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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O RETORNO DE IZABEL
O RETORNO DE IZABEL

 

 

                                                                                                                

 

 

 

 

 

CAPÍTULO NOVE

Sarai

Estou mordendo o lábio por dois motivos: porque estou torcendo para que seja uma boa notícia e porque estou sexualmente frustrada. Victor fala com Fredrik por menos de dois minutos, desliga e digita outro número. Quando consegue falar com Dina, ele me passa o celular.

Pego o aparelho e o encosto no ouvido.

— Dina?

— Sarai, meu Deus, onde você está? O que está acontecendo? Eu estava sentada na sala vendo TV e um homem bateu na porta. Eu não ia deixar ele entrar, fiquei desconfiada na hora; estava quase pegando minha espingarda. Mas ele disse que queria falar de você. Ah, Sarai, fiquei com tanto medo de que tivesse acontecido alguma coisa! — Ela finalmente respira.

— Você está bem? — pergunto, baixinho.

— Sim, sim, estou ótima. O melhor que eu poderia estar. Mas ele me falou que iríamos para a delegacia encontrar você. Até me mostrou um distintivo. Não acredito que caí nessa. O cavalheiro mentiu para mim. — Dina para de falar e abaixa a voz, como se estivesse sussurrando para ninguém ouvir. — Ele me levou para a casa de uma prostituta. O que está acontecendo? Sarai...

— Vai ficar tudo bem, Dina, prometo. E não se preocupe. Seja lá quem more nessa casa, duvido que seja uma prostituta.

Os olhos de Victor cruzam com os meus. Desvio o olhar.

— Onde você está? Quando vai voltar? Sei que você está metida em alguma encrenca, mas sempre pode me contar tudo.

Gostaria que isso fosse verdade. Mais do que tudo, neste momento. Mas a verdade maior é que não sei como responder às perguntas de Dina. Victor deve ter percebido a fisionomia confusa no meu rosto, porque tirou o telefone da minha mão.

— Sra. Gregory — diz ele ao telefone. — Aqui é Victor Faust. Preciso que a senhora me ouça com bastante atenção. — Ele espera alguns segundos e continua. — A senhora vai precisar ficar onde está pelos próximos dias. Vou levar Sarai para vê-la em breve, e vamos explicar tudo, mas, até lá, precisa ficar escondida. Não, sinto muito, mas a senhora não pode voltar... Não, não é seguro lá. — Ele assente algumas vezes, e percebo, pelas leves rugas que se formam entre seus olhos, que ele não se sente à vontade falando com ela, como se alguém colocasse de repente um bebê no colo dele. — Sim... Não, me escute. — Ele perde a paciência, então vai direto ao assunto. — É uma questão de vida ou morte. Se a senhora sair ou ligar para qualquer conhecido, vai acabar morrendo.

Tenho um sobressalto e me encolho com essas palavras, não por serem verdade (isso eu já sabia), mas porque fico imaginando a reação de Dina a elas. Só posso imaginar o que ela deve estar pensando nesse momento, como deve estar apavorada. Apavorada por mim, não por si mesma, e isso faz doer ainda mais.

— Sim, ela está bem — afirma Victor mais uma vez para tranquilizá-la. — Só mais alguns dias. Eu vou levar Sarai aí.

Falo com Dina por mais alguns minutos, contando o que posso, mas sem revelar demais, para acalmá-la. Claro que isso não está ajudando muito, considerando as circunstâncias. Nós desligamos e eu fico ali na sala, me sentindo muito diferente de como me sentia antes da ligação.

Acho que enfim caiu a ficha do tamanho da merda que fiz.

Antes, quando achava que era eu quem corria o maior perigo, e depois que disse para Eric e Dahlia saírem de Los Angeles, eu estava preocupada, mas não tanto assim. Os danos que causei afetam mais do que minha própria segurança. Sem querer, pus todas as pessoas que conheço e amo em perigo.

A realidade de tudo isso, dos meus atos e das consequências em efeito dominó, o fato de Victor ter me deixado, de eu ter tentado levar uma vida normal e fracassado; não consigo mais. Não suporto mais nada disso. Cacete, até a dorzinha por ter encontrado Dahlia com Eric está começando a me incomodar. Não por causa de Eric, ou porque ele era meu “namorado”, mas porque o que eles fizeram não me afetou como deveria ter afetado.

Sou uma aberração. E, no momento, não consigo perdoar Victor por me fazer passar por essa situação, por me jogar em uma vida que nós dois sabíamos que não serviria para mim e por esperar que eu me adaptasse. Eu não queria desde o começo. E foi exatamente por isso que não deu certo.

As lágrimas começam a inundar meus olhos. Deixo que caiam. Não me importa.

Sinto a presença de Victor atrás de mim, mas antes que ele me toque me viro para encará-lo com a raiva distorcendo meu rosto. E enfim certas coisas que eu queria dizer a ele depois de todo esse tempo saem, em uma tempestade de palavras furiosas.

— Você me abandonou, porra! — Bato com as palmas das mãos em sua camisa social justa. — Você deveria ter me matado e pronto! Você consegue imaginar o que me fez passar?! — Lágrimas cheias de raiva escorrem dos cantos dos meus olhos.

— Me desculpe...

Franzo a testa na mesma hora.

— Você quer se desculpar? — Solto o ar ruidosamente. — É só isso que você consegue dizer? Me desculpe?

No fundo, sei que nada disso é culpa de Victor, sei que ele só fez o que fez para me proteger. Mas a maior parte de mim, a parte que não quer acreditar que eu não tenho mais salvação, quer pôr a culpa em qualquer um, menos em mim mesma.

As lágrimas começam a me fazer engasgar.

— Toda santa noite — disparo, apontando com raiva para o chão, meu rosto retorcido de raiva e rancor —, todas as horas de todos os dias, eu pensava em você. Só em você, Victor. Eu vivia cada dia com esperança, acreditando de coração que você ia voltar para mim. Os dias passavam e você não aparecia, mas nunca perdi a esperança. Eu pensava comigo mesma: Sarai, ele está vigiando você. Ele está testando você. Ele quer que você faça o que ele disse, que tente ser como todo mundo, que tente se misturar. Quer que você prove para ele que é forte o suficiente para enfrentar qualquer situação, se adaptar a qualquer estilo de vida. Porque, se você não consegue fazer algo tão simples quanto levar uma vida normal, nunca vai conseguir viver com ele. — Mordo o lábio inferior e tento sufocar as lágrimas. Balanço a cabeça devagar. — Isso era o que eu pensava. Mas fui idiota por achar que você tinha alguma intenção de voltar para mim. — Um tremor induzido pelo choro percorre meu peito.

Victor, com o semblante angustiado que nunca imaginei ver nele, se aproxima. Recuo, balançando a cabeça sem parar, esperando que ele entenda que não estou pronta para ficar muito perto. Quero ficar sozinha com a minha dor.

— Sarai? — diz ele, baixinho.

— Não — digo, recusando-o com um gesto. — P-por favor, me poupe das desculpas e dos motivos pelos quais sei que não posso culpar você. Eu sou egoísta, ok? Eu sei! Já sei que você fez o que precisava fazer. Já sei...

— Não, não sabe.

Levanto os olhos para encontrar os dele.

Victor se aproxima. Desta vez não me afasto, minha mente está paralisada por suas palavras, por mais escassas ou vagas que elas sejam. Ele segura meus cotovelos e descruza minhas mãos. Seus dedos roçam de leve a pele sensível da parte interior dos meus braços, descem até encontrarem minhas mãos e as seguram.

— Eu saí da Ordem principalmente por causa de você, Sarai — explica Victor, e o resto do meu corpo fica paralisado. — Quando Vonnegut descobriu que eu estava ajudando você, ele soube... — Ele faz uma pausa, parecendo estar vasculhando sua mente à procura das palavras menos perigosas. — Ele soube que eu me comprometi...

Jogo as mãos para cima.

— Fale inglês! Por favor, diga de uma vez sem se esforçar tanto para fazer rodeios! Por favor!

— Vonnegut soube que eu tinha... começado a gostar de você.

Fico paralisada e meus lábios se fecham. Meu coração bate descompassado. Minhas lágrimas parecem secar em um instante, só as que molham minhas bochechas continuam escorrendo.

— Como eu era o Número Um de Vonnegut, seu “favorito”, a última coisa que ele queria era mandar me matar. Ele me afastou do serviço, me desligou por um tempo, até... que eu criasse juízo.

Faço uma cara de “que-droga-isso-significa”.

— Pode chamar de lavagem cerebral — acrescenta Victor.

Ele afasta a ideia com um gesto.

— Não importa. O que importa é que ele ia me dar uma única chance de provar que o meu sentimento por você era só um lapso, e que nunca mais iria acontecer. Pouquíssimos agentes têm uma segunda chance na Ordem.

— Um lapso? — Eu me sento na mesinha de centro. Olho para Victor e digo: — Para mim, parece que Vonnegut queria que você provasse que não é humano, mas sim o soldado obediente a ele, incapaz de ter emoções. Que babaca desequilibrado.

Victor assente e se agacha diante de mim, entrelaçando os dedos, com os cotovelos apoiados nas coxas.

— Vonnegut mandou que eu matasse você — conta ele em voz baixa, sustentando o meu olhar. — Para provar a mim mesmo. Eu disse que ia fazer isso, que queria fazer, provar que eu era digno de confiança, e ele me soltou. Claro que eu não tinha nenhuma intenção de matar você. Parti naquele dia e procurei um esconderijo. Niklas, que só conheceu a Ordem a vida inteira, decidiu ficar. Pensei que talvez ele só precisasse de um tempo para entender o que estava acontecendo e decidir o que era melhor para ele. Eu também estava me escondendo de Niklas. Sem saber onde eu estava, ele não precisaria enganar Vonnegut nem achar que precisava escolher entre mim e ele. Mas aí Fredrik me contou que Niklas foi contratado para me matar e está me procurando desde então.

— Que desgraçado — comento, balançando a cabeça sem acreditar, mas depois penso de novo. — Você disse que saiu da Ordem principalmente por minha causa. Além de mim, qual foi o outro motivo?

— Isso já estava para acontecer havia muito tempo — conta Victor. — Quando precisei matar meu pai para salvar meu irmão, entendi que era hora de sair. — Seus dedos fortes acariciam os meus, mais delicados. — Você me deu a motivação final de que eu precisava para fazer isso de uma vez.

Com a ponta dos dedos, acaricio seu rosto com a barba um pouco por fazer. Victor continua a me encarar, seus olhos sondando os meus através do pequeno espaço entre nós, cheios de paixão e compreensão. Eu me curvo e beijo seus lábios.

— Eu sinto muito pelo seu irmão — digo, baixinho.

Ele roça os lábios nos meus, e a sensação se espalha pelo meu corpo até os dedos dos pés, como uma dose de uísque.

— Eu não estava testando você, Sarai. — Ele me beija de novo.

— Então o que você estava fazendo? — Eu o beijo também e derreto ao sentir suas mãos se movendo por minhas coxas.

Victor me ergue nos braços, envolvendo minhas pernas em sua cintura, minha bunda acomodada nas palmas de suas mãos enormes. Meus dedos sobem pelos lados de seu rosto e tocam sua boca antes que meus lábios toquem também.

— Eu estava esperando o momento certo — diz ele enquanto sua boca encontra meu pescoço.

Enfio os dedos em seu cabelo castanho curto, erguendo o queixo ao sentir sua boca explorando meu pescoço e meu maxilar. Meus olhos estão fechados, as pálpebras pesadas, e sinto um formigamento quente ao qual sei que não dá para resistir. Victor me carrega pela sala, embora eu não saiba para onde nem me importe com isso. Aperto mais as pernas nuas ao redor de sua cintura, sentindo a superfície fria e lisa de seu cinto de couro pressionando o interior das minhas coxas. Meus dedos estão trabalhando nos botões de sua camisa, abrindo-os com facilidade.

Victor não responde às minhas perguntas, mas isso também não me importa.

Os lábios dele cobrem os meus, a umidade quente de sua língua se entrelaçando avidamente com a minha. Sem parar de me beijar, Victor me faz apoiar os pés no chão para tirar minha calcinha, uma perna de cada vez. Ele ergue meus braços e tira minha camiseta, jogando-a no chão. Minhas mãos mexem no cinto dele, movendo a lingueta do buraco e puxando a tira de couro de uma só vez em um movimento rápido. Ele tira a calça e a cueca boxer preta. Minha boca recebe seu hálito quente e ofegante enquanto ele me carrega mais uma vez e pressiona minhas costas na parede, como se não quisesse esperar para chegarmos ao quarto de hóspedes. Também não quero esperar. Já esperamos demais.

Sinto seu pau entrando em mim, e, antes que ele deslize até o fundo, uma descarga de prazer corre pelas minhas coxas e sobe pela coluna, relaxando meu pescoço e fazendo minha cabeça se apoiar na parede. Sinto meus olhos formigando e ardendo. A umidade morna entre minhas pernas é inundada por um êxtase quente e trêmulo.

Ele mete uma vez bem fundo e se mantém ali, segurando meus quadris, com minhas costas pressionadas contra a parede fria. Abro os olhos devagar, ainda sem controlar direito as pálpebras, e o encaro. Ele me fita com a mesma intensidade voraz. Minha respiração é curta e irregular quando escapa dos meus lábios entreabertos. Meus braços estão ao redor dele, em um abraço apertado, meus dedos cravados nos músculos rijos de suas costas.

— Eu queria isso há tanto tempo — digo, ofegante.

— Você não faz ideia... — rebate Victor, para então me devorar com um beijo, tão violento que quase perco o controle dos meus músculos.

Minhas coxas se contraem em sua cintura quando ele mete seu pau em mim de novo. Estremeço e gemo, minha cabeça bate com força na parede. Ele segura meu corpo no lugar com os braços encaixados nas minhas coxas, forçando seu quadril contra o meu, e eu sinto pequenas explosões no estômago a cada investida.

Minhas costas se arqueiam, meus seios ficam expostos a ele, que cobre um mamilo com a boca. Ergo os braços acima da cabeça, procurando alguma coisa onde eu possa me segurar para cavalgá-lo, mas não encontro nada. Envolvo seu pescoço com os braços para sustentar meu peso e rebolo em sua virilha, gritando e gemendo, desesperada para mergulhar cada centímetro do seu pau duro tão fundo quanto possível. Seus dedos afundam dolorosamente nas minhas costas. Sua língua se enrosca na minha, seus gemidos atravessam meu corpo.

Gozo rápido e forte, minhas pernas e o ponto entre elas se contraindo ao redor dele, meus músculos tremendo. Ele goza segundos depois e segura meu corpo bem firme no lugar, com minha bunda em suas mãos musculosas, para se esvaziar dentro de mim.

Nesse momento, não estou nem aí para as consequências do que acaba de acontecer. Mas só nesse momento.

Com a cabeça apoiada no ombro dele, Victor me carrega pelo corredor até o banheiro espaçoso em frente ao quarto de hóspedes. Ele me senta na bancada e fica de pé no meio de minhas pernas nuas.

— Não se preocupe. — Ele dá um beijo na minha testa e abre a porta de vidro do boxe do chuveiro.

— Com o quê? — pergunto, confusa.

Ele gira a torneira, que range, e regula a água quente e a fria até encontrar a temperatura desejada. Eu o observo da bancada, o modo como seu corpo alto e escultural se move, as curvas de seus músculos entalhadas em um desenho poético ao redor de seus quadris, suas panturrilhas enrijecendo quando ele anda.

Ele volta para perto de mim e termino de tirar sua camisa, deslizando-a por seus braços musculosos.

— Você não vai engravidar — diz ele, e me manda descer da bancada e segui-lo até o chuveiro. — Não de mim, pelo menos.

Um pouco surpresa, deixo por isso mesmo.

Ele fecha a porta do boxe e começa a lavar meu cabelo. Eu me perco naquela proximidade, no modo como suas mãos exploram meu corpo com tanta precisão e desejo.

Por muito tempo, esqueço que ele é um assassino cujas mãos tiraram muitas vidas sem sequer um pensamento de remorso ou arrependimento. Esqueço que também sou uma matadora cujas mãos tiraram uma vida há poucas horas.

Parece que fomos feitos um para o outro, como duas peças de um quebra-cabeça que de início parecem não se encaixar, mas que se adaptam perfeitamente quando vistas pelo mais improvável dos ângulos.


CAPÍTULO DEZ

Victor

A empregada de Fredrik volta para a casa bem cedo na manhã seguinte. Acordo assim que amanhece, e ela entra em casa quando estou tomando meu café no pátio dos fundos. Ela me vê através da porta de vidro ao passar pela sala, e então vem falar comigo no pátio.

— Gostaria de café da manhã, señor? — pergunta ela em espanhol.

Deixo a pasta com meu próximo serviço virada para baixo na mesinha de ferro batido.

— Obrigado, mas não vou comer — respondo, e depois aceno para Sarai, que está andando pela sala, procurando por mim. — Mas ela vai.

— Eu vou o quê? — pergunta Sarai ao passar pela porta de vidro aberta. Ela anda descalça pelo pátio de pedra, usando outra camiseta de Fredrik. Fico muito incomodado por ela ter que usar roupas dele em vez das minhas, mas a única roupa que tenho é a que estou usando, além de um short largo de corrida. O cabelo longo e castanho de Sarai está despenteado, pois ela acaba de acordar e sair da cama.

Ela se senta no meu colo e eu encaixo a mão direita entre suas coxas.

— Café da manhã.

Sarai boceja e estica os braços para o alto antes de apoiar a cabeça no meu ombro. Ponho a mão esquerda em sua cintura para mantê-la equilibrada no meu colo. O cheiro da pele e do cabelo recém-lavados de Sarai acelera meu corpo todo.

Ela faz uma careta sutil, meio que rejeitando a ideia.

— É melhor você comer.

Levantando a cabeça do meu ombro, Sarai olha para mim por um momento, pensativa, e depois dirige sua atenção para a empregada.

— Claro, eu gostaria de tomar café da manhã, se não for incômodo — diz, em espanhol.

Por um momento, a empregada parece surpresa por ouvir Sarai falando seu idioma nativo, mas ela logo se recompõe, assente e volta para dentro da casa.

— Acho que a gente já adiou essa questão o suficiente — diz Sarai. — Para onde é que vamos, Victor? O que eu vou fazer?

Estou pensando exatamente nisso desde que descobri que ela veio para Los Angeles e fez o que fez. Olho para a piscina, perdido em pensamentos, minha última tentativa desesperada de organizar as respostas na cabeça. Mas elas continuam tão fragmentadas e bagunçadas quanto sempre estiveram. Todas, menos uma.

— Sarai — digo, olhando novamente para ela —, você não pode voltar para casa. Eu sabia disso na primeira vez em que mandei você para o Arizona. A situação não estava nem de longe tão terrível quanto ficou depois, mas, agora que as coisas mudaram, você não pode mais voltar.

— Então vou ficar com você — rebate ela. Pela primeira vez na vida, não tenho coragem de protestar. Nem contra ela nem contra mim mesmo. A maior parte de mim, a parte humana e imperfeita, quer que Sarai fique comigo, e nada vai me impedir de fazer isso dar certo.

Mas sei que não vai ser fácil.

— Sim — digo, passando a mão em sua coxa macia —, você vai ficar comigo, mas há muitas coisas que precisa entender.

Ela se levanta do meu colo e fica de pé na minha frente, com um braço na frente do corpo e o outro cotovelo apoiado nele. Distraída, ela passa as pontas dos dedos no rosto macio, fitando o que parece ser o nada. Então ela me olha e balança a cabeça com uma expressão perplexa.

— Eu esperava que você fosse resistir mais. Qual é a pegadinha? A despeito do que aconteceu entre a gente ontem à noite, ou do que está acontecendo desde que nos separamos, nunca pensei que você fosse concordar em me levar junto.

— Você gostaria que eu resistisse? — Abro um sorriso capcioso.

Ela sorri também e deixa os braços relaxarem.

— Não. Com certeza não. E-eu só...

Levanto uma perna e apoio o pé no outro joelho.

— Nunca me imaginei em uma situação dessas. Não posso mentir e dizer que acho que vai dar certo. Muito provavelmente não vai, Sarai, e você precisa entender isso. — Ela parece ficar um pouco desanimada, o bastante para eu saber que minhas palavras sinceras a entristeceram mais do que ela se permite revelar. — Não posso mudar o meu jeito. Não só porque é tudo o que sei fazer, ou porque é o que faço melhor, mas também porque não quero. — Olho para Sarai. — Eu nunca vou parar de fazer o que faço.

— Eu nunca ia querer que você parasse — retruca ela, com certa intensidade. Sarai puxa uma cadeira próxima e a coloca diante de mim antes de se sentar. — Tudo o que eu quero, Victor, é ficar com você. Vou fazer qualquer coisa que você espere que eu faça, mas quero que me ensine...

Levanto a mão e a interrompo imediatamente.

— Não, Sarai, também não vou fazer isso. Não é assim que vai ser. — Sua expressão se anuvia e ela desvia o olhar, magoada com minha recusa. — Já falei, eu praticamente nasci nesta vida. Você ia levar quase o resto da sua para aprender a fazer o que eu faço, e mesmo assim não ia ficar boa o suficiente.

— Então, o que eu devo fazer? — pergunta ela, com um tom de ressentimento na voz. — Quero estar com você aonde quer que vá, mas não quero ficar à toa, tomando martínis na praia enquanto você sai para matar pessoas. Eu não sou inútil, Victor, posso fazer alguma coisa.

— Você pode fazer muitas coisas, sim — digo, interrompendo-a. — Mas fazer o que eu faço está totalmente fora de cogitação. Por que você quer tanto isso? — Levanto a voz quando sinto, de repente, uma necessidade desesperada de entender a resposta.

Sarai bate as palmas das mãos nas coxas nuas.

— Porque é o que eu quero.

— Mas por quê?

Ela ergue as mãos para os lados e grita:

— Porque eu gosto! Entendeu?! Eu gosto!

Pisco algumas vezes, completamente atordoado por essa confissão. Na verdade, essa era a última coisa que eu esperava ouvir de Sarai. Parte de mim sabia que ela era mais do que capaz de tirar a vida de alguém e dormir em paz toda noite depois disso, mas nunca previ que ela fosse gostar de matar.

Não sei ao certo como me sinto a respeito disso. Preciso de mais informações.

Eu me inclino para a frente e fico cara a cara com Sarai.

— Você gosta de matar? — pergunto, embora isso saia mais como uma afirmação. — Então, se alguém pedisse a você que tirasse a vida de outra pessoa, você faria isso sem questionar?

— Não — responde ela, franzindo o cenho. — Eu não mataria qualquer um, Victor, só homens que merecessem.

Homens? Esse lado de Sarai está ficando mais intrigante. Eu me pergunto se ela sabe o que acaba de dizer. Homens. Não pessoas em geral, mas homens.

Eu me afasto dela e me reclino na cadeira de novo, virando a cabeça para o lado, pensativo.

— Explique.

Ela também se recosta, encolhendo as pernas e apoiando os pés no assento, virando os joelhos para o lado.

— Homens como Hamburg. Homens como Javier Ruiz, Luis e Diego. Homens como o segurança que matei ontem. Willem Stephens, pelo simples fato de trabalhar para Hamburg sabendo o que o chefe faz. Homens como John Lansen e todos os outros que conheci naquelas festas de gente rica quando estava com Javier. — Seu olhar penetra o meu. — Homens que merecem ter a garganta cortada.

A gravidade das palavras de Sarai e a determinação em seu rosto me silenciam por um momento. Será possível que eu agora tenha não um, mas dois assassinos por perto que compartilham o gosto pelo derramamento de sangue? E, no exato momento em que o rosto surge na minha mente junto com o de Sarai, ouço o carro de Fredrik na entrada da garagem. Isso interrompe o momento intenso, e ambos olhamos para cima.

Instantes depois, Fredrik, vestido de maneira informal com um jeans escuro e uma camisa de grife, vem nos encontrar no pátio. Ele deixa o jornal do dia na mesa de centro e diz:

— É melhor você dar uma olhada nisso. — Então olha para Sarai por um momento. — A propósito, minhas roupas ficam bem em você.

Fuzilo Fredrik com o olhar, mas escondo meu ciúme antes que qualquer um dos dois perceba.

Sarai e eu olhamos para o jornal, mas sou eu quem o pega. Desdobrando-o, corro os olhos pelo texto até encontrar aquilo a que Fredrik se refere.

Quatro pessoas foram encontradas mortas a tiros em um hotel de luxo de Los Angeles, na madrugada passada. Somente dois corpos foram identificados, os de Dahlia Mathers, 23 anos, e Eric Johnson, 27 anos, ambos de Lake Havasu City, Arizona.

Algumas frases abaixo:

Sarai Cohen, também de Lake Havasu City, é procurada pela polícia para prestar esclarecimentos.

Acho que não importa que identidade Sarai usou para fazer o check-in no hotel, o rosto dela é o mesmo nas duas.

Ela arranca o jornal das minhas mãos antes que eu possa terminar.

— Não... — Ela cerra os dentes e seu rosto fica sério enquanto lê a notícia trágica sobre seus amigos. Ela procura meus olhos, mas logo se volta para o jornal, como se sua mente torcesse para ter lido tudo errado na primeira vez. — Falei para eles irem embora de Los Angeles! Dahlia disse que eles iam embora... — Seus olhos verdes encaram os meus, cheios de desespero e despedaçados pela culpa.

Fico de pé.

Sarai pega o jornal com as duas mãos e o rasga bem no meio, amassando as duas metades em seus punhos.

— Eles mataram Dahlia e Eric, porra! — ruge ela. — Eles estão mortos!

O jornal cai de suas mãos e voa pelo pátio de pedra.

Fredrik apenas me olha, esperando para ver o que vou fazer ou dizer. Ele não fala, mas percebo que quer.

— Sarai. — Por trás dela, ponho as mãos em seus ombros. — Eu vou cuidar disso.

Ela se vira para mim. Seu cabelo balança ao redor da cabeça antes de cair de novo nos ombros e seu rosto está ardendo de fúria.

— ELES MORRERAM POR MINHA CAUSA! COMO LYDIA!

Tentando acalmá-la, aperto seus ombros com força, de frente, e a seguro.

— Eu disse que vou cuidar disso — repito com ainda mais intensidade e sinceridade do que antes. Eu me inclino para a frente para manter seu olhar fixo no meu. — Vou fazer isso por você, Sarai. Hamburg e Stephens estarão mortos antes do fim desta semana.

Ela não ouve. Está me encarando, mas parece estar olhando através de mim. Seu peito sobe e desce com a respiração ofegante e irregular. Suas pupilas parecem pequenas, como buracos de grampos em uma folha de papel. O verde de seus olhos parece ter escurecido.

— Não — rebate ela, com a voz calma. — Não quero que você faça nada.

Absorta em pensamentos, ela dá um passo para trás, e minhas mãos caem de seus ombros.

— Vou fazer isso por você. Eu quero...

— Eu disse que não! — Ela dá mais dois passos e se vira, me dando as costas e olhando para a piscina. — Eu vou fazer isso — afirma ela, em voz baixa e decidida. — Vou matar os dois e não quero que você se meta.

— Acho que não...

Ela vira a cabeça, seus olhos escuros cruzando com os meus.

— Se você matar qualquer um deles, nunca vou perdoar você. Isso é assunto meu, Victor! Me deixe fazer pelo menos isso!

— Sarai, você não pode matá-los. — Eu me aproximo dela. — A única pessoa que vai morrer é você. Não vai conseguir...

— Estou cagando para isso! — Percebo que o objetivo de Sarai é inabalável. Ela volta para perto de mim. — Ou você me ajuda a fazer isso ou eu mesma vou descobrir como fazer. Eles vão morrer nas minhas mãos, não nas suas, nas de Fredrik nem nas de qualquer outra pessoa. Só nas minhas. Me ensine. Me mostre o que fazer. Qual é a melhor forma de agir para alguém como eu. Me ajude, ou vou morrer tentando por minha conta. Para mim, tanto faz.

— Eu não vou... você não pode — retruco, balançando a cabeça.

Sarai desiste e tenta me empurrar para fora de seu caminho. Mas não deixo que ela passe. Não posso, pois sei que cada palavra que ela disse foi a sério.

Eu a seguro pelo pulso, detendo sua marcha furiosa até a porta de vidro. Fredrik sai do caminho, assistindo ao desenrolar da cena com um brilho estranho nos olhos, que só posso interpretar como fascinação.

— Me solte!

— Você não vai embora. — Eu a prendo pelo pulso com força, e agarro o outro quando ela começa a me bater.

Ela quer descontar toda a raiva em mim, gritar na minha cara, me xingar com as palavras que tanto quer dizer a Hamburg e Stephens antes de matá-los, mas não consegue. A raiva, como sempre, a domina, e Sarai cai no choro.

Ela me disse uma vez que sempre chora quando está furiosa.

As lágrimas escorrem como rios por seu rosto. Sarai tenta mais uma vez se desvencilhar de mim, mas a seguro firme e faço uma pressão dolorosa sobre seus pulsos, tentando acalmá-la.

— Victor, por favor! Porra, basta me ensinar, cacete! Mesmo que seja matar os dois e mais ninguém! É tudo que eu peço! Nunca mais vou pedir a sua ajuda! POR FAVOR!

Sarai enfim para de se contorcer e desaba sobre meu peito. Eu a envolvo em meus braços, aninhando sua nuca nas mãos e pressionando o lado do meu rosto no alto de sua cabeça. Sarai chora com violência, seu corpo treme no meu abraço. Não são gritos de tristeza e dor, são gritos de culpa, raiva e da necessidade desesperada de vingar a morte de pessoas — até de Lydia — que poderiam ainda estar vivas, se não fosse por ela.

Fredrik olha para mim. Sei o que a expressão calma dele quer dizer. Ele acha que eu deveria dar a Sarai o que ela quer.

Mas não é a opinião de Fredrik que me faz decidir, no fim das contas. É minha necessidade de proteger Sarai, ainda que ela possa acabar morta no final.

Escolho o mais seguro dos dois caminhos malfadados.

— Eu vou ajudar você.


CAPÍTULO ONZE

Sarai

Levanto o rosto do peito de Victor, fungando as malditas lágrimas que mais uma vez me traíram em um momento de fraqueza.

— Você vai me ajudar a matá-los?

Ele assente.

— Vou.

— Obrigada — digo, baixinho.

Fico na ponta dos pés e dou um beijo suave em sua boca.

Da porta de vidro atrás de nós, a empregada diz com uma voz fraca:

— O café está pronto.

Ela nos fita com seus olhos escuros e curiosos, sem dúvida por ter ouvido a discussão enquanto estava lá dentro.

— Marta faz uns ovos mexidos ótimos — comenta Fredrik, com um sorriso radiante, como se nada tivesse acontecido. — Frita em gordura de bacon. — Ele junta os dedos nos lábios e os beija. — Adoro comida americana.

Ele vai atrás de Marta.

— Se bem que parece que ovos mexidos em gordura de bacon é uma comida do Sul, não? — pergunta ele, olhando para nós enquanto o seguimos.

Victor dá de ombros.

— Bem, Marta não é exatamente do Alabama — continua ele, ao entrarmos na cozinha. — Mas sabe cozinhar como se fosse.

Fredrik e Victor continuam tagarelando sobre comida, provavelmente para me fazer esquecer o que aconteceu. Mas, nesse momento, nada mais me importa além do rosto de Dahlia e Eric na memória. Sei que estou sendo punida. Pela vida. Pelo destino. Não sei por quem ou pelo quê, só sei que faria qualquer coisa para devolver a vida aos meus amigos.

Nós três nos sentamos à mesa com tampo de vidro da cozinha e comemos. E acho quase engraçado Fredrik fazendo Marta provar a comida antes de nos servir, como se ele tivesse aprendido essa técnica paranoica no Manual de Victor Faust.

Durante o café, que dura muito tempo por causa da conversa, Fredrik acaba liberando Marta pelo resto do dia. Isso acontece logo depois que ele começa a falar em sueco com Victor. Odeio não entender o que eles dizem, mas fica claro para mim que era por causa de Marta, e não por mim.

Marta pega a bolsa e se despede de nós, agradecendo a Fredrik por pagar um dia inteiro.

— Por que isso? — pergunto, depois que ela vai embora.

Apoio o garfo no prato ao terminar meu café.

— Temos muito o que conversar — explica Fredrik, tomando um gole de suco de laranja. — E ela não pode ouvir a conversa. — Ele aponta para mim e sorri. — E Marta, embora não pareça, ouve tudo o que acontece por aqui.

— Então por que vocês não continuaram conversando em sueco? — questiono.

— Você fala sueco? — rebate Victor.

— Não.

— Bem, você tem que participar da conversa — diz ele, deixando o copo d’água na mesa.

Sorrio. Nesse momento, me sinto parte deles pela primeira vez. Dos dois. Nós três sentados à mesa, que minutos depois já está livre dos pratos e dos copos, substituídos por pastas e fotografias de serviços de execução. Para mim, é meio surreal discutir detalhes de interrogatórios e assassinatos tão casualmente, como se estivéssemos falando do tempo. Mas também, pela primeira vez na vida, sinto que pertenço a algum lugar. Não estou mais andando por um túnel escuro, com as mãos à frente, procurando a porta. A porta está bem ali, à mostra, e já passei por ela. Enfim encontrei meu lugar na vida. E estou com Victor, o que para mim é mais importante do que tudo.

Finalmente estou com Victor.

Victor e eu saímos da casa de Fredrik nas colinas de Los Angeles no fim da tarde e dirigimos por onze horas até Albuquerque, Novo México. No caminho, paramos em um shopping, onde gasto praticamente uns 2 mil dólares em roupas e sapatos novos, acessórios e maquiagem, já que tudo o que tenho está no Arizona ou ficou no hotel em Los Angeles. Encho o banco de trás com sacolas de compras e caixas de sapatos, mas, lá pela nona hora de viagem, me arrependo de ter comprado tanta coisa. Tudo o que quero é me arrastar para o banco de trás e dormir, mas tenho que me conformar em ficar apertada na frente, encolhida em uma posição desconfortável no banco do Cadillac CTS preto de Victor, com a cabeça apoiada na janela. Desde que Victor saiu da Ordem, ele não tem mais a conveniência de usar jatos particulares para viajar. Se quisesse, com certeza poderia pagar um do próprio bolso, mas ser alguém que a Ordem quer matar significa não dar na vista e abrir mão de alguns luxos que poderiam levar Niklas até ele.

Ao que tudo indica, esses luxos abdicados incluem as residências extravagantes e multimilionárias nas quais Victor sempre preferiu morar. Sua casa em Albuquerque é bem diferente daquela onde ele morava na Costa Leste, com vista para o mar. Quando paramos na entrada de terra batida, vejo uma casa de tamanho médio, com paredes nuas de reboco bege e em um formato de caixa que me faz lembrar as casas que eu construía com peças de Lego quando era criança. Contudo, a julgar pelo jardim elaborado que envolve o caminho branco e liso até a porta e o lado esquerdo da casa, é óbvio que Victor não abriu mão de todos os luxos. Isso fica mais óbvio ainda quando entramos, pois o interior é tão bonito quanto o da casa de Fredrik, apesar do estilo mais interiorano e menos luxuoso. Vermelho-ferrugem, marrom e amarelo dominam o ambiente, com pé-direito alto sustentado por vigas e sarrafos de madeira escura, que fazem a casa parecer muito maior por dentro do que por fora. Uma aconchegante lareira de pedra ocupa uma das paredes da espaçosa sala de estar, com dois espelhos decorativos de metal pendurados acima dela. As paredes são amarelas, combinando com os pisos de terracota que parecem ocupar toda a casa.

— De uma coisa tenho certeza: você sempre consegue as melhores empregadas — comento, deixando várias das minhas sacolas no chão da sala.

— Desta vez, não — diz Victor atrás de mim. Ele deixa as outras sacolas que trouxe do carro perto do sofá de couro marrom-alaranjado. — Sou só eu.

— Sério? Mas está tudo tão limpo. Acho que você não passou muito tempo aqui, então, não é?

— Uns quatro meses. — Ele olha para mim. — Você gostou? Espero que sim, porque é o seu novo lar.

Um sorriso desponta no meu rosto.

Victor desabotoa e tira a camisa, deixando-a nas costas de uma poltrona de couro marrom. Observo discretamente seu corpo enquanto ele anda por um corredor longo e bem-iluminado com uma entrada em arco.

Sigo Victor.

— Claro que você sabe que não vamos ficar aqui para sempre. — Entramos em um quarto grande. — Mas é nosso lar por enquanto, pelo menos.

Ele tira a calça e me esforço ao máximo para não olhá-lo com intensidade demais, mas isso fica cada vez mais difícil.

— Vem cá — chama ele, parado diante de mim sem nada além de sua cueca boxer preta e apertada, que pouco ajuda a esconder o volume crescendo por baixo do tecido.

Engulo em seco, nervosa, embora não saiba a razão para esse nervosismo repentino, e me aproximo dele. Sinto um espasmo entre as pernas, e também não sei ao certo por que isso acontece. É como se meu subconsciente estivesse mais a par do que vai acontecer do que minha parte consciente. Ou então apenas perdi o controle sobre minha mente e só consigo pensar no que eu gostaria que acontecesse.

Olho para Victor, curiosa, inclinando um pouco a cabeça para o lado.

— Não sei bem o que é isso entre a gente — diz ele, com cuidado —, mas tenho certeza de que não quero que acabe. Seja o que for.

— Eu também.

Um pouco confusa quanto ao rumo que a conversa está tomando, inclino a cabeça para o outro lado e pergunto:

— Algum problema?

Ele balança a cabeça devagar.

— Não, problema nenhum.

— Bem, se você está preocupado que eu vá me apaixonar e grudar em você feito chiclete, não precisa.

— Você não está apaixonada por mim? — pergunta Victor, e não parece nada além de uma simples questão.

— Não, eu não amo você, Victor.

Ele parece concordar.

— Ótimo. Porque eu também não estou apaixonado por você.

Acho que nem eu nem ele sabemos de fato o que essa palavra significa em uma situação assim. Ambos exibimos a mesma expressão de aceitação, mas também parecemos um pouco confusos.

— Mas... eu, hã... — Entrelaço os dedos atrás das costas e olho para o chão, mexendo o pé como se estivesse tentando afundar os dedos na areia. Paro para encará-lo. — Mas eu, hã, talvez... preferisse que você não dormisse com mais ninguém. Eu... bom, acho que eu não ia gostar muito disso.

— Concordo — diz Victor, assentindo mais uma vez, com firmeza. — Acho que se eu pegar você com outro homem vou ter que matá-lo.

Balanço a cabeça algumas vezes, de maneira tão casual quanto ele.

— Com certeza — concordo eu. — O mesmo vale para você.

— De acordo.

Há um momento de silêncio constrangido entre nós, e corro os olhos pela cama king-size com dossel alto de cerejeira, que está a alguns passos de distância.

Victor se aproxima e eu me viro para observá-lo. Ergo os braços quando ele passa os dedos por baixo da minha camiseta e a tira.

— Também quero dizer que não me incomodo se você grudar em mim feito chiclete. — Ele enfia os dedos no elástico da minha calcinha. — Só para constar.

— Mesmo?

Victor se agacha diante de mim ao descer a calcinha por meus quadris e minhas pernas. Fica ali, me olhando de baixo, com a cabeça na altura do meu umbigo.

— Sim — responde ele. — Mas claro que você não pode me atrapalhar quando eu estiver tentando fazer um serviço.

— Sim, claro — digo, e minha pele reage aos seus lábios, que beijam a área logo acima da minha pélvis. — E-eu nunca atrapalharia o seu trabalho — gaguejo.

Minhas mãos começam a tremer quando ele desce e para entre as minhas pernas, abrindo meus grandes lábios com os polegares.

Afasto os joelhos só um pouco, o bastante para que ele tenha acesso.

— Mas nada de me abandonar em algum lugar distante enquanto você viaja pelo mundo para cumprir os contratos — digo, enfiando os dedos no cabelo dele, com a respiração irregular e acelerada. — Não quero ser dona de casa, entendeu?

Um suspiro agudo corta o ar perto da minha boca quando a ponta de sua língua lambe meu clitóris. Quase derreto ali mesmo, os músculos das coxas perdendo força a cada segundo.

— Sim, entendo o que você quer dizer — diz Victor, e me lambe de novo, explorando entre as minhas pernas. Jogo a cabeça para trás e puxo seu cabelo com mais força, enrolando-o nos dedos. — Você vai aonde eu for. Para eu poder ficar de olho em você.

— De olho em mim. Claro.

Que resposta patética. Só consigo pensar na cabeça de Victor no meio das minhas pernas, e naquela sensação quente e formigante que está amolecendo minhas entranhas.

Victor me ergue segurando minha bunda com firmeza e com minhas coxas em torno da cabeça. Então me lambe furiosamente por um momento antes de me jogar de costas na cama.

Com os joelhos dobrados no peito, vejo sua boca entrar no meio das minhas coxas e reviro os olhos enquanto ele me faz esquecer tudo.


CAPÍTULO DOZE

Sarai

O treinamento começa dois dias depois, mas não da maneira que eu esperava. Não sei o que eu esperava, na verdade, mas com certeza não era isso.

— O que a gente está fazendo aqui? — pergunto quando paramos no estacionamento de uma academia de artes marciais a uma hora de Santa Fé.

— Krav maga — esclarece Victor, e olho como se ele estivesse falando outra língua. Ele fecha a porta do carro e andamos até a fachada do prédio. — Não vou conseguir dedicar cem por cento do meu tempo ao seu treinamento. Por isso, três dias por semana, vou trazer você aqui. Dá para aprender muita coisa com o krav maga em pouco tempo. E o foco é a defesa pessoal...

— O quê? — Paro na calçada antes de passarmos pela porta. — Não sou uma donzela em perigo que acaba de ser assaltada em um estacionamento escuro, Victor. Não preciso de aulas de defesa pessoal. Preciso aprender a matar.

— Matar é a parte fácil — rebate Victor, sem rodeios. Ele abre a porta de vidro e faz um gesto para eu entrar. — Chegar a esse ponto sem morrer tentando é a parte difícil.

— Então você quer que eu aprenda a dar um chute no saco de um cara? — pergunto, bufando de desdém. — Acredite, eu já sou perfeitamente capaz disso.

Um sorriso discreto aparece nos cantos de seus lábios deliciosos.

Nesse momento, um sujeito alto, moreno e com músculos bem-definidos se aproxima de nós no grande salão. As janelas no alto da parede deixam o sol entrar. Dois grupos de pessoas estão treinando em pares, formando um semicírculo em um enorme tatame preto estendido por boa parte do chão.

O homem de braços musculosos e camiseta preta estende a mão para Victor.

— Faz quanto tempo? Três anos? Quatro?

Victor aperta a mão dele com firmeza.

— Uns quatro, acredito.

O homem me olha por um momento, e então Victor nos apresenta.

— Spencer, esta é Izabel. Izabel, Spencer.

— Prazer — diz Spencer, estendendo a mão.

Relutante, aperto a mão dele. Eles se conhecem? Não sei se gosto disso ou não. De repente, sinto que aquilo é alguma armação. Sorrio com desdém para aquele brutamontes alto e simpático.

Victor se vira para mim e diz:

— Não tem ninguém melhor para treinar você em defesa pessoal do que Spencer. Você está em boas mãos.

Spencer abre um sorriso tão largo que, se fosse um pouco maior, acho que daria para engolir minha cabeça. Ele está com os braços musculosos à sua frente, com as mãos cruzadas. As veias, grossas como cordas, que percorrem suas mãos e seus braços bem bronzeados me lembram das de um fisiculturista, mas ele não tem esse tamanho todo. Só é maior do que eu, o que me intimida mais.

Levanto um dedo para Spencer.

— Você nos dá licença um minutinho?

— Claro — responde ele.

Percebo o leve sorriso que ele dá para Victor.

Pego Victor pela mão e o puxo para o lado. Ao fundo, ouço, de maneira constante, corpos sendo jogados naquele tatame preto e a voz de um instrutor entoando comandos repetitivos e mandando os alunos fazerem “de novo”.

— Victor, acho que isto é perda de tempo. Não sei por que você me trouxe aqui. — Cruzo os braços. — Quero aprender essas coisas com você, não com um cara aleatório do tamanho de um ônibus. — Olho por cima do ombro, torcendo para que Spencer não tenha ouvido, embora eu tenha tomado o cuidado de sussurrar.

— Preciso me encontrar com Fredrik daqui a uma hora — explica Victor.

— Ah, então você vai me deixar com uma babá? — Franzo o cenho e balanço a cabeça para ele, totalmente incrédula, para não dizer ofendida.

— Não, não é isso.

— Mas eu quero que você me ensine — repito, forçando as palavras com rispidez entre meus dentes cerrados.

Victor suspira e balança a cabeça, parecendo aborrecido e frustrado comigo.

— Você não tem disciplina. Nenhuma. Igualzinha ao meu irmão. — Isso fere o meu orgulho. — Como vou ensinar alguma coisa para você, se não é capaz nem de fazer as coisas mais simples que eu peço?

Na mesma hora, me arrependo por agir feito uma criança. Solto um suspiro de resignação.

— Desculpe — digo, baixinho. — Pensei que fosse treinar com você, só isso.

— Você vai treinar comigo — garante Victor, pondo as mãos nos meus ombros. — Mas por enquanto precisa aprender o básico. E esta é a melhor maneira.

— Mas por que você não pode me ensinar o básico? — pergunto, com o mesmo tom resignado de antes. — Por que precisa ser ele?

Victor se inclina e beija de leve o canto da minha boca.

— Porque Spencer não tem medo de machucar você — explica ele, e isso me surpreende um pouco. — E não quero fazer isso, se eu puder evitar. Você só vai aprender se for real.

Arregalo os olhos.

— Espere aí... Então você está dizendo que aquele tanque de guerra — digo, apontando por cima do ombro com o polegar — vai me bater de verdade?

— Sim. É para isso que ele está sendo pago.

Parece que meu queixo acaba de bater no chão. De repente, sinto um calafrio percorrer minha espinha.

— Você não é obrigada a fazer isso, Sarai, mas, se realmente é o seu desejo, quero que vá com tudo. Não faça de qualquer jeito. Na vida real, quem atacar você não vai facilitar as coisas — afirma Victor, enquanto me encara com atenção, querendo desesperadamente que eu o entenda e confie nele. — Vou treinar com você no momento certo. Mas, quando eu fizer isso, vai ser brutal, Sarai. Vou atacar com a mesma força que um agressor de verdade usaria. Aprenda o básico primeiro, domine algumas habilidades para conseguir me enfrentar, e vou me sentir melhor para treinar você pessoalmente. Entendeu?

— É, acho que sim — respondo, assentindo. E estou sendo sincera.

Entendo perfeitamente agora. Nem me lembro da última vez que estive tão nervosa para fazer alguma coisa. Mas Spencer, o tanque, não me assusta tanto, na verdade, porque lá no fundo sei que, mesmo que Victor esteja lhe pagando para não facilitar comigo, ele não vai usar toda a sua força em mim. Se usasse, me mataria.

— Você quer ficar? — pergunta Victor.

— Quero.

— Ótimo.

Ele se inclina para meus lábios de novo e me beija com intensidade, tirando meu fôlego. Chocada por essa demonstração pública de afeto tão atípica, fico sem palavras quando ele desgruda os lábios dos meus.

— Volto para buscar você daqui a algumas horas.

— Tudo bem.

Nós voltamos para perto de Spencer, que parece um tanto empolgado para começar a treinar comigo, como se eu fosse um brinquedo novinho em folha com o qual ele não vê a hora de brincar.

— Pronta para começar a aprender krav maga? — pergunta Spencer.

— Estou — respondo, e meu olhar vai até as pessoas lutando no tatame preto atrás dele.

— Tem certeza de que você aguenta?

Quero dizer que sim com confiança, porque, afinal de contas, sempre imaginei que aulas de defesa pessoal consistissem em nada mais do que bloquear golpes, bater e sinalizar aos outros onde estou. Sempre imaginei mulheres comuns, que nunca lutaram na vida, todas de pé em um círculo, esperando a vez para derrubar o instrutor com alguns golpes “úteis”. Contudo, ao observar o grupo que está treinando atrás de Spencer, a intensidade agressiva e a violência de alguns golpes, começo a achar que esse tipo de defesa pessoal é bem diferente.

— Deve ser simples — digo, sem a segurança que queria.

— Se você diz — responde Spencer, com um sorriso conivente que deixa meus nervos ainda mais em frangalhos.

Mas não estou com medo. Nervosa, sim, mas não com medo. Estou pronta para fazer isso. Começo até a ficar ansiosa. Quero provar a Victor que dou conta.

E quero provar a ele que não sou nada parecida com seu irmão.

Victor vai embora. Antes do fim da primeira hora, estou exausta e tão dolorida que mal consigo andar em linha reta sem cambalear.

— Sempre se defenda e ataque ao mesmo tempo — explica Spencer, em pé, enquanto estou deitada no tatame e querendo me encolher em posição fetal. — E nunca vá para o chão. Isto não é luta greco-romana, Izabel. Se você vai para o chão, você morre.

Sem fôlego e tentando controlar a dor intensa que queima minha panturrilha, me levanto.

— Me ataque — ordena ele, elevando a voz acima dos poucos gritos de quem ainda assiste à aula depois da segunda hora. — Se não me atacar, eu ataco você!

Estou exausta demais.

— Não consigo! — Desisto e caio de bunda no tatame. — É demais. Hoje é meu primeiro dia e parece que é minha primeira luta de verdade. Cadê a parte em que você me mostra o que fazer e me ensina a dar os golpes?

— O que você quer mesmo é que eu pegue leve com você, não é?

— Isso! Cadê as instruções? As regras?

Minhas costas estão me matando. Deito no tatame, abrindo os braços acima da cabeça, e olho para o teto iluminado. Não quero mais saber de Spencer e de seu treinamento de imersão total. Só quero descansar.

As lâmpadas fluorescentes do teto começam a se mover depressa quando sinto de repente que estou sendo arrastada pelo tornozelo.

— Não há regras no krav maga — ouço Spencer dizer, mas percebo, meio segundo depois, que não é ele quem está me arrastando.

É uma mulher, com cabelo castanho-claro preso em um rabo de cavalo. Confusa com a mudança, fico distraída demais para notar o pé dela atingindo meu estômago. Berro de dor, me dobrando para a frente ao levantar as pernas e as costas do tatame ao mesmo tempo, com os braços cruzados sobre o abdômen. O golpe expulsa todo o ar dos meus pulmões.

— CHEGA! — grita Spencer, em algum lugar atrás de mim.

Sinto que vou vomitar.

A mulher para no mesmo instante e dá alguns passos para trás.

— Levante — manda Spencer, e decifro, em meio à dor que acaba com meu tórax, que sua voz está muito mais perto do que antes.

Ergo a cabeça e o vejo agachado ao meu lado.

— Vou deixar você recuperar o fôlego — diz ele, baixinho, oferecendo a mão. — Esta é Jacquelyn. Minha mulher.

Pego no antebraço dele, ele me segura e me põe de pé.

— Muito prazer — digo a ela, fazendo uma careta horrorosa de dor. — Ou em conhecer o seu pé, pelo menos.

Ela dá uma risadinha.

— O seu namorado me pagou para encher você de porrada, basicamente — afirma Spencer. — Mas, como não tenho o hábito de bater em mulher, achei melhor deixar minha esposa fazer as honras para que eu pudesse receber o pagamento do mesmo jeito.

— É a melhor maneira de aprender — intervém Jacquelyn. — Esse seu homem sabe o que está fazendo. É brutal? Claro. Necessário para sobreviver a situações de combate corpo a corpo? Com certeza. Indicado para peruazinhas delicadas que ficam pulando e gritando de medo quando veem uma aranha? Nem fodendo.

— Bom, eu não sou uma dessas — digo, com frieza. — Disso você pode ter certeza.

— Então prove — provoca ela, curvando-se para a frente com as mãos semiabertas ao lado do corpo. — Lembre, o krav maga não tem regras. Sempre defenda e ataque ao mesmo tempo. Sempre lute com agressividade. E nunca vá para o chão.

— Ok, essa parte eu entendi. Se eu for para o chão, estou morta.

Jacquelyn praticamente me dá uma surra durante o resto da aula. E, quando Victor finalmente chega para me buscar, meu nariz e meu lábio estão sangrando, meu olho direito está roxo e latejando e acho que quebrei um dente.

Isso continua dia sim, dia não pelas duas semanas seguintes.

Não levei muito tempo para ficar boa no krav maga. Spencer diz que tenho um talento natural e que devo ter “dispensado as Barbies quando era criança”.

Ele não faz nem ideia...

Estou ficando muito mais forte, muito melhor na minha técnica. Em certo momento, até consegui machucar Jacquelyn ao enfiar o cotovelo nas costelas dela. Acho que quebrei algumas, mas ela não admite. Não por orgulho, mas porque não acha certo reclamar nem deixar algo tão insignificante quanto uma costela fraturada impedir que ela lute.

Também não demorou para que eu começasse a simpatizar com ela. Quando Jacquelyn não está me enfiando a porrada, até gosto de sua companhia.

Só duas semanas se passaram. Até agora, não fiz nada além de treinar com Jacquelyn e aprender a usar armas com Victor. Ainda assim, apesar de curtir o treino e esperá-lo ansiosamente todo dia, fico frustrada por estar demorando tanto. Eu esperava que Hamburg e Stephens já estivessem mortos faz tempo, a essa altura.

Estou ficando impaciente.

— Victor, eu não pretendo lutar com Hamburg e Stephens. Só quero matá-los. Mais nada. Não entendo por que você está me fazendo passar por tudo isso.

Victor se descobre e sai da cama, andando nu pelo quarto.

Em silêncio, admiro a visão.

— Tem mais coisas envolvidas nisso do que você imagina — diz ele, desaparecendo ao entrar no banheiro.

Aquilo com certeza desperta meu interesse.

Eu me levanto e grito:

— É mesmo?

Jogo o lençol no chão e ando depressa atrás dele, parando à porta do banheiro e me apoiando no batente. Ele está abrindo a água do chuveiro.

Victor fecha o boxe de vidro, deixando a água correr por um momento, e então se vira para mim.

— Você não está fazendo todo esse treinamento só para matar Hamburg e Stephens. Se vai ficar comigo, independentemente de como vai ocupar o seu tempo, precisa aprender a lutar. Precisa saber identificar, diferenciar, carregar e disparar praticamente qualquer tipo de arma. Há muitas coisas que você precisa saber, e não temos tempo suficiente para aprender metade delas. — Ele abre a porta do boxe e estende o braço, deixando a água correr sobre a mão para sentir a temperatura.

Ele acrescenta:

— Esse treinamento não tem muito a ver com Hamburg e Stephens. Quero que você esteja sempre segura, por isso é vital que aprenda essas coisas agora.

Abro um sorriso leve, saboreando o momento. Quando nos conhecemos, eu não imaginava que Victor tivesse um só traço de preocupação ou emoção no corpo. Mas a cada dia testemunho que ele está se abrindo mais para mim. E vejo que isso está se tornando mais fácil para ele.

Volto ao assunto em questão, mas o que eu gostaria mesmo de fazer, a essa altura, é beijá-lo.

— Mas por que isso está demorando tanto? Quero acabar com essa história de uma vez.

Entro no banheiro e me sento na bancada da pia, apenas de calcinha.

— Porque, enquanto eu elaboro um plano para você chegar perto dos dois e matá-los, você precisa treinar, ocupar seu tempo o máximo possível. — Victor se aproxima de mim e segura meu rosto com as mãos. — Só estar no mesmo quarto comigo, só me conhecer, Sarai, já é uma sentença de morte diária. Cada vez que você sai por aquela porta, corre o risco de levar um tiro. O único motivo pelo qual a Ordem ainda não me encontrou é que Niklas é o único agente atrás de mim. Quer dizer, por enquanto. Ele não quer que ninguém mais me ache. Ele quer levar o crédito. O reconhecimento. Sobretudo porque foi ele o contratado para acabar comigo. — Victor pressiona os lábios na minha testa. Fecho os olhos, levanto os braços e seguro os pulsos dele. — Mas um dia, provavelmente daqui a pouco, vou ter que enfrentar meu irmão, pois a Ordem não vai dar todo o tempo do mundo para ele cumprir a missão. Ou ele me encontra ou eu o encontro. E um de nós vai morrer.

Com os dedos ainda envolvendo os pulsos dele, afasto delicadamente suas mãos do meu rosto. Olho para aqueles lindos olhos verde-azulados, perplexa, inclinando a cabeça para um lado.

— Por que não deixa isso para lá? Victor, entendo você querer matar Niklas antes que ele mate você, mas por que correr o risco de morrer procurando briga?

O vapor começa a encher o banheiro, embaçando o grande espelho acima do balcão, atrás de mim.

— Porque se Niklas não me encontrar, se não conseguir cumprir o primeiro contrato oficial desde que foi promovido a agente sob o comando de Vonnegut, eles vão matá-lo. — Victor apoia as mãos na bancada, à minha direita e à minha esquerda. — Ninguém, a não ser eu, vai matar meu irmão. Não me importa o que ele fez ou as diferenças que temos, ainda é meu irmão.

Faço que sim, compreensiva.

— Tudo bem, então quando tudo isso vai acontecer? Esse... confronto com Niklas? Minha chance de matar Hamburg e Stephens?

Victor abre um sorriso malicioso e eu passo as pontas dos dedos em seus lábios. Ele segura minha mão e beija meus dedos.

— Vamos ter que trabalhar nesse seu problema, Sarai. A sua impaciência e, claro, como já falei, a indisciplina. É o próximo item da nossa agenda.

— Não consigo evitar a impaciência. Aqueles dois babacas horríveis continuam por aí, levando uma vida de luxo, fazendo só Deus sabe o quê com sabe-se lá quantas mulheres. Isso sem falar que estão me procurando. Mataram meus amigos por minha causa. Dina continua escondida longe da casa dela e está com medo. A vida dela foi virada de cabeça para baixo por causa deles. Por minha causa. Quero que eles morram para que pelo menos Dina possa seguir a vida.

— O que você vai dizer para ela? — pergunta Victor. — Quando se encontrar com ela hoje, o que vai dizer?

Desvio o olhar e vejo o vapor revestir as altas paredes de vidro do boxe, ondulando acima do chuveiro em nuvens suaves. Começo a suar um pouco, o rosto, o pescoço e o colo úmidos.

— Vou contar a verdade para ela.

— Você acha uma boa ideia?

Encaro Victor.

— Acho justo. Ela é praticamente minha mãe. Fez muito por mim. Eu devo a verdade a ela. — Sorrio e acrescento: — Além disso, se você não concordasse com minha decisão de contar a verdade, já teria deixado isso bem claro, a essa altura.

Victor retribui meu sorriso e me segura pela cintura, me ajudando a descer da bancada.

— Acho que é melhor a gente se arrumar, se quiser chegar lá a tempo — observa ele, e me leva até o chuveiro. Tiro a calcinha antes de entrar no boxe com ele.

Victor disse a Dina e a mim que me levaria para vê-la alguns dias depois de o contato de Fredrik a tirar de Lake Havasu City. Mas as coisas não saíram conforme planejamos. Victor e Fredrik concordaram que era arriscado e cedo demais. Uma noite, ouvi os dois conversando sobre Dina e sobre como ela poderia estar sendo vigiada no dia em que o contato de Fredrik chegou para buscá-la. Victor queria ter certeza de que isso não havia acontecido, e que, se qualquer um de nós aparecesse por acaso no esconderijo de Dina, não cairia em uma armadilha. Mas, à medida que os dias passaram e Fredrik continuou vigiando a casa onde Dina estava se escondendo, ele e Victor tiveram certeza de que ela era, de fato, segura.

Hoje, enfim, vou vê-la pela primeira vez desde que viajei com Eric e Dahlia para Los Angeles.


CAPÍTULO TREZE

Victor

Sarai precisa estar preparada não só para as ameaças iminentes, mas também para a vida que a espera. Ela escolheu um caminho há muito tempo, no dia em que me conheceu, embora ainda não soubesse. Eu não queria enxergar, por isso lutei comigo mesmo contra a necessidade estranha e antinatural de ficar perto dela, porque queria que ela tivesse uma vida normal.

Não queria que ela terminasse como eu...

Mas eu sabia, oito meses atrás, antes de deixá-la naquele quarto de hospital ao lado da sra. Gregory, que um dia eu voltaria para ela. Nunca foi minha intenção nem meu plano, eu apenas sabia que acabaria acontecendo, de uma maneira ou de outra.

Por 28 dos meus 37 anos de vida, a única coisa que conheci foi a Ordem. Só conheci disciplina e morte. Nunca conheci amizade ou amor sem suspeitas e traições. Fui... programado para desafiar as emoções e ações humanas mais comuns, mas eu... Só quando conheci Sarai me permiti acreditar que Vonnegut e a Ordem não eram minha família, que me usaram como seu soldado perfeito. Eles me negaram a vida toda os elementos que nos tornam humanos. E não posso permitir que isso fique impune.

Um dia, vou matar Vonnegut e acabar com o resto da Ordem pelo que fizeram comigo e com a minha família. Uma família que eles destruíram. Sarai é minha família agora, e espero que Fredrik prove sua lealdade no teste final que farei com ele. Eles são minha família e não vou permitir que a Ordem também os destrua.

Mas, por enquanto, Sarai é o meu foco, e será pelo tempo que for necessário. Ela precisa ser treinada. Precisa absorver o máximo que puder, o mais rápido que conseguir. É impossível que um dia ela chegue ao meu nível. Ela nunca vai conseguir viver a vida de um assassino como eu, porque levaria metade da vida para aprender. É por isso que a Ordem nos recruta tão jovens. É por isso que Niklas e eu fomos levados quando éramos crianças.

Sarai nunca vai ser como eu.

Mas ela tem outros talentos. Tem habilidades que, mesmo depois de tantos anos de treinamento, eu jamais conseguiria superar. A vida de Sarai na fortaleza no México lhe garantiu um conjunto único de habilidades que não se aprendem em uma aula nem se leem em um livro. Ela mente e manipula com maestria. Pode se tornar outra pessoa em dois segundos e enganar uma sala cheia de gente que ninguém mais conseguiria enganar. Consegue fazer um homem acreditar no que ela quiser com muito pouco esforço. E não tem medo da morte. Ela é melhor do que uma simples atriz. Porque ninguém percebe a farsa até que seja tarde demais. Javier Ruiz foi o verdadeiro professor de Sarai. Ele lhe ensinou coisas que eu jamais conseguiria transmitir. Foi seu verdadeiro treinador, ensinando os talentos mortais que agora começam a defini-la como assassina. E, como todos os mestres perversos, Javier Ruiz também foi a primeira vítima de sua aluna favorita.

Assim como foi com as habilidades que Sarai já possui, para aprender a lutar e entender a luta de verdade, ela precisa vivê-la e respirá-la todos os dias. Forçá-la a treinar com Spencer e Jacquelyn é necessário para a sua sobrevivência porque ela precisa aprender o máximo que puder sempre que for possível. Mas são as habilidades que ela já tem que vão transformá-la em um soldado único.

São essas habilidades que nos tornam a dupla perfeita.

Antes disso, contudo, Sarai precisa entender a fundo do que é capaz. E precisa passar pelos testes. Todos eles, até aqueles que podem fazê-la me detestar.

Não tenho dúvidas de que isso vai acontecer. Ela passar nos testes, pelo menos. Se ela vai me detestar, ainda é discutível.

Chegamos a Phoenix logo depois do pôr do sol e somos recebidos à porta da casinha branca por Amelia McKinney, o contato de Fredrik. Ela é uma mulher linda, voluptuosa e com um longo cabelo louro, embora sua característica menos atraente seja seu grande par de peitos de plástico, que com certeza devem lhe dar dor nas costas. E ela usa roupas bem chamativas para uma mulher com doutorado que dá aula no ensino fundamental há cinco anos.

— Olá, Victor Faust — cumprimenta ela, com um tom sedutor, segurando a porta aberta para mim e Sarai. — Ouvi falar muito de você.

— Muito? Interessante.

Com uma das mãos, ela deixa aberta a porta de tela, dá um passo para o lado e acena para entrarmos na casa, sacudindo um monte de pulseiras com pingentes de ouro. Vários anéis enormes enfeitam seus dedos. E ela cheira a sabonete e a pasta de dente.

Coloco minha mão nas costas de Sarai e deixo que ela entre antes de mim.

— Fredrik me falou de você — conta Amelia, fechando a porta. — Mas acho que “muito” é exagero nesse caso, já que ele mesmo não parece saber muita coisa a seu respeito. — Ela gira a mão ao lado do corpo e acrescenta: — Mas imagino que o fato de eu saber tão pouco é o que torna você ainda mais intrigante.

— Nem pense nisso — intervém Sarai, parando nossa pequena fila indiana e se virando para encará-la.

Disciplina, Sarai. Disciplina. Suspiro em silêncio, mas admito que fico de pau duro ao vê-la tão superprotetora com o que lhe pertence.

Amelia levanta as mãos, por sorte em um gesto de resignação e não de desafio.

— Sem problemas, meu anjo. Não tem problema nenhum.

Sarai aceita essa bandeira branca e andamos mais pela casa, onde encontramos Dina Gregory na cozinha, preparando o que parece ser uma ceia de Ação de Graças para umas 15 pessoas.

Sarai corre para os braços abertos de Dina, e começam os sorrisos e as palavras de alívio e empolgação. Ignoro tudo isso por um momento, voltando minha atenção para assuntos mais prementes: o que está ao meu redor e essa mulher que não conheço.

Não confio em ninguém.

Amelia, como muitas mulheres do círculo de Fredrik Gustavsson, não sabe nada sobre a Ordem nem sobre o envolvimento que eu ou Fredrik temos com organizações do tipo. Ela não é o que Samantha, do Abrigo Doze no Texas, era para mim. Não, a relação de Amelia e Fredrik, embora tecnicamente não possa mais ser chamada assim, é muito mais... complicada.

Começo a vasculhar a casa em busca de câmeras e armas, tateando estantes, vasos de plantas, cacarecos e móveis, instalando minha própria parafernália secreta de espionagem no caminho.

— Fredrik disse que você talvez fizesse isso — diz Amelia, atrás de mim, embora eu tenha certeza de que ela não viu o pequeno aparelho que acabo de grudar embaixo da mesinha da TV. Ela ri baixo. — Eu limpei a casa muito bem antes de você chegar. Cadê as suas luvas de borracha? — brinca ela.

Não viro para trás nem paro o que estou fazendo.

— Você recebeu alguma visita desconhecida desde que a sra. Gregory veio para cá? — pergunto, debruçando-me sobre uma mesa ao lado de uma cadeira reclinável e examinando um abajur.

— Uau, você e Fredrik são mesmo os caras mais paranoicos que já conheci. Não. Não que eu lembre. Bom, um vendedor de TV por satélite veio uma vez semana passada, querendo que eu desistisse da TV a cabo. Além dele, ninguém.

Ela se aproxima de mim por trás e abaixa a voz:

— Por quanto tempo essa mulher vai ficar na minha casa? — Noto com a visão periférica que ela olha para a porta da cozinha, para garantir que ninguém consiga ouvi-la além de mim. — Ela é legal e tudo, mas... — Amelia suspira com ar culpado. — Olha, eu tenho 30 anos. Não moro com meus pais desde os 16. Ela está atrapalhando o meu jogo. Eu trouxe um cara aqui semana passada e ele pensou que ela fosse minha mãe. Ficou chato. Não transo desde que ela chegou.

Eu me viro para encará-la.

— E há quanto tempo você conhecia o sujeito que trouxe aqui?

— Hein?

— O homem. Há quanto tempo estava dormindo com ele?

Suas sobrancelhas finas e bem-cuidadas se juntam no meio da testa.

— E isso por acaso é da sua conta? Vai me perguntar em quantas posições a gente trepou também?

— Quanto tempo?

— Conheci o cara em um bar, sábado passado.

— Bem, ele conta como uma visita desconhecida.

Ela quer discutir, mas se contém.

— Ok. Tudo bem. O cara do satélite e o quase peguete do bar. Só eles.

— Antes que eu vá embora, vou precisar do nome desse cara e de qualquer outra informação que você possa me dar sobre ele, incluindo uma descrição detalhada.

Ela balança a cabeça e ri, contrariada.

— Não sei por que aguento essas merdas do Fredrik. — Então Amelia abre uma gavetinha da mesa e tira um bloco de notas e uma caneta.

— Porque você não resiste — observo, mas sem querer ser desagradável. Outra coisa que preciso praticar: ficar de boca fechada quando as mulheres dizem certas coisas que dispensam comentários.

Ofendida, ela arregala os olhos azuis brilhantes. Rabisca alguma coisa na folha, arranca-a do bloco e a enfia na minha mão.

— O que isso significa? — Contudo, antes de me dar a chance de cometer outra gafe, ela muda o tom de voz, chega perto de mim e sussurra de maneira sedutora: — Ei... O que vocês dois têm em comum, afinal?

Sei exatamente sobre o que Amelia está perguntando. Ela especula sobre as minhas preferências sexuais e provavelmente torce para que sejam tão sombrias quanto as de Fredrik. Mas ela está pisando em um território muito perigoso, com Sarai na sala ao lado.

— Não muito — respondo, enfiando no bolso a folha com o nome e a descrição do homem. Então continuo a investigar a casa dela.

— Que pena — comenta Amelia. — Qual é a dele, afinal? Ele fala alguma coisa de mim?

Por favor, pare com isso...

Suspiro e paro na entrada do corredor, olhando-a nos olhos.

— Se você tem perguntas para ou sobre Fredrik, faça o favor de perguntar diretamente a ele.

Amelia joga o cabelo para trás em um gesto orgulhoso e revira os olhos.

— Tudo bem. Só pergunta para o Fredrik quanto tempo mais vou ter que ficar de babá, ok?

Ela passa por mim e se junta a Sarai e à sra. Gregory na cozinha, enquanto aproveito a oportunidade para inspecionar o resto da casa.

Por falar em Fredrik, ele me liga quando estou a caminho do quarto de hóspedes.

— Tenho informações sobre a missão de Nova Orleans — diz ele do outro lado da linha. Ouço trânsito ao fundo. — O contato acha que o alvo voltou para a cidade.

— Por que ela acha isso?

— Ela acha que o viu em frente a um bar perto da Bourbon Street. Claro que ela pode ter imaginado isso, mas acho que a gente deveria investigar. Só por segurança. Se a gente esperar e ele voltar para o Brasil, ou onde quer que ele esteja se escondendo, pode levar mais um ou dois meses antes de termos outra chance.

— Concordo. — Eu me fecho no quarto de hóspedes. — Estou com Sarai na casa da Amelia agora, mas vou terminar as coisas por aqui mais cedo. Vá para Nova Orleans na minha frente e eu encontro você lá amanhã no início da noite. Mas não faça nada.

— Não fazer nada? — pergunta Fredrik, desconfiado. — Se eu encontrar o cara, posso prendê-lo e começar o interrogatório, pelo menos.

— Não, espere a gente. Quero que Sarai faça isso.

Fredrik fica em silêncio por um instante.

— Você não pode estar falando sério, Victor. Ela não está pronta. Pode estragar a missão toda. Ou morrer.

— Não vai acontecer nada disso — rebato com calma e confiança. — E não se preocupe, é você quem vai fazer o interrogatório. Só quero que ela prenda o sujeito.

Sei que há um sorriso macabro no rosto de Fredrik sem precisar vê-lo ou ouvir sua voz. Deixar que ele faça o interrogatório é praticamente o mesmo que dar uma seringa para um viciado em heroína.

— Vejo você em Nova Orleans, então — diz ele.

Desligo, enfio o celular no bolso de trás da calça preta e termino a inspeção da casa antes de ir para a sala e me juntar às mulheres, todas já com pratos de comida no colo.


CAPÍTULO CATORZE

Sarai

— Você deveria fazer um prato — digo para Victor quando ele surge no corredor. — Dina cozinha muito bem. Até melhor do que Marta. Mas não diga a Marta que eu falei isso. — Enfio uma enorme colherada da caçarola de feijão na boca.

Dina, sentada ao meu lado no sofá, aponta para Victor.

— Ela é suspeita. Mas, se você está com fome, é melhor comer antes que acabe.

— Precisamos conversar — anuncia Victor, de pé no meio da sala e bem na frente da TV.

Não gosto do tom dele.

— Tudo bem — digo, desencostando do sofá e deixando o prato na mesinha de centro. — Sobre o quê?

Victor olha de relance para Amelia. Ela está sentada na poltrona à minha frente, pegando um pedaço de pão de milho. Tenho a sensação de que Victor não quer que ela ouça a conversa.

— Amelia — diz Victor, enfiando a mão no bolso de trás da calça e pegando a carteira de couro —, preciso que você saia um pouco de casa. — Ele mexe na carteira, tira um pequeno maço de notas de 100 dólares e o deixa na mesa diante dela. — Se você não se importar.

Amelia olha para o dinheiro, apoia o garfo no prato e conta as cédulas.

— Sem problemas — concorda ela, com um sorriso satisfeito. Então se levanta, pega o prato e a lata de refrigerante e desaparece na cozinha.

Ouço o garfo raspando os restos de comida do prato para o lixo e a cerâmica tilintando no fundo da pia. Amelia passa por nós e segue até o corredor.

— Mas preciso que você saia agora mesmo — reitera Victor. — Não precisa trocar de roupa nem se arrumar.

— Posso pelo menos calçar a droga de um sapato? — pergunta ela, ríspida.

— Claro — responde Victor, assentindo. — Mas, por favor, não demore.

Amelia vai até o fim do corredor, resmungando irritada. Minutos depois, ela liga o carro e vai embora.

Victor olha para mim e para Dina.

— Não podemos ficar tanto tempo quanto o planejado — informa ele.

Dina também larga o prato e suspira com tristeza.

— Por que não? — pergunto.

— Surgiu um problema.

Olho para o meu prato, e o brilho metálico do garfo perde foco à medida que mergulho em pensamentos. Achei que teria tempo para encontrar a forma certa de contar para Dina tudo o que eu planejava contar. Agora estou desesperada tentando imaginar como começar a primeira frase.

— Dina — digo, respirando fundo. Eu me viro de lado para encará-la. — Eu matei um cara, meses atrás. — O rosto de Dina parece ficar rígido. — Foi em legítima defesa. Eu, hum... — Olho para Victor. Ele assente de leve, me motivando a continuar e garantindo que está tudo bem, embora eu saiba que ele não concorda cem por cento com o que estou fazendo. — Aliás, também matei um cara em Los Angeles na noite em que Dahlia e Eric foram encontrados mortos.

Dina ergue a mão enrugada e cobre a boca.

— Ah, Sarai... Você... o que você está...

— Dahlia e Eric foram assassinados por minha causa — interrompo, porque é evidente que ela não sabe o que dizer. — Não só a polícia de Los Angeles está atrás de mim para me interrogar, já que eu estava com eles, mas também os homens que mataram os dois estão na minha cola. É por isso que você está aqui.

— Meu Deus do céu. — Dina balança a cabeça sem parar, tira os dedos da boca e aperta os olhos cheios de pés de galinha em uma expressão preocupada.

Seguro a mão dela, que é fria e macia.

— Tem muita coisa que você não sabe. Onde eu estava de fato durante os nove anos em que minha mãe e eu ficamos desaparecidas. O que realmente aconteceu comigo. E com minha mãe. E eu não levei um tiro de um ex-namorado daquela vez em que Victor levou você para o hospital em Los Angeles. Eu levei um tiro de... — Olho para Victor de novo, mas decido por mim mesma não revelar essa informação. Ela não precisa saber de Niklas nem no que Victor e ele estão envolvidos. — Foi outra pessoa que atirou em mim. É uma história muito longa que você vai saber um dia, mas por enquanto só quero que você saiba a verdade sobre mim. — Passo os dedos com carinho nas costas da mão dela. — Você é a única mãe de verdade que eu tive. Fez tanta coisa por mim, sempre me apoiou, e eu devo essa honestidade a você.

Dina segura minha mão entre as dela.

— O que aconteceu com você, menina? — pergunta, com tanta dor e preocupação na voz que sinto um nó na garganta.

Começo a contar tudo, tanto quanto posso sem revelar qualquer informação sobre Victor e Niklas. Conto sobre o México e sobre as coisas que vi e vivi por lá. Conto sobre Lydia e sobre não conseguir salvá-la, apesar de ter lutado tanto. Omito sobretudo as relações sexuais que eu tinha com o cara que me mantinha presa, Javier Ruiz, um chefão mexicano do tráfico de drogas, armas e escravas, e só digo que eu estava lá contra a minha vontade e fui obrigada a fazer coisas que não queria. Dina cai no choro e me abraça forte, me balançando apertada contra o peito, como se eu é que estivesse chorando e precisasse de um ombro amigo. Ao menos dessa vez, contudo, não estou chorando. Só me sinto péssima por ter que contar tudo isso a ela, pois sei que isso a magoa muito.

Minutos depois, quando termino de contar tudo o que posso, Dina está sentada na beira do sofá, parecendo ligeiramente em choque. Mas ela está mais preocupada do que qualquer outra coisa.

Ela olha para Victor.

— Quanto tempo vou precisar ficar aqui? Gostaria muito de ir para casa. E quero levar Sarai.

— Isso não é uma boa ideia — argumenta Victor. — E quanto a Sarai, ela vai ter que ficar comigo. Por tempo indeterminado.

Engulo em seco ao ouvir as palavras dele, sabendo que Dina não vai aceitar isso.

— Então... Mas então o que isso significa? — pergunta ela, nervosa, voltando sua atenção somente para mim. — Sarai, você nunca mais vai voltar para casa?

Balanço a cabeça, cheia de culpa.

— Não, Dina, eu não posso. Preciso ficar com Victor. Estou mais segura com ele. E você está mais segura sem mim.

Dina balança a cabeça com ar solene.

— Você vai me visitar?

— Claro que vou. — Aperto a mão dela com delicadeza. — Eu nunca abandonaria você para sempre.

— Entendo — afirma ela, esforçando-se para aceitar.

Dina se volta para Victor.

— Mas eu não posso ficar na casa dessa mulher. Se você só me trouxe para cá para me proteger, prefiro voltar para casa. Não tenho medo desses homens. — Ela fica de pé e olha para mim. — Sarai, querida, eu nunca contaria nada para a polícia. Espero que acredite nisso.

Também me levanto.

— Sim, Dina, eu sei que você não contaria. O motivo para você estar aqui não tem nada a ver com a minha confiança em você. Trouxemos você para cá porque queremos que fique segura. Se alguma coisa acontecesse com você, principalmente por minha causa, eu jamais me perdoaria. Você é tudo o que me resta. Você e Victor. Você é minha família e eu não posso perdê-la.

— Mas eu não posso ficar aqui, querida. Já fiquei tempo demais. Amelia é gentil comigo, mas aqui não é a minha casa, e não quero ficar mais tempo do que ela quer que eu fique. Sinto como se minha presença fosse um fardo. Sinto falta das minhas plantas e da minha caneca de café favorita.

— Sra. Gregory — intervém Victor, impaciente, mas ainda respeitando os sentimentos dela. Ela se vira, mas ele faz uma pausa como se refletisse sobre algo. — Sarai não vai ficar segura se tiver que se preocupar com a sua segurança. Estou dizendo desde já: se a senhora voltar para casa, eles vão encontrar e matar a senhora assim que a virem, ou pior, vão sequestrá-la, torturá-la, gravar tudo em vídeo e usar as imagens para atingir Sarai. Entende o que estou dizendo?

A expressão grave e determinada de Dina desmorona sob um véu de sofrimento e resignação. Ela se vira para mim, com o semblante distorcido pela dor. Talvez esteja me pedindo uma confirmação das palavras de Victor, esperando que eu suavize a situação, que eu diga que ele só está sendo dramático. Mas não posso fazer isso. O que ele disse, embora brutal e sem rodeios, é exatamente o que ela precisa ouvir.

— Ele tem razão. Olhe, a gente vai dar um jeito nesses caras logo, tudo bem? Só preciso que você fique quietinha por mais um tempo, até a gente conseguir fazer isso.

— Mas concordo com a senhora — pondera Victor —, acho que não deve mais ficar aqui.

Dina e eu olhamos para ele ao mesmo tempo.

Victor continua:

— Quando estamos nos escondendo e ficamos tempo demais no mesmo lugar, com certeza somos encontrados.

— Então aonde ela deve ir? — pergunto, com várias possibilidades girando na cabeça, nenhuma das quais parece plausível. — Não me diga que quer levar Dina com a gente. Por mais que eu fosse adorar...

— Não, ela não pode ir com a gente — concorda Victor —, mas posso arranjar uma casa só para ela. Já fiz isso antes.

Afinal, Victor providenciou a casa em Lake Havasu City para mim e Dina.

— Mas você não disse que surgiu um problema e que a gente precisa ir embora antes do planejado? Não dá tempo de encontrar outra casa para ela. Isso levaria dias.

— Eu tenho uma casa — afirma Victor. — Fica longe do Arizona, mas acho que seria melhor para a senhora não ficar aqui por enquanto. O contato de Fredrik, o mesmo sujeito que trouxe a senhora para cá, pode levá-la a esse lugar. Está disposta a se mudar?

Dina se reclina no sofá, apertando as mãos uma na outra e as enfiando entre as pernas, vestidas em uma calça bege.

Eu me sento ao lado dela.

— Por favor, faça isso — peço a ela. — Vou me sentir muito melhor sabendo que você está segura.

Dina fica em silêncio por um longo momento, mas finalmente aceita.

— Estou velha demais para tanta emoção, mas tudo bem, eu vou. Só faço isso por você, Sarai.

Eu me inclino e a abraço.

— Eu sei, e é por isso que eu amo você.

— Onde fica a casa? — pergunto depois que deixamos Dina na casa de Amelia e pegamos a estrada. Ele não quis dizer antes a localização em voz alta, provavelmente porque não confiava no ambiente.

— Em Tulsa — responde Victor. — Tenho algumas casas espalhadas por aí, essa é uma delas. Nada luxuoso como a casa de Santa Fé, mas dá para morar nela, é aconchegante, e só a gente sabe que ela existe.

— Quem é esse contato de Fredrik, afinal?

— Ele não faz parte da Ordem, se é o que você quer saber. É só alguém que Fredrik conhece, um pouco como Amelia.

— Se não fazem parte da Ordem, quem eles são?

Victor me lança um olhar do banco do motorista.

— Amelia é só uma espécie de ex-namorada de Fredrik. Como os abrigos administrados pela Ordem, a casa de Amelia tem a mesma função. Mas temos muito menos preocupações em relação a ela, que nem sabe o que é a Ordem. Só o que ela tem é uma obsessão doentia por Fredrik e faz qualquer coisa que ele pedir.

— Ah, entendo — digo, embora não saiba direito se entendi. — Ela parece pegajosa.

— Pode-se dizer que sim.

— E o cara? Aquele que vai levar Dina até Tulsa?

Victor olha para a estrada, com uma das mãos relaxada na parte de baixo do volante.

— Ele é um dos nossos funcionários, na verdade. Um dentre uns vinte contatos que recrutamos desde que eu saí da Ordem. Nenhum deles sabe mais do que o necessário. Fredrik ou eu damos uma ordem, e, como em um emprego qualquer, eles obedecem. Claro que trabalhar com a gente é bem diferente de qualquer outro emprego, mas você entendeu.

— Eles não sabem o risco que correm por se envolver com você e Fredrik? E como vocês fazem para eles seguirem as ordens de vocês? O que eles fazem exatamente, além de levar Dina para um lugar qualquer, assim, do nada?

— Você está cheia de perguntas. — Victor sorri para mim. Uma carreta passa em disparada no sentido oposto, cegando-nos com os faróis altos. — Eles sabem do perigo, até certo ponto. Sabem que estão trabalhando para uma organização particular e são proibidos de falar sobre ela, mas nenhum dos nossos recrutas desconhece a discrição e a disciplina. Alguns são ex-militares, e todos foram escolhidos a dedo por mim. Depois de uma verificação completa do passado deles, é claro. — Victor faz uma pausa e acrescenta: — E eles fazem tudo o que pedimos, mas, para não metê-los em encrenca e proteger nossa operação, costumamos só pagar por tarefas simples. Vigilância. Compra de imóveis, veículos. E levar a sra. Gregory para um lugar qualquer, assim, do nada. — Victor sorri para mim de novo. — Como garantimos que eles sigam nossas ordens? O dinheiro é uma maneira formidável de influenciar pessoas. Eles são bem remunerados.

Apoio a cabeça no banco e tento esticar as pernas no chão do carro, já temendo a viagem longa.

— Um dos nossos homens estava no restaurante de Hamburg na noite em que eu encontrei você.

Tão depressa quanto apoiei a cabeça, levanto-a de novo e olho para Victor, em busca de mais explicações.

— A sra. Gregory só me ligou depois que você foi para Los Angeles — esclarece ele. — Eu estava no Brasil em uma missão, ainda procurando meu alvo depois de duas semanas. Fui embora assim que recebi a ligação da sra. Gregory, mas sabia que provavelmente não encontraria você a tempo, então entrei em contato com dois dos nossos homens que estavam em Los Angeles, dei a eles a sua descrição e alertei para que vigiassem o restaurante e a mansão de Hamburg. Eu sabia que você iria para um dos dois lugares.

Eu me lembro do homem atrás do restaurante depois que matei o segurança. O homem que misteriosamente me deixou fugir.

— Eu vi o cara. Fugi pela saída dos fundos e ele estava lá. Pensei que ele fosse um dos homens de Hamburg.

— Ele é — rebate Victor.

Pisco, atordoada.

— Ele e o outro homem foram dois dos meus primeiros recrutas. Los Angeles era a minha prioridade quando tudo isso começou.

— Você sabia que eu iria para lá.

Embora eu não queira tirar conclusões precipitadas e parecer iludida, sei que é verdade. Meu coração começa a bater como um punho quente. Saber a verdade, saber que Victor estava, durante todo aquele tempo, pensando em mim mais do que eu jamais poderia imaginar me deixa feliz e culpada. Culpada porque o acusei de me abandonar.

— Eu esperava que você esquecesse essa história. Mas, no fundo, sabia que você voltaria lá.

Ficamos em silêncio por um instante.

— Ele está bem? — pergunto, sobre o homem nos fundos do restaurante.

Victor assente.

— Está ótimo. Ele tinha sido contratado por Hamburg meses antes. Conhecia a planta do restaurante e sabia que a única saída alternativa da sala de Hamburg no andar de cima era a dos fundos. A propósito, ele quer pedir desculpa.

— Como assim? Ele me ajudou a fugir.

— A ordem que eu dei a ele foi para não deixar de jeito nenhum que você entrasse naquela sala. Foi a peruca platinada. Ele sabia que você tem cabelo castanho-avermelhado e comprido, não curto e louro. Quando ele se deu conta de quem era, Stephens já estava levando você. Ele não podia entrar porque a sala estava sendo vigiada, por isso foi até os fundos do restaurante, torcendo para conseguir entrar por ali de alguma forma, mas havia outros dois homens de guarda. Eles puxaram conversa e o seguraram ali, até que por fim ele os convenceu a deixá-lo vigiar o lugar sozinho. Logo depois, você saiu pela porta dos fundos.

Respiro fundo e apoio a cabeça no banco de novo.

— Bom, diga a ele que não precisa pedir desculpa. Mas por que ele não me disse logo quem era? Ou não me levou até você?

— Ele precisava segurar o Stephens tempo suficiente para você conseguir fugir, e o fato de ele continuar trabalhando para Hamburg ajuda. Ele não sabe o que os dois planejam nem coisa alguma sobre as operações. É só um segurança, nada além disso. Mas está lá dentro, e isso já é valioso para a gente.

Desafivelo meu cinto de segurança e me esgueiro entre os bancos da frente com a bunda empinada (de um jeito bem deselegante para uma dama, admito) para alcançar o banco de trás. Flagro Victor admirando a cena enquanto me espremo para passar, e isso me faz corar.

— Só tenho mais uma pergunta a acrescentar à lista.

— O que seria? — pergunta ele, zombando de mim.

— Por quanto tempo a gente vai ter que viajar assim? — Estico as pernas no banco de trás e me deito. — Sinto muita falta dos jatinhos particulares. Essas viagens longas de carro vão acabar me matando.

Victor ri. Acho isso incrivelmente sexy.

— Você está dormindo com um assassino, fugindo todo dia de homens que querem matar você e acha que vai morrer por falta de conforto. — Ele ri de novo, e isso me faz sorrir.

— É, acho — digo, me sentindo só um pouco ridícula. Não posso negar a realidade, afinal, por mais sem sentido que ela seja.

— Não vai ser por muito mais tempo — responde Victor. — Não podemos chamar atenção até que eu consiga me livrar completamente de Vonnegut. Ele tem contatos em muitas áreas, e transportes luxuosos, confortáveis e secretos estão no topo de sua lista de prioridades, por motivos óbvios. Dou menos na vista viajando de trem do que de jatinho particular.

Satisfeita com a resposta, não digo mais nada sobre o assunto e olho para cima, para o teto escuro do carro.

— Só para constar — digo, mudando de assunto —, eu não estou só dormindo com um assassino. Estou muito envolvida com ele.

— É mesmo? — pergunta Victor, e sei que ele está sorrindo.

— Sim, temo que seja verdade — digo, em tom de brincadeira, como se fosse algo ruim. — E é um envolvimento bem pouco saudável.

— É mesmo? Por que você acha isso?

Suspiro, dramática.

— Ah, sei lá. Talvez porque ele nunca vai conseguir se livrar de mim.

— Pegajosa. Como Amelia — provoca Victor, tentando me irritar.

E ele consegue. Eu me levanto um pouco e dou um soco de leve em seu ombro. Ele se encolhe, fingindo dor, mesmo com um sorriso largo no rosto.

— Longe disso — digo, e volto a me deitar. — Nem ferrando que eu vou fazer tudo o que ele quer, como a Amelia.

Victor ri baixinho.

— Bem, pelo jeito ele vai ter que aguentar você para sempre, então.

— Vai, e para sempre é muito tempo.

Ele faz uma pausa e então diz:

— Bom, só para constar, algo me diz que ele não gostaria que fosse diferente.

Adormeço no banco de trás muito tempo depois, com um sorriso no rosto que pareceu continuar ali pelo resto da noite.


CONTINUA

CAPÍTULO NOVE

Sarai

Estou mordendo o lábio por dois motivos: porque estou torcendo para que seja uma boa notícia e porque estou sexualmente frustrada. Victor fala com Fredrik por menos de dois minutos, desliga e digita outro número. Quando consegue falar com Dina, ele me passa o celular.

Pego o aparelho e o encosto no ouvido.

— Dina?

— Sarai, meu Deus, onde você está? O que está acontecendo? Eu estava sentada na sala vendo TV e um homem bateu na porta. Eu não ia deixar ele entrar, fiquei desconfiada na hora; estava quase pegando minha espingarda. Mas ele disse que queria falar de você. Ah, Sarai, fiquei com tanto medo de que tivesse acontecido alguma coisa! — Ela finalmente respira.

— Você está bem? — pergunto, baixinho.

— Sim, sim, estou ótima. O melhor que eu poderia estar. Mas ele me falou que iríamos para a delegacia encontrar você. Até me mostrou um distintivo. Não acredito que caí nessa. O cavalheiro mentiu para mim. — Dina para de falar e abaixa a voz, como se estivesse sussurrando para ninguém ouvir. — Ele me levou para a casa de uma prostituta. O que está acontecendo? Sarai...

— Vai ficar tudo bem, Dina, prometo. E não se preocupe. Seja lá quem more nessa casa, duvido que seja uma prostituta.

Os olhos de Victor cruzam com os meus. Desvio o olhar.

— Onde você está? Quando vai voltar? Sei que você está metida em alguma encrenca, mas sempre pode me contar tudo.

Gostaria que isso fosse verdade. Mais do que tudo, neste momento. Mas a verdade maior é que não sei como responder às perguntas de Dina. Victor deve ter percebido a fisionomia confusa no meu rosto, porque tirou o telefone da minha mão.

— Sra. Gregory — diz ele ao telefone. — Aqui é Victor Faust. Preciso que a senhora me ouça com bastante atenção. — Ele espera alguns segundos e continua. — A senhora vai precisar ficar onde está pelos próximos dias. Vou levar Sarai para vê-la em breve, e vamos explicar tudo, mas, até lá, precisa ficar escondida. Não, sinto muito, mas a senhora não pode voltar... Não, não é seguro lá. — Ele assente algumas vezes, e percebo, pelas leves rugas que se formam entre seus olhos, que ele não se sente à vontade falando com ela, como se alguém colocasse de repente um bebê no colo dele. — Sim... Não, me escute. — Ele perde a paciência, então vai direto ao assunto. — É uma questão de vida ou morte. Se a senhora sair ou ligar para qualquer conhecido, vai acabar morrendo.

Tenho um sobressalto e me encolho com essas palavras, não por serem verdade (isso eu já sabia), mas porque fico imaginando a reação de Dina a elas. Só posso imaginar o que ela deve estar pensando nesse momento, como deve estar apavorada. Apavorada por mim, não por si mesma, e isso faz doer ainda mais.

— Sim, ela está bem — afirma Victor mais uma vez para tranquilizá-la. — Só mais alguns dias. Eu vou levar Sarai aí.

Falo com Dina por mais alguns minutos, contando o que posso, mas sem revelar demais, para acalmá-la. Claro que isso não está ajudando muito, considerando as circunstâncias. Nós desligamos e eu fico ali na sala, me sentindo muito diferente de como me sentia antes da ligação.

Acho que enfim caiu a ficha do tamanho da merda que fiz.

Antes, quando achava que era eu quem corria o maior perigo, e depois que disse para Eric e Dahlia saírem de Los Angeles, eu estava preocupada, mas não tanto assim. Os danos que causei afetam mais do que minha própria segurança. Sem querer, pus todas as pessoas que conheço e amo em perigo.

A realidade de tudo isso, dos meus atos e das consequências em efeito dominó, o fato de Victor ter me deixado, de eu ter tentado levar uma vida normal e fracassado; não consigo mais. Não suporto mais nada disso. Cacete, até a dorzinha por ter encontrado Dahlia com Eric está começando a me incomodar. Não por causa de Eric, ou porque ele era meu “namorado”, mas porque o que eles fizeram não me afetou como deveria ter afetado.

Sou uma aberração. E, no momento, não consigo perdoar Victor por me fazer passar por essa situação, por me jogar em uma vida que nós dois sabíamos que não serviria para mim e por esperar que eu me adaptasse. Eu não queria desde o começo. E foi exatamente por isso que não deu certo.

As lágrimas começam a inundar meus olhos. Deixo que caiam. Não me importa.

Sinto a presença de Victor atrás de mim, mas antes que ele me toque me viro para encará-lo com a raiva distorcendo meu rosto. E enfim certas coisas que eu queria dizer a ele depois de todo esse tempo saem, em uma tempestade de palavras furiosas.

— Você me abandonou, porra! — Bato com as palmas das mãos em sua camisa social justa. — Você deveria ter me matado e pronto! Você consegue imaginar o que me fez passar?! — Lágrimas cheias de raiva escorrem dos cantos dos meus olhos.

— Me desculpe...

Franzo a testa na mesma hora.

— Você quer se desculpar? — Solto o ar ruidosamente. — É só isso que você consegue dizer? Me desculpe?

No fundo, sei que nada disso é culpa de Victor, sei que ele só fez o que fez para me proteger. Mas a maior parte de mim, a parte que não quer acreditar que eu não tenho mais salvação, quer pôr a culpa em qualquer um, menos em mim mesma.

As lágrimas começam a me fazer engasgar.

— Toda santa noite — disparo, apontando com raiva para o chão, meu rosto retorcido de raiva e rancor —, todas as horas de todos os dias, eu pensava em você. Só em você, Victor. Eu vivia cada dia com esperança, acreditando de coração que você ia voltar para mim. Os dias passavam e você não aparecia, mas nunca perdi a esperança. Eu pensava comigo mesma: Sarai, ele está vigiando você. Ele está testando você. Ele quer que você faça o que ele disse, que tente ser como todo mundo, que tente se misturar. Quer que você prove para ele que é forte o suficiente para enfrentar qualquer situação, se adaptar a qualquer estilo de vida. Porque, se você não consegue fazer algo tão simples quanto levar uma vida normal, nunca vai conseguir viver com ele. — Mordo o lábio inferior e tento sufocar as lágrimas. Balanço a cabeça devagar. — Isso era o que eu pensava. Mas fui idiota por achar que você tinha alguma intenção de voltar para mim. — Um tremor induzido pelo choro percorre meu peito.

Victor, com o semblante angustiado que nunca imaginei ver nele, se aproxima. Recuo, balançando a cabeça sem parar, esperando que ele entenda que não estou pronta para ficar muito perto. Quero ficar sozinha com a minha dor.

— Sarai? — diz ele, baixinho.

— Não — digo, recusando-o com um gesto. — P-por favor, me poupe das desculpas e dos motivos pelos quais sei que não posso culpar você. Eu sou egoísta, ok? Eu sei! Já sei que você fez o que precisava fazer. Já sei...

— Não, não sabe.

Levanto os olhos para encontrar os dele.

Victor se aproxima. Desta vez não me afasto, minha mente está paralisada por suas palavras, por mais escassas ou vagas que elas sejam. Ele segura meus cotovelos e descruza minhas mãos. Seus dedos roçam de leve a pele sensível da parte interior dos meus braços, descem até encontrarem minhas mãos e as seguram.

— Eu saí da Ordem principalmente por causa de você, Sarai — explica Victor, e o resto do meu corpo fica paralisado. — Quando Vonnegut descobriu que eu estava ajudando você, ele soube... — Ele faz uma pausa, parecendo estar vasculhando sua mente à procura das palavras menos perigosas. — Ele soube que eu me comprometi...

Jogo as mãos para cima.

— Fale inglês! Por favor, diga de uma vez sem se esforçar tanto para fazer rodeios! Por favor!

— Vonnegut soube que eu tinha... começado a gostar de você.

Fico paralisada e meus lábios se fecham. Meu coração bate descompassado. Minhas lágrimas parecem secar em um instante, só as que molham minhas bochechas continuam escorrendo.

— Como eu era o Número Um de Vonnegut, seu “favorito”, a última coisa que ele queria era mandar me matar. Ele me afastou do serviço, me desligou por um tempo, até... que eu criasse juízo.

Faço uma cara de “que-droga-isso-significa”.

— Pode chamar de lavagem cerebral — acrescenta Victor.

Ele afasta a ideia com um gesto.

— Não importa. O que importa é que ele ia me dar uma única chance de provar que o meu sentimento por você era só um lapso, e que nunca mais iria acontecer. Pouquíssimos agentes têm uma segunda chance na Ordem.

— Um lapso? — Eu me sento na mesinha de centro. Olho para Victor e digo: — Para mim, parece que Vonnegut queria que você provasse que não é humano, mas sim o soldado obediente a ele, incapaz de ter emoções. Que babaca desequilibrado.

Victor assente e se agacha diante de mim, entrelaçando os dedos, com os cotovelos apoiados nas coxas.

— Vonnegut mandou que eu matasse você — conta ele em voz baixa, sustentando o meu olhar. — Para provar a mim mesmo. Eu disse que ia fazer isso, que queria fazer, provar que eu era digno de confiança, e ele me soltou. Claro que eu não tinha nenhuma intenção de matar você. Parti naquele dia e procurei um esconderijo. Niklas, que só conheceu a Ordem a vida inteira, decidiu ficar. Pensei que talvez ele só precisasse de um tempo para entender o que estava acontecendo e decidir o que era melhor para ele. Eu também estava me escondendo de Niklas. Sem saber onde eu estava, ele não precisaria enganar Vonnegut nem achar que precisava escolher entre mim e ele. Mas aí Fredrik me contou que Niklas foi contratado para me matar e está me procurando desde então.

— Que desgraçado — comento, balançando a cabeça sem acreditar, mas depois penso de novo. — Você disse que saiu da Ordem principalmente por minha causa. Além de mim, qual foi o outro motivo?

— Isso já estava para acontecer havia muito tempo — conta Victor. — Quando precisei matar meu pai para salvar meu irmão, entendi que era hora de sair. — Seus dedos fortes acariciam os meus, mais delicados. — Você me deu a motivação final de que eu precisava para fazer isso de uma vez.

Com a ponta dos dedos, acaricio seu rosto com a barba um pouco por fazer. Victor continua a me encarar, seus olhos sondando os meus através do pequeno espaço entre nós, cheios de paixão e compreensão. Eu me curvo e beijo seus lábios.

— Eu sinto muito pelo seu irmão — digo, baixinho.

Ele roça os lábios nos meus, e a sensação se espalha pelo meu corpo até os dedos dos pés, como uma dose de uísque.

— Eu não estava testando você, Sarai. — Ele me beija de novo.

— Então o que você estava fazendo? — Eu o beijo também e derreto ao sentir suas mãos se movendo por minhas coxas.

Victor me ergue nos braços, envolvendo minhas pernas em sua cintura, minha bunda acomodada nas palmas de suas mãos enormes. Meus dedos sobem pelos lados de seu rosto e tocam sua boca antes que meus lábios toquem também.

— Eu estava esperando o momento certo — diz ele enquanto sua boca encontra meu pescoço.

Enfio os dedos em seu cabelo castanho curto, erguendo o queixo ao sentir sua boca explorando meu pescoço e meu maxilar. Meus olhos estão fechados, as pálpebras pesadas, e sinto um formigamento quente ao qual sei que não dá para resistir. Victor me carrega pela sala, embora eu não saiba para onde nem me importe com isso. Aperto mais as pernas nuas ao redor de sua cintura, sentindo a superfície fria e lisa de seu cinto de couro pressionando o interior das minhas coxas. Meus dedos estão trabalhando nos botões de sua camisa, abrindo-os com facilidade.

Victor não responde às minhas perguntas, mas isso também não me importa.

Os lábios dele cobrem os meus, a umidade quente de sua língua se entrelaçando avidamente com a minha. Sem parar de me beijar, Victor me faz apoiar os pés no chão para tirar minha calcinha, uma perna de cada vez. Ele ergue meus braços e tira minha camiseta, jogando-a no chão. Minhas mãos mexem no cinto dele, movendo a lingueta do buraco e puxando a tira de couro de uma só vez em um movimento rápido. Ele tira a calça e a cueca boxer preta. Minha boca recebe seu hálito quente e ofegante enquanto ele me carrega mais uma vez e pressiona minhas costas na parede, como se não quisesse esperar para chegarmos ao quarto de hóspedes. Também não quero esperar. Já esperamos demais.

Sinto seu pau entrando em mim, e, antes que ele deslize até o fundo, uma descarga de prazer corre pelas minhas coxas e sobe pela coluna, relaxando meu pescoço e fazendo minha cabeça se apoiar na parede. Sinto meus olhos formigando e ardendo. A umidade morna entre minhas pernas é inundada por um êxtase quente e trêmulo.

Ele mete uma vez bem fundo e se mantém ali, segurando meus quadris, com minhas costas pressionadas contra a parede fria. Abro os olhos devagar, ainda sem controlar direito as pálpebras, e o encaro. Ele me fita com a mesma intensidade voraz. Minha respiração é curta e irregular quando escapa dos meus lábios entreabertos. Meus braços estão ao redor dele, em um abraço apertado, meus dedos cravados nos músculos rijos de suas costas.

— Eu queria isso há tanto tempo — digo, ofegante.

— Você não faz ideia... — rebate Victor, para então me devorar com um beijo, tão violento que quase perco o controle dos meus músculos.

Minhas coxas se contraem em sua cintura quando ele mete seu pau em mim de novo. Estremeço e gemo, minha cabeça bate com força na parede. Ele segura meu corpo no lugar com os braços encaixados nas minhas coxas, forçando seu quadril contra o meu, e eu sinto pequenas explosões no estômago a cada investida.

Minhas costas se arqueiam, meus seios ficam expostos a ele, que cobre um mamilo com a boca. Ergo os braços acima da cabeça, procurando alguma coisa onde eu possa me segurar para cavalgá-lo, mas não encontro nada. Envolvo seu pescoço com os braços para sustentar meu peso e rebolo em sua virilha, gritando e gemendo, desesperada para mergulhar cada centímetro do seu pau duro tão fundo quanto possível. Seus dedos afundam dolorosamente nas minhas costas. Sua língua se enrosca na minha, seus gemidos atravessam meu corpo.

Gozo rápido e forte, minhas pernas e o ponto entre elas se contraindo ao redor dele, meus músculos tremendo. Ele goza segundos depois e segura meu corpo bem firme no lugar, com minha bunda em suas mãos musculosas, para se esvaziar dentro de mim.

Nesse momento, não estou nem aí para as consequências do que acaba de acontecer. Mas só nesse momento.

Com a cabeça apoiada no ombro dele, Victor me carrega pelo corredor até o banheiro espaçoso em frente ao quarto de hóspedes. Ele me senta na bancada e fica de pé no meio de minhas pernas nuas.

— Não se preocupe. — Ele dá um beijo na minha testa e abre a porta de vidro do boxe do chuveiro.

— Com o quê? — pergunto, confusa.

Ele gira a torneira, que range, e regula a água quente e a fria até encontrar a temperatura desejada. Eu o observo da bancada, o modo como seu corpo alto e escultural se move, as curvas de seus músculos entalhadas em um desenho poético ao redor de seus quadris, suas panturrilhas enrijecendo quando ele anda.

Ele volta para perto de mim e termino de tirar sua camisa, deslizando-a por seus braços musculosos.

— Você não vai engravidar — diz ele, e me manda descer da bancada e segui-lo até o chuveiro. — Não de mim, pelo menos.

Um pouco surpresa, deixo por isso mesmo.

Ele fecha a porta do boxe e começa a lavar meu cabelo. Eu me perco naquela proximidade, no modo como suas mãos exploram meu corpo com tanta precisão e desejo.

Por muito tempo, esqueço que ele é um assassino cujas mãos tiraram muitas vidas sem sequer um pensamento de remorso ou arrependimento. Esqueço que também sou uma matadora cujas mãos tiraram uma vida há poucas horas.

Parece que fomos feitos um para o outro, como duas peças de um quebra-cabeça que de início parecem não se encaixar, mas que se adaptam perfeitamente quando vistas pelo mais improvável dos ângulos.


CAPÍTULO DEZ

Victor

A empregada de Fredrik volta para a casa bem cedo na manhã seguinte. Acordo assim que amanhece, e ela entra em casa quando estou tomando meu café no pátio dos fundos. Ela me vê através da porta de vidro ao passar pela sala, e então vem falar comigo no pátio.

— Gostaria de café da manhã, señor? — pergunta ela em espanhol.

Deixo a pasta com meu próximo serviço virada para baixo na mesinha de ferro batido.

— Obrigado, mas não vou comer — respondo, e depois aceno para Sarai, que está andando pela sala, procurando por mim. — Mas ela vai.

— Eu vou o quê? — pergunta Sarai ao passar pela porta de vidro aberta. Ela anda descalça pelo pátio de pedra, usando outra camiseta de Fredrik. Fico muito incomodado por ela ter que usar roupas dele em vez das minhas, mas a única roupa que tenho é a que estou usando, além de um short largo de corrida. O cabelo longo e castanho de Sarai está despenteado, pois ela acaba de acordar e sair da cama.

Ela se senta no meu colo e eu encaixo a mão direita entre suas coxas.

— Café da manhã.

Sarai boceja e estica os braços para o alto antes de apoiar a cabeça no meu ombro. Ponho a mão esquerda em sua cintura para mantê-la equilibrada no meu colo. O cheiro da pele e do cabelo recém-lavados de Sarai acelera meu corpo todo.

Ela faz uma careta sutil, meio que rejeitando a ideia.

— É melhor você comer.

Levantando a cabeça do meu ombro, Sarai olha para mim por um momento, pensativa, e depois dirige sua atenção para a empregada.

— Claro, eu gostaria de tomar café da manhã, se não for incômodo — diz, em espanhol.

Por um momento, a empregada parece surpresa por ouvir Sarai falando seu idioma nativo, mas ela logo se recompõe, assente e volta para dentro da casa.

— Acho que a gente já adiou essa questão o suficiente — diz Sarai. — Para onde é que vamos, Victor? O que eu vou fazer?

Estou pensando exatamente nisso desde que descobri que ela veio para Los Angeles e fez o que fez. Olho para a piscina, perdido em pensamentos, minha última tentativa desesperada de organizar as respostas na cabeça. Mas elas continuam tão fragmentadas e bagunçadas quanto sempre estiveram. Todas, menos uma.

— Sarai — digo, olhando novamente para ela —, você não pode voltar para casa. Eu sabia disso na primeira vez em que mandei você para o Arizona. A situação não estava nem de longe tão terrível quanto ficou depois, mas, agora que as coisas mudaram, você não pode mais voltar.

— Então vou ficar com você — rebate ela. Pela primeira vez na vida, não tenho coragem de protestar. Nem contra ela nem contra mim mesmo. A maior parte de mim, a parte humana e imperfeita, quer que Sarai fique comigo, e nada vai me impedir de fazer isso dar certo.

Mas sei que não vai ser fácil.

— Sim — digo, passando a mão em sua coxa macia —, você vai ficar comigo, mas há muitas coisas que precisa entender.

Ela se levanta do meu colo e fica de pé na minha frente, com um braço na frente do corpo e o outro cotovelo apoiado nele. Distraída, ela passa as pontas dos dedos no rosto macio, fitando o que parece ser o nada. Então ela me olha e balança a cabeça com uma expressão perplexa.

— Eu esperava que você fosse resistir mais. Qual é a pegadinha? A despeito do que aconteceu entre a gente ontem à noite, ou do que está acontecendo desde que nos separamos, nunca pensei que você fosse concordar em me levar junto.

— Você gostaria que eu resistisse? — Abro um sorriso capcioso.

Ela sorri também e deixa os braços relaxarem.

— Não. Com certeza não. E-eu só...

Levanto uma perna e apoio o pé no outro joelho.

— Nunca me imaginei em uma situação dessas. Não posso mentir e dizer que acho que vai dar certo. Muito provavelmente não vai, Sarai, e você precisa entender isso. — Ela parece ficar um pouco desanimada, o bastante para eu saber que minhas palavras sinceras a entristeceram mais do que ela se permite revelar. — Não posso mudar o meu jeito. Não só porque é tudo o que sei fazer, ou porque é o que faço melhor, mas também porque não quero. — Olho para Sarai. — Eu nunca vou parar de fazer o que faço.

— Eu nunca ia querer que você parasse — retruca ela, com certa intensidade. Sarai puxa uma cadeira próxima e a coloca diante de mim antes de se sentar. — Tudo o que eu quero, Victor, é ficar com você. Vou fazer qualquer coisa que você espere que eu faça, mas quero que me ensine...

Levanto a mão e a interrompo imediatamente.

— Não, Sarai, também não vou fazer isso. Não é assim que vai ser. — Sua expressão se anuvia e ela desvia o olhar, magoada com minha recusa. — Já falei, eu praticamente nasci nesta vida. Você ia levar quase o resto da sua para aprender a fazer o que eu faço, e mesmo assim não ia ficar boa o suficiente.

— Então, o que eu devo fazer? — pergunta ela, com um tom de ressentimento na voz. — Quero estar com você aonde quer que vá, mas não quero ficar à toa, tomando martínis na praia enquanto você sai para matar pessoas. Eu não sou inútil, Victor, posso fazer alguma coisa.

— Você pode fazer muitas coisas, sim — digo, interrompendo-a. — Mas fazer o que eu faço está totalmente fora de cogitação. Por que você quer tanto isso? — Levanto a voz quando sinto, de repente, uma necessidade desesperada de entender a resposta.

Sarai bate as palmas das mãos nas coxas nuas.

— Porque é o que eu quero.

— Mas por quê?

Ela ergue as mãos para os lados e grita:

— Porque eu gosto! Entendeu?! Eu gosto!

Pisco algumas vezes, completamente atordoado por essa confissão. Na verdade, essa era a última coisa que eu esperava ouvir de Sarai. Parte de mim sabia que ela era mais do que capaz de tirar a vida de alguém e dormir em paz toda noite depois disso, mas nunca previ que ela fosse gostar de matar.

Não sei ao certo como me sinto a respeito disso. Preciso de mais informações.

Eu me inclino para a frente e fico cara a cara com Sarai.

— Você gosta de matar? — pergunto, embora isso saia mais como uma afirmação. — Então, se alguém pedisse a você que tirasse a vida de outra pessoa, você faria isso sem questionar?

— Não — responde ela, franzindo o cenho. — Eu não mataria qualquer um, Victor, só homens que merecessem.

Homens? Esse lado de Sarai está ficando mais intrigante. Eu me pergunto se ela sabe o que acaba de dizer. Homens. Não pessoas em geral, mas homens.

Eu me afasto dela e me reclino na cadeira de novo, virando a cabeça para o lado, pensativo.

— Explique.

Ela também se recosta, encolhendo as pernas e apoiando os pés no assento, virando os joelhos para o lado.

— Homens como Hamburg. Homens como Javier Ruiz, Luis e Diego. Homens como o segurança que matei ontem. Willem Stephens, pelo simples fato de trabalhar para Hamburg sabendo o que o chefe faz. Homens como John Lansen e todos os outros que conheci naquelas festas de gente rica quando estava com Javier. — Seu olhar penetra o meu. — Homens que merecem ter a garganta cortada.

A gravidade das palavras de Sarai e a determinação em seu rosto me silenciam por um momento. Será possível que eu agora tenha não um, mas dois assassinos por perto que compartilham o gosto pelo derramamento de sangue? E, no exato momento em que o rosto surge na minha mente junto com o de Sarai, ouço o carro de Fredrik na entrada da garagem. Isso interrompe o momento intenso, e ambos olhamos para cima.

Instantes depois, Fredrik, vestido de maneira informal com um jeans escuro e uma camisa de grife, vem nos encontrar no pátio. Ele deixa o jornal do dia na mesa de centro e diz:

— É melhor você dar uma olhada nisso. — Então olha para Sarai por um momento. — A propósito, minhas roupas ficam bem em você.

Fuzilo Fredrik com o olhar, mas escondo meu ciúme antes que qualquer um dos dois perceba.

Sarai e eu olhamos para o jornal, mas sou eu quem o pega. Desdobrando-o, corro os olhos pelo texto até encontrar aquilo a que Fredrik se refere.

Quatro pessoas foram encontradas mortas a tiros em um hotel de luxo de Los Angeles, na madrugada passada. Somente dois corpos foram identificados, os de Dahlia Mathers, 23 anos, e Eric Johnson, 27 anos, ambos de Lake Havasu City, Arizona.

Algumas frases abaixo:

Sarai Cohen, também de Lake Havasu City, é procurada pela polícia para prestar esclarecimentos.

Acho que não importa que identidade Sarai usou para fazer o check-in no hotel, o rosto dela é o mesmo nas duas.

Ela arranca o jornal das minhas mãos antes que eu possa terminar.

— Não... — Ela cerra os dentes e seu rosto fica sério enquanto lê a notícia trágica sobre seus amigos. Ela procura meus olhos, mas logo se volta para o jornal, como se sua mente torcesse para ter lido tudo errado na primeira vez. — Falei para eles irem embora de Los Angeles! Dahlia disse que eles iam embora... — Seus olhos verdes encaram os meus, cheios de desespero e despedaçados pela culpa.

Fico de pé.

Sarai pega o jornal com as duas mãos e o rasga bem no meio, amassando as duas metades em seus punhos.

— Eles mataram Dahlia e Eric, porra! — ruge ela. — Eles estão mortos!

O jornal cai de suas mãos e voa pelo pátio de pedra.

Fredrik apenas me olha, esperando para ver o que vou fazer ou dizer. Ele não fala, mas percebo que quer.

— Sarai. — Por trás dela, ponho as mãos em seus ombros. — Eu vou cuidar disso.

Ela se vira para mim. Seu cabelo balança ao redor da cabeça antes de cair de novo nos ombros e seu rosto está ardendo de fúria.

— ELES MORRERAM POR MINHA CAUSA! COMO LYDIA!

Tentando acalmá-la, aperto seus ombros com força, de frente, e a seguro.

— Eu disse que vou cuidar disso — repito com ainda mais intensidade e sinceridade do que antes. Eu me inclino para a frente para manter seu olhar fixo no meu. — Vou fazer isso por você, Sarai. Hamburg e Stephens estarão mortos antes do fim desta semana.

Ela não ouve. Está me encarando, mas parece estar olhando através de mim. Seu peito sobe e desce com a respiração ofegante e irregular. Suas pupilas parecem pequenas, como buracos de grampos em uma folha de papel. O verde de seus olhos parece ter escurecido.

— Não — rebate ela, com a voz calma. — Não quero que você faça nada.

Absorta em pensamentos, ela dá um passo para trás, e minhas mãos caem de seus ombros.

— Vou fazer isso por você. Eu quero...

— Eu disse que não! — Ela dá mais dois passos e se vira, me dando as costas e olhando para a piscina. — Eu vou fazer isso — afirma ela, em voz baixa e decidida. — Vou matar os dois e não quero que você se meta.

— Acho que não...

Ela vira a cabeça, seus olhos escuros cruzando com os meus.

— Se você matar qualquer um deles, nunca vou perdoar você. Isso é assunto meu, Victor! Me deixe fazer pelo menos isso!

— Sarai, você não pode matá-los. — Eu me aproximo dela. — A única pessoa que vai morrer é você. Não vai conseguir...

— Estou cagando para isso! — Percebo que o objetivo de Sarai é inabalável. Ela volta para perto de mim. — Ou você me ajuda a fazer isso ou eu mesma vou descobrir como fazer. Eles vão morrer nas minhas mãos, não nas suas, nas de Fredrik nem nas de qualquer outra pessoa. Só nas minhas. Me ensine. Me mostre o que fazer. Qual é a melhor forma de agir para alguém como eu. Me ajude, ou vou morrer tentando por minha conta. Para mim, tanto faz.

— Eu não vou... você não pode — retruco, balançando a cabeça.

Sarai desiste e tenta me empurrar para fora de seu caminho. Mas não deixo que ela passe. Não posso, pois sei que cada palavra que ela disse foi a sério.

Eu a seguro pelo pulso, detendo sua marcha furiosa até a porta de vidro. Fredrik sai do caminho, assistindo ao desenrolar da cena com um brilho estranho nos olhos, que só posso interpretar como fascinação.

— Me solte!

— Você não vai embora. — Eu a prendo pelo pulso com força, e agarro o outro quando ela começa a me bater.

Ela quer descontar toda a raiva em mim, gritar na minha cara, me xingar com as palavras que tanto quer dizer a Hamburg e Stephens antes de matá-los, mas não consegue. A raiva, como sempre, a domina, e Sarai cai no choro.

Ela me disse uma vez que sempre chora quando está furiosa.

As lágrimas escorrem como rios por seu rosto. Sarai tenta mais uma vez se desvencilhar de mim, mas a seguro firme e faço uma pressão dolorosa sobre seus pulsos, tentando acalmá-la.

— Victor, por favor! Porra, basta me ensinar, cacete! Mesmo que seja matar os dois e mais ninguém! É tudo que eu peço! Nunca mais vou pedir a sua ajuda! POR FAVOR!

Sarai enfim para de se contorcer e desaba sobre meu peito. Eu a envolvo em meus braços, aninhando sua nuca nas mãos e pressionando o lado do meu rosto no alto de sua cabeça. Sarai chora com violência, seu corpo treme no meu abraço. Não são gritos de tristeza e dor, são gritos de culpa, raiva e da necessidade desesperada de vingar a morte de pessoas — até de Lydia — que poderiam ainda estar vivas, se não fosse por ela.

Fredrik olha para mim. Sei o que a expressão calma dele quer dizer. Ele acha que eu deveria dar a Sarai o que ela quer.

Mas não é a opinião de Fredrik que me faz decidir, no fim das contas. É minha necessidade de proteger Sarai, ainda que ela possa acabar morta no final.

Escolho o mais seguro dos dois caminhos malfadados.

— Eu vou ajudar você.


CAPÍTULO ONZE

Sarai

Levanto o rosto do peito de Victor, fungando as malditas lágrimas que mais uma vez me traíram em um momento de fraqueza.

— Você vai me ajudar a matá-los?

Ele assente.

— Vou.

— Obrigada — digo, baixinho.

Fico na ponta dos pés e dou um beijo suave em sua boca.

Da porta de vidro atrás de nós, a empregada diz com uma voz fraca:

— O café está pronto.

Ela nos fita com seus olhos escuros e curiosos, sem dúvida por ter ouvido a discussão enquanto estava lá dentro.

— Marta faz uns ovos mexidos ótimos — comenta Fredrik, com um sorriso radiante, como se nada tivesse acontecido. — Frita em gordura de bacon. — Ele junta os dedos nos lábios e os beija. — Adoro comida americana.

Ele vai atrás de Marta.

— Se bem que parece que ovos mexidos em gordura de bacon é uma comida do Sul, não? — pergunta ele, olhando para nós enquanto o seguimos.

Victor dá de ombros.

— Bem, Marta não é exatamente do Alabama — continua ele, ao entrarmos na cozinha. — Mas sabe cozinhar como se fosse.

Fredrik e Victor continuam tagarelando sobre comida, provavelmente para me fazer esquecer o que aconteceu. Mas, nesse momento, nada mais me importa além do rosto de Dahlia e Eric na memória. Sei que estou sendo punida. Pela vida. Pelo destino. Não sei por quem ou pelo quê, só sei que faria qualquer coisa para devolver a vida aos meus amigos.

Nós três nos sentamos à mesa com tampo de vidro da cozinha e comemos. E acho quase engraçado Fredrik fazendo Marta provar a comida antes de nos servir, como se ele tivesse aprendido essa técnica paranoica no Manual de Victor Faust.

Durante o café, que dura muito tempo por causa da conversa, Fredrik acaba liberando Marta pelo resto do dia. Isso acontece logo depois que ele começa a falar em sueco com Victor. Odeio não entender o que eles dizem, mas fica claro para mim que era por causa de Marta, e não por mim.

Marta pega a bolsa e se despede de nós, agradecendo a Fredrik por pagar um dia inteiro.

— Por que isso? — pergunto, depois que ela vai embora.

Apoio o garfo no prato ao terminar meu café.

— Temos muito o que conversar — explica Fredrik, tomando um gole de suco de laranja. — E ela não pode ouvir a conversa. — Ele aponta para mim e sorri. — E Marta, embora não pareça, ouve tudo o que acontece por aqui.

— Então por que vocês não continuaram conversando em sueco? — questiono.

— Você fala sueco? — rebate Victor.

— Não.

— Bem, você tem que participar da conversa — diz ele, deixando o copo d’água na mesa.

Sorrio. Nesse momento, me sinto parte deles pela primeira vez. Dos dois. Nós três sentados à mesa, que minutos depois já está livre dos pratos e dos copos, substituídos por pastas e fotografias de serviços de execução. Para mim, é meio surreal discutir detalhes de interrogatórios e assassinatos tão casualmente, como se estivéssemos falando do tempo. Mas também, pela primeira vez na vida, sinto que pertenço a algum lugar. Não estou mais andando por um túnel escuro, com as mãos à frente, procurando a porta. A porta está bem ali, à mostra, e já passei por ela. Enfim encontrei meu lugar na vida. E estou com Victor, o que para mim é mais importante do que tudo.

Finalmente estou com Victor.

Victor e eu saímos da casa de Fredrik nas colinas de Los Angeles no fim da tarde e dirigimos por onze horas até Albuquerque, Novo México. No caminho, paramos em um shopping, onde gasto praticamente uns 2 mil dólares em roupas e sapatos novos, acessórios e maquiagem, já que tudo o que tenho está no Arizona ou ficou no hotel em Los Angeles. Encho o banco de trás com sacolas de compras e caixas de sapatos, mas, lá pela nona hora de viagem, me arrependo de ter comprado tanta coisa. Tudo o que quero é me arrastar para o banco de trás e dormir, mas tenho que me conformar em ficar apertada na frente, encolhida em uma posição desconfortável no banco do Cadillac CTS preto de Victor, com a cabeça apoiada na janela. Desde que Victor saiu da Ordem, ele não tem mais a conveniência de usar jatos particulares para viajar. Se quisesse, com certeza poderia pagar um do próprio bolso, mas ser alguém que a Ordem quer matar significa não dar na vista e abrir mão de alguns luxos que poderiam levar Niklas até ele.

Ao que tudo indica, esses luxos abdicados incluem as residências extravagantes e multimilionárias nas quais Victor sempre preferiu morar. Sua casa em Albuquerque é bem diferente daquela onde ele morava na Costa Leste, com vista para o mar. Quando paramos na entrada de terra batida, vejo uma casa de tamanho médio, com paredes nuas de reboco bege e em um formato de caixa que me faz lembrar as casas que eu construía com peças de Lego quando era criança. Contudo, a julgar pelo jardim elaborado que envolve o caminho branco e liso até a porta e o lado esquerdo da casa, é óbvio que Victor não abriu mão de todos os luxos. Isso fica mais óbvio ainda quando entramos, pois o interior é tão bonito quanto o da casa de Fredrik, apesar do estilo mais interiorano e menos luxuoso. Vermelho-ferrugem, marrom e amarelo dominam o ambiente, com pé-direito alto sustentado por vigas e sarrafos de madeira escura, que fazem a casa parecer muito maior por dentro do que por fora. Uma aconchegante lareira de pedra ocupa uma das paredes da espaçosa sala de estar, com dois espelhos decorativos de metal pendurados acima dela. As paredes são amarelas, combinando com os pisos de terracota que parecem ocupar toda a casa.

— De uma coisa tenho certeza: você sempre consegue as melhores empregadas — comento, deixando várias das minhas sacolas no chão da sala.

— Desta vez, não — diz Victor atrás de mim. Ele deixa as outras sacolas que trouxe do carro perto do sofá de couro marrom-alaranjado. — Sou só eu.

— Sério? Mas está tudo tão limpo. Acho que você não passou muito tempo aqui, então, não é?

— Uns quatro meses. — Ele olha para mim. — Você gostou? Espero que sim, porque é o seu novo lar.

Um sorriso desponta no meu rosto.

Victor desabotoa e tira a camisa, deixando-a nas costas de uma poltrona de couro marrom. Observo discretamente seu corpo enquanto ele anda por um corredor longo e bem-iluminado com uma entrada em arco.

Sigo Victor.

— Claro que você sabe que não vamos ficar aqui para sempre. — Entramos em um quarto grande. — Mas é nosso lar por enquanto, pelo menos.

Ele tira a calça e me esforço ao máximo para não olhá-lo com intensidade demais, mas isso fica cada vez mais difícil.

— Vem cá — chama ele, parado diante de mim sem nada além de sua cueca boxer preta e apertada, que pouco ajuda a esconder o volume crescendo por baixo do tecido.

Engulo em seco, nervosa, embora não saiba a razão para esse nervosismo repentino, e me aproximo dele. Sinto um espasmo entre as pernas, e também não sei ao certo por que isso acontece. É como se meu subconsciente estivesse mais a par do que vai acontecer do que minha parte consciente. Ou então apenas perdi o controle sobre minha mente e só consigo pensar no que eu gostaria que acontecesse.

Olho para Victor, curiosa, inclinando um pouco a cabeça para o lado.

— Não sei bem o que é isso entre a gente — diz ele, com cuidado —, mas tenho certeza de que não quero que acabe. Seja o que for.

— Eu também.

Um pouco confusa quanto ao rumo que a conversa está tomando, inclino a cabeça para o outro lado e pergunto:

— Algum problema?

Ele balança a cabeça devagar.

— Não, problema nenhum.

— Bem, se você está preocupado que eu vá me apaixonar e grudar em você feito chiclete, não precisa.

— Você não está apaixonada por mim? — pergunta Victor, e não parece nada além de uma simples questão.

— Não, eu não amo você, Victor.

Ele parece concordar.

— Ótimo. Porque eu também não estou apaixonado por você.

Acho que nem eu nem ele sabemos de fato o que essa palavra significa em uma situação assim. Ambos exibimos a mesma expressão de aceitação, mas também parecemos um pouco confusos.

— Mas... eu, hã... — Entrelaço os dedos atrás das costas e olho para o chão, mexendo o pé como se estivesse tentando afundar os dedos na areia. Paro para encará-lo. — Mas eu, hã, talvez... preferisse que você não dormisse com mais ninguém. Eu... bom, acho que eu não ia gostar muito disso.

— Concordo — diz Victor, assentindo mais uma vez, com firmeza. — Acho que se eu pegar você com outro homem vou ter que matá-lo.

Balanço a cabeça algumas vezes, de maneira tão casual quanto ele.

— Com certeza — concordo eu. — O mesmo vale para você.

— De acordo.

Há um momento de silêncio constrangido entre nós, e corro os olhos pela cama king-size com dossel alto de cerejeira, que está a alguns passos de distância.

Victor se aproxima e eu me viro para observá-lo. Ergo os braços quando ele passa os dedos por baixo da minha camiseta e a tira.

— Também quero dizer que não me incomodo se você grudar em mim feito chiclete. — Ele enfia os dedos no elástico da minha calcinha. — Só para constar.

— Mesmo?

Victor se agacha diante de mim ao descer a calcinha por meus quadris e minhas pernas. Fica ali, me olhando de baixo, com a cabeça na altura do meu umbigo.

— Sim — responde ele. — Mas claro que você não pode me atrapalhar quando eu estiver tentando fazer um serviço.

— Sim, claro — digo, e minha pele reage aos seus lábios, que beijam a área logo acima da minha pélvis. — E-eu nunca atrapalharia o seu trabalho — gaguejo.

Minhas mãos começam a tremer quando ele desce e para entre as minhas pernas, abrindo meus grandes lábios com os polegares.

Afasto os joelhos só um pouco, o bastante para que ele tenha acesso.

— Mas nada de me abandonar em algum lugar distante enquanto você viaja pelo mundo para cumprir os contratos — digo, enfiando os dedos no cabelo dele, com a respiração irregular e acelerada. — Não quero ser dona de casa, entendeu?

Um suspiro agudo corta o ar perto da minha boca quando a ponta de sua língua lambe meu clitóris. Quase derreto ali mesmo, os músculos das coxas perdendo força a cada segundo.

— Sim, entendo o que você quer dizer — diz Victor, e me lambe de novo, explorando entre as minhas pernas. Jogo a cabeça para trás e puxo seu cabelo com mais força, enrolando-o nos dedos. — Você vai aonde eu for. Para eu poder ficar de olho em você.

— De olho em mim. Claro.

Que resposta patética. Só consigo pensar na cabeça de Victor no meio das minhas pernas, e naquela sensação quente e formigante que está amolecendo minhas entranhas.

Victor me ergue segurando minha bunda com firmeza e com minhas coxas em torno da cabeça. Então me lambe furiosamente por um momento antes de me jogar de costas na cama.

Com os joelhos dobrados no peito, vejo sua boca entrar no meio das minhas coxas e reviro os olhos enquanto ele me faz esquecer tudo.


CAPÍTULO DOZE

Sarai

O treinamento começa dois dias depois, mas não da maneira que eu esperava. Não sei o que eu esperava, na verdade, mas com certeza não era isso.

— O que a gente está fazendo aqui? — pergunto quando paramos no estacionamento de uma academia de artes marciais a uma hora de Santa Fé.

— Krav maga — esclarece Victor, e olho como se ele estivesse falando outra língua. Ele fecha a porta do carro e andamos até a fachada do prédio. — Não vou conseguir dedicar cem por cento do meu tempo ao seu treinamento. Por isso, três dias por semana, vou trazer você aqui. Dá para aprender muita coisa com o krav maga em pouco tempo. E o foco é a defesa pessoal...

— O quê? — Paro na calçada antes de passarmos pela porta. — Não sou uma donzela em perigo que acaba de ser assaltada em um estacionamento escuro, Victor. Não preciso de aulas de defesa pessoal. Preciso aprender a matar.

— Matar é a parte fácil — rebate Victor, sem rodeios. Ele abre a porta de vidro e faz um gesto para eu entrar. — Chegar a esse ponto sem morrer tentando é a parte difícil.

— Então você quer que eu aprenda a dar um chute no saco de um cara? — pergunto, bufando de desdém. — Acredite, eu já sou perfeitamente capaz disso.

Um sorriso discreto aparece nos cantos de seus lábios deliciosos.

Nesse momento, um sujeito alto, moreno e com músculos bem-definidos se aproxima de nós no grande salão. As janelas no alto da parede deixam o sol entrar. Dois grupos de pessoas estão treinando em pares, formando um semicírculo em um enorme tatame preto estendido por boa parte do chão.

O homem de braços musculosos e camiseta preta estende a mão para Victor.

— Faz quanto tempo? Três anos? Quatro?

Victor aperta a mão dele com firmeza.

— Uns quatro, acredito.

O homem me olha por um momento, e então Victor nos apresenta.

— Spencer, esta é Izabel. Izabel, Spencer.

— Prazer — diz Spencer, estendendo a mão.

Relutante, aperto a mão dele. Eles se conhecem? Não sei se gosto disso ou não. De repente, sinto que aquilo é alguma armação. Sorrio com desdém para aquele brutamontes alto e simpático.

Victor se vira para mim e diz:

— Não tem ninguém melhor para treinar você em defesa pessoal do que Spencer. Você está em boas mãos.

Spencer abre um sorriso tão largo que, se fosse um pouco maior, acho que daria para engolir minha cabeça. Ele está com os braços musculosos à sua frente, com as mãos cruzadas. As veias, grossas como cordas, que percorrem suas mãos e seus braços bem bronzeados me lembram das de um fisiculturista, mas ele não tem esse tamanho todo. Só é maior do que eu, o que me intimida mais.

Levanto um dedo para Spencer.

— Você nos dá licença um minutinho?

— Claro — responde ele.

Percebo o leve sorriso que ele dá para Victor.

Pego Victor pela mão e o puxo para o lado. Ao fundo, ouço, de maneira constante, corpos sendo jogados naquele tatame preto e a voz de um instrutor entoando comandos repetitivos e mandando os alunos fazerem “de novo”.

— Victor, acho que isto é perda de tempo. Não sei por que você me trouxe aqui. — Cruzo os braços. — Quero aprender essas coisas com você, não com um cara aleatório do tamanho de um ônibus. — Olho por cima do ombro, torcendo para que Spencer não tenha ouvido, embora eu tenha tomado o cuidado de sussurrar.

— Preciso me encontrar com Fredrik daqui a uma hora — explica Victor.

— Ah, então você vai me deixar com uma babá? — Franzo o cenho e balanço a cabeça para ele, totalmente incrédula, para não dizer ofendida.

— Não, não é isso.

— Mas eu quero que você me ensine — repito, forçando as palavras com rispidez entre meus dentes cerrados.

Victor suspira e balança a cabeça, parecendo aborrecido e frustrado comigo.

— Você não tem disciplina. Nenhuma. Igualzinha ao meu irmão. — Isso fere o meu orgulho. — Como vou ensinar alguma coisa para você, se não é capaz nem de fazer as coisas mais simples que eu peço?

Na mesma hora, me arrependo por agir feito uma criança. Solto um suspiro de resignação.

— Desculpe — digo, baixinho. — Pensei que fosse treinar com você, só isso.

— Você vai treinar comigo — garante Victor, pondo as mãos nos meus ombros. — Mas por enquanto precisa aprender o básico. E esta é a melhor maneira.

— Mas por que você não pode me ensinar o básico? — pergunto, com o mesmo tom resignado de antes. — Por que precisa ser ele?

Victor se inclina e beija de leve o canto da minha boca.

— Porque Spencer não tem medo de machucar você — explica ele, e isso me surpreende um pouco. — E não quero fazer isso, se eu puder evitar. Você só vai aprender se for real.

Arregalo os olhos.

— Espere aí... Então você está dizendo que aquele tanque de guerra — digo, apontando por cima do ombro com o polegar — vai me bater de verdade?

— Sim. É para isso que ele está sendo pago.

Parece que meu queixo acaba de bater no chão. De repente, sinto um calafrio percorrer minha espinha.

— Você não é obrigada a fazer isso, Sarai, mas, se realmente é o seu desejo, quero que vá com tudo. Não faça de qualquer jeito. Na vida real, quem atacar você não vai facilitar as coisas — afirma Victor, enquanto me encara com atenção, querendo desesperadamente que eu o entenda e confie nele. — Vou treinar com você no momento certo. Mas, quando eu fizer isso, vai ser brutal, Sarai. Vou atacar com a mesma força que um agressor de verdade usaria. Aprenda o básico primeiro, domine algumas habilidades para conseguir me enfrentar, e vou me sentir melhor para treinar você pessoalmente. Entendeu?

— É, acho que sim — respondo, assentindo. E estou sendo sincera.

Entendo perfeitamente agora. Nem me lembro da última vez que estive tão nervosa para fazer alguma coisa. Mas Spencer, o tanque, não me assusta tanto, na verdade, porque lá no fundo sei que, mesmo que Victor esteja lhe pagando para não facilitar comigo, ele não vai usar toda a sua força em mim. Se usasse, me mataria.

— Você quer ficar? — pergunta Victor.

— Quero.

— Ótimo.

Ele se inclina para meus lábios de novo e me beija com intensidade, tirando meu fôlego. Chocada por essa demonstração pública de afeto tão atípica, fico sem palavras quando ele desgruda os lábios dos meus.

— Volto para buscar você daqui a algumas horas.

— Tudo bem.

Nós voltamos para perto de Spencer, que parece um tanto empolgado para começar a treinar comigo, como se eu fosse um brinquedo novinho em folha com o qual ele não vê a hora de brincar.

— Pronta para começar a aprender krav maga? — pergunta Spencer.

— Estou — respondo, e meu olhar vai até as pessoas lutando no tatame preto atrás dele.

— Tem certeza de que você aguenta?

Quero dizer que sim com confiança, porque, afinal de contas, sempre imaginei que aulas de defesa pessoal consistissem em nada mais do que bloquear golpes, bater e sinalizar aos outros onde estou. Sempre imaginei mulheres comuns, que nunca lutaram na vida, todas de pé em um círculo, esperando a vez para derrubar o instrutor com alguns golpes “úteis”. Contudo, ao observar o grupo que está treinando atrás de Spencer, a intensidade agressiva e a violência de alguns golpes, começo a achar que esse tipo de defesa pessoal é bem diferente.

— Deve ser simples — digo, sem a segurança que queria.

— Se você diz — responde Spencer, com um sorriso conivente que deixa meus nervos ainda mais em frangalhos.

Mas não estou com medo. Nervosa, sim, mas não com medo. Estou pronta para fazer isso. Começo até a ficar ansiosa. Quero provar a Victor que dou conta.

E quero provar a ele que não sou nada parecida com seu irmão.

Victor vai embora. Antes do fim da primeira hora, estou exausta e tão dolorida que mal consigo andar em linha reta sem cambalear.

— Sempre se defenda e ataque ao mesmo tempo — explica Spencer, em pé, enquanto estou deitada no tatame e querendo me encolher em posição fetal. — E nunca vá para o chão. Isto não é luta greco-romana, Izabel. Se você vai para o chão, você morre.

Sem fôlego e tentando controlar a dor intensa que queima minha panturrilha, me levanto.

— Me ataque — ordena ele, elevando a voz acima dos poucos gritos de quem ainda assiste à aula depois da segunda hora. — Se não me atacar, eu ataco você!

Estou exausta demais.

— Não consigo! — Desisto e caio de bunda no tatame. — É demais. Hoje é meu primeiro dia e parece que é minha primeira luta de verdade. Cadê a parte em que você me mostra o que fazer e me ensina a dar os golpes?

— O que você quer mesmo é que eu pegue leve com você, não é?

— Isso! Cadê as instruções? As regras?

Minhas costas estão me matando. Deito no tatame, abrindo os braços acima da cabeça, e olho para o teto iluminado. Não quero mais saber de Spencer e de seu treinamento de imersão total. Só quero descansar.

As lâmpadas fluorescentes do teto começam a se mover depressa quando sinto de repente que estou sendo arrastada pelo tornozelo.

— Não há regras no krav maga — ouço Spencer dizer, mas percebo, meio segundo depois, que não é ele quem está me arrastando.

É uma mulher, com cabelo castanho-claro preso em um rabo de cavalo. Confusa com a mudança, fico distraída demais para notar o pé dela atingindo meu estômago. Berro de dor, me dobrando para a frente ao levantar as pernas e as costas do tatame ao mesmo tempo, com os braços cruzados sobre o abdômen. O golpe expulsa todo o ar dos meus pulmões.

— CHEGA! — grita Spencer, em algum lugar atrás de mim.

Sinto que vou vomitar.

A mulher para no mesmo instante e dá alguns passos para trás.

— Levante — manda Spencer, e decifro, em meio à dor que acaba com meu tórax, que sua voz está muito mais perto do que antes.

Ergo a cabeça e o vejo agachado ao meu lado.

— Vou deixar você recuperar o fôlego — diz ele, baixinho, oferecendo a mão. — Esta é Jacquelyn. Minha mulher.

Pego no antebraço dele, ele me segura e me põe de pé.

— Muito prazer — digo a ela, fazendo uma careta horrorosa de dor. — Ou em conhecer o seu pé, pelo menos.

Ela dá uma risadinha.

— O seu namorado me pagou para encher você de porrada, basicamente — afirma Spencer. — Mas, como não tenho o hábito de bater em mulher, achei melhor deixar minha esposa fazer as honras para que eu pudesse receber o pagamento do mesmo jeito.

— É a melhor maneira de aprender — intervém Jacquelyn. — Esse seu homem sabe o que está fazendo. É brutal? Claro. Necessário para sobreviver a situações de combate corpo a corpo? Com certeza. Indicado para peruazinhas delicadas que ficam pulando e gritando de medo quando veem uma aranha? Nem fodendo.

— Bom, eu não sou uma dessas — digo, com frieza. — Disso você pode ter certeza.

— Então prove — provoca ela, curvando-se para a frente com as mãos semiabertas ao lado do corpo. — Lembre, o krav maga não tem regras. Sempre defenda e ataque ao mesmo tempo. Sempre lute com agressividade. E nunca vá para o chão.

— Ok, essa parte eu entendi. Se eu for para o chão, estou morta.

Jacquelyn praticamente me dá uma surra durante o resto da aula. E, quando Victor finalmente chega para me buscar, meu nariz e meu lábio estão sangrando, meu olho direito está roxo e latejando e acho que quebrei um dente.

Isso continua dia sim, dia não pelas duas semanas seguintes.

Não levei muito tempo para ficar boa no krav maga. Spencer diz que tenho um talento natural e que devo ter “dispensado as Barbies quando era criança”.

Ele não faz nem ideia...

Estou ficando muito mais forte, muito melhor na minha técnica. Em certo momento, até consegui machucar Jacquelyn ao enfiar o cotovelo nas costelas dela. Acho que quebrei algumas, mas ela não admite. Não por orgulho, mas porque não acha certo reclamar nem deixar algo tão insignificante quanto uma costela fraturada impedir que ela lute.

Também não demorou para que eu começasse a simpatizar com ela. Quando Jacquelyn não está me enfiando a porrada, até gosto de sua companhia.

Só duas semanas se passaram. Até agora, não fiz nada além de treinar com Jacquelyn e aprender a usar armas com Victor. Ainda assim, apesar de curtir o treino e esperá-lo ansiosamente todo dia, fico frustrada por estar demorando tanto. Eu esperava que Hamburg e Stephens já estivessem mortos faz tempo, a essa altura.

Estou ficando impaciente.

— Victor, eu não pretendo lutar com Hamburg e Stephens. Só quero matá-los. Mais nada. Não entendo por que você está me fazendo passar por tudo isso.

Victor se descobre e sai da cama, andando nu pelo quarto.

Em silêncio, admiro a visão.

— Tem mais coisas envolvidas nisso do que você imagina — diz ele, desaparecendo ao entrar no banheiro.

Aquilo com certeza desperta meu interesse.

Eu me levanto e grito:

— É mesmo?

Jogo o lençol no chão e ando depressa atrás dele, parando à porta do banheiro e me apoiando no batente. Ele está abrindo a água do chuveiro.

Victor fecha o boxe de vidro, deixando a água correr por um momento, e então se vira para mim.

— Você não está fazendo todo esse treinamento só para matar Hamburg e Stephens. Se vai ficar comigo, independentemente de como vai ocupar o seu tempo, precisa aprender a lutar. Precisa saber identificar, diferenciar, carregar e disparar praticamente qualquer tipo de arma. Há muitas coisas que você precisa saber, e não temos tempo suficiente para aprender metade delas. — Ele abre a porta do boxe e estende o braço, deixando a água correr sobre a mão para sentir a temperatura.

Ele acrescenta:

— Esse treinamento não tem muito a ver com Hamburg e Stephens. Quero que você esteja sempre segura, por isso é vital que aprenda essas coisas agora.

Abro um sorriso leve, saboreando o momento. Quando nos conhecemos, eu não imaginava que Victor tivesse um só traço de preocupação ou emoção no corpo. Mas a cada dia testemunho que ele está se abrindo mais para mim. E vejo que isso está se tornando mais fácil para ele.

Volto ao assunto em questão, mas o que eu gostaria mesmo de fazer, a essa altura, é beijá-lo.

— Mas por que isso está demorando tanto? Quero acabar com essa história de uma vez.

Entro no banheiro e me sento na bancada da pia, apenas de calcinha.

— Porque, enquanto eu elaboro um plano para você chegar perto dos dois e matá-los, você precisa treinar, ocupar seu tempo o máximo possível. — Victor se aproxima de mim e segura meu rosto com as mãos. — Só estar no mesmo quarto comigo, só me conhecer, Sarai, já é uma sentença de morte diária. Cada vez que você sai por aquela porta, corre o risco de levar um tiro. O único motivo pelo qual a Ordem ainda não me encontrou é que Niklas é o único agente atrás de mim. Quer dizer, por enquanto. Ele não quer que ninguém mais me ache. Ele quer levar o crédito. O reconhecimento. Sobretudo porque foi ele o contratado para acabar comigo. — Victor pressiona os lábios na minha testa. Fecho os olhos, levanto os braços e seguro os pulsos dele. — Mas um dia, provavelmente daqui a pouco, vou ter que enfrentar meu irmão, pois a Ordem não vai dar todo o tempo do mundo para ele cumprir a missão. Ou ele me encontra ou eu o encontro. E um de nós vai morrer.

Com os dedos ainda envolvendo os pulsos dele, afasto delicadamente suas mãos do meu rosto. Olho para aqueles lindos olhos verde-azulados, perplexa, inclinando a cabeça para um lado.

— Por que não deixa isso para lá? Victor, entendo você querer matar Niklas antes que ele mate você, mas por que correr o risco de morrer procurando briga?

O vapor começa a encher o banheiro, embaçando o grande espelho acima do balcão, atrás de mim.

— Porque se Niklas não me encontrar, se não conseguir cumprir o primeiro contrato oficial desde que foi promovido a agente sob o comando de Vonnegut, eles vão matá-lo. — Victor apoia as mãos na bancada, à minha direita e à minha esquerda. — Ninguém, a não ser eu, vai matar meu irmão. Não me importa o que ele fez ou as diferenças que temos, ainda é meu irmão.

Faço que sim, compreensiva.

— Tudo bem, então quando tudo isso vai acontecer? Esse... confronto com Niklas? Minha chance de matar Hamburg e Stephens?

Victor abre um sorriso malicioso e eu passo as pontas dos dedos em seus lábios. Ele segura minha mão e beija meus dedos.

— Vamos ter que trabalhar nesse seu problema, Sarai. A sua impaciência e, claro, como já falei, a indisciplina. É o próximo item da nossa agenda.

— Não consigo evitar a impaciência. Aqueles dois babacas horríveis continuam por aí, levando uma vida de luxo, fazendo só Deus sabe o quê com sabe-se lá quantas mulheres. Isso sem falar que estão me procurando. Mataram meus amigos por minha causa. Dina continua escondida longe da casa dela e está com medo. A vida dela foi virada de cabeça para baixo por causa deles. Por minha causa. Quero que eles morram para que pelo menos Dina possa seguir a vida.

— O que você vai dizer para ela? — pergunta Victor. — Quando se encontrar com ela hoje, o que vai dizer?

Desvio o olhar e vejo o vapor revestir as altas paredes de vidro do boxe, ondulando acima do chuveiro em nuvens suaves. Começo a suar um pouco, o rosto, o pescoço e o colo úmidos.

— Vou contar a verdade para ela.

— Você acha uma boa ideia?

Encaro Victor.

— Acho justo. Ela é praticamente minha mãe. Fez muito por mim. Eu devo a verdade a ela. — Sorrio e acrescento: — Além disso, se você não concordasse com minha decisão de contar a verdade, já teria deixado isso bem claro, a essa altura.

Victor retribui meu sorriso e me segura pela cintura, me ajudando a descer da bancada.

— Acho que é melhor a gente se arrumar, se quiser chegar lá a tempo — observa ele, e me leva até o chuveiro. Tiro a calcinha antes de entrar no boxe com ele.

Victor disse a Dina e a mim que me levaria para vê-la alguns dias depois de o contato de Fredrik a tirar de Lake Havasu City. Mas as coisas não saíram conforme planejamos. Victor e Fredrik concordaram que era arriscado e cedo demais. Uma noite, ouvi os dois conversando sobre Dina e sobre como ela poderia estar sendo vigiada no dia em que o contato de Fredrik chegou para buscá-la. Victor queria ter certeza de que isso não havia acontecido, e que, se qualquer um de nós aparecesse por acaso no esconderijo de Dina, não cairia em uma armadilha. Mas, à medida que os dias passaram e Fredrik continuou vigiando a casa onde Dina estava se escondendo, ele e Victor tiveram certeza de que ela era, de fato, segura.

Hoje, enfim, vou vê-la pela primeira vez desde que viajei com Eric e Dahlia para Los Angeles.


CAPÍTULO TREZE

Victor

Sarai precisa estar preparada não só para as ameaças iminentes, mas também para a vida que a espera. Ela escolheu um caminho há muito tempo, no dia em que me conheceu, embora ainda não soubesse. Eu não queria enxergar, por isso lutei comigo mesmo contra a necessidade estranha e antinatural de ficar perto dela, porque queria que ela tivesse uma vida normal.

Não queria que ela terminasse como eu...

Mas eu sabia, oito meses atrás, antes de deixá-la naquele quarto de hospital ao lado da sra. Gregory, que um dia eu voltaria para ela. Nunca foi minha intenção nem meu plano, eu apenas sabia que acabaria acontecendo, de uma maneira ou de outra.

Por 28 dos meus 37 anos de vida, a única coisa que conheci foi a Ordem. Só conheci disciplina e morte. Nunca conheci amizade ou amor sem suspeitas e traições. Fui... programado para desafiar as emoções e ações humanas mais comuns, mas eu... Só quando conheci Sarai me permiti acreditar que Vonnegut e a Ordem não eram minha família, que me usaram como seu soldado perfeito. Eles me negaram a vida toda os elementos que nos tornam humanos. E não posso permitir que isso fique impune.

Um dia, vou matar Vonnegut e acabar com o resto da Ordem pelo que fizeram comigo e com a minha família. Uma família que eles destruíram. Sarai é minha família agora, e espero que Fredrik prove sua lealdade no teste final que farei com ele. Eles são minha família e não vou permitir que a Ordem também os destrua.

Mas, por enquanto, Sarai é o meu foco, e será pelo tempo que for necessário. Ela precisa ser treinada. Precisa absorver o máximo que puder, o mais rápido que conseguir. É impossível que um dia ela chegue ao meu nível. Ela nunca vai conseguir viver a vida de um assassino como eu, porque levaria metade da vida para aprender. É por isso que a Ordem nos recruta tão jovens. É por isso que Niklas e eu fomos levados quando éramos crianças.

Sarai nunca vai ser como eu.

Mas ela tem outros talentos. Tem habilidades que, mesmo depois de tantos anos de treinamento, eu jamais conseguiria superar. A vida de Sarai na fortaleza no México lhe garantiu um conjunto único de habilidades que não se aprendem em uma aula nem se leem em um livro. Ela mente e manipula com maestria. Pode se tornar outra pessoa em dois segundos e enganar uma sala cheia de gente que ninguém mais conseguiria enganar. Consegue fazer um homem acreditar no que ela quiser com muito pouco esforço. E não tem medo da morte. Ela é melhor do que uma simples atriz. Porque ninguém percebe a farsa até que seja tarde demais. Javier Ruiz foi o verdadeiro professor de Sarai. Ele lhe ensinou coisas que eu jamais conseguiria transmitir. Foi seu verdadeiro treinador, ensinando os talentos mortais que agora começam a defini-la como assassina. E, como todos os mestres perversos, Javier Ruiz também foi a primeira vítima de sua aluna favorita.

Assim como foi com as habilidades que Sarai já possui, para aprender a lutar e entender a luta de verdade, ela precisa vivê-la e respirá-la todos os dias. Forçá-la a treinar com Spencer e Jacquelyn é necessário para a sua sobrevivência porque ela precisa aprender o máximo que puder sempre que for possível. Mas são as habilidades que ela já tem que vão transformá-la em um soldado único.

São essas habilidades que nos tornam a dupla perfeita.

Antes disso, contudo, Sarai precisa entender a fundo do que é capaz. E precisa passar pelos testes. Todos eles, até aqueles que podem fazê-la me detestar.

Não tenho dúvidas de que isso vai acontecer. Ela passar nos testes, pelo menos. Se ela vai me detestar, ainda é discutível.

Chegamos a Phoenix logo depois do pôr do sol e somos recebidos à porta da casinha branca por Amelia McKinney, o contato de Fredrik. Ela é uma mulher linda, voluptuosa e com um longo cabelo louro, embora sua característica menos atraente seja seu grande par de peitos de plástico, que com certeza devem lhe dar dor nas costas. E ela usa roupas bem chamativas para uma mulher com doutorado que dá aula no ensino fundamental há cinco anos.

— Olá, Victor Faust — cumprimenta ela, com um tom sedutor, segurando a porta aberta para mim e Sarai. — Ouvi falar muito de você.

— Muito? Interessante.

Com uma das mãos, ela deixa aberta a porta de tela, dá um passo para o lado e acena para entrarmos na casa, sacudindo um monte de pulseiras com pingentes de ouro. Vários anéis enormes enfeitam seus dedos. E ela cheira a sabonete e a pasta de dente.

Coloco minha mão nas costas de Sarai e deixo que ela entre antes de mim.

— Fredrik me falou de você — conta Amelia, fechando a porta. — Mas acho que “muito” é exagero nesse caso, já que ele mesmo não parece saber muita coisa a seu respeito. — Ela gira a mão ao lado do corpo e acrescenta: — Mas imagino que o fato de eu saber tão pouco é o que torna você ainda mais intrigante.

— Nem pense nisso — intervém Sarai, parando nossa pequena fila indiana e se virando para encará-la.

Disciplina, Sarai. Disciplina. Suspiro em silêncio, mas admito que fico de pau duro ao vê-la tão superprotetora com o que lhe pertence.

Amelia levanta as mãos, por sorte em um gesto de resignação e não de desafio.

— Sem problemas, meu anjo. Não tem problema nenhum.

Sarai aceita essa bandeira branca e andamos mais pela casa, onde encontramos Dina Gregory na cozinha, preparando o que parece ser uma ceia de Ação de Graças para umas 15 pessoas.

Sarai corre para os braços abertos de Dina, e começam os sorrisos e as palavras de alívio e empolgação. Ignoro tudo isso por um momento, voltando minha atenção para assuntos mais prementes: o que está ao meu redor e essa mulher que não conheço.

Não confio em ninguém.

Amelia, como muitas mulheres do círculo de Fredrik Gustavsson, não sabe nada sobre a Ordem nem sobre o envolvimento que eu ou Fredrik temos com organizações do tipo. Ela não é o que Samantha, do Abrigo Doze no Texas, era para mim. Não, a relação de Amelia e Fredrik, embora tecnicamente não possa mais ser chamada assim, é muito mais... complicada.

Começo a vasculhar a casa em busca de câmeras e armas, tateando estantes, vasos de plantas, cacarecos e móveis, instalando minha própria parafernália secreta de espionagem no caminho.

— Fredrik disse que você talvez fizesse isso — diz Amelia, atrás de mim, embora eu tenha certeza de que ela não viu o pequeno aparelho que acabo de grudar embaixo da mesinha da TV. Ela ri baixo. — Eu limpei a casa muito bem antes de você chegar. Cadê as suas luvas de borracha? — brinca ela.

Não viro para trás nem paro o que estou fazendo.

— Você recebeu alguma visita desconhecida desde que a sra. Gregory veio para cá? — pergunto, debruçando-me sobre uma mesa ao lado de uma cadeira reclinável e examinando um abajur.

— Uau, você e Fredrik são mesmo os caras mais paranoicos que já conheci. Não. Não que eu lembre. Bom, um vendedor de TV por satélite veio uma vez semana passada, querendo que eu desistisse da TV a cabo. Além dele, ninguém.

Ela se aproxima de mim por trás e abaixa a voz:

— Por quanto tempo essa mulher vai ficar na minha casa? — Noto com a visão periférica que ela olha para a porta da cozinha, para garantir que ninguém consiga ouvi-la além de mim. — Ela é legal e tudo, mas... — Amelia suspira com ar culpado. — Olha, eu tenho 30 anos. Não moro com meus pais desde os 16. Ela está atrapalhando o meu jogo. Eu trouxe um cara aqui semana passada e ele pensou que ela fosse minha mãe. Ficou chato. Não transo desde que ela chegou.

Eu me viro para encará-la.

— E há quanto tempo você conhecia o sujeito que trouxe aqui?

— Hein?

— O homem. Há quanto tempo estava dormindo com ele?

Suas sobrancelhas finas e bem-cuidadas se juntam no meio da testa.

— E isso por acaso é da sua conta? Vai me perguntar em quantas posições a gente trepou também?

— Quanto tempo?

— Conheci o cara em um bar, sábado passado.

— Bem, ele conta como uma visita desconhecida.

Ela quer discutir, mas se contém.

— Ok. Tudo bem. O cara do satélite e o quase peguete do bar. Só eles.

— Antes que eu vá embora, vou precisar do nome desse cara e de qualquer outra informação que você possa me dar sobre ele, incluindo uma descrição detalhada.

Ela balança a cabeça e ri, contrariada.

— Não sei por que aguento essas merdas do Fredrik. — Então Amelia abre uma gavetinha da mesa e tira um bloco de notas e uma caneta.

— Porque você não resiste — observo, mas sem querer ser desagradável. Outra coisa que preciso praticar: ficar de boca fechada quando as mulheres dizem certas coisas que dispensam comentários.

Ofendida, ela arregala os olhos azuis brilhantes. Rabisca alguma coisa na folha, arranca-a do bloco e a enfia na minha mão.

— O que isso significa? — Contudo, antes de me dar a chance de cometer outra gafe, ela muda o tom de voz, chega perto de mim e sussurra de maneira sedutora: — Ei... O que vocês dois têm em comum, afinal?

Sei exatamente sobre o que Amelia está perguntando. Ela especula sobre as minhas preferências sexuais e provavelmente torce para que sejam tão sombrias quanto as de Fredrik. Mas ela está pisando em um território muito perigoso, com Sarai na sala ao lado.

— Não muito — respondo, enfiando no bolso a folha com o nome e a descrição do homem. Então continuo a investigar a casa dela.

— Que pena — comenta Amelia. — Qual é a dele, afinal? Ele fala alguma coisa de mim?

Por favor, pare com isso...

Suspiro e paro na entrada do corredor, olhando-a nos olhos.

— Se você tem perguntas para ou sobre Fredrik, faça o favor de perguntar diretamente a ele.

Amelia joga o cabelo para trás em um gesto orgulhoso e revira os olhos.

— Tudo bem. Só pergunta para o Fredrik quanto tempo mais vou ter que ficar de babá, ok?

Ela passa por mim e se junta a Sarai e à sra. Gregory na cozinha, enquanto aproveito a oportunidade para inspecionar o resto da casa.

Por falar em Fredrik, ele me liga quando estou a caminho do quarto de hóspedes.

— Tenho informações sobre a missão de Nova Orleans — diz ele do outro lado da linha. Ouço trânsito ao fundo. — O contato acha que o alvo voltou para a cidade.

— Por que ela acha isso?

— Ela acha que o viu em frente a um bar perto da Bourbon Street. Claro que ela pode ter imaginado isso, mas acho que a gente deveria investigar. Só por segurança. Se a gente esperar e ele voltar para o Brasil, ou onde quer que ele esteja se escondendo, pode levar mais um ou dois meses antes de termos outra chance.

— Concordo. — Eu me fecho no quarto de hóspedes. — Estou com Sarai na casa da Amelia agora, mas vou terminar as coisas por aqui mais cedo. Vá para Nova Orleans na minha frente e eu encontro você lá amanhã no início da noite. Mas não faça nada.

— Não fazer nada? — pergunta Fredrik, desconfiado. — Se eu encontrar o cara, posso prendê-lo e começar o interrogatório, pelo menos.

— Não, espere a gente. Quero que Sarai faça isso.

Fredrik fica em silêncio por um instante.

— Você não pode estar falando sério, Victor. Ela não está pronta. Pode estragar a missão toda. Ou morrer.

— Não vai acontecer nada disso — rebato com calma e confiança. — E não se preocupe, é você quem vai fazer o interrogatório. Só quero que ela prenda o sujeito.

Sei que há um sorriso macabro no rosto de Fredrik sem precisar vê-lo ou ouvir sua voz. Deixar que ele faça o interrogatório é praticamente o mesmo que dar uma seringa para um viciado em heroína.

— Vejo você em Nova Orleans, então — diz ele.

Desligo, enfio o celular no bolso de trás da calça preta e termino a inspeção da casa antes de ir para a sala e me juntar às mulheres, todas já com pratos de comida no colo.


CAPÍTULO CATORZE

Sarai

— Você deveria fazer um prato — digo para Victor quando ele surge no corredor. — Dina cozinha muito bem. Até melhor do que Marta. Mas não diga a Marta que eu falei isso. — Enfio uma enorme colherada da caçarola de feijão na boca.

Dina, sentada ao meu lado no sofá, aponta para Victor.

— Ela é suspeita. Mas, se você está com fome, é melhor comer antes que acabe.

— Precisamos conversar — anuncia Victor, de pé no meio da sala e bem na frente da TV.

Não gosto do tom dele.

— Tudo bem — digo, desencostando do sofá e deixando o prato na mesinha de centro. — Sobre o quê?

Victor olha de relance para Amelia. Ela está sentada na poltrona à minha frente, pegando um pedaço de pão de milho. Tenho a sensação de que Victor não quer que ela ouça a conversa.

— Amelia — diz Victor, enfiando a mão no bolso de trás da calça e pegando a carteira de couro —, preciso que você saia um pouco de casa. — Ele mexe na carteira, tira um pequeno maço de notas de 100 dólares e o deixa na mesa diante dela. — Se você não se importar.

Amelia olha para o dinheiro, apoia o garfo no prato e conta as cédulas.

— Sem problemas — concorda ela, com um sorriso satisfeito. Então se levanta, pega o prato e a lata de refrigerante e desaparece na cozinha.

Ouço o garfo raspando os restos de comida do prato para o lixo e a cerâmica tilintando no fundo da pia. Amelia passa por nós e segue até o corredor.

— Mas preciso que você saia agora mesmo — reitera Victor. — Não precisa trocar de roupa nem se arrumar.

— Posso pelo menos calçar a droga de um sapato? — pergunta ela, ríspida.

— Claro — responde Victor, assentindo. — Mas, por favor, não demore.

Amelia vai até o fim do corredor, resmungando irritada. Minutos depois, ela liga o carro e vai embora.

Victor olha para mim e para Dina.

— Não podemos ficar tanto tempo quanto o planejado — informa ele.

Dina também larga o prato e suspira com tristeza.

— Por que não? — pergunto.

— Surgiu um problema.

Olho para o meu prato, e o brilho metálico do garfo perde foco à medida que mergulho em pensamentos. Achei que teria tempo para encontrar a forma certa de contar para Dina tudo o que eu planejava contar. Agora estou desesperada tentando imaginar como começar a primeira frase.

— Dina — digo, respirando fundo. Eu me viro de lado para encará-la. — Eu matei um cara, meses atrás. — O rosto de Dina parece ficar rígido. — Foi em legítima defesa. Eu, hum... — Olho para Victor. Ele assente de leve, me motivando a continuar e garantindo que está tudo bem, embora eu saiba que ele não concorda cem por cento com o que estou fazendo. — Aliás, também matei um cara em Los Angeles na noite em que Dahlia e Eric foram encontrados mortos.

Dina ergue a mão enrugada e cobre a boca.

— Ah, Sarai... Você... o que você está...

— Dahlia e Eric foram assassinados por minha causa — interrompo, porque é evidente que ela não sabe o que dizer. — Não só a polícia de Los Angeles está atrás de mim para me interrogar, já que eu estava com eles, mas também os homens que mataram os dois estão na minha cola. É por isso que você está aqui.

— Meu Deus do céu. — Dina balança a cabeça sem parar, tira os dedos da boca e aperta os olhos cheios de pés de galinha em uma expressão preocupada.

Seguro a mão dela, que é fria e macia.

— Tem muita coisa que você não sabe. Onde eu estava de fato durante os nove anos em que minha mãe e eu ficamos desaparecidas. O que realmente aconteceu comigo. E com minha mãe. E eu não levei um tiro de um ex-namorado daquela vez em que Victor levou você para o hospital em Los Angeles. Eu levei um tiro de... — Olho para Victor de novo, mas decido por mim mesma não revelar essa informação. Ela não precisa saber de Niklas nem no que Victor e ele estão envolvidos. — Foi outra pessoa que atirou em mim. É uma história muito longa que você vai saber um dia, mas por enquanto só quero que você saiba a verdade sobre mim. — Passo os dedos com carinho nas costas da mão dela. — Você é a única mãe de verdade que eu tive. Fez tanta coisa por mim, sempre me apoiou, e eu devo essa honestidade a você.

Dina segura minha mão entre as dela.

— O que aconteceu com você, menina? — pergunta, com tanta dor e preocupação na voz que sinto um nó na garganta.

Começo a contar tudo, tanto quanto posso sem revelar qualquer informação sobre Victor e Niklas. Conto sobre o México e sobre as coisas que vi e vivi por lá. Conto sobre Lydia e sobre não conseguir salvá-la, apesar de ter lutado tanto. Omito sobretudo as relações sexuais que eu tinha com o cara que me mantinha presa, Javier Ruiz, um chefão mexicano do tráfico de drogas, armas e escravas, e só digo que eu estava lá contra a minha vontade e fui obrigada a fazer coisas que não queria. Dina cai no choro e me abraça forte, me balançando apertada contra o peito, como se eu é que estivesse chorando e precisasse de um ombro amigo. Ao menos dessa vez, contudo, não estou chorando. Só me sinto péssima por ter que contar tudo isso a ela, pois sei que isso a magoa muito.

Minutos depois, quando termino de contar tudo o que posso, Dina está sentada na beira do sofá, parecendo ligeiramente em choque. Mas ela está mais preocupada do que qualquer outra coisa.

Ela olha para Victor.

— Quanto tempo vou precisar ficar aqui? Gostaria muito de ir para casa. E quero levar Sarai.

— Isso não é uma boa ideia — argumenta Victor. — E quanto a Sarai, ela vai ter que ficar comigo. Por tempo indeterminado.

Engulo em seco ao ouvir as palavras dele, sabendo que Dina não vai aceitar isso.

— Então... Mas então o que isso significa? — pergunta ela, nervosa, voltando sua atenção somente para mim. — Sarai, você nunca mais vai voltar para casa?

Balanço a cabeça, cheia de culpa.

— Não, Dina, eu não posso. Preciso ficar com Victor. Estou mais segura com ele. E você está mais segura sem mim.

Dina balança a cabeça com ar solene.

— Você vai me visitar?

— Claro que vou. — Aperto a mão dela com delicadeza. — Eu nunca abandonaria você para sempre.

— Entendo — afirma ela, esforçando-se para aceitar.

Dina se volta para Victor.

— Mas eu não posso ficar na casa dessa mulher. Se você só me trouxe para cá para me proteger, prefiro voltar para casa. Não tenho medo desses homens. — Ela fica de pé e olha para mim. — Sarai, querida, eu nunca contaria nada para a polícia. Espero que acredite nisso.

Também me levanto.

— Sim, Dina, eu sei que você não contaria. O motivo para você estar aqui não tem nada a ver com a minha confiança em você. Trouxemos você para cá porque queremos que fique segura. Se alguma coisa acontecesse com você, principalmente por minha causa, eu jamais me perdoaria. Você é tudo o que me resta. Você e Victor. Você é minha família e eu não posso perdê-la.

— Mas eu não posso ficar aqui, querida. Já fiquei tempo demais. Amelia é gentil comigo, mas aqui não é a minha casa, e não quero ficar mais tempo do que ela quer que eu fique. Sinto como se minha presença fosse um fardo. Sinto falta das minhas plantas e da minha caneca de café favorita.

— Sra. Gregory — intervém Victor, impaciente, mas ainda respeitando os sentimentos dela. Ela se vira, mas ele faz uma pausa como se refletisse sobre algo. — Sarai não vai ficar segura se tiver que se preocupar com a sua segurança. Estou dizendo desde já: se a senhora voltar para casa, eles vão encontrar e matar a senhora assim que a virem, ou pior, vão sequestrá-la, torturá-la, gravar tudo em vídeo e usar as imagens para atingir Sarai. Entende o que estou dizendo?

A expressão grave e determinada de Dina desmorona sob um véu de sofrimento e resignação. Ela se vira para mim, com o semblante distorcido pela dor. Talvez esteja me pedindo uma confirmação das palavras de Victor, esperando que eu suavize a situação, que eu diga que ele só está sendo dramático. Mas não posso fazer isso. O que ele disse, embora brutal e sem rodeios, é exatamente o que ela precisa ouvir.

— Ele tem razão. Olhe, a gente vai dar um jeito nesses caras logo, tudo bem? Só preciso que você fique quietinha por mais um tempo, até a gente conseguir fazer isso.

— Mas concordo com a senhora — pondera Victor —, acho que não deve mais ficar aqui.

Dina e eu olhamos para ele ao mesmo tempo.

Victor continua:

— Quando estamos nos escondendo e ficamos tempo demais no mesmo lugar, com certeza somos encontrados.

— Então aonde ela deve ir? — pergunto, com várias possibilidades girando na cabeça, nenhuma das quais parece plausível. — Não me diga que quer levar Dina com a gente. Por mais que eu fosse adorar...

— Não, ela não pode ir com a gente — concorda Victor —, mas posso arranjar uma casa só para ela. Já fiz isso antes.

Afinal, Victor providenciou a casa em Lake Havasu City para mim e Dina.

— Mas você não disse que surgiu um problema e que a gente precisa ir embora antes do planejado? Não dá tempo de encontrar outra casa para ela. Isso levaria dias.

— Eu tenho uma casa — afirma Victor. — Fica longe do Arizona, mas acho que seria melhor para a senhora não ficar aqui por enquanto. O contato de Fredrik, o mesmo sujeito que trouxe a senhora para cá, pode levá-la a esse lugar. Está disposta a se mudar?

Dina se reclina no sofá, apertando as mãos uma na outra e as enfiando entre as pernas, vestidas em uma calça bege.

Eu me sento ao lado dela.

— Por favor, faça isso — peço a ela. — Vou me sentir muito melhor sabendo que você está segura.

Dina fica em silêncio por um longo momento, mas finalmente aceita.

— Estou velha demais para tanta emoção, mas tudo bem, eu vou. Só faço isso por você, Sarai.

Eu me inclino e a abraço.

— Eu sei, e é por isso que eu amo você.

— Onde fica a casa? — pergunto depois que deixamos Dina na casa de Amelia e pegamos a estrada. Ele não quis dizer antes a localização em voz alta, provavelmente porque não confiava no ambiente.

— Em Tulsa — responde Victor. — Tenho algumas casas espalhadas por aí, essa é uma delas. Nada luxuoso como a casa de Santa Fé, mas dá para morar nela, é aconchegante, e só a gente sabe que ela existe.

— Quem é esse contato de Fredrik, afinal?

— Ele não faz parte da Ordem, se é o que você quer saber. É só alguém que Fredrik conhece, um pouco como Amelia.

— Se não fazem parte da Ordem, quem eles são?

Victor me lança um olhar do banco do motorista.

— Amelia é só uma espécie de ex-namorada de Fredrik. Como os abrigos administrados pela Ordem, a casa de Amelia tem a mesma função. Mas temos muito menos preocupações em relação a ela, que nem sabe o que é a Ordem. Só o que ela tem é uma obsessão doentia por Fredrik e faz qualquer coisa que ele pedir.

— Ah, entendo — digo, embora não saiba direito se entendi. — Ela parece pegajosa.

— Pode-se dizer que sim.

— E o cara? Aquele que vai levar Dina até Tulsa?

Victor olha para a estrada, com uma das mãos relaxada na parte de baixo do volante.

— Ele é um dos nossos funcionários, na verdade. Um dentre uns vinte contatos que recrutamos desde que eu saí da Ordem. Nenhum deles sabe mais do que o necessário. Fredrik ou eu damos uma ordem, e, como em um emprego qualquer, eles obedecem. Claro que trabalhar com a gente é bem diferente de qualquer outro emprego, mas você entendeu.

— Eles não sabem o risco que correm por se envolver com você e Fredrik? E como vocês fazem para eles seguirem as ordens de vocês? O que eles fazem exatamente, além de levar Dina para um lugar qualquer, assim, do nada?

— Você está cheia de perguntas. — Victor sorri para mim. Uma carreta passa em disparada no sentido oposto, cegando-nos com os faróis altos. — Eles sabem do perigo, até certo ponto. Sabem que estão trabalhando para uma organização particular e são proibidos de falar sobre ela, mas nenhum dos nossos recrutas desconhece a discrição e a disciplina. Alguns são ex-militares, e todos foram escolhidos a dedo por mim. Depois de uma verificação completa do passado deles, é claro. — Victor faz uma pausa e acrescenta: — E eles fazem tudo o que pedimos, mas, para não metê-los em encrenca e proteger nossa operação, costumamos só pagar por tarefas simples. Vigilância. Compra de imóveis, veículos. E levar a sra. Gregory para um lugar qualquer, assim, do nada. — Victor sorri para mim de novo. — Como garantimos que eles sigam nossas ordens? O dinheiro é uma maneira formidável de influenciar pessoas. Eles são bem remunerados.

Apoio a cabeça no banco e tento esticar as pernas no chão do carro, já temendo a viagem longa.

— Um dos nossos homens estava no restaurante de Hamburg na noite em que eu encontrei você.

Tão depressa quanto apoiei a cabeça, levanto-a de novo e olho para Victor, em busca de mais explicações.

— A sra. Gregory só me ligou depois que você foi para Los Angeles — esclarece ele. — Eu estava no Brasil em uma missão, ainda procurando meu alvo depois de duas semanas. Fui embora assim que recebi a ligação da sra. Gregory, mas sabia que provavelmente não encontraria você a tempo, então entrei em contato com dois dos nossos homens que estavam em Los Angeles, dei a eles a sua descrição e alertei para que vigiassem o restaurante e a mansão de Hamburg. Eu sabia que você iria para um dos dois lugares.

Eu me lembro do homem atrás do restaurante depois que matei o segurança. O homem que misteriosamente me deixou fugir.

— Eu vi o cara. Fugi pela saída dos fundos e ele estava lá. Pensei que ele fosse um dos homens de Hamburg.

— Ele é — rebate Victor.

Pisco, atordoada.

— Ele e o outro homem foram dois dos meus primeiros recrutas. Los Angeles era a minha prioridade quando tudo isso começou.

— Você sabia que eu iria para lá.

Embora eu não queira tirar conclusões precipitadas e parecer iludida, sei que é verdade. Meu coração começa a bater como um punho quente. Saber a verdade, saber que Victor estava, durante todo aquele tempo, pensando em mim mais do que eu jamais poderia imaginar me deixa feliz e culpada. Culpada porque o acusei de me abandonar.

— Eu esperava que você esquecesse essa história. Mas, no fundo, sabia que você voltaria lá.

Ficamos em silêncio por um instante.

— Ele está bem? — pergunto, sobre o homem nos fundos do restaurante.

Victor assente.

— Está ótimo. Ele tinha sido contratado por Hamburg meses antes. Conhecia a planta do restaurante e sabia que a única saída alternativa da sala de Hamburg no andar de cima era a dos fundos. A propósito, ele quer pedir desculpa.

— Como assim? Ele me ajudou a fugir.

— A ordem que eu dei a ele foi para não deixar de jeito nenhum que você entrasse naquela sala. Foi a peruca platinada. Ele sabia que você tem cabelo castanho-avermelhado e comprido, não curto e louro. Quando ele se deu conta de quem era, Stephens já estava levando você. Ele não podia entrar porque a sala estava sendo vigiada, por isso foi até os fundos do restaurante, torcendo para conseguir entrar por ali de alguma forma, mas havia outros dois homens de guarda. Eles puxaram conversa e o seguraram ali, até que por fim ele os convenceu a deixá-lo vigiar o lugar sozinho. Logo depois, você saiu pela porta dos fundos.

Respiro fundo e apoio a cabeça no banco de novo.

— Bom, diga a ele que não precisa pedir desculpa. Mas por que ele não me disse logo quem era? Ou não me levou até você?

— Ele precisava segurar o Stephens tempo suficiente para você conseguir fugir, e o fato de ele continuar trabalhando para Hamburg ajuda. Ele não sabe o que os dois planejam nem coisa alguma sobre as operações. É só um segurança, nada além disso. Mas está lá dentro, e isso já é valioso para a gente.

Desafivelo meu cinto de segurança e me esgueiro entre os bancos da frente com a bunda empinada (de um jeito bem deselegante para uma dama, admito) para alcançar o banco de trás. Flagro Victor admirando a cena enquanto me espremo para passar, e isso me faz corar.

— Só tenho mais uma pergunta a acrescentar à lista.

— O que seria? — pergunta ele, zombando de mim.

— Por quanto tempo a gente vai ter que viajar assim? — Estico as pernas no banco de trás e me deito. — Sinto muita falta dos jatinhos particulares. Essas viagens longas de carro vão acabar me matando.

Victor ri. Acho isso incrivelmente sexy.

— Você está dormindo com um assassino, fugindo todo dia de homens que querem matar você e acha que vai morrer por falta de conforto. — Ele ri de novo, e isso me faz sorrir.

— É, acho — digo, me sentindo só um pouco ridícula. Não posso negar a realidade, afinal, por mais sem sentido que ela seja.

— Não vai ser por muito mais tempo — responde Victor. — Não podemos chamar atenção até que eu consiga me livrar completamente de Vonnegut. Ele tem contatos em muitas áreas, e transportes luxuosos, confortáveis e secretos estão no topo de sua lista de prioridades, por motivos óbvios. Dou menos na vista viajando de trem do que de jatinho particular.

Satisfeita com a resposta, não digo mais nada sobre o assunto e olho para cima, para o teto escuro do carro.

— Só para constar — digo, mudando de assunto —, eu não estou só dormindo com um assassino. Estou muito envolvida com ele.

— É mesmo? — pergunta Victor, e sei que ele está sorrindo.

— Sim, temo que seja verdade — digo, em tom de brincadeira, como se fosse algo ruim. — E é um envolvimento bem pouco saudável.

— É mesmo? Por que você acha isso?

Suspiro, dramática.

— Ah, sei lá. Talvez porque ele nunca vai conseguir se livrar de mim.

— Pegajosa. Como Amelia — provoca Victor, tentando me irritar.

E ele consegue. Eu me levanto um pouco e dou um soco de leve em seu ombro. Ele se encolhe, fingindo dor, mesmo com um sorriso largo no rosto.

— Longe disso — digo, e volto a me deitar. — Nem ferrando que eu vou fazer tudo o que ele quer, como a Amelia.

Victor ri baixinho.

— Bem, pelo jeito ele vai ter que aguentar você para sempre, então.

— Vai, e para sempre é muito tempo.

Ele faz uma pausa e então diz:

— Bom, só para constar, algo me diz que ele não gostaria que fosse diferente.

Adormeço no banco de trás muito tempo depois, com um sorriso no rosto que pareceu continuar ali pelo resto da noite.


CONTINUA

CAPÍTULO NOVE

Sarai

Estou mordendo o lábio por dois motivos: porque estou torcendo para que seja uma boa notícia e porque estou sexualmente frustrada. Victor fala com Fredrik por menos de dois minutos, desliga e digita outro número. Quando consegue falar com Dina, ele me passa o celular.

Pego o aparelho e o encosto no ouvido.

— Dina?

— Sarai, meu Deus, onde você está? O que está acontecendo? Eu estava sentada na sala vendo TV e um homem bateu na porta. Eu não ia deixar ele entrar, fiquei desconfiada na hora; estava quase pegando minha espingarda. Mas ele disse que queria falar de você. Ah, Sarai, fiquei com tanto medo de que tivesse acontecido alguma coisa! — Ela finalmente respira.

— Você está bem? — pergunto, baixinho.

— Sim, sim, estou ótima. O melhor que eu poderia estar. Mas ele me falou que iríamos para a delegacia encontrar você. Até me mostrou um distintivo. Não acredito que caí nessa. O cavalheiro mentiu para mim. — Dina para de falar e abaixa a voz, como se estivesse sussurrando para ninguém ouvir. — Ele me levou para a casa de uma prostituta. O que está acontecendo? Sarai...

— Vai ficar tudo bem, Dina, prometo. E não se preocupe. Seja lá quem more nessa casa, duvido que seja uma prostituta.

Os olhos de Victor cruzam com os meus. Desvio o olhar.

— Onde você está? Quando vai voltar? Sei que você está metida em alguma encrenca, mas sempre pode me contar tudo.

Gostaria que isso fosse verdade. Mais do que tudo, neste momento. Mas a verdade maior é que não sei como responder às perguntas de Dina. Victor deve ter percebido a fisionomia confusa no meu rosto, porque tirou o telefone da minha mão.

— Sra. Gregory — diz ele ao telefone. — Aqui é Victor Faust. Preciso que a senhora me ouça com bastante atenção. — Ele espera alguns segundos e continua. — A senhora vai precisar ficar onde está pelos próximos dias. Vou levar Sarai para vê-la em breve, e vamos explicar tudo, mas, até lá, precisa ficar escondida. Não, sinto muito, mas a senhora não pode voltar... Não, não é seguro lá. — Ele assente algumas vezes, e percebo, pelas leves rugas que se formam entre seus olhos, que ele não se sente à vontade falando com ela, como se alguém colocasse de repente um bebê no colo dele. — Sim... Não, me escute. — Ele perde a paciência, então vai direto ao assunto. — É uma questão de vida ou morte. Se a senhora sair ou ligar para qualquer conhecido, vai acabar morrendo.

Tenho um sobressalto e me encolho com essas palavras, não por serem verdade (isso eu já sabia), mas porque fico imaginando a reação de Dina a elas. Só posso imaginar o que ela deve estar pensando nesse momento, como deve estar apavorada. Apavorada por mim, não por si mesma, e isso faz doer ainda mais.

— Sim, ela está bem — afirma Victor mais uma vez para tranquilizá-la. — Só mais alguns dias. Eu vou levar Sarai aí.

Falo com Dina por mais alguns minutos, contando o que posso, mas sem revelar demais, para acalmá-la. Claro que isso não está ajudando muito, considerando as circunstâncias. Nós desligamos e eu fico ali na sala, me sentindo muito diferente de como me sentia antes da ligação.

Acho que enfim caiu a ficha do tamanho da merda que fiz.

Antes, quando achava que era eu quem corria o maior perigo, e depois que disse para Eric e Dahlia saírem de Los Angeles, eu estava preocupada, mas não tanto assim. Os danos que causei afetam mais do que minha própria segurança. Sem querer, pus todas as pessoas que conheço e amo em perigo.

A realidade de tudo isso, dos meus atos e das consequências em efeito dominó, o fato de Victor ter me deixado, de eu ter tentado levar uma vida normal e fracassado; não consigo mais. Não suporto mais nada disso. Cacete, até a dorzinha por ter encontrado Dahlia com Eric está começando a me incomodar. Não por causa de Eric, ou porque ele era meu “namorado”, mas porque o que eles fizeram não me afetou como deveria ter afetado.

Sou uma aberração. E, no momento, não consigo perdoar Victor por me fazer passar por essa situação, por me jogar em uma vida que nós dois sabíamos que não serviria para mim e por esperar que eu me adaptasse. Eu não queria desde o começo. E foi exatamente por isso que não deu certo.

As lágrimas começam a inundar meus olhos. Deixo que caiam. Não me importa.

Sinto a presença de Victor atrás de mim, mas antes que ele me toque me viro para encará-lo com a raiva distorcendo meu rosto. E enfim certas coisas que eu queria dizer a ele depois de todo esse tempo saem, em uma tempestade de palavras furiosas.

— Você me abandonou, porra! — Bato com as palmas das mãos em sua camisa social justa. — Você deveria ter me matado e pronto! Você consegue imaginar o que me fez passar?! — Lágrimas cheias de raiva escorrem dos cantos dos meus olhos.

— Me desculpe...

Franzo a testa na mesma hora.

— Você quer se desculpar? — Solto o ar ruidosamente. — É só isso que você consegue dizer? Me desculpe?

No fundo, sei que nada disso é culpa de Victor, sei que ele só fez o que fez para me proteger. Mas a maior parte de mim, a parte que não quer acreditar que eu não tenho mais salvação, quer pôr a culpa em qualquer um, menos em mim mesma.

As lágrimas começam a me fazer engasgar.

— Toda santa noite — disparo, apontando com raiva para o chão, meu rosto retorcido de raiva e rancor —, todas as horas de todos os dias, eu pensava em você. Só em você, Victor. Eu vivia cada dia com esperança, acreditando de coração que você ia voltar para mim. Os dias passavam e você não aparecia, mas nunca perdi a esperança. Eu pensava comigo mesma: Sarai, ele está vigiando você. Ele está testando você. Ele quer que você faça o que ele disse, que tente ser como todo mundo, que tente se misturar. Quer que você prove para ele que é forte o suficiente para enfrentar qualquer situação, se adaptar a qualquer estilo de vida. Porque, se você não consegue fazer algo tão simples quanto levar uma vida normal, nunca vai conseguir viver com ele. — Mordo o lábio inferior e tento sufocar as lágrimas. Balanço a cabeça devagar. — Isso era o que eu pensava. Mas fui idiota por achar que você tinha alguma intenção de voltar para mim. — Um tremor induzido pelo choro percorre meu peito.

Victor, com o semblante angustiado que nunca imaginei ver nele, se aproxima. Recuo, balançando a cabeça sem parar, esperando que ele entenda que não estou pronta para ficar muito perto. Quero ficar sozinha com a minha dor.

— Sarai? — diz ele, baixinho.

— Não — digo, recusando-o com um gesto. — P-por favor, me poupe das desculpas e dos motivos pelos quais sei que não posso culpar você. Eu sou egoísta, ok? Eu sei! Já sei que você fez o que precisava fazer. Já sei...

— Não, não sabe.

Levanto os olhos para encontrar os dele.

Victor se aproxima. Desta vez não me afasto, minha mente está paralisada por suas palavras, por mais escassas ou vagas que elas sejam. Ele segura meus cotovelos e descruza minhas mãos. Seus dedos roçam de leve a pele sensível da parte interior dos meus braços, descem até encontrarem minhas mãos e as seguram.

— Eu saí da Ordem principalmente por causa de você, Sarai — explica Victor, e o resto do meu corpo fica paralisado. — Quando Vonnegut descobriu que eu estava ajudando você, ele soube... — Ele faz uma pausa, parecendo estar vasculhando sua mente à procura das palavras menos perigosas. — Ele soube que eu me comprometi...

Jogo as mãos para cima.

— Fale inglês! Por favor, diga de uma vez sem se esforçar tanto para fazer rodeios! Por favor!

— Vonnegut soube que eu tinha... começado a gostar de você.

Fico paralisada e meus lábios se fecham. Meu coração bate descompassado. Minhas lágrimas parecem secar em um instante, só as que molham minhas bochechas continuam escorrendo.

— Como eu era o Número Um de Vonnegut, seu “favorito”, a última coisa que ele queria era mandar me matar. Ele me afastou do serviço, me desligou por um tempo, até... que eu criasse juízo.

Faço uma cara de “que-droga-isso-significa”.

— Pode chamar de lavagem cerebral — acrescenta Victor.

Ele afasta a ideia com um gesto.

— Não importa. O que importa é que ele ia me dar uma única chance de provar que o meu sentimento por você era só um lapso, e que nunca mais iria acontecer. Pouquíssimos agentes têm uma segunda chance na Ordem.

— Um lapso? — Eu me sento na mesinha de centro. Olho para Victor e digo: — Para mim, parece que Vonnegut queria que você provasse que não é humano, mas sim o soldado obediente a ele, incapaz de ter emoções. Que babaca desequilibrado.

Victor assente e se agacha diante de mim, entrelaçando os dedos, com os cotovelos apoiados nas coxas.

— Vonnegut mandou que eu matasse você — conta ele em voz baixa, sustentando o meu olhar. — Para provar a mim mesmo. Eu disse que ia fazer isso, que queria fazer, provar que eu era digno de confiança, e ele me soltou. Claro que eu não tinha nenhuma intenção de matar você. Parti naquele dia e procurei um esconderijo. Niklas, que só conheceu a Ordem a vida inteira, decidiu ficar. Pensei que talvez ele só precisasse de um tempo para entender o que estava acontecendo e decidir o que era melhor para ele. Eu também estava me escondendo de Niklas. Sem saber onde eu estava, ele não precisaria enganar Vonnegut nem achar que precisava escolher entre mim e ele. Mas aí Fredrik me contou que Niklas foi contratado para me matar e está me procurando desde então.

— Que desgraçado — comento, balançando a cabeça sem acreditar, mas depois penso de novo. — Você disse que saiu da Ordem principalmente por minha causa. Além de mim, qual foi o outro motivo?

— Isso já estava para acontecer havia muito tempo — conta Victor. — Quando precisei matar meu pai para salvar meu irmão, entendi que era hora de sair. — Seus dedos fortes acariciam os meus, mais delicados. — Você me deu a motivação final de que eu precisava para fazer isso de uma vez.

Com a ponta dos dedos, acaricio seu rosto com a barba um pouco por fazer. Victor continua a me encarar, seus olhos sondando os meus através do pequeno espaço entre nós, cheios de paixão e compreensão. Eu me curvo e beijo seus lábios.

— Eu sinto muito pelo seu irmão — digo, baixinho.

Ele roça os lábios nos meus, e a sensação se espalha pelo meu corpo até os dedos dos pés, como uma dose de uísque.

— Eu não estava testando você, Sarai. — Ele me beija de novo.

— Então o que você estava fazendo? — Eu o beijo também e derreto ao sentir suas mãos se movendo por minhas coxas.

Victor me ergue nos braços, envolvendo minhas pernas em sua cintura, minha bunda acomodada nas palmas de suas mãos enormes. Meus dedos sobem pelos lados de seu rosto e tocam sua boca antes que meus lábios toquem também.

— Eu estava esperando o momento certo — diz ele enquanto sua boca encontra meu pescoço.

Enfio os dedos em seu cabelo castanho curto, erguendo o queixo ao sentir sua boca explorando meu pescoço e meu maxilar. Meus olhos estão fechados, as pálpebras pesadas, e sinto um formigamento quente ao qual sei que não dá para resistir. Victor me carrega pela sala, embora eu não saiba para onde nem me importe com isso. Aperto mais as pernas nuas ao redor de sua cintura, sentindo a superfície fria e lisa de seu cinto de couro pressionando o interior das minhas coxas. Meus dedos estão trabalhando nos botões de sua camisa, abrindo-os com facilidade.

Victor não responde às minhas perguntas, mas isso também não me importa.

Os lábios dele cobrem os meus, a umidade quente de sua língua se entrelaçando avidamente com a minha. Sem parar de me beijar, Victor me faz apoiar os pés no chão para tirar minha calcinha, uma perna de cada vez. Ele ergue meus braços e tira minha camiseta, jogando-a no chão. Minhas mãos mexem no cinto dele, movendo a lingueta do buraco e puxando a tira de couro de uma só vez em um movimento rápido. Ele tira a calça e a cueca boxer preta. Minha boca recebe seu hálito quente e ofegante enquanto ele me carrega mais uma vez e pressiona minhas costas na parede, como se não quisesse esperar para chegarmos ao quarto de hóspedes. Também não quero esperar. Já esperamos demais.

Sinto seu pau entrando em mim, e, antes que ele deslize até o fundo, uma descarga de prazer corre pelas minhas coxas e sobe pela coluna, relaxando meu pescoço e fazendo minha cabeça se apoiar na parede. Sinto meus olhos formigando e ardendo. A umidade morna entre minhas pernas é inundada por um êxtase quente e trêmulo.

Ele mete uma vez bem fundo e se mantém ali, segurando meus quadris, com minhas costas pressionadas contra a parede fria. Abro os olhos devagar, ainda sem controlar direito as pálpebras, e o encaro. Ele me fita com a mesma intensidade voraz. Minha respiração é curta e irregular quando escapa dos meus lábios entreabertos. Meus braços estão ao redor dele, em um abraço apertado, meus dedos cravados nos músculos rijos de suas costas.

— Eu queria isso há tanto tempo — digo, ofegante.

— Você não faz ideia... — rebate Victor, para então me devorar com um beijo, tão violento que quase perco o controle dos meus músculos.

Minhas coxas se contraem em sua cintura quando ele mete seu pau em mim de novo. Estremeço e gemo, minha cabeça bate com força na parede. Ele segura meu corpo no lugar com os braços encaixados nas minhas coxas, forçando seu quadril contra o meu, e eu sinto pequenas explosões no estômago a cada investida.

Minhas costas se arqueiam, meus seios ficam expostos a ele, que cobre um mamilo com a boca. Ergo os braços acima da cabeça, procurando alguma coisa onde eu possa me segurar para cavalgá-lo, mas não encontro nada. Envolvo seu pescoço com os braços para sustentar meu peso e rebolo em sua virilha, gritando e gemendo, desesperada para mergulhar cada centímetro do seu pau duro tão fundo quanto possível. Seus dedos afundam dolorosamente nas minhas costas. Sua língua se enrosca na minha, seus gemidos atravessam meu corpo.

Gozo rápido e forte, minhas pernas e o ponto entre elas se contraindo ao redor dele, meus músculos tremendo. Ele goza segundos depois e segura meu corpo bem firme no lugar, com minha bunda em suas mãos musculosas, para se esvaziar dentro de mim.

Nesse momento, não estou nem aí para as consequências do que acaba de acontecer. Mas só nesse momento.

Com a cabeça apoiada no ombro dele, Victor me carrega pelo corredor até o banheiro espaçoso em frente ao quarto de hóspedes. Ele me senta na bancada e fica de pé no meio de minhas pernas nuas.

— Não se preocupe. — Ele dá um beijo na minha testa e abre a porta de vidro do boxe do chuveiro.

— Com o quê? — pergunto, confusa.

Ele gira a torneira, que range, e regula a água quente e a fria até encontrar a temperatura desejada. Eu o observo da bancada, o modo como seu corpo alto e escultural se move, as curvas de seus músculos entalhadas em um desenho poético ao redor de seus quadris, suas panturrilhas enrijecendo quando ele anda.

Ele volta para perto de mim e termino de tirar sua camisa, deslizando-a por seus braços musculosos.

— Você não vai engravidar — diz ele, e me manda descer da bancada e segui-lo até o chuveiro. — Não de mim, pelo menos.

Um pouco surpresa, deixo por isso mesmo.

Ele fecha a porta do boxe e começa a lavar meu cabelo. Eu me perco naquela proximidade, no modo como suas mãos exploram meu corpo com tanta precisão e desejo.

Por muito tempo, esqueço que ele é um assassino cujas mãos tiraram muitas vidas sem sequer um pensamento de remorso ou arrependimento. Esqueço que também sou uma matadora cujas mãos tiraram uma vida há poucas horas.

Parece que fomos feitos um para o outro, como duas peças de um quebra-cabeça que de início parecem não se encaixar, mas que se adaptam perfeitamente quando vistas pelo mais improvável dos ângulos.


CAPÍTULO DEZ

Victor

A empregada de Fredrik volta para a casa bem cedo na manhã seguinte. Acordo assim que amanhece, e ela entra em casa quando estou tomando meu café no pátio dos fundos. Ela me vê através da porta de vidro ao passar pela sala, e então vem falar comigo no pátio.

— Gostaria de café da manhã, señor? — pergunta ela em espanhol.

Deixo a pasta com meu próximo serviço virada para baixo na mesinha de ferro batido.

— Obrigado, mas não vou comer — respondo, e depois aceno para Sarai, que está andando pela sala, procurando por mim. — Mas ela vai.

— Eu vou o quê? — pergunta Sarai ao passar pela porta de vidro aberta. Ela anda descalça pelo pátio de pedra, usando outra camiseta de Fredrik. Fico muito incomodado por ela ter que usar roupas dele em vez das minhas, mas a única roupa que tenho é a que estou usando, além de um short largo de corrida. O cabelo longo e castanho de Sarai está despenteado, pois ela acaba de acordar e sair da cama.

Ela se senta no meu colo e eu encaixo a mão direita entre suas coxas.

— Café da manhã.

Sarai boceja e estica os braços para o alto antes de apoiar a cabeça no meu ombro. Ponho a mão esquerda em sua cintura para mantê-la equilibrada no meu colo. O cheiro da pele e do cabelo recém-lavados de Sarai acelera meu corpo todo.

Ela faz uma careta sutil, meio que rejeitando a ideia.

— É melhor você comer.

Levantando a cabeça do meu ombro, Sarai olha para mim por um momento, pensativa, e depois dirige sua atenção para a empregada.

— Claro, eu gostaria de tomar café da manhã, se não for incômodo — diz, em espanhol.

Por um momento, a empregada parece surpresa por ouvir Sarai falando seu idioma nativo, mas ela logo se recompõe, assente e volta para dentro da casa.

— Acho que a gente já adiou essa questão o suficiente — diz Sarai. — Para onde é que vamos, Victor? O que eu vou fazer?

Estou pensando exatamente nisso desde que descobri que ela veio para Los Angeles e fez o que fez. Olho para a piscina, perdido em pensamentos, minha última tentativa desesperada de organizar as respostas na cabeça. Mas elas continuam tão fragmentadas e bagunçadas quanto sempre estiveram. Todas, menos uma.

— Sarai — digo, olhando novamente para ela —, você não pode voltar para casa. Eu sabia disso na primeira vez em que mandei você para o Arizona. A situação não estava nem de longe tão terrível quanto ficou depois, mas, agora que as coisas mudaram, você não pode mais voltar.

— Então vou ficar com você — rebate ela. Pela primeira vez na vida, não tenho coragem de protestar. Nem contra ela nem contra mim mesmo. A maior parte de mim, a parte humana e imperfeita, quer que Sarai fique comigo, e nada vai me impedir de fazer isso dar certo.

Mas sei que não vai ser fácil.

— Sim — digo, passando a mão em sua coxa macia —, você vai ficar comigo, mas há muitas coisas que precisa entender.

Ela se levanta do meu colo e fica de pé na minha frente, com um braço na frente do corpo e o outro cotovelo apoiado nele. Distraída, ela passa as pontas dos dedos no rosto macio, fitando o que parece ser o nada. Então ela me olha e balança a cabeça com uma expressão perplexa.

— Eu esperava que você fosse resistir mais. Qual é a pegadinha? A despeito do que aconteceu entre a gente ontem à noite, ou do que está acontecendo desde que nos separamos, nunca pensei que você fosse concordar em me levar junto.

— Você gostaria que eu resistisse? — Abro um sorriso capcioso.

Ela sorri também e deixa os braços relaxarem.

— Não. Com certeza não. E-eu só...

Levanto uma perna e apoio o pé no outro joelho.

— Nunca me imaginei em uma situação dessas. Não posso mentir e dizer que acho que vai dar certo. Muito provavelmente não vai, Sarai, e você precisa entender isso. — Ela parece ficar um pouco desanimada, o bastante para eu saber que minhas palavras sinceras a entristeceram mais do que ela se permite revelar. — Não posso mudar o meu jeito. Não só porque é tudo o que sei fazer, ou porque é o que faço melhor, mas também porque não quero. — Olho para Sarai. — Eu nunca vou parar de fazer o que faço.

— Eu nunca ia querer que você parasse — retruca ela, com certa intensidade. Sarai puxa uma cadeira próxima e a coloca diante de mim antes de se sentar. — Tudo o que eu quero, Victor, é ficar com você. Vou fazer qualquer coisa que você espere que eu faça, mas quero que me ensine...

Levanto a mão e a interrompo imediatamente.

— Não, Sarai, também não vou fazer isso. Não é assim que vai ser. — Sua expressão se anuvia e ela desvia o olhar, magoada com minha recusa. — Já falei, eu praticamente nasci nesta vida. Você ia levar quase o resto da sua para aprender a fazer o que eu faço, e mesmo assim não ia ficar boa o suficiente.

— Então, o que eu devo fazer? — pergunta ela, com um tom de ressentimento na voz. — Quero estar com você aonde quer que vá, mas não quero ficar à toa, tomando martínis na praia enquanto você sai para matar pessoas. Eu não sou inútil, Victor, posso fazer alguma coisa.

— Você pode fazer muitas coisas, sim — digo, interrompendo-a. — Mas fazer o que eu faço está totalmente fora de cogitação. Por que você quer tanto isso? — Levanto a voz quando sinto, de repente, uma necessidade desesperada de entender a resposta.

Sarai bate as palmas das mãos nas coxas nuas.

— Porque é o que eu quero.

— Mas por quê?

Ela ergue as mãos para os lados e grita:

— Porque eu gosto! Entendeu?! Eu gosto!

Pisco algumas vezes, completamente atordoado por essa confissão. Na verdade, essa era a última coisa que eu esperava ouvir de Sarai. Parte de mim sabia que ela era mais do que capaz de tirar a vida de alguém e dormir em paz toda noite depois disso, mas nunca previ que ela fosse gostar de matar.

Não sei ao certo como me sinto a respeito disso. Preciso de mais informações.

Eu me inclino para a frente e fico cara a cara com Sarai.

— Você gosta de matar? — pergunto, embora isso saia mais como uma afirmação. — Então, se alguém pedisse a você que tirasse a vida de outra pessoa, você faria isso sem questionar?

— Não — responde ela, franzindo o cenho. — Eu não mataria qualquer um, Victor, só homens que merecessem.

Homens? Esse lado de Sarai está ficando mais intrigante. Eu me pergunto se ela sabe o que acaba de dizer. Homens. Não pessoas em geral, mas homens.

Eu me afasto dela e me reclino na cadeira de novo, virando a cabeça para o lado, pensativo.

— Explique.

Ela também se recosta, encolhendo as pernas e apoiando os pés no assento, virando os joelhos para o lado.

— Homens como Hamburg. Homens como Javier Ruiz, Luis e Diego. Homens como o segurança que matei ontem. Willem Stephens, pelo simples fato de trabalhar para Hamburg sabendo o que o chefe faz. Homens como John Lansen e todos os outros que conheci naquelas festas de gente rica quando estava com Javier. — Seu olhar penetra o meu. — Homens que merecem ter a garganta cortada.

A gravidade das palavras de Sarai e a determinação em seu rosto me silenciam por um momento. Será possível que eu agora tenha não um, mas dois assassinos por perto que compartilham o gosto pelo derramamento de sangue? E, no exato momento em que o rosto surge na minha mente junto com o de Sarai, ouço o carro de Fredrik na entrada da garagem. Isso interrompe o momento intenso, e ambos olhamos para cima.

Instantes depois, Fredrik, vestido de maneira informal com um jeans escuro e uma camisa de grife, vem nos encontrar no pátio. Ele deixa o jornal do dia na mesa de centro e diz:

— É melhor você dar uma olhada nisso. — Então olha para Sarai por um momento. — A propósito, minhas roupas ficam bem em você.

Fuzilo Fredrik com o olhar, mas escondo meu ciúme antes que qualquer um dos dois perceba.

Sarai e eu olhamos para o jornal, mas sou eu quem o pega. Desdobrando-o, corro os olhos pelo texto até encontrar aquilo a que Fredrik se refere.

Quatro pessoas foram encontradas mortas a tiros em um hotel de luxo de Los Angeles, na madrugada passada. Somente dois corpos foram identificados, os de Dahlia Mathers, 23 anos, e Eric Johnson, 27 anos, ambos de Lake Havasu City, Arizona.

Algumas frases abaixo:

Sarai Cohen, também de Lake Havasu City, é procurada pela polícia para prestar esclarecimentos.

Acho que não importa que identidade Sarai usou para fazer o check-in no hotel, o rosto dela é o mesmo nas duas.

Ela arranca o jornal das minhas mãos antes que eu possa terminar.

— Não... — Ela cerra os dentes e seu rosto fica sério enquanto lê a notícia trágica sobre seus amigos. Ela procura meus olhos, mas logo se volta para o jornal, como se sua mente torcesse para ter lido tudo errado na primeira vez. — Falei para eles irem embora de Los Angeles! Dahlia disse que eles iam embora... — Seus olhos verdes encaram os meus, cheios de desespero e despedaçados pela culpa.

Fico de pé.

Sarai pega o jornal com as duas mãos e o rasga bem no meio, amassando as duas metades em seus punhos.

— Eles mataram Dahlia e Eric, porra! — ruge ela. — Eles estão mortos!

O jornal cai de suas mãos e voa pelo pátio de pedra.

Fredrik apenas me olha, esperando para ver o que vou fazer ou dizer. Ele não fala, mas percebo que quer.

— Sarai. — Por trás dela, ponho as mãos em seus ombros. — Eu vou cuidar disso.

Ela se vira para mim. Seu cabelo balança ao redor da cabeça antes de cair de novo nos ombros e seu rosto está ardendo de fúria.

— ELES MORRERAM POR MINHA CAUSA! COMO LYDIA!

Tentando acalmá-la, aperto seus ombros com força, de frente, e a seguro.

— Eu disse que vou cuidar disso — repito com ainda mais intensidade e sinceridade do que antes. Eu me inclino para a frente para manter seu olhar fixo no meu. — Vou fazer isso por você, Sarai. Hamburg e Stephens estarão mortos antes do fim desta semana.

Ela não ouve. Está me encarando, mas parece estar olhando através de mim. Seu peito sobe e desce com a respiração ofegante e irregular. Suas pupilas parecem pequenas, como buracos de grampos em uma folha de papel. O verde de seus olhos parece ter escurecido.

— Não — rebate ela, com a voz calma. — Não quero que você faça nada.

Absorta em pensamentos, ela dá um passo para trás, e minhas mãos caem de seus ombros.

— Vou fazer isso por você. Eu quero...

— Eu disse que não! — Ela dá mais dois passos e se vira, me dando as costas e olhando para a piscina. — Eu vou fazer isso — afirma ela, em voz baixa e decidida. — Vou matar os dois e não quero que você se meta.

— Acho que não...

Ela vira a cabeça, seus olhos escuros cruzando com os meus.

— Se você matar qualquer um deles, nunca vou perdoar você. Isso é assunto meu, Victor! Me deixe fazer pelo menos isso!

— Sarai, você não pode matá-los. — Eu me aproximo dela. — A única pessoa que vai morrer é você. Não vai conseguir...

— Estou cagando para isso! — Percebo que o objetivo de Sarai é inabalável. Ela volta para perto de mim. — Ou você me ajuda a fazer isso ou eu mesma vou descobrir como fazer. Eles vão morrer nas minhas mãos, não nas suas, nas de Fredrik nem nas de qualquer outra pessoa. Só nas minhas. Me ensine. Me mostre o que fazer. Qual é a melhor forma de agir para alguém como eu. Me ajude, ou vou morrer tentando por minha conta. Para mim, tanto faz.

— Eu não vou... você não pode — retruco, balançando a cabeça.

Sarai desiste e tenta me empurrar para fora de seu caminho. Mas não deixo que ela passe. Não posso, pois sei que cada palavra que ela disse foi a sério.

Eu a seguro pelo pulso, detendo sua marcha furiosa até a porta de vidro. Fredrik sai do caminho, assistindo ao desenrolar da cena com um brilho estranho nos olhos, que só posso interpretar como fascinação.

— Me solte!

— Você não vai embora. — Eu a prendo pelo pulso com força, e agarro o outro quando ela começa a me bater.

Ela quer descontar toda a raiva em mim, gritar na minha cara, me xingar com as palavras que tanto quer dizer a Hamburg e Stephens antes de matá-los, mas não consegue. A raiva, como sempre, a domina, e Sarai cai no choro.

Ela me disse uma vez que sempre chora quando está furiosa.

As lágrimas escorrem como rios por seu rosto. Sarai tenta mais uma vez se desvencilhar de mim, mas a seguro firme e faço uma pressão dolorosa sobre seus pulsos, tentando acalmá-la.

— Victor, por favor! Porra, basta me ensinar, cacete! Mesmo que seja matar os dois e mais ninguém! É tudo que eu peço! Nunca mais vou pedir a sua ajuda! POR FAVOR!

Sarai enfim para de se contorcer e desaba sobre meu peito. Eu a envolvo em meus braços, aninhando sua nuca nas mãos e pressionando o lado do meu rosto no alto de sua cabeça. Sarai chora com violência, seu corpo treme no meu abraço. Não são gritos de tristeza e dor, são gritos de culpa, raiva e da necessidade desesperada de vingar a morte de pessoas — até de Lydia — que poderiam ainda estar vivas, se não fosse por ela.

Fredrik olha para mim. Sei o que a expressão calma dele quer dizer. Ele acha que eu deveria dar a Sarai o que ela quer.

Mas não é a opinião de Fredrik que me faz decidir, no fim das contas. É minha necessidade de proteger Sarai, ainda que ela possa acabar morta no final.

Escolho o mais seguro dos dois caminhos malfadados.

— Eu vou ajudar você.


CAPÍTULO ONZE

Sarai

Levanto o rosto do peito de Victor, fungando as malditas lágrimas que mais uma vez me traíram em um momento de fraqueza.

— Você vai me ajudar a matá-los?

Ele assente.

— Vou.

— Obrigada — digo, baixinho.

Fico na ponta dos pés e dou um beijo suave em sua boca.

Da porta de vidro atrás de nós, a empregada diz com uma voz fraca:

— O café está pronto.

Ela nos fita com seus olhos escuros e curiosos, sem dúvida por ter ouvido a discussão enquanto estava lá dentro.

— Marta faz uns ovos mexidos ótimos — comenta Fredrik, com um sorriso radiante, como se nada tivesse acontecido. — Frita em gordura de bacon. — Ele junta os dedos nos lábios e os beija. — Adoro comida americana.

Ele vai atrás de Marta.

— Se bem que parece que ovos mexidos em gordura de bacon é uma comida do Sul, não? — pergunta ele, olhando para nós enquanto o seguimos.

Victor dá de ombros.

— Bem, Marta não é exatamente do Alabama — continua ele, ao entrarmos na cozinha. — Mas sabe cozinhar como se fosse.

Fredrik e Victor continuam tagarelando sobre comida, provavelmente para me fazer esquecer o que aconteceu. Mas, nesse momento, nada mais me importa além do rosto de Dahlia e Eric na memória. Sei que estou sendo punida. Pela vida. Pelo destino. Não sei por quem ou pelo quê, só sei que faria qualquer coisa para devolver a vida aos meus amigos.

Nós três nos sentamos à mesa com tampo de vidro da cozinha e comemos. E acho quase engraçado Fredrik fazendo Marta provar a comida antes de nos servir, como se ele tivesse aprendido essa técnica paranoica no Manual de Victor Faust.

Durante o café, que dura muito tempo por causa da conversa, Fredrik acaba liberando Marta pelo resto do dia. Isso acontece logo depois que ele começa a falar em sueco com Victor. Odeio não entender o que eles dizem, mas fica claro para mim que era por causa de Marta, e não por mim.

Marta pega a bolsa e se despede de nós, agradecendo a Fredrik por pagar um dia inteiro.

— Por que isso? — pergunto, depois que ela vai embora.

Apoio o garfo no prato ao terminar meu café.

— Temos muito o que conversar — explica Fredrik, tomando um gole de suco de laranja. — E ela não pode ouvir a conversa. — Ele aponta para mim e sorri. — E Marta, embora não pareça, ouve tudo o que acontece por aqui.

— Então por que vocês não continuaram conversando em sueco? — questiono.

— Você fala sueco? — rebate Victor.

— Não.

— Bem, você tem que participar da conversa — diz ele, deixando o copo d’água na mesa.

Sorrio. Nesse momento, me sinto parte deles pela primeira vez. Dos dois. Nós três sentados à mesa, que minutos depois já está livre dos pratos e dos copos, substituídos por pastas e fotografias de serviços de execução. Para mim, é meio surreal discutir detalhes de interrogatórios e assassinatos tão casualmente, como se estivéssemos falando do tempo. Mas também, pela primeira vez na vida, sinto que pertenço a algum lugar. Não estou mais andando por um túnel escuro, com as mãos à frente, procurando a porta. A porta está bem ali, à mostra, e já passei por ela. Enfim encontrei meu lugar na vida. E estou com Victor, o que para mim é mais importante do que tudo.

Finalmente estou com Victor.

Victor e eu saímos da casa de Fredrik nas colinas de Los Angeles no fim da tarde e dirigimos por onze horas até Albuquerque, Novo México. No caminho, paramos em um shopping, onde gasto praticamente uns 2 mil dólares em roupas e sapatos novos, acessórios e maquiagem, já que tudo o que tenho está no Arizona ou ficou no hotel em Los Angeles. Encho o banco de trás com sacolas de compras e caixas de sapatos, mas, lá pela nona hora de viagem, me arrependo de ter comprado tanta coisa. Tudo o que quero é me arrastar para o banco de trás e dormir, mas tenho que me conformar em ficar apertada na frente, encolhida em uma posição desconfortável no banco do Cadillac CTS preto de Victor, com a cabeça apoiada na janela. Desde que Victor saiu da Ordem, ele não tem mais a conveniência de usar jatos particulares para viajar. Se quisesse, com certeza poderia pagar um do próprio bolso, mas ser alguém que a Ordem quer matar significa não dar na vista e abrir mão de alguns luxos que poderiam levar Niklas até ele.

Ao que tudo indica, esses luxos abdicados incluem as residências extravagantes e multimilionárias nas quais Victor sempre preferiu morar. Sua casa em Albuquerque é bem diferente daquela onde ele morava na Costa Leste, com vista para o mar. Quando paramos na entrada de terra batida, vejo uma casa de tamanho médio, com paredes nuas de reboco bege e em um formato de caixa que me faz lembrar as casas que eu construía com peças de Lego quando era criança. Contudo, a julgar pelo jardim elaborado que envolve o caminho branco e liso até a porta e o lado esquerdo da casa, é óbvio que Victor não abriu mão de todos os luxos. Isso fica mais óbvio ainda quando entramos, pois o interior é tão bonito quanto o da casa de Fredrik, apesar do estilo mais interiorano e menos luxuoso. Vermelho-ferrugem, marrom e amarelo dominam o ambiente, com pé-direito alto sustentado por vigas e sarrafos de madeira escura, que fazem a casa parecer muito maior por dentro do que por fora. Uma aconchegante lareira de pedra ocupa uma das paredes da espaçosa sala de estar, com dois espelhos decorativos de metal pendurados acima dela. As paredes são amarelas, combinando com os pisos de terracota que parecem ocupar toda a casa.

— De uma coisa tenho certeza: você sempre consegue as melhores empregadas — comento, deixando várias das minhas sacolas no chão da sala.

— Desta vez, não — diz Victor atrás de mim. Ele deixa as outras sacolas que trouxe do carro perto do sofá de couro marrom-alaranjado. — Sou só eu.

— Sério? Mas está tudo tão limpo. Acho que você não passou muito tempo aqui, então, não é?

— Uns quatro meses. — Ele olha para mim. — Você gostou? Espero que sim, porque é o seu novo lar.

Um sorriso desponta no meu rosto.

Victor desabotoa e tira a camisa, deixando-a nas costas de uma poltrona de couro marrom. Observo discretamente seu corpo enquanto ele anda por um corredor longo e bem-iluminado com uma entrada em arco.

Sigo Victor.

— Claro que você sabe que não vamos ficar aqui para sempre. — Entramos em um quarto grande. — Mas é nosso lar por enquanto, pelo menos.

Ele tira a calça e me esforço ao máximo para não olhá-lo com intensidade demais, mas isso fica cada vez mais difícil.

— Vem cá — chama ele, parado diante de mim sem nada além de sua cueca boxer preta e apertada, que pouco ajuda a esconder o volume crescendo por baixo do tecido.

Engulo em seco, nervosa, embora não saiba a razão para esse nervosismo repentino, e me aproximo dele. Sinto um espasmo entre as pernas, e também não sei ao certo por que isso acontece. É como se meu subconsciente estivesse mais a par do que vai acontecer do que minha parte consciente. Ou então apenas perdi o controle sobre minha mente e só consigo pensar no que eu gostaria que acontecesse.

Olho para Victor, curiosa, inclinando um pouco a cabeça para o lado.

— Não sei bem o que é isso entre a gente — diz ele, com cuidado —, mas tenho certeza de que não quero que acabe. Seja o que for.

— Eu também.

Um pouco confusa quanto ao rumo que a conversa está tomando, inclino a cabeça para o outro lado e pergunto:

— Algum problema?

Ele balança a cabeça devagar.

— Não, problema nenhum.

— Bem, se você está preocupado que eu vá me apaixonar e grudar em você feito chiclete, não precisa.

— Você não está apaixonada por mim? — pergunta Victor, e não parece nada além de uma simples questão.

— Não, eu não amo você, Victor.

Ele parece concordar.

— Ótimo. Porque eu também não estou apaixonado por você.

Acho que nem eu nem ele sabemos de fato o que essa palavra significa em uma situação assim. Ambos exibimos a mesma expressão de aceitação, mas também parecemos um pouco confusos.

— Mas... eu, hã... — Entrelaço os dedos atrás das costas e olho para o chão, mexendo o pé como se estivesse tentando afundar os dedos na areia. Paro para encará-lo. — Mas eu, hã, talvez... preferisse que você não dormisse com mais ninguém. Eu... bom, acho que eu não ia gostar muito disso.

— Concordo — diz Victor, assentindo mais uma vez, com firmeza. — Acho que se eu pegar você com outro homem vou ter que matá-lo.

Balanço a cabeça algumas vezes, de maneira tão casual quanto ele.

— Com certeza — concordo eu. — O mesmo vale para você.

— De acordo.

Há um momento de silêncio constrangido entre nós, e corro os olhos pela cama king-size com dossel alto de cerejeira, que está a alguns passos de distância.

Victor se aproxima e eu me viro para observá-lo. Ergo os braços quando ele passa os dedos por baixo da minha camiseta e a tira.

— Também quero dizer que não me incomodo se você grudar em mim feito chiclete. — Ele enfia os dedos no elástico da minha calcinha. — Só para constar.

— Mesmo?

Victor se agacha diante de mim ao descer a calcinha por meus quadris e minhas pernas. Fica ali, me olhando de baixo, com a cabeça na altura do meu umbigo.

— Sim — responde ele. — Mas claro que você não pode me atrapalhar quando eu estiver tentando fazer um serviço.

— Sim, claro — digo, e minha pele reage aos seus lábios, que beijam a área logo acima da minha pélvis. — E-eu nunca atrapalharia o seu trabalho — gaguejo.

Minhas mãos começam a tremer quando ele desce e para entre as minhas pernas, abrindo meus grandes lábios com os polegares.

Afasto os joelhos só um pouco, o bastante para que ele tenha acesso.

— Mas nada de me abandonar em algum lugar distante enquanto você viaja pelo mundo para cumprir os contratos — digo, enfiando os dedos no cabelo dele, com a respiração irregular e acelerada. — Não quero ser dona de casa, entendeu?

Um suspiro agudo corta o ar perto da minha boca quando a ponta de sua língua lambe meu clitóris. Quase derreto ali mesmo, os músculos das coxas perdendo força a cada segundo.

— Sim, entendo o que você quer dizer — diz Victor, e me lambe de novo, explorando entre as minhas pernas. Jogo a cabeça para trás e puxo seu cabelo com mais força, enrolando-o nos dedos. — Você vai aonde eu for. Para eu poder ficar de olho em você.

— De olho em mim. Claro.

Que resposta patética. Só consigo pensar na cabeça de Victor no meio das minhas pernas, e naquela sensação quente e formigante que está amolecendo minhas entranhas.

Victor me ergue segurando minha bunda com firmeza e com minhas coxas em torno da cabeça. Então me lambe furiosamente por um momento antes de me jogar de costas na cama.

Com os joelhos dobrados no peito, vejo sua boca entrar no meio das minhas coxas e reviro os olhos enquanto ele me faz esquecer tudo.


CAPÍTULO DOZE

Sarai

O treinamento começa dois dias depois, mas não da maneira que eu esperava. Não sei o que eu esperava, na verdade, mas com certeza não era isso.

— O que a gente está fazendo aqui? — pergunto quando paramos no estacionamento de uma academia de artes marciais a uma hora de Santa Fé.

— Krav maga — esclarece Victor, e olho como se ele estivesse falando outra língua. Ele fecha a porta do carro e andamos até a fachada do prédio. — Não vou conseguir dedicar cem por cento do meu tempo ao seu treinamento. Por isso, três dias por semana, vou trazer você aqui. Dá para aprender muita coisa com o krav maga em pouco tempo. E o foco é a defesa pessoal...

— O quê? — Paro na calçada antes de passarmos pela porta. — Não sou uma donzela em perigo que acaba de ser assaltada em um estacionamento escuro, Victor. Não preciso de aulas de defesa pessoal. Preciso aprender a matar.

— Matar é a parte fácil — rebate Victor, sem rodeios. Ele abre a porta de vidro e faz um gesto para eu entrar. — Chegar a esse ponto sem morrer tentando é a parte difícil.

— Então você quer que eu aprenda a dar um chute no saco de um cara? — pergunto, bufando de desdém. — Acredite, eu já sou perfeitamente capaz disso.

Um sorriso discreto aparece nos cantos de seus lábios deliciosos.

Nesse momento, um sujeito alto, moreno e com músculos bem-definidos se aproxima de nós no grande salão. As janelas no alto da parede deixam o sol entrar. Dois grupos de pessoas estão treinando em pares, formando um semicírculo em um enorme tatame preto estendido por boa parte do chão.

O homem de braços musculosos e camiseta preta estende a mão para Victor.

— Faz quanto tempo? Três anos? Quatro?

Victor aperta a mão dele com firmeza.

— Uns quatro, acredito.

O homem me olha por um momento, e então Victor nos apresenta.

— Spencer, esta é Izabel. Izabel, Spencer.

— Prazer — diz Spencer, estendendo a mão.

Relutante, aperto a mão dele. Eles se conhecem? Não sei se gosto disso ou não. De repente, sinto que aquilo é alguma armação. Sorrio com desdém para aquele brutamontes alto e simpático.

Victor se vira para mim e diz:

— Não tem ninguém melhor para treinar você em defesa pessoal do que Spencer. Você está em boas mãos.

Spencer abre um sorriso tão largo que, se fosse um pouco maior, acho que daria para engolir minha cabeça. Ele está com os braços musculosos à sua frente, com as mãos cruzadas. As veias, grossas como cordas, que percorrem suas mãos e seus braços bem bronzeados me lembram das de um fisiculturista, mas ele não tem esse tamanho todo. Só é maior do que eu, o que me intimida mais.

Levanto um dedo para Spencer.

— Você nos dá licença um minutinho?

— Claro — responde ele.

Percebo o leve sorriso que ele dá para Victor.

Pego Victor pela mão e o puxo para o lado. Ao fundo, ouço, de maneira constante, corpos sendo jogados naquele tatame preto e a voz de um instrutor entoando comandos repetitivos e mandando os alunos fazerem “de novo”.

— Victor, acho que isto é perda de tempo. Não sei por que você me trouxe aqui. — Cruzo os braços. — Quero aprender essas coisas com você, não com um cara aleatório do tamanho de um ônibus. — Olho por cima do ombro, torcendo para que Spencer não tenha ouvido, embora eu tenha tomado o cuidado de sussurrar.

— Preciso me encontrar com Fredrik daqui a uma hora — explica Victor.

— Ah, então você vai me deixar com uma babá? — Franzo o cenho e balanço a cabeça para ele, totalmente incrédula, para não dizer ofendida.

— Não, não é isso.

— Mas eu quero que você me ensine — repito, forçando as palavras com rispidez entre meus dentes cerrados.

Victor suspira e balança a cabeça, parecendo aborrecido e frustrado comigo.

— Você não tem disciplina. Nenhuma. Igualzinha ao meu irmão. — Isso fere o meu orgulho. — Como vou ensinar alguma coisa para você, se não é capaz nem de fazer as coisas mais simples que eu peço?

Na mesma hora, me arrependo por agir feito uma criança. Solto um suspiro de resignação.

— Desculpe — digo, baixinho. — Pensei que fosse treinar com você, só isso.

— Você vai treinar comigo — garante Victor, pondo as mãos nos meus ombros. — Mas por enquanto precisa aprender o básico. E esta é a melhor maneira.

— Mas por que você não pode me ensinar o básico? — pergunto, com o mesmo tom resignado de antes. — Por que precisa ser ele?

Victor se inclina e beija de leve o canto da minha boca.

— Porque Spencer não tem medo de machucar você — explica ele, e isso me surpreende um pouco. — E não quero fazer isso, se eu puder evitar. Você só vai aprender se for real.

Arregalo os olhos.

— Espere aí... Então você está dizendo que aquele tanque de guerra — digo, apontando por cima do ombro com o polegar — vai me bater de verdade?

— Sim. É para isso que ele está sendo pago.

Parece que meu queixo acaba de bater no chão. De repente, sinto um calafrio percorrer minha espinha.

— Você não é obrigada a fazer isso, Sarai, mas, se realmente é o seu desejo, quero que vá com tudo. Não faça de qualquer jeito. Na vida real, quem atacar você não vai facilitar as coisas — afirma Victor, enquanto me encara com atenção, querendo desesperadamente que eu o entenda e confie nele. — Vou treinar com você no momento certo. Mas, quando eu fizer isso, vai ser brutal, Sarai. Vou atacar com a mesma força que um agressor de verdade usaria. Aprenda o básico primeiro, domine algumas habilidades para conseguir me enfrentar, e vou me sentir melhor para treinar você pessoalmente. Entendeu?

— É, acho que sim — respondo, assentindo. E estou sendo sincera.

Entendo perfeitamente agora. Nem me lembro da última vez que estive tão nervosa para fazer alguma coisa. Mas Spencer, o tanque, não me assusta tanto, na verdade, porque lá no fundo sei que, mesmo que Victor esteja lhe pagando para não facilitar comigo, ele não vai usar toda a sua força em mim. Se usasse, me mataria.

— Você quer ficar? — pergunta Victor.

— Quero.

— Ótimo.

Ele se inclina para meus lábios de novo e me beija com intensidade, tirando meu fôlego. Chocada por essa demonstração pública de afeto tão atípica, fico sem palavras quando ele desgruda os lábios dos meus.

— Volto para buscar você daqui a algumas horas.

— Tudo bem.

Nós voltamos para perto de Spencer, que parece um tanto empolgado para começar a treinar comigo, como se eu fosse um brinquedo novinho em folha com o qual ele não vê a hora de brincar.

— Pronta para começar a aprender krav maga? — pergunta Spencer.

— Estou — respondo, e meu olhar vai até as pessoas lutando no tatame preto atrás dele.

— Tem certeza de que você aguenta?

Quero dizer que sim com confiança, porque, afinal de contas, sempre imaginei que aulas de defesa pessoal consistissem em nada mais do que bloquear golpes, bater e sinalizar aos outros onde estou. Sempre imaginei mulheres comuns, que nunca lutaram na vida, todas de pé em um círculo, esperando a vez para derrubar o instrutor com alguns golpes “úteis”. Contudo, ao observar o grupo que está treinando atrás de Spencer, a intensidade agressiva e a violência de alguns golpes, começo a achar que esse tipo de defesa pessoal é bem diferente.

— Deve ser simples — digo, sem a segurança que queria.

— Se você diz — responde Spencer, com um sorriso conivente que deixa meus nervos ainda mais em frangalhos.

Mas não estou com medo. Nervosa, sim, mas não com medo. Estou pronta para fazer isso. Começo até a ficar ansiosa. Quero provar a Victor que dou conta.

E quero provar a ele que não sou nada parecida com seu irmão.

Victor vai embora. Antes do fim da primeira hora, estou exausta e tão dolorida que mal consigo andar em linha reta sem cambalear.

— Sempre se defenda e ataque ao mesmo tempo — explica Spencer, em pé, enquanto estou deitada no tatame e querendo me encolher em posição fetal. — E nunca vá para o chão. Isto não é luta greco-romana, Izabel. Se você vai para o chão, você morre.

Sem fôlego e tentando controlar a dor intensa que queima minha panturrilha, me levanto.

— Me ataque — ordena ele, elevando a voz acima dos poucos gritos de quem ainda assiste à aula depois da segunda hora. — Se não me atacar, eu ataco você!

Estou exausta demais.

— Não consigo! — Desisto e caio de bunda no tatame. — É demais. Hoje é meu primeiro dia e parece que é minha primeira luta de verdade. Cadê a parte em que você me mostra o que fazer e me ensina a dar os golpes?

— O que você quer mesmo é que eu pegue leve com você, não é?

— Isso! Cadê as instruções? As regras?

Minhas costas estão me matando. Deito no tatame, abrindo os braços acima da cabeça, e olho para o teto iluminado. Não quero mais saber de Spencer e de seu treinamento de imersão total. Só quero descansar.

As lâmpadas fluorescentes do teto começam a se mover depressa quando sinto de repente que estou sendo arrastada pelo tornozelo.

— Não há regras no krav maga — ouço Spencer dizer, mas percebo, meio segundo depois, que não é ele quem está me arrastando.

É uma mulher, com cabelo castanho-claro preso em um rabo de cavalo. Confusa com a mudança, fico distraída demais para notar o pé dela atingindo meu estômago. Berro de dor, me dobrando para a frente ao levantar as pernas e as costas do tatame ao mesmo tempo, com os braços cruzados sobre o abdômen. O golpe expulsa todo o ar dos meus pulmões.

— CHEGA! — grita Spencer, em algum lugar atrás de mim.

Sinto que vou vomitar.

A mulher para no mesmo instante e dá alguns passos para trás.

— Levante — manda Spencer, e decifro, em meio à dor que acaba com meu tórax, que sua voz está muito mais perto do que antes.

Ergo a cabeça e o vejo agachado ao meu lado.

— Vou deixar você recuperar o fôlego — diz ele, baixinho, oferecendo a mão. — Esta é Jacquelyn. Minha mulher.

Pego no antebraço dele, ele me segura e me põe de pé.

— Muito prazer — digo a ela, fazendo uma careta horrorosa de dor. — Ou em conhecer o seu pé, pelo menos.

Ela dá uma risadinha.

— O seu namorado me pagou para encher você de porrada, basicamente — afirma Spencer. — Mas, como não tenho o hábito de bater em mulher, achei melhor deixar minha esposa fazer as honras para que eu pudesse receber o pagamento do mesmo jeito.

— É a melhor maneira de aprender — intervém Jacquelyn. — Esse seu homem sabe o que está fazendo. É brutal? Claro. Necessário para sobreviver a situações de combate corpo a corpo? Com certeza. Indicado para peruazinhas delicadas que ficam pulando e gritando de medo quando veem uma aranha? Nem fodendo.

— Bom, eu não sou uma dessas — digo, com frieza. — Disso você pode ter certeza.

— Então prove — provoca ela, curvando-se para a frente com as mãos semiabertas ao lado do corpo. — Lembre, o krav maga não tem regras. Sempre defenda e ataque ao mesmo tempo. Sempre lute com agressividade. E nunca vá para o chão.

— Ok, essa parte eu entendi. Se eu for para o chão, estou morta.

Jacquelyn praticamente me dá uma surra durante o resto da aula. E, quando Victor finalmente chega para me buscar, meu nariz e meu lábio estão sangrando, meu olho direito está roxo e latejando e acho que quebrei um dente.

Isso continua dia sim, dia não pelas duas semanas seguintes.

Não levei muito tempo para ficar boa no krav maga. Spencer diz que tenho um talento natural e que devo ter “dispensado as Barbies quando era criança”.

Ele não faz nem ideia...

Estou ficando muito mais forte, muito melhor na minha técnica. Em certo momento, até consegui machucar Jacquelyn ao enfiar o cotovelo nas costelas dela. Acho que quebrei algumas, mas ela não admite. Não por orgulho, mas porque não acha certo reclamar nem deixar algo tão insignificante quanto uma costela fraturada impedir que ela lute.

Também não demorou para que eu começasse a simpatizar com ela. Quando Jacquelyn não está me enfiando a porrada, até gosto de sua companhia.

Só duas semanas se passaram. Até agora, não fiz nada além de treinar com Jacquelyn e aprender a usar armas com Victor. Ainda assim, apesar de curtir o treino e esperá-lo ansiosamente todo dia, fico frustrada por estar demorando tanto. Eu esperava que Hamburg e Stephens já estivessem mortos faz tempo, a essa altura.

Estou ficando impaciente.

— Victor, eu não pretendo lutar com Hamburg e Stephens. Só quero matá-los. Mais nada. Não entendo por que você está me fazendo passar por tudo isso.

Victor se descobre e sai da cama, andando nu pelo quarto.

Em silêncio, admiro a visão.

— Tem mais coisas envolvidas nisso do que você imagina — diz ele, desaparecendo ao entrar no banheiro.

Aquilo com certeza desperta meu interesse.

Eu me levanto e grito:

— É mesmo?

Jogo o lençol no chão e ando depressa atrás dele, parando à porta do banheiro e me apoiando no batente. Ele está abrindo a água do chuveiro.

Victor fecha o boxe de vidro, deixando a água correr por um momento, e então se vira para mim.

— Você não está fazendo todo esse treinamento só para matar Hamburg e Stephens. Se vai ficar comigo, independentemente de como vai ocupar o seu tempo, precisa aprender a lutar. Precisa saber identificar, diferenciar, carregar e disparar praticamente qualquer tipo de arma. Há muitas coisas que você precisa saber, e não temos tempo suficiente para aprender metade delas. — Ele abre a porta do boxe e estende o braço, deixando a água correr sobre a mão para sentir a temperatura.

Ele acrescenta:

— Esse treinamento não tem muito a ver com Hamburg e Stephens. Quero que você esteja sempre segura, por isso é vital que aprenda essas coisas agora.

Abro um sorriso leve, saboreando o momento. Quando nos conhecemos, eu não imaginava que Victor tivesse um só traço de preocupação ou emoção no corpo. Mas a cada dia testemunho que ele está se abrindo mais para mim. E vejo que isso está se tornando mais fácil para ele.

Volto ao assunto em questão, mas o que eu gostaria mesmo de fazer, a essa altura, é beijá-lo.

— Mas por que isso está demorando tanto? Quero acabar com essa história de uma vez.

Entro no banheiro e me sento na bancada da pia, apenas de calcinha.

— Porque, enquanto eu elaboro um plano para você chegar perto dos dois e matá-los, você precisa treinar, ocupar seu tempo o máximo possível. — Victor se aproxima de mim e segura meu rosto com as mãos. — Só estar no mesmo quarto comigo, só me conhecer, Sarai, já é uma sentença de morte diária. Cada vez que você sai por aquela porta, corre o risco de levar um tiro. O único motivo pelo qual a Ordem ainda não me encontrou é que Niklas é o único agente atrás de mim. Quer dizer, por enquanto. Ele não quer que ninguém mais me ache. Ele quer levar o crédito. O reconhecimento. Sobretudo porque foi ele o contratado para acabar comigo. — Victor pressiona os lábios na minha testa. Fecho os olhos, levanto os braços e seguro os pulsos dele. — Mas um dia, provavelmente daqui a pouco, vou ter que enfrentar meu irmão, pois a Ordem não vai dar todo o tempo do mundo para ele cumprir a missão. Ou ele me encontra ou eu o encontro. E um de nós vai morrer.

Com os dedos ainda envolvendo os pulsos dele, afasto delicadamente suas mãos do meu rosto. Olho para aqueles lindos olhos verde-azulados, perplexa, inclinando a cabeça para um lado.

— Por que não deixa isso para lá? Victor, entendo você querer matar Niklas antes que ele mate você, mas por que correr o risco de morrer procurando briga?

O vapor começa a encher o banheiro, embaçando o grande espelho acima do balcão, atrás de mim.

— Porque se Niklas não me encontrar, se não conseguir cumprir o primeiro contrato oficial desde que foi promovido a agente sob o comando de Vonnegut, eles vão matá-lo. — Victor apoia as mãos na bancada, à minha direita e à minha esquerda. — Ninguém, a não ser eu, vai matar meu irmão. Não me importa o que ele fez ou as diferenças que temos, ainda é meu irmão.

Faço que sim, compreensiva.

— Tudo bem, então quando tudo isso vai acontecer? Esse... confronto com Niklas? Minha chance de matar Hamburg e Stephens?

Victor abre um sorriso malicioso e eu passo as pontas dos dedos em seus lábios. Ele segura minha mão e beija meus dedos.

— Vamos ter que trabalhar nesse seu problema, Sarai. A sua impaciência e, claro, como já falei, a indisciplina. É o próximo item da nossa agenda.

— Não consigo evitar a impaciência. Aqueles dois babacas horríveis continuam por aí, levando uma vida de luxo, fazendo só Deus sabe o quê com sabe-se lá quantas mulheres. Isso sem falar que estão me procurando. Mataram meus amigos por minha causa. Dina continua escondida longe da casa dela e está com medo. A vida dela foi virada de cabeça para baixo por causa deles. Por minha causa. Quero que eles morram para que pelo menos Dina possa seguir a vida.

— O que você vai dizer para ela? — pergunta Victor. — Quando se encontrar com ela hoje, o que vai dizer?

Desvio o olhar e vejo o vapor revestir as altas paredes de vidro do boxe, ondulando acima do chuveiro em nuvens suaves. Começo a suar um pouco, o rosto, o pescoço e o colo úmidos.

— Vou contar a verdade para ela.

— Você acha uma boa ideia?

Encaro Victor.

— Acho justo. Ela é praticamente minha mãe. Fez muito por mim. Eu devo a verdade a ela. — Sorrio e acrescento: — Além disso, se você não concordasse com minha decisão de contar a verdade, já teria deixado isso bem claro, a essa altura.

Victor retribui meu sorriso e me segura pela cintura, me ajudando a descer da bancada.

— Acho que é melhor a gente se arrumar, se quiser chegar lá a tempo — observa ele, e me leva até o chuveiro. Tiro a calcinha antes de entrar no boxe com ele.

Victor disse a Dina e a mim que me levaria para vê-la alguns dias depois de o contato de Fredrik a tirar de Lake Havasu City. Mas as coisas não saíram conforme planejamos. Victor e Fredrik concordaram que era arriscado e cedo demais. Uma noite, ouvi os dois conversando sobre Dina e sobre como ela poderia estar sendo vigiada no dia em que o contato de Fredrik chegou para buscá-la. Victor queria ter certeza de que isso não havia acontecido, e que, se qualquer um de nós aparecesse por acaso no esconderijo de Dina, não cairia em uma armadilha. Mas, à medida que os dias passaram e Fredrik continuou vigiando a casa onde Dina estava se escondendo, ele e Victor tiveram certeza de que ela era, de fato, segura.

Hoje, enfim, vou vê-la pela primeira vez desde que viajei com Eric e Dahlia para Los Angeles.


CAPÍTULO TREZE

Victor

Sarai precisa estar preparada não só para as ameaças iminentes, mas também para a vida que a espera. Ela escolheu um caminho há muito tempo, no dia em que me conheceu, embora ainda não soubesse. Eu não queria enxergar, por isso lutei comigo mesmo contra a necessidade estranha e antinatural de ficar perto dela, porque queria que ela tivesse uma vida normal.

Não queria que ela terminasse como eu...

Mas eu sabia, oito meses atrás, antes de deixá-la naquele quarto de hospital ao lado da sra. Gregory, que um dia eu voltaria para ela. Nunca foi minha intenção nem meu plano, eu apenas sabia que acabaria acontecendo, de uma maneira ou de outra.

Por 28 dos meus 37 anos de vida, a única coisa que conheci foi a Ordem. Só conheci disciplina e morte. Nunca conheci amizade ou amor sem suspeitas e traições. Fui... programado para desafiar as emoções e ações humanas mais comuns, mas eu... Só quando conheci Sarai me permiti acreditar que Vonnegut e a Ordem não eram minha família, que me usaram como seu soldado perfeito. Eles me negaram a vida toda os elementos que nos tornam humanos. E não posso permitir que isso fique impune.

Um dia, vou matar Vonnegut e acabar com o resto da Ordem pelo que fizeram comigo e com a minha família. Uma família que eles destruíram. Sarai é minha família agora, e espero que Fredrik prove sua lealdade no teste final que farei com ele. Eles são minha família e não vou permitir que a Ordem também os destrua.

Mas, por enquanto, Sarai é o meu foco, e será pelo tempo que for necessário. Ela precisa ser treinada. Precisa absorver o máximo que puder, o mais rápido que conseguir. É impossível que um dia ela chegue ao meu nível. Ela nunca vai conseguir viver a vida de um assassino como eu, porque levaria metade da vida para aprender. É por isso que a Ordem nos recruta tão jovens. É por isso que Niklas e eu fomos levados quando éramos crianças.

Sarai nunca vai ser como eu.

Mas ela tem outros talentos. Tem habilidades que, mesmo depois de tantos anos de treinamento, eu jamais conseguiria superar. A vida de Sarai na fortaleza no México lhe garantiu um conjunto único de habilidades que não se aprendem em uma aula nem se leem em um livro. Ela mente e manipula com maestria. Pode se tornar outra pessoa em dois segundos e enganar uma sala cheia de gente que ninguém mais conseguiria enganar. Consegue fazer um homem acreditar no que ela quiser com muito pouco esforço. E não tem medo da morte. Ela é melhor do que uma simples atriz. Porque ninguém percebe a farsa até que seja tarde demais. Javier Ruiz foi o verdadeiro professor de Sarai. Ele lhe ensinou coisas que eu jamais conseguiria transmitir. Foi seu verdadeiro treinador, ensinando os talentos mortais que agora começam a defini-la como assassina. E, como todos os mestres perversos, Javier Ruiz também foi a primeira vítima de sua aluna favorita.

Assim como foi com as habilidades que Sarai já possui, para aprender a lutar e entender a luta de verdade, ela precisa vivê-la e respirá-la todos os dias. Forçá-la a treinar com Spencer e Jacquelyn é necessário para a sua sobrevivência porque ela precisa aprender o máximo que puder sempre que for possível. Mas são as habilidades que ela já tem que vão transformá-la em um soldado único.

São essas habilidades que nos tornam a dupla perfeita.

Antes disso, contudo, Sarai precisa entender a fundo do que é capaz. E precisa passar pelos testes. Todos eles, até aqueles que podem fazê-la me detestar.

Não tenho dúvidas de que isso vai acontecer. Ela passar nos testes, pelo menos. Se ela vai me detestar, ainda é discutível.

Chegamos a Phoenix logo depois do pôr do sol e somos recebidos à porta da casinha branca por Amelia McKinney, o contato de Fredrik. Ela é uma mulher linda, voluptuosa e com um longo cabelo louro, embora sua característica menos atraente seja seu grande par de peitos de plástico, que com certeza devem lhe dar dor nas costas. E ela usa roupas bem chamativas para uma mulher com doutorado que dá aula no ensino fundamental há cinco anos.

— Olá, Victor Faust — cumprimenta ela, com um tom sedutor, segurando a porta aberta para mim e Sarai. — Ouvi falar muito de você.

— Muito? Interessante.

Com uma das mãos, ela deixa aberta a porta de tela, dá um passo para o lado e acena para entrarmos na casa, sacudindo um monte de pulseiras com pingentes de ouro. Vários anéis enormes enfeitam seus dedos. E ela cheira a sabonete e a pasta de dente.

Coloco minha mão nas costas de Sarai e deixo que ela entre antes de mim.

— Fredrik me falou de você — conta Amelia, fechando a porta. — Mas acho que “muito” é exagero nesse caso, já que ele mesmo não parece saber muita coisa a seu respeito. — Ela gira a mão ao lado do corpo e acrescenta: — Mas imagino que o fato de eu saber tão pouco é o que torna você ainda mais intrigante.

— Nem pense nisso — intervém Sarai, parando nossa pequena fila indiana e se virando para encará-la.

Disciplina, Sarai. Disciplina. Suspiro em silêncio, mas admito que fico de pau duro ao vê-la tão superprotetora com o que lhe pertence.

Amelia levanta as mãos, por sorte em um gesto de resignação e não de desafio.

— Sem problemas, meu anjo. Não tem problema nenhum.

Sarai aceita essa bandeira branca e andamos mais pela casa, onde encontramos Dina Gregory na cozinha, preparando o que parece ser uma ceia de Ação de Graças para umas 15 pessoas.

Sarai corre para os braços abertos de Dina, e começam os sorrisos e as palavras de alívio e empolgação. Ignoro tudo isso por um momento, voltando minha atenção para assuntos mais prementes: o que está ao meu redor e essa mulher que não conheço.

Não confio em ninguém.

Amelia, como muitas mulheres do círculo de Fredrik Gustavsson, não sabe nada sobre a Ordem nem sobre o envolvimento que eu ou Fredrik temos com organizações do tipo. Ela não é o que Samantha, do Abrigo Doze no Texas, era para mim. Não, a relação de Amelia e Fredrik, embora tecnicamente não possa mais ser chamada assim, é muito mais... complicada.

Começo a vasculhar a casa em busca de câmeras e armas, tateando estantes, vasos de plantas, cacarecos e móveis, instalando minha própria parafernália secreta de espionagem no caminho.

— Fredrik disse que você talvez fizesse isso — diz Amelia, atrás de mim, embora eu tenha certeza de que ela não viu o pequeno aparelho que acabo de grudar embaixo da mesinha da TV. Ela ri baixo. — Eu limpei a casa muito bem antes de você chegar. Cadê as suas luvas de borracha? — brinca ela.

Não viro para trás nem paro o que estou fazendo.

— Você recebeu alguma visita desconhecida desde que a sra. Gregory veio para cá? — pergunto, debruçando-me sobre uma mesa ao lado de uma cadeira reclinável e examinando um abajur.

— Uau, você e Fredrik são mesmo os caras mais paranoicos que já conheci. Não. Não que eu lembre. Bom, um vendedor de TV por satélite veio uma vez semana passada, querendo que eu desistisse da TV a cabo. Além dele, ninguém.

Ela se aproxima de mim por trás e abaixa a voz:

— Por quanto tempo essa mulher vai ficar na minha casa? — Noto com a visão periférica que ela olha para a porta da cozinha, para garantir que ninguém consiga ouvi-la além de mim. — Ela é legal e tudo, mas... — Amelia suspira com ar culpado. — Olha, eu tenho 30 anos. Não moro com meus pais desde os 16. Ela está atrapalhando o meu jogo. Eu trouxe um cara aqui semana passada e ele pensou que ela fosse minha mãe. Ficou chato. Não transo desde que ela chegou.

Eu me viro para encará-la.

— E há quanto tempo você conhecia o sujeito que trouxe aqui?

— Hein?

— O homem. Há quanto tempo estava dormindo com ele?

Suas sobrancelhas finas e bem-cuidadas se juntam no meio da testa.

— E isso por acaso é da sua conta? Vai me perguntar em quantas posições a gente trepou também?

— Quanto tempo?

— Conheci o cara em um bar, sábado passado.

— Bem, ele conta como uma visita desconhecida.

Ela quer discutir, mas se contém.

— Ok. Tudo bem. O cara do satélite e o quase peguete do bar. Só eles.

— Antes que eu vá embora, vou precisar do nome desse cara e de qualquer outra informação que você possa me dar sobre ele, incluindo uma descrição detalhada.

Ela balança a cabeça e ri, contrariada.

— Não sei por que aguento essas merdas do Fredrik. — Então Amelia abre uma gavetinha da mesa e tira um bloco de notas e uma caneta.

— Porque você não resiste — observo, mas sem querer ser desagradável. Outra coisa que preciso praticar: ficar de boca fechada quando as mulheres dizem certas coisas que dispensam comentários.

Ofendida, ela arregala os olhos azuis brilhantes. Rabisca alguma coisa na folha, arranca-a do bloco e a enfia na minha mão.

— O que isso significa? — Contudo, antes de me dar a chance de cometer outra gafe, ela muda o tom de voz, chega perto de mim e sussurra de maneira sedutora: — Ei... O que vocês dois têm em comum, afinal?

Sei exatamente sobre o que Amelia está perguntando. Ela especula sobre as minhas preferências sexuais e provavelmente torce para que sejam tão sombrias quanto as de Fredrik. Mas ela está pisando em um território muito perigoso, com Sarai na sala ao lado.

— Não muito — respondo, enfiando no bolso a folha com o nome e a descrição do homem. Então continuo a investigar a casa dela.

— Que pena — comenta Amelia. — Qual é a dele, afinal? Ele fala alguma coisa de mim?

Por favor, pare com isso...

Suspiro e paro na entrada do corredor, olhando-a nos olhos.

— Se você tem perguntas para ou sobre Fredrik, faça o favor de perguntar diretamente a ele.

Amelia joga o cabelo para trás em um gesto orgulhoso e revira os olhos.

— Tudo bem. Só pergunta para o Fredrik quanto tempo mais vou ter que ficar de babá, ok?

Ela passa por mim e se junta a Sarai e à sra. Gregory na cozinha, enquanto aproveito a oportunidade para inspecionar o resto da casa.

Por falar em Fredrik, ele me liga quando estou a caminho do quarto de hóspedes.

— Tenho informações sobre a missão de Nova Orleans — diz ele do outro lado da linha. Ouço trânsito ao fundo. — O contato acha que o alvo voltou para a cidade.

— Por que ela acha isso?

— Ela acha que o viu em frente a um bar perto da Bourbon Street. Claro que ela pode ter imaginado isso, mas acho que a gente deveria investigar. Só por segurança. Se a gente esperar e ele voltar para o Brasil, ou onde quer que ele esteja se escondendo, pode levar mais um ou dois meses antes de termos outra chance.

— Concordo. — Eu me fecho no quarto de hóspedes. — Estou com Sarai na casa da Amelia agora, mas vou terminar as coisas por aqui mais cedo. Vá para Nova Orleans na minha frente e eu encontro você lá amanhã no início da noite. Mas não faça nada.

— Não fazer nada? — pergunta Fredrik, desconfiado. — Se eu encontrar o cara, posso prendê-lo e começar o interrogatório, pelo menos.

— Não, espere a gente. Quero que Sarai faça isso.

Fredrik fica em silêncio por um instante.

— Você não pode estar falando sério, Victor. Ela não está pronta. Pode estragar a missão toda. Ou morrer.

— Não vai acontecer nada disso — rebato com calma e confiança. — E não se preocupe, é você quem vai fazer o interrogatório. Só quero que ela prenda o sujeito.

Sei que há um sorriso macabro no rosto de Fredrik sem precisar vê-lo ou ouvir sua voz. Deixar que ele faça o interrogatório é praticamente o mesmo que dar uma seringa para um viciado em heroína.

— Vejo você em Nova Orleans, então — diz ele.

Desligo, enfio o celular no bolso de trás da calça preta e termino a inspeção da casa antes de ir para a sala e me juntar às mulheres, todas já com pratos de comida no colo.


CAPÍTULO CATORZE

Sarai

— Você deveria fazer um prato — digo para Victor quando ele surge no corredor. — Dina cozinha muito bem. Até melhor do que Marta. Mas não diga a Marta que eu falei isso. — Enfio uma enorme colherada da caçarola de feijão na boca.

Dina, sentada ao meu lado no sofá, aponta para Victor.

— Ela é suspeita. Mas, se você está com fome, é melhor comer antes que acabe.

— Precisamos conversar — anuncia Victor, de pé no meio da sala e bem na frente da TV.

Não gosto do tom dele.

— Tudo bem — digo, desencostando do sofá e deixando o prato na mesinha de centro. — Sobre o quê?

Victor olha de relance para Amelia. Ela está sentada na poltrona à minha frente, pegando um pedaço de pão de milho. Tenho a sensação de que Victor não quer que ela ouça a conversa.

— Amelia — diz Victor, enfiando a mão no bolso de trás da calça e pegando a carteira de couro —, preciso que você saia um pouco de casa. — Ele mexe na carteira, tira um pequeno maço de notas de 100 dólares e o deixa na mesa diante dela. — Se você não se importar.

Amelia olha para o dinheiro, apoia o garfo no prato e conta as cédulas.

— Sem problemas — concorda ela, com um sorriso satisfeito. Então se levanta, pega o prato e a lata de refrigerante e desaparece na cozinha.

Ouço o garfo raspando os restos de comida do prato para o lixo e a cerâmica tilintando no fundo da pia. Amelia passa por nós e segue até o corredor.

— Mas preciso que você saia agora mesmo — reitera Victor. — Não precisa trocar de roupa nem se arrumar.

— Posso pelo menos calçar a droga de um sapato? — pergunta ela, ríspida.

— Claro — responde Victor, assentindo. — Mas, por favor, não demore.

Amelia vai até o fim do corredor, resmungando irritada. Minutos depois, ela liga o carro e vai embora.

Victor olha para mim e para Dina.

— Não podemos ficar tanto tempo quanto o planejado — informa ele.

Dina também larga o prato e suspira com tristeza.

— Por que não? — pergunto.

— Surgiu um problema.

Olho para o meu prato, e o brilho metálico do garfo perde foco à medida que mergulho em pensamentos. Achei que teria tempo para encontrar a forma certa de contar para Dina tudo o que eu planejava contar. Agora estou desesperada tentando imaginar como começar a primeira frase.

— Dina — digo, respirando fundo. Eu me viro de lado para encará-la. — Eu matei um cara, meses atrás. — O rosto de Dina parece ficar rígido. — Foi em legítima defesa. Eu, hum... — Olho para Victor. Ele assente de leve, me motivando a continuar e garantindo que está tudo bem, embora eu saiba que ele não concorda cem por cento com o que estou fazendo. — Aliás, também matei um cara em Los Angeles na noite em que Dahlia e Eric foram encontrados mortos.

Dina ergue a mão enrugada e cobre a boca.

— Ah, Sarai... Você... o que você está...

— Dahlia e Eric foram assassinados por minha causa — interrompo, porque é evidente que ela não sabe o que dizer. — Não só a polícia de Los Angeles está atrás de mim para me interrogar, já que eu estava com eles, mas também os homens que mataram os dois estão na minha cola. É por isso que você está aqui.

— Meu Deus do céu. — Dina balança a cabeça sem parar, tira os dedos da boca e aperta os olhos cheios de pés de galinha em uma expressão preocupada.

Seguro a mão dela, que é fria e macia.

— Tem muita coisa que você não sabe. Onde eu estava de fato durante os nove anos em que minha mãe e eu ficamos desaparecidas. O que realmente aconteceu comigo. E com minha mãe. E eu não levei um tiro de um ex-namorado daquela vez em que Victor levou você para o hospital em Los Angeles. Eu levei um tiro de... — Olho para Victor de novo, mas decido por mim mesma não revelar essa informação. Ela não precisa saber de Niklas nem no que Victor e ele estão envolvidos. — Foi outra pessoa que atirou em mim. É uma história muito longa que você vai saber um dia, mas por enquanto só quero que você saiba a verdade sobre mim. — Passo os dedos com carinho nas costas da mão dela. — Você é a única mãe de verdade que eu tive. Fez tanta coisa por mim, sempre me apoiou, e eu devo essa honestidade a você.

Dina segura minha mão entre as dela.

— O que aconteceu com você, menina? — pergunta, com tanta dor e preocupação na voz que sinto um nó na garganta.

Começo a contar tudo, tanto quanto posso sem revelar qualquer informação sobre Victor e Niklas. Conto sobre o México e sobre as coisas que vi e vivi por lá. Conto sobre Lydia e sobre não conseguir salvá-la, apesar de ter lutado tanto. Omito sobretudo as relações sexuais que eu tinha com o cara que me mantinha presa, Javier Ruiz, um chefão mexicano do tráfico de drogas, armas e escravas, e só digo que eu estava lá contra a minha vontade e fui obrigada a fazer coisas que não queria. Dina cai no choro e me abraça forte, me balançando apertada contra o peito, como se eu é que estivesse chorando e precisasse de um ombro amigo. Ao menos dessa vez, contudo, não estou chorando. Só me sinto péssima por ter que contar tudo isso a ela, pois sei que isso a magoa muito.

Minutos depois, quando termino de contar tudo o que posso, Dina está sentada na beira do sofá, parecendo ligeiramente em choque. Mas ela está mais preocupada do que qualquer outra coisa.

Ela olha para Victor.

— Quanto tempo vou precisar ficar aqui? Gostaria muito de ir para casa. E quero levar Sarai.

— Isso não é uma boa ideia — argumenta Victor. — E quanto a Sarai, ela vai ter que ficar comigo. Por tempo indeterminado.

Engulo em seco ao ouvir as palavras dele, sabendo que Dina não vai aceitar isso.

— Então... Mas então o que isso significa? — pergunta ela, nervosa, voltando sua atenção somente para mim. — Sarai, você nunca mais vai voltar para casa?

Balanço a cabeça, cheia de culpa.

— Não, Dina, eu não posso. Preciso ficar com Victor. Estou mais segura com ele. E você está mais segura sem mim.

Dina balança a cabeça com ar solene.

— Você vai me visitar?

— Claro que vou. — Aperto a mão dela com delicadeza. — Eu nunca abandonaria você para sempre.

— Entendo — afirma ela, esforçando-se para aceitar.

Dina se volta para Victor.

— Mas eu não posso ficar na casa dessa mulher. Se você só me trouxe para cá para me proteger, prefiro voltar para casa. Não tenho medo desses homens. — Ela fica de pé e olha para mim. — Sarai, querida, eu nunca contaria nada para a polícia. Espero que acredite nisso.

Também me levanto.

— Sim, Dina, eu sei que você não contaria. O motivo para você estar aqui não tem nada a ver com a minha confiança em você. Trouxemos você para cá porque queremos que fique segura. Se alguma coisa acontecesse com você, principalmente por minha causa, eu jamais me perdoaria. Você é tudo o que me resta. Você e Victor. Você é minha família e eu não posso perdê-la.

— Mas eu não posso ficar aqui, querida. Já fiquei tempo demais. Amelia é gentil comigo, mas aqui não é a minha casa, e não quero ficar mais tempo do que ela quer que eu fique. Sinto como se minha presença fosse um fardo. Sinto falta das minhas plantas e da minha caneca de café favorita.

— Sra. Gregory — intervém Victor, impaciente, mas ainda respeitando os sentimentos dela. Ela se vira, mas ele faz uma pausa como se refletisse sobre algo. — Sarai não vai ficar segura se tiver que se preocupar com a sua segurança. Estou dizendo desde já: se a senhora voltar para casa, eles vão encontrar e matar a senhora assim que a virem, ou pior, vão sequestrá-la, torturá-la, gravar tudo em vídeo e usar as imagens para atingir Sarai. Entende o que estou dizendo?

A expressão grave e determinada de Dina desmorona sob um véu de sofrimento e resignação. Ela se vira para mim, com o semblante distorcido pela dor. Talvez esteja me pedindo uma confirmação das palavras de Victor, esperando que eu suavize a situação, que eu diga que ele só está sendo dramático. Mas não posso fazer isso. O que ele disse, embora brutal e sem rodeios, é exatamente o que ela precisa ouvir.

— Ele tem razão. Olhe, a gente vai dar um jeito nesses caras logo, tudo bem? Só preciso que você fique quietinha por mais um tempo, até a gente conseguir fazer isso.

— Mas concordo com a senhora — pondera Victor —, acho que não deve mais ficar aqui.

Dina e eu olhamos para ele ao mesmo tempo.

Victor continua:

— Quando estamos nos escondendo e ficamos tempo demais no mesmo lugar, com certeza somos encontrados.

— Então aonde ela deve ir? — pergunto, com várias possibilidades girando na cabeça, nenhuma das quais parece plausível. — Não me diga que quer levar Dina com a gente. Por mais que eu fosse adorar...

— Não, ela não pode ir com a gente — concorda Victor —, mas posso arranjar uma casa só para ela. Já fiz isso antes.

Afinal, Victor providenciou a casa em Lake Havasu City para mim e Dina.

— Mas você não disse que surgiu um problema e que a gente precisa ir embora antes do planejado? Não dá tempo de encontrar outra casa para ela. Isso levaria dias.

— Eu tenho uma casa — afirma Victor. — Fica longe do Arizona, mas acho que seria melhor para a senhora não ficar aqui por enquanto. O contato de Fredrik, o mesmo sujeito que trouxe a senhora para cá, pode levá-la a esse lugar. Está disposta a se mudar?

Dina se reclina no sofá, apertando as mãos uma na outra e as enfiando entre as pernas, vestidas em uma calça bege.

Eu me sento ao lado dela.

— Por favor, faça isso — peço a ela. — Vou me sentir muito melhor sabendo que você está segura.

Dina fica em silêncio por um longo momento, mas finalmente aceita.

— Estou velha demais para tanta emoção, mas tudo bem, eu vou. Só faço isso por você, Sarai.

Eu me inclino e a abraço.

— Eu sei, e é por isso que eu amo você.

— Onde fica a casa? — pergunto depois que deixamos Dina na casa de Amelia e pegamos a estrada. Ele não quis dizer antes a localização em voz alta, provavelmente porque não confiava no ambiente.

— Em Tulsa — responde Victor. — Tenho algumas casas espalhadas por aí, essa é uma delas. Nada luxuoso como a casa de Santa Fé, mas dá para morar nela, é aconchegante, e só a gente sabe que ela existe.

— Quem é esse contato de Fredrik, afinal?

— Ele não faz parte da Ordem, se é o que você quer saber. É só alguém que Fredrik conhece, um pouco como Amelia.

— Se não fazem parte da Ordem, quem eles são?

Victor me lança um olhar do banco do motorista.

— Amelia é só uma espécie de ex-namorada de Fredrik. Como os abrigos administrados pela Ordem, a casa de Amelia tem a mesma função. Mas temos muito menos preocupações em relação a ela, que nem sabe o que é a Ordem. Só o que ela tem é uma obsessão doentia por Fredrik e faz qualquer coisa que ele pedir.

— Ah, entendo — digo, embora não saiba direito se entendi. — Ela parece pegajosa.

— Pode-se dizer que sim.

— E o cara? Aquele que vai levar Dina até Tulsa?

Victor olha para a estrada, com uma das mãos relaxada na parte de baixo do volante.

— Ele é um dos nossos funcionários, na verdade. Um dentre uns vinte contatos que recrutamos desde que eu saí da Ordem. Nenhum deles sabe mais do que o necessário. Fredrik ou eu damos uma ordem, e, como em um emprego qualquer, eles obedecem. Claro que trabalhar com a gente é bem diferente de qualquer outro emprego, mas você entendeu.

— Eles não sabem o risco que correm por se envolver com você e Fredrik? E como vocês fazem para eles seguirem as ordens de vocês? O que eles fazem exatamente, além de levar Dina para um lugar qualquer, assim, do nada?

— Você está cheia de perguntas. — Victor sorri para mim. Uma carreta passa em disparada no sentido oposto, cegando-nos com os faróis altos. — Eles sabem do perigo, até certo ponto. Sabem que estão trabalhando para uma organização particular e são proibidos de falar sobre ela, mas nenhum dos nossos recrutas desconhece a discrição e a disciplina. Alguns são ex-militares, e todos foram escolhidos a dedo por mim. Depois de uma verificação completa do passado deles, é claro. — Victor faz uma pausa e acrescenta: — E eles fazem tudo o que pedimos, mas, para não metê-los em encrenca e proteger nossa operação, costumamos só pagar por tarefas simples. Vigilância. Compra de imóveis, veículos. E levar a sra. Gregory para um lugar qualquer, assim, do nada. — Victor sorri para mim de novo. — Como garantimos que eles sigam nossas ordens? O dinheiro é uma maneira formidável de influenciar pessoas. Eles são bem remunerados.

Apoio a cabeça no banco e tento esticar as pernas no chão do carro, já temendo a viagem longa.

— Um dos nossos homens estava no restaurante de Hamburg na noite em que eu encontrei você.

Tão depressa quanto apoiei a cabeça, levanto-a de novo e olho para Victor, em busca de mais explicações.

— A sra. Gregory só me ligou depois que você foi para Los Angeles — esclarece ele. — Eu estava no Brasil em uma missão, ainda procurando meu alvo depois de duas semanas. Fui embora assim que recebi a ligação da sra. Gregory, mas sabia que provavelmente não encontraria você a tempo, então entrei em contato com dois dos nossos homens que estavam em Los Angeles, dei a eles a sua descrição e alertei para que vigiassem o restaurante e a mansão de Hamburg. Eu sabia que você iria para um dos dois lugares.

Eu me lembro do homem atrás do restaurante depois que matei o segurança. O homem que misteriosamente me deixou fugir.

— Eu vi o cara. Fugi pela saída dos fundos e ele estava lá. Pensei que ele fosse um dos homens de Hamburg.

— Ele é — rebate Victor.

Pisco, atordoada.

— Ele e o outro homem foram dois dos meus primeiros recrutas. Los Angeles era a minha prioridade quando tudo isso começou.

— Você sabia que eu iria para lá.

Embora eu não queira tirar conclusões precipitadas e parecer iludida, sei que é verdade. Meu coração começa a bater como um punho quente. Saber a verdade, saber que Victor estava, durante todo aquele tempo, pensando em mim mais do que eu jamais poderia imaginar me deixa feliz e culpada. Culpada porque o acusei de me abandonar.

— Eu esperava que você esquecesse essa história. Mas, no fundo, sabia que você voltaria lá.

Ficamos em silêncio por um instante.

— Ele está bem? — pergunto, sobre o homem nos fundos do restaurante.

Victor assente.

— Está ótimo. Ele tinha sido contratado por Hamburg meses antes. Conhecia a planta do restaurante e sabia que a única saída alternativa da sala de Hamburg no andar de cima era a dos fundos. A propósito, ele quer pedir desculpa.

— Como assim? Ele me ajudou a fugir.

— A ordem que eu dei a ele foi para não deixar de jeito nenhum que você entrasse naquela sala. Foi a peruca platinada. Ele sabia que você tem cabelo castanho-avermelhado e comprido, não curto e louro. Quando ele se deu conta de quem era, Stephens já estava levando você. Ele não podia entrar porque a sala estava sendo vigiada, por isso foi até os fundos do restaurante, torcendo para conseguir entrar por ali de alguma forma, mas havia outros dois homens de guarda. Eles puxaram conversa e o seguraram ali, até que por fim ele os convenceu a deixá-lo vigiar o lugar sozinho. Logo depois, você saiu pela porta dos fundos.

Respiro fundo e apoio a cabeça no banco de novo.

— Bom, diga a ele que não precisa pedir desculpa. Mas por que ele não me disse logo quem era? Ou não me levou até você?

— Ele precisava segurar o Stephens tempo suficiente para você conseguir fugir, e o fato de ele continuar trabalhando para Hamburg ajuda. Ele não sabe o que os dois planejam nem coisa alguma sobre as operações. É só um segurança, nada além disso. Mas está lá dentro, e isso já é valioso para a gente.

Desafivelo meu cinto de segurança e me esgueiro entre os bancos da frente com a bunda empinada (de um jeito bem deselegante para uma dama, admito) para alcançar o banco de trás. Flagro Victor admirando a cena enquanto me espremo para passar, e isso me faz corar.

— Só tenho mais uma pergunta a acrescentar à lista.

— O que seria? — pergunta ele, zombando de mim.

— Por quanto tempo a gente vai ter que viajar assim? — Estico as pernas no banco de trás e me deito. — Sinto muita falta dos jatinhos particulares. Essas viagens longas de carro vão acabar me matando.

Victor ri. Acho isso incrivelmente sexy.

— Você está dormindo com um assassino, fugindo todo dia de homens que querem matar você e acha que vai morrer por falta de conforto. — Ele ri de novo, e isso me faz sorrir.

— É, acho — digo, me sentindo só um pouco ridícula. Não posso negar a realidade, afinal, por mais sem sentido que ela seja.

— Não vai ser por muito mais tempo — responde Victor. — Não podemos chamar atenção até que eu consiga me livrar completamente de Vonnegut. Ele tem contatos em muitas áreas, e transportes luxuosos, confortáveis e secretos estão no topo de sua lista de prioridades, por motivos óbvios. Dou menos na vista viajando de trem do que de jatinho particular.

Satisfeita com a resposta, não digo mais nada sobre o assunto e olho para cima, para o teto escuro do carro.

— Só para constar — digo, mudando de assunto —, eu não estou só dormindo com um assassino. Estou muito envolvida com ele.

— É mesmo? — pergunta Victor, e sei que ele está sorrindo.

— Sim, temo que seja verdade — digo, em tom de brincadeira, como se fosse algo ruim. — E é um envolvimento bem pouco saudável.

— É mesmo? Por que você acha isso?

Suspiro, dramática.

— Ah, sei lá. Talvez porque ele nunca vai conseguir se livrar de mim.

— Pegajosa. Como Amelia — provoca Victor, tentando me irritar.

E ele consegue. Eu me levanto um pouco e dou um soco de leve em seu ombro. Ele se encolhe, fingindo dor, mesmo com um sorriso largo no rosto.

— Longe disso — digo, e volto a me deitar. — Nem ferrando que eu vou fazer tudo o que ele quer, como a Amelia.

Victor ri baixinho.

— Bem, pelo jeito ele vai ter que aguentar você para sempre, então.

— Vai, e para sempre é muito tempo.

Ele faz uma pausa e então diz:

— Bom, só para constar, algo me diz que ele não gostaria que fosse diferente.

Adormeço no banco de trás muito tempo depois, com um sorriso no rosto que pareceu continuar ali pelo resto da noite.


CONTINUA

CAPÍTULO NOVE

Sarai

Estou mordendo o lábio por dois motivos: porque estou torcendo para que seja uma boa notícia e porque estou sexualmente frustrada. Victor fala com Fredrik por menos de dois minutos, desliga e digita outro número. Quando consegue falar com Dina, ele me passa o celular.

Pego o aparelho e o encosto no ouvido.

— Dina?

— Sarai, meu Deus, onde você está? O que está acontecendo? Eu estava sentada na sala vendo TV e um homem bateu na porta. Eu não ia deixar ele entrar, fiquei desconfiada na hora; estava quase pegando minha espingarda. Mas ele disse que queria falar de você. Ah, Sarai, fiquei com tanto medo de que tivesse acontecido alguma coisa! — Ela finalmente respira.

— Você está bem? — pergunto, baixinho.

— Sim, sim, estou ótima. O melhor que eu poderia estar. Mas ele me falou que iríamos para a delegacia encontrar você. Até me mostrou um distintivo. Não acredito que caí nessa. O cavalheiro mentiu para mim. — Dina para de falar e abaixa a voz, como se estivesse sussurrando para ninguém ouvir. — Ele me levou para a casa de uma prostituta. O que está acontecendo? Sarai...

— Vai ficar tudo bem, Dina, prometo. E não se preocupe. Seja lá quem more nessa casa, duvido que seja uma prostituta.

Os olhos de Victor cruzam com os meus. Desvio o olhar.

— Onde você está? Quando vai voltar? Sei que você está metida em alguma encrenca, mas sempre pode me contar tudo.

Gostaria que isso fosse verdade. Mais do que tudo, neste momento. Mas a verdade maior é que não sei como responder às perguntas de Dina. Victor deve ter percebido a fisionomia confusa no meu rosto, porque tirou o telefone da minha mão.

— Sra. Gregory — diz ele ao telefone. — Aqui é Victor Faust. Preciso que a senhora me ouça com bastante atenção. — Ele espera alguns segundos e continua. — A senhora vai precisar ficar onde está pelos próximos dias. Vou levar Sarai para vê-la em breve, e vamos explicar tudo, mas, até lá, precisa ficar escondida. Não, sinto muito, mas a senhora não pode voltar... Não, não é seguro lá. — Ele assente algumas vezes, e percebo, pelas leves rugas que se formam entre seus olhos, que ele não se sente à vontade falando com ela, como se alguém colocasse de repente um bebê no colo dele. — Sim... Não, me escute. — Ele perde a paciência, então vai direto ao assunto. — É uma questão de vida ou morte. Se a senhora sair ou ligar para qualquer conhecido, vai acabar morrendo.

Tenho um sobressalto e me encolho com essas palavras, não por serem verdade (isso eu já sabia), mas porque fico imaginando a reação de Dina a elas. Só posso imaginar o que ela deve estar pensando nesse momento, como deve estar apavorada. Apavorada por mim, não por si mesma, e isso faz doer ainda mais.

— Sim, ela está bem — afirma Victor mais uma vez para tranquilizá-la. — Só mais alguns dias. Eu vou levar Sarai aí.

Falo com Dina por mais alguns minutos, contando o que posso, mas sem revelar demais, para acalmá-la. Claro que isso não está ajudando muito, considerando as circunstâncias. Nós desligamos e eu fico ali na sala, me sentindo muito diferente de como me sentia antes da ligação.

Acho que enfim caiu a ficha do tamanho da merda que fiz.

Antes, quando achava que era eu quem corria o maior perigo, e depois que disse para Eric e Dahlia saírem de Los Angeles, eu estava preocupada, mas não tanto assim. Os danos que causei afetam mais do que minha própria segurança. Sem querer, pus todas as pessoas que conheço e amo em perigo.

A realidade de tudo isso, dos meus atos e das consequências em efeito dominó, o fato de Victor ter me deixado, de eu ter tentado levar uma vida normal e fracassado; não consigo mais. Não suporto mais nada disso. Cacete, até a dorzinha por ter encontrado Dahlia com Eric está começando a me incomodar. Não por causa de Eric, ou porque ele era meu “namorado”, mas porque o que eles fizeram não me afetou como deveria ter afetado.

Sou uma aberração. E, no momento, não consigo perdoar Victor por me fazer passar por essa situação, por me jogar em uma vida que nós dois sabíamos que não serviria para mim e por esperar que eu me adaptasse. Eu não queria desde o começo. E foi exatamente por isso que não deu certo.

As lágrimas começam a inundar meus olhos. Deixo que caiam. Não me importa.

Sinto a presença de Victor atrás de mim, mas antes que ele me toque me viro para encará-lo com a raiva distorcendo meu rosto. E enfim certas coisas que eu queria dizer a ele depois de todo esse tempo saem, em uma tempestade de palavras furiosas.

— Você me abandonou, porra! — Bato com as palmas das mãos em sua camisa social justa. — Você deveria ter me matado e pronto! Você consegue imaginar o que me fez passar?! — Lágrimas cheias de raiva escorrem dos cantos dos meus olhos.

— Me desculpe...

Franzo a testa na mesma hora.

— Você quer se desculpar? — Solto o ar ruidosamente. — É só isso que você consegue dizer? Me desculpe?

No fundo, sei que nada disso é culpa de Victor, sei que ele só fez o que fez para me proteger. Mas a maior parte de mim, a parte que não quer acreditar que eu não tenho mais salvação, quer pôr a culpa em qualquer um, menos em mim mesma.

As lágrimas começam a me fazer engasgar.

— Toda santa noite — disparo, apontando com raiva para o chão, meu rosto retorcido de raiva e rancor —, todas as horas de todos os dias, eu pensava em você. Só em você, Victor. Eu vivia cada dia com esperança, acreditando de coração que você ia voltar para mim. Os dias passavam e você não aparecia, mas nunca perdi a esperança. Eu pensava comigo mesma: Sarai, ele está vigiando você. Ele está testando você. Ele quer que você faça o que ele disse, que tente ser como todo mundo, que tente se misturar. Quer que você prove para ele que é forte o suficiente para enfrentar qualquer situação, se adaptar a qualquer estilo de vida. Porque, se você não consegue fazer algo tão simples quanto levar uma vida normal, nunca vai conseguir viver com ele. — Mordo o lábio inferior e tento sufocar as lágrimas. Balanço a cabeça devagar. — Isso era o que eu pensava. Mas fui idiota por achar que você tinha alguma intenção de voltar para mim. — Um tremor induzido pelo choro percorre meu peito.

Victor, com o semblante angustiado que nunca imaginei ver nele, se aproxima. Recuo, balançando a cabeça sem parar, esperando que ele entenda que não estou pronta para ficar muito perto. Quero ficar sozinha com a minha dor.

— Sarai? — diz ele, baixinho.

— Não — digo, recusando-o com um gesto. — P-por favor, me poupe das desculpas e dos motivos pelos quais sei que não posso culpar você. Eu sou egoísta, ok? Eu sei! Já sei que você fez o que precisava fazer. Já sei...

— Não, não sabe.

Levanto os olhos para encontrar os dele.

Victor se aproxima. Desta vez não me afasto, minha mente está paralisada por suas palavras, por mais escassas ou vagas que elas sejam. Ele segura meus cotovelos e descruza minhas mãos. Seus dedos roçam de leve a pele sensível da parte interior dos meus braços, descem até encontrarem minhas mãos e as seguram.

— Eu saí da Ordem principalmente por causa de você, Sarai — explica Victor, e o resto do meu corpo fica paralisado. — Quando Vonnegut descobriu que eu estava ajudando você, ele soube... — Ele faz uma pausa, parecendo estar vasculhando sua mente à procura das palavras menos perigosas. — Ele soube que eu me comprometi...

Jogo as mãos para cima.

— Fale inglês! Por favor, diga de uma vez sem se esforçar tanto para fazer rodeios! Por favor!

— Vonnegut soube que eu tinha... começado a gostar de você.

Fico paralisada e meus lábios se fecham. Meu coração bate descompassado. Minhas lágrimas parecem secar em um instante, só as que molham minhas bochechas continuam escorrendo.

— Como eu era o Número Um de Vonnegut, seu “favorito”, a última coisa que ele queria era mandar me matar. Ele me afastou do serviço, me desligou por um tempo, até... que eu criasse juízo.

Faço uma cara de “que-droga-isso-significa”.

— Pode chamar de lavagem cerebral — acrescenta Victor.

Ele afasta a ideia com um gesto.

— Não importa. O que importa é que ele ia me dar uma única chance de provar que o meu sentimento por você era só um lapso, e que nunca mais iria acontecer. Pouquíssimos agentes têm uma segunda chance na Ordem.

— Um lapso? — Eu me sento na mesinha de centro. Olho para Victor e digo: — Para mim, parece que Vonnegut queria que você provasse que não é humano, mas sim o soldado obediente a ele, incapaz de ter emoções. Que babaca desequilibrado.

Victor assente e se agacha diante de mim, entrelaçando os dedos, com os cotovelos apoiados nas coxas.

— Vonnegut mandou que eu matasse você — conta ele em voz baixa, sustentando o meu olhar. — Para provar a mim mesmo. Eu disse que ia fazer isso, que queria fazer, provar que eu era digno de confiança, e ele me soltou. Claro que eu não tinha nenhuma intenção de matar você. Parti naquele dia e procurei um esconderijo. Niklas, que só conheceu a Ordem a vida inteira, decidiu ficar. Pensei que talvez ele só precisasse de um tempo para entender o que estava acontecendo e decidir o que era melhor para ele. Eu também estava me escondendo de Niklas. Sem saber onde eu estava, ele não precisaria enganar Vonnegut nem achar que precisava escolher entre mim e ele. Mas aí Fredrik me contou que Niklas foi contratado para me matar e está me procurando desde então.

— Que desgraçado — comento, balançando a cabeça sem acreditar, mas depois penso de novo. — Você disse que saiu da Ordem principalmente por minha causa. Além de mim, qual foi o outro motivo?

— Isso já estava para acontecer havia muito tempo — conta Victor. — Quando precisei matar meu pai para salvar meu irmão, entendi que era hora de sair. — Seus dedos fortes acariciam os meus, mais delicados. — Você me deu a motivação final de que eu precisava para fazer isso de uma vez.

Com a ponta dos dedos, acaricio seu rosto com a barba um pouco por fazer. Victor continua a me encarar, seus olhos sondando os meus através do pequeno espaço entre nós, cheios de paixão e compreensão. Eu me curvo e beijo seus lábios.

— Eu sinto muito pelo seu irmão — digo, baixinho.

Ele roça os lábios nos meus, e a sensação se espalha pelo meu corpo até os dedos dos pés, como uma dose de uísque.

— Eu não estava testando você, Sarai. — Ele me beija de novo.

— Então o que você estava fazendo? — Eu o beijo também e derreto ao sentir suas mãos se movendo por minhas coxas.

Victor me ergue nos braços, envolvendo minhas pernas em sua cintura, minha bunda acomodada nas palmas de suas mãos enormes. Meus dedos sobem pelos lados de seu rosto e tocam sua boca antes que meus lábios toquem também.

— Eu estava esperando o momento certo — diz ele enquanto sua boca encontra meu pescoço.

Enfio os dedos em seu cabelo castanho curto, erguendo o queixo ao sentir sua boca explorando meu pescoço e meu maxilar. Meus olhos estão fechados, as pálpebras pesadas, e sinto um formigamento quente ao qual sei que não dá para resistir. Victor me carrega pela sala, embora eu não saiba para onde nem me importe com isso. Aperto mais as pernas nuas ao redor de sua cintura, sentindo a superfície fria e lisa de seu cinto de couro pressionando o interior das minhas coxas. Meus dedos estão trabalhando nos botões de sua camisa, abrindo-os com facilidade.

Victor não responde às minhas perguntas, mas isso também não me importa.

Os lábios dele cobrem os meus, a umidade quente de sua língua se entrelaçando avidamente com a minha. Sem parar de me beijar, Victor me faz apoiar os pés no chão para tirar minha calcinha, uma perna de cada vez. Ele ergue meus braços e tira minha camiseta, jogando-a no chão. Minhas mãos mexem no cinto dele, movendo a lingueta do buraco e puxando a tira de couro de uma só vez em um movimento rápido. Ele tira a calça e a cueca boxer preta. Minha boca recebe seu hálito quente e ofegante enquanto ele me carrega mais uma vez e pressiona minhas costas na parede, como se não quisesse esperar para chegarmos ao quarto de hóspedes. Também não quero esperar. Já esperamos demais.

Sinto seu pau entrando em mim, e, antes que ele deslize até o fundo, uma descarga de prazer corre pelas minhas coxas e sobe pela coluna, relaxando meu pescoço e fazendo minha cabeça se apoiar na parede. Sinto meus olhos formigando e ardendo. A umidade morna entre minhas pernas é inundada por um êxtase quente e trêmulo.

Ele mete uma vez bem fundo e se mantém ali, segurando meus quadris, com minhas costas pressionadas contra a parede fria. Abro os olhos devagar, ainda sem controlar direito as pálpebras, e o encaro. Ele me fita com a mesma intensidade voraz. Minha respiração é curta e irregular quando escapa dos meus lábios entreabertos. Meus braços estão ao redor dele, em um abraço apertado, meus dedos cravados nos músculos rijos de suas costas.

— Eu queria isso há tanto tempo — digo, ofegante.

— Você não faz ideia... — rebate Victor, para então me devorar com um beijo, tão violento que quase perco o controle dos meus músculos.

Minhas coxas se contraem em sua cintura quando ele mete seu pau em mim de novo. Estremeço e gemo, minha cabeça bate com força na parede. Ele segura meu corpo no lugar com os braços encaixados nas minhas coxas, forçando seu quadril contra o meu, e eu sinto pequenas explosões no estômago a cada investida.

Minhas costas se arqueiam, meus seios ficam expostos a ele, que cobre um mamilo com a boca. Ergo os braços acima da cabeça, procurando alguma coisa onde eu possa me segurar para cavalgá-lo, mas não encontro nada. Envolvo seu pescoço com os braços para sustentar meu peso e rebolo em sua virilha, gritando e gemendo, desesperada para mergulhar cada centímetro do seu pau duro tão fundo quanto possível. Seus dedos afundam dolorosamente nas minhas costas. Sua língua se enrosca na minha, seus gemidos atravessam meu corpo.

Gozo rápido e forte, minhas pernas e o ponto entre elas se contraindo ao redor dele, meus músculos tremendo. Ele goza segundos depois e segura meu corpo bem firme no lugar, com minha bunda em suas mãos musculosas, para se esvaziar dentro de mim.

Nesse momento, não estou nem aí para as consequências do que acaba de acontecer. Mas só nesse momento.

Com a cabeça apoiada no ombro dele, Victor me carrega pelo corredor até o banheiro espaçoso em frente ao quarto de hóspedes. Ele me senta na bancada e fica de pé no meio de minhas pernas nuas.

— Não se preocupe. — Ele dá um beijo na minha testa e abre a porta de vidro do boxe do chuveiro.

— Com o quê? — pergunto, confusa.

Ele gira a torneira, que range, e regula a água quente e a fria até encontrar a temperatura desejada. Eu o observo da bancada, o modo como seu corpo alto e escultural se move, as curvas de seus músculos entalhadas em um desenho poético ao redor de seus quadris, suas panturrilhas enrijecendo quando ele anda.

Ele volta para perto de mim e termino de tirar sua camisa, deslizando-a por seus braços musculosos.

— Você não vai engravidar — diz ele, e me manda descer da bancada e segui-lo até o chuveiro. — Não de mim, pelo menos.

Um pouco surpresa, deixo por isso mesmo.

Ele fecha a porta do boxe e começa a lavar meu cabelo. Eu me perco naquela proximidade, no modo como suas mãos exploram meu corpo com tanta precisão e desejo.

Por muito tempo, esqueço que ele é um assassino cujas mãos tiraram muitas vidas sem sequer um pensamento de remorso ou arrependimento. Esqueço que também sou uma matadora cujas mãos tiraram uma vida há poucas horas.

Parece que fomos feitos um para o outro, como duas peças de um quebra-cabeça que de início parecem não se encaixar, mas que se adaptam perfeitamente quando vistas pelo mais improvável dos ângulos.


CAPÍTULO DEZ

Victor

A empregada de Fredrik volta para a casa bem cedo na manhã seguinte. Acordo assim que amanhece, e ela entra em casa quando estou tomando meu café no pátio dos fundos. Ela me vê através da porta de vidro ao passar pela sala, e então vem falar comigo no pátio.

— Gostaria de café da manhã, señor? — pergunta ela em espanhol.

Deixo a pasta com meu próximo serviço virada para baixo na mesinha de ferro batido.

— Obrigado, mas não vou comer — respondo, e depois aceno para Sarai, que está andando pela sala, procurando por mim. — Mas ela vai.

— Eu vou o quê? — pergunta Sarai ao passar pela porta de vidro aberta. Ela anda descalça pelo pátio de pedra, usando outra camiseta de Fredrik. Fico muito incomodado por ela ter que usar roupas dele em vez das minhas, mas a única roupa que tenho é a que estou usando, além de um short largo de corrida. O cabelo longo e castanho de Sarai está despenteado, pois ela acaba de acordar e sair da cama.

Ela se senta no meu colo e eu encaixo a mão direita entre suas coxas.

— Café da manhã.

Sarai boceja e estica os braços para o alto antes de apoiar a cabeça no meu ombro. Ponho a mão esquerda em sua cintura para mantê-la equilibrada no meu colo. O cheiro da pele e do cabelo recém-lavados de Sarai acelera meu corpo todo.

Ela faz uma careta sutil, meio que rejeitando a ideia.

— É melhor você comer.

Levantando a cabeça do meu ombro, Sarai olha para mim por um momento, pensativa, e depois dirige sua atenção para a empregada.

— Claro, eu gostaria de tomar café da manhã, se não for incômodo — diz, em espanhol.

Por um momento, a empregada parece surpresa por ouvir Sarai falando seu idioma nativo, mas ela logo se recompõe, assente e volta para dentro da casa.

— Acho que a gente já adiou essa questão o suficiente — diz Sarai. — Para onde é que vamos, Victor? O que eu vou fazer?

Estou pensando exatamente nisso desde que descobri que ela veio para Los Angeles e fez o que fez. Olho para a piscina, perdido em pensamentos, minha última tentativa desesperada de organizar as respostas na cabeça. Mas elas continuam tão fragmentadas e bagunçadas quanto sempre estiveram. Todas, menos uma.

— Sarai — digo, olhando novamente para ela —, você não pode voltar para casa. Eu sabia disso na primeira vez em que mandei você para o Arizona. A situação não estava nem de longe tão terrível quanto ficou depois, mas, agora que as coisas mudaram, você não pode mais voltar.

— Então vou ficar com você — rebate ela. Pela primeira vez na vida, não tenho coragem de protestar. Nem contra ela nem contra mim mesmo. A maior parte de mim, a parte humana e imperfeita, quer que Sarai fique comigo, e nada vai me impedir de fazer isso dar certo.

Mas sei que não vai ser fácil.

— Sim — digo, passando a mão em sua coxa macia —, você vai ficar comigo, mas há muitas coisas que precisa entender.

Ela se levanta do meu colo e fica de pé na minha frente, com um braço na frente do corpo e o outro cotovelo apoiado nele. Distraída, ela passa as pontas dos dedos no rosto macio, fitando o que parece ser o nada. Então ela me olha e balança a cabeça com uma expressão perplexa.

— Eu esperava que você fosse resistir mais. Qual é a pegadinha? A despeito do que aconteceu entre a gente ontem à noite, ou do que está acontecendo desde que nos separamos, nunca pensei que você fosse concordar em me levar junto.

— Você gostaria que eu resistisse? — Abro um sorriso capcioso.

Ela sorri também e deixa os braços relaxarem.

— Não. Com certeza não. E-eu só...

Levanto uma perna e apoio o pé no outro joelho.

— Nunca me imaginei em uma situação dessas. Não posso mentir e dizer que acho que vai dar certo. Muito provavelmente não vai, Sarai, e você precisa entender isso. — Ela parece ficar um pouco desanimada, o bastante para eu saber que minhas palavras sinceras a entristeceram mais do que ela se permite revelar. — Não posso mudar o meu jeito. Não só porque é tudo o que sei fazer, ou porque é o que faço melhor, mas também porque não quero. — Olho para Sarai. — Eu nunca vou parar de fazer o que faço.

— Eu nunca ia querer que você parasse — retruca ela, com certa intensidade. Sarai puxa uma cadeira próxima e a coloca diante de mim antes de se sentar. — Tudo o que eu quero, Victor, é ficar com você. Vou fazer qualquer coisa que você espere que eu faça, mas quero que me ensine...

Levanto a mão e a interrompo imediatamente.

— Não, Sarai, também não vou fazer isso. Não é assim que vai ser. — Sua expressão se anuvia e ela desvia o olhar, magoada com minha recusa. — Já falei, eu praticamente nasci nesta vida. Você ia levar quase o resto da sua para aprender a fazer o que eu faço, e mesmo assim não ia ficar boa o suficiente.

— Então, o que eu devo fazer? — pergunta ela, com um tom de ressentimento na voz. — Quero estar com você aonde quer que vá, mas não quero ficar à toa, tomando martínis na praia enquanto você sai para matar pessoas. Eu não sou inútil, Victor, posso fazer alguma coisa.

— Você pode fazer muitas coisas, sim — digo, interrompendo-a. — Mas fazer o que eu faço está totalmente fora de cogitação. Por que você quer tanto isso? — Levanto a voz quando sinto, de repente, uma necessidade desesperada de entender a resposta.

Sarai bate as palmas das mãos nas coxas nuas.

— Porque é o que eu quero.

— Mas por quê?

Ela ergue as mãos para os lados e grita:

— Porque eu gosto! Entendeu?! Eu gosto!

Pisco algumas vezes, completamente atordoado por essa confissão. Na verdade, essa era a última coisa que eu esperava ouvir de Sarai. Parte de mim sabia que ela era mais do que capaz de tirar a vida de alguém e dormir em paz toda noite depois disso, mas nunca previ que ela fosse gostar de matar.

Não sei ao certo como me sinto a respeito disso. Preciso de mais informações.

Eu me inclino para a frente e fico cara a cara com Sarai.

— Você gosta de matar? — pergunto, embora isso saia mais como uma afirmação. — Então, se alguém pedisse a você que tirasse a vida de outra pessoa, você faria isso sem questionar?

— Não — responde ela, franzindo o cenho. — Eu não mataria qualquer um, Victor, só homens que merecessem.

Homens? Esse lado de Sarai está ficando mais intrigante. Eu me pergunto se ela sabe o que acaba de dizer. Homens. Não pessoas em geral, mas homens.

Eu me afasto dela e me reclino na cadeira de novo, virando a cabeça para o lado, pensativo.

— Explique.

Ela também se recosta, encolhendo as pernas e apoiando os pés no assento, virando os joelhos para o lado.

— Homens como Hamburg. Homens como Javier Ruiz, Luis e Diego. Homens como o segurança que matei ontem. Willem Stephens, pelo simples fato de trabalhar para Hamburg sabendo o que o chefe faz. Homens como John Lansen e todos os outros que conheci naquelas festas de gente rica quando estava com Javier. — Seu olhar penetra o meu. — Homens que merecem ter a garganta cortada.

A gravidade das palavras de Sarai e a determinação em seu rosto me silenciam por um momento. Será possível que eu agora tenha não um, mas dois assassinos por perto que compartilham o gosto pelo derramamento de sangue? E, no exato momento em que o rosto surge na minha mente junto com o de Sarai, ouço o carro de Fredrik na entrada da garagem. Isso interrompe o momento intenso, e ambos olhamos para cima.

Instantes depois, Fredrik, vestido de maneira informal com um jeans escuro e uma camisa de grife, vem nos encontrar no pátio. Ele deixa o jornal do dia na mesa de centro e diz:

— É melhor você dar uma olhada nisso. — Então olha para Sarai por um momento. — A propósito, minhas roupas ficam bem em você.

Fuzilo Fredrik com o olhar, mas escondo meu ciúme antes que qualquer um dos dois perceba.

Sarai e eu olhamos para o jornal, mas sou eu quem o pega. Desdobrando-o, corro os olhos pelo texto até encontrar aquilo a que Fredrik se refere.

Quatro pessoas foram encontradas mortas a tiros em um hotel de luxo de Los Angeles, na madrugada passada. Somente dois corpos foram identificados, os de Dahlia Mathers, 23 anos, e Eric Johnson, 27 anos, ambos de Lake Havasu City, Arizona.

Algumas frases abaixo:

Sarai Cohen, também de Lake Havasu City, é procurada pela polícia para prestar esclarecimentos.

Acho que não importa que identidade Sarai usou para fazer o check-in no hotel, o rosto dela é o mesmo nas duas.

Ela arranca o jornal das minhas mãos antes que eu possa terminar.

— Não... — Ela cerra os dentes e seu rosto fica sério enquanto lê a notícia trágica sobre seus amigos. Ela procura meus olhos, mas logo se volta para o jornal, como se sua mente torcesse para ter lido tudo errado na primeira vez. — Falei para eles irem embora de Los Angeles! Dahlia disse que eles iam embora... — Seus olhos verdes encaram os meus, cheios de desespero e despedaçados pela culpa.

Fico de pé.

Sarai pega o jornal com as duas mãos e o rasga bem no meio, amassando as duas metades em seus punhos.

— Eles mataram Dahlia e Eric, porra! — ruge ela. — Eles estão mortos!

O jornal cai de suas mãos e voa pelo pátio de pedra.

Fredrik apenas me olha, esperando para ver o que vou fazer ou dizer. Ele não fala, mas percebo que quer.

— Sarai. — Por trás dela, ponho as mãos em seus ombros. — Eu vou cuidar disso.

Ela se vira para mim. Seu cabelo balança ao redor da cabeça antes de cair de novo nos ombros e seu rosto está ardendo de fúria.

— ELES MORRERAM POR MINHA CAUSA! COMO LYDIA!

Tentando acalmá-la, aperto seus ombros com força, de frente, e a seguro.

— Eu disse que vou cuidar disso — repito com ainda mais intensidade e sinceridade do que antes. Eu me inclino para a frente para manter seu olhar fixo no meu. — Vou fazer isso por você, Sarai. Hamburg e Stephens estarão mortos antes do fim desta semana.

Ela não ouve. Está me encarando, mas parece estar olhando através de mim. Seu peito sobe e desce com a respiração ofegante e irregular. Suas pupilas parecem pequenas, como buracos de grampos em uma folha de papel. O verde de seus olhos parece ter escurecido.

— Não — rebate ela, com a voz calma. — Não quero que você faça nada.

Absorta em pensamentos, ela dá um passo para trás, e minhas mãos caem de seus ombros.

— Vou fazer isso por você. Eu quero...

— Eu disse que não! — Ela dá mais dois passos e se vira, me dando as costas e olhando para a piscina. — Eu vou fazer isso — afirma ela, em voz baixa e decidida. — Vou matar os dois e não quero que você se meta.

— Acho que não...

Ela vira a cabeça, seus olhos escuros cruzando com os meus.

— Se você matar qualquer um deles, nunca vou perdoar você. Isso é assunto meu, Victor! Me deixe fazer pelo menos isso!

— Sarai, você não pode matá-los. — Eu me aproximo dela. — A única pessoa que vai morrer é você. Não vai conseguir...

— Estou cagando para isso! — Percebo que o objetivo de Sarai é inabalável. Ela volta para perto de mim. — Ou você me ajuda a fazer isso ou eu mesma vou descobrir como fazer. Eles vão morrer nas minhas mãos, não nas suas, nas de Fredrik nem nas de qualquer outra pessoa. Só nas minhas. Me ensine. Me mostre o que fazer. Qual é a melhor forma de agir para alguém como eu. Me ajude, ou vou morrer tentando por minha conta. Para mim, tanto faz.

— Eu não vou... você não pode — retruco, balançando a cabeça.

Sarai desiste e tenta me empurrar para fora de seu caminho. Mas não deixo que ela passe. Não posso, pois sei que cada palavra que ela disse foi a sério.

Eu a seguro pelo pulso, detendo sua marcha furiosa até a porta de vidro. Fredrik sai do caminho, assistindo ao desenrolar da cena com um brilho estranho nos olhos, que só posso interpretar como fascinação.

— Me solte!

— Você não vai embora. — Eu a prendo pelo pulso com força, e agarro o outro quando ela começa a me bater.

Ela quer descontar toda a raiva em mim, gritar na minha cara, me xingar com as palavras que tanto quer dizer a Hamburg e Stephens antes de matá-los, mas não consegue. A raiva, como sempre, a domina, e Sarai cai no choro.

Ela me disse uma vez que sempre chora quando está furiosa.

As lágrimas escorrem como rios por seu rosto. Sarai tenta mais uma vez se desvencilhar de mim, mas a seguro firme e faço uma pressão dolorosa sobre seus pulsos, tentando acalmá-la.

— Victor, por favor! Porra, basta me ensinar, cacete! Mesmo que seja matar os dois e mais ninguém! É tudo que eu peço! Nunca mais vou pedir a sua ajuda! POR FAVOR!

Sarai enfim para de se contorcer e desaba sobre meu peito. Eu a envolvo em meus braços, aninhando sua nuca nas mãos e pressionando o lado do meu rosto no alto de sua cabeça. Sarai chora com violência, seu corpo treme no meu abraço. Não são gritos de tristeza e dor, são gritos de culpa, raiva e da necessidade desesperada de vingar a morte de pessoas — até de Lydia — que poderiam ainda estar vivas, se não fosse por ela.

Fredrik olha para mim. Sei o que a expressão calma dele quer dizer. Ele acha que eu deveria dar a Sarai o que ela quer.

Mas não é a opinião de Fredrik que me faz decidir, no fim das contas. É minha necessidade de proteger Sarai, ainda que ela possa acabar morta no final.

Escolho o mais seguro dos dois caminhos malfadados.

— Eu vou ajudar você.


CAPÍTULO ONZE

Sarai

Levanto o rosto do peito de Victor, fungando as malditas lágrimas que mais uma vez me traíram em um momento de fraqueza.

— Você vai me ajudar a matá-los?

Ele assente.

— Vou.

— Obrigada — digo, baixinho.

Fico na ponta dos pés e dou um beijo suave em sua boca.

Da porta de vidro atrás de nós, a empregada diz com uma voz fraca:

— O café está pronto.

Ela nos fita com seus olhos escuros e curiosos, sem dúvida por ter ouvido a discussão enquanto estava lá dentro.

— Marta faz uns ovos mexidos ótimos — comenta Fredrik, com um sorriso radiante, como se nada tivesse acontecido. — Frita em gordura de bacon. — Ele junta os dedos nos lábios e os beija. — Adoro comida americana.

Ele vai atrás de Marta.

— Se bem que parece que ovos mexidos em gordura de bacon é uma comida do Sul, não? — pergunta ele, olhando para nós enquanto o seguimos.

Victor dá de ombros.

— Bem, Marta não é exatamente do Alabama — continua ele, ao entrarmos na cozinha. — Mas sabe cozinhar como se fosse.

Fredrik e Victor continuam tagarelando sobre comida, provavelmente para me fazer esquecer o que aconteceu. Mas, nesse momento, nada mais me importa além do rosto de Dahlia e Eric na memória. Sei que estou sendo punida. Pela vida. Pelo destino. Não sei por quem ou pelo quê, só sei que faria qualquer coisa para devolver a vida aos meus amigos.

Nós três nos sentamos à mesa com tampo de vidro da cozinha e comemos. E acho quase engraçado Fredrik fazendo Marta provar a comida antes de nos servir, como se ele tivesse aprendido essa técnica paranoica no Manual de Victor Faust.

Durante o café, que dura muito tempo por causa da conversa, Fredrik acaba liberando Marta pelo resto do dia. Isso acontece logo depois que ele começa a falar em sueco com Victor. Odeio não entender o que eles dizem, mas fica claro para mim que era por causa de Marta, e não por mim.

Marta pega a bolsa e se despede de nós, agradecendo a Fredrik por pagar um dia inteiro.

— Por que isso? — pergunto, depois que ela vai embora.

Apoio o garfo no prato ao terminar meu café.

— Temos muito o que conversar — explica Fredrik, tomando um gole de suco de laranja. — E ela não pode ouvir a conversa. — Ele aponta para mim e sorri. — E Marta, embora não pareça, ouve tudo o que acontece por aqui.

— Então por que vocês não continuaram conversando em sueco? — questiono.

— Você fala sueco? — rebate Victor.

— Não.

— Bem, você tem que participar da conversa — diz ele, deixando o copo d’água na mesa.

Sorrio. Nesse momento, me sinto parte deles pela primeira vez. Dos dois. Nós três sentados à mesa, que minutos depois já está livre dos pratos e dos copos, substituídos por pastas e fotografias de serviços de execução. Para mim, é meio surreal discutir detalhes de interrogatórios e assassinatos tão casualmente, como se estivéssemos falando do tempo. Mas também, pela primeira vez na vida, sinto que pertenço a algum lugar. Não estou mais andando por um túnel escuro, com as mãos à frente, procurando a porta. A porta está bem ali, à mostra, e já passei por ela. Enfim encontrei meu lugar na vida. E estou com Victor, o que para mim é mais importante do que tudo.

Finalmente estou com Victor.

Victor e eu saímos da casa de Fredrik nas colinas de Los Angeles no fim da tarde e dirigimos por onze horas até Albuquerque, Novo México. No caminho, paramos em um shopping, onde gasto praticamente uns 2 mil dólares em roupas e sapatos novos, acessórios e maquiagem, já que tudo o que tenho está no Arizona ou ficou no hotel em Los Angeles. Encho o banco de trás com sacolas de compras e caixas de sapatos, mas, lá pela nona hora de viagem, me arrependo de ter comprado tanta coisa. Tudo o que quero é me arrastar para o banco de trás e dormir, mas tenho que me conformar em ficar apertada na frente, encolhida em uma posição desconfortável no banco do Cadillac CTS preto de Victor, com a cabeça apoiada na janela. Desde que Victor saiu da Ordem, ele não tem mais a conveniência de usar jatos particulares para viajar. Se quisesse, com certeza poderia pagar um do próprio bolso, mas ser alguém que a Ordem quer matar significa não dar na vista e abrir mão de alguns luxos que poderiam levar Niklas até ele.

Ao que tudo indica, esses luxos abdicados incluem as residências extravagantes e multimilionárias nas quais Victor sempre preferiu morar. Sua casa em Albuquerque é bem diferente daquela onde ele morava na Costa Leste, com vista para o mar. Quando paramos na entrada de terra batida, vejo uma casa de tamanho médio, com paredes nuas de reboco bege e em um formato de caixa que me faz lembrar as casas que eu construía com peças de Lego quando era criança. Contudo, a julgar pelo jardim elaborado que envolve o caminho branco e liso até a porta e o lado esquerdo da casa, é óbvio que Victor não abriu mão de todos os luxos. Isso fica mais óbvio ainda quando entramos, pois o interior é tão bonito quanto o da casa de Fredrik, apesar do estilo mais interiorano e menos luxuoso. Vermelho-ferrugem, marrom e amarelo dominam o ambiente, com pé-direito alto sustentado por vigas e sarrafos de madeira escura, que fazem a casa parecer muito maior por dentro do que por fora. Uma aconchegante lareira de pedra ocupa uma das paredes da espaçosa sala de estar, com dois espelhos decorativos de metal pendurados acima dela. As paredes são amarelas, combinando com os pisos de terracota que parecem ocupar toda a casa.

— De uma coisa tenho certeza: você sempre consegue as melhores empregadas — comento, deixando várias das minhas sacolas no chão da sala.

— Desta vez, não — diz Victor atrás de mim. Ele deixa as outras sacolas que trouxe do carro perto do sofá de couro marrom-alaranjado. — Sou só eu.

— Sério? Mas está tudo tão limpo. Acho que você não passou muito tempo aqui, então, não é?

— Uns quatro meses. — Ele olha para mim. — Você gostou? Espero que sim, porque é o seu novo lar.

Um sorriso desponta no meu rosto.

Victor desabotoa e tira a camisa, deixando-a nas costas de uma poltrona de couro marrom. Observo discretamente seu corpo enquanto ele anda por um corredor longo e bem-iluminado com uma entrada em arco.

Sigo Victor.

— Claro que você sabe que não vamos ficar aqui para sempre. — Entramos em um quarto grande. — Mas é nosso lar por enquanto, pelo menos.

Ele tira a calça e me esforço ao máximo para não olhá-lo com intensidade demais, mas isso fica cada vez mais difícil.

— Vem cá — chama ele, parado diante de mim sem nada além de sua cueca boxer preta e apertada, que pouco ajuda a esconder o volume crescendo por baixo do tecido.

Engulo em seco, nervosa, embora não saiba a razão para esse nervosismo repentino, e me aproximo dele. Sinto um espasmo entre as pernas, e também não sei ao certo por que isso acontece. É como se meu subconsciente estivesse mais a par do que vai acontecer do que minha parte consciente. Ou então apenas perdi o controle sobre minha mente e só consigo pensar no que eu gostaria que acontecesse.

Olho para Victor, curiosa, inclinando um pouco a cabeça para o lado.

— Não sei bem o que é isso entre a gente — diz ele, com cuidado —, mas tenho certeza de que não quero que acabe. Seja o que for.

— Eu também.

Um pouco confusa quanto ao rumo que a conversa está tomando, inclino a cabeça para o outro lado e pergunto:

— Algum problema?

Ele balança a cabeça devagar.

— Não, problema nenhum.

— Bem, se você está preocupado que eu vá me apaixonar e grudar em você feito chiclete, não precisa.

— Você não está apaixonada por mim? — pergunta Victor, e não parece nada além de uma simples questão.

— Não, eu não amo você, Victor.

Ele parece concordar.

— Ótimo. Porque eu também não estou apaixonado por você.

Acho que nem eu nem ele sabemos de fato o que essa palavra significa em uma situação assim. Ambos exibimos a mesma expressão de aceitação, mas também parecemos um pouco confusos.

— Mas... eu, hã... — Entrelaço os dedos atrás das costas e olho para o chão, mexendo o pé como se estivesse tentando afundar os dedos na areia. Paro para encará-lo. — Mas eu, hã, talvez... preferisse que você não dormisse com mais ninguém. Eu... bom, acho que eu não ia gostar muito disso.

— Concordo — diz Victor, assentindo mais uma vez, com firmeza. — Acho que se eu pegar você com outro homem vou ter que matá-lo.

Balanço a cabeça algumas vezes, de maneira tão casual quanto ele.

— Com certeza — concordo eu. — O mesmo vale para você.

— De acordo.

Há um momento de silêncio constrangido entre nós, e corro os olhos pela cama king-size com dossel alto de cerejeira, que está a alguns passos de distância.

Victor se aproxima e eu me viro para observá-lo. Ergo os braços quando ele passa os dedos por baixo da minha camiseta e a tira.

— Também quero dizer que não me incomodo se você grudar em mim feito chiclete. — Ele enfia os dedos no elástico da minha calcinha. — Só para constar.

— Mesmo?

Victor se agacha diante de mim ao descer a calcinha por meus quadris e minhas pernas. Fica ali, me olhando de baixo, com a cabeça na altura do meu umbigo.

— Sim — responde ele. — Mas claro que você não pode me atrapalhar quando eu estiver tentando fazer um serviço.

— Sim, claro — digo, e minha pele reage aos seus lábios, que beijam a área logo acima da minha pélvis. — E-eu nunca atrapalharia o seu trabalho — gaguejo.

Minhas mãos começam a tremer quando ele desce e para entre as minhas pernas, abrindo meus grandes lábios com os polegares.

Afasto os joelhos só um pouco, o bastante para que ele tenha acesso.

— Mas nada de me abandonar em algum lugar distante enquanto você viaja pelo mundo para cumprir os contratos — digo, enfiando os dedos no cabelo dele, com a respiração irregular e acelerada. — Não quero ser dona de casa, entendeu?

Um suspiro agudo corta o ar perto da minha boca quando a ponta de sua língua lambe meu clitóris. Quase derreto ali mesmo, os músculos das coxas perdendo força a cada segundo.

— Sim, entendo o que você quer dizer — diz Victor, e me lambe de novo, explorando entre as minhas pernas. Jogo a cabeça para trás e puxo seu cabelo com mais força, enrolando-o nos dedos. — Você vai aonde eu for. Para eu poder ficar de olho em você.

— De olho em mim. Claro.

Que resposta patética. Só consigo pensar na cabeça de Victor no meio das minhas pernas, e naquela sensação quente e formigante que está amolecendo minhas entranhas.

Victor me ergue segurando minha bunda com firmeza e com minhas coxas em torno da cabeça. Então me lambe furiosamente por um momento antes de me jogar de costas na cama.

Com os joelhos dobrados no peito, vejo sua boca entrar no meio das minhas coxas e reviro os olhos enquanto ele me faz esquecer tudo.


CAPÍTULO DOZE

Sarai

O treinamento começa dois dias depois, mas não da maneira que eu esperava. Não sei o que eu esperava, na verdade, mas com certeza não era isso.

— O que a gente está fazendo aqui? — pergunto quando paramos no estacionamento de uma academia de artes marciais a uma hora de Santa Fé.

— Krav maga — esclarece Victor, e olho como se ele estivesse falando outra língua. Ele fecha a porta do carro e andamos até a fachada do prédio. — Não vou conseguir dedicar cem por cento do meu tempo ao seu treinamento. Por isso, três dias por semana, vou trazer você aqui. Dá para aprender muita coisa com o krav maga em pouco tempo. E o foco é a defesa pessoal...

— O quê? — Paro na calçada antes de passarmos pela porta. — Não sou uma donzela em perigo que acaba de ser assaltada em um estacionamento escuro, Victor. Não preciso de aulas de defesa pessoal. Preciso aprender a matar.

— Matar é a parte fácil — rebate Victor, sem rodeios. Ele abre a porta de vidro e faz um gesto para eu entrar. — Chegar a esse ponto sem morrer tentando é a parte difícil.

— Então você quer que eu aprenda a dar um chute no saco de um cara? — pergunto, bufando de desdém. — Acredite, eu já sou perfeitamente capaz disso.

Um sorriso discreto aparece nos cantos de seus lábios deliciosos.

Nesse momento, um sujeito alto, moreno e com músculos bem-definidos se aproxima de nós no grande salão. As janelas no alto da parede deixam o sol entrar. Dois grupos de pessoas estão treinando em pares, formando um semicírculo em um enorme tatame preto estendido por boa parte do chão.

O homem de braços musculosos e camiseta preta estende a mão para Victor.

— Faz quanto tempo? Três anos? Quatro?

Victor aperta a mão dele com firmeza.

— Uns quatro, acredito.

O homem me olha por um momento, e então Victor nos apresenta.

— Spencer, esta é Izabel. Izabel, Spencer.

— Prazer — diz Spencer, estendendo a mão.

Relutante, aperto a mão dele. Eles se conhecem? Não sei se gosto disso ou não. De repente, sinto que aquilo é alguma armação. Sorrio com desdém para aquele brutamontes alto e simpático.

Victor se vira para mim e diz:

— Não tem ninguém melhor para treinar você em defesa pessoal do que Spencer. Você está em boas mãos.

Spencer abre um sorriso tão largo que, se fosse um pouco maior, acho que daria para engolir minha cabeça. Ele está com os braços musculosos à sua frente, com as mãos cruzadas. As veias, grossas como cordas, que percorrem suas mãos e seus braços bem bronzeados me lembram das de um fisiculturista, mas ele não tem esse tamanho todo. Só é maior do que eu, o que me intimida mais.

Levanto um dedo para Spencer.

— Você nos dá licença um minutinho?

— Claro — responde ele.

Percebo o leve sorriso que ele dá para Victor.

Pego Victor pela mão e o puxo para o lado. Ao fundo, ouço, de maneira constante, corpos sendo jogados naquele tatame preto e a voz de um instrutor entoando comandos repetitivos e mandando os alunos fazerem “de novo”.

— Victor, acho que isto é perda de tempo. Não sei por que você me trouxe aqui. — Cruzo os braços. — Quero aprender essas coisas com você, não com um cara aleatório do tamanho de um ônibus. — Olho por cima do ombro, torcendo para que Spencer não tenha ouvido, embora eu tenha tomado o cuidado de sussurrar.

— Preciso me encontrar com Fredrik daqui a uma hora — explica Victor.

— Ah, então você vai me deixar com uma babá? — Franzo o cenho e balanço a cabeça para ele, totalmente incrédula, para não dizer ofendida.

— Não, não é isso.

— Mas eu quero que você me ensine — repito, forçando as palavras com rispidez entre meus dentes cerrados.

Victor suspira e balança a cabeça, parecendo aborrecido e frustrado comigo.

— Você não tem disciplina. Nenhuma. Igualzinha ao meu irmão. — Isso fere o meu orgulho. — Como vou ensinar alguma coisa para você, se não é capaz nem de fazer as coisas mais simples que eu peço?

Na mesma hora, me arrependo por agir feito uma criança. Solto um suspiro de resignação.

— Desculpe — digo, baixinho. — Pensei que fosse treinar com você, só isso.

— Você vai treinar comigo — garante Victor, pondo as mãos nos meus ombros. — Mas por enquanto precisa aprender o básico. E esta é a melhor maneira.

— Mas por que você não pode me ensinar o básico? — pergunto, com o mesmo tom resignado de antes. — Por que precisa ser ele?

Victor se inclina e beija de leve o canto da minha boca.

— Porque Spencer não tem medo de machucar você — explica ele, e isso me surpreende um pouco. — E não quero fazer isso, se eu puder evitar. Você só vai aprender se for real.

Arregalo os olhos.

— Espere aí... Então você está dizendo que aquele tanque de guerra — digo, apontando por cima do ombro com o polegar — vai me bater de verdade?

— Sim. É para isso que ele está sendo pago.

Parece que meu queixo acaba de bater no chão. De repente, sinto um calafrio percorrer minha espinha.

— Você não é obrigada a fazer isso, Sarai, mas, se realmente é o seu desejo, quero que vá com tudo. Não faça de qualquer jeito. Na vida real, quem atacar você não vai facilitar as coisas — afirma Victor, enquanto me encara com atenção, querendo desesperadamente que eu o entenda e confie nele. — Vou treinar com você no momento certo. Mas, quando eu fizer isso, vai ser brutal, Sarai. Vou atacar com a mesma força que um agressor de verdade usaria. Aprenda o básico primeiro, domine algumas habilidades para conseguir me enfrentar, e vou me sentir melhor para treinar você pessoalmente. Entendeu?

— É, acho que sim — respondo, assentindo. E estou sendo sincera.

Entendo perfeitamente agora. Nem me lembro da última vez que estive tão nervosa para fazer alguma coisa. Mas Spencer, o tanque, não me assusta tanto, na verdade, porque lá no fundo sei que, mesmo que Victor esteja lhe pagando para não facilitar comigo, ele não vai usar toda a sua força em mim. Se usasse, me mataria.

— Você quer ficar? — pergunta Victor.

— Quero.

— Ótimo.

Ele se inclina para meus lábios de novo e me beija com intensidade, tirando meu fôlego. Chocada por essa demonstração pública de afeto tão atípica, fico sem palavras quando ele desgruda os lábios dos meus.

— Volto para buscar você daqui a algumas horas.

— Tudo bem.

Nós voltamos para perto de Spencer, que parece um tanto empolgado para começar a treinar comigo, como se eu fosse um brinquedo novinho em folha com o qual ele não vê a hora de brincar.

— Pronta para começar a aprender krav maga? — pergunta Spencer.

— Estou — respondo, e meu olhar vai até as pessoas lutando no tatame preto atrás dele.

— Tem certeza de que você aguenta?

Quero dizer que sim com confiança, porque, afinal de contas, sempre imaginei que aulas de defesa pessoal consistissem em nada mais do que bloquear golpes, bater e sinalizar aos outros onde estou. Sempre imaginei mulheres comuns, que nunca lutaram na vida, todas de pé em um círculo, esperando a vez para derrubar o instrutor com alguns golpes “úteis”. Contudo, ao observar o grupo que está treinando atrás de Spencer, a intensidade agressiva e a violência de alguns golpes, começo a achar que esse tipo de defesa pessoal é bem diferente.

— Deve ser simples — digo, sem a segurança que queria.

— Se você diz — responde Spencer, com um sorriso conivente que deixa meus nervos ainda mais em frangalhos.

Mas não estou com medo. Nervosa, sim, mas não com medo. Estou pronta para fazer isso. Começo até a ficar ansiosa. Quero provar a Victor que dou conta.

E quero provar a ele que não sou nada parecida com seu irmão.

Victor vai embora. Antes do fim da primeira hora, estou exausta e tão dolorida que mal consigo andar em linha reta sem cambalear.

— Sempre se defenda e ataque ao mesmo tempo — explica Spencer, em pé, enquanto estou deitada no tatame e querendo me encolher em posição fetal. — E nunca vá para o chão. Isto não é luta greco-romana, Izabel. Se você vai para o chão, você morre.

Sem fôlego e tentando controlar a dor intensa que queima minha panturrilha, me levanto.

— Me ataque — ordena ele, elevando a voz acima dos poucos gritos de quem ainda assiste à aula depois da segunda hora. — Se não me atacar, eu ataco você!

Estou exausta demais.

— Não consigo! — Desisto e caio de bunda no tatame. — É demais. Hoje é meu primeiro dia e parece que é minha primeira luta de verdade. Cadê a parte em que você me mostra o que fazer e me ensina a dar os golpes?

— O que você quer mesmo é que eu pegue leve com você, não é?

— Isso! Cadê as instruções? As regras?

Minhas costas estão me matando. Deito no tatame, abrindo os braços acima da cabeça, e olho para o teto iluminado. Não quero mais saber de Spencer e de seu treinamento de imersão total. Só quero descansar.

As lâmpadas fluorescentes do teto começam a se mover depressa quando sinto de repente que estou sendo arrastada pelo tornozelo.

— Não há regras no krav maga — ouço Spencer dizer, mas percebo, meio segundo depois, que não é ele quem está me arrastando.

É uma mulher, com cabelo castanho-claro preso em um rabo de cavalo. Confusa com a mudança, fico distraída demais para notar o pé dela atingindo meu estômago. Berro de dor, me dobrando para a frente ao levantar as pernas e as costas do tatame ao mesmo tempo, com os braços cruzados sobre o abdômen. O golpe expulsa todo o ar dos meus pulmões.

— CHEGA! — grita Spencer, em algum lugar atrás de mim.

Sinto que vou vomitar.

A mulher para no mesmo instante e dá alguns passos para trás.

— Levante — manda Spencer, e decifro, em meio à dor que acaba com meu tórax, que sua voz está muito mais perto do que antes.

Ergo a cabeça e o vejo agachado ao meu lado.

— Vou deixar você recuperar o fôlego — diz ele, baixinho, oferecendo a mão. — Esta é Jacquelyn. Minha mulher.

Pego no antebraço dele, ele me segura e me põe de pé.

— Muito prazer — digo a ela, fazendo uma careta horrorosa de dor. — Ou em conhecer o seu pé, pelo menos.

Ela dá uma risadinha.

— O seu namorado me pagou para encher você de porrada, basicamente — afirma Spencer. — Mas, como não tenho o hábito de bater em mulher, achei melhor deixar minha esposa fazer as honras para que eu pudesse receber o pagamento do mesmo jeito.

— É a melhor maneira de aprender — intervém Jacquelyn. — Esse seu homem sabe o que está fazendo. É brutal? Claro. Necessário para sobreviver a situações de combate corpo a corpo? Com certeza. Indicado para peruazinhas delicadas que ficam pulando e gritando de medo quando veem uma aranha? Nem fodendo.

— Bom, eu não sou uma dessas — digo, com frieza. — Disso você pode ter certeza.

— Então prove — provoca ela, curvando-se para a frente com as mãos semiabertas ao lado do corpo. — Lembre, o krav maga não tem regras. Sempre defenda e ataque ao mesmo tempo. Sempre lute com agressividade. E nunca vá para o chão.

— Ok, essa parte eu entendi. Se eu for para o chão, estou morta.

Jacquelyn praticamente me dá uma surra durante o resto da aula. E, quando Victor finalmente chega para me buscar, meu nariz e meu lábio estão sangrando, meu olho direito está roxo e latejando e acho que quebrei um dente.

Isso continua dia sim, dia não pelas duas semanas seguintes.

Não levei muito tempo para ficar boa no krav maga. Spencer diz que tenho um talento natural e que devo ter “dispensado as Barbies quando era criança”.

Ele não faz nem ideia...

Estou ficando muito mais forte, muito melhor na minha técnica. Em certo momento, até consegui machucar Jacquelyn ao enfiar o cotovelo nas costelas dela. Acho que quebrei algumas, mas ela não admite. Não por orgulho, mas porque não acha certo reclamar nem deixar algo tão insignificante quanto uma costela fraturada impedir que ela lute.

Também não demorou para que eu começasse a simpatizar com ela. Quando Jacquelyn não está me enfiando a porrada, até gosto de sua companhia.

Só duas semanas se passaram. Até agora, não fiz nada além de treinar com Jacquelyn e aprender a usar armas com Victor. Ainda assim, apesar de curtir o treino e esperá-lo ansiosamente todo dia, fico frustrada por estar demorando tanto. Eu esperava que Hamburg e Stephens já estivessem mortos faz tempo, a essa altura.

Estou ficando impaciente.

— Victor, eu não pretendo lutar com Hamburg e Stephens. Só quero matá-los. Mais nada. Não entendo por que você está me fazendo passar por tudo isso.

Victor se descobre e sai da cama, andando nu pelo quarto.

Em silêncio, admiro a visão.

— Tem mais coisas envolvidas nisso do que você imagina — diz ele, desaparecendo ao entrar no banheiro.

Aquilo com certeza desperta meu interesse.

Eu me levanto e grito:

— É mesmo?

Jogo o lençol no chão e ando depressa atrás dele, parando à porta do banheiro e me apoiando no batente. Ele está abrindo a água do chuveiro.

Victor fecha o boxe de vidro, deixando a água correr por um momento, e então se vira para mim.

— Você não está fazendo todo esse treinamento só para matar Hamburg e Stephens. Se vai ficar comigo, independentemente de como vai ocupar o seu tempo, precisa aprender a lutar. Precisa saber identificar, diferenciar, carregar e disparar praticamente qualquer tipo de arma. Há muitas coisas que você precisa saber, e não temos tempo suficiente para aprender metade delas. — Ele abre a porta do boxe e estende o braço, deixando a água correr sobre a mão para sentir a temperatura.

Ele acrescenta:

— Esse treinamento não tem muito a ver com Hamburg e Stephens. Quero que você esteja sempre segura, por isso é vital que aprenda essas coisas agora.

Abro um sorriso leve, saboreando o momento. Quando nos conhecemos, eu não imaginava que Victor tivesse um só traço de preocupação ou emoção no corpo. Mas a cada dia testemunho que ele está se abrindo mais para mim. E vejo que isso está se tornando mais fácil para ele.

Volto ao assunto em questão, mas o que eu gostaria mesmo de fazer, a essa altura, é beijá-lo.

— Mas por que isso está demorando tanto? Quero acabar com essa história de uma vez.

Entro no banheiro e me sento na bancada da pia, apenas de calcinha.

— Porque, enquanto eu elaboro um plano para você chegar perto dos dois e matá-los, você precisa treinar, ocupar seu tempo o máximo possível. — Victor se aproxima de mim e segura meu rosto com as mãos. — Só estar no mesmo quarto comigo, só me conhecer, Sarai, já é uma sentença de morte diária. Cada vez que você sai por aquela porta, corre o risco de levar um tiro. O único motivo pelo qual a Ordem ainda não me encontrou é que Niklas é o único agente atrás de mim. Quer dizer, por enquanto. Ele não quer que ninguém mais me ache. Ele quer levar o crédito. O reconhecimento. Sobretudo porque foi ele o contratado para acabar comigo. — Victor pressiona os lábios na minha testa. Fecho os olhos, levanto os braços e seguro os pulsos dele. — Mas um dia, provavelmente daqui a pouco, vou ter que enfrentar meu irmão, pois a Ordem não vai dar todo o tempo do mundo para ele cumprir a missão. Ou ele me encontra ou eu o encontro. E um de nós vai morrer.

Com os dedos ainda envolvendo os pulsos dele, afasto delicadamente suas mãos do meu rosto. Olho para aqueles lindos olhos verde-azulados, perplexa, inclinando a cabeça para um lado.

— Por que não deixa isso para lá? Victor, entendo você querer matar Niklas antes que ele mate você, mas por que correr o risco de morrer procurando briga?

O vapor começa a encher o banheiro, embaçando o grande espelho acima do balcão, atrás de mim.

— Porque se Niklas não me encontrar, se não conseguir cumprir o primeiro contrato oficial desde que foi promovido a agente sob o comando de Vonnegut, eles vão matá-lo. — Victor apoia as mãos na bancada, à minha direita e à minha esquerda. — Ninguém, a não ser eu, vai matar meu irmão. Não me importa o que ele fez ou as diferenças que temos, ainda é meu irmão.

Faço que sim, compreensiva.

— Tudo bem, então quando tudo isso vai acontecer? Esse... confronto com Niklas? Minha chance de matar Hamburg e Stephens?

Victor abre um sorriso malicioso e eu passo as pontas dos dedos em seus lábios. Ele segura minha mão e beija meus dedos.

— Vamos ter que trabalhar nesse seu problema, Sarai. A sua impaciência e, claro, como já falei, a indisciplina. É o próximo item da nossa agenda.

— Não consigo evitar a impaciência. Aqueles dois babacas horríveis continuam por aí, levando uma vida de luxo, fazendo só Deus sabe o quê com sabe-se lá quantas mulheres. Isso sem falar que estão me procurando. Mataram meus amigos por minha causa. Dina continua escondida longe da casa dela e está com medo. A vida dela foi virada de cabeça para baixo por causa deles. Por minha causa. Quero que eles morram para que pelo menos Dina possa seguir a vida.

— O que você vai dizer para ela? — pergunta Victor. — Quando se encontrar com ela hoje, o que vai dizer?

Desvio o olhar e vejo o vapor revestir as altas paredes de vidro do boxe, ondulando acima do chuveiro em nuvens suaves. Começo a suar um pouco, o rosto, o pescoço e o colo úmidos.

— Vou contar a verdade para ela.

— Você acha uma boa ideia?

Encaro Victor.

— Acho justo. Ela é praticamente minha mãe. Fez muito por mim. Eu devo a verdade a ela. — Sorrio e acrescento: — Além disso, se você não concordasse com minha decisão de contar a verdade, já teria deixado isso bem claro, a essa altura.

Victor retribui meu sorriso e me segura pela cintura, me ajudando a descer da bancada.

— Acho que é melhor a gente se arrumar, se quiser chegar lá a tempo — observa ele, e me leva até o chuveiro. Tiro a calcinha antes de entrar no boxe com ele.

Victor disse a Dina e a mim que me levaria para vê-la alguns dias depois de o contato de Fredrik a tirar de Lake Havasu City. Mas as coisas não saíram conforme planejamos. Victor e Fredrik concordaram que era arriscado e cedo demais. Uma noite, ouvi os dois conversando sobre Dina e sobre como ela poderia estar sendo vigiada no dia em que o contato de Fredrik chegou para buscá-la. Victor queria ter certeza de que isso não havia acontecido, e que, se qualquer um de nós aparecesse por acaso no esconderijo de Dina, não cairia em uma armadilha. Mas, à medida que os dias passaram e Fredrik continuou vigiando a casa onde Dina estava se escondendo, ele e Victor tiveram certeza de que ela era, de fato, segura.

Hoje, enfim, vou vê-la pela primeira vez desde que viajei com Eric e Dahlia para Los Angeles.


CAPÍTULO TREZE

Victor

Sarai precisa estar preparada não só para as ameaças iminentes, mas também para a vida que a espera. Ela escolheu um caminho há muito tempo, no dia em que me conheceu, embora ainda não soubesse. Eu não queria enxergar, por isso lutei comigo mesmo contra a necessidade estranha e antinatural de ficar perto dela, porque queria que ela tivesse uma vida normal.

Não queria que ela terminasse como eu...

Mas eu sabia, oito meses atrás, antes de deixá-la naquele quarto de hospital ao lado da sra. Gregory, que um dia eu voltaria para ela. Nunca foi minha intenção nem meu plano, eu apenas sabia que acabaria acontecendo, de uma maneira ou de outra.

Por 28 dos meus 37 anos de vida, a única coisa que conheci foi a Ordem. Só conheci disciplina e morte. Nunca conheci amizade ou amor sem suspeitas e traições. Fui... programado para desafiar as emoções e ações humanas mais comuns, mas eu... Só quando conheci Sarai me permiti acreditar que Vonnegut e a Ordem não eram minha família, que me usaram como seu soldado perfeito. Eles me negaram a vida toda os elementos que nos tornam humanos. E não posso permitir que isso fique impune.

Um dia, vou matar Vonnegut e acabar com o resto da Ordem pelo que fizeram comigo e com a minha família. Uma família que eles destruíram. Sarai é minha família agora, e espero que Fredrik prove sua lealdade no teste final que farei com ele. Eles são minha família e não vou permitir que a Ordem também os destrua.

Mas, por enquanto, Sarai é o meu foco, e será pelo tempo que for necessário. Ela precisa ser treinada. Precisa absorver o máximo que puder, o mais rápido que conseguir. É impossível que um dia ela chegue ao meu nível. Ela nunca vai conseguir viver a vida de um assassino como eu, porque levaria metade da vida para aprender. É por isso que a Ordem nos recruta tão jovens. É por isso que Niklas e eu fomos levados quando éramos crianças.

Sarai nunca vai ser como eu.

Mas ela tem outros talentos. Tem habilidades que, mesmo depois de tantos anos de treinamento, eu jamais conseguiria superar. A vida de Sarai na fortaleza no México lhe garantiu um conjunto único de habilidades que não se aprendem em uma aula nem se leem em um livro. Ela mente e manipula com maestria. Pode se tornar outra pessoa em dois segundos e enganar uma sala cheia de gente que ninguém mais conseguiria enganar. Consegue fazer um homem acreditar no que ela quiser com muito pouco esforço. E não tem medo da morte. Ela é melhor do que uma simples atriz. Porque ninguém percebe a farsa até que seja tarde demais. Javier Ruiz foi o verdadeiro professor de Sarai. Ele lhe ensinou coisas que eu jamais conseguiria transmitir. Foi seu verdadeiro treinador, ensinando os talentos mortais que agora começam a defini-la como assassina. E, como todos os mestres perversos, Javier Ruiz também foi a primeira vítima de sua aluna favorita.

Assim como foi com as habilidades que Sarai já possui, para aprender a lutar e entender a luta de verdade, ela precisa vivê-la e respirá-la todos os dias. Forçá-la a treinar com Spencer e Jacquelyn é necessário para a sua sobrevivência porque ela precisa aprender o máximo que puder sempre que for possível. Mas são as habilidades que ela já tem que vão transformá-la em um soldado único.

São essas habilidades que nos tornam a dupla perfeita.

Antes disso, contudo, Sarai precisa entender a fundo do que é capaz. E precisa passar pelos testes. Todos eles, até aqueles que podem fazê-la me detestar.

Não tenho dúvidas de que isso vai acontecer. Ela passar nos testes, pelo menos. Se ela vai me detestar, ainda é discutível.

Chegamos a Phoenix logo depois do pôr do sol e somos recebidos à porta da casinha branca por Amelia McKinney, o contato de Fredrik. Ela é uma mulher linda, voluptuosa e com um longo cabelo louro, embora sua característica menos atraente seja seu grande par de peitos de plástico, que com certeza devem lhe dar dor nas costas. E ela usa roupas bem chamativas para uma mulher com doutorado que dá aula no ensino fundamental há cinco anos.

— Olá, Victor Faust — cumprimenta ela, com um tom sedutor, segurando a porta aberta para mim e Sarai. — Ouvi falar muito de você.

— Muito? Interessante.

Com uma das mãos, ela deixa aberta a porta de tela, dá um passo para o lado e acena para entrarmos na casa, sacudindo um monte de pulseiras com pingentes de ouro. Vários anéis enormes enfeitam seus dedos. E ela cheira a sabonete e a pasta de dente.

Coloco minha mão nas costas de Sarai e deixo que ela entre antes de mim.

— Fredrik me falou de você — conta Amelia, fechando a porta. — Mas acho que “muito” é exagero nesse caso, já que ele mesmo não parece saber muita coisa a seu respeito. — Ela gira a mão ao lado do corpo e acrescenta: — Mas imagino que o fato de eu saber tão pouco é o que torna você ainda mais intrigante.

— Nem pense nisso — intervém Sarai, parando nossa pequena fila indiana e se virando para encará-la.

Disciplina, Sarai. Disciplina. Suspiro em silêncio, mas admito que fico de pau duro ao vê-la tão superprotetora com o que lhe pertence.

Amelia levanta as mãos, por sorte em um gesto de resignação e não de desafio.

— Sem problemas, meu anjo. Não tem problema nenhum.

Sarai aceita essa bandeira branca e andamos mais pela casa, onde encontramos Dina Gregory na cozinha, preparando o que parece ser uma ceia de Ação de Graças para umas 15 pessoas.

Sarai corre para os braços abertos de Dina, e começam os sorrisos e as palavras de alívio e empolgação. Ignoro tudo isso por um momento, voltando minha atenção para assuntos mais prementes: o que está ao meu redor e essa mulher que não conheço.

Não confio em ninguém.

Amelia, como muitas mulheres do círculo de Fredrik Gustavsson, não sabe nada sobre a Ordem nem sobre o envolvimento que eu ou Fredrik temos com organizações do tipo. Ela não é o que Samantha, do Abrigo Doze no Texas, era para mim. Não, a relação de Amelia e Fredrik, embora tecnicamente não possa mais ser chamada assim, é muito mais... complicada.

Começo a vasculhar a casa em busca de câmeras e armas, tateando estantes, vasos de plantas, cacarecos e móveis, instalando minha própria parafernália secreta de espionagem no caminho.

— Fredrik disse que você talvez fizesse isso — diz Amelia, atrás de mim, embora eu tenha certeza de que ela não viu o pequeno aparelho que acabo de grudar embaixo da mesinha da TV. Ela ri baixo. — Eu limpei a casa muito bem antes de você chegar. Cadê as suas luvas de borracha? — brinca ela.

Não viro para trás nem paro o que estou fazendo.

— Você recebeu alguma visita desconhecida desde que a sra. Gregory veio para cá? — pergunto, debruçando-me sobre uma mesa ao lado de uma cadeira reclinável e examinando um abajur.

— Uau, você e Fredrik são mesmo os caras mais paranoicos que já conheci. Não. Não que eu lembre. Bom, um vendedor de TV por satélite veio uma vez semana passada, querendo que eu desistisse da TV a cabo. Além dele, ninguém.

Ela se aproxima de mim por trás e abaixa a voz:

— Por quanto tempo essa mulher vai ficar na minha casa? — Noto com a visão periférica que ela olha para a porta da cozinha, para garantir que ninguém consiga ouvi-la além de mim. — Ela é legal e tudo, mas... — Amelia suspira com ar culpado. — Olha, eu tenho 30 anos. Não moro com meus pais desde os 16. Ela está atrapalhando o meu jogo. Eu trouxe um cara aqui semana passada e ele pensou que ela fosse minha mãe. Ficou chato. Não transo desde que ela chegou.

Eu me viro para encará-la.

— E há quanto tempo você conhecia o sujeito que trouxe aqui?

— Hein?

— O homem. Há quanto tempo estava dormindo com ele?

Suas sobrancelhas finas e bem-cuidadas se juntam no meio da testa.

— E isso por acaso é da sua conta? Vai me perguntar em quantas posições a gente trepou também?

— Quanto tempo?

— Conheci o cara em um bar, sábado passado.

— Bem, ele conta como uma visita desconhecida.

Ela quer discutir, mas se contém.

— Ok. Tudo bem. O cara do satélite e o quase peguete do bar. Só eles.

— Antes que eu vá embora, vou precisar do nome desse cara e de qualquer outra informação que você possa me dar sobre ele, incluindo uma descrição detalhada.

Ela balança a cabeça e ri, contrariada.

— Não sei por que aguento essas merdas do Fredrik. — Então Amelia abre uma gavetinha da mesa e tira um bloco de notas e uma caneta.

— Porque você não resiste — observo, mas sem querer ser desagradável. Outra coisa que preciso praticar: ficar de boca fechada quando as mulheres dizem certas coisas que dispensam comentários.

Ofendida, ela arregala os olhos azuis brilhantes. Rabisca alguma coisa na folha, arranca-a do bloco e a enfia na minha mão.

— O que isso significa? — Contudo, antes de me dar a chance de cometer outra gafe, ela muda o tom de voz, chega perto de mim e sussurra de maneira sedutora: — Ei... O que vocês dois têm em comum, afinal?

Sei exatamente sobre o que Amelia está perguntando. Ela especula sobre as minhas preferências sexuais e provavelmente torce para que sejam tão sombrias quanto as de Fredrik. Mas ela está pisando em um território muito perigoso, com Sarai na sala ao lado.

— Não muito — respondo, enfiando no bolso a folha com o nome e a descrição do homem. Então continuo a investigar a casa dela.

— Que pena — comenta Amelia. — Qual é a dele, afinal? Ele fala alguma coisa de mim?

Por favor, pare com isso...

Suspiro e paro na entrada do corredor, olhando-a nos olhos.

— Se você tem perguntas para ou sobre Fredrik, faça o favor de perguntar diretamente a ele.

Amelia joga o cabelo para trás em um gesto orgulhoso e revira os olhos.

— Tudo bem. Só pergunta para o Fredrik quanto tempo mais vou ter que ficar de babá, ok?

Ela passa por mim e se junta a Sarai e à sra. Gregory na cozinha, enquanto aproveito a oportunidade para inspecionar o resto da casa.

Por falar em Fredrik, ele me liga quando estou a caminho do quarto de hóspedes.

— Tenho informações sobre a missão de Nova Orleans — diz ele do outro lado da linha. Ouço trânsito ao fundo. — O contato acha que o alvo voltou para a cidade.

— Por que ela acha isso?

— Ela acha que o viu em frente a um bar perto da Bourbon Street. Claro que ela pode ter imaginado isso, mas acho que a gente deveria investigar. Só por segurança. Se a gente esperar e ele voltar para o Brasil, ou onde quer que ele esteja se escondendo, pode levar mais um ou dois meses antes de termos outra chance.

— Concordo. — Eu me fecho no quarto de hóspedes. — Estou com Sarai na casa da Amelia agora, mas vou terminar as coisas por aqui mais cedo. Vá para Nova Orleans na minha frente e eu encontro você lá amanhã no início da noite. Mas não faça nada.

— Não fazer nada? — pergunta Fredrik, desconfiado. — Se eu encontrar o cara, posso prendê-lo e começar o interrogatório, pelo menos.

— Não, espere a gente. Quero que Sarai faça isso.

Fredrik fica em silêncio por um instante.

— Você não pode estar falando sério, Victor. Ela não está pronta. Pode estragar a missão toda. Ou morrer.

— Não vai acontecer nada disso — rebato com calma e confiança. — E não se preocupe, é você quem vai fazer o interrogatório. Só quero que ela prenda o sujeito.

Sei que há um sorriso macabro no rosto de Fredrik sem precisar vê-lo ou ouvir sua voz. Deixar que ele faça o interrogatório é praticamente o mesmo que dar uma seringa para um viciado em heroína.

— Vejo você em Nova Orleans, então — diz ele.

Desligo, enfio o celular no bolso de trás da calça preta e termino a inspeção da casa antes de ir para a sala e me juntar às mulheres, todas já com pratos de comida no colo.


CAPÍTULO CATORZE

Sarai

— Você deveria fazer um prato — digo para Victor quando ele surge no corredor. — Dina cozinha muito bem. Até melhor do que Marta. Mas não diga a Marta que eu falei isso. — Enfio uma enorme colherada da caçarola de feijão na boca.

Dina, sentada ao meu lado no sofá, aponta para Victor.

— Ela é suspeita. Mas, se você está com fome, é melhor comer antes que acabe.

— Precisamos conversar — anuncia Victor, de pé no meio da sala e bem na frente da TV.

Não gosto do tom dele.

— Tudo bem — digo, desencostando do sofá e deixando o prato na mesinha de centro. — Sobre o quê?

Victor olha de relance para Amelia. Ela está sentada na poltrona à minha frente, pegando um pedaço de pão de milho. Tenho a sensação de que Victor não quer que ela ouça a conversa.

— Amelia — diz Victor, enfiando a mão no bolso de trás da calça e pegando a carteira de couro —, preciso que você saia um pouco de casa. — Ele mexe na carteira, tira um pequeno maço de notas de 100 dólares e o deixa na mesa diante dela. — Se você não se importar.

Amelia olha para o dinheiro, apoia o garfo no prato e conta as cédulas.

— Sem problemas — concorda ela, com um sorriso satisfeito. Então se levanta, pega o prato e a lata de refrigerante e desaparece na cozinha.

Ouço o garfo raspando os restos de comida do prato para o lixo e a cerâmica tilintando no fundo da pia. Amelia passa por nós e segue até o corredor.

— Mas preciso que você saia agora mesmo — reitera Victor. — Não precisa trocar de roupa nem se arrumar.

— Posso pelo menos calçar a droga de um sapato? — pergunta ela, ríspida.

— Claro — responde Victor, assentindo. — Mas, por favor, não demore.

Amelia vai até o fim do corredor, resmungando irritada. Minutos depois, ela liga o carro e vai embora.

Victor olha para mim e para Dina.

— Não podemos ficar tanto tempo quanto o planejado — informa ele.

Dina também larga o prato e suspira com tristeza.

— Por que não? — pergunto.

— Surgiu um problema.

Olho para o meu prato, e o brilho metálico do garfo perde foco à medida que mergulho em pensamentos. Achei que teria tempo para encontrar a forma certa de contar para Dina tudo o que eu planejava contar. Agora estou desesperada tentando imaginar como começar a primeira frase.

— Dina — digo, respirando fundo. Eu me viro de lado para encará-la. — Eu matei um cara, meses atrás. — O rosto de Dina parece ficar rígido. — Foi em legítima defesa. Eu, hum... — Olho para Victor. Ele assente de leve, me motivando a continuar e garantindo que está tudo bem, embora eu saiba que ele não concorda cem por cento com o que estou fazendo. — Aliás, também matei um cara em Los Angeles na noite em que Dahlia e Eric foram encontrados mortos.

Dina ergue a mão enrugada e cobre a boca.

— Ah, Sarai... Você... o que você está...

— Dahlia e Eric foram assassinados por minha causa — interrompo, porque é evidente que ela não sabe o que dizer. — Não só a polícia de Los Angeles está atrás de mim para me interrogar, já que eu estava com eles, mas também os homens que mataram os dois estão na minha cola. É por isso que você está aqui.

— Meu Deus do céu. — Dina balança a cabeça sem parar, tira os dedos da boca e aperta os olhos cheios de pés de galinha em uma expressão preocupada.

Seguro a mão dela, que é fria e macia.

— Tem muita coisa que você não sabe. Onde eu estava de fato durante os nove anos em que minha mãe e eu ficamos desaparecidas. O que realmente aconteceu comigo. E com minha mãe. E eu não levei um tiro de um ex-namorado daquela vez em que Victor levou você para o hospital em Los Angeles. Eu levei um tiro de... — Olho para Victor de novo, mas decido por mim mesma não revelar essa informação. Ela não precisa saber de Niklas nem no que Victor e ele estão envolvidos. — Foi outra pessoa que atirou em mim. É uma história muito longa que você vai saber um dia, mas por enquanto só quero que você saiba a verdade sobre mim. — Passo os dedos com carinho nas costas da mão dela. — Você é a única mãe de verdade que eu tive. Fez tanta coisa por mim, sempre me apoiou, e eu devo essa honestidade a você.

Dina segura minha mão entre as dela.

— O que aconteceu com você, menina? — pergunta, com tanta dor e preocupação na voz que sinto um nó na garganta.

Começo a contar tudo, tanto quanto posso sem revelar qualquer informação sobre Victor e Niklas. Conto sobre o México e sobre as coisas que vi e vivi por lá. Conto sobre Lydia e sobre não conseguir salvá-la, apesar de ter lutado tanto. Omito sobretudo as relações sexuais que eu tinha com o cara que me mantinha presa, Javier Ruiz, um chefão mexicano do tráfico de drogas, armas e escravas, e só digo que eu estava lá contra a minha vontade e fui obrigada a fazer coisas que não queria. Dina cai no choro e me abraça forte, me balançando apertada contra o peito, como se eu é que estivesse chorando e precisasse de um ombro amigo. Ao menos dessa vez, contudo, não estou chorando. Só me sinto péssima por ter que contar tudo isso a ela, pois sei que isso a magoa muito.

Minutos depois, quando termino de contar tudo o que posso, Dina está sentada na beira do sofá, parecendo ligeiramente em choque. Mas ela está mais preocupada do que qualquer outra coisa.

Ela olha para Victor.

— Quanto tempo vou precisar ficar aqui? Gostaria muito de ir para casa. E quero levar Sarai.

— Isso não é uma boa ideia — argumenta Victor. — E quanto a Sarai, ela vai ter que ficar comigo. Por tempo indeterminado.

Engulo em seco ao ouvir as palavras dele, sabendo que Dina não vai aceitar isso.

— Então... Mas então o que isso significa? — pergunta ela, nervosa, voltando sua atenção somente para mim. — Sarai, você nunca mais vai voltar para casa?

Balanço a cabeça, cheia de culpa.

— Não, Dina, eu não posso. Preciso ficar com Victor. Estou mais segura com ele. E você está mais segura sem mim.

Dina balança a cabeça com ar solene.

— Você vai me visitar?

— Claro que vou. — Aperto a mão dela com delicadeza. — Eu nunca abandonaria você para sempre.

— Entendo — afirma ela, esforçando-se para aceitar.

Dina se volta para Victor.

— Mas eu não posso ficar na casa dessa mulher. Se você só me trouxe para cá para me proteger, prefiro voltar para casa. Não tenho medo desses homens. — Ela fica de pé e olha para mim. — Sarai, querida, eu nunca contaria nada para a polícia. Espero que acredite nisso.

Também me levanto.

— Sim, Dina, eu sei que você não contaria. O motivo para você estar aqui não tem nada a ver com a minha confiança em você. Trouxemos você para cá porque queremos que fique segura. Se alguma coisa acontecesse com você, principalmente por minha causa, eu jamais me perdoaria. Você é tudo o que me resta. Você e Victor. Você é minha família e eu não posso perdê-la.

— Mas eu não posso ficar aqui, querida. Já fiquei tempo demais. Amelia é gentil comigo, mas aqui não é a minha casa, e não quero ficar mais tempo do que ela quer que eu fique. Sinto como se minha presença fosse um fardo. Sinto falta das minhas plantas e da minha caneca de café favorita.

— Sra. Gregory — intervém Victor, impaciente, mas ainda respeitando os sentimentos dela. Ela se vira, mas ele faz uma pausa como se refletisse sobre algo. — Sarai não vai ficar segura se tiver que se preocupar com a sua segurança. Estou dizendo desde já: se a senhora voltar para casa, eles vão encontrar e matar a senhora assim que a virem, ou pior, vão sequestrá-la, torturá-la, gravar tudo em vídeo e usar as imagens para atingir Sarai. Entende o que estou dizendo?

A expressão grave e determinada de Dina desmorona sob um véu de sofrimento e resignação. Ela se vira para mim, com o semblante distorcido pela dor. Talvez esteja me pedindo uma confirmação das palavras de Victor, esperando que eu suavize a situação, que eu diga que ele só está sendo dramático. Mas não posso fazer isso. O que ele disse, embora brutal e sem rodeios, é exatamente o que ela precisa ouvir.

— Ele tem razão. Olhe, a gente vai dar um jeito nesses caras logo, tudo bem? Só preciso que você fique quietinha por mais um tempo, até a gente conseguir fazer isso.

— Mas concordo com a senhora — pondera Victor —, acho que não deve mais ficar aqui.

Dina e eu olhamos para ele ao mesmo tempo.

Victor continua:

— Quando estamos nos escondendo e ficamos tempo demais no mesmo lugar, com certeza somos encontrados.

— Então aonde ela deve ir? — pergunto, com várias possibilidades girando na cabeça, nenhuma das quais parece plausível. — Não me diga que quer levar Dina com a gente. Por mais que eu fosse adorar...

— Não, ela não pode ir com a gente — concorda Victor —, mas posso arranjar uma casa só para ela. Já fiz isso antes.

Afinal, Victor providenciou a casa em Lake Havasu City para mim e Dina.

— Mas você não disse que surgiu um problema e que a gente precisa ir embora antes do planejado? Não dá tempo de encontrar outra casa para ela. Isso levaria dias.

— Eu tenho uma casa — afirma Victor. — Fica longe do Arizona, mas acho que seria melhor para a senhora não ficar aqui por enquanto. O contato de Fredrik, o mesmo sujeito que trouxe a senhora para cá, pode levá-la a esse lugar. Está disposta a se mudar?

Dina se reclina no sofá, apertando as mãos uma na outra e as enfiando entre as pernas, vestidas em uma calça bege.

Eu me sento ao lado dela.

— Por favor, faça isso — peço a ela. — Vou me sentir muito melhor sabendo que você está segura.

Dina fica em silêncio por um longo momento, mas finalmente aceita.

— Estou velha demais para tanta emoção, mas tudo bem, eu vou. Só faço isso por você, Sarai.

Eu me inclino e a abraço.

— Eu sei, e é por isso que eu amo você.

— Onde fica a casa? — pergunto depois que deixamos Dina na casa de Amelia e pegamos a estrada. Ele não quis dizer antes a localização em voz alta, provavelmente porque não confiava no ambiente.

— Em Tulsa — responde Victor. — Tenho algumas casas espalhadas por aí, essa é uma delas. Nada luxuoso como a casa de Santa Fé, mas dá para morar nela, é aconchegante, e só a gente sabe que ela existe.

— Quem é esse contato de Fredrik, afinal?

— Ele não faz parte da Ordem, se é o que você quer saber. É só alguém que Fredrik conhece, um pouco como Amelia.

— Se não fazem parte da Ordem, quem eles são?

Victor me lança um olhar do banco do motorista.

— Amelia é só uma espécie de ex-namorada de Fredrik. Como os abrigos administrados pela Ordem, a casa de Amelia tem a mesma função. Mas temos muito menos preocupações em relação a ela, que nem sabe o que é a Ordem. Só o que ela tem é uma obsessão doentia por Fredrik e faz qualquer coisa que ele pedir.

— Ah, entendo — digo, embora não saiba direito se entendi. — Ela parece pegajosa.

— Pode-se dizer que sim.

— E o cara? Aquele que vai levar Dina até Tulsa?

Victor olha para a estrada, com uma das mãos relaxada na parte de baixo do volante.

— Ele é um dos nossos funcionários, na verdade. Um dentre uns vinte contatos que recrutamos desde que eu saí da Ordem. Nenhum deles sabe mais do que o necessário. Fredrik ou eu damos uma ordem, e, como em um emprego qualquer, eles obedecem. Claro que trabalhar com a gente é bem diferente de qualquer outro emprego, mas você entendeu.

— Eles não sabem o risco que correm por se envolver com você e Fredrik? E como vocês fazem para eles seguirem as ordens de vocês? O que eles fazem exatamente, além de levar Dina para um lugar qualquer, assim, do nada?

— Você está cheia de perguntas. — Victor sorri para mim. Uma carreta passa em disparada no sentido oposto, cegando-nos com os faróis altos. — Eles sabem do perigo, até certo ponto. Sabem que estão trabalhando para uma organização particular e são proibidos de falar sobre ela, mas nenhum dos nossos recrutas desconhece a discrição e a disciplina. Alguns são ex-militares, e todos foram escolhidos a dedo por mim. Depois de uma verificação completa do passado deles, é claro. — Victor faz uma pausa e acrescenta: — E eles fazem tudo o que pedimos, mas, para não metê-los em encrenca e proteger nossa operação, costumamos só pagar por tarefas simples. Vigilância. Compra de imóveis, veículos. E levar a sra. Gregory para um lugar qualquer, assim, do nada. — Victor sorri para mim de novo. — Como garantimos que eles sigam nossas ordens? O dinheiro é uma maneira formidável de influenciar pessoas. Eles são bem remunerados.

Apoio a cabeça no banco e tento esticar as pernas no chão do carro, já temendo a viagem longa.

— Um dos nossos homens estava no restaurante de Hamburg na noite em que eu encontrei você.

Tão depressa quanto apoiei a cabeça, levanto-a de novo e olho para Victor, em busca de mais explicações.

— A sra. Gregory só me ligou depois que você foi para Los Angeles — esclarece ele. — Eu estava no Brasil em uma missão, ainda procurando meu alvo depois de duas semanas. Fui embora assim que recebi a ligação da sra. Gregory, mas sabia que provavelmente não encontraria você a tempo, então entrei em contato com dois dos nossos homens que estavam em Los Angeles, dei a eles a sua descrição e alertei para que vigiassem o restaurante e a mansão de Hamburg. Eu sabia que você iria para um dos dois lugares.

Eu me lembro do homem atrás do restaurante depois que matei o segurança. O homem que misteriosamente me deixou fugir.

— Eu vi o cara. Fugi pela saída dos fundos e ele estava lá. Pensei que ele fosse um dos homens de Hamburg.

— Ele é — rebate Victor.

Pisco, atordoada.

— Ele e o outro homem foram dois dos meus primeiros recrutas. Los Angeles era a minha prioridade quando tudo isso começou.

— Você sabia que eu iria para lá.

Embora eu não queira tirar conclusões precipitadas e parecer iludida, sei que é verdade. Meu coração começa a bater como um punho quente. Saber a verdade, saber que Victor estava, durante todo aquele tempo, pensando em mim mais do que eu jamais poderia imaginar me deixa feliz e culpada. Culpada porque o acusei de me abandonar.

— Eu esperava que você esquecesse essa história. Mas, no fundo, sabia que você voltaria lá.

Ficamos em silêncio por um instante.

— Ele está bem? — pergunto, sobre o homem nos fundos do restaurante.

Victor assente.

— Está ótimo. Ele tinha sido contratado por Hamburg meses antes. Conhecia a planta do restaurante e sabia que a única saída alternativa da sala de Hamburg no andar de cima era a dos fundos. A propósito, ele quer pedir desculpa.

— Como assim? Ele me ajudou a fugir.

— A ordem que eu dei a ele foi para não deixar de jeito nenhum que você entrasse naquela sala. Foi a peruca platinada. Ele sabia que você tem cabelo castanho-avermelhado e comprido, não curto e louro. Quando ele se deu conta de quem era, Stephens já estava levando você. Ele não podia entrar porque a sala estava sendo vigiada, por isso foi até os fundos do restaurante, torcendo para conseguir entrar por ali de alguma forma, mas havia outros dois homens de guarda. Eles puxaram conversa e o seguraram ali, até que por fim ele os convenceu a deixá-lo vigiar o lugar sozinho. Logo depois, você saiu pela porta dos fundos.

Respiro fundo e apoio a cabeça no banco de novo.

— Bom, diga a ele que não precisa pedir desculpa. Mas por que ele não me disse logo quem era? Ou não me levou até você?

— Ele precisava segurar o Stephens tempo suficiente para você conseguir fugir, e o fato de ele continuar trabalhando para Hamburg ajuda. Ele não sabe o que os dois planejam nem coisa alguma sobre as operações. É só um segurança, nada além disso. Mas está lá dentro, e isso já é valioso para a gente.

Desafivelo meu cinto de segurança e me esgueiro entre os bancos da frente com a bunda empinada (de um jeito bem deselegante para uma dama, admito) para alcançar o banco de trás. Flagro Victor admirando a cena enquanto me espremo para passar, e isso me faz corar.

— Só tenho mais uma pergunta a acrescentar à lista.

— O que seria? — pergunta ele, zombando de mim.

— Por quanto tempo a gente vai ter que viajar assim? — Estico as pernas no banco de trás e me deito. — Sinto muita falta dos jatinhos particulares. Essas viagens longas de carro vão acabar me matando.

Victor ri. Acho isso incrivelmente sexy.

— Você está dormindo com um assassino, fugindo todo dia de homens que querem matar você e acha que vai morrer por falta de conforto. — Ele ri de novo, e isso me faz sorrir.

— É, acho — digo, me sentindo só um pouco ridícula. Não posso negar a realidade, afinal, por mais sem sentido que ela seja.

— Não vai ser por muito mais tempo — responde Victor. — Não podemos chamar atenção até que eu consiga me livrar completamente de Vonnegut. Ele tem contatos em muitas áreas, e transportes luxuosos, confortáveis e secretos estão no topo de sua lista de prioridades, por motivos óbvios. Dou menos na vista viajando de trem do que de jatinho particular.

Satisfeita com a resposta, não digo mais nada sobre o assunto e olho para cima, para o teto escuro do carro.

— Só para constar — digo, mudando de assunto —, eu não estou só dormindo com um assassino. Estou muito envolvida com ele.

— É mesmo? — pergunta Victor, e sei que ele está sorrindo.

— Sim, temo que seja verdade — digo, em tom de brincadeira, como se fosse algo ruim. — E é um envolvimento bem pouco saudável.

— É mesmo? Por que você acha isso?

Suspiro, dramática.

— Ah, sei lá. Talvez porque ele nunca vai conseguir se livrar de mim.

— Pegajosa. Como Amelia — provoca Victor, tentando me irritar.

E ele consegue. Eu me levanto um pouco e dou um soco de leve em seu ombro. Ele se encolhe, fingindo dor, mesmo com um sorriso largo no rosto.

— Longe disso — digo, e volto a me deitar. — Nem ferrando que eu vou fazer tudo o que ele quer, como a Amelia.

Victor ri baixinho.

— Bem, pelo jeito ele vai ter que aguentar você para sempre, então.

— Vai, e para sempre é muito tempo.

Ele faz uma pausa e então diz:

— Bom, só para constar, algo me diz que ele não gostaria que fosse diferente.

Adormeço no banco de trás muito tempo depois, com um sorriso no rosto que pareceu continuar ali pelo resto da noite.


CONTINUA

CAPÍTULO NOVE

Sarai

Estou mordendo o lábio por dois motivos: porque estou torcendo para que seja uma boa notícia e porque estou sexualmente frustrada. Victor fala com Fredrik por menos de dois minutos, desliga e digita outro número. Quando consegue falar com Dina, ele me passa o celular.

Pego o aparelho e o encosto no ouvido.

— Dina?

— Sarai, meu Deus, onde você está? O que está acontecendo? Eu estava sentada na sala vendo TV e um homem bateu na porta. Eu não ia deixar ele entrar, fiquei desconfiada na hora; estava quase pegando minha espingarda. Mas ele disse que queria falar de você. Ah, Sarai, fiquei com tanto medo de que tivesse acontecido alguma coisa! — Ela finalmente respira.

— Você está bem? — pergunto, baixinho.

— Sim, sim, estou ótima. O melhor que eu poderia estar. Mas ele me falou que iríamos para a delegacia encontrar você. Até me mostrou um distintivo. Não acredito que caí nessa. O cavalheiro mentiu para mim. — Dina para de falar e abaixa a voz, como se estivesse sussurrando para ninguém ouvir. — Ele me levou para a casa de uma prostituta. O que está acontecendo? Sarai...

— Vai ficar tudo bem, Dina, prometo. E não se preocupe. Seja lá quem more nessa casa, duvido que seja uma prostituta.

Os olhos de Victor cruzam com os meus. Desvio o olhar.

— Onde você está? Quando vai voltar? Sei que você está metida em alguma encrenca, mas sempre pode me contar tudo.

Gostaria que isso fosse verdade. Mais do que tudo, neste momento. Mas a verdade maior é que não sei como responder às perguntas de Dina. Victor deve ter percebido a fisionomia confusa no meu rosto, porque tirou o telefone da minha mão.

— Sra. Gregory — diz ele ao telefone. — Aqui é Victor Faust. Preciso que a senhora me ouça com bastante atenção. — Ele espera alguns segundos e continua. — A senhora vai precisar ficar onde está pelos próximos dias. Vou levar Sarai para vê-la em breve, e vamos explicar tudo, mas, até lá, precisa ficar escondida. Não, sinto muito, mas a senhora não pode voltar... Não, não é seguro lá. — Ele assente algumas vezes, e percebo, pelas leves rugas que se formam entre seus olhos, que ele não se sente à vontade falando com ela, como se alguém colocasse de repente um bebê no colo dele. — Sim... Não, me escute. — Ele perde a paciência, então vai direto ao assunto. — É uma questão de vida ou morte. Se a senhora sair ou ligar para qualquer conhecido, vai acabar morrendo.

Tenho um sobressalto e me encolho com essas palavras, não por serem verdade (isso eu já sabia), mas porque fico imaginando a reação de Dina a elas. Só posso imaginar o que ela deve estar pensando nesse momento, como deve estar apavorada. Apavorada por mim, não por si mesma, e isso faz doer ainda mais.

— Sim, ela está bem — afirma Victor mais uma vez para tranquilizá-la. — Só mais alguns dias. Eu vou levar Sarai aí.

Falo com Dina por mais alguns minutos, contando o que posso, mas sem revelar demais, para acalmá-la. Claro que isso não está ajudando muito, considerando as circunstâncias. Nós desligamos e eu fico ali na sala, me sentindo muito diferente de como me sentia antes da ligação.

Acho que enfim caiu a ficha do tamanho da merda que fiz.

Antes, quando achava que era eu quem corria o maior perigo, e depois que disse para Eric e Dahlia saírem de Los Angeles, eu estava preocupada, mas não tanto assim. Os danos que causei afetam mais do que minha própria segurança. Sem querer, pus todas as pessoas que conheço e amo em perigo.

A realidade de tudo isso, dos meus atos e das consequências em efeito dominó, o fato de Victor ter me deixado, de eu ter tentado levar uma vida normal e fracassado; não consigo mais. Não suporto mais nada disso. Cacete, até a dorzinha por ter encontrado Dahlia com Eric está começando a me incomodar. Não por causa de Eric, ou porque ele era meu “namorado”, mas porque o que eles fizeram não me afetou como deveria ter afetado.

Sou uma aberração. E, no momento, não consigo perdoar Victor por me fazer passar por essa situação, por me jogar em uma vida que nós dois sabíamos que não serviria para mim e por esperar que eu me adaptasse. Eu não queria desde o começo. E foi exatamente por isso que não deu certo.

As lágrimas começam a inundar meus olhos. Deixo que caiam. Não me importa.

Sinto a presença de Victor atrás de mim, mas antes que ele me toque me viro para encará-lo com a raiva distorcendo meu rosto. E enfim certas coisas que eu queria dizer a ele depois de todo esse tempo saem, em uma tempestade de palavras furiosas.

— Você me abandonou, porra! — Bato com as palmas das mãos em sua camisa social justa. — Você deveria ter me matado e pronto! Você consegue imaginar o que me fez passar?! — Lágrimas cheias de raiva escorrem dos cantos dos meus olhos.

— Me desculpe...

Franzo a testa na mesma hora.

— Você quer se desculpar? — Solto o ar ruidosamente. — É só isso que você consegue dizer? Me desculpe?

No fundo, sei que nada disso é culpa de Victor, sei que ele só fez o que fez para me proteger. Mas a maior parte de mim, a parte que não quer acreditar que eu não tenho mais salvação, quer pôr a culpa em qualquer um, menos em mim mesma.

As lágrimas começam a me fazer engasgar.

— Toda santa noite — disparo, apontando com raiva para o chão, meu rosto retorcido de raiva e rancor —, todas as horas de todos os dias, eu pensava em você. Só em você, Victor. Eu vivia cada dia com esperança, acreditando de coração que você ia voltar para mim. Os dias passavam e você não aparecia, mas nunca perdi a esperança. Eu pensava comigo mesma: Sarai, ele está vigiando você. Ele está testando você. Ele quer que você faça o que ele disse, que tente ser como todo mundo, que tente se misturar. Quer que você prove para ele que é forte o suficiente para enfrentar qualquer situação, se adaptar a qualquer estilo de vida. Porque, se você não consegue fazer algo tão simples quanto levar uma vida normal, nunca vai conseguir viver com ele. — Mordo o lábio inferior e tento sufocar as lágrimas. Balanço a cabeça devagar. — Isso era o que eu pensava. Mas fui idiota por achar que você tinha alguma intenção de voltar para mim. — Um tremor induzido pelo choro percorre meu peito.

Victor, com o semblante angustiado que nunca imaginei ver nele, se aproxima. Recuo, balançando a cabeça sem parar, esperando que ele entenda que não estou pronta para ficar muito perto. Quero ficar sozinha com a minha dor.

— Sarai? — diz ele, baixinho.

— Não — digo, recusando-o com um gesto. — P-por favor, me poupe das desculpas e dos motivos pelos quais sei que não posso culpar você. Eu sou egoísta, ok? Eu sei! Já sei que você fez o que precisava fazer. Já sei...

— Não, não sabe.

Levanto os olhos para encontrar os dele.

Victor se aproxima. Desta vez não me afasto, minha mente está paralisada por suas palavras, por mais escassas ou vagas que elas sejam. Ele segura meus cotovelos e descruza minhas mãos. Seus dedos roçam de leve a pele sensível da parte interior dos meus braços, descem até encontrarem minhas mãos e as seguram.

— Eu saí da Ordem principalmente por causa de você, Sarai — explica Victor, e o resto do meu corpo fica paralisado. — Quando Vonnegut descobriu que eu estava ajudando você, ele soube... — Ele faz uma pausa, parecendo estar vasculhando sua mente à procura das palavras menos perigosas. — Ele soube que eu me comprometi...

Jogo as mãos para cima.

— Fale inglês! Por favor, diga de uma vez sem se esforçar tanto para fazer rodeios! Por favor!

— Vonnegut soube que eu tinha... começado a gostar de você.

Fico paralisada e meus lábios se fecham. Meu coração bate descompassado. Minhas lágrimas parecem secar em um instante, só as que molham minhas bochechas continuam escorrendo.

— Como eu era o Número Um de Vonnegut, seu “favorito”, a última coisa que ele queria era mandar me matar. Ele me afastou do serviço, me desligou por um tempo, até... que eu criasse juízo.

Faço uma cara de “que-droga-isso-significa”.

— Pode chamar de lavagem cerebral — acrescenta Victor.

Ele afasta a ideia com um gesto.

— Não importa. O que importa é que ele ia me dar uma única chance de provar que o meu sentimento por você era só um lapso, e que nunca mais iria acontecer. Pouquíssimos agentes têm uma segunda chance na Ordem.

— Um lapso? — Eu me sento na mesinha de centro. Olho para Victor e digo: — Para mim, parece que Vonnegut queria que você provasse que não é humano, mas sim o soldado obediente a ele, incapaz de ter emoções. Que babaca desequilibrado.

Victor assente e se agacha diante de mim, entrelaçando os dedos, com os cotovelos apoiados nas coxas.

— Vonnegut mandou que eu matasse você — conta ele em voz baixa, sustentando o meu olhar. — Para provar a mim mesmo. Eu disse que ia fazer isso, que queria fazer, provar que eu era digno de confiança, e ele me soltou. Claro que eu não tinha nenhuma intenção de matar você. Parti naquele dia e procurei um esconderijo. Niklas, que só conheceu a Ordem a vida inteira, decidiu ficar. Pensei que talvez ele só precisasse de um tempo para entender o que estava acontecendo e decidir o que era melhor para ele. Eu também estava me escondendo de Niklas. Sem saber onde eu estava, ele não precisaria enganar Vonnegut nem achar que precisava escolher entre mim e ele. Mas aí Fredrik me contou que Niklas foi contratado para me matar e está me procurando desde então.

— Que desgraçado — comento, balançando a cabeça sem acreditar, mas depois penso de novo. — Você disse que saiu da Ordem principalmente por minha causa. Além de mim, qual foi o outro motivo?

— Isso já estava para acontecer havia muito tempo — conta Victor. — Quando precisei matar meu pai para salvar meu irmão, entendi que era hora de sair. — Seus dedos fortes acariciam os meus, mais delicados. — Você me deu a motivação final de que eu precisava para fazer isso de uma vez.

Com a ponta dos dedos, acaricio seu rosto com a barba um pouco por fazer. Victor continua a me encarar, seus olhos sondando os meus através do pequeno espaço entre nós, cheios de paixão e compreensão. Eu me curvo e beijo seus lábios.

— Eu sinto muito pelo seu irmão — digo, baixinho.

Ele roça os lábios nos meus, e a sensação se espalha pelo meu corpo até os dedos dos pés, como uma dose de uísque.

— Eu não estava testando você, Sarai. — Ele me beija de novo.

— Então o que você estava fazendo? — Eu o beijo também e derreto ao sentir suas mãos se movendo por minhas coxas.

Victor me ergue nos braços, envolvendo minhas pernas em sua cintura, minha bunda acomodada nas palmas de suas mãos enormes. Meus dedos sobem pelos lados de seu rosto e tocam sua boca antes que meus lábios toquem também.

— Eu estava esperando o momento certo — diz ele enquanto sua boca encontra meu pescoço.

Enfio os dedos em seu cabelo castanho curto, erguendo o queixo ao sentir sua boca explorando meu pescoço e meu maxilar. Meus olhos estão fechados, as pálpebras pesadas, e sinto um formigamento quente ao qual sei que não dá para resistir. Victor me carrega pela sala, embora eu não saiba para onde nem me importe com isso. Aperto mais as pernas nuas ao redor de sua cintura, sentindo a superfície fria e lisa de seu cinto de couro pressionando o interior das minhas coxas. Meus dedos estão trabalhando nos botões de sua camisa, abrindo-os com facilidade.

Victor não responde às minhas perguntas, mas isso também não me importa.

Os lábios dele cobrem os meus, a umidade quente de sua língua se entrelaçando avidamente com a minha. Sem parar de me beijar, Victor me faz apoiar os pés no chão para tirar minha calcinha, uma perna de cada vez. Ele ergue meus braços e tira minha camiseta, jogando-a no chão. Minhas mãos mexem no cinto dele, movendo a lingueta do buraco e puxando a tira de couro de uma só vez em um movimento rápido. Ele tira a calça e a cueca boxer preta. Minha boca recebe seu hálito quente e ofegante enquanto ele me carrega mais uma vez e pressiona minhas costas na parede, como se não quisesse esperar para chegarmos ao quarto de hóspedes. Também não quero esperar. Já esperamos demais.

Sinto seu pau entrando em mim, e, antes que ele deslize até o fundo, uma descarga de prazer corre pelas minhas coxas e sobe pela coluna, relaxando meu pescoço e fazendo minha cabeça se apoiar na parede. Sinto meus olhos formigando e ardendo. A umidade morna entre minhas pernas é inundada por um êxtase quente e trêmulo.

Ele mete uma vez bem fundo e se mantém ali, segurando meus quadris, com minhas costas pressionadas contra a parede fria. Abro os olhos devagar, ainda sem controlar direito as pálpebras, e o encaro. Ele me fita com a mesma intensidade voraz. Minha respiração é curta e irregular quando escapa dos meus lábios entreabertos. Meus braços estão ao redor dele, em um abraço apertado, meus dedos cravados nos músculos rijos de suas costas.

— Eu queria isso há tanto tempo — digo, ofegante.

— Você não faz ideia... — rebate Victor, para então me devorar com um beijo, tão violento que quase perco o controle dos meus músculos.

Minhas coxas se contraem em sua cintura quando ele mete seu pau em mim de novo. Estremeço e gemo, minha cabeça bate com força na parede. Ele segura meu corpo no lugar com os braços encaixados nas minhas coxas, forçando seu quadril contra o meu, e eu sinto pequenas explosões no estômago a cada investida.

Minhas costas se arqueiam, meus seios ficam expostos a ele, que cobre um mamilo com a boca. Ergo os braços acima da cabeça, procurando alguma coisa onde eu possa me segurar para cavalgá-lo, mas não encontro nada. Envolvo seu pescoço com os braços para sustentar meu peso e rebolo em sua virilha, gritando e gemendo, desesperada para mergulhar cada centímetro do seu pau duro tão fundo quanto possível. Seus dedos afundam dolorosamente nas minhas costas. Sua língua se enrosca na minha, seus gemidos atravessam meu corpo.

Gozo rápido e forte, minhas pernas e o ponto entre elas se contraindo ao redor dele, meus músculos tremendo. Ele goza segundos depois e segura meu corpo bem firme no lugar, com minha bunda em suas mãos musculosas, para se esvaziar dentro de mim.

Nesse momento, não estou nem aí para as consequências do que acaba de acontecer. Mas só nesse momento.

Com a cabeça apoiada no ombro dele, Victor me carrega pelo corredor até o banheiro espaçoso em frente ao quarto de hóspedes. Ele me senta na bancada e fica de pé no meio de minhas pernas nuas.

— Não se preocupe. — Ele dá um beijo na minha testa e abre a porta de vidro do boxe do chuveiro.

— Com o quê? — pergunto, confusa.

Ele gira a torneira, que range, e regula a água quente e a fria até encontrar a temperatura desejada. Eu o observo da bancada, o modo como seu corpo alto e escultural se move, as curvas de seus músculos entalhadas em um desenho poético ao redor de seus quadris, suas panturrilhas enrijecendo quando ele anda.

Ele volta para perto de mim e termino de tirar sua camisa, deslizando-a por seus braços musculosos.

— Você não vai engravidar — diz ele, e me manda descer da bancada e segui-lo até o chuveiro. — Não de mim, pelo menos.

Um pouco surpresa, deixo por isso mesmo.

Ele fecha a porta do boxe e começa a lavar meu cabelo. Eu me perco naquela proximidade, no modo como suas mãos exploram meu corpo com tanta precisão e desejo.

Por muito tempo, esqueço que ele é um assassino cujas mãos tiraram muitas vidas sem sequer um pensamento de remorso ou arrependimento. Esqueço que também sou uma matadora cujas mãos tiraram uma vida há poucas horas.

Parece que fomos feitos um para o outro, como duas peças de um quebra-cabeça que de início parecem não se encaixar, mas que se adaptam perfeitamente quando vistas pelo mais improvável dos ângulos.


CAPÍTULO DEZ

Victor

A empregada de Fredrik volta para a casa bem cedo na manhã seguinte. Acordo assim que amanhece, e ela entra em casa quando estou tomando meu café no pátio dos fundos. Ela me vê através da porta de vidro ao passar pela sala, e então vem falar comigo no pátio.

— Gostaria de café da manhã, señor? — pergunta ela em espanhol.

Deixo a pasta com meu próximo serviço virada para baixo na mesinha de ferro batido.

— Obrigado, mas não vou comer — respondo, e depois aceno para Sarai, que está andando pela sala, procurando por mim. — Mas ela vai.

— Eu vou o quê? — pergunta Sarai ao passar pela porta de vidro aberta. Ela anda descalça pelo pátio de pedra, usando outra camiseta de Fredrik. Fico muito incomodado por ela ter que usar roupas dele em vez das minhas, mas a única roupa que tenho é a que estou usando, além de um short largo de corrida. O cabelo longo e castanho de Sarai está despenteado, pois ela acaba de acordar e sair da cama.

Ela se senta no meu colo e eu encaixo a mão direita entre suas coxas.

— Café da manhã.

Sarai boceja e estica os braços para o alto antes de apoiar a cabeça no meu ombro. Ponho a mão esquerda em sua cintura para mantê-la equilibrada no meu colo. O cheiro da pele e do cabelo recém-lavados de Sarai acelera meu corpo todo.

Ela faz uma careta sutil, meio que rejeitando a ideia.

— É melhor você comer.

Levantando a cabeça do meu ombro, Sarai olha para mim por um momento, pensativa, e depois dirige sua atenção para a empregada.

— Claro, eu gostaria de tomar café da manhã, se não for incômodo — diz, em espanhol.

Por um momento, a empregada parece surpresa por ouvir Sarai falando seu idioma nativo, mas ela logo se recompõe, assente e volta para dentro da casa.

— Acho que a gente já adiou essa questão o suficiente — diz Sarai. — Para onde é que vamos, Victor? O que eu vou fazer?

Estou pensando exatamente nisso desde que descobri que ela veio para Los Angeles e fez o que fez. Olho para a piscina, perdido em pensamentos, minha última tentativa desesperada de organizar as respostas na cabeça. Mas elas continuam tão fragmentadas e bagunçadas quanto sempre estiveram. Todas, menos uma.

— Sarai — digo, olhando novamente para ela —, você não pode voltar para casa. Eu sabia disso na primeira vez em que mandei você para o Arizona. A situação não estava nem de longe tão terrível quanto ficou depois, mas, agora que as coisas mudaram, você não pode mais voltar.

— Então vou ficar com você — rebate ela. Pela primeira vez na vida, não tenho coragem de protestar. Nem contra ela nem contra mim mesmo. A maior parte de mim, a parte humana e imperfeita, quer que Sarai fique comigo, e nada vai me impedir de fazer isso dar certo.

Mas sei que não vai ser fácil.

— Sim — digo, passando a mão em sua coxa macia —, você vai ficar comigo, mas há muitas coisas que precisa entender.

Ela se levanta do meu colo e fica de pé na minha frente, com um braço na frente do corpo e o outro cotovelo apoiado nele. Distraída, ela passa as pontas dos dedos no rosto macio, fitando o que parece ser o nada. Então ela me olha e balança a cabeça com uma expressão perplexa.

— Eu esperava que você fosse resistir mais. Qual é a pegadinha? A despeito do que aconteceu entre a gente ontem à noite, ou do que está acontecendo desde que nos separamos, nunca pensei que você fosse concordar em me levar junto.

— Você gostaria que eu resistisse? — Abro um sorriso capcioso.

Ela sorri também e deixa os braços relaxarem.

— Não. Com certeza não. E-eu só...

Levanto uma perna e apoio o pé no outro joelho.

— Nunca me imaginei em uma situação dessas. Não posso mentir e dizer que acho que vai dar certo. Muito provavelmente não vai, Sarai, e você precisa entender isso. — Ela parece ficar um pouco desanimada, o bastante para eu saber que minhas palavras sinceras a entristeceram mais do que ela se permite revelar. — Não posso mudar o meu jeito. Não só porque é tudo o que sei fazer, ou porque é o que faço melhor, mas também porque não quero. — Olho para Sarai. — Eu nunca vou parar de fazer o que faço.

— Eu nunca ia querer que você parasse — retruca ela, com certa intensidade. Sarai puxa uma cadeira próxima e a coloca diante de mim antes de se sentar. — Tudo o que eu quero, Victor, é ficar com você. Vou fazer qualquer coisa que você espere que eu faça, mas quero que me ensine...

Levanto a mão e a interrompo imediatamente.

— Não, Sarai, também não vou fazer isso. Não é assim que vai ser. — Sua expressão se anuvia e ela desvia o olhar, magoada com minha recusa. — Já falei, eu praticamente nasci nesta vida. Você ia levar quase o resto da sua para aprender a fazer o que eu faço, e mesmo assim não ia ficar boa o suficiente.

— Então, o que eu devo fazer? — pergunta ela, com um tom de ressentimento na voz. — Quero estar com você aonde quer que vá, mas não quero ficar à toa, tomando martínis na praia enquanto você sai para matar pessoas. Eu não sou inútil, Victor, posso fazer alguma coisa.

— Você pode fazer muitas coisas, sim — digo, interrompendo-a. — Mas fazer o que eu faço está totalmente fora de cogitação. Por que você quer tanto isso? — Levanto a voz quando sinto, de repente, uma necessidade desesperada de entender a resposta.

Sarai bate as palmas das mãos nas coxas nuas.

— Porque é o que eu quero.

— Mas por quê?

Ela ergue as mãos para os lados e grita:

— Porque eu gosto! Entendeu?! Eu gosto!

Pisco algumas vezes, completamente atordoado por essa confissão. Na verdade, essa era a última coisa que eu esperava ouvir de Sarai. Parte de mim sabia que ela era mais do que capaz de tirar a vida de alguém e dormir em paz toda noite depois disso, mas nunca previ que ela fosse gostar de matar.

Não sei ao certo como me sinto a respeito disso. Preciso de mais informações.

Eu me inclino para a frente e fico cara a cara com Sarai.

— Você gosta de matar? — pergunto, embora isso saia mais como uma afirmação. — Então, se alguém pedisse a você que tirasse a vida de outra pessoa, você faria isso sem questionar?

— Não — responde ela, franzindo o cenho. — Eu não mataria qualquer um, Victor, só homens que merecessem.

Homens? Esse lado de Sarai está ficando mais intrigante. Eu me pergunto se ela sabe o que acaba de dizer. Homens. Não pessoas em geral, mas homens.

Eu me afasto dela e me reclino na cadeira de novo, virando a cabeça para o lado, pensativo.

— Explique.

Ela também se recosta, encolhendo as pernas e apoiando os pés no assento, virando os joelhos para o lado.

— Homens como Hamburg. Homens como Javier Ruiz, Luis e Diego. Homens como o segurança que matei ontem. Willem Stephens, pelo simples fato de trabalhar para Hamburg sabendo o que o chefe faz. Homens como John Lansen e todos os outros que conheci naquelas festas de gente rica quando estava com Javier. — Seu olhar penetra o meu. — Homens que merecem ter a garganta cortada.

A gravidade das palavras de Sarai e a determinação em seu rosto me silenciam por um momento. Será possível que eu agora tenha não um, mas dois assassinos por perto que compartilham o gosto pelo derramamento de sangue? E, no exato momento em que o rosto surge na minha mente junto com o de Sarai, ouço o carro de Fredrik na entrada da garagem. Isso interrompe o momento intenso, e ambos olhamos para cima.

Instantes depois, Fredrik, vestido de maneira informal com um jeans escuro e uma camisa de grife, vem nos encontrar no pátio. Ele deixa o jornal do dia na mesa de centro e diz:

— É melhor você dar uma olhada nisso. — Então olha para Sarai por um momento. — A propósito, minhas roupas ficam bem em você.

Fuzilo Fredrik com o olhar, mas escondo meu ciúme antes que qualquer um dos dois perceba.

Sarai e eu olhamos para o jornal, mas sou eu quem o pega. Desdobrando-o, corro os olhos pelo texto até encontrar aquilo a que Fredrik se refere.

Quatro pessoas foram encontradas mortas a tiros em um hotel de luxo de Los Angeles, na madrugada passada. Somente dois corpos foram identificados, os de Dahlia Mathers, 23 anos, e Eric Johnson, 27 anos, ambos de Lake Havasu City, Arizona.

Algumas frases abaixo:

Sarai Cohen, também de Lake Havasu City, é procurada pela polícia para prestar esclarecimentos.

Acho que não importa que identidade Sarai usou para fazer o check-in no hotel, o rosto dela é o mesmo nas duas.

Ela arranca o jornal das minhas mãos antes que eu possa terminar.

— Não... — Ela cerra os dentes e seu rosto fica sério enquanto lê a notícia trágica sobre seus amigos. Ela procura meus olhos, mas logo se volta para o jornal, como se sua mente torcesse para ter lido tudo errado na primeira vez. — Falei para eles irem embora de Los Angeles! Dahlia disse que eles iam embora... — Seus olhos verdes encaram os meus, cheios de desespero e despedaçados pela culpa.

Fico de pé.

Sarai pega o jornal com as duas mãos e o rasga bem no meio, amassando as duas metades em seus punhos.

— Eles mataram Dahlia e Eric, porra! — ruge ela. — Eles estão mortos!

O jornal cai de suas mãos e voa pelo pátio de pedra.

Fredrik apenas me olha, esperando para ver o que vou fazer ou dizer. Ele não fala, mas percebo que quer.

— Sarai. — Por trás dela, ponho as mãos em seus ombros. — Eu vou cuidar disso.

Ela se vira para mim. Seu cabelo balança ao redor da cabeça antes de cair de novo nos ombros e seu rosto está ardendo de fúria.

— ELES MORRERAM POR MINHA CAUSA! COMO LYDIA!

Tentando acalmá-la, aperto seus ombros com força, de frente, e a seguro.

— Eu disse que vou cuidar disso — repito com ainda mais intensidade e sinceridade do que antes. Eu me inclino para a frente para manter seu olhar fixo no meu. — Vou fazer isso por você, Sarai. Hamburg e Stephens estarão mortos antes do fim desta semana.

Ela não ouve. Está me encarando, mas parece estar olhando através de mim. Seu peito sobe e desce com a respiração ofegante e irregular. Suas pupilas parecem pequenas, como buracos de grampos em uma folha de papel. O verde de seus olhos parece ter escurecido.

— Não — rebate ela, com a voz calma. — Não quero que você faça nada.

Absorta em pensamentos, ela dá um passo para trás, e minhas mãos caem de seus ombros.

— Vou fazer isso por você. Eu quero...

— Eu disse que não! — Ela dá mais dois passos e se vira, me dando as costas e olhando para a piscina. — Eu vou fazer isso — afirma ela, em voz baixa e decidida. — Vou matar os dois e não quero que você se meta.

— Acho que não...

Ela vira a cabeça, seus olhos escuros cruzando com os meus.

— Se você matar qualquer um deles, nunca vou perdoar você. Isso é assunto meu, Victor! Me deixe fazer pelo menos isso!

— Sarai, você não pode matá-los. — Eu me aproximo dela. — A única pessoa que vai morrer é você. Não vai conseguir...

— Estou cagando para isso! — Percebo que o objetivo de Sarai é inabalável. Ela volta para perto de mim. — Ou você me ajuda a fazer isso ou eu mesma vou descobrir como fazer. Eles vão morrer nas minhas mãos, não nas suas, nas de Fredrik nem nas de qualquer outra pessoa. Só nas minhas. Me ensine. Me mostre o que fazer. Qual é a melhor forma de agir para alguém como eu. Me ajude, ou vou morrer tentando por minha conta. Para mim, tanto faz.

— Eu não vou... você não pode — retruco, balançando a cabeça.

Sarai desiste e tenta me empurrar para fora de seu caminho. Mas não deixo que ela passe. Não posso, pois sei que cada palavra que ela disse foi a sério.

Eu a seguro pelo pulso, detendo sua marcha furiosa até a porta de vidro. Fredrik sai do caminho, assistindo ao desenrolar da cena com um brilho estranho nos olhos, que só posso interpretar como fascinação.

— Me solte!

— Você não vai embora. — Eu a prendo pelo pulso com força, e agarro o outro quando ela começa a me bater.

Ela quer descontar toda a raiva em mim, gritar na minha cara, me xingar com as palavras que tanto quer dizer a Hamburg e Stephens antes de matá-los, mas não consegue. A raiva, como sempre, a domina, e Sarai cai no choro.

Ela me disse uma vez que sempre chora quando está furiosa.

As lágrimas escorrem como rios por seu rosto. Sarai tenta mais uma vez se desvencilhar de mim, mas a seguro firme e faço uma pressão dolorosa sobre seus pulsos, tentando acalmá-la.

— Victor, por favor! Porra, basta me ensinar, cacete! Mesmo que seja matar os dois e mais ninguém! É tudo que eu peço! Nunca mais vou pedir a sua ajuda! POR FAVOR!

Sarai enfim para de se contorcer e desaba sobre meu peito. Eu a envolvo em meus braços, aninhando sua nuca nas mãos e pressionando o lado do meu rosto no alto de sua cabeça. Sarai chora com violência, seu corpo treme no meu abraço. Não são gritos de tristeza e dor, são gritos de culpa, raiva e da necessidade desesperada de vingar a morte de pessoas — até de Lydia — que poderiam ainda estar vivas, se não fosse por ela.

Fredrik olha para mim. Sei o que a expressão calma dele quer dizer. Ele acha que eu deveria dar a Sarai o que ela quer.

Mas não é a opinião de Fredrik que me faz decidir, no fim das contas. É minha necessidade de proteger Sarai, ainda que ela possa acabar morta no final.

Escolho o mais seguro dos dois caminhos malfadados.

— Eu vou ajudar você.


CAPÍTULO ONZE

Sarai

Levanto o rosto do peito de Victor, fungando as malditas lágrimas que mais uma vez me traíram em um momento de fraqueza.

— Você vai me ajudar a matá-los?

Ele assente.

— Vou.

— Obrigada — digo, baixinho.

Fico na ponta dos pés e dou um beijo suave em sua boca.

Da porta de vidro atrás de nós, a empregada diz com uma voz fraca:

— O café está pronto.

Ela nos fita com seus olhos escuros e curiosos, sem dúvida por ter ouvido a discussão enquanto estava lá dentro.

— Marta faz uns ovos mexidos ótimos — comenta Fredrik, com um sorriso radiante, como se nada tivesse acontecido. — Frita em gordura de bacon. — Ele junta os dedos nos lábios e os beija. — Adoro comida americana.

Ele vai atrás de Marta.

— Se bem que parece que ovos mexidos em gordura de bacon é uma comida do Sul, não? — pergunta ele, olhando para nós enquanto o seguimos.

Victor dá de ombros.

— Bem, Marta não é exatamente do Alabama — continua ele, ao entrarmos na cozinha. — Mas sabe cozinhar como se fosse.

Fredrik e Victor continuam tagarelando sobre comida, provavelmente para me fazer esquecer o que aconteceu. Mas, nesse momento, nada mais me importa além do rosto de Dahlia e Eric na memória. Sei que estou sendo punida. Pela vida. Pelo destino. Não sei por quem ou pelo quê, só sei que faria qualquer coisa para devolver a vida aos meus amigos.

Nós três nos sentamos à mesa com tampo de vidro da cozinha e comemos. E acho quase engraçado Fredrik fazendo Marta provar a comida antes de nos servir, como se ele tivesse aprendido essa técnica paranoica no Manual de Victor Faust.

Durante o café, que dura muito tempo por causa da conversa, Fredrik acaba liberando Marta pelo resto do dia. Isso acontece logo depois que ele começa a falar em sueco com Victor. Odeio não entender o que eles dizem, mas fica claro para mim que era por causa de Marta, e não por mim.

Marta pega a bolsa e se despede de nós, agradecendo a Fredrik por pagar um dia inteiro.

— Por que isso? — pergunto, depois que ela vai embora.

Apoio o garfo no prato ao terminar meu café.

— Temos muito o que conversar — explica Fredrik, tomando um gole de suco de laranja. — E ela não pode ouvir a conversa. — Ele aponta para mim e sorri. — E Marta, embora não pareça, ouve tudo o que acontece por aqui.

— Então por que vocês não continuaram conversando em sueco? — questiono.

— Você fala sueco? — rebate Victor.

— Não.

— Bem, você tem que participar da conversa — diz ele, deixando o copo d’água na mesa.

Sorrio. Nesse momento, me sinto parte deles pela primeira vez. Dos dois. Nós três sentados à mesa, que minutos depois já está livre dos pratos e dos copos, substituídos por pastas e fotografias de serviços de execução. Para mim, é meio surreal discutir detalhes de interrogatórios e assassinatos tão casualmente, como se estivéssemos falando do tempo. Mas também, pela primeira vez na vida, sinto que pertenço a algum lugar. Não estou mais andando por um túnel escuro, com as mãos à frente, procurando a porta. A porta está bem ali, à mostra, e já passei por ela. Enfim encontrei meu lugar na vida. E estou com Victor, o que para mim é mais importante do que tudo.

Finalmente estou com Victor.

Victor e eu saímos da casa de Fredrik nas colinas de Los Angeles no fim da tarde e dirigimos por onze horas até Albuquerque, Novo México. No caminho, paramos em um shopping, onde gasto praticamente uns 2 mil dólares em roupas e sapatos novos, acessórios e maquiagem, já que tudo o que tenho está no Arizona ou ficou no hotel em Los Angeles. Encho o banco de trás com sacolas de compras e caixas de sapatos, mas, lá pela nona hora de viagem, me arrependo de ter comprado tanta coisa. Tudo o que quero é me arrastar para o banco de trás e dormir, mas tenho que me conformar em ficar apertada na frente, encolhida em uma posição desconfortável no banco do Cadillac CTS preto de Victor, com a cabeça apoiada na janela. Desde que Victor saiu da Ordem, ele não tem mais a conveniência de usar jatos particulares para viajar. Se quisesse, com certeza poderia pagar um do próprio bolso, mas ser alguém que a Ordem quer matar significa não dar na vista e abrir mão de alguns luxos que poderiam levar Niklas até ele.

Ao que tudo indica, esses luxos abdicados incluem as residências extravagantes e multimilionárias nas quais Victor sempre preferiu morar. Sua casa em Albuquerque é bem diferente daquela onde ele morava na Costa Leste, com vista para o mar. Quando paramos na entrada de terra batida, vejo uma casa de tamanho médio, com paredes nuas de reboco bege e em um formato de caixa que me faz lembrar as casas que eu construía com peças de Lego quando era criança. Contudo, a julgar pelo jardim elaborado que envolve o caminho branco e liso até a porta e o lado esquerdo da casa, é óbvio que Victor não abriu mão de todos os luxos. Isso fica mais óbvio ainda quando entramos, pois o interior é tão bonito quanto o da casa de Fredrik, apesar do estilo mais interiorano e menos luxuoso. Vermelho-ferrugem, marrom e amarelo dominam o ambiente, com pé-direito alto sustentado por vigas e sarrafos de madeira escura, que fazem a casa parecer muito maior por dentro do que por fora. Uma aconchegante lareira de pedra ocupa uma das paredes da espaçosa sala de estar, com dois espelhos decorativos de metal pendurados acima dela. As paredes são amarelas, combinando com os pisos de terracota que parecem ocupar toda a casa.

— De uma coisa tenho certeza: você sempre consegue as melhores empregadas — comento, deixando várias das minhas sacolas no chão da sala.

— Desta vez, não — diz Victor atrás de mim. Ele deixa as outras sacolas que trouxe do carro perto do sofá de couro marrom-alaranjado. — Sou só eu.

— Sério? Mas está tudo tão limpo. Acho que você não passou muito tempo aqui, então, não é?

— Uns quatro meses. — Ele olha para mim. — Você gostou? Espero que sim, porque é o seu novo lar.

Um sorriso desponta no meu rosto.

Victor desabotoa e tira a camisa, deixando-a nas costas de uma poltrona de couro marrom. Observo discretamente seu corpo enquanto ele anda por um corredor longo e bem-iluminado com uma entrada em arco.

Sigo Victor.

— Claro que você sabe que não vamos ficar aqui para sempre. — Entramos em um quarto grande. — Mas é nosso lar por enquanto, pelo menos.

Ele tira a calça e me esforço ao máximo para não olhá-lo com intensidade demais, mas isso fica cada vez mais difícil.

— Vem cá — chama ele, parado diante de mim sem nada além de sua cueca boxer preta e apertada, que pouco ajuda a esconder o volume crescendo por baixo do tecido.

Engulo em seco, nervosa, embora não saiba a razão para esse nervosismo repentino, e me aproximo dele. Sinto um espasmo entre as pernas, e também não sei ao certo por que isso acontece. É como se meu subconsciente estivesse mais a par do que vai acontecer do que minha parte consciente. Ou então apenas perdi o controle sobre minha mente e só consigo pensar no que eu gostaria que acontecesse.

Olho para Victor, curiosa, inclinando um pouco a cabeça para o lado.

— Não sei bem o que é isso entre a gente — diz ele, com cuidado —, mas tenho certeza de que não quero que acabe. Seja o que for.

— Eu também.

Um pouco confusa quanto ao rumo que a conversa está tomando, inclino a cabeça para o outro lado e pergunto:

— Algum problema?

Ele balança a cabeça devagar.

— Não, problema nenhum.

— Bem, se você está preocupado que eu vá me apaixonar e grudar em você feito chiclete, não precisa.

— Você não está apaixonada por mim? — pergunta Victor, e não parece nada além de uma simples questão.

— Não, eu não amo você, Victor.

Ele parece concordar.

— Ótimo. Porque eu também não estou apaixonado por você.

Acho que nem eu nem ele sabemos de fato o que essa palavra significa em uma situação assim. Ambos exibimos a mesma expressão de aceitação, mas também parecemos um pouco confusos.

— Mas... eu, hã... — Entrelaço os dedos atrás das costas e olho para o chão, mexendo o pé como se estivesse tentando afundar os dedos na areia. Paro para encará-lo. — Mas eu, hã, talvez... preferisse que você não dormisse com mais ninguém. Eu... bom, acho que eu não ia gostar muito disso.

— Concordo — diz Victor, assentindo mais uma vez, com firmeza. — Acho que se eu pegar você com outro homem vou ter que matá-lo.

Balanço a cabeça algumas vezes, de maneira tão casual quanto ele.

— Com certeza — concordo eu. — O mesmo vale para você.

— De acordo.

Há um momento de silêncio constrangido entre nós, e corro os olhos pela cama king-size com dossel alto de cerejeira, que está a alguns passos de distância.

Victor se aproxima e eu me viro para observá-lo. Ergo os braços quando ele passa os dedos por baixo da minha camiseta e a tira.

— Também quero dizer que não me incomodo se você grudar em mim feito chiclete. — Ele enfia os dedos no elástico da minha calcinha. — Só para constar.

— Mesmo?

Victor se agacha diante de mim ao descer a calcinha por meus quadris e minhas pernas. Fica ali, me olhando de baixo, com a cabeça na altura do meu umbigo.

— Sim — responde ele. — Mas claro que você não pode me atrapalhar quando eu estiver tentando fazer um serviço.

— Sim, claro — digo, e minha pele reage aos seus lábios, que beijam a área logo acima da minha pélvis. — E-eu nunca atrapalharia o seu trabalho — gaguejo.

Minhas mãos começam a tremer quando ele desce e para entre as minhas pernas, abrindo meus grandes lábios com os polegares.

Afasto os joelhos só um pouco, o bastante para que ele tenha acesso.

— Mas nada de me abandonar em algum lugar distante enquanto você viaja pelo mundo para cumprir os contratos — digo, enfiando os dedos no cabelo dele, com a respiração irregular e acelerada. — Não quero ser dona de casa, entendeu?

Um suspiro agudo corta o ar perto da minha boca quando a ponta de sua língua lambe meu clitóris. Quase derreto ali mesmo, os músculos das coxas perdendo força a cada segundo.

— Sim, entendo o que você quer dizer — diz Victor, e me lambe de novo, explorando entre as minhas pernas. Jogo a cabeça para trás e puxo seu cabelo com mais força, enrolando-o nos dedos. — Você vai aonde eu for. Para eu poder ficar de olho em você.

— De olho em mim. Claro.

Que resposta patética. Só consigo pensar na cabeça de Victor no meio das minhas pernas, e naquela sensação quente e formigante que está amolecendo minhas entranhas.

Victor me ergue segurando minha bunda com firmeza e com minhas coxas em torno da cabeça. Então me lambe furiosamente por um momento antes de me jogar de costas na cama.

Com os joelhos dobrados no peito, vejo sua boca entrar no meio das minhas coxas e reviro os olhos enquanto ele me faz esquecer tudo.


CAPÍTULO DOZE

Sarai

O treinamento começa dois dias depois, mas não da maneira que eu esperava. Não sei o que eu esperava, na verdade, mas com certeza não era isso.

— O que a gente está fazendo aqui? — pergunto quando paramos no estacionamento de uma academia de artes marciais a uma hora de Santa Fé.

— Krav maga — esclarece Victor, e olho como se ele estivesse falando outra língua. Ele fecha a porta do carro e andamos até a fachada do prédio. — Não vou conseguir dedicar cem por cento do meu tempo ao seu treinamento. Por isso, três dias por semana, vou trazer você aqui. Dá para aprender muita coisa com o krav maga em pouco tempo. E o foco é a defesa pessoal...

— O quê? — Paro na calçada antes de passarmos pela porta. — Não sou uma donzela em perigo que acaba de ser assaltada em um estacionamento escuro, Victor. Não preciso de aulas de defesa pessoal. Preciso aprender a matar.

— Matar é a parte fácil — rebate Victor, sem rodeios. Ele abre a porta de vidro e faz um gesto para eu entrar. — Chegar a esse ponto sem morrer tentando é a parte difícil.

— Então você quer que eu aprenda a dar um chute no saco de um cara? — pergunto, bufando de desdém. — Acredite, eu já sou perfeitamente capaz disso.

Um sorriso discreto aparece nos cantos de seus lábios deliciosos.

Nesse momento, um sujeito alto, moreno e com músculos bem-definidos se aproxima de nós no grande salão. As janelas no alto da parede deixam o sol entrar. Dois grupos de pessoas estão treinando em pares, formando um semicírculo em um enorme tatame preto estendido por boa parte do chão.

O homem de braços musculosos e camiseta preta estende a mão para Victor.

— Faz quanto tempo? Três anos? Quatro?

Victor aperta a mão dele com firmeza.

— Uns quatro, acredito.

O homem me olha por um momento, e então Victor nos apresenta.

— Spencer, esta é Izabel. Izabel, Spencer.

— Prazer — diz Spencer, estendendo a mão.

Relutante, aperto a mão dele. Eles se conhecem? Não sei se gosto disso ou não. De repente, sinto que aquilo é alguma armação. Sorrio com desdém para aquele brutamontes alto e simpático.

Victor se vira para mim e diz:

— Não tem ninguém melhor para treinar você em defesa pessoal do que Spencer. Você está em boas mãos.

Spencer abre um sorriso tão largo que, se fosse um pouco maior, acho que daria para engolir minha cabeça. Ele está com os braços musculosos à sua frente, com as mãos cruzadas. As veias, grossas como cordas, que percorrem suas mãos e seus braços bem bronzeados me lembram das de um fisiculturista, mas ele não tem esse tamanho todo. Só é maior do que eu, o que me intimida mais.

Levanto um dedo para Spencer.

— Você nos dá licença um minutinho?

— Claro — responde ele.

Percebo o leve sorriso que ele dá para Victor.

Pego Victor pela mão e o puxo para o lado. Ao fundo, ouço, de maneira constante, corpos sendo jogados naquele tatame preto e a voz de um instrutor entoando comandos repetitivos e mandando os alunos fazerem “de novo”.

— Victor, acho que isto é perda de tempo. Não sei por que você me trouxe aqui. — Cruzo os braços. — Quero aprender essas coisas com você, não com um cara aleatório do tamanho de um ônibus. — Olho por cima do ombro, torcendo para que Spencer não tenha ouvido, embora eu tenha tomado o cuidado de sussurrar.

— Preciso me encontrar com Fredrik daqui a uma hora — explica Victor.

— Ah, então você vai me deixar com uma babá? — Franzo o cenho e balanço a cabeça para ele, totalmente incrédula, para não dizer ofendida.

— Não, não é isso.

— Mas eu quero que você me ensine — repito, forçando as palavras com rispidez entre meus dentes cerrados.

Victor suspira e balança a cabeça, parecendo aborrecido e frustrado comigo.

— Você não tem disciplina. Nenhuma. Igualzinha ao meu irmão. — Isso fere o meu orgulho. — Como vou ensinar alguma coisa para você, se não é capaz nem de fazer as coisas mais simples que eu peço?

Na mesma hora, me arrependo por agir feito uma criança. Solto um suspiro de resignação.

— Desculpe — digo, baixinho. — Pensei que fosse treinar com você, só isso.

— Você vai treinar comigo — garante Victor, pondo as mãos nos meus ombros. — Mas por enquanto precisa aprender o básico. E esta é a melhor maneira.

— Mas por que você não pode me ensinar o básico? — pergunto, com o mesmo tom resignado de antes. — Por que precisa ser ele?

Victor se inclina e beija de leve o canto da minha boca.

— Porque Spencer não tem medo de machucar você — explica ele, e isso me surpreende um pouco. — E não quero fazer isso, se eu puder evitar. Você só vai aprender se for real.

Arregalo os olhos.

— Espere aí... Então você está dizendo que aquele tanque de guerra — digo, apontando por cima do ombro com o polegar — vai me bater de verdade?

— Sim. É para isso que ele está sendo pago.

Parece que meu queixo acaba de bater no chão. De repente, sinto um calafrio percorrer minha espinha.

— Você não é obrigada a fazer isso, Sarai, mas, se realmente é o seu desejo, quero que vá com tudo. Não faça de qualquer jeito. Na vida real, quem atacar você não vai facilitar as coisas — afirma Victor, enquanto me encara com atenção, querendo desesperadamente que eu o entenda e confie nele. — Vou treinar com você no momento certo. Mas, quando eu fizer isso, vai ser brutal, Sarai. Vou atacar com a mesma força que um agressor de verdade usaria. Aprenda o básico primeiro, domine algumas habilidades para conseguir me enfrentar, e vou me sentir melhor para treinar você pessoalmente. Entendeu?

— É, acho que sim — respondo, assentindo. E estou sendo sincera.

Entendo perfeitamente agora. Nem me lembro da última vez que estive tão nervosa para fazer alguma coisa. Mas Spencer, o tanque, não me assusta tanto, na verdade, porque lá no fundo sei que, mesmo que Victor esteja lhe pagando para não facilitar comigo, ele não vai usar toda a sua força em mim. Se usasse, me mataria.

— Você quer ficar? — pergunta Victor.

— Quero.

— Ótimo.

Ele se inclina para meus lábios de novo e me beija com intensidade, tirando meu fôlego. Chocada por essa demonstração pública de afeto tão atípica, fico sem palavras quando ele desgruda os lábios dos meus.

— Volto para buscar você daqui a algumas horas.

— Tudo bem.

Nós voltamos para perto de Spencer, que parece um tanto empolgado para começar a treinar comigo, como se eu fosse um brinquedo novinho em folha com o qual ele não vê a hora de brincar.

— Pronta para começar a aprender krav maga? — pergunta Spencer.

— Estou — respondo, e meu olhar vai até as pessoas lutando no tatame preto atrás dele.

— Tem certeza de que você aguenta?

Quero dizer que sim com confiança, porque, afinal de contas, sempre imaginei que aulas de defesa pessoal consistissem em nada mais do que bloquear golpes, bater e sinalizar aos outros onde estou. Sempre imaginei mulheres comuns, que nunca lutaram na vida, todas de pé em um círculo, esperando a vez para derrubar o instrutor com alguns golpes “úteis”. Contudo, ao observar o grupo que está treinando atrás de Spencer, a intensidade agressiva e a violência de alguns golpes, começo a achar que esse tipo de defesa pessoal é bem diferente.

— Deve ser simples — digo, sem a segurança que queria.

— Se você diz — responde Spencer, com um sorriso conivente que deixa meus nervos ainda mais em frangalhos.

Mas não estou com medo. Nervosa, sim, mas não com medo. Estou pronta para fazer isso. Começo até a ficar ansiosa. Quero provar a Victor que dou conta.

E quero provar a ele que não sou nada parecida com seu irmão.

Victor vai embora. Antes do fim da primeira hora, estou exausta e tão dolorida que mal consigo andar em linha reta sem cambalear.

— Sempre se defenda e ataque ao mesmo tempo — explica Spencer, em pé, enquanto estou deitada no tatame e querendo me encolher em posição fetal. — E nunca vá para o chão. Isto não é luta greco-romana, Izabel. Se você vai para o chão, você morre.

Sem fôlego e tentando controlar a dor intensa que queima minha panturrilha, me levanto.

— Me ataque — ordena ele, elevando a voz acima dos poucos gritos de quem ainda assiste à aula depois da segunda hora. — Se não me atacar, eu ataco você!

Estou exausta demais.

— Não consigo! — Desisto e caio de bunda no tatame. — É demais. Hoje é meu primeiro dia e parece que é minha primeira luta de verdade. Cadê a parte em que você me mostra o que fazer e me ensina a dar os golpes?

— O que você quer mesmo é que eu pegue leve com você, não é?

— Isso! Cadê as instruções? As regras?

Minhas costas estão me matando. Deito no tatame, abrindo os braços acima da cabeça, e olho para o teto iluminado. Não quero mais saber de Spencer e de seu treinamento de imersão total. Só quero descansar.

As lâmpadas fluorescentes do teto começam a se mover depressa quando sinto de repente que estou sendo arrastada pelo tornozelo.

— Não há regras no krav maga — ouço Spencer dizer, mas percebo, meio segundo depois, que não é ele quem está me arrastando.

É uma mulher, com cabelo castanho-claro preso em um rabo de cavalo. Confusa com a mudança, fico distraída demais para notar o pé dela atingindo meu estômago. Berro de dor, me dobrando para a frente ao levantar as pernas e as costas do tatame ao mesmo tempo, com os braços cruzados sobre o abdômen. O golpe expulsa todo o ar dos meus pulmões.

— CHEGA! — grita Spencer, em algum lugar atrás de mim.

Sinto que vou vomitar.

A mulher para no mesmo instante e dá alguns passos para trás.

— Levante — manda Spencer, e decifro, em meio à dor que acaba com meu tórax, que sua voz está muito mais perto do que antes.

Ergo a cabeça e o vejo agachado ao meu lado.

— Vou deixar você recuperar o fôlego — diz ele, baixinho, oferecendo a mão. — Esta é Jacquelyn. Minha mulher.

Pego no antebraço dele, ele me segura e me põe de pé.

— Muito prazer — digo a ela, fazendo uma careta horrorosa de dor. — Ou em conhecer o seu pé, pelo menos.

Ela dá uma risadinha.

— O seu namorado me pagou para encher você de porrada, basicamente — afirma Spencer. — Mas, como não tenho o hábito de bater em mulher, achei melhor deixar minha esposa fazer as honras para que eu pudesse receber o pagamento do mesmo jeito.

— É a melhor maneira de aprender — intervém Jacquelyn. — Esse seu homem sabe o que está fazendo. É brutal? Claro. Necessário para sobreviver a situações de combate corpo a corpo? Com certeza. Indicado para peruazinhas delicadas que ficam pulando e gritando de medo quando veem uma aranha? Nem fodendo.

— Bom, eu não sou uma dessas — digo, com frieza. — Disso você pode ter certeza.

— Então prove — provoca ela, curvando-se para a frente com as mãos semiabertas ao lado do corpo. — Lembre, o krav maga não tem regras. Sempre defenda e ataque ao mesmo tempo. Sempre lute com agressividade. E nunca vá para o chão.

— Ok, essa parte eu entendi. Se eu for para o chão, estou morta.

Jacquelyn praticamente me dá uma surra durante o resto da aula. E, quando Victor finalmente chega para me buscar, meu nariz e meu lábio estão sangrando, meu olho direito está roxo e latejando e acho que quebrei um dente.

Isso continua dia sim, dia não pelas duas semanas seguintes.

Não levei muito tempo para ficar boa no krav maga. Spencer diz que tenho um talento natural e que devo ter “dispensado as Barbies quando era criança”.

Ele não faz nem ideia...

Estou ficando muito mais forte, muito melhor na minha técnica. Em certo momento, até consegui machucar Jacquelyn ao enfiar o cotovelo nas costelas dela. Acho que quebrei algumas, mas ela não admite. Não por orgulho, mas porque não acha certo reclamar nem deixar algo tão insignificante quanto uma costela fraturada impedir que ela lute.

Também não demorou para que eu começasse a simpatizar com ela. Quando Jacquelyn não está me enfiando a porrada, até gosto de sua companhia.

Só duas semanas se passaram. Até agora, não fiz nada além de treinar com Jacquelyn e aprender a usar armas com Victor. Ainda assim, apesar de curtir o treino e esperá-lo ansiosamente todo dia, fico frustrada por estar demorando tanto. Eu esperava que Hamburg e Stephens já estivessem mortos faz tempo, a essa altura.

Estou ficando impaciente.

— Victor, eu não pretendo lutar com Hamburg e Stephens. Só quero matá-los. Mais nada. Não entendo por que você está me fazendo passar por tudo isso.

Victor se descobre e sai da cama, andando nu pelo quarto.

Em silêncio, admiro a visão.

— Tem mais coisas envolvidas nisso do que você imagina — diz ele, desaparecendo ao entrar no banheiro.

Aquilo com certeza desperta meu interesse.

Eu me levanto e grito:

— É mesmo?

Jogo o lençol no chão e ando depressa atrás dele, parando à porta do banheiro e me apoiando no batente. Ele está abrindo a água do chuveiro.

Victor fecha o boxe de vidro, deixando a água correr por um momento, e então se vira para mim.

— Você não está fazendo todo esse treinamento só para matar Hamburg e Stephens. Se vai ficar comigo, independentemente de como vai ocupar o seu tempo, precisa aprender a lutar. Precisa saber identificar, diferenciar, carregar e disparar praticamente qualquer tipo de arma. Há muitas coisas que você precisa saber, e não temos tempo suficiente para aprender metade delas. — Ele abre a porta do boxe e estende o braço, deixando a água correr sobre a mão para sentir a temperatura.

Ele acrescenta:

— Esse treinamento não tem muito a ver com Hamburg e Stephens. Quero que você esteja sempre segura, por isso é vital que aprenda essas coisas agora.

Abro um sorriso leve, saboreando o momento. Quando nos conhecemos, eu não imaginava que Victor tivesse um só traço de preocupação ou emoção no corpo. Mas a cada dia testemunho que ele está se abrindo mais para mim. E vejo que isso está se tornando mais fácil para ele.

Volto ao assunto em questão, mas o que eu gostaria mesmo de fazer, a essa altura, é beijá-lo.

— Mas por que isso está demorando tanto? Quero acabar com essa história de uma vez.

Entro no banheiro e me sento na bancada da pia, apenas de calcinha.

— Porque, enquanto eu elaboro um plano para você chegar perto dos dois e matá-los, você precisa treinar, ocupar seu tempo o máximo possível. — Victor se aproxima de mim e segura meu rosto com as mãos. — Só estar no mesmo quarto comigo, só me conhecer, Sarai, já é uma sentença de morte diária. Cada vez que você sai por aquela porta, corre o risco de levar um tiro. O único motivo pelo qual a Ordem ainda não me encontrou é que Niklas é o único agente atrás de mim. Quer dizer, por enquanto. Ele não quer que ninguém mais me ache. Ele quer levar o crédito. O reconhecimento. Sobretudo porque foi ele o contratado para acabar comigo. — Victor pressiona os lábios na minha testa. Fecho os olhos, levanto os braços e seguro os pulsos dele. — Mas um dia, provavelmente daqui a pouco, vou ter que enfrentar meu irmão, pois a Ordem não vai dar todo o tempo do mundo para ele cumprir a missão. Ou ele me encontra ou eu o encontro. E um de nós vai morrer.

Com os dedos ainda envolvendo os pulsos dele, afasto delicadamente suas mãos do meu rosto. Olho para aqueles lindos olhos verde-azulados, perplexa, inclinando a cabeça para um lado.

— Por que não deixa isso para lá? Victor, entendo você querer matar Niklas antes que ele mate você, mas por que correr o risco de morrer procurando briga?

O vapor começa a encher o banheiro, embaçando o grande espelho acima do balcão, atrás de mim.

— Porque se Niklas não me encontrar, se não conseguir cumprir o primeiro contrato oficial desde que foi promovido a agente sob o comando de Vonnegut, eles vão matá-lo. — Victor apoia as mãos na bancada, à minha direita e à minha esquerda. — Ninguém, a não ser eu, vai matar meu irmão. Não me importa o que ele fez ou as diferenças que temos, ainda é meu irmão.

Faço que sim, compreensiva.

— Tudo bem, então quando tudo isso vai acontecer? Esse... confronto com Niklas? Minha chance de matar Hamburg e Stephens?

Victor abre um sorriso malicioso e eu passo as pontas dos dedos em seus lábios. Ele segura minha mão e beija meus dedos.

— Vamos ter que trabalhar nesse seu problema, Sarai. A sua impaciência e, claro, como já falei, a indisciplina. É o próximo item da nossa agenda.

— Não consigo evitar a impaciência. Aqueles dois babacas horríveis continuam por aí, levando uma vida de luxo, fazendo só Deus sabe o quê com sabe-se lá quantas mulheres. Isso sem falar que estão me procurando. Mataram meus amigos por minha causa. Dina continua escondida longe da casa dela e está com medo. A vida dela foi virada de cabeça para baixo por causa deles. Por minha causa. Quero que eles morram para que pelo menos Dina possa seguir a vida.

— O que você vai dizer para ela? — pergunta Victor. — Quando se encontrar com ela hoje, o que vai dizer?

Desvio o olhar e vejo o vapor revestir as altas paredes de vidro do boxe, ondulando acima do chuveiro em nuvens suaves. Começo a suar um pouco, o rosto, o pescoço e o colo úmidos.

— Vou contar a verdade para ela.

— Você acha uma boa ideia?

Encaro Victor.

— Acho justo. Ela é praticamente minha mãe. Fez muito por mim. Eu devo a verdade a ela. — Sorrio e acrescento: — Além disso, se você não concordasse com minha decisão de contar a verdade, já teria deixado isso bem claro, a essa altura.

Victor retribui meu sorriso e me segura pela cintura, me ajudando a descer da bancada.

— Acho que é melhor a gente se arrumar, se quiser chegar lá a tempo — observa ele, e me leva até o chuveiro. Tiro a calcinha antes de entrar no boxe com ele.

Victor disse a Dina e a mim que me levaria para vê-la alguns dias depois de o contato de Fredrik a tirar de Lake Havasu City. Mas as coisas não saíram conforme planejamos. Victor e Fredrik concordaram que era arriscado e cedo demais. Uma noite, ouvi os dois conversando sobre Dina e sobre como ela poderia estar sendo vigiada no dia em que o contato de Fredrik chegou para buscá-la. Victor queria ter certeza de que isso não havia acontecido, e que, se qualquer um de nós aparecesse por acaso no esconderijo de Dina, não cairia em uma armadilha. Mas, à medida que os dias passaram e Fredrik continuou vigiando a casa onde Dina estava se escondendo, ele e Victor tiveram certeza de que ela era, de fato, segura.

Hoje, enfim, vou vê-la pela primeira vez desde que viajei com Eric e Dahlia para Los Angeles.


CAPÍTULO TREZE

Victor

Sarai precisa estar preparada não só para as ameaças iminentes, mas também para a vida que a espera. Ela escolheu um caminho há muito tempo, no dia em que me conheceu, embora ainda não soubesse. Eu não queria enxergar, por isso lutei comigo mesmo contra a necessidade estranha e antinatural de ficar perto dela, porque queria que ela tivesse uma vida normal.

Não queria que ela terminasse como eu...

Mas eu sabia, oito meses atrás, antes de deixá-la naquele quarto de hospital ao lado da sra. Gregory, que um dia eu voltaria para ela. Nunca foi minha intenção nem meu plano, eu apenas sabia que acabaria acontecendo, de uma maneira ou de outra.

Por 28 dos meus 37 anos de vida, a única coisa que conheci foi a Ordem. Só conheci disciplina e morte. Nunca conheci amizade ou amor sem suspeitas e traições. Fui... programado para desafiar as emoções e ações humanas mais comuns, mas eu... Só quando conheci Sarai me permiti acreditar que Vonnegut e a Ordem não eram minha família, que me usaram como seu soldado perfeito. Eles me negaram a vida toda os elementos que nos tornam humanos. E não posso permitir que isso fique impune.

Um dia, vou matar Vonnegut e acabar com o resto da Ordem pelo que fizeram comigo e com a minha família. Uma família que eles destruíram. Sarai é minha família agora, e espero que Fredrik prove sua lealdade no teste final que farei com ele. Eles são minha família e não vou permitir que a Ordem também os destrua.

Mas, por enquanto, Sarai é o meu foco, e será pelo tempo que for necessário. Ela precisa ser treinada. Precisa absorver o máximo que puder, o mais rápido que conseguir. É impossível que um dia ela chegue ao meu nível. Ela nunca vai conseguir viver a vida de um assassino como eu, porque levaria metade da vida para aprender. É por isso que a Ordem nos recruta tão jovens. É por isso que Niklas e eu fomos levados quando éramos crianças.

Sarai nunca vai ser como eu.

Mas ela tem outros talentos. Tem habilidades que, mesmo depois de tantos anos de treinamento, eu jamais conseguiria superar. A vida de Sarai na fortaleza no México lhe garantiu um conjunto único de habilidades que não se aprendem em uma aula nem se leem em um livro. Ela mente e manipula com maestria. Pode se tornar outra pessoa em dois segundos e enganar uma sala cheia de gente que ninguém mais conseguiria enganar. Consegue fazer um homem acreditar no que ela quiser com muito pouco esforço. E não tem medo da morte. Ela é melhor do que uma simples atriz. Porque ninguém percebe a farsa até que seja tarde demais. Javier Ruiz foi o verdadeiro professor de Sarai. Ele lhe ensinou coisas que eu jamais conseguiria transmitir. Foi seu verdadeiro treinador, ensinando os talentos mortais que agora começam a defini-la como assassina. E, como todos os mestres perversos, Javier Ruiz também foi a primeira vítima de sua aluna favorita.

Assim como foi com as habilidades que Sarai já possui, para aprender a lutar e entender a luta de verdade, ela precisa vivê-la e respirá-la todos os dias. Forçá-la a treinar com Spencer e Jacquelyn é necessário para a sua sobrevivência porque ela precisa aprender o máximo que puder sempre que for possível. Mas são as habilidades que ela já tem que vão transformá-la em um soldado único.

São essas habilidades que nos tornam a dupla perfeita.

Antes disso, contudo, Sarai precisa entender a fundo do que é capaz. E precisa passar pelos testes. Todos eles, até aqueles que podem fazê-la me detestar.

Não tenho dúvidas de que isso vai acontecer. Ela passar nos testes, pelo menos. Se ela vai me detestar, ainda é discutível.

Chegamos a Phoenix logo depois do pôr do sol e somos recebidos à porta da casinha branca por Amelia McKinney, o contato de Fredrik. Ela é uma mulher linda, voluptuosa e com um longo cabelo louro, embora sua característica menos atraente seja seu grande par de peitos de plástico, que com certeza devem lhe dar dor nas costas. E ela usa roupas bem chamativas para uma mulher com doutorado que dá aula no ensino fundamental há cinco anos.

— Olá, Victor Faust — cumprimenta ela, com um tom sedutor, segurando a porta aberta para mim e Sarai. — Ouvi falar muito de você.

— Muito? Interessante.

Com uma das mãos, ela deixa aberta a porta de tela, dá um passo para o lado e acena para entrarmos na casa, sacudindo um monte de pulseiras com pingentes de ouro. Vários anéis enormes enfeitam seus dedos. E ela cheira a sabonete e a pasta de dente.

Coloco minha mão nas costas de Sarai e deixo que ela entre antes de mim.

— Fredrik me falou de você — conta Amelia, fechando a porta. — Mas acho que “muito” é exagero nesse caso, já que ele mesmo não parece saber muita coisa a seu respeito. — Ela gira a mão ao lado do corpo e acrescenta: — Mas imagino que o fato de eu saber tão pouco é o que torna você ainda mais intrigante.

— Nem pense nisso — intervém Sarai, parando nossa pequena fila indiana e se virando para encará-la.

Disciplina, Sarai. Disciplina. Suspiro em silêncio, mas admito que fico de pau duro ao vê-la tão superprotetora com o que lhe pertence.

Amelia levanta as mãos, por sorte em um gesto de resignação e não de desafio.

— Sem problemas, meu anjo. Não tem problema nenhum.

Sarai aceita essa bandeira branca e andamos mais pela casa, onde encontramos Dina Gregory na cozinha, preparando o que parece ser uma ceia de Ação de Graças para umas 15 pessoas.

Sarai corre para os braços abertos de Dina, e começam os sorrisos e as palavras de alívio e empolgação. Ignoro tudo isso por um momento, voltando minha atenção para assuntos mais prementes: o que está ao meu redor e essa mulher que não conheço.

Não confio em ninguém.

Amelia, como muitas mulheres do círculo de Fredrik Gustavsson, não sabe nada sobre a Ordem nem sobre o envolvimento que eu ou Fredrik temos com organizações do tipo. Ela não é o que Samantha, do Abrigo Doze no Texas, era para mim. Não, a relação de Amelia e Fredrik, embora tecnicamente não possa mais ser chamada assim, é muito mais... complicada.

Começo a vasculhar a casa em busca de câmeras e armas, tateando estantes, vasos de plantas, cacarecos e móveis, instalando minha própria parafernália secreta de espionagem no caminho.

— Fredrik disse que você talvez fizesse isso — diz Amelia, atrás de mim, embora eu tenha certeza de que ela não viu o pequeno aparelho que acabo de grudar embaixo da mesinha da TV. Ela ri baixo. — Eu limpei a casa muito bem antes de você chegar. Cadê as suas luvas de borracha? — brinca ela.

Não viro para trás nem paro o que estou fazendo.

— Você recebeu alguma visita desconhecida desde que a sra. Gregory veio para cá? — pergunto, debruçando-me sobre uma mesa ao lado de uma cadeira reclinável e examinando um abajur.

— Uau, você e Fredrik são mesmo os caras mais paranoicos que já conheci. Não. Não que eu lembre. Bom, um vendedor de TV por satélite veio uma vez semana passada, querendo que eu desistisse da TV a cabo. Além dele, ninguém.

Ela se aproxima de mim por trás e abaixa a voz:

— Por quanto tempo essa mulher vai ficar na minha casa? — Noto com a visão periférica que ela olha para a porta da cozinha, para garantir que ninguém consiga ouvi-la além de mim. — Ela é legal e tudo, mas... — Amelia suspira com ar culpado. — Olha, eu tenho 30 anos. Não moro com meus pais desde os 16. Ela está atrapalhando o meu jogo. Eu trouxe um cara aqui semana passada e ele pensou que ela fosse minha mãe. Ficou chato. Não transo desde que ela chegou.

Eu me viro para encará-la.

— E há quanto tempo você conhecia o sujeito que trouxe aqui?

— Hein?

— O homem. Há quanto tempo estava dormindo com ele?

Suas sobrancelhas finas e bem-cuidadas se juntam no meio da testa.

— E isso por acaso é da sua conta? Vai me perguntar em quantas posições a gente trepou também?

— Quanto tempo?

— Conheci o cara em um bar, sábado passado.

— Bem, ele conta como uma visita desconhecida.

Ela quer discutir, mas se contém.

— Ok. Tudo bem. O cara do satélite e o quase peguete do bar. Só eles.

— Antes que eu vá embora, vou precisar do nome desse cara e de qualquer outra informação que você possa me dar sobre ele, incluindo uma descrição detalhada.

Ela balança a cabeça e ri, contrariada.

— Não sei por que aguento essas merdas do Fredrik. — Então Amelia abre uma gavetinha da mesa e tira um bloco de notas e uma caneta.

— Porque você não resiste — observo, mas sem querer ser desagradável. Outra coisa que preciso praticar: ficar de boca fechada quando as mulheres dizem certas coisas que dispensam comentários.

Ofendida, ela arregala os olhos azuis brilhantes. Rabisca alguma coisa na folha, arranca-a do bloco e a enfia na minha mão.

— O que isso significa? — Contudo, antes de me dar a chance de cometer outra gafe, ela muda o tom de voz, chega perto de mim e sussurra de maneira sedutora: — Ei... O que vocês dois têm em comum, afinal?

Sei exatamente sobre o que Amelia está perguntando. Ela especula sobre as minhas preferências sexuais e provavelmente torce para que sejam tão sombrias quanto as de Fredrik. Mas ela está pisando em um território muito perigoso, com Sarai na sala ao lado.

— Não muito — respondo, enfiando no bolso a folha com o nome e a descrição do homem. Então continuo a investigar a casa dela.

— Que pena — comenta Amelia. — Qual é a dele, afinal? Ele fala alguma coisa de mim?

Por favor, pare com isso...

Suspiro e paro na entrada do corredor, olhando-a nos olhos.

— Se você tem perguntas para ou sobre Fredrik, faça o favor de perguntar diretamente a ele.

Amelia joga o cabelo para trás em um gesto orgulhoso e revira os olhos.

— Tudo bem. Só pergunta para o Fredrik quanto tempo mais vou ter que ficar de babá, ok?

Ela passa por mim e se junta a Sarai e à sra. Gregory na cozinha, enquanto aproveito a oportunidade para inspecionar o resto da casa.

Por falar em Fredrik, ele me liga quando estou a caminho do quarto de hóspedes.

— Tenho informações sobre a missão de Nova Orleans — diz ele do outro lado da linha. Ouço trânsito ao fundo. — O contato acha que o alvo voltou para a cidade.

— Por que ela acha isso?

— Ela acha que o viu em frente a um bar perto da Bourbon Street. Claro que ela pode ter imaginado isso, mas acho que a gente deveria investigar. Só por segurança. Se a gente esperar e ele voltar para o Brasil, ou onde quer que ele esteja se escondendo, pode levar mais um ou dois meses antes de termos outra chance.

— Concordo. — Eu me fecho no quarto de hóspedes. — Estou com Sarai na casa da Amelia agora, mas vou terminar as coisas por aqui mais cedo. Vá para Nova Orleans na minha frente e eu encontro você lá amanhã no início da noite. Mas não faça nada.

— Não fazer nada? — pergunta Fredrik, desconfiado. — Se eu encontrar o cara, posso prendê-lo e começar o interrogatório, pelo menos.

— Não, espere a gente. Quero que Sarai faça isso.

Fredrik fica em silêncio por um instante.

— Você não pode estar falando sério, Victor. Ela não está pronta. Pode estragar a missão toda. Ou morrer.

— Não vai acontecer nada disso — rebato com calma e confiança. — E não se preocupe, é você quem vai fazer o interrogatório. Só quero que ela prenda o sujeito.

Sei que há um sorriso macabro no rosto de Fredrik sem precisar vê-lo ou ouvir sua voz. Deixar que ele faça o interrogatório é praticamente o mesmo que dar uma seringa para um viciado em heroína.

— Vejo você em Nova Orleans, então — diz ele.

Desligo, enfio o celular no bolso de trás da calça preta e termino a inspeção da casa antes de ir para a sala e me juntar às mulheres, todas já com pratos de comida no colo.


CAPÍTULO CATORZE

Sarai

— Você deveria fazer um prato — digo para Victor quando ele surge no corredor. — Dina cozinha muito bem. Até melhor do que Marta. Mas não diga a Marta que eu falei isso. — Enfio uma enorme colherada da caçarola de feijão na boca.

Dina, sentada ao meu lado no sofá, aponta para Victor.

— Ela é suspeita. Mas, se você está com fome, é melhor comer antes que acabe.

— Precisamos conversar — anuncia Victor, de pé no meio da sala e bem na frente da TV.

Não gosto do tom dele.

— Tudo bem — digo, desencostando do sofá e deixando o prato na mesinha de centro. — Sobre o quê?

Victor olha de relance para Amelia. Ela está sentada na poltrona à minha frente, pegando um pedaço de pão de milho. Tenho a sensação de que Victor não quer que ela ouça a conversa.

— Amelia — diz Victor, enfiando a mão no bolso de trás da calça e pegando a carteira de couro —, preciso que você saia um pouco de casa. — Ele mexe na carteira, tira um pequeno maço de notas de 100 dólares e o deixa na mesa diante dela. — Se você não se importar.

Amelia olha para o dinheiro, apoia o garfo no prato e conta as cédulas.

— Sem problemas — concorda ela, com um sorriso satisfeito. Então se levanta, pega o prato e a lata de refrigerante e desaparece na cozinha.

Ouço o garfo raspando os restos de comida do prato para o lixo e a cerâmica tilintando no fundo da pia. Amelia passa por nós e segue até o corredor.

— Mas preciso que você saia agora mesmo — reitera Victor. — Não precisa trocar de roupa nem se arrumar.

— Posso pelo menos calçar a droga de um sapato? — pergunta ela, ríspida.

— Claro — responde Victor, assentindo. — Mas, por favor, não demore.

Amelia vai até o fim do corredor, resmungando irritada. Minutos depois, ela liga o carro e vai embora.

Victor olha para mim e para Dina.

— Não podemos ficar tanto tempo quanto o planejado — informa ele.

Dina também larga o prato e suspira com tristeza.

— Por que não? — pergunto.

— Surgiu um problema.

Olho para o meu prato, e o brilho metálico do garfo perde foco à medida que mergulho em pensamentos. Achei que teria tempo para encontrar a forma certa de contar para Dina tudo o que eu planejava contar. Agora estou desesperada tentando imaginar como começar a primeira frase.

— Dina — digo, respirando fundo. Eu me viro de lado para encará-la. — Eu matei um cara, meses atrás. — O rosto de Dina parece ficar rígido. — Foi em legítima defesa. Eu, hum... — Olho para Victor. Ele assente de leve, me motivando a continuar e garantindo que está tudo bem, embora eu saiba que ele não concorda cem por cento com o que estou fazendo. — Aliás, também matei um cara em Los Angeles na noite em que Dahlia e Eric foram encontrados mortos.

Dina ergue a mão enrugada e cobre a boca.

— Ah, Sarai... Você... o que você está...

— Dahlia e Eric foram assassinados por minha causa — interrompo, porque é evidente que ela não sabe o que dizer. — Não só a polícia de Los Angeles está atrás de mim para me interrogar, já que eu estava com eles, mas também os homens que mataram os dois estão na minha cola. É por isso que você está aqui.

— Meu Deus do céu. — Dina balança a cabeça sem parar, tira os dedos da boca e aperta os olhos cheios de pés de galinha em uma expressão preocupada.

Seguro a mão dela, que é fria e macia.

— Tem muita coisa que você não sabe. Onde eu estava de fato durante os nove anos em que minha mãe e eu ficamos desaparecidas. O que realmente aconteceu comigo. E com minha mãe. E eu não levei um tiro de um ex-namorado daquela vez em que Victor levou você para o hospital em Los Angeles. Eu levei um tiro de... — Olho para Victor de novo, mas decido por mim mesma não revelar essa informação. Ela não precisa saber de Niklas nem no que Victor e ele estão envolvidos. — Foi outra pessoa que atirou em mim. É uma história muito longa que você vai saber um dia, mas por enquanto só quero que você saiba a verdade sobre mim. — Passo os dedos com carinho nas costas da mão dela. — Você é a única mãe de verdade que eu tive. Fez tanta coisa por mim, sempre me apoiou, e eu devo essa honestidade a você.

Dina segura minha mão entre as dela.

— O que aconteceu com você, menina? — pergunta, com tanta dor e preocupação na voz que sinto um nó na garganta.

Começo a contar tudo, tanto quanto posso sem revelar qualquer informação sobre Victor e Niklas. Conto sobre o México e sobre as coisas que vi e vivi por lá. Conto sobre Lydia e sobre não conseguir salvá-la, apesar de ter lutado tanto. Omito sobretudo as relações sexuais que eu tinha com o cara que me mantinha presa, Javier Ruiz, um chefão mexicano do tráfico de drogas, armas e escravas, e só digo que eu estava lá contra a minha vontade e fui obrigada a fazer coisas que não queria. Dina cai no choro e me abraça forte, me balançando apertada contra o peito, como se eu é que estivesse chorando e precisasse de um ombro amigo. Ao menos dessa vez, contudo, não estou chorando. Só me sinto péssima por ter que contar tudo isso a ela, pois sei que isso a magoa muito.

Minutos depois, quando termino de contar tudo o que posso, Dina está sentada na beira do sofá, parecendo ligeiramente em choque. Mas ela está mais preocupada do que qualquer outra coisa.

Ela olha para Victor.

— Quanto tempo vou precisar ficar aqui? Gostaria muito de ir para casa. E quero levar Sarai.

— Isso não é uma boa ideia — argumenta Victor. — E quanto a Sarai, ela vai ter que ficar comigo. Por tempo indeterminado.

Engulo em seco ao ouvir as palavras dele, sabendo que Dina não vai aceitar isso.

— Então... Mas então o que isso significa? — pergunta ela, nervosa, voltando sua atenção somente para mim. — Sarai, você nunca mais vai voltar para casa?

Balanço a cabeça, cheia de culpa.

— Não, Dina, eu não posso. Preciso ficar com Victor. Estou mais segura com ele. E você está mais segura sem mim.

Dina balança a cabeça com ar solene.

— Você vai me visitar?

— Claro que vou. — Aperto a mão dela com delicadeza. — Eu nunca abandonaria você para sempre.

— Entendo — afirma ela, esforçando-se para aceitar.

Dina se volta para Victor.

— Mas eu não posso ficar na casa dessa mulher. Se você só me trouxe para cá para me proteger, prefiro voltar para casa. Não tenho medo desses homens. — Ela fica de pé e olha para mim. — Sarai, querida, eu nunca contaria nada para a polícia. Espero que acredite nisso.

Também me levanto.

— Sim, Dina, eu sei que você não contaria. O motivo para você estar aqui não tem nada a ver com a minha confiança em você. Trouxemos você para cá porque queremos que fique segura. Se alguma coisa acontecesse com você, principalmente por minha causa, eu jamais me perdoaria. Você é tudo o que me resta. Você e Victor. Você é minha família e eu não posso perdê-la.

— Mas eu não posso ficar aqui, querida. Já fiquei tempo demais. Amelia é gentil comigo, mas aqui não é a minha casa, e não quero ficar mais tempo do que ela quer que eu fique. Sinto como se minha presença fosse um fardo. Sinto falta das minhas plantas e da minha caneca de café favorita.

— Sra. Gregory — intervém Victor, impaciente, mas ainda respeitando os sentimentos dela. Ela se vira, mas ele faz uma pausa como se refletisse sobre algo. — Sarai não vai ficar segura se tiver que se preocupar com a sua segurança. Estou dizendo desde já: se a senhora voltar para casa, eles vão encontrar e matar a senhora assim que a virem, ou pior, vão sequestrá-la, torturá-la, gravar tudo em vídeo e usar as imagens para atingir Sarai. Entende o que estou dizendo?

A expressão grave e determinada de Dina desmorona sob um véu de sofrimento e resignação. Ela se vira para mim, com o semblante distorcido pela dor. Talvez esteja me pedindo uma confirmação das palavras de Victor, esperando que eu suavize a situação, que eu diga que ele só está sendo dramático. Mas não posso fazer isso. O que ele disse, embora brutal e sem rodeios, é exatamente o que ela precisa ouvir.

— Ele tem razão. Olhe, a gente vai dar um jeito nesses caras logo, tudo bem? Só preciso que você fique quietinha por mais um tempo, até a gente conseguir fazer isso.

— Mas concordo com a senhora — pondera Victor —, acho que não deve mais ficar aqui.

Dina e eu olhamos para ele ao mesmo tempo.

Victor continua:

— Quando estamos nos escondendo e ficamos tempo demais no mesmo lugar, com certeza somos encontrados.

— Então aonde ela deve ir? — pergunto, com várias possibilidades girando na cabeça, nenhuma das quais parece plausível. — Não me diga que quer levar Dina com a gente. Por mais que eu fosse adorar...

— Não, ela não pode ir com a gente — concorda Victor —, mas posso arranjar uma casa só para ela. Já fiz isso antes.

Afinal, Victor providenciou a casa em Lake Havasu City para mim e Dina.

— Mas você não disse que surgiu um problema e que a gente precisa ir embora antes do planejado? Não dá tempo de encontrar outra casa para ela. Isso levaria dias.

— Eu tenho uma casa — afirma Victor. — Fica longe do Arizona, mas acho que seria melhor para a senhora não ficar aqui por enquanto. O contato de Fredrik, o mesmo sujeito que trouxe a senhora para cá, pode levá-la a esse lugar. Está disposta a se mudar?

Dina se reclina no sofá, apertando as mãos uma na outra e as enfiando entre as pernas, vestidas em uma calça bege.

Eu me sento ao lado dela.

— Por favor, faça isso — peço a ela. — Vou me sentir muito melhor sabendo que você está segura.

Dina fica em silêncio por um longo momento, mas finalmente aceita.

— Estou velha demais para tanta emoção, mas tudo bem, eu vou. Só faço isso por você, Sarai.

Eu me inclino e a abraço.

— Eu sei, e é por isso que eu amo você.

— Onde fica a casa? — pergunto depois que deixamos Dina na casa de Amelia e pegamos a estrada. Ele não quis dizer antes a localização em voz alta, provavelmente porque não confiava no ambiente.

— Em Tulsa — responde Victor. — Tenho algumas casas espalhadas por aí, essa é uma delas. Nada luxuoso como a casa de Santa Fé, mas dá para morar nela, é aconchegante, e só a gente sabe que ela existe.

— Quem é esse contato de Fredrik, afinal?

— Ele não faz parte da Ordem, se é o que você quer saber. É só alguém que Fredrik conhece, um pouco como Amelia.

— Se não fazem parte da Ordem, quem eles são?

Victor me lança um olhar do banco do motorista.

— Amelia é só uma espécie de ex-namorada de Fredrik. Como os abrigos administrados pela Ordem, a casa de Amelia tem a mesma função. Mas temos muito menos preocupações em relação a ela, que nem sabe o que é a Ordem. Só o que ela tem é uma obsessão doentia por Fredrik e faz qualquer coisa que ele pedir.

— Ah, entendo — digo, embora não saiba direito se entendi. — Ela parece pegajosa.

— Pode-se dizer que sim.

— E o cara? Aquele que vai levar Dina até Tulsa?

Victor olha para a estrada, com uma das mãos relaxada na parte de baixo do volante.

— Ele é um dos nossos funcionários, na verdade. Um dentre uns vinte contatos que recrutamos desde que eu saí da Ordem. Nenhum deles sabe mais do que o necessário. Fredrik ou eu damos uma ordem, e, como em um emprego qualquer, eles obedecem. Claro que trabalhar com a gente é bem diferente de qualquer outro emprego, mas você entendeu.

— Eles não sabem o risco que correm por se envolver com você e Fredrik? E como vocês fazem para eles seguirem as ordens de vocês? O que eles fazem exatamente, além de levar Dina para um lugar qualquer, assim, do nada?

— Você está cheia de perguntas. — Victor sorri para mim. Uma carreta passa em disparada no sentido oposto, cegando-nos com os faróis altos. — Eles sabem do perigo, até certo ponto. Sabem que estão trabalhando para uma organização particular e são proibidos de falar sobre ela, mas nenhum dos nossos recrutas desconhece a discrição e a disciplina. Alguns são ex-militares, e todos foram escolhidos a dedo por mim. Depois de uma verificação completa do passado deles, é claro. — Victor faz uma pausa e acrescenta: — E eles fazem tudo o que pedimos, mas, para não metê-los em encrenca e proteger nossa operação, costumamos só pagar por tarefas simples. Vigilância. Compra de imóveis, veículos. E levar a sra. Gregory para um lugar qualquer, assim, do nada. — Victor sorri para mim de novo. — Como garantimos que eles sigam nossas ordens? O dinheiro é uma maneira formidável de influenciar pessoas. Eles são bem remunerados.

Apoio a cabeça no banco e tento esticar as pernas no chão do carro, já temendo a viagem longa.

— Um dos nossos homens estava no restaurante de Hamburg na noite em que eu encontrei você.

Tão depressa quanto apoiei a cabeça, levanto-a de novo e olho para Victor, em busca de mais explicações.

— A sra. Gregory só me ligou depois que você foi para Los Angeles — esclarece ele. — Eu estava no Brasil em uma missão, ainda procurando meu alvo depois de duas semanas. Fui embora assim que recebi a ligação da sra. Gregory, mas sabia que provavelmente não encontraria você a tempo, então entrei em contato com dois dos nossos homens que estavam em Los Angeles, dei a eles a sua descrição e alertei para que vigiassem o restaurante e a mansão de Hamburg. Eu sabia que você iria para um dos dois lugares.

Eu me lembro do homem atrás do restaurante depois que matei o segurança. O homem que misteriosamente me deixou fugir.

— Eu vi o cara. Fugi pela saída dos fundos e ele estava lá. Pensei que ele fosse um dos homens de Hamburg.

— Ele é — rebate Victor.

Pisco, atordoada.

— Ele e o outro homem foram dois dos meus primeiros recrutas. Los Angeles era a minha prioridade quando tudo isso começou.

— Você sabia que eu iria para lá.

Embora eu não queira tirar conclusões precipitadas e parecer iludida, sei que é verdade. Meu coração começa a bater como um punho quente. Saber a verdade, saber que Victor estava, durante todo aquele tempo, pensando em mim mais do que eu jamais poderia imaginar me deixa feliz e culpada. Culpada porque o acusei de me abandonar.

— Eu esperava que você esquecesse essa história. Mas, no fundo, sabia que você voltaria lá.

Ficamos em silêncio por um instante.

— Ele está bem? — pergunto, sobre o homem nos fundos do restaurante.

Victor assente.

— Está ótimo. Ele tinha sido contratado por Hamburg meses antes. Conhecia a planta do restaurante e sabia que a única saída alternativa da sala de Hamburg no andar de cima era a dos fundos. A propósito, ele quer pedir desculpa.

— Como assim? Ele me ajudou a fugir.

— A ordem que eu dei a ele foi para não deixar de jeito nenhum que você entrasse naquela sala. Foi a peruca platinada. Ele sabia que você tem cabelo castanho-avermelhado e comprido, não curto e louro. Quando ele se deu conta de quem era, Stephens já estava levando você. Ele não podia entrar porque a sala estava sendo vigiada, por isso foi até os fundos do restaurante, torcendo para conseguir entrar por ali de alguma forma, mas havia outros dois homens de guarda. Eles puxaram conversa e o seguraram ali, até que por fim ele os convenceu a deixá-lo vigiar o lugar sozinho. Logo depois, você saiu pela porta dos fundos.

Respiro fundo e apoio a cabeça no banco de novo.

— Bom, diga a ele que não precisa pedir desculpa. Mas por que ele não me disse logo quem era? Ou não me levou até você?

— Ele precisava segurar o Stephens tempo suficiente para você conseguir fugir, e o fato de ele continuar trabalhando para Hamburg ajuda. Ele não sabe o que os dois planejam nem coisa alguma sobre as operações. É só um segurança, nada além disso. Mas está lá dentro, e isso já é valioso para a gente.

Desafivelo meu cinto de segurança e me esgueiro entre os bancos da frente com a bunda empinada (de um jeito bem deselegante para uma dama, admito) para alcançar o banco de trás. Flagro Victor admirando a cena enquanto me espremo para passar, e isso me faz corar.

— Só tenho mais uma pergunta a acrescentar à lista.

— O que seria? — pergunta ele, zombando de mim.

— Por quanto tempo a gente vai ter que viajar assim? — Estico as pernas no banco de trás e me deito. — Sinto muita falta dos jatinhos particulares. Essas viagens longas de carro vão acabar me matando.

Victor ri. Acho isso incrivelmente sexy.

— Você está dormindo com um assassino, fugindo todo dia de homens que querem matar você e acha que vai morrer por falta de conforto. — Ele ri de novo, e isso me faz sorrir.

— É, acho — digo, me sentindo só um pouco ridícula. Não posso negar a realidade, afinal, por mais sem sentido que ela seja.

— Não vai ser por muito mais tempo — responde Victor. — Não podemos chamar atenção até que eu consiga me livrar completamente de Vonnegut. Ele tem contatos em muitas áreas, e transportes luxuosos, confortáveis e secretos estão no topo de sua lista de prioridades, por motivos óbvios. Dou menos na vista viajando de trem do que de jatinho particular.

Satisfeita com a resposta, não digo mais nada sobre o assunto e olho para cima, para o teto escuro do carro.

— Só para constar — digo, mudando de assunto —, eu não estou só dormindo com um assassino. Estou muito envolvida com ele.

— É mesmo? — pergunta Victor, e sei que ele está sorrindo.

— Sim, temo que seja verdade — digo, em tom de brincadeira, como se fosse algo ruim. — E é um envolvimento bem pouco saudável.

— É mesmo? Por que você acha isso?

Suspiro, dramática.

— Ah, sei lá. Talvez porque ele nunca vai conseguir se livrar de mim.

— Pegajosa. Como Amelia — provoca Victor, tentando me irritar.

E ele consegue. Eu me levanto um pouco e dou um soco de leve em seu ombro. Ele se encolhe, fingindo dor, mesmo com um sorriso largo no rosto.

— Longe disso — digo, e volto a me deitar. — Nem ferrando que eu vou fazer tudo o que ele quer, como a Amelia.

Victor ri baixinho.

— Bem, pelo jeito ele vai ter que aguentar você para sempre, então.

— Vai, e para sempre é muito tempo.

Ele faz uma pausa e então diz:

— Bom, só para constar, algo me diz que ele não gostaria que fosse diferente.

Adormeço no banco de trás muito tempo depois, com um sorriso no rosto que pareceu continuar ali pelo resto da noite.


CONTINUA

CAPÍTULO NOVE

Sarai

Estou mordendo o lábio por dois motivos: porque estou torcendo para que seja uma boa notícia e porque estou sexualmente frustrada. Victor fala com Fredrik por menos de dois minutos, desliga e digita outro número. Quando consegue falar com Dina, ele me passa o celular.

Pego o aparelho e o encosto no ouvido.

— Dina?

— Sarai, meu Deus, onde você está? O que está acontecendo? Eu estava sentada na sala vendo TV e um homem bateu na porta. Eu não ia deixar ele entrar, fiquei desconfiada na hora; estava quase pegando minha espingarda. Mas ele disse que queria falar de você. Ah, Sarai, fiquei com tanto medo de que tivesse acontecido alguma coisa! — Ela finalmente respira.

— Você está bem? — pergunto, baixinho.

— Sim, sim, estou ótima. O melhor que eu poderia estar. Mas ele me falou que iríamos para a delegacia encontrar você. Até me mostrou um distintivo. Não acredito que caí nessa. O cavalheiro mentiu para mim. — Dina para de falar e abaixa a voz, como se estivesse sussurrando para ninguém ouvir. — Ele me levou para a casa de uma prostituta. O que está acontecendo? Sarai...

— Vai ficar tudo bem, Dina, prometo. E não se preocupe. Seja lá quem more nessa casa, duvido que seja uma prostituta.

Os olhos de Victor cruzam com os meus. Desvio o olhar.

— Onde você está? Quando vai voltar? Sei que você está metida em alguma encrenca, mas sempre pode me contar tudo.

Gostaria que isso fosse verdade. Mais do que tudo, neste momento. Mas a verdade maior é que não sei como responder às perguntas de Dina. Victor deve ter percebido a fisionomia confusa no meu rosto, porque tirou o telefone da minha mão.

— Sra. Gregory — diz ele ao telefone. — Aqui é Victor Faust. Preciso que a senhora me ouça com bastante atenção. — Ele espera alguns segundos e continua. — A senhora vai precisar ficar onde está pelos próximos dias. Vou levar Sarai para vê-la em breve, e vamos explicar tudo, mas, até lá, precisa ficar escondida. Não, sinto muito, mas a senhora não pode voltar... Não, não é seguro lá. — Ele assente algumas vezes, e percebo, pelas leves rugas que se formam entre seus olhos, que ele não se sente à vontade falando com ela, como se alguém colocasse de repente um bebê no colo dele. — Sim... Não, me escute. — Ele perde a paciência, então vai direto ao assunto. — É uma questão de vida ou morte. Se a senhora sair ou ligar para qualquer conhecido, vai acabar morrendo.

Tenho um sobressalto e me encolho com essas palavras, não por serem verdade (isso eu já sabia), mas porque fico imaginando a reação de Dina a elas. Só posso imaginar o que ela deve estar pensando nesse momento, como deve estar apavorada. Apavorada por mim, não por si mesma, e isso faz doer ainda mais.

— Sim, ela está bem — afirma Victor mais uma vez para tranquilizá-la. — Só mais alguns dias. Eu vou levar Sarai aí.

Falo com Dina por mais alguns minutos, contando o que posso, mas sem revelar demais, para acalmá-la. Claro que isso não está ajudando muito, considerando as circunstâncias. Nós desligamos e eu fico ali na sala, me sentindo muito diferente de como me sentia antes da ligação.

Acho que enfim caiu a ficha do tamanho da merda que fiz.

Antes, quando achava que era eu quem corria o maior perigo, e depois que disse para Eric e Dahlia saírem de Los Angeles, eu estava preocupada, mas não tanto assim. Os danos que causei afetam mais do que minha própria segurança. Sem querer, pus todas as pessoas que conheço e amo em perigo.

A realidade de tudo isso, dos meus atos e das consequências em efeito dominó, o fato de Victor ter me deixado, de eu ter tentado levar uma vida normal e fracassado; não consigo mais. Não suporto mais nada disso. Cacete, até a dorzinha por ter encontrado Dahlia com Eric está começando a me incomodar. Não por causa de Eric, ou porque ele era meu “namorado”, mas porque o que eles fizeram não me afetou como deveria ter afetado.

Sou uma aberração. E, no momento, não consigo perdoar Victor por me fazer passar por essa situação, por me jogar em uma vida que nós dois sabíamos que não serviria para mim e por esperar que eu me adaptasse. Eu não queria desde o começo. E foi exatamente por isso que não deu certo.

As lágrimas começam a inundar meus olhos. Deixo que caiam. Não me importa.

Sinto a presença de Victor atrás de mim, mas antes que ele me toque me viro para encará-lo com a raiva distorcendo meu rosto. E enfim certas coisas que eu queria dizer a ele depois de todo esse tempo saem, em uma tempestade de palavras furiosas.

— Você me abandonou, porra! — Bato com as palmas das mãos em sua camisa social justa. — Você deveria ter me matado e pronto! Você consegue imaginar o que me fez passar?! — Lágrimas cheias de raiva escorrem dos cantos dos meus olhos.

— Me desculpe...

Franzo a testa na mesma hora.

— Você quer se desculpar? — Solto o ar ruidosamente. — É só isso que você consegue dizer? Me desculpe?

No fundo, sei que nada disso é culpa de Victor, sei que ele só fez o que fez para me proteger. Mas a maior parte de mim, a parte que não quer acreditar que eu não tenho mais salvação, quer pôr a culpa em qualquer um, menos em mim mesma.

As lágrimas começam a me fazer engasgar.

— Toda santa noite — disparo, apontando com raiva para o chão, meu rosto retorcido de raiva e rancor —, todas as horas de todos os dias, eu pensava em você. Só em você, Victor. Eu vivia cada dia com esperança, acreditando de coração que você ia voltar para mim. Os dias passavam e você não aparecia, mas nunca perdi a esperança. Eu pensava comigo mesma: Sarai, ele está vigiando você. Ele está testando você. Ele quer que você faça o que ele disse, que tente ser como todo mundo, que tente se misturar. Quer que você prove para ele que é forte o suficiente para enfrentar qualquer situação, se adaptar a qualquer estilo de vida. Porque, se você não consegue fazer algo tão simples quanto levar uma vida normal, nunca vai conseguir viver com ele. — Mordo o lábio inferior e tento sufocar as lágrimas. Balanço a cabeça devagar. — Isso era o que eu pensava. Mas fui idiota por achar que você tinha alguma intenção de voltar para mim. — Um tremor induzido pelo choro percorre meu peito.

Victor, com o semblante angustiado que nunca imaginei ver nele, se aproxima. Recuo, balançando a cabeça sem parar, esperando que ele entenda que não estou pronta para ficar muito perto. Quero ficar sozinha com a minha dor.

— Sarai? — diz ele, baixinho.

— Não — digo, recusando-o com um gesto. — P-por favor, me poupe das desculpas e dos motivos pelos quais sei que não posso culpar você. Eu sou egoísta, ok? Eu sei! Já sei que você fez o que precisava fazer. Já sei...

— Não, não sabe.

Levanto os olhos para encontrar os dele.

Victor se aproxima. Desta vez não me afasto, minha mente está paralisada por suas palavras, por mais escassas ou vagas que elas sejam. Ele segura meus cotovelos e descruza minhas mãos. Seus dedos roçam de leve a pele sensível da parte interior dos meus braços, descem até encontrarem minhas mãos e as seguram.

— Eu saí da Ordem principalmente por causa de você, Sarai — explica Victor, e o resto do meu corpo fica paralisado. — Quando Vonnegut descobriu que eu estava ajudando você, ele soube... — Ele faz uma pausa, parecendo estar vasculhando sua mente à procura das palavras menos perigosas. — Ele soube que eu me comprometi...

Jogo as mãos para cima.

— Fale inglês! Por favor, diga de uma vez sem se esforçar tanto para fazer rodeios! Por favor!

— Vonnegut soube que eu tinha... começado a gostar de você.

Fico paralisada e meus lábios se fecham. Meu coração bate descompassado. Minhas lágrimas parecem secar em um instante, só as que molham minhas bochechas continuam escorrendo.

— Como eu era o Número Um de Vonnegut, seu “favorito”, a última coisa que ele queria era mandar me matar. Ele me afastou do serviço, me desligou por um tempo, até... que eu criasse juízo.

Faço uma cara de “que-droga-isso-significa”.

— Pode chamar de lavagem cerebral — acrescenta Victor.

Ele afasta a ideia com um gesto.

— Não importa. O que importa é que ele ia me dar uma única chance de provar que o meu sentimento por você era só um lapso, e que nunca mais iria acontecer. Pouquíssimos agentes têm uma segunda chance na Ordem.

— Um lapso? — Eu me sento na mesinha de centro. Olho para Victor e digo: — Para mim, parece que Vonnegut queria que você provasse que não é humano, mas sim o soldado obediente a ele, incapaz de ter emoções. Que babaca desequilibrado.

Victor assente e se agacha diante de mim, entrelaçando os dedos, com os cotovelos apoiados nas coxas.

— Vonnegut mandou que eu matasse você — conta ele em voz baixa, sustentando o meu olhar. — Para provar a mim mesmo. Eu disse que ia fazer isso, que queria fazer, provar que eu era digno de confiança, e ele me soltou. Claro que eu não tinha nenhuma intenção de matar você. Parti naquele dia e procurei um esconderijo. Niklas, que só conheceu a Ordem a vida inteira, decidiu ficar. Pensei que talvez ele só precisasse de um tempo para entender o que estava acontecendo e decidir o que era melhor para ele. Eu também estava me escondendo de Niklas. Sem saber onde eu estava, ele não precisaria enganar Vonnegut nem achar que precisava escolher entre mim e ele. Mas aí Fredrik me contou que Niklas foi contratado para me matar e está me procurando desde então.

— Que desgraçado — comento, balançando a cabeça sem acreditar, mas depois penso de novo. — Você disse que saiu da Ordem principalmente por minha causa. Além de mim, qual foi o outro motivo?

— Isso já estava para acontecer havia muito tempo — conta Victor. — Quando precisei matar meu pai para salvar meu irmão, entendi que era hora de sair. — Seus dedos fortes acariciam os meus, mais delicados. — Você me deu a motivação final de que eu precisava para fazer isso de uma vez.

Com a ponta dos dedos, acaricio seu rosto com a barba um pouco por fazer. Victor continua a me encarar, seus olhos sondando os meus através do pequeno espaço entre nós, cheios de paixão e compreensão. Eu me curvo e beijo seus lábios.

— Eu sinto muito pelo seu irmão — digo, baixinho.

Ele roça os lábios nos meus, e a sensação se espalha pelo meu corpo até os dedos dos pés, como uma dose de uísque.

— Eu não estava testando você, Sarai. — Ele me beija de novo.

— Então o que você estava fazendo? — Eu o beijo também e derreto ao sentir suas mãos se movendo por minhas coxas.

Victor me ergue nos braços, envolvendo minhas pernas em sua cintura, minha bunda acomodada nas palmas de suas mãos enormes. Meus dedos sobem pelos lados de seu rosto e tocam sua boca antes que meus lábios toquem também.

— Eu estava esperando o momento certo — diz ele enquanto sua boca encontra meu pescoço.

Enfio os dedos em seu cabelo castanho curto, erguendo o queixo ao sentir sua boca explorando meu pescoço e meu maxilar. Meus olhos estão fechados, as pálpebras pesadas, e sinto um formigamento quente ao qual sei que não dá para resistir. Victor me carrega pela sala, embora eu não saiba para onde nem me importe com isso. Aperto mais as pernas nuas ao redor de sua cintura, sentindo a superfície fria e lisa de seu cinto de couro pressionando o interior das minhas coxas. Meus dedos estão trabalhando nos botões de sua camisa, abrindo-os com facilidade.

Victor não responde às minhas perguntas, mas isso também não me importa.

Os lábios dele cobrem os meus, a umidade quente de sua língua se entrelaçando avidamente com a minha. Sem parar de me beijar, Victor me faz apoiar os pés no chão para tirar minha calcinha, uma perna de cada vez. Ele ergue meus braços e tira minha camiseta, jogando-a no chão. Minhas mãos mexem no cinto dele, movendo a lingueta do buraco e puxando a tira de couro de uma só vez em um movimento rápido. Ele tira a calça e a cueca boxer preta. Minha boca recebe seu hálito quente e ofegante enquanto ele me carrega mais uma vez e pressiona minhas costas na parede, como se não quisesse esperar para chegarmos ao quarto de hóspedes. Também não quero esperar. Já esperamos demais.

Sinto seu pau entrando em mim, e, antes que ele deslize até o fundo, uma descarga de prazer corre pelas minhas coxas e sobe pela coluna, relaxando meu pescoço e fazendo minha cabeça se apoiar na parede. Sinto meus olhos formigando e ardendo. A umidade morna entre minhas pernas é inundada por um êxtase quente e trêmulo.

Ele mete uma vez bem fundo e se mantém ali, segurando meus quadris, com minhas costas pressionadas contra a parede fria. Abro os olhos devagar, ainda sem controlar direito as pálpebras, e o encaro. Ele me fita com a mesma intensidade voraz. Minha respiração é curta e irregular quando escapa dos meus lábios entreabertos. Meus braços estão ao redor dele, em um abraço apertado, meus dedos cravados nos músculos rijos de suas costas.

— Eu queria isso há tanto tempo — digo, ofegante.

— Você não faz ideia... — rebate Victor, para então me devorar com um beijo, tão violento que quase perco o controle dos meus músculos.

Minhas coxas se contraem em sua cintura quando ele mete seu pau em mim de novo. Estremeço e gemo, minha cabeça bate com força na parede. Ele segura meu corpo no lugar com os braços encaixados nas minhas coxas, forçando seu quadril contra o meu, e eu sinto pequenas explosões no estômago a cada investida.

Minhas costas se arqueiam, meus seios ficam expostos a ele, que cobre um mamilo com a boca. Ergo os braços acima da cabeça, procurando alguma coisa onde eu possa me segurar para cavalgá-lo, mas não encontro nada. Envolvo seu pescoço com os braços para sustentar meu peso e rebolo em sua virilha, gritando e gemendo, desesperada para mergulhar cada centímetro do seu pau duro tão fundo quanto possível. Seus dedos afundam dolorosamente nas minhas costas. Sua língua se enrosca na minha, seus gemidos atravessam meu corpo.

Gozo rápido e forte, minhas pernas e o ponto entre elas se contraindo ao redor dele, meus músculos tremendo. Ele goza segundos depois e segura meu corpo bem firme no lugar, com minha bunda em suas mãos musculosas, para se esvaziar dentro de mim.

Nesse momento, não estou nem aí para as consequências do que acaba de acontecer. Mas só nesse momento.

Com a cabeça apoiada no ombro dele, Victor me carrega pelo corredor até o banheiro espaçoso em frente ao quarto de hóspedes. Ele me senta na bancada e fica de pé no meio de minhas pernas nuas.

— Não se preocupe. — Ele dá um beijo na minha testa e abre a porta de vidro do boxe do chuveiro.

— Com o quê? — pergunto, confusa.

Ele gira a torneira, que range, e regula a água quente e a fria até encontrar a temperatura desejada. Eu o observo da bancada, o modo como seu corpo alto e escultural se move, as curvas de seus músculos entalhadas em um desenho poético ao redor de seus quadris, suas panturrilhas enrijecendo quando ele anda.

Ele volta para perto de mim e termino de tirar sua camisa, deslizando-a por seus braços musculosos.

— Você não vai engravidar — diz ele, e me manda descer da bancada e segui-lo até o chuveiro. — Não de mim, pelo menos.

Um pouco surpresa, deixo por isso mesmo.

Ele fecha a porta do boxe e começa a lavar meu cabelo. Eu me perco naquela proximidade, no modo como suas mãos exploram meu corpo com tanta precisão e desejo.

Por muito tempo, esqueço que ele é um assassino cujas mãos tiraram muitas vidas sem sequer um pensamento de remorso ou arrependimento. Esqueço que também sou uma matadora cujas mãos tiraram uma vida há poucas horas.

Parece que fomos feitos um para o outro, como duas peças de um quebra-cabeça que de início parecem não se encaixar, mas que se adaptam perfeitamente quando vistas pelo mais improvável dos ângulos.


CAPÍTULO DEZ

Victor

A empregada de Fredrik volta para a casa bem cedo na manhã seguinte. Acordo assim que amanhece, e ela entra em casa quando estou tomando meu café no pátio dos fundos. Ela me vê através da porta de vidro ao passar pela sala, e então vem falar comigo no pátio.

— Gostaria de café da manhã, señor? — pergunta ela em espanhol.

Deixo a pasta com meu próximo serviço virada para baixo na mesinha de ferro batido.

— Obrigado, mas não vou comer — respondo, e depois aceno para Sarai, que está andando pela sala, procurando por mim. — Mas ela vai.

— Eu vou o quê? — pergunta Sarai ao passar pela porta de vidro aberta. Ela anda descalça pelo pátio de pedra, usando outra camiseta de Fredrik. Fico muito incomodado por ela ter que usar roupas dele em vez das minhas, mas a única roupa que tenho é a que estou usando, além de um short largo de corrida. O cabelo longo e castanho de Sarai está despenteado, pois ela acaba de acordar e sair da cama.

Ela se senta no meu colo e eu encaixo a mão direita entre suas coxas.

— Café da manhã.

Sarai boceja e estica os braços para o alto antes de apoiar a cabeça no meu ombro. Ponho a mão esquerda em sua cintura para mantê-la equilibrada no meu colo. O cheiro da pele e do cabelo recém-lavados de Sarai acelera meu corpo todo.

Ela faz uma careta sutil, meio que rejeitando a ideia.

— É melhor você comer.

Levantando a cabeça do meu ombro, Sarai olha para mim por um momento, pensativa, e depois dirige sua atenção para a empregada.

— Claro, eu gostaria de tomar café da manhã, se não for incômodo — diz, em espanhol.

Por um momento, a empregada parece surpresa por ouvir Sarai falando seu idioma nativo, mas ela logo se recompõe, assente e volta para dentro da casa.

— Acho que a gente já adiou essa questão o suficiente — diz Sarai. — Para onde é que vamos, Victor? O que eu vou fazer?

Estou pensando exatamente nisso desde que descobri que ela veio para Los Angeles e fez o que fez. Olho para a piscina, perdido em pensamentos, minha última tentativa desesperada de organizar as respostas na cabeça. Mas elas continuam tão fragmentadas e bagunçadas quanto sempre estiveram. Todas, menos uma.

— Sarai — digo, olhando novamente para ela —, você não pode voltar para casa. Eu sabia disso na primeira vez em que mandei você para o Arizona. A situação não estava nem de longe tão terrível quanto ficou depois, mas, agora que as coisas mudaram, você não pode mais voltar.

— Então vou ficar com você — rebate ela. Pela primeira vez na vida, não tenho coragem de protestar. Nem contra ela nem contra mim mesmo. A maior parte de mim, a parte humana e imperfeita, quer que Sarai fique comigo, e nada vai me impedir de fazer isso dar certo.

Mas sei que não vai ser fácil.

— Sim — digo, passando a mão em sua coxa macia —, você vai ficar comigo, mas há muitas coisas que precisa entender.

Ela se levanta do meu colo e fica de pé na minha frente, com um braço na frente do corpo e o outro cotovelo apoiado nele. Distraída, ela passa as pontas dos dedos no rosto macio, fitando o que parece ser o nada. Então ela me olha e balança a cabeça com uma expressão perplexa.

— Eu esperava que você fosse resistir mais. Qual é a pegadinha? A despeito do que aconteceu entre a gente ontem à noite, ou do que está acontecendo desde que nos separamos, nunca pensei que você fosse concordar em me levar junto.

— Você gostaria que eu resistisse? — Abro um sorriso capcioso.

Ela sorri também e deixa os braços relaxarem.

— Não. Com certeza não. E-eu só...

Levanto uma perna e apoio o pé no outro joelho.

— Nunca me imaginei em uma situação dessas. Não posso mentir e dizer que acho que vai dar certo. Muito provavelmente não vai, Sarai, e você precisa entender isso. — Ela parece ficar um pouco desanimada, o bastante para eu saber que minhas palavras sinceras a entristeceram mais do que ela se permite revelar. — Não posso mudar o meu jeito. Não só porque é tudo o que sei fazer, ou porque é o que faço melhor, mas também porque não quero. — Olho para Sarai. — Eu nunca vou parar de fazer o que faço.

— Eu nunca ia querer que você parasse — retruca ela, com certa intensidade. Sarai puxa uma cadeira próxima e a coloca diante de mim antes de se sentar. — Tudo o que eu quero, Victor, é ficar com você. Vou fazer qualquer coisa que você espere que eu faça, mas quero que me ensine...

Levanto a mão e a interrompo imediatamente.

— Não, Sarai, também não vou fazer isso. Não é assim que vai ser. — Sua expressão se anuvia e ela desvia o olhar, magoada com minha recusa. — Já falei, eu praticamente nasci nesta vida. Você ia levar quase o resto da sua para aprender a fazer o que eu faço, e mesmo assim não ia ficar boa o suficiente.

— Então, o que eu devo fazer? — pergunta ela, com um tom de ressentimento na voz. — Quero estar com você aonde quer que vá, mas não quero ficar à toa, tomando martínis na praia enquanto você sai para matar pessoas. Eu não sou inútil, Victor, posso fazer alguma coisa.

— Você pode fazer muitas coisas, sim — digo, interrompendo-a. — Mas fazer o que eu faço está totalmente fora de cogitação. Por que você quer tanto isso? — Levanto a voz quando sinto, de repente, uma necessidade desesperada de entender a resposta.

Sarai bate as palmas das mãos nas coxas nuas.

— Porque é o que eu quero.

— Mas por quê?

Ela ergue as mãos para os lados e grita:

— Porque eu gosto! Entendeu?! Eu gosto!

Pisco algumas vezes, completamente atordoado por essa confissão. Na verdade, essa era a última coisa que eu esperava ouvir de Sarai. Parte de mim sabia que ela era mais do que capaz de tirar a vida de alguém e dormir em paz toda noite depois disso, mas nunca previ que ela fosse gostar de matar.

Não sei ao certo como me sinto a respeito disso. Preciso de mais informações.

Eu me inclino para a frente e fico cara a cara com Sarai.

— Você gosta de matar? — pergunto, embora isso saia mais como uma afirmação. — Então, se alguém pedisse a você que tirasse a vida de outra pessoa, você faria isso sem questionar?

— Não — responde ela, franzindo o cenho. — Eu não mataria qualquer um, Victor, só homens que merecessem.

Homens? Esse lado de Sarai está ficando mais intrigante. Eu me pergunto se ela sabe o que acaba de dizer. Homens. Não pessoas em geral, mas homens.

Eu me afasto dela e me reclino na cadeira de novo, virando a cabeça para o lado, pensativo.

— Explique.

Ela também se recosta, encolhendo as pernas e apoiando os pés no assento, virando os joelhos para o lado.

— Homens como Hamburg. Homens como Javier Ruiz, Luis e Diego. Homens como o segurança que matei ontem. Willem Stephens, pelo simples fato de trabalhar para Hamburg sabendo o que o chefe faz. Homens como John Lansen e todos os outros que conheci naquelas festas de gente rica quando estava com Javier. — Seu olhar penetra o meu. — Homens que merecem ter a garganta cortada.

A gravidade das palavras de Sarai e a determinação em seu rosto me silenciam por um momento. Será possível que eu agora tenha não um, mas dois assassinos por perto que compartilham o gosto pelo derramamento de sangue? E, no exato momento em que o rosto surge na minha mente junto com o de Sarai, ouço o carro de Fredrik na entrada da garagem. Isso interrompe o momento intenso, e ambos olhamos para cima.

Instantes depois, Fredrik, vestido de maneira informal com um jeans escuro e uma camisa de grife, vem nos encontrar no pátio. Ele deixa o jornal do dia na mesa de centro e diz:

— É melhor você dar uma olhada nisso. — Então olha para Sarai por um momento. — A propósito, minhas roupas ficam bem em você.

Fuzilo Fredrik com o olhar, mas escondo meu ciúme antes que qualquer um dos dois perceba.

Sarai e eu olhamos para o jornal, mas sou eu quem o pega. Desdobrando-o, corro os olhos pelo texto até encontrar aquilo a que Fredrik se refere.

Quatro pessoas foram encontradas mortas a tiros em um hotel de luxo de Los Angeles, na madrugada passada. Somente dois corpos foram identificados, os de Dahlia Mathers, 23 anos, e Eric Johnson, 27 anos, ambos de Lake Havasu City, Arizona.

Algumas frases abaixo:

Sarai Cohen, também de Lake Havasu City, é procurada pela polícia para prestar esclarecimentos.

Acho que não importa que identidade Sarai usou para fazer o check-in no hotel, o rosto dela é o mesmo nas duas.

Ela arranca o jornal das minhas mãos antes que eu possa terminar.

— Não... — Ela cerra os dentes e seu rosto fica sério enquanto lê a notícia trágica sobre seus amigos. Ela procura meus olhos, mas logo se volta para o jornal, como se sua mente torcesse para ter lido tudo errado na primeira vez. — Falei para eles irem embora de Los Angeles! Dahlia disse que eles iam embora... — Seus olhos verdes encaram os meus, cheios de desespero e despedaçados pela culpa.

Fico de pé.

Sarai pega o jornal com as duas mãos e o rasga bem no meio, amassando as duas metades em seus punhos.

— Eles mataram Dahlia e Eric, porra! — ruge ela. — Eles estão mortos!

O jornal cai de suas mãos e voa pelo pátio de pedra.

Fredrik apenas me olha, esperando para ver o que vou fazer ou dizer. Ele não fala, mas percebo que quer.

— Sarai. — Por trás dela, ponho as mãos em seus ombros. — Eu vou cuidar disso.

Ela se vira para mim. Seu cabelo balança ao redor da cabeça antes de cair de novo nos ombros e seu rosto está ardendo de fúria.

— ELES MORRERAM POR MINHA CAUSA! COMO LYDIA!

Tentando acalmá-la, aperto seus ombros com força, de frente, e a seguro.

— Eu disse que vou cuidar disso — repito com ainda mais intensidade e sinceridade do que antes. Eu me inclino para a frente para manter seu olhar fixo no meu. — Vou fazer isso por você, Sarai. Hamburg e Stephens estarão mortos antes do fim desta semana.

Ela não ouve. Está me encarando, mas parece estar olhando através de mim. Seu peito sobe e desce com a respiração ofegante e irregular. Suas pupilas parecem pequenas, como buracos de grampos em uma folha de papel. O verde de seus olhos parece ter escurecido.

— Não — rebate ela, com a voz calma. — Não quero que você faça nada.

Absorta em pensamentos, ela dá um passo para trás, e minhas mãos caem de seus ombros.

— Vou fazer isso por você. Eu quero...

— Eu disse que não! — Ela dá mais dois passos e se vira, me dando as costas e olhando para a piscina. — Eu vou fazer isso — afirma ela, em voz baixa e decidida. — Vou matar os dois e não quero que você se meta.

— Acho que não...

Ela vira a cabeça, seus olhos escuros cruzando com os meus.

— Se você matar qualquer um deles, nunca vou perdoar você. Isso é assunto meu, Victor! Me deixe fazer pelo menos isso!

— Sarai, você não pode matá-los. — Eu me aproximo dela. — A única pessoa que vai morrer é você. Não vai conseguir...

— Estou cagando para isso! — Percebo que o objetivo de Sarai é inabalável. Ela volta para perto de mim. — Ou você me ajuda a fazer isso ou eu mesma vou descobrir como fazer. Eles vão morrer nas minhas mãos, não nas suas, nas de Fredrik nem nas de qualquer outra pessoa. Só nas minhas. Me ensine. Me mostre o que fazer. Qual é a melhor forma de agir para alguém como eu. Me ajude, ou vou morrer tentando por minha conta. Para mim, tanto faz.

— Eu não vou... você não pode — retruco, balançando a cabeça.

Sarai desiste e tenta me empurrar para fora de seu caminho. Mas não deixo que ela passe. Não posso, pois sei que cada palavra que ela disse foi a sério.

Eu a seguro pelo pulso, detendo sua marcha furiosa até a porta de vidro. Fredrik sai do caminho, assistindo ao desenrolar da cena com um brilho estranho nos olhos, que só posso interpretar como fascinação.

— Me solte!

— Você não vai embora. — Eu a prendo pelo pulso com força, e agarro o outro quando ela começa a me bater.

Ela quer descontar toda a raiva em mim, gritar na minha cara, me xingar com as palavras que tanto quer dizer a Hamburg e Stephens antes de matá-los, mas não consegue. A raiva, como sempre, a domina, e Sarai cai no choro.

Ela me disse uma vez que sempre chora quando está furiosa.

As lágrimas escorrem como rios por seu rosto. Sarai tenta mais uma vez se desvencilhar de mim, mas a seguro firme e faço uma pressão dolorosa sobre seus pulsos, tentando acalmá-la.

— Victor, por favor! Porra, basta me ensinar, cacete! Mesmo que seja matar os dois e mais ninguém! É tudo que eu peço! Nunca mais vou pedir a sua ajuda! POR FAVOR!

Sarai enfim para de se contorcer e desaba sobre meu peito. Eu a envolvo em meus braços, aninhando sua nuca nas mãos e pressionando o lado do meu rosto no alto de sua cabeça. Sarai chora com violência, seu corpo treme no meu abraço. Não são gritos de tristeza e dor, são gritos de culpa, raiva e da necessidade desesperada de vingar a morte de pessoas — até de Lydia — que poderiam ainda estar vivas, se não fosse por ela.

Fredrik olha para mim. Sei o que a expressão calma dele quer dizer. Ele acha que eu deveria dar a Sarai o que ela quer.

Mas não é a opinião de Fredrik que me faz decidir, no fim das contas. É minha necessidade de proteger Sarai, ainda que ela possa acabar morta no final.

Escolho o mais seguro dos dois caminhos malfadados.

— Eu vou ajudar você.


CAPÍTULO ONZE

Sarai

Levanto o rosto do peito de Victor, fungando as malditas lágrimas que mais uma vez me traíram em um momento de fraqueza.

— Você vai me ajudar a matá-los?

Ele assente.

— Vou.

— Obrigada — digo, baixinho.

Fico na ponta dos pés e dou um beijo suave em sua boca.

Da porta de vidro atrás de nós, a empregada diz com uma voz fraca:

— O café está pronto.

Ela nos fita com seus olhos escuros e curiosos, sem dúvida por ter ouvido a discussão enquanto estava lá dentro.

— Marta faz uns ovos mexidos ótimos — comenta Fredrik, com um sorriso radiante, como se nada tivesse acontecido. — Frita em gordura de bacon. — Ele junta os dedos nos lábios e os beija. — Adoro comida americana.

Ele vai atrás de Marta.

— Se bem que parece que ovos mexidos em gordura de bacon é uma comida do Sul, não? — pergunta ele, olhando para nós enquanto o seguimos.

Victor dá de ombros.

— Bem, Marta não é exatamente do Alabama — continua ele, ao entrarmos na cozinha. — Mas sabe cozinhar como se fosse.

Fredrik e Victor continuam tagarelando sobre comida, provavelmente para me fazer esquecer o que aconteceu. Mas, nesse momento, nada mais me importa além do rosto de Dahlia e Eric na memória. Sei que estou sendo punida. Pela vida. Pelo destino. Não sei por quem ou pelo quê, só sei que faria qualquer coisa para devolver a vida aos meus amigos.

Nós três nos sentamos à mesa com tampo de vidro da cozinha e comemos. E acho quase engraçado Fredrik fazendo Marta provar a comida antes de nos servir, como se ele tivesse aprendido essa técnica paranoica no Manual de Victor Faust.

Durante o café, que dura muito tempo por causa da conversa, Fredrik acaba liberando Marta pelo resto do dia. Isso acontece logo depois que ele começa a falar em sueco com Victor. Odeio não entender o que eles dizem, mas fica claro para mim que era por causa de Marta, e não por mim.

Marta pega a bolsa e se despede de nós, agradecendo a Fredrik por pagar um dia inteiro.

— Por que isso? — pergunto, depois que ela vai embora.

Apoio o garfo no prato ao terminar meu café.

— Temos muito o que conversar — explica Fredrik, tomando um gole de suco de laranja. — E ela não pode ouvir a conversa. — Ele aponta para mim e sorri. — E Marta, embora não pareça, ouve tudo o que acontece por aqui.

— Então por que vocês não continuaram conversando em sueco? — questiono.

— Você fala sueco? — rebate Victor.

— Não.

— Bem, você tem que participar da conversa — diz ele, deixando o copo d’água na mesa.

Sorrio. Nesse momento, me sinto parte deles pela primeira vez. Dos dois. Nós três sentados à mesa, que minutos depois já está livre dos pratos e dos copos, substituídos por pastas e fotografias de serviços de execução. Para mim, é meio surreal discutir detalhes de interrogatórios e assassinatos tão casualmente, como se estivéssemos falando do tempo. Mas também, pela primeira vez na vida, sinto que pertenço a algum lugar. Não estou mais andando por um túnel escuro, com as mãos à frente, procurando a porta. A porta está bem ali, à mostra, e já passei por ela. Enfim encontrei meu lugar na vida. E estou com Victor, o que para mim é mais importante do que tudo.

Finalmente estou com Victor.

Victor e eu saímos da casa de Fredrik nas colinas de Los Angeles no fim da tarde e dirigimos por onze horas até Albuquerque, Novo México. No caminho, paramos em um shopping, onde gasto praticamente uns 2 mil dólares em roupas e sapatos novos, acessórios e maquiagem, já que tudo o que tenho está no Arizona ou ficou no hotel em Los Angeles. Encho o banco de trás com sacolas de compras e caixas de sapatos, mas, lá pela nona hora de viagem, me arrependo de ter comprado tanta coisa. Tudo o que quero é me arrastar para o banco de trás e dormir, mas tenho que me conformar em ficar apertada na frente, encolhida em uma posição desconfortável no banco do Cadillac CTS preto de Victor, com a cabeça apoiada na janela. Desde que Victor saiu da Ordem, ele não tem mais a conveniência de usar jatos particulares para viajar. Se quisesse, com certeza poderia pagar um do próprio bolso, mas ser alguém que a Ordem quer matar significa não dar na vista e abrir mão de alguns luxos que poderiam levar Niklas até ele.

Ao que tudo indica, esses luxos abdicados incluem as residências extravagantes e multimilionárias nas quais Victor sempre preferiu morar. Sua casa em Albuquerque é bem diferente daquela onde ele morava na Costa Leste, com vista para o mar. Quando paramos na entrada de terra batida, vejo uma casa de tamanho médio, com paredes nuas de reboco bege e em um formato de caixa que me faz lembrar as casas que eu construía com peças de Lego quando era criança. Contudo, a julgar pelo jardim elaborado que envolve o caminho branco e liso até a porta e o lado esquerdo da casa, é óbvio que Victor não abriu mão de todos os luxos. Isso fica mais óbvio ainda quando entramos, pois o interior é tão bonito quanto o da casa de Fredrik, apesar do estilo mais interiorano e menos luxuoso. Vermelho-ferrugem, marrom e amarelo dominam o ambiente, com pé-direito alto sustentado por vigas e sarrafos de madeira escura, que fazem a casa parecer muito maior por dentro do que por fora. Uma aconchegante lareira de pedra ocupa uma das paredes da espaçosa sala de estar, com dois espelhos decorativos de metal pendurados acima dela. As paredes são amarelas, combinando com os pisos de terracota que parecem ocupar toda a casa.

— De uma coisa tenho certeza: você sempre consegue as melhores empregadas — comento, deixando várias das minhas sacolas no chão da sala.

— Desta vez, não — diz Victor atrás de mim. Ele deixa as outras sacolas que trouxe do carro perto do sofá de couro marrom-alaranjado. — Sou só eu.

— Sério? Mas está tudo tão limpo. Acho que você não passou muito tempo aqui, então, não é?

— Uns quatro meses. — Ele olha para mim. — Você gostou? Espero que sim, porque é o seu novo lar.

Um sorriso desponta no meu rosto.

Victor desabotoa e tira a camisa, deixando-a nas costas de uma poltrona de couro marrom. Observo discretamente seu corpo enquanto ele anda por um corredor longo e bem-iluminado com uma entrada em arco.

Sigo Victor.

— Claro que você sabe que não vamos ficar aqui para sempre. — Entramos em um quarto grande. — Mas é nosso lar por enquanto, pelo menos.

Ele tira a calça e me esforço ao máximo para não olhá-lo com intensidade demais, mas isso fica cada vez mais difícil.

— Vem cá — chama ele, parado diante de mim sem nada além de sua cueca boxer preta e apertada, que pouco ajuda a esconder o volume crescendo por baixo do tecido.

Engulo em seco, nervosa, embora não saiba a razão para esse nervosismo repentino, e me aproximo dele. Sinto um espasmo entre as pernas, e também não sei ao certo por que isso acontece. É como se meu subconsciente estivesse mais a par do que vai acontecer do que minha parte consciente. Ou então apenas perdi o controle sobre minha mente e só consigo pensar no que eu gostaria que acontecesse.

Olho para Victor, curiosa, inclinando um pouco a cabeça para o lado.

— Não sei bem o que é isso entre a gente — diz ele, com cuidado —, mas tenho certeza de que não quero que acabe. Seja o que for.

— Eu também.

Um pouco confusa quanto ao rumo que a conversa está tomando, inclino a cabeça para o outro lado e pergunto:

— Algum problema?

Ele balança a cabeça devagar.

— Não, problema nenhum.

— Bem, se você está preocupado que eu vá me apaixonar e grudar em você feito chiclete, não precisa.

— Você não está apaixonada por mim? — pergunta Victor, e não parece nada além de uma simples questão.

— Não, eu não amo você, Victor.

Ele parece concordar.

— Ótimo. Porque eu também não estou apaixonado por você.

Acho que nem eu nem ele sabemos de fato o que essa palavra significa em uma situação assim. Ambos exibimos a mesma expressão de aceitação, mas também parecemos um pouco confusos.

— Mas... eu, hã... — Entrelaço os dedos atrás das costas e olho para o chão, mexendo o pé como se estivesse tentando afundar os dedos na areia. Paro para encará-lo. — Mas eu, hã, talvez... preferisse que você não dormisse com mais ninguém. Eu... bom, acho que eu não ia gostar muito disso.

— Concordo — diz Victor, assentindo mais uma vez, com firmeza. — Acho que se eu pegar você com outro homem vou ter que matá-lo.

Balanço a cabeça algumas vezes, de maneira tão casual quanto ele.

— Com certeza — concordo eu. — O mesmo vale para você.

— De acordo.

Há um momento de silêncio constrangido entre nós, e corro os olhos pela cama king-size com dossel alto de cerejeira, que está a alguns passos de distância.

Victor se aproxima e eu me viro para observá-lo. Ergo os braços quando ele passa os dedos por baixo da minha camiseta e a tira.

— Também quero dizer que não me incomodo se você grudar em mim feito chiclete. — Ele enfia os dedos no elástico da minha calcinha. — Só para constar.

— Mesmo?

Victor se agacha diante de mim ao descer a calcinha por meus quadris e minhas pernas. Fica ali, me olhando de baixo, com a cabeça na altura do meu umbigo.

— Sim — responde ele. — Mas claro que você não pode me atrapalhar quando eu estiver tentando fazer um serviço.

— Sim, claro — digo, e minha pele reage aos seus lábios, que beijam a área logo acima da minha pélvis. — E-eu nunca atrapalharia o seu trabalho — gaguejo.

Minhas mãos começam a tremer quando ele desce e para entre as minhas pernas, abrindo meus grandes lábios com os polegares.

Afasto os joelhos só um pouco, o bastante para que ele tenha acesso.

— Mas nada de me abandonar em algum lugar distante enquanto você viaja pelo mundo para cumprir os contratos — digo, enfiando os dedos no cabelo dele, com a respiração irregular e acelerada. — Não quero ser dona de casa, entendeu?

Um suspiro agudo corta o ar perto da minha boca quando a ponta de sua língua lambe meu clitóris. Quase derreto ali mesmo, os músculos das coxas perdendo força a cada segundo.

— Sim, entendo o que você quer dizer — diz Victor, e me lambe de novo, explorando entre as minhas pernas. Jogo a cabeça para trás e puxo seu cabelo com mais força, enrolando-o nos dedos. — Você vai aonde eu for. Para eu poder ficar de olho em você.

— De olho em mim. Claro.

Que resposta patética. Só consigo pensar na cabeça de Victor no meio das minhas pernas, e naquela sensação quente e formigante que está amolecendo minhas entranhas.

Victor me ergue segurando minha bunda com firmeza e com minhas coxas em torno da cabeça. Então me lambe furiosamente por um momento antes de me jogar de costas na cama.

Com os joelhos dobrados no peito, vejo sua boca entrar no meio das minhas coxas e reviro os olhos enquanto ele me faz esquecer tudo.


CAPÍTULO DOZE

Sarai

O treinamento começa dois dias depois, mas não da maneira que eu esperava. Não sei o que eu esperava, na verdade, mas com certeza não era isso.

— O que a gente está fazendo aqui? — pergunto quando paramos no estacionamento de uma academia de artes marciais a uma hora de Santa Fé.

— Krav maga — esclarece Victor, e olho como se ele estivesse falando outra língua. Ele fecha a porta do carro e andamos até a fachada do prédio. — Não vou conseguir dedicar cem por cento do meu tempo ao seu treinamento. Por isso, três dias por semana, vou trazer você aqui. Dá para aprender muita coisa com o krav maga em pouco tempo. E o foco é a defesa pessoal...

— O quê? — Paro na calçada antes de passarmos pela porta. — Não sou uma donzela em perigo que acaba de ser assaltada em um estacionamento escuro, Victor. Não preciso de aulas de defesa pessoal. Preciso aprender a matar.

— Matar é a parte fácil — rebate Victor, sem rodeios. Ele abre a porta de vidro e faz um gesto para eu entrar. — Chegar a esse ponto sem morrer tentando é a parte difícil.

— Então você quer que eu aprenda a dar um chute no saco de um cara? — pergunto, bufando de desdém. — Acredite, eu já sou perfeitamente capaz disso.

Um sorriso discreto aparece nos cantos de seus lábios deliciosos.

Nesse momento, um sujeito alto, moreno e com músculos bem-definidos se aproxima de nós no grande salão. As janelas no alto da parede deixam o sol entrar. Dois grupos de pessoas estão treinando em pares, formando um semicírculo em um enorme tatame preto estendido por boa parte do chão.

O homem de braços musculosos e camiseta preta estende a mão para Victor.

— Faz quanto tempo? Três anos? Quatro?

Victor aperta a mão dele com firmeza.

— Uns quatro, acredito.

O homem me olha por um momento, e então Victor nos apresenta.

— Spencer, esta é Izabel. Izabel, Spencer.

— Prazer — diz Spencer, estendendo a mão.

Relutante, aperto a mão dele. Eles se conhecem? Não sei se gosto disso ou não. De repente, sinto que aquilo é alguma armação. Sorrio com desdém para aquele brutamontes alto e simpático.

Victor se vira para mim e diz:

— Não tem ninguém melhor para treinar você em defesa pessoal do que Spencer. Você está em boas mãos.

Spencer abre um sorriso tão largo que, se fosse um pouco maior, acho que daria para engolir minha cabeça. Ele está com os braços musculosos à sua frente, com as mãos cruzadas. As veias, grossas como cordas, que percorrem suas mãos e seus braços bem bronzeados me lembram das de um fisiculturista, mas ele não tem esse tamanho todo. Só é maior do que eu, o que me intimida mais.

Levanto um dedo para Spencer.

— Você nos dá licença um minutinho?

— Claro — responde ele.

Percebo o leve sorriso que ele dá para Victor.

Pego Victor pela mão e o puxo para o lado. Ao fundo, ouço, de maneira constante, corpos sendo jogados naquele tatame preto e a voz de um instrutor entoando comandos repetitivos e mandando os alunos fazerem “de novo”.

— Victor, acho que isto é perda de tempo. Não sei por que você me trouxe aqui. — Cruzo os braços. — Quero aprender essas coisas com você, não com um cara aleatório do tamanho de um ônibus. — Olho por cima do ombro, torcendo para que Spencer não tenha ouvido, embora eu tenha tomado o cuidado de sussurrar.

— Preciso me encontrar com Fredrik daqui a uma hora — explica Victor.

— Ah, então você vai me deixar com uma babá? — Franzo o cenho e balanço a cabeça para ele, totalmente incrédula, para não dizer ofendida.

— Não, não é isso.

— Mas eu quero que você me ensine — repito, forçando as palavras com rispidez entre meus dentes cerrados.

Victor suspira e balança a cabeça, parecendo aborrecido e frustrado comigo.

— Você não tem disciplina. Nenhuma. Igualzinha ao meu irmão. — Isso fere o meu orgulho. — Como vou ensinar alguma coisa para você, se não é capaz nem de fazer as coisas mais simples que eu peço?

Na mesma hora, me arrependo por agir feito uma criança. Solto um suspiro de resignação.

— Desculpe — digo, baixinho. — Pensei que fosse treinar com você, só isso.

— Você vai treinar comigo — garante Victor, pondo as mãos nos meus ombros. — Mas por enquanto precisa aprender o básico. E esta é a melhor maneira.

— Mas por que você não pode me ensinar o básico? — pergunto, com o mesmo tom resignado de antes. — Por que precisa ser ele?

Victor se inclina e beija de leve o canto da minha boca.

— Porque Spencer não tem medo de machucar você — explica ele, e isso me surpreende um pouco. — E não quero fazer isso, se eu puder evitar. Você só vai aprender se for real.

Arregalo os olhos.

— Espere aí... Então você está dizendo que aquele tanque de guerra — digo, apontando por cima do ombro com o polegar — vai me bater de verdade?

— Sim. É para isso que ele está sendo pago.

Parece que meu queixo acaba de bater no chão. De repente, sinto um calafrio percorrer minha espinha.

— Você não é obrigada a fazer isso, Sarai, mas, se realmente é o seu desejo, quero que vá com tudo. Não faça de qualquer jeito. Na vida real, quem atacar você não vai facilitar as coisas — afirma Victor, enquanto me encara com atenção, querendo desesperadamente que eu o entenda e confie nele. — Vou treinar com você no momento certo. Mas, quando eu fizer isso, vai ser brutal, Sarai. Vou atacar com a mesma força que um agressor de verdade usaria. Aprenda o básico primeiro, domine algumas habilidades para conseguir me enfrentar, e vou me sentir melhor para treinar você pessoalmente. Entendeu?

— É, acho que sim — respondo, assentindo. E estou sendo sincera.

Entendo perfeitamente agora. Nem me lembro da última vez que estive tão nervosa para fazer alguma coisa. Mas Spencer, o tanque, não me assusta tanto, na verdade, porque lá no fundo sei que, mesmo que Victor esteja lhe pagando para não facilitar comigo, ele não vai usar toda a sua força em mim. Se usasse, me mataria.

— Você quer ficar? — pergunta Victor.

— Quero.

— Ótimo.

Ele se inclina para meus lábios de novo e me beija com intensidade, tirando meu fôlego. Chocada por essa demonstração pública de afeto tão atípica, fico sem palavras quando ele desgruda os lábios dos meus.

— Volto para buscar você daqui a algumas horas.

— Tudo bem.

Nós voltamos para perto de Spencer, que parece um tanto empolgado para começar a treinar comigo, como se eu fosse um brinquedo novinho em folha com o qual ele não vê a hora de brincar.

— Pronta para começar a aprender krav maga? — pergunta Spencer.

— Estou — respondo, e meu olhar vai até as pessoas lutando no tatame preto atrás dele.

— Tem certeza de que você aguenta?

Quero dizer que sim com confiança, porque, afinal de contas, sempre imaginei que aulas de defesa pessoal consistissem em nada mais do que bloquear golpes, bater e sinalizar aos outros onde estou. Sempre imaginei mulheres comuns, que nunca lutaram na vida, todas de pé em um círculo, esperando a vez para derrubar o instrutor com alguns golpes “úteis”. Contudo, ao observar o grupo que está treinando atrás de Spencer, a intensidade agressiva e a violência de alguns golpes, começo a achar que esse tipo de defesa pessoal é bem diferente.

— Deve ser simples — digo, sem a segurança que queria.

— Se você diz — responde Spencer, com um sorriso conivente que deixa meus nervos ainda mais em frangalhos.

Mas não estou com medo. Nervosa, sim, mas não com medo. Estou pronta para fazer isso. Começo até a ficar ansiosa. Quero provar a Victor que dou conta.

E quero provar a ele que não sou nada parecida com seu irmão.

Victor vai embora. Antes do fim da primeira hora, estou exausta e tão dolorida que mal consigo andar em linha reta sem cambalear.

— Sempre se defenda e ataque ao mesmo tempo — explica Spencer, em pé, enquanto estou deitada no tatame e querendo me encolher em posição fetal. — E nunca vá para o chão. Isto não é luta greco-romana, Izabel. Se você vai para o chão, você morre.

Sem fôlego e tentando controlar a dor intensa que queima minha panturrilha, me levanto.

— Me ataque — ordena ele, elevando a voz acima dos poucos gritos de quem ainda assiste à aula depois da segunda hora. — Se não me atacar, eu ataco você!

Estou exausta demais.

— Não consigo! — Desisto e caio de bunda no tatame. — É demais. Hoje é meu primeiro dia e parece que é minha primeira luta de verdade. Cadê a parte em que você me mostra o que fazer e me ensina a dar os golpes?

— O que você quer mesmo é que eu pegue leve com você, não é?

— Isso! Cadê as instruções? As regras?

Minhas costas estão me matando. Deito no tatame, abrindo os braços acima da cabeça, e olho para o teto iluminado. Não quero mais saber de Spencer e de seu treinamento de imersão total. Só quero descansar.

As lâmpadas fluorescentes do teto começam a se mover depressa quando sinto de repente que estou sendo arrastada pelo tornozelo.

— Não há regras no krav maga — ouço Spencer dizer, mas percebo, meio segundo depois, que não é ele quem está me arrastando.

É uma mulher, com cabelo castanho-claro preso em um rabo de cavalo. Confusa com a mudança, fico distraída demais para notar o pé dela atingindo meu estômago. Berro de dor, me dobrando para a frente ao levantar as pernas e as costas do tatame ao mesmo tempo, com os braços cruzados sobre o abdômen. O golpe expulsa todo o ar dos meus pulmões.

— CHEGA! — grita Spencer, em algum lugar atrás de mim.

Sinto que vou vomitar.

A mulher para no mesmo instante e dá alguns passos para trás.

— Levante — manda Spencer, e decifro, em meio à dor que acaba com meu tórax, que sua voz está muito mais perto do que antes.

Ergo a cabeça e o vejo agachado ao meu lado.

— Vou deixar você recuperar o fôlego — diz ele, baixinho, oferecendo a mão. — Esta é Jacquelyn. Minha mulher.

Pego no antebraço dele, ele me segura e me põe de pé.

— Muito prazer — digo a ela, fazendo uma careta horrorosa de dor. — Ou em conhecer o seu pé, pelo menos.

Ela dá uma risadinha.

— O seu namorado me pagou para encher você de porrada, basicamente — afirma Spencer. — Mas, como não tenho o hábito de bater em mulher, achei melhor deixar minha esposa fazer as honras para que eu pudesse receber o pagamento do mesmo jeito.

— É a melhor maneira de aprender — intervém Jacquelyn. — Esse seu homem sabe o que está fazendo. É brutal? Claro. Necessário para sobreviver a situações de combate corpo a corpo? Com certeza. Indicado para peruazinhas delicadas que ficam pulando e gritando de medo quando veem uma aranha? Nem fodendo.

— Bom, eu não sou uma dessas — digo, com frieza. — Disso você pode ter certeza.

— Então prove — provoca ela, curvando-se para a frente com as mãos semiabertas ao lado do corpo. — Lembre, o krav maga não tem regras. Sempre defenda e ataque ao mesmo tempo. Sempre lute com agressividade. E nunca vá para o chão.

— Ok, essa parte eu entendi. Se eu for para o chão, estou morta.

Jacquelyn praticamente me dá uma surra durante o resto da aula. E, quando Victor finalmente chega para me buscar, meu nariz e meu lábio estão sangrando, meu olho direito está roxo e latejando e acho que quebrei um dente.

Isso continua dia sim, dia não pelas duas semanas seguintes.

Não levei muito tempo para ficar boa no krav maga. Spencer diz que tenho um talento natural e que devo ter “dispensado as Barbies quando era criança”.

Ele não faz nem ideia...

Estou ficando muito mais forte, muito melhor na minha técnica. Em certo momento, até consegui machucar Jacquelyn ao enfiar o cotovelo nas costelas dela. Acho que quebrei algumas, mas ela não admite. Não por orgulho, mas porque não acha certo reclamar nem deixar algo tão insignificante quanto uma costela fraturada impedir que ela lute.

Também não demorou para que eu começasse a simpatizar com ela. Quando Jacquelyn não está me enfiando a porrada, até gosto de sua companhia.

Só duas semanas se passaram. Até agora, não fiz nada além de treinar com Jacquelyn e aprender a usar armas com Victor. Ainda assim, apesar de curtir o treino e esperá-lo ansiosamente todo dia, fico frustrada por estar demorando tanto. Eu esperava que Hamburg e Stephens já estivessem mortos faz tempo, a essa altura.

Estou ficando impaciente.

— Victor, eu não pretendo lutar com Hamburg e Stephens. Só quero matá-los. Mais nada. Não entendo por que você está me fazendo passar por tudo isso.

Victor se descobre e sai da cama, andando nu pelo quarto.

Em silêncio, admiro a visão.

— Tem mais coisas envolvidas nisso do que você imagina — diz ele, desaparecendo ao entrar no banheiro.

Aquilo com certeza desperta meu interesse.

Eu me levanto e grito:

— É mesmo?

Jogo o lençol no chão e ando depressa atrás dele, parando à porta do banheiro e me apoiando no batente. Ele está abrindo a água do chuveiro.

Victor fecha o boxe de vidro, deixando a água correr por um momento, e então se vira para mim.

— Você não está fazendo todo esse treinamento só para matar Hamburg e Stephens. Se vai ficar comigo, independentemente de como vai ocupar o seu tempo, precisa aprender a lutar. Precisa saber identificar, diferenciar, carregar e disparar praticamente qualquer tipo de arma. Há muitas coisas que você precisa saber, e não temos tempo suficiente para aprender metade delas. — Ele abre a porta do boxe e estende o braço, deixando a água correr sobre a mão para sentir a temperatura.

Ele acrescenta:

— Esse treinamento não tem muito a ver com Hamburg e Stephens. Quero que você esteja sempre segura, por isso é vital que aprenda essas coisas agora.

Abro um sorriso leve, saboreando o momento. Quando nos conhecemos, eu não imaginava que Victor tivesse um só traço de preocupação ou emoção no corpo. Mas a cada dia testemunho que ele está se abrindo mais para mim. E vejo que isso está se tornando mais fácil para ele.

Volto ao assunto em questão, mas o que eu gostaria mesmo de fazer, a essa altura, é beijá-lo.

— Mas por que isso está demorando tanto? Quero acabar com essa história de uma vez.

Entro no banheiro e me sento na bancada da pia, apenas de calcinha.

— Porque, enquanto eu elaboro um plano para você chegar perto dos dois e matá-los, você precisa treinar, ocupar seu tempo o máximo possível. — Victor se aproxima de mim e segura meu rosto com as mãos. — Só estar no mesmo quarto comigo, só me conhecer, Sarai, já é uma sentença de morte diária. Cada vez que você sai por aquela porta, corre o risco de levar um tiro. O único motivo pelo qual a Ordem ainda não me encontrou é que Niklas é o único agente atrás de mim. Quer dizer, por enquanto. Ele não quer que ninguém mais me ache. Ele quer levar o crédito. O reconhecimento. Sobretudo porque foi ele o contratado para acabar comigo. — Victor pressiona os lábios na minha testa. Fecho os olhos, levanto os braços e seguro os pulsos dele. — Mas um dia, provavelmente daqui a pouco, vou ter que enfrentar meu irmão, pois a Ordem não vai dar todo o tempo do mundo para ele cumprir a missão. Ou ele me encontra ou eu o encontro. E um de nós vai morrer.

Com os dedos ainda envolvendo os pulsos dele, afasto delicadamente suas mãos do meu rosto. Olho para aqueles lindos olhos verde-azulados, perplexa, inclinando a cabeça para um lado.

— Por que não deixa isso para lá? Victor, entendo você querer matar Niklas antes que ele mate você, mas por que correr o risco de morrer procurando briga?

O vapor começa a encher o banheiro, embaçando o grande espelho acima do balcão, atrás de mim.

— Porque se Niklas não me encontrar, se não conseguir cumprir o primeiro contrato oficial desde que foi promovido a agente sob o comando de Vonnegut, eles vão matá-lo. — Victor apoia as mãos na bancada, à minha direita e à minha esquerda. — Ninguém, a não ser eu, vai matar meu irmão. Não me importa o que ele fez ou as diferenças que temos, ainda é meu irmão.

Faço que sim, compreensiva.

— Tudo bem, então quando tudo isso vai acontecer? Esse... confronto com Niklas? Minha chance de matar Hamburg e Stephens?

Victor abre um sorriso malicioso e eu passo as pontas dos dedos em seus lábios. Ele segura minha mão e beija meus dedos.

— Vamos ter que trabalhar nesse seu problema, Sarai. A sua impaciência e, claro, como já falei, a indisciplina. É o próximo item da nossa agenda.

— Não consigo evitar a impaciência. Aqueles dois babacas horríveis continuam por aí, levando uma vida de luxo, fazendo só Deus sabe o quê com sabe-se lá quantas mulheres. Isso sem falar que estão me procurando. Mataram meus amigos por minha causa. Dina continua escondida longe da casa dela e está com medo. A vida dela foi virada de cabeça para baixo por causa deles. Por minha causa. Quero que eles morram para que pelo menos Dina possa seguir a vida.

— O que você vai dizer para ela? — pergunta Victor. — Quando se encontrar com ela hoje, o que vai dizer?

Desvio o olhar e vejo o vapor revestir as altas paredes de vidro do boxe, ondulando acima do chuveiro em nuvens suaves. Começo a suar um pouco, o rosto, o pescoço e o colo úmidos.

— Vou contar a verdade para ela.

— Você acha uma boa ideia?

Encaro Victor.

— Acho justo. Ela é praticamente minha mãe. Fez muito por mim. Eu devo a verdade a ela. — Sorrio e acrescento: — Além disso, se você não concordasse com minha decisão de contar a verdade, já teria deixado isso bem claro, a essa altura.

Victor retribui meu sorriso e me segura pela cintura, me ajudando a descer da bancada.

— Acho que é melhor a gente se arrumar, se quiser chegar lá a tempo — observa ele, e me leva até o chuveiro. Tiro a calcinha antes de entrar no boxe com ele.

Victor disse a Dina e a mim que me levaria para vê-la alguns dias depois de o contato de Fredrik a tirar de Lake Havasu City. Mas as coisas não saíram conforme planejamos. Victor e Fredrik concordaram que era arriscado e cedo demais. Uma noite, ouvi os dois conversando sobre Dina e sobre como ela poderia estar sendo vigiada no dia em que o contato de Fredrik chegou para buscá-la. Victor queria ter certeza de que isso não havia acontecido, e que, se qualquer um de nós aparecesse por acaso no esconderijo de Dina, não cairia em uma armadilha. Mas, à medida que os dias passaram e Fredrik continuou vigiando a casa onde Dina estava se escondendo, ele e Victor tiveram certeza de que ela era, de fato, segura.

Hoje, enfim, vou vê-la pela primeira vez desde que viajei com Eric e Dahlia para Los Angeles.


CAPÍTULO TREZE

Victor

Sarai precisa estar preparada não só para as ameaças iminentes, mas também para a vida que a espera. Ela escolheu um caminho há muito tempo, no dia em que me conheceu, embora ainda não soubesse. Eu não queria enxergar, por isso lutei comigo mesmo contra a necessidade estranha e antinatural de ficar perto dela, porque queria que ela tivesse uma vida normal.

Não queria que ela terminasse como eu...

Mas eu sabia, oito meses atrás, antes de deixá-la naquele quarto de hospital ao lado da sra. Gregory, que um dia eu voltaria para ela. Nunca foi minha intenção nem meu plano, eu apenas sabia que acabaria acontecendo, de uma maneira ou de outra.

Por 28 dos meus 37 anos de vida, a única coisa que conheci foi a Ordem. Só conheci disciplina e morte. Nunca conheci amizade ou amor sem suspeitas e traições. Fui... programado para desafiar as emoções e ações humanas mais comuns, mas eu... Só quando conheci Sarai me permiti acreditar que Vonnegut e a Ordem não eram minha família, que me usaram como seu soldado perfeito. Eles me negaram a vida toda os elementos que nos tornam humanos. E não posso permitir que isso fique impune.

Um dia, vou matar Vonnegut e acabar com o resto da Ordem pelo que fizeram comigo e com a minha família. Uma família que eles destruíram. Sarai é minha família agora, e espero que Fredrik prove sua lealdade no teste final que farei com ele. Eles são minha família e não vou permitir que a Ordem também os destrua.

Mas, por enquanto, Sarai é o meu foco, e será pelo tempo que for necessário. Ela precisa ser treinada. Precisa absorver o máximo que puder, o mais rápido que conseguir. É impossível que um dia ela chegue ao meu nível. Ela nunca vai conseguir viver a vida de um assassino como eu, porque levaria metade da vida para aprender. É por isso que a Ordem nos recruta tão jovens. É por isso que Niklas e eu fomos levados quando éramos crianças.

Sarai nunca vai ser como eu.

Mas ela tem outros talentos. Tem habilidades que, mesmo depois de tantos anos de treinamento, eu jamais conseguiria superar. A vida de Sarai na fortaleza no México lhe garantiu um conjunto único de habilidades que não se aprendem em uma aula nem se leem em um livro. Ela mente e manipula com maestria. Pode se tornar outra pessoa em dois segundos e enganar uma sala cheia de gente que ninguém mais conseguiria enganar. Consegue fazer um homem acreditar no que ela quiser com muito pouco esforço. E não tem medo da morte. Ela é melhor do que uma simples atriz. Porque ninguém percebe a farsa até que seja tarde demais. Javier Ruiz foi o verdadeiro professor de Sarai. Ele lhe ensinou coisas que eu jamais conseguiria transmitir. Foi seu verdadeiro treinador, ensinando os talentos mortais que agora começam a defini-la como assassina. E, como todos os mestres perversos, Javier Ruiz também foi a primeira vítima de sua aluna favorita.

Assim como foi com as habilidades que Sarai já possui, para aprender a lutar e entender a luta de verdade, ela precisa vivê-la e respirá-la todos os dias. Forçá-la a treinar com Spencer e Jacquelyn é necessário para a sua sobrevivência porque ela precisa aprender o máximo que puder sempre que for possível. Mas são as habilidades que ela já tem que vão transformá-la em um soldado único.

São essas habilidades que nos tornam a dupla perfeita.

Antes disso, contudo, Sarai precisa entender a fundo do que é capaz. E precisa passar pelos testes. Todos eles, até aqueles que podem fazê-la me detestar.

Não tenho dúvidas de que isso vai acontecer. Ela passar nos testes, pelo menos. Se ela vai me detestar, ainda é discutível.

Chegamos a Phoenix logo depois do pôr do sol e somos recebidos à porta da casinha branca por Amelia McKinney, o contato de Fredrik. Ela é uma mulher linda, voluptuosa e com um longo cabelo louro, embora sua característica menos atraente seja seu grande par de peitos de plástico, que com certeza devem lhe dar dor nas costas. E ela usa roupas bem chamativas para uma mulher com doutorado que dá aula no ensino fundamental há cinco anos.

— Olá, Victor Faust — cumprimenta ela, com um tom sedutor, segurando a porta aberta para mim e Sarai. — Ouvi falar muito de você.

— Muito? Interessante.

Com uma das mãos, ela deixa aberta a porta de tela, dá um passo para o lado e acena para entrarmos na casa, sacudindo um monte de pulseiras com pingentes de ouro. Vários anéis enormes enfeitam seus dedos. E ela cheira a sabonete e a pasta de dente.

Coloco minha mão nas costas de Sarai e deixo que ela entre antes de mim.

— Fredrik me falou de você — conta Amelia, fechando a porta. — Mas acho que “muito” é exagero nesse caso, já que ele mesmo não parece saber muita coisa a seu respeito. — Ela gira a mão ao lado do corpo e acrescenta: — Mas imagino que o fato de eu saber tão pouco é o que torna você ainda mais intrigante.

— Nem pense nisso — intervém Sarai, parando nossa pequena fila indiana e se virando para encará-la.

Disciplina, Sarai. Disciplina. Suspiro em silêncio, mas admito que fico de pau duro ao vê-la tão superprotetora com o que lhe pertence.

Amelia levanta as mãos, por sorte em um gesto de resignação e não de desafio.

— Sem problemas, meu anjo. Não tem problema nenhum.

Sarai aceita essa bandeira branca e andamos mais pela casa, onde encontramos Dina Gregory na cozinha, preparando o que parece ser uma ceia de Ação de Graças para umas 15 pessoas.

Sarai corre para os braços abertos de Dina, e começam os sorrisos e as palavras de alívio e empolgação. Ignoro tudo isso por um momento, voltando minha atenção para assuntos mais prementes: o que está ao meu redor e essa mulher que não conheço.

Não confio em ninguém.

Amelia, como muitas mulheres do círculo de Fredrik Gustavsson, não sabe nada sobre a Ordem nem sobre o envolvimento que eu ou Fredrik temos com organizações do tipo. Ela não é o que Samantha, do Abrigo Doze no Texas, era para mim. Não, a relação de Amelia e Fredrik, embora tecnicamente não possa mais ser chamada assim, é muito mais... complicada.

Começo a vasculhar a casa em busca de câmeras e armas, tateando estantes, vasos de plantas, cacarecos e móveis, instalando minha própria parafernália secreta de espionagem no caminho.

— Fredrik disse que você talvez fizesse isso — diz Amelia, atrás de mim, embora eu tenha certeza de que ela não viu o pequeno aparelho que acabo de grudar embaixo da mesinha da TV. Ela ri baixo. — Eu limpei a casa muito bem antes de você chegar. Cadê as suas luvas de borracha? — brinca ela.

Não viro para trás nem paro o que estou fazendo.

— Você recebeu alguma visita desconhecida desde que a sra. Gregory veio para cá? — pergunto, debruçando-me sobre uma mesa ao lado de uma cadeira reclinável e examinando um abajur.

— Uau, você e Fredrik são mesmo os caras mais paranoicos que já conheci. Não. Não que eu lembre. Bom, um vendedor de TV por satélite veio uma vez semana passada, querendo que eu desistisse da TV a cabo. Além dele, ninguém.

Ela se aproxima de mim por trás e abaixa a voz:

— Por quanto tempo essa mulher vai ficar na minha casa? — Noto com a visão periférica que ela olha para a porta da cozinha, para garantir que ninguém consiga ouvi-la além de mim. — Ela é legal e tudo, mas... — Amelia suspira com ar culpado. — Olha, eu tenho 30 anos. Não moro com meus pais desde os 16. Ela está atrapalhando o meu jogo. Eu trouxe um cara aqui semana passada e ele pensou que ela fosse minha mãe. Ficou chato. Não transo desde que ela chegou.

Eu me viro para encará-la.

— E há quanto tempo você conhecia o sujeito que trouxe aqui?

— Hein?

— O homem. Há quanto tempo estava dormindo com ele?

Suas sobrancelhas finas e bem-cuidadas se juntam no meio da testa.

— E isso por acaso é da sua conta? Vai me perguntar em quantas posições a gente trepou também?

— Quanto tempo?

— Conheci o cara em um bar, sábado passado.

— Bem, ele conta como uma visita desconhecida.

Ela quer discutir, mas se contém.

— Ok. Tudo bem. O cara do satélite e o quase peguete do bar. Só eles.

— Antes que eu vá embora, vou precisar do nome desse cara e de qualquer outra informação que você possa me dar sobre ele, incluindo uma descrição detalhada.

Ela balança a cabeça e ri, contrariada.

— Não sei por que aguento essas merdas do Fredrik. — Então Amelia abre uma gavetinha da mesa e tira um bloco de notas e uma caneta.

— Porque você não resiste — observo, mas sem querer ser desagradável. Outra coisa que preciso praticar: ficar de boca fechada quando as mulheres dizem certas coisas que dispensam comentários.

Ofendida, ela arregala os olhos azuis brilhantes. Rabisca alguma coisa na folha, arranca-a do bloco e a enfia na minha mão.

— O que isso significa? — Contudo, antes de me dar a chance de cometer outra gafe, ela muda o tom de voz, chega perto de mim e sussurra de maneira sedutora: — Ei... O que vocês dois têm em comum, afinal?

Sei exatamente sobre o que Amelia está perguntando. Ela especula sobre as minhas preferências sexuais e provavelmente torce para que sejam tão sombrias quanto as de Fredrik. Mas ela está pisando em um território muito perigoso, com Sarai na sala ao lado.

— Não muito — respondo, enfiando no bolso a folha com o nome e a descrição do homem. Então continuo a investigar a casa dela.

— Que pena — comenta Amelia. — Qual é a dele, afinal? Ele fala alguma coisa de mim?

Por favor, pare com isso...

Suspiro e paro na entrada do corredor, olhando-a nos olhos.

— Se você tem perguntas para ou sobre Fredrik, faça o favor de perguntar diretamente a ele.

Amelia joga o cabelo para trás em um gesto orgulhoso e revira os olhos.

— Tudo bem. Só pergunta para o Fredrik quanto tempo mais vou ter que ficar de babá, ok?

Ela passa por mim e se junta a Sarai e à sra. Gregory na cozinha, enquanto aproveito a oportunidade para inspecionar o resto da casa.

Por falar em Fredrik, ele me liga quando estou a caminho do quarto de hóspedes.

— Tenho informações sobre a missão de Nova Orleans — diz ele do outro lado da linha. Ouço trânsito ao fundo. — O contato acha que o alvo voltou para a cidade.

— Por que ela acha isso?

— Ela acha que o viu em frente a um bar perto da Bourbon Street. Claro que ela pode ter imaginado isso, mas acho que a gente deveria investigar. Só por segurança. Se a gente esperar e ele voltar para o Brasil, ou onde quer que ele esteja se escondendo, pode levar mais um ou dois meses antes de termos outra chance.

— Concordo. — Eu me fecho no quarto de hóspedes. — Estou com Sarai na casa da Amelia agora, mas vou terminar as coisas por aqui mais cedo. Vá para Nova Orleans na minha frente e eu encontro você lá amanhã no início da noite. Mas não faça nada.

— Não fazer nada? — pergunta Fredrik, desconfiado. — Se eu encontrar o cara, posso prendê-lo e começar o interrogatório, pelo menos.

— Não, espere a gente. Quero que Sarai faça isso.

Fredrik fica em silêncio por um instante.

— Você não pode estar falando sério, Victor. Ela não está pronta. Pode estragar a missão toda. Ou morrer.

— Não vai acontecer nada disso — rebato com calma e confiança. — E não se preocupe, é você quem vai fazer o interrogatório. Só quero que ela prenda o sujeito.

Sei que há um sorriso macabro no rosto de Fredrik sem precisar vê-lo ou ouvir sua voz. Deixar que ele faça o interrogatório é praticamente o mesmo que dar uma seringa para um viciado em heroína.

— Vejo você em Nova Orleans, então — diz ele.

Desligo, enfio o celular no bolso de trás da calça preta e termino a inspeção da casa antes de ir para a sala e me juntar às mulheres, todas já com pratos de comida no colo.


CAPÍTULO CATORZE

Sarai

— Você deveria fazer um prato — digo para Victor quando ele surge no corredor. — Dina cozinha muito bem. Até melhor do que Marta. Mas não diga a Marta que eu falei isso. — Enfio uma enorme colherada da caçarola de feijão na boca.

Dina, sentada ao meu lado no sofá, aponta para Victor.

— Ela é suspeita. Mas, se você está com fome, é melhor comer antes que acabe.

— Precisamos conversar — anuncia Victor, de pé no meio da sala e bem na frente da TV.

Não gosto do tom dele.

— Tudo bem — digo, desencostando do sofá e deixando o prato na mesinha de centro. — Sobre o quê?

Victor olha de relance para Amelia. Ela está sentada na poltrona à minha frente, pegando um pedaço de pão de milho. Tenho a sensação de que Victor não quer que ela ouça a conversa.

— Amelia — diz Victor, enfiando a mão no bolso de trás da calça e pegando a carteira de couro —, preciso que você saia um pouco de casa. — Ele mexe na carteira, tira um pequeno maço de notas de 100 dólares e o deixa na mesa diante dela. — Se você não se importar.

Amelia olha para o dinheiro, apoia o garfo no prato e conta as cédulas.

— Sem problemas — concorda ela, com um sorriso satisfeito. Então se levanta, pega o prato e a lata de refrigerante e desaparece na cozinha.

Ouço o garfo raspando os restos de comida do prato para o lixo e a cerâmica tilintando no fundo da pia. Amelia passa por nós e segue até o corredor.

— Mas preciso que você saia agora mesmo — reitera Victor. — Não precisa trocar de roupa nem se arrumar.

— Posso pelo menos calçar a droga de um sapato? — pergunta ela, ríspida.

— Claro — responde Victor, assentindo. — Mas, por favor, não demore.

Amelia vai até o fim do corredor, resmungando irritada. Minutos depois, ela liga o carro e vai embora.

Victor olha para mim e para Dina.

— Não podemos ficar tanto tempo quanto o planejado — informa ele.

Dina também larga o prato e suspira com tristeza.

— Por que não? — pergunto.

— Surgiu um problema.

Olho para o meu prato, e o brilho metálico do garfo perde foco à medida que mergulho em pensamentos. Achei que teria tempo para encontrar a forma certa de contar para Dina tudo o que eu planejava contar. Agora estou desesperada tentando imaginar como começar a primeira frase.

— Dina — digo, respirando fundo. Eu me viro de lado para encará-la. — Eu matei um cara, meses atrás. — O rosto de Dina parece ficar rígido. — Foi em legítima defesa. Eu, hum... — Olho para Victor. Ele assente de leve, me motivando a continuar e garantindo que está tudo bem, embora eu saiba que ele não concorda cem por cento com o que estou fazendo. — Aliás, também matei um cara em Los Angeles na noite em que Dahlia e Eric foram encontrados mortos.

Dina ergue a mão enrugada e cobre a boca.

— Ah, Sarai... Você... o que você está...

— Dahlia e Eric foram assassinados por minha causa — interrompo, porque é evidente que ela não sabe o que dizer. — Não só a polícia de Los Angeles está atrás de mim para me interrogar, já que eu estava com eles, mas também os homens que mataram os dois estão na minha cola. É por isso que você está aqui.

— Meu Deus do céu. — Dina balança a cabeça sem parar, tira os dedos da boca e aperta os olhos cheios de pés de galinha em uma expressão preocupada.

Seguro a mão dela, que é fria e macia.

— Tem muita coisa que você não sabe. Onde eu estava de fato durante os nove anos em que minha mãe e eu ficamos desaparecidas. O que realmente aconteceu comigo. E com minha mãe. E eu não levei um tiro de um ex-namorado daquela vez em que Victor levou você para o hospital em Los Angeles. Eu levei um tiro de... — Olho para Victor de novo, mas decido por mim mesma não revelar essa informação. Ela não precisa saber de Niklas nem no que Victor e ele estão envolvidos. — Foi outra pessoa que atirou em mim. É uma história muito longa que você vai saber um dia, mas por enquanto só quero que você saiba a verdade sobre mim. — Passo os dedos com carinho nas costas da mão dela. — Você é a única mãe de verdade que eu tive. Fez tanta coisa por mim, sempre me apoiou, e eu devo essa honestidade a você.

Dina segura minha mão entre as dela.

— O que aconteceu com você, menina? — pergunta, com tanta dor e preocupação na voz que sinto um nó na garganta.

Começo a contar tudo, tanto quanto posso sem revelar qualquer informação sobre Victor e Niklas. Conto sobre o México e sobre as coisas que vi e vivi por lá. Conto sobre Lydia e sobre não conseguir salvá-la, apesar de ter lutado tanto. Omito sobretudo as relações sexuais que eu tinha com o cara que me mantinha presa, Javier Ruiz, um chefão mexicano do tráfico de drogas, armas e escravas, e só digo que eu estava lá contra a minha vontade e fui obrigada a fazer coisas que não queria. Dina cai no choro e me abraça forte, me balançando apertada contra o peito, como se eu é que estivesse chorando e precisasse de um ombro amigo. Ao menos dessa vez, contudo, não estou chorando. Só me sinto péssima por ter que contar tudo isso a ela, pois sei que isso a magoa muito.

Minutos depois, quando termino de contar tudo o que posso, Dina está sentada na beira do sofá, parecendo ligeiramente em choque. Mas ela está mais preocupada do que qualquer outra coisa.

Ela olha para Victor.

— Quanto tempo vou precisar ficar aqui? Gostaria muito de ir para casa. E quero levar Sarai.

— Isso não é uma boa ideia — argumenta Victor. — E quanto a Sarai, ela vai ter que ficar comigo. Por tempo indeterminado.

Engulo em seco ao ouvir as palavras dele, sabendo que Dina não vai aceitar isso.

— Então... Mas então o que isso significa? — pergunta ela, nervosa, voltando sua atenção somente para mim. — Sarai, você nunca mais vai voltar para casa?

Balanço a cabeça, cheia de culpa.

— Não, Dina, eu não posso. Preciso ficar com Victor. Estou mais segura com ele. E você está mais segura sem mim.

Dina balança a cabeça com ar solene.

— Você vai me visitar?

— Claro que vou. — Aperto a mão dela com delicadeza. — Eu nunca abandonaria você para sempre.

— Entendo — afirma ela, esforçando-se para aceitar.

Dina se volta para Victor.

— Mas eu não posso ficar na casa dessa mulher. Se você só me trouxe para cá para me proteger, prefiro voltar para casa. Não tenho medo desses homens. — Ela fica de pé e olha para mim. — Sarai, querida, eu nunca contaria nada para a polícia. Espero que acredite nisso.

Também me levanto.

— Sim, Dina, eu sei que você não contaria. O motivo para você estar aqui não tem nada a ver com a minha confiança em você. Trouxemos você para cá porque queremos que fique segura. Se alguma coisa acontecesse com você, principalmente por minha causa, eu jamais me perdoaria. Você é tudo o que me resta. Você e Victor. Você é minha família e eu não posso perdê-la.

— Mas eu não posso ficar aqui, querida. Já fiquei tempo demais. Amelia é gentil comigo, mas aqui não é a minha casa, e não quero ficar mais tempo do que ela quer que eu fique. Sinto como se minha presença fosse um fardo. Sinto falta das minhas plantas e da minha caneca de café favorita.

— Sra. Gregory — intervém Victor, impaciente, mas ainda respeitando os sentimentos dela. Ela se vira, mas ele faz uma pausa como se refletisse sobre algo. — Sarai não vai ficar segura se tiver que se preocupar com a sua segurança. Estou dizendo desde já: se a senhora voltar para casa, eles vão encontrar e matar a senhora assim que a virem, ou pior, vão sequestrá-la, torturá-la, gravar tudo em vídeo e usar as imagens para atingir Sarai. Entende o que estou dizendo?

A expressão grave e determinada de Dina desmorona sob um véu de sofrimento e resignação. Ela se vira para mim, com o semblante distorcido pela dor. Talvez esteja me pedindo uma confirmação das palavras de Victor, esperando que eu suavize a situação, que eu diga que ele só está sendo dramático. Mas não posso fazer isso. O que ele disse, embora brutal e sem rodeios, é exatamente o que ela precisa ouvir.

— Ele tem razão. Olhe, a gente vai dar um jeito nesses caras logo, tudo bem? Só preciso que você fique quietinha por mais um tempo, até a gente conseguir fazer isso.

— Mas concordo com a senhora — pondera Victor —, acho que não deve mais ficar aqui.

Dina e eu olhamos para ele ao mesmo tempo.

Victor continua:

— Quando estamos nos escondendo e ficamos tempo demais no mesmo lugar, com certeza somos encontrados.

— Então aonde ela deve ir? — pergunto, com várias possibilidades girando na cabeça, nenhuma das quais parece plausível. — Não me diga que quer levar Dina com a gente. Por mais que eu fosse adorar...

— Não, ela não pode ir com a gente — concorda Victor —, mas posso arranjar uma casa só para ela. Já fiz isso antes.

Afinal, Victor providenciou a casa em Lake Havasu City para mim e Dina.

— Mas você não disse que surgiu um problema e que a gente precisa ir embora antes do planejado? Não dá tempo de encontrar outra casa para ela. Isso levaria dias.

— Eu tenho uma casa — afirma Victor. — Fica longe do Arizona, mas acho que seria melhor para a senhora não ficar aqui por enquanto. O contato de Fredrik, o mesmo sujeito que trouxe a senhora para cá, pode levá-la a esse lugar. Está disposta a se mudar?

Dina se reclina no sofá, apertando as mãos uma na outra e as enfiando entre as pernas, vestidas em uma calça bege.

Eu me sento ao lado dela.

— Por favor, faça isso — peço a ela. — Vou me sentir muito melhor sabendo que você está segura.

Dina fica em silêncio por um longo momento, mas finalmente aceita.

— Estou velha demais para tanta emoção, mas tudo bem, eu vou. Só faço isso por você, Sarai.

Eu me inclino e a abraço.

— Eu sei, e é por isso que eu amo você.

— Onde fica a casa? — pergunto depois que deixamos Dina na casa de Amelia e pegamos a estrada. Ele não quis dizer antes a localização em voz alta, provavelmente porque não confiava no ambiente.

— Em Tulsa — responde Victor. — Tenho algumas casas espalhadas por aí, essa é uma delas. Nada luxuoso como a casa de Santa Fé, mas dá para morar nela, é aconchegante, e só a gente sabe que ela existe.

— Quem é esse contato de Fredrik, afinal?

— Ele não faz parte da Ordem, se é o que você quer saber. É só alguém que Fredrik conhece, um pouco como Amelia.

— Se não fazem parte da Ordem, quem eles são?

Victor me lança um olhar do banco do motorista.

— Amelia é só uma espécie de ex-namorada de Fredrik. Como os abrigos administrados pela Ordem, a casa de Amelia tem a mesma função. Mas temos muito menos preocupações em relação a ela, que nem sabe o que é a Ordem. Só o que ela tem é uma obsessão doentia por Fredrik e faz qualquer coisa que ele pedir.

— Ah, entendo — digo, embora não saiba direito se entendi. — Ela parece pegajosa.

— Pode-se dizer que sim.

— E o cara? Aquele que vai levar Dina até Tulsa?

Victor olha para a estrada, com uma das mãos relaxada na parte de baixo do volante.

— Ele é um dos nossos funcionários, na verdade. Um dentre uns vinte contatos que recrutamos desde que eu saí da Ordem. Nenhum deles sabe mais do que o necessário. Fredrik ou eu damos uma ordem, e, como em um emprego qualquer, eles obedecem. Claro que trabalhar com a gente é bem diferente de qualquer outro emprego, mas você entendeu.

— Eles não sabem o risco que correm por se envolver com você e Fredrik? E como vocês fazem para eles seguirem as ordens de vocês? O que eles fazem exatamente, além de levar Dina para um lugar qualquer, assim, do nada?

— Você está cheia de perguntas. — Victor sorri para mim. Uma carreta passa em disparada no sentido oposto, cegando-nos com os faróis altos. — Eles sabem do perigo, até certo ponto. Sabem que estão trabalhando para uma organização particular e são proibidos de falar sobre ela, mas nenhum dos nossos recrutas desconhece a discrição e a disciplina. Alguns são ex-militares, e todos foram escolhidos a dedo por mim. Depois de uma verificação completa do passado deles, é claro. — Victor faz uma pausa e acrescenta: — E eles fazem tudo o que pedimos, mas, para não metê-los em encrenca e proteger nossa operação, costumamos só pagar por tarefas simples. Vigilância. Compra de imóveis, veículos. E levar a sra. Gregory para um lugar qualquer, assim, do nada. — Victor sorri para mim de novo. — Como garantimos que eles sigam nossas ordens? O dinheiro é uma maneira formidável de influenciar pessoas. Eles são bem remunerados.

Apoio a cabeça no banco e tento esticar as pernas no chão do carro, já temendo a viagem longa.

— Um dos nossos homens estava no restaurante de Hamburg na noite em que eu encontrei você.

Tão depressa quanto apoiei a cabeça, levanto-a de novo e olho para Victor, em busca de mais explicações.

— A sra. Gregory só me ligou depois que você foi para Los Angeles — esclarece ele. — Eu estava no Brasil em uma missão, ainda procurando meu alvo depois de duas semanas. Fui embora assim que recebi a ligação da sra. Gregory, mas sabia que provavelmente não encontraria você a tempo, então entrei em contato com dois dos nossos homens que estavam em Los Angeles, dei a eles a sua descrição e alertei para que vigiassem o restaurante e a mansão de Hamburg. Eu sabia que você iria para um dos dois lugares.

Eu me lembro do homem atrás do restaurante depois que matei o segurança. O homem que misteriosamente me deixou fugir.

— Eu vi o cara. Fugi pela saída dos fundos e ele estava lá. Pensei que ele fosse um dos homens de Hamburg.

— Ele é — rebate Victor.

Pisco, atordoada.

— Ele e o outro homem foram dois dos meus primeiros recrutas. Los Angeles era a minha prioridade quando tudo isso começou.

— Você sabia que eu iria para lá.

Embora eu não queira tirar conclusões precipitadas e parecer iludida, sei que é verdade. Meu coração começa a bater como um punho quente. Saber a verdade, saber que Victor estava, durante todo aquele tempo, pensando em mim mais do que eu jamais poderia imaginar me deixa feliz e culpada. Culpada porque o acusei de me abandonar.

— Eu esperava que você esquecesse essa história. Mas, no fundo, sabia que você voltaria lá.

Ficamos em silêncio por um instante.

— Ele está bem? — pergunto, sobre o homem nos fundos do restaurante.

Victor assente.

— Está ótimo. Ele tinha sido contratado por Hamburg meses antes. Conhecia a planta do restaurante e sabia que a única saída alternativa da sala de Hamburg no andar de cima era a dos fundos. A propósito, ele quer pedir desculpa.

— Como assim? Ele me ajudou a fugir.

— A ordem que eu dei a ele foi para não deixar de jeito nenhum que você entrasse naquela sala. Foi a peruca platinada. Ele sabia que você tem cabelo castanho-avermelhado e comprido, não curto e louro. Quando ele se deu conta de quem era, Stephens já estava levando você. Ele não podia entrar porque a sala estava sendo vigiada, por isso foi até os fundos do restaurante, torcendo para conseguir entrar por ali de alguma forma, mas havia outros dois homens de guarda. Eles puxaram conversa e o seguraram ali, até que por fim ele os convenceu a deixá-lo vigiar o lugar sozinho. Logo depois, você saiu pela porta dos fundos.

Respiro fundo e apoio a cabeça no banco de novo.

— Bom, diga a ele que não precisa pedir desculpa. Mas por que ele não me disse logo quem era? Ou não me levou até você?

— Ele precisava segurar o Stephens tempo suficiente para você conseguir fugir, e o fato de ele continuar trabalhando para Hamburg ajuda. Ele não sabe o que os dois planejam nem coisa alguma sobre as operações. É só um segurança, nada além disso. Mas está lá dentro, e isso já é valioso para a gente.

Desafivelo meu cinto de segurança e me esgueiro entre os bancos da frente com a bunda empinada (de um jeito bem deselegante para uma dama, admito) para alcançar o banco de trás. Flagro Victor admirando a cena enquanto me espremo para passar, e isso me faz corar.

— Só tenho mais uma pergunta a acrescentar à lista.

— O que seria? — pergunta ele, zombando de mim.

— Por quanto tempo a gente vai ter que viajar assim? — Estico as pernas no banco de trás e me deito. — Sinto muita falta dos jatinhos particulares. Essas viagens longas de carro vão acabar me matando.

Victor ri. Acho isso incrivelmente sexy.

— Você está dormindo com um assassino, fugindo todo dia de homens que querem matar você e acha que vai morrer por falta de conforto. — Ele ri de novo, e isso me faz sorrir.

— É, acho — digo, me sentindo só um pouco ridícula. Não posso negar a realidade, afinal, por mais sem sentido que ela seja.

— Não vai ser por muito mais tempo — responde Victor. — Não podemos chamar atenção até que eu consiga me livrar completamente de Vonnegut. Ele tem contatos em muitas áreas, e transportes luxuosos, confortáveis e secretos estão no topo de sua lista de prioridades, por motivos óbvios. Dou menos na vista viajando de trem do que de jatinho particular.

Satisfeita com a resposta, não digo mais nada sobre o assunto e olho para cima, para o teto escuro do carro.

— Só para constar — digo, mudando de assunto —, eu não estou só dormindo com um assassino. Estou muito envolvida com ele.

— É mesmo? — pergunta Victor, e sei que ele está sorrindo.

— Sim, temo que seja verdade — digo, em tom de brincadeira, como se fosse algo ruim. — E é um envolvimento bem pouco saudável.

— É mesmo? Por que você acha isso?

Suspiro, dramática.

— Ah, sei lá. Talvez porque ele nunca vai conseguir se livrar de mim.

— Pegajosa. Como Amelia — provoca Victor, tentando me irritar.

E ele consegue. Eu me levanto um pouco e dou um soco de leve em seu ombro. Ele se encolhe, fingindo dor, mesmo com um sorriso largo no rosto.

— Longe disso — digo, e volto a me deitar. — Nem ferrando que eu vou fazer tudo o que ele quer, como a Amelia.

Victor ri baixinho.

— Bem, pelo jeito ele vai ter que aguentar você para sempre, então.

— Vai, e para sempre é muito tempo.

Ele faz uma pausa e então diz:

— Bom, só para constar, algo me diz que ele não gostaria que fosse diferente.

Adormeço no banco de trás muito tempo depois, com um sorriso no rosto que pareceu continuar ali pelo resto da noite.


CONTINUA

CAPÍTULO NOVE

Sarai

Estou mordendo o lábio por dois motivos: porque estou torcendo para que seja uma boa notícia e porque estou sexualmente frustrada. Victor fala com Fredrik por menos de dois minutos, desliga e digita outro número. Quando consegue falar com Dina, ele me passa o celular.

Pego o aparelho e o encosto no ouvido.

— Dina?

— Sarai, meu Deus, onde você está? O que está acontecendo? Eu estava sentada na sala vendo TV e um homem bateu na porta. Eu não ia deixar ele entrar, fiquei desconfiada na hora; estava quase pegando minha espingarda. Mas ele disse que queria falar de você. Ah, Sarai, fiquei com tanto medo de que tivesse acontecido alguma coisa! — Ela finalmente respira.

— Você está bem? — pergunto, baixinho.

— Sim, sim, estou ótima. O melhor que eu poderia estar. Mas ele me falou que iríamos para a delegacia encontrar você. Até me mostrou um distintivo. Não acredito que caí nessa. O cavalheiro mentiu para mim. — Dina para de falar e abaixa a voz, como se estivesse sussurrando para ninguém ouvir. — Ele me levou para a casa de uma prostituta. O que está acontecendo? Sarai...

— Vai ficar tudo bem, Dina, prometo. E não se preocupe. Seja lá quem more nessa casa, duvido que seja uma prostituta.

Os olhos de Victor cruzam com os meus. Desvio o olhar.

— Onde você está? Quando vai voltar? Sei que você está metida em alguma encrenca, mas sempre pode me contar tudo.

Gostaria que isso fosse verdade. Mais do que tudo, neste momento. Mas a verdade maior é que não sei como responder às perguntas de Dina. Victor deve ter percebido a fisionomia confusa no meu rosto, porque tirou o telefone da minha mão.

— Sra. Gregory — diz ele ao telefone. — Aqui é Victor Faust. Preciso que a senhora me ouça com bastante atenção. — Ele espera alguns segundos e continua. — A senhora vai precisar ficar onde está pelos próximos dias. Vou levar Sarai para vê-la em breve, e vamos explicar tudo, mas, até lá, precisa ficar escondida. Não, sinto muito, mas a senhora não pode voltar... Não, não é seguro lá. — Ele assente algumas vezes, e percebo, pelas leves rugas que se formam entre seus olhos, que ele não se sente à vontade falando com ela, como se alguém colocasse de repente um bebê no colo dele. — Sim... Não, me escute. — Ele perde a paciência, então vai direto ao assunto. — É uma questão de vida ou morte. Se a senhora sair ou ligar para qualquer conhecido, vai acabar morrendo.

Tenho um sobressalto e me encolho com essas palavras, não por serem verdade (isso eu já sabia), mas porque fico imaginando a reação de Dina a elas. Só posso imaginar o que ela deve estar pensando nesse momento, como deve estar apavorada. Apavorada por mim, não por si mesma, e isso faz doer ainda mais.

— Sim, ela está bem — afirma Victor mais uma vez para tranquilizá-la. — Só mais alguns dias. Eu vou levar Sarai aí.

Falo com Dina por mais alguns minutos, contando o que posso, mas sem revelar demais, para acalmá-la. Claro que isso não está ajudando muito, considerando as circunstâncias. Nós desligamos e eu fico ali na sala, me sentindo muito diferente de como me sentia antes da ligação.

Acho que enfim caiu a ficha do tamanho da merda que fiz.

Antes, quando achava que era eu quem corria o maior perigo, e depois que disse para Eric e Dahlia saírem de Los Angeles, eu estava preocupada, mas não tanto assim. Os danos que causei afetam mais do que minha própria segurança. Sem querer, pus todas as pessoas que conheço e amo em perigo.

A realidade de tudo isso, dos meus atos e das consequências em efeito dominó, o fato de Victor ter me deixado, de eu ter tentado levar uma vida normal e fracassado; não consigo mais. Não suporto mais nada disso. Cacete, até a dorzinha por ter encontrado Dahlia com Eric está começando a me incomodar. Não por causa de Eric, ou porque ele era meu “namorado”, mas porque o que eles fizeram não me afetou como deveria ter afetado.

Sou uma aberração. E, no momento, não consigo perdoar Victor por me fazer passar por essa situação, por me jogar em uma vida que nós dois sabíamos que não serviria para mim e por esperar que eu me adaptasse. Eu não queria desde o começo. E foi exatamente por isso que não deu certo.

As lágrimas começam a inundar meus olhos. Deixo que caiam. Não me importa.

Sinto a presença de Victor atrás de mim, mas antes que ele me toque me viro para encará-lo com a raiva distorcendo meu rosto. E enfim certas coisas que eu queria dizer a ele depois de todo esse tempo saem, em uma tempestade de palavras furiosas.

— Você me abandonou, porra! — Bato com as palmas das mãos em sua camisa social justa. — Você deveria ter me matado e pronto! Você consegue imaginar o que me fez passar?! — Lágrimas cheias de raiva escorrem dos cantos dos meus olhos.

— Me desculpe...

Franzo a testa na mesma hora.

— Você quer se desculpar? — Solto o ar ruidosamente. — É só isso que você consegue dizer? Me desculpe?

No fundo, sei que nada disso é culpa de Victor, sei que ele só fez o que fez para me proteger. Mas a maior parte de mim, a parte que não quer acreditar que eu não tenho mais salvação, quer pôr a culpa em qualquer um, menos em mim mesma.

As lágrimas começam a me fazer engasgar.

— Toda santa noite — disparo, apontando com raiva para o chão, meu rosto retorcido de raiva e rancor —, todas as horas de todos os dias, eu pensava em você. Só em você, Victor. Eu vivia cada dia com esperança, acreditando de coração que você ia voltar para mim. Os dias passavam e você não aparecia, mas nunca perdi a esperança. Eu pensava comigo mesma: Sarai, ele está vigiando você. Ele está testando você. Ele quer que você faça o que ele disse, que tente ser como todo mundo, que tente se misturar. Quer que você prove para ele que é forte o suficiente para enfrentar qualquer situação, se adaptar a qualquer estilo de vida. Porque, se você não consegue fazer algo tão simples quanto levar uma vida normal, nunca vai conseguir viver com ele. — Mordo o lábio inferior e tento sufocar as lágrimas. Balanço a cabeça devagar. — Isso era o que eu pensava. Mas fui idiota por achar que você tinha alguma intenção de voltar para mim. — Um tremor induzido pelo choro percorre meu peito.

Victor, com o semblante angustiado que nunca imaginei ver nele, se aproxima. Recuo, balançando a cabeça sem parar, esperando que ele entenda que não estou pronta para ficar muito perto. Quero ficar sozinha com a minha dor.

— Sarai? — diz ele, baixinho.

— Não — digo, recusando-o com um gesto. — P-por favor, me poupe das desculpas e dos motivos pelos quais sei que não posso culpar você. Eu sou egoísta, ok? Eu sei! Já sei que você fez o que precisava fazer. Já sei...

— Não, não sabe.

Levanto os olhos para encontrar os dele.

Victor se aproxima. Desta vez não me afasto, minha mente está paralisada por suas palavras, por mais escassas ou vagas que elas sejam. Ele segura meus cotovelos e descruza minhas mãos. Seus dedos roçam de leve a pele sensível da parte interior dos meus braços, descem até encontrarem minhas mãos e as seguram.

— Eu saí da Ordem principalmente por causa de você, Sarai — explica Victor, e o resto do meu corpo fica paralisado. — Quando Vonnegut descobriu que eu estava ajudando você, ele soube... — Ele faz uma pausa, parecendo estar vasculhando sua mente à procura das palavras menos perigosas. — Ele soube que eu me comprometi...

Jogo as mãos para cima.

— Fale inglês! Por favor, diga de uma vez sem se esforçar tanto para fazer rodeios! Por favor!

— Vonnegut soube que eu tinha... começado a gostar de você.

Fico paralisada e meus lábios se fecham. Meu coração bate descompassado. Minhas lágrimas parecem secar em um instante, só as que molham minhas bochechas continuam escorrendo.

— Como eu era o Número Um de Vonnegut, seu “favorito”, a última coisa que ele queria era mandar me matar. Ele me afastou do serviço, me desligou por um tempo, até... que eu criasse juízo.

Faço uma cara de “que-droga-isso-significa”.

— Pode chamar de lavagem cerebral — acrescenta Victor.

Ele afasta a ideia com um gesto.

— Não importa. O que importa é que ele ia me dar uma única chance de provar que o meu sentimento por você era só um lapso, e que nunca mais iria acontecer. Pouquíssimos agentes têm uma segunda chance na Ordem.

— Um lapso? — Eu me sento na mesinha de centro. Olho para Victor e digo: — Para mim, parece que Vonnegut queria que você provasse que não é humano, mas sim o soldado obediente a ele, incapaz de ter emoções. Que babaca desequilibrado.

Victor assente e se agacha diante de mim, entrelaçando os dedos, com os cotovelos apoiados nas coxas.

— Vonnegut mandou que eu matasse você — conta ele em voz baixa, sustentando o meu olhar. — Para provar a mim mesmo. Eu disse que ia fazer isso, que queria fazer, provar que eu era digno de confiança, e ele me soltou. Claro que eu não tinha nenhuma intenção de matar você. Parti naquele dia e procurei um esconderijo. Niklas, que só conheceu a Ordem a vida inteira, decidiu ficar. Pensei que talvez ele só precisasse de um tempo para entender o que estava acontecendo e decidir o que era melhor para ele. Eu também estava me escondendo de Niklas. Sem saber onde eu estava, ele não precisaria enganar Vonnegut nem achar que precisava escolher entre mim e ele. Mas aí Fredrik me contou que Niklas foi contratado para me matar e está me procurando desde então.

— Que desgraçado — comento, balançando a cabeça sem acreditar, mas depois penso de novo. — Você disse que saiu da Ordem principalmente por minha causa. Além de mim, qual foi o outro motivo?

— Isso já estava para acontecer havia muito tempo — conta Victor. — Quando precisei matar meu pai para salvar meu irmão, entendi que era hora de sair. — Seus dedos fortes acariciam os meus, mais delicados. — Você me deu a motivação final de que eu precisava para fazer isso de uma vez.

Com a ponta dos dedos, acaricio seu rosto com a barba um pouco por fazer. Victor continua a me encarar, seus olhos sondando os meus através do pequeno espaço entre nós, cheios de paixão e compreensão. Eu me curvo e beijo seus lábios.

— Eu sinto muito pelo seu irmão — digo, baixinho.

Ele roça os lábios nos meus, e a sensação se espalha pelo meu corpo até os dedos dos pés, como uma dose de uísque.

— Eu não estava testando você, Sarai. — Ele me beija de novo.

— Então o que você estava fazendo? — Eu o beijo também e derreto ao sentir suas mãos se movendo por minhas coxas.

Victor me ergue nos braços, envolvendo minhas pernas em sua cintura, minha bunda acomodada nas palmas de suas mãos enormes. Meus dedos sobem pelos lados de seu rosto e tocam sua boca antes que meus lábios toquem também.

— Eu estava esperando o momento certo — diz ele enquanto sua boca encontra meu pescoço.

Enfio os dedos em seu cabelo castanho curto, erguendo o queixo ao sentir sua boca explorando meu pescoço e meu maxilar. Meus olhos estão fechados, as pálpebras pesadas, e sinto um formigamento quente ao qual sei que não dá para resistir. Victor me carrega pela sala, embora eu não saiba para onde nem me importe com isso. Aperto mais as pernas nuas ao redor de sua cintura, sentindo a superfície fria e lisa de seu cinto de couro pressionando o interior das minhas coxas. Meus dedos estão trabalhando nos botões de sua camisa, abrindo-os com facilidade.

Victor não responde às minhas perguntas, mas isso também não me importa.

Os lábios dele cobrem os meus, a umidade quente de sua língua se entrelaçando avidamente com a minha. Sem parar de me beijar, Victor me faz apoiar os pés no chão para tirar minha calcinha, uma perna de cada vez. Ele ergue meus braços e tira minha camiseta, jogando-a no chão. Minhas mãos mexem no cinto dele, movendo a lingueta do buraco e puxando a tira de couro de uma só vez em um movimento rápido. Ele tira a calça e a cueca boxer preta. Minha boca recebe seu hálito quente e ofegante enquanto ele me carrega mais uma vez e pressiona minhas costas na parede, como se não quisesse esperar para chegarmos ao quarto de hóspedes. Também não quero esperar. Já esperamos demais.

Sinto seu pau entrando em mim, e, antes que ele deslize até o fundo, uma descarga de prazer corre pelas minhas coxas e sobe pela coluna, relaxando meu pescoço e fazendo minha cabeça se apoiar na parede. Sinto meus olhos formigando e ardendo. A umidade morna entre minhas pernas é inundada por um êxtase quente e trêmulo.

Ele mete uma vez bem fundo e se mantém ali, segurando meus quadris, com minhas costas pressionadas contra a parede fria. Abro os olhos devagar, ainda sem controlar direito as pálpebras, e o encaro. Ele me fita com a mesma intensidade voraz. Minha respiração é curta e irregular quando escapa dos meus lábios entreabertos. Meus braços estão ao redor dele, em um abraço apertado, meus dedos cravados nos músculos rijos de suas costas.

— Eu queria isso há tanto tempo — digo, ofegante.

— Você não faz ideia... — rebate Victor, para então me devorar com um beijo, tão violento que quase perco o controle dos meus músculos.

Minhas coxas se contraem em sua cintura quando ele mete seu pau em mim de novo. Estremeço e gemo, minha cabeça bate com força na parede. Ele segura meu corpo no lugar com os braços encaixados nas minhas coxas, forçando seu quadril contra o meu, e eu sinto pequenas explosões no estômago a cada investida.

Minhas costas se arqueiam, meus seios ficam expostos a ele, que cobre um mamilo com a boca. Ergo os braços acima da cabeça, procurando alguma coisa onde eu possa me segurar para cavalgá-lo, mas não encontro nada. Envolvo seu pescoço com os braços para sustentar meu peso e rebolo em sua virilha, gritando e gemendo, desesperada para mergulhar cada centímetro do seu pau duro tão fundo quanto possível. Seus dedos afundam dolorosamente nas minhas costas. Sua língua se enrosca na minha, seus gemidos atravessam meu corpo.

Gozo rápido e forte, minhas pernas e o ponto entre elas se contraindo ao redor dele, meus músculos tremendo. Ele goza segundos depois e segura meu corpo bem firme no lugar, com minha bunda em suas mãos musculosas, para se esvaziar dentro de mim.

Nesse momento, não estou nem aí para as consequências do que acaba de acontecer. Mas só nesse momento.

Com a cabeça apoiada no ombro dele, Victor me carrega pelo corredor até o banheiro espaçoso em frente ao quarto de hóspedes. Ele me senta na bancada e fica de pé no meio de minhas pernas nuas.

— Não se preocupe. — Ele dá um beijo na minha testa e abre a porta de vidro do boxe do chuveiro.

— Com o quê? — pergunto, confusa.

Ele gira a torneira, que range, e regula a água quente e a fria até encontrar a temperatura desejada. Eu o observo da bancada, o modo como seu corpo alto e escultural se move, as curvas de seus músculos entalhadas em um desenho poético ao redor de seus quadris, suas panturrilhas enrijecendo quando ele anda.

Ele volta para perto de mim e termino de tirar sua camisa, deslizando-a por seus braços musculosos.

— Você não vai engravidar — diz ele, e me manda descer da bancada e segui-lo até o chuveiro. — Não de mim, pelo menos.

Um pouco surpresa, deixo por isso mesmo.

Ele fecha a porta do boxe e começa a lavar meu cabelo. Eu me perco naquela proximidade, no modo como suas mãos exploram meu corpo com tanta precisão e desejo.

Por muito tempo, esqueço que ele é um assassino cujas mãos tiraram muitas vidas sem sequer um pensamento de remorso ou arrependimento. Esqueço que também sou uma matadora cujas mãos tiraram uma vida há poucas horas.

Parece que fomos feitos um para o outro, como duas peças de um quebra-cabeça que de início parecem não se encaixar, mas que se adaptam perfeitamente quando vistas pelo mais improvável dos ângulos.


CAPÍTULO DEZ

Victor

A empregada de Fredrik volta para a casa bem cedo na manhã seguinte. Acordo assim que amanhece, e ela entra em casa quando estou tomando meu café no pátio dos fundos. Ela me vê através da porta de vidro ao passar pela sala, e então vem falar comigo no pátio.

— Gostaria de café da manhã, señor? — pergunta ela em espanhol.

Deixo a pasta com meu próximo serviço virada para baixo na mesinha de ferro batido.

— Obrigado, mas não vou comer — respondo, e depois aceno para Sarai, que está andando pela sala, procurando por mim. — Mas ela vai.

— Eu vou o quê? — pergunta Sarai ao passar pela porta de vidro aberta. Ela anda descalça pelo pátio de pedra, usando outra camiseta de Fredrik. Fico muito incomodado por ela ter que usar roupas dele em vez das minhas, mas a única roupa que tenho é a que estou usando, além de um short largo de corrida. O cabelo longo e castanho de Sarai está despenteado, pois ela acaba de acordar e sair da cama.

Ela se senta no meu colo e eu encaixo a mão direita entre suas coxas.

— Café da manhã.

Sarai boceja e estica os braços para o alto antes de apoiar a cabeça no meu ombro. Ponho a mão esquerda em sua cintura para mantê-la equilibrada no meu colo. O cheiro da pele e do cabelo recém-lavados de Sarai acelera meu corpo todo.

Ela faz uma careta sutil, meio que rejeitando a ideia.

— É melhor você comer.

Levantando a cabeça do meu ombro, Sarai olha para mim por um momento, pensativa, e depois dirige sua atenção para a empregada.

— Claro, eu gostaria de tomar café da manhã, se não for incômodo — diz, em espanhol.

Por um momento, a empregada parece surpresa por ouvir Sarai falando seu idioma nativo, mas ela logo se recompõe, assente e volta para dentro da casa.

— Acho que a gente já adiou essa questão o suficiente — diz Sarai. — Para onde é que vamos, Victor? O que eu vou fazer?

Estou pensando exatamente nisso desde que descobri que ela veio para Los Angeles e fez o que fez. Olho para a piscina, perdido em pensamentos, minha última tentativa desesperada de organizar as respostas na cabeça. Mas elas continuam tão fragmentadas e bagunçadas quanto sempre estiveram. Todas, menos uma.

— Sarai — digo, olhando novamente para ela —, você não pode voltar para casa. Eu sabia disso na primeira vez em que mandei você para o Arizona. A situação não estava nem de longe tão terrível quanto ficou depois, mas, agora que as coisas mudaram, você não pode mais voltar.

— Então vou ficar com você — rebate ela. Pela primeira vez na vida, não tenho coragem de protestar. Nem contra ela nem contra mim mesmo. A maior parte de mim, a parte humana e imperfeita, quer que Sarai fique comigo, e nada vai me impedir de fazer isso dar certo.

Mas sei que não vai ser fácil.

— Sim — digo, passando a mão em sua coxa macia —, você vai ficar comigo, mas há muitas coisas que precisa entender.

Ela se levanta do meu colo e fica de pé na minha frente, com um braço na frente do corpo e o outro cotovelo apoiado nele. Distraída, ela passa as pontas dos dedos no rosto macio, fitando o que parece ser o nada. Então ela me olha e balança a cabeça com uma expressão perplexa.

— Eu esperava que você fosse resistir mais. Qual é a pegadinha? A despeito do que aconteceu entre a gente ontem à noite, ou do que está acontecendo desde que nos separamos, nunca pensei que você fosse concordar em me levar junto.

— Você gostaria que eu resistisse? — Abro um sorriso capcioso.

Ela sorri também e deixa os braços relaxarem.

— Não. Com certeza não. E-eu só...

Levanto uma perna e apoio o pé no outro joelho.

— Nunca me imaginei em uma situação dessas. Não posso mentir e dizer que acho que vai dar certo. Muito provavelmente não vai, Sarai, e você precisa entender isso. — Ela parece ficar um pouco desanimada, o bastante para eu saber que minhas palavras sinceras a entristeceram mais do que ela se permite revelar. — Não posso mudar o meu jeito. Não só porque é tudo o que sei fazer, ou porque é o que faço melhor, mas também porque não quero. — Olho para Sarai. — Eu nunca vou parar de fazer o que faço.

— Eu nunca ia querer que você parasse — retruca ela, com certa intensidade. Sarai puxa uma cadeira próxima e a coloca diante de mim antes de se sentar. — Tudo o que eu quero, Victor, é ficar com você. Vou fazer qualquer coisa que você espere que eu faça, mas quero que me ensine...

Levanto a mão e a interrompo imediatamente.

— Não, Sarai, também não vou fazer isso. Não é assim que vai ser. — Sua expressão se anuvia e ela desvia o olhar, magoada com minha recusa. — Já falei, eu praticamente nasci nesta vida. Você ia levar quase o resto da sua para aprender a fazer o que eu faço, e mesmo assim não ia ficar boa o suficiente.

— Então, o que eu devo fazer? — pergunta ela, com um tom de ressentimento na voz. — Quero estar com você aonde quer que vá, mas não quero ficar à toa, tomando martínis na praia enquanto você sai para matar pessoas. Eu não sou inútil, Victor, posso fazer alguma coisa.

— Você pode fazer muitas coisas, sim — digo, interrompendo-a. — Mas fazer o que eu faço está totalmente fora de cogitação. Por que você quer tanto isso? — Levanto a voz quando sinto, de repente, uma necessidade desesperada de entender a resposta.

Sarai bate as palmas das mãos nas coxas nuas.

— Porque é o que eu quero.

— Mas por quê?

Ela ergue as mãos para os lados e grita:

— Porque eu gosto! Entendeu?! Eu gosto!

Pisco algumas vezes, completamente atordoado por essa confissão. Na verdade, essa era a última coisa que eu esperava ouvir de Sarai. Parte de mim sabia que ela era mais do que capaz de tirar a vida de alguém e dormir em paz toda noite depois disso, mas nunca previ que ela fosse gostar de matar.

Não sei ao certo como me sinto a respeito disso. Preciso de mais informações.

Eu me inclino para a frente e fico cara a cara com Sarai.

— Você gosta de matar? — pergunto, embora isso saia mais como uma afirmação. — Então, se alguém pedisse a você que tirasse a vida de outra pessoa, você faria isso sem questionar?

— Não — responde ela, franzindo o cenho. — Eu não mataria qualquer um, Victor, só homens que merecessem.

Homens? Esse lado de Sarai está ficando mais intrigante. Eu me pergunto se ela sabe o que acaba de dizer. Homens. Não pessoas em geral, mas homens.

Eu me afasto dela e me reclino na cadeira de novo, virando a cabeça para o lado, pensativo.

— Explique.

Ela também se recosta, encolhendo as pernas e apoiando os pés no assento, virando os joelhos para o lado.

— Homens como Hamburg. Homens como Javier Ruiz, Luis e Diego. Homens como o segurança que matei ontem. Willem Stephens, pelo simples fato de trabalhar para Hamburg sabendo o que o chefe faz. Homens como John Lansen e todos os outros que conheci naquelas festas de gente rica quando estava com Javier. — Seu olhar penetra o meu. — Homens que merecem ter a garganta cortada.

A gravidade das palavras de Sarai e a determinação em seu rosto me silenciam por um momento. Será possível que eu agora tenha não um, mas dois assassinos por perto que compartilham o gosto pelo derramamento de sangue? E, no exato momento em que o rosto surge na minha mente junto com o de Sarai, ouço o carro de Fredrik na entrada da garagem. Isso interrompe o momento intenso, e ambos olhamos para cima.

Instantes depois, Fredrik, vestido de maneira informal com um jeans escuro e uma camisa de grife, vem nos encontrar no pátio. Ele deixa o jornal do dia na mesa de centro e diz:

— É melhor você dar uma olhada nisso. — Então olha para Sarai por um momento. — A propósito, minhas roupas ficam bem em você.

Fuzilo Fredrik com o olhar, mas escondo meu ciúme antes que qualquer um dos dois perceba.

Sarai e eu olhamos para o jornal, mas sou eu quem o pega. Desdobrando-o, corro os olhos pelo texto até encontrar aquilo a que Fredrik se refere.

Quatro pessoas foram encontradas mortas a tiros em um hotel de luxo de Los Angeles, na madrugada passada. Somente dois corpos foram identificados, os de Dahlia Mathers, 23 anos, e Eric Johnson, 27 anos, ambos de Lake Havasu City, Arizona.

Algumas frases abaixo:

Sarai Cohen, também de Lake Havasu City, é procurada pela polícia para prestar esclarecimentos.

Acho que não importa que identidade Sarai usou para fazer o check-in no hotel, o rosto dela é o mesmo nas duas.

Ela arranca o jornal das minhas mãos antes que eu possa terminar.

— Não... — Ela cerra os dentes e seu rosto fica sério enquanto lê a notícia trágica sobre seus amigos. Ela procura meus olhos, mas logo se volta para o jornal, como se sua mente torcesse para ter lido tudo errado na primeira vez. — Falei para eles irem embora de Los Angeles! Dahlia disse que eles iam embora... — Seus olhos verdes encaram os meus, cheios de desespero e despedaçados pela culpa.

Fico de pé.

Sarai pega o jornal com as duas mãos e o rasga bem no meio, amassando as duas metades em seus punhos.

— Eles mataram Dahlia e Eric, porra! — ruge ela. — Eles estão mortos!

O jornal cai de suas mãos e voa pelo pátio de pedra.

Fredrik apenas me olha, esperando para ver o que vou fazer ou dizer. Ele não fala, mas percebo que quer.

— Sarai. — Por trás dela, ponho as mãos em seus ombros. — Eu vou cuidar disso.

Ela se vira para mim. Seu cabelo balança ao redor da cabeça antes de cair de novo nos ombros e seu rosto está ardendo de fúria.

— ELES MORRERAM POR MINHA CAUSA! COMO LYDIA!

Tentando acalmá-la, aperto seus ombros com força, de frente, e a seguro.

— Eu disse que vou cuidar disso — repito com ainda mais intensidade e sinceridade do que antes. Eu me inclino para a frente para manter seu olhar fixo no meu. — Vou fazer isso por você, Sarai. Hamburg e Stephens estarão mortos antes do fim desta semana.

Ela não ouve. Está me encarando, mas parece estar olhando através de mim. Seu peito sobe e desce com a respiração ofegante e irregular. Suas pupilas parecem pequenas, como buracos de grampos em uma folha de papel. O verde de seus olhos parece ter escurecido.

— Não — rebate ela, com a voz calma. — Não quero que você faça nada.

Absorta em pensamentos, ela dá um passo para trás, e minhas mãos caem de seus ombros.

— Vou fazer isso por você. Eu quero...

— Eu disse que não! — Ela dá mais dois passos e se vira, me dando as costas e olhando para a piscina. — Eu vou fazer isso — afirma ela, em voz baixa e decidida. — Vou matar os dois e não quero que você se meta.

— Acho que não...

Ela vira a cabeça, seus olhos escuros cruzando com os meus.

— Se você matar qualquer um deles, nunca vou perdoar você. Isso é assunto meu, Victor! Me deixe fazer pelo menos isso!

— Sarai, você não pode matá-los. — Eu me aproximo dela. — A única pessoa que vai morrer é você. Não vai conseguir...

— Estou cagando para isso! — Percebo que o objetivo de Sarai é inabalável. Ela volta para perto de mim. — Ou você me ajuda a fazer isso ou eu mesma vou descobrir como fazer. Eles vão morrer nas minhas mãos, não nas suas, nas de Fredrik nem nas de qualquer outra pessoa. Só nas minhas. Me ensine. Me mostre o que fazer. Qual é a melhor forma de agir para alguém como eu. Me ajude, ou vou morrer tentando por minha conta. Para mim, tanto faz.

— Eu não vou... você não pode — retruco, balançando a cabeça.

Sarai desiste e tenta me empurrar para fora de seu caminho. Mas não deixo que ela passe. Não posso, pois sei que cada palavra que ela disse foi a sério.

Eu a seguro pelo pulso, detendo sua marcha furiosa até a porta de vidro. Fredrik sai do caminho, assistindo ao desenrolar da cena com um brilho estranho nos olhos, que só posso interpretar como fascinação.

— Me solte!

— Você não vai embora. — Eu a prendo pelo pulso com força, e agarro o outro quando ela começa a me bater.

Ela quer descontar toda a raiva em mim, gritar na minha cara, me xingar com as palavras que tanto quer dizer a Hamburg e Stephens antes de matá-los, mas não consegue. A raiva, como sempre, a domina, e Sarai cai no choro.

Ela me disse uma vez que sempre chora quando está furiosa.

As lágrimas escorrem como rios por seu rosto. Sarai tenta mais uma vez se desvencilhar de mim, mas a seguro firme e faço uma pressão dolorosa sobre seus pulsos, tentando acalmá-la.

— Victor, por favor! Porra, basta me ensinar, cacete! Mesmo que seja matar os dois e mais ninguém! É tudo que eu peço! Nunca mais vou pedir a sua ajuda! POR FAVOR!

Sarai enfim para de se contorcer e desaba sobre meu peito. Eu a envolvo em meus braços, aninhando sua nuca nas mãos e pressionando o lado do meu rosto no alto de sua cabeça. Sarai chora com violência, seu corpo treme no meu abraço. Não são gritos de tristeza e dor, são gritos de culpa, raiva e da necessidade desesperada de vingar a morte de pessoas — até de Lydia — que poderiam ainda estar vivas, se não fosse por ela.

Fredrik olha para mim. Sei o que a expressão calma dele quer dizer. Ele acha que eu deveria dar a Sarai o que ela quer.

Mas não é a opinião de Fredrik que me faz decidir, no fim das contas. É minha necessidade de proteger Sarai, ainda que ela possa acabar morta no final.

Escolho o mais seguro dos dois caminhos malfadados.

— Eu vou ajudar você.


CAPÍTULO ONZE

Sarai

Levanto o rosto do peito de Victor, fungando as malditas lágrimas que mais uma vez me traíram em um momento de fraqueza.

— Você vai me ajudar a matá-los?

Ele assente.

— Vou.

— Obrigada — digo, baixinho.

Fico na ponta dos pés e dou um beijo suave em sua boca.

Da porta de vidro atrás de nós, a empregada diz com uma voz fraca:

— O café está pronto.

Ela nos fita com seus olhos escuros e curiosos, sem dúvida por ter ouvido a discussão enquanto estava lá dentro.

— Marta faz uns ovos mexidos ótimos — comenta Fredrik, com um sorriso radiante, como se nada tivesse acontecido. — Frita em gordura de bacon. — Ele junta os dedos nos lábios e os beija. — Adoro comida americana.

Ele vai atrás de Marta.

— Se bem que parece que ovos mexidos em gordura de bacon é uma comida do Sul, não? — pergunta ele, olhando para nós enquanto o seguimos.

Victor dá de ombros.

— Bem, Marta não é exatamente do Alabama — continua ele, ao entrarmos na cozinha. — Mas sabe cozinhar como se fosse.

Fredrik e Victor continuam tagarelando sobre comida, provavelmente para me fazer esquecer o que aconteceu. Mas, nesse momento, nada mais me importa além do rosto de Dahlia e Eric na memória. Sei que estou sendo punida. Pela vida. Pelo destino. Não sei por quem ou pelo quê, só sei que faria qualquer coisa para devolver a vida aos meus amigos.

Nós três nos sentamos à mesa com tampo de vidro da cozinha e comemos. E acho quase engraçado Fredrik fazendo Marta provar a comida antes de nos servir, como se ele tivesse aprendido essa técnica paranoica no Manual de Victor Faust.

Durante o café, que dura muito tempo por causa da conversa, Fredrik acaba liberando Marta pelo resto do dia. Isso acontece logo depois que ele começa a falar em sueco com Victor. Odeio não entender o que eles dizem, mas fica claro para mim que era por causa de Marta, e não por mim.

Marta pega a bolsa e se despede de nós, agradecendo a Fredrik por pagar um dia inteiro.

— Por que isso? — pergunto, depois que ela vai embora.

Apoio o garfo no prato ao terminar meu café.

— Temos muito o que conversar — explica Fredrik, tomando um gole de suco de laranja. — E ela não pode ouvir a conversa. — Ele aponta para mim e sorri. — E Marta, embora não pareça, ouve tudo o que acontece por aqui.

— Então por que vocês não continuaram conversando em sueco? — questiono.

— Você fala sueco? — rebate Victor.

— Não.

— Bem, você tem que participar da conversa — diz ele, deixando o copo d’água na mesa.

Sorrio. Nesse momento, me sinto parte deles pela primeira vez. Dos dois. Nós três sentados à mesa, que minutos depois já está livre dos pratos e dos copos, substituídos por pastas e fotografias de serviços de execução. Para mim, é meio surreal discutir detalhes de interrogatórios e assassinatos tão casualmente, como se estivéssemos falando do tempo. Mas também, pela primeira vez na vida, sinto que pertenço a algum lugar. Não estou mais andando por um túnel escuro, com as mãos à frente, procurando a porta. A porta está bem ali, à mostra, e já passei por ela. Enfim encontrei meu lugar na vida. E estou com Victor, o que para mim é mais importante do que tudo.

Finalmente estou com Victor.

Victor e eu saímos da casa de Fredrik nas colinas de Los Angeles no fim da tarde e dirigimos por onze horas até Albuquerque, Novo México. No caminho, paramos em um shopping, onde gasto praticamente uns 2 mil dólares em roupas e sapatos novos, acessórios e maquiagem, já que tudo o que tenho está no Arizona ou ficou no hotel em Los Angeles. Encho o banco de trás com sacolas de compras e caixas de sapatos, mas, lá pela nona hora de viagem, me arrependo de ter comprado tanta coisa. Tudo o que quero é me arrastar para o banco de trás e dormir, mas tenho que me conformar em ficar apertada na frente, encolhida em uma posição desconfortável no banco do Cadillac CTS preto de Victor, com a cabeça apoiada na janela. Desde que Victor saiu da Ordem, ele não tem mais a conveniência de usar jatos particulares para viajar. Se quisesse, com certeza poderia pagar um do próprio bolso, mas ser alguém que a Ordem quer matar significa não dar na vista e abrir mão de alguns luxos que poderiam levar Niklas até ele.

Ao que tudo indica, esses luxos abdicados incluem as residências extravagantes e multimilionárias nas quais Victor sempre preferiu morar. Sua casa em Albuquerque é bem diferente daquela onde ele morava na Costa Leste, com vista para o mar. Quando paramos na entrada de terra batida, vejo uma casa de tamanho médio, com paredes nuas de reboco bege e em um formato de caixa que me faz lembrar as casas que eu construía com peças de Lego quando era criança. Contudo, a julgar pelo jardim elaborado que envolve o caminho branco e liso até a porta e o lado esquerdo da casa, é óbvio que Victor não abriu mão de todos os luxos. Isso fica mais óbvio ainda quando entramos, pois o interior é tão bonito quanto o da casa de Fredrik, apesar do estilo mais interiorano e menos luxuoso. Vermelho-ferrugem, marrom e amarelo dominam o ambiente, com pé-direito alto sustentado por vigas e sarrafos de madeira escura, que fazem a casa parecer muito maior por dentro do que por fora. Uma aconchegante lareira de pedra ocupa uma das paredes da espaçosa sala de estar, com dois espelhos decorativos de metal pendurados acima dela. As paredes são amarelas, combinando com os pisos de terracota que parecem ocupar toda a casa.

— De uma coisa tenho certeza: você sempre consegue as melhores empregadas — comento, deixando várias das minhas sacolas no chão da sala.

— Desta vez, não — diz Victor atrás de mim. Ele deixa as outras sacolas que trouxe do carro perto do sofá de couro marrom-alaranjado. — Sou só eu.

— Sério? Mas está tudo tão limpo. Acho que você não passou muito tempo aqui, então, não é?

— Uns quatro meses. — Ele olha para mim. — Você gostou? Espero que sim, porque é o seu novo lar.

Um sorriso desponta no meu rosto.

Victor desabotoa e tira a camisa, deixando-a nas costas de uma poltrona de couro marrom. Observo discretamente seu corpo enquanto ele anda por um corredor longo e bem-iluminado com uma entrada em arco.

Sigo Victor.

— Claro que você sabe que não vamos ficar aqui para sempre. — Entramos em um quarto grande. — Mas é nosso lar por enquanto, pelo menos.

Ele tira a calça e me esforço ao máximo para não olhá-lo com intensidade demais, mas isso fica cada vez mais difícil.

— Vem cá — chama ele, parado diante de mim sem nada além de sua cueca boxer preta e apertada, que pouco ajuda a esconder o volume crescendo por baixo do tecido.

Engulo em seco, nervosa, embora não saiba a razão para esse nervosismo repentino, e me aproximo dele. Sinto um espasmo entre as pernas, e também não sei ao certo por que isso acontece. É como se meu subconsciente estivesse mais a par do que vai acontecer do que minha parte consciente. Ou então apenas perdi o controle sobre minha mente e só consigo pensar no que eu gostaria que acontecesse.

Olho para Victor, curiosa, inclinando um pouco a cabeça para o lado.

— Não sei bem o que é isso entre a gente — diz ele, com cuidado —, mas tenho certeza de que não quero que acabe. Seja o que for.

— Eu também.

Um pouco confusa quanto ao rumo que a conversa está tomando, inclino a cabeça para o outro lado e pergunto:

— Algum problema?

Ele balança a cabeça devagar.

— Não, problema nenhum.

— Bem, se você está preocupado que eu vá me apaixonar e grudar em você feito chiclete, não precisa.

— Você não está apaixonada por mim? — pergunta Victor, e não parece nada além de uma simples questão.

— Não, eu não amo você, Victor.

Ele parece concordar.

— Ótimo. Porque eu também não estou apaixonado por você.

Acho que nem eu nem ele sabemos de fato o que essa palavra significa em uma situação assim. Ambos exibimos a mesma expressão de aceitação, mas também parecemos um pouco confusos.

— Mas... eu, hã... — Entrelaço os dedos atrás das costas e olho para o chão, mexendo o pé como se estivesse tentando afundar os dedos na areia. Paro para encará-lo. — Mas eu, hã, talvez... preferisse que você não dormisse com mais ninguém. Eu... bom, acho que eu não ia gostar muito disso.

— Concordo — diz Victor, assentindo mais uma vez, com firmeza. — Acho que se eu pegar você com outro homem vou ter que matá-lo.

Balanço a cabeça algumas vezes, de maneira tão casual quanto ele.

— Com certeza — concordo eu. — O mesmo vale para você.

— De acordo.

Há um momento de silêncio constrangido entre nós, e corro os olhos pela cama king-size com dossel alto de cerejeira, que está a alguns passos de distância.

Victor se aproxima e eu me viro para observá-lo. Ergo os braços quando ele passa os dedos por baixo da minha camiseta e a tira.

— Também quero dizer que não me incomodo se você grudar em mim feito chiclete. — Ele enfia os dedos no elástico da minha calcinha. — Só para constar.

— Mesmo?

Victor se agacha diante de mim ao descer a calcinha por meus quadris e minhas pernas. Fica ali, me olhando de baixo, com a cabeça na altura do meu umbigo.

— Sim — responde ele. — Mas claro que você não pode me atrapalhar quando eu estiver tentando fazer um serviço.

— Sim, claro — digo, e minha pele reage aos seus lábios, que beijam a área logo acima da minha pélvis. — E-eu nunca atrapalharia o seu trabalho — gaguejo.

Minhas mãos começam a tremer quando ele desce e para entre as minhas pernas, abrindo meus grandes lábios com os polegares.

Afasto os joelhos só um pouco, o bastante para que ele tenha acesso.

— Mas nada de me abandonar em algum lugar distante enquanto você viaja pelo mundo para cumprir os contratos — digo, enfiando os dedos no cabelo dele, com a respiração irregular e acelerada. — Não quero ser dona de casa, entendeu?

Um suspiro agudo corta o ar perto da minha boca quando a ponta de sua língua lambe meu clitóris. Quase derreto ali mesmo, os músculos das coxas perdendo força a cada segundo.

— Sim, entendo o que você quer dizer — diz Victor, e me lambe de novo, explorando entre as minhas pernas. Jogo a cabeça para trás e puxo seu cabelo com mais força, enrolando-o nos dedos. — Você vai aonde eu for. Para eu poder ficar de olho em você.

— De olho em mim. Claro.

Que resposta patética. Só consigo pensar na cabeça de Victor no meio das minhas pernas, e naquela sensação quente e formigante que está amolecendo minhas entranhas.

Victor me ergue segurando minha bunda com firmeza e com minhas coxas em torno da cabeça. Então me lambe furiosamente por um momento antes de me jogar de costas na cama.

Com os joelhos dobrados no peito, vejo sua boca entrar no meio das minhas coxas e reviro os olhos enquanto ele me faz esquecer tudo.


CAPÍTULO DOZE

Sarai

O treinamento começa dois dias depois, mas não da maneira que eu esperava. Não sei o que eu esperava, na verdade, mas com certeza não era isso.

— O que a gente está fazendo aqui? — pergunto quando paramos no estacionamento de uma academia de artes marciais a uma hora de Santa Fé.

— Krav maga — esclarece Victor, e olho como se ele estivesse falando outra língua. Ele fecha a porta do carro e andamos até a fachada do prédio. — Não vou conseguir dedicar cem por cento do meu tempo ao seu treinamento. Por isso, três dias por semana, vou trazer você aqui. Dá para aprender muita coisa com o krav maga em pouco tempo. E o foco é a defesa pessoal...

— O quê? — Paro na calçada antes de passarmos pela porta. — Não sou uma donzela em perigo que acaba de ser assaltada em um estacionamento escuro, Victor. Não preciso de aulas de defesa pessoal. Preciso aprender a matar.

— Matar é a parte fácil — rebate Victor, sem rodeios. Ele abre a porta de vidro e faz um gesto para eu entrar. — Chegar a esse ponto sem morrer tentando é a parte difícil.

— Então você quer que eu aprenda a dar um chute no saco de um cara? — pergunto, bufando de desdém. — Acredite, eu já sou perfeitamente capaz disso.

Um sorriso discreto aparece nos cantos de seus lábios deliciosos.

Nesse momento, um sujeito alto, moreno e com músculos bem-definidos se aproxima de nós no grande salão. As janelas no alto da parede deixam o sol entrar. Dois grupos de pessoas estão treinando em pares, formando um semicírculo em um enorme tatame preto estendido por boa parte do chão.

O homem de braços musculosos e camiseta preta estende a mão para Victor.

— Faz quanto tempo? Três anos? Quatro?

Victor aperta a mão dele com firmeza.

— Uns quatro, acredito.

O homem me olha por um momento, e então Victor nos apresenta.

— Spencer, esta é Izabel. Izabel, Spencer.

— Prazer — diz Spencer, estendendo a mão.

Relutante, aperto a mão dele. Eles se conhecem? Não sei se gosto disso ou não. De repente, sinto que aquilo é alguma armação. Sorrio com desdém para aquele brutamontes alto e simpático.

Victor se vira para mim e diz:

— Não tem ninguém melhor para treinar você em defesa pessoal do que Spencer. Você está em boas mãos.

Spencer abre um sorriso tão largo que, se fosse um pouco maior, acho que daria para engolir minha cabeça. Ele está com os braços musculosos à sua frente, com as mãos cruzadas. As veias, grossas como cordas, que percorrem suas mãos e seus braços bem bronzeados me lembram das de um fisiculturista, mas ele não tem esse tamanho todo. Só é maior do que eu, o que me intimida mais.

Levanto um dedo para Spencer.

— Você nos dá licença um minutinho?

— Claro — responde ele.

Percebo o leve sorriso que ele dá para Victor.

Pego Victor pela mão e o puxo para o lado. Ao fundo, ouço, de maneira constante, corpos sendo jogados naquele tatame preto e a voz de um instrutor entoando comandos repetitivos e mandando os alunos fazerem “de novo”.

— Victor, acho que isto é perda de tempo. Não sei por que você me trouxe aqui. — Cruzo os braços. — Quero aprender essas coisas com você, não com um cara aleatório do tamanho de um ônibus. — Olho por cima do ombro, torcendo para que Spencer não tenha ouvido, embora eu tenha tomado o cuidado de sussurrar.

— Preciso me encontrar com Fredrik daqui a uma hora — explica Victor.

— Ah, então você vai me deixar com uma babá? — Franzo o cenho e balanço a cabeça para ele, totalmente incrédula, para não dizer ofendida.

— Não, não é isso.

— Mas eu quero que você me ensine — repito, forçando as palavras com rispidez entre meus dentes cerrados.

Victor suspira e balança a cabeça, parecendo aborrecido e frustrado comigo.

— Você não tem disciplina. Nenhuma. Igualzinha ao meu irmão. — Isso fere o meu orgulho. — Como vou ensinar alguma coisa para você, se não é capaz nem de fazer as coisas mais simples que eu peço?

Na mesma hora, me arrependo por agir feito uma criança. Solto um suspiro de resignação.

— Desculpe — digo, baixinho. — Pensei que fosse treinar com você, só isso.

— Você vai treinar comigo — garante Victor, pondo as mãos nos meus ombros. — Mas por enquanto precisa aprender o básico. E esta é a melhor maneira.

— Mas por que você não pode me ensinar o básico? — pergunto, com o mesmo tom resignado de antes. — Por que precisa ser ele?

Victor se inclina e beija de leve o canto da minha boca.

— Porque Spencer não tem medo de machucar você — explica ele, e isso me surpreende um pouco. — E não quero fazer isso, se eu puder evitar. Você só vai aprender se for real.

Arregalo os olhos.

— Espere aí... Então você está dizendo que aquele tanque de guerra — digo, apontando por cima do ombro com o polegar — vai me bater de verdade?

— Sim. É para isso que ele está sendo pago.

Parece que meu queixo acaba de bater no chão. De repente, sinto um calafrio percorrer minha espinha.

— Você não é obrigada a fazer isso, Sarai, mas, se realmente é o seu desejo, quero que vá com tudo. Não faça de qualquer jeito. Na vida real, quem atacar você não vai facilitar as coisas — afirma Victor, enquanto me encara com atenção, querendo desesperadamente que eu o entenda e confie nele. — Vou treinar com você no momento certo. Mas, quando eu fizer isso, vai ser brutal, Sarai. Vou atacar com a mesma força que um agressor de verdade usaria. Aprenda o básico primeiro, domine algumas habilidades para conseguir me enfrentar, e vou me sentir melhor para treinar você pessoalmente. Entendeu?

— É, acho que sim — respondo, assentindo. E estou sendo sincera.

Entendo perfeitamente agora. Nem me lembro da última vez que estive tão nervosa para fazer alguma coisa. Mas Spencer, o tanque, não me assusta tanto, na verdade, porque lá no fundo sei que, mesmo que Victor esteja lhe pagando para não facilitar comigo, ele não vai usar toda a sua força em mim. Se usasse, me mataria.

— Você quer ficar? — pergunta Victor.

— Quero.

— Ótimo.

Ele se inclina para meus lábios de novo e me beija com intensidade, tirando meu fôlego. Chocada por essa demonstração pública de afeto tão atípica, fico sem palavras quando ele desgruda os lábios dos meus.

— Volto para buscar você daqui a algumas horas.

— Tudo bem.

Nós voltamos para perto de Spencer, que parece um tanto empolgado para começar a treinar comigo, como se eu fosse um brinquedo novinho em folha com o qual ele não vê a hora de brincar.

— Pronta para começar a aprender krav maga? — pergunta Spencer.

— Estou — respondo, e meu olhar vai até as pessoas lutando no tatame preto atrás dele.

— Tem certeza de que você aguenta?

Quero dizer que sim com confiança, porque, afinal de contas, sempre imaginei que aulas de defesa pessoal consistissem em nada mais do que bloquear golpes, bater e sinalizar aos outros onde estou. Sempre imaginei mulheres comuns, que nunca lutaram na vida, todas de pé em um círculo, esperando a vez para derrubar o instrutor com alguns golpes “úteis”. Contudo, ao observar o grupo que está treinando atrás de Spencer, a intensidade agressiva e a violência de alguns golpes, começo a achar que esse tipo de defesa pessoal é bem diferente.

— Deve ser simples — digo, sem a segurança que queria.

— Se você diz — responde Spencer, com um sorriso conivente que deixa meus nervos ainda mais em frangalhos.

Mas não estou com medo. Nervosa, sim, mas não com medo. Estou pronta para fazer isso. Começo até a ficar ansiosa. Quero provar a Victor que dou conta.

E quero provar a ele que não sou nada parecida com seu irmão.

Victor vai embora. Antes do fim da primeira hora, estou exausta e tão dolorida que mal consigo andar em linha reta sem cambalear.

— Sempre se defenda e ataque ao mesmo tempo — explica Spencer, em pé, enquanto estou deitada no tatame e querendo me encolher em posição fetal. — E nunca vá para o chão. Isto não é luta greco-romana, Izabel. Se você vai para o chão, você morre.

Sem fôlego e tentando controlar a dor intensa que queima minha panturrilha, me levanto.

— Me ataque — ordena ele, elevando a voz acima dos poucos gritos de quem ainda assiste à aula depois da segunda hora. — Se não me atacar, eu ataco você!

Estou exausta demais.

— Não consigo! — Desisto e caio de bunda no tatame. — É demais. Hoje é meu primeiro dia e parece que é minha primeira luta de verdade. Cadê a parte em que você me mostra o que fazer e me ensina a dar os golpes?

— O que você quer mesmo é que eu pegue leve com você, não é?

— Isso! Cadê as instruções? As regras?

Minhas costas estão me matando. Deito no tatame, abrindo os braços acima da cabeça, e olho para o teto iluminado. Não quero mais saber de Spencer e de seu treinamento de imersão total. Só quero descansar.

As lâmpadas fluorescentes do teto começam a se mover depressa quando sinto de repente que estou sendo arrastada pelo tornozelo.

— Não há regras no krav maga — ouço Spencer dizer, mas percebo, meio segundo depois, que não é ele quem está me arrastando.

É uma mulher, com cabelo castanho-claro preso em um rabo de cavalo. Confusa com a mudança, fico distraída demais para notar o pé dela atingindo meu estômago. Berro de dor, me dobrando para a frente ao levantar as pernas e as costas do tatame ao mesmo tempo, com os braços cruzados sobre o abdômen. O golpe expulsa todo o ar dos meus pulmões.

— CHEGA! — grita Spencer, em algum lugar atrás de mim.

Sinto que vou vomitar.

A mulher para no mesmo instante e dá alguns passos para trás.

— Levante — manda Spencer, e decifro, em meio à dor que acaba com meu tórax, que sua voz está muito mais perto do que antes.

Ergo a cabeça e o vejo agachado ao meu lado.

— Vou deixar você recuperar o fôlego — diz ele, baixinho, oferecendo a mão. — Esta é Jacquelyn. Minha mulher.

Pego no antebraço dele, ele me segura e me põe de pé.

— Muito prazer — digo a ela, fazendo uma careta horrorosa de dor. — Ou em conhecer o seu pé, pelo menos.

Ela dá uma risadinha.

— O seu namorado me pagou para encher você de porrada, basicamente — afirma Spencer. — Mas, como não tenho o hábito de bater em mulher, achei melhor deixar minha esposa fazer as honras para que eu pudesse receber o pagamento do mesmo jeito.

— É a melhor maneira de aprender — intervém Jacquelyn. — Esse seu homem sabe o que está fazendo. É brutal? Claro. Necessário para sobreviver a situações de combate corpo a corpo? Com certeza. Indicado para peruazinhas delicadas que ficam pulando e gritando de medo quando veem uma aranha? Nem fodendo.

— Bom, eu não sou uma dessas — digo, com frieza. — Disso você pode ter certeza.

— Então prove — provoca ela, curvando-se para a frente com as mãos semiabertas ao lado do corpo. — Lembre, o krav maga não tem regras. Sempre defenda e ataque ao mesmo tempo. Sempre lute com agressividade. E nunca vá para o chão.

— Ok, essa parte eu entendi. Se eu for para o chão, estou morta.

Jacquelyn praticamente me dá uma surra durante o resto da aula. E, quando Victor finalmente chega para me buscar, meu nariz e meu lábio estão sangrando, meu olho direito está roxo e latejando e acho que quebrei um dente.

Isso continua dia sim, dia não pelas duas semanas seguintes.

Não levei muito tempo para ficar boa no krav maga. Spencer diz que tenho um talento natural e que devo ter “dispensado as Barbies quando era criança”.

Ele não faz nem ideia...

Estou ficando muito mais forte, muito melhor na minha técnica. Em certo momento, até consegui machucar Jacquelyn ao enfiar o cotovelo nas costelas dela. Acho que quebrei algumas, mas ela não admite. Não por orgulho, mas porque não acha certo reclamar nem deixar algo tão insignificante quanto uma costela fraturada impedir que ela lute.

Também não demorou para que eu começasse a simpatizar com ela. Quando Jacquelyn não está me enfiando a porrada, até gosto de sua companhia.

Só duas semanas se passaram. Até agora, não fiz nada além de treinar com Jacquelyn e aprender a usar armas com Victor. Ainda assim, apesar de curtir o treino e esperá-lo ansiosamente todo dia, fico frustrada por estar demorando tanto. Eu esperava que Hamburg e Stephens já estivessem mortos faz tempo, a essa altura.

Estou ficando impaciente.

— Victor, eu não pretendo lutar com Hamburg e Stephens. Só quero matá-los. Mais nada. Não entendo por que você está me fazendo passar por tudo isso.

Victor se descobre e sai da cama, andando nu pelo quarto.

Em silêncio, admiro a visão.

— Tem mais coisas envolvidas nisso do que você imagina — diz ele, desaparecendo ao entrar no banheiro.

Aquilo com certeza desperta meu interesse.

Eu me levanto e grito:

— É mesmo?

Jogo o lençol no chão e ando depressa atrás dele, parando à porta do banheiro e me apoiando no batente. Ele está abrindo a água do chuveiro.

Victor fecha o boxe de vidro, deixando a água correr por um momento, e então se vira para mim.

— Você não está fazendo todo esse treinamento só para matar Hamburg e Stephens. Se vai ficar comigo, independentemente de como vai ocupar o seu tempo, precisa aprender a lutar. Precisa saber identificar, diferenciar, carregar e disparar praticamente qualquer tipo de arma. Há muitas coisas que você precisa saber, e não temos tempo suficiente para aprender metade delas. — Ele abre a porta do boxe e estende o braço, deixando a água correr sobre a mão para sentir a temperatura.

Ele acrescenta:

— Esse treinamento não tem muito a ver com Hamburg e Stephens. Quero que você esteja sempre segura, por isso é vital que aprenda essas coisas agora.

Abro um sorriso leve, saboreando o momento. Quando nos conhecemos, eu não imaginava que Victor tivesse um só traço de preocupação ou emoção no corpo. Mas a cada dia testemunho que ele está se abrindo mais para mim. E vejo que isso está se tornando mais fácil para ele.

Volto ao assunto em questão, mas o que eu gostaria mesmo de fazer, a essa altura, é beijá-lo.

— Mas por que isso está demorando tanto? Quero acabar com essa história de uma vez.

Entro no banheiro e me sento na bancada da pia, apenas de calcinha.

— Porque, enquanto eu elaboro um plano para você chegar perto dos dois e matá-los, você precisa treinar, ocupar seu tempo o máximo possível. — Victor se aproxima de mim e segura meu rosto com as mãos. — Só estar no mesmo quarto comigo, só me conhecer, Sarai, já é uma sentença de morte diária. Cada vez que você sai por aquela porta, corre o risco de levar um tiro. O único motivo pelo qual a Ordem ainda não me encontrou é que Niklas é o único agente atrás de mim. Quer dizer, por enquanto. Ele não quer que ninguém mais me ache. Ele quer levar o crédito. O reconhecimento. Sobretudo porque foi ele o contratado para acabar comigo. — Victor pressiona os lábios na minha testa. Fecho os olhos, levanto os braços e seguro os pulsos dele. — Mas um dia, provavelmente daqui a pouco, vou ter que enfrentar meu irmão, pois a Ordem não vai dar todo o tempo do mundo para ele cumprir a missão. Ou ele me encontra ou eu o encontro. E um de nós vai morrer.

Com os dedos ainda envolvendo os pulsos dele, afasto delicadamente suas mãos do meu rosto. Olho para aqueles lindos olhos verde-azulados, perplexa, inclinando a cabeça para um lado.

— Por que não deixa isso para lá? Victor, entendo você querer matar Niklas antes que ele mate você, mas por que correr o risco de morrer procurando briga?

O vapor começa a encher o banheiro, embaçando o grande espelho acima do balcão, atrás de mim.

— Porque se Niklas não me encontrar, se não conseguir cumprir o primeiro contrato oficial desde que foi promovido a agente sob o comando de Vonnegut, eles vão matá-lo. — Victor apoia as mãos na bancada, à minha direita e à minha esquerda. — Ninguém, a não ser eu, vai matar meu irmão. Não me importa o que ele fez ou as diferenças que temos, ainda é meu irmão.

Faço que sim, compreensiva.

— Tudo bem, então quando tudo isso vai acontecer? Esse... confronto com Niklas? Minha chance de matar Hamburg e Stephens?

Victor abre um sorriso malicioso e eu passo as pontas dos dedos em seus lábios. Ele segura minha mão e beija meus dedos.

— Vamos ter que trabalhar nesse seu problema, Sarai. A sua impaciência e, claro, como já falei, a indisciplina. É o próximo item da nossa agenda.

— Não consigo evitar a impaciência. Aqueles dois babacas horríveis continuam por aí, levando uma vida de luxo, fazendo só Deus sabe o quê com sabe-se lá quantas mulheres. Isso sem falar que estão me procurando. Mataram meus amigos por minha causa. Dina continua escondida longe da casa dela e está com medo. A vida dela foi virada de cabeça para baixo por causa deles. Por minha causa. Quero que eles morram para que pelo menos Dina possa seguir a vida.

— O que você vai dizer para ela? — pergunta Victor. — Quando se encontrar com ela hoje, o que vai dizer?

Desvio o olhar e vejo o vapor revestir as altas paredes de vidro do boxe, ondulando acima do chuveiro em nuvens suaves. Começo a suar um pouco, o rosto, o pescoço e o colo úmidos.

— Vou contar a verdade para ela.

— Você acha uma boa ideia?

Encaro Victor.

— Acho justo. Ela é praticamente minha mãe. Fez muito por mim. Eu devo a verdade a ela. — Sorrio e acrescento: — Além disso, se você não concordasse com minha decisão de contar a verdade, já teria deixado isso bem claro, a essa altura.

Victor retribui meu sorriso e me segura pela cintura, me ajudando a descer da bancada.

— Acho que é melhor a gente se arrumar, se quiser chegar lá a tempo — observa ele, e me leva até o chuveiro. Tiro a calcinha antes de entrar no boxe com ele.

Victor disse a Dina e a mim que me levaria para vê-la alguns dias depois de o contato de Fredrik a tirar de Lake Havasu City. Mas as coisas não saíram conforme planejamos. Victor e Fredrik concordaram que era arriscado e cedo demais. Uma noite, ouvi os dois conversando sobre Dina e sobre como ela poderia estar sendo vigiada no dia em que o contato de Fredrik chegou para buscá-la. Victor queria ter certeza de que isso não havia acontecido, e que, se qualquer um de nós aparecesse por acaso no esconderijo de Dina, não cairia em uma armadilha. Mas, à medida que os dias passaram e Fredrik continuou vigiando a casa onde Dina estava se escondendo, ele e Victor tiveram certeza de que ela era, de fato, segura.

Hoje, enfim, vou vê-la pela primeira vez desde que viajei com Eric e Dahlia para Los Angeles.


CAPÍTULO TREZE

Victor

Sarai precisa estar preparada não só para as ameaças iminentes, mas também para a vida que a espera. Ela escolheu um caminho há muito tempo, no dia em que me conheceu, embora ainda não soubesse. Eu não queria enxergar, por isso lutei comigo mesmo contra a necessidade estranha e antinatural de ficar perto dela, porque queria que ela tivesse uma vida normal.

Não queria que ela terminasse como eu...

Mas eu sabia, oito meses atrás, antes de deixá-la naquele quarto de hospital ao lado da sra. Gregory, que um dia eu voltaria para ela. Nunca foi minha intenção nem meu plano, eu apenas sabia que acabaria acontecendo, de uma maneira ou de outra.

Por 28 dos meus 37 anos de vida, a única coisa que conheci foi a Ordem. Só conheci disciplina e morte. Nunca conheci amizade ou amor sem suspeitas e traições. Fui... programado para desafiar as emoções e ações humanas mais comuns, mas eu... Só quando conheci Sarai me permiti acreditar que Vonnegut e a Ordem não eram minha família, que me usaram como seu soldado perfeito. Eles me negaram a vida toda os elementos que nos tornam humanos. E não posso permitir que isso fique impune.

Um dia, vou matar Vonnegut e acabar com o resto da Ordem pelo que fizeram comigo e com a minha família. Uma família que eles destruíram. Sarai é minha família agora, e espero que Fredrik prove sua lealdade no teste final que farei com ele. Eles são minha família e não vou permitir que a Ordem também os destrua.

Mas, por enquanto, Sarai é o meu foco, e será pelo tempo que for necessário. Ela precisa ser treinada. Precisa absorver o máximo que puder, o mais rápido que conseguir. É impossível que um dia ela chegue ao meu nível. Ela nunca vai conseguir viver a vida de um assassino como eu, porque levaria metade da vida para aprender. É por isso que a Ordem nos recruta tão jovens. É por isso que Niklas e eu fomos levados quando éramos crianças.

Sarai nunca vai ser como eu.

Mas ela tem outros talentos. Tem habilidades que, mesmo depois de tantos anos de treinamento, eu jamais conseguiria superar. A vida de Sarai na fortaleza no México lhe garantiu um conjunto único de habilidades que não se aprendem em uma aula nem se leem em um livro. Ela mente e manipula com maestria. Pode se tornar outra pessoa em dois segundos e enganar uma sala cheia de gente que ninguém mais conseguiria enganar. Consegue fazer um homem acreditar no que ela quiser com muito pouco esforço. E não tem medo da morte. Ela é melhor do que uma simples atriz. Porque ninguém percebe a farsa até que seja tarde demais. Javier Ruiz foi o verdadeiro professor de Sarai. Ele lhe ensinou coisas que eu jamais conseguiria transmitir. Foi seu verdadeiro treinador, ensinando os talentos mortais que agora começam a defini-la como assassina. E, como todos os mestres perversos, Javier Ruiz também foi a primeira vítima de sua aluna favorita.

Assim como foi com as habilidades que Sarai já possui, para aprender a lutar e entender a luta de verdade, ela precisa vivê-la e respirá-la todos os dias. Forçá-la a treinar com Spencer e Jacquelyn é necessário para a sua sobrevivência porque ela precisa aprender o máximo que puder sempre que for possível. Mas são as habilidades que ela já tem que vão transformá-la em um soldado único.

São essas habilidades que nos tornam a dupla perfeita.

Antes disso, contudo, Sarai precisa entender a fundo do que é capaz. E precisa passar pelos testes. Todos eles, até aqueles que podem fazê-la me detestar.

Não tenho dúvidas de que isso vai acontecer. Ela passar nos testes, pelo menos. Se ela vai me detestar, ainda é discutível.

Chegamos a Phoenix logo depois do pôr do sol e somos recebidos à porta da casinha branca por Amelia McKinney, o contato de Fredrik. Ela é uma mulher linda, voluptuosa e com um longo cabelo louro, embora sua característica menos atraente seja seu grande par de peitos de plástico, que com certeza devem lhe dar dor nas costas. E ela usa roupas bem chamativas para uma mulher com doutorado que dá aula no ensino fundamental há cinco anos.

— Olá, Victor Faust — cumprimenta ela, com um tom sedutor, segurando a porta aberta para mim e Sarai. — Ouvi falar muito de você.

— Muito? Interessante.

Com uma das mãos, ela deixa aberta a porta de tela, dá um passo para o lado e acena para entrarmos na casa, sacudindo um monte de pulseiras com pingentes de ouro. Vários anéis enormes enfeitam seus dedos. E ela cheira a sabonete e a pasta de dente.

Coloco minha mão nas costas de Sarai e deixo que ela entre antes de mim.

— Fredrik me falou de você — conta Amelia, fechando a porta. — Mas acho que “muito” é exagero nesse caso, já que ele mesmo não parece saber muita coisa a seu respeito. — Ela gira a mão ao lado do corpo e acrescenta: — Mas imagino que o fato de eu saber tão pouco é o que torna você ainda mais intrigante.

— Nem pense nisso — intervém Sarai, parando nossa pequena fila indiana e se virando para encará-la.

Disciplina, Sarai. Disciplina. Suspiro em silêncio, mas admito que fico de pau duro ao vê-la tão superprotetora com o que lhe pertence.

Amelia levanta as mãos, por sorte em um gesto de resignação e não de desafio.

— Sem problemas, meu anjo. Não tem problema nenhum.

Sarai aceita essa bandeira branca e andamos mais pela casa, onde encontramos Dina Gregory na cozinha, preparando o que parece ser uma ceia de Ação de Graças para umas 15 pessoas.

Sarai corre para os braços abertos de Dina, e começam os sorrisos e as palavras de alívio e empolgação. Ignoro tudo isso por um momento, voltando minha atenção para assuntos mais prementes: o que está ao meu redor e essa mulher que não conheço.

Não confio em ninguém.

Amelia, como muitas mulheres do círculo de Fredrik Gustavsson, não sabe nada sobre a Ordem nem sobre o envolvimento que eu ou Fredrik temos com organizações do tipo. Ela não é o que Samantha, do Abrigo Doze no Texas, era para mim. Não, a relação de Amelia e Fredrik, embora tecnicamente não possa mais ser chamada assim, é muito mais... complicada.

Começo a vasculhar a casa em busca de câmeras e armas, tateando estantes, vasos de plantas, cacarecos e móveis, instalando minha própria parafernália secreta de espionagem no caminho.

— Fredrik disse que você talvez fizesse isso — diz Amelia, atrás de mim, embora eu tenha certeza de que ela não viu o pequeno aparelho que acabo de grudar embaixo da mesinha da TV. Ela ri baixo. — Eu limpei a casa muito bem antes de você chegar. Cadê as suas luvas de borracha? — brinca ela.

Não viro para trás nem paro o que estou fazendo.

— Você recebeu alguma visita desconhecida desde que a sra. Gregory veio para cá? — pergunto, debruçando-me sobre uma mesa ao lado de uma cadeira reclinável e examinando um abajur.

— Uau, você e Fredrik são mesmo os caras mais paranoicos que já conheci. Não. Não que eu lembre. Bom, um vendedor de TV por satélite veio uma vez semana passada, querendo que eu desistisse da TV a cabo. Além dele, ninguém.

Ela se aproxima de mim por trás e abaixa a voz:

— Por quanto tempo essa mulher vai ficar na minha casa? — Noto com a visão periférica que ela olha para a porta da cozinha, para garantir que ninguém consiga ouvi-la além de mim. — Ela é legal e tudo, mas... — Amelia suspira com ar culpado. — Olha, eu tenho 30 anos. Não moro com meus pais desde os 16. Ela está atrapalhando o meu jogo. Eu trouxe um cara aqui semana passada e ele pensou que ela fosse minha mãe. Ficou chato. Não transo desde que ela chegou.

Eu me viro para encará-la.

— E há quanto tempo você conhecia o sujeito que trouxe aqui?

— Hein?

— O homem. Há quanto tempo estava dormindo com ele?

Suas sobrancelhas finas e bem-cuidadas se juntam no meio da testa.

— E isso por acaso é da sua conta? Vai me perguntar em quantas posições a gente trepou também?

— Quanto tempo?

— Conheci o cara em um bar, sábado passado.

— Bem, ele conta como uma visita desconhecida.

Ela quer discutir, mas se contém.

— Ok. Tudo bem. O cara do satélite e o quase peguete do bar. Só eles.

— Antes que eu vá embora, vou precisar do nome desse cara e de qualquer outra informação que você possa me dar sobre ele, incluindo uma descrição detalhada.

Ela balança a cabeça e ri, contrariada.

— Não sei por que aguento essas merdas do Fredrik. — Então Amelia abre uma gavetinha da mesa e tira um bloco de notas e uma caneta.

— Porque você não resiste — observo, mas sem querer ser desagradável. Outra coisa que preciso praticar: ficar de boca fechada quando as mulheres dizem certas coisas que dispensam comentários.

Ofendida, ela arregala os olhos azuis brilhantes. Rabisca alguma coisa na folha, arranca-a do bloco e a enfia na minha mão.

— O que isso significa? — Contudo, antes de me dar a chance de cometer outra gafe, ela muda o tom de voz, chega perto de mim e sussurra de maneira sedutora: — Ei... O que vocês dois têm em comum, afinal?

Sei exatamente sobre o que Amelia está perguntando. Ela especula sobre as minhas preferências sexuais e provavelmente torce para que sejam tão sombrias quanto as de Fredrik. Mas ela está pisando em um território muito perigoso, com Sarai na sala ao lado.

— Não muito — respondo, enfiando no bolso a folha com o nome e a descrição do homem. Então continuo a investigar a casa dela.

— Que pena — comenta Amelia. — Qual é a dele, afinal? Ele fala alguma coisa de mim?

Por favor, pare com isso...

Suspiro e paro na entrada do corredor, olhando-a nos olhos.

— Se você tem perguntas para ou sobre Fredrik, faça o favor de perguntar diretamente a ele.

Amelia joga o cabelo para trás em um gesto orgulhoso e revira os olhos.

— Tudo bem. Só pergunta para o Fredrik quanto tempo mais vou ter que ficar de babá, ok?

Ela passa por mim e se junta a Sarai e à sra. Gregory na cozinha, enquanto aproveito a oportunidade para inspecionar o resto da casa.

Por falar em Fredrik, ele me liga quando estou a caminho do quarto de hóspedes.

— Tenho informações sobre a missão de Nova Orleans — diz ele do outro lado da linha. Ouço trânsito ao fundo. — O contato acha que o alvo voltou para a cidade.

— Por que ela acha isso?

— Ela acha que o viu em frente a um bar perto da Bourbon Street. Claro que ela pode ter imaginado isso, mas acho que a gente deveria investigar. Só por segurança. Se a gente esperar e ele voltar para o Brasil, ou onde quer que ele esteja se escondendo, pode levar mais um ou dois meses antes de termos outra chance.

— Concordo. — Eu me fecho no quarto de hóspedes. — Estou com Sarai na casa da Amelia agora, mas vou terminar as coisas por aqui mais cedo. Vá para Nova Orleans na minha frente e eu encontro você lá amanhã no início da noite. Mas não faça nada.

— Não fazer nada? — pergunta Fredrik, desconfiado. — Se eu encontrar o cara, posso prendê-lo e começar o interrogatório, pelo menos.

— Não, espere a gente. Quero que Sarai faça isso.

Fredrik fica em silêncio por um instante.

— Você não pode estar falando sério, Victor. Ela não está pronta. Pode estragar a missão toda. Ou morrer.

— Não vai acontecer nada disso — rebato com calma e confiança. — E não se preocupe, é você quem vai fazer o interrogatório. Só quero que ela prenda o sujeito.

Sei que há um sorriso macabro no rosto de Fredrik sem precisar vê-lo ou ouvir sua voz. Deixar que ele faça o interrogatório é praticamente o mesmo que dar uma seringa para um viciado em heroína.

— Vejo você em Nova Orleans, então — diz ele.

Desligo, enfio o celular no bolso de trás da calça preta e termino a inspeção da casa antes de ir para a sala e me juntar às mulheres, todas já com pratos de comida no colo.


CAPÍTULO CATORZE

Sarai

— Você deveria fazer um prato — digo para Victor quando ele surge no corredor. — Dina cozinha muito bem. Até melhor do que Marta. Mas não diga a Marta que eu falei isso. — Enfio uma enorme colherada da caçarola de feijão na boca.

Dina, sentada ao meu lado no sofá, aponta para Victor.

— Ela é suspeita. Mas, se você está com fome, é melhor comer antes que acabe.

— Precisamos conversar — anuncia Victor, de pé no meio da sala e bem na frente da TV.

Não gosto do tom dele.

— Tudo bem — digo, desencostando do sofá e deixando o prato na mesinha de centro. — Sobre o quê?

Victor olha de relance para Amelia. Ela está sentada na poltrona à minha frente, pegando um pedaço de pão de milho. Tenho a sensação de que Victor não quer que ela ouça a conversa.

— Amelia — diz Victor, enfiando a mão no bolso de trás da calça e pegando a carteira de couro —, preciso que você saia um pouco de casa. — Ele mexe na carteira, tira um pequeno maço de notas de 100 dólares e o deixa na mesa diante dela. — Se você não se importar.

Amelia olha para o dinheiro, apoia o garfo no prato e conta as cédulas.

— Sem problemas — concorda ela, com um sorriso satisfeito. Então se levanta, pega o prato e a lata de refrigerante e desaparece na cozinha.

Ouço o garfo raspando os restos de comida do prato para o lixo e a cerâmica tilintando no fundo da pia. Amelia passa por nós e segue até o corredor.

— Mas preciso que você saia agora mesmo — reitera Victor. — Não precisa trocar de roupa nem se arrumar.

— Posso pelo menos calçar a droga de um sapato? — pergunta ela, ríspida.

— Claro — responde Victor, assentindo. — Mas, por favor, não demore.

Amelia vai até o fim do corredor, resmungando irritada. Minutos depois, ela liga o carro e vai embora.

Victor olha para mim e para Dina.

— Não podemos ficar tanto tempo quanto o planejado — informa ele.

Dina também larga o prato e suspira com tristeza.

— Por que não? — pergunto.

— Surgiu um problema.

Olho para o meu prato, e o brilho metálico do garfo perde foco à medida que mergulho em pensamentos. Achei que teria tempo para encontrar a forma certa de contar para Dina tudo o que eu planejava contar. Agora estou desesperada tentando imaginar como começar a primeira frase.

— Dina — digo, respirando fundo. Eu me viro de lado para encará-la. — Eu matei um cara, meses atrás. — O rosto de Dina parece ficar rígido. — Foi em legítima defesa. Eu, hum... — Olho para Victor. Ele assente de leve, me motivando a continuar e garantindo que está tudo bem, embora eu saiba que ele não concorda cem por cento com o que estou fazendo. — Aliás, também matei um cara em Los Angeles na noite em que Dahlia e Eric foram encontrados mortos.

Dina ergue a mão enrugada e cobre a boca.

— Ah, Sarai... Você... o que você está...

— Dahlia e Eric foram assassinados por minha causa — interrompo, porque é evidente que ela não sabe o que dizer. — Não só a polícia de Los Angeles está atrás de mim para me interrogar, já que eu estava com eles, mas também os homens que mataram os dois estão na minha cola. É por isso que você está aqui.

— Meu Deus do céu. — Dina balança a cabeça sem parar, tira os dedos da boca e aperta os olhos cheios de pés de galinha em uma expressão preocupada.

Seguro a mão dela, que é fria e macia.

— Tem muita coisa que você não sabe. Onde eu estava de fato durante os nove anos em que minha mãe e eu ficamos desaparecidas. O que realmente aconteceu comigo. E com minha mãe. E eu não levei um tiro de um ex-namorado daquela vez em que Victor levou você para o hospital em Los Angeles. Eu levei um tiro de... — Olho para Victor de novo, mas decido por mim mesma não revelar essa informação. Ela não precisa saber de Niklas nem no que Victor e ele estão envolvidos. — Foi outra pessoa que atirou em mim. É uma história muito longa que você vai saber um dia, mas por enquanto só quero que você saiba a verdade sobre mim. — Passo os dedos com carinho nas costas da mão dela. — Você é a única mãe de verdade que eu tive. Fez tanta coisa por mim, sempre me apoiou, e eu devo essa honestidade a você.

Dina segura minha mão entre as dela.

— O que aconteceu com você, menina? — pergunta, com tanta dor e preocupação na voz que sinto um nó na garganta.

Começo a contar tudo, tanto quanto posso sem revelar qualquer informação sobre Victor e Niklas. Conto sobre o México e sobre as coisas que vi e vivi por lá. Conto sobre Lydia e sobre não conseguir salvá-la, apesar de ter lutado tanto. Omito sobretudo as relações sexuais que eu tinha com o cara que me mantinha presa, Javier Ruiz, um chefão mexicano do tráfico de drogas, armas e escravas, e só digo que eu estava lá contra a minha vontade e fui obrigada a fazer coisas que não queria. Dina cai no choro e me abraça forte, me balançando apertada contra o peito, como se eu é que estivesse chorando e precisasse de um ombro amigo. Ao menos dessa vez, contudo, não estou chorando. Só me sinto péssima por ter que contar tudo isso a ela, pois sei que isso a magoa muito.

Minutos depois, quando termino de contar tudo o que posso, Dina está sentada na beira do sofá, parecendo ligeiramente em choque. Mas ela está mais preocupada do que qualquer outra coisa.

Ela olha para Victor.

— Quanto tempo vou precisar ficar aqui? Gostaria muito de ir para casa. E quero levar Sarai.

— Isso não é uma boa ideia — argumenta Victor. — E quanto a Sarai, ela vai ter que ficar comigo. Por tempo indeterminado.

Engulo em seco ao ouvir as palavras dele, sabendo que Dina não vai aceitar isso.

— Então... Mas então o que isso significa? — pergunta ela, nervosa, voltando sua atenção somente para mim. — Sarai, você nunca mais vai voltar para casa?

Balanço a cabeça, cheia de culpa.

— Não, Dina, eu não posso. Preciso ficar com Victor. Estou mais segura com ele. E você está mais segura sem mim.

Dina balança a cabeça com ar solene.

— Você vai me visitar?

— Claro que vou. — Aperto a mão dela com delicadeza. — Eu nunca abandonaria você para sempre.

— Entendo — afirma ela, esforçando-se para aceitar.

Dina se volta para Victor.

— Mas eu não posso ficar na casa dessa mulher. Se você só me trouxe para cá para me proteger, prefiro voltar para casa. Não tenho medo desses homens. — Ela fica de pé e olha para mim. — Sarai, querida, eu nunca contaria nada para a polícia. Espero que acredite nisso.

Também me levanto.

— Sim, Dina, eu sei que você não contaria. O motivo para você estar aqui não tem nada a ver com a minha confiança em você. Trouxemos você para cá porque queremos que fique segura. Se alguma coisa acontecesse com você, principalmente por minha causa, eu jamais me perdoaria. Você é tudo o que me resta. Você e Victor. Você é minha família e eu não posso perdê-la.

— Mas eu não posso ficar aqui, querida. Já fiquei tempo demais. Amelia é gentil comigo, mas aqui não é a minha casa, e não quero ficar mais tempo do que ela quer que eu fique. Sinto como se minha presença fosse um fardo. Sinto falta das minhas plantas e da minha caneca de café favorita.

— Sra. Gregory — intervém Victor, impaciente, mas ainda respeitando os sentimentos dela. Ela se vira, mas ele faz uma pausa como se refletisse sobre algo. — Sarai não vai ficar segura se tiver que se preocupar com a sua segurança. Estou dizendo desde já: se a senhora voltar para casa, eles vão encontrar e matar a senhora assim que a virem, ou pior, vão sequestrá-la, torturá-la, gravar tudo em vídeo e usar as imagens para atingir Sarai. Entende o que estou dizendo?

A expressão grave e determinada de Dina desmorona sob um véu de sofrimento e resignação. Ela se vira para mim, com o semblante distorcido pela dor. Talvez esteja me pedindo uma confirmação das palavras de Victor, esperando que eu suavize a situação, que eu diga que ele só está sendo dramático. Mas não posso fazer isso. O que ele disse, embora brutal e sem rodeios, é exatamente o que ela precisa ouvir.

— Ele tem razão. Olhe, a gente vai dar um jeito nesses caras logo, tudo bem? Só preciso que você fique quietinha por mais um tempo, até a gente conseguir fazer isso.

— Mas concordo com a senhora — pondera Victor —, acho que não deve mais ficar aqui.

Dina e eu olhamos para ele ao mesmo tempo.

Victor continua:

— Quando estamos nos escondendo e ficamos tempo demais no mesmo lugar, com certeza somos encontrados.

— Então aonde ela deve ir? — pergunto, com várias possibilidades girando na cabeça, nenhuma das quais parece plausível. — Não me diga que quer levar Dina com a gente. Por mais que eu fosse adorar...

— Não, ela não pode ir com a gente — concorda Victor —, mas posso arranjar uma casa só para ela. Já fiz isso antes.

Afinal, Victor providenciou a casa em Lake Havasu City para mim e Dina.

— Mas você não disse que surgiu um problema e que a gente precisa ir embora antes do planejado? Não dá tempo de encontrar outra casa para ela. Isso levaria dias.

— Eu tenho uma casa — afirma Victor. — Fica longe do Arizona, mas acho que seria melhor para a senhora não ficar aqui por enquanto. O contato de Fredrik, o mesmo sujeito que trouxe a senhora para cá, pode levá-la a esse lugar. Está disposta a se mudar?

Dina se reclina no sofá, apertando as mãos uma na outra e as enfiando entre as pernas, vestidas em uma calça bege.

Eu me sento ao lado dela.

— Por favor, faça isso — peço a ela. — Vou me sentir muito melhor sabendo que você está segura.

Dina fica em silêncio por um longo momento, mas finalmente aceita.

— Estou velha demais para tanta emoção, mas tudo bem, eu vou. Só faço isso por você, Sarai.

Eu me inclino e a abraço.

— Eu sei, e é por isso que eu amo você.

— Onde fica a casa? — pergunto depois que deixamos Dina na casa de Amelia e pegamos a estrada. Ele não quis dizer antes a localização em voz alta, provavelmente porque não confiava no ambiente.

— Em Tulsa — responde Victor. — Tenho algumas casas espalhadas por aí, essa é uma delas. Nada luxuoso como a casa de Santa Fé, mas dá para morar nela, é aconchegante, e só a gente sabe que ela existe.

— Quem é esse contato de Fredrik, afinal?

— Ele não faz parte da Ordem, se é o que você quer saber. É só alguém que Fredrik conhece, um pouco como Amelia.

— Se não fazem parte da Ordem, quem eles são?

Victor me lança um olhar do banco do motorista.

— Amelia é só uma espécie de ex-namorada de Fredrik. Como os abrigos administrados pela Ordem, a casa de Amelia tem a mesma função. Mas temos muito menos preocupações em relação a ela, que nem sabe o que é a Ordem. Só o que ela tem é uma obsessão doentia por Fredrik e faz qualquer coisa que ele pedir.

— Ah, entendo — digo, embora não saiba direito se entendi. — Ela parece pegajosa.

— Pode-se dizer que sim.

— E o cara? Aquele que vai levar Dina até Tulsa?

Victor olha para a estrada, com uma das mãos relaxada na parte de baixo do volante.

— Ele é um dos nossos funcionários, na verdade. Um dentre uns vinte contatos que recrutamos desde que eu saí da Ordem. Nenhum deles sabe mais do que o necessário. Fredrik ou eu damos uma ordem, e, como em um emprego qualquer, eles obedecem. Claro que trabalhar com a gente é bem diferente de qualquer outro emprego, mas você entendeu.

— Eles não sabem o risco que correm por se envolver com você e Fredrik? E como vocês fazem para eles seguirem as ordens de vocês? O que eles fazem exatamente, além de levar Dina para um lugar qualquer, assim, do nada?

— Você está cheia de perguntas. — Victor sorri para mim. Uma carreta passa em disparada no sentido oposto, cegando-nos com os faróis altos. — Eles sabem do perigo, até certo ponto. Sabem que estão trabalhando para uma organização particular e são proibidos de falar sobre ela, mas nenhum dos nossos recrutas desconhece a discrição e a disciplina. Alguns são ex-militares, e todos foram escolhidos a dedo por mim. Depois de uma verificação completa do passado deles, é claro. — Victor faz uma pausa e acrescenta: — E eles fazem tudo o que pedimos, mas, para não metê-los em encrenca e proteger nossa operação, costumamos só pagar por tarefas simples. Vigilância. Compra de imóveis, veículos. E levar a sra. Gregory para um lugar qualquer, assim, do nada. — Victor sorri para mim de novo. — Como garantimos que eles sigam nossas ordens? O dinheiro é uma maneira formidável de influenciar pessoas. Eles são bem remunerados.

Apoio a cabeça no banco e tento esticar as pernas no chão do carro, já temendo a viagem longa.

— Um dos nossos homens estava no restaurante de Hamburg na noite em que eu encontrei você.

Tão depressa quanto apoiei a cabeça, levanto-a de novo e olho para Victor, em busca de mais explicações.

— A sra. Gregory só me ligou depois que você foi para Los Angeles — esclarece ele. — Eu estava no Brasil em uma missão, ainda procurando meu alvo depois de duas semanas. Fui embora assim que recebi a ligação da sra. Gregory, mas sabia que provavelmente não encontraria você a tempo, então entrei em contato com dois dos nossos homens que estavam em Los Angeles, dei a eles a sua descrição e alertei para que vigiassem o restaurante e a mansão de Hamburg. Eu sabia que você iria para um dos dois lugares.

Eu me lembro do homem atrás do restaurante depois que matei o segurança. O homem que misteriosamente me deixou fugir.

— Eu vi o cara. Fugi pela saída dos fundos e ele estava lá. Pensei que ele fosse um dos homens de Hamburg.

— Ele é — rebate Victor.

Pisco, atordoada.

— Ele e o outro homem foram dois dos meus primeiros recrutas. Los Angeles era a minha prioridade quando tudo isso começou.

— Você sabia que eu iria para lá.

Embora eu não queira tirar conclusões precipitadas e parecer iludida, sei que é verdade. Meu coração começa a bater como um punho quente. Saber a verdade, saber que Victor estava, durante todo aquele tempo, pensando em mim mais do que eu jamais poderia imaginar me deixa feliz e culpada. Culpada porque o acusei de me abandonar.

— Eu esperava que você esquecesse essa história. Mas, no fundo, sabia que você voltaria lá.

Ficamos em silêncio por um instante.

— Ele está bem? — pergunto, sobre o homem nos fundos do restaurante.

Victor assente.

— Está ótimo. Ele tinha sido contratado por Hamburg meses antes. Conhecia a planta do restaurante e sabia que a única saída alternativa da sala de Hamburg no andar de cima era a dos fundos. A propósito, ele quer pedir desculpa.

— Como assim? Ele me ajudou a fugir.

— A ordem que eu dei a ele foi para não deixar de jeito nenhum que você entrasse naquela sala. Foi a peruca platinada. Ele sabia que você tem cabelo castanho-avermelhado e comprido, não curto e louro. Quando ele se deu conta de quem era, Stephens já estava levando você. Ele não podia entrar porque a sala estava sendo vigiada, por isso foi até os fundos do restaurante, torcendo para conseguir entrar por ali de alguma forma, mas havia outros dois homens de guarda. Eles puxaram conversa e o seguraram ali, até que por fim ele os convenceu a deixá-lo vigiar o lugar sozinho. Logo depois, você saiu pela porta dos fundos.

Respiro fundo e apoio a cabeça no banco de novo.

— Bom, diga a ele que não precisa pedir desculpa. Mas por que ele não me disse logo quem era? Ou não me levou até você?

— Ele precisava segurar o Stephens tempo suficiente para você conseguir fugir, e o fato de ele continuar trabalhando para Hamburg ajuda. Ele não sabe o que os dois planejam nem coisa alguma sobre as operações. É só um segurança, nada além disso. Mas está lá dentro, e isso já é valioso para a gente.

Desafivelo meu cinto de segurança e me esgueiro entre os bancos da frente com a bunda empinada (de um jeito bem deselegante para uma dama, admito) para alcançar o banco de trás. Flagro Victor admirando a cena enquanto me espremo para passar, e isso me faz corar.

— Só tenho mais uma pergunta a acrescentar à lista.

— O que seria? — pergunta ele, zombando de mim.

— Por quanto tempo a gente vai ter que viajar assim? — Estico as pernas no banco de trás e me deito. — Sinto muita falta dos jatinhos particulares. Essas viagens longas de carro vão acabar me matando.

Victor ri. Acho isso incrivelmente sexy.

— Você está dormindo com um assassino, fugindo todo dia de homens que querem matar você e acha que vai morrer por falta de conforto. — Ele ri de novo, e isso me faz sorrir.

— É, acho — digo, me sentindo só um pouco ridícula. Não posso negar a realidade, afinal, por mais sem sentido que ela seja.

— Não vai ser por muito mais tempo — responde Victor. — Não podemos chamar atenção até que eu consiga me livrar completamente de Vonnegut. Ele tem contatos em muitas áreas, e transportes luxuosos, confortáveis e secretos estão no topo de sua lista de prioridades, por motivos óbvios. Dou menos na vista viajando de trem do que de jatinho particular.

Satisfeita com a resposta, não digo mais nada sobre o assunto e olho para cima, para o teto escuro do carro.

— Só para constar — digo, mudando de assunto —, eu não estou só dormindo com um assassino. Estou muito envolvida com ele.

— É mesmo? — pergunta Victor, e sei que ele está sorrindo.

— Sim, temo que seja verdade — digo, em tom de brincadeira, como se fosse algo ruim. — E é um envolvimento bem pouco saudável.

— É mesmo? Por que você acha isso?

Suspiro, dramática.

— Ah, sei lá. Talvez porque ele nunca vai conseguir se livrar de mim.

— Pegajosa. Como Amelia — provoca Victor, tentando me irritar.

E ele consegue. Eu me levanto um pouco e dou um soco de leve em seu ombro. Ele se encolhe, fingindo dor, mesmo com um sorriso largo no rosto.

— Longe disso — digo, e volto a me deitar. — Nem ferrando que eu vou fazer tudo o que ele quer, como a Amelia.

Victor ri baixinho.

— Bem, pelo jeito ele vai ter que aguentar você para sempre, então.

— Vai, e para sempre é muito tempo.

Ele faz uma pausa e então diz:

— Bom, só para constar, algo me diz que ele não gostaria que fosse diferente.

Adormeço no banco de trás muito tempo depois, com um sorriso no rosto que pareceu continuar ali pelo resto da noite.


CONTINUA

CAPÍTULO NOVE

Sarai

Estou mordendo o lábio por dois motivos: porque estou torcendo para que seja uma boa notícia e porque estou sexualmente frustrada. Victor fala com Fredrik por menos de dois minutos, desliga e digita outro número. Quando consegue falar com Dina, ele me passa o celular.

Pego o aparelho e o encosto no ouvido.

— Dina?

— Sarai, meu Deus, onde você está? O que está acontecendo? Eu estava sentada na sala vendo TV e um homem bateu na porta. Eu não ia deixar ele entrar, fiquei desconfiada na hora; estava quase pegando minha espingarda. Mas ele disse que queria falar de você. Ah, Sarai, fiquei com tanto medo de que tivesse acontecido alguma coisa! — Ela finalmente respira.

— Você está bem? — pergunto, baixinho.

— Sim, sim, estou ótima. O melhor que eu poderia estar. Mas ele me falou que iríamos para a delegacia encontrar você. Até me mostrou um distintivo. Não acredito que caí nessa. O cavalheiro mentiu para mim. — Dina para de falar e abaixa a voz, como se estivesse sussurrando para ninguém ouvir. — Ele me levou para a casa de uma prostituta. O que está acontecendo? Sarai...

— Vai ficar tudo bem, Dina, prometo. E não se preocupe. Seja lá quem more nessa casa, duvido que seja uma prostituta.

Os olhos de Victor cruzam com os meus. Desvio o olhar.

— Onde você está? Quando vai voltar? Sei que você está metida em alguma encrenca, mas sempre pode me contar tudo.

Gostaria que isso fosse verdade. Mais do que tudo, neste momento. Mas a verdade maior é que não sei como responder às perguntas de Dina. Victor deve ter percebido a fisionomia confusa no meu rosto, porque tirou o telefone da minha mão.

— Sra. Gregory — diz ele ao telefone. — Aqui é Victor Faust. Preciso que a senhora me ouça com bastante atenção. — Ele espera alguns segundos e continua. — A senhora vai precisar ficar onde está pelos próximos dias. Vou levar Sarai para vê-la em breve, e vamos explicar tudo, mas, até lá, precisa ficar escondida. Não, sinto muito, mas a senhora não pode voltar... Não, não é seguro lá. — Ele assente algumas vezes, e percebo, pelas leves rugas que se formam entre seus olhos, que ele não se sente à vontade falando com ela, como se alguém colocasse de repente um bebê no colo dele. — Sim... Não, me escute. — Ele perde a paciência, então vai direto ao assunto. — É uma questão de vida ou morte. Se a senhora sair ou ligar para qualquer conhecido, vai acabar morrendo.

Tenho um sobressalto e me encolho com essas palavras, não por serem verdade (isso eu já sabia), mas porque fico imaginando a reação de Dina a elas. Só posso imaginar o que ela deve estar pensando nesse momento, como deve estar apavorada. Apavorada por mim, não por si mesma, e isso faz doer ainda mais.

— Sim, ela está bem — afirma Victor mais uma vez para tranquilizá-la. — Só mais alguns dias. Eu vou levar Sarai aí.

Falo com Dina por mais alguns minutos, contando o que posso, mas sem revelar demais, para acalmá-la. Claro que isso não está ajudando muito, considerando as circunstâncias. Nós desligamos e eu fico ali na sala, me sentindo muito diferente de como me sentia antes da ligação.

Acho que enfim caiu a ficha do tamanho da merda que fiz.

Antes, quando achava que era eu quem corria o maior perigo, e depois que disse para Eric e Dahlia saírem de Los Angeles, eu estava preocupada, mas não tanto assim. Os danos que causei afetam mais do que minha própria segurança. Sem querer, pus todas as pessoas que conheço e amo em perigo.

A realidade de tudo isso, dos meus atos e das consequências em efeito dominó, o fato de Victor ter me deixado, de eu ter tentado levar uma vida normal e fracassado; não consigo mais. Não suporto mais nada disso. Cacete, até a dorzinha por ter encontrado Dahlia com Eric está começando a me incomodar. Não por causa de Eric, ou porque ele era meu “namorado”, mas porque o que eles fizeram não me afetou como deveria ter afetado.

Sou uma aberração. E, no momento, não consigo perdoar Victor por me fazer passar por essa situação, por me jogar em uma vida que nós dois sabíamos que não serviria para mim e por esperar que eu me adaptasse. Eu não queria desde o começo. E foi exatamente por isso que não deu certo.

As lágrimas começam a inundar meus olhos. Deixo que caiam. Não me importa.

Sinto a presença de Victor atrás de mim, mas antes que ele me toque me viro para encará-lo com a raiva distorcendo meu rosto. E enfim certas coisas que eu queria dizer a ele depois de todo esse tempo saem, em uma tempestade de palavras furiosas.

— Você me abandonou, porra! — Bato com as palmas das mãos em sua camisa social justa. — Você deveria ter me matado e pronto! Você consegue imaginar o que me fez passar?! — Lágrimas cheias de raiva escorrem dos cantos dos meus olhos.

— Me desculpe...

Franzo a testa na mesma hora.

— Você quer se desculpar? — Solto o ar ruidosamente. — É só isso que você consegue dizer? Me desculpe?

No fundo, sei que nada disso é culpa de Victor, sei que ele só fez o que fez para me proteger. Mas a maior parte de mim, a parte que não quer acreditar que eu não tenho mais salvação, quer pôr a culpa em qualquer um, menos em mim mesma.

As lágrimas começam a me fazer engasgar.

— Toda santa noite — disparo, apontando com raiva para o chão, meu rosto retorcido de raiva e rancor —, todas as horas de todos os dias, eu pensava em você. Só em você, Victor. Eu vivia cada dia com esperança, acreditando de coração que você ia voltar para mim. Os dias passavam e você não aparecia, mas nunca perdi a esperança. Eu pensava comigo mesma: Sarai, ele está vigiando você. Ele está testando você. Ele quer que você faça o que ele disse, que tente ser como todo mundo, que tente se misturar. Quer que você prove para ele que é forte o suficiente para enfrentar qualquer situação, se adaptar a qualquer estilo de vida. Porque, se você não consegue fazer algo tão simples quanto levar uma vida normal, nunca vai conseguir viver com ele. — Mordo o lábio inferior e tento sufocar as lágrimas. Balanço a cabeça devagar. — Isso era o que eu pensava. Mas fui idiota por achar que você tinha alguma intenção de voltar para mim. — Um tremor induzido pelo choro percorre meu peito.

Victor, com o semblante angustiado que nunca imaginei ver nele, se aproxima. Recuo, balançando a cabeça sem parar, esperando que ele entenda que não estou pronta para ficar muito perto. Quero ficar sozinha com a minha dor.

— Sarai? — diz ele, baixinho.

— Não — digo, recusando-o com um gesto. — P-por favor, me poupe das desculpas e dos motivos pelos quais sei que não posso culpar você. Eu sou egoísta, ok? Eu sei! Já sei que você fez o que precisava fazer. Já sei...

— Não, não sabe.

Levanto os olhos para encontrar os dele.

Victor se aproxima. Desta vez não me afasto, minha mente está paralisada por suas palavras, por mais escassas ou vagas que elas sejam. Ele segura meus cotovelos e descruza minhas mãos. Seus dedos roçam de leve a pele sensível da parte interior dos meus braços, descem até encontrarem minhas mãos e as seguram.

— Eu saí da Ordem principalmente por causa de você, Sarai — explica Victor, e o resto do meu corpo fica paralisado. — Quando Vonnegut descobriu que eu estava ajudando você, ele soube... — Ele faz uma pausa, parecendo estar vasculhando sua mente à procura das palavras menos perigosas. — Ele soube que eu me comprometi...

Jogo as mãos para cima.

— Fale inglês! Por favor, diga de uma vez sem se esforçar tanto para fazer rodeios! Por favor!

— Vonnegut soube que eu tinha... começado a gostar de você.

Fico paralisada e meus lábios se fecham. Meu coração bate descompassado. Minhas lágrimas parecem secar em um instante, só as que molham minhas bochechas continuam escorrendo.

— Como eu era o Número Um de Vonnegut, seu “favorito”, a última coisa que ele queria era mandar me matar. Ele me afastou do serviço, me desligou por um tempo, até... que eu criasse juízo.

Faço uma cara de “que-droga-isso-significa”.

— Pode chamar de lavagem cerebral — acrescenta Victor.

Ele afasta a ideia com um gesto.

— Não importa. O que importa é que ele ia me dar uma única chance de provar que o meu sentimento por você era só um lapso, e que nunca mais iria acontecer. Pouquíssimos agentes têm uma segunda chance na Ordem.

— Um lapso? — Eu me sento na mesinha de centro. Olho para Victor e digo: — Para mim, parece que Vonnegut queria que você provasse que não é humano, mas sim o soldado obediente a ele, incapaz de ter emoções. Que babaca desequilibrado.

Victor assente e se agacha diante de mim, entrelaçando os dedos, com os cotovelos apoiados nas coxas.

— Vonnegut mandou que eu matasse você — conta ele em voz baixa, sustentando o meu olhar. — Para provar a mim mesmo. Eu disse que ia fazer isso, que queria fazer, provar que eu era digno de confiança, e ele me soltou. Claro que eu não tinha nenhuma intenção de matar você. Parti naquele dia e procurei um esconderijo. Niklas, que só conheceu a Ordem a vida inteira, decidiu ficar. Pensei que talvez ele só precisasse de um tempo para entender o que estava acontecendo e decidir o que era melhor para ele. Eu também estava me escondendo de Niklas. Sem saber onde eu estava, ele não precisaria enganar Vonnegut nem achar que precisava escolher entre mim e ele. Mas aí Fredrik me contou que Niklas foi contratado para me matar e está me procurando desde então.

— Que desgraçado — comento, balançando a cabeça sem acreditar, mas depois penso de novo. — Você disse que saiu da Ordem principalmente por minha causa. Além de mim, qual foi o outro motivo?

— Isso já estava para acontecer havia muito tempo — conta Victor. — Quando precisei matar meu pai para salvar meu irmão, entendi que era hora de sair. — Seus dedos fortes acariciam os meus, mais delicados. — Você me deu a motivação final de que eu precisava para fazer isso de uma vez.

Com a ponta dos dedos, acaricio seu rosto com a barba um pouco por fazer. Victor continua a me encarar, seus olhos sondando os meus através do pequeno espaço entre nós, cheios de paixão e compreensão. Eu me curvo e beijo seus lábios.

— Eu sinto muito pelo seu irmão — digo, baixinho.

Ele roça os lábios nos meus, e a sensação se espalha pelo meu corpo até os dedos dos pés, como uma dose de uísque.

— Eu não estava testando você, Sarai. — Ele me beija de novo.

— Então o que você estava fazendo? — Eu o beijo também e derreto ao sentir suas mãos se movendo por minhas coxas.

Victor me ergue nos braços, envolvendo minhas pernas em sua cintura, minha bunda acomodada nas palmas de suas mãos enormes. Meus dedos sobem pelos lados de seu rosto e tocam sua boca antes que meus lábios toquem também.

— Eu estava esperando o momento certo — diz ele enquanto sua boca encontra meu pescoço.

Enfio os dedos em seu cabelo castanho curto, erguendo o queixo ao sentir sua boca explorando meu pescoço e meu maxilar. Meus olhos estão fechados, as pálpebras pesadas, e sinto um formigamento quente ao qual sei que não dá para resistir. Victor me carrega pela sala, embora eu não saiba para onde nem me importe com isso. Aperto mais as pernas nuas ao redor de sua cintura, sentindo a superfície fria e lisa de seu cinto de couro pressionando o interior das minhas coxas. Meus dedos estão trabalhando nos botões de sua camisa, abrindo-os com facilidade.

Victor não responde às minhas perguntas, mas isso também não me importa.

Os lábios dele cobrem os meus, a umidade quente de sua língua se entrelaçando avidamente com a minha. Sem parar de me beijar, Victor me faz apoiar os pés no chão para tirar minha calcinha, uma perna de cada vez. Ele ergue meus braços e tira minha camiseta, jogando-a no chão. Minhas mãos mexem no cinto dele, movendo a lingueta do buraco e puxando a tira de couro de uma só vez em um movimento rápido. Ele tira a calça e a cueca boxer preta. Minha boca recebe seu hálito quente e ofegante enquanto ele me carrega mais uma vez e pressiona minhas costas na parede, como se não quisesse esperar para chegarmos ao quarto de hóspedes. Também não quero esperar. Já esperamos demais.

Sinto seu pau entrando em mim, e, antes que ele deslize até o fundo, uma descarga de prazer corre pelas minhas coxas e sobe pela coluna, relaxando meu pescoço e fazendo minha cabeça se apoiar na parede. Sinto meus olhos formigando e ardendo. A umidade morna entre minhas pernas é inundada por um êxtase quente e trêmulo.

Ele mete uma vez bem fundo e se mantém ali, segurando meus quadris, com minhas costas pressionadas contra a parede fria. Abro os olhos devagar, ainda sem controlar direito as pálpebras, e o encaro. Ele me fita com a mesma intensidade voraz. Minha respiração é curta e irregular quando escapa dos meus lábios entreabertos. Meus braços estão ao redor dele, em um abraço apertado, meus dedos cravados nos músculos rijos de suas costas.

— Eu queria isso há tanto tempo — digo, ofegante.

— Você não faz ideia... — rebate Victor, para então me devorar com um beijo, tão violento que quase perco o controle dos meus músculos.

Minhas coxas se contraem em sua cintura quando ele mete seu pau em mim de novo. Estremeço e gemo, minha cabeça bate com força na parede. Ele segura meu corpo no lugar com os braços encaixados nas minhas coxas, forçando seu quadril contra o meu, e eu sinto pequenas explosões no estômago a cada investida.

Minhas costas se arqueiam, meus seios ficam expostos a ele, que cobre um mamilo com a boca. Ergo os braços acima da cabeça, procurando alguma coisa onde eu possa me segurar para cavalgá-lo, mas não encontro nada. Envolvo seu pescoço com os braços para sustentar meu peso e rebolo em sua virilha, gritando e gemendo, desesperada para mergulhar cada centímetro do seu pau duro tão fundo quanto possível. Seus dedos afundam dolorosamente nas minhas costas. Sua língua se enrosca na minha, seus gemidos atravessam meu corpo.

Gozo rápido e forte, minhas pernas e o ponto entre elas se contraindo ao redor dele, meus músculos tremendo. Ele goza segundos depois e segura meu corpo bem firme no lugar, com minha bunda em suas mãos musculosas, para se esvaziar dentro de mim.

Nesse momento, não estou nem aí para as consequências do que acaba de acontecer. Mas só nesse momento.

Com a cabeça apoiada no ombro dele, Victor me carrega pelo corredor até o banheiro espaçoso em frente ao quarto de hóspedes. Ele me senta na bancada e fica de pé no meio de minhas pernas nuas.

— Não se preocupe. — Ele dá um beijo na minha testa e abre a porta de vidro do boxe do chuveiro.

— Com o quê? — pergunto, confusa.

Ele gira a torneira, que range, e regula a água quente e a fria até encontrar a temperatura desejada. Eu o observo da bancada, o modo como seu corpo alto e escultural se move, as curvas de seus músculos entalhadas em um desenho poético ao redor de seus quadris, suas panturrilhas enrijecendo quando ele anda.

Ele volta para perto de mim e termino de tirar sua camisa, deslizando-a por seus braços musculosos.

— Você não vai engravidar — diz ele, e me manda descer da bancada e segui-lo até o chuveiro. — Não de mim, pelo menos.

Um pouco surpresa, deixo por isso mesmo.

Ele fecha a porta do boxe e começa a lavar meu cabelo. Eu me perco naquela proximidade, no modo como suas mãos exploram meu corpo com tanta precisão e desejo.

Por muito tempo, esqueço que ele é um assassino cujas mãos tiraram muitas vidas sem sequer um pensamento de remorso ou arrependimento. Esqueço que também sou uma matadora cujas mãos tiraram uma vida há poucas horas.

Parece que fomos feitos um para o outro, como duas peças de um quebra-cabeça que de início parecem não se encaixar, mas que se adaptam perfeitamente quando vistas pelo mais improvável dos ângulos.


CAPÍTULO DEZ

Victor

A empregada de Fredrik volta para a casa bem cedo na manhã seguinte. Acordo assim que amanhece, e ela entra em casa quando estou tomando meu café no pátio dos fundos. Ela me vê através da porta de vidro ao passar pela sala, e então vem falar comigo no pátio.

— Gostaria de café da manhã, señor? — pergunta ela em espanhol.

Deixo a pasta com meu próximo serviço virada para baixo na mesinha de ferro batido.

— Obrigado, mas não vou comer — respondo, e depois aceno para Sarai, que está andando pela sala, procurando por mim. — Mas ela vai.

— Eu vou o quê? — pergunta Sarai ao passar pela porta de vidro aberta. Ela anda descalça pelo pátio de pedra, usando outra camiseta de Fredrik. Fico muito incomodado por ela ter que usar roupas dele em vez das minhas, mas a única roupa que tenho é a que estou usando, além de um short largo de corrida. O cabelo longo e castanho de Sarai está despenteado, pois ela acaba de acordar e sair da cama.

Ela se senta no meu colo e eu encaixo a mão direita entre suas coxas.

— Café da manhã.

Sarai boceja e estica os braços para o alto antes de apoiar a cabeça no meu ombro. Ponho a mão esquerda em sua cintura para mantê-la equilibrada no meu colo. O cheiro da pele e do cabelo recém-lavados de Sarai acelera meu corpo todo.

Ela faz uma careta sutil, meio que rejeitando a ideia.

— É melhor você comer.

Levantando a cabeça do meu ombro, Sarai olha para mim por um momento, pensativa, e depois dirige sua atenção para a empregada.

— Claro, eu gostaria de tomar café da manhã, se não for incômodo — diz, em espanhol.

Por um momento, a empregada parece surpresa por ouvir Sarai falando seu idioma nativo, mas ela logo se recompõe, assente e volta para dentro da casa.

— Acho que a gente já adiou essa questão o suficiente — diz Sarai. — Para onde é que vamos, Victor? O que eu vou fazer?

Estou pensando exatamente nisso desde que descobri que ela veio para Los Angeles e fez o que fez. Olho para a piscina, perdido em pensamentos, minha última tentativa desesperada de organizar as respostas na cabeça. Mas elas continuam tão fragmentadas e bagunçadas quanto sempre estiveram. Todas, menos uma.

— Sarai — digo, olhando novamente para ela —, você não pode voltar para casa. Eu sabia disso na primeira vez em que mandei você para o Arizona. A situação não estava nem de longe tão terrível quanto ficou depois, mas, agora que as coisas mudaram, você não pode mais voltar.

— Então vou ficar com você — rebate ela. Pela primeira vez na vida, não tenho coragem de protestar. Nem contra ela nem contra mim mesmo. A maior parte de mim, a parte humana e imperfeita, quer que Sarai fique comigo, e nada vai me impedir de fazer isso dar certo.

Mas sei que não vai ser fácil.

— Sim — digo, passando a mão em sua coxa macia —, você vai ficar comigo, mas há muitas coisas que precisa entender.

Ela se levanta do meu colo e fica de pé na minha frente, com um braço na frente do corpo e o outro cotovelo apoiado nele. Distraída, ela passa as pontas dos dedos no rosto macio, fitando o que parece ser o nada. Então ela me olha e balança a cabeça com uma expressão perplexa.

— Eu esperava que você fosse resistir mais. Qual é a pegadinha? A despeito do que aconteceu entre a gente ontem à noite, ou do que está acontecendo desde que nos separamos, nunca pensei que você fosse concordar em me levar junto.

— Você gostaria que eu resistisse? — Abro um sorriso capcioso.

Ela sorri também e deixa os braços relaxarem.

— Não. Com certeza não. E-eu só...

Levanto uma perna e apoio o pé no outro joelho.

— Nunca me imaginei em uma situação dessas. Não posso mentir e dizer que acho que vai dar certo. Muito provavelmente não vai, Sarai, e você precisa entender isso. — Ela parece ficar um pouco desanimada, o bastante para eu saber que minhas palavras sinceras a entristeceram mais do que ela se permite revelar. — Não posso mudar o meu jeito. Não só porque é tudo o que sei fazer, ou porque é o que faço melhor, mas também porque não quero. — Olho para Sarai. — Eu nunca vou parar de fazer o que faço.

— Eu nunca ia querer que você parasse — retruca ela, com certa intensidade. Sarai puxa uma cadeira próxima e a coloca diante de mim antes de se sentar. — Tudo o que eu quero, Victor, é ficar com você. Vou fazer qualquer coisa que você espere que eu faça, mas quero que me ensine...

Levanto a mão e a interrompo imediatamente.

— Não, Sarai, também não vou fazer isso. Não é assim que vai ser. — Sua expressão se anuvia e ela desvia o olhar, magoada com minha recusa. — Já falei, eu praticamente nasci nesta vida. Você ia levar quase o resto da sua para aprender a fazer o que eu faço, e mesmo assim não ia ficar boa o suficiente.

— Então, o que eu devo fazer? — pergunta ela, com um tom de ressentimento na voz. — Quero estar com você aonde quer que vá, mas não quero ficar à toa, tomando martínis na praia enquanto você sai para matar pessoas. Eu não sou inútil, Victor, posso fazer alguma coisa.

— Você pode fazer muitas coisas, sim — digo, interrompendo-a. — Mas fazer o que eu faço está totalmente fora de cogitação. Por que você quer tanto isso? — Levanto a voz quando sinto, de repente, uma necessidade desesperada de entender a resposta.

Sarai bate as palmas das mãos nas coxas nuas.

— Porque é o que eu quero.

— Mas por quê?

Ela ergue as mãos para os lados e grita:

— Porque eu gosto! Entendeu?! Eu gosto!

Pisco algumas vezes, completamente atordoado por essa confissão. Na verdade, essa era a última coisa que eu esperava ouvir de Sarai. Parte de mim sabia que ela era mais do que capaz de tirar a vida de alguém e dormir em paz toda noite depois disso, mas nunca previ que ela fosse gostar de matar.

Não sei ao certo como me sinto a respeito disso. Preciso de mais informações.

Eu me inclino para a frente e fico cara a cara com Sarai.

— Você gosta de matar? — pergunto, embora isso saia mais como uma afirmação. — Então, se alguém pedisse a você que tirasse a vida de outra pessoa, você faria isso sem questionar?

— Não — responde ela, franzindo o cenho. — Eu não mataria qualquer um, Victor, só homens que merecessem.

Homens? Esse lado de Sarai está ficando mais intrigante. Eu me pergunto se ela sabe o que acaba de dizer. Homens. Não pessoas em geral, mas homens.

Eu me afasto dela e me reclino na cadeira de novo, virando a cabeça para o lado, pensativo.

— Explique.

Ela também se recosta, encolhendo as pernas e apoiando os pés no assento, virando os joelhos para o lado.

— Homens como Hamburg. Homens como Javier Ruiz, Luis e Diego. Homens como o segurança que matei ontem. Willem Stephens, pelo simples fato de trabalhar para Hamburg sabendo o que o chefe faz. Homens como John Lansen e todos os outros que conheci naquelas festas de gente rica quando estava com Javier. — Seu olhar penetra o meu. — Homens que merecem ter a garganta cortada.

A gravidade das palavras de Sarai e a determinação em seu rosto me silenciam por um momento. Será possível que eu agora tenha não um, mas dois assassinos por perto que compartilham o gosto pelo derramamento de sangue? E, no exato momento em que o rosto surge na minha mente junto com o de Sarai, ouço o carro de Fredrik na entrada da garagem. Isso interrompe o momento intenso, e ambos olhamos para cima.

Instantes depois, Fredrik, vestido de maneira informal com um jeans escuro e uma camisa de grife, vem nos encontrar no pátio. Ele deixa o jornal do dia na mesa de centro e diz:

— É melhor você dar uma olhada nisso. — Então olha para Sarai por um momento. — A propósito, minhas roupas ficam bem em você.

Fuzilo Fredrik com o olhar, mas escondo meu ciúme antes que qualquer um dos dois perceba.

Sarai e eu olhamos para o jornal, mas sou eu quem o pega. Desdobrando-o, corro os olhos pelo texto até encontrar aquilo a que Fredrik se refere.

Quatro pessoas foram encontradas mortas a tiros em um hotel de luxo de Los Angeles, na madrugada passada. Somente dois corpos foram identificados, os de Dahlia Mathers, 23 anos, e Eric Johnson, 27 anos, ambos de Lake Havasu City, Arizona.

Algumas frases abaixo:

Sarai Cohen, também de Lake Havasu City, é procurada pela polícia para prestar esclarecimentos.

Acho que não importa que identidade Sarai usou para fazer o check-in no hotel, o rosto dela é o mesmo nas duas.

Ela arranca o jornal das minhas mãos antes que eu possa terminar.

— Não... — Ela cerra os dentes e seu rosto fica sério enquanto lê a notícia trágica sobre seus amigos. Ela procura meus olhos, mas logo se volta para o jornal, como se sua mente torcesse para ter lido tudo errado na primeira vez. — Falei para eles irem embora de Los Angeles! Dahlia disse que eles iam embora... — Seus olhos verdes encaram os meus, cheios de desespero e despedaçados pela culpa.

Fico de pé.

Sarai pega o jornal com as duas mãos e o rasga bem no meio, amassando as duas metades em seus punhos.

— Eles mataram Dahlia e Eric, porra! — ruge ela. — Eles estão mortos!

O jornal cai de suas mãos e voa pelo pátio de pedra.

Fredrik apenas me olha, esperando para ver o que vou fazer ou dizer. Ele não fala, mas percebo que quer.

— Sarai. — Por trás dela, ponho as mãos em seus ombros. — Eu vou cuidar disso.

Ela se vira para mim. Seu cabelo balança ao redor da cabeça antes de cair de novo nos ombros e seu rosto está ardendo de fúria.

— ELES MORRERAM POR MINHA CAUSA! COMO LYDIA!

Tentando acalmá-la, aperto seus ombros com força, de frente, e a seguro.

— Eu disse que vou cuidar disso — repito com ainda mais intensidade e sinceridade do que antes. Eu me inclino para a frente para manter seu olhar fixo no meu. — Vou fazer isso por você, Sarai. Hamburg e Stephens estarão mortos antes do fim desta semana.

Ela não ouve. Está me encarando, mas parece estar olhando através de mim. Seu peito sobe e desce com a respiração ofegante e irregular. Suas pupilas parecem pequenas, como buracos de grampos em uma folha de papel. O verde de seus olhos parece ter escurecido.

— Não — rebate ela, com a voz calma. — Não quero que você faça nada.

Absorta em pensamentos, ela dá um passo para trás, e minhas mãos caem de seus ombros.

— Vou fazer isso por você. Eu quero...

— Eu disse que não! — Ela dá mais dois passos e se vira, me dando as costas e olhando para a piscina. — Eu vou fazer isso — afirma ela, em voz baixa e decidida. — Vou matar os dois e não quero que você se meta.

— Acho que não...

Ela vira a cabeça, seus olhos escuros cruzando com os meus.

— Se você matar qualquer um deles, nunca vou perdoar você. Isso é assunto meu, Victor! Me deixe fazer pelo menos isso!

— Sarai, você não pode matá-los. — Eu me aproximo dela. — A única pessoa que vai morrer é você. Não vai conseguir...

— Estou cagando para isso! — Percebo que o objetivo de Sarai é inabalável. Ela volta para perto de mim. — Ou você me ajuda a fazer isso ou eu mesma vou descobrir como fazer. Eles vão morrer nas minhas mãos, não nas suas, nas de Fredrik nem nas de qualquer outra pessoa. Só nas minhas. Me ensine. Me mostre o que fazer. Qual é a melhor forma de agir para alguém como eu. Me ajude, ou vou morrer tentando por minha conta. Para mim, tanto faz.

— Eu não vou... você não pode — retruco, balançando a cabeça.

Sarai desiste e tenta me empurrar para fora de seu caminho. Mas não deixo que ela passe. Não posso, pois sei que cada palavra que ela disse foi a sério.

Eu a seguro pelo pulso, detendo sua marcha furiosa até a porta de vidro. Fredrik sai do caminho, assistindo ao desenrolar da cena com um brilho estranho nos olhos, que só posso interpretar como fascinação.

— Me solte!

— Você não vai embora. — Eu a prendo pelo pulso com força, e agarro o outro quando ela começa a me bater.

Ela quer descontar toda a raiva em mim, gritar na minha cara, me xingar com as palavras que tanto quer dizer a Hamburg e Stephens antes de matá-los, mas não consegue. A raiva, como sempre, a domina, e Sarai cai no choro.

Ela me disse uma vez que sempre chora quando está furiosa.

As lágrimas escorrem como rios por seu rosto. Sarai tenta mais uma vez se desvencilhar de mim, mas a seguro firme e faço uma pressão dolorosa sobre seus pulsos, tentando acalmá-la.

— Victor, por favor! Porra, basta me ensinar, cacete! Mesmo que seja matar os dois e mais ninguém! É tudo que eu peço! Nunca mais vou pedir a sua ajuda! POR FAVOR!

Sarai enfim para de se contorcer e desaba sobre meu peito. Eu a envolvo em meus braços, aninhando sua nuca nas mãos e pressionando o lado do meu rosto no alto de sua cabeça. Sarai chora com violência, seu corpo treme no meu abraço. Não são gritos de tristeza e dor, são gritos de culpa, raiva e da necessidade desesperada de vingar a morte de pessoas — até de Lydia — que poderiam ainda estar vivas, se não fosse por ela.

Fredrik olha para mim. Sei o que a expressão calma dele quer dizer. Ele acha que eu deveria dar a Sarai o que ela quer.

Mas não é a opinião de Fredrik que me faz decidir, no fim das contas. É minha necessidade de proteger Sarai, ainda que ela possa acabar morta no final.

Escolho o mais seguro dos dois caminhos malfadados.

— Eu vou ajudar você.


CAPÍTULO ONZE

Sarai

Levanto o rosto do peito de Victor, fungando as malditas lágrimas que mais uma vez me traíram em um momento de fraqueza.

— Você vai me ajudar a matá-los?

Ele assente.

— Vou.

— Obrigada — digo, baixinho.

Fico na ponta dos pés e dou um beijo suave em sua boca.

Da porta de vidro atrás de nós, a empregada diz com uma voz fraca:

— O café está pronto.

Ela nos fita com seus olhos escuros e curiosos, sem dúvida por ter ouvido a discussão enquanto estava lá dentro.

— Marta faz uns ovos mexidos ótimos — comenta Fredrik, com um sorriso radiante, como se nada tivesse acontecido. — Frita em gordura de bacon. — Ele junta os dedos nos lábios e os beija. — Adoro comida americana.

Ele vai atrás de Marta.

— Se bem que parece que ovos mexidos em gordura de bacon é uma comida do Sul, não? — pergunta ele, olhando para nós enquanto o seguimos.

Victor dá de ombros.

— Bem, Marta não é exatamente do Alabama — continua ele, ao entrarmos na cozinha. — Mas sabe cozinhar como se fosse.

Fredrik e Victor continuam tagarelando sobre comida, provavelmente para me fazer esquecer o que aconteceu. Mas, nesse momento, nada mais me importa além do rosto de Dahlia e Eric na memória. Sei que estou sendo punida. Pela vida. Pelo destino. Não sei por quem ou pelo quê, só sei que faria qualquer coisa para devolver a vida aos meus amigos.

Nós três nos sentamos à mesa com tampo de vidro da cozinha e comemos. E acho quase engraçado Fredrik fazendo Marta provar a comida antes de nos servir, como se ele tivesse aprendido essa técnica paranoica no Manual de Victor Faust.

Durante o café, que dura muito tempo por causa da conversa, Fredrik acaba liberando Marta pelo resto do dia. Isso acontece logo depois que ele começa a falar em sueco com Victor. Odeio não entender o que eles dizem, mas fica claro para mim que era por causa de Marta, e não por mim.

Marta pega a bolsa e se despede de nós, agradecendo a Fredrik por pagar um dia inteiro.

— Por que isso? — pergunto, depois que ela vai embora.

Apoio o garfo no prato ao terminar meu café.

— Temos muito o que conversar — explica Fredrik, tomando um gole de suco de laranja. — E ela não pode ouvir a conversa. — Ele aponta para mim e sorri. — E Marta, embora não pareça, ouve tudo o que acontece por aqui.

— Então por que vocês não continuaram conversando em sueco? — questiono.

— Você fala sueco? — rebate Victor.

— Não.

— Bem, você tem que participar da conversa — diz ele, deixando o copo d’água na mesa.

Sorrio. Nesse momento, me sinto parte deles pela primeira vez. Dos dois. Nós três sentados à mesa, que minutos depois já está livre dos pratos e dos copos, substituídos por pastas e fotografias de serviços de execução. Para mim, é meio surreal discutir detalhes de interrogatórios e assassinatos tão casualmente, como se estivéssemos falando do tempo. Mas também, pela primeira vez na vida, sinto que pertenço a algum lugar. Não estou mais andando por um túnel escuro, com as mãos à frente, procurando a porta. A porta está bem ali, à mostra, e já passei por ela. Enfim encontrei meu lugar na vida. E estou com Victor, o que para mim é mais importante do que tudo.

Finalmente estou com Victor.

Victor e eu saímos da casa de Fredrik nas colinas de Los Angeles no fim da tarde e dirigimos por onze horas até Albuquerque, Novo México. No caminho, paramos em um shopping, onde gasto praticamente uns 2 mil dólares em roupas e sapatos novos, acessórios e maquiagem, já que tudo o que tenho está no Arizona ou ficou no hotel em Los Angeles. Encho o banco de trás com sacolas de compras e caixas de sapatos, mas, lá pela nona hora de viagem, me arrependo de ter comprado tanta coisa. Tudo o que quero é me arrastar para o banco de trás e dormir, mas tenho que me conformar em ficar apertada na frente, encolhida em uma posição desconfortável no banco do Cadillac CTS preto de Victor, com a cabeça apoiada na janela. Desde que Victor saiu da Ordem, ele não tem mais a conveniência de usar jatos particulares para viajar. Se quisesse, com certeza poderia pagar um do próprio bolso, mas ser alguém que a Ordem quer matar significa não dar na vista e abrir mão de alguns luxos que poderiam levar Niklas até ele.

Ao que tudo indica, esses luxos abdicados incluem as residências extravagantes e multimilionárias nas quais Victor sempre preferiu morar. Sua casa em Albuquerque é bem diferente daquela onde ele morava na Costa Leste, com vista para o mar. Quando paramos na entrada de terra batida, vejo uma casa de tamanho médio, com paredes nuas de reboco bege e em um formato de caixa que me faz lembrar as casas que eu construía com peças de Lego quando era criança. Contudo, a julgar pelo jardim elaborado que envolve o caminho branco e liso até a porta e o lado esquerdo da casa, é óbvio que Victor não abriu mão de todos os luxos. Isso fica mais óbvio ainda quando entramos, pois o interior é tão bonito quanto o da casa de Fredrik, apesar do estilo mais interiorano e menos luxuoso. Vermelho-ferrugem, marrom e amarelo dominam o ambiente, com pé-direito alto sustentado por vigas e sarrafos de madeira escura, que fazem a casa parecer muito maior por dentro do que por fora. Uma aconchegante lareira de pedra ocupa uma das paredes da espaçosa sala de estar, com dois espelhos decorativos de metal pendurados acima dela. As paredes são amarelas, combinando com os pisos de terracota que parecem ocupar toda a casa.

— De uma coisa tenho certeza: você sempre consegue as melhores empregadas — comento, deixando várias das minhas sacolas no chão da sala.

— Desta vez, não — diz Victor atrás de mim. Ele deixa as outras sacolas que trouxe do carro perto do sofá de couro marrom-alaranjado. — Sou só eu.

— Sério? Mas está tudo tão limpo. Acho que você não passou muito tempo aqui, então, não é?

— Uns quatro meses. — Ele olha para mim. — Você gostou? Espero que sim, porque é o seu novo lar.

Um sorriso desponta no meu rosto.

Victor desabotoa e tira a camisa, deixando-a nas costas de uma poltrona de couro marrom. Observo discretamente seu corpo enquanto ele anda por um corredor longo e bem-iluminado com uma entrada em arco.

Sigo Victor.

— Claro que você sabe que não vamos ficar aqui para sempre. — Entramos em um quarto grande. — Mas é nosso lar por enquanto, pelo menos.

Ele tira a calça e me esforço ao máximo para não olhá-lo com intensidade demais, mas isso fica cada vez mais difícil.

— Vem cá — chama ele, parado diante de mim sem nada além de sua cueca boxer preta e apertada, que pouco ajuda a esconder o volume crescendo por baixo do tecido.

Engulo em seco, nervosa, embora não saiba a razão para esse nervosismo repentino, e me aproximo dele. Sinto um espasmo entre as pernas, e também não sei ao certo por que isso acontece. É como se meu subconsciente estivesse mais a par do que vai acontecer do que minha parte consciente. Ou então apenas perdi o controle sobre minha mente e só consigo pensar no que eu gostaria que acontecesse.

Olho para Victor, curiosa, inclinando um pouco a cabeça para o lado.

— Não sei bem o que é isso entre a gente — diz ele, com cuidado —, mas tenho certeza de que não quero que acabe. Seja o que for.

— Eu também.

Um pouco confusa quanto ao rumo que a conversa está tomando, inclino a cabeça para o outro lado e pergunto:

— Algum problema?

Ele balança a cabeça devagar.

— Não, problema nenhum.

— Bem, se você está preocupado que eu vá me apaixonar e grudar em você feito chiclete, não precisa.

— Você não está apaixonada por mim? — pergunta Victor, e não parece nada além de uma simples questão.

— Não, eu não amo você, Victor.

Ele parece concordar.

— Ótimo. Porque eu também não estou apaixonado por você.

Acho que nem eu nem ele sabemos de fato o que essa palavra significa em uma situação assim. Ambos exibimos a mesma expressão de aceitação, mas também parecemos um pouco confusos.

— Mas... eu, hã... — Entrelaço os dedos atrás das costas e olho para o chão, mexendo o pé como se estivesse tentando afundar os dedos na areia. Paro para encará-lo. — Mas eu, hã, talvez... preferisse que você não dormisse com mais ninguém. Eu... bom, acho que eu não ia gostar muito disso.

— Concordo — diz Victor, assentindo mais uma vez, com firmeza. — Acho que se eu pegar você com outro homem vou ter que matá-lo.

Balanço a cabeça algumas vezes, de maneira tão casual quanto ele.

— Com certeza — concordo eu. — O mesmo vale para você.

— De acordo.

Há um momento de silêncio constrangido entre nós, e corro os olhos pela cama king-size com dossel alto de cerejeira, que está a alguns passos de distância.

Victor se aproxima e eu me viro para observá-lo. Ergo os braços quando ele passa os dedos por baixo da minha camiseta e a tira.

— Também quero dizer que não me incomodo se você grudar em mim feito chiclete. — Ele enfia os dedos no elástico da minha calcinha. — Só para constar.

— Mesmo?

Victor se agacha diante de mim ao descer a calcinha por meus quadris e minhas pernas. Fica ali, me olhando de baixo, com a cabeça na altura do meu umbigo.

— Sim — responde ele. — Mas claro que você não pode me atrapalhar quando eu estiver tentando fazer um serviço.

— Sim, claro — digo, e minha pele reage aos seus lábios, que beijam a área logo acima da minha pélvis. — E-eu nunca atrapalharia o seu trabalho — gaguejo.

Minhas mãos começam a tremer quando ele desce e para entre as minhas pernas, abrindo meus grandes lábios com os polegares.

Afasto os joelhos só um pouco, o bastante para que ele tenha acesso.

— Mas nada de me abandonar em algum lugar distante enquanto você viaja pelo mundo para cumprir os contratos — digo, enfiando os dedos no cabelo dele, com a respiração irregular e acelerada. — Não quero ser dona de casa, entendeu?

Um suspiro agudo corta o ar perto da minha boca quando a ponta de sua língua lambe meu clitóris. Quase derreto ali mesmo, os músculos das coxas perdendo força a cada segundo.

— Sim, entendo o que você quer dizer — diz Victor, e me lambe de novo, explorando entre as minhas pernas. Jogo a cabeça para trás e puxo seu cabelo com mais força, enrolando-o nos dedos. — Você vai aonde eu for. Para eu poder ficar de olho em você.

— De olho em mim. Claro.

Que resposta patética. Só consigo pensar na cabeça de Victor no meio das minhas pernas, e naquela sensação quente e formigante que está amolecendo minhas entranhas.

Victor me ergue segurando minha bunda com firmeza e com minhas coxas em torno da cabeça. Então me lambe furiosamente por um momento antes de me jogar de costas na cama.

Com os joelhos dobrados no peito, vejo sua boca entrar no meio das minhas coxas e reviro os olhos enquanto ele me faz esquecer tudo.


CAPÍTULO DOZE

Sarai

O treinamento começa dois dias depois, mas não da maneira que eu esperava. Não sei o que eu esperava, na verdade, mas com certeza não era isso.

— O que a gente está fazendo aqui? — pergunto quando paramos no estacionamento de uma academia de artes marciais a uma hora de Santa Fé.

— Krav maga — esclarece Victor, e olho como se ele estivesse falando outra língua. Ele fecha a porta do carro e andamos até a fachada do prédio. — Não vou conseguir dedicar cem por cento do meu tempo ao seu treinamento. Por isso, três dias por semana, vou trazer você aqui. Dá para aprender muita coisa com o krav maga em pouco tempo. E o foco é a defesa pessoal...

— O quê? — Paro na calçada antes de passarmos pela porta. — Não sou uma donzela em perigo que acaba de ser assaltada em um estacionamento escuro, Victor. Não preciso de aulas de defesa pessoal. Preciso aprender a matar.

— Matar é a parte fácil — rebate Victor, sem rodeios. Ele abre a porta de vidro e faz um gesto para eu entrar. — Chegar a esse ponto sem morrer tentando é a parte difícil.

— Então você quer que eu aprenda a dar um chute no saco de um cara? — pergunto, bufando de desdém. — Acredite, eu já sou perfeitamente capaz disso.

Um sorriso discreto aparece nos cantos de seus lábios deliciosos.

Nesse momento, um sujeito alto, moreno e com músculos bem-definidos se aproxima de nós no grande salão. As janelas no alto da parede deixam o sol entrar. Dois grupos de pessoas estão treinando em pares, formando um semicírculo em um enorme tatame preto estendido por boa parte do chão.

O homem de braços musculosos e camiseta preta estende a mão para Victor.

— Faz quanto tempo? Três anos? Quatro?

Victor aperta a mão dele com firmeza.

— Uns quatro, acredito.

O homem me olha por um momento, e então Victor nos apresenta.

— Spencer, esta é Izabel. Izabel, Spencer.

— Prazer — diz Spencer, estendendo a mão.

Relutante, aperto a mão dele. Eles se conhecem? Não sei se gosto disso ou não. De repente, sinto que aquilo é alguma armação. Sorrio com desdém para aquele brutamontes alto e simpático.

Victor se vira para mim e diz:

— Não tem ninguém melhor para treinar você em defesa pessoal do que Spencer. Você está em boas mãos.

Spencer abre um sorriso tão largo que, se fosse um pouco maior, acho que daria para engolir minha cabeça. Ele está com os braços musculosos à sua frente, com as mãos cruzadas. As veias, grossas como cordas, que percorrem suas mãos e seus braços bem bronzeados me lembram das de um fisiculturista, mas ele não tem esse tamanho todo. Só é maior do que eu, o que me intimida mais.

Levanto um dedo para Spencer.

— Você nos dá licença um minutinho?

— Claro — responde ele.

Percebo o leve sorriso que ele dá para Victor.

Pego Victor pela mão e o puxo para o lado. Ao fundo, ouço, de maneira constante, corpos sendo jogados naquele tatame preto e a voz de um instrutor entoando comandos repetitivos e mandando os alunos fazerem “de novo”.

— Victor, acho que isto é perda de tempo. Não sei por que você me trouxe aqui. — Cruzo os braços. — Quero aprender essas coisas com você, não com um cara aleatório do tamanho de um ônibus. — Olho por cima do ombro, torcendo para que Spencer não tenha ouvido, embora eu tenha tomado o cuidado de sussurrar.

— Preciso me encontrar com Fredrik daqui a uma hora — explica Victor.

— Ah, então você vai me deixar com uma babá? — Franzo o cenho e balanço a cabeça para ele, totalmente incrédula, para não dizer ofendida.

— Não, não é isso.

— Mas eu quero que você me ensine — repito, forçando as palavras com rispidez entre meus dentes cerrados.

Victor suspira e balança a cabeça, parecendo aborrecido e frustrado comigo.

— Você não tem disciplina. Nenhuma. Igualzinha ao meu irmão. — Isso fere o meu orgulho. — Como vou ensinar alguma coisa para você, se não é capaz nem de fazer as coisas mais simples que eu peço?

Na mesma hora, me arrependo por agir feito uma criança. Solto um suspiro de resignação.

— Desculpe — digo, baixinho. — Pensei que fosse treinar com você, só isso.

— Você vai treinar comigo — garante Victor, pondo as mãos nos meus ombros. — Mas por enquanto precisa aprender o básico. E esta é a melhor maneira.

— Mas por que você não pode me ensinar o básico? — pergunto, com o mesmo tom resignado de antes. — Por que precisa ser ele?

Victor se inclina e beija de leve o canto da minha boca.

— Porque Spencer não tem medo de machucar você — explica ele, e isso me surpreende um pouco. — E não quero fazer isso, se eu puder evitar. Você só vai aprender se for real.

Arregalo os olhos.

— Espere aí... Então você está dizendo que aquele tanque de guerra — digo, apontando por cima do ombro com o polegar — vai me bater de verdade?

— Sim. É para isso que ele está sendo pago.

Parece que meu queixo acaba de bater no chão. De repente, sinto um calafrio percorrer minha espinha.

— Você não é obrigada a fazer isso, Sarai, mas, se realmente é o seu desejo, quero que vá com tudo. Não faça de qualquer jeito. Na vida real, quem atacar você não vai facilitar as coisas — afirma Victor, enquanto me encara com atenção, querendo desesperadamente que eu o entenda e confie nele. — Vou treinar com você no momento certo. Mas, quando eu fizer isso, vai ser brutal, Sarai. Vou atacar com a mesma força que um agressor de verdade usaria. Aprenda o básico primeiro, domine algumas habilidades para conseguir me enfrentar, e vou me sentir melhor para treinar você pessoalmente. Entendeu?

— É, acho que sim — respondo, assentindo. E estou sendo sincera.

Entendo perfeitamente agora. Nem me lembro da última vez que estive tão nervosa para fazer alguma coisa. Mas Spencer, o tanque, não me assusta tanto, na verdade, porque lá no fundo sei que, mesmo que Victor esteja lhe pagando para não facilitar comigo, ele não vai usar toda a sua força em mim. Se usasse, me mataria.

— Você quer ficar? — pergunta Victor.

— Quero.

— Ótimo.

Ele se inclina para meus lábios de novo e me beija com intensidade, tirando meu fôlego. Chocada por essa demonstração pública de afeto tão atípica, fico sem palavras quando ele desgruda os lábios dos meus.

— Volto para buscar você daqui a algumas horas.

— Tudo bem.

Nós voltamos para perto de Spencer, que parece um tanto empolgado para começar a treinar comigo, como se eu fosse um brinquedo novinho em folha com o qual ele não vê a hora de brincar.

— Pronta para começar a aprender krav maga? — pergunta Spencer.

— Estou — respondo, e meu olhar vai até as pessoas lutando no tatame preto atrás dele.

— Tem certeza de que você aguenta?

Quero dizer que sim com confiança, porque, afinal de contas, sempre imaginei que aulas de defesa pessoal consistissem em nada mais do que bloquear golpes, bater e sinalizar aos outros onde estou. Sempre imaginei mulheres comuns, que nunca lutaram na vida, todas de pé em um círculo, esperando a vez para derrubar o instrutor com alguns golpes “úteis”. Contudo, ao observar o grupo que está treinando atrás de Spencer, a intensidade agressiva e a violência de alguns golpes, começo a achar que esse tipo de defesa pessoal é bem diferente.

— Deve ser simples — digo, sem a segurança que queria.

— Se você diz — responde Spencer, com um sorriso conivente que deixa meus nervos ainda mais em frangalhos.

Mas não estou com medo. Nervosa, sim, mas não com medo. Estou pronta para fazer isso. Começo até a ficar ansiosa. Quero provar a Victor que dou conta.

E quero provar a ele que não sou nada parecida com seu irmão.

Victor vai embora. Antes do fim da primeira hora, estou exausta e tão dolorida que mal consigo andar em linha reta sem cambalear.

— Sempre se defenda e ataque ao mesmo tempo — explica Spencer, em pé, enquanto estou deitada no tatame e querendo me encolher em posição fetal. — E nunca vá para o chão. Isto não é luta greco-romana, Izabel. Se você vai para o chão, você morre.

Sem fôlego e tentando controlar a dor intensa que queima minha panturrilha, me levanto.

— Me ataque — ordena ele, elevando a voz acima dos poucos gritos de quem ainda assiste à aula depois da segunda hora. — Se não me atacar, eu ataco você!

Estou exausta demais.

— Não consigo! — Desisto e caio de bunda no tatame. — É demais. Hoje é meu primeiro dia e parece que é minha primeira luta de verdade. Cadê a parte em que você me mostra o que fazer e me ensina a dar os golpes?

— O que você quer mesmo é que eu pegue leve com você, não é?

— Isso! Cadê as instruções? As regras?

Minhas costas estão me matando. Deito no tatame, abrindo os braços acima da cabeça, e olho para o teto iluminado. Não quero mais saber de Spencer e de seu treinamento de imersão total. Só quero descansar.

As lâmpadas fluorescentes do teto começam a se mover depressa quando sinto de repente que estou sendo arrastada pelo tornozelo.

— Não há regras no krav maga — ouço Spencer dizer, mas percebo, meio segundo depois, que não é ele quem está me arrastando.

É uma mulher, com cabelo castanho-claro preso em um rabo de cavalo. Confusa com a mudança, fico distraída demais para notar o pé dela atingindo meu estômago. Berro de dor, me dobrando para a frente ao levantar as pernas e as costas do tatame ao mesmo tempo, com os braços cruzados sobre o abdômen. O golpe expulsa todo o ar dos meus pulmões.

— CHEGA! — grita Spencer, em algum lugar atrás de mim.

Sinto que vou vomitar.

A mulher para no mesmo instante e dá alguns passos para trás.

— Levante — manda Spencer, e decifro, em meio à dor que acaba com meu tórax, que sua voz está muito mais perto do que antes.

Ergo a cabeça e o vejo agachado ao meu lado.

— Vou deixar você recuperar o fôlego — diz ele, baixinho, oferecendo a mão. — Esta é Jacquelyn. Minha mulher.

Pego no antebraço dele, ele me segura e me põe de pé.

— Muito prazer — digo a ela, fazendo uma careta horrorosa de dor. — Ou em conhecer o seu pé, pelo menos.

Ela dá uma risadinha.

— O seu namorado me pagou para encher você de porrada, basicamente — afirma Spencer. — Mas, como não tenho o hábito de bater em mulher, achei melhor deixar minha esposa fazer as honras para que eu pudesse receber o pagamento do mesmo jeito.

— É a melhor maneira de aprender — intervém Jacquelyn. — Esse seu homem sabe o que está fazendo. É brutal? Claro. Necessário para sobreviver a situações de combate corpo a corpo? Com certeza. Indicado para peruazinhas delicadas que ficam pulando e gritando de medo quando veem uma aranha? Nem fodendo.

— Bom, eu não sou uma dessas — digo, com frieza. — Disso você pode ter certeza.

— Então prove — provoca ela, curvando-se para a frente com as mãos semiabertas ao lado do corpo. — Lembre, o krav maga não tem regras. Sempre defenda e ataque ao mesmo tempo. Sempre lute com agressividade. E nunca vá para o chão.

— Ok, essa parte eu entendi. Se eu for para o chão, estou morta.

Jacquelyn praticamente me dá uma surra durante o resto da aula. E, quando Victor finalmente chega para me buscar, meu nariz e meu lábio estão sangrando, meu olho direito está roxo e latejando e acho que quebrei um dente.

Isso continua dia sim, dia não pelas duas semanas seguintes.

Não levei muito tempo para ficar boa no krav maga. Spencer diz que tenho um talento natural e que devo ter “dispensado as Barbies quando era criança”.

Ele não faz nem ideia...

Estou ficando muito mais forte, muito melhor na minha técnica. Em certo momento, até consegui machucar Jacquelyn ao enfiar o cotovelo nas costelas dela. Acho que quebrei algumas, mas ela não admite. Não por orgulho, mas porque não acha certo reclamar nem deixar algo tão insignificante quanto uma costela fraturada impedir que ela lute.

Também não demorou para que eu começasse a simpatizar com ela. Quando Jacquelyn não está me enfiando a porrada, até gosto de sua companhia.

Só duas semanas se passaram. Até agora, não fiz nada além de treinar com Jacquelyn e aprender a usar armas com Victor. Ainda assim, apesar de curtir o treino e esperá-lo ansiosamente todo dia, fico frustrada por estar demorando tanto. Eu esperava que Hamburg e Stephens já estivessem mortos faz tempo, a essa altura.

Estou ficando impaciente.

— Victor, eu não pretendo lutar com Hamburg e Stephens. Só quero matá-los. Mais nada. Não entendo por que você está me fazendo passar por tudo isso.

Victor se descobre e sai da cama, andando nu pelo quarto.

Em silêncio, admiro a visão.

— Tem mais coisas envolvidas nisso do que você imagina — diz ele, desaparecendo ao entrar no banheiro.

Aquilo com certeza desperta meu interesse.

Eu me levanto e grito:

— É mesmo?

Jogo o lençol no chão e ando depressa atrás dele, parando à porta do banheiro e me apoiando no batente. Ele está abrindo a água do chuveiro.

Victor fecha o boxe de vidro, deixando a água correr por um momento, e então se vira para mim.

— Você não está fazendo todo esse treinamento só para matar Hamburg e Stephens. Se vai ficar comigo, independentemente de como vai ocupar o seu tempo, precisa aprender a lutar. Precisa saber identificar, diferenciar, carregar e disparar praticamente qualquer tipo de arma. Há muitas coisas que você precisa saber, e não temos tempo suficiente para aprender metade delas. — Ele abre a porta do boxe e estende o braço, deixando a água correr sobre a mão para sentir a temperatura.

Ele acrescenta:

— Esse treinamento não tem muito a ver com Hamburg e Stephens. Quero que você esteja sempre segura, por isso é vital que aprenda essas coisas agora.

Abro um sorriso leve, saboreando o momento. Quando nos conhecemos, eu não imaginava que Victor tivesse um só traço de preocupação ou emoção no corpo. Mas a cada dia testemunho que ele está se abrindo mais para mim. E vejo que isso está se tornando mais fácil para ele.

Volto ao assunto em questão, mas o que eu gostaria mesmo de fazer, a essa altura, é beijá-lo.

— Mas por que isso está demorando tanto? Quero acabar com essa história de uma vez.

Entro no banheiro e me sento na bancada da pia, apenas de calcinha.

— Porque, enquanto eu elaboro um plano para você chegar perto dos dois e matá-los, você precisa treinar, ocupar seu tempo o máximo possível. — Victor se aproxima de mim e segura meu rosto com as mãos. — Só estar no mesmo quarto comigo, só me conhecer, Sarai, já é uma sentença de morte diária. Cada vez que você sai por aquela porta, corre o risco de levar um tiro. O único motivo pelo qual a Ordem ainda não me encontrou é que Niklas é o único agente atrás de mim. Quer dizer, por enquanto. Ele não quer que ninguém mais me ache. Ele quer levar o crédito. O reconhecimento. Sobretudo porque foi ele o contratado para acabar comigo. — Victor pressiona os lábios na minha testa. Fecho os olhos, levanto os braços e seguro os pulsos dele. — Mas um dia, provavelmente daqui a pouco, vou ter que enfrentar meu irmão, pois a Ordem não vai dar todo o tempo do mundo para ele cumprir a missão. Ou ele me encontra ou eu o encontro. E um de nós vai morrer.

Com os dedos ainda envolvendo os pulsos dele, afasto delicadamente suas mãos do meu rosto. Olho para aqueles lindos olhos verde-azulados, perplexa, inclinando a cabeça para um lado.

— Por que não deixa isso para lá? Victor, entendo você querer matar Niklas antes que ele mate você, mas por que correr o risco de morrer procurando briga?

O vapor começa a encher o banheiro, embaçando o grande espelho acima do balcão, atrás de mim.

— Porque se Niklas não me encontrar, se não conseguir cumprir o primeiro contrato oficial desde que foi promovido a agente sob o comando de Vonnegut, eles vão matá-lo. — Victor apoia as mãos na bancada, à minha direita e à minha esquerda. — Ninguém, a não ser eu, vai matar meu irmão. Não me importa o que ele fez ou as diferenças que temos, ainda é meu irmão.

Faço que sim, compreensiva.

— Tudo bem, então quando tudo isso vai acontecer? Esse... confronto com Niklas? Minha chance de matar Hamburg e Stephens?

Victor abre um sorriso malicioso e eu passo as pontas dos dedos em seus lábios. Ele segura minha mão e beija meus dedos.

— Vamos ter que trabalhar nesse seu problema, Sarai. A sua impaciência e, claro, como já falei, a indisciplina. É o próximo item da nossa agenda.

— Não consigo evitar a impaciência. Aqueles dois babacas horríveis continuam por aí, levando uma vida de luxo, fazendo só Deus sabe o quê com sabe-se lá quantas mulheres. Isso sem falar que estão me procurando. Mataram meus amigos por minha causa. Dina continua escondida longe da casa dela e está com medo. A vida dela foi virada de cabeça para baixo por causa deles. Por minha causa. Quero que eles morram para que pelo menos Dina possa seguir a vida.

— O que você vai dizer para ela? — pergunta Victor. — Quando se encontrar com ela hoje, o que vai dizer?

Desvio o olhar e vejo o vapor revestir as altas paredes de vidro do boxe, ondulando acima do chuveiro em nuvens suaves. Começo a suar um pouco, o rosto, o pescoço e o colo úmidos.

— Vou contar a verdade para ela.

— Você acha uma boa ideia?

Encaro Victor.

— Acho justo. Ela é praticamente minha mãe. Fez muito por mim. Eu devo a verdade a ela. — Sorrio e acrescento: — Além disso, se você não concordasse com minha decisão de contar a verdade, já teria deixado isso bem claro, a essa altura.

Victor retribui meu sorriso e me segura pela cintura, me ajudando a descer da bancada.

— Acho que é melhor a gente se arrumar, se quiser chegar lá a tempo — observa ele, e me leva até o chuveiro. Tiro a calcinha antes de entrar no boxe com ele.

Victor disse a Dina e a mim que me levaria para vê-la alguns dias depois de o contato de Fredrik a tirar de Lake Havasu City. Mas as coisas não saíram conforme planejamos. Victor e Fredrik concordaram que era arriscado e cedo demais. Uma noite, ouvi os dois conversando sobre Dina e sobre como ela poderia estar sendo vigiada no dia em que o contato de Fredrik chegou para buscá-la. Victor queria ter certeza de que isso não havia acontecido, e que, se qualquer um de nós aparecesse por acaso no esconderijo de Dina, não cairia em uma armadilha. Mas, à medida que os dias passaram e Fredrik continuou vigiando a casa onde Dina estava se escondendo, ele e Victor tiveram certeza de que ela era, de fato, segura.

Hoje, enfim, vou vê-la pela primeira vez desde que viajei com Eric e Dahlia para Los Angeles.


CAPÍTULO TREZE

Victor

Sarai precisa estar preparada não só para as ameaças iminentes, mas também para a vida que a espera. Ela escolheu um caminho há muito tempo, no dia em que me conheceu, embora ainda não soubesse. Eu não queria enxergar, por isso lutei comigo mesmo contra a necessidade estranha e antinatural de ficar perto dela, porque queria que ela tivesse uma vida normal.

Não queria que ela terminasse como eu...

Mas eu sabia, oito meses atrás, antes de deixá-la naquele quarto de hospital ao lado da sra. Gregory, que um dia eu voltaria para ela. Nunca foi minha intenção nem meu plano, eu apenas sabia que acabaria acontecendo, de uma maneira ou de outra.

Por 28 dos meus 37 anos de vida, a única coisa que conheci foi a Ordem. Só conheci disciplina e morte. Nunca conheci amizade ou amor sem suspeitas e traições. Fui... programado para desafiar as emoções e ações humanas mais comuns, mas eu... Só quando conheci Sarai me permiti acreditar que Vonnegut e a Ordem não eram minha família, que me usaram como seu soldado perfeito. Eles me negaram a vida toda os elementos que nos tornam humanos. E não posso permitir que isso fique impune.

Um dia, vou matar Vonnegut e acabar com o resto da Ordem pelo que fizeram comigo e com a minha família. Uma família que eles destruíram. Sarai é minha família agora, e espero que Fredrik prove sua lealdade no teste final que farei com ele. Eles são minha família e não vou permitir que a Ordem também os destrua.

Mas, por enquanto, Sarai é o meu foco, e será pelo tempo que for necessário. Ela precisa ser treinada. Precisa absorver o máximo que puder, o mais rápido que conseguir. É impossível que um dia ela chegue ao meu nível. Ela nunca vai conseguir viver a vida de um assassino como eu, porque levaria metade da vida para aprender. É por isso que a Ordem nos recruta tão jovens. É por isso que Niklas e eu fomos levados quando éramos crianças.

Sarai nunca vai ser como eu.

Mas ela tem outros talentos. Tem habilidades que, mesmo depois de tantos anos de treinamento, eu jamais conseguiria superar. A vida de Sarai na fortaleza no México lhe garantiu um conjunto único de habilidades que não se aprendem em uma aula nem se leem em um livro. Ela mente e manipula com maestria. Pode se tornar outra pessoa em dois segundos e enganar uma sala cheia de gente que ninguém mais conseguiria enganar. Consegue fazer um homem acreditar no que ela quiser com muito pouco esforço. E não tem medo da morte. Ela é melhor do que uma simples atriz. Porque ninguém percebe a farsa até que seja tarde demais. Javier Ruiz foi o verdadeiro professor de Sarai. Ele lhe ensinou coisas que eu jamais conseguiria transmitir. Foi seu verdadeiro treinador, ensinando os talentos mortais que agora começam a defini-la como assassina. E, como todos os mestres perversos, Javier Ruiz também foi a primeira vítima de sua aluna favorita.

Assim como foi com as habilidades que Sarai já possui, para aprender a lutar e entender a luta de verdade, ela precisa vivê-la e respirá-la todos os dias. Forçá-la a treinar com Spencer e Jacquelyn é necessário para a sua sobrevivência porque ela precisa aprender o máximo que puder sempre que for possível. Mas são as habilidades que ela já tem que vão transformá-la em um soldado único.

São essas habilidades que nos tornam a dupla perfeita.

Antes disso, contudo, Sarai precisa entender a fundo do que é capaz. E precisa passar pelos testes. Todos eles, até aqueles que podem fazê-la me detestar.

Não tenho dúvidas de que isso vai acontecer. Ela passar nos testes, pelo menos. Se ela vai me detestar, ainda é discutível.

Chegamos a Phoenix logo depois do pôr do sol e somos recebidos à porta da casinha branca por Amelia McKinney, o contato de Fredrik. Ela é uma mulher linda, voluptuosa e com um longo cabelo louro, embora sua característica menos atraente seja seu grande par de peitos de plástico, que com certeza devem lhe dar dor nas costas. E ela usa roupas bem chamativas para uma mulher com doutorado que dá aula no ensino fundamental há cinco anos.

— Olá, Victor Faust — cumprimenta ela, com um tom sedutor, segurando a porta aberta para mim e Sarai. — Ouvi falar muito de você.

— Muito? Interessante.

Com uma das mãos, ela deixa aberta a porta de tela, dá um passo para o lado e acena para entrarmos na casa, sacudindo um monte de pulseiras com pingentes de ouro. Vários anéis enormes enfeitam seus dedos. E ela cheira a sabonete e a pasta de dente.

Coloco minha mão nas costas de Sarai e deixo que ela entre antes de mim.

— Fredrik me falou de você — conta Amelia, fechando a porta. — Mas acho que “muito” é exagero nesse caso, já que ele mesmo não parece saber muita coisa a seu respeito. — Ela gira a mão ao lado do corpo e acrescenta: — Mas imagino que o fato de eu saber tão pouco é o que torna você ainda mais intrigante.

— Nem pense nisso — intervém Sarai, parando nossa pequena fila indiana e se virando para encará-la.

Disciplina, Sarai. Disciplina. Suspiro em silêncio, mas admito que fico de pau duro ao vê-la tão superprotetora com o que lhe pertence.

Amelia levanta as mãos, por sorte em um gesto de resignação e não de desafio.

— Sem problemas, meu anjo. Não tem problema nenhum.

Sarai aceita essa bandeira branca e andamos mais pela casa, onde encontramos Dina Gregory na cozinha, preparando o que parece ser uma ceia de Ação de Graças para umas 15 pessoas.

Sarai corre para os braços abertos de Dina, e começam os sorrisos e as palavras de alívio e empolgação. Ignoro tudo isso por um momento, voltando minha atenção para assuntos mais prementes: o que está ao meu redor e essa mulher que não conheço.

Não confio em ninguém.

Amelia, como muitas mulheres do círculo de Fredrik Gustavsson, não sabe nada sobre a Ordem nem sobre o envolvimento que eu ou Fredrik temos com organizações do tipo. Ela não é o que Samantha, do Abrigo Doze no Texas, era para mim. Não, a relação de Amelia e Fredrik, embora tecnicamente não possa mais ser chamada assim, é muito mais... complicada.

Começo a vasculhar a casa em busca de câmeras e armas, tateando estantes, vasos de plantas, cacarecos e móveis, instalando minha própria parafernália secreta de espionagem no caminho.

— Fredrik disse que você talvez fizesse isso — diz Amelia, atrás de mim, embora eu tenha certeza de que ela não viu o pequeno aparelho que acabo de grudar embaixo da mesinha da TV. Ela ri baixo. — Eu limpei a casa muito bem antes de você chegar. Cadê as suas luvas de borracha? — brinca ela.

Não viro para trás nem paro o que estou fazendo.

— Você recebeu alguma visita desconhecida desde que a sra. Gregory veio para cá? — pergunto, debruçando-me sobre uma mesa ao lado de uma cadeira reclinável e examinando um abajur.

— Uau, você e Fredrik são mesmo os caras mais paranoicos que já conheci. Não. Não que eu lembre. Bom, um vendedor de TV por satélite veio uma vez semana passada, querendo que eu desistisse da TV a cabo. Além dele, ninguém.

Ela se aproxima de mim por trás e abaixa a voz:

— Por quanto tempo essa mulher vai ficar na minha casa? — Noto com a visão periférica que ela olha para a porta da cozinha, para garantir que ninguém consiga ouvi-la além de mim. — Ela é legal e tudo, mas... — Amelia suspira com ar culpado. — Olha, eu tenho 30 anos. Não moro com meus pais desde os 16. Ela está atrapalhando o meu jogo. Eu trouxe um cara aqui semana passada e ele pensou que ela fosse minha mãe. Ficou chato. Não transo desde que ela chegou.

Eu me viro para encará-la.

— E há quanto tempo você conhecia o sujeito que trouxe aqui?

— Hein?

— O homem. Há quanto tempo estava dormindo com ele?

Suas sobrancelhas finas e bem-cuidadas se juntam no meio da testa.

— E isso por acaso é da sua conta? Vai me perguntar em quantas posições a gente trepou também?

— Quanto tempo?

— Conheci o cara em um bar, sábado passado.

— Bem, ele conta como uma visita desconhecida.

Ela quer discutir, mas se contém.

— Ok. Tudo bem. O cara do satélite e o quase peguete do bar. Só eles.

— Antes que eu vá embora, vou precisar do nome desse cara e de qualquer outra informação que você possa me dar sobre ele, incluindo uma descrição detalhada.

Ela balança a cabeça e ri, contrariada.

— Não sei por que aguento essas merdas do Fredrik. — Então Amelia abre uma gavetinha da mesa e tira um bloco de notas e uma caneta.

— Porque você não resiste — observo, mas sem querer ser desagradável. Outra coisa que preciso praticar: ficar de boca fechada quando as mulheres dizem certas coisas que dispensam comentários.

Ofendida, ela arregala os olhos azuis brilhantes. Rabisca alguma coisa na folha, arranca-a do bloco e a enfia na minha mão.

— O que isso significa? — Contudo, antes de me dar a chance de cometer outra gafe, ela muda o tom de voz, chega perto de mim e sussurra de maneira sedutora: — Ei... O que vocês dois têm em comum, afinal?

Sei exatamente sobre o que Amelia está perguntando. Ela especula sobre as minhas preferências sexuais e provavelmente torce para que sejam tão sombrias quanto as de Fredrik. Mas ela está pisando em um território muito perigoso, com Sarai na sala ao lado.

— Não muito — respondo, enfiando no bolso a folha com o nome e a descrição do homem. Então continuo a investigar a casa dela.

— Que pena — comenta Amelia. — Qual é a dele, afinal? Ele fala alguma coisa de mim?

Por favor, pare com isso...

Suspiro e paro na entrada do corredor, olhando-a nos olhos.

— Se você tem perguntas para ou sobre Fredrik, faça o favor de perguntar diretamente a ele.

Amelia joga o cabelo para trás em um gesto orgulhoso e revira os olhos.

— Tudo bem. Só pergunta para o Fredrik quanto tempo mais vou ter que ficar de babá, ok?

Ela passa por mim e se junta a Sarai e à sra. Gregory na cozinha, enquanto aproveito a oportunidade para inspecionar o resto da casa.

Por falar em Fredrik, ele me liga quando estou a caminho do quarto de hóspedes.

— Tenho informações sobre a missão de Nova Orleans — diz ele do outro lado da linha. Ouço trânsito ao fundo. — O contato acha que o alvo voltou para a cidade.

— Por que ela acha isso?

— Ela acha que o viu em frente a um bar perto da Bourbon Street. Claro que ela pode ter imaginado isso, mas acho que a gente deveria investigar. Só por segurança. Se a gente esperar e ele voltar para o Brasil, ou onde quer que ele esteja se escondendo, pode levar mais um ou dois meses antes de termos outra chance.

— Concordo. — Eu me fecho no quarto de hóspedes. — Estou com Sarai na casa da Amelia agora, mas vou terminar as coisas por aqui mais cedo. Vá para Nova Orleans na minha frente e eu encontro você lá amanhã no início da noite. Mas não faça nada.

— Não fazer nada? — pergunta Fredrik, desconfiado. — Se eu encontrar o cara, posso prendê-lo e começar o interrogatório, pelo menos.

— Não, espere a gente. Quero que Sarai faça isso.

Fredrik fica em silêncio por um instante.

— Você não pode estar falando sério, Victor. Ela não está pronta. Pode estragar a missão toda. Ou morrer.

— Não vai acontecer nada disso — rebato com calma e confiança. — E não se preocupe, é você quem vai fazer o interrogatório. Só quero que ela prenda o sujeito.

Sei que há um sorriso macabro no rosto de Fredrik sem precisar vê-lo ou ouvir sua voz. Deixar que ele faça o interrogatório é praticamente o mesmo que dar uma seringa para um viciado em heroína.

— Vejo você em Nova Orleans, então — diz ele.

Desligo, enfio o celular no bolso de trás da calça preta e termino a inspeção da casa antes de ir para a sala e me juntar às mulheres, todas já com pratos de comida no colo.


CAPÍTULO CATORZE

Sarai

— Você deveria fazer um prato — digo para Victor quando ele surge no corredor. — Dina cozinha muito bem. Até melhor do que Marta. Mas não diga a Marta que eu falei isso. — Enfio uma enorme colherada da caçarola de feijão na boca.

Dina, sentada ao meu lado no sofá, aponta para Victor.

— Ela é suspeita. Mas, se você está com fome, é melhor comer antes que acabe.

— Precisamos conversar — anuncia Victor, de pé no meio da sala e bem na frente da TV.

Não gosto do tom dele.

— Tudo bem — digo, desencostando do sofá e deixando o prato na mesinha de centro. — Sobre o quê?

Victor olha de relance para Amelia. Ela está sentada na poltrona à minha frente, pegando um pedaço de pão de milho. Tenho a sensação de que Victor não quer que ela ouça a conversa.

— Amelia — diz Victor, enfiando a mão no bolso de trás da calça e pegando a carteira de couro —, preciso que você saia um pouco de casa. — Ele mexe na carteira, tira um pequeno maço de notas de 100 dólares e o deixa na mesa diante dela. — Se você não se importar.

Amelia olha para o dinheiro, apoia o garfo no prato e conta as cédulas.

— Sem problemas — concorda ela, com um sorriso satisfeito. Então se levanta, pega o prato e a lata de refrigerante e desaparece na cozinha.

Ouço o garfo raspando os restos de comida do prato para o lixo e a cerâmica tilintando no fundo da pia. Amelia passa por nós e segue até o corredor.

— Mas preciso que você saia agora mesmo — reitera Victor. — Não precisa trocar de roupa nem se arrumar.

— Posso pelo menos calçar a droga de um sapato? — pergunta ela, ríspida.

— Claro — responde Victor, assentindo. — Mas, por favor, não demore.

Amelia vai até o fim do corredor, resmungando irritada. Minutos depois, ela liga o carro e vai embora.

Victor olha para mim e para Dina.

— Não podemos ficar tanto tempo quanto o planejado — informa ele.

Dina também larga o prato e suspira com tristeza.

— Por que não? — pergunto.

— Surgiu um problema.

Olho para o meu prato, e o brilho metálico do garfo perde foco à medida que mergulho em pensamentos. Achei que teria tempo para encontrar a forma certa de contar para Dina tudo o que eu planejava contar. Agora estou desesperada tentando imaginar como começar a primeira frase.

— Dina — digo, respirando fundo. Eu me viro de lado para encará-la. — Eu matei um cara, meses atrás. — O rosto de Dina parece ficar rígido. — Foi em legítima defesa. Eu, hum... — Olho para Victor. Ele assente de leve, me motivando a continuar e garantindo que está tudo bem, embora eu saiba que ele não concorda cem por cento com o que estou fazendo. — Aliás, também matei um cara em Los Angeles na noite em que Dahlia e Eric foram encontrados mortos.

Dina ergue a mão enrugada e cobre a boca.

— Ah, Sarai... Você... o que você está...

— Dahlia e Eric foram assassinados por minha causa — interrompo, porque é evidente que ela não sabe o que dizer. — Não só a polícia de Los Angeles está atrás de mim para me interrogar, já que eu estava com eles, mas também os homens que mataram os dois estão na minha cola. É por isso que você está aqui.

— Meu Deus do céu. — Dina balança a cabeça sem parar, tira os dedos da boca e aperta os olhos cheios de pés de galinha em uma expressão preocupada.

Seguro a mão dela, que é fria e macia.

— Tem muita coisa que você não sabe. Onde eu estava de fato durante os nove anos em que minha mãe e eu ficamos desaparecidas. O que realmente aconteceu comigo. E com minha mãe. E eu não levei um tiro de um ex-namorado daquela vez em que Victor levou você para o hospital em Los Angeles. Eu levei um tiro de... — Olho para Victor de novo, mas decido por mim mesma não revelar essa informação. Ela não precisa saber de Niklas nem no que Victor e ele estão envolvidos. — Foi outra pessoa que atirou em mim. É uma história muito longa que você vai saber um dia, mas por enquanto só quero que você saiba a verdade sobre mim. — Passo os dedos com carinho nas costas da mão dela. — Você é a única mãe de verdade que eu tive. Fez tanta coisa por mim, sempre me apoiou, e eu devo essa honestidade a você.

Dina segura minha mão entre as dela.

— O que aconteceu com você, menina? — pergunta, com tanta dor e preocupação na voz que sinto um nó na garganta.

Começo a contar tudo, tanto quanto posso sem revelar qualquer informação sobre Victor e Niklas. Conto sobre o México e sobre as coisas que vi e vivi por lá. Conto sobre Lydia e sobre não conseguir salvá-la, apesar de ter lutado tanto. Omito sobretudo as relações sexuais que eu tinha com o cara que me mantinha presa, Javier Ruiz, um chefão mexicano do tráfico de drogas, armas e escravas, e só digo que eu estava lá contra a minha vontade e fui obrigada a fazer coisas que não queria. Dina cai no choro e me abraça forte, me balançando apertada contra o peito, como se eu é que estivesse chorando e precisasse de um ombro amigo. Ao menos dessa vez, contudo, não estou chorando. Só me sinto péssima por ter que contar tudo isso a ela, pois sei que isso a magoa muito.

Minutos depois, quando termino de contar tudo o que posso, Dina está sentada na beira do sofá, parecendo ligeiramente em choque. Mas ela está mais preocupada do que qualquer outra coisa.

Ela olha para Victor.

— Quanto tempo vou precisar ficar aqui? Gostaria muito de ir para casa. E quero levar Sarai.

— Isso não é uma boa ideia — argumenta Victor. — E quanto a Sarai, ela vai ter que ficar comigo. Por tempo indeterminado.

Engulo em seco ao ouvir as palavras dele, sabendo que Dina não vai aceitar isso.

— Então... Mas então o que isso significa? — pergunta ela, nervosa, voltando sua atenção somente para mim. — Sarai, você nunca mais vai voltar para casa?

Balanço a cabeça, cheia de culpa.

— Não, Dina, eu não posso. Preciso ficar com Victor. Estou mais segura com ele. E você está mais segura sem mim.

Dina balança a cabeça com ar solene.

— Você vai me visitar?

— Claro que vou. — Aperto a mão dela com delicadeza. — Eu nunca abandonaria você para sempre.

— Entendo — afirma ela, esforçando-se para aceitar.

Dina se volta para Victor.

— Mas eu não posso ficar na casa dessa mulher. Se você só me trouxe para cá para me proteger, prefiro voltar para casa. Não tenho medo desses homens. — Ela fica de pé e olha para mim. — Sarai, querida, eu nunca contaria nada para a polícia. Espero que acredite nisso.

Também me levanto.

— Sim, Dina, eu sei que você não contaria. O motivo para você estar aqui não tem nada a ver com a minha confiança em você. Trouxemos você para cá porque queremos que fique segura. Se alguma coisa acontecesse com você, principalmente por minha causa, eu jamais me perdoaria. Você é tudo o que me resta. Você e Victor. Você é minha família e eu não posso perdê-la.

— Mas eu não posso ficar aqui, querida. Já fiquei tempo demais. Amelia é gentil comigo, mas aqui não é a minha casa, e não quero ficar mais tempo do que ela quer que eu fique. Sinto como se minha presença fosse um fardo. Sinto falta das minhas plantas e da minha caneca de café favorita.

— Sra. Gregory — intervém Victor, impaciente, mas ainda respeitando os sentimentos dela. Ela se vira, mas ele faz uma pausa como se refletisse sobre algo. — Sarai não vai ficar segura se tiver que se preocupar com a sua segurança. Estou dizendo desde já: se a senhora voltar para casa, eles vão encontrar e matar a senhora assim que a virem, ou pior, vão sequestrá-la, torturá-la, gravar tudo em vídeo e usar as imagens para atingir Sarai. Entende o que estou dizendo?

A expressão grave e determinada de Dina desmorona sob um véu de sofrimento e resignação. Ela se vira para mim, com o semblante distorcido pela dor. Talvez esteja me pedindo uma confirmação das palavras de Victor, esperando que eu suavize a situação, que eu diga que ele só está sendo dramático. Mas não posso fazer isso. O que ele disse, embora brutal e sem rodeios, é exatamente o que ela precisa ouvir.

— Ele tem razão. Olhe, a gente vai dar um jeito nesses caras logo, tudo bem? Só preciso que você fique quietinha por mais um tempo, até a gente conseguir fazer isso.

— Mas concordo com a senhora — pondera Victor —, acho que não deve mais ficar aqui.

Dina e eu olhamos para ele ao mesmo tempo.

Victor continua:

— Quando estamos nos escondendo e ficamos tempo demais no mesmo lugar, com certeza somos encontrados.

— Então aonde ela deve ir? — pergunto, com várias possibilidades girando na cabeça, nenhuma das quais parece plausível. — Não me diga que quer levar Dina com a gente. Por mais que eu fosse adorar...

— Não, ela não pode ir com a gente — concorda Victor —, mas posso arranjar uma casa só para ela. Já fiz isso antes.

Afinal, Victor providenciou a casa em Lake Havasu City para mim e Dina.

— Mas você não disse que surgiu um problema e que a gente precisa ir embora antes do planejado? Não dá tempo de encontrar outra casa para ela. Isso levaria dias.

— Eu tenho uma casa — afirma Victor. — Fica longe do Arizona, mas acho que seria melhor para a senhora não ficar aqui por enquanto. O contato de Fredrik, o mesmo sujeito que trouxe a senhora para cá, pode levá-la a esse lugar. Está disposta a se mudar?

Dina se reclina no sofá, apertando as mãos uma na outra e as enfiando entre as pernas, vestidas em uma calça bege.

Eu me sento ao lado dela.

— Por favor, faça isso — peço a ela. — Vou me sentir muito melhor sabendo que você está segura.

Dina fica em silêncio por um longo momento, mas finalmente aceita.

— Estou velha demais para tanta emoção, mas tudo bem, eu vou. Só faço isso por você, Sarai.

Eu me inclino e a abraço.

— Eu sei, e é por isso que eu amo você.

— Onde fica a casa? — pergunto depois que deixamos Dina na casa de Amelia e pegamos a estrada. Ele não quis dizer antes a localização em voz alta, provavelmente porque não confiava no ambiente.

— Em Tulsa — responde Victor. — Tenho algumas casas espalhadas por aí, essa é uma delas. Nada luxuoso como a casa de Santa Fé, mas dá para morar nela, é aconchegante, e só a gente sabe que ela existe.

— Quem é esse contato de Fredrik, afinal?

— Ele não faz parte da Ordem, se é o que você quer saber. É só alguém que Fredrik conhece, um pouco como Amelia.

— Se não fazem parte da Ordem, quem eles são?

Victor me lança um olhar do banco do motorista.

— Amelia é só uma espécie de ex-namorada de Fredrik. Como os abrigos administrados pela Ordem, a casa de Amelia tem a mesma função. Mas temos muito menos preocupações em relação a ela, que nem sabe o que é a Ordem. Só o que ela tem é uma obsessão doentia por Fredrik e faz qualquer coisa que ele pedir.

— Ah, entendo — digo, embora não saiba direito se entendi. — Ela parece pegajosa.

— Pode-se dizer que sim.

— E o cara? Aquele que vai levar Dina até Tulsa?

Victor olha para a estrada, com uma das mãos relaxada na parte de baixo do volante.

— Ele é um dos nossos funcionários, na verdade. Um dentre uns vinte contatos que recrutamos desde que eu saí da Ordem. Nenhum deles sabe mais do que o necessário. Fredrik ou eu damos uma ordem, e, como em um emprego qualquer, eles obedecem. Claro que trabalhar com a gente é bem diferente de qualquer outro emprego, mas você entendeu.

— Eles não sabem o risco que correm por se envolver com você e Fredrik? E como vocês fazem para eles seguirem as ordens de vocês? O que eles fazem exatamente, além de levar Dina para um lugar qualquer, assim, do nada?

— Você está cheia de perguntas. — Victor sorri para mim. Uma carreta passa em disparada no sentido oposto, cegando-nos com os faróis altos. — Eles sabem do perigo, até certo ponto. Sabem que estão trabalhando para uma organização particular e são proibidos de falar sobre ela, mas nenhum dos nossos recrutas desconhece a discrição e a disciplina. Alguns são ex-militares, e todos foram escolhidos a dedo por mim. Depois de uma verificação completa do passado deles, é claro. — Victor faz uma pausa e acrescenta: — E eles fazem tudo o que pedimos, mas, para não metê-los em encrenca e proteger nossa operação, costumamos só pagar por tarefas simples. Vigilância. Compra de imóveis, veículos. E levar a sra. Gregory para um lugar qualquer, assim, do nada. — Victor sorri para mim de novo. — Como garantimos que eles sigam nossas ordens? O dinheiro é uma maneira formidável de influenciar pessoas. Eles são bem remunerados.

Apoio a cabeça no banco e tento esticar as pernas no chão do carro, já temendo a viagem longa.

— Um dos nossos homens estava no restaurante de Hamburg na noite em que eu encontrei você.

Tão depressa quanto apoiei a cabeça, levanto-a de novo e olho para Victor, em busca de mais explicações.

— A sra. Gregory só me ligou depois que você foi para Los Angeles — esclarece ele. — Eu estava no Brasil em uma missão, ainda procurando meu alvo depois de duas semanas. Fui embora assim que recebi a ligação da sra. Gregory, mas sabia que provavelmente não encontraria você a tempo, então entrei em contato com dois dos nossos homens que estavam em Los Angeles, dei a eles a sua descrição e alertei para que vigiassem o restaurante e a mansão de Hamburg. Eu sabia que você iria para um dos dois lugares.

Eu me lembro do homem atrás do restaurante depois que matei o segurança. O homem que misteriosamente me deixou fugir.

— Eu vi o cara. Fugi pela saída dos fundos e ele estava lá. Pensei que ele fosse um dos homens de Hamburg.

— Ele é — rebate Victor.

Pisco, atordoada.

— Ele e o outro homem foram dois dos meus primeiros recrutas. Los Angeles era a minha prioridade quando tudo isso começou.

— Você sabia que eu iria para lá.

Embora eu não queira tirar conclusões precipitadas e parecer iludida, sei que é verdade. Meu coração começa a bater como um punho quente. Saber a verdade, saber que Victor estava, durante todo aquele tempo, pensando em mim mais do que eu jamais poderia imaginar me deixa feliz e culpada. Culpada porque o acusei de me abandonar.

— Eu esperava que você esquecesse essa história. Mas, no fundo, sabia que você voltaria lá.

Ficamos em silêncio por um instante.

— Ele está bem? — pergunto, sobre o homem nos fundos do restaurante.

Victor assente.

— Está ótimo. Ele tinha sido contratado por Hamburg meses antes. Conhecia a planta do restaurante e sabia que a única saída alternativa da sala de Hamburg no andar de cima era a dos fundos. A propósito, ele quer pedir desculpa.

— Como assim? Ele me ajudou a fugir.

— A ordem que eu dei a ele foi para não deixar de jeito nenhum que você entrasse naquela sala. Foi a peruca platinada. Ele sabia que você tem cabelo castanho-avermelhado e comprido, não curto e louro. Quando ele se deu conta de quem era, Stephens já estava levando você. Ele não podia entrar porque a sala estava sendo vigiada, por isso foi até os fundos do restaurante, torcendo para conseguir entrar por ali de alguma forma, mas havia outros dois homens de guarda. Eles puxaram conversa e o seguraram ali, até que por fim ele os convenceu a deixá-lo vigiar o lugar sozinho. Logo depois, você saiu pela porta dos fundos.

Respiro fundo e apoio a cabeça no banco de novo.

— Bom, diga a ele que não precisa pedir desculpa. Mas por que ele não me disse logo quem era? Ou não me levou até você?

— Ele precisava segurar o Stephens tempo suficiente para você conseguir fugir, e o fato de ele continuar trabalhando para Hamburg ajuda. Ele não sabe o que os dois planejam nem coisa alguma sobre as operações. É só um segurança, nada além disso. Mas está lá dentro, e isso já é valioso para a gente.

Desafivelo meu cinto de segurança e me esgueiro entre os bancos da frente com a bunda empinada (de um jeito bem deselegante para uma dama, admito) para alcançar o banco de trás. Flagro Victor admirando a cena enquanto me espremo para passar, e isso me faz corar.

— Só tenho mais uma pergunta a acrescentar à lista.

— O que seria? — pergunta ele, zombando de mim.

— Por quanto tempo a gente vai ter que viajar assim? — Estico as pernas no banco de trás e me deito. — Sinto muita falta dos jatinhos particulares. Essas viagens longas de carro vão acabar me matando.

Victor ri. Acho isso incrivelmente sexy.

— Você está dormindo com um assassino, fugindo todo dia de homens que querem matar você e acha que vai morrer por falta de conforto. — Ele ri de novo, e isso me faz sorrir.

— É, acho — digo, me sentindo só um pouco ridícula. Não posso negar a realidade, afinal, por mais sem sentido que ela seja.

— Não vai ser por muito mais tempo — responde Victor. — Não podemos chamar atenção até que eu consiga me livrar completamente de Vonnegut. Ele tem contatos em muitas áreas, e transportes luxuosos, confortáveis e secretos estão no topo de sua lista de prioridades, por motivos óbvios. Dou menos na vista viajando de trem do que de jatinho particular.

Satisfeita com a resposta, não digo mais nada sobre o assunto e olho para cima, para o teto escuro do carro.

— Só para constar — digo, mudando de assunto —, eu não estou só dormindo com um assassino. Estou muito envolvida com ele.

— É mesmo? — pergunta Victor, e sei que ele está sorrindo.

— Sim, temo que seja verdade — digo, em tom de brincadeira, como se fosse algo ruim. — E é um envolvimento bem pouco saudável.

— É mesmo? Por que você acha isso?

Suspiro, dramática.

— Ah, sei lá. Talvez porque ele nunca vai conseguir se livrar de mim.

— Pegajosa. Como Amelia — provoca Victor, tentando me irritar.

E ele consegue. Eu me levanto um pouco e dou um soco de leve em seu ombro. Ele se encolhe, fingindo dor, mesmo com um sorriso largo no rosto.

— Longe disso — digo, e volto a me deitar. — Nem ferrando que eu vou fazer tudo o que ele quer, como a Amelia.

Victor ri baixinho.

— Bem, pelo jeito ele vai ter que aguentar você para sempre, então.

— Vai, e para sempre é muito tempo.

Ele faz uma pausa e então diz:

— Bom, só para constar, algo me diz que ele não gostaria que fosse diferente.

Adormeço no banco de trás muito tempo depois, com um sorriso no rosto que pareceu continuar ali pelo resto da noite.


CONTINUA

CAPÍTULO NOVE

Sarai

Estou mordendo o lábio por dois motivos: porque estou torcendo para que seja uma boa notícia e porque estou sexualmente frustrada. Victor fala com Fredrik por menos de dois minutos, desliga e digita outro número. Quando consegue falar com Dina, ele me passa o celular.

Pego o aparelho e o encosto no ouvido.

— Dina?

— Sarai, meu Deus, onde você está? O que está acontecendo? Eu estava sentada na sala vendo TV e um homem bateu na porta. Eu não ia deixar ele entrar, fiquei desconfiada na hora; estava quase pegando minha espingarda. Mas ele disse que queria falar de você. Ah, Sarai, fiquei com tanto medo de que tivesse acontecido alguma coisa! — Ela finalmente respira.

— Você está bem? — pergunto, baixinho.

— Sim, sim, estou ótima. O melhor que eu poderia estar. Mas ele me falou que iríamos para a delegacia encontrar você. Até me mostrou um distintivo. Não acredito que caí nessa. O cavalheiro mentiu para mim. — Dina para de falar e abaixa a voz, como se estivesse sussurrando para ninguém ouvir. — Ele me levou para a casa de uma prostituta. O que está acontecendo? Sarai...

— Vai ficar tudo bem, Dina, prometo. E não se preocupe. Seja lá quem more nessa casa, duvido que seja uma prostituta.

Os olhos de Victor cruzam com os meus. Desvio o olhar.

— Onde você está? Quando vai voltar? Sei que você está metida em alguma encrenca, mas sempre pode me contar tudo.

Gostaria que isso fosse verdade. Mais do que tudo, neste momento. Mas a verdade maior é que não sei como responder às perguntas de Dina. Victor deve ter percebido a fisionomia confusa no meu rosto, porque tirou o telefone da minha mão.

— Sra. Gregory — diz ele ao telefone. — Aqui é Victor Faust. Preciso que a senhora me ouça com bastante atenção. — Ele espera alguns segundos e continua. — A senhora vai precisar ficar onde está pelos próximos dias. Vou levar Sarai para vê-la em breve, e vamos explicar tudo, mas, até lá, precisa ficar escondida. Não, sinto muito, mas a senhora não pode voltar... Não, não é seguro lá. — Ele assente algumas vezes, e percebo, pelas leves rugas que se formam entre seus olhos, que ele não se sente à vontade falando com ela, como se alguém colocasse de repente um bebê no colo dele. — Sim... Não, me escute. — Ele perde a paciência, então vai direto ao assunto. — É uma questão de vida ou morte. Se a senhora sair ou ligar para qualquer conhecido, vai acabar morrendo.

Tenho um sobressalto e me encolho com essas palavras, não por serem verdade (isso eu já sabia), mas porque fico imaginando a reação de Dina a elas. Só posso imaginar o que ela deve estar pensando nesse momento, como deve estar apavorada. Apavorada por mim, não por si mesma, e isso faz doer ainda mais.

— Sim, ela está bem — afirma Victor mais uma vez para tranquilizá-la. — Só mais alguns dias. Eu vou levar Sarai aí.

Falo com Dina por mais alguns minutos, contando o que posso, mas sem revelar demais, para acalmá-la. Claro que isso não está ajudando muito, considerando as circunstâncias. Nós desligamos e eu fico ali na sala, me sentindo muito diferente de como me sentia antes da ligação.

Acho que enfim caiu a ficha do tamanho da merda que fiz.

Antes, quando achava que era eu quem corria o maior perigo, e depois que disse para Eric e Dahlia saírem de Los Angeles, eu estava preocupada, mas não tanto assim. Os danos que causei afetam mais do que minha própria segurança. Sem querer, pus todas as pessoas que conheço e amo em perigo.

A realidade de tudo isso, dos meus atos e das consequências em efeito dominó, o fato de Victor ter me deixado, de eu ter tentado levar uma vida normal e fracassado; não consigo mais. Não suporto mais nada disso. Cacete, até a dorzinha por ter encontrado Dahlia com Eric está começando a me incomodar. Não por causa de Eric, ou porque ele era meu “namorado”, mas porque o que eles fizeram não me afetou como deveria ter afetado.

Sou uma aberração. E, no momento, não consigo perdoar Victor por me fazer passar por essa situação, por me jogar em uma vida que nós dois sabíamos que não serviria para mim e por esperar que eu me adaptasse. Eu não queria desde o começo. E foi exatamente por isso que não deu certo.

As lágrimas começam a inundar meus olhos. Deixo que caiam. Não me importa.

Sinto a presença de Victor atrás de mim, mas antes que ele me toque me viro para encará-lo com a raiva distorcendo meu rosto. E enfim certas coisas que eu queria dizer a ele depois de todo esse tempo saem, em uma tempestade de palavras furiosas.

— Você me abandonou, porra! — Bato com as palmas das mãos em sua camisa social justa. — Você deveria ter me matado e pronto! Você consegue imaginar o que me fez passar?! — Lágrimas cheias de raiva escorrem dos cantos dos meus olhos.

— Me desculpe...

Franzo a testa na mesma hora.

— Você quer se desculpar? — Solto o ar ruidosamente. — É só isso que você consegue dizer? Me desculpe?

No fundo, sei que nada disso é culpa de Victor, sei que ele só fez o que fez para me proteger. Mas a maior parte de mim, a parte que não quer acreditar que eu não tenho mais salvação, quer pôr a culpa em qualquer um, menos em mim mesma.

As lágrimas começam a me fazer engasgar.

— Toda santa noite — disparo, apontando com raiva para o chão, meu rosto retorcido de raiva e rancor —, todas as horas de todos os dias, eu pensava em você. Só em você, Victor. Eu vivia cada dia com esperança, acreditando de coração que você ia voltar para mim. Os dias passavam e você não aparecia, mas nunca perdi a esperança. Eu pensava comigo mesma: Sarai, ele está vigiando você. Ele está testando você. Ele quer que você faça o que ele disse, que tente ser como todo mundo, que tente se misturar. Quer que você prove para ele que é forte o suficiente para enfrentar qualquer situação, se adaptar a qualquer estilo de vida. Porque, se você não consegue fazer algo tão simples quanto levar uma vida normal, nunca vai conseguir viver com ele. — Mordo o lábio inferior e tento sufocar as lágrimas. Balanço a cabeça devagar. — Isso era o que eu pensava. Mas fui idiota por achar que você tinha alguma intenção de voltar para mim. — Um tremor induzido pelo choro percorre meu peito.

Victor, com o semblante angustiado que nunca imaginei ver nele, se aproxima. Recuo, balançando a cabeça sem parar, esperando que ele entenda que não estou pronta para ficar muito perto. Quero ficar sozinha com a minha dor.

— Sarai? — diz ele, baixinho.

— Não — digo, recusando-o com um gesto. — P-por favor, me poupe das desculpas e dos motivos pelos quais sei que não posso culpar você. Eu sou egoísta, ok? Eu sei! Já sei que você fez o que precisava fazer. Já sei...

— Não, não sabe.

Levanto os olhos para encontrar os dele.

Victor se aproxima. Desta vez não me afasto, minha mente está paralisada por suas palavras, por mais escassas ou vagas que elas sejam. Ele segura meus cotovelos e descruza minhas mãos. Seus dedos roçam de leve a pele sensível da parte interior dos meus braços, descem até encontrarem minhas mãos e as seguram.

— Eu saí da Ordem principalmente por causa de você, Sarai — explica Victor, e o resto do meu corpo fica paralisado. — Quando Vonnegut descobriu que eu estava ajudando você, ele soube... — Ele faz uma pausa, parecendo estar vasculhando sua mente à procura das palavras menos perigosas. — Ele soube que eu me comprometi...

Jogo as mãos para cima.

— Fale inglês! Por favor, diga de uma vez sem se esforçar tanto para fazer rodeios! Por favor!

— Vonnegut soube que eu tinha... começado a gostar de você.

Fico paralisada e meus lábios se fecham. Meu coração bate descompassado. Minhas lágrimas parecem secar em um instante, só as que molham minhas bochechas continuam escorrendo.

— Como eu era o Número Um de Vonnegut, seu “favorito”, a última coisa que ele queria era mandar me matar. Ele me afastou do serviço, me desligou por um tempo, até... que eu criasse juízo.

Faço uma cara de “que-droga-isso-significa”.

— Pode chamar de lavagem cerebral — acrescenta Victor.

Ele afasta a ideia com um gesto.

— Não importa. O que importa é que ele ia me dar uma única chance de provar que o meu sentimento por você era só um lapso, e que nunca mais iria acontecer. Pouquíssimos agentes têm uma segunda chance na Ordem.

— Um lapso? — Eu me sento na mesinha de centro. Olho para Victor e digo: — Para mim, parece que Vonnegut queria que você provasse que não é humano, mas sim o soldado obediente a ele, incapaz de ter emoções. Que babaca desequilibrado.

Victor assente e se agacha diante de mim, entrelaçando os dedos, com os cotovelos apoiados nas coxas.

— Vonnegut mandou que eu matasse você — conta ele em voz baixa, sustentando o meu olhar. — Para provar a mim mesmo. Eu disse que ia fazer isso, que queria fazer, provar que eu era digno de confiança, e ele me soltou. Claro que eu não tinha nenhuma intenção de matar você. Parti naquele dia e procurei um esconderijo. Niklas, que só conheceu a Ordem a vida inteira, decidiu ficar. Pensei que talvez ele só precisasse de um tempo para entender o que estava acontecendo e decidir o que era melhor para ele. Eu também estava me escondendo de Niklas. Sem saber onde eu estava, ele não precisaria enganar Vonnegut nem achar que precisava escolher entre mim e ele. Mas aí Fredrik me contou que Niklas foi contratado para me matar e está me procurando desde então.

— Que desgraçado — comento, balançando a cabeça sem acreditar, mas depois penso de novo. — Você disse que saiu da Ordem principalmente por minha causa. Além de mim, qual foi o outro motivo?

— Isso já estava para acontecer havia muito tempo — conta Victor. — Quando precisei matar meu pai para salvar meu irmão, entendi que era hora de sair. — Seus dedos fortes acariciam os meus, mais delicados. — Você me deu a motivação final de que eu precisava para fazer isso de uma vez.

Com a ponta dos dedos, acaricio seu rosto com a barba um pouco por fazer. Victor continua a me encarar, seus olhos sondando os meus através do pequeno espaço entre nós, cheios de paixão e compreensão. Eu me curvo e beijo seus lábios.

— Eu sinto muito pelo seu irmão — digo, baixinho.

Ele roça os lábios nos meus, e a sensação se espalha pelo meu corpo até os dedos dos pés, como uma dose de uísque.

— Eu não estava testando você, Sarai. — Ele me beija de novo.

— Então o que você estava fazendo? — Eu o beijo também e derreto ao sentir suas mãos se movendo por minhas coxas.

Victor me ergue nos braços, envolvendo minhas pernas em sua cintura, minha bunda acomodada nas palmas de suas mãos enormes. Meus dedos sobem pelos lados de seu rosto e tocam sua boca antes que meus lábios toquem também.

— Eu estava esperando o momento certo — diz ele enquanto sua boca encontra meu pescoço.

Enfio os dedos em seu cabelo castanho curto, erguendo o queixo ao sentir sua boca explorando meu pescoço e meu maxilar. Meus olhos estão fechados, as pálpebras pesadas, e sinto um formigamento quente ao qual sei que não dá para resistir. Victor me carrega pela sala, embora eu não saiba para onde nem me importe com isso. Aperto mais as pernas nuas ao redor de sua cintura, sentindo a superfície fria e lisa de seu cinto de couro pressionando o interior das minhas coxas. Meus dedos estão trabalhando nos botões de sua camisa, abrindo-os com facilidade.

Victor não responde às minhas perguntas, mas isso também não me importa.

Os lábios dele cobrem os meus, a umidade quente de sua língua se entrelaçando avidamente com a minha. Sem parar de me beijar, Victor me faz apoiar os pés no chão para tirar minha calcinha, uma perna de cada vez. Ele ergue meus braços e tira minha camiseta, jogando-a no chão. Minhas mãos mexem no cinto dele, movendo a lingueta do buraco e puxando a tira de couro de uma só vez em um movimento rápido. Ele tira a calça e a cueca boxer preta. Minha boca recebe seu hálito quente e ofegante enquanto ele me carrega mais uma vez e pressiona minhas costas na parede, como se não quisesse esperar para chegarmos ao quarto de hóspedes. Também não quero esperar. Já esperamos demais.

Sinto seu pau entrando em mim, e, antes que ele deslize até o fundo, uma descarga de prazer corre pelas minhas coxas e sobe pela coluna, relaxando meu pescoço e fazendo minha cabeça se apoiar na parede. Sinto meus olhos formigando e ardendo. A umidade morna entre minhas pernas é inundada por um êxtase quente e trêmulo.

Ele mete uma vez bem fundo e se mantém ali, segurando meus quadris, com minhas costas pressionadas contra a parede fria. Abro os olhos devagar, ainda sem controlar direito as pálpebras, e o encaro. Ele me fita com a mesma intensidade voraz. Minha respiração é curta e irregular quando escapa dos meus lábios entreabertos. Meus braços estão ao redor dele, em um abraço apertado, meus dedos cravados nos músculos rijos de suas costas.

— Eu queria isso há tanto tempo — digo, ofegante.

— Você não faz ideia... — rebate Victor, para então me devorar com um beijo, tão violento que quase perco o controle dos meus músculos.

Minhas coxas se contraem em sua cintura quando ele mete seu pau em mim de novo. Estremeço e gemo, minha cabeça bate com força na parede. Ele segura meu corpo no lugar com os braços encaixados nas minhas coxas, forçando seu quadril contra o meu, e eu sinto pequenas explosões no estômago a cada investida.

Minhas costas se arqueiam, meus seios ficam expostos a ele, que cobre um mamilo com a boca. Ergo os braços acima da cabeça, procurando alguma coisa onde eu possa me segurar para cavalgá-lo, mas não encontro nada. Envolvo seu pescoço com os braços para sustentar meu peso e rebolo em sua virilha, gritando e gemendo, desesperada para mergulhar cada centímetro do seu pau duro tão fundo quanto possível. Seus dedos afundam dolorosamente nas minhas costas. Sua língua se enrosca na minha, seus gemidos atravessam meu corpo.

Gozo rápido e forte, minhas pernas e o ponto entre elas se contraindo ao redor dele, meus músculos tremendo. Ele goza segundos depois e segura meu corpo bem firme no lugar, com minha bunda em suas mãos musculosas, para se esvaziar dentro de mim.

Nesse momento, não estou nem aí para as consequências do que acaba de acontecer. Mas só nesse momento.

Com a cabeça apoiada no ombro dele, Victor me carrega pelo corredor até o banheiro espaçoso em frente ao quarto de hóspedes. Ele me senta na bancada e fica de pé no meio de minhas pernas nuas.

— Não se preocupe. — Ele dá um beijo na minha testa e abre a porta de vidro do boxe do chuveiro.

— Com o quê? — pergunto, confusa.

Ele gira a torneira, que range, e regula a água quente e a fria até encontrar a temperatura desejada. Eu o observo da bancada, o modo como seu corpo alto e escultural se move, as curvas de seus músculos entalhadas em um desenho poético ao redor de seus quadris, suas panturrilhas enrijecendo quando ele anda.

Ele volta para perto de mim e termino de tirar sua camisa, deslizando-a por seus braços musculosos.

— Você não vai engravidar — diz ele, e me manda descer da bancada e segui-lo até o chuveiro. — Não de mim, pelo menos.

Um pouco surpresa, deixo por isso mesmo.

Ele fecha a porta do boxe e começa a lavar meu cabelo. Eu me perco naquela proximidade, no modo como suas mãos exploram meu corpo com tanta precisão e desejo.

Por muito tempo, esqueço que ele é um assassino cujas mãos tiraram muitas vidas sem sequer um pensamento de remorso ou arrependimento. Esqueço que também sou uma matadora cujas mãos tiraram uma vida há poucas horas.

Parece que fomos feitos um para o outro, como duas peças de um quebra-cabeça que de início parecem não se encaixar, mas que se adaptam perfeitamente quando vistas pelo mais improvável dos ângulos.


CAPÍTULO DEZ

Victor

A empregada de Fredrik volta para a casa bem cedo na manhã seguinte. Acordo assim que amanhece, e ela entra em casa quando estou tomando meu café no pátio dos fundos. Ela me vê através da porta de vidro ao passar pela sala, e então vem falar comigo no pátio.

— Gostaria de café da manhã, señor? — pergunta ela em espanhol.

Deixo a pasta com meu próximo serviço virada para baixo na mesinha de ferro batido.

— Obrigado, mas não vou comer — respondo, e depois aceno para Sarai, que está andando pela sala, procurando por mim. — Mas ela vai.

— Eu vou o quê? — pergunta Sarai ao passar pela porta de vidro aberta. Ela anda descalça pelo pátio de pedra, usando outra camiseta de Fredrik. Fico muito incomodado por ela ter que usar roupas dele em vez das minhas, mas a única roupa que tenho é a que estou usando, além de um short largo de corrida. O cabelo longo e castanho de Sarai está despenteado, pois ela acaba de acordar e sair da cama.

Ela se senta no meu colo e eu encaixo a mão direita entre suas coxas.

— Café da manhã.

Sarai boceja e estica os braços para o alto antes de apoiar a cabeça no meu ombro. Ponho a mão esquerda em sua cintura para mantê-la equilibrada no meu colo. O cheiro da pele e do cabelo recém-lavados de Sarai acelera meu corpo todo.

Ela faz uma careta sutil, meio que rejeitando a ideia.

— É melhor você comer.

Levantando a cabeça do meu ombro, Sarai olha para mim por um momento, pensativa, e depois dirige sua atenção para a empregada.

— Claro, eu gostaria de tomar café da manhã, se não for incômodo — diz, em espanhol.

Por um momento, a empregada parece surpresa por ouvir Sarai falando seu idioma nativo, mas ela logo se recompõe, assente e volta para dentro da casa.

— Acho que a gente já adiou essa questão o suficiente — diz Sarai. — Para onde é que vamos, Victor? O que eu vou fazer?

Estou pensando exatamente nisso desde que descobri que ela veio para Los Angeles e fez o que fez. Olho para a piscina, perdido em pensamentos, minha última tentativa desesperada de organizar as respostas na cabeça. Mas elas continuam tão fragmentadas e bagunçadas quanto sempre estiveram. Todas, menos uma.

— Sarai — digo, olhando novamente para ela —, você não pode voltar para casa. Eu sabia disso na primeira vez em que mandei você para o Arizona. A situação não estava nem de longe tão terrível quanto ficou depois, mas, agora que as coisas mudaram, você não pode mais voltar.

— Então vou ficar com você — rebate ela. Pela primeira vez na vida, não tenho coragem de protestar. Nem contra ela nem contra mim mesmo. A maior parte de mim, a parte humana e imperfeita, quer que Sarai fique comigo, e nada vai me impedir de fazer isso dar certo.

Mas sei que não vai ser fácil.

— Sim — digo, passando a mão em sua coxa macia —, você vai ficar comigo, mas há muitas coisas que precisa entender.

Ela se levanta do meu colo e fica de pé na minha frente, com um braço na frente do corpo e o outro cotovelo apoiado nele. Distraída, ela passa as pontas dos dedos no rosto macio, fitando o que parece ser o nada. Então ela me olha e balança a cabeça com uma expressão perplexa.

— Eu esperava que você fosse resistir mais. Qual é a pegadinha? A despeito do que aconteceu entre a gente ontem à noite, ou do que está acontecendo desde que nos separamos, nunca pensei que você fosse concordar em me levar junto.

— Você gostaria que eu resistisse? — Abro um sorriso capcioso.

Ela sorri também e deixa os braços relaxarem.

— Não. Com certeza não. E-eu só...

Levanto uma perna e apoio o pé no outro joelho.

— Nunca me imaginei em uma situação dessas. Não posso mentir e dizer que acho que vai dar certo. Muito provavelmente não vai, Sarai, e você precisa entender isso. — Ela parece ficar um pouco desanimada, o bastante para eu saber que minhas palavras sinceras a entristeceram mais do que ela se permite revelar. — Não posso mudar o meu jeito. Não só porque é tudo o que sei fazer, ou porque é o que faço melhor, mas também porque não quero. — Olho para Sarai. — Eu nunca vou parar de fazer o que faço.

— Eu nunca ia querer que você parasse — retruca ela, com certa intensidade. Sarai puxa uma cadeira próxima e a coloca diante de mim antes de se sentar. — Tudo o que eu quero, Victor, é ficar com você. Vou fazer qualquer coisa que você espere que eu faça, mas quero que me ensine...

Levanto a mão e a interrompo imediatamente.

— Não, Sarai, também não vou fazer isso. Não é assim que vai ser. — Sua expressão se anuvia e ela desvia o olhar, magoada com minha recusa. — Já falei, eu praticamente nasci nesta vida. Você ia levar quase o resto da sua para aprender a fazer o que eu faço, e mesmo assim não ia ficar boa o suficiente.

— Então, o que eu devo fazer? — pergunta ela, com um tom de ressentimento na voz. — Quero estar com você aonde quer que vá, mas não quero ficar à toa, tomando martínis na praia enquanto você sai para matar pessoas. Eu não sou inútil, Victor, posso fazer alguma coisa.

— Você pode fazer muitas coisas, sim — digo, interrompendo-a. — Mas fazer o que eu faço está totalmente fora de cogitação. Por que você quer tanto isso? — Levanto a voz quando sinto, de repente, uma necessidade desesperada de entender a resposta.

Sarai bate as palmas das mãos nas coxas nuas.

— Porque é o que eu quero.

— Mas por quê?

Ela ergue as mãos para os lados e grita:

— Porque eu gosto! Entendeu?! Eu gosto!

Pisco algumas vezes, completamente atordoado por essa confissão. Na verdade, essa era a última coisa que eu esperava ouvir de Sarai. Parte de mim sabia que ela era mais do que capaz de tirar a vida de alguém e dormir em paz toda noite depois disso, mas nunca previ que ela fosse gostar de matar.

Não sei ao certo como me sinto a respeito disso. Preciso de mais informações.

Eu me inclino para a frente e fico cara a cara com Sarai.

— Você gosta de matar? — pergunto, embora isso saia mais como uma afirmação. — Então, se alguém pedisse a você que tirasse a vida de outra pessoa, você faria isso sem questionar?

— Não — responde ela, franzindo o cenho. — Eu não mataria qualquer um, Victor, só homens que merecessem.

Homens? Esse lado de Sarai está ficando mais intrigante. Eu me pergunto se ela sabe o que acaba de dizer. Homens. Não pessoas em geral, mas homens.

Eu me afasto dela e me reclino na cadeira de novo, virando a cabeça para o lado, pensativo.

— Explique.

Ela também se recosta, encolhendo as pernas e apoiando os pés no assento, virando os joelhos para o lado.

— Homens como Hamburg. Homens como Javier Ruiz, Luis e Diego. Homens como o segurança que matei ontem. Willem Stephens, pelo simples fato de trabalhar para Hamburg sabendo o que o chefe faz. Homens como John Lansen e todos os outros que conheci naquelas festas de gente rica quando estava com Javier. — Seu olhar penetra o meu. — Homens que merecem ter a garganta cortada.

A gravidade das palavras de Sarai e a determinação em seu rosto me silenciam por um momento. Será possível que eu agora tenha não um, mas dois assassinos por perto que compartilham o gosto pelo derramamento de sangue? E, no exato momento em que o rosto surge na minha mente junto com o de Sarai, ouço o carro de Fredrik na entrada da garagem. Isso interrompe o momento intenso, e ambos olhamos para cima.

Instantes depois, Fredrik, vestido de maneira informal com um jeans escuro e uma camisa de grife, vem nos encontrar no pátio. Ele deixa o jornal do dia na mesa de centro e diz:

— É melhor você dar uma olhada nisso. — Então olha para Sarai por um momento. — A propósito, minhas roupas ficam bem em você.

Fuzilo Fredrik com o olhar, mas escondo meu ciúme antes que qualquer um dos dois perceba.

Sarai e eu olhamos para o jornal, mas sou eu quem o pega. Desdobrando-o, corro os olhos pelo texto até encontrar aquilo a que Fredrik se refere.

Quatro pessoas foram encontradas mortas a tiros em um hotel de luxo de Los Angeles, na madrugada passada. Somente dois corpos foram identificados, os de Dahlia Mathers, 23 anos, e Eric Johnson, 27 anos, ambos de Lake Havasu City, Arizona.

Algumas frases abaixo:

Sarai Cohen, também de Lake Havasu City, é procurada pela polícia para prestar esclarecimentos.

Acho que não importa que identidade Sarai usou para fazer o check-in no hotel, o rosto dela é o mesmo nas duas.

Ela arranca o jornal das minhas mãos antes que eu possa terminar.

— Não... — Ela cerra os dentes e seu rosto fica sério enquanto lê a notícia trágica sobre seus amigos. Ela procura meus olhos, mas logo se volta para o jornal, como se sua mente torcesse para ter lido tudo errado na primeira vez. — Falei para eles irem embora de Los Angeles! Dahlia disse que eles iam embora... — Seus olhos verdes encaram os meus, cheios de desespero e despedaçados pela culpa.

Fico de pé.

Sarai pega o jornal com as duas mãos e o rasga bem no meio, amassando as duas metades em seus punhos.

— Eles mataram Dahlia e Eric, porra! — ruge ela. — Eles estão mortos!

O jornal cai de suas mãos e voa pelo pátio de pedra.

Fredrik apenas me olha, esperando para ver o que vou fazer ou dizer. Ele não fala, mas percebo que quer.

— Sarai. — Por trás dela, ponho as mãos em seus ombros. — Eu vou cuidar disso.

Ela se vira para mim. Seu cabelo balança ao redor da cabeça antes de cair de novo nos ombros e seu rosto está ardendo de fúria.

— ELES MORRERAM POR MINHA CAUSA! COMO LYDIA!

Tentando acalmá-la, aperto seus ombros com força, de frente, e a seguro.

— Eu disse que vou cuidar disso — repito com ainda mais intensidade e sinceridade do que antes. Eu me inclino para a frente para manter seu olhar fixo no meu. — Vou fazer isso por você, Sarai. Hamburg e Stephens estarão mortos antes do fim desta semana.

Ela não ouve. Está me encarando, mas parece estar olhando através de mim. Seu peito sobe e desce com a respiração ofegante e irregular. Suas pupilas parecem pequenas, como buracos de grampos em uma folha de papel. O verde de seus olhos parece ter escurecido.

— Não — rebate ela, com a voz calma. — Não quero que você faça nada.

Absorta em pensamentos, ela dá um passo para trás, e minhas mãos caem de seus ombros.

— Vou fazer isso por você. Eu quero...

— Eu disse que não! — Ela dá mais dois passos e se vira, me dando as costas e olhando para a piscina. — Eu vou fazer isso — afirma ela, em voz baixa e decidida. — Vou matar os dois e não quero que você se meta.

— Acho que não...

Ela vira a cabeça, seus olhos escuros cruzando com os meus.

— Se você matar qualquer um deles, nunca vou perdoar você. Isso é assunto meu, Victor! Me deixe fazer pelo menos isso!

— Sarai, você não pode matá-los. — Eu me aproximo dela. — A única pessoa que vai morrer é você. Não vai conseguir...

— Estou cagando para isso! — Percebo que o objetivo de Sarai é inabalável. Ela volta para perto de mim. — Ou você me ajuda a fazer isso ou eu mesma vou descobrir como fazer. Eles vão morrer nas minhas mãos, não nas suas, nas de Fredrik nem nas de qualquer outra pessoa. Só nas minhas. Me ensine. Me mostre o que fazer. Qual é a melhor forma de agir para alguém como eu. Me ajude, ou vou morrer tentando por minha conta. Para mim, tanto faz.

— Eu não vou... você não pode — retruco, balançando a cabeça.

Sarai desiste e tenta me empurrar para fora de seu caminho. Mas não deixo que ela passe. Não posso, pois sei que cada palavra que ela disse foi a sério.

Eu a seguro pelo pulso, detendo sua marcha furiosa até a porta de vidro. Fredrik sai do caminho, assistindo ao desenrolar da cena com um brilho estranho nos olhos, que só posso interpretar como fascinação.

— Me solte!

— Você não vai embora. — Eu a prendo pelo pulso com força, e agarro o outro quando ela começa a me bater.

Ela quer descontar toda a raiva em mim, gritar na minha cara, me xingar com as palavras que tanto quer dizer a Hamburg e Stephens antes de matá-los, mas não consegue. A raiva, como sempre, a domina, e Sarai cai no choro.

Ela me disse uma vez que sempre chora quando está furiosa.

As lágrimas escorrem como rios por seu rosto. Sarai tenta mais uma vez se desvencilhar de mim, mas a seguro firme e faço uma pressão dolorosa sobre seus pulsos, tentando acalmá-la.

— Victor, por favor! Porra, basta me ensinar, cacete! Mesmo que seja matar os dois e mais ninguém! É tudo que eu peço! Nunca mais vou pedir a sua ajuda! POR FAVOR!

Sarai enfim para de se contorcer e desaba sobre meu peito. Eu a envolvo em meus braços, aninhando sua nuca nas mãos e pressionando o lado do meu rosto no alto de sua cabeça. Sarai chora com violência, seu corpo treme no meu abraço. Não são gritos de tristeza e dor, são gritos de culpa, raiva e da necessidade desesperada de vingar a morte de pessoas — até de Lydia — que poderiam ainda estar vivas, se não fosse por ela.

Fredrik olha para mim. Sei o que a expressão calma dele quer dizer. Ele acha que eu deveria dar a Sarai o que ela quer.

Mas não é a opinião de Fredrik que me faz decidir, no fim das contas. É minha necessidade de proteger Sarai, ainda que ela possa acabar morta no final.

Escolho o mais seguro dos dois caminhos malfadados.

— Eu vou ajudar você.


CAPÍTULO ONZE

Sarai

Levanto o rosto do peito de Victor, fungando as malditas lágrimas que mais uma vez me traíram em um momento de fraqueza.

— Você vai me ajudar a matá-los?

Ele assente.

— Vou.

— Obrigada — digo, baixinho.

Fico na ponta dos pés e dou um beijo suave em sua boca.

Da porta de vidro atrás de nós, a empregada diz com uma voz fraca:

— O café está pronto.

Ela nos fita com seus olhos escuros e curiosos, sem dúvida por ter ouvido a discussão enquanto estava lá dentro.

— Marta faz uns ovos mexidos ótimos — comenta Fredrik, com um sorriso radiante, como se nada tivesse acontecido. — Frita em gordura de bacon. — Ele junta os dedos nos lábios e os beija. — Adoro comida americana.

Ele vai atrás de Marta.

— Se bem que parece que ovos mexidos em gordura de bacon é uma comida do Sul, não? — pergunta ele, olhando para nós enquanto o seguimos.

Victor dá de ombros.

— Bem, Marta não é exatamente do Alabama — continua ele, ao entrarmos na cozinha. — Mas sabe cozinhar como se fosse.

Fredrik e Victor continuam tagarelando sobre comida, provavelmente para me fazer esquecer o que aconteceu. Mas, nesse momento, nada mais me importa além do rosto de Dahlia e Eric na memória. Sei que estou sendo punida. Pela vida. Pelo destino. Não sei por quem ou pelo quê, só sei que faria qualquer coisa para devolver a vida aos meus amigos.

Nós três nos sentamos à mesa com tampo de vidro da cozinha e comemos. E acho quase engraçado Fredrik fazendo Marta provar a comida antes de nos servir, como se ele tivesse aprendido essa técnica paranoica no Manual de Victor Faust.

Durante o café, que dura muito tempo por causa da conversa, Fredrik acaba liberando Marta pelo resto do dia. Isso acontece logo depois que ele começa a falar em sueco com Victor. Odeio não entender o que eles dizem, mas fica claro para mim que era por causa de Marta, e não por mim.

Marta pega a bolsa e se despede de nós, agradecendo a Fredrik por pagar um dia inteiro.

— Por que isso? — pergunto, depois que ela vai embora.

Apoio o garfo no prato ao terminar meu café.

— Temos muito o que conversar — explica Fredrik, tomando um gole de suco de laranja. — E ela não pode ouvir a conversa. — Ele aponta para mim e sorri. — E Marta, embora não pareça, ouve tudo o que acontece por aqui.

— Então por que vocês não continuaram conversando em sueco? — questiono.

— Você fala sueco? — rebate Victor.

— Não.

— Bem, você tem que participar da conversa — diz ele, deixando o copo d’água na mesa.

Sorrio. Nesse momento, me sinto parte deles pela primeira vez. Dos dois. Nós três sentados à mesa, que minutos depois já está livre dos pratos e dos copos, substituídos por pastas e fotografias de serviços de execução. Para mim, é meio surreal discutir detalhes de interrogatórios e assassinatos tão casualmente, como se estivéssemos falando do tempo. Mas também, pela primeira vez na vida, sinto que pertenço a algum lugar. Não estou mais andando por um túnel escuro, com as mãos à frente, procurando a porta. A porta está bem ali, à mostra, e já passei por ela. Enfim encontrei meu lugar na vida. E estou com Victor, o que para mim é mais importante do que tudo.

Finalmente estou com Victor.

Victor e eu saímos da casa de Fredrik nas colinas de Los Angeles no fim da tarde e dirigimos por onze horas até Albuquerque, Novo México. No caminho, paramos em um shopping, onde gasto praticamente uns 2 mil dólares em roupas e sapatos novos, acessórios e maquiagem, já que tudo o que tenho está no Arizona ou ficou no hotel em Los Angeles. Encho o banco de trás com sacolas de compras e caixas de sapatos, mas, lá pela nona hora de viagem, me arrependo de ter comprado tanta coisa. Tudo o que quero é me arrastar para o banco de trás e dormir, mas tenho que me conformar em ficar apertada na frente, encolhida em uma posição desconfortável no banco do Cadillac CTS preto de Victor, com a cabeça apoiada na janela. Desde que Victor saiu da Ordem, ele não tem mais a conveniência de usar jatos particulares para viajar. Se quisesse, com certeza poderia pagar um do próprio bolso, mas ser alguém que a Ordem quer matar significa não dar na vista e abrir mão de alguns luxos que poderiam levar Niklas até ele.

Ao que tudo indica, esses luxos abdicados incluem as residências extravagantes e multimilionárias nas quais Victor sempre preferiu morar. Sua casa em Albuquerque é bem diferente daquela onde ele morava na Costa Leste, com vista para o mar. Quando paramos na entrada de terra batida, vejo uma casa de tamanho médio, com paredes nuas de reboco bege e em um formato de caixa que me faz lembrar as casas que eu construía com peças de Lego quando era criança. Contudo, a julgar pelo jardim elaborado que envolve o caminho branco e liso até a porta e o lado esquerdo da casa, é óbvio que Victor não abriu mão de todos os luxos. Isso fica mais óbvio ainda quando entramos, pois o interior é tão bonito quanto o da casa de Fredrik, apesar do estilo mais interiorano e menos luxuoso. Vermelho-ferrugem, marrom e amarelo dominam o ambiente, com pé-direito alto sustentado por vigas e sarrafos de madeira escura, que fazem a casa parecer muito maior por dentro do que por fora. Uma aconchegante lareira de pedra ocupa uma das paredes da espaçosa sala de estar, com dois espelhos decorativos de metal pendurados acima dela. As paredes são amarelas, combinando com os pisos de terracota que parecem ocupar toda a casa.

— De uma coisa tenho certeza: você sempre consegue as melhores empregadas — comento, deixando várias das minhas sacolas no chão da sala.

— Desta vez, não — diz Victor atrás de mim. Ele deixa as outras sacolas que trouxe do carro perto do sofá de couro marrom-alaranjado. — Sou só eu.

— Sério? Mas está tudo tão limpo. Acho que você não passou muito tempo aqui, então, não é?

— Uns quatro meses. — Ele olha para mim. — Você gostou? Espero que sim, porque é o seu novo lar.

Um sorriso desponta no meu rosto.

Victor desabotoa e tira a camisa, deixando-a nas costas de uma poltrona de couro marrom. Observo discretamente seu corpo enquanto ele anda por um corredor longo e bem-iluminado com uma entrada em arco.

Sigo Victor.

— Claro que você sabe que não vamos ficar aqui para sempre. — Entramos em um quarto grande. — Mas é nosso lar por enquanto, pelo menos.

Ele tira a calça e me esforço ao máximo para não olhá-lo com intensidade demais, mas isso fica cada vez mais difícil.

— Vem cá — chama ele, parado diante de mim sem nada além de sua cueca boxer preta e apertada, que pouco ajuda a esconder o volume crescendo por baixo do tecido.

Engulo em seco, nervosa, embora não saiba a razão para esse nervosismo repentino, e me aproximo dele. Sinto um espasmo entre as pernas, e também não sei ao certo por que isso acontece. É como se meu subconsciente estivesse mais a par do que vai acontecer do que minha parte consciente. Ou então apenas perdi o controle sobre minha mente e só consigo pensar no que eu gostaria que acontecesse.

Olho para Victor, curiosa, inclinando um pouco a cabeça para o lado.

— Não sei bem o que é isso entre a gente — diz ele, com cuidado —, mas tenho certeza de que não quero que acabe. Seja o que for.

— Eu também.

Um pouco confusa quanto ao rumo que a conversa está tomando, inclino a cabeça para o outro lado e pergunto:

— Algum problema?

Ele balança a cabeça devagar.

— Não, problema nenhum.

— Bem, se você está preocupado que eu vá me apaixonar e grudar em você feito chiclete, não precisa.

— Você não está apaixonada por mim? — pergunta Victor, e não parece nada além de uma simples questão.

— Não, eu não amo você, Victor.

Ele parece concordar.

— Ótimo. Porque eu também não estou apaixonado por você.

Acho que nem eu nem ele sabemos de fato o que essa palavra significa em uma situação assim. Ambos exibimos a mesma expressão de aceitação, mas também parecemos um pouco confusos.

— Mas... eu, hã... — Entrelaço os dedos atrás das costas e olho para o chão, mexendo o pé como se estivesse tentando afundar os dedos na areia. Paro para encará-lo. — Mas eu, hã, talvez... preferisse que você não dormisse com mais ninguém. Eu... bom, acho que eu não ia gostar muito disso.

— Concordo — diz Victor, assentindo mais uma vez, com firmeza. — Acho que se eu pegar você com outro homem vou ter que matá-lo.

Balanço a cabeça algumas vezes, de maneira tão casual quanto ele.

— Com certeza — concordo eu. — O mesmo vale para você.

— De acordo.

Há um momento de silêncio constrangido entre nós, e corro os olhos pela cama king-size com dossel alto de cerejeira, que está a alguns passos de distância.

Victor se aproxima e eu me viro para observá-lo. Ergo os braços quando ele passa os dedos por baixo da minha camiseta e a tira.

— Também quero dizer que não me incomodo se você grudar em mim feito chiclete. — Ele enfia os dedos no elástico da minha calcinha. — Só para constar.

— Mesmo?

Victor se agacha diante de mim ao descer a calcinha por meus quadris e minhas pernas. Fica ali, me olhando de baixo, com a cabeça na altura do meu umbigo.

— Sim — responde ele. — Mas claro que você não pode me atrapalhar quando eu estiver tentando fazer um serviço.

— Sim, claro — digo, e minha pele reage aos seus lábios, que beijam a área logo acima da minha pélvis. — E-eu nunca atrapalharia o seu trabalho — gaguejo.

Minhas mãos começam a tremer quando ele desce e para entre as minhas pernas, abrindo meus grandes lábios com os polegares.

Afasto os joelhos só um pouco, o bastante para que ele tenha acesso.

— Mas nada de me abandonar em algum lugar distante enquanto você viaja pelo mundo para cumprir os contratos — digo, enfiando os dedos no cabelo dele, com a respiração irregular e acelerada. — Não quero ser dona de casa, entendeu?

Um suspiro agudo corta o ar perto da minha boca quando a ponta de sua língua lambe meu clitóris. Quase derreto ali mesmo, os músculos das coxas perdendo força a cada segundo.

— Sim, entendo o que você quer dizer — diz Victor, e me lambe de novo, explorando entre as minhas pernas. Jogo a cabeça para trás e puxo seu cabelo com mais força, enrolando-o nos dedos. — Você vai aonde eu for. Para eu poder ficar de olho em você.

— De olho em mim. Claro.

Que resposta patética. Só consigo pensar na cabeça de Victor no meio das minhas pernas, e naquela sensação quente e formigante que está amolecendo minhas entranhas.

Victor me ergue segurando minha bunda com firmeza e com minhas coxas em torno da cabeça. Então me lambe furiosamente por um momento antes de me jogar de costas na cama.

Com os joelhos dobrados no peito, vejo sua boca entrar no meio das minhas coxas e reviro os olhos enquanto ele me faz esquecer tudo.


CAPÍTULO DOZE

Sarai

O treinamento começa dois dias depois, mas não da maneira que eu esperava. Não sei o que eu esperava, na verdade, mas com certeza não era isso.

— O que a gente está fazendo aqui? — pergunto quando paramos no estacionamento de uma academia de artes marciais a uma hora de Santa Fé.

— Krav maga — esclarece Victor, e olho como se ele estivesse falando outra língua. Ele fecha a porta do carro e andamos até a fachada do prédio. — Não vou conseguir dedicar cem por cento do meu tempo ao seu treinamento. Por isso, três dias por semana, vou trazer você aqui. Dá para aprender muita coisa com o krav maga em pouco tempo. E o foco é a defesa pessoal...

— O quê? — Paro na calçada antes de passarmos pela porta. — Não sou uma donzela em perigo que acaba de ser assaltada em um estacionamento escuro, Victor. Não preciso de aulas de defesa pessoal. Preciso aprender a matar.

— Matar é a parte fácil — rebate Victor, sem rodeios. Ele abre a porta de vidro e faz um gesto para eu entrar. — Chegar a esse ponto sem morrer tentando é a parte difícil.

— Então você quer que eu aprenda a dar um chute no saco de um cara? — pergunto, bufando de desdém. — Acredite, eu já sou perfeitamente capaz disso.

Um sorriso discreto aparece nos cantos de seus lábios deliciosos.

Nesse momento, um sujeito alto, moreno e com músculos bem-definidos se aproxima de nós no grande salão. As janelas no alto da parede deixam o sol entrar. Dois grupos de pessoas estão treinando em pares, formando um semicírculo em um enorme tatame preto estendido por boa parte do chão.

O homem de braços musculosos e camiseta preta estende a mão para Victor.

— Faz quanto tempo? Três anos? Quatro?

Victor aperta a mão dele com firmeza.

— Uns quatro, acredito.

O homem me olha por um momento, e então Victor nos apresenta.

— Spencer, esta é Izabel. Izabel, Spencer.

— Prazer — diz Spencer, estendendo a mão.

Relutante, aperto a mão dele. Eles se conhecem? Não sei se gosto disso ou não. De repente, sinto que aquilo é alguma armação. Sorrio com desdém para aquele brutamontes alto e simpático.

Victor se vira para mim e diz:

— Não tem ninguém melhor para treinar você em defesa pessoal do que Spencer. Você está em boas mãos.

Spencer abre um sorriso tão largo que, se fosse um pouco maior, acho que daria para engolir minha cabeça. Ele está com os braços musculosos à sua frente, com as mãos cruzadas. As veias, grossas como cordas, que percorrem suas mãos e seus braços bem bronzeados me lembram das de um fisiculturista, mas ele não tem esse tamanho todo. Só é maior do que eu, o que me intimida mais.

Levanto um dedo para Spencer.

— Você nos dá licença um minutinho?

— Claro — responde ele.

Percebo o leve sorriso que ele dá para Victor.

Pego Victor pela mão e o puxo para o lado. Ao fundo, ouço, de maneira constante, corpos sendo jogados naquele tatame preto e a voz de um instrutor entoando comandos repetitivos e mandando os alunos fazerem “de novo”.

— Victor, acho que isto é perda de tempo. Não sei por que você me trouxe aqui. — Cruzo os braços. — Quero aprender essas coisas com você, não com um cara aleatório do tamanho de um ônibus. — Olho por cima do ombro, torcendo para que Spencer não tenha ouvido, embora eu tenha tomado o cuidado de sussurrar.

— Preciso me encontrar com Fredrik daqui a uma hora — explica Victor.

— Ah, então você vai me deixar com uma babá? — Franzo o cenho e balanço a cabeça para ele, totalmente incrédula, para não dizer ofendida.

— Não, não é isso.

— Mas eu quero que você me ensine — repito, forçando as palavras com rispidez entre meus dentes cerrados.

Victor suspira e balança a cabeça, parecendo aborrecido e frustrado comigo.

— Você não tem disciplina. Nenhuma. Igualzinha ao meu irmão. — Isso fere o meu orgulho. — Como vou ensinar alguma coisa para você, se não é capaz nem de fazer as coisas mais simples que eu peço?

Na mesma hora, me arrependo por agir feito uma criança. Solto um suspiro de resignação.

— Desculpe — digo, baixinho. — Pensei que fosse treinar com você, só isso.

— Você vai treinar comigo — garante Victor, pondo as mãos nos meus ombros. — Mas por enquanto precisa aprender o básico. E esta é a melhor maneira.

— Mas por que você não pode me ensinar o básico? — pergunto, com o mesmo tom resignado de antes. — Por que precisa ser ele?

Victor se inclina e beija de leve o canto da minha boca.

— Porque Spencer não tem medo de machucar você — explica ele, e isso me surpreende um pouco. — E não quero fazer isso, se eu puder evitar. Você só vai aprender se for real.

Arregalo os olhos.

— Espere aí... Então você está dizendo que aquele tanque de guerra — digo, apontando por cima do ombro com o polegar — vai me bater de verdade?

— Sim. É para isso que ele está sendo pago.

Parece que meu queixo acaba de bater no chão. De repente, sinto um calafrio percorrer minha espinha.

— Você não é obrigada a fazer isso, Sarai, mas, se realmente é o seu desejo, quero que vá com tudo. Não faça de qualquer jeito. Na vida real, quem atacar você não vai facilitar as coisas — afirma Victor, enquanto me encara com atenção, querendo desesperadamente que eu o entenda e confie nele. — Vou treinar com você no momento certo. Mas, quando eu fizer isso, vai ser brutal, Sarai. Vou atacar com a mesma força que um agressor de verdade usaria. Aprenda o básico primeiro, domine algumas habilidades para conseguir me enfrentar, e vou me sentir melhor para treinar você pessoalmente. Entendeu?

— É, acho que sim — respondo, assentindo. E estou sendo sincera.

Entendo perfeitamente agora. Nem me lembro da última vez que estive tão nervosa para fazer alguma coisa. Mas Spencer, o tanque, não me assusta tanto, na verdade, porque lá no fundo sei que, mesmo que Victor esteja lhe pagando para não facilitar comigo, ele não vai usar toda a sua força em mim. Se usasse, me mataria.

— Você quer ficar? — pergunta Victor.

— Quero.

— Ótimo.

Ele se inclina para meus lábios de novo e me beija com intensidade, tirando meu fôlego. Chocada por essa demonstração pública de afeto tão atípica, fico sem palavras quando ele desgruda os lábios dos meus.

— Volto para buscar você daqui a algumas horas.

— Tudo bem.

Nós voltamos para perto de Spencer, que parece um tanto empolgado para começar a treinar comigo, como se eu fosse um brinquedo novinho em folha com o qual ele não vê a hora de brincar.

— Pronta para começar a aprender krav maga? — pergunta Spencer.

— Estou — respondo, e meu olhar vai até as pessoas lutando no tatame preto atrás dele.

— Tem certeza de que você aguenta?

Quero dizer que sim com confiança, porque, afinal de contas, sempre imaginei que aulas de defesa pessoal consistissem em nada mais do que bloquear golpes, bater e sinalizar aos outros onde estou. Sempre imaginei mulheres comuns, que nunca lutaram na vida, todas de pé em um círculo, esperando a vez para derrubar o instrutor com alguns golpes “úteis”. Contudo, ao observar o grupo que está treinando atrás de Spencer, a intensidade agressiva e a violência de alguns golpes, começo a achar que esse tipo de defesa pessoal é bem diferente.

— Deve ser simples — digo, sem a segurança que queria.

— Se você diz — responde Spencer, com um sorriso conivente que deixa meus nervos ainda mais em frangalhos.

Mas não estou com medo. Nervosa, sim, mas não com medo. Estou pronta para fazer isso. Começo até a ficar ansiosa. Quero provar a Victor que dou conta.

E quero provar a ele que não sou nada parecida com seu irmão.

Victor vai embora. Antes do fim da primeira hora, estou exausta e tão dolorida que mal consigo andar em linha reta sem cambalear.

— Sempre se defenda e ataque ao mesmo tempo — explica Spencer, em pé, enquanto estou deitada no tatame e querendo me encolher em posição fetal. — E nunca vá para o chão. Isto não é luta greco-romana, Izabel. Se você vai para o chão, você morre.

Sem fôlego e tentando controlar a dor intensa que queima minha panturrilha, me levanto.

— Me ataque — ordena ele, elevando a voz acima dos poucos gritos de quem ainda assiste à aula depois da segunda hora. — Se não me atacar, eu ataco você!

Estou exausta demais.

— Não consigo! — Desisto e caio de bunda no tatame. — É demais. Hoje é meu primeiro dia e parece que é minha primeira luta de verdade. Cadê a parte em que você me mostra o que fazer e me ensina a dar os golpes?

— O que você quer mesmo é que eu pegue leve com você, não é?

— Isso! Cadê as instruções? As regras?

Minhas costas estão me matando. Deito no tatame, abrindo os braços acima da cabeça, e olho para o teto iluminado. Não quero mais saber de Spencer e de seu treinamento de imersão total. Só quero descansar.

As lâmpadas fluorescentes do teto começam a se mover depressa quando sinto de repente que estou sendo arrastada pelo tornozelo.

— Não há regras no krav maga — ouço Spencer dizer, mas percebo, meio segundo depois, que não é ele quem está me arrastando.

É uma mulher, com cabelo castanho-claro preso em um rabo de cavalo. Confusa com a mudança, fico distraída demais para notar o pé dela atingindo meu estômago. Berro de dor, me dobrando para a frente ao levantar as pernas e as costas do tatame ao mesmo tempo, com os braços cruzados sobre o abdômen. O golpe expulsa todo o ar dos meus pulmões.

— CHEGA! — grita Spencer, em algum lugar atrás de mim.

Sinto que vou vomitar.

A mulher para no mesmo instante e dá alguns passos para trás.

— Levante — manda Spencer, e decifro, em meio à dor que acaba com meu tórax, que sua voz está muito mais perto do que antes.

Ergo a cabeça e o vejo agachado ao meu lado.

— Vou deixar você recuperar o fôlego — diz ele, baixinho, oferecendo a mão. — Esta é Jacquelyn. Minha mulher.

Pego no antebraço dele, ele me segura e me põe de pé.

— Muito prazer — digo a ela, fazendo uma careta horrorosa de dor. — Ou em conhecer o seu pé, pelo menos.

Ela dá uma risadinha.

— O seu namorado me pagou para encher você de porrada, basicamente — afirma Spencer. — Mas, como não tenho o hábito de bater em mulher, achei melhor deixar minha esposa fazer as honras para que eu pudesse receber o pagamento do mesmo jeito.

— É a melhor maneira de aprender — intervém Jacquelyn. — Esse seu homem sabe o que está fazendo. É brutal? Claro. Necessário para sobreviver a situações de combate corpo a corpo? Com certeza. Indicado para peruazinhas delicadas que ficam pulando e gritando de medo quando veem uma aranha? Nem fodendo.

— Bom, eu não sou uma dessas — digo, com frieza. — Disso você pode ter certeza.

— Então prove — provoca ela, curvando-se para a frente com as mãos semiabertas ao lado do corpo. — Lembre, o krav maga não tem regras. Sempre defenda e ataque ao mesmo tempo. Sempre lute com agressividade. E nunca vá para o chão.

— Ok, essa parte eu entendi. Se eu for para o chão, estou morta.

Jacquelyn praticamente me dá uma surra durante o resto da aula. E, quando Victor finalmente chega para me buscar, meu nariz e meu lábio estão sangrando, meu olho direito está roxo e latejando e acho que quebrei um dente.

Isso continua dia sim, dia não pelas duas semanas seguintes.

Não levei muito tempo para ficar boa no krav maga. Spencer diz que tenho um talento natural e que devo ter “dispensado as Barbies quando era criança”.

Ele não faz nem ideia...

Estou ficando muito mais forte, muito melhor na minha técnica. Em certo momento, até consegui machucar Jacquelyn ao enfiar o cotovelo nas costelas dela. Acho que quebrei algumas, mas ela não admite. Não por orgulho, mas porque não acha certo reclamar nem deixar algo tão insignificante quanto uma costela fraturada impedir que ela lute.

Também não demorou para que eu começasse a simpatizar com ela. Quando Jacquelyn não está me enfiando a porrada, até gosto de sua companhia.

Só duas semanas se passaram. Até agora, não fiz nada além de treinar com Jacquelyn e aprender a usar armas com Victor. Ainda assim, apesar de curtir o treino e esperá-lo ansiosamente todo dia, fico frustrada por estar demorando tanto. Eu esperava que Hamburg e Stephens já estivessem mortos faz tempo, a essa altura.

Estou ficando impaciente.

— Victor, eu não pretendo lutar com Hamburg e Stephens. Só quero matá-los. Mais nada. Não entendo por que você está me fazendo passar por tudo isso.

Victor se descobre e sai da cama, andando nu pelo quarto.

Em silêncio, admiro a visão.

— Tem mais coisas envolvidas nisso do que você imagina — diz ele, desaparecendo ao entrar no banheiro.

Aquilo com certeza desperta meu interesse.

Eu me levanto e grito:

— É mesmo?

Jogo o lençol no chão e ando depressa atrás dele, parando à porta do banheiro e me apoiando no batente. Ele está abrindo a água do chuveiro.

Victor fecha o boxe de vidro, deixando a água correr por um momento, e então se vira para mim.

— Você não está fazendo todo esse treinamento só para matar Hamburg e Stephens. Se vai ficar comigo, independentemente de como vai ocupar o seu tempo, precisa aprender a lutar. Precisa saber identificar, diferenciar, carregar e disparar praticamente qualquer tipo de arma. Há muitas coisas que você precisa saber, e não temos tempo suficiente para aprender metade delas. — Ele abre a porta do boxe e estende o braço, deixando a água correr sobre a mão para sentir a temperatura.

Ele acrescenta:

— Esse treinamento não tem muito a ver com Hamburg e Stephens. Quero que você esteja sempre segura, por isso é vital que aprenda essas coisas agora.

Abro um sorriso leve, saboreando o momento. Quando nos conhecemos, eu não imaginava que Victor tivesse um só traço de preocupação ou emoção no corpo. Mas a cada dia testemunho que ele está se abrindo mais para mim. E vejo que isso está se tornando mais fácil para ele.

Volto ao assunto em questão, mas o que eu gostaria mesmo de fazer, a essa altura, é beijá-lo.

— Mas por que isso está demorando tanto? Quero acabar com essa história de uma vez.

Entro no banheiro e me sento na bancada da pia, apenas de calcinha.

— Porque, enquanto eu elaboro um plano para você chegar perto dos dois e matá-los, você precisa treinar, ocupar seu tempo o máximo possível. — Victor se aproxima de mim e segura meu rosto com as mãos. — Só estar no mesmo quarto comigo, só me conhecer, Sarai, já é uma sentença de morte diária. Cada vez que você sai por aquela porta, corre o risco de levar um tiro. O único motivo pelo qual a Ordem ainda não me encontrou é que Niklas é o único agente atrás de mim. Quer dizer, por enquanto. Ele não quer que ninguém mais me ache. Ele quer levar o crédito. O reconhecimento. Sobretudo porque foi ele o contratado para acabar comigo. — Victor pressiona os lábios na minha testa. Fecho os olhos, levanto os braços e seguro os pulsos dele. — Mas um dia, provavelmente daqui a pouco, vou ter que enfrentar meu irmão, pois a Ordem não vai dar todo o tempo do mundo para ele cumprir a missão. Ou ele me encontra ou eu o encontro. E um de nós vai morrer.

Com os dedos ainda envolvendo os pulsos dele, afasto delicadamente suas mãos do meu rosto. Olho para aqueles lindos olhos verde-azulados, perplexa, inclinando a cabeça para um lado.

— Por que não deixa isso para lá? Victor, entendo você querer matar Niklas antes que ele mate você, mas por que correr o risco de morrer procurando briga?

O vapor começa a encher o banheiro, embaçando o grande espelho acima do balcão, atrás de mim.

— Porque se Niklas não me encontrar, se não conseguir cumprir o primeiro contrato oficial desde que foi promovido a agente sob o comando de Vonnegut, eles vão matá-lo. — Victor apoia as mãos na bancada, à minha direita e à minha esquerda. — Ninguém, a não ser eu, vai matar meu irmão. Não me importa o que ele fez ou as diferenças que temos, ainda é meu irmão.

Faço que sim, compreensiva.

— Tudo bem, então quando tudo isso vai acontecer? Esse... confronto com Niklas? Minha chance de matar Hamburg e Stephens?

Victor abre um sorriso malicioso e eu passo as pontas dos dedos em seus lábios. Ele segura minha mão e beija meus dedos.

— Vamos ter que trabalhar nesse seu problema, Sarai. A sua impaciência e, claro, como já falei, a indisciplina. É o próximo item da nossa agenda.

— Não consigo evitar a impaciência. Aqueles dois babacas horríveis continuam por aí, levando uma vida de luxo, fazendo só Deus sabe o quê com sabe-se lá quantas mulheres. Isso sem falar que estão me procurando. Mataram meus amigos por minha causa. Dina continua escondida longe da casa dela e está com medo. A vida dela foi virada de cabeça para baixo por causa deles. Por minha causa. Quero que eles morram para que pelo menos Dina possa seguir a vida.

— O que você vai dizer para ela? — pergunta Victor. — Quando se encontrar com ela hoje, o que vai dizer?

Desvio o olhar e vejo o vapor revestir as altas paredes de vidro do boxe, ondulando acima do chuveiro em nuvens suaves. Começo a suar um pouco, o rosto, o pescoço e o colo úmidos.

— Vou contar a verdade para ela.

— Você acha uma boa ideia?

Encaro Victor.

— Acho justo. Ela é praticamente minha mãe. Fez muito por mim. Eu devo a verdade a ela. — Sorrio e acrescento: — Além disso, se você não concordasse com minha decisão de contar a verdade, já teria deixado isso bem claro, a essa altura.

Victor retribui meu sorriso e me segura pela cintura, me ajudando a descer da bancada.

— Acho que é melhor a gente se arrumar, se quiser chegar lá a tempo — observa ele, e me leva até o chuveiro. Tiro a calcinha antes de entrar no boxe com ele.

Victor disse a Dina e a mim que me levaria para vê-la alguns dias depois de o contato de Fredrik a tirar de Lake Havasu City. Mas as coisas não saíram conforme planejamos. Victor e Fredrik concordaram que era arriscado e cedo demais. Uma noite, ouvi os dois conversando sobre Dina e sobre como ela poderia estar sendo vigiada no dia em que o contato de Fredrik chegou para buscá-la. Victor queria ter certeza de que isso não havia acontecido, e que, se qualquer um de nós aparecesse por acaso no esconderijo de Dina, não cairia em uma armadilha. Mas, à medida que os dias passaram e Fredrik continuou vigiando a casa onde Dina estava se escondendo, ele e Victor tiveram certeza de que ela era, de fato, segura.

Hoje, enfim, vou vê-la pela primeira vez desde que viajei com Eric e Dahlia para Los Angeles.


CAPÍTULO TREZE

Victor

Sarai precisa estar preparada não só para as ameaças iminentes, mas também para a vida que a espera. Ela escolheu um caminho há muito tempo, no dia em que me conheceu, embora ainda não soubesse. Eu não queria enxergar, por isso lutei comigo mesmo contra a necessidade estranha e antinatural de ficar perto dela, porque queria que ela tivesse uma vida normal.

Não queria que ela terminasse como eu...

Mas eu sabia, oito meses atrás, antes de deixá-la naquele quarto de hospital ao lado da sra. Gregory, que um dia eu voltaria para ela. Nunca foi minha intenção nem meu plano, eu apenas sabia que acabaria acontecendo, de uma maneira ou de outra.

Por 28 dos meus 37 anos de vida, a única coisa que conheci foi a Ordem. Só conheci disciplina e morte. Nunca conheci amizade ou amor sem suspeitas e traições. Fui... programado para desafiar as emoções e ações humanas mais comuns, mas eu... Só quando conheci Sarai me permiti acreditar que Vonnegut e a Ordem não eram minha família, que me usaram como seu soldado perfeito. Eles me negaram a vida toda os elementos que nos tornam humanos. E não posso permitir que isso fique impune.

Um dia, vou matar Vonnegut e acabar com o resto da Ordem pelo que fizeram comigo e com a minha família. Uma família que eles destruíram. Sarai é minha família agora, e espero que Fredrik prove sua lealdade no teste final que farei com ele. Eles são minha família e não vou permitir que a Ordem também os destrua.

Mas, por enquanto, Sarai é o meu foco, e será pelo tempo que for necessário. Ela precisa ser treinada. Precisa absorver o máximo que puder, o mais rápido que conseguir. É impossível que um dia ela chegue ao meu nível. Ela nunca vai conseguir viver a vida de um assassino como eu, porque levaria metade da vida para aprender. É por isso que a Ordem nos recruta tão jovens. É por isso que Niklas e eu fomos levados quando éramos crianças.

Sarai nunca vai ser como eu.

Mas ela tem outros talentos. Tem habilidades que, mesmo depois de tantos anos de treinamento, eu jamais conseguiria superar. A vida de Sarai na fortaleza no México lhe garantiu um conjunto único de habilidades que não se aprendem em uma aula nem se leem em um livro. Ela mente e manipula com maestria. Pode se tornar outra pessoa em dois segundos e enganar uma sala cheia de gente que ninguém mais conseguiria enganar. Consegue fazer um homem acreditar no que ela quiser com muito pouco esforço. E não tem medo da morte. Ela é melhor do que uma simples atriz. Porque ninguém percebe a farsa até que seja tarde demais. Javier Ruiz foi o verdadeiro professor de Sarai. Ele lhe ensinou coisas que eu jamais conseguiria transmitir. Foi seu verdadeiro treinador, ensinando os talentos mortais que agora começam a defini-la como assassina. E, como todos os mestres perversos, Javier Ruiz também foi a primeira vítima de sua aluna favorita.

Assim como foi com as habilidades que Sarai já possui, para aprender a lutar e entender a luta de verdade, ela precisa vivê-la e respirá-la todos os dias. Forçá-la a treinar com Spencer e Jacquelyn é necessário para a sua sobrevivência porque ela precisa aprender o máximo que puder sempre que for possível. Mas são as habilidades que ela já tem que vão transformá-la em um soldado único.

São essas habilidades que nos tornam a dupla perfeita.

Antes disso, contudo, Sarai precisa entender a fundo do que é capaz. E precisa passar pelos testes. Todos eles, até aqueles que podem fazê-la me detestar.

Não tenho dúvidas de que isso vai acontecer. Ela passar nos testes, pelo menos. Se ela vai me detestar, ainda é discutível.

Chegamos a Phoenix logo depois do pôr do sol e somos recebidos à porta da casinha branca por Amelia McKinney, o contato de Fredrik. Ela é uma mulher linda, voluptuosa e com um longo cabelo louro, embora sua característica menos atraente seja seu grande par de peitos de plástico, que com certeza devem lhe dar dor nas costas. E ela usa roupas bem chamativas para uma mulher com doutorado que dá aula no ensino fundamental há cinco anos.

— Olá, Victor Faust — cumprimenta ela, com um tom sedutor, segurando a porta aberta para mim e Sarai. — Ouvi falar muito de você.

— Muito? Interessante.

Com uma das mãos, ela deixa aberta a porta de tela, dá um passo para o lado e acena para entrarmos na casa, sacudindo um monte de pulseiras com pingentes de ouro. Vários anéis enormes enfeitam seus dedos. E ela cheira a sabonete e a pasta de dente.

Coloco minha mão nas costas de Sarai e deixo que ela entre antes de mim.

— Fredrik me falou de você — conta Amelia, fechando a porta. — Mas acho que “muito” é exagero nesse caso, já que ele mesmo não parece saber muita coisa a seu respeito. — Ela gira a mão ao lado do corpo e acrescenta: — Mas imagino que o fato de eu saber tão pouco é o que torna você ainda mais intrigante.

— Nem pense nisso — intervém Sarai, parando nossa pequena fila indiana e se virando para encará-la.

Disciplina, Sarai. Disciplina. Suspiro em silêncio, mas admito que fico de pau duro ao vê-la tão superprotetora com o que lhe pertence.

Amelia levanta as mãos, por sorte em um gesto de resignação e não de desafio.

— Sem problemas, meu anjo. Não tem problema nenhum.

Sarai aceita essa bandeira branca e andamos mais pela casa, onde encontramos Dina Gregory na cozinha, preparando o que parece ser uma ceia de Ação de Graças para umas 15 pessoas.

Sarai corre para os braços abertos de Dina, e começam os sorrisos e as palavras de alívio e empolgação. Ignoro tudo isso por um momento, voltando minha atenção para assuntos mais prementes: o que está ao meu redor e essa mulher que não conheço.

Não confio em ninguém.

Amelia, como muitas mulheres do círculo de Fredrik Gustavsson, não sabe nada sobre a Ordem nem sobre o envolvimento que eu ou Fredrik temos com organizações do tipo. Ela não é o que Samantha, do Abrigo Doze no Texas, era para mim. Não, a relação de Amelia e Fredrik, embora tecnicamente não possa mais ser chamada assim, é muito mais... complicada.

Começo a vasculhar a casa em busca de câmeras e armas, tateando estantes, vasos de plantas, cacarecos e móveis, instalando minha própria parafernália secreta de espionagem no caminho.

— Fredrik disse que você talvez fizesse isso — diz Amelia, atrás de mim, embora eu tenha certeza de que ela não viu o pequeno aparelho que acabo de grudar embaixo da mesinha da TV. Ela ri baixo. — Eu limpei a casa muito bem antes de você chegar. Cadê as suas luvas de borracha? — brinca ela.

Não viro para trás nem paro o que estou fazendo.

— Você recebeu alguma visita desconhecida desde que a sra. Gregory veio para cá? — pergunto, debruçando-me sobre uma mesa ao lado de uma cadeira reclinável e examinando um abajur.

— Uau, você e Fredrik são mesmo os caras mais paranoicos que já conheci. Não. Não que eu lembre. Bom, um vendedor de TV por satélite veio uma vez semana passada, querendo que eu desistisse da TV a cabo. Além dele, ninguém.

Ela se aproxima de mim por trás e abaixa a voz:

— Por quanto tempo essa mulher vai ficar na minha casa? — Noto com a visão periférica que ela olha para a porta da cozinha, para garantir que ninguém consiga ouvi-la além de mim. — Ela é legal e tudo, mas... — Amelia suspira com ar culpado. — Olha, eu tenho 30 anos. Não moro com meus pais desde os 16. Ela está atrapalhando o meu jogo. Eu trouxe um cara aqui semana passada e ele pensou que ela fosse minha mãe. Ficou chato. Não transo desde que ela chegou.

Eu me viro para encará-la.

— E há quanto tempo você conhecia o sujeito que trouxe aqui?

— Hein?

— O homem. Há quanto tempo estava dormindo com ele?

Suas sobrancelhas finas e bem-cuidadas se juntam no meio da testa.

— E isso por acaso é da sua conta? Vai me perguntar em quantas posições a gente trepou também?

— Quanto tempo?

— Conheci o cara em um bar, sábado passado.

— Bem, ele conta como uma visita desconhecida.

Ela quer discutir, mas se contém.

— Ok. Tudo bem. O cara do satélite e o quase peguete do bar. Só eles.

— Antes que eu vá embora, vou precisar do nome desse cara e de qualquer outra informação que você possa me dar sobre ele, incluindo uma descrição detalhada.

Ela balança a cabeça e ri, contrariada.

— Não sei por que aguento essas merdas do Fredrik. — Então Amelia abre uma gavetinha da mesa e tira um bloco de notas e uma caneta.

— Porque você não resiste — observo, mas sem querer ser desagradável. Outra coisa que preciso praticar: ficar de boca fechada quando as mulheres dizem certas coisas que dispensam comentários.

Ofendida, ela arregala os olhos azuis brilhantes. Rabisca alguma coisa na folha, arranca-a do bloco e a enfia na minha mão.

— O que isso significa? — Contudo, antes de me dar a chance de cometer outra gafe, ela muda o tom de voz, chega perto de mim e sussurra de maneira sedutora: — Ei... O que vocês dois têm em comum, afinal?

Sei exatamente sobre o que Amelia está perguntando. Ela especula sobre as minhas preferências sexuais e provavelmente torce para que sejam tão sombrias quanto as de Fredrik. Mas ela está pisando em um território muito perigoso, com Sarai na sala ao lado.

— Não muito — respondo, enfiando no bolso a folha com o nome e a descrição do homem. Então continuo a investigar a casa dela.

— Que pena — comenta Amelia. — Qual é a dele, afinal? Ele fala alguma coisa de mim?

Por favor, pare com isso...

Suspiro e paro na entrada do corredor, olhando-a nos olhos.

— Se você tem perguntas para ou sobre Fredrik, faça o favor de perguntar diretamente a ele.

Amelia joga o cabelo para trás em um gesto orgulhoso e revira os olhos.

— Tudo bem. Só pergunta para o Fredrik quanto tempo mais vou ter que ficar de babá, ok?

Ela passa por mim e se junta a Sarai e à sra. Gregory na cozinha, enquanto aproveito a oportunidade para inspecionar o resto da casa.

Por falar em Fredrik, ele me liga quando estou a caminho do quarto de hóspedes.

— Tenho informações sobre a missão de Nova Orleans — diz ele do outro lado da linha. Ouço trânsito ao fundo. — O contato acha que o alvo voltou para a cidade.

— Por que ela acha isso?

— Ela acha que o viu em frente a um bar perto da Bourbon Street. Claro que ela pode ter imaginado isso, mas acho que a gente deveria investigar. Só por segurança. Se a gente esperar e ele voltar para o Brasil, ou onde quer que ele esteja se escondendo, pode levar mais um ou dois meses antes de termos outra chance.

— Concordo. — Eu me fecho no quarto de hóspedes. — Estou com Sarai na casa da Amelia agora, mas vou terminar as coisas por aqui mais cedo. Vá para Nova Orleans na minha frente e eu encontro você lá amanhã no início da noite. Mas não faça nada.

— Não fazer nada? — pergunta Fredrik, desconfiado. — Se eu encontrar o cara, posso prendê-lo e começar o interrogatório, pelo menos.

— Não, espere a gente. Quero que Sarai faça isso.

Fredrik fica em silêncio por um instante.

— Você não pode estar falando sério, Victor. Ela não está pronta. Pode estragar a missão toda. Ou morrer.

— Não vai acontecer nada disso — rebato com calma e confiança. — E não se preocupe, é você quem vai fazer o interrogatório. Só quero que ela prenda o sujeito.

Sei que há um sorriso macabro no rosto de Fredrik sem precisar vê-lo ou ouvir sua voz. Deixar que ele faça o interrogatório é praticamente o mesmo que dar uma seringa para um viciado em heroína.

— Vejo você em Nova Orleans, então — diz ele.

Desligo, enfio o celular no bolso de trás da calça preta e termino a inspeção da casa antes de ir para a sala e me juntar às mulheres, todas já com pratos de comida no colo.


CAPÍTULO CATORZE

Sarai

— Você deveria fazer um prato — digo para Victor quando ele surge no corredor. — Dina cozinha muito bem. Até melhor do que Marta. Mas não diga a Marta que eu falei isso. — Enfio uma enorme colherada da caçarola de feijão na boca.

Dina, sentada ao meu lado no sofá, aponta para Victor.

— Ela é suspeita. Mas, se você está com fome, é melhor comer antes que acabe.

— Precisamos conversar — anuncia Victor, de pé no meio da sala e bem na frente da TV.

Não gosto do tom dele.

— Tudo bem — digo, desencostando do sofá e deixando o prato na mesinha de centro. — Sobre o quê?

Victor olha de relance para Amelia. Ela está sentada na poltrona à minha frente, pegando um pedaço de pão de milho. Tenho a sensação de que Victor não quer que ela ouça a conversa.

— Amelia — diz Victor, enfiando a mão no bolso de trás da calça e pegando a carteira de couro —, preciso que você saia um pouco de casa. — Ele mexe na carteira, tira um pequeno maço de notas de 100 dólares e o deixa na mesa diante dela. — Se você não se importar.

Amelia olha para o dinheiro, apoia o garfo no prato e conta as cédulas.

— Sem problemas — concorda ela, com um sorriso satisfeito. Então se levanta, pega o prato e a lata de refrigerante e desaparece na cozinha.

Ouço o garfo raspando os restos de comida do prato para o lixo e a cerâmica tilintando no fundo da pia. Amelia passa por nós e segue até o corredor.

— Mas preciso que você saia agora mesmo — reitera Victor. — Não precisa trocar de roupa nem se arrumar.

— Posso pelo menos calçar a droga de um sapato? — pergunta ela, ríspida.

— Claro — responde Victor, assentindo. — Mas, por favor, não demore.

Amelia vai até o fim do corredor, resmungando irritada. Minutos depois, ela liga o carro e vai embora.

Victor olha para mim e para Dina.

— Não podemos ficar tanto tempo quanto o planejado — informa ele.

Dina também larga o prato e suspira com tristeza.

— Por que não? — pergunto.

— Surgiu um problema.

Olho para o meu prato, e o brilho metálico do garfo perde foco à medida que mergulho em pensamentos. Achei que teria tempo para encontrar a forma certa de contar para Dina tudo o que eu planejava contar. Agora estou desesperada tentando imaginar como começar a primeira frase.

— Dina — digo, respirando fundo. Eu me viro de lado para encará-la. — Eu matei um cara, meses atrás. — O rosto de Dina parece ficar rígido. — Foi em legítima defesa. Eu, hum... — Olho para Victor. Ele assente de leve, me motivando a continuar e garantindo que está tudo bem, embora eu saiba que ele não concorda cem por cento com o que estou fazendo. — Aliás, também matei um cara em Los Angeles na noite em que Dahlia e Eric foram encontrados mortos.

Dina ergue a mão enrugada e cobre a boca.

— Ah, Sarai... Você... o que você está...

— Dahlia e Eric foram assassinados por minha causa — interrompo, porque é evidente que ela não sabe o que dizer. — Não só a polícia de Los Angeles está atrás de mim para me interrogar, já que eu estava com eles, mas também os homens que mataram os dois estão na minha cola. É por isso que você está aqui.

— Meu Deus do céu. — Dina balança a cabeça sem parar, tira os dedos da boca e aperta os olhos cheios de pés de galinha em uma expressão preocupada.

Seguro a mão dela, que é fria e macia.

— Tem muita coisa que você não sabe. Onde eu estava de fato durante os nove anos em que minha mãe e eu ficamos desaparecidas. O que realmente aconteceu comigo. E com minha mãe. E eu não levei um tiro de um ex-namorado daquela vez em que Victor levou você para o hospital em Los Angeles. Eu levei um tiro de... — Olho para Victor de novo, mas decido por mim mesma não revelar essa informação. Ela não precisa saber de Niklas nem no que Victor e ele estão envolvidos. — Foi outra pessoa que atirou em mim. É uma história muito longa que você vai saber um dia, mas por enquanto só quero que você saiba a verdade sobre mim. — Passo os dedos com carinho nas costas da mão dela. — Você é a única mãe de verdade que eu tive. Fez tanta coisa por mim, sempre me apoiou, e eu devo essa honestidade a você.

Dina segura minha mão entre as dela.

— O que aconteceu com você, menina? — pergunta, com tanta dor e preocupação na voz que sinto um nó na garganta.

Começo a contar tudo, tanto quanto posso sem revelar qualquer informação sobre Victor e Niklas. Conto sobre o México e sobre as coisas que vi e vivi por lá. Conto sobre Lydia e sobre não conseguir salvá-la, apesar de ter lutado tanto. Omito sobretudo as relações sexuais que eu tinha com o cara que me mantinha presa, Javier Ruiz, um chefão mexicano do tráfico de drogas, armas e escravas, e só digo que eu estava lá contra a minha vontade e fui obrigada a fazer coisas que não queria. Dina cai no choro e me abraça forte, me balançando apertada contra o peito, como se eu é que estivesse chorando e precisasse de um ombro amigo. Ao menos dessa vez, contudo, não estou chorando. Só me sinto péssima por ter que contar tudo isso a ela, pois sei que isso a magoa muito.

Minutos depois, quando termino de contar tudo o que posso, Dina está sentada na beira do sofá, parecendo ligeiramente em choque. Mas ela está mais preocupada do que qualquer outra coisa.

Ela olha para Victor.

— Quanto tempo vou precisar ficar aqui? Gostaria muito de ir para casa. E quero levar Sarai.

— Isso não é uma boa ideia — argumenta Victor. — E quanto a Sarai, ela vai ter que ficar comigo. Por tempo indeterminado.

Engulo em seco ao ouvir as palavras dele, sabendo que Dina não vai aceitar isso.

— Então... Mas então o que isso significa? — pergunta ela, nervosa, voltando sua atenção somente para mim. — Sarai, você nunca mais vai voltar para casa?

Balanço a cabeça, cheia de culpa.

— Não, Dina, eu não posso. Preciso ficar com Victor. Estou mais segura com ele. E você está mais segura sem mim.

Dina balança a cabeça com ar solene.

— Você vai me visitar?

— Claro que vou. — Aperto a mão dela com delicadeza. — Eu nunca abandonaria você para sempre.

— Entendo — afirma ela, esforçando-se para aceitar.

Dina se volta para Victor.

— Mas eu não posso ficar na casa dessa mulher. Se você só me trouxe para cá para me proteger, prefiro voltar para casa. Não tenho medo desses homens. — Ela fica de pé e olha para mim. — Sarai, querida, eu nunca contaria nada para a polícia. Espero que acredite nisso.

Também me levanto.

— Sim, Dina, eu sei que você não contaria. O motivo para você estar aqui não tem nada a ver com a minha confiança em você. Trouxemos você para cá porque queremos que fique segura. Se alguma coisa acontecesse com você, principalmente por minha causa, eu jamais me perdoaria. Você é tudo o que me resta. Você e Victor. Você é minha família e eu não posso perdê-la.

— Mas eu não posso ficar aqui, querida. Já fiquei tempo demais. Amelia é gentil comigo, mas aqui não é a minha casa, e não quero ficar mais tempo do que ela quer que eu fique. Sinto como se minha presença fosse um fardo. Sinto falta das minhas plantas e da minha caneca de café favorita.

— Sra. Gregory — intervém Victor, impaciente, mas ainda respeitando os sentimentos dela. Ela se vira, mas ele faz uma pausa como se refletisse sobre algo. — Sarai não vai ficar segura se tiver que se preocupar com a sua segurança. Estou dizendo desde já: se a senhora voltar para casa, eles vão encontrar e matar a senhora assim que a virem, ou pior, vão sequestrá-la, torturá-la, gravar tudo em vídeo e usar as imagens para atingir Sarai. Entende o que estou dizendo?

A expressão grave e determinada de Dina desmorona sob um véu de sofrimento e resignação. Ela se vira para mim, com o semblante distorcido pela dor. Talvez esteja me pedindo uma confirmação das palavras de Victor, esperando que eu suavize a situação, que eu diga que ele só está sendo dramático. Mas não posso fazer isso. O que ele disse, embora brutal e sem rodeios, é exatamente o que ela precisa ouvir.

— Ele tem razão. Olhe, a gente vai dar um jeito nesses caras logo, tudo bem? Só preciso que você fique quietinha por mais um tempo, até a gente conseguir fazer isso.

— Mas concordo com a senhora — pondera Victor —, acho que não deve mais ficar aqui.

Dina e eu olhamos para ele ao mesmo tempo.

Victor continua:

— Quando estamos nos escondendo e ficamos tempo demais no mesmo lugar, com certeza somos encontrados.

— Então aonde ela deve ir? — pergunto, com várias possibilidades girando na cabeça, nenhuma das quais parece plausível. — Não me diga que quer levar Dina com a gente. Por mais que eu fosse adorar...

— Não, ela não pode ir com a gente — concorda Victor —, mas posso arranjar uma casa só para ela. Já fiz isso antes.

Afinal, Victor providenciou a casa em Lake Havasu City para mim e Dina.

— Mas você não disse que surgiu um problema e que a gente precisa ir embora antes do planejado? Não dá tempo de encontrar outra casa para ela. Isso levaria dias.

— Eu tenho uma casa — afirma Victor. — Fica longe do Arizona, mas acho que seria melhor para a senhora não ficar aqui por enquanto. O contato de Fredrik, o mesmo sujeito que trouxe a senhora para cá, pode levá-la a esse lugar. Está disposta a se mudar?

Dina se reclina no sofá, apertando as mãos uma na outra e as enfiando entre as pernas, vestidas em uma calça bege.

Eu me sento ao lado dela.

— Por favor, faça isso — peço a ela. — Vou me sentir muito melhor sabendo que você está segura.

Dina fica em silêncio por um longo momento, mas finalmente aceita.

— Estou velha demais para tanta emoção, mas tudo bem, eu vou. Só faço isso por você, Sarai.

Eu me inclino e a abraço.

— Eu sei, e é por isso que eu amo você.

— Onde fica a casa? — pergunto depois que deixamos Dina na casa de Amelia e pegamos a estrada. Ele não quis dizer antes a localização em voz alta, provavelmente porque não confiava no ambiente.

— Em Tulsa — responde Victor. — Tenho algumas casas espalhadas por aí, essa é uma delas. Nada luxuoso como a casa de Santa Fé, mas dá para morar nela, é aconchegante, e só a gente sabe que ela existe.

— Quem é esse contato de Fredrik, afinal?

— Ele não faz parte da Ordem, se é o que você quer saber. É só alguém que Fredrik conhece, um pouco como Amelia.

— Se não fazem parte da Ordem, quem eles são?

Victor me lança um olhar do banco do motorista.

— Amelia é só uma espécie de ex-namorada de Fredrik. Como os abrigos administrados pela Ordem, a casa de Amelia tem a mesma função. Mas temos muito menos preocupações em relação a ela, que nem sabe o que é a Ordem. Só o que ela tem é uma obsessão doentia por Fredrik e faz qualquer coisa que ele pedir.

— Ah, entendo — digo, embora não saiba direito se entendi. — Ela parece pegajosa.

— Pode-se dizer que sim.

— E o cara? Aquele que vai levar Dina até Tulsa?

Victor olha para a estrada, com uma das mãos relaxada na parte de baixo do volante.

— Ele é um dos nossos funcionários, na verdade. Um dentre uns vinte contatos que recrutamos desde que eu saí da Ordem. Nenhum deles sabe mais do que o necessário. Fredrik ou eu damos uma ordem, e, como em um emprego qualquer, eles obedecem. Claro que trabalhar com a gente é bem diferente de qualquer outro emprego, mas você entendeu.

— Eles não sabem o risco que correm por se envolver com você e Fredrik? E como vocês fazem para eles seguirem as ordens de vocês? O que eles fazem exatamente, além de levar Dina para um lugar qualquer, assim, do nada?

— Você está cheia de perguntas. — Victor sorri para mim. Uma carreta passa em disparada no sentido oposto, cegando-nos com os faróis altos. — Eles sabem do perigo, até certo ponto. Sabem que estão trabalhando para uma organização particular e são proibidos de falar sobre ela, mas nenhum dos nossos recrutas desconhece a discrição e a disciplina. Alguns são ex-militares, e todos foram escolhidos a dedo por mim. Depois de uma verificação completa do passado deles, é claro. — Victor faz uma pausa e acrescenta: — E eles fazem tudo o que pedimos, mas, para não metê-los em encrenca e proteger nossa operação, costumamos só pagar por tarefas simples. Vigilância. Compra de imóveis, veículos. E levar a sra. Gregory para um lugar qualquer, assim, do nada. — Victor sorri para mim de novo. — Como garantimos que eles sigam nossas ordens? O dinheiro é uma maneira formidável de influenciar pessoas. Eles são bem remunerados.

Apoio a cabeça no banco e tento esticar as pernas no chão do carro, já temendo a viagem longa.

— Um dos nossos homens estava no restaurante de Hamburg na noite em que eu encontrei você.

Tão depressa quanto apoiei a cabeça, levanto-a de novo e olho para Victor, em busca de mais explicações.

— A sra. Gregory só me ligou depois que você foi para Los Angeles — esclarece ele. — Eu estava no Brasil em uma missão, ainda procurando meu alvo depois de duas semanas. Fui embora assim que recebi a ligação da sra. Gregory, mas sabia que provavelmente não encontraria você a tempo, então entrei em contato com dois dos nossos homens que estavam em Los Angeles, dei a eles a sua descrição e alertei para que vigiassem o restaurante e a mansão de Hamburg. Eu sabia que você iria para um dos dois lugares.

Eu me lembro do homem atrás do restaurante depois que matei o segurança. O homem que misteriosamente me deixou fugir.

— Eu vi o cara. Fugi pela saída dos fundos e ele estava lá. Pensei que ele fosse um dos homens de Hamburg.

— Ele é — rebate Victor.

Pisco, atordoada.

— Ele e o outro homem foram dois dos meus primeiros recrutas. Los Angeles era a minha prioridade quando tudo isso começou.

— Você sabia que eu iria para lá.

Embora eu não queira tirar conclusões precipitadas e parecer iludida, sei que é verdade. Meu coração começa a bater como um punho quente. Saber a verdade, saber que Victor estava, durante todo aquele tempo, pensando em mim mais do que eu jamais poderia imaginar me deixa feliz e culpada. Culpada porque o acusei de me abandonar.

— Eu esperava que você esquecesse essa história. Mas, no fundo, sabia que você voltaria lá.

Ficamos em silêncio por um instante.

— Ele está bem? — pergunto, sobre o homem nos fundos do restaurante.

Victor assente.

— Está ótimo. Ele tinha sido contratado por Hamburg meses antes. Conhecia a planta do restaurante e sabia que a única saída alternativa da sala de Hamburg no andar de cima era a dos fundos. A propósito, ele quer pedir desculpa.

— Como assim? Ele me ajudou a fugir.

— A ordem que eu dei a ele foi para não deixar de jeito nenhum que você entrasse naquela sala. Foi a peruca platinada. Ele sabia que você tem cabelo castanho-avermelhado e comprido, não curto e louro. Quando ele se deu conta de quem era, Stephens já estava levando você. Ele não podia entrar porque a sala estava sendo vigiada, por isso foi até os fundos do restaurante, torcendo para conseguir entrar por ali de alguma forma, mas havia outros dois homens de guarda. Eles puxaram conversa e o seguraram ali, até que por fim ele os convenceu a deixá-lo vigiar o lugar sozinho. Logo depois, você saiu pela porta dos fundos.

Respiro fundo e apoio a cabeça no banco de novo.

— Bom, diga a ele que não precisa pedir desculpa. Mas por que ele não me disse logo quem era? Ou não me levou até você?

— Ele precisava segurar o Stephens tempo suficiente para você conseguir fugir, e o fato de ele continuar trabalhando para Hamburg ajuda. Ele não sabe o que os dois planejam nem coisa alguma sobre as operações. É só um segurança, nada além disso. Mas está lá dentro, e isso já é valioso para a gente.

Desafivelo meu cinto de segurança e me esgueiro entre os bancos da frente com a bunda empinada (de um jeito bem deselegante para uma dama, admito) para alcançar o banco de trás. Flagro Victor admirando a cena enquanto me espremo para passar, e isso me faz corar.

— Só tenho mais uma pergunta a acrescentar à lista.

— O que seria? — pergunta ele, zombando de mim.

— Por quanto tempo a gente vai ter que viajar assim? — Estico as pernas no banco de trás e me deito. — Sinto muita falta dos jatinhos particulares. Essas viagens longas de carro vão acabar me matando.

Victor ri. Acho isso incrivelmente sexy.

— Você está dormindo com um assassino, fugindo todo dia de homens que querem matar você e acha que vai morrer por falta de conforto. — Ele ri de novo, e isso me faz sorrir.

— É, acho — digo, me sentindo só um pouco ridícula. Não posso negar a realidade, afinal, por mais sem sentido que ela seja.

— Não vai ser por muito mais tempo — responde Victor. — Não podemos chamar atenção até que eu consiga me livrar completamente de Vonnegut. Ele tem contatos em muitas áreas, e transportes luxuosos, confortáveis e secretos estão no topo de sua lista de prioridades, por motivos óbvios. Dou menos na vista viajando de trem do que de jatinho particular.

Satisfeita com a resposta, não digo mais nada sobre o assunto e olho para cima, para o teto escuro do carro.

— Só para constar — digo, mudando de assunto —, eu não estou só dormindo com um assassino. Estou muito envolvida com ele.

— É mesmo? — pergunta Victor, e sei que ele está sorrindo.

— Sim, temo que seja verdade — digo, em tom de brincadeira, como se fosse algo ruim. — E é um envolvimento bem pouco saudável.

— É mesmo? Por que você acha isso?

Suspiro, dramática.

— Ah, sei lá. Talvez porque ele nunca vai conseguir se livrar de mim.

— Pegajosa. Como Amelia — provoca Victor, tentando me irritar.

E ele consegue. Eu me levanto um pouco e dou um soco de leve em seu ombro. Ele se encolhe, fingindo dor, mesmo com um sorriso largo no rosto.

— Longe disso — digo, e volto a me deitar. — Nem ferrando que eu vou fazer tudo o que ele quer, como a Amelia.

Victor ri baixinho.

— Bem, pelo jeito ele vai ter que aguentar você para sempre, então.

— Vai, e para sempre é muito tempo.

Ele faz uma pausa e então diz:

— Bom, só para constar, algo me diz que ele não gostaria que fosse diferente.

Adormeço no banco de trás muito tempo depois, com um sorriso no rosto que pareceu continuar ali pelo resto da noite.


CONTINUA

CAPÍTULO NOVE

Sarai

Estou mordendo o lábio por dois motivos: porque estou torcendo para que seja uma boa notícia e porque estou sexualmente frustrada. Victor fala com Fredrik por menos de dois minutos, desliga e digita outro número. Quando consegue falar com Dina, ele me passa o celular.

Pego o aparelho e o encosto no ouvido.

— Dina?

— Sarai, meu Deus, onde você está? O que está acontecendo? Eu estava sentada na sala vendo TV e um homem bateu na porta. Eu não ia deixar ele entrar, fiquei desconfiada na hora; estava quase pegando minha espingarda. Mas ele disse que queria falar de você. Ah, Sarai, fiquei com tanto medo de que tivesse acontecido alguma coisa! — Ela finalmente respira.

— Você está bem? — pergunto, baixinho.

— Sim, sim, estou ótima. O melhor que eu poderia estar. Mas ele me falou que iríamos para a delegacia encontrar você. Até me mostrou um distintivo. Não acredito que caí nessa. O cavalheiro mentiu para mim. — Dina para de falar e abaixa a voz, como se estivesse sussurrando para ninguém ouvir. — Ele me levou para a casa de uma prostituta. O que está acontecendo? Sarai...

— Vai ficar tudo bem, Dina, prometo. E não se preocupe. Seja lá quem more nessa casa, duvido que seja uma prostituta.

Os olhos de Victor cruzam com os meus. Desvio o olhar.

— Onde você está? Quando vai voltar? Sei que você está metida em alguma encrenca, mas sempre pode me contar tudo.

Gostaria que isso fosse verdade. Mais do que tudo, neste momento. Mas a verdade maior é que não sei como responder às perguntas de Dina. Victor deve ter percebido a fisionomia confusa no meu rosto, porque tirou o telefone da minha mão.

— Sra. Gregory — diz ele ao telefone. — Aqui é Victor Faust. Preciso que a senhora me ouça com bastante atenção. — Ele espera alguns segundos e continua. — A senhora vai precisar ficar onde está pelos próximos dias. Vou levar Sarai para vê-la em breve, e vamos explicar tudo, mas, até lá, precisa ficar escondida. Não, sinto muito, mas a senhora não pode voltar... Não, não é seguro lá. — Ele assente algumas vezes, e percebo, pelas leves rugas que se formam entre seus olhos, que ele não se sente à vontade falando com ela, como se alguém colocasse de repente um bebê no colo dele. — Sim... Não, me escute. — Ele perde a paciência, então vai direto ao assunto. — É uma questão de vida ou morte. Se a senhora sair ou ligar para qualquer conhecido, vai acabar morrendo.

Tenho um sobressalto e me encolho com essas palavras, não por serem verdade (isso eu já sabia), mas porque fico imaginando a reação de Dina a elas. Só posso imaginar o que ela deve estar pensando nesse momento, como deve estar apavorada. Apavorada por mim, não por si mesma, e isso faz doer ainda mais.

— Sim, ela está bem — afirma Victor mais uma vez para tranquilizá-la. — Só mais alguns dias. Eu vou levar Sarai aí.

Falo com Dina por mais alguns minutos, contando o que posso, mas sem revelar demais, para acalmá-la. Claro que isso não está ajudando muito, considerando as circunstâncias. Nós desligamos e eu fico ali na sala, me sentindo muito diferente de como me sentia antes da ligação.

Acho que enfim caiu a ficha do tamanho da merda que fiz.

Antes, quando achava que era eu quem corria o maior perigo, e depois que disse para Eric e Dahlia saírem de Los Angeles, eu estava preocupada, mas não tanto assim. Os danos que causei afetam mais do que minha própria segurança. Sem querer, pus todas as pessoas que conheço e amo em perigo.

A realidade de tudo isso, dos meus atos e das consequências em efeito dominó, o fato de Victor ter me deixado, de eu ter tentado levar uma vida normal e fracassado; não consigo mais. Não suporto mais nada disso. Cacete, até a dorzinha por ter encontrado Dahlia com Eric está começando a me incomodar. Não por causa de Eric, ou porque ele era meu “namorado”, mas porque o que eles fizeram não me afetou como deveria ter afetado.

Sou uma aberração. E, no momento, não consigo perdoar Victor por me fazer passar por essa situação, por me jogar em uma vida que nós dois sabíamos que não serviria para mim e por esperar que eu me adaptasse. Eu não queria desde o começo. E foi exatamente por isso que não deu certo.

As lágrimas começam a inundar meus olhos. Deixo que caiam. Não me importa.

Sinto a presença de Victor atrás de mim, mas antes que ele me toque me viro para encará-lo com a raiva distorcendo meu rosto. E enfim certas coisas que eu queria dizer a ele depois de todo esse tempo saem, em uma tempestade de palavras furiosas.

— Você me abandonou, porra! — Bato com as palmas das mãos em sua camisa social justa. — Você deveria ter me matado e pronto! Você consegue imaginar o que me fez passar?! — Lágrimas cheias de raiva escorrem dos cantos dos meus olhos.

— Me desculpe...

Franzo a testa na mesma hora.

— Você quer se desculpar? — Solto o ar ruidosamente. — É só isso que você consegue dizer? Me desculpe?

No fundo, sei que nada disso é culpa de Victor, sei que ele só fez o que fez para me proteger. Mas a maior parte de mim, a parte que não quer acreditar que eu não tenho mais salvação, quer pôr a culpa em qualquer um, menos em mim mesma.

As lágrimas começam a me fazer engasgar.

— Toda santa noite — disparo, apontando com raiva para o chão, meu rosto retorcido de raiva e rancor —, todas as horas de todos os dias, eu pensava em você. Só em você, Victor. Eu vivia cada dia com esperança, acreditando de coração que você ia voltar para mim. Os dias passavam e você não aparecia, mas nunca perdi a esperança. Eu pensava comigo mesma: Sarai, ele está vigiando você. Ele está testando você. Ele quer que você faça o que ele disse, que tente ser como todo mundo, que tente se misturar. Quer que você prove para ele que é forte o suficiente para enfrentar qualquer situação, se adaptar a qualquer estilo de vida. Porque, se você não consegue fazer algo tão simples quanto levar uma vida normal, nunca vai conseguir viver com ele. — Mordo o lábio inferior e tento sufocar as lágrimas. Balanço a cabeça devagar. — Isso era o que eu pensava. Mas fui idiota por achar que você tinha alguma intenção de voltar para mim. — Um tremor induzido pelo choro percorre meu peito.

Victor, com o semblante angustiado que nunca imaginei ver nele, se aproxima. Recuo, balançando a cabeça sem parar, esperando que ele entenda que não estou pronta para ficar muito perto. Quero ficar sozinha com a minha dor.

— Sarai? — diz ele, baixinho.

— Não — digo, recusando-o com um gesto. — P-por favor, me poupe das desculpas e dos motivos pelos quais sei que não posso culpar você. Eu sou egoísta, ok? Eu sei! Já sei que você fez o que precisava fazer. Já sei...

— Não, não sabe.

Levanto os olhos para encontrar os dele.

Victor se aproxima. Desta vez não me afasto, minha mente está paralisada por suas palavras, por mais escassas ou vagas que elas sejam. Ele segura meus cotovelos e descruza minhas mãos. Seus dedos roçam de leve a pele sensível da parte interior dos meus braços, descem até encontrarem minhas mãos e as seguram.

— Eu saí da Ordem principalmente por causa de você, Sarai — explica Victor, e o resto do meu corpo fica paralisado. — Quando Vonnegut descobriu que eu estava ajudando você, ele soube... — Ele faz uma pausa, parecendo estar vasculhando sua mente à procura das palavras menos perigosas. — Ele soube que eu me comprometi...

Jogo as mãos para cima.

— Fale inglês! Por favor, diga de uma vez sem se esforçar tanto para fazer rodeios! Por favor!

— Vonnegut soube que eu tinha... começado a gostar de você.

Fico paralisada e meus lábios se fecham. Meu coração bate descompassado. Minhas lágrimas parecem secar em um instante, só as que molham minhas bochechas continuam escorrendo.

— Como eu era o Número Um de Vonnegut, seu “favorito”, a última coisa que ele queria era mandar me matar. Ele me afastou do serviço, me desligou por um tempo, até... que eu criasse juízo.

Faço uma cara de “que-droga-isso-significa”.

— Pode chamar de lavagem cerebral — acrescenta Victor.

Ele afasta a ideia com um gesto.

— Não importa. O que importa é que ele ia me dar uma única chance de provar que o meu sentimento por você era só um lapso, e que nunca mais iria acontecer. Pouquíssimos agentes têm uma segunda chance na Ordem.

— Um lapso? — Eu me sento na mesinha de centro. Olho para Victor e digo: — Para mim, parece que Vonnegut queria que você provasse que não é humano, mas sim o soldado obediente a ele, incapaz de ter emoções. Que babaca desequilibrado.

Victor assente e se agacha diante de mim, entrelaçando os dedos, com os cotovelos apoiados nas coxas.

— Vonnegut mandou que eu matasse você — conta ele em voz baixa, sustentando o meu olhar. — Para provar a mim mesmo. Eu disse que ia fazer isso, que queria fazer, provar que eu era digno de confiança, e ele me soltou. Claro que eu não tinha nenhuma intenção de matar você. Parti naquele dia e procurei um esconderijo. Niklas, que só conheceu a Ordem a vida inteira, decidiu ficar. Pensei que talvez ele só precisasse de um tempo para entender o que estava acontecendo e decidir o que era melhor para ele. Eu também estava me escondendo de Niklas. Sem saber onde eu estava, ele não precisaria enganar Vonnegut nem achar que precisava escolher entre mim e ele. Mas aí Fredrik me contou que Niklas foi contratado para me matar e está me procurando desde então.

— Que desgraçado — comento, balançando a cabeça sem acreditar, mas depois penso de novo. — Você disse que saiu da Ordem principalmente por minha causa. Além de mim, qual foi o outro motivo?

— Isso já estava para acontecer havia muito tempo — conta Victor. — Quando precisei matar meu pai para salvar meu irmão, entendi que era hora de sair. — Seus dedos fortes acariciam os meus, mais delicados. — Você me deu a motivação final de que eu precisava para fazer isso de uma vez.

Com a ponta dos dedos, acaricio seu rosto com a barba um pouco por fazer. Victor continua a me encarar, seus olhos sondando os meus através do pequeno espaço entre nós, cheios de paixão e compreensão. Eu me curvo e beijo seus lábios.

— Eu sinto muito pelo seu irmão — digo, baixinho.

Ele roça os lábios nos meus, e a sensação se espalha pelo meu corpo até os dedos dos pés, como uma dose de uísque.

— Eu não estava testando você, Sarai. — Ele me beija de novo.

— Então o que você estava fazendo? — Eu o beijo também e derreto ao sentir suas mãos se movendo por minhas coxas.

Victor me ergue nos braços, envolvendo minhas pernas em sua cintura, minha bunda acomodada nas palmas de suas mãos enormes. Meus dedos sobem pelos lados de seu rosto e tocam sua boca antes que meus lábios toquem também.

— Eu estava esperando o momento certo — diz ele enquanto sua boca encontra meu pescoço.

Enfio os dedos em seu cabelo castanho curto, erguendo o queixo ao sentir sua boca explorando meu pescoço e meu maxilar. Meus olhos estão fechados, as pálpebras pesadas, e sinto um formigamento quente ao qual sei que não dá para resistir. Victor me carrega pela sala, embora eu não saiba para onde nem me importe com isso. Aperto mais as pernas nuas ao redor de sua cintura, sentindo a superfície fria e lisa de seu cinto de couro pressionando o interior das minhas coxas. Meus dedos estão trabalhando nos botões de sua camisa, abrindo-os com facilidade.

Victor não responde às minhas perguntas, mas isso também não me importa.

Os lábios dele cobrem os meus, a umidade quente de sua língua se entrelaçando avidamente com a minha. Sem parar de me beijar, Victor me faz apoiar os pés no chão para tirar minha calcinha, uma perna de cada vez. Ele ergue meus braços e tira minha camiseta, jogando-a no chão. Minhas mãos mexem no cinto dele, movendo a lingueta do buraco e puxando a tira de couro de uma só vez em um movimento rápido. Ele tira a calça e a cueca boxer preta. Minha boca recebe seu hálito quente e ofegante enquanto ele me carrega mais uma vez e pressiona minhas costas na parede, como se não quisesse esperar para chegarmos ao quarto de hóspedes. Também não quero esperar. Já esperamos demais.

Sinto seu pau entrando em mim, e, antes que ele deslize até o fundo, uma descarga de prazer corre pelas minhas coxas e sobe pela coluna, relaxando meu pescoço e fazendo minha cabeça se apoiar na parede. Sinto meus olhos formigando e ardendo. A umidade morna entre minhas pernas é inundada por um êxtase quente e trêmulo.

Ele mete uma vez bem fundo e se mantém ali, segurando meus quadris, com minhas costas pressionadas contra a parede fria. Abro os olhos devagar, ainda sem controlar direito as pálpebras, e o encaro. Ele me fita com a mesma intensidade voraz. Minha respiração é curta e irregular quando escapa dos meus lábios entreabertos. Meus braços estão ao redor dele, em um abraço apertado, meus dedos cravados nos músculos rijos de suas costas.

— Eu queria isso há tanto tempo — digo, ofegante.

— Você não faz ideia... — rebate Victor, para então me devorar com um beijo, tão violento que quase perco o controle dos meus músculos.

Minhas coxas se contraem em sua cintura quando ele mete seu pau em mim de novo. Estremeço e gemo, minha cabeça bate com força na parede. Ele segura meu corpo no lugar com os braços encaixados nas minhas coxas, forçando seu quadril contra o meu, e eu sinto pequenas explosões no estômago a cada investida.

Minhas costas se arqueiam, meus seios ficam expostos a ele, que cobre um mamilo com a boca. Ergo os braços acima da cabeça, procurando alguma coisa onde eu possa me segurar para cavalgá-lo, mas não encontro nada. Envolvo seu pescoço com os braços para sustentar meu peso e rebolo em sua virilha, gritando e gemendo, desesperada para mergulhar cada centímetro do seu pau duro tão fundo quanto possível. Seus dedos afundam dolorosamente nas minhas costas. Sua língua se enrosca na minha, seus gemidos atravessam meu corpo.

Gozo rápido e forte, minhas pernas e o ponto entre elas se contraindo ao redor dele, meus músculos tremendo. Ele goza segundos depois e segura meu corpo bem firme no lugar, com minha bunda em suas mãos musculosas, para se esvaziar dentro de mim.

Nesse momento, não estou nem aí para as consequências do que acaba de acontecer. Mas só nesse momento.

Com a cabeça apoiada no ombro dele, Victor me carrega pelo corredor até o banheiro espaçoso em frente ao quarto de hóspedes. Ele me senta na bancada e fica de pé no meio de minhas pernas nuas.

— Não se preocupe. — Ele dá um beijo na minha testa e abre a porta de vidro do boxe do chuveiro.

— Com o quê? — pergunto, confusa.

Ele gira a torneira, que range, e regula a água quente e a fria até encontrar a temperatura desejada. Eu o observo da bancada, o modo como seu corpo alto e escultural se move, as curvas de seus músculos entalhadas em um desenho poético ao redor de seus quadris, suas panturrilhas enrijecendo quando ele anda.

Ele volta para perto de mim e termino de tirar sua camisa, deslizando-a por seus braços musculosos.

— Você não vai engravidar — diz ele, e me manda descer da bancada e segui-lo até o chuveiro. — Não de mim, pelo menos.

Um pouco surpresa, deixo por isso mesmo.

Ele fecha a porta do boxe e começa a lavar meu cabelo. Eu me perco naquela proximidade, no modo como suas mãos exploram meu corpo com tanta precisão e desejo.

Por muito tempo, esqueço que ele é um assassino cujas mãos tiraram muitas vidas sem sequer um pensamento de remorso ou arrependimento. Esqueço que também sou uma matadora cujas mãos tiraram uma vida há poucas horas.

Parece que fomos feitos um para o outro, como duas peças de um quebra-cabeça que de início parecem não se encaixar, mas que se adaptam perfeitamente quando vistas pelo mais improvável dos ângulos.


CAPÍTULO DEZ

Victor

A empregada de Fredrik volta para a casa bem cedo na manhã seguinte. Acordo assim que amanhece, e ela entra em casa quando estou tomando meu café no pátio dos fundos. Ela me vê através da porta de vidro ao passar pela sala, e então vem falar comigo no pátio.

— Gostaria de café da manhã, señor? — pergunta ela em espanhol.

Deixo a pasta com meu próximo serviço virada para baixo na mesinha de ferro batido.

— Obrigado, mas não vou comer — respondo, e depois aceno para Sarai, que está andando pela sala, procurando por mim. — Mas ela vai.

— Eu vou o quê? — pergunta Sarai ao passar pela porta de vidro aberta. Ela anda descalça pelo pátio de pedra, usando outra camiseta de Fredrik. Fico muito incomodado por ela ter que usar roupas dele em vez das minhas, mas a única roupa que tenho é a que estou usando, além de um short largo de corrida. O cabelo longo e castanho de Sarai está despenteado, pois ela acaba de acordar e sair da cama.

Ela se senta no meu colo e eu encaixo a mão direita entre suas coxas.

— Café da manhã.

Sarai boceja e estica os braços para o alto antes de apoiar a cabeça no meu ombro. Ponho a mão esquerda em sua cintura para mantê-la equilibrada no meu colo. O cheiro da pele e do cabelo recém-lavados de Sarai acelera meu corpo todo.

Ela faz uma careta sutil, meio que rejeitando a ideia.

— É melhor você comer.

Levantando a cabeça do meu ombro, Sarai olha para mim por um momento, pensativa, e depois dirige sua atenção para a empregada.

— Claro, eu gostaria de tomar café da manhã, se não for incômodo — diz, em espanhol.

Por um momento, a empregada parece surpresa por ouvir Sarai falando seu idioma nativo, mas ela logo se recompõe, assente e volta para dentro da casa.

— Acho que a gente já adiou essa questão o suficiente — diz Sarai. — Para onde é que vamos, Victor? O que eu vou fazer?

Estou pensando exatamente nisso desde que descobri que ela veio para Los Angeles e fez o que fez. Olho para a piscina, perdido em pensamentos, minha última tentativa desesperada de organizar as respostas na cabeça. Mas elas continuam tão fragmentadas e bagunçadas quanto sempre estiveram. Todas, menos uma.

— Sarai — digo, olhando novamente para ela —, você não pode voltar para casa. Eu sabia disso na primeira vez em que mandei você para o Arizona. A situação não estava nem de longe tão terrível quanto ficou depois, mas, agora que as coisas mudaram, você não pode mais voltar.

— Então vou ficar com você — rebate ela. Pela primeira vez na vida, não tenho coragem de protestar. Nem contra ela nem contra mim mesmo. A maior parte de mim, a parte humana e imperfeita, quer que Sarai fique comigo, e nada vai me impedir de fazer isso dar certo.

Mas sei que não vai ser fácil.

— Sim — digo, passando a mão em sua coxa macia —, você vai ficar comigo, mas há muitas coisas que precisa entender.

Ela se levanta do meu colo e fica de pé na minha frente, com um braço na frente do corpo e o outro cotovelo apoiado nele. Distraída, ela passa as pontas dos dedos no rosto macio, fitando o que parece ser o nada. Então ela me olha e balança a cabeça com uma expressão perplexa.

— Eu esperava que você fosse resistir mais. Qual é a pegadinha? A despeito do que aconteceu entre a gente ontem à noite, ou do que está acontecendo desde que nos separamos, nunca pensei que você fosse concordar em me levar junto.

— Você gostaria que eu resistisse? — Abro um sorriso capcioso.

Ela sorri também e deixa os braços relaxarem.

— Não. Com certeza não. E-eu só...

Levanto uma perna e apoio o pé no outro joelho.

— Nunca me imaginei em uma situação dessas. Não posso mentir e dizer que acho que vai dar certo. Muito provavelmente não vai, Sarai, e você precisa entender isso. — Ela parece ficar um pouco desanimada, o bastante para eu saber que minhas palavras sinceras a entristeceram mais do que ela se permite revelar. — Não posso mudar o meu jeito. Não só porque é tudo o que sei fazer, ou porque é o que faço melhor, mas também porque não quero. — Olho para Sarai. — Eu nunca vou parar de fazer o que faço.

— Eu nunca ia querer que você parasse — retruca ela, com certa intensidade. Sarai puxa uma cadeira próxima e a coloca diante de mim antes de se sentar. — Tudo o que eu quero, Victor, é ficar com você. Vou fazer qualquer coisa que você espere que eu faça, mas quero que me ensine...

Levanto a mão e a interrompo imediatamente.

— Não, Sarai, também não vou fazer isso. Não é assim que vai ser. — Sua expressão se anuvia e ela desvia o olhar, magoada com minha recusa. — Já falei, eu praticamente nasci nesta vida. Você ia levar quase o resto da sua para aprender a fazer o que eu faço, e mesmo assim não ia ficar boa o suficiente.

— Então, o que eu devo fazer? — pergunta ela, com um tom de ressentimento na voz. — Quero estar com você aonde quer que vá, mas não quero ficar à toa, tomando martínis na praia enquanto você sai para matar pessoas. Eu não sou inútil, Victor, posso fazer alguma coisa.

— Você pode fazer muitas coisas, sim — digo, interrompendo-a. — Mas fazer o que eu faço está totalmente fora de cogitação. Por que você quer tanto isso? — Levanto a voz quando sinto, de repente, uma necessidade desesperada de entender a resposta.

Sarai bate as palmas das mãos nas coxas nuas.

— Porque é o que eu quero.

— Mas por quê?

Ela ergue as mãos para os lados e grita:

— Porque eu gosto! Entendeu?! Eu gosto!

Pisco algumas vezes, completamente atordoado por essa confissão. Na verdade, essa era a última coisa que eu esperava ouvir de Sarai. Parte de mim sabia que ela era mais do que capaz de tirar a vida de alguém e dormir em paz toda noite depois disso, mas nunca previ que ela fosse gostar de matar.

Não sei ao certo como me sinto a respeito disso. Preciso de mais informações.

Eu me inclino para a frente e fico cara a cara com Sarai.

— Você gosta de matar? — pergunto, embora isso saia mais como uma afirmação. — Então, se alguém pedisse a você que tirasse a vida de outra pessoa, você faria isso sem questionar?

— Não — responde ela, franzindo o cenho. — Eu não mataria qualquer um, Victor, só homens que merecessem.

Homens? Esse lado de Sarai está ficando mais intrigante. Eu me pergunto se ela sabe o que acaba de dizer. Homens. Não pessoas em geral, mas homens.

Eu me afasto dela e me reclino na cadeira de novo, virando a cabeça para o lado, pensativo.

— Explique.

Ela também se recosta, encolhendo as pernas e apoiando os pés no assento, virando os joelhos para o lado.

— Homens como Hamburg. Homens como Javier Ruiz, Luis e Diego. Homens como o segurança que matei ontem. Willem Stephens, pelo simples fato de trabalhar para Hamburg sabendo o que o chefe faz. Homens como John Lansen e todos os outros que conheci naquelas festas de gente rica quando estava com Javier. — Seu olhar penetra o meu. — Homens que merecem ter a garganta cortada.

A gravidade das palavras de Sarai e a determinação em seu rosto me silenciam por um momento. Será possível que eu agora tenha não um, mas dois assassinos por perto que compartilham o gosto pelo derramamento de sangue? E, no exato momento em que o rosto surge na minha mente junto com o de Sarai, ouço o carro de Fredrik na entrada da garagem. Isso interrompe o momento intenso, e ambos olhamos para cima.

Instantes depois, Fredrik, vestido de maneira informal com um jeans escuro e uma camisa de grife, vem nos encontrar no pátio. Ele deixa o jornal do dia na mesa de centro e diz:

— É melhor você dar uma olhada nisso. — Então olha para Sarai por um momento. — A propósito, minhas roupas ficam bem em você.

Fuzilo Fredrik com o olhar, mas escondo meu ciúme antes que qualquer um dos dois perceba.

Sarai e eu olhamos para o jornal, mas sou eu quem o pega. Desdobrando-o, corro os olhos pelo texto até encontrar aquilo a que Fredrik se refere.

Quatro pessoas foram encontradas mortas a tiros em um hotel de luxo de Los Angeles, na madrugada passada. Somente dois corpos foram identificados, os de Dahlia Mathers, 23 anos, e Eric Johnson, 27 anos, ambos de Lake Havasu City, Arizona.

Algumas frases abaixo:

Sarai Cohen, também de Lake Havasu City, é procurada pela polícia para prestar esclarecimentos.

Acho que não importa que identidade Sarai usou para fazer o check-in no hotel, o rosto dela é o mesmo nas duas.

Ela arranca o jornal das minhas mãos antes que eu possa terminar.

— Não... — Ela cerra os dentes e seu rosto fica sério enquanto lê a notícia trágica sobre seus amigos. Ela procura meus olhos, mas logo se volta para o jornal, como se sua mente torcesse para ter lido tudo errado na primeira vez. — Falei para eles irem embora de Los Angeles! Dahlia disse que eles iam embora... — Seus olhos verdes encaram os meus, cheios de desespero e despedaçados pela culpa.

Fico de pé.

Sarai pega o jornal com as duas mãos e o rasga bem no meio, amassando as duas metades em seus punhos.

— Eles mataram Dahlia e Eric, porra! — ruge ela. — Eles estão mortos!

O jornal cai de suas mãos e voa pelo pátio de pedra.

Fredrik apenas me olha, esperando para ver o que vou fazer ou dizer. Ele não fala, mas percebo que quer.

— Sarai. — Por trás dela, ponho as mãos em seus ombros. — Eu vou cuidar disso.

Ela se vira para mim. Seu cabelo balança ao redor da cabeça antes de cair de novo nos ombros e seu rosto está ardendo de fúria.

— ELES MORRERAM POR MINHA CAUSA! COMO LYDIA!

Tentando acalmá-la, aperto seus ombros com força, de frente, e a seguro.

— Eu disse que vou cuidar disso — repito com ainda mais intensidade e sinceridade do que antes. Eu me inclino para a frente para manter seu olhar fixo no meu. — Vou fazer isso por você, Sarai. Hamburg e Stephens estarão mortos antes do fim desta semana.

Ela não ouve. Está me encarando, mas parece estar olhando através de mim. Seu peito sobe e desce com a respiração ofegante e irregular. Suas pupilas parecem pequenas, como buracos de grampos em uma folha de papel. O verde de seus olhos parece ter escurecido.

— Não — rebate ela, com a voz calma. — Não quero que você faça nada.

Absorta em pensamentos, ela dá um passo para trás, e minhas mãos caem de seus ombros.

— Vou fazer isso por você. Eu quero...

— Eu disse que não! — Ela dá mais dois passos e se vira, me dando as costas e olhando para a piscina. — Eu vou fazer isso — afirma ela, em voz baixa e decidida. — Vou matar os dois e não quero que você se meta.

— Acho que não...

Ela vira a cabeça, seus olhos escuros cruzando com os meus.

— Se você matar qualquer um deles, nunca vou perdoar você. Isso é assunto meu, Victor! Me deixe fazer pelo menos isso!

— Sarai, você não pode matá-los. — Eu me aproximo dela. — A única pessoa que vai morrer é você. Não vai conseguir...

— Estou cagando para isso! — Percebo que o objetivo de Sarai é inabalável. Ela volta para perto de mim. — Ou você me ajuda a fazer isso ou eu mesma vou descobrir como fazer. Eles vão morrer nas minhas mãos, não nas suas, nas de Fredrik nem nas de qualquer outra pessoa. Só nas minhas. Me ensine. Me mostre o que fazer. Qual é a melhor forma de agir para alguém como eu. Me ajude, ou vou morrer tentando por minha conta. Para mim, tanto faz.

— Eu não vou... você não pode — retruco, balançando a cabeça.

Sarai desiste e tenta me empurrar para fora de seu caminho. Mas não deixo que ela passe. Não posso, pois sei que cada palavra que ela disse foi a sério.

Eu a seguro pelo pulso, detendo sua marcha furiosa até a porta de vidro. Fredrik sai do caminho, assistindo ao desenrolar da cena com um brilho estranho nos olhos, que só posso interpretar como fascinação.

— Me solte!

— Você não vai embora. — Eu a prendo pelo pulso com força, e agarro o outro quando ela começa a me bater.

Ela quer descontar toda a raiva em mim, gritar na minha cara, me xingar com as palavras que tanto quer dizer a Hamburg e Stephens antes de matá-los, mas não consegue. A raiva, como sempre, a domina, e Sarai cai no choro.

Ela me disse uma vez que sempre chora quando está furiosa.

As lágrimas escorrem como rios por seu rosto. Sarai tenta mais uma vez se desvencilhar de mim, mas a seguro firme e faço uma pressão dolorosa sobre seus pulsos, tentando acalmá-la.

— Victor, por favor! Porra, basta me ensinar, cacete! Mesmo que seja matar os dois e mais ninguém! É tudo que eu peço! Nunca mais vou pedir a sua ajuda! POR FAVOR!

Sarai enfim para de se contorcer e desaba sobre meu peito. Eu a envolvo em meus braços, aninhando sua nuca nas mãos e pressionando o lado do meu rosto no alto de sua cabeça. Sarai chora com violência, seu corpo treme no meu abraço. Não são gritos de tristeza e dor, são gritos de culpa, raiva e da necessidade desesperada de vingar a morte de pessoas — até de Lydia — que poderiam ainda estar vivas, se não fosse por ela.

Fredrik olha para mim. Sei o que a expressão calma dele quer dizer. Ele acha que eu deveria dar a Sarai o que ela quer.

Mas não é a opinião de Fredrik que me faz decidir, no fim das contas. É minha necessidade de proteger Sarai, ainda que ela possa acabar morta no final.

Escolho o mais seguro dos dois caminhos malfadados.

— Eu vou ajudar você.


CAPÍTULO ONZE

Sarai

Levanto o rosto do peito de Victor, fungando as malditas lágrimas que mais uma vez me traíram em um momento de fraqueza.

— Você vai me ajudar a matá-los?

Ele assente.

— Vou.

— Obrigada — digo, baixinho.

Fico na ponta dos pés e dou um beijo suave em sua boca.

Da porta de vidro atrás de nós, a empregada diz com uma voz fraca:

— O café está pronto.

Ela nos fita com seus olhos escuros e curiosos, sem dúvida por ter ouvido a discussão enquanto estava lá dentro.

— Marta faz uns ovos mexidos ótimos — comenta Fredrik, com um sorriso radiante, como se nada tivesse acontecido. — Frita em gordura de bacon. — Ele junta os dedos nos lábios e os beija. — Adoro comida americana.

Ele vai atrás de Marta.

— Se bem que parece que ovos mexidos em gordura de bacon é uma comida do Sul, não? — pergunta ele, olhando para nós enquanto o seguimos.

Victor dá de ombros.

— Bem, Marta não é exatamente do Alabama — continua ele, ao entrarmos na cozinha. — Mas sabe cozinhar como se fosse.

Fredrik e Victor continuam tagarelando sobre comida, provavelmente para me fazer esquecer o que aconteceu. Mas, nesse momento, nada mais me importa além do rosto de Dahlia e Eric na memória. Sei que estou sendo punida. Pela vida. Pelo destino. Não sei por quem ou pelo quê, só sei que faria qualquer coisa para devolver a vida aos meus amigos.

Nós três nos sentamos à mesa com tampo de vidro da cozinha e comemos. E acho quase engraçado Fredrik fazendo Marta provar a comida antes de nos servir, como se ele tivesse aprendido essa técnica paranoica no Manual de Victor Faust.

Durante o café, que dura muito tempo por causa da conversa, Fredrik acaba liberando Marta pelo resto do dia. Isso acontece logo depois que ele começa a falar em sueco com Victor. Odeio não entender o que eles dizem, mas fica claro para mim que era por causa de Marta, e não por mim.

Marta pega a bolsa e se despede de nós, agradecendo a Fredrik por pagar um dia inteiro.

— Por que isso? — pergunto, depois que ela vai embora.

Apoio o garfo no prato ao terminar meu café.

— Temos muito o que conversar — explica Fredrik, tomando um gole de suco de laranja. — E ela não pode ouvir a conversa. — Ele aponta para mim e sorri. — E Marta, embora não pareça, ouve tudo o que acontece por aqui.

— Então por que vocês não continuaram conversando em sueco? — questiono.

— Você fala sueco? — rebate Victor.

— Não.

— Bem, você tem que participar da conversa — diz ele, deixando o copo d’água na mesa.

Sorrio. Nesse momento, me sinto parte deles pela primeira vez. Dos dois. Nós três sentados à mesa, que minutos depois já está livre dos pratos e dos copos, substituídos por pastas e fotografias de serviços de execução. Para mim, é meio surreal discutir detalhes de interrogatórios e assassinatos tão casualmente, como se estivéssemos falando do tempo. Mas também, pela primeira vez na vida, sinto que pertenço a algum lugar. Não estou mais andando por um túnel escuro, com as mãos à frente, procurando a porta. A porta está bem ali, à mostra, e já passei por ela. Enfim encontrei meu lugar na vida. E estou com Victor, o que para mim é mais importante do que tudo.

Finalmente estou com Victor.

Victor e eu saímos da casa de Fredrik nas colinas de Los Angeles no fim da tarde e dirigimos por onze horas até Albuquerque, Novo México. No caminho, paramos em um shopping, onde gasto praticamente uns 2 mil dólares em roupas e sapatos novos, acessórios e maquiagem, já que tudo o que tenho está no Arizona ou ficou no hotel em Los Angeles. Encho o banco de trás com sacolas de compras e caixas de sapatos, mas, lá pela nona hora de viagem, me arrependo de ter comprado tanta coisa. Tudo o que quero é me arrastar para o banco de trás e dormir, mas tenho que me conformar em ficar apertada na frente, encolhida em uma posição desconfortável no banco do Cadillac CTS preto de Victor, com a cabeça apoiada na janela. Desde que Victor saiu da Ordem, ele não tem mais a conveniência de usar jatos particulares para viajar. Se quisesse, com certeza poderia pagar um do próprio bolso, mas ser alguém que a Ordem quer matar significa não dar na vista e abrir mão de alguns luxos que poderiam levar Niklas até ele.

Ao que tudo indica, esses luxos abdicados incluem as residências extravagantes e multimilionárias nas quais Victor sempre preferiu morar. Sua casa em Albuquerque é bem diferente daquela onde ele morava na Costa Leste, com vista para o mar. Quando paramos na entrada de terra batida, vejo uma casa de tamanho médio, com paredes nuas de reboco bege e em um formato de caixa que me faz lembrar as casas que eu construía com peças de Lego quando era criança. Contudo, a julgar pelo jardim elaborado que envolve o caminho branco e liso até a porta e o lado esquerdo da casa, é óbvio que Victor não abriu mão de todos os luxos. Isso fica mais óbvio ainda quando entramos, pois o interior é tão bonito quanto o da casa de Fredrik, apesar do estilo mais interiorano e menos luxuoso. Vermelho-ferrugem, marrom e amarelo dominam o ambiente, com pé-direito alto sustentado por vigas e sarrafos de madeira escura, que fazem a casa parecer muito maior por dentro do que por fora. Uma aconchegante lareira de pedra ocupa uma das paredes da espaçosa sala de estar, com dois espelhos decorativos de metal pendurados acima dela. As paredes são amarelas, combinando com os pisos de terracota que parecem ocupar toda a casa.

— De uma coisa tenho certeza: você sempre consegue as melhores empregadas — comento, deixando várias das minhas sacolas no chão da sala.

— Desta vez, não — diz Victor atrás de mim. Ele deixa as outras sacolas que trouxe do carro perto do sofá de couro marrom-alaranjado. — Sou só eu.

— Sério? Mas está tudo tão limpo. Acho que você não passou muito tempo aqui, então, não é?

— Uns quatro meses. — Ele olha para mim. — Você gostou? Espero que sim, porque é o seu novo lar.

Um sorriso desponta no meu rosto.

Victor desabotoa e tira a camisa, deixando-a nas costas de uma poltrona de couro marrom. Observo discretamente seu corpo enquanto ele anda por um corredor longo e bem-iluminado com uma entrada em arco.

Sigo Victor.

— Claro que você sabe que não vamos ficar aqui para sempre. — Entramos em um quarto grande. — Mas é nosso lar por enquanto, pelo menos.

Ele tira a calça e me esforço ao máximo para não olhá-lo com intensidade demais, mas isso fica cada vez mais difícil.

— Vem cá — chama ele, parado diante de mim sem nada além de sua cueca boxer preta e apertada, que pouco ajuda a esconder o volume crescendo por baixo do tecido.

Engulo em seco, nervosa, embora não saiba a razão para esse nervosismo repentino, e me aproximo dele. Sinto um espasmo entre as pernas, e também não sei ao certo por que isso acontece. É como se meu subconsciente estivesse mais a par do que vai acontecer do que minha parte consciente. Ou então apenas perdi o controle sobre minha mente e só consigo pensar no que eu gostaria que acontecesse.

Olho para Victor, curiosa, inclinando um pouco a cabeça para o lado.

— Não sei bem o que é isso entre a gente — diz ele, com cuidado —, mas tenho certeza de que não quero que acabe. Seja o que for.

— Eu também.

Um pouco confusa quanto ao rumo que a conversa está tomando, inclino a cabeça para o outro lado e pergunto:

— Algum problema?

Ele balança a cabeça devagar.

— Não, problema nenhum.

— Bem, se você está preocupado que eu vá me apaixonar e grudar em você feito chiclete, não precisa.

— Você não está apaixonada por mim? — pergunta Victor, e não parece nada além de uma simples questão.

— Não, eu não amo você, Victor.

Ele parece concordar.

— Ótimo. Porque eu também não estou apaixonado por você.

Acho que nem eu nem ele sabemos de fato o que essa palavra significa em uma situação assim. Ambos exibimos a mesma expressão de aceitação, mas também parecemos um pouco confusos.

— Mas... eu, hã... — Entrelaço os dedos atrás das costas e olho para o chão, mexendo o pé como se estivesse tentando afundar os dedos na areia. Paro para encará-lo. — Mas eu, hã, talvez... preferisse que você não dormisse com mais ninguém. Eu... bom, acho que eu não ia gostar muito disso.

— Concordo — diz Victor, assentindo mais uma vez, com firmeza. — Acho que se eu pegar você com outro homem vou ter que matá-lo.

Balanço a cabeça algumas vezes, de maneira tão casual quanto ele.

— Com certeza — concordo eu. — O mesmo vale para você.

— De acordo.

Há um momento de silêncio constrangido entre nós, e corro os olhos pela cama king-size com dossel alto de cerejeira, que está a alguns passos de distância.

Victor se aproxima e eu me viro para observá-lo. Ergo os braços quando ele passa os dedos por baixo da minha camiseta e a tira.

— Também quero dizer que não me incomodo se você grudar em mim feito chiclete. — Ele enfia os dedos no elástico da minha calcinha. — Só para constar.

— Mesmo?

Victor se agacha diante de mim ao descer a calcinha por meus quadris e minhas pernas. Fica ali, me olhando de baixo, com a cabeça na altura do meu umbigo.

— Sim — responde ele. — Mas claro que você não pode me atrapalhar quando eu estiver tentando fazer um serviço.

— Sim, claro — digo, e minha pele reage aos seus lábios, que beijam a área logo acima da minha pélvis. — E-eu nunca atrapalharia o seu trabalho — gaguejo.

Minhas mãos começam a tremer quando ele desce e para entre as minhas pernas, abrindo meus grandes lábios com os polegares.

Afasto os joelhos só um pouco, o bastante para que ele tenha acesso.

— Mas nada de me abandonar em algum lugar distante enquanto você viaja pelo mundo para cumprir os contratos — digo, enfiando os dedos no cabelo dele, com a respiração irregular e acelerada. — Não quero ser dona de casa, entendeu?

Um suspiro agudo corta o ar perto da minha boca quando a ponta de sua língua lambe meu clitóris. Quase derreto ali mesmo, os músculos das coxas perdendo força a cada segundo.

— Sim, entendo o que você quer dizer — diz Victor, e me lambe de novo, explorando entre as minhas pernas. Jogo a cabeça para trás e puxo seu cabelo com mais força, enrolando-o nos dedos. — Você vai aonde eu for. Para eu poder ficar de olho em você.

— De olho em mim. Claro.

Que resposta patética. Só consigo pensar na cabeça de Victor no meio das minhas pernas, e naquela sensação quente e formigante que está amolecendo minhas entranhas.

Victor me ergue segurando minha bunda com firmeza e com minhas coxas em torno da cabeça. Então me lambe furiosamente por um momento antes de me jogar de costas na cama.

Com os joelhos dobrados no peito, vejo sua boca entrar no meio das minhas coxas e reviro os olhos enquanto ele me faz esquecer tudo.


CAPÍTULO DOZE

Sarai

O treinamento começa dois dias depois, mas não da maneira que eu esperava. Não sei o que eu esperava, na verdade, mas com certeza não era isso.

— O que a gente está fazendo aqui? — pergunto quando paramos no estacionamento de uma academia de artes marciais a uma hora de Santa Fé.

— Krav maga — esclarece Victor, e olho como se ele estivesse falando outra língua. Ele fecha a porta do carro e andamos até a fachada do prédio. — Não vou conseguir dedicar cem por cento do meu tempo ao seu treinamento. Por isso, três dias por semana, vou trazer você aqui. Dá para aprender muita coisa com o krav maga em pouco tempo. E o foco é a defesa pessoal...

— O quê? — Paro na calçada antes de passarmos pela porta. — Não sou uma donzela em perigo que acaba de ser assaltada em um estacionamento escuro, Victor. Não preciso de aulas de defesa pessoal. Preciso aprender a matar.

— Matar é a parte fácil — rebate Victor, sem rodeios. Ele abre a porta de vidro e faz um gesto para eu entrar. — Chegar a esse ponto sem morrer tentando é a parte difícil.

— Então você quer que eu aprenda a dar um chute no saco de um cara? — pergunto, bufando de desdém. — Acredite, eu já sou perfeitamente capaz disso.

Um sorriso discreto aparece nos cantos de seus lábios deliciosos.

Nesse momento, um sujeito alto, moreno e com músculos bem-definidos se aproxima de nós no grande salão. As janelas no alto da parede deixam o sol entrar. Dois grupos de pessoas estão treinando em pares, formando um semicírculo em um enorme tatame preto estendido por boa parte do chão.

O homem de braços musculosos e camiseta preta estende a mão para Victor.

— Faz quanto tempo? Três anos? Quatro?

Victor aperta a mão dele com firmeza.

— Uns quatro, acredito.

O homem me olha por um momento, e então Victor nos apresenta.

— Spencer, esta é Izabel. Izabel, Spencer.

— Prazer — diz Spencer, estendendo a mão.

Relutante, aperto a mão dele. Eles se conhecem? Não sei se gosto disso ou não. De repente, sinto que aquilo é alguma armação. Sorrio com desdém para aquele brutamontes alto e simpático.

Victor se vira para mim e diz:

— Não tem ninguém melhor para treinar você em defesa pessoal do que Spencer. Você está em boas mãos.

Spencer abre um sorriso tão largo que, se fosse um pouco maior, acho que daria para engolir minha cabeça. Ele está com os braços musculosos à sua frente, com as mãos cruzadas. As veias, grossas como cordas, que percorrem suas mãos e seus braços bem bronzeados me lembram das de um fisiculturista, mas ele não tem esse tamanho todo. Só é maior do que eu, o que me intimida mais.

Levanto um dedo para Spencer.

— Você nos dá licença um minutinho?

— Claro — responde ele.

Percebo o leve sorriso que ele dá para Victor.

Pego Victor pela mão e o puxo para o lado. Ao fundo, ouço, de maneira constante, corpos sendo jogados naquele tatame preto e a voz de um instrutor entoando comandos repetitivos e mandando os alunos fazerem “de novo”.

— Victor, acho que isto é perda de tempo. Não sei por que você me trouxe aqui. — Cruzo os braços. — Quero aprender essas coisas com você, não com um cara aleatório do tamanho de um ônibus. — Olho por cima do ombro, torcendo para que Spencer não tenha ouvido, embora eu tenha tomado o cuidado de sussurrar.

— Preciso me encontrar com Fredrik daqui a uma hora — explica Victor.

— Ah, então você vai me deixar com uma babá? — Franzo o cenho e balanço a cabeça para ele, totalmente incrédula, para não dizer ofendida.

— Não, não é isso.

— Mas eu quero que você me ensine — repito, forçando as palavras com rispidez entre meus dentes cerrados.

Victor suspira e balança a cabeça, parecendo aborrecido e frustrado comigo.

— Você não tem disciplina. Nenhuma. Igualzinha ao meu irmão. — Isso fere o meu orgulho. — Como vou ensinar alguma coisa para você, se não é capaz nem de fazer as coisas mais simples que eu peço?

Na mesma hora, me arrependo por agir feito uma criança. Solto um suspiro de resignação.

— Desculpe — digo, baixinho. — Pensei que fosse treinar com você, só isso.

— Você vai treinar comigo — garante Victor, pondo as mãos nos meus ombros. — Mas por enquanto precisa aprender o básico. E esta é a melhor maneira.

— Mas por que você não pode me ensinar o básico? — pergunto, com o mesmo tom resignado de antes. — Por que precisa ser ele?

Victor se inclina e beija de leve o canto da minha boca.

— Porque Spencer não tem medo de machucar você — explica ele, e isso me surpreende um pouco. — E não quero fazer isso, se eu puder evitar. Você só vai aprender se for real.

Arregalo os olhos.

— Espere aí... Então você está dizendo que aquele tanque de guerra — digo, apontando por cima do ombro com o polegar — vai me bater de verdade?

— Sim. É para isso que ele está sendo pago.

Parece que meu queixo acaba de bater no chão. De repente, sinto um calafrio percorrer minha espinha.

— Você não é obrigada a fazer isso, Sarai, mas, se realmente é o seu desejo, quero que vá com tudo. Não faça de qualquer jeito. Na vida real, quem atacar você não vai facilitar as coisas — afirma Victor, enquanto me encara com atenção, querendo desesperadamente que eu o entenda e confie nele. — Vou treinar com você no momento certo. Mas, quando eu fizer isso, vai ser brutal, Sarai. Vou atacar com a mesma força que um agressor de verdade usaria. Aprenda o básico primeiro, domine algumas habilidades para conseguir me enfrentar, e vou me sentir melhor para treinar você pessoalmente. Entendeu?

— É, acho que sim — respondo, assentindo. E estou sendo sincera.

Entendo perfeitamente agora. Nem me lembro da última vez que estive tão nervosa para fazer alguma coisa. Mas Spencer, o tanque, não me assusta tanto, na verdade, porque lá no fundo sei que, mesmo que Victor esteja lhe pagando para não facilitar comigo, ele não vai usar toda a sua força em mim. Se usasse, me mataria.

— Você quer ficar? — pergunta Victor.

— Quero.

— Ótimo.

Ele se inclina para meus lábios de novo e me beija com intensidade, tirando meu fôlego. Chocada por essa demonstração pública de afeto tão atípica, fico sem palavras quando ele desgruda os lábios dos meus.

— Volto para buscar você daqui a algumas horas.

— Tudo bem.

Nós voltamos para perto de Spencer, que parece um tanto empolgado para começar a treinar comigo, como se eu fosse um brinquedo novinho em folha com o qual ele não vê a hora de brincar.

— Pronta para começar a aprender krav maga? — pergunta Spencer.

— Estou — respondo, e meu olhar vai até as pessoas lutando no tatame preto atrás dele.

— Tem certeza de que você aguenta?

Quero dizer que sim com confiança, porque, afinal de contas, sempre imaginei que aulas de defesa pessoal consistissem em nada mais do que bloquear golpes, bater e sinalizar aos outros onde estou. Sempre imaginei mulheres comuns, que nunca lutaram na vida, todas de pé em um círculo, esperando a vez para derrubar o instrutor com alguns golpes “úteis”. Contudo, ao observar o grupo que está treinando atrás de Spencer, a intensidade agressiva e a violência de alguns golpes, começo a achar que esse tipo de defesa pessoal é bem diferente.

— Deve ser simples — digo, sem a segurança que queria.

— Se você diz — responde Spencer, com um sorriso conivente que deixa meus nervos ainda mais em frangalhos.

Mas não estou com medo. Nervosa, sim, mas não com medo. Estou pronta para fazer isso. Começo até a ficar ansiosa. Quero provar a Victor que dou conta.

E quero provar a ele que não sou nada parecida com seu irmão.

Victor vai embora. Antes do fim da primeira hora, estou exausta e tão dolorida que mal consigo andar em linha reta sem cambalear.

— Sempre se defenda e ataque ao mesmo tempo — explica Spencer, em pé, enquanto estou deitada no tatame e querendo me encolher em posição fetal. — E nunca vá para o chão. Isto não é luta greco-romana, Izabel. Se você vai para o chão, você morre.

Sem fôlego e tentando controlar a dor intensa que queima minha panturrilha, me levanto.

— Me ataque — ordena ele, elevando a voz acima dos poucos gritos de quem ainda assiste à aula depois da segunda hora. — Se não me atacar, eu ataco você!

Estou exausta demais.

— Não consigo! — Desisto e caio de bunda no tatame. — É demais. Hoje é meu primeiro dia e parece que é minha primeira luta de verdade. Cadê a parte em que você me mostra o que fazer e me ensina a dar os golpes?

— O que você quer mesmo é que eu pegue leve com você, não é?

— Isso! Cadê as instruções? As regras?

Minhas costas estão me matando. Deito no tatame, abrindo os braços acima da cabeça, e olho para o teto iluminado. Não quero mais saber de Spencer e de seu treinamento de imersão total. Só quero descansar.

As lâmpadas fluorescentes do teto começam a se mover depressa quando sinto de repente que estou sendo arrastada pelo tornozelo.

— Não há regras no krav maga — ouço Spencer dizer, mas percebo, meio segundo depois, que não é ele quem está me arrastando.

É uma mulher, com cabelo castanho-claro preso em um rabo de cavalo. Confusa com a mudança, fico distraída demais para notar o pé dela atingindo meu estômago. Berro de dor, me dobrando para a frente ao levantar as pernas e as costas do tatame ao mesmo tempo, com os braços cruzados sobre o abdômen. O golpe expulsa todo o ar dos meus pulmões.

— CHEGA! — grita Spencer, em algum lugar atrás de mim.

Sinto que vou vomitar.

A mulher para no mesmo instante e dá alguns passos para trás.

— Levante — manda Spencer, e decifro, em meio à dor que acaba com meu tórax, que sua voz está muito mais perto do que antes.

Ergo a cabeça e o vejo agachado ao meu lado.

— Vou deixar você recuperar o fôlego — diz ele, baixinho, oferecendo a mão. — Esta é Jacquelyn. Minha mulher.

Pego no antebraço dele, ele me segura e me põe de pé.

— Muito prazer — digo a ela, fazendo uma careta horrorosa de dor. — Ou em conhecer o seu pé, pelo menos.

Ela dá uma risadinha.

— O seu namorado me pagou para encher você de porrada, basicamente — afirma Spencer. — Mas, como não tenho o hábito de bater em mulher, achei melhor deixar minha esposa fazer as honras para que eu pudesse receber o pagamento do mesmo jeito.

— É a melhor maneira de aprender — intervém Jacquelyn. — Esse seu homem sabe o que está fazendo. É brutal? Claro. Necessário para sobreviver a situações de combate corpo a corpo? Com certeza. Indicado para peruazinhas delicadas que ficam pulando e gritando de medo quando veem uma aranha? Nem fodendo.

— Bom, eu não sou uma dessas — digo, com frieza. — Disso você pode ter certeza.

— Então prove — provoca ela, curvando-se para a frente com as mãos semiabertas ao lado do corpo. — Lembre, o krav maga não tem regras. Sempre defenda e ataque ao mesmo tempo. Sempre lute com agressividade. E nunca vá para o chão.

— Ok, essa parte eu entendi. Se eu for para o chão, estou morta.

Jacquelyn praticamente me dá uma surra durante o resto da aula. E, quando Victor finalmente chega para me buscar, meu nariz e meu lábio estão sangrando, meu olho direito está roxo e latejando e acho que quebrei um dente.

Isso continua dia sim, dia não pelas duas semanas seguintes.

Não levei muito tempo para ficar boa no krav maga. Spencer diz que tenho um talento natural e que devo ter “dispensado as Barbies quando era criança”.

Ele não faz nem ideia...

Estou ficando muito mais forte, muito melhor na minha técnica. Em certo momento, até consegui machucar Jacquelyn ao enfiar o cotovelo nas costelas dela. Acho que quebrei algumas, mas ela não admite. Não por orgulho, mas porque não acha certo reclamar nem deixar algo tão insignificante quanto uma costela fraturada impedir que ela lute.

Também não demorou para que eu começasse a simpatizar com ela. Quando Jacquelyn não está me enfiando a porrada, até gosto de sua companhia.

Só duas semanas se passaram. Até agora, não fiz nada além de treinar com Jacquelyn e aprender a usar armas com Victor. Ainda assim, apesar de curtir o treino e esperá-lo ansiosamente todo dia, fico frustrada por estar demorando tanto. Eu esperava que Hamburg e Stephens já estivessem mortos faz tempo, a essa altura.

Estou ficando impaciente.

— Victor, eu não pretendo lutar com Hamburg e Stephens. Só quero matá-los. Mais nada. Não entendo por que você está me fazendo passar por tudo isso.

Victor se descobre e sai da cama, andando nu pelo quarto.

Em silêncio, admiro a visão.

— Tem mais coisas envolvidas nisso do que você imagina — diz ele, desaparecendo ao entrar no banheiro.

Aquilo com certeza desperta meu interesse.

Eu me levanto e grito:

— É mesmo?

Jogo o lençol no chão e ando depressa atrás dele, parando à porta do banheiro e me apoiando no batente. Ele está abrindo a água do chuveiro.

Victor fecha o boxe de vidro, deixando a água correr por um momento, e então se vira para mim.

— Você não está fazendo todo esse treinamento só para matar Hamburg e Stephens. Se vai ficar comigo, independentemente de como vai ocupar o seu tempo, precisa aprender a lutar. Precisa saber identificar, diferenciar, carregar e disparar praticamente qualquer tipo de arma. Há muitas coisas que você precisa saber, e não temos tempo suficiente para aprender metade delas. — Ele abre a porta do boxe e estende o braço, deixando a água correr sobre a mão para sentir a temperatura.

Ele acrescenta:

— Esse treinamento não tem muito a ver com Hamburg e Stephens. Quero que você esteja sempre segura, por isso é vital que aprenda essas coisas agora.

Abro um sorriso leve, saboreando o momento. Quando nos conhecemos, eu não imaginava que Victor tivesse um só traço de preocupação ou emoção no corpo. Mas a cada dia testemunho que ele está se abrindo mais para mim. E vejo que isso está se tornando mais fácil para ele.

Volto ao assunto em questão, mas o que eu gostaria mesmo de fazer, a essa altura, é beijá-lo.

— Mas por que isso está demorando tanto? Quero acabar com essa história de uma vez.

Entro no banheiro e me sento na bancada da pia, apenas de calcinha.

— Porque, enquanto eu elaboro um plano para você chegar perto dos dois e matá-los, você precisa treinar, ocupar seu tempo o máximo possível. — Victor se aproxima de mim e segura meu rosto com as mãos. — Só estar no mesmo quarto comigo, só me conhecer, Sarai, já é uma sentença de morte diária. Cada vez que você sai por aquela porta, corre o risco de levar um tiro. O único motivo pelo qual a Ordem ainda não me encontrou é que Niklas é o único agente atrás de mim. Quer dizer, por enquanto. Ele não quer que ninguém mais me ache. Ele quer levar o crédito. O reconhecimento. Sobretudo porque foi ele o contratado para acabar comigo. — Victor pressiona os lábios na minha testa. Fecho os olhos, levanto os braços e seguro os pulsos dele. — Mas um dia, provavelmente daqui a pouco, vou ter que enfrentar meu irmão, pois a Ordem não vai dar todo o tempo do mundo para ele cumprir a missão. Ou ele me encontra ou eu o encontro. E um de nós vai morrer.

Com os dedos ainda envolvendo os pulsos dele, afasto delicadamente suas mãos do meu rosto. Olho para aqueles lindos olhos verde-azulados, perplexa, inclinando a cabeça para um lado.

— Por que não deixa isso para lá? Victor, entendo você querer matar Niklas antes que ele mate você, mas por que correr o risco de morrer procurando briga?

O vapor começa a encher o banheiro, embaçando o grande espelho acima do balcão, atrás de mim.

— Porque se Niklas não me encontrar, se não conseguir cumprir o primeiro contrato oficial desde que foi promovido a agente sob o comando de Vonnegut, eles vão matá-lo. — Victor apoia as mãos na bancada, à minha direita e à minha esquerda. — Ninguém, a não ser eu, vai matar meu irmão. Não me importa o que ele fez ou as diferenças que temos, ainda é meu irmão.

Faço que sim, compreensiva.

— Tudo bem, então quando tudo isso vai acontecer? Esse... confronto com Niklas? Minha chance de matar Hamburg e Stephens?

Victor abre um sorriso malicioso e eu passo as pontas dos dedos em seus lábios. Ele segura minha mão e beija meus dedos.

— Vamos ter que trabalhar nesse seu problema, Sarai. A sua impaciência e, claro, como já falei, a indisciplina. É o próximo item da nossa agenda.

— Não consigo evitar a impaciência. Aqueles dois babacas horríveis continuam por aí, levando uma vida de luxo, fazendo só Deus sabe o quê com sabe-se lá quantas mulheres. Isso sem falar que estão me procurando. Mataram meus amigos por minha causa. Dina continua escondida longe da casa dela e está com medo. A vida dela foi virada de cabeça para baixo por causa deles. Por minha causa. Quero que eles morram para que pelo menos Dina possa seguir a vida.

— O que você vai dizer para ela? — pergunta Victor. — Quando se encontrar com ela hoje, o que vai dizer?

Desvio o olhar e vejo o vapor revestir as altas paredes de vidro do boxe, ondulando acima do chuveiro em nuvens suaves. Começo a suar um pouco, o rosto, o pescoço e o colo úmidos.

— Vou contar a verdade para ela.

— Você acha uma boa ideia?

Encaro Victor.

— Acho justo. Ela é praticamente minha mãe. Fez muito por mim. Eu devo a verdade a ela. — Sorrio e acrescento: — Além disso, se você não concordasse com minha decisão de contar a verdade, já teria deixado isso bem claro, a essa altura.

Victor retribui meu sorriso e me segura pela cintura, me ajudando a descer da bancada.

— Acho que é melhor a gente se arrumar, se quiser chegar lá a tempo — observa ele, e me leva até o chuveiro. Tiro a calcinha antes de entrar no boxe com ele.

Victor disse a Dina e a mim que me levaria para vê-la alguns dias depois de o contato de Fredrik a tirar de Lake Havasu City. Mas as coisas não saíram conforme planejamos. Victor e Fredrik concordaram que era arriscado e cedo demais. Uma noite, ouvi os dois conversando sobre Dina e sobre como ela poderia estar sendo vigiada no dia em que o contato de Fredrik chegou para buscá-la. Victor queria ter certeza de que isso não havia acontecido, e que, se qualquer um de nós aparecesse por acaso no esconderijo de Dina, não cairia em uma armadilha. Mas, à medida que os dias passaram e Fredrik continuou vigiando a casa onde Dina estava se escondendo, ele e Victor tiveram certeza de que ela era, de fato, segura.

Hoje, enfim, vou vê-la pela primeira vez desde que viajei com Eric e Dahlia para Los Angeles.


CAPÍTULO TREZE

Victor

Sarai precisa estar preparada não só para as ameaças iminentes, mas também para a vida que a espera. Ela escolheu um caminho há muito tempo, no dia em que me conheceu, embora ainda não soubesse. Eu não queria enxergar, por isso lutei comigo mesmo contra a necessidade estranha e antinatural de ficar perto dela, porque queria que ela tivesse uma vida normal.

Não queria que ela terminasse como eu...

Mas eu sabia, oito meses atrás, antes de deixá-la naquele quarto de hospital ao lado da sra. Gregory, que um dia eu voltaria para ela. Nunca foi minha intenção nem meu plano, eu apenas sabia que acabaria acontecendo, de uma maneira ou de outra.

Por 28 dos meus 37 anos de vida, a única coisa que conheci foi a Ordem. Só conheci disciplina e morte. Nunca conheci amizade ou amor sem suspeitas e traições. Fui... programado para desafiar as emoções e ações humanas mais comuns, mas eu... Só quando conheci Sarai me permiti acreditar que Vonnegut e a Ordem não eram minha família, que me usaram como seu soldado perfeito. Eles me negaram a vida toda os elementos que nos tornam humanos. E não posso permitir que isso fique impune.

Um dia, vou matar Vonnegut e acabar com o resto da Ordem pelo que fizeram comigo e com a minha família. Uma família que eles destruíram. Sarai é minha família agora, e espero que Fredrik prove sua lealdade no teste final que farei com ele. Eles são minha família e não vou permitir que a Ordem também os destrua.

Mas, por enquanto, Sarai é o meu foco, e será pelo tempo que for necessário. Ela precisa ser treinada. Precisa absorver o máximo que puder, o mais rápido que conseguir. É impossível que um dia ela chegue ao meu nível. Ela nunca vai conseguir viver a vida de um assassino como eu, porque levaria metade da vida para aprender. É por isso que a Ordem nos recruta tão jovens. É por isso que Niklas e eu fomos levados quando éramos crianças.

Sarai nunca vai ser como eu.

Mas ela tem outros talentos. Tem habilidades que, mesmo depois de tantos anos de treinamento, eu jamais conseguiria superar. A vida de Sarai na fortaleza no México lhe garantiu um conjunto único de habilidades que não se aprendem em uma aula nem se leem em um livro. Ela mente e manipula com maestria. Pode se tornar outra pessoa em dois segundos e enganar uma sala cheia de gente que ninguém mais conseguiria enganar. Consegue fazer um homem acreditar no que ela quiser com muito pouco esforço. E não tem medo da morte. Ela é melhor do que uma simples atriz. Porque ninguém percebe a farsa até que seja tarde demais. Javier Ruiz foi o verdadeiro professor de Sarai. Ele lhe ensinou coisas que eu jamais conseguiria transmitir. Foi seu verdadeiro treinador, ensinando os talentos mortais que agora começam a defini-la como assassina. E, como todos os mestres perversos, Javier Ruiz também foi a primeira vítima de sua aluna favorita.

Assim como foi com as habilidades que Sarai já possui, para aprender a lutar e entender a luta de verdade, ela precisa vivê-la e respirá-la todos os dias. Forçá-la a treinar com Spencer e Jacquelyn é necessário para a sua sobrevivência porque ela precisa aprender o máximo que puder sempre que for possível. Mas são as habilidades que ela já tem que vão transformá-la em um soldado único.

São essas habilidades que nos tornam a dupla perfeita.

Antes disso, contudo, Sarai precisa entender a fundo do que é capaz. E precisa passar pelos testes. Todos eles, até aqueles que podem fazê-la me detestar.

Não tenho dúvidas de que isso vai acontecer. Ela passar nos testes, pelo menos. Se ela vai me detestar, ainda é discutível.

Chegamos a Phoenix logo depois do pôr do sol e somos recebidos à porta da casinha branca por Amelia McKinney, o contato de Fredrik. Ela é uma mulher linda, voluptuosa e com um longo cabelo louro, embora sua característica menos atraente seja seu grande par de peitos de plástico, que com certeza devem lhe dar dor nas costas. E ela usa roupas bem chamativas para uma mulher com doutorado que dá aula no ensino fundamental há cinco anos.

— Olá, Victor Faust — cumprimenta ela, com um tom sedutor, segurando a porta aberta para mim e Sarai. — Ouvi falar muito de você.

— Muito? Interessante.

Com uma das mãos, ela deixa aberta a porta de tela, dá um passo para o lado e acena para entrarmos na casa, sacudindo um monte de pulseiras com pingentes de ouro. Vários anéis enormes enfeitam seus dedos. E ela cheira a sabonete e a pasta de dente.

Coloco minha mão nas costas de Sarai e deixo que ela entre antes de mim.

— Fredrik me falou de você — conta Amelia, fechando a porta. — Mas acho que “muito” é exagero nesse caso, já que ele mesmo não parece saber muita coisa a seu respeito. — Ela gira a mão ao lado do corpo e acrescenta: — Mas imagino que o fato de eu saber tão pouco é o que torna você ainda mais intrigante.

— Nem pense nisso — intervém Sarai, parando nossa pequena fila indiana e se virando para encará-la.

Disciplina, Sarai. Disciplina. Suspiro em silêncio, mas admito que fico de pau duro ao vê-la tão superprotetora com o que lhe pertence.

Amelia levanta as mãos, por sorte em um gesto de resignação e não de desafio.

— Sem problemas, meu anjo. Não tem problema nenhum.

Sarai aceita essa bandeira branca e andamos mais pela casa, onde encontramos Dina Gregory na cozinha, preparando o que parece ser uma ceia de Ação de Graças para umas 15 pessoas.

Sarai corre para os braços abertos de Dina, e começam os sorrisos e as palavras de alívio e empolgação. Ignoro tudo isso por um momento, voltando minha atenção para assuntos mais prementes: o que está ao meu redor e essa mulher que não conheço.

Não confio em ninguém.

Amelia, como muitas mulheres do círculo de Fredrik Gustavsson, não sabe nada sobre a Ordem nem sobre o envolvimento que eu ou Fredrik temos com organizações do tipo. Ela não é o que Samantha, do Abrigo Doze no Texas, era para mim. Não, a relação de Amelia e Fredrik, embora tecnicamente não possa mais ser chamada assim, é muito mais... complicada.

Começo a vasculhar a casa em busca de câmeras e armas, tateando estantes, vasos de plantas, cacarecos e móveis, instalando minha própria parafernália secreta de espionagem no caminho.

— Fredrik disse que você talvez fizesse isso — diz Amelia, atrás de mim, embora eu tenha certeza de que ela não viu o pequeno aparelho que acabo de grudar embaixo da mesinha da TV. Ela ri baixo. — Eu limpei a casa muito bem antes de você chegar. Cadê as suas luvas de borracha? — brinca ela.

Não viro para trás nem paro o que estou fazendo.

— Você recebeu alguma visita desconhecida desde que a sra. Gregory veio para cá? — pergunto, debruçando-me sobre uma mesa ao lado de uma cadeira reclinável e examinando um abajur.

— Uau, você e Fredrik são mesmo os caras mais paranoicos que já conheci. Não. Não que eu lembre. Bom, um vendedor de TV por satélite veio uma vez semana passada, querendo que eu desistisse da TV a cabo. Além dele, ninguém.

Ela se aproxima de mim por trás e abaixa a voz:

— Por quanto tempo essa mulher vai ficar na minha casa? — Noto com a visão periférica que ela olha para a porta da cozinha, para garantir que ninguém consiga ouvi-la além de mim. — Ela é legal e tudo, mas... — Amelia suspira com ar culpado. — Olha, eu tenho 30 anos. Não moro com meus pais desde os 16. Ela está atrapalhando o meu jogo. Eu trouxe um cara aqui semana passada e ele pensou que ela fosse minha mãe. Ficou chato. Não transo desde que ela chegou.

Eu me viro para encará-la.

— E há quanto tempo você conhecia o sujeito que trouxe aqui?

— Hein?

— O homem. Há quanto tempo estava dormindo com ele?

Suas sobrancelhas finas e bem-cuidadas se juntam no meio da testa.

— E isso por acaso é da sua conta? Vai me perguntar em quantas posições a gente trepou também?

— Quanto tempo?

— Conheci o cara em um bar, sábado passado.

— Bem, ele conta como uma visita desconhecida.

Ela quer discutir, mas se contém.

— Ok. Tudo bem. O cara do satélite e o quase peguete do bar. Só eles.

— Antes que eu vá embora, vou precisar do nome desse cara e de qualquer outra informação que você possa me dar sobre ele, incluindo uma descrição detalhada.

Ela balança a cabeça e ri, contrariada.

— Não sei por que aguento essas merdas do Fredrik. — Então Amelia abre uma gavetinha da mesa e tira um bloco de notas e uma caneta.

— Porque você não resiste — observo, mas sem querer ser desagradável. Outra coisa que preciso praticar: ficar de boca fechada quando as mulheres dizem certas coisas que dispensam comentários.

Ofendida, ela arregala os olhos azuis brilhantes. Rabisca alguma coisa na folha, arranca-a do bloco e a enfia na minha mão.

— O que isso significa? — Contudo, antes de me dar a chance de cometer outra gafe, ela muda o tom de voz, chega perto de mim e sussurra de maneira sedutora: — Ei... O que vocês dois têm em comum, afinal?

Sei exatamente sobre o que Amelia está perguntando. Ela especula sobre as minhas preferências sexuais e provavelmente torce para que sejam tão sombrias quanto as de Fredrik. Mas ela está pisando em um território muito perigoso, com Sarai na sala ao lado.

— Não muito — respondo, enfiando no bolso a folha com o nome e a descrição do homem. Então continuo a investigar a casa dela.

— Que pena — comenta Amelia. — Qual é a dele, afinal? Ele fala alguma coisa de mim?

Por favor, pare com isso...

Suspiro e paro na entrada do corredor, olhando-a nos olhos.

— Se você tem perguntas para ou sobre Fredrik, faça o favor de perguntar diretamente a ele.

Amelia joga o cabelo para trás em um gesto orgulhoso e revira os olhos.

— Tudo bem. Só pergunta para o Fredrik quanto tempo mais vou ter que ficar de babá, ok?

Ela passa por mim e se junta a Sarai e à sra. Gregory na cozinha, enquanto aproveito a oportunidade para inspecionar o resto da casa.

Por falar em Fredrik, ele me liga quando estou a caminho do quarto de hóspedes.

— Tenho informações sobre a missão de Nova Orleans — diz ele do outro lado da linha. Ouço trânsito ao fundo. — O contato acha que o alvo voltou para a cidade.

— Por que ela acha isso?

— Ela acha que o viu em frente a um bar perto da Bourbon Street. Claro que ela pode ter imaginado isso, mas acho que a gente deveria investigar. Só por segurança. Se a gente esperar e ele voltar para o Brasil, ou onde quer que ele esteja se escondendo, pode levar mais um ou dois meses antes de termos outra chance.

— Concordo. — Eu me fecho no quarto de hóspedes. — Estou com Sarai na casa da Amelia agora, mas vou terminar as coisas por aqui mais cedo. Vá para Nova Orleans na minha frente e eu encontro você lá amanhã no início da noite. Mas não faça nada.

— Não fazer nada? — pergunta Fredrik, desconfiado. — Se eu encontrar o cara, posso prendê-lo e começar o interrogatório, pelo menos.

— Não, espere a gente. Quero que Sarai faça isso.

Fredrik fica em silêncio por um instante.

— Você não pode estar falando sério, Victor. Ela não está pronta. Pode estragar a missão toda. Ou morrer.

— Não vai acontecer nada disso — rebato com calma e confiança. — E não se preocupe, é você quem vai fazer o interrogatório. Só quero que ela prenda o sujeito.

Sei que há um sorriso macabro no rosto de Fredrik sem precisar vê-lo ou ouvir sua voz. Deixar que ele faça o interrogatório é praticamente o mesmo que dar uma seringa para um viciado em heroína.

— Vejo você em Nova Orleans, então — diz ele.

Desligo, enfio o celular no bolso de trás da calça preta e termino a inspeção da casa antes de ir para a sala e me juntar às mulheres, todas já com pratos de comida no colo.


CAPÍTULO CATORZE

Sarai

— Você deveria fazer um prato — digo para Victor quando ele surge no corredor. — Dina cozinha muito bem. Até melhor do que Marta. Mas não diga a Marta que eu falei isso. — Enfio uma enorme colherada da caçarola de feijão na boca.

Dina, sentada ao meu lado no sofá, aponta para Victor.

— Ela é suspeita. Mas, se você está com fome, é melhor comer antes que acabe.

— Precisamos conversar — anuncia Victor, de pé no meio da sala e bem na frente da TV.

Não gosto do tom dele.

— Tudo bem — digo, desencostando do sofá e deixando o prato na mesinha de centro. — Sobre o quê?

Victor olha de relance para Amelia. Ela está sentada na poltrona à minha frente, pegando um pedaço de pão de milho. Tenho a sensação de que Victor não quer que ela ouça a conversa.

— Amelia — diz Victor, enfiando a mão no bolso de trás da calça e pegando a carteira de couro —, preciso que você saia um pouco de casa. — Ele mexe na carteira, tira um pequeno maço de notas de 100 dólares e o deixa na mesa diante dela. — Se você não se importar.

Amelia olha para o dinheiro, apoia o garfo no prato e conta as cédulas.

— Sem problemas — concorda ela, com um sorriso satisfeito. Então se levanta, pega o prato e a lata de refrigerante e desaparece na cozinha.

Ouço o garfo raspando os restos de comida do prato para o lixo e a cerâmica tilintando no fundo da pia. Amelia passa por nós e segue até o corredor.

— Mas preciso que você saia agora mesmo — reitera Victor. — Não precisa trocar de roupa nem se arrumar.

— Posso pelo menos calçar a droga de um sapato? — pergunta ela, ríspida.

— Claro — responde Victor, assentindo. — Mas, por favor, não demore.

Amelia vai até o fim do corredor, resmungando irritada. Minutos depois, ela liga o carro e vai embora.

Victor olha para mim e para Dina.

— Não podemos ficar tanto tempo quanto o planejado — informa ele.

Dina também larga o prato e suspira com tristeza.

— Por que não? — pergunto.

— Surgiu um problema.

Olho para o meu prato, e o brilho metálico do garfo perde foco à medida que mergulho em pensamentos. Achei que teria tempo para encontrar a forma certa de contar para Dina tudo o que eu planejava contar. Agora estou desesperada tentando imaginar como começar a primeira frase.

— Dina — digo, respirando fundo. Eu me viro de lado para encará-la. — Eu matei um cara, meses atrás. — O rosto de Dina parece ficar rígido. — Foi em legítima defesa. Eu, hum... — Olho para Victor. Ele assente de leve, me motivando a continuar e garantindo que está tudo bem, embora eu saiba que ele não concorda cem por cento com o que estou fazendo. — Aliás, também matei um cara em Los Angeles na noite em que Dahlia e Eric foram encontrados mortos.

Dina ergue a mão enrugada e cobre a boca.

— Ah, Sarai... Você... o que você está...

— Dahlia e Eric foram assassinados por minha causa — interrompo, porque é evidente que ela não sabe o que dizer. — Não só a polícia de Los Angeles está atrás de mim para me interrogar, já que eu estava com eles, mas também os homens que mataram os dois estão na minha cola. É por isso que você está aqui.

— Meu Deus do céu. — Dina balança a cabeça sem parar, tira os dedos da boca e aperta os olhos cheios de pés de galinha em uma expressão preocupada.

Seguro a mão dela, que é fria e macia.

— Tem muita coisa que você não sabe. Onde eu estava de fato durante os nove anos em que minha mãe e eu ficamos desaparecidas. O que realmente aconteceu comigo. E com minha mãe. E eu não levei um tiro de um ex-namorado daquela vez em que Victor levou você para o hospital em Los Angeles. Eu levei um tiro de... — Olho para Victor de novo, mas decido por mim mesma não revelar essa informação. Ela não precisa saber de Niklas nem no que Victor e ele estão envolvidos. — Foi outra pessoa que atirou em mim. É uma história muito longa que você vai saber um dia, mas por enquanto só quero que você saiba a verdade sobre mim. — Passo os dedos com carinho nas costas da mão dela. — Você é a única mãe de verdade que eu tive. Fez tanta coisa por mim, sempre me apoiou, e eu devo essa honestidade a você.

Dina segura minha mão entre as dela.

— O que aconteceu com você, menina? — pergunta, com tanta dor e preocupação na voz que sinto um nó na garganta.

Começo a contar tudo, tanto quanto posso sem revelar qualquer informação sobre Victor e Niklas. Conto sobre o México e sobre as coisas que vi e vivi por lá. Conto sobre Lydia e sobre não conseguir salvá-la, apesar de ter lutado tanto. Omito sobretudo as relações sexuais que eu tinha com o cara que me mantinha presa, Javier Ruiz, um chefão mexicano do tráfico de drogas, armas e escravas, e só digo que eu estava lá contra a minha vontade e fui obrigada a fazer coisas que não queria. Dina cai no choro e me abraça forte, me balançando apertada contra o peito, como se eu é que estivesse chorando e precisasse de um ombro amigo. Ao menos dessa vez, contudo, não estou chorando. Só me sinto péssima por ter que contar tudo isso a ela, pois sei que isso a magoa muito.

Minutos depois, quando termino de contar tudo o que posso, Dina está sentada na beira do sofá, parecendo ligeiramente em choque. Mas ela está mais preocupada do que qualquer outra coisa.

Ela olha para Victor.

— Quanto tempo vou precisar ficar aqui? Gostaria muito de ir para casa. E quero levar Sarai.

— Isso não é uma boa ideia — argumenta Victor. — E quanto a Sarai, ela vai ter que ficar comigo. Por tempo indeterminado.

Engulo em seco ao ouvir as palavras dele, sabendo que Dina não vai aceitar isso.

— Então... Mas então o que isso significa? — pergunta ela, nervosa, voltando sua atenção somente para mim. — Sarai, você nunca mais vai voltar para casa?

Balanço a cabeça, cheia de culpa.

— Não, Dina, eu não posso. Preciso ficar com Victor. Estou mais segura com ele. E você está mais segura sem mim.

Dina balança a cabeça com ar solene.

— Você vai me visitar?

— Claro que vou. — Aperto a mão dela com delicadeza. — Eu nunca abandonaria você para sempre.

— Entendo — afirma ela, esforçando-se para aceitar.

Dina se volta para Victor.

— Mas eu não posso ficar na casa dessa mulher. Se você só me trouxe para cá para me proteger, prefiro voltar para casa. Não tenho medo desses homens. — Ela fica de pé e olha para mim. — Sarai, querida, eu nunca contaria nada para a polícia. Espero que acredite nisso.

Também me levanto.

— Sim, Dina, eu sei que você não contaria. O motivo para você estar aqui não tem nada a ver com a minha confiança em você. Trouxemos você para cá porque queremos que fique segura. Se alguma coisa acontecesse com você, principalmente por minha causa, eu jamais me perdoaria. Você é tudo o que me resta. Você e Victor. Você é minha família e eu não posso perdê-la.

— Mas eu não posso ficar aqui, querida. Já fiquei tempo demais. Amelia é gentil comigo, mas aqui não é a minha casa, e não quero ficar mais tempo do que ela quer que eu fique. Sinto como se minha presença fosse um fardo. Sinto falta das minhas plantas e da minha caneca de café favorita.

— Sra. Gregory — intervém Victor, impaciente, mas ainda respeitando os sentimentos dela. Ela se vira, mas ele faz uma pausa como se refletisse sobre algo. — Sarai não vai ficar segura se tiver que se preocupar com a sua segurança. Estou dizendo desde já: se a senhora voltar para casa, eles vão encontrar e matar a senhora assim que a virem, ou pior, vão sequestrá-la, torturá-la, gravar tudo em vídeo e usar as imagens para atingir Sarai. Entende o que estou dizendo?

A expressão grave e determinada de Dina desmorona sob um véu de sofrimento e resignação. Ela se vira para mim, com o semblante distorcido pela dor. Talvez esteja me pedindo uma confirmação das palavras de Victor, esperando que eu suavize a situação, que eu diga que ele só está sendo dramático. Mas não posso fazer isso. O que ele disse, embora brutal e sem rodeios, é exatamente o que ela precisa ouvir.

— Ele tem razão. Olhe, a gente vai dar um jeito nesses caras logo, tudo bem? Só preciso que você fique quietinha por mais um tempo, até a gente conseguir fazer isso.

— Mas concordo com a senhora — pondera Victor —, acho que não deve mais ficar aqui.

Dina e eu olhamos para ele ao mesmo tempo.

Victor continua:

— Quando estamos nos escondendo e ficamos tempo demais no mesmo lugar, com certeza somos encontrados.

— Então aonde ela deve ir? — pergunto, com várias possibilidades girando na cabeça, nenhuma das quais parece plausível. — Não me diga que quer levar Dina com a gente. Por mais que eu fosse adorar...

— Não, ela não pode ir com a gente — concorda Victor —, mas posso arranjar uma casa só para ela. Já fiz isso antes.

Afinal, Victor providenciou a casa em Lake Havasu City para mim e Dina.

— Mas você não disse que surgiu um problema e que a gente precisa ir embora antes do planejado? Não dá tempo de encontrar outra casa para ela. Isso levaria dias.

— Eu tenho uma casa — afirma Victor. — Fica longe do Arizona, mas acho que seria melhor para a senhora não ficar aqui por enquanto. O contato de Fredrik, o mesmo sujeito que trouxe a senhora para cá, pode levá-la a esse lugar. Está disposta a se mudar?

Dina se reclina no sofá, apertando as mãos uma na outra e as enfiando entre as pernas, vestidas em uma calça bege.

Eu me sento ao lado dela.

— Por favor, faça isso — peço a ela. — Vou me sentir muito melhor sabendo que você está segura.

Dina fica em silêncio por um longo momento, mas finalmente aceita.

— Estou velha demais para tanta emoção, mas tudo bem, eu vou. Só faço isso por você, Sarai.

Eu me inclino e a abraço.

— Eu sei, e é por isso que eu amo você.

— Onde fica a casa? — pergunto depois que deixamos Dina na casa de Amelia e pegamos a estrada. Ele não quis dizer antes a localização em voz alta, provavelmente porque não confiava no ambiente.

— Em Tulsa — responde Victor. — Tenho algumas casas espalhadas por aí, essa é uma delas. Nada luxuoso como a casa de Santa Fé, mas dá para morar nela, é aconchegante, e só a gente sabe que ela existe.

— Quem é esse contato de Fredrik, afinal?

— Ele não faz parte da Ordem, se é o que você quer saber. É só alguém que Fredrik conhece, um pouco como Amelia.

— Se não fazem parte da Ordem, quem eles são?

Victor me lança um olhar do banco do motorista.

— Amelia é só uma espécie de ex-namorada de Fredrik. Como os abrigos administrados pela Ordem, a casa de Amelia tem a mesma função. Mas temos muito menos preocupações em relação a ela, que nem sabe o que é a Ordem. Só o que ela tem é uma obsessão doentia por Fredrik e faz qualquer coisa que ele pedir.

— Ah, entendo — digo, embora não saiba direito se entendi. — Ela parece pegajosa.

— Pode-se dizer que sim.

— E o cara? Aquele que vai levar Dina até Tulsa?

Victor olha para a estrada, com uma das mãos relaxada na parte de baixo do volante.

— Ele é um dos nossos funcionários, na verdade. Um dentre uns vinte contatos que recrutamos desde que eu saí da Ordem. Nenhum deles sabe mais do que o necessário. Fredrik ou eu damos uma ordem, e, como em um emprego qualquer, eles obedecem. Claro que trabalhar com a gente é bem diferente de qualquer outro emprego, mas você entendeu.

— Eles não sabem o risco que correm por se envolver com você e Fredrik? E como vocês fazem para eles seguirem as ordens de vocês? O que eles fazem exatamente, além de levar Dina para um lugar qualquer, assim, do nada?

— Você está cheia de perguntas. — Victor sorri para mim. Uma carreta passa em disparada no sentido oposto, cegando-nos com os faróis altos. — Eles sabem do perigo, até certo ponto. Sabem que estão trabalhando para uma organização particular e são proibidos de falar sobre ela, mas nenhum dos nossos recrutas desconhece a discrição e a disciplina. Alguns são ex-militares, e todos foram escolhidos a dedo por mim. Depois de uma verificação completa do passado deles, é claro. — Victor faz uma pausa e acrescenta: — E eles fazem tudo o que pedimos, mas, para não metê-los em encrenca e proteger nossa operação, costumamos só pagar por tarefas simples. Vigilância. Compra de imóveis, veículos. E levar a sra. Gregory para um lugar qualquer, assim, do nada. — Victor sorri para mim de novo. — Como garantimos que eles sigam nossas ordens? O dinheiro é uma maneira formidável de influenciar pessoas. Eles são bem remunerados.

Apoio a cabeça no banco e tento esticar as pernas no chão do carro, já temendo a viagem longa.

— Um dos nossos homens estava no restaurante de Hamburg na noite em que eu encontrei você.

Tão depressa quanto apoiei a cabeça, levanto-a de novo e olho para Victor, em busca de mais explicações.

— A sra. Gregory só me ligou depois que você foi para Los Angeles — esclarece ele. — Eu estava no Brasil em uma missão, ainda procurando meu alvo depois de duas semanas. Fui embora assim que recebi a ligação da sra. Gregory, mas sabia que provavelmente não encontraria você a tempo, então entrei em contato com dois dos nossos homens que estavam em Los Angeles, dei a eles a sua descrição e alertei para que vigiassem o restaurante e a mansão de Hamburg. Eu sabia que você iria para um dos dois lugares.

Eu me lembro do homem atrás do restaurante depois que matei o segurança. O homem que misteriosamente me deixou fugir.

— Eu vi o cara. Fugi pela saída dos fundos e ele estava lá. Pensei que ele fosse um dos homens de Hamburg.

— Ele é — rebate Victor.

Pisco, atordoada.

— Ele e o outro homem foram dois dos meus primeiros recrutas. Los Angeles era a minha prioridade quando tudo isso começou.

— Você sabia que eu iria para lá.

Embora eu não queira tirar conclusões precipitadas e parecer iludida, sei que é verdade. Meu coração começa a bater como um punho quente. Saber a verdade, saber que Victor estava, durante todo aquele tempo, pensando em mim mais do que eu jamais poderia imaginar me deixa feliz e culpada. Culpada porque o acusei de me abandonar.

— Eu esperava que você esquecesse essa história. Mas, no fundo, sabia que você voltaria lá.

Ficamos em silêncio por um instante.

— Ele está bem? — pergunto, sobre o homem nos fundos do restaurante.

Victor assente.

— Está ótimo. Ele tinha sido contratado por Hamburg meses antes. Conhecia a planta do restaurante e sabia que a única saída alternativa da sala de Hamburg no andar de cima era a dos fundos. A propósito, ele quer pedir desculpa.

— Como assim? Ele me ajudou a fugir.

— A ordem que eu dei a ele foi para não deixar de jeito nenhum que você entrasse naquela sala. Foi a peruca platinada. Ele sabia que você tem cabelo castanho-avermelhado e comprido, não curto e louro. Quando ele se deu conta de quem era, Stephens já estava levando você. Ele não podia entrar porque a sala estava sendo vigiada, por isso foi até os fundos do restaurante, torcendo para conseguir entrar por ali de alguma forma, mas havia outros dois homens de guarda. Eles puxaram conversa e o seguraram ali, até que por fim ele os convenceu a deixá-lo vigiar o lugar sozinho. Logo depois, você saiu pela porta dos fundos.

Respiro fundo e apoio a cabeça no banco de novo.

— Bom, diga a ele que não precisa pedir desculpa. Mas por que ele não me disse logo quem era? Ou não me levou até você?

— Ele precisava segurar o Stephens tempo suficiente para você conseguir fugir, e o fato de ele continuar trabalhando para Hamburg ajuda. Ele não sabe o que os dois planejam nem coisa alguma sobre as operações. É só um segurança, nada além disso. Mas está lá dentro, e isso já é valioso para a gente.

Desafivelo meu cinto de segurança e me esgueiro entre os bancos da frente com a bunda empinada (de um jeito bem deselegante para uma dama, admito) para alcançar o banco de trás. Flagro Victor admirando a cena enquanto me espremo para passar, e isso me faz corar.

— Só tenho mais uma pergunta a acrescentar à lista.

— O que seria? — pergunta ele, zombando de mim.

— Por quanto tempo a gente vai ter que viajar assim? — Estico as pernas no banco de trás e me deito. — Sinto muita falta dos jatinhos particulares. Essas viagens longas de carro vão acabar me matando.

Victor ri. Acho isso incrivelmente sexy.

— Você está dormindo com um assassino, fugindo todo dia de homens que querem matar você e acha que vai morrer por falta de conforto. — Ele ri de novo, e isso me faz sorrir.

— É, acho — digo, me sentindo só um pouco ridícula. Não posso negar a realidade, afinal, por mais sem sentido que ela seja.

— Não vai ser por muito mais tempo — responde Victor. — Não podemos chamar atenção até que eu consiga me livrar completamente de Vonnegut. Ele tem contatos em muitas áreas, e transportes luxuosos, confortáveis e secretos estão no topo de sua lista de prioridades, por motivos óbvios. Dou menos na vista viajando de trem do que de jatinho particular.

Satisfeita com a resposta, não digo mais nada sobre o assunto e olho para cima, para o teto escuro do carro.

— Só para constar — digo, mudando de assunto —, eu não estou só dormindo com um assassino. Estou muito envolvida com ele.

— É mesmo? — pergunta Victor, e sei que ele está sorrindo.

— Sim, temo que seja verdade — digo, em tom de brincadeira, como se fosse algo ruim. — E é um envolvimento bem pouco saudável.

— É mesmo? Por que você acha isso?

Suspiro, dramática.

— Ah, sei lá. Talvez porque ele nunca vai conseguir se livrar de mim.

— Pegajosa. Como Amelia — provoca Victor, tentando me irritar.

E ele consegue. Eu me levanto um pouco e dou um soco de leve em seu ombro. Ele se encolhe, fingindo dor, mesmo com um sorriso largo no rosto.

— Longe disso — digo, e volto a me deitar. — Nem ferrando que eu vou fazer tudo o que ele quer, como a Amelia.

Victor ri baixinho.

— Bem, pelo jeito ele vai ter que aguentar você para sempre, então.

— Vai, e para sempre é muito tempo.

Ele faz uma pausa e então diz:

— Bom, só para constar, algo me diz que ele não gostaria que fosse diferente.

Adormeço no banco de trás muito tempo depois, com um sorriso no rosto que pareceu continuar ali pelo resto da noite.


CONTINUA

CAPÍTULO NOVE

Sarai

Estou mordendo o lábio por dois motivos: porque estou torcendo para que seja uma boa notícia e porque estou sexualmente frustrada. Victor fala com Fredrik por menos de dois minutos, desliga e digita outro número. Quando consegue falar com Dina, ele me passa o celular.

Pego o aparelho e o encosto no ouvido.

— Dina?

— Sarai, meu Deus, onde você está? O que está acontecendo? Eu estava sentada na sala vendo TV e um homem bateu na porta. Eu não ia deixar ele entrar, fiquei desconfiada na hora; estava quase pegando minha espingarda. Mas ele disse que queria falar de você. Ah, Sarai, fiquei com tanto medo de que tivesse acontecido alguma coisa! — Ela finalmente respira.

— Você está bem? — pergunto, baixinho.

— Sim, sim, estou ótima. O melhor que eu poderia estar. Mas ele me falou que iríamos para a delegacia encontrar você. Até me mostrou um distintivo. Não acredito que caí nessa. O cavalheiro mentiu para mim. — Dina para de falar e abaixa a voz, como se estivesse sussurrando para ninguém ouvir. — Ele me levou para a casa de uma prostituta. O que está acontecendo? Sarai...

— Vai ficar tudo bem, Dina, prometo. E não se preocupe. Seja lá quem more nessa casa, duvido que seja uma prostituta.

Os olhos de Victor cruzam com os meus. Desvio o olhar.

— Onde você está? Quando vai voltar? Sei que você está metida em alguma encrenca, mas sempre pode me contar tudo.

Gostaria que isso fosse verdade. Mais do que tudo, neste momento. Mas a verdade maior é que não sei como responder às perguntas de Dina. Victor deve ter percebido a fisionomia confusa no meu rosto, porque tirou o telefone da minha mão.

— Sra. Gregory — diz ele ao telefone. — Aqui é Victor Faust. Preciso que a senhora me ouça com bastante atenção. — Ele espera alguns segundos e continua. — A senhora vai precisar ficar onde está pelos próximos dias. Vou levar Sarai para vê-la em breve, e vamos explicar tudo, mas, até lá, precisa ficar escondida. Não, sinto muito, mas a senhora não pode voltar... Não, não é seguro lá. — Ele assente algumas vezes, e percebo, pelas leves rugas que se formam entre seus olhos, que ele não se sente à vontade falando com ela, como se alguém colocasse de repente um bebê no colo dele. — Sim... Não, me escute. — Ele perde a paciência, então vai direto ao assunto. — É uma questão de vida ou morte. Se a senhora sair ou ligar para qualquer conhecido, vai acabar morrendo.

Tenho um sobressalto e me encolho com essas palavras, não por serem verdade (isso eu já sabia), mas porque fico imaginando a reação de Dina a elas. Só posso imaginar o que ela deve estar pensando nesse momento, como deve estar apavorada. Apavorada por mim, não por si mesma, e isso faz doer ainda mais.

— Sim, ela está bem — afirma Victor mais uma vez para tranquilizá-la. — Só mais alguns dias. Eu vou levar Sarai aí.

Falo com Dina por mais alguns minutos, contando o que posso, mas sem revelar demais, para acalmá-la. Claro que isso não está ajudando muito, considerando as circunstâncias. Nós desligamos e eu fico ali na sala, me sentindo muito diferente de como me sentia antes da ligação.

Acho que enfim caiu a ficha do tamanho da merda que fiz.

Antes, quando achava que era eu quem corria o maior perigo, e depois que disse para Eric e Dahlia saírem de Los Angeles, eu estava preocupada, mas não tanto assim. Os danos que causei afetam mais do que minha própria segurança. Sem querer, pus todas as pessoas que conheço e amo em perigo.

A realidade de tudo isso, dos meus atos e das consequências em efeito dominó, o fato de Victor ter me deixado, de eu ter tentado levar uma vida normal e fracassado; não consigo mais. Não suporto mais nada disso. Cacete, até a dorzinha por ter encontrado Dahlia com Eric está começando a me incomodar. Não por causa de Eric, ou porque ele era meu “namorado”, mas porque o que eles fizeram não me afetou como deveria ter afetado.

Sou uma aberração. E, no momento, não consigo perdoar Victor por me fazer passar por essa situação, por me jogar em uma vida que nós dois sabíamos que não serviria para mim e por esperar que eu me adaptasse. Eu não queria desde o começo. E foi exatamente por isso que não deu certo.

As lágrimas começam a inundar meus olhos. Deixo que caiam. Não me importa.

Sinto a presença de Victor atrás de mim, mas antes que ele me toque me viro para encará-lo com a raiva distorcendo meu rosto. E enfim certas coisas que eu queria dizer a ele depois de todo esse tempo saem, em uma tempestade de palavras furiosas.

— Você me abandonou, porra! — Bato com as palmas das mãos em sua camisa social justa. — Você deveria ter me matado e pronto! Você consegue imaginar o que me fez passar?! — Lágrimas cheias de raiva escorrem dos cantos dos meus olhos.

— Me desculpe...

Franzo a testa na mesma hora.

— Você quer se desculpar? — Solto o ar ruidosamente. — É só isso que você consegue dizer? Me desculpe?

No fundo, sei que nada disso é culpa de Victor, sei que ele só fez o que fez para me proteger. Mas a maior parte de mim, a parte que não quer acreditar que eu não tenho mais salvação, quer pôr a culpa em qualquer um, menos em mim mesma.

As lágrimas começam a me fazer engasgar.

— Toda santa noite — disparo, apontando com raiva para o chão, meu rosto retorcido de raiva e rancor —, todas as horas de todos os dias, eu pensava em você. Só em você, Victor. Eu vivia cada dia com esperança, acreditando de coração que você ia voltar para mim. Os dias passavam e você não aparecia, mas nunca perdi a esperança. Eu pensava comigo mesma: Sarai, ele está vigiando você. Ele está testando você. Ele quer que você faça o que ele disse, que tente ser como todo mundo, que tente se misturar. Quer que você prove para ele que é forte o suficiente para enfrentar qualquer situação, se adaptar a qualquer estilo de vida. Porque, se você não consegue fazer algo tão simples quanto levar uma vida normal, nunca vai conseguir viver com ele. — Mordo o lábio inferior e tento sufocar as lágrimas. Balanço a cabeça devagar. — Isso era o que eu pensava. Mas fui idiota por achar que você tinha alguma intenção de voltar para mim. — Um tremor induzido pelo choro percorre meu peito.

Victor, com o semblante angustiado que nunca imaginei ver nele, se aproxima. Recuo, balançando a cabeça sem parar, esperando que ele entenda que não estou pronta para ficar muito perto. Quero ficar sozinha com a minha dor.

— Sarai? — diz ele, baixinho.

— Não — digo, recusando-o com um gesto. — P-por favor, me poupe das desculpas e dos motivos pelos quais sei que não posso culpar você. Eu sou egoísta, ok? Eu sei! Já sei que você fez o que precisava fazer. Já sei...

— Não, não sabe.

Levanto os olhos para encontrar os dele.

Victor se aproxima. Desta vez não me afasto, minha mente está paralisada por suas palavras, por mais escassas ou vagas que elas sejam. Ele segura meus cotovelos e descruza minhas mãos. Seus dedos roçam de leve a pele sensível da parte interior dos meus braços, descem até encontrarem minhas mãos e as seguram.

— Eu saí da Ordem principalmente por causa de você, Sarai — explica Victor, e o resto do meu corpo fica paralisado. — Quando Vonnegut descobriu que eu estava ajudando você, ele soube... — Ele faz uma pausa, parecendo estar vasculhando sua mente à procura das palavras menos perigosas. — Ele soube que eu me comprometi...

Jogo as mãos para cima.

— Fale inglês! Por favor, diga de uma vez sem se esforçar tanto para fazer rodeios! Por favor!

— Vonnegut soube que eu tinha... começado a gostar de você.

Fico paralisada e meus lábios se fecham. Meu coração bate descompassado. Minhas lágrimas parecem secar em um instante, só as que molham minhas bochechas continuam escorrendo.

— Como eu era o Número Um de Vonnegut, seu “favorito”, a última coisa que ele queria era mandar me matar. Ele me afastou do serviço, me desligou por um tempo, até... que eu criasse juízo.

Faço uma cara de “que-droga-isso-significa”.

— Pode chamar de lavagem cerebral — acrescenta Victor.

Ele afasta a ideia com um gesto.

— Não importa. O que importa é que ele ia me dar uma única chance de provar que o meu sentimento por você era só um lapso, e que nunca mais iria acontecer. Pouquíssimos agentes têm uma segunda chance na Ordem.

— Um lapso? — Eu me sento na mesinha de centro. Olho para Victor e digo: — Para mim, parece que Vonnegut queria que você provasse que não é humano, mas sim o soldado obediente a ele, incapaz de ter emoções. Que babaca desequilibrado.

Victor assente e se agacha diante de mim, entrelaçando os dedos, com os cotovelos apoiados nas coxas.

— Vonnegut mandou que eu matasse você — conta ele em voz baixa, sustentando o meu olhar. — Para provar a mim mesmo. Eu disse que ia fazer isso, que queria fazer, provar que eu era digno de confiança, e ele me soltou. Claro que eu não tinha nenhuma intenção de matar você. Parti naquele dia e procurei um esconderijo. Niklas, que só conheceu a Ordem a vida inteira, decidiu ficar. Pensei que talvez ele só precisasse de um tempo para entender o que estava acontecendo e decidir o que era melhor para ele. Eu também estava me escondendo de Niklas. Sem saber onde eu estava, ele não precisaria enganar Vonnegut nem achar que precisava escolher entre mim e ele. Mas aí Fredrik me contou que Niklas foi contratado para me matar e está me procurando desde então.

— Que desgraçado — comento, balançando a cabeça sem acreditar, mas depois penso de novo. — Você disse que saiu da Ordem principalmente por minha causa. Além de mim, qual foi o outro motivo?

— Isso já estava para acontecer havia muito tempo — conta Victor. — Quando precisei matar meu pai para salvar meu irmão, entendi que era hora de sair. — Seus dedos fortes acariciam os meus, mais delicados. — Você me deu a motivação final de que eu precisava para fazer isso de uma vez.

Com a ponta dos dedos, acaricio seu rosto com a barba um pouco por fazer. Victor continua a me encarar, seus olhos sondando os meus através do pequeno espaço entre nós, cheios de paixão e compreensão. Eu me curvo e beijo seus lábios.

— Eu sinto muito pelo seu irmão — digo, baixinho.

Ele roça os lábios nos meus, e a sensação se espalha pelo meu corpo até os dedos dos pés, como uma dose de uísque.

— Eu não estava testando você, Sarai. — Ele me beija de novo.

— Então o que você estava fazendo? — Eu o beijo também e derreto ao sentir suas mãos se movendo por minhas coxas.

Victor me ergue nos braços, envolvendo minhas pernas em sua cintura, minha bunda acomodada nas palmas de suas mãos enormes. Meus dedos sobem pelos lados de seu rosto e tocam sua boca antes que meus lábios toquem também.

— Eu estava esperando o momento certo — diz ele enquanto sua boca encontra meu pescoço.

Enfio os dedos em seu cabelo castanho curto, erguendo o queixo ao sentir sua boca explorando meu pescoço e meu maxilar. Meus olhos estão fechados, as pálpebras pesadas, e sinto um formigamento quente ao qual sei que não dá para resistir. Victor me carrega pela sala, embora eu não saiba para onde nem me importe com isso. Aperto mais as pernas nuas ao redor de sua cintura, sentindo a superfície fria e lisa de seu cinto de couro pressionando o interior das minhas coxas. Meus dedos estão trabalhando nos botões de sua camisa, abrindo-os com facilidade.

Victor não responde às minhas perguntas, mas isso também não me importa.

Os lábios dele cobrem os meus, a umidade quente de sua língua se entrelaçando avidamente com a minha. Sem parar de me beijar, Victor me faz apoiar os pés no chão para tirar minha calcinha, uma perna de cada vez. Ele ergue meus braços e tira minha camiseta, jogando-a no chão. Minhas mãos mexem no cinto dele, movendo a lingueta do buraco e puxando a tira de couro de uma só vez em um movimento rápido. Ele tira a calça e a cueca boxer preta. Minha boca recebe seu hálito quente e ofegante enquanto ele me carrega mais uma vez e pressiona minhas costas na parede, como se não quisesse esperar para chegarmos ao quarto de hóspedes. Também não quero esperar. Já esperamos demais.

Sinto seu pau entrando em mim, e, antes que ele deslize até o fundo, uma descarga de prazer corre pelas minhas coxas e sobe pela coluna, relaxando meu pescoço e fazendo minha cabeça se apoiar na parede. Sinto meus olhos formigando e ardendo. A umidade morna entre minhas pernas é inundada por um êxtase quente e trêmulo.

Ele mete uma vez bem fundo e se mantém ali, segurando meus quadris, com minhas costas pressionadas contra a parede fria. Abro os olhos devagar, ainda sem controlar direito as pálpebras, e o encaro. Ele me fita com a mesma intensidade voraz. Minha respiração é curta e irregular quando escapa dos meus lábios entreabertos. Meus braços estão ao redor dele, em um abraço apertado, meus dedos cravados nos músculos rijos de suas costas.

— Eu queria isso há tanto tempo — digo, ofegante.

— Você não faz ideia... — rebate Victor, para então me devorar com um beijo, tão violento que quase perco o controle dos meus músculos.

Minhas coxas se contraem em sua cintura quando ele mete seu pau em mim de novo. Estremeço e gemo, minha cabeça bate com força na parede. Ele segura meu corpo no lugar com os braços encaixados nas minhas coxas, forçando seu quadril contra o meu, e eu sinto pequenas explosões no estômago a cada investida.

Minhas costas se arqueiam, meus seios ficam expostos a ele, que cobre um mamilo com a boca. Ergo os braços acima da cabeça, procurando alguma coisa onde eu possa me segurar para cavalgá-lo, mas não encontro nada. Envolvo seu pescoço com os braços para sustentar meu peso e rebolo em sua virilha, gritando e gemendo, desesperada para mergulhar cada centímetro do seu pau duro tão fundo quanto possível. Seus dedos afundam dolorosamente nas minhas costas. Sua língua se enrosca na minha, seus gemidos atravessam meu corpo.

Gozo rápido e forte, minhas pernas e o ponto entre elas se contraindo ao redor dele, meus músculos tremendo. Ele goza segundos depois e segura meu corpo bem firme no lugar, com minha bunda em suas mãos musculosas, para se esvaziar dentro de mim.

Nesse momento, não estou nem aí para as consequências do que acaba de acontecer. Mas só nesse momento.

Com a cabeça apoiada no ombro dele, Victor me carrega pelo corredor até o banheiro espaçoso em frente ao quarto de hóspedes. Ele me senta na bancada e fica de pé no meio de minhas pernas nuas.

— Não se preocupe. — Ele dá um beijo na minha testa e abre a porta de vidro do boxe do chuveiro.

— Com o quê? — pergunto, confusa.

Ele gira a torneira, que range, e regula a água quente e a fria até encontrar a temperatura desejada. Eu o observo da bancada, o modo como seu corpo alto e escultural se move, as curvas de seus músculos entalhadas em um desenho poético ao redor de seus quadris, suas panturrilhas enrijecendo quando ele anda.

Ele volta para perto de mim e termino de tirar sua camisa, deslizando-a por seus braços musculosos.

— Você não vai engravidar — diz ele, e me manda descer da bancada e segui-lo até o chuveiro. — Não de mim, pelo menos.

Um pouco surpresa, deixo por isso mesmo.

Ele fecha a porta do boxe e começa a lavar meu cabelo. Eu me perco naquela proximidade, no modo como suas mãos exploram meu corpo com tanta precisão e desejo.

Por muito tempo, esqueço que ele é um assassino cujas mãos tiraram muitas vidas sem sequer um pensamento de remorso ou arrependimento. Esqueço que também sou uma matadora cujas mãos tiraram uma vida há poucas horas.

Parece que fomos feitos um para o outro, como duas peças de um quebra-cabeça que de início parecem não se encaixar, mas que se adaptam perfeitamente quando vistas pelo mais improvável dos ângulos.


CAPÍTULO DEZ

Victor

A empregada de Fredrik volta para a casa bem cedo na manhã seguinte. Acordo assim que amanhece, e ela entra em casa quando estou tomando meu café no pátio dos fundos. Ela me vê através da porta de vidro ao passar pela sala, e então vem falar comigo no pátio.

— Gostaria de café da manhã, señor? — pergunta ela em espanhol.

Deixo a pasta com meu próximo serviço virada para baixo na mesinha de ferro batido.

— Obrigado, mas não vou comer — respondo, e depois aceno para Sarai, que está andando pela sala, procurando por mim. — Mas ela vai.

— Eu vou o quê? — pergunta Sarai ao passar pela porta de vidro aberta. Ela anda descalça pelo pátio de pedra, usando outra camiseta de Fredrik. Fico muito incomodado por ela ter que usar roupas dele em vez das minhas, mas a única roupa que tenho é a que estou usando, além de um short largo de corrida. O cabelo longo e castanho de Sarai está despenteado, pois ela acaba de acordar e sair da cama.

Ela se senta no meu colo e eu encaixo a mão direita entre suas coxas.

— Café da manhã.

Sarai boceja e estica os braços para o alto antes de apoiar a cabeça no meu ombro. Ponho a mão esquerda em sua cintura para mantê-la equilibrada no meu colo. O cheiro da pele e do cabelo recém-lavados de Sarai acelera meu corpo todo.

Ela faz uma careta sutil, meio que rejeitando a ideia.

— É melhor você comer.

Levantando a cabeça do meu ombro, Sarai olha para mim por um momento, pensativa, e depois dirige sua atenção para a empregada.

— Claro, eu gostaria de tomar café da manhã, se não for incômodo — diz, em espanhol.

Por um momento, a empregada parece surpresa por ouvir Sarai falando seu idioma nativo, mas ela logo se recompõe, assente e volta para dentro da casa.

— Acho que a gente já adiou essa questão o suficiente — diz Sarai. — Para onde é que vamos, Victor? O que eu vou fazer?

Estou pensando exatamente nisso desde que descobri que ela veio para Los Angeles e fez o que fez. Olho para a piscina, perdido em pensamentos, minha última tentativa desesperada de organizar as respostas na cabeça. Mas elas continuam tão fragmentadas e bagunçadas quanto sempre estiveram. Todas, menos uma.

— Sarai — digo, olhando novamente para ela —, você não pode voltar para casa. Eu sabia disso na primeira vez em que mandei você para o Arizona. A situação não estava nem de longe tão terrível quanto ficou depois, mas, agora que as coisas mudaram, você não pode mais voltar.

— Então vou ficar com você — rebate ela. Pela primeira vez na vida, não tenho coragem de protestar. Nem contra ela nem contra mim mesmo. A maior parte de mim, a parte humana e imperfeita, quer que Sarai fique comigo, e nada vai me impedir de fazer isso dar certo.

Mas sei que não vai ser fácil.

— Sim — digo, passando a mão em sua coxa macia —, você vai ficar comigo, mas há muitas coisas que precisa entender.

Ela se levanta do meu colo e fica de pé na minha frente, com um braço na frente do corpo e o outro cotovelo apoiado nele. Distraída, ela passa as pontas dos dedos no rosto macio, fitando o que parece ser o nada. Então ela me olha e balança a cabeça com uma expressão perplexa.

— Eu esperava que você fosse resistir mais. Qual é a pegadinha? A despeito do que aconteceu entre a gente ontem à noite, ou do que está acontecendo desde que nos separamos, nunca pensei que você fosse concordar em me levar junto.

— Você gostaria que eu resistisse? — Abro um sorriso capcioso.

Ela sorri também e deixa os braços relaxarem.

— Não. Com certeza não. E-eu só...

Levanto uma perna e apoio o pé no outro joelho.

— Nunca me imaginei em uma situação dessas. Não posso mentir e dizer que acho que vai dar certo. Muito provavelmente não vai, Sarai, e você precisa entender isso. — Ela parece ficar um pouco desanimada, o bastante para eu saber que minhas palavras sinceras a entristeceram mais do que ela se permite revelar. — Não posso mudar o meu jeito. Não só porque é tudo o que sei fazer, ou porque é o que faço melhor, mas também porque não quero. — Olho para Sarai. — Eu nunca vou parar de fazer o que faço.

— Eu nunca ia querer que você parasse — retruca ela, com certa intensidade. Sarai puxa uma cadeira próxima e a coloca diante de mim antes de se sentar. — Tudo o que eu quero, Victor, é ficar com você. Vou fazer qualquer coisa que você espere que eu faça, mas quero que me ensine...

Levanto a mão e a interrompo imediatamente.

— Não, Sarai, também não vou fazer isso. Não é assim que vai ser. — Sua expressão se anuvia e ela desvia o olhar, magoada com minha recusa. — Já falei, eu praticamente nasci nesta vida. Você ia levar quase o resto da sua para aprender a fazer o que eu faço, e mesmo assim não ia ficar boa o suficiente.

— Então, o que eu devo fazer? — pergunta ela, com um tom de ressentimento na voz. — Quero estar com você aonde quer que vá, mas não quero ficar à toa, tomando martínis na praia enquanto você sai para matar pessoas. Eu não sou inútil, Victor, posso fazer alguma coisa.

— Você pode fazer muitas coisas, sim — digo, interrompendo-a. — Mas fazer o que eu faço está totalmente fora de cogitação. Por que você quer tanto isso? — Levanto a voz quando sinto, de repente, uma necessidade desesperada de entender a resposta.

Sarai bate as palmas das mãos nas coxas nuas.

— Porque é o que eu quero.

— Mas por quê?

Ela ergue as mãos para os lados e grita:

— Porque eu gosto! Entendeu?! Eu gosto!

Pisco algumas vezes, completamente atordoado por essa confissão. Na verdade, essa era a última coisa que eu esperava ouvir de Sarai. Parte de mim sabia que ela era mais do que capaz de tirar a vida de alguém e dormir em paz toda noite depois disso, mas nunca previ que ela fosse gostar de matar.

Não sei ao certo como me sinto a respeito disso. Preciso de mais informações.

Eu me inclino para a frente e fico cara a cara com Sarai.

— Você gosta de matar? — pergunto, embora isso saia mais como uma afirmação. — Então, se alguém pedisse a você que tirasse a vida de outra pessoa, você faria isso sem questionar?

— Não — responde ela, franzindo o cenho. — Eu não mataria qualquer um, Victor, só homens que merecessem.

Homens? Esse lado de Sarai está ficando mais intrigante. Eu me pergunto se ela sabe o que acaba de dizer. Homens. Não pessoas em geral, mas homens.

Eu me afasto dela e me reclino na cadeira de novo, virando a cabeça para o lado, pensativo.

— Explique.

Ela também se recosta, encolhendo as pernas e apoiando os pés no assento, virando os joelhos para o lado.

— Homens como Hamburg. Homens como Javier Ruiz, Luis e Diego. Homens como o segurança que matei ontem. Willem Stephens, pelo simples fato de trabalhar para Hamburg sabendo o que o chefe faz. Homens como John Lansen e todos os outros que conheci naquelas festas de gente rica quando estava com Javier. — Seu olhar penetra o meu. — Homens que merecem ter a garganta cortada.

A gravidade das palavras de Sarai e a determinação em seu rosto me silenciam por um momento. Será possível que eu agora tenha não um, mas dois assassinos por perto que compartilham o gosto pelo derramamento de sangue? E, no exato momento em que o rosto surge na minha mente junto com o de Sarai, ouço o carro de Fredrik na entrada da garagem. Isso interrompe o momento intenso, e ambos olhamos para cima.

Instantes depois, Fredrik, vestido de maneira informal com um jeans escuro e uma camisa de grife, vem nos encontrar no pátio. Ele deixa o jornal do dia na mesa de centro e diz:

— É melhor você dar uma olhada nisso. — Então olha para Sarai por um momento. — A propósito, minhas roupas ficam bem em você.

Fuzilo Fredrik com o olhar, mas escondo meu ciúme antes que qualquer um dos dois perceba.

Sarai e eu olhamos para o jornal, mas sou eu quem o pega. Desdobrando-o, corro os olhos pelo texto até encontrar aquilo a que Fredrik se refere.

Quatro pessoas foram encontradas mortas a tiros em um hotel de luxo de Los Angeles, na madrugada passada. Somente dois corpos foram identificados, os de Dahlia Mathers, 23 anos, e Eric Johnson, 27 anos, ambos de Lake Havasu City, Arizona.

Algumas frases abaixo:

Sarai Cohen, também de Lake Havasu City, é procurada pela polícia para prestar esclarecimentos.

Acho que não importa que identidade Sarai usou para fazer o check-in no hotel, o rosto dela é o mesmo nas duas.

Ela arranca o jornal das minhas mãos antes que eu possa terminar.

— Não... — Ela cerra os dentes e seu rosto fica sério enquanto lê a notícia trágica sobre seus amigos. Ela procura meus olhos, mas logo se volta para o jornal, como se sua mente torcesse para ter lido tudo errado na primeira vez. — Falei para eles irem embora de Los Angeles! Dahlia disse que eles iam embora... — Seus olhos verdes encaram os meus, cheios de desespero e despedaçados pela culpa.

Fico de pé.

Sarai pega o jornal com as duas mãos e o rasga bem no meio, amassando as duas metades em seus punhos.

— Eles mataram Dahlia e Eric, porra! — ruge ela. — Eles estão mortos!

O jornal cai de suas mãos e voa pelo pátio de pedra.

Fredrik apenas me olha, esperando para ver o que vou fazer ou dizer. Ele não fala, mas percebo que quer.

— Sarai. — Por trás dela, ponho as mãos em seus ombros. — Eu vou cuidar disso.

Ela se vira para mim. Seu cabelo balança ao redor da cabeça antes de cair de novo nos ombros e seu rosto está ardendo de fúria.

— ELES MORRERAM POR MINHA CAUSA! COMO LYDIA!

Tentando acalmá-la, aperto seus ombros com força, de frente, e a seguro.

— Eu disse que vou cuidar disso — repito com ainda mais intensidade e sinceridade do que antes. Eu me inclino para a frente para manter seu olhar fixo no meu. — Vou fazer isso por você, Sarai. Hamburg e Stephens estarão mortos antes do fim desta semana.

Ela não ouve. Está me encarando, mas parece estar olhando através de mim. Seu peito sobe e desce com a respiração ofegante e irregular. Suas pupilas parecem pequenas, como buracos de grampos em uma folha de papel. O verde de seus olhos parece ter escurecido.

— Não — rebate ela, com a voz calma. — Não quero que você faça nada.

Absorta em pensamentos, ela dá um passo para trás, e minhas mãos caem de seus ombros.

— Vou fazer isso por você. Eu quero...

— Eu disse que não! — Ela dá mais dois passos e se vira, me dando as costas e olhando para a piscina. — Eu vou fazer isso — afirma ela, em voz baixa e decidida. — Vou matar os dois e não quero que você se meta.

— Acho que não...

Ela vira a cabeça, seus olhos escuros cruzando com os meus.

— Se você matar qualquer um deles, nunca vou perdoar você. Isso é assunto meu, Victor! Me deixe fazer pelo menos isso!

— Sarai, você não pode matá-los. — Eu me aproximo dela. — A única pessoa que vai morrer é você. Não vai conseguir...

— Estou cagando para isso! — Percebo que o objetivo de Sarai é inabalável. Ela volta para perto de mim. — Ou você me ajuda a fazer isso ou eu mesma vou descobrir como fazer. Eles vão morrer nas minhas mãos, não nas suas, nas de Fredrik nem nas de qualquer outra pessoa. Só nas minhas. Me ensine. Me mostre o que fazer. Qual é a melhor forma de agir para alguém como eu. Me ajude, ou vou morrer tentando por minha conta. Para mim, tanto faz.

— Eu não vou... você não pode — retruco, balançando a cabeça.

Sarai desiste e tenta me empurrar para fora de seu caminho. Mas não deixo que ela passe. Não posso, pois sei que cada palavra que ela disse foi a sério.

Eu a seguro pelo pulso, detendo sua marcha furiosa até a porta de vidro. Fredrik sai do caminho, assistindo ao desenrolar da cena com um brilho estranho nos olhos, que só posso interpretar como fascinação.

— Me solte!

— Você não vai embora. — Eu a prendo pelo pulso com força, e agarro o outro quando ela começa a me bater.

Ela quer descontar toda a raiva em mim, gritar na minha cara, me xingar com as palavras que tanto quer dizer a Hamburg e Stephens antes de matá-los, mas não consegue. A raiva, como sempre, a domina, e Sarai cai no choro.

Ela me disse uma vez que sempre chora quando está furiosa.

As lágrimas escorrem como rios por seu rosto. Sarai tenta mais uma vez se desvencilhar de mim, mas a seguro firme e faço uma pressão dolorosa sobre seus pulsos, tentando acalmá-la.

— Victor, por favor! Porra, basta me ensinar, cacete! Mesmo que seja matar os dois e mais ninguém! É tudo que eu peço! Nunca mais vou pedir a sua ajuda! POR FAVOR!

Sarai enfim para de se contorcer e desaba sobre meu peito. Eu a envolvo em meus braços, aninhando sua nuca nas mãos e pressionando o lado do meu rosto no alto de sua cabeça. Sarai chora com violência, seu corpo treme no meu abraço. Não são gritos de tristeza e dor, são gritos de culpa, raiva e da necessidade desesperada de vingar a morte de pessoas — até de Lydia — que poderiam ainda estar vivas, se não fosse por ela.

Fredrik olha para mim. Sei o que a expressão calma dele quer dizer. Ele acha que eu deveria dar a Sarai o que ela quer.

Mas não é a opinião de Fredrik que me faz decidir, no fim das contas. É minha necessidade de proteger Sarai, ainda que ela possa acabar morta no final.

Escolho o mais seguro dos dois caminhos malfadados.

— Eu vou ajudar você.


CAPÍTULO ONZE

Sarai

Levanto o rosto do peito de Victor, fungando as malditas lágrimas que mais uma vez me traíram em um momento de fraqueza.

— Você vai me ajudar a matá-los?

Ele assente.

— Vou.

— Obrigada — digo, baixinho.

Fico na ponta dos pés e dou um beijo suave em sua boca.

Da porta de vidro atrás de nós, a empregada diz com uma voz fraca:

— O café está pronto.

Ela nos fita com seus olhos escuros e curiosos, sem dúvida por ter ouvido a discussão enquanto estava lá dentro.

— Marta faz uns ovos mexidos ótimos — comenta Fredrik, com um sorriso radiante, como se nada tivesse acontecido. — Frita em gordura de bacon. — Ele junta os dedos nos lábios e os beija. — Adoro comida americana.

Ele vai atrás de Marta.

— Se bem que parece que ovos mexidos em gordura de bacon é uma comida do Sul, não? — pergunta ele, olhando para nós enquanto o seguimos.

Victor dá de ombros.

— Bem, Marta não é exatamente do Alabama — continua ele, ao entrarmos na cozinha. — Mas sabe cozinhar como se fosse.

Fredrik e Victor continuam tagarelando sobre comida, provavelmente para me fazer esquecer o que aconteceu. Mas, nesse momento, nada mais me importa além do rosto de Dahlia e Eric na memória. Sei que estou sendo punida. Pela vida. Pelo destino. Não sei por quem ou pelo quê, só sei que faria qualquer coisa para devolver a vida aos meus amigos.

Nós três nos sentamos à mesa com tampo de vidro da cozinha e comemos. E acho quase engraçado Fredrik fazendo Marta provar a comida antes de nos servir, como se ele tivesse aprendido essa técnica paranoica no Manual de Victor Faust.

Durante o café, que dura muito tempo por causa da conversa, Fredrik acaba liberando Marta pelo resto do dia. Isso acontece logo depois que ele começa a falar em sueco com Victor. Odeio não entender o que eles dizem, mas fica claro para mim que era por causa de Marta, e não por mim.

Marta pega a bolsa e se despede de nós, agradecendo a Fredrik por pagar um dia inteiro.

— Por que isso? — pergunto, depois que ela vai embora.

Apoio o garfo no prato ao terminar meu café.

— Temos muito o que conversar — explica Fredrik, tomando um gole de suco de laranja. — E ela não pode ouvir a conversa. — Ele aponta para mim e sorri. — E Marta, embora não pareça, ouve tudo o que acontece por aqui.

— Então por que vocês não continuaram conversando em sueco? — questiono.

— Você fala sueco? — rebate Victor.

— Não.

— Bem, você tem que participar da conversa — diz ele, deixando o copo d’água na mesa.

Sorrio. Nesse momento, me sinto parte deles pela primeira vez. Dos dois. Nós três sentados à mesa, que minutos depois já está livre dos pratos e dos copos, substituídos por pastas e fotografias de serviços de execução. Para mim, é meio surreal discutir detalhes de interrogatórios e assassinatos tão casualmente, como se estivéssemos falando do tempo. Mas também, pela primeira vez na vida, sinto que pertenço a algum lugar. Não estou mais andando por um túnel escuro, com as mãos à frente, procurando a porta. A porta está bem ali, à mostra, e já passei por ela. Enfim encontrei meu lugar na vida. E estou com Victor, o que para mim é mais importante do que tudo.

Finalmente estou com Victor.

Victor e eu saímos da casa de Fredrik nas colinas de Los Angeles no fim da tarde e dirigimos por onze horas até Albuquerque, Novo México. No caminho, paramos em um shopping, onde gasto praticamente uns 2 mil dólares em roupas e sapatos novos, acessórios e maquiagem, já que tudo o que tenho está no Arizona ou ficou no hotel em Los Angeles. Encho o banco de trás com sacolas de compras e caixas de sapatos, mas, lá pela nona hora de viagem, me arrependo de ter comprado tanta coisa. Tudo o que quero é me arrastar para o banco de trás e dormir, mas tenho que me conformar em ficar apertada na frente, encolhida em uma posição desconfortável no banco do Cadillac CTS preto de Victor, com a cabeça apoiada na janela. Desde que Victor saiu da Ordem, ele não tem mais a conveniência de usar jatos particulares para viajar. Se quisesse, com certeza poderia pagar um do próprio bolso, mas ser alguém que a Ordem quer matar significa não dar na vista e abrir mão de alguns luxos que poderiam levar Niklas até ele.

Ao que tudo indica, esses luxos abdicados incluem as residências extravagantes e multimilionárias nas quais Victor sempre preferiu morar. Sua casa em Albuquerque é bem diferente daquela onde ele morava na Costa Leste, com vista para o mar. Quando paramos na entrada de terra batida, vejo uma casa de tamanho médio, com paredes nuas de reboco bege e em um formato de caixa que me faz lembrar as casas que eu construía com peças de Lego quando era criança. Contudo, a julgar pelo jardim elaborado que envolve o caminho branco e liso até a porta e o lado esquerdo da casa, é óbvio que Victor não abriu mão de todos os luxos. Isso fica mais óbvio ainda quando entramos, pois o interior é tão bonito quanto o da casa de Fredrik, apesar do estilo mais interiorano e menos luxuoso. Vermelho-ferrugem, marrom e amarelo dominam o ambiente, com pé-direito alto sustentado por vigas e sarrafos de madeira escura, que fazem a casa parecer muito maior por dentro do que por fora. Uma aconchegante lareira de pedra ocupa uma das paredes da espaçosa sala de estar, com dois espelhos decorativos de metal pendurados acima dela. As paredes são amarelas, combinando com os pisos de terracota que parecem ocupar toda a casa.

— De uma coisa tenho certeza: você sempre consegue as melhores empregadas — comento, deixando várias das minhas sacolas no chão da sala.

— Desta vez, não — diz Victor atrás de mim. Ele deixa as outras sacolas que trouxe do carro perto do sofá de couro marrom-alaranjado. — Sou só eu.

— Sério? Mas está tudo tão limpo. Acho que você não passou muito tempo aqui, então, não é?

— Uns quatro meses. — Ele olha para mim. — Você gostou? Espero que sim, porque é o seu novo lar.

Um sorriso desponta no meu rosto.

Victor desabotoa e tira a camisa, deixando-a nas costas de uma poltrona de couro marrom. Observo discretamente seu corpo enquanto ele anda por um corredor longo e bem-iluminado com uma entrada em arco.

Sigo Victor.

— Claro que você sabe que não vamos ficar aqui para sempre. — Entramos em um quarto grande. — Mas é nosso lar por enquanto, pelo menos.

Ele tira a calça e me esforço ao máximo para não olhá-lo com intensidade demais, mas isso fica cada vez mais difícil.

— Vem cá — chama ele, parado diante de mim sem nada além de sua cueca boxer preta e apertada, que pouco ajuda a esconder o volume crescendo por baixo do tecido.

Engulo em seco, nervosa, embora não saiba a razão para esse nervosismo repentino, e me aproximo dele. Sinto um espasmo entre as pernas, e também não sei ao certo por que isso acontece. É como se meu subconsciente estivesse mais a par do que vai acontecer do que minha parte consciente. Ou então apenas perdi o controle sobre minha mente e só consigo pensar no que eu gostaria que acontecesse.

Olho para Victor, curiosa, inclinando um pouco a cabeça para o lado.

— Não sei bem o que é isso entre a gente — diz ele, com cuidado —, mas tenho certeza de que não quero que acabe. Seja o que for.

— Eu também.

Um pouco confusa quanto ao rumo que a conversa está tomando, inclino a cabeça para o outro lado e pergunto:

— Algum problema?

Ele balança a cabeça devagar.

— Não, problema nenhum.

— Bem, se você está preocupado que eu vá me apaixonar e grudar em você feito chiclete, não precisa.

— Você não está apaixonada por mim? — pergunta Victor, e não parece nada além de uma simples questão.

— Não, eu não amo você, Victor.

Ele parece concordar.

— Ótimo. Porque eu também não estou apaixonado por você.

Acho que nem eu nem ele sabemos de fato o que essa palavra significa em uma situação assim. Ambos exibimos a mesma expressão de aceitação, mas também parecemos um pouco confusos.

— Mas... eu, hã... — Entrelaço os dedos atrás das costas e olho para o chão, mexendo o pé como se estivesse tentando afundar os dedos na areia. Paro para encará-lo. — Mas eu, hã, talvez... preferisse que você não dormisse com mais ninguém. Eu... bom, acho que eu não ia gostar muito disso.

— Concordo — diz Victor, assentindo mais uma vez, com firmeza. — Acho que se eu pegar você com outro homem vou ter que matá-lo.

Balanço a cabeça algumas vezes, de maneira tão casual quanto ele.

— Com certeza — concordo eu. — O mesmo vale para você.

— De acordo.

Há um momento de silêncio constrangido entre nós, e corro os olhos pela cama king-size com dossel alto de cerejeira, que está a alguns passos de distância.

Victor se aproxima e eu me viro para observá-lo. Ergo os braços quando ele passa os dedos por baixo da minha camiseta e a tira.

— Também quero dizer que não me incomodo se você grudar em mim feito chiclete. — Ele enfia os dedos no elástico da minha calcinha. — Só para constar.

— Mesmo?

Victor se agacha diante de mim ao descer a calcinha por meus quadris e minhas pernas. Fica ali, me olhando de baixo, com a cabeça na altura do meu umbigo.

— Sim — responde ele. — Mas claro que você não pode me atrapalhar quando eu estiver tentando fazer um serviço.

— Sim, claro — digo, e minha pele reage aos seus lábios, que beijam a área logo acima da minha pélvis. — E-eu nunca atrapalharia o seu trabalho — gaguejo.

Minhas mãos começam a tremer quando ele desce e para entre as minhas pernas, abrindo meus grandes lábios com os polegares.

Afasto os joelhos só um pouco, o bastante para que ele tenha acesso.

— Mas nada de me abandonar em algum lugar distante enquanto você viaja pelo mundo para cumprir os contratos — digo, enfiando os dedos no cabelo dele, com a respiração irregular e acelerada. — Não quero ser dona de casa, entendeu?

Um suspiro agudo corta o ar perto da minha boca quando a ponta de sua língua lambe meu clitóris. Quase derreto ali mesmo, os músculos das coxas perdendo força a cada segundo.

— Sim, entendo o que você quer dizer — diz Victor, e me lambe de novo, explorando entre as minhas pernas. Jogo a cabeça para trás e puxo seu cabelo com mais força, enrolando-o nos dedos. — Você vai aonde eu for. Para eu poder ficar de olho em você.

— De olho em mim. Claro.

Que resposta patética. Só consigo pensar na cabeça de Victor no meio das minhas pernas, e naquela sensação quente e formigante que está amolecendo minhas entranhas.

Victor me ergue segurando minha bunda com firmeza e com minhas coxas em torno da cabeça. Então me lambe furiosamente por um momento antes de me jogar de costas na cama.

Com os joelhos dobrados no peito, vejo sua boca entrar no meio das minhas coxas e reviro os olhos enquanto ele me faz esquecer tudo.


CAPÍTULO DOZE

Sarai

O treinamento começa dois dias depois, mas não da maneira que eu esperava. Não sei o que eu esperava, na verdade, mas com certeza não era isso.

— O que a gente está fazendo aqui? — pergunto quando paramos no estacionamento de uma academia de artes marciais a uma hora de Santa Fé.

— Krav maga — esclarece Victor, e olho como se ele estivesse falando outra língua. Ele fecha a porta do carro e andamos até a fachada do prédio. — Não vou conseguir dedicar cem por cento do meu tempo ao seu treinamento. Por isso, três dias por semana, vou trazer você aqui. Dá para aprender muita coisa com o krav maga em pouco tempo. E o foco é a defesa pessoal...

— O quê? — Paro na calçada antes de passarmos pela porta. — Não sou uma donzela em perigo que acaba de ser assaltada em um estacionamento escuro, Victor. Não preciso de aulas de defesa pessoal. Preciso aprender a matar.

— Matar é a parte fácil — rebate Victor, sem rodeios. Ele abre a porta de vidro e faz um gesto para eu entrar. — Chegar a esse ponto sem morrer tentando é a parte difícil.

— Então você quer que eu aprenda a dar um chute no saco de um cara? — pergunto, bufando de desdém. — Acredite, eu já sou perfeitamente capaz disso.

Um sorriso discreto aparece nos cantos de seus lábios deliciosos.

Nesse momento, um sujeito alto, moreno e com músculos bem-definidos se aproxima de nós no grande salão. As janelas no alto da parede deixam o sol entrar. Dois grupos de pessoas estão treinando em pares, formando um semicírculo em um enorme tatame preto estendido por boa parte do chão.

O homem de braços musculosos e camiseta preta estende a mão para Victor.

— Faz quanto tempo? Três anos? Quatro?

Victor aperta a mão dele com firmeza.

— Uns quatro, acredito.

O homem me olha por um momento, e então Victor nos apresenta.

— Spencer, esta é Izabel. Izabel, Spencer.

— Prazer — diz Spencer, estendendo a mão.

Relutante, aperto a mão dele. Eles se conhecem? Não sei se gosto disso ou não. De repente, sinto que aquilo é alguma armação. Sorrio com desdém para aquele brutamontes alto e simpático.

Victor se vira para mim e diz:

— Não tem ninguém melhor para treinar você em defesa pessoal do que Spencer. Você está em boas mãos.

Spencer abre um sorriso tão largo que, se fosse um pouco maior, acho que daria para engolir minha cabeça. Ele está com os braços musculosos à sua frente, com as mãos cruzadas. As veias, grossas como cordas, que percorrem suas mãos e seus braços bem bronzeados me lembram das de um fisiculturista, mas ele não tem esse tamanho todo. Só é maior do que eu, o que me intimida mais.

Levanto um dedo para Spencer.

— Você nos dá licença um minutinho?

— Claro — responde ele.

Percebo o leve sorriso que ele dá para Victor.

Pego Victor pela mão e o puxo para o lado. Ao fundo, ouço, de maneira constante, corpos sendo jogados naquele tatame preto e a voz de um instrutor entoando comandos repetitivos e mandando os alunos fazerem “de novo”.

— Victor, acho que isto é perda de tempo. Não sei por que você me trouxe aqui. — Cruzo os braços. — Quero aprender essas coisas com você, não com um cara aleatório do tamanho de um ônibus. — Olho por cima do ombro, torcendo para que Spencer não tenha ouvido, embora eu tenha tomado o cuidado de sussurrar.

— Preciso me encontrar com Fredrik daqui a uma hora — explica Victor.

— Ah, então você vai me deixar com uma babá? — Franzo o cenho e balanço a cabeça para ele, totalmente incrédula, para não dizer ofendida.

— Não, não é isso.

— Mas eu quero que você me ensine — repito, forçando as palavras com rispidez entre meus dentes cerrados.

Victor suspira e balança a cabeça, parecendo aborrecido e frustrado comigo.

— Você não tem disciplina. Nenhuma. Igualzinha ao meu irmão. — Isso fere o meu orgulho. — Como vou ensinar alguma coisa para você, se não é capaz nem de fazer as coisas mais simples que eu peço?

Na mesma hora, me arrependo por agir feito uma criança. Solto um suspiro de resignação.

— Desculpe — digo, baixinho. — Pensei que fosse treinar com você, só isso.

— Você vai treinar comigo — garante Victor, pondo as mãos nos meus ombros. — Mas por enquanto precisa aprender o básico. E esta é a melhor maneira.

— Mas por que você não pode me ensinar o básico? — pergunto, com o mesmo tom resignado de antes. — Por que precisa ser ele?

Victor se inclina e beija de leve o canto da minha boca.

— Porque Spencer não tem medo de machucar você — explica ele, e isso me surpreende um pouco. — E não quero fazer isso, se eu puder evitar. Você só vai aprender se for real.

Arregalo os olhos.

— Espere aí... Então você está dizendo que aquele tanque de guerra — digo, apontando por cima do ombro com o polegar — vai me bater de verdade?

— Sim. É para isso que ele está sendo pago.

Parece que meu queixo acaba de bater no chão. De repente, sinto um calafrio percorrer minha espinha.

— Você não é obrigada a fazer isso, Sarai, mas, se realmente é o seu desejo, quero que vá com tudo. Não faça de qualquer jeito. Na vida real, quem atacar você não vai facilitar as coisas — afirma Victor, enquanto me encara com atenção, querendo desesperadamente que eu o entenda e confie nele. — Vou treinar com você no momento certo. Mas, quando eu fizer isso, vai ser brutal, Sarai. Vou atacar com a mesma força que um agressor de verdade usaria. Aprenda o básico primeiro, domine algumas habilidades para conseguir me enfrentar, e vou me sentir melhor para treinar você pessoalmente. Entendeu?

— É, acho que sim — respondo, assentindo. E estou sendo sincera.

Entendo perfeitamente agora. Nem me lembro da última vez que estive tão nervosa para fazer alguma coisa. Mas Spencer, o tanque, não me assusta tanto, na verdade, porque lá no fundo sei que, mesmo que Victor esteja lhe pagando para não facilitar comigo, ele não vai usar toda a sua força em mim. Se usasse, me mataria.

— Você quer ficar? — pergunta Victor.

— Quero.

— Ótimo.

Ele se inclina para meus lábios de novo e me beija com intensidade, tirando meu fôlego. Chocada por essa demonstração pública de afeto tão atípica, fico sem palavras quando ele desgruda os lábios dos meus.

— Volto para buscar você daqui a algumas horas.

— Tudo bem.

Nós voltamos para perto de Spencer, que parece um tanto empolgado para começar a treinar comigo, como se eu fosse um brinquedo novinho em folha com o qual ele não vê a hora de brincar.

— Pronta para começar a aprender krav maga? — pergunta Spencer.

— Estou — respondo, e meu olhar vai até as pessoas lutando no tatame preto atrás dele.

— Tem certeza de que você aguenta?

Quero dizer que sim com confiança, porque, afinal de contas, sempre imaginei que aulas de defesa pessoal consistissem em nada mais do que bloquear golpes, bater e sinalizar aos outros onde estou. Sempre imaginei mulheres comuns, que nunca lutaram na vida, todas de pé em um círculo, esperando a vez para derrubar o instrutor com alguns golpes “úteis”. Contudo, ao observar o grupo que está treinando atrás de Spencer, a intensidade agressiva e a violência de alguns golpes, começo a achar que esse tipo de defesa pessoal é bem diferente.

— Deve ser simples — digo, sem a segurança que queria.

— Se você diz — responde Spencer, com um sorriso conivente que deixa meus nervos ainda mais em frangalhos.

Mas não estou com medo. Nervosa, sim, mas não com medo. Estou pronta para fazer isso. Começo até a ficar ansiosa. Quero provar a Victor que dou conta.

E quero provar a ele que não sou nada parecida com seu irmão.

Victor vai embora. Antes do fim da primeira hora, estou exausta e tão dolorida que mal consigo andar em linha reta sem cambalear.

— Sempre se defenda e ataque ao mesmo tempo — explica Spencer, em pé, enquanto estou deitada no tatame e querendo me encolher em posição fetal. — E nunca vá para o chão. Isto não é luta greco-romana, Izabel. Se você vai para o chão, você morre.

Sem fôlego e tentando controlar a dor intensa que queima minha panturrilha, me levanto.

— Me ataque — ordena ele, elevando a voz acima dos poucos gritos de quem ainda assiste à aula depois da segunda hora. — Se não me atacar, eu ataco você!

Estou exausta demais.

— Não consigo! — Desisto e caio de bunda no tatame. — É demais. Hoje é meu primeiro dia e parece que é minha primeira luta de verdade. Cadê a parte em que você me mostra o que fazer e me ensina a dar os golpes?

— O que você quer mesmo é que eu pegue leve com você, não é?

— Isso! Cadê as instruções? As regras?

Minhas costas estão me matando. Deito no tatame, abrindo os braços acima da cabeça, e olho para o teto iluminado. Não quero mais saber de Spencer e de seu treinamento de imersão total. Só quero descansar.

As lâmpadas fluorescentes do teto começam a se mover depressa quando sinto de repente que estou sendo arrastada pelo tornozelo.

— Não há regras no krav maga — ouço Spencer dizer, mas percebo, meio segundo depois, que não é ele quem está me arrastando.

É uma mulher, com cabelo castanho-claro preso em um rabo de cavalo. Confusa com a mudança, fico distraída demais para notar o pé dela atingindo meu estômago. Berro de dor, me dobrando para a frente ao levantar as pernas e as costas do tatame ao mesmo tempo, com os braços cruzados sobre o abdômen. O golpe expulsa todo o ar dos meus pulmões.

— CHEGA! — grita Spencer, em algum lugar atrás de mim.

Sinto que vou vomitar.

A mulher para no mesmo instante e dá alguns passos para trás.

— Levante — manda Spencer, e decifro, em meio à dor que acaba com meu tórax, que sua voz está muito mais perto do que antes.

Ergo a cabeça e o vejo agachado ao meu lado.

— Vou deixar você recuperar o fôlego — diz ele, baixinho, oferecendo a mão. — Esta é Jacquelyn. Minha mulher.

Pego no antebraço dele, ele me segura e me põe de pé.

— Muito prazer — digo a ela, fazendo uma careta horrorosa de dor. — Ou em conhecer o seu pé, pelo menos.

Ela dá uma risadinha.

— O seu namorado me pagou para encher você de porrada, basicamente — afirma Spencer. — Mas, como não tenho o hábito de bater em mulher, achei melhor deixar minha esposa fazer as honras para que eu pudesse receber o pagamento do mesmo jeito.

— É a melhor maneira de aprender — intervém Jacquelyn. — Esse seu homem sabe o que está fazendo. É brutal? Claro. Necessário para sobreviver a situações de combate corpo a corpo? Com certeza. Indicado para peruazinhas delicadas que ficam pulando e gritando de medo quando veem uma aranha? Nem fodendo.

— Bom, eu não sou uma dessas — digo, com frieza. — Disso você pode ter certeza.

— Então prove — provoca ela, curvando-se para a frente com as mãos semiabertas ao lado do corpo. — Lembre, o krav maga não tem regras. Sempre defenda e ataque ao mesmo tempo. Sempre lute com agressividade. E nunca vá para o chão.

— Ok, essa parte eu entendi. Se eu for para o chão, estou morta.

Jacquelyn praticamente me dá uma surra durante o resto da aula. E, quando Victor finalmente chega para me buscar, meu nariz e meu lábio estão sangrando, meu olho direito está roxo e latejando e acho que quebrei um dente.

Isso continua dia sim, dia não pelas duas semanas seguintes.

Não levei muito tempo para ficar boa no krav maga. Spencer diz que tenho um talento natural e que devo ter “dispensado as Barbies quando era criança”.

Ele não faz nem ideia...

Estou ficando muito mais forte, muito melhor na minha técnica. Em certo momento, até consegui machucar Jacquelyn ao enfiar o cotovelo nas costelas dela. Acho que quebrei algumas, mas ela não admite. Não por orgulho, mas porque não acha certo reclamar nem deixar algo tão insignificante quanto uma costela fraturada impedir que ela lute.

Também não demorou para que eu começasse a simpatizar com ela. Quando Jacquelyn não está me enfiando a porrada, até gosto de sua companhia.

Só duas semanas se passaram. Até agora, não fiz nada além de treinar com Jacquelyn e aprender a usar armas com Victor. Ainda assim, apesar de curtir o treino e esperá-lo ansiosamente todo dia, fico frustrada por estar demorando tanto. Eu esperava que Hamburg e Stephens já estivessem mortos faz tempo, a essa altura.

Estou ficando impaciente.

— Victor, eu não pretendo lutar com Hamburg e Stephens. Só quero matá-los. Mais nada. Não entendo por que você está me fazendo passar por tudo isso.

Victor se descobre e sai da cama, andando nu pelo quarto.

Em silêncio, admiro a visão.

— Tem mais coisas envolvidas nisso do que você imagina — diz ele, desaparecendo ao entrar no banheiro.

Aquilo com certeza desperta meu interesse.

Eu me levanto e grito:

— É mesmo?

Jogo o lençol no chão e ando depressa atrás dele, parando à porta do banheiro e me apoiando no batente. Ele está abrindo a água do chuveiro.

Victor fecha o boxe de vidro, deixando a água correr por um momento, e então se vira para mim.

— Você não está fazendo todo esse treinamento só para matar Hamburg e Stephens. Se vai ficar comigo, independentemente de como vai ocupar o seu tempo, precisa aprender a lutar. Precisa saber identificar, diferenciar, carregar e disparar praticamente qualquer tipo de arma. Há muitas coisas que você precisa saber, e não temos tempo suficiente para aprender metade delas. — Ele abre a porta do boxe e estende o braço, deixando a água correr sobre a mão para sentir a temperatura.

Ele acrescenta:

— Esse treinamento não tem muito a ver com Hamburg e Stephens. Quero que você esteja sempre segura, por isso é vital que aprenda essas coisas agora.

Abro um sorriso leve, saboreando o momento. Quando nos conhecemos, eu não imaginava que Victor tivesse um só traço de preocupação ou emoção no corpo. Mas a cada dia testemunho que ele está se abrindo mais para mim. E vejo que isso está se tornando mais fácil para ele.

Volto ao assunto em questão, mas o que eu gostaria mesmo de fazer, a essa altura, é beijá-lo.

— Mas por que isso está demorando tanto? Quero acabar com essa história de uma vez.

Entro no banheiro e me sento na bancada da pia, apenas de calcinha.

— Porque, enquanto eu elaboro um plano para você chegar perto dos dois e matá-los, você precisa treinar, ocupar seu tempo o máximo possível. — Victor se aproxima de mim e segura meu rosto com as mãos. — Só estar no mesmo quarto comigo, só me conhecer, Sarai, já é uma sentença de morte diária. Cada vez que você sai por aquela porta, corre o risco de levar um tiro. O único motivo pelo qual a Ordem ainda não me encontrou é que Niklas é o único agente atrás de mim. Quer dizer, por enquanto. Ele não quer que ninguém mais me ache. Ele quer levar o crédito. O reconhecimento. Sobretudo porque foi ele o contratado para acabar comigo. — Victor pressiona os lábios na minha testa. Fecho os olhos, levanto os braços e seguro os pulsos dele. — Mas um dia, provavelmente daqui a pouco, vou ter que enfrentar meu irmão, pois a Ordem não vai dar todo o tempo do mundo para ele cumprir a missão. Ou ele me encontra ou eu o encontro. E um de nós vai morrer.

Com os dedos ainda envolvendo os pulsos dele, afasto delicadamente suas mãos do meu rosto. Olho para aqueles lindos olhos verde-azulados, perplexa, inclinando a cabeça para um lado.

— Por que não deixa isso para lá? Victor, entendo você querer matar Niklas antes que ele mate você, mas por que correr o risco de morrer procurando briga?

O vapor começa a encher o banheiro, embaçando o grande espelho acima do balcão, atrás de mim.

— Porque se Niklas não me encontrar, se não conseguir cumprir o primeiro contrato oficial desde que foi promovido a agente sob o comando de Vonnegut, eles vão matá-lo. — Victor apoia as mãos na bancada, à minha direita e à minha esquerda. — Ninguém, a não ser eu, vai matar meu irmão. Não me importa o que ele fez ou as diferenças que temos, ainda é meu irmão.

Faço que sim, compreensiva.

— Tudo bem, então quando tudo isso vai acontecer? Esse... confronto com Niklas? Minha chance de matar Hamburg e Stephens?

Victor abre um sorriso malicioso e eu passo as pontas dos dedos em seus lábios. Ele segura minha mão e beija meus dedos.

— Vamos ter que trabalhar nesse seu problema, Sarai. A sua impaciência e, claro, como já falei, a indisciplina. É o próximo item da nossa agenda.

— Não consigo evitar a impaciência. Aqueles dois babacas horríveis continuam por aí, levando uma vida de luxo, fazendo só Deus sabe o quê com sabe-se lá quantas mulheres. Isso sem falar que estão me procurando. Mataram meus amigos por minha causa. Dina continua escondida longe da casa dela e está com medo. A vida dela foi virada de cabeça para baixo por causa deles. Por minha causa. Quero que eles morram para que pelo menos Dina possa seguir a vida.

— O que você vai dizer para ela? — pergunta Victor. — Quando se encontrar com ela hoje, o que vai dizer?

Desvio o olhar e vejo o vapor revestir as altas paredes de vidro do boxe, ondulando acima do chuveiro em nuvens suaves. Começo a suar um pouco, o rosto, o pescoço e o colo úmidos.

— Vou contar a verdade para ela.

— Você acha uma boa ideia?

Encaro Victor.

— Acho justo. Ela é praticamente minha mãe. Fez muito por mim. Eu devo a verdade a ela. — Sorrio e acrescento: — Além disso, se você não concordasse com minha decisão de contar a verdade, já teria deixado isso bem claro, a essa altura.

Victor retribui meu sorriso e me segura pela cintura, me ajudando a descer da bancada.

— Acho que é melhor a gente se arrumar, se quiser chegar lá a tempo — observa ele, e me leva até o chuveiro. Tiro a calcinha antes de entrar no boxe com ele.

Victor disse a Dina e a mim que me levaria para vê-la alguns dias depois de o contato de Fredrik a tirar de Lake Havasu City. Mas as coisas não saíram conforme planejamos. Victor e Fredrik concordaram que era arriscado e cedo demais. Uma noite, ouvi os dois conversando sobre Dina e sobre como ela poderia estar sendo vigiada no dia em que o contato de Fredrik chegou para buscá-la. Victor queria ter certeza de que isso não havia acontecido, e que, se qualquer um de nós aparecesse por acaso no esconderijo de Dina, não cairia em uma armadilha. Mas, à medida que os dias passaram e Fredrik continuou vigiando a casa onde Dina estava se escondendo, ele e Victor tiveram certeza de que ela era, de fato, segura.

Hoje, enfim, vou vê-la pela primeira vez desde que viajei com Eric e Dahlia para Los Angeles.


CAPÍTULO TREZE

Victor

Sarai precisa estar preparada não só para as ameaças iminentes, mas também para a vida que a espera. Ela escolheu um caminho há muito tempo, no dia em que me conheceu, embora ainda não soubesse. Eu não queria enxergar, por isso lutei comigo mesmo contra a necessidade estranha e antinatural de ficar perto dela, porque queria que ela tivesse uma vida normal.

Não queria que ela terminasse como eu...

Mas eu sabia, oito meses atrás, antes de deixá-la naquele quarto de hospital ao lado da sra. Gregory, que um dia eu voltaria para ela. Nunca foi minha intenção nem meu plano, eu apenas sabia que acabaria acontecendo, de uma maneira ou de outra.

Por 28 dos meus 37 anos de vida, a única coisa que conheci foi a Ordem. Só conheci disciplina e morte. Nunca conheci amizade ou amor sem suspeitas e traições. Fui... programado para desafiar as emoções e ações humanas mais comuns, mas eu... Só quando conheci Sarai me permiti acreditar que Vonnegut e a Ordem não eram minha família, que me usaram como seu soldado perfeito. Eles me negaram a vida toda os elementos que nos tornam humanos. E não posso permitir que isso fique impune.

Um dia, vou matar Vonnegut e acabar com o resto da Ordem pelo que fizeram comigo e com a minha família. Uma família que eles destruíram. Sarai é minha família agora, e espero que Fredrik prove sua lealdade no teste final que farei com ele. Eles são minha família e não vou permitir que a Ordem também os destrua.

Mas, por enquanto, Sarai é o meu foco, e será pelo tempo que for necessário. Ela precisa ser treinada. Precisa absorver o máximo que puder, o mais rápido que conseguir. É impossível que um dia ela chegue ao meu nível. Ela nunca vai conseguir viver a vida de um assassino como eu, porque levaria metade da vida para aprender. É por isso que a Ordem nos recruta tão jovens. É por isso que Niklas e eu fomos levados quando éramos crianças.

Sarai nunca vai ser como eu.

Mas ela tem outros talentos. Tem habilidades que, mesmo depois de tantos anos de treinamento, eu jamais conseguiria superar. A vida de Sarai na fortaleza no México lhe garantiu um conjunto único de habilidades que não se aprendem em uma aula nem se leem em um livro. Ela mente e manipula com maestria. Pode se tornar outra pessoa em dois segundos e enganar uma sala cheia de gente que ninguém mais conseguiria enganar. Consegue fazer um homem acreditar no que ela quiser com muito pouco esforço. E não tem medo da morte. Ela é melhor do que uma simples atriz. Porque ninguém percebe a farsa até que seja tarde demais. Javier Ruiz foi o verdadeiro professor de Sarai. Ele lhe ensinou coisas que eu jamais conseguiria transmitir. Foi seu verdadeiro treinador, ensinando os talentos mortais que agora começam a defini-la como assassina. E, como todos os mestres perversos, Javier Ruiz também foi a primeira vítima de sua aluna favorita.

Assim como foi com as habilidades que Sarai já possui, para aprender a lutar e entender a luta de verdade, ela precisa vivê-la e respirá-la todos os dias. Forçá-la a treinar com Spencer e Jacquelyn é necessário para a sua sobrevivência porque ela precisa aprender o máximo que puder sempre que for possível. Mas são as habilidades que ela já tem que vão transformá-la em um soldado único.

São essas habilidades que nos tornam a dupla perfeita.

Antes disso, contudo, Sarai precisa entender a fundo do que é capaz. E precisa passar pelos testes. Todos eles, até aqueles que podem fazê-la me detestar.

Não tenho dúvidas de que isso vai acontecer. Ela passar nos testes, pelo menos. Se ela vai me detestar, ainda é discutível.

Chegamos a Phoenix logo depois do pôr do sol e somos recebidos à porta da casinha branca por Amelia McKinney, o contato de Fredrik. Ela é uma mulher linda, voluptuosa e com um longo cabelo louro, embora sua característica menos atraente seja seu grande par de peitos de plástico, que com certeza devem lhe dar dor nas costas. E ela usa roupas bem chamativas para uma mulher com doutorado que dá aula no ensino fundamental há cinco anos.

— Olá, Victor Faust — cumprimenta ela, com um tom sedutor, segurando a porta aberta para mim e Sarai. — Ouvi falar muito de você.

— Muito? Interessante.

Com uma das mãos, ela deixa aberta a porta de tela, dá um passo para o lado e acena para entrarmos na casa, sacudindo um monte de pulseiras com pingentes de ouro. Vários anéis enormes enfeitam seus dedos. E ela cheira a sabonete e a pasta de dente.

Coloco minha mão nas costas de Sarai e deixo que ela entre antes de mim.

— Fredrik me falou de você — conta Amelia, fechando a porta. — Mas acho que “muito” é exagero nesse caso, já que ele mesmo não parece saber muita coisa a seu respeito. — Ela gira a mão ao lado do corpo e acrescenta: — Mas imagino que o fato de eu saber tão pouco é o que torna você ainda mais intrigante.

— Nem pense nisso — intervém Sarai, parando nossa pequena fila indiana e se virando para encará-la.

Disciplina, Sarai. Disciplina. Suspiro em silêncio, mas admito que fico de pau duro ao vê-la tão superprotetora com o que lhe pertence.

Amelia levanta as mãos, por sorte em um gesto de resignação e não de desafio.

— Sem problemas, meu anjo. Não tem problema nenhum.

Sarai aceita essa bandeira branca e andamos mais pela casa, onde encontramos Dina Gregory na cozinha, preparando o que parece ser uma ceia de Ação de Graças para umas 15 pessoas.

Sarai corre para os braços abertos de Dina, e começam os sorrisos e as palavras de alívio e empolgação. Ignoro tudo isso por um momento, voltando minha atenção para assuntos mais prementes: o que está ao meu redor e essa mulher que não conheço.

Não confio em ninguém.

Amelia, como muitas mulheres do círculo de Fredrik Gustavsson, não sabe nada sobre a Ordem nem sobre o envolvimento que eu ou Fredrik temos com organizações do tipo. Ela não é o que Samantha, do Abrigo Doze no Texas, era para mim. Não, a relação de Amelia e Fredrik, embora tecnicamente não possa mais ser chamada assim, é muito mais... complicada.

Começo a vasculhar a casa em busca de câmeras e armas, tateando estantes, vasos de plantas, cacarecos e móveis, instalando minha própria parafernália secreta de espionagem no caminho.

— Fredrik disse que você talvez fizesse isso — diz Amelia, atrás de mim, embora eu tenha certeza de que ela não viu o pequeno aparelho que acabo de grudar embaixo da mesinha da TV. Ela ri baixo. — Eu limpei a casa muito bem antes de você chegar. Cadê as suas luvas de borracha? — brinca ela.

Não viro para trás nem paro o que estou fazendo.

— Você recebeu alguma visita desconhecida desde que a sra. Gregory veio para cá? — pergunto, debruçando-me sobre uma mesa ao lado de uma cadeira reclinável e examinando um abajur.

— Uau, você e Fredrik são mesmo os caras mais paranoicos que já conheci. Não. Não que eu lembre. Bom, um vendedor de TV por satélite veio uma vez semana passada, querendo que eu desistisse da TV a cabo. Além dele, ninguém.

Ela se aproxima de mim por trás e abaixa a voz:

— Por quanto tempo essa mulher vai ficar na minha casa? — Noto com a visão periférica que ela olha para a porta da cozinha, para garantir que ninguém consiga ouvi-la além de mim. — Ela é legal e tudo, mas... — Amelia suspira com ar culpado. — Olha, eu tenho 30 anos. Não moro com meus pais desde os 16. Ela está atrapalhando o meu jogo. Eu trouxe um cara aqui semana passada e ele pensou que ela fosse minha mãe. Ficou chato. Não transo desde que ela chegou.

Eu me viro para encará-la.

— E há quanto tempo você conhecia o sujeito que trouxe aqui?

— Hein?

— O homem. Há quanto tempo estava dormindo com ele?

Suas sobrancelhas finas e bem-cuidadas se juntam no meio da testa.

— E isso por acaso é da sua conta? Vai me perguntar em quantas posições a gente trepou também?

— Quanto tempo?

— Conheci o cara em um bar, sábado passado.

— Bem, ele conta como uma visita desconhecida.

Ela quer discutir, mas se contém.

— Ok. Tudo bem. O cara do satélite e o quase peguete do bar. Só eles.

— Antes que eu vá embora, vou precisar do nome desse cara e de qualquer outra informação que você possa me dar sobre ele, incluindo uma descrição detalhada.

Ela balança a cabeça e ri, contrariada.

— Não sei por que aguento essas merdas do Fredrik. — Então Amelia abre uma gavetinha da mesa e tira um bloco de notas e uma caneta.

— Porque você não resiste — observo, mas sem querer ser desagradável. Outra coisa que preciso praticar: ficar de boca fechada quando as mulheres dizem certas coisas que dispensam comentários.

Ofendida, ela arregala os olhos azuis brilhantes. Rabisca alguma coisa na folha, arranca-a do bloco e a enfia na minha mão.

— O que isso significa? — Contudo, antes de me dar a chance de cometer outra gafe, ela muda o tom de voz, chega perto de mim e sussurra de maneira sedutora: — Ei... O que vocês dois têm em comum, afinal?

Sei exatamente sobre o que Amelia está perguntando. Ela especula sobre as minhas preferências sexuais e provavelmente torce para que sejam tão sombrias quanto as de Fredrik. Mas ela está pisando em um território muito perigoso, com Sarai na sala ao lado.

— Não muito — respondo, enfiando no bolso a folha com o nome e a descrição do homem. Então continuo a investigar a casa dela.

— Que pena — comenta Amelia. — Qual é a dele, afinal? Ele fala alguma coisa de mim?

Por favor, pare com isso...

Suspiro e paro na entrada do corredor, olhando-a nos olhos.

— Se você tem perguntas para ou sobre Fredrik, faça o favor de perguntar diretamente a ele.

Amelia joga o cabelo para trás em um gesto orgulhoso e revira os olhos.

— Tudo bem. Só pergunta para o Fredrik quanto tempo mais vou ter que ficar de babá, ok?

Ela passa por mim e se junta a Sarai e à sra. Gregory na cozinha, enquanto aproveito a oportunidade para inspecionar o resto da casa.

Por falar em Fredrik, ele me liga quando estou a caminho do quarto de hóspedes.

— Tenho informações sobre a missão de Nova Orleans — diz ele do outro lado da linha. Ouço trânsito ao fundo. — O contato acha que o alvo voltou para a cidade.

— Por que ela acha isso?

— Ela acha que o viu em frente a um bar perto da Bourbon Street. Claro que ela pode ter imaginado isso, mas acho que a gente deveria investigar. Só por segurança. Se a gente esperar e ele voltar para o Brasil, ou onde quer que ele esteja se escondendo, pode levar mais um ou dois meses antes de termos outra chance.

— Concordo. — Eu me fecho no quarto de hóspedes. — Estou com Sarai na casa da Amelia agora, mas vou terminar as coisas por aqui mais cedo. Vá para Nova Orleans na minha frente e eu encontro você lá amanhã no início da noite. Mas não faça nada.

— Não fazer nada? — pergunta Fredrik, desconfiado. — Se eu encontrar o cara, posso prendê-lo e começar o interrogatório, pelo menos.

— Não, espere a gente. Quero que Sarai faça isso.

Fredrik fica em silêncio por um instante.

— Você não pode estar falando sério, Victor. Ela não está pronta. Pode estragar a missão toda. Ou morrer.

— Não vai acontecer nada disso — rebato com calma e confiança. — E não se preocupe, é você quem vai fazer o interrogatório. Só quero que ela prenda o sujeito.

Sei que há um sorriso macabro no rosto de Fredrik sem precisar vê-lo ou ouvir sua voz. Deixar que ele faça o interrogatório é praticamente o mesmo que dar uma seringa para um viciado em heroína.

— Vejo você em Nova Orleans, então — diz ele.

Desligo, enfio o celular no bolso de trás da calça preta e termino a inspeção da casa antes de ir para a sala e me juntar às mulheres, todas já com pratos de comida no colo.


CAPÍTULO CATORZE

Sarai

— Você deveria fazer um prato — digo para Victor quando ele surge no corredor. — Dina cozinha muito bem. Até melhor do que Marta. Mas não diga a Marta que eu falei isso. — Enfio uma enorme colherada da caçarola de feijão na boca.

Dina, sentada ao meu lado no sofá, aponta para Victor.

— Ela é suspeita. Mas, se você está com fome, é melhor comer antes que acabe.

— Precisamos conversar — anuncia Victor, de pé no meio da sala e bem na frente da TV.

Não gosto do tom dele.

— Tudo bem — digo, desencostando do sofá e deixando o prato na mesinha de centro. — Sobre o quê?

Victor olha de relance para Amelia. Ela está sentada na poltrona à minha frente, pegando um pedaço de pão de milho. Tenho a sensação de que Victor não quer que ela ouça a conversa.

— Amelia — diz Victor, enfiando a mão no bolso de trás da calça e pegando a carteira de couro —, preciso que você saia um pouco de casa. — Ele mexe na carteira, tira um pequeno maço de notas de 100 dólares e o deixa na mesa diante dela. — Se você não se importar.

Amelia olha para o dinheiro, apoia o garfo no prato e conta as cédulas.

— Sem problemas — concorda ela, com um sorriso satisfeito. Então se levanta, pega o prato e a lata de refrigerante e desaparece na cozinha.

Ouço o garfo raspando os restos de comida do prato para o lixo e a cerâmica tilintando no fundo da pia. Amelia passa por nós e segue até o corredor.

— Mas preciso que você saia agora mesmo — reitera Victor. — Não precisa trocar de roupa nem se arrumar.

— Posso pelo menos calçar a droga de um sapato? — pergunta ela, ríspida.

— Claro — responde Victor, assentindo. — Mas, por favor, não demore.

Amelia vai até o fim do corredor, resmungando irritada. Minutos depois, ela liga o carro e vai embora.

Victor olha para mim e para Dina.

— Não podemos ficar tanto tempo quanto o planejado — informa ele.

Dina também larga o prato e suspira com tristeza.

— Por que não? — pergunto.

— Surgiu um problema.

Olho para o meu prato, e o brilho metálico do garfo perde foco à medida que mergulho em pensamentos. Achei que teria tempo para encontrar a forma certa de contar para Dina tudo o que eu planejava contar. Agora estou desesperada tentando imaginar como começar a primeira frase.

— Dina — digo, respirando fundo. Eu me viro de lado para encará-la. — Eu matei um cara, meses atrás. — O rosto de Dina parece ficar rígido. — Foi em legítima defesa. Eu, hum... — Olho para Victor. Ele assente de leve, me motivando a continuar e garantindo que está tudo bem, embora eu saiba que ele não concorda cem por cento com o que estou fazendo. — Aliás, também matei um cara em Los Angeles na noite em que Dahlia e Eric foram encontrados mortos.

Dina ergue a mão enrugada e cobre a boca.

— Ah, Sarai... Você... o que você está...

— Dahlia e Eric foram assassinados por minha causa — interrompo, porque é evidente que ela não sabe o que dizer. — Não só a polícia de Los Angeles está atrás de mim para me interrogar, já que eu estava com eles, mas também os homens que mataram os dois estão na minha cola. É por isso que você está aqui.

— Meu Deus do céu. — Dina balança a cabeça sem parar, tira os dedos da boca e aperta os olhos cheios de pés de galinha em uma expressão preocupada.

Seguro a mão dela, que é fria e macia.

— Tem muita coisa que você não sabe. Onde eu estava de fato durante os nove anos em que minha mãe e eu ficamos desaparecidas. O que realmente aconteceu comigo. E com minha mãe. E eu não levei um tiro de um ex-namorado daquela vez em que Victor levou você para o hospital em Los Angeles. Eu levei um tiro de... — Olho para Victor de novo, mas decido por mim mesma não revelar essa informação. Ela não precisa saber de Niklas nem no que Victor e ele estão envolvidos. — Foi outra pessoa que atirou em mim. É uma história muito longa que você vai saber um dia, mas por enquanto só quero que você saiba a verdade sobre mim. — Passo os dedos com carinho nas costas da mão dela. — Você é a única mãe de verdade que eu tive. Fez tanta coisa por mim, sempre me apoiou, e eu devo essa honestidade a você.

Dina segura minha mão entre as dela.

— O que aconteceu com você, menina? — pergunta, com tanta dor e preocupação na voz que sinto um nó na garganta.

Começo a contar tudo, tanto quanto posso sem revelar qualquer informação sobre Victor e Niklas. Conto sobre o México e sobre as coisas que vi e vivi por lá. Conto sobre Lydia e sobre não conseguir salvá-la, apesar de ter lutado tanto. Omito sobretudo as relações sexuais que eu tinha com o cara que me mantinha presa, Javier Ruiz, um chefão mexicano do tráfico de drogas, armas e escravas, e só digo que eu estava lá contra a minha vontade e fui obrigada a fazer coisas que não queria. Dina cai no choro e me abraça forte, me balançando apertada contra o peito, como se eu é que estivesse chorando e precisasse de um ombro amigo. Ao menos dessa vez, contudo, não estou chorando. Só me sinto péssima por ter que contar tudo isso a ela, pois sei que isso a magoa muito.

Minutos depois, quando termino de contar tudo o que posso, Dina está sentada na beira do sofá, parecendo ligeiramente em choque. Mas ela está mais preocupada do que qualquer outra coisa.

Ela olha para Victor.

— Quanto tempo vou precisar ficar aqui? Gostaria muito de ir para casa. E quero levar Sarai.

— Isso não é uma boa ideia — argumenta Victor. — E quanto a Sarai, ela vai ter que ficar comigo. Por tempo indeterminado.

Engulo em seco ao ouvir as palavras dele, sabendo que Dina não vai aceitar isso.

— Então... Mas então o que isso significa? — pergunta ela, nervosa, voltando sua atenção somente para mim. — Sarai, você nunca mais vai voltar para casa?

Balanço a cabeça, cheia de culpa.

— Não, Dina, eu não posso. Preciso ficar com Victor. Estou mais segura com ele. E você está mais segura sem mim.

Dina balança a cabeça com ar solene.

— Você vai me visitar?

— Claro que vou. — Aperto a mão dela com delicadeza. — Eu nunca abandonaria você para sempre.

— Entendo — afirma ela, esforçando-se para aceitar.

Dina se volta para Victor.

— Mas eu não posso ficar na casa dessa mulher. Se você só me trouxe para cá para me proteger, prefiro voltar para casa. Não tenho medo desses homens. — Ela fica de pé e olha para mim. — Sarai, querida, eu nunca contaria nada para a polícia. Espero que acredite nisso.

Também me levanto.

— Sim, Dina, eu sei que você não contaria. O motivo para você estar aqui não tem nada a ver com a minha confiança em você. Trouxemos você para cá porque queremos que fique segura. Se alguma coisa acontecesse com você, principalmente por minha causa, eu jamais me perdoaria. Você é tudo o que me resta. Você e Victor. Você é minha família e eu não posso perdê-la.

— Mas eu não posso ficar aqui, querida. Já fiquei tempo demais. Amelia é gentil comigo, mas aqui não é a minha casa, e não quero ficar mais tempo do que ela quer que eu fique. Sinto como se minha presença fosse um fardo. Sinto falta das minhas plantas e da minha caneca de café favorita.

— Sra. Gregory — intervém Victor, impaciente, mas ainda respeitando os sentimentos dela. Ela se vira, mas ele faz uma pausa como se refletisse sobre algo. — Sarai não vai ficar segura se tiver que se preocupar com a sua segurança. Estou dizendo desde já: se a senhora voltar para casa, eles vão encontrar e matar a senhora assim que a virem, ou pior, vão sequestrá-la, torturá-la, gravar tudo em vídeo e usar as imagens para atingir Sarai. Entende o que estou dizendo?

A expressão grave e determinada de Dina desmorona sob um véu de sofrimento e resignação. Ela se vira para mim, com o semblante distorcido pela dor. Talvez esteja me pedindo uma confirmação das palavras de Victor, esperando que eu suavize a situação, que eu diga que ele só está sendo dramático. Mas não posso fazer isso. O que ele disse, embora brutal e sem rodeios, é exatamente o que ela precisa ouvir.

— Ele tem razão. Olhe, a gente vai dar um jeito nesses caras logo, tudo bem? Só preciso que você fique quietinha por mais um tempo, até a gente conseguir fazer isso.

— Mas concordo com a senhora — pondera Victor —, acho que não deve mais ficar aqui.

Dina e eu olhamos para ele ao mesmo tempo.

Victor continua:

— Quando estamos nos escondendo e ficamos tempo demais no mesmo lugar, com certeza somos encontrados.

— Então aonde ela deve ir? — pergunto, com várias possibilidades girando na cabeça, nenhuma das quais parece plausível. — Não me diga que quer levar Dina com a gente. Por mais que eu fosse adorar...

— Não, ela não pode ir com a gente — concorda Victor —, mas posso arranjar uma casa só para ela. Já fiz isso antes.

Afinal, Victor providenciou a casa em Lake Havasu City para mim e Dina.

— Mas você não disse que surgiu um problema e que a gente precisa ir embora antes do planejado? Não dá tempo de encontrar outra casa para ela. Isso levaria dias.

— Eu tenho uma casa — afirma Victor. — Fica longe do Arizona, mas acho que seria melhor para a senhora não ficar aqui por enquanto. O contato de Fredrik, o mesmo sujeito que trouxe a senhora para cá, pode levá-la a esse lugar. Está disposta a se mudar?

Dina se reclina no sofá, apertando as mãos uma na outra e as enfiando entre as pernas, vestidas em uma calça bege.

Eu me sento ao lado dela.

— Por favor, faça isso — peço a ela. — Vou me sentir muito melhor sabendo que você está segura.

Dina fica em silêncio por um longo momento, mas finalmente aceita.

— Estou velha demais para tanta emoção, mas tudo bem, eu vou. Só faço isso por você, Sarai.

Eu me inclino e a abraço.

— Eu sei, e é por isso que eu amo você.

— Onde fica a casa? — pergunto depois que deixamos Dina na casa de Amelia e pegamos a estrada. Ele não quis dizer antes a localização em voz alta, provavelmente porque não confiava no ambiente.

— Em Tulsa — responde Victor. — Tenho algumas casas espalhadas por aí, essa é uma delas. Nada luxuoso como a casa de Santa Fé, mas dá para morar nela, é aconchegante, e só a gente sabe que ela existe.

— Quem é esse contato de Fredrik, afinal?

— Ele não faz parte da Ordem, se é o que você quer saber. É só alguém que Fredrik conhece, um pouco como Amelia.

— Se não fazem parte da Ordem, quem eles são?

Victor me lança um olhar do banco do motorista.

— Amelia é só uma espécie de ex-namorada de Fredrik. Como os abrigos administrados pela Ordem, a casa de Amelia tem a mesma função. Mas temos muito menos preocupações em relação a ela, que nem sabe o que é a Ordem. Só o que ela tem é uma obsessão doentia por Fredrik e faz qualquer coisa que ele pedir.

— Ah, entendo — digo, embora não saiba direito se entendi. — Ela parece pegajosa.

— Pode-se dizer que sim.

— E o cara? Aquele que vai levar Dina até Tulsa?

Victor olha para a estrada, com uma das mãos relaxada na parte de baixo do volante.

— Ele é um dos nossos funcionários, na verdade. Um dentre uns vinte contatos que recrutamos desde que eu saí da Ordem. Nenhum deles sabe mais do que o necessário. Fredrik ou eu damos uma ordem, e, como em um emprego qualquer, eles obedecem. Claro que trabalhar com a gente é bem diferente de qualquer outro emprego, mas você entendeu.

— Eles não sabem o risco que correm por se envolver com você e Fredrik? E como vocês fazem para eles seguirem as ordens de vocês? O que eles fazem exatamente, além de levar Dina para um lugar qualquer, assim, do nada?

— Você está cheia de perguntas. — Victor sorri para mim. Uma carreta passa em disparada no sentido oposto, cegando-nos com os faróis altos. — Eles sabem do perigo, até certo ponto. Sabem que estão trabalhando para uma organização particular e são proibidos de falar sobre ela, mas nenhum dos nossos recrutas desconhece a discrição e a disciplina. Alguns são ex-militares, e todos foram escolhidos a dedo por mim. Depois de uma verificação completa do passado deles, é claro. — Victor faz uma pausa e acrescenta: — E eles fazem tudo o que pedimos, mas, para não metê-los em encrenca e proteger nossa operação, costumamos só pagar por tarefas simples. Vigilância. Compra de imóveis, veículos. E levar a sra. Gregory para um lugar qualquer, assim, do nada. — Victor sorri para mim de novo. — Como garantimos que eles sigam nossas ordens? O dinheiro é uma maneira formidável de influenciar pessoas. Eles são bem remunerados.

Apoio a cabeça no banco e tento esticar as pernas no chão do carro, já temendo a viagem longa.

— Um dos nossos homens estava no restaurante de Hamburg na noite em que eu encontrei você.

Tão depressa quanto apoiei a cabeça, levanto-a de novo e olho para Victor, em busca de mais explicações.

— A sra. Gregory só me ligou depois que você foi para Los Angeles — esclarece ele. — Eu estava no Brasil em uma missão, ainda procurando meu alvo depois de duas semanas. Fui embora assim que recebi a ligação da sra. Gregory, mas sabia que provavelmente não encontraria você a tempo, então entrei em contato com dois dos nossos homens que estavam em Los Angeles, dei a eles a sua descrição e alertei para que vigiassem o restaurante e a mansão de Hamburg. Eu sabia que você iria para um dos dois lugares.

Eu me lembro do homem atrás do restaurante depois que matei o segurança. O homem que misteriosamente me deixou fugir.

— Eu vi o cara. Fugi pela saída dos fundos e ele estava lá. Pensei que ele fosse um dos homens de Hamburg.

— Ele é — rebate Victor.

Pisco, atordoada.

— Ele e o outro homem foram dois dos meus primeiros recrutas. Los Angeles era a minha prioridade quando tudo isso começou.

— Você sabia que eu iria para lá.

Embora eu não queira tirar conclusões precipitadas e parecer iludida, sei que é verdade. Meu coração começa a bater como um punho quente. Saber a verdade, saber que Victor estava, durante todo aquele tempo, pensando em mim mais do que eu jamais poderia imaginar me deixa feliz e culpada. Culpada porque o acusei de me abandonar.

— Eu esperava que você esquecesse essa história. Mas, no fundo, sabia que você voltaria lá.

Ficamos em silêncio por um instante.

— Ele está bem? — pergunto, sobre o homem nos fundos do restaurante.

Victor assente.

— Está ótimo. Ele tinha sido contratado por Hamburg meses antes. Conhecia a planta do restaurante e sabia que a única saída alternativa da sala de Hamburg no andar de cima era a dos fundos. A propósito, ele quer pedir desculpa.

— Como assim? Ele me ajudou a fugir.

— A ordem que eu dei a ele foi para não deixar de jeito nenhum que você entrasse naquela sala. Foi a peruca platinada. Ele sabia que você tem cabelo castanho-avermelhado e comprido, não curto e louro. Quando ele se deu conta de quem era, Stephens já estava levando você. Ele não podia entrar porque a sala estava sendo vigiada, por isso foi até os fundos do restaurante, torcendo para conseguir entrar por ali de alguma forma, mas havia outros dois homens de guarda. Eles puxaram conversa e o seguraram ali, até que por fim ele os convenceu a deixá-lo vigiar o lugar sozinho. Logo depois, você saiu pela porta dos fundos.

Respiro fundo e apoio a cabeça no banco de novo.

— Bom, diga a ele que não precisa pedir desculpa. Mas por que ele não me disse logo quem era? Ou não me levou até você?

— Ele precisava segurar o Stephens tempo suficiente para você conseguir fugir, e o fato de ele continuar trabalhando para Hamburg ajuda. Ele não sabe o que os dois planejam nem coisa alguma sobre as operações. É só um segurança, nada além disso. Mas está lá dentro, e isso já é valioso para a gente.

Desafivelo meu cinto de segurança e me esgueiro entre os bancos da frente com a bunda empinada (de um jeito bem deselegante para uma dama, admito) para alcançar o banco de trás. Flagro Victor admirando a cena enquanto me espremo para passar, e isso me faz corar.

— Só tenho mais uma pergunta a acrescentar à lista.

— O que seria? — pergunta ele, zombando de mim.

— Por quanto tempo a gente vai ter que viajar assim? — Estico as pernas no banco de trás e me deito. — Sinto muita falta dos jatinhos particulares. Essas viagens longas de carro vão acabar me matando.

Victor ri. Acho isso incrivelmente sexy.

— Você está dormindo com um assassino, fugindo todo dia de homens que querem matar você e acha que vai morrer por falta de conforto. — Ele ri de novo, e isso me faz sorrir.

— É, acho — digo, me sentindo só um pouco ridícula. Não posso negar a realidade, afinal, por mais sem sentido que ela seja.

— Não vai ser por muito mais tempo — responde Victor. — Não podemos chamar atenção até que eu consiga me livrar completamente de Vonnegut. Ele tem contatos em muitas áreas, e transportes luxuosos, confortáveis e secretos estão no topo de sua lista de prioridades, por motivos óbvios. Dou menos na vista viajando de trem do que de jatinho particular.

Satisfeita com a resposta, não digo mais nada sobre o assunto e olho para cima, para o teto escuro do carro.

— Só para constar — digo, mudando de assunto —, eu não estou só dormindo com um assassino. Estou muito envolvida com ele.

— É mesmo? — pergunta Victor, e sei que ele está sorrindo.

— Sim, temo que seja verdade — digo, em tom de brincadeira, como se fosse algo ruim. — E é um envolvimento bem pouco saudável.

— É mesmo? Por que você acha isso?

Suspiro, dramática.

— Ah, sei lá. Talvez porque ele nunca vai conseguir se livrar de mim.

— Pegajosa. Como Amelia — provoca Victor, tentando me irritar.

E ele consegue. Eu me levanto um pouco e dou um soco de leve em seu ombro. Ele se encolhe, fingindo dor, mesmo com um sorriso largo no rosto.

— Longe disso — digo, e volto a me deitar. — Nem ferrando que eu vou fazer tudo o que ele quer, como a Amelia.

Victor ri baixinho.

— Bem, pelo jeito ele vai ter que aguentar você para sempre, então.

— Vai, e para sempre é muito tempo.

Ele faz uma pausa e então diz:

— Bom, só para constar, algo me diz que ele não gostaria que fosse diferente.

Adormeço no banco de trás muito tempo depois, com um sorriso no rosto que pareceu continuar ali pelo resto da noite.

 


CONTINUA