CAPÍTULO QUINZE
Victor
No dia seguinte, chegamos a Nova Orleans, cujas ruas estão lotadas de gente. Milhares de pessoas de branco, usando lenços, bandanas, chapéus e cintos de um vermelho brilhante estão lá para participar do festival anual San Fermin en Nueva Orleans, também conhecido como “corrida de touros”. Passamos pelo lado oposto da cidade, onde as ruas não foram fechadas para carros, desviando de muitas das típicas varandas enfeitadas com peças de ferro batido de estilo europeu e dos pátios, em busca do galpão onde Fredrik nos espera, bem longe das festividades.
Sarai dormiu por três horas, desta vez no banco da frente, com a cabeça encostada na janela do passageiro. Agora ela está sentada, acordada, absorvendo a paisagem e massageando a parte de trás do pescoço com os dedos.
Na noite passada, contei a ela um pouco do motivo de estarmos indo para Nova Orleans. Omiti algumas coisas porque espero encontrar Fredrik antes para saber quais informações ele coletou sobre nosso alvo, André Costa, também conhecido como Tartaruga, o “bode expiatório” meio americano, meio brasileiro do famigerado chefe de uma quadrilha que opera na Venezuela. Procurei Costa por semanas, sobretudo no Rio de Janeiro, onde ele foi visto pela última vez. Mas ele muda de lugar rápido demais, apesar do apelido, e, pela primeira vez em muito tempo, estou tendo dificuldade para acompanhar um alvo.
Entramos no pátio do galpão abandonado e dirijo devagar para a lateral, onde Fredrik está nos esperando. Quando ele vê o carro, um grande portão de metal se ergue e nós entramos, estacionando na penumbra do prédio empoeirado. O lugar deve ter sido alguma espécie de oficina, a julgar pelo fosso para troca de óleo no chão de concreto, o elevador de veículos e outros equipamentos automotivos pesados que ficaram por lá. Há uma parede alta coberta inteiramente de prateleiras, nas quais alguns pneus velhos foram abandonados. Algumas janelas grandes no alto da parede do fundo, cobertas por uma camada espessa de poeira, deixam passar sol suficiente para iluminar o ambiente como a luz de um dia nublado.
Sarai e eu fechamos as portas do carro, que ecoam pelo espaço vazio.
— Caramba, para que esse lugar tão sombrio? — pergunta Sarai, esticando o pescoço e olhando para o teto.
— É bom ver você também — diz Fredrik, aproximando-se. Ele está usando o terno Armani de sempre e sapatos sociais pretos reluzentes, que combinam pouco com o ambiente.
Sarai abre um pequeno sorriso e continua a olhar em volta, cruzando os braços e encolhendo os ombros como se o lugar lhe provocasse calafrios.
Fredrik aciona um interruptor dentro de um quadro de força e, de maneira surpreendente, algumas poucas lâmpadas fluorescentes zumbem e ganham vida perto da parede do fundo, ressuscitadas, tenho certeza, por algum gerador. Fredrik já usou esse galpão. Dois meses atrás, em outro interrogatório. E tenho certeza de que ele também já o aproveitou para assuntos pessoais.
— Que lugar é este? — pergunta Sarai.
A luz revela uma velha cadeira de dentista, no canto mais distante, com alguns itens personalizados, como amarras para os braços e as pernas e grossas correias de couro para segurar a cabeça e o tronco da pessoa.
— É a minha sala de interrogatório — explica Fredrik, com um gesto sutil, como se estivesse apresentando um imóvel para compra. — Bem, por enquanto.
Ele se curva atrás da cadeira de dentista e pega uma maleta preta e fina, coloca-a em uma mesinha de metal manchada de tinta e abre os fechos prateados.
— Estou quase com medo de perguntar o que você faz no interrogatório — diz Sarai, descruzando os braços e olhando ao redor, até que seus olhos finalmente chegam à maleta.
Fredrik me olha de relance.
— Tem certeza de que ela dá conta desse serviço, Faust?
— Ei — interrompe Sarai. — Eu disse quase com medo. Eu dou conta. — A intensidade no rosto dela diz tudo.
Fredrik sorri, puxa um carrinho de aço inox para perto da cadeira e começa a organizar várias ferramentas em uma fileira. Três facas de tamanhos diferentes. Um alicate. Seringas cheias de drogas. E então ele tira seis pequenas ampolas e as coloca perto das ferramentas.
— Ela me deixa um pouco preocupado — observa Fredrik, lançando um olhar na minha direção.
Ele continua a dispor suas ferramentas, com um sorriso sutil no rosto.
— Não tanto quanto você me preocupa — rebate Sarai, para provocá-lo. Ela corre os olhos pelas ferramentas. — Já chamaram você de sádico?
Fredrik olha para mim.
— Você não contou para ela, contou?
— Não sou eu quem deve fazer isso.
— Me contar o quê? — Sarai corre os olhos entre mim e Fredrik.
Fredrik deixa a última seringa na mesa e se aproxima de Sarai. Ela não se move, apesar do olhar sombrio e sedutor dele. Fico pouco à vontade quando Fredrik passa o dedo indicador por seu cabelo castanho solto.
Mas isso também é um teste — ver se ela aguenta a verdade sobre Fredrik —, e estou confiante de que ela vai passar.
Sarai
Os magnéticos olhos azuis de Fredrik provocam um arrepio desconcertante no meu corpo. Seu dedo se afasta do meu cabelo e ele inclina devagar a cabeça, enquanto seus olhos percorrem cada centímetro do meu rosto, como se ele estivesse ponderando qual parte quer saborear primeiro. Engulo em seco e dou um passo para trás. Não por medo dele, mas por medo de não temê-lo como meu instinto diz que eu deveria.
Encaro Victor, movendo só os olhos. Sua expressão é calma e neutra. Se Victor não parece nervoso, claro que não preciso me preocupar com nada. Mas e se ele estiver me testando? E se estiver procurando aquela confiança equivocada que sempre tive nele, aquela confiança que há muito tempo Victor me disse para não ter, porque no fim só devo confiar em mim mesma?
Não... não é isso. É outra coisa que ele está procurando, e não sei bem o que é.
Inclino a cabeça para o lado e mordo a parte interna da bochecha, estreitando os olhos para Fredrik.
— Por que você não me conta de uma vez e deixa de drama?
Um sorriso incrivelmente sexy emerge, e Fredrik se afasta, despreocupado. A luz forte perto da cadeira de dentista forma uma aura estranha, mas adequada, ao redor do seu corpo, fazendo-o parecer um louco fantasiado de Diabo, de pé diante de um fundo apavorante.
— Somos todos homicidas aqui — afirma Fredrik, com leveza, com aquele onipresente sotaque sueco. Ele faz um gesto na direção de Victor. — O assassino — aponta ele. — E você, claro. Acho que você entrou no clube com sucesso, mesmo matando por vingança, diferente de Faust, que mata por dinheiro.
Com um nó pesando no fundo do estômago, olho para Victor outra vez, mas sua expressão firme não muda.
— E você? — pergunto, virando-me para Fredrik. — Por que você mata?
Fredrik ri, baixinho, e sinto a atmosfera sombria da sala se iluminar de repente. Ele não é mais tão intimidador. Olho de Fredrik para Victor de novo, procurando no rosto deles algum tipo de comunicação silenciosa, e acabo encontrando. Fredrik só estava tentando me confundir.
E estou completamente confusa.
— Eu mato, mas só quando preciso — explica Fredrik, e fico surpresa com isso. — Sou o que Faust chama de Especialista. Interrogatório e tortura são minhas especialidades. — Ele gesticula para o equipamento atrás dele. — Isso já ficou óbvio, suponho. Vez ou outra, também tive a oportunidade de bancar o dr. Kevorkian e realizar algumas eutanásias.
Rio e digo:
— Achei que você fosse me dizer que era um assassino em série ou algo assim.
Victor e Fredrik se entreolham de novo, embora só por um instante. Detecto a natureza clandestina dessa troca secreta deles no mesmo momento.
— Não, meu bem — retruca Fredrik, virando de costas para mim, fingindo estar organizando mais uma vez suas horripilantes ferramentas de interrogatório. — Não sinto prazer em matar...
O silêncio cobre o ambiente.
Fredrik parece pouco à vontade agora. Está usando as ferramentas na mesa como uma distração, seus longos dedos acariciando o metal polido com um cuidado gracioso. Quero manter um pé atrás com Fredrik, achar irritante sua personalidade enigmática e achar repulsivo seu currículo, mas, por alguma razão que não consigo entender, de repente sinto... pena dele.
— Precisamos nos preparar — diz Victor, quebrando o silêncio constrangedor da sala.
Fredrik, como se suas emoções fossem controladas por um interruptor, bate palmas e abre um sorriso luminoso, de um sadismo macabro.
— Com certeza! Para ser honesto, cansei de esperar por esse merda. Não que isso seja culpa sua, Faust.
— Talvez eu tenha um pouco de culpa — admite Victor, e tenho a sensação de que isso tem algo a ver comigo. — Mas certas coisas são mais importantes.
Olho para o chão de concreto sujo, escondendo um leve rubor no rosto.
— Tem certeza de que você está pronto para isso? — pergunta Victor.
— Pronto é pouco — rebate Fredrik, e então começa a nos explicar a situação. — André Costa vai ficar na cidade por mais dois meses — afirma ele. — Ele está com uma mulher, uma tia, se não me engano, do outro lado do rio, em algum lugar de Algiers. Meu contato ouviu Costa conversar no Lafitte’s ontem à noite. A menos que estivesse mentindo só para se mostrar para as mulheres, parece que ele conhece a cidade como a palma da mão, é como uma segunda casa para ele. Se não pegarmos o cara esta noite, tenho certeza de que vamos ter outra chance em breve.
Os olhos de Fredrik me evitam.
— Eu vou pegá-lo — digo, só um pouco ofendida pela falta de confiança em mim. Ao mesmo tempo, sei que eu também estaria preocupada com o resultado se estivesse no lugar dele.
Ele continua:
— Costa esteve nesse bar, Lafitte’s, toda noite desde que chegou aqui, por isso acho que também estará lá hoje.
Victor enfia a mão no bolso de trás, tira um pequeno envelope e o coloca na minha mão. Tiro uma foto de dentro dele e olho para o rosto sorridente de André Costa, um sujeito bem jovem, de pele lisa cor de caramelo e nenhum sinal de que já precisa se barbear. Ele tem uma pequena pinta logo acima do lado direito da boca. Seu cabelo é curto e preto, com cachos soltos ao redor da testa e em volta do contorno das orelhas, o que quase lhe faz parecer um jovem César sem a coroa de louros. Está usando uma camiseta preta com alguma coisa escrita em letras brancas, e parece estar sentado em um bar, de costas para o balcão, com um drinque na mão esquerda. Ele é o estereótipo do arroz de festa, com um sorrisão de dentes brancos como pérolas iluminado pelo barato do uísque, e os olhos um pouco embaçados, apenas em parte devido ao flash da câmera.
— Ele é... magrinho — comento.
— Setenta quilos — Victor diz. — Um e setenta e cinco. Vinte e quatro anos. Mas não o subestime. Se ele cruzar com você sozinha e souber que está atrás dele...
— Eu dou conta — afirmo. — Por que ele é o alvo?
Victor começa a balançar a cabeça, e sei que vai se recusar a me dar essa informação, mas o interrompo novamente.
— Você não faz mais parte da Ordem. Não precisa seguir as regras deles. Diga logo o que ele fez.
Victor suspira e vejo seus ombros relaxarem. Ele cede e diz:
— Antes de mais nada, ele não é o alvo, e não tenho nenhuma intenção de matá-lo. Precisamos de Costa para encontrar o alvo, Edgar Velazco, um chefe de quadrilha venezuelano responsável pela morte de 16 cidadãos americanos, britânicos e canadenses no ano passado. Eles foram capturados no Rio de Janeiro e em vários outros destinos turísticos importantes da América do Sul. Há uma recompensa de 3 milhões de dólares pela captura de Velazco, mas é quase impossível encontrá-lo.
— Seria fácil — intervém Fredrik — se ele saísse das favelas da Venezuela. Ele me lembra Bin Laden quando estava entocado nas montanhas, com um grande grupo de terroristas e uma família de cabras como companhia. Lá é fácil demais notar pessoas como nós, claramente estrangeiros.
— Velazco, de certa forma, é como Javier Ruiz — acrescenta Victor.
Ergo o olhar da foto de André Costa ao ouvir o nome de Javier. Nem tinha percebido que estava olhando para a foto o tempo todo.
— Parece que Velazco está um degrau acima da posição que Javier jamais alcançou na escala criminal — comento.
— Sim, ele está — confirma Victor. — As operações de Javier eram pequenas comparadas com as de Velazco. As de Velazco estão espalhadas por seis países, e ele é responsável pelo homicídio de 169 turistas até hoje, inclusive mulheres e crianças.
— E esse é só o número oficial — acrescenta Fredrik. — Não há como saber quantos realmente foram.
— E quem é o cliente? — pergunto, embora não espere que me forneçam esse tipo de informação tão facilmente.
— Anderson Winehardt, um sujeito rico de Boston — conta Victor. — O filho dele é um dos turistas assassinados.
Ainda chocada por ele ter revelado o nome do cliente tão depressa, demoro um momento para organizar minhas perguntas.
Eu me sento em um caixote próximo e deixo as pernas balançando na lateral.
— Por que você me disse o nome dele?
— Se você está neste serviço com a gente, precisa entrar de cabeça — explica Victor.
— Obrigada — digo, ainda incerta. Eu me pergunto se em algum momento Victor vai virar e dizer que só estava mexendo com a minha cabeça, como Fredrik fez antes.
Mas então penso na Ordem, em como ela é antiga e complexa, e me vejo com mais perguntas do que respostas.
— Não entendo. Como você ainda consegue fazer serviços, especialmente um como esse, com a Ordem na sua cola? Será que Vonnegut ou até Niklas não ficariam sabendo de um contrato para matar um cara ainda mais importante do que Javier?
— É possível que eles saibam — diz Victor. — Mas isso não revela que eu seja o contratado para o serviço. Existem 22 organizações particulares como a Ordem só nos Estados Unidos, além de um número desconhecido de agentes independentes como eu. Nem Vonnegut nem Niklas desconfiariam de que eu continuo a trabalhar assim, depois de sair da Ordem e sabendo que há uma recompensa pela minha captura.
— Você se esconde debaixo do nariz deles.
— De certa forma, sim — responde Victor.
— Mas como você arranja clientes? Tipo... Não era Vonnegut quem cuidava de tudo isso quando você trabalhava para a Ordem?
— Era — concorda Victor. — Mas fiz isso minha vida toda. Conheço pessoas. Já me encontrei com clientes que nem Vonnegut viu pessoalmente. É a vantagem de trabalhar em campo. Tenho tantos ou até mais contatos do que o próprio Vonnegut.
Solto um suspiro preocupado e balanço a cabeça.
— Bom, eu acho que ter tantos contatos, todos feitos de alguma forma por intermédio da Ordem, pode ser bastante perigoso. Você não tem medo de que alguém possa dar a pista para Vonnegut ou Niklas?
— Penso nisso todos os dias — responde Victor. — É por isso que preciso escolher meus clientes com cautela, ser muito cuidadoso, testando todos que cruzam o meu caminho. Sarai, você nunca sabe quem vai trair você até ser tarde demais.
Não alongo o assunto e deixo que os dois continuem a me instruir sobre a missão.
Passa das dez da noite e estou vestida como uma socialite rica e vulgar, usando um vestidinho curto marfim e cor-de-rosa com camadas rendadas que terminam 10 centímetros acima dos joelhos. O salto 15 da minha sandália plataforma cor-de-rosa me deixa com a altura de Victor. Meu cabelo comprido está solto sobre os ombros, afastado dos meus seios turbinados por um lindo sutiã de renda cor-de-rosa que aparece através do tecido do vestido. Depois de meia hora me maquiando, completo o look com alguns anéis e braceletes caros e duas borrifadas de perfume, uma na base do pescoço, outra espalhada nos pulsos. Minutos antes de Victor e eu sairmos do galpão, Fredrik me diz que estou fedendo. Não posso discordar. Nunca gostei muito de perfumes, mas acho que é apropriado para esta noite.
Victor para o carro em um pequeno estacionamento de um prédio escolar de tijolos vermelhos em frente ao CC’s Community Coffee House.
— Esquina da Bourbon com a St. Philip — diz ele, apontando para a rua, a fim de que eu possa observar os arredores. — Vou esperar aqui. Lembre, o bar é pequeno, escuro e costuma estar lotado. Pode ser difícil localizá-lo, mas não deixe parecer que você está procurando alguém, para não se arriscar...
— Vou conseguir — interrompo, antes que Victor comece mais um discurso sobre o que devo e o que não devo fazer e o tanto de cuidado que devo tomar. Eu me inclino sobre o banco e lhe dou um beijo suave na boca. — Tenha só um pouco de fé em mim.
Ele abre um sorriso fraco. Por um momento, enquanto Victor me encara, quero subir no colo dele, no banco do motorista, e beijá-lo apaixonadamente. Mas afasto a ideia, sabendo que tenho um trabalho a fazer.
Abro a porta do carro e saio para o breu, fechando-a atrás de mim e me debruçando na janela.
— Eu vou ficar bem — digo enquanto ajeito o pequeno microfone que estou usando, posicionado de maneira estratégica no meu sutiã, bem no meio dos seios. — Só prometa que não vai interferir, a não ser que eu peça diretamente a sua ajuda.
Victor assente, mas isso não me satisfaz.
— Victor? — digo, com tom imperioso.
Ele levanta as mãos.
— Tudo bem, prometo. Não vou interferir.
— Não estou fazendo isso para provar nada para você. Estou fazendo porque eu quero e porque sei que sou capaz. Se eu acabar provando alguma coisa no fim, acho que vai ser só um extra. Mas esse não é o meu objetivo principal.
Preciso que Victor entenda que não estou fazendo isso só para ficar com ele, mas porque é o que quero de verdade para a minha vida.
Ele assente de novo.
— Eu sei.
Eu o deixo no carro e vou para a calçada, permitindo que as luzes fracas dos prédios em volta guiem meus passos pela rua escura. Embora seja tarde, não estou sozinha, pois há dezenas de pessoas andando dos dois lados da rua. Eu me misturo a um grupo na calçada na frente da escola, que está se abanando com caveiras de papelão e ouvindo um guia falando sobre o prédio. Enfim, atravesso a rua e entro no bar minúsculo e lotado da esquina. Como em um passe de mágica, me desfaço da fachada da garota que eu era.
CAPÍTULO DEZESSEIS
Sarai
Assim que entro no bar, sou engolida pela escuridão. O espaço é iluminado apenas por velas espalhadas ao acaso por todo o ambiente: nas mesas, ao longo das paredes e acima da lareira de pedra no meio do estabelecimento. O bar está tão cheio que a maioria das pessoas se esbarra ao ir e vir, e não há um só lugar vazio até onde minha vista alcança. Passo por uma mesa cheia de pessoas conversando animadamente e abro caminho devagar em meio à multidão. Estou bem-vestida demais para este lugar, apesar da pouquíssima roupa. Devo ser uma das únicas garotas mais arrumadas e tentando andar de salto alto, no escuro, por um lugar onde claramente jamais estive. Pareço uma turista que está na cidade para um fim de semana de diversão. Exatamente o que eu queria aparentar. André Costa adora festas. E adora garotas. Mas, ao que tudo indica, ele investe nas que são novas na cidade, e que parecem idiotas.
Vou direto para o balcão e peço uma cerveja Dos Equis, mostrando para o barman jovem e bonito meu documento falso e sorrindo com olhos brilhantes.
O barman olha para mim e para a minha identidade.
— Acho que você já tem idade. — Ele sorri para mim e me devolve a carteira. Eu a guardo na minha bolsinha preta.
— Há quanto tempo está em Nova Orleans? — pergunta ele, tirando a tampa da minha cerveja e deixando a garrafa na minha frente. Ele é sexy, tem cabelo preto curto, arrepiado na frente, e olhos azul-escuros que me fitam de sua carinha redonda de bebê.
Fico vermelha e baixo a cabeça, tomando um gole rápido.
— É tão óbvio assim? — pergunto, fechando os olhos por um momento.
O sorriso dele se alarga, e noto que seu olhar desce do meu rosto para os meus seios. Mas ele não olha demais.
É bastante óbvio para nós dois que sou apenas uma turista, por isso ele nem se dá ao trabalho de responder à minha pergunta.
Estendo uma nota de dez para pagar a bebida, mas ele dispensa o gesto.
— Esta é por minha conta. Aproveite a viagem.
— Obrigada.
Pego a garrafa do balcão no momento em que duas garotas, provavelmente já na quinta cerveja, abrem caminho pelo salão aos empurrões e quase me derrubam. Mal consigo segurar a cerveja, que derrama enquanto tento equilibrá-la.
— Cuidado, porra — digo, mas nenhuma das duas bêbadas me ouve na barulheira do local.
Quando dou as costas para elas e o balcão, começo a examinar o bar, bebericando a cerveja e movendo o quadril bem devagar enquanto ando, como se só estivesse curtindo a música e não procurando alguém. Passo pela lareira de pedra e vou para os fundos, onde o espaço se divide. Há outro balcão à minha direita, com mais algumas mesas e nenhuma porta. O lado esquerdo parece levar a uma espécie de pátio. Vou para a esquerda, mas vejo André Costa sentado a uma mesa em um canto escuro da área sem saída, acompanhado por garotas e mais dois homens, todos bebendo e conversando.
As duas garotas que estão com eles são deslumbrantes, muito mais bonitas do que eu. De início, fico preocupada quanto à minha capacidade de chamar a atenção dele, mas então lembro o que Izel, a irmã maligna de Javier Ruiz, me ensinou muito tempo atrás:
— Você não tem jeito. Uma puta americana sem salvação — disse Izel naquele dia, forçando um pente pelo meu cabelo embaraçado só para me ouvir gemer de dor. — Não sei por que Javier mantém você aqui. Você parece uma virgenzinha idiota, só que é uma piranha.
Ela puxou o pente com mais força, curvando tanto meu pescoço para trás que gritei de dor. Mas eu não disse nada. Tinha medo dela, naquela época, medo do que faria comigo se eu respondesse. Já bastavam as maldades que ela fazia só por me detestar, quando estávamos a sós e eu não tinha a proteção de Javier.
— Você precisa estar bonita perto do meu irmão. Precisa fazer os homens sonharem em tocar você. Precisa chamar a atenção deles mais do que qualquer outra garota. — Ela puxou meu cabelo de novo. Mordi o lábio, lágrimas escorrendo pelo rosto. — Não sei por que estou ajudando você. Deveria deixar você se ferrar, para Javier se livrar de você. Dar você de comer para os cachorros.
— Por que você me odeia tanto? — perguntei, enfim.
Senti uma dor ofuscante na lateral do rosto e ouvi o plástico grosso e frio do pente batendo na minha bochecha.
— Cala a boca! Puta idiota! Eu odeio você porque eu posso! Agora me escute. Quando você entrar lá hoje à noite com meu irmão, é melhor fazer tudo o que eu ensinei. Sofri seis meses para ensinar você a seduzir um homem! Seis meses da minha vida desperdiçados, caralho. É melhor fazer certo. Se você fizer merda e o Javier me castigar, eu corto a sua garganta enquanto estiver dormindo e boto a culpa em uma das garotas. Comprendes?!
Assenti, nervosa.
— Agora, o que é mais importante das coisas que eu falei? — Ela sacudiu meus ombros por trás. — Responde!
— Contato visual — respondi.
— E qual é o jeito certo?
— Olhar de relance — respondi mais depressa. — Tímida, e não desesperada.
— Sí. Precisa fazer com que os homens achem que você é carne fresca, que ainda não passou na mão de mais de cem. Precisa parecer tímida e inexperiente, não uma piranha tarimbada querendo se divertir. Só as velhas fazem isso. E por quanto tempo você dá atenção para ele?
— Dois segundos.
Izel me virou para que eu a encarasse, segurando meus ombros com firmeza, suas unhas vermelhas compridas afundando na minha pele.
— Sí, Sarai. Dois segundos e você desvia o olhar. Quanto mais você olhar, mais desesperada parece. Faça o homem ir até você.
Por mais que eu odiasse Izel, preciso admitir que aprendi muito com ela. Naquela época, contudo, eu estava aprendendo a seduzir ricaços só para fazer com que eles me desejassem. Javier jamais me venderia ou deixaria que outro homem me tocasse. Eu era o troféu dele, a garota que representava todas as garotas vendidas por Javier. Eu era aquela que os homens viam primeiro, a mais bonita e mais enigmática. Era a garota-propaganda, usada para exibir o negócio de Javier. E funcionava. Os homens não podiam me ter, mas, depois de passar dez minutos em uma sala comigo enquanto eu aplicava todas as lições de Izel, eles queriam a coisa mais próxima daquilo. E comprar alguma garota da mesma “ninhada” na qual fui “criada” era, na cabeça deles, o único jeito de conseguir.
Mas esta noite, com André Costa, só metade das lições de Izel serão postas em prática. Ele não está aqui procurando uma garota submissa para levar para casa e pôr na coleira. André é apenas um jovem criminoso cheio de tesão, por isso a parte das lições que vou aplicar hoje só vai até o contato visual.
Acomodo minha bolsa debaixo do braço e encosto na parede, à vista de André. Deixo que cinco minutos se passem, tomando minha cerveja e fingindo curtir a música, que sai de um piano, antes de fazer contato visual. Sei que ele já me olhou pelo menos duas vezes durante esses cinco minutos. Senti seus olhos em mim. Mas a garota de cabelo preto sentada à esquerda dele conseguiu manter a maior parte de suas atenções.
Um. Abro um sorriso suave para ele. Dois. Desvio o olhar e tomo mais um gole de cerveja. E espero.
Alguns minutos depois, André Costa está à minha frente, se apresentando.
— Meu nome é André. E você... — ele olha para os lados — está sozinha, presumo?
Fico vermelha como uma boba e tomo mais um gole.
— Estou — digo, abaixando a cerveja e segurando o pulso com a outra mão. — Estou sozinha, sim.
— E a sozinha não tem nome?
Reviro os olhos para a tentativa dele de fazer graça, mas não deixo que o sorriso falso suma do meu rosto.
— Sim — respondo, quase dando uma risadinha e encolhendo os ombros até as bochechas. — Meu nome é Izabel.
André sorri e me olha de lado. Ele estende a mão.
— Bem, você deveria se juntar a nós, Izabel. Tem muito espaço à minha mesa.
Meus olhos, nervosos, se voltam para o bar.
— E-eu não sei — digo, fingindo estar relutante. — Não conheço você.
— Claro que não — concorda André, me puxando pela mão mesmo assim. — Mas eu sou legal. Juro. Venha. Você está em Nova Orleans. Precisa se divertir enquanto está aqui. Ninguém vai incomodar você.
André me puxa com delicadeza para o lado dele e eu sigo sem protestar até a mesa, onde sou cumprimentada pelos dois caras e só uma das garotas. A outra, a do cabelo preto, emburrada, não parece tão receptiva.
— Abra um espaço aí, cara — diz André para o homem louro, à direita. — Deixe a moça se sentar.
O cara se levanta e puxa a cadeira para mim. André gesticula com um enorme sorriso no rosto de menino bronzeado, e eu me sento. Ele me acompanha.
— Pegue bebidas para a gente — ordena André para o cara louro, mas olha para mim e pergunta: — O que você vai tomar? Mais uma Dos Equis?
— Claro, obrigada.
O cara louro desaparece na multidão.
— Ah, obrigada por me perguntar — diz a garota de cabelo preto, com desdém.
André ri.
— Meu anjo, você nem terminou a que está tomando. Faça o favor de sossegar, porra. Tudo na paz. — Ele estende a mão e dá uns tapinhas no joelho dela, e até eu acho aquilo arrogante.
Sorrio discretamente para ela, mostrando que o homem é meu. Na mesma hora, vejo seu olhar territorialista se transformar em uma completa fúria. Ela me fuzila com os olhos do outro lado da mesa, enquanto sua amiga bêbada continua a acariciar a tatuagem no pulso do outro cara sentado ao lado dela. Essa aí nem se importa com a minha presença. O cara no qual está interessada parece ligado somente nela.
— De onde você é? — pergunta André.
Sorrio e enrolo as pontas do cabelo no dedo.
— Sou do Texas. Estou aqui de férias.
A garota de cabelo preto ri com desprezo e diz:
— Isso explica o sotaque caipira.
Eu nem havia notado que estava falando com sotaque, mas, agora que ela comentou isso, não sei se devo ficar orgulhosa por desempenhar o papel tão bem ou assustada por ter feito isso com tanta facilidade, sem nem perceber.
Dou outro sorrisinho para ela.
— E você deve ser da periferia, para ser tão barraqueira.
— Calma, meninas — diz André, erguendo as mãos, como se estivesse apartando um confronto físico iminente.
O cara louro volta com quatro cervejas entre os dedos. Ele as coloca diante de nós.
— Bom, você está em boas mãos esta noite — comenta André, tomando um gole de cerveja e deixando a garrafa na mesa. — Posso levar você para conhecer a cidade mais tarde, se quiser.
A garota de cabelo preto bufa. Estreitando os olhos, ela encara André.
— Espera aí, eu achei que a gente ia...
— Sossega, porra — interrompe André, balançando a cabeça. — Eu falei para todo mundo ir, Ashley, não só eu e ela. — Ele olha para mim e diz: — Você não se importa, né?
Não sei ao certo o que ele está perguntando, mas estou me lixando; quanto antes eu me livrar dessa garota, melhor.
— Não, tudo bem. Vou adorar a companhia de vocês.
Ashley se levanta de supetão, empurrando a cadeira contra a parede e pegando a bolsa na mesa.
— A gente precisa ir para casa — avisa ela para a amiga de cabelo claro. — Vamos.
Bem, isso foi fácil demais. Uma parte de mim queria continuar nossa guerrinha particular. Eu estava me divertindo muito.
A garota de cabelo claro cambaleia um pouco ao se levantar da cadeira e pega Ashley pelo braço.
— Não quero ir para casa ainda — reclama ela, segurando a mão do cara tatuado. — Vamos ficar mais um pouquinho.
— Não, eu vou embora — insiste Ashley, arrastando a amiga.
— Ah, para, gata! — intervém André, levantando e estendendo as mãos com as palmas para cima. — Não faz isso.
— Vá se ferrar, Tartaruga! — resmunga ela, lançando um olhar furioso na minha direção. — Estou de saco cheio das suas palhaçadas. Você faz isso toda vez que vem aqui. Apague meu telefone.
André fica boquiaberto, mas não parece muito magoado e se esforça ao máximo para não sorrir. Ele passa a mão pelo cabelo cacheado e escuro. Noto uma tatuagem na parte de baixo do braço dele, perto da axila.
Ashley e a amiga se afastam da mesa, discutindo, e me deixam sozinha com André e seus colegas. De repente, me sinto exposta por ser a única mulher à mesa.
— Espero que isso não tenha sido culpa minha — digo, tímida.
André revira os olhos e se reclina na cadeira, esticando as pernas sob a mesa.
— Não. Ela é assim mesmo. Ainda bem que não é minha namorada. — Ele levanta a mão e gira o dedo indicador perto da cabeça. — Se é que você me entende.
Rio e tomo mais um gole de cerveja.
— É, ela parece mesmo um pouco doidinha. — Na verdade, acho que ele é um babaca. Ashley podia ser uma vaca, mas algo me diz que ela tem todo o direito de agir assim. Está claro que os dois se conhecem há um tempo e que ele a humilha de alguma forma toda vez que se encontram. A única culpa que ela tem é a de tolerar as merdas que André faz.
— Então você está aqui de férias — afirma André, apoiando os cotovelos na mesa. — Com quem você veio?
Sorrio com timidez e apoio as mãos na bolsa no meu colo.
— É sério — insiste ele, chegando mais perto. — Ainda estou tentando entender por que você está sozinha na balada.
Finjo tentar esconder o rubor do meu rosto.
— Bom, eu vim com a minha amiga Dahlia. Mas ela estava se sentindo mal e não quis sair. Ficou no hotel.
— Ah. — Ele assente. — Onde você está hospedada?
— No Sheraton. Lá na rua Canal — respondo.
Ele tem que achar que sou ingênua, e revelar informações pessoais tão facilmente deve ajudá-lo a formar essa opinião sobre mim.
— É longe para vir a pé. Vir andando lá da rua Canal.
— Não, nem é tão longe. Mas confesso que trapaceei. Andei um pedaço do caminho e depois peguei uma carona em um daqueles trecos que parecem triciclos.
André joga a cabeça um pouco para trás e ri.
— Trecos que parecem triciclos. Que linda. — Ele aponta para mim e olha para o cara com a tatuagem no pulso. — Ela é linda.
O cara me cumprimenta com um aceno discreto e volta a olhar para o celular, passando os dedos na tela.
— Esse é David — diz André, apresentando o cara da tatuagem. — Ele tem um relacionamento doentio com a tecnologia. Acho que até esse celular transa mais do que ele.
Abafo uma risadinha.
— Cala a boca, Tartaruga — fala David, com tranquilidade, sem levantar a cabeça.
André sorri para mim.
Ele aponta para o cara louro que trouxe as cervejas.
— Esse é Joseph. Ainda não o conheço o suficiente para sacanear. Mas me dê um ou dois dias e eu vou ter alguma ideia.
— Que nome é esse? Tartaruga? — pergunto, dando risada.
André parece desanimar um pouco.
— É só um apelido. O meu querido pai me deu quando eu tinha 6 anos.
— Ah...
Ele sorri.
— Não se preocupe. Ele ainda está vivo e bem. Só é um babaca.
David, o cara da tatuagem, ergue os olhos do celular por um instante. Tenho uma sensação estranha, como se ele não achasse correto André chamar o próprio pai de babaca.
André o ignora.
Não perca tempo demais tagarelando com ele, penso comigo mesma, sabendo que Victor está me esperando lá fora, não muito longe. Ele está ouvindo tudo o que nós falamos (por cima da música e do vozerio, espero), mas não consigo ouvi-lo resmungando sobre o tempo que estou perdendo. Apenas tenho certeza de que é isso que ele está fazendo.
— Ei, hum, você quer sair para dar uma volta? — pergunto. É arriscado demonstrar que já confio o suficiente nele para sairmos juntos em tão pouco tempo. Mas preciso fazer a situação progredir, e não há como saber quanto tempo vamos ficar aqui, curtindo e bebendo, até André se sentir confiante o bastante para achar que irei embora com ele.
Ele parece um pouco surpreso, mas logo aceita minha repentina mudança de personalidade. Levantando da mesa, ele ajeita a camiseta regata preta por cima do jeans.
— Com certeza — diz ele, pegando a cerveja com uma das mãos e estendendo a outra para mim. — Vamos.
Ele encosta o gargalo nos lábios e toma o resto em um gole só, deixando a garrafa vazia na mesa. Enquanto André se despede dos outros dois caras, sinto de repente sua mão livre descer pelas minhas costas. E, antes de chegarmos à porta lateral que dá para o pátio, percebo quão depressa a personalidade dele também mudou. Do nada, ele passou de cavalheiro respeitável a babaca de mão-boba, convencido de que vai se dar bem esta noite e de que eu sou a garota que vai abrir as pernas para ele.
— Cacete, você é muito gostosa — diz ele, e me encolho toda por dentro. — Tem certeza de que o seu namorado não veio? Não estou a fim de levar porrada hoje.
Olho para ele ao meu lado, andando tão perto de mim que seu quadril está pressionando o meu, e ligo meu modo sedução, deixando um sorriso sugestivo aflorar nos cantos dos lábios.
— Sem namorado. Juro.
Ele tira a mão das minhas costas e me puxa para perto, e sinto os dedos dele agarrando minha cintura.
— Ei — digo, afastando suas mãos com cuidado. — Vamos com calma. Não sou uma dessas.
Ele não leva minha recusa a sério e me puxa para mais perto, mas eu também não estava falando muito sério.
— Tudo bem, tudo bem — concorda ele, com ar resignado e sorriso ainda intacto. — Eu vou me comportar.
Começamos a andar na direção oposta de onde Victor estacionou o carro. Paro na calçada, olhando para os dois lados e fingindo refletir sobre qual direção tomar.
— Vem, eu mostro a cidade para você — sugere André, tentando me puxar com ele.
— Vamos para lá — digo, apontando na direção da escola. — Eu ainda não conheço aquela rua.
— A gente dá a volta. — Ele me segura com firmeza pela cintura de novo. Odeio ser tocada assim por ele. Assim ou de qualquer outro jeito. — Tem mais coisas legais para lá.
Engulo em seco e então cedo. Receio que, se eu continuar a empurrá-lo na direção que quero, ele possa começar a desconfiar.
Abrindo meu sorriso mais doce e tímido, vou com ele na direção oposta.
Caminhamos pela calçada de pedra e cruzamos com muitos turistas indo para todas as direções. Ouço o barulho de cascos trotando na rua em frente, e, quando viramos a esquina, uma carruagem puxada por mulas passa bem devagar. Olho para o nome da rua que estamos cruzando e digo em voz alta:
— A rua Bourbon tem de tudo mesmo. — Paro em frente a um prédio. — Maison Bourbon. Eu nunca ouvi um grupo de jazz de verdade. Vamos dar uma conferida.
André pega minha mão e me puxa de leve pela calçada, passando pelo prédio.
— Sinto muito, mas jazz não é a minha praia — comenta ele.
Nem a minha, na verdade, mas queria que Victor soubesse onde estou.
Minutos mais tarde, depois de virar em duas ruas mais escuras, o número de pedestres começa a diminuir. Continuo dizendo em voz alta o nome das ruas ou o nome de algum prédio, fazendo comentários ocasionais sobre onde estamos e pedindo explicações a André, exagerando no papel de turista sem noção. Não sei aonde ele está me levando, mas sei bem quais são suas intenções.
— Aonde a gente está indo?
— Não falta muito. — Ele aponta para a frente. — Tem outro bar indo por ali. Preciso falar rapidinho com uns amigos meus por lá.
Bom, não temos tempo para isso...
Mesmo se ele estiver dizendo a verdade, preciso assumir o controle da situação agora, enquanto estamos a sós e antes de voltarmos a um ambiente lotado, onde vai ser mais difícil atraí-lo para onde eu quero.
Eu me viro na calçada e paro diante de André, com um sorriso largo nos lábios e timidez no olhar.
— Espere aí — digo, segurando o pulso dele. Olho para o lado com ar envergonhado. — Por que a gente não... — Olho para o beco atrás dele, deixando que a nova ideia se desenrole na minha cabeça. Eu me aproximo dele, passando os dedos por seu cinto, que está mais baixo que o normal em sua cintura. — Por que a gente não vai para lá por uns minutos? — Sorrio de maneira sugestiva, enfiando os dedos indicador e médio por dentro do cinto.
André arregala os olhos e abre um sorriso, surpreso com a minha avidez. Mas então o sorriso se transforma em um esgar de tesão. Ele põe as mãos em meu quadril e se inclina para meu pescoço, inalando meu cheiro, com um rugido grave ecoando do peito.
— O que você tem em mente? — pergunta ele, beijando o ponto logo abaixo do lóbulo da minha orelha.
Dou um passo para o lado, tentando fazer parecer que quero que ele me siga, mas o que quero mesmo é afastar sua boca do meu corpo. Sorrio de volta para ele e digo:
— Você vai ver.
Então aceno para ele me seguir até o beco. Ando um pedaço do caminho na escuridão, passando por uma pequena fileira de latas de lixo, e paro logo depois. André está ao meu lado um segundo depois, com a mão direita apoiada na parede de pedra acima da minha cabeça.
Não perco tempo e começo a abrir o cinto dele, mexendo na fivela prateada com dedos desajeitados.
Caralho. Tomara que Victor tenha me ouvido pelo microfone, dando pistas da minha localização.
— Porra, gata — comenta André, olhando para mim com um sorriso excitado. — Você está a fim de trepar bem aqui no beco? Não esperava por isso, mas, pô, não vou reclamar.
Eu me afasto da parede de pedra e o empurro de costas contra ela.
— Ok, ok — diz ele, rindo baixinho. — Você é quem manda. Faz o que quiser comigo.
Eu me aproximo dele, reduzindo os 15 centímetros de espaço entre nós.
— Pode deixar — sussurro, e então acerto uma joelhada bem no meio das pernas dele.
André geme e se curva. Enfio os dedos no cabelo dele e puxo para cima, forçando-o a se endireitar. Meu joelho atinge seu rosto três vezes antes que ele caia para trás contra a parede, desorientado e com o nariz sangrando.
— Sua filha da puta! — xinga André, cuspindo as palavras.
Meu punho vai na direção do rosto dele, atingindo-o com tanta força que sua cabeça é lançada para trás e bate na parede, fazendo-o desmaiar.
Seu corpo cai desacordado na calçada, derrubando uma lata de lixo que está ao lado. O barulho reverbera pelo beco estreito, ecoando nas paredes dos prédios dos dois lados.
— Victor! — sibilo para o microfone entre os seios. — Espero que esteja me ouvindo. O André está apagado, mas não sei por quanto tempo. Venha depressa! — Dou detalhes da minha localização pelo microfone.
Passam-se três minutos que parecem trinta até o carro de Victor parar na entrada do beco, cantando os pneus na rua. Ele sai, deixa a porta aberta e corre na nossa direção com um passo raivoso e acelerado que me causa um calafrio no estômago.
— Está tudo sob controle — digo, e olho para André a meus pés.
André já está começando a se mexer quando Victor o puxa pelos antebraços e o põe de pé.
— Era para você levá-lo até o estacionamento — diz Victor com rispidez.
André começa a resistir enquanto Victor o arrasta para o carro.
— Falei que estava tudo sob controle. Como você vê, não fui eu que fui parar no chão.
— O que está acontecendo, porra? — grita André, tentando se desvencilhar de Victor.
Victor o joga no banco de trás, de bruços. Então apoia o joelho nas costas de André enquanto prende as mãos dele nas costas com uma tira dentada de plástico.
— Entre — ordena Victor.
Obedeço, correndo para o lado do passageiro e fechando a porta.
— Quem é você, caralho?! O que está acontecendo? Responde!
A voz de André soa estridente atrás de mim, preenchendo o pequeno espaço do carro.
Victor se vira no banco do motorista, se inclina para trás e dá um soco tão forte em André que o nocauteia.
— Obrigada — digo, enquanto Victor se senta e engata o carro. — Eu já estava ficando surda.
— Não bati nele por causa dos gritos — retruca Victor, sem olhar para mim.
Eu o observo manobrando com cuidado o carro pelas ruas estreitas cheias de veículos estacionados dos dois lados.
— Bati porque ele tocou em você — explica ele.
Eu me viro para a janela, escondendo o sorriso.
CAPÍTULO DEZESSETE
Victor
Fredrik está nos esperando à porta da garagem quando voltamos para o galpão. Entro no prédio, desligo o motor e Fredrik fecha o portão de aço.
Puxo o corpo inconsciente de André do banco de trás e o arrasto pelo chão de concreto, segurando as costas da camisa dele com firmeza.
Sarai me segue.
— Presumo que tenha havido um problema — sugere Fredrik, provavelmente percebendo a animosidade entre mim e Sarai, enquanto eu o ajudo a acomodar o rapaz na cadeira de dentista. Ele começa a amarrar André, primeiro pelo tórax.
— Não, problema nenhum — intervém Sarai, com um pouco de raiva na voz, parando atrás de mim. — Só não aconteceu do jeito que foi planejado.
Eu a encaro.
— Entrar e sair. Era para ser simples assim, Sarai. Você podia ter feito o cara mudar de ideia e seguir você até a escola.
Sarai está ficando mais irritada. A raiva está nítida em seu rosto quando ela me olha de lado. Mas não importa. Ela precisa aprender a seguir minhas instruções.
Eu a seguro pelo pulso, pegando-a de surpresa, e a puxo com violência para perto de mim.
— Você tem ideia do que esse merda poderia ter feito com você?
Puxo Sarai mais para perto, apertando seu pulso. Ela arregala os olhos de início, mas então os estreita com severidade, e minúsculas rugas de ódio sulcam o alto do seu nariz.
— Você não confia em mim para nada, Victor — diz ela, em um tom gélido, forçando as palavras por entre os dentes cerrados. Ela tenta desvencilhar a mão, mas eu a aperto mais.
— Isso não tem nada a ver com confiança e sim com você seguir as minhas ordens, aprender a seguir instruções. Tem tudo a ver com disciplina, Sarai. — Solto o pulso dela como se o jogasse no chão. Respiro fundo, tentando me recompor. Nem me lembro de quando foi a última vez que senti tanta raiva. — Eu sei que você quer fazer as coisas sozinha. Sei que é capaz, mas quanto mais você bate de frente comigo em relação a isso...
— Mais parecida com o seu irmão eu fico — interrompe ela, em um tom acusador. — Certo?
Fredrik aperta a última tira em volta dos tornozelos de André.
— Talvez fosse melhor vocês dois discutirem na outra sala — sugere ele, acenando para uma porta de madeira na parede oposta, abaixo de uma placa de metal desbotado onde se lê ESCRITÓRIO. — Eu cuido do resto.
Sarai e eu só nos entreolhamos, sem ter mais nada a dizer, então ela baixa os braços e vai para o escritório. Eu a sigo e fecho a porta da sala, que tem um tamanho razoável. Uma lanterna de LED brilha em uma mesa de madeira encostada na parede. Há uma única cadeira dobrável de metal ao lado dela, afastada da mesa como se Fredrik já tivesse se sentado nela antes de chegarmos. A sala está empoeirada e cheira a mofo e algo químico que não sei identificar. Há uma única janela na parede do outro lado, coberta de poeira, contra a qual foi empurrado um arquivo alto de metal.
— Por que você fica me comparando com Niklas? — pergunta Sarai, desta vez sem aquele tom irritado. Ela parece mais magoada do que furiosa. Cruza os braços, segurando os bíceps com seus dedos delicados.
— Sarai, eu... — Suspiro e me sento na cadeira ao lado da escrivaninha, com as pernas encolhidas. Jogo a cabeça um pouco para trás e volto a olhar para ela, de pé no meio da sala.
Começo a concluir o que eu ia dizer, mas ela se aproxima e fala antes que eu consiga.
— Desculpe — diz ela, quase em um suspiro. — Não estou tentando ir contra você, Victor. Não tenho nenhum plano secreto de fazer as coisas do meu jeito só para provar que consigo. Desculpe. Eu estava improvisando, fazendo o que achava que seria o certo naquele momento. Só isso.
Ela para a um braço de distância de mim. Olho para ela, reparo no jeito como seu cabelo castanho-avermelhado envolve os ombros nus e macios. Como ela fica alta com aqueles saltos. A curvatura esguia do seu corpo, que não consigo tirar da cabeça. Ela inclina a cabeça para um lado. Incapaz de resistir, eu a puxo para o meu colo, apoiando-a em uma perna. Posiciono minha mão esquerda atrás de sua cintura, apoiando a outra em sua coxa nua. Ela me olha de lado, depois roça os dedos na lateral do meu rosto.
— Victor — chama Sarai, com voz suave —, eu não sou Niklas. Nunca vou ser. Olha o que ele fez. Eu jamais trairia você.
— A questão não é essa — respondo, passando a mão na parte inferior de suas costas. — Não quero comparar você com meu irmão, mas as semelhanças, sua impetuosidade, seu temperamento, sua incapacidade de seguir as minhas ordens...
— Suas ordens? — pergunta ela, franzindo o cenho. Sarai balança a cabeça devagar, depois se vira para me encarar melhor. Seus traços são suaves, seu olhar não parece nada ofendido, mas ao mesmo tempo sinto que estou prestes a ser repreendido. — A gente precisa deixar uma coisa bem clara, antes de continuar.
Inclino a cabeça para um lado, olhando em seus olhos escuros. Nunca estive tão cativado por uma mulher. Jamais. Não desse jeito. Estou acostumado a conseguir as coisas sempre do meu jeito, a ser quem está no comando. Nunca consegui olhar para uma mulher e ceder aos desejos dela. Não consegui fazer isso com Samantha, que sei que já me amou muito. Eu a deixei. Não pude dar o que ela queria. Mas quando olho para Sarai, quando percebo o modo como ela me encara com aquela expressão suave, porém implacável, em seus lindos olhos verdes, sei que não importa o que ela me diga nem quanto ela me desafie: não vou conseguir me afastar dela.
— Eu não sou um dos seus soldados, Victor. Nem um dos seus informantes, contatos ou associados. Sim, eu quero que você me ensine coisas. Quero fazer o que for preciso para ficar com você e fazer parte da sua vida. Mas você não pode mudar o que sou. E não pode me tratar como se eu fosse um dos seus caras. — Ela inclina a cabeça para o outro lado. — Quer dizer, claro que você pode, se quiser, mas eu não vou mudar. Entendeu?
O que é que está acontecendo comigo? Em vez de me desanimar e me fazer tirar Sarai do colo, essa atitude desafiadora só me faz desejá-la mais.
Suspiro.
— Não quero que mude, mas vai precisar aprender a me ouvir nesse tipo de situação.
— Era só um cara — argumenta ela. — Você sabe tão bem quanto eu que eu conseguiria derrubá-lo. E consegui. Ele é só um pouco mais pesado do que eu.
Balanço a cabeça.
— Não, Sarai, você não entende. Você não imagina quantas pessoas, principalmente turistas, mulheres e adolescentes, esse André Costa ajudou a sequestrar na América do Sul.
— Mas a gente não está na América do Sul.
— Nem é preciso. Pessoas são sequestradas todo santo dia nos Estados Unidos e levadas para outros países, escravizadas, assassinadas. A lista é interminável. Você, mais do que ninguém, deveria saber como é fácil ser forçada a levar uma vida de escravidão e como é difícil ser libertada. A maioria nunca é.
— Mas eu sabia que você estava me ouvindo pelo microfone — insiste Sarai, e sinto que ela está começando a perder a autoconfiança. — Fui esperta e falei em voz alta o nome de cada rua pela qual a gente passou.
— Eu sei — digo baixinho, esfregando a mão na coxa dela. — Mas e se eu não tivesse ouvido as pistas que você deu? E se André levasse você até um carro ou a um prédio como este e os homens que estavam com ele no bar estivessem lá, esperando para prender você?
— A gente não pode viver pensando no “e se”, Victor.
— A gente já vive pensando o tempo todo no “e se”. Não vivemos com medo, mas, sim, preciso levar todas as possibilidades sempre em conta.
Sarai abre a boca e desvia o olhar.
— Seu pedido foi para que eu ajudasse e treinasse você — continuo, erguendo o queixo dela com o dedo. — Você disse que faria qualquer coisa. Estou pedindo que confie na minha experiência de uma vida inteira e não me desafie mais.
Ela assente.
— Tudo bem, mas não quero que você fique bravo comigo se eu não conseguir me controlar.
Um sorriso aquece meus olhos.
Eu sei que nunca vou conseguir fazer Sarai mudar, mas é disso que gosto nela. Não quero que ela mude. Só quero que ela entenda que sou eu quem sabe o que está fazendo. Não vou lhe dizer isso, mas eu jamais a mandaria para uma missão que eu soubesse que ela não seria capaz de realizar. Atrair André até o carro era uma tarefa simples. Eu sabia que ela conseguiria. Sabia que ela daria conta do cara se os dois estivessem sozinhos, senão nunca a teria mandado para lá. Deixá-la fazer essa parte não era minha maneira de confirmar se ela era capaz ou de permitir a ela “praticar com alvos fáceis”. Era minha maneira de verificar quanto ela era capaz de obedecer a ordens.
Mas Sarai tem uma mente independente. Por mais que me irrite o fato de ela não me ouvir tanto quanto eu gostaria, ao mesmo tempo é isso que me deixa louco por ela.
Sinto seus lábios tocando os meus. O cheiro de sua pele me inebria por um instante. Inspiro seu hálito para o fundo dos pulmões e seguro seu rosto com firmeza enquanto ela se vira, montando no meu colo.
— Você ainda vai me matar — sussurro em seus lábios, antes de deslizar a língua para dentro de sua boca.
O grito apavorante de André ecoa pelo galpão.
Sarai afasta os lábios dos meus e endireita as costas.
— Que droga Fredrik está fazendo com ele?
Seguro sua cintura.
— Você não vai querer saber.
Ela balança a cabeça com determinação e desce do meu colo.
— Na verdade quero, sim.
CAPÍTULO DEZOITO
Sarai
— Filho da puta! Eu não sei de nada! AHHH!
Abro a porta do escritório e ouço os gritos de André encherem o ambiente. Seus punhos estão presos aos braços da cadeira por duas correias de couro tão apertadas que as mãos mudam de cor quando ele tenta se soltar. Sangue escuro brilha em seus lábios, escorrendo pelo queixo e pelo pescoço.
Fredrik segura um alicate ensanguentado na mão enluvada de látex branco.
— Sua puta do caralho — ruge André para mim quando apareço sob a luz fraca. Seus olhos enfurecidos correm por nós três. Victor está atrás de mim, agora. — Meu irmão vai achar vocês antes que saiam desta cidade. E vai matar vocês, caralho!
Fredrik solta algo do alicate em uma bandeja prateada na mesa ao lado. O objeto tilinta na superfície. Sempre muito calmo, muito sofisticado, e a imagem dele inclinado sobre um homem ensanguentado que é exatamente seu oposto me parece assustadora. É estranho que essas diferenças gritantes possam conviver no mesmo cômodo sem que se anulem.
— Quem é o seu irmão? — pergunta Fredrik, tranquilo.
— Vai se foder! — Junto com as palavras, André cospe sangue.
Calmo, Fredrik segura o queixo de André, encaixando os dedos com firmeza nas bochechas enquanto o látex branco fica vermelho. André luta para se desvencilhar, se agitando de um lado para outro, mas mal consegue mexer a cabeça, com a correia de couro tão apertada ao redor da testa.
— Não vou contar porra nenhuma! — grita André, engasgando com o sangue que escorre pela garganta. — Vai fundo! Arranque todos! Nada que um implante não dê jeito! — provoca ele. O modo como seu corpo se retorce e como ele afunda os dedos nas palmas das mãos, contudo, contam uma história muito diferente.
Fredrik saca o alicate e o prende em um dos dentes incisivos de André, que engasga e cospe um pouco mais. Percebo que está tentando falar, mas suas palavras são indecifráveis. Ele grita em meio a gemidos e grunhidos, abrindo e fechando os olhos pela dor e pela exaustão mental.
— Onde está Edgar Velazco? — pergunta Fredrik, ainda com o alicate segurando o dente de André.
André gargareja algo inaudível, mas que parece muito com “Vai se foder!”. Os ossos da mão de Fredrik se tensionam quando ele começa a puxar. André grita de dor, agitando os punhos nas amarras, seu corpo todo enrijecendo e se contorcendo na cadeira. O dente sai depois de alguns movimentos do alicate para a frente e para trás que me provocam um embrulho no estômago, e os estalos do osso me fazem querer tapar os ouvidos até que acabe.
Estou enojada pela ação, mas indiferente ao propósito.
Um segundo depois, ouço mais um clink quando o segundo dente é jogado na bandeja de metal.
André ainda consegue repetir “Vai se foder” algumas vezes, mas as palavras saem entre lágrimas de raiva e ameaças de vingança.
— O nome do irmão dele é David — anuncio, dando um passo à frente. — E eu vi a cara dele.
Fredrik me olha, ainda com o alicate ensanguentado na mão.
— Como você sabe? — questiona Victor ao meu lado.
André está em silêncio, uma prova involuntária da veracidade das minhas palavras. Era só um palpite, depois de observar o olhar de David quando André chamou o pai de babaca lá no bar. Eu mesma não tinha tanta certeza até agora.
— Ele estava com André no bar.
Victor passa por mim e atravessa o galpão até o carro. O som da porta se fechando ecoa pelo ambiente, e então ele volta carregando sua maleta.
Fredrik baixa a mão que segura o alicate enquanto André enfim tenta nos desmentir, embora saiba que é tarde demais para isso.
— Meu irmão nem está em Nova Orleans! — grita ele, agora com menos controle sobre a pronúncia das palavras. Parece estar tendo dificuldade para a língua não escorregar pelo buraco deixado pelos dois dentes da frente. — Ele nem está no país! — André tenta rir, mas outro rio de sangue escorre para dentro da garganta, e ele acaba se engasgando.
— Ah, mas você acabou de dizer — começa Fredrik — que seu irmão vai nos achar e nos matar antes que a gente saia da cidade. Como isso seria possível, se ele não estivesse aqui? — Ouço o sorriso diabólico na voz de Fredrik, mas ele o mantém bem escondido no rosto.
Os lábios ensanguentados de André se fecham.
Victor abre a maleta em cima de um caixote próximo e tira uma série de fotografias. Eu me aproximo e ele as entrega para mim.
Já sabendo o que ele quer que eu faça, começo a folheá-las enquanto ele anda até o outro lado de André, diante de Fredrik.
Ele junta as mãos às costas e olha para o rosto angustiado de André.
— Seu irmão, David, vai ser o próximo — anuncia Victor, tão calmo quanto Fredrik. — E tudo o que acontecer com você aqui, hoje, também vai acontecer com ele. Agora conte para a gente, onde está Edgar Velazco?
André desvia o olhar para o teto alto de zinco. Ele se recusa a falar.
Victor recua discretamente para evitar ser borrifado pelo sangue de André no momento em que Fredrik enfia mais uma vez o alicate na boca do refém. André grita de agonia, e sua voz ecoa pelo espaço amplo.
Clink.
— É este aqui. — Aponto para uma fotografia e depois a levanto para mostrar. — Ele estava lá. A mesma tatuagem no pulso. Com certeza é ele.
Um soluço patético percorre o corpo de André, mas tenho a sensação de que não tem nada a ver com o fato de que seu irmão vai sofrer a mesma tortura que ele. É óbvio que está sentindo uma dor horrível. Também tenho a sensação de que Fredrik está apenas começando e que arrancar todos os dentes de André é só o início de uma noite muito longa de tortura.
Dezesseis minutos se passaram. Sem querer, acabei marcando o tempo, pois deixei os números verdes luminosos do relógio de Fredrik, pousado na mesa, prenderem minha atenção. Era melhor do que assistir a Fredrik arrancando os dentes de André. Mas André ainda não cedeu. Lágrimas e suor escorrem de seu rosto, misturando-se com o sangue. Seu corpo, amarrado na cadeira, parece fraco, capaz apenas de se enrijecer quando Fredrik está lhe causando mais dor. Contudo, assim que Fredrik se afasta, o corpo de André desiste de lutar e derrete sobre o couro. Sua cabeça cai exausta para um lado, seus punhos cerrados se abrem, permitindo que os dedos escapem das palmas das mãos.
— O-o que é isso? — pergunta André, assustado e com a gengiva destruída.
Fredrik pega um estojo redondo de plástico, fazendo-o girar entre o polegar e o indicador. Uma agulha prateada brilhante sai de uma extremidade e ele a segura com cuidado entre os dedos, deixando o estojo na mesa.
— Onde está Edgar Velazco? — pergunta Fredrik mais uma vez, ainda sem nenhuma emoção na voz.
Ele segura a mão esquerda de André, abre seus dedos à força e prende a mão sobre o braço da cadeira. André arregala os olhos. Desesperado, ele tenta tirar a mão e fechar o punho de novo, mas as amarras e o peso que Fredrik exerce sobre os nós de seus dedos tornam inútil todo esse esforço.
Com a mão livre, Fredrik encosta a agulha no dedo mindinho de André e segura a ponta afiada sobre sua pele.
Começo a ficar zonza. Não sei como consegui aguentar enquanto os dentes de André eram arrancados, mas a ideia de Fredrik enfiando agulhas debaixo das unhas dele é demais para mim.
Victor me olha e percebo que não estou escondendo meu desconforto tão bem quanto eu queria.
— Vou perguntar mais uma vez — insiste Fredrik. — Onde está Edgar Velazco?
O corpo de André começa a tremer, suas narinas se abrem e o branco de seus olhos se torna muito mais visível do que estava momentos atrás. Sua mandíbula está cerrada, suas bochechas se mexem como se ele as mordesse por dentro, tentando passar parte da dor para outras regiões do corpo. Mas ele continua sem responder. Gostaria que ele respondesse. Só quero que ele ceda para se salvar. Pouco me importa o que vai acontecer com ele, mas não tenho estômago para tortura. Preferiria que Fredrik acabasse com o sofrimento dele de uma vez.
Um grito de gelar o sangue sai dos pulmões de André quando Fredrik enfia a agulha debaixo de sua unha. Não consigo me segurar e minhas mãos tapam os ouvidos enquanto fecho os olhos com força, me curvando. Sinto um toque no meu ombro e me viro, aproveitando a oportunidade para olhar em qualquer direção que não seja a de André.
— Por que você não vai esperar lá no escritório? — sugere Victor, segurando meu cotovelo com delicadeza, pronto para me levar até lá.
— Ele é o meu pai! — ouço André gritar. — Não me peça para entregar o meu pai! Por favor!
Victor e eu nos viramos ao mesmo tempo.
— Tire ela daqui — pede Fredrik, e ele nunca me pareceu tão ameaçador e persistente. Antes, ele parecia estar curtindo aquilo, parecia gostar que eu visse aquele lado sombrio. Mas agora ele assumiu uma atitude profissional. E não quer mais plateia.
Sem ter como argumentar, sigo Victor de volta para o escritório. Assim que a porta se fecha, os gritos de André se espalham pelo galpão de novo. Posso não estar mais assistindo, mas a imagem ainda está lá, nítida como se eu estivesse presente. Não consigo tirar a cena da cabeça, e a cada grito ela é gravada mais fundo na minha memória, como as agulhas que Fredrik está enfiando sob as unhas de André.
Em menos de cinco minutos, após André suportar tudo o que foi capaz, eu o ouço entregando o pai. Ele conta tudo. Uma localização na Venezuela tão precisa que ele informa não só detalhes importantes das redondezas e de como chegar lá, mas também o endereço. Ele também entrega o irmão, David, diz onde ele está em Nova Orleans e revela todos os seus contatos.
Trinta minutos se passam e continuo no escritório. Nesse tempo, Fredrik entrou uma vez e falou com Victor para verificar a localização de David em Nova Orleans.
— E agora? — perguntei, logo antes de Fredrik sair do escritório.
— A gente espera — respondeu ele ao sair.
— Espera o quê? — perguntei a Victor.
— Espera para saber se o nosso contato vai retornar a ligação e dar o sinal verde — explicou ele. — Precisamos ter certeza de que o André estava dizendo a verdade sobre onde encontrar o irmão, antes de prosseguir.
— Prosseguir?
Victor assentiu, mas não respondeu. Nem precisava. Eu já sabia o que aconteceria a seguir.
Minutos depois, tudo cai em um silêncio sombrio. Não ouço mais os gemidos de André nem o rangido da cadeira revestida de couro na qual ele lutava para se libertar das amarras.
Olho para Victor com uma expressão de dúvida e preocupação no rosto.
— Você está bem? — pergunta ele, com voz calma.
Faço que sim, mas não estou tão bem quanto gostaria de estar. Minha pele continua arrepiada e a base das minhas unhas formiga e dói.
— Estou ótima. — Engulo em seco e vou até a porta.
Victor põe a mão na velha maçaneta prateada antes de mim.
— Talvez seja melhor você esperar Fredrik terminar de limpar tudo.
— Limpar tudo... o quê, exatamente?
Já sei a que ele se refere, mas de certa forma quero ouvi-lo dizer, só que não lhe dou oportunidade.
— Já falei que estou ótima — repito, baixinho, garantindo que, mesmo depois de sair por aquela porta, não importa o que eu veja, ainda estarei ótima.
E sei que vou estar.
Victor solta a maçaneta, e eu a giro.
Quando saio do escritório e me aproximo da luz fraca que cobre a área onde Fredrik está, vejo o corpo sem vida de André ainda sentado na cadeira. Fios espessos de sangue escorrem do couro do assento para o chão, formando uma poça escura que mancha o imundo piso de concreto. Meus olhos sobem do sangue para as mãos de André, agora completamente abertas, seus dedos mortos pendendo dos braços da cadeira, sem mais nenhuma função muscular que lhes permita o menor movimento.
Os olhos. São sempre os olhos...
Os de André estão abertos, parecendo me observar do outro lado da sala, mas vazios. Completamente vazios. Há um corte profundo cruzando a frente do seu pescoço, de uma orelha à outra.
Fredrik começa a soltar as amarras quando me aproximo.
— Achei que você só matasse quando necessário — comento, olhando apenas para o cadáver nem um pouco traumatizada por isso. Era a tortura do corpo vivo que eu não conseguia suportar.
Fredrik tira o pino da fivela da última correia de couro.
Ele endireita as costas e se vira para me encarar.
— Eu precisei matá-lo.
Um tanto perplexa por seus critérios, que para mim indicavam que ele só mataria em legítima defesa, apenas olho para Fredrik, desesperada por respostas. Ele me dá as costas e continua “limpando a sujeira”.
— Mas ele contou o que você queria saber.
— A gente não podia deixá-lo vivo — intervém Victor, chegando perto de mim. — Ele ia avisar Velazco e o irmão. Velazco iria se mudar antes que a gente chegasse à Venezuela. E o irmão dele sairia de Nova Orleans antes que a gente tivesse chance de capturá-lo.
— Vocês vão atrás dele também? — pergunto, ainda confusa com a ordem dos acontecimentos.
Victor assente.
— Se as informações de André e do irmão baterem, saberemos que a localização que eles deram está correta. Vamos manter o irmão vivo até encontrar Velazco, e então ele vai ser eliminado, junto com o resto da família.
Ele vai até a maleta que está no caixote.
— A gente vai capturar o irmão hoje — explica ele, destravando os fechos e abrindo a maleta.
Fredrik mexe em uma grande bolsa de viagem largada no canto mais próximo, na sombra, e desenrola um saco comprido e preto no chão, longe das manchas de sangue. Ele abre o zíper no meio.
— Cadê o gravador? — pergunta Victor a Fredrik.
Fredrik enfia a mão no bolso da calça preta e lança o pequeno aparelho para ele. Victor pega o gravador no ar. Ouve os gritos horripilantes de André Costa e as informações que ele revelou antes de guardar o aparelho com segurança em sua maleta.
Victor, então, enfia as mãos em um par de luvas brancas de látex e vai até o corpo de André, segurando-o sob as axilas. Fredrik o segura pelos pés, eles levantam o cadáver da cadeira e o colocam no saco mortuário aberto no chão. Fredrik fecha o zíper em seguida.
— O que vocês vão fazer com ele? — pergunto, muito curiosa.
Ouço a borracha estalando quando Victor tira as luvas. Fredrik continua com as suas e começa a limpar a sala, borrifando a cadeira e a mesa com alguma solução transparente de uma garrafa de plástico com um bico longo e vermelho. Ela tem um cheiro forte de água sanitária.
— Alguém vai passar aqui para buscá-lo dentro de uma hora — responde Victor. — Precisamos ir embora.
— Mas... Para onde vão levar o corpo?
— Para os pântanos — explica Fredrik com calma, enquanto limpa o sangue da cadeira com um trapo branco. Então ele ergue o olhar para mim e acrescenta, com aquele sorriso diabólico por trás dos olhos que estou muito acostumada a ver: — Jacarés adoram tartarugas.
Reviro os olhos e rio.
Antes de voltar para o carro com Victor, me viro e olho para Fredrik.
— Tem alguém que você nunca conseguiu dobrar?
No mesmo instante, o sorriso dele desaparece e o clima do ambiente muda. Eu me arrependo da pergunta mesmo sem saber a resposta.
Noto que a garganta de Fredrik se move quando ele engole em seco. Ele cerra os dentes. Seus olhos escurecem, como se a lembrança o torturasse mais do que tudo o que ele fez com André Costa alguns minutos antes.
— Minha esposa — responde ele.
Inspiro em silêncio e engulo o nó que se formou na minha garganta. Contudo, em vez de ficar enojada pela verdade, em vez de sentir apenas repulsa e raiva de Fredrik, meu coração começa a sentir pena dele. Não sei por quê, mas só consigo sentir dor.
CAPÍTULO DEZENOVE
Sarai
A caminho de um hotel onde vou me hospedar enquanto Victor e Fredrik procuram David, Victor me conta sobre Fredrik.
— Meu Deus... Victor, por que ele torturaria a própria mulher? — pergunto do banco do passageiro. — Eu... eu não consigo imaginar por quê...
— Ele não teve escolha — interrompe Victor. — Anos atrás, Fredrik era só um contato. Nunca interrogava nem matava ninguém. Cuidava de um abrigo em Estocolmo. E foi assim que ele conheceu Seraphina.
— Ela era uma agente?
Victor assente.
— Trabalhava para Vonnegut, como eu — continua ele, virando na rua Canal. — Depois de alguns anos de visitas de Seraphina, eles se apaixonaram. Mas, por estarem na Ordem, como você sabe, não podiam deixar que ninguém soubesse dos sentimentos que tinham um pelo outro. Casaram-se em segredo, não no cartório, é claro. Então, depois de dois anos juntos, Fredrik começou a desconfiar que Seraphina estava enganando Vonnegut.
— Mas, se Fredrik a amava, por que contaria para Vonnegut? — pergunto, presumindo que é isso que Victor ia dizer em seguida.
— Ele não contou. Fredrik confrontou Seraphina. Ele queria primeiro fazê-la parar, salvá-la de ser eliminada pela Ordem. Ela admitiu que tinha sido empregada por outra organização e estava trabalhando contra Vonnegut. Como Fredrik não conseguiu fazê-la mudar de ideia, em vez de denunciá-la, porque amava muito a esposa, acreditou nas mentiras dela e começou a trabalhar com ela.
Meu coração afunda até o estômago, sabendo no que essa história vai dar. Os pedaços do quebra-cabeça chamado Fredrik Gustavsson enfim começam a se encaixar.
— Ela traiu Fredrik — digo, desta vez sabendo que estou certa.
— Sim. Seraphina começou a usar Fredrik para transmitir informações falsas sobre suas missões a Vonnegut. Então, pelo que entendi, ela começou a visitar Fredrik cada vez menos. Resumo da história: ele levou seis meses para descobrir aonde ela estava indo. Ele a encontrou em outro abrigo. Com outro homem. O resto você deve imaginar.
Balanço a cabeça, pensativa, tentando entender esse buraco no coração que sinto por Fredrik.
Seguimos até o fim da rua Poydras e estacionamos perto de um hotel à beira do rio. Victor desliga o motor e nós ficamos sentados na penumbra por um momento.
— Como estava cego de fúria e dor pela traição de Seraphina, Fredrik... — Victor olha pelo para-brisa, perdido nas lembranças daquele dia. — Foi como se alguém tivesse acionado um interruptor no cérebro dele. — Victor olha para mim, tentando não se apegar aos detalhes da lembrança para conseguir continuar a história. — Ele interrogou e torturou os dois. Matou o homem na frente dela, esperando que isso bastasse para fazê-la ceder, porque não queria matá-la. Mas Seraphina não cedeu. Era mais leal a seu empregador do que a Fredrik, o homem que ela dizia amar. Ela o destruiu. Ele nunca mais foi o mesmo. Isso foi há muito tempo.
Olho para baixo, ainda com o rosto de Fredrik na mente, e balanço a cabeça de novo, sem querer acreditar em nada daquilo.
— Por isso ele é daquele jeito? — Olho para Victor enquanto ele tira a chave da ignição.
— Acho que isso teve um papel importante na transformação dele. Seraphina foi a primeira pessoa que ele interrogou, além da primeira e única que ele não foi capaz de dobrar. Depois daquele dia, quando Fredrik contou a Vonnegut sobre a traição de Seraphina e garantiu seu lugar na Ordem, ele pediu para realizar missões de campo, em vez de ser só o contato em um dos abrigos. Vonnegut concordou, e, alguns anos depois, Fredrik era oficialmente um interrogador.
— Eu não sabia que os interrogadores dominavam habilidades tão mórbidas — digo, rindo de maneira desconfiada. — Ele mencionou que às vezes ajuda em suicídios também. Kevorkian? Isso é mórbido.
Victor dá uma risadinha.
— Fredrik é cheio de surpresas mórbidas — diz ele, e então abre a porta do carro. Ele sai com a maleta na mão e dá a volta até o meu lado. — Preciso que você fique no quarto até eu voltar. Mas acho que isso só deve acontecer amanhã.
Saio do carro e ele fecha a porta.
— Você não vai me deixar atrair David?
— Não. Ele já conhece seu rosto e sabe que você e André saíram juntos. A esta altura, você deve ser a única pessoa desta cidade que ele quer encontrar.
Antes de entrarmos no saguão do hotel, paro Victor em frente às portas altas de vidro.
— O que aconteceu com Seraphina?
Victor olha para além de mim, pensando.
— Não sei. Fredrik se recusa a falar sobre o assunto, o que me leva a crer que no fim ele a matou.
Victor não voltou para o hotel até o fim da manhã do dia seguinte. Fiz exatamente o que ele mandou e não saí do quarto, nem para comprar uma bebida na máquina que vimos no corredor ao subir. Chamei o serviço de quarto e pedi que deixassem a comida no chão, em frente à porta. Assisti à TV, tomei banho e olhei da janela do 15º andar para a fervilhante cidade de Nova Orleans lá embaixo, sem parar de me perguntar o que Victor estaria fazendo. Se ele e Fredrik encontraram David e se David estava sofrendo o mesmo destino do irmão.
Quando Victor voltou, continuava tão limpo quanto estava no dia anterior: nem uma gota de sangue no terno. Claro que eu sabia que isso não significava nada.
Ele e Fredrik conseguiram a informação de que precisavam de David, e ela batia com a que André Costa forneceu. David foi mais fácil de dobrar. Victor me contou que Fredrik não precisou nem usar as agulhas. Uma parte de mim ficou feliz por isso. Eu só não queria pensar a respeito.
Fredrik ficou com David e Victor me levou de volta para Albuquerque.
— Achei que a gente já tinha resolvido isso, Victor. Por que você está me deixando aqui?
— Porque você não está pronta para me acompanhar em missões. — Ele está guardando com cuidado algumas peças de roupa em uma mala marrom ao pé da cama. — Com certeza não para ir até a Venezuela. Fica muito mais difícil se esconder quando se atravessa fronteiras.
Eu me sento na cama e então me deito, deixando as pernas pendendo para fora do colchão. Olho para o pé-direito alto e arqueado.
— Por quanto tempo você vai ficar lá?
— Até terminar o serviço — responde ele, e ouço os fechos da mala estalando.
— E o que eu devo fazer enquanto você está lá?
— O que você quiser. Só não se meta em encrencas. — Seu sorriso torto lhe garante perdão instantâneo.
— Bom, eu não posso ficar com Dina em Oklahoma? Ou será que ela não pode vir para cá ficar comigo? Vou ficar doida aqui sozinha.
— Você vai ficar bem — afirma Victor. — De qualquer maneira, ainda é cedo demais para arriscar uma visita à sra. Gregory. Quando Fredrik estiver livre, ele vem para cá ficar com você.
Levanto as costas da cama e me apoio com os cotovelos no colchão. Estreito os olhos para Victor.
— Fredrik. Você vai me deixar com Fredrik? — Sei que Victor confia nele, mas não completamente.
Não entendo esse raciocínio. Victor dá um leve sorriso.
— Está com medo de que ele enfie agulhas debaixo das suas unhas?
Pisco algumas vezes. É tão óbvio assim?
— Como eu disse, você vai ficar bem. — Victor sai do pé da cama e se agacha na minha frente. Ergo o corpo e o olho de cima.
A expressão dele está diferente: o sorriso sumiu, deixando somente uma expressão suave de dúvida e preocupação no rosto. Essa mudança de humor me deixa ansiosa e pouco à vontade.
— Sarai — diz ele, pondo as mãos sobre os meus joelhos —, lembre-se de tudo o que eu falei sobre confiança. Lembre-se de tudo o que eu já falei para você.
— Por que está dizendo isso? — Inclino a cabeça para um lado, e rugas de confusão e preocupação surgem em volta dos meus olhos. — Não gosto dessa conversa.
Ele fica de pé.
— Sempre confie nos seus instintos. — Ele pega a mala ao meu lado e vai para a porta.
— Espere — chamo, indo atrás dele.
Ele para e se vira para me olhar.
— Por que os meus instintos estão me dizendo agora que você está escondendo alguma coisa importante de mim?
Ele apoia a mala de novo no chão e se aproxima de mim, me envolvendo em seus braços. Sua boca toca a minha, sua língua quente abrindo os meus lábios com delicadeza. Ele me beija com fome, enfiando as mãos no meu cabelo, e, por mais que eu queira me deliciar com a paixão do momento, não consigo deixar de me perguntar se esse é um beijo de despedida.
Ele se afasta de mim com relutância e toca a ponta do meu queixo com o dedo indicador.
— Porque eles estão certos — responde Victor, enfim. Pisco, atordoada por sua confissão. — Vamos torcer para que você não perca esses instintos.
Sem mais uma palavra, Victor sai da casa rumo a algum aeroporto para pegar um voo para a Venezuela.
CAPÍTULO VINTE
Sarai
Dois dias já se passaram sem novidades, e estou cada vez mais inquieta sozinha neste casarão, com as altas paredes amarelas e o chão de terracota como minhas únicas companhias. Não consigo passar muito tempo vendo TV, embora após gastar a maior parte da juventude presa no México, apenas com novelas mexicanas como diversão, fosse de esperar que a TV americana me parecesse um luxo bem-vindo. Mas me cansei dela em pouco tempo, depois que comecei minha vida temporária com Dina no Arizona, oito meses atrás. Tampouco tenho costume de ouvir rádio, o que faço muito de vez em quando. Mas eu tinha começado a tocar mais piano. Sempre vou amar piano. Eu até gostaria que Victor tivesse um aqui na casa, para que eu pudesse tocar.
Ando descalça pelo casarão, verificando mais uma vez se todas as portas e janelas estão trancadas. Mas é a última vez que verifico, pois me recuso a ficar paranoica, mesmo em nome de Victor e de sua às vezes peculiar, mas sempre incessante, preocupação comigo. Só que não posso negar que gosto disso nele.
Penso muito no que Victor me disse antes de viajar. Quero mais do que tudo, neste momento, entender o significado daquelas palavras enigmáticas. Sinto que ele está me testando de novo. Por isso meus instintos estão gritando comigo. Mas o que mais me preocupa é que, lá no fundo, sei que este teste tem muito a ver com Fredrik. Estou começando a me perguntar até onde Victor é capaz de chegar para me treinar.
E estou começando a me perguntar quanto ele realmente confia em mim...
Horas depois, no fim da tarde, quando decido que vou ceder e suportar uma horinha de TV, ouço um carro estacionando lá fora, na frente da casa, pequenos pedaços de brita estalando sob os pneus. Corro para a janela para ver quem é.
Meu coração pula quando vejo a maçaneta em forma de alavanca da porta da frente girar ao ser destrancada por fora. Só consigo pensar em por que Victor deu uma chave para Fredrik.
— Aí está você, gata — diz Fredrik ao entrar na sala, o cabelo escuro e volumoso sempre arrumado como se ele tivesse acabado de sair do cabeleireiro.
— O que você está fazendo aqui? — pergunto, fingindo não saber e fracassando ao tentar esconder o nervosismo na voz.
Lanço um olhar rápido para o sofá, onde escondi uma 9mm debaixo de uma almofada, e para perto do corredor, onde um pequeno aparador esconde um .38 na gaveta. São algumas das várias armas que espalhei pela casa. Todas carregadas. Nesta vida, não existe isso de trava de segurança.
— Victor não explicou? — pergunta Fredrik, abrindo os botões dos punhos de sua camisa social e arregaçando as mangas até os cotovelos. — Vou ficar com você até ele voltar. Você deixa a calefação muito forte, está muito calor aqui. — Ele passa o dedo indicador por dentro do colarinho, afastando o tecido do pescoço com uma expressão de desconforto.
— Sinto muito. Eu fico resfriada com facilidade.
Fredrik sorri, passa por mim e vai para a sala de estar. Eu o sigo, de olho em cada movimento. Sinto que não devo confiar nele, mas a verdade é que confio, sim. Minha insegurança me deixa confusa.
— Você podia pelo menos abrir umas janelas — sugere ele.
Fredrik dá a volta no sofá de couro marrom-amarelado e abre os trincos da janela alta atrás dele. Uma brisa leve entra, fazendo flutuar a cortina bege e diáfana que a cobre. Depois faz o mesmo com a janela ao lado.
Ele está usando uma calça informal marrom-escura e uma camisa branca cujo tecido fino deixa transparecer o contorno dos músculos do peito e dos braços. Um par de mocassins de couro marrom calça seus pés sem meias. O cabo de uma arma sai da parte de trás da calça, presa com firmeza pelo cinto.
Talvez o teste seja esse, se de fato for um teste; tenho cada vez menos certeza das coisas. Mas não parece ser do feitio de Victor se dar a todo este trabalho para saber se vou dormir com outro homem. Por outro lado, se este for o caso, quem pode ser melhor do que Fredrik, um lindo exemplar masculino e intrigantemente sombrio, para me tentar? Mas não sou uma garota doente e desequilibrada. Considero meio nojenta e bárbara a habilidade de Fredrik para torturar e assassinar pessoas não-tão-inocentes... Tudo bem, talvez o que ele fez com André Costa não tenha me causado tanta repulsa quanto deveria. Talvez eu ainda devesse estar traumatizada pelo que vi, considerando que foi só a alguns dias. Talvez eu devesse ficar mais desconfortável perto dele, neste momento, me sentir enjoada ou nervosa e minhas mãos tremessem. Mas estou perfeitamente à vontade e... Ok, talvez eu seja doente e desequilibrada. Victor deve perceber isso. Por qual outro motivo decidiria usar Fredrik, logo Fredrik, para me tentar?
— Eu sei o que Victor está fazendo — aviso, cruzando os braços e mordendo a parte interna da bochecha. Eu me sento no sofá e acomodo as pernas nuas na almofada que esconde a arma. Dobro os joelhos e arranjo uma posição confortável, tomando cuidado para que meu shortinho de algodão não suba demais, expondo mais do que o necessário. — Nem perca seu tempo.
Fredrik inclina a cabeça, com ar curioso, termina de dar a volta no sofá e vai até a poltrona de couro ao lado.
— Perder meu tempo fazendo o quê? — Ele parece mesmo não fazer ideia do que estou falando.
Ele se senta, apoiando o tornozelo direito sobre o joelho esquerdo, com os longos braços estendidos nos apoios da poltrona, as pontas dos dedos tocando nos rebites dourados que afundam no couro.
— Não importa quanto você é bonito, não vai conseguir me seduzir.
Fredrik ri baixinho, balançando a cabeça. Seus ombros relaxam e um suspiro profundo sai de seus pulmões.
— Não vim para cá com esse objetivo, gata. — Seu sorriso é acentuado pelos olhos azuis brilhantes, emoldurados pelo cabelo espetado e quase preto. — Victor só pediu que eu ficasse de olho em você.
— Mas eu não preciso que ninguém fique de olho em mim — digo em tom tranquilo, porém obstinado. — Sou perfeitamente capaz de me cuidar sozinha.
Fredrik não para de sorrir, embora agora isso apareça mais em seus olhos do que na boca.
— Disso eu não tenho dúvida. Mas, mesmo assim, Victor pediu que eu ficasse aqui. E, sinto muito, mas os pedidos dele vêm antes dos seus.
Estreito os olhos para ele, mas não estou nem um pouco ofendida. Sei que ele tem razão, mas não vou dar o braço a torcer tão facilmente.
— Qual é o seu lance com Victor, afinal? — pergunta ele.
— Como assim?
— Ora, por favor. — Ele balança a cabeça, sorrindo para mim. — Você enfeitiçou o cara. E com muita facilidade, para dizer a verdade. Você é mais perigosa do que eu jamais poderia ser. Para o Victor, pelo menos. — Ele abre um sorriso.
Sinto a testa se franzir.
Fredrik ri baixinho e dá um tapinha nas pernas, para depois alisar o tecido da calça. Ele volta a apoiar os braços na poltrona.
— Se você está insinuando que eu quero seduzi-lo com algum tipo de falsa intenção, está enganado. — Estou ofendida desta vez, e isso transparece na minha voz.
— Não insinuei nada disso. — Ele inspira com tranquilidade de novo e reclina as costas na poltrona, relaxando o corpo. — Conheço Victor há muitos anos, Sarai, e posso dizer, embora talvez não devesse, que nunca vi o cara do jeito que está desde que conheceu você.
Sinto um frio na barriga por um momento. Afasto essa sensação. Não sou muito do tipo que sente frio na barriga. Ou pelo menos tento não ser, como se isso, de alguma forma, me tornasse fraca. Mas tampouco posso negar que, quando penso em Victor, me vejo “afastando a sensação” com frequência. Engulo em seco e levanto o queixo.
E então mudo de assunto.
— Peço desculpas se isso parecer indelicado...
— Gosto de gente indelicada — interrompe Fredrik, abrindo outro sorriso. — É um bom jeito de evitar o papo-furado.
Aceno que sim.
— Bom, você sente prazer torturando gente? — pergunto, como se fosse exatamente o que penso. — Ou matando pessoas?
Fredrik ajeita o enorme relógio prateado no pulso direito. Então estende mais uma vez as mãos sobre os braços da poltrona.
— Isso vindo de alguém que não vê a hora de cortar a garganta de um homem — diz ele, com o sorriso ainda intacto —, é uma acusação forte. Quase hipócrita.
— Pensei que você gostasse de gente indelicada — observo, deixando claro que ele se esquivou da minha pergunta.
Ele entende bem depressa.
— Se você quer dizer “sentir prazer” de maneira sexual, então não, não sinto. Mas, sim, como uma espécie de castigo, eu sinto muito prazer.
— Castigo?
— Com certeza. Gente como André Costa e o irmão dele, David, merece o que recebe. E eu fico feliz em fazer as honras. — Ele ri baixinho e acrescenta: — Claro que não sou santo. E, quando chegar a hora de inverterem os papéis e eu estiver sentado naquela cadeira, vou saber lidar com isso. Mas ninguém jamais vai me dobrar... Não de novo.
Eu me pergunto o que significa essa última parte. E tenho a sensação de que não foi um comentário dirigido a mim.
Imagens das agulhas e da crueldade com que foram enfiadas debaixo das unhas de André surgem na minha mente por um momento. Estremeço e fico arrepiada. Minha nuca fica úmida e minhas mãos, pegajosas.
Enojada, eu o encaro por cima da mesinha de centro.
— Mas as... coisas que você faz. — Tento tirar a imagem da cabeça. Mais um calafrio percorre minhas costas. — Por que agulhas?
Um sorriso fraco aparece nos cantos da boca de Fredrik, que reconheço imediatamente como uma tentativa de abrandar a imagem que tenho dele e não se vangloriar por dentro sobre o desconforto que me causa.
— O método é bem eficaz, como você viu.
— É, mas... — As palavras me fogem. — Como você aguenta?
O sorriso dele desaparece, substituído por uma expressão neutra quando ele olha para além de mim.
— Na verdade, nem eu sei — responde ele, e tenho a sensação de que essa resposta o incomoda de alguma forma.
Com a mesma rapidez, seu sorriso volta e ele cruza as mãos sobre a barriga, entrelaçando os dedos longos e bem-cuidados.
— Quanto tempo você acha que Victor vai demorar para voltar? —
pergunto.
Fredrik balança a cabeça.
— Até terminar o serviço.
Eu sabia que ele me daria a mesma resposta que Victor, mas valeu a tentativa. O que quero, na verdade, é saber mais sobre Seraphina, mas tenho medo de perguntar. Acho que Victor me contou tudo aquilo sobre Fredrik e Seraphina em segredo. E não quero que Fredrik saiba da nossa conversa.
Mas a curiosidade está me matando.
Tiro as pernas do sofá e apoio os pés no chão. Fico de pé e cruzo os braços, olhando para Fredrik, que me observa com uma certa curiosidade. Ando de uma ponta à outra da mesinha de centro e então paro.
— Como você... Bom, o que fez você ficar assim? — pergunto, evitando com cuidado as coisas que já sei e que espero que ele mesmo me conte.
Ele me olha de lado, inclinando a cabeça, pensativo.
— O que você quer saber mesmo é como Seraphina me deixou do jeito que eu sou. Ou Victor ainda não contou sobre ela? — Ele sorri, conivente.
Por um momento, não consigo olhá-lo nos olhos. Passo a mão pelos braços algumas vezes e então me sento na borda da mesinha de centro, bem na frente dele. Enfio as mãos no tecido folgado da barra da minha camiseta cinza.
— Ele contou para você que eu sei?
Fredrik assente.
— Victor perguntou se eu me importava que ele contasse. Ele me respeita o suficiente para perguntar primeiro. É uma conversa muito delicada.
— Ela deve ter magoado muito você — digo, cuidadosa.
— Apesar do que Victor acha — diz ele, erguendo as costas da cadeira e enfiando as mãos entre os joelhos —, Seraphina foi só parte do motivo para eu ter ficado assim. Uma pequena parte. Ela foi, como meu analista indicado pela Ordem dizia, o estopim. A faísca em uma sala cheia de gás. Mas havia algo errado comigo já bem antes de conhecê-la. — Ele ri um pouco, mas não vejo humor nisso. Algo me diz que ele também não, na verdade.
De repente, Fredrik se levanta e vai até a janela aberta atrás do sofá. Eu me levanto também, deixando que meus olhos o sigam para não perdê-lo de vista, mas continuo perto da mesa. Como Fredrik está agora de costas para mim, e não consigo mais ver seu rosto, não posso ter certeza, mas sinto que o clima do ambiente ficou mais sombrio. Ele mantém os braços inertes, a brisa leve da janela balançando seu cabelo escuro.
Mas Fredrik não revela nada, e fico só imaginando que cenas terríveis o torturam, que lembrança insuportável o assombra neste momento. E só o que posso fazer é ficar ali e esperar que passe.
Fredrik
Vinte e cinco anos atrás...
O homem de cabelo ruivo e desgrenhado, cujo nome eu não era digno de saber, me deu um tapa no rosto com tanta força que um clarão branco encobriu minha visão. Minhas pernas nuas, ossudas e desnutridas, cederam e caí na calçada de pedra. O sangue jorrou da minha boca no momento em que a ponta da bota dele atingiu meu queixo.
— Garoto idiota! — sibilou o homem, cuspindo de ódio. — Você me custa mais do que vale! Garoto insolente!
Gritei e me curvei ao sentir a dor queimando minhas costelas.
— O que você está fazendo? — Ouvi Olaf dizer com severidade de algum lugar atrás de mim.
Eu quase não conseguia me mexer, apenas envolvi minhas costelas com os braços esqueléticos, esperando protegê-las de novos golpes e tentando amortecer a dor. Mal conseguia respirar. A bile se agitava no estômago, e eu me esforçava ao máximo para não vomitar, pois sabia que, como da outra vez, isso só faria minhas costelas doerem ainda mais.
— Você nunca vai conseguir vender o garoto se danificá-lo — disse Olaf.
Eu odiava Olaf tanto quanto odiava todos os homens que me mantinham naquele lugar, mas quase fiquei feliz quando ele chegou. Ele impediria que os outros me espancassem. Que me violentassem. Olaf também fazia o que queria comigo, mas era delicado e nunca me machucou. Eu o odiava e queria vê-lo morto, assim como o resto deles, mas ele era meu único conforto no inferno que era minha vida.
O homem de cabelo ruivo e desgrenhado cuspiu no chão ao meu lado, tão perto que senti uma gotícula na minha bochecha, que estava encostada na pedra fria.
— Então resolva você — grunhiu ele. — Eu lavo minhas mãos com este aí. É um idiota! Não é tão desaforado, mas é idiota. Quatro meses e ainda não aprendeu nada!
Eu me recusava a abrir os olhos. Queria só ficar no chão, encolhido em posição fetal e sozinho, para morrer ali. Sentia cheiro de fezes, urina e vômito vindo do banheiro no corredor. Dava para sentir a brisa úmida da janela quebrada ali perto, roçando as pedras e meu rosto. Pensei na minha mãe, embora ela não fosse minha mãe de verdade. Era um animal horrível em forma de mulher, que administrava o orfanato que cuidava de mim. O orfanato que havia me vendido àqueles homens três meses antes, dois dias depois que eu completei 7 anos, segundo disseram. Como Olaf, eu odiava a Mãe. O modo como ela batia na minha bunda com a vara até sangrar. Odiava o modo como ela me mandava para a cama sem me dar comida por três, às vezes quatro noites seguidas. Mas eu daria tudo para voltar aos cuidados dela e não estar com aqueles homens.
— Talvez o problema seja o professor — acusou Olaf, com voz calma. — Você é duro demais com ele. Ele é mais frágil do que os outros. A raspa do tacho, como Eskill diz.
— Ele não come! — gritou o ruivo.
Eu o via agitando as mãos, suas grandes narinas se dilatando de fúria, acentuando a cicatriz do lado esquerdo do nariz. Via o vermelho vibrante de suas bochechas, que sempre parecia uma urticária quando ele se zangava.
— Ele não consegue segurar a comida — disse Olaf. — O dr. Hammans examinou o garoto ontem, antes que você voltasse. Disse que o garoto está sofrendo de estresse emocional.
— Estresse?! — exclamou o ruivo, soltando uma risada esganiçada.
— Sim — confirmou Olaf, mantendo a expressão calma. — Acho que é melhor que eu assuma o caso dele, daqui por diante.
Minhas pálpebras se abriram um pouco, apenas o suficiente para ver o semblante do ruivo debruçado sobre mim. Ele estava sorrindo, mas me apavorava. Fechei os olhos de novo assim que percebi que ele olhava na minha direção.
— Você acabou de dizer que não queria mais cuidar do garoto — disse Olaf. — Algum problema?
Seguiram-se alguns segundos de silêncio.
— Não — disse o ruivo. — Pode levá-lo. Talvez você consiga fazer mais do que eu.
Os dois não trocaram mais nenhuma palavra.
Olaf me carregou até seu carro e me deitou com cuidado no banco de trás.
— Eu vou cuidar de você — sussurrou ele, do banco da frente.
Eu tremia incontrolavelmente com a dor nas costelas e na cabeça. Lágrimas, catarro e sangue escorriam para a boca.
— Vou ser gentil com você, garoto — disse Olaf, ao tirar o carro do estacionamento do prédio. — Até que você não me deixe escolha.
Ele me levou para um lugar que eu nunca tinha visto antes. E eu fiquei lá, sob os cuidados dele, aprendendo a superar meu medo dele, dos outros homens e da vida que fui obrigado a levar. Até que o envenenei enquanto dormia, cinco anos depois, e fugi.
Sarai
— Fredrik? — chamo, preocupada com seu silêncio longo e misterioso.
Ele vira de costas para a janela e abre um sorriso suave.
— Você está bem? — pergunto, me aproximando.
Fredrik assente, e aquele sorriso diabólico que sempre vou associar a ele se espalha pelo rosto.
— Está preocupada comigo, gata? — provoca ele, brincando, e sinto que estou corando.
Dou de ombros.
— Um pouquinho, talvez. Mas não fique muito convencido com isso.
Ele sorri, e vejo apenas sinceridade e admiração naquele sorriso.
Vou para a cozinha, mas paro antes de entrar e sumir de vista.
— Você está com fome?
— Você sabe cozinhar? — pergunta Fredrik de volta, ainda tirando sarro de mim.
— Não como aquela sua empregada. Mas faço um sanduíche de geleia com pasta de amendoim que é uma delícia.
— Para mim, está ótimo — diz ele, e sorrio antes de desaparecer na cozinha.
CONTINUA
CAPÍTULO QUINZE
Victor
No dia seguinte, chegamos a Nova Orleans, cujas ruas estão lotadas de gente. Milhares de pessoas de branco, usando lenços, bandanas, chapéus e cintos de um vermelho brilhante estão lá para participar do festival anual San Fermin en Nueva Orleans, também conhecido como “corrida de touros”. Passamos pelo lado oposto da cidade, onde as ruas não foram fechadas para carros, desviando de muitas das típicas varandas enfeitadas com peças de ferro batido de estilo europeu e dos pátios, em busca do galpão onde Fredrik nos espera, bem longe das festividades.
Sarai dormiu por três horas, desta vez no banco da frente, com a cabeça encostada na janela do passageiro. Agora ela está sentada, acordada, absorvendo a paisagem e massageando a parte de trás do pescoço com os dedos.
Na noite passada, contei a ela um pouco do motivo de estarmos indo para Nova Orleans. Omiti algumas coisas porque espero encontrar Fredrik antes para saber quais informações ele coletou sobre nosso alvo, André Costa, também conhecido como Tartaruga, o “bode expiatório” meio americano, meio brasileiro do famigerado chefe de uma quadrilha que opera na Venezuela. Procurei Costa por semanas, sobretudo no Rio de Janeiro, onde ele foi visto pela última vez. Mas ele muda de lugar rápido demais, apesar do apelido, e, pela primeira vez em muito tempo, estou tendo dificuldade para acompanhar um alvo.
Entramos no pátio do galpão abandonado e dirijo devagar para a lateral, onde Fredrik está nos esperando. Quando ele vê o carro, um grande portão de metal se ergue e nós entramos, estacionando na penumbra do prédio empoeirado. O lugar deve ter sido alguma espécie de oficina, a julgar pelo fosso para troca de óleo no chão de concreto, o elevador de veículos e outros equipamentos automotivos pesados que ficaram por lá. Há uma parede alta coberta inteiramente de prateleiras, nas quais alguns pneus velhos foram abandonados. Algumas janelas grandes no alto da parede do fundo, cobertas por uma camada espessa de poeira, deixam passar sol suficiente para iluminar o ambiente como a luz de um dia nublado.
Sarai e eu fechamos as portas do carro, que ecoam pelo espaço vazio.
— Caramba, para que esse lugar tão sombrio? — pergunta Sarai, esticando o pescoço e olhando para o teto.
— É bom ver você também — diz Fredrik, aproximando-se. Ele está usando o terno Armani de sempre e sapatos sociais pretos reluzentes, que combinam pouco com o ambiente.
Sarai abre um pequeno sorriso e continua a olhar em volta, cruzando os braços e encolhendo os ombros como se o lugar lhe provocasse calafrios.
Fredrik aciona um interruptor dentro de um quadro de força e, de maneira surpreendente, algumas poucas lâmpadas fluorescentes zumbem e ganham vida perto da parede do fundo, ressuscitadas, tenho certeza, por algum gerador. Fredrik já usou esse galpão. Dois meses atrás, em outro interrogatório. E tenho certeza de que ele também já o aproveitou para assuntos pessoais.
— Que lugar é este? — pergunta Sarai.
A luz revela uma velha cadeira de dentista, no canto mais distante, com alguns itens personalizados, como amarras para os braços e as pernas e grossas correias de couro para segurar a cabeça e o tronco da pessoa.
— É a minha sala de interrogatório — explica Fredrik, com um gesto sutil, como se estivesse apresentando um imóvel para compra. — Bem, por enquanto.
Ele se curva atrás da cadeira de dentista e pega uma maleta preta e fina, coloca-a em uma mesinha de metal manchada de tinta e abre os fechos prateados.
— Estou quase com medo de perguntar o que você faz no interrogatório — diz Sarai, descruzando os braços e olhando ao redor, até que seus olhos finalmente chegam à maleta.
Fredrik me olha de relance.
— Tem certeza de que ela dá conta desse serviço, Faust?
— Ei — interrompe Sarai. — Eu disse quase com medo. Eu dou conta. — A intensidade no rosto dela diz tudo.
Fredrik sorri, puxa um carrinho de aço inox para perto da cadeira e começa a organizar várias ferramentas em uma fileira. Três facas de tamanhos diferentes. Um alicate. Seringas cheias de drogas. E então ele tira seis pequenas ampolas e as coloca perto das ferramentas.
— Ela me deixa um pouco preocupado — observa Fredrik, lançando um olhar na minha direção.
Ele continua a dispor suas ferramentas, com um sorriso sutil no rosto.
— Não tanto quanto você me preocupa — rebate Sarai, para provocá-lo. Ela corre os olhos pelas ferramentas. — Já chamaram você de sádico?
Fredrik olha para mim.
— Você não contou para ela, contou?
— Não sou eu quem deve fazer isso.
— Me contar o quê? — Sarai corre os olhos entre mim e Fredrik.
Fredrik deixa a última seringa na mesa e se aproxima de Sarai. Ela não se move, apesar do olhar sombrio e sedutor dele. Fico pouco à vontade quando Fredrik passa o dedo indicador por seu cabelo castanho solto.
Mas isso também é um teste — ver se ela aguenta a verdade sobre Fredrik —, e estou confiante de que ela vai passar.
Sarai
Os magnéticos olhos azuis de Fredrik provocam um arrepio desconcertante no meu corpo. Seu dedo se afasta do meu cabelo e ele inclina devagar a cabeça, enquanto seus olhos percorrem cada centímetro do meu rosto, como se ele estivesse ponderando qual parte quer saborear primeiro. Engulo em seco e dou um passo para trás. Não por medo dele, mas por medo de não temê-lo como meu instinto diz que eu deveria.
Encaro Victor, movendo só os olhos. Sua expressão é calma e neutra. Se Victor não parece nervoso, claro que não preciso me preocupar com nada. Mas e se ele estiver me testando? E se estiver procurando aquela confiança equivocada que sempre tive nele, aquela confiança que há muito tempo Victor me disse para não ter, porque no fim só devo confiar em mim mesma?
Não... não é isso. É outra coisa que ele está procurando, e não sei bem o que é.
Inclino a cabeça para o lado e mordo a parte interna da bochecha, estreitando os olhos para Fredrik.
— Por que você não me conta de uma vez e deixa de drama?
Um sorriso incrivelmente sexy emerge, e Fredrik se afasta, despreocupado. A luz forte perto da cadeira de dentista forma uma aura estranha, mas adequada, ao redor do seu corpo, fazendo-o parecer um louco fantasiado de Diabo, de pé diante de um fundo apavorante.
— Somos todos homicidas aqui — afirma Fredrik, com leveza, com aquele onipresente sotaque sueco. Ele faz um gesto na direção de Victor. — O assassino — aponta ele. — E você, claro. Acho que você entrou no clube com sucesso, mesmo matando por vingança, diferente de Faust, que mata por dinheiro.
Com um nó pesando no fundo do estômago, olho para Victor outra vez, mas sua expressão firme não muda.
— E você? — pergunto, virando-me para Fredrik. — Por que você mata?
Fredrik ri, baixinho, e sinto a atmosfera sombria da sala se iluminar de repente. Ele não é mais tão intimidador. Olho de Fredrik para Victor de novo, procurando no rosto deles algum tipo de comunicação silenciosa, e acabo encontrando. Fredrik só estava tentando me confundir.
E estou completamente confusa.
— Eu mato, mas só quando preciso — explica Fredrik, e fico surpresa com isso. — Sou o que Faust chama de Especialista. Interrogatório e tortura são minhas especialidades. — Ele gesticula para o equipamento atrás dele. — Isso já ficou óbvio, suponho. Vez ou outra, também tive a oportunidade de bancar o dr. Kevorkian e realizar algumas eutanásias.
Rio e digo:
— Achei que você fosse me dizer que era um assassino em série ou algo assim.
Victor e Fredrik se entreolham de novo, embora só por um instante. Detecto a natureza clandestina dessa troca secreta deles no mesmo momento.
— Não, meu bem — retruca Fredrik, virando de costas para mim, fingindo estar organizando mais uma vez suas horripilantes ferramentas de interrogatório. — Não sinto prazer em matar...
O silêncio cobre o ambiente.
Fredrik parece pouco à vontade agora. Está usando as ferramentas na mesa como uma distração, seus longos dedos acariciando o metal polido com um cuidado gracioso. Quero manter um pé atrás com Fredrik, achar irritante sua personalidade enigmática e achar repulsivo seu currículo, mas, por alguma razão que não consigo entender, de repente sinto... pena dele.
— Precisamos nos preparar — diz Victor, quebrando o silêncio constrangedor da sala.
Fredrik, como se suas emoções fossem controladas por um interruptor, bate palmas e abre um sorriso luminoso, de um sadismo macabro.
— Com certeza! Para ser honesto, cansei de esperar por esse merda. Não que isso seja culpa sua, Faust.
— Talvez eu tenha um pouco de culpa — admite Victor, e tenho a sensação de que isso tem algo a ver comigo. — Mas certas coisas são mais importantes.
Olho para o chão de concreto sujo, escondendo um leve rubor no rosto.
— Tem certeza de que você está pronto para isso? — pergunta Victor.
— Pronto é pouco — rebate Fredrik, e então começa a nos explicar a situação. — André Costa vai ficar na cidade por mais dois meses — afirma ele. — Ele está com uma mulher, uma tia, se não me engano, do outro lado do rio, em algum lugar de Algiers. Meu contato ouviu Costa conversar no Lafitte’s ontem à noite. A menos que estivesse mentindo só para se mostrar para as mulheres, parece que ele conhece a cidade como a palma da mão, é como uma segunda casa para ele. Se não pegarmos o cara esta noite, tenho certeza de que vamos ter outra chance em breve.
Os olhos de Fredrik me evitam.
— Eu vou pegá-lo — digo, só um pouco ofendida pela falta de confiança em mim. Ao mesmo tempo, sei que eu também estaria preocupada com o resultado se estivesse no lugar dele.
Ele continua:
— Costa esteve nesse bar, Lafitte’s, toda noite desde que chegou aqui, por isso acho que também estará lá hoje.
Victor enfia a mão no bolso de trás, tira um pequeno envelope e o coloca na minha mão. Tiro uma foto de dentro dele e olho para o rosto sorridente de André Costa, um sujeito bem jovem, de pele lisa cor de caramelo e nenhum sinal de que já precisa se barbear. Ele tem uma pequena pinta logo acima do lado direito da boca. Seu cabelo é curto e preto, com cachos soltos ao redor da testa e em volta do contorno das orelhas, o que quase lhe faz parecer um jovem César sem a coroa de louros. Está usando uma camiseta preta com alguma coisa escrita em letras brancas, e parece estar sentado em um bar, de costas para o balcão, com um drinque na mão esquerda. Ele é o estereótipo do arroz de festa, com um sorrisão de dentes brancos como pérolas iluminado pelo barato do uísque, e os olhos um pouco embaçados, apenas em parte devido ao flash da câmera.
— Ele é... magrinho — comento.
— Setenta quilos — Victor diz. — Um e setenta e cinco. Vinte e quatro anos. Mas não o subestime. Se ele cruzar com você sozinha e souber que está atrás dele...
— Eu dou conta — afirmo. — Por que ele é o alvo?
Victor começa a balançar a cabeça, e sei que vai se recusar a me dar essa informação, mas o interrompo novamente.
— Você não faz mais parte da Ordem. Não precisa seguir as regras deles. Diga logo o que ele fez.
Victor suspira e vejo seus ombros relaxarem. Ele cede e diz:
— Antes de mais nada, ele não é o alvo, e não tenho nenhuma intenção de matá-lo. Precisamos de Costa para encontrar o alvo, Edgar Velazco, um chefe de quadrilha venezuelano responsável pela morte de 16 cidadãos americanos, britânicos e canadenses no ano passado. Eles foram capturados no Rio de Janeiro e em vários outros destinos turísticos importantes da América do Sul. Há uma recompensa de 3 milhões de dólares pela captura de Velazco, mas é quase impossível encontrá-lo.
— Seria fácil — intervém Fredrik — se ele saísse das favelas da Venezuela. Ele me lembra Bin Laden quando estava entocado nas montanhas, com um grande grupo de terroristas e uma família de cabras como companhia. Lá é fácil demais notar pessoas como nós, claramente estrangeiros.
— Velazco, de certa forma, é como Javier Ruiz — acrescenta Victor.
Ergo o olhar da foto de André Costa ao ouvir o nome de Javier. Nem tinha percebido que estava olhando para a foto o tempo todo.
— Parece que Velazco está um degrau acima da posição que Javier jamais alcançou na escala criminal — comento.
— Sim, ele está — confirma Victor. — As operações de Javier eram pequenas comparadas com as de Velazco. As de Velazco estão espalhadas por seis países, e ele é responsável pelo homicídio de 169 turistas até hoje, inclusive mulheres e crianças.
— E esse é só o número oficial — acrescenta Fredrik. — Não há como saber quantos realmente foram.
— E quem é o cliente? — pergunto, embora não espere que me forneçam esse tipo de informação tão facilmente.
— Anderson Winehardt, um sujeito rico de Boston — conta Victor. — O filho dele é um dos turistas assassinados.
Ainda chocada por ele ter revelado o nome do cliente tão depressa, demoro um momento para organizar minhas perguntas.
Eu me sento em um caixote próximo e deixo as pernas balançando na lateral.
— Por que você me disse o nome dele?
— Se você está neste serviço com a gente, precisa entrar de cabeça — explica Victor.
— Obrigada — digo, ainda incerta. Eu me pergunto se em algum momento Victor vai virar e dizer que só estava mexendo com a minha cabeça, como Fredrik fez antes.
Mas então penso na Ordem, em como ela é antiga e complexa, e me vejo com mais perguntas do que respostas.
— Não entendo. Como você ainda consegue fazer serviços, especialmente um como esse, com a Ordem na sua cola? Será que Vonnegut ou até Niklas não ficariam sabendo de um contrato para matar um cara ainda mais importante do que Javier?
— É possível que eles saibam — diz Victor. — Mas isso não revela que eu seja o contratado para o serviço. Existem 22 organizações particulares como a Ordem só nos Estados Unidos, além de um número desconhecido de agentes independentes como eu. Nem Vonnegut nem Niklas desconfiariam de que eu continuo a trabalhar assim, depois de sair da Ordem e sabendo que há uma recompensa pela minha captura.
— Você se esconde debaixo do nariz deles.
— De certa forma, sim — responde Victor.
— Mas como você arranja clientes? Tipo... Não era Vonnegut quem cuidava de tudo isso quando você trabalhava para a Ordem?
— Era — concorda Victor. — Mas fiz isso minha vida toda. Conheço pessoas. Já me encontrei com clientes que nem Vonnegut viu pessoalmente. É a vantagem de trabalhar em campo. Tenho tantos ou até mais contatos do que o próprio Vonnegut.
Solto um suspiro preocupado e balanço a cabeça.
— Bom, eu acho que ter tantos contatos, todos feitos de alguma forma por intermédio da Ordem, pode ser bastante perigoso. Você não tem medo de que alguém possa dar a pista para Vonnegut ou Niklas?
— Penso nisso todos os dias — responde Victor. — É por isso que preciso escolher meus clientes com cautela, ser muito cuidadoso, testando todos que cruzam o meu caminho. Sarai, você nunca sabe quem vai trair você até ser tarde demais.
Não alongo o assunto e deixo que os dois continuem a me instruir sobre a missão.
Passa das dez da noite e estou vestida como uma socialite rica e vulgar, usando um vestidinho curto marfim e cor-de-rosa com camadas rendadas que terminam 10 centímetros acima dos joelhos. O salto 15 da minha sandália plataforma cor-de-rosa me deixa com a altura de Victor. Meu cabelo comprido está solto sobre os ombros, afastado dos meus seios turbinados por um lindo sutiã de renda cor-de-rosa que aparece através do tecido do vestido. Depois de meia hora me maquiando, completo o look com alguns anéis e braceletes caros e duas borrifadas de perfume, uma na base do pescoço, outra espalhada nos pulsos. Minutos antes de Victor e eu sairmos do galpão, Fredrik me diz que estou fedendo. Não posso discordar. Nunca gostei muito de perfumes, mas acho que é apropriado para esta noite.
Victor para o carro em um pequeno estacionamento de um prédio escolar de tijolos vermelhos em frente ao CC’s Community Coffee House.
— Esquina da Bourbon com a St. Philip — diz ele, apontando para a rua, a fim de que eu possa observar os arredores. — Vou esperar aqui. Lembre, o bar é pequeno, escuro e costuma estar lotado. Pode ser difícil localizá-lo, mas não deixe parecer que você está procurando alguém, para não se arriscar...
— Vou conseguir — interrompo, antes que Victor comece mais um discurso sobre o que devo e o que não devo fazer e o tanto de cuidado que devo tomar. Eu me inclino sobre o banco e lhe dou um beijo suave na boca. — Tenha só um pouco de fé em mim.
Ele abre um sorriso fraco. Por um momento, enquanto Victor me encara, quero subir no colo dele, no banco do motorista, e beijá-lo apaixonadamente. Mas afasto a ideia, sabendo que tenho um trabalho a fazer.
Abro a porta do carro e saio para o breu, fechando-a atrás de mim e me debruçando na janela.
— Eu vou ficar bem — digo enquanto ajeito o pequeno microfone que estou usando, posicionado de maneira estratégica no meu sutiã, bem no meio dos seios. — Só prometa que não vai interferir, a não ser que eu peça diretamente a sua ajuda.
Victor assente, mas isso não me satisfaz.
— Victor? — digo, com tom imperioso.
Ele levanta as mãos.
— Tudo bem, prometo. Não vou interferir.
— Não estou fazendo isso para provar nada para você. Estou fazendo porque eu quero e porque sei que sou capaz. Se eu acabar provando alguma coisa no fim, acho que vai ser só um extra. Mas esse não é o meu objetivo principal.
Preciso que Victor entenda que não estou fazendo isso só para ficar com ele, mas porque é o que quero de verdade para a minha vida.
Ele assente de novo.
— Eu sei.
Eu o deixo no carro e vou para a calçada, permitindo que as luzes fracas dos prédios em volta guiem meus passos pela rua escura. Embora seja tarde, não estou sozinha, pois há dezenas de pessoas andando dos dois lados da rua. Eu me misturo a um grupo na calçada na frente da escola, que está se abanando com caveiras de papelão e ouvindo um guia falando sobre o prédio. Enfim, atravesso a rua e entro no bar minúsculo e lotado da esquina. Como em um passe de mágica, me desfaço da fachada da garota que eu era.
CAPÍTULO DEZESSEIS
Sarai
Assim que entro no bar, sou engolida pela escuridão. O espaço é iluminado apenas por velas espalhadas ao acaso por todo o ambiente: nas mesas, ao longo das paredes e acima da lareira de pedra no meio do estabelecimento. O bar está tão cheio que a maioria das pessoas se esbarra ao ir e vir, e não há um só lugar vazio até onde minha vista alcança. Passo por uma mesa cheia de pessoas conversando animadamente e abro caminho devagar em meio à multidão. Estou bem-vestida demais para este lugar, apesar da pouquíssima roupa. Devo ser uma das únicas garotas mais arrumadas e tentando andar de salto alto, no escuro, por um lugar onde claramente jamais estive. Pareço uma turista que está na cidade para um fim de semana de diversão. Exatamente o que eu queria aparentar. André Costa adora festas. E adora garotas. Mas, ao que tudo indica, ele investe nas que são novas na cidade, e que parecem idiotas.
Vou direto para o balcão e peço uma cerveja Dos Equis, mostrando para o barman jovem e bonito meu documento falso e sorrindo com olhos brilhantes.
O barman olha para mim e para a minha identidade.
— Acho que você já tem idade. — Ele sorri para mim e me devolve a carteira. Eu a guardo na minha bolsinha preta.
— Há quanto tempo está em Nova Orleans? — pergunta ele, tirando a tampa da minha cerveja e deixando a garrafa na minha frente. Ele é sexy, tem cabelo preto curto, arrepiado na frente, e olhos azul-escuros que me fitam de sua carinha redonda de bebê.
Fico vermelha e baixo a cabeça, tomando um gole rápido.
— É tão óbvio assim? — pergunto, fechando os olhos por um momento.
O sorriso dele se alarga, e noto que seu olhar desce do meu rosto para os meus seios. Mas ele não olha demais.
É bastante óbvio para nós dois que sou apenas uma turista, por isso ele nem se dá ao trabalho de responder à minha pergunta.
Estendo uma nota de dez para pagar a bebida, mas ele dispensa o gesto.
— Esta é por minha conta. Aproveite a viagem.
— Obrigada.
Pego a garrafa do balcão no momento em que duas garotas, provavelmente já na quinta cerveja, abrem caminho pelo salão aos empurrões e quase me derrubam. Mal consigo segurar a cerveja, que derrama enquanto tento equilibrá-la.
— Cuidado, porra — digo, mas nenhuma das duas bêbadas me ouve na barulheira do local.
Quando dou as costas para elas e o balcão, começo a examinar o bar, bebericando a cerveja e movendo o quadril bem devagar enquanto ando, como se só estivesse curtindo a música e não procurando alguém. Passo pela lareira de pedra e vou para os fundos, onde o espaço se divide. Há outro balcão à minha direita, com mais algumas mesas e nenhuma porta. O lado esquerdo parece levar a uma espécie de pátio. Vou para a esquerda, mas vejo André Costa sentado a uma mesa em um canto escuro da área sem saída, acompanhado por garotas e mais dois homens, todos bebendo e conversando.
As duas garotas que estão com eles são deslumbrantes, muito mais bonitas do que eu. De início, fico preocupada quanto à minha capacidade de chamar a atenção dele, mas então lembro o que Izel, a irmã maligna de Javier Ruiz, me ensinou muito tempo atrás:
— Você não tem jeito. Uma puta americana sem salvação — disse Izel naquele dia, forçando um pente pelo meu cabelo embaraçado só para me ouvir gemer de dor. — Não sei por que Javier mantém você aqui. Você parece uma virgenzinha idiota, só que é uma piranha.
Ela puxou o pente com mais força, curvando tanto meu pescoço para trás que gritei de dor. Mas eu não disse nada. Tinha medo dela, naquela época, medo do que faria comigo se eu respondesse. Já bastavam as maldades que ela fazia só por me detestar, quando estávamos a sós e eu não tinha a proteção de Javier.
— Você precisa estar bonita perto do meu irmão. Precisa fazer os homens sonharem em tocar você. Precisa chamar a atenção deles mais do que qualquer outra garota. — Ela puxou meu cabelo de novo. Mordi o lábio, lágrimas escorrendo pelo rosto. — Não sei por que estou ajudando você. Deveria deixar você se ferrar, para Javier se livrar de você. Dar você de comer para os cachorros.
— Por que você me odeia tanto? — perguntei, enfim.
Senti uma dor ofuscante na lateral do rosto e ouvi o plástico grosso e frio do pente batendo na minha bochecha.
— Cala a boca! Puta idiota! Eu odeio você porque eu posso! Agora me escute. Quando você entrar lá hoje à noite com meu irmão, é melhor fazer tudo o que eu ensinei. Sofri seis meses para ensinar você a seduzir um homem! Seis meses da minha vida desperdiçados, caralho. É melhor fazer certo. Se você fizer merda e o Javier me castigar, eu corto a sua garganta enquanto estiver dormindo e boto a culpa em uma das garotas. Comprendes?!
Assenti, nervosa.
— Agora, o que é mais importante das coisas que eu falei? — Ela sacudiu meus ombros por trás. — Responde!
— Contato visual — respondi.
— E qual é o jeito certo?
— Olhar de relance — respondi mais depressa. — Tímida, e não desesperada.
— Sí. Precisa fazer com que os homens achem que você é carne fresca, que ainda não passou na mão de mais de cem. Precisa parecer tímida e inexperiente, não uma piranha tarimbada querendo se divertir. Só as velhas fazem isso. E por quanto tempo você dá atenção para ele?
— Dois segundos.
Izel me virou para que eu a encarasse, segurando meus ombros com firmeza, suas unhas vermelhas compridas afundando na minha pele.
— Sí, Sarai. Dois segundos e você desvia o olhar. Quanto mais você olhar, mais desesperada parece. Faça o homem ir até você.
Por mais que eu odiasse Izel, preciso admitir que aprendi muito com ela. Naquela época, contudo, eu estava aprendendo a seduzir ricaços só para fazer com que eles me desejassem. Javier jamais me venderia ou deixaria que outro homem me tocasse. Eu era o troféu dele, a garota que representava todas as garotas vendidas por Javier. Eu era aquela que os homens viam primeiro, a mais bonita e mais enigmática. Era a garota-propaganda, usada para exibir o negócio de Javier. E funcionava. Os homens não podiam me ter, mas, depois de passar dez minutos em uma sala comigo enquanto eu aplicava todas as lições de Izel, eles queriam a coisa mais próxima daquilo. E comprar alguma garota da mesma “ninhada” na qual fui “criada” era, na cabeça deles, o único jeito de conseguir.
Mas esta noite, com André Costa, só metade das lições de Izel serão postas em prática. Ele não está aqui procurando uma garota submissa para levar para casa e pôr na coleira. André é apenas um jovem criminoso cheio de tesão, por isso a parte das lições que vou aplicar hoje só vai até o contato visual.
Acomodo minha bolsa debaixo do braço e encosto na parede, à vista de André. Deixo que cinco minutos se passem, tomando minha cerveja e fingindo curtir a música, que sai de um piano, antes de fazer contato visual. Sei que ele já me olhou pelo menos duas vezes durante esses cinco minutos. Senti seus olhos em mim. Mas a garota de cabelo preto sentada à esquerda dele conseguiu manter a maior parte de suas atenções.
Um. Abro um sorriso suave para ele. Dois. Desvio o olhar e tomo mais um gole de cerveja. E espero.
Alguns minutos depois, André Costa está à minha frente, se apresentando.
— Meu nome é André. E você... — ele olha para os lados — está sozinha, presumo?
Fico vermelha como uma boba e tomo mais um gole.
— Estou — digo, abaixando a cerveja e segurando o pulso com a outra mão. — Estou sozinha, sim.
— E a sozinha não tem nome?
Reviro os olhos para a tentativa dele de fazer graça, mas não deixo que o sorriso falso suma do meu rosto.
— Sim — respondo, quase dando uma risadinha e encolhendo os ombros até as bochechas. — Meu nome é Izabel.
André sorri e me olha de lado. Ele estende a mão.
— Bem, você deveria se juntar a nós, Izabel. Tem muito espaço à minha mesa.
Meus olhos, nervosos, se voltam para o bar.
— E-eu não sei — digo, fingindo estar relutante. — Não conheço você.
— Claro que não — concorda André, me puxando pela mão mesmo assim. — Mas eu sou legal. Juro. Venha. Você está em Nova Orleans. Precisa se divertir enquanto está aqui. Ninguém vai incomodar você.
André me puxa com delicadeza para o lado dele e eu sigo sem protestar até a mesa, onde sou cumprimentada pelos dois caras e só uma das garotas. A outra, a do cabelo preto, emburrada, não parece tão receptiva.
— Abra um espaço aí, cara — diz André para o homem louro, à direita. — Deixe a moça se sentar.
O cara se levanta e puxa a cadeira para mim. André gesticula com um enorme sorriso no rosto de menino bronzeado, e eu me sento. Ele me acompanha.
— Pegue bebidas para a gente — ordena André para o cara louro, mas olha para mim e pergunta: — O que você vai tomar? Mais uma Dos Equis?
— Claro, obrigada.
O cara louro desaparece na multidão.
— Ah, obrigada por me perguntar — diz a garota de cabelo preto, com desdém.
André ri.
— Meu anjo, você nem terminou a que está tomando. Faça o favor de sossegar, porra. Tudo na paz. — Ele estende a mão e dá uns tapinhas no joelho dela, e até eu acho aquilo arrogante.
Sorrio discretamente para ela, mostrando que o homem é meu. Na mesma hora, vejo seu olhar territorialista se transformar em uma completa fúria. Ela me fuzila com os olhos do outro lado da mesa, enquanto sua amiga bêbada continua a acariciar a tatuagem no pulso do outro cara sentado ao lado dela. Essa aí nem se importa com a minha presença. O cara no qual está interessada parece ligado somente nela.
— De onde você é? — pergunta André.
Sorrio e enrolo as pontas do cabelo no dedo.
— Sou do Texas. Estou aqui de férias.
A garota de cabelo preto ri com desprezo e diz:
— Isso explica o sotaque caipira.
Eu nem havia notado que estava falando com sotaque, mas, agora que ela comentou isso, não sei se devo ficar orgulhosa por desempenhar o papel tão bem ou assustada por ter feito isso com tanta facilidade, sem nem perceber.
Dou outro sorrisinho para ela.
— E você deve ser da periferia, para ser tão barraqueira.
— Calma, meninas — diz André, erguendo as mãos, como se estivesse apartando um confronto físico iminente.
O cara louro volta com quatro cervejas entre os dedos. Ele as coloca diante de nós.
— Bom, você está em boas mãos esta noite — comenta André, tomando um gole de cerveja e deixando a garrafa na mesa. — Posso levar você para conhecer a cidade mais tarde, se quiser.
A garota de cabelo preto bufa. Estreitando os olhos, ela encara André.
— Espera aí, eu achei que a gente ia...
— Sossega, porra — interrompe André, balançando a cabeça. — Eu falei para todo mundo ir, Ashley, não só eu e ela. — Ele olha para mim e diz: — Você não se importa, né?
Não sei ao certo o que ele está perguntando, mas estou me lixando; quanto antes eu me livrar dessa garota, melhor.
— Não, tudo bem. Vou adorar a companhia de vocês.
Ashley se levanta de supetão, empurrando a cadeira contra a parede e pegando a bolsa na mesa.
— A gente precisa ir para casa — avisa ela para a amiga de cabelo claro. — Vamos.
Bem, isso foi fácil demais. Uma parte de mim queria continuar nossa guerrinha particular. Eu estava me divertindo muito.
A garota de cabelo claro cambaleia um pouco ao se levantar da cadeira e pega Ashley pelo braço.
— Não quero ir para casa ainda — reclama ela, segurando a mão do cara tatuado. — Vamos ficar mais um pouquinho.
— Não, eu vou embora — insiste Ashley, arrastando a amiga.
— Ah, para, gata! — intervém André, levantando e estendendo as mãos com as palmas para cima. — Não faz isso.
— Vá se ferrar, Tartaruga! — resmunga ela, lançando um olhar furioso na minha direção. — Estou de saco cheio das suas palhaçadas. Você faz isso toda vez que vem aqui. Apague meu telefone.
André fica boquiaberto, mas não parece muito magoado e se esforça ao máximo para não sorrir. Ele passa a mão pelo cabelo cacheado e escuro. Noto uma tatuagem na parte de baixo do braço dele, perto da axila.
Ashley e a amiga se afastam da mesa, discutindo, e me deixam sozinha com André e seus colegas. De repente, me sinto exposta por ser a única mulher à mesa.
— Espero que isso não tenha sido culpa minha — digo, tímida.
André revira os olhos e se reclina na cadeira, esticando as pernas sob a mesa.
— Não. Ela é assim mesmo. Ainda bem que não é minha namorada. — Ele levanta a mão e gira o dedo indicador perto da cabeça. — Se é que você me entende.
Rio e tomo mais um gole de cerveja.
— É, ela parece mesmo um pouco doidinha. — Na verdade, acho que ele é um babaca. Ashley podia ser uma vaca, mas algo me diz que ela tem todo o direito de agir assim. Está claro que os dois se conhecem há um tempo e que ele a humilha de alguma forma toda vez que se encontram. A única culpa que ela tem é a de tolerar as merdas que André faz.
— Então você está aqui de férias — afirma André, apoiando os cotovelos na mesa. — Com quem você veio?
Sorrio com timidez e apoio as mãos na bolsa no meu colo.
— É sério — insiste ele, chegando mais perto. — Ainda estou tentando entender por que você está sozinha na balada.
Finjo tentar esconder o rubor do meu rosto.
— Bom, eu vim com a minha amiga Dahlia. Mas ela estava se sentindo mal e não quis sair. Ficou no hotel.
— Ah. — Ele assente. — Onde você está hospedada?
— No Sheraton. Lá na rua Canal — respondo.
Ele tem que achar que sou ingênua, e revelar informações pessoais tão facilmente deve ajudá-lo a formar essa opinião sobre mim.
— É longe para vir a pé. Vir andando lá da rua Canal.
— Não, nem é tão longe. Mas confesso que trapaceei. Andei um pedaço do caminho e depois peguei uma carona em um daqueles trecos que parecem triciclos.
André joga a cabeça um pouco para trás e ri.
— Trecos que parecem triciclos. Que linda. — Ele aponta para mim e olha para o cara com a tatuagem no pulso. — Ela é linda.
O cara me cumprimenta com um aceno discreto e volta a olhar para o celular, passando os dedos na tela.
— Esse é David — diz André, apresentando o cara da tatuagem. — Ele tem um relacionamento doentio com a tecnologia. Acho que até esse celular transa mais do que ele.
Abafo uma risadinha.
— Cala a boca, Tartaruga — fala David, com tranquilidade, sem levantar a cabeça.
André sorri para mim.
Ele aponta para o cara louro que trouxe as cervejas.
— Esse é Joseph. Ainda não o conheço o suficiente para sacanear. Mas me dê um ou dois dias e eu vou ter alguma ideia.
— Que nome é esse? Tartaruga? — pergunto, dando risada.
André parece desanimar um pouco.
— É só um apelido. O meu querido pai me deu quando eu tinha 6 anos.
— Ah...
Ele sorri.
— Não se preocupe. Ele ainda está vivo e bem. Só é um babaca.
David, o cara da tatuagem, ergue os olhos do celular por um instante. Tenho uma sensação estranha, como se ele não achasse correto André chamar o próprio pai de babaca.
André o ignora.
Não perca tempo demais tagarelando com ele, penso comigo mesma, sabendo que Victor está me esperando lá fora, não muito longe. Ele está ouvindo tudo o que nós falamos (por cima da música e do vozerio, espero), mas não consigo ouvi-lo resmungando sobre o tempo que estou perdendo. Apenas tenho certeza de que é isso que ele está fazendo.
— Ei, hum, você quer sair para dar uma volta? — pergunto. É arriscado demonstrar que já confio o suficiente nele para sairmos juntos em tão pouco tempo. Mas preciso fazer a situação progredir, e não há como saber quanto tempo vamos ficar aqui, curtindo e bebendo, até André se sentir confiante o bastante para achar que irei embora com ele.
Ele parece um pouco surpreso, mas logo aceita minha repentina mudança de personalidade. Levantando da mesa, ele ajeita a camiseta regata preta por cima do jeans.
— Com certeza — diz ele, pegando a cerveja com uma das mãos e estendendo a outra para mim. — Vamos.
Ele encosta o gargalo nos lábios e toma o resto em um gole só, deixando a garrafa vazia na mesa. Enquanto André se despede dos outros dois caras, sinto de repente sua mão livre descer pelas minhas costas. E, antes de chegarmos à porta lateral que dá para o pátio, percebo quão depressa a personalidade dele também mudou. Do nada, ele passou de cavalheiro respeitável a babaca de mão-boba, convencido de que vai se dar bem esta noite e de que eu sou a garota que vai abrir as pernas para ele.
— Cacete, você é muito gostosa — diz ele, e me encolho toda por dentro. — Tem certeza de que o seu namorado não veio? Não estou a fim de levar porrada hoje.
Olho para ele ao meu lado, andando tão perto de mim que seu quadril está pressionando o meu, e ligo meu modo sedução, deixando um sorriso sugestivo aflorar nos cantos dos lábios.
— Sem namorado. Juro.
Ele tira a mão das minhas costas e me puxa para perto, e sinto os dedos dele agarrando minha cintura.
— Ei — digo, afastando suas mãos com cuidado. — Vamos com calma. Não sou uma dessas.
Ele não leva minha recusa a sério e me puxa para mais perto, mas eu também não estava falando muito sério.
— Tudo bem, tudo bem — concorda ele, com ar resignado e sorriso ainda intacto. — Eu vou me comportar.
Começamos a andar na direção oposta de onde Victor estacionou o carro. Paro na calçada, olhando para os dois lados e fingindo refletir sobre qual direção tomar.
— Vem, eu mostro a cidade para você — sugere André, tentando me puxar com ele.
— Vamos para lá — digo, apontando na direção da escola. — Eu ainda não conheço aquela rua.
— A gente dá a volta. — Ele me segura com firmeza pela cintura de novo. Odeio ser tocada assim por ele. Assim ou de qualquer outro jeito. — Tem mais coisas legais para lá.
Engulo em seco e então cedo. Receio que, se eu continuar a empurrá-lo na direção que quero, ele possa começar a desconfiar.
Abrindo meu sorriso mais doce e tímido, vou com ele na direção oposta.
Caminhamos pela calçada de pedra e cruzamos com muitos turistas indo para todas as direções. Ouço o barulho de cascos trotando na rua em frente, e, quando viramos a esquina, uma carruagem puxada por mulas passa bem devagar. Olho para o nome da rua que estamos cruzando e digo em voz alta:
— A rua Bourbon tem de tudo mesmo. — Paro em frente a um prédio. — Maison Bourbon. Eu nunca ouvi um grupo de jazz de verdade. Vamos dar uma conferida.
André pega minha mão e me puxa de leve pela calçada, passando pelo prédio.
— Sinto muito, mas jazz não é a minha praia — comenta ele.
Nem a minha, na verdade, mas queria que Victor soubesse onde estou.
Minutos mais tarde, depois de virar em duas ruas mais escuras, o número de pedestres começa a diminuir. Continuo dizendo em voz alta o nome das ruas ou o nome de algum prédio, fazendo comentários ocasionais sobre onde estamos e pedindo explicações a André, exagerando no papel de turista sem noção. Não sei aonde ele está me levando, mas sei bem quais são suas intenções.
— Aonde a gente está indo?
— Não falta muito. — Ele aponta para a frente. — Tem outro bar indo por ali. Preciso falar rapidinho com uns amigos meus por lá.
Bom, não temos tempo para isso...
Mesmo se ele estiver dizendo a verdade, preciso assumir o controle da situação agora, enquanto estamos a sós e antes de voltarmos a um ambiente lotado, onde vai ser mais difícil atraí-lo para onde eu quero.
Eu me viro na calçada e paro diante de André, com um sorriso largo nos lábios e timidez no olhar.
— Espere aí — digo, segurando o pulso dele. Olho para o lado com ar envergonhado. — Por que a gente não... — Olho para o beco atrás dele, deixando que a nova ideia se desenrole na minha cabeça. Eu me aproximo dele, passando os dedos por seu cinto, que está mais baixo que o normal em sua cintura. — Por que a gente não vai para lá por uns minutos? — Sorrio de maneira sugestiva, enfiando os dedos indicador e médio por dentro do cinto.
André arregala os olhos e abre um sorriso, surpreso com a minha avidez. Mas então o sorriso se transforma em um esgar de tesão. Ele põe as mãos em meu quadril e se inclina para meu pescoço, inalando meu cheiro, com um rugido grave ecoando do peito.
— O que você tem em mente? — pergunta ele, beijando o ponto logo abaixo do lóbulo da minha orelha.
Dou um passo para o lado, tentando fazer parecer que quero que ele me siga, mas o que quero mesmo é afastar sua boca do meu corpo. Sorrio de volta para ele e digo:
— Você vai ver.
Então aceno para ele me seguir até o beco. Ando um pedaço do caminho na escuridão, passando por uma pequena fileira de latas de lixo, e paro logo depois. André está ao meu lado um segundo depois, com a mão direita apoiada na parede de pedra acima da minha cabeça.
Não perco tempo e começo a abrir o cinto dele, mexendo na fivela prateada com dedos desajeitados.
Caralho. Tomara que Victor tenha me ouvido pelo microfone, dando pistas da minha localização.
— Porra, gata — comenta André, olhando para mim com um sorriso excitado. — Você está a fim de trepar bem aqui no beco? Não esperava por isso, mas, pô, não vou reclamar.
Eu me afasto da parede de pedra e o empurro de costas contra ela.
— Ok, ok — diz ele, rindo baixinho. — Você é quem manda. Faz o que quiser comigo.
Eu me aproximo dele, reduzindo os 15 centímetros de espaço entre nós.
— Pode deixar — sussurro, e então acerto uma joelhada bem no meio das pernas dele.
André geme e se curva. Enfio os dedos no cabelo dele e puxo para cima, forçando-o a se endireitar. Meu joelho atinge seu rosto três vezes antes que ele caia para trás contra a parede, desorientado e com o nariz sangrando.
— Sua filha da puta! — xinga André, cuspindo as palavras.
Meu punho vai na direção do rosto dele, atingindo-o com tanta força que sua cabeça é lançada para trás e bate na parede, fazendo-o desmaiar.
Seu corpo cai desacordado na calçada, derrubando uma lata de lixo que está ao lado. O barulho reverbera pelo beco estreito, ecoando nas paredes dos prédios dos dois lados.
— Victor! — sibilo para o microfone entre os seios. — Espero que esteja me ouvindo. O André está apagado, mas não sei por quanto tempo. Venha depressa! — Dou detalhes da minha localização pelo microfone.
Passam-se três minutos que parecem trinta até o carro de Victor parar na entrada do beco, cantando os pneus na rua. Ele sai, deixa a porta aberta e corre na nossa direção com um passo raivoso e acelerado que me causa um calafrio no estômago.
— Está tudo sob controle — digo, e olho para André a meus pés.
André já está começando a se mexer quando Victor o puxa pelos antebraços e o põe de pé.
— Era para você levá-lo até o estacionamento — diz Victor com rispidez.
André começa a resistir enquanto Victor o arrasta para o carro.
— Falei que estava tudo sob controle. Como você vê, não fui eu que fui parar no chão.
— O que está acontecendo, porra? — grita André, tentando se desvencilhar de Victor.
Victor o joga no banco de trás, de bruços. Então apoia o joelho nas costas de André enquanto prende as mãos dele nas costas com uma tira dentada de plástico.
— Entre — ordena Victor.
Obedeço, correndo para o lado do passageiro e fechando a porta.
— Quem é você, caralho?! O que está acontecendo? Responde!
A voz de André soa estridente atrás de mim, preenchendo o pequeno espaço do carro.
Victor se vira no banco do motorista, se inclina para trás e dá um soco tão forte em André que o nocauteia.
— Obrigada — digo, enquanto Victor se senta e engata o carro. — Eu já estava ficando surda.
— Não bati nele por causa dos gritos — retruca Victor, sem olhar para mim.
Eu o observo manobrando com cuidado o carro pelas ruas estreitas cheias de veículos estacionados dos dois lados.
— Bati porque ele tocou em você — explica ele.
Eu me viro para a janela, escondendo o sorriso.
CAPÍTULO DEZESSETE
Victor
Fredrik está nos esperando à porta da garagem quando voltamos para o galpão. Entro no prédio, desligo o motor e Fredrik fecha o portão de aço.
Puxo o corpo inconsciente de André do banco de trás e o arrasto pelo chão de concreto, segurando as costas da camisa dele com firmeza.
Sarai me segue.
— Presumo que tenha havido um problema — sugere Fredrik, provavelmente percebendo a animosidade entre mim e Sarai, enquanto eu o ajudo a acomodar o rapaz na cadeira de dentista. Ele começa a amarrar André, primeiro pelo tórax.
— Não, problema nenhum — intervém Sarai, com um pouco de raiva na voz, parando atrás de mim. — Só não aconteceu do jeito que foi planejado.
Eu a encaro.
— Entrar e sair. Era para ser simples assim, Sarai. Você podia ter feito o cara mudar de ideia e seguir você até a escola.
Sarai está ficando mais irritada. A raiva está nítida em seu rosto quando ela me olha de lado. Mas não importa. Ela precisa aprender a seguir minhas instruções.
Eu a seguro pelo pulso, pegando-a de surpresa, e a puxo com violência para perto de mim.
— Você tem ideia do que esse merda poderia ter feito com você?
Puxo Sarai mais para perto, apertando seu pulso. Ela arregala os olhos de início, mas então os estreita com severidade, e minúsculas rugas de ódio sulcam o alto do seu nariz.
— Você não confia em mim para nada, Victor — diz ela, em um tom gélido, forçando as palavras por entre os dentes cerrados. Ela tenta desvencilhar a mão, mas eu a aperto mais.
— Isso não tem nada a ver com confiança e sim com você seguir as minhas ordens, aprender a seguir instruções. Tem tudo a ver com disciplina, Sarai. — Solto o pulso dela como se o jogasse no chão. Respiro fundo, tentando me recompor. Nem me lembro de quando foi a última vez que senti tanta raiva. — Eu sei que você quer fazer as coisas sozinha. Sei que é capaz, mas quanto mais você bate de frente comigo em relação a isso...
— Mais parecida com o seu irmão eu fico — interrompe ela, em um tom acusador. — Certo?
Fredrik aperta a última tira em volta dos tornozelos de André.
— Talvez fosse melhor vocês dois discutirem na outra sala — sugere ele, acenando para uma porta de madeira na parede oposta, abaixo de uma placa de metal desbotado onde se lê ESCRITÓRIO. — Eu cuido do resto.
Sarai e eu só nos entreolhamos, sem ter mais nada a dizer, então ela baixa os braços e vai para o escritório. Eu a sigo e fecho a porta da sala, que tem um tamanho razoável. Uma lanterna de LED brilha em uma mesa de madeira encostada na parede. Há uma única cadeira dobrável de metal ao lado dela, afastada da mesa como se Fredrik já tivesse se sentado nela antes de chegarmos. A sala está empoeirada e cheira a mofo e algo químico que não sei identificar. Há uma única janela na parede do outro lado, coberta de poeira, contra a qual foi empurrado um arquivo alto de metal.
— Por que você fica me comparando com Niklas? — pergunta Sarai, desta vez sem aquele tom irritado. Ela parece mais magoada do que furiosa. Cruza os braços, segurando os bíceps com seus dedos delicados.
— Sarai, eu... — Suspiro e me sento na cadeira ao lado da escrivaninha, com as pernas encolhidas. Jogo a cabeça um pouco para trás e volto a olhar para ela, de pé no meio da sala.
Começo a concluir o que eu ia dizer, mas ela se aproxima e fala antes que eu consiga.
— Desculpe — diz ela, quase em um suspiro. — Não estou tentando ir contra você, Victor. Não tenho nenhum plano secreto de fazer as coisas do meu jeito só para provar que consigo. Desculpe. Eu estava improvisando, fazendo o que achava que seria o certo naquele momento. Só isso.
Ela para a um braço de distância de mim. Olho para ela, reparo no jeito como seu cabelo castanho-avermelhado envolve os ombros nus e macios. Como ela fica alta com aqueles saltos. A curvatura esguia do seu corpo, que não consigo tirar da cabeça. Ela inclina a cabeça para um lado. Incapaz de resistir, eu a puxo para o meu colo, apoiando-a em uma perna. Posiciono minha mão esquerda atrás de sua cintura, apoiando a outra em sua coxa nua. Ela me olha de lado, depois roça os dedos na lateral do meu rosto.
— Victor — chama Sarai, com voz suave —, eu não sou Niklas. Nunca vou ser. Olha o que ele fez. Eu jamais trairia você.
— A questão não é essa — respondo, passando a mão na parte inferior de suas costas. — Não quero comparar você com meu irmão, mas as semelhanças, sua impetuosidade, seu temperamento, sua incapacidade de seguir as minhas ordens...
— Suas ordens? — pergunta ela, franzindo o cenho. Sarai balança a cabeça devagar, depois se vira para me encarar melhor. Seus traços são suaves, seu olhar não parece nada ofendido, mas ao mesmo tempo sinto que estou prestes a ser repreendido. — A gente precisa deixar uma coisa bem clara, antes de continuar.
Inclino a cabeça para um lado, olhando em seus olhos escuros. Nunca estive tão cativado por uma mulher. Jamais. Não desse jeito. Estou acostumado a conseguir as coisas sempre do meu jeito, a ser quem está no comando. Nunca consegui olhar para uma mulher e ceder aos desejos dela. Não consegui fazer isso com Samantha, que sei que já me amou muito. Eu a deixei. Não pude dar o que ela queria. Mas quando olho para Sarai, quando percebo o modo como ela me encara com aquela expressão suave, porém implacável, em seus lindos olhos verdes, sei que não importa o que ela me diga nem quanto ela me desafie: não vou conseguir me afastar dela.
— Eu não sou um dos seus soldados, Victor. Nem um dos seus informantes, contatos ou associados. Sim, eu quero que você me ensine coisas. Quero fazer o que for preciso para ficar com você e fazer parte da sua vida. Mas você não pode mudar o que sou. E não pode me tratar como se eu fosse um dos seus caras. — Ela inclina a cabeça para o outro lado. — Quer dizer, claro que você pode, se quiser, mas eu não vou mudar. Entendeu?
O que é que está acontecendo comigo? Em vez de me desanimar e me fazer tirar Sarai do colo, essa atitude desafiadora só me faz desejá-la mais.
Suspiro.
— Não quero que mude, mas vai precisar aprender a me ouvir nesse tipo de situação.
— Era só um cara — argumenta ela. — Você sabe tão bem quanto eu que eu conseguiria derrubá-lo. E consegui. Ele é só um pouco mais pesado do que eu.
Balanço a cabeça.
— Não, Sarai, você não entende. Você não imagina quantas pessoas, principalmente turistas, mulheres e adolescentes, esse André Costa ajudou a sequestrar na América do Sul.
— Mas a gente não está na América do Sul.
— Nem é preciso. Pessoas são sequestradas todo santo dia nos Estados Unidos e levadas para outros países, escravizadas, assassinadas. A lista é interminável. Você, mais do que ninguém, deveria saber como é fácil ser forçada a levar uma vida de escravidão e como é difícil ser libertada. A maioria nunca é.
— Mas eu sabia que você estava me ouvindo pelo microfone — insiste Sarai, e sinto que ela está começando a perder a autoconfiança. — Fui esperta e falei em voz alta o nome de cada rua pela qual a gente passou.
— Eu sei — digo baixinho, esfregando a mão na coxa dela. — Mas e se eu não tivesse ouvido as pistas que você deu? E se André levasse você até um carro ou a um prédio como este e os homens que estavam com ele no bar estivessem lá, esperando para prender você?
— A gente não pode viver pensando no “e se”, Victor.
— A gente já vive pensando o tempo todo no “e se”. Não vivemos com medo, mas, sim, preciso levar todas as possibilidades sempre em conta.
Sarai abre a boca e desvia o olhar.
— Seu pedido foi para que eu ajudasse e treinasse você — continuo, erguendo o queixo dela com o dedo. — Você disse que faria qualquer coisa. Estou pedindo que confie na minha experiência de uma vida inteira e não me desafie mais.
Ela assente.
— Tudo bem, mas não quero que você fique bravo comigo se eu não conseguir me controlar.
Um sorriso aquece meus olhos.
Eu sei que nunca vou conseguir fazer Sarai mudar, mas é disso que gosto nela. Não quero que ela mude. Só quero que ela entenda que sou eu quem sabe o que está fazendo. Não vou lhe dizer isso, mas eu jamais a mandaria para uma missão que eu soubesse que ela não seria capaz de realizar. Atrair André até o carro era uma tarefa simples. Eu sabia que ela conseguiria. Sabia que ela daria conta do cara se os dois estivessem sozinhos, senão nunca a teria mandado para lá. Deixá-la fazer essa parte não era minha maneira de confirmar se ela era capaz ou de permitir a ela “praticar com alvos fáceis”. Era minha maneira de verificar quanto ela era capaz de obedecer a ordens.
Mas Sarai tem uma mente independente. Por mais que me irrite o fato de ela não me ouvir tanto quanto eu gostaria, ao mesmo tempo é isso que me deixa louco por ela.
Sinto seus lábios tocando os meus. O cheiro de sua pele me inebria por um instante. Inspiro seu hálito para o fundo dos pulmões e seguro seu rosto com firmeza enquanto ela se vira, montando no meu colo.
— Você ainda vai me matar — sussurro em seus lábios, antes de deslizar a língua para dentro de sua boca.
O grito apavorante de André ecoa pelo galpão.
Sarai afasta os lábios dos meus e endireita as costas.
— Que droga Fredrik está fazendo com ele?
Seguro sua cintura.
— Você não vai querer saber.
Ela balança a cabeça com determinação e desce do meu colo.
— Na verdade quero, sim.
CAPÍTULO DEZOITO
Sarai
— Filho da puta! Eu não sei de nada! AHHH!
Abro a porta do escritório e ouço os gritos de André encherem o ambiente. Seus punhos estão presos aos braços da cadeira por duas correias de couro tão apertadas que as mãos mudam de cor quando ele tenta se soltar. Sangue escuro brilha em seus lábios, escorrendo pelo queixo e pelo pescoço.
Fredrik segura um alicate ensanguentado na mão enluvada de látex branco.
— Sua puta do caralho — ruge André para mim quando apareço sob a luz fraca. Seus olhos enfurecidos correm por nós três. Victor está atrás de mim, agora. — Meu irmão vai achar vocês antes que saiam desta cidade. E vai matar vocês, caralho!
Fredrik solta algo do alicate em uma bandeja prateada na mesa ao lado. O objeto tilinta na superfície. Sempre muito calmo, muito sofisticado, e a imagem dele inclinado sobre um homem ensanguentado que é exatamente seu oposto me parece assustadora. É estranho que essas diferenças gritantes possam conviver no mesmo cômodo sem que se anulem.
— Quem é o seu irmão? — pergunta Fredrik, tranquilo.
— Vai se foder! — Junto com as palavras, André cospe sangue.
Calmo, Fredrik segura o queixo de André, encaixando os dedos com firmeza nas bochechas enquanto o látex branco fica vermelho. André luta para se desvencilhar, se agitando de um lado para outro, mas mal consegue mexer a cabeça, com a correia de couro tão apertada ao redor da testa.
— Não vou contar porra nenhuma! — grita André, engasgando com o sangue que escorre pela garganta. — Vai fundo! Arranque todos! Nada que um implante não dê jeito! — provoca ele. O modo como seu corpo se retorce e como ele afunda os dedos nas palmas das mãos, contudo, contam uma história muito diferente.
Fredrik saca o alicate e o prende em um dos dentes incisivos de André, que engasga e cospe um pouco mais. Percebo que está tentando falar, mas suas palavras são indecifráveis. Ele grita em meio a gemidos e grunhidos, abrindo e fechando os olhos pela dor e pela exaustão mental.
— Onde está Edgar Velazco? — pergunta Fredrik, ainda com o alicate segurando o dente de André.
André gargareja algo inaudível, mas que parece muito com “Vai se foder!”. Os ossos da mão de Fredrik se tensionam quando ele começa a puxar. André grita de dor, agitando os punhos nas amarras, seu corpo todo enrijecendo e se contorcendo na cadeira. O dente sai depois de alguns movimentos do alicate para a frente e para trás que me provocam um embrulho no estômago, e os estalos do osso me fazem querer tapar os ouvidos até que acabe.
Estou enojada pela ação, mas indiferente ao propósito.
Um segundo depois, ouço mais um clink quando o segundo dente é jogado na bandeja de metal.
André ainda consegue repetir “Vai se foder” algumas vezes, mas as palavras saem entre lágrimas de raiva e ameaças de vingança.
— O nome do irmão dele é David — anuncio, dando um passo à frente. — E eu vi a cara dele.
Fredrik me olha, ainda com o alicate ensanguentado na mão.
— Como você sabe? — questiona Victor ao meu lado.
André está em silêncio, uma prova involuntária da veracidade das minhas palavras. Era só um palpite, depois de observar o olhar de David quando André chamou o pai de babaca lá no bar. Eu mesma não tinha tanta certeza até agora.
— Ele estava com André no bar.
Victor passa por mim e atravessa o galpão até o carro. O som da porta se fechando ecoa pelo ambiente, e então ele volta carregando sua maleta.
Fredrik baixa a mão que segura o alicate enquanto André enfim tenta nos desmentir, embora saiba que é tarde demais para isso.
— Meu irmão nem está em Nova Orleans! — grita ele, agora com menos controle sobre a pronúncia das palavras. Parece estar tendo dificuldade para a língua não escorregar pelo buraco deixado pelos dois dentes da frente. — Ele nem está no país! — André tenta rir, mas outro rio de sangue escorre para dentro da garganta, e ele acaba se engasgando.
— Ah, mas você acabou de dizer — começa Fredrik — que seu irmão vai nos achar e nos matar antes que a gente saia da cidade. Como isso seria possível, se ele não estivesse aqui? — Ouço o sorriso diabólico na voz de Fredrik, mas ele o mantém bem escondido no rosto.
Os lábios ensanguentados de André se fecham.
Victor abre a maleta em cima de um caixote próximo e tira uma série de fotografias. Eu me aproximo e ele as entrega para mim.
Já sabendo o que ele quer que eu faça, começo a folheá-las enquanto ele anda até o outro lado de André, diante de Fredrik.
Ele junta as mãos às costas e olha para o rosto angustiado de André.
— Seu irmão, David, vai ser o próximo — anuncia Victor, tão calmo quanto Fredrik. — E tudo o que acontecer com você aqui, hoje, também vai acontecer com ele. Agora conte para a gente, onde está Edgar Velazco?
André desvia o olhar para o teto alto de zinco. Ele se recusa a falar.
Victor recua discretamente para evitar ser borrifado pelo sangue de André no momento em que Fredrik enfia mais uma vez o alicate na boca do refém. André grita de agonia, e sua voz ecoa pelo espaço amplo.
Clink.
— É este aqui. — Aponto para uma fotografia e depois a levanto para mostrar. — Ele estava lá. A mesma tatuagem no pulso. Com certeza é ele.
Um soluço patético percorre o corpo de André, mas tenho a sensação de que não tem nada a ver com o fato de que seu irmão vai sofrer a mesma tortura que ele. É óbvio que está sentindo uma dor horrível. Também tenho a sensação de que Fredrik está apenas começando e que arrancar todos os dentes de André é só o início de uma noite muito longa de tortura.
Dezesseis minutos se passaram. Sem querer, acabei marcando o tempo, pois deixei os números verdes luminosos do relógio de Fredrik, pousado na mesa, prenderem minha atenção. Era melhor do que assistir a Fredrik arrancando os dentes de André. Mas André ainda não cedeu. Lágrimas e suor escorrem de seu rosto, misturando-se com o sangue. Seu corpo, amarrado na cadeira, parece fraco, capaz apenas de se enrijecer quando Fredrik está lhe causando mais dor. Contudo, assim que Fredrik se afasta, o corpo de André desiste de lutar e derrete sobre o couro. Sua cabeça cai exausta para um lado, seus punhos cerrados se abrem, permitindo que os dedos escapem das palmas das mãos.
— O-o que é isso? — pergunta André, assustado e com a gengiva destruída.
Fredrik pega um estojo redondo de plástico, fazendo-o girar entre o polegar e o indicador. Uma agulha prateada brilhante sai de uma extremidade e ele a segura com cuidado entre os dedos, deixando o estojo na mesa.
— Onde está Edgar Velazco? — pergunta Fredrik mais uma vez, ainda sem nenhuma emoção na voz.
Ele segura a mão esquerda de André, abre seus dedos à força e prende a mão sobre o braço da cadeira. André arregala os olhos. Desesperado, ele tenta tirar a mão e fechar o punho de novo, mas as amarras e o peso que Fredrik exerce sobre os nós de seus dedos tornam inútil todo esse esforço.
Com a mão livre, Fredrik encosta a agulha no dedo mindinho de André e segura a ponta afiada sobre sua pele.
Começo a ficar zonza. Não sei como consegui aguentar enquanto os dentes de André eram arrancados, mas a ideia de Fredrik enfiando agulhas debaixo das unhas dele é demais para mim.
Victor me olha e percebo que não estou escondendo meu desconforto tão bem quanto eu queria.
— Vou perguntar mais uma vez — insiste Fredrik. — Onde está Edgar Velazco?
O corpo de André começa a tremer, suas narinas se abrem e o branco de seus olhos se torna muito mais visível do que estava momentos atrás. Sua mandíbula está cerrada, suas bochechas se mexem como se ele as mordesse por dentro, tentando passar parte da dor para outras regiões do corpo. Mas ele continua sem responder. Gostaria que ele respondesse. Só quero que ele ceda para se salvar. Pouco me importa o que vai acontecer com ele, mas não tenho estômago para tortura. Preferiria que Fredrik acabasse com o sofrimento dele de uma vez.
Um grito de gelar o sangue sai dos pulmões de André quando Fredrik enfia a agulha debaixo de sua unha. Não consigo me segurar e minhas mãos tapam os ouvidos enquanto fecho os olhos com força, me curvando. Sinto um toque no meu ombro e me viro, aproveitando a oportunidade para olhar em qualquer direção que não seja a de André.
— Por que você não vai esperar lá no escritório? — sugere Victor, segurando meu cotovelo com delicadeza, pronto para me levar até lá.
— Ele é o meu pai! — ouço André gritar. — Não me peça para entregar o meu pai! Por favor!
Victor e eu nos viramos ao mesmo tempo.
— Tire ela daqui — pede Fredrik, e ele nunca me pareceu tão ameaçador e persistente. Antes, ele parecia estar curtindo aquilo, parecia gostar que eu visse aquele lado sombrio. Mas agora ele assumiu uma atitude profissional. E não quer mais plateia.
Sem ter como argumentar, sigo Victor de volta para o escritório. Assim que a porta se fecha, os gritos de André se espalham pelo galpão de novo. Posso não estar mais assistindo, mas a imagem ainda está lá, nítida como se eu estivesse presente. Não consigo tirar a cena da cabeça, e a cada grito ela é gravada mais fundo na minha memória, como as agulhas que Fredrik está enfiando sob as unhas de André.
Em menos de cinco minutos, após André suportar tudo o que foi capaz, eu o ouço entregando o pai. Ele conta tudo. Uma localização na Venezuela tão precisa que ele informa não só detalhes importantes das redondezas e de como chegar lá, mas também o endereço. Ele também entrega o irmão, David, diz onde ele está em Nova Orleans e revela todos os seus contatos.
Trinta minutos se passam e continuo no escritório. Nesse tempo, Fredrik entrou uma vez e falou com Victor para verificar a localização de David em Nova Orleans.
— E agora? — perguntei, logo antes de Fredrik sair do escritório.
— A gente espera — respondeu ele ao sair.
— Espera o quê? — perguntei a Victor.
— Espera para saber se o nosso contato vai retornar a ligação e dar o sinal verde — explicou ele. — Precisamos ter certeza de que o André estava dizendo a verdade sobre onde encontrar o irmão, antes de prosseguir.
— Prosseguir?
Victor assentiu, mas não respondeu. Nem precisava. Eu já sabia o que aconteceria a seguir.
Minutos depois, tudo cai em um silêncio sombrio. Não ouço mais os gemidos de André nem o rangido da cadeira revestida de couro na qual ele lutava para se libertar das amarras.
Olho para Victor com uma expressão de dúvida e preocupação no rosto.
— Você está bem? — pergunta ele, com voz calma.
Faço que sim, mas não estou tão bem quanto gostaria de estar. Minha pele continua arrepiada e a base das minhas unhas formiga e dói.
— Estou ótima. — Engulo em seco e vou até a porta.
Victor põe a mão na velha maçaneta prateada antes de mim.
— Talvez seja melhor você esperar Fredrik terminar de limpar tudo.
— Limpar tudo... o quê, exatamente?
Já sei a que ele se refere, mas de certa forma quero ouvi-lo dizer, só que não lhe dou oportunidade.
— Já falei que estou ótima — repito, baixinho, garantindo que, mesmo depois de sair por aquela porta, não importa o que eu veja, ainda estarei ótima.
E sei que vou estar.
Victor solta a maçaneta, e eu a giro.
Quando saio do escritório e me aproximo da luz fraca que cobre a área onde Fredrik está, vejo o corpo sem vida de André ainda sentado na cadeira. Fios espessos de sangue escorrem do couro do assento para o chão, formando uma poça escura que mancha o imundo piso de concreto. Meus olhos sobem do sangue para as mãos de André, agora completamente abertas, seus dedos mortos pendendo dos braços da cadeira, sem mais nenhuma função muscular que lhes permita o menor movimento.
Os olhos. São sempre os olhos...
Os de André estão abertos, parecendo me observar do outro lado da sala, mas vazios. Completamente vazios. Há um corte profundo cruzando a frente do seu pescoço, de uma orelha à outra.
Fredrik começa a soltar as amarras quando me aproximo.
— Achei que você só matasse quando necessário — comento, olhando apenas para o cadáver nem um pouco traumatizada por isso. Era a tortura do corpo vivo que eu não conseguia suportar.
Fredrik tira o pino da fivela da última correia de couro.
Ele endireita as costas e se vira para me encarar.
— Eu precisei matá-lo.
Um tanto perplexa por seus critérios, que para mim indicavam que ele só mataria em legítima defesa, apenas olho para Fredrik, desesperada por respostas. Ele me dá as costas e continua “limpando a sujeira”.
— Mas ele contou o que você queria saber.
— A gente não podia deixá-lo vivo — intervém Victor, chegando perto de mim. — Ele ia avisar Velazco e o irmão. Velazco iria se mudar antes que a gente chegasse à Venezuela. E o irmão dele sairia de Nova Orleans antes que a gente tivesse chance de capturá-lo.
— Vocês vão atrás dele também? — pergunto, ainda confusa com a ordem dos acontecimentos.
Victor assente.
— Se as informações de André e do irmão baterem, saberemos que a localização que eles deram está correta. Vamos manter o irmão vivo até encontrar Velazco, e então ele vai ser eliminado, junto com o resto da família.
Ele vai até a maleta que está no caixote.
— A gente vai capturar o irmão hoje — explica ele, destravando os fechos e abrindo a maleta.
Fredrik mexe em uma grande bolsa de viagem largada no canto mais próximo, na sombra, e desenrola um saco comprido e preto no chão, longe das manchas de sangue. Ele abre o zíper no meio.
— Cadê o gravador? — pergunta Victor a Fredrik.
Fredrik enfia a mão no bolso da calça preta e lança o pequeno aparelho para ele. Victor pega o gravador no ar. Ouve os gritos horripilantes de André Costa e as informações que ele revelou antes de guardar o aparelho com segurança em sua maleta.
Victor, então, enfia as mãos em um par de luvas brancas de látex e vai até o corpo de André, segurando-o sob as axilas. Fredrik o segura pelos pés, eles levantam o cadáver da cadeira e o colocam no saco mortuário aberto no chão. Fredrik fecha o zíper em seguida.
— O que vocês vão fazer com ele? — pergunto, muito curiosa.
Ouço a borracha estalando quando Victor tira as luvas. Fredrik continua com as suas e começa a limpar a sala, borrifando a cadeira e a mesa com alguma solução transparente de uma garrafa de plástico com um bico longo e vermelho. Ela tem um cheiro forte de água sanitária.
— Alguém vai passar aqui para buscá-lo dentro de uma hora — responde Victor. — Precisamos ir embora.
— Mas... Para onde vão levar o corpo?
— Para os pântanos — explica Fredrik com calma, enquanto limpa o sangue da cadeira com um trapo branco. Então ele ergue o olhar para mim e acrescenta, com aquele sorriso diabólico por trás dos olhos que estou muito acostumada a ver: — Jacarés adoram tartarugas.
Reviro os olhos e rio.
Antes de voltar para o carro com Victor, me viro e olho para Fredrik.
— Tem alguém que você nunca conseguiu dobrar?
No mesmo instante, o sorriso dele desaparece e o clima do ambiente muda. Eu me arrependo da pergunta mesmo sem saber a resposta.
Noto que a garganta de Fredrik se move quando ele engole em seco. Ele cerra os dentes. Seus olhos escurecem, como se a lembrança o torturasse mais do que tudo o que ele fez com André Costa alguns minutos antes.
— Minha esposa — responde ele.
Inspiro em silêncio e engulo o nó que se formou na minha garganta. Contudo, em vez de ficar enojada pela verdade, em vez de sentir apenas repulsa e raiva de Fredrik, meu coração começa a sentir pena dele. Não sei por quê, mas só consigo sentir dor.
CAPÍTULO DEZENOVE
Sarai
A caminho de um hotel onde vou me hospedar enquanto Victor e Fredrik procuram David, Victor me conta sobre Fredrik.
— Meu Deus... Victor, por que ele torturaria a própria mulher? — pergunto do banco do passageiro. — Eu... eu não consigo imaginar por quê...
— Ele não teve escolha — interrompe Victor. — Anos atrás, Fredrik era só um contato. Nunca interrogava nem matava ninguém. Cuidava de um abrigo em Estocolmo. E foi assim que ele conheceu Seraphina.
— Ela era uma agente?
Victor assente.
— Trabalhava para Vonnegut, como eu — continua ele, virando na rua Canal. — Depois de alguns anos de visitas de Seraphina, eles se apaixonaram. Mas, por estarem na Ordem, como você sabe, não podiam deixar que ninguém soubesse dos sentimentos que tinham um pelo outro. Casaram-se em segredo, não no cartório, é claro. Então, depois de dois anos juntos, Fredrik começou a desconfiar que Seraphina estava enganando Vonnegut.
— Mas, se Fredrik a amava, por que contaria para Vonnegut? — pergunto, presumindo que é isso que Victor ia dizer em seguida.
— Ele não contou. Fredrik confrontou Seraphina. Ele queria primeiro fazê-la parar, salvá-la de ser eliminada pela Ordem. Ela admitiu que tinha sido empregada por outra organização e estava trabalhando contra Vonnegut. Como Fredrik não conseguiu fazê-la mudar de ideia, em vez de denunciá-la, porque amava muito a esposa, acreditou nas mentiras dela e começou a trabalhar com ela.
Meu coração afunda até o estômago, sabendo no que essa história vai dar. Os pedaços do quebra-cabeça chamado Fredrik Gustavsson enfim começam a se encaixar.
— Ela traiu Fredrik — digo, desta vez sabendo que estou certa.
— Sim. Seraphina começou a usar Fredrik para transmitir informações falsas sobre suas missões a Vonnegut. Então, pelo que entendi, ela começou a visitar Fredrik cada vez menos. Resumo da história: ele levou seis meses para descobrir aonde ela estava indo. Ele a encontrou em outro abrigo. Com outro homem. O resto você deve imaginar.
Balanço a cabeça, pensativa, tentando entender esse buraco no coração que sinto por Fredrik.
Seguimos até o fim da rua Poydras e estacionamos perto de um hotel à beira do rio. Victor desliga o motor e nós ficamos sentados na penumbra por um momento.
— Como estava cego de fúria e dor pela traição de Seraphina, Fredrik... — Victor olha pelo para-brisa, perdido nas lembranças daquele dia. — Foi como se alguém tivesse acionado um interruptor no cérebro dele. — Victor olha para mim, tentando não se apegar aos detalhes da lembrança para conseguir continuar a história. — Ele interrogou e torturou os dois. Matou o homem na frente dela, esperando que isso bastasse para fazê-la ceder, porque não queria matá-la. Mas Seraphina não cedeu. Era mais leal a seu empregador do que a Fredrik, o homem que ela dizia amar. Ela o destruiu. Ele nunca mais foi o mesmo. Isso foi há muito tempo.
Olho para baixo, ainda com o rosto de Fredrik na mente, e balanço a cabeça de novo, sem querer acreditar em nada daquilo.
— Por isso ele é daquele jeito? — Olho para Victor enquanto ele tira a chave da ignição.
— Acho que isso teve um papel importante na transformação dele. Seraphina foi a primeira pessoa que ele interrogou, além da primeira e única que ele não foi capaz de dobrar. Depois daquele dia, quando Fredrik contou a Vonnegut sobre a traição de Seraphina e garantiu seu lugar na Ordem, ele pediu para realizar missões de campo, em vez de ser só o contato em um dos abrigos. Vonnegut concordou, e, alguns anos depois, Fredrik era oficialmente um interrogador.
— Eu não sabia que os interrogadores dominavam habilidades tão mórbidas — digo, rindo de maneira desconfiada. — Ele mencionou que às vezes ajuda em suicídios também. Kevorkian? Isso é mórbido.
Victor dá uma risadinha.
— Fredrik é cheio de surpresas mórbidas — diz ele, e então abre a porta do carro. Ele sai com a maleta na mão e dá a volta até o meu lado. — Preciso que você fique no quarto até eu voltar. Mas acho que isso só deve acontecer amanhã.
Saio do carro e ele fecha a porta.
— Você não vai me deixar atrair David?
— Não. Ele já conhece seu rosto e sabe que você e André saíram juntos. A esta altura, você deve ser a única pessoa desta cidade que ele quer encontrar.
Antes de entrarmos no saguão do hotel, paro Victor em frente às portas altas de vidro.
— O que aconteceu com Seraphina?
Victor olha para além de mim, pensando.
— Não sei. Fredrik se recusa a falar sobre o assunto, o que me leva a crer que no fim ele a matou.
Victor não voltou para o hotel até o fim da manhã do dia seguinte. Fiz exatamente o que ele mandou e não saí do quarto, nem para comprar uma bebida na máquina que vimos no corredor ao subir. Chamei o serviço de quarto e pedi que deixassem a comida no chão, em frente à porta. Assisti à TV, tomei banho e olhei da janela do 15º andar para a fervilhante cidade de Nova Orleans lá embaixo, sem parar de me perguntar o que Victor estaria fazendo. Se ele e Fredrik encontraram David e se David estava sofrendo o mesmo destino do irmão.
Quando Victor voltou, continuava tão limpo quanto estava no dia anterior: nem uma gota de sangue no terno. Claro que eu sabia que isso não significava nada.
Ele e Fredrik conseguiram a informação de que precisavam de David, e ela batia com a que André Costa forneceu. David foi mais fácil de dobrar. Victor me contou que Fredrik não precisou nem usar as agulhas. Uma parte de mim ficou feliz por isso. Eu só não queria pensar a respeito.
Fredrik ficou com David e Victor me levou de volta para Albuquerque.
— Achei que a gente já tinha resolvido isso, Victor. Por que você está me deixando aqui?
— Porque você não está pronta para me acompanhar em missões. — Ele está guardando com cuidado algumas peças de roupa em uma mala marrom ao pé da cama. — Com certeza não para ir até a Venezuela. Fica muito mais difícil se esconder quando se atravessa fronteiras.
Eu me sento na cama e então me deito, deixando as pernas pendendo para fora do colchão. Olho para o pé-direito alto e arqueado.
— Por quanto tempo você vai ficar lá?
— Até terminar o serviço — responde ele, e ouço os fechos da mala estalando.
— E o que eu devo fazer enquanto você está lá?
— O que você quiser. Só não se meta em encrencas. — Seu sorriso torto lhe garante perdão instantâneo.
— Bom, eu não posso ficar com Dina em Oklahoma? Ou será que ela não pode vir para cá ficar comigo? Vou ficar doida aqui sozinha.
— Você vai ficar bem — afirma Victor. — De qualquer maneira, ainda é cedo demais para arriscar uma visita à sra. Gregory. Quando Fredrik estiver livre, ele vem para cá ficar com você.
Levanto as costas da cama e me apoio com os cotovelos no colchão. Estreito os olhos para Victor.
— Fredrik. Você vai me deixar com Fredrik? — Sei que Victor confia nele, mas não completamente.
Não entendo esse raciocínio. Victor dá um leve sorriso.
— Está com medo de que ele enfie agulhas debaixo das suas unhas?
Pisco algumas vezes. É tão óbvio assim?
— Como eu disse, você vai ficar bem. — Victor sai do pé da cama e se agacha na minha frente. Ergo o corpo e o olho de cima.
A expressão dele está diferente: o sorriso sumiu, deixando somente uma expressão suave de dúvida e preocupação no rosto. Essa mudança de humor me deixa ansiosa e pouco à vontade.
— Sarai — diz ele, pondo as mãos sobre os meus joelhos —, lembre-se de tudo o que eu falei sobre confiança. Lembre-se de tudo o que eu já falei para você.
— Por que está dizendo isso? — Inclino a cabeça para um lado, e rugas de confusão e preocupação surgem em volta dos meus olhos. — Não gosto dessa conversa.
Ele fica de pé.
— Sempre confie nos seus instintos. — Ele pega a mala ao meu lado e vai para a porta.
— Espere — chamo, indo atrás dele.
Ele para e se vira para me olhar.
— Por que os meus instintos estão me dizendo agora que você está escondendo alguma coisa importante de mim?
Ele apoia a mala de novo no chão e se aproxima de mim, me envolvendo em seus braços. Sua boca toca a minha, sua língua quente abrindo os meus lábios com delicadeza. Ele me beija com fome, enfiando as mãos no meu cabelo, e, por mais que eu queira me deliciar com a paixão do momento, não consigo deixar de me perguntar se esse é um beijo de despedida.
Ele se afasta de mim com relutância e toca a ponta do meu queixo com o dedo indicador.
— Porque eles estão certos — responde Victor, enfim. Pisco, atordoada por sua confissão. — Vamos torcer para que você não perca esses instintos.
Sem mais uma palavra, Victor sai da casa rumo a algum aeroporto para pegar um voo para a Venezuela.
CAPÍTULO VINTE
Sarai
Dois dias já se passaram sem novidades, e estou cada vez mais inquieta sozinha neste casarão, com as altas paredes amarelas e o chão de terracota como minhas únicas companhias. Não consigo passar muito tempo vendo TV, embora após gastar a maior parte da juventude presa no México, apenas com novelas mexicanas como diversão, fosse de esperar que a TV americana me parecesse um luxo bem-vindo. Mas me cansei dela em pouco tempo, depois que comecei minha vida temporária com Dina no Arizona, oito meses atrás. Tampouco tenho costume de ouvir rádio, o que faço muito de vez em quando. Mas eu tinha começado a tocar mais piano. Sempre vou amar piano. Eu até gostaria que Victor tivesse um aqui na casa, para que eu pudesse tocar.
Ando descalça pelo casarão, verificando mais uma vez se todas as portas e janelas estão trancadas. Mas é a última vez que verifico, pois me recuso a ficar paranoica, mesmo em nome de Victor e de sua às vezes peculiar, mas sempre incessante, preocupação comigo. Só que não posso negar que gosto disso nele.
Penso muito no que Victor me disse antes de viajar. Quero mais do que tudo, neste momento, entender o significado daquelas palavras enigmáticas. Sinto que ele está me testando de novo. Por isso meus instintos estão gritando comigo. Mas o que mais me preocupa é que, lá no fundo, sei que este teste tem muito a ver com Fredrik. Estou começando a me perguntar até onde Victor é capaz de chegar para me treinar.
E estou começando a me perguntar quanto ele realmente confia em mim...
Horas depois, no fim da tarde, quando decido que vou ceder e suportar uma horinha de TV, ouço um carro estacionando lá fora, na frente da casa, pequenos pedaços de brita estalando sob os pneus. Corro para a janela para ver quem é.
Meu coração pula quando vejo a maçaneta em forma de alavanca da porta da frente girar ao ser destrancada por fora. Só consigo pensar em por que Victor deu uma chave para Fredrik.
— Aí está você, gata — diz Fredrik ao entrar na sala, o cabelo escuro e volumoso sempre arrumado como se ele tivesse acabado de sair do cabeleireiro.
— O que você está fazendo aqui? — pergunto, fingindo não saber e fracassando ao tentar esconder o nervosismo na voz.
Lanço um olhar rápido para o sofá, onde escondi uma 9mm debaixo de uma almofada, e para perto do corredor, onde um pequeno aparador esconde um .38 na gaveta. São algumas das várias armas que espalhei pela casa. Todas carregadas. Nesta vida, não existe isso de trava de segurança.
— Victor não explicou? — pergunta Fredrik, abrindo os botões dos punhos de sua camisa social e arregaçando as mangas até os cotovelos. — Vou ficar com você até ele voltar. Você deixa a calefação muito forte, está muito calor aqui. — Ele passa o dedo indicador por dentro do colarinho, afastando o tecido do pescoço com uma expressão de desconforto.
— Sinto muito. Eu fico resfriada com facilidade.
Fredrik sorri, passa por mim e vai para a sala de estar. Eu o sigo, de olho em cada movimento. Sinto que não devo confiar nele, mas a verdade é que confio, sim. Minha insegurança me deixa confusa.
— Você podia pelo menos abrir umas janelas — sugere ele.
Fredrik dá a volta no sofá de couro marrom-amarelado e abre os trincos da janela alta atrás dele. Uma brisa leve entra, fazendo flutuar a cortina bege e diáfana que a cobre. Depois faz o mesmo com a janela ao lado.
Ele está usando uma calça informal marrom-escura e uma camisa branca cujo tecido fino deixa transparecer o contorno dos músculos do peito e dos braços. Um par de mocassins de couro marrom calça seus pés sem meias. O cabo de uma arma sai da parte de trás da calça, presa com firmeza pelo cinto.
Talvez o teste seja esse, se de fato for um teste; tenho cada vez menos certeza das coisas. Mas não parece ser do feitio de Victor se dar a todo este trabalho para saber se vou dormir com outro homem. Por outro lado, se este for o caso, quem pode ser melhor do que Fredrik, um lindo exemplar masculino e intrigantemente sombrio, para me tentar? Mas não sou uma garota doente e desequilibrada. Considero meio nojenta e bárbara a habilidade de Fredrik para torturar e assassinar pessoas não-tão-inocentes... Tudo bem, talvez o que ele fez com André Costa não tenha me causado tanta repulsa quanto deveria. Talvez eu ainda devesse estar traumatizada pelo que vi, considerando que foi só a alguns dias. Talvez eu devesse ficar mais desconfortável perto dele, neste momento, me sentir enjoada ou nervosa e minhas mãos tremessem. Mas estou perfeitamente à vontade e... Ok, talvez eu seja doente e desequilibrada. Victor deve perceber isso. Por qual outro motivo decidiria usar Fredrik, logo Fredrik, para me tentar?
— Eu sei o que Victor está fazendo — aviso, cruzando os braços e mordendo a parte interna da bochecha. Eu me sento no sofá e acomodo as pernas nuas na almofada que esconde a arma. Dobro os joelhos e arranjo uma posição confortável, tomando cuidado para que meu shortinho de algodão não suba demais, expondo mais do que o necessário. — Nem perca seu tempo.
Fredrik inclina a cabeça, com ar curioso, termina de dar a volta no sofá e vai até a poltrona de couro ao lado.
— Perder meu tempo fazendo o quê? — Ele parece mesmo não fazer ideia do que estou falando.
Ele se senta, apoiando o tornozelo direito sobre o joelho esquerdo, com os longos braços estendidos nos apoios da poltrona, as pontas dos dedos tocando nos rebites dourados que afundam no couro.
— Não importa quanto você é bonito, não vai conseguir me seduzir.
Fredrik ri baixinho, balançando a cabeça. Seus ombros relaxam e um suspiro profundo sai de seus pulmões.
— Não vim para cá com esse objetivo, gata. — Seu sorriso é acentuado pelos olhos azuis brilhantes, emoldurados pelo cabelo espetado e quase preto. — Victor só pediu que eu ficasse de olho em você.
— Mas eu não preciso que ninguém fique de olho em mim — digo em tom tranquilo, porém obstinado. — Sou perfeitamente capaz de me cuidar sozinha.
Fredrik não para de sorrir, embora agora isso apareça mais em seus olhos do que na boca.
— Disso eu não tenho dúvida. Mas, mesmo assim, Victor pediu que eu ficasse aqui. E, sinto muito, mas os pedidos dele vêm antes dos seus.
Estreito os olhos para ele, mas não estou nem um pouco ofendida. Sei que ele tem razão, mas não vou dar o braço a torcer tão facilmente.
— Qual é o seu lance com Victor, afinal? — pergunta ele.
— Como assim?
— Ora, por favor. — Ele balança a cabeça, sorrindo para mim. — Você enfeitiçou o cara. E com muita facilidade, para dizer a verdade. Você é mais perigosa do que eu jamais poderia ser. Para o Victor, pelo menos. — Ele abre um sorriso.
Sinto a testa se franzir.
Fredrik ri baixinho e dá um tapinha nas pernas, para depois alisar o tecido da calça. Ele volta a apoiar os braços na poltrona.
— Se você está insinuando que eu quero seduzi-lo com algum tipo de falsa intenção, está enganado. — Estou ofendida desta vez, e isso transparece na minha voz.
— Não insinuei nada disso. — Ele inspira com tranquilidade de novo e reclina as costas na poltrona, relaxando o corpo. — Conheço Victor há muitos anos, Sarai, e posso dizer, embora talvez não devesse, que nunca vi o cara do jeito que está desde que conheceu você.
Sinto um frio na barriga por um momento. Afasto essa sensação. Não sou muito do tipo que sente frio na barriga. Ou pelo menos tento não ser, como se isso, de alguma forma, me tornasse fraca. Mas tampouco posso negar que, quando penso em Victor, me vejo “afastando a sensação” com frequência. Engulo em seco e levanto o queixo.
E então mudo de assunto.
— Peço desculpas se isso parecer indelicado...
— Gosto de gente indelicada — interrompe Fredrik, abrindo outro sorriso. — É um bom jeito de evitar o papo-furado.
Aceno que sim.
— Bom, você sente prazer torturando gente? — pergunto, como se fosse exatamente o que penso. — Ou matando pessoas?
Fredrik ajeita o enorme relógio prateado no pulso direito. Então estende mais uma vez as mãos sobre os braços da poltrona.
— Isso vindo de alguém que não vê a hora de cortar a garganta de um homem — diz ele, com o sorriso ainda intacto —, é uma acusação forte. Quase hipócrita.
— Pensei que você gostasse de gente indelicada — observo, deixando claro que ele se esquivou da minha pergunta.
Ele entende bem depressa.
— Se você quer dizer “sentir prazer” de maneira sexual, então não, não sinto. Mas, sim, como uma espécie de castigo, eu sinto muito prazer.
— Castigo?
— Com certeza. Gente como André Costa e o irmão dele, David, merece o que recebe. E eu fico feliz em fazer as honras. — Ele ri baixinho e acrescenta: — Claro que não sou santo. E, quando chegar a hora de inverterem os papéis e eu estiver sentado naquela cadeira, vou saber lidar com isso. Mas ninguém jamais vai me dobrar... Não de novo.
Eu me pergunto o que significa essa última parte. E tenho a sensação de que não foi um comentário dirigido a mim.
Imagens das agulhas e da crueldade com que foram enfiadas debaixo das unhas de André surgem na minha mente por um momento. Estremeço e fico arrepiada. Minha nuca fica úmida e minhas mãos, pegajosas.
Enojada, eu o encaro por cima da mesinha de centro.
— Mas as... coisas que você faz. — Tento tirar a imagem da cabeça. Mais um calafrio percorre minhas costas. — Por que agulhas?
Um sorriso fraco aparece nos cantos da boca de Fredrik, que reconheço imediatamente como uma tentativa de abrandar a imagem que tenho dele e não se vangloriar por dentro sobre o desconforto que me causa.
— O método é bem eficaz, como você viu.
— É, mas... — As palavras me fogem. — Como você aguenta?
O sorriso dele desaparece, substituído por uma expressão neutra quando ele olha para além de mim.
— Na verdade, nem eu sei — responde ele, e tenho a sensação de que essa resposta o incomoda de alguma forma.
Com a mesma rapidez, seu sorriso volta e ele cruza as mãos sobre a barriga, entrelaçando os dedos longos e bem-cuidados.
— Quanto tempo você acha que Victor vai demorar para voltar? —
pergunto.
Fredrik balança a cabeça.
— Até terminar o serviço.
Eu sabia que ele me daria a mesma resposta que Victor, mas valeu a tentativa. O que quero, na verdade, é saber mais sobre Seraphina, mas tenho medo de perguntar. Acho que Victor me contou tudo aquilo sobre Fredrik e Seraphina em segredo. E não quero que Fredrik saiba da nossa conversa.
Mas a curiosidade está me matando.
Tiro as pernas do sofá e apoio os pés no chão. Fico de pé e cruzo os braços, olhando para Fredrik, que me observa com uma certa curiosidade. Ando de uma ponta à outra da mesinha de centro e então paro.
— Como você... Bom, o que fez você ficar assim? — pergunto, evitando com cuidado as coisas que já sei e que espero que ele mesmo me conte.
Ele me olha de lado, inclinando a cabeça, pensativo.
— O que você quer saber mesmo é como Seraphina me deixou do jeito que eu sou. Ou Victor ainda não contou sobre ela? — Ele sorri, conivente.
Por um momento, não consigo olhá-lo nos olhos. Passo a mão pelos braços algumas vezes e então me sento na borda da mesinha de centro, bem na frente dele. Enfio as mãos no tecido folgado da barra da minha camiseta cinza.
— Ele contou para você que eu sei?
Fredrik assente.
— Victor perguntou se eu me importava que ele contasse. Ele me respeita o suficiente para perguntar primeiro. É uma conversa muito delicada.
— Ela deve ter magoado muito você — digo, cuidadosa.
— Apesar do que Victor acha — diz ele, erguendo as costas da cadeira e enfiando as mãos entre os joelhos —, Seraphina foi só parte do motivo para eu ter ficado assim. Uma pequena parte. Ela foi, como meu analista indicado pela Ordem dizia, o estopim. A faísca em uma sala cheia de gás. Mas havia algo errado comigo já bem antes de conhecê-la. — Ele ri um pouco, mas não vejo humor nisso. Algo me diz que ele também não, na verdade.
De repente, Fredrik se levanta e vai até a janela aberta atrás do sofá. Eu me levanto também, deixando que meus olhos o sigam para não perdê-lo de vista, mas continuo perto da mesa. Como Fredrik está agora de costas para mim, e não consigo mais ver seu rosto, não posso ter certeza, mas sinto que o clima do ambiente ficou mais sombrio. Ele mantém os braços inertes, a brisa leve da janela balançando seu cabelo escuro.
Mas Fredrik não revela nada, e fico só imaginando que cenas terríveis o torturam, que lembrança insuportável o assombra neste momento. E só o que posso fazer é ficar ali e esperar que passe.
Fredrik
Vinte e cinco anos atrás...
O homem de cabelo ruivo e desgrenhado, cujo nome eu não era digno de saber, me deu um tapa no rosto com tanta força que um clarão branco encobriu minha visão. Minhas pernas nuas, ossudas e desnutridas, cederam e caí na calçada de pedra. O sangue jorrou da minha boca no momento em que a ponta da bota dele atingiu meu queixo.
— Garoto idiota! — sibilou o homem, cuspindo de ódio. — Você me custa mais do que vale! Garoto insolente!
Gritei e me curvei ao sentir a dor queimando minhas costelas.
— O que você está fazendo? — Ouvi Olaf dizer com severidade de algum lugar atrás de mim.
Eu quase não conseguia me mexer, apenas envolvi minhas costelas com os braços esqueléticos, esperando protegê-las de novos golpes e tentando amortecer a dor. Mal conseguia respirar. A bile se agitava no estômago, e eu me esforçava ao máximo para não vomitar, pois sabia que, como da outra vez, isso só faria minhas costelas doerem ainda mais.
— Você nunca vai conseguir vender o garoto se danificá-lo — disse Olaf.
Eu odiava Olaf tanto quanto odiava todos os homens que me mantinham naquele lugar, mas quase fiquei feliz quando ele chegou. Ele impediria que os outros me espancassem. Que me violentassem. Olaf também fazia o que queria comigo, mas era delicado e nunca me machucou. Eu o odiava e queria vê-lo morto, assim como o resto deles, mas ele era meu único conforto no inferno que era minha vida.
O homem de cabelo ruivo e desgrenhado cuspiu no chão ao meu lado, tão perto que senti uma gotícula na minha bochecha, que estava encostada na pedra fria.
— Então resolva você — grunhiu ele. — Eu lavo minhas mãos com este aí. É um idiota! Não é tão desaforado, mas é idiota. Quatro meses e ainda não aprendeu nada!
Eu me recusava a abrir os olhos. Queria só ficar no chão, encolhido em posição fetal e sozinho, para morrer ali. Sentia cheiro de fezes, urina e vômito vindo do banheiro no corredor. Dava para sentir a brisa úmida da janela quebrada ali perto, roçando as pedras e meu rosto. Pensei na minha mãe, embora ela não fosse minha mãe de verdade. Era um animal horrível em forma de mulher, que administrava o orfanato que cuidava de mim. O orfanato que havia me vendido àqueles homens três meses antes, dois dias depois que eu completei 7 anos, segundo disseram. Como Olaf, eu odiava a Mãe. O modo como ela batia na minha bunda com a vara até sangrar. Odiava o modo como ela me mandava para a cama sem me dar comida por três, às vezes quatro noites seguidas. Mas eu daria tudo para voltar aos cuidados dela e não estar com aqueles homens.
— Talvez o problema seja o professor — acusou Olaf, com voz calma. — Você é duro demais com ele. Ele é mais frágil do que os outros. A raspa do tacho, como Eskill diz.
— Ele não come! — gritou o ruivo.
Eu o via agitando as mãos, suas grandes narinas se dilatando de fúria, acentuando a cicatriz do lado esquerdo do nariz. Via o vermelho vibrante de suas bochechas, que sempre parecia uma urticária quando ele se zangava.
— Ele não consegue segurar a comida — disse Olaf. — O dr. Hammans examinou o garoto ontem, antes que você voltasse. Disse que o garoto está sofrendo de estresse emocional.
— Estresse?! — exclamou o ruivo, soltando uma risada esganiçada.
— Sim — confirmou Olaf, mantendo a expressão calma. — Acho que é melhor que eu assuma o caso dele, daqui por diante.
Minhas pálpebras se abriram um pouco, apenas o suficiente para ver o semblante do ruivo debruçado sobre mim. Ele estava sorrindo, mas me apavorava. Fechei os olhos de novo assim que percebi que ele olhava na minha direção.
— Você acabou de dizer que não queria mais cuidar do garoto — disse Olaf. — Algum problema?
Seguiram-se alguns segundos de silêncio.
— Não — disse o ruivo. — Pode levá-lo. Talvez você consiga fazer mais do que eu.
Os dois não trocaram mais nenhuma palavra.
Olaf me carregou até seu carro e me deitou com cuidado no banco de trás.
— Eu vou cuidar de você — sussurrou ele, do banco da frente.
Eu tremia incontrolavelmente com a dor nas costelas e na cabeça. Lágrimas, catarro e sangue escorriam para a boca.
— Vou ser gentil com você, garoto — disse Olaf, ao tirar o carro do estacionamento do prédio. — Até que você não me deixe escolha.
Ele me levou para um lugar que eu nunca tinha visto antes. E eu fiquei lá, sob os cuidados dele, aprendendo a superar meu medo dele, dos outros homens e da vida que fui obrigado a levar. Até que o envenenei enquanto dormia, cinco anos depois, e fugi.
Sarai
— Fredrik? — chamo, preocupada com seu silêncio longo e misterioso.
Ele vira de costas para a janela e abre um sorriso suave.
— Você está bem? — pergunto, me aproximando.
Fredrik assente, e aquele sorriso diabólico que sempre vou associar a ele se espalha pelo rosto.
— Está preocupada comigo, gata? — provoca ele, brincando, e sinto que estou corando.
Dou de ombros.
— Um pouquinho, talvez. Mas não fique muito convencido com isso.
Ele sorri, e vejo apenas sinceridade e admiração naquele sorriso.
Vou para a cozinha, mas paro antes de entrar e sumir de vista.
— Você está com fome?
— Você sabe cozinhar? — pergunta Fredrik de volta, ainda tirando sarro de mim.
— Não como aquela sua empregada. Mas faço um sanduíche de geleia com pasta de amendoim que é uma delícia.
— Para mim, está ótimo — diz ele, e sorrio antes de desaparecer na cozinha.