso garantir que ele continue acreditando que tenho cúmplices até descobrir como vou matá-lo e sair da sala sem ser pega. O pedido de Hamburg para que o guarda-costas entrasse na sala depois de um minuto sem ouvir sua voz pôs mais um obstáculo no plano que, na verdade, nunca tive de fato.

— Bem, devo dizer uma coisa — diz Hamburg, mudando de tom. — Você é deslumbrante com qualquer tipo de peruca. Mas admito que prefiro a morena.

Ele acha que meu cabelo castanho-avermelhado era uma peruca. Ótimo.

— Você é doente. Sabe disso, certo? — Tamborilo com as unhas no braço da poltrona.

Hamburg abre um sorriso medonho. Estremeço por dentro, mas mantenho a compostura.

— Eu não matei aquelas pessoas de propósito. Elas sabiam no que estavam se metendo. Sabiam que, no calor do momento, alguém poderia perder o controle.

— Quantas?

Hamburg estreita os olhos.

— O que importa isso, srta. Seyfried? Uma. Cinco. Oito. Por que não diz logo o motivo da sua visita? Dinheiro? Informação? A chantagem assume muitas formas, e não seria a primeira vez que enfrento uma. Sou um veterano.

— Fale sobre a sua esposa — peço, ganhando tempo e fingindo ainda ser quem dá as cartas. — Antes de “ir direto ao assunto”, quero entender sua relação com ela.

Uma parte de mim quer saber de verdade. E estou incrivelmente nervosa; sinto um enxame zumbindo no meu estômago. Talvez jogar conversa fora ajude a acalmar minha mente.

Hamburg inclina a cabeça para o lado.

— Por quê?

— Apenas responda à pergunta.

— Eu a amava muito — responde ele, relutante. — Ela era a minha vida.

— Aquilo é amor? — pergunto, incrédula. — Você manchou a memória dela ao dizer que ela era uma viciada em drogas que se suicidou, só para salvar a própria pele, e chama isso de amor?

Noto uma luz se movendo no chão, por baixo da porta da sala de vigilância. Não havia ninguém lá dentro antes, ao menos que eu tivesse visto.

— Como a chantagem, o amor assume muitas formas. — Hamburg apoia as costas na poltrona de couro, que range, cruzando os dedos roliços sobre a enorme barriga. — Mary e eu éramos inseparáveis. Não éramos como outras pessoas, outros casais, mas o fato de sermos tão diferentes não significava que nos amávamos menos do que os outros. — Os olhos dele cruzam os meus por um momento. — Tivemos sorte por encontrar um ao outro.

— Sorte? — pergunto, pasma com o comentário. — Foi sorte duas pessoas doentes se encontrarem e se unirem para fazer coisas doentias com os outros? Não entendo.

Hamburg balança a cabeça como se fosse um velho sábio e eu fosse jovem demais para entender.

— Pessoas diferentes como Mary e eu...

— Doentes e dementes — corrijo. — Não diferentes.

— Chame como quiser — diz ele, com ar de resignação. — Quando você é tão diferente assim da sociedade, do que é aceitável, encontrar alguém como você é algo muito raro.

Sem perceber, cerro os dentes. Não porque Hamburg esteja me irritando, mas porque nunca imaginei que esse homem nojento pudesse me dizer qualquer coisa que me fizesse pensar na minha situação com Victor, ou qualquer coisa que eu pudesse entender.

Afasto esse pensamento.

A luz fraca sob a porta da sala de vigilância se move de novo. Finjo não ter notado, sem querer dar a Hamburg qualquer motivo para achar que estou pensando em outra saída.

— Vim aqui saber nomes — digo de repente, sem ter pensado bem a respeito.

— Que nomes?

— Dos seus clientes.

Algo muda nos olhos de Hamburg, ele vai tomar o controle da situação.

— Você quer os nomes dos meus clientes? — pergunta ele, desconfiado.

Que merda...

— Pensei que você e Victor Faust já estivessem de posse da minha lista de clientes.

Continue séria. Não perca a compostura. Merda!

— Sim, estamos, mas me refiro àqueles que você não mantinha nos registros.

Acho que vou vomitar. Parece que minha cabeça está pegando fogo. Prendo a respiração, torcendo para ter me livrado dessa.

Hamburg me examina em silêncio, vasculhando meu rosto e minha postura em busca de qualquer sinal de autoconfiança abalada. Ele coça o queixo gordo e cheio de dobras.

— Por que você acha que existe uma lista fantasma?

Suspiro meio aliviada, mas ainda não estou fora de perigo.

— Sempre existe uma lista fantasma — afirmo, embora não faça nem ideia do que estou dizendo. — Quero pelo menos três nomes que não estejam no registro que nós temos.

Sorrio, sentindo que recuperei o controle da situação.

Até ele falar:

— Diga você três nomes da lista que já tem, e eu dou o que você quer.

É oficial: perdi o controle.

Engulo em seco e me controlo antes de parecer “pega no flagra”.

— Você acha que eu carrego a lista na bolsa? — pergunto com sarcasmo, tentando continuar no jogo. — Nada de negociações ou meios-termos, sr. Hamburg. O senhor não está em condições de fazer nenhuma barganha.

— É mesmo? — pergunta ele, sorrindo.

Ele suspeita de mim. Posso sentir. Mas vai garantir que está certo antes de dar o bote.

— Isso não está em discussão. — Eu me levanto da poltrona de couro, enfiando a bolsa debaixo do braço, mais frustrada do que antes por ter que entregar minha arma.

Pressiono os dedos na escrivaninha de mogno, apoiando meu peso neles ao me curvar um pouco na direção de Hamburg.

— Três nomes, ou saio daqui e Victor Faust entra para espalhar os seus miolos naquele belo quadro do menino Jesus atrás de você.

Hamburg ri.

— Esse não é o menino Jesus.

Ele se levanta junto comigo, alto, enorme e ameaçador.

Enquanto vasculho minha mente e tento entender como ele descobriu que sou uma farsante, Hamburg se adianta e anuncia seu raciocínio como um chute na minha boca.

— É engraçado, Izabel, você vir aqui pedir nomes que não aparecem em uma lista que você... — diz, apontando para a minha bolsa — ... nem carrega consigo, porque como você saberia que os nomes que eu daria não estão nela?

Estou muito ferrada.

— Vou dizer o que eu acho — continua ele. — Acho que você veio aqui sozinha por causa de alguma vingança contra mim. — Ele balança o indicador. — Porque eu me lembro de cada detalhe da porra daquela noite. Cada merda de detalhe. Especialmente a sua expressão quando percebeu que Victor Faust tinha vindo matar minha esposa em vez de mim. Era a expressão de alguém pega de surpresa, que não fazia ideia de por que estava ali. Era a expressão de alguém que não está familiarizada com o jogo.

Ele tenta sorrir com gentileza, como se quisesse demonstrar alguma espécie de empatia pela minha situação, mas o que leio em seu rosto é cinismo.

— Acho que, se houvesse mais alguém aqui com você, ele já teria aparecido para salvá-la, porque é óbvio que você está ferrada.

A porta do quarto principal se abre, o guarda-costas entra e a tranca. Por uma fração de segundo, tive a esperança de que fosse Victor vindo me salvar na hora certa. Mas foi só um desejo. O guarda-costas me olha com desprezo. Hamburg acena para ele, que começa a tirar o cinto.

Meu coração afunda até o estômago.

— Sabe — diz Hamburg, dando a volta na escrivaninha —, na primeira vez que a gente se viu, lembro que fiz um acordo com Victor Faust. — Ele aponta para mim. — Você se lembra disso, não?

Hamburg sorri e apoia a mão gorda nas costas da poltrona na qual eu estava sentada, virando-a para mim.

Todo o meu corpo está tremendo; parece que o sangue que passa pelas minhas mãos virou ácido. Ele corre pelo meu coração e pela minha cabeça tão rápido que quase desmaio. Começo a tentar alcançar meu punhal, mas eles estão perto demais, aproximando-se pelos dois lados. Não tenho como enfrentar os dois ao mesmo tempo.

— Como assim? — pergunto, tropeçando nas palavras, tentando ganhar um pouco de tempo.

Hamburg revira os olhos.

— Ora, por favor, Izabel. — Ele gira um dedo no ar. — Apesar do que aconteceu naquela noite, fiquei decepcionado de verdade por vocês dois irem embora antes de cumprir o acordo.

— Eu diria que, em vista do que aconteceu, o acordo não vale mais nada.

Ele sorri para mim e se senta na poltrona de couro. Percebo Hamburg espiar de relance o guarda-costas, dando uma ordem só com o olhar.

Antes que eu consiga me virar, o segurança prende minhas duas mãos nas minhas costas.

— Você vai cometer um erro do caralho se fizer isso! — grito, tentando me livrar das garras do segurança.

Ele me leva à força até uma mesa quadrada e me joga sobre ela. Meus reflexos não são rápidos o suficiente e meu queixo bate no mármore duro. O gosto metálico do sangue enche minha boca.

— Me solte! — Tento chutá-lo. — Me solte agora!

Hamburg ri de novo.

— Vire a cabeça dela para esse lado — ordena ele.

Dois segundos depois, meu pescoço é torcido para o outro lado e mantido ali, minha bochecha esquerda pressionada contra o mármore frio.

— Quero ver a cara dela enquanto você a fode. — Hamburg me olha de novo. — Então vamos continuar do ponto onde paramos naquela noite, tudo bem? Você concorda, Izabel?

— Vai se foder!

— Ah, não, não — diz ele, ainda com o riso na voz. — Não sou eu quem vai foder você. Você não faz o meu tipo. — Seus olhos famintos percorrem o corpo do segurança que está me pressionando por trás.

— Eu vou matar você — digo, cuspindo por entre os dentes. A mão do segurança sobre a minha cabeça impede que eu a mexa. — Vou matar vocês dois! Me estupre! Vamos lá! Mas os dois vão estar mortos antes que eu saia daqui!

— Quem disse que você vai sair daqui? — provoca Hamburg.

O zíper da calça dele está aberto; sua mão direita está parada ao lado da braguilha, como se ele estivesse tentando manter algum autocontrole e não se masturbar ainda.

Então Hamburg acena com dois dedos para o guarda-costas, que me mantém imóvel segurando meus cabelos da nuca.

— Lembre-se disso — diz ele ao segurança. — Ela não vai sair daqui.

Sinto a mão direita do guarda-costas soltar meu cabelo e se mover entre as minhas pernas. Enquanto ele ergue meu vestido, aproveito para alcançar o punhal na minha coxa e tirá-lo da bainha, golpeando atrás em um ângulo desajeitado. O segurança grita de dor e me solta. Puxo o punhal ainda firme na mão, que está coberta de sangue. Ele cambaleia para trás, com a mão na base do pescoço, o sangue jorrando entre seus dedos.

— Sua puta do caralho! — ruge Hamburg, saltando da poltrona e vindo atrás de mim como um elefante descontrolado, a calça caindo de sua cintura flácida.

Corro na direção dele com o punhal levantado e colidimos no meio da sala. Seu peso me joga de bunda no chão e o punhal cai da minha mão, deslizando pelo piso ensanguentado. De pé, Hamburg se abaixa para me segurar, mas me reclino no chão e levanto o pé com toda a força, enfiando o salto da minha sandália na lateral do seu rosto. Ele geme e cambaleia para trás, com a mão na bochecha.

— Eu vou acabar com você! Puta que pariu! — berra ele.

Engatinho na direção do punhal, vendo o segurança no chão, em meio a uma poça de sangue. Ele está engasgando com os próprios fluidos; tentando em vão encher os pulmões de ar.

Pego o punhal com firmeza e rolo no chão enquanto Hamburg se aproxima, derrubando a poltrona de couro. Fico de pé e corro até a mesa, empurrando-a na direção dele. Hamburg tenta tirá-la da frente, mas o móvel balança sobre a base e ele acaba tropeçando. Seu corpo desaba no chão de barriga para baixo e a mesa cai quase na sua cabeça. Salto sobre suas costas e monto em seu corpo obeso. Meus joelhos mal tocam o chão. Agarro seu cabelo, puxo a cabeça dele para trás na minha direção e aperto o punhal em sua garganta, imobilizando-o em segundos.

— Pode me matar! Foda-se! Você não vai sair viva daqui mesmo. — A voz de Hamburg é rouca, sua respiração, rápida e ofegante, como se ele tivesse acabado de tentar correr uma maratona. O cheiro de seu suor e de seu medo invade minhas narinas.

Ocupada com a lâmina em sua garganta, me assusto com o som de batidas fortes na porta. A distração me pega desprevenida. Hamburg consegue se erguer debaixo de mim como um touro, rolando de lado e me derrubando no chão. Deixo cair o punhal em algum lugar, mas não tenho tempo para procurá-lo porque Hamburg consegue se levantar e parte para cima de mim. Ouço a voz de Stephens do outro lado da porta, que vibra com seus socos.

Rolo para sair do caminho antes que Hamburg consiga pular em cima de mim, pego o objeto mais próximo — um peso de papel de pedra, bem pesado, que estava na mesa antes de ser derrubada — e golpeio Hamburg com ele. O som do osso de seu rosto quebrando com o impacto faz meu estômago revirar. Hamburg cai para trás, cobrindo a cara com as mãos.

As batidas na porta ficam mais fortes. Numa fração de segundo, levanto a cabeça e vejo a porta sacudindo com violência no batente. Preciso sair daqui. Agora. Meu olhar varre a sala procurando o punhal, mas não há mais tempo.

Corro para a sala de vigilância, contornando os obstáculos.

Graças a Deus, há outra porta lá dentro. Abro a porta e desço correndo a escada de concreto, torcendo para que seja uma saída e eu não encontre mais ninguém no caminho.


CAPÍTULO CINCO

Sarai

Desço a escada de concreto de dois em dois degraus, segurando no corrimão de metal pintado com as mãos ensanguentadas, até chegar ao térreo. Uma placa vermelha com a palavra SAÍDA está à minha frente. Corro pela passagem mal-iluminada, onde uma lâmpada fluorescente pisca acima de mim e torna o lugar ainda mais ameaçador. Empurro com força a barra da porta com as duas mãos e ela se abre para um beco. Um homem de terno está sentado no capô de um carro, fumando, quando saio para a rua.

Eu fico paralisada.

Ele olha para mim.

Eu olho para ele.

Ele nota o sangue nas minhas mãos e olha de relance para a porta, depois para mim.

— Vá — diz ele, acenando para a caçamba de lixo à minha direita.

Sei que não tenho tempo para ficar confusa nem para perguntar por que ele está me deixando ir embora, mas pergunto assim mesmo.

— Por que você está...?

— Apenas vá!

Ouço passos ecoando na escada atrás da porta.

Lanço um olhar agradecido ao homem e dou a volta na caçamba, desço o beco e me afasto do restaurante. Ouço um tiro segundos depois que dobro a esquina e torço para que seja aquele homem fingindo atirar em mim.

Evito espaços abertos e corro por trás de prédios, protegida pela escuridão, tanto quanto minhas sandálias de salto alto permitem. Quando sinto que estou longe o suficiente para parar um pouco, tento me esconder atrás de outra caçamba e tiro as sandálias. Arranco a peruca loura e a jogo no lixo.

Não consigo respirar. Estou enjoada.

Meu Deus, estou enjoada...

Encosto na parede de tijolos atrás de mim, arqueando as costas e apoiando as mãos nos joelhos. Vomito com violência no chão, meu corpo rígido, o esôfago ardendo.

Pego as sandálias e saio correndo de novo na direção do hotel, tentando esconder o sangue das mãos e do vestido, mas percebo que não é tão fácil. Recebo alguns olhares desconfiados ao passar depressa pela recepção, mas tento ignorá-los e torço para que ninguém chame a polícia.

Em vez de arriscar ser vista por outras pessoas, subo pela escada até o oitavo andar. Quando chego lá, e depois de tudo o que corri, sinto que minhas pernas vão ceder. Encosto na parede e recupero o fôlego, com os joelhos tremendo descontroladamente. Meu peito dói, como se cada respiração trouxesse poeira, fumaça e cacos microscópicos de vidro para o fundo dos pulmões.

O quarto que divido com Eric está trancado e eu não tenho a chave. Aliás...

— Puta merda...

Jogo a cabeça para trás, fecho os olhos e suspiro, arrasada.

Não estou mais com a minha bolsa. Eu a perdi em algum momento da luta na sala de Hamburg. A chave do meu quarto. Meu celular. Minha arma. Meu punhal. Não tenho mais nada.

Bato na porta, mas Eric não está no quarto. Não esperava que estivesse, na verdade, já que não são nem onze da noite. Só para o caso de estar enganada, no entanto, tento o quarto de Dahlia.

— Dahl! Você está aí? — Bato na porta com pressa, tentando não incomodar os outros hóspedes.

Nenhuma resposta.

Já desistindo, jogo as sandálias no chão e apoio as mãos na parede. Minha cabeça desaba. Mas então ouço um clique baixinho e vejo a porta do quarto de Dahlia se abrindo devagar. Levanto a cabeça e a vejo parada ali.

Sem me demorar para questionar a expressão estranha no rosto dela, entro no quarto só para sair do corredor. Eric está sentado na poltrona perto da janela. Noto que seu cabelo está meio bagunçado. O de Dahlia também.

Meu instinto está tentando chamar minha atenção, mas não me importo. Acabei de apunhalar um homem no pescoço e de tentar matar outro. Quase fui estuprada. Estava correndo pelos becos de Los Angeles para fugir de homens armados que vinham atrás de mim. Nada que esses dois façam pode superar isso.

— Meu Deus, Sarai — diz Dahlia, aproximando-se de mim. — Isso é sangue?

A expressão estranha e silenciosa que ela exibia quando entrei no quarto desaparece em um instante quando ela me vê no quarto bem-iluminado. Seus olhos se arregalam, cheios de preocupação.

Eric se levanta da poltrona.

— Você está sangrando. — Ele também me olha de cima a baixo. — O que aconteceu?

Os olhos de Dahlia correm pela minha roupa e pelo meu cabelo preso dentro da touca da peruca.

— Por que... Hã, por que você está vestida assim?

Olho para mim mesma. Não sei o que dizer, então não digo nada. Eu me sinto como um cervo diante dos faróis de um carro, mas minha expressão continua firme e sem emoções, talvez um pouco confusa.

— Você encontrou Matt — acusa Dahlia, começando a levantar a voz. — Puta que pariu, Sarai. Você foi se encontrar com ele, não foi?

Sinto os dedos dela apertando meu antebraço.

Eu me desvencilho de Dahlia e caminho até o banheiro para tirar a touca do cabelo. Enquanto tiro os grampos, noto uma camisinha boiando na privada.

Eric entra no banheiro atrás de mim. Ele sabe que eu vi.

— Sarai, e-eu... Eu sinto muito — diz ele.

— Não se preocupe — respondo, tirando o último grampo e deixando-o na bancada creme.

Passo por Eric e volto para o quarto. Dahlia está me encarando, com o rosto cheio de vergonha e arrependimento.

— Eu...

Ergo a mão e olho para os dois.

— Não, é sério. Não estou brava.

— Como assim? — pergunta Dahlia.

Eric parece agitado. Ele põe a mão na nuca e passa os dedos pelo cabelo.

— Olhe, sem querer ofender — digo a Eric —, mas tenho fingido tudo com você desde a primeira vez que a gente ficou junto.

Ele arregala os olhos, embora tente não deixar que o choque e a mágoa da minha revelação transpareçam demais. Grande parte de mim se sente bem por dizer a verdade. Não por vingança, mas porque eu precisava tirar isso do peito. Mas admito que, depois de descobrir que os dois têm trepado pelas minhas costas, uma pequena parte de mim também fica feliz em magoá-lo. Acho que a vingança sempre encontra um caminho, mesmo nos gestos mais insignificantes.

— Fingido?

— Não tenho tempo para isso — digo, indo na direção da porta. — Vocês dois podem ficar juntos. Não tenho nada contra. Não estou brava, só não me importo mesmo. Preciso ir.

— Espere... Sarai.

Eu me viro para olhar Dahlia. Ela está muito chocada, mal sabe o que pensar. Depois de alguns segundos de silêncio, fico impaciente e a olho com cara de “vai, desembucha”.

— Para você... tudo bem mesmo?

Uau, não sirvo mesmo para o estilo de vida deles. O estilo de vida normal. Nem consigo entender essas coisas de namoro, melhores amigas, infidelidade, competição e joguinhos psicológicos. A cara que eles fazem, tão vazia e mesmo assim tão cheia de incredulidade e dúvida, por causa de uma situação que, para mim, não é tão importante... Tenho coisas mais graves com que me preocupar.

Suspiro, aborrecida com as perguntas vagas e confusas dos dois.

— Sim, por mim, tudo bem — digo, e então me viro para Eric, estendendo a mão. — Preciso da chave do nosso quarto.

Relutante, ele enfia a mão no bolso de trás e pega a chave. Tomo da sua mão, saio dali e vou para o quarto ao lado. Eric vem atrás e tenta falar comigo enquanto guardo minhas coisas na mala.

— Sarai, eu nunca quis...

Eu me viro de repente e o encaro.

— Tudo bem, só vou dizer isto uma vez, depois você muda de assunto ou volta para lá e fica com a Dahlia. Não estou nem aí para o que vocês dois fazem, mas, por favor, não apele para esse clichê de novela de que você nunca quis que isso acontecesse, porque... é muito idiota. — Eu rio baixinho, porque acho idiota mesmo. — Só falta você dizer que o problema não é comigo, é com você. Caramba, você faz ideia do que isso parece? É tão difícil assim acreditar quando digo que não me importo e que estou falando sério? Sem joguinhos. É verdade. — Balanço a cabeça, levanto as mãos e digo: — Não. Me. Importo.

Viro para a mala, fecho o zíper, abro a parte lateral e pego a chave do quarto secreto. Ainda bem que eu tinha uma cópia.

— Preciso ir — digo, andando até a porta e passando por Eric.

— Aonde você vai?

— Não posso contar, mas me escute, Eric, por favor. Se alguém aparecer me procurando, finja que não me conhece. Diga o mesmo para Dahlia. Finjam que nunca me viram na vida. Aliás, quero que vocês dois saiam hoje. Vão para qualquer lugar. Só... não fiquem aqui.

— Você vai me dizer o que aconteceu ou por que está toda ensanguentada? Sarai, você está me deixando assustado pra cacete.

— Eu vou ficar bem — digo, atenuando minha expressão. — Mas prometa que você e Dahlia vão fazer exatamente o que falei.

— Você vai me contar um dia?

— Não posso.

O silêncio entre nós fica mais pesado.

Enfim, abro a porta e saio para o corredor.

— Acho que sou eu quem deveria estar pedindo desculpas.

— Por quê?

Eric fica na porta, com os braços caídos ao lado do corpo.

— Por pensar em outra pessoa durante todo esse tempo em que eu estava com você. — Olho para o chão.

Nós nos encaramos por um breve momento e ninguém diz mais nada. Ambos sabemos que estamos errados. E acho que nós dois estamos aliviados por tudo ter vindo à tona.

Não há mais nada a dizer.

Eu me afasto pelo corredor na direção oposta à do meu quarto secreto e dou a volta por trás, para que Eric não veja aonde estou indo. Quando me tranco no quarto, só consigo desabar na cama. A exaustão, a dor e o choque de tudo o que aconteceu esta noite me atingem em cheio assim que a porta se fecha, e me engolem como uma onda. Eu me jogo de costas no colchão. Minhas panturrilhas doem tanto que duvido conseguir andar sem mancar amanhã.

Fico olhando para o teto escuro até ele desaparecer e eu pegar no sono.


CAPÍTULO SEIS

Sarai

Um tum! pesado me acorda, mais tarde naquela noite. Eu me levanto como uma catapulta.

Vejo dois homens no meu quarto: um desconhecido morto no chão e Victor Faust de pé sobre o corpo dele.

— Levante-se.

— Victor?

Não acredito que ele está aqui. Devo estar sonhando.

— Levante-se, Sarai. AGORA! — Victor me pega pelo cotovelo, me arranca da cama e me põe de pé.

Não consigo nem pegar minhas coisas, ele já está abrindo a porta e me puxando para o corredor com ele, segurando forte a minha mão.

Disparamos juntos pelo corredor e outro homem aparece virando a esquina, de arma em punho. Victor aponta sua 9mm com silenciador e o derruba antes que o cara consiga atirar. Ele passa pelo corpo me puxando, seus dedos fortes afundando na minha mão enquanto corremos para a escada. Ele abre a porta, me empurra para a frente e nós subimos depressa os degraus de concreto. Um andar. Três. Cinco. Minhas pernas estão me matando. Acho que não consigo andar por muito mais tempo. Enfim, no quinto andar, Victor me puxa para outro corredor e rumo a um elevador nos fundos.

Quando as portas do elevador se fecham e estamos só nós dois lá dentro, finalmente tenho a oportunidade de falar.

— Como você sabia que eu estava aqui? — Mal consigo recuperar o fôlego, esgotada pela correria infinita e pela adrenalina, mas acho que sobretudo porque Victor está de pé ao meu lado, segurando minha mão.

Meus olhos começam a arder com as lágrimas.

Engulo o choro.

— O que você estava pensando, Sarai?

— Eu...

Victor segura meu rosto com as duas mãos e me empurra contra a parede do elevador, pressionando ferozmente seus lábios nos meus. Sua língua se entrelaça na minha e sua boca tira meu fôlego em um beijo apaixonado que, enfim, faz meus joelhos cederem. Toda a força que eu estava usando para manter o corpo ereto desaparece quando os lábios dele me tocam. Ele me beija com fome, com raiva, e eu derreto em seus braços.

Então ele se afasta, as mãos fortes nos meus braços, me segurando contra a parede do elevador. Nós nos encaramos pelo que parece ser uma eternidade, nossos olhos paralisados em uma espécie de contemplação profunda, nossos lábios a centímetros de distância. Só quero prová-los de novo.

Mas ele não deixa.

— Responda — exige Victor, estreitando seus olhos perigosos em reprovação.

Já esqueci a pergunta.

Ele me sacode.

— Por que você veio aqui? Tem ideia do que você fez?

Balanço a cabeça em um movimento curto e rápido, parte de mim mais preocupada com seu olhar ameaçador do que com o que ele está dizendo.

A porta do elevador se abre no subsolo e eu não tenho tempo para responder, pois Victor mais uma vez pega minha mão e me puxa para que o siga. Serpenteamos por um grande depósito com caixas em pilhas altas encostadas nas paredes e depois por um longo corredor escuro que leva a um estacionamento. Victor enfim solta minha mão e eu o sigo até um carro parado entre dois furgões pretos com o logotipo do hotel nas laterais. Dois bipes ecoam pelo ambiente e os faróis do carro piscam quando nos aproximamos, iluminando a parede de concreto em frente. Sem perder tempo, me sento no banco do passageiro e fecho a porta.

Segundos depois, Victor está dirigindo casualmente pelo estacionamento até a rua.

— Eu queria que ele morresse — respondo, enfim.

Victor não me olha.

— Bom, você fez um excelente trabalho — rebate ele, sarcástico.

Ele vira para a direita no semáforo, e o carro ganha velocidade quando chegamos à rodovia.

Fico magoada por suas palavras, mas sei que ele tem razão, por isso não discuto. Fiz merda. Uma merda muito grande.

Mas não me dou conta do tamanho dela até Victor dizer:

— Os seus amigos podiam ter morrido. Você podia ter morrido.

Sinto meus olhos se arregalarem além dos limites e me viro mais um pouco para encará-lo.

— Ah, não... Victor, o quê... Eles estão bem?

Sinto que vou vomitar de novo.

Victor me olha por um instante.

— Estão ótimos. O primeiro quarto que os capangas de Hamburg revistaram estava vazio — diz ele, voltando a olhar para a estrada. — Eu cheguei quando eles estavam saindo. Segui um deles até o quarto onde você estava escondida, deixei que ele destrancasse a porta e então ataquei.

As chaves do quarto. Minhas duas chaves extras estavam na bolsa que perdi no restaurante de Hamburg. E os números dos quartos estavam escritos nas capinhas de papel que as protegiam. Eu estava tão preocupada em esconder minha arma e meu punhal que nem pensei em esconder as chaves.

— Merda! — Também olho para a estrada. — E-eu perdi a bolsa no restaurante. As chaves do meu quarto estavam dentro dela. Deixei um rastro para eles seguirem!

Felizmente, eu não tinha uma chave extra do quarto de Dahlia, senão ela e Eric já poderiam estar mortos.

Onde é que eu estava com a cabeça?!

— Não, você deixou literalmente as chaves do seu quarto com o nome do hotel gravado. Sarai, eu devia ter matado você há muito tempo e poupado toda essa confusão para cima de você e de mim.

Eu me viro para encará-lo; a raiva e a mágoa pesando no meu peito.

— Você não está falando sério.

Ele faz uma pausa e me olha. Suspira.

— Não, não estou falando sério.

— Nunca mais me diga isso. Nunca mais me diga uma coisa dessas, ou eu mato você e poupo a mim de toda essa confusão — rebato, desviando o olhar.

— Você não está falando sério — diz Victor.

Olho mais uma vez para aqueles olhos ameaçadores verde-azulados que me fizeram tanta falta.

— Não. Mas acho que isso seria o mais sensato.

— Bom, você não foi a campeã da sensatez hoje, então acho que estou seguro ao menos pelas próximas 24 horas.

Escondo o sorriso.

— Senti sua falta — digo de maneira distante, olhando para a estrada.

Victor não responde, mas admito que seria estranho se respondesse. A despeito de sua falta de emoção, porém, sei que ele também sentiu saudade de mim. Aquele beijo no elevador disse coisas que palavras jamais conseguiriam.

Ele pega uma saída e para o carro debaixo de um viaduto. Puxa o freio de mão e a área ao redor desaparece na escuridão quando ele desliga os faróis.

— O que a gente está fazendo aqui?

— Você precisa ligar para os seus amigos.

— Por quê?

Ele tira um celular do porta-luvas entre nós.

— Mande eles voltarem para o Arizona. Faça ou diga o que for preciso para que eles saiam de Los Angeles. Quanto antes, melhor.

Ele coloca o telefone na minha mão. De início, só olho para o aparelho, mas ele me pressiona com aquele olhar, aquele que grita “vamos lá, faça isso de uma vez”, mas que só alguém como eu, alguém que conhece Victor, seria capaz de notar.

Giro o celular nas mãos, depois o seguro firmemente e digito o número de Eric. Mas então mudo de ideia, desligo no primeiro toque e ligo para Dahlia.

Ela atende no quinto toque.

Respiro fundo e faço o que sei fazer melhor: minto.

— A verdade é que vocês me magoaram. Duvido que um dia eu consiga perdoar você ou Eric pelo que fizeram.

— Sarai... Meu Deus, me desculpe, estou me sentindo muito mal. A gente não queria que isso chegasse a esse ponto. Juro para você. Não sei o que aconteceu...

— Escute, Dahlia, por favor, só me escute.

Ela fica quieta.

Começo a choradeira. Nunca imaginei que eu seria capaz de chorar sob demanda e de forma tão falsa.

— Eu quero acreditar em você. Quero conseguir confiar em você de novo, mas você era minha melhor amiga e me traiu. Preciso de um tempo sozinha e quero que você e Eric voltem para o Arizona. Hoje. Acho que não vou aguentar ver vocês de novo... Espere, onde você está, agora?

Acabo de me dar conta de que, se ela e Eric estiverem no hotel, a essa altura ela já sabe que dois homens foram mortos a tiros no andar do quarto deles.

— A gente está em uma festa em um terraço — conta ela. — T-tudo bem por você? Achei que não tinha nada a ver a gente sair, mas o Eric falou que você insistiu...

— Não, tudo bem — digo, cortando-a. — Insisti mesmo. Onde ele está, agora?

— Deixei Eric lá no terraço para a gente poder conversar. Está muito barulhento lá em cima. Que número é esse de onde você está ligando?

— É o celular de um amigo. Perdi o meu. O Eric por acaso avisou que se alguém procurar por mim...

— Avisou, sim — interrompe Dahlia. — Que confusão é essa, afinal? Meu Deus, Sarai, esquece por um momento esse lance com Eric e me conta o que está acontecendo, por favor. O sangue. As roupas esquisitas que você estava usando e aquele troço na sua cabeça. Era uma touca de peruca? Você está metida em alguma encrenca, eu sei. Sei que você me odeia, e tem todo o direito de odiar, mas, por favor, conte o que aconteceu.

— Não posso contar, porra! — grito, deixando o choro distorcer minha voz. — Caramba, Dahlia, faça o que eu pedi. Pelo menos isso! Você deu para o meu namorado! Por favor, voltem para o Arizona, me deixem esfriar a cabeça e depois eu volto para casa. Talvez aí a gente possa conversar. Mas agora façam o que eu estou pedindo. Tudo bem?

Ela não responde por um momento, e um longo silêncio se forma entre nós.

— Tudo bem — concorda ela. — Vou dizer ao Eric que a gente precisa ir embora.

— Obrigada.

Estou apenas um pouco aliviada. Não vou me sentir bem com isso até saber que eles chegaram em casa sãos e salvos.

Desligo sem dizer mais uma palavra.

— Bom, isso foi bastante convincente — observa Victor, levemente impressionado.

— Acho que foi.

— Eu sei que a sua amiga acreditou — acrescenta ele. — Mas eu não acreditei em uma só palavra.

Eu me viro para ele. Victor me conhece tão bem quanto eu o conheço, parece.

— É porque nem uma palavra era verdade.

Ele deixa por isso mesmo e nós saímos de baixo do viaduto.

Chegamos a uma casa perdida no final de uma estrada isolada nos arredores da cidade, empoleirada no alto de uma colina com uma vista quase perfeita para a cidade lá embaixo. Uma piscina de formato irregular começa no lado esquerdo da casa e serpenteia por trás, a água azul-clara iluminada por lâmpadas submersas parece luminescente. O lugar está silencioso. Só ouço o vento passando pela mata cerrada que contorna o lado direito e os fundos da casa, impedindo uma visão em 360 graus da paisagem iluminada de Los Angeles. Quando nos aproximamos da porta, uma mulher robusta usando uniforme azul de empregada nos recebe. Ela tem cabelo preto encaracolado e pele morena. Suas bochechas são volumosas, envolvendo seus olhos castanho-escuros pequenos e brilhantes, que fitam atentamente Victor e a mim.

— Por favor, entrem — diz ela, com um sotaque hispânico familiar.

A mulher fecha a porta. A casa cheira a limpa-vidro e a uma mistura pouco natural de cheiros adocicados que só pode vir de algum tipo de aromatizador de ambientes artificial. Parece que todas as janelas foram abertas, permitindo que a brisa noturna de verão se espalhasse pela casa. Não se parece em nada com as mansões ricas onde já estive, mas é impecável e aconchegante, e penso que eu deveria pelo menos ter tomado um banho antes de vir. Minha pele e minhas roupas ainda estão manchadas de sangue...

Victor está usando uma calça preta e uma camisa apertada de mangas compridas que adere a cada músculo de seus braços e seu peito, com os punhos desabotoados e arregaçados até os cotovelos. A camisa está por fora da calça e os dois botões de cima estão abertos. Sapatos pretos chiques e informais calçam seus pés. Um relógio brilhante de prata adorna seu pulso direito, e não consigo deixar de notar a solitária veia grossa que percorre as costas de sua mão até o osso de seu pulso. Quando ele segue a empregada pela grande entrada e se vira momentaneamente de costas para mim, vejo o cabo da arma saindo da cintura de sua calça, com a barra da camisa branca enfiada atrás.

Ele me olha, para e estende o braço, em um gesto para que eu ande à sua frente. Tremo de leve quando sua mão toca minhas costas perto da cintura.

Antes que eu tenha tempo de me sentir deslocada ao lado dele, Fredrik, o amigo e cúmplice sueco de Victor que conheci no restaurante de Hamburg há tanto tempo, entra na sala pelas grandes portas de vidro que dão para o quintal dos fundos.


CAPÍTULO SETE

Sarai

— Você chegou cedo — comenta Fredrik com um sorriso mortal, porém inimaginavelmente sexy.

As roupas dele são bem parecidas com as de Victor, mas, em vez de camisa de botão, Fredrik está vestindo uma camiseta branca apertada que adere à sua forma esbelta e máscula. Ele está descalço.

A primeira vez que vi Fredrik, pensei que era impossível haver alguém mais bonito. Com cabelo macio, quase preto, e olhos escuros e misteriosos, suas feições parecem ter sido esculpidas por algum artista famoso. Mas sempre achei que havia algo de sombrio e assustador naquele homem. Um lado dele que eu, particularmente, não faço questão de conhecer. Para mim, basta o jeito como ele era quando nos encontramos: cordial, encantador e misterioso, uma linda máscara que ele usa para esconder a fera que há por trás.

Victor olha para seu relógio caro.

— Só dez minutos mais cedo — comenta ele.

Fredrik sorri ao se aproximar, os dentes brancos reluzindo contra a pele bronzeada.

— Sim, mas você sabe como eu sou.

Victor assente, mas não alonga o assunto. A mim, só resta imaginar o que aquilo significa.

— É bom ver você — diz Fredrik, observando-me do topo de sua altura considerável e presença avassaladora. Ele se inclina, pega minha mão e a beija, logo acima dos nós dos dedos. — Ouvi dizer que você matou um homem hoje.

Ele apruma as costas e solta minha mão. Um sorriso perturbador e orgulhoso surge em seu rosto, os cantos dos olhos se aquecendo com alguma lembrança ou... prazer, como se a ideia de matar alguém o deliciasse de alguma forma.

Olho para Victor à minha direita. Ele assente, respondendo à pergunta estampada no meu rosto. O guarda-costas que apunhalei no pescoço morreu?

Olho para Fredrik e respondo sem rodeios.

— Acho que matei.

Um leve sorriso se abre nos cantos dos lábios de Fredrik, e ele olha de relance para Victor, sem mover a cabeça.

— E você se sente bem com isso? — pergunta Fredrik.

— Para dizer a verdade, sim — respondo sem demora. — O desgraçado mereceu.

Fredrik e Victor parecem envolvidos em algum tipo de conversa secreta. Odeio isso.

Enfim, Fredrik diz para Victor em voz alta:

— Você arrumou sarna para se coçar, Faust.

Ele então se vira de costas para nós e anda na direção das portas de vidro. Nós o seguimos para o lado de fora, passando pela parte coberta do quintal e descendo uma escada de pedra que leva a um enorme pátio, também de pedra, que se abre em todas as direções. O pátio é decorado com mesas e cadeiras de ferro batido e uma cama com dossel ao ar livre.

Eu me sento ao lado de Victor em um sofá.

— Como é que você sabe? — pergunto a Fredrik, mas então me viro para Victor e digo: — E você ainda não me contou como sabia que eu estava aqui.

Na verdade, isso não importa muito, só quero encará-lo nos olhos de novo. Quero ficar sozinha com Victor, mas por enquanto vou precisar me contentar com os 7 centímetros entre nossos corpos, sentados lado a lado.

— Melinda Rochester me contou — explica Fredrik com um sorriso conivente. Começo a perguntar “E quem é Melinda Rochester”, mas ele diz: — Bem, ela contou para todo mundo, na verdade. Noticiário do Canal 7. Um homem morto a punhaladas atrás de um restaurante de Los Angeles.

Começo a me retorcer por dentro. Espero que as câmeras não tenham me mostrado com nitidez.

Eu me viro para Victor, com a preocupação transparecendo no rosto.

— Eu estava de peruca loura — digo, tentando encontrar alguma coisa, qualquer coisa que eu tenha feito certo. — Fiquei com a cabeça baixa... a maior parte do tempo.

Desisto. Sei que o que fiz vai continuar me perseguindo. Suspiro e olho para as mãos ensanguentadas no meu colo.

— E encontrar você foi fácil — continua Victor. — A sra. Gregory me ligou depois que você saiu do Arizona. Ela estava preocupada com a sua vinda para Los Angeles e achou que eu precisava saber.

Viro a cabeça para encará-lo.

— O quê? Dina sabia onde você estava? — Sinto a pele ao redor das sobrancelhas se enrijecendo.

— Não — responde ele, com delicadeza. — Ela não sabia onde eu estava, mas sabia como entrar em contato comigo.

Essas palavras me magoam. Engulo em seco a sensação de ser traída por eles.

— Falei para ela entrar em contato comigo só em caso de emergência — acrescenta Victor. — Caso algo acontecesse com você.

— Você deixou para Dina uma forma de entrar em contato — digo, ríspida —, mas para mim, nada. Não acredito que você fez isso.

— Eu queria que você tocasse a sua vida. Mas, caso os irmãos de Javier descobrissem onde você estava, ou você decidisse fazer uma proeza como a de hoje, eu queria ficar sabendo.

Não consigo olhar para Victor. Tento chegar mais alguns centímetros para o lado a fim de aumentar a distância entre nós. Ainda assim, mesmo que esteja magoada e enfurecida com ele, sinto vontade de me aproximar de novo. Mas me mantenho firme e me recuso a deixá-lo perceber que o poder que ele exerce sobre mim faz a raiva que sinto parecer um chilique.

— Não acredito que Dina escondeu isso de mim — digo em voz alta, ainda que esteja falando mais comigo mesma.

— Ela escondeu de você porque eu disse a ela quanto isso era importante.

— Bom, de qualquer maneira — interrompe Fredrik, sentando-se na poltrona ao lado do sofá —, parece que você se meteu em uma situação da qual não vai conseguir sair tão facilmente, se é que vai conseguir.

— Por que a gente está aqui? — pergunto, aborrecida.

Fredrik ri baixinho.

— Aonde mais você iria?

— Eu precisava tirar você do hotel — explica Victor.

— Espere um pouco. Eu não matei aquele homem atrás do restaurante. Tudo aconteceu na sala particular de Hamburg, no andar de cima.

Recordo o homem que vi do lado de fora, atrás do restaurante, aquele que me deixou fugir, e meu coração afunda.

— Hamburg não deixaria que a polícia acreditasse que o assassinato aconteceu lá dentro, porque eles confiscariam a memória da câmera de vigilância e veriam o que realmente aconteceu.

Não estou entendendo nada. Nadinha.

— Eles não iam querer que a polícia soubesse o que realmente aconteceu?

Fredrik se reclina na poltrona e ergue um pé descalço, apoiando o tornozelo sobre o outro joelho, e estende os braços sobre os da poltrona.

Victor balança a cabeça.

— Preciso mesmo explicar isso para você, Sarai?

Sua vaga irritação me pega de surpresa. Olho para ele e levo alguns segundos para entender tudo sem que ele precise explicar.

— Ah, entendi — digo, olhando um de cada vez. — Hamburg não quer que a polícia se envolva porque corre o risco de se expor. O que ele fez, então? Só levou o corpo para fora? Preparou a situação para parecer um assalto comum? Não muito diferente do que ele fez naquela noite em que a gente estava na mansão dele, imagino.

Paro por aí porque Fredrik está presente. Não sei qual o grau de intimidade entre ele e Victor, nem mesmo se Fredrik sabe o que aconteceu na noite em que Victor matou a esposa de Hamburg.

Os olhos de Victor sorriem de leve para mim: sua maneira de me mostrar quanto lhe agrada eu ter entendido tudo. Ainda fingindo estar aborrecida, não retribuo o olhar da forma que ele deve esperar.

A empregada aparece com um balde chique de gelo, de madeira, com três garrafas de cerveja dentro. Fredrik pega uma, então ela nos oferece. Victor pega uma garrafa, mas recuso, mal conseguindo olhar a mulher nos olhos. Estou absorta demais nos acontecimentos da noite, que não me saem da cabeça.

A empregada vai embora logo depois, sem dizer uma palavra.

— O que você quis dizer com os irmãos de Javier?

Victor abre sua garrafa e a põe na mesa.

— Dois deles, Luis e Diego, assumiram os negócios de Javier dias depois que você o matou.

Por um instante, o rosto de Javier surge em minha mente: sua expressão chocada e ainda orgulhosa, os olhos arregalados, o corpo caindo no chão segundos depois de eu meter uma bala em seu peito.

Afasto a imagem.

Eu me lembro de Luis e Diego. Diego é aquele que tentou me estuprar quando eu estava na fortaleza no México, aquele que Javier castrou como punição.

— Eles estão me procurando?

Victor toma um gole de cerveja e devolve a garrafa à mesa com calma.

— Que eu saiba, não. Estou monitorando a fortaleza há meses. Os irmãos de Javier são amadores. Não têm ideia do que fazer com tanto poder. Duvido até que vejam você como ameaça.

Fredrik toma um gole de cerveja e prende a garrafa entre as pernas.

— Não fique tão aliviada assim — diz ele. — É melhor ser perseguida por amadores do que por Hamburg e aquele braço direito dele.

Um nó nervoso se forma no fundo do meu estômago. Olho de relance para Victor, buscando respostas.

— Willem Stephens — esclarece Victor — faz todo o serviço sujo de Hamburg. Hamburg em si é covarde, tão perigoso quanto o pedófilo gente boa da vizinhança. Mal consegue atirar em um alvo imóvel, e trairia alguém em dois minutos para se salvar. — Ele arqueia uma sobrancelha. — Stephens, por outro lado, tem uma extensa formação militar, é ex-mercenário e trabalhou para uma Ordem do mercado negro em 1986.

— Uma o quê?

— Uma Ordem como a nossa — explica Victor —, mas que aceita contratos particulares. Eles fazem coisas que outros agentes se recusam a fazer, vendem seus serviços basicamente para qualquer um.

— Ah... Então, resumindo, ele mata gente inocente por dinheiro.

Lembro o que Victor me contou, meses atrás, sobre a natureza dos contratos particulares, como pessoas eram assassinadas por motivos fúteis como traição conjugal ou vingança. A Ordem de Victor só trabalha com crime, ameaças sérias a um grande número de pessoas ou ideias que poderiam ter um impacto negativo na sociedade ou na vida como um todo.

Engulo em seco.

— Bom, ele me viu, com certeza. — Levanto as mãos e tiro o cabelo do rosto, passando as mãos no alto da cabeça. — Foi ele quem me levou para o segundo andar, para a sala de Hamburg. — Olho para Victor. — Desculpa, Victor. Eu... eu não sabia de nada disso.

Fredrik ri baixinho e diz:

— Algo me diz que, mesmo se você soubesse, teria ido lá de qualquer maneira.

Desvio o olhar de Victor e olho para baixo de novo, nervosa, esfregando os dedos ensanguentados uns nos outros. Fredrik tem razão. Odeio admitir, mas ele tem razão. Eu teria ido para o restaurante mesmo assim. Teria tentado matar Hamburg mesmo assim. Mas, se eu soubesse de tudo isso, acho que teria pensado em um plano melhor.

De repente, sinto que alguma coisa toma meu corpo e me tira o fôlego.

— Victor... Meu celular... — Eu me levanto do sofá, com o cabelo castanho-avermelhado caindo pelos ombros, batendo em meus braços nas partes em que o sangue secou e formou uma crosta áspera. — O número de Dina está no meu celular. Merda. Merda! Victor, Stephens vai atrás dela! Preciso voltar para o Arizona!

Começo a seguir para a porta dos fundos, mas Victor me alcança antes que eu atravesse o caminho decorado com pedras lisas.

— Espere aí.

Olho para baixo e vejo os dedos dele em volta do meu pulso. Seus hipnóticos olhos verde-azulados me fitam com desejo e devoção. Devoção. Algo que nunca vi no olhar de Victor antes.

Fredrik fala atrás de nós, me tirando do transe em que Victor me colocou.

— Eu vou cuidar disso — diz ele.

Desvio o olhar de Victor para Fredrik, que então ganha importância, considerando que a vida de Dina está em jogo.

— Como? — pergunto.

Victor me leva de volta para o sofá.

Fredrik pega o celular da mesa à frente, procura um número e toca na tela para ligar. Então encosta o celular no ouvido.

Victor me faz sentar perto dele de novo. Estou concentrada demais em Fredrik no momento para notar que Victor fez questão de se sentar tão perto que sua coxa está encostada na minha. Quero aproveitar o momento de proximidade, mas não posso. Estou preocupada com Dina.

Fredrik se reclina na poltrona de novo, balançando o pé descalço apoiado no joelho. Seu rosto fica alerta quando alguém atende à ligação.

— Em quanto tempo você consegue chegar a Lake Havasu City? — pergunta Fredrik ao telefone. Ele ouve por um segundo e assente. — Mando o endereço por mensagem de texto assim que eu desligar. Vá para lá o mais rápido que puder. Uma mulher mora lá. Dina Gregory. — Ele me olha de relance, para se certificar de que disse o nome certo. Como não o corrijo, volta a falar ao telefone. — Tire-a da casa e a leve para Amelia, em Phoenix. Sim. Sim. Não, não pergunte nada a ela. Só tome cuidado para ninguém machucar Dina. Sim. Me ligue neste número assim que estiver com ela.

Fredrik assente mais algumas vezes. Meu coração está batendo tão forte que parece pronto para pular do peito. Espero que a pessoa com quem ele está falando consiga encontrar Dina a tempo.

Fredrik desliga e parece abrir uma tela de texto no celular. Ele olha para mim, mas é Victor quem dá o endereço da sra. Gregory. Fredrik o digita e deixa o celular na mesa.

— Meu contato está a apenas trinta minutos de lá — explica Fredrik, olhando primeiro para mim. Então se vira para Victor. — O que você quer que eu faça?

Ele levanta as costas da poltrona e apoia os cotovelos nos joelhos, deixando as mãos entre eles. Mesmo em uma posição relaxada, ele consegue parecer elegante, importante e perigoso.

— Ainda preciso que você verifique o que discutimos ontem — diz Victor, e fica ainda mais claro, para mim, que Fredrik recebe ordens dele, embora não pareça ser do tipo que recebe ordens de ninguém. Mas está claro que os dois têm uma relação forte. — E, se você não se importa, preciso da sua casa emprestada por esta noite.

Os olhos escuros de Fredrik me encaram, e o traço de um sorriso aparece em seu rosto. Ele se levanta e pega o celular da mesa, escondendo-o na mão.

— Não precisa dizer mais nada. Vou sair daqui em vinte minutos. Eu ia mesmo me encontrar com alguém hoje, então está combinado.

A atitude de Victor muda um pouco, o que percebo no mesmo instante. Ele está encarando Fredrik, do outro lado da mesa do pátio, com um olhar cansado e cauteloso.

— Você não vai fazer o que estou pensando...

Ouço com atenção sem nem ao menos tentar disfarçar. Eu quero que eles saibam que estou bisbilhotando, porque é frustrante nenhum dos dois me oferecer qualquer explicação sobre esses comentários internos.

Fredrik ergue um lado da boca em um meio sorriso. Ele balança a cabeça de leve.

— Não, esta noite, não, infelizmente. Mas já faz algum tempo. Vou precisar que você me ajude com isso em breve.

Os olhos dele passam por mim e sinto um calafrio percorrer minhas costas. Não consigo decidir se é um arrepio bom ou assustador.

— Você terá sua oportunidade logo, logo — assegura Victor.

Fredrik dá a volta na mesa.

— Lamento por ter que encurtar nossa reunião.

— Tudo bem — digo. — Obrigada por ajudar com Dina. Você avisa quando receber aquela ligação?

Fredrik assente.

— Com certeza. Farei isso.

— Obrigada.

Victor acompanha Fredrik até a porta de vidro e os dois a atravessam. Fico sentada, observando-os do outro lado do pátio de pedra e tentando ouvir o máximo que posso, mas eles fazem questão de falar em voz baixa. Isso também me deixa frustrada. E pretendo informar Victor disso.


CAPÍTULO OITO

Victor

Fredrik fecha a porta de correr feita de vidro.

— Ela não sabe nada sobre Niklas? — pergunta ele, como eu já previa.

— Não, mas vou ter que contar. Ela vai precisar ficar atenta o tempo todo. Agora mais do que nunca.

— Ela não pode ficar aqui por muito tempo — aconselha Fredrik, olhando, através do vidro, Sarai sentada no sofá lá fora e nos observando. — Você também não.

— Eu sei. Quando Niklas descobrir que ela participou do assassinato no restaurante de Hamburg, vai saber na mesma hora que também estou envolvido nisso. Ele não é bobo. Se Sarai está viva, Niklas vai saber que estou tentando ajudá-la.

— E como ele desconfia de que agora trabalho com você — acrescenta Fredrik —, ela corre tanto perigo perto de mim quanto de você.

— É verdade.

Fredrik balança a cabeça para mim, com um sorriso escondido no fundo dos olhos.

— Não entendo esse envolvimento. Respeito você como sempre, respeitei, Victor, mas nunca vou entender a necessidade de um homem amar uma mulher.

— Eu não estou apaixonado por ela. Ela só é importante para mim.

— Talvez não — retruca ele, indo para a cozinha. — Mas parece que o amor e o envolvimento trazem as mesmas consequências, meu amigo. — Sigo Fredrik até a cozinha iluminada e ele abre um armário. — Mas estou do seu lado. O que você precisar que eu faça para ajudar, é só pedir. — Ele aponta para mim perto do armário, agora com um pão na mão.

A empregada de Fredrik entra na cozinha, roliça e mais velha do que nós dois juntos, exatamente o tipo de mulher que jamais o atrairia, e foi por isso que ele a contratou. Ela lhe pergunta em espanhol se pode voltar para casa e ver a família mais cedo hoje. Fredrik responde em espanhol, concordando. Ela assente respeitosamente e passa por mim na sala. De soslaio, eu a observo pegar uma bolsa volumosa de couro marrom do chão, perto da espreguiçadeira, e colocá-la no ombro. Depois ela vai até a porta, fechando-a devagar ao sair.

Sarai está de pé nas sombras da sala quando desvio o olhar da porta. Nem ouvi a porta de vidro correr quando ela entrou, e pelo jeito Fredrik também não.

Ela vai para a cozinha iluminada, de braços cruzados, os dedos delicados segurando seus bíceps femininos, mas bem-definidos. Ela é linda demais, mesmo quando está desgrenhada assim.

— Quanto tempo vocês planejavam me deixar lá fora? — pergunta ela, com um traço de irritação na voz.

— Ninguém disse que você precisava ficar lá, gata — responde Fredrik.

Ele gosta dela, isso é óbvio para mim, e ele deve saber. Mas também sabe que vou matá-lo. Ainda assim, minha confiança em Fredrik é maior do que minha preocupação de que ele volte para o lado sombrio e a machuque. Fredrik Gustavsson é uma fera do tipo mais carnal, que adora mulheres e sangue, mas tem limites e critérios, além de levar a lealdade, o respeito e a amizade muito a sério. Sua lealdade a mim é, afinal, o motivo para ele trair a Ordem todos os dias me ajudando.

Sarai se aproxima de mim e me olha nos olhos, inclinando um pouco a cabeça para o lado. O cheiro de sua pele e o calor tênue que emana dela quase me fazem perder o controle. Tenho conseguido me conter bastante desde que a beijei no elevador. Pretendo continuar assim.

Ela não diz nada, mas continua me encarando como se esperasse alguma coisa. Fico confuso. Ela inclina a cabeça para o outro lado e seu olhar se suaviza, embora eu não saiba ao certo por quê. Parece maliciosa e cheia de expectativa.

Ouço Fredrik rir baixinho e a porta da geladeira se fechar, mas não tiro os olhos de Sarai.

— As coisas são tão mais fáceis do meu jeito. — Ouço-o dizer, com um sorriso na voz.

— Entre em contato comigo assim que tiver a informação sobre Niklas — peço, ainda olhando nos olhos de Sarai e ignorando o comentário dele. — E quando souber pelo seu contato se Dina Gregory está a salvo em Phoenix.

— Pode deixar — diz Fredrik, e então vai para a porta do corredor que leva ao seu quarto. Mas ele para e olha para nós. — Se você não se importa...

Enfim desvio o olhar de Sarai e dou atenção total a Fredrik.

— Não se preocupe — interrompo —, eu sei onde fica o quarto de hóspedes.

Ele enfia na boca um sanduíche que mal notei que ele preparava e morde, rasgando um pedaço de pão. Eu o vejo piscando para Sarai antes de desaparecer da sala. Foi algo inofensivo, uma menção ao que ele acha que pode acontecer entre nós quando sair, e não uma tentativa de flerte.

— Que informação sobre Niklas? — pergunta Sarai, seus traços suaves agora encobertos pela preocupação.

Estendo a mão e passo os dedos por algumas mechas do cabelo dela.

— Preciso contar muita coisa para você — anuncio, tirando a mão antes de perder o controle e acabar tocando nela mais do que pretendo. — Sei que você deve estar exausta. Por que não toma um banho e fica à vontade primeiro? Depois conversamos.

Um sorrisinho suave emerge em seus lábios, mas logo desaparece em seu rosto enrubescido.

— Você quer dizer que eu estou nojenta? — pergunta ela, tímida. — Esse é o seu jeito de me dizer que preciso lavar meu corpo nojento?

— Na verdade, sim — admito.

Por um momento ela faz uma careta e parece ofendida, mas então só balança a cabeça e dá risada. Admiro isso em Sarai. Admiro muita coisa nela.

— Tudo bem. — Sua expressão brincalhona fica séria de novo. — Mas você precisa me contar tudo, Victor. E eu sei que você deve ter muito para contar, mas saiba que também preciso dizer muita coisa para você.

Eu já esperava isso. E, antes que ela fique na ponta dos pés, incline o corpo na minha direção e me beije, já sei que, quando ela sair do banho, vou precisar decidir o que vamos fazer. Vou precisar tomar algumas decisões importantes, que nos afetarão.

Porque de uma coisa eu tenho certeza: Sarai não pode voltar para casa.


Sarai

Quando volto, Victor está na sala, acomodado na beira do sofá, curvado sobre a mesinha de centro feita de vidro que está cheia de pedaços de papel e fotografias. Entro, mas ele continua remexendo neles sem erguer a cabeça para me olhar. Só que ele não me engana, sei que sente a minha presença tanto quanto quero que ele sinta.

Vasculhei o guarda-roupa de Fredrik procurando uma camiseta branca, que vesti sobre meus seios nus. Infelizmente, tive que usar a mesma calcinha de antes, mas as cuecas boxer de Fredrik não são exatamente o tipo de lingerie que eu gostaria de usar para seduzir Victor. Só uma camiseta e uma calcinha. Claro que fiz questão de vestir o mínimo possível, porque desejo Victor e não tenho nenhuma vergonha de deixar isso claro. Mas ainda custo a acreditar que estou no mesmo cômodo que ele, depois de meses achando que ele havia ido embora para sempre.

Acho que o beijo no elevador é onde minha mente ficou suspensa, como se o tempo tivesse parado naquele momento e cada parte de mim ainda deseje que aquele instante continue. Contudo, o resto do mundo continua passando ao meu redor.

Eu me sento ao lado de Victor, recolhendo um pé descalço para o sofá e enfiando-o sob a minha coxa.

— O que é isso tudo? — Olho para os papéis e fotografias na mesa.

Ele mexe em alguns pedaços de papel, empilhando-os.

— É um serviço — explica ele, colocando a foto de um homem de camiseta regata na pequena pilha. — Agora eu trabalho por conta própria.

Isso me surpreende.

— Como assim? — Acho que sei o que ele quer dizer, mas custo a acreditar.

Ele pega a pilha de papéis e bate as laterais na mesa para ajeitar todas as folhas. Então enfia o maço em um envelope de papel pardo.

— Eu saí da Ordem, Sarai. — Ele olha para mim.

Victor aperta as pontas do fecho prateado para fechar o envelope.

Meus pensamentos se embaralham, minhas palavras ficam confusas na ponta da língua. Luto, desesperada, para acreditar no que ele acaba de me contar.

— Victor... mas... não...

— Sim — confirma ele, virando-se para mim e me olhando bem nos olhos. — É verdade. Eu me rebelei contra a Ordem, contra Vonnegut, e agora eles estão atrás de mim. — Ele volta a mexer nos outros papéis na mesa. — Mas ainda preciso trabalhar, por isso agora trabalho sozinho.

Balanço a cabeça sem parar, sem querer engolir a verdade. A ideia de Victor sendo caçado por aqueles que o fizeram ser como ele é, por qualquer um, faz um pânico febril correr pelas minhas veias.

Solto um longo suspiro.

— Mas... mas e Fredrik? E Niklas? Victor, eu... O que está acontecendo?

Ele respira fundo e deixa a folha de papel cair suavemente na mesa, então reclina as costas no sofá.

— Fredrik ainda trabalha para a Ordem. Está lá dentro. Ele vigia Niklas e... — seus olhos cruzam com os meus por um instante —... tem me ajudado a manter você a salvo.

Antes que eu consiga fazer mais perguntas presas na garganta, Victor se levanta e continua a falar, enquanto fico sentada e o observo com a boca semiaberta e as pernas dobradas sobre a almofada.

— Como você sabe, quando alguém está sob suspeita de trair a Ordem, é imediatamente eliminado. Mas acredito que Niklas deixou Fredrik vivo e não transmitiu suas preocupações a Vonnegut pelo simples fato de que Niklas está usando Fredrik para me encontrar. Assim como deixou você viva todo este tempo, esperando que um dia você o levasse a mim.

O que mais me choca não é o que Victor diz, mas o que ele deixa de fora. Tiro as duas pernas de cima do sofá e pressiono os pés no chão de madeira, apoiando as mãos nas almofadas.

— Victor, o que você está me dizendo? Quer dizer que... Niklas continua com Vonnegut?

Espero que não seja isso que ele esteja tentando me dizer. Espero de todo o coração que minha decisão de deixar Niklas vivo aquele dia no hotel, quando ele atirou em mim, não tenha sido o maior erro da minha vida.

Os olhos de Victor vagam para a porta de vidro, e sinto que uma espécie de sofrimento infinito o consome, mas ele não deixa transparecer.

— Você estava lá. Eu disse para o meu irmão que, se ele decidisse continuar na Ordem caso eu resolvesse sair, eu não ficaria bravo com ele. Dei a ele a minha palavra, Sarai. — Victor vai até a porta de vidro, cruza os braços e olha para a piscina azul iluminada que reluz sob o céu cinzento. — Agora é hora de Niklas brilhar, e não vou tirar isso dele.

— Que absurdo! — Salto do sofá com os punhos fechados. — Ele está atrás de você, não é? — Cerro os dentes e contorno a mesinha de centro. — Caralho, é isso, Victor? Para provar seu valor para Vonnegut, ele foi encarregado de matar você. Aquele merda do seu irmão traiu você. Ele acha que vai pegar o seu lugar na Ordem. Puta que pariu, não acredito...

— É o que é, Sarai — interrompe Victor, virando-se para me encarar. — Mas, neste momento, Niklas é a menor das minhas preocupações.

Cruzando os braços, começo a andar de um lado para outro, olhando os veios claros e escuros da madeira sob meus pés descalços. Minhas unhas ainda têm o esmalte vermelho-sangue de duas semanas atrás.

— Por que saiu da Ordem?

— Eu tive que sair. Não tinha escolha.

— Não acredito.

Victor suspira.

— Vonnegut descobriu sobre a gente — conta ele, ganhando minha atenção total. — Foi Samantha... na noite em que ela morreu. Antes que eu saísse da Ordem, encontrei Vonnegut em Berlim, o primeiro encontro frente a frente que tive com ele em meses. Foi em uma sala de interrogatório. Quatro paredes. Uma porta. Uma mesa. Duas cadeiras. Somente eu e Vonnegut sentados frente a frente, com uma luz brilhando no teto acima de nós. — Victor olha para trás pela porta de vidro e depois continua: — No início, eu estava certo de que ele tinha me levado para lá com a intenção de me matar. Eu estava preparado...

— Para morrer? — Se Victor responder que sim, vou dar um tapa na cara dele.

— Não — responde ele, e consigo respirar um pouco melhor. — Eu fui para lá preparado. Raptei a mulher de Vonnegut antes de ir encontrá-lo. Fredrik a manteve em uma sala, pronto para fazer... as coisas dele, caso fosse necessário.

No mesmo instante, quero perguntar o que são as “coisas” de Fredrik, mas deixo a pergunta de lado por enquanto e digo:

— Se Vonnegut quisesse matar você, a esposa dele seria a sua moeda de troca.

De costas para mim, ele assente.

— Samantha estava sendo vigiada pela Ordem. Provavelmente há muito tempo.

— Eles desconfiavam da traição dela? Por que não a mataram, então, como fizeram com a mãe de Niklas, ou como queriam fazer com Niklas?

Victor se vira para me encarar de novo.

— Eles não desconfiavam dela, Sarai, ela era... — Victor respira fundo e aperta os lábios.

— Ela era o quê? — Chego mais perto dele. Não gosto do rumo que a conversa está tomando.

— Ela era mais leal à Ordem do que eu jamais poderia ter imaginado — conta ele, e isso fere meu coração. — Sentado naquela sala com Vonnegut, quanto mais ele falava, mais eu começava a entender que Samantha me traiu da mesma forma que Niklas. Vonnegut me contou coisas que ele não tinha como saber. Ele sabia que eu ajudei você. Em algum momento antes de morrer, naquela noite, Samantha conseguiu passar informações a Vonnegut sobre nossa estadia por lá.

— Não acredito nisso. — Golpeio o ar com a mão diante de mim. — Samantha morreu tentando me proteger. Já falamos sobre isso. Não acredito em você, Victor. Ela era uma boa pessoa.

— Ela era boa manipuladora, Sarai, nada mais do que isso.

Balanço a cabeça, ainda sem acreditar.

— Foi Niklas quem contou a Vonnegut que você me ajudou. Só pode ter sido. Niklas sabia até que você tinha me levado para a casa de Samantha.

— Sim, mas Niklas não sabia que eu fiz Samantha provar nossa comida antes de a gente comer, naquela noite. Assim que Vonnegut mencionou quanto eu ainda desconfiava dela depois de tantos anos, eu soube que ela havia me traído.

— Mas isso não faz nenhum sentido. — Começo a andar pela sala de novo, de braços cruzados e com uma das mãos apoiada no rosto. — Por que ela me protegeria de Javier?

— Porque ela não era leal a Javier.

Jogo as mãos para o ar, atônita com aquela revelação.

— Não dá para confiar em ninguém — digo, me jogando no sofá e olhando para o nada.

— Não, não dá — concorda Victor, e eu olho para cima, detectando um significado oculto por trás de suas palavras. — Agora talvez você entenda por que eu não me envolvo com ninguém. Não é só o trabalho, Sarai. As pessoas em geral não são confiáveis, especialmente na minha profissão, na qual a confiança é tão rara que não vale a pena perder tempo e esforço procurando por ela.

— Mas você parece confiar em Fredrik — observo, olhando para Victor do sofá. — Por que me trouxe logo aqui? Não aprendeu a lição com Samantha?

Sua expressão fica um pouco mais sombria, ressentida pela minha acusação.

— Eu nunca disse que confiava em Fredrik. Mas no momento ele é meu único contato dentro da Ordem e, nos últimos sete meses, não fez nada que não o tornasse digno de confiança. Ao contrário, fez tudo para provar sua lealdade a mim.

— Mas isso não significa que seja verdade.

— Não, você tem razão, mas logo vou saber com cem por cento de certeza se Fredrik é confiável ou não.

— Como?

— Você vai descobrir comigo.

— Por que se dar a esse trabalho? Você disse que a confiança é tão rara que não vale o esforço.

— Você faz muitas perguntas.

— Pois é, acho que faço. E você não responde o suficiente.

— Não, acho que não. — Victor abre um sorrisinho, e meu coração se derrete instantaneamente em uma poça de mingau.

Desvio os olhos dos dele e disfarço meus sentimentos.

— Não estou segura aqui — digo, encarando-o novamente.

— Você não está segura em lugar nenhum — corrige Victor. — Mas, enquanto estiver comigo, nada vai acontecer com você.

— Quem está falando merda agora?

Ele levanta uma sobrancelha.

— Você não é meu herói, lembra? — digo para refrescar a memória de Victor. — Não é minha alma gêmea que jamais deixará que nada de ruim aconteça comigo. Devo confiar nos meus instintos primeiro e em você, se eu decidir confiar, por último. Você me disse isso certa vez.

— E continua sendo verdade.

— Então como pode dizer que nada vai me acontecer se eu estiver com você?

A expressão de Victor fica vazia, como se pela primeira vez na vida alguém o tivesse deixado sem palavras. Olho para seu rosto silencioso e sem emoção, e apenas seus olhos revelam um traço de torpor. Tenho a sensação de que ele falou sem pensar, que manifestou algo que sente de verdade, mas que jamais quis que eu soubesse: Victor quer ser meu herói, vai fazer qualquer coisa, tudo o que puder para me manter a salvo. Quer que eu confie totalmente nele.

E confio.

Ele volta para perto de mim e se senta ao meu lado. O cheiro de seu perfume é fraco, como se ele fizesse questão de usar o mínimo possível. Estou tonta de desejo. Ansiosa para sentir novamente seu toque, saborear seus lábios quentes, deixar que ele me tome como fez algumas noites antes que nos víssemos pela última vez. Não tenho pensado em nada além de Victor nos últimos oito meses da minha vida. Enquanto durmo. Como. Vejo TV. Transo. Me masturbo. Tomo banho. Cada coisa que fiz desde que ele me deixou naquele hospital com Dina fiz pensando nele.

— Você acha que Fredrik vai contar a Niklas onde a gente está? — Mudo de assunto por medo de deixar transparecer muita coisa cedo demais.

— Acho que se ele fosse fazer isso teria contado a Niklas o pouco que sabia sobre o seu paradeiro há muito tempo, e Niklas já teria tentado matar você — responde Victor.

— Tem alguma coisa... estranha em Fredrik. Você não sente?

Victor passa a mão pelo meu cabelo úmido. O gesto faz meu coração disparar.

— Você tem grande sensibilidade para as pessoas, Sarai — comenta ele, levando a mão ao meu queixo. — Tem razão sobre Fredrik. — Ele passa o polegar pelo meu lábio inferior. Um calafrio percorre o meio das minhas pernas. — Ele é... como dizer?... desequilibrado, de certa forma.

Minha respiração acelera, e sinto meus cílios tocando meu rosto quando os lábios de Victor cobrem os meus.

— Desequilibrado de que forma? — pergunto, ofegante, quando ele se afasta.

De olhos fechados, percebo que ele está observando a curva do meu rosto e meus lábios e sinto a respiração que sai suavemente de suas narinas.

Cada pelinho minúsculo se eriça quando a outra mão de Victor sobe e encontra minha cintura nua por baixo da camiseta. Seus dedos longos dançam sobre a pele do meu quadril e param por ali.

Abro os olhos e vejo os dele me encarando.

— Algum problema? — pergunta ele, e sua boca roça a minha de novo.

— Não, eu... eu só não esperava isso.

— Esperava o quê?

Sinto seus dedos levantando o elástico da minha calcinha. Minha cabeça está girando, sinto meu estômago se transformar em um emaranhado de músculos, trêmulo e nervoso.

— Isso — respondo, piscando. — Você está diferente — acrescento, baixinho.

— Culpa sua — diz Victor, e então seus lábios devoram os meus.

Ele me deita no sofá e se encaixa entre as minhas pernas.

Seu celular vibra na mesinha de centro, e percebo quanto sou humana quando xingo Fredrik por estragar aquele momento, mesmo que seja para me avisar de que Dina está a salvo.

 

 


CONTINUA