Esta é a terceira parte de O Senhor dos Anéis. A primeira parte, A Sociedade do Anel, conta como Gandalf, o Cinzento, descobriu que o anel possuído por Frodo, o hobbit, era na verdade o Um Anel, governante de todos os Anéis de Poder.
Reconta a fuga de Frodo e seus companheiros do pacífico Condado, sua terra natal, perseguidos pelo terror dos Cavaleiros Negros de Mordor, até que finalmente, com a ajuda de Aragorn, o guardião de Eriador, chegaram à Casa de Elrond em Valfenda, depois de terem passado por terríveis perigos.
Ali aconteceu o grande Conselho de Elrond, no qual foi decidido que se deveria tentar destruir o Anel, e Frodo foi designado o Portador do Anel.
Foi então escolhida a Comitiva do Anel, que deveria ajudar Frodo em sua Demanda: chegar, se pudesse, à Montanha de Fogo em Mordor, o domínio do próprio Inimigo, o único lugar onde o Anel poderia ser desfeito. Nessa Comitiva estavam Aragorn e Boromir, filho do Senhor de Gondor, representando os homens; Legolas, filho do Elfo-rei da Floresta das Trevas, representando os elfos; Gimli, filho de Glóin, da Montanha Solitária, pelos anões; Frodo e seu servidor Samwise, e dois jovens parentes dele, Meriadoc e Peregrin, representando os hobbits; e finalmente Gandalf, o Cinzento. Os Companheiros viajaram em segredo, partindo de Valfenda, no norte, e trilhando um longo caminho até que, frustados em sua tentativa de cruzar a passagem alta de Caradhras no inverno, foram conduzidos por Gandalf através do portão oculto e entraram nas vastas Minas de Moria, procurando um caminho por baixo das montanhas.
Ali Gandalf, em batalha com um terrível espírito do mundo subterrâneo, caiu num abismo escuro. Mas Aragorn, agora revelado como o herdeiro oculto dos antigos Reis do oeste, conduziu a Comitiva a partir do Portão Leste de Moria, passando pela terra élfica de Lórien, e descendo o Grande Rio Anduin, até chegar às Cachoeiras de Rauros. Já tinham percebido que sua viagem era vigiada por espiões, e que a criatura Gollum, que outrora possuíra o Anel e ainda o desejava, estava seguindo sua trilha.
Foi então necessário decidir se deveriam rumar para o leste, na direção de Mordor, ou continuar com Boromir em auxilio de Minas Tirith, a Principal cidade de Gondor, na guerra que se aproximava; ou ainda se deveriam se separar.
Quando ficou claro que o Portador do Anel estava decidido a Continuar sua viagem desesperada até a terra do Inimigo, Boromir tentou tirar-lhe o Anel à força. A primeira parte termina com Boromir sucumbindo à sedução do Anel: com a escapada e o desaparecimento de Frodo e seu servidor Samwise, e a dispersão dos outros membros da Comitiva devido a um súbito ataque de soldados orcs, alguns a serviço do Senhor do Escuro de Mordor, outros a serviço do traidor Saruman de Isengard. A Demanda do portador do Anel já parecia estar fadada ao desastre.
MINAS TIRITH
Pippin espiou de dentro do abrigo da capa de Gandalf. Perguntou-se se estava acordado ou continuava dormindo, ainda no sonho veloz no qual estivera envolto desde que a grande cavalgada começara. O mundo escuro passava correndo e o vento cantava alto em seus ouvidos. Não conseguia ver nada exceto as estrelas rodopiantes, e na distância, á sua direita, vastas sombras contra o céu onde as montanhas do sul passavam marchando. Sonolento, tentava calcular os períodos e etapas da viagem, mas sua memória estava entorpecida e cheia de dúvidas.
Houvera a primeira cavalgada, numa velocidade alucinante e sem paradas, e depois, na aurora, Pippin vislumbrara um pálido brilho dourado, e eles tinham chegado à silenciosa cidade e à grande casa vazia sobre a colina. E mal tinham alcançado esse abrigo quando a sombra alada passou sobrevoando mais uma vez, deixando os homens descorçoados de medo. Mas Gandalf lhe disse palavras suaves, e Pippin adormeceu num canto, cansado mas inquieto, percebendo vagamente as idas e vindas, e os homens conversando, e Gandalf dando ordens. E, depois, outra cavalgada, outra cavalgada na noite. Aquela era a segunda, não, a terceira noite desde que o hobbit olhara dentro da Pedra. E com essa lembrança hedionda despertou completamente, e tremeu; o ruído do vento se encheu de vozes ameaçadoras.
Uma luz se acendeu no céu, um clarão de fogo amarelo atrás de barreiras escuras. Pippin se escondeu amedrontado naquele momento, perguntando-se para que terra temível Gandalf o levava. Esfregou os olhos, e então viu que era a lua subindo acima das sombras do leste, agora quase cheia. Isso significava que a noite estava começando, e a escura viagem continuaria por horas. Mexeu-se e falou.
— Onde estamos, Gandalf? perguntou ele.
— No reino de Gondor — respondeu o mago. — A terra de Anórien ainda está passando.
Ficaram em silêncio por mais um período. Então, de repente: — Que é aquilo, Gandalf? — gritou Pippin, agarrando-se à capa do mago. — Olhe! Fogo, fogo vermelho! Existem dragões nesta terra? Olhe, lá está outro!
Como resposta Gandalf gritou para o cavalo:
— Adiante, Scadufax! Precisamos nos apressar. O tempo é curto. Veja! Os faróis de Gondor estão acesos, pedindo socorro. A guerra está acesa. Veja, lá está o fogo sobre Amon Din, e a chama sobre Eilenach; e lá vão eles correndo para o oeste:
Nardol, Erelas, Min-Rimmon, Calenhad e Halifirien nas fronteiras de Rohan.
Mas Scadufax reduziu suas passadas, limitando-se a andar, e então ergueu a cabeça e relinchou. E da escuridão veio o relinchar de outros cavalos em resposta; de repente ouviu-se o ruído surdo de cascos, e três cavaleiros passaram correndo como fantasmas voando ao luar, e desaparecendo no oeste. Então Scadufax se recompôs e deu um salto á frente, e a noite fluía sobre ele como um vento a rugir.
Pippin ficou sonolento outra vez, e prestou pouca atenção ao que Gandalf lhe dizia sobre os costumes de Gondor, e sobre como o Senhor da Cidade mandara construir faróis nos topos das montanhas externas, ao longo das duas bordas da grande cordilheira, e mantinha postos nesses pontos onde cavalos descansados estavam sempre de prontidão para levar os mensageiros em missões a Rohan no norte, ou a Belfalas no sul. — Faz tempo que os faróis não se acendem — disse ele —, e nos dias antigos eles não eram necessários, pois Gondor tinha as Sete Pedras. — Pippin se agitou, inquieto.
— Durma outra vez, e não tenha medo! — disse Gandalf — Pois você não está indo para Mordor, como Frodo, mas para Minas Tirith, e lá estará tão a salvo como poderia estar em qualquer outro lugar nestes tempos. Se Gondor cair, ou se o Anel for tomado, o Condado não será nenhum refúgio.
— Você não me consola — disse Pippin, mas apesar disso foi dominado pelo sono. A última coisa de que pôde se recordar antes de cair em sonhos profundos foi a rápida visão de picos altos e brancos, reluzindo como ilhas flutuantes acima das nuvens, quando captavam a luz da lua que ia em direção ao oeste. Ficou imaginando onde Frodo estaria, se já tinha chegado a Mordor, ou se estaria morto, sem saber que Frodo, de muito longe, observava a mesma lua que se punha além de Gondor, antes do inicio do dia.
Pippin acordou ao som de vozes. Tinham-se passado mais um dia de ocultamento e mais uma noite de viagem. Amanhecia: a aurora fria estava próxima outra vez, e névoas geladas e cinzentas os envolviam. Scadufax parou, molhado de suor, mas ainda com o pescoço altivo e sem demonstrar sinais de cansaço.
Muitos homens altos e com capas pesadas estavam ao lado dele, e atrás, na névoa, assomava uma muralha de pedra. Parecia parcialmente arruinada, mas ainda antes que a noite tivesse passado ouviram-se os ruídos de um trabalho urgente: batidas de martelos, tinidos de trolhas, e ranger de rodas. Em alguns pontos, tochas e chamas tremeluziam fracas no nevoeiro.
Gandalf conversava com os homens que haviam barrado seu caminho e, enquanto escutava, Pippin percebeu que ele mesmo era o assunto da discussão.
— Sim, é verdade, nós conhecemos você, Mithrandir — disse o líder dos homens —, e você conhece as senhas dos Sete Portões, e está livre para seguir em frente.
Mas não conhecemos seu companheiro. O que é ele? Um anão vindo das montanhas do norte? Não queremos forasteiros em nossa terra nestes tempos, a não ser que sejam valorosos combatentes, em cuja lealdade e ajuda possamos confiar.
— Eu me responsabilizo por ele diante do trono de Denethor — disse Gandalf. — E, quanto a valor, isso não pode ser medido pela estatura. Ele passou por mais batalhas e perigos que você, Ingold, embora você tenha o dobro tomado de um grande cansaço, caso contrário eu o acordaria. Seu nome é Peregrin, um homem muito corajoso.
— Homem? disse Ingold com um ar duvidoso, e os outros riram.
— Homem! — gritou Pippin, embora não tivesse acordado inteiramente. — Homem! Realmente não! Sou um hobbit, e não sou mais corajoso do que sou homem, a não ser talvez de vez em quando, por necessidade. Não se deixem enganar por Gandalf.
— Muitos autores de grandes feitos não poderiam dizer nada além disso — disse Ingold. — Mas o que é um hobbit?
— Um Pequeno — respondeu Gandalf. — Não, não aquele que foi mencionado — acrescentou ele, percebendo a admiração nos rostos dos homens.
— Não ele, mas um parente dele.
— É sim, um que viajou com ele — disse Pippin. – E Boromir, de sua Cidade, estava conosco, e me salvou na neve do norte, e no fim foi morto quando me defendia de muitos inimigos.
— Calma! — disse Gandalf — A noticia dessa desgraça devia ser contada primeiro para o pai dele.
— Já se imagina o que ocorreu — disse Ingold —; pois houve acontecimentos estranhos aqui ultimamente. Mas agora passem á frente depressa. Pois o Senhor de Minas Tirith ficará ansioso por ver qualquer um que traga as últimas noticias de seu filho, seja ele um homem ou um...
— Hobbit — disse Pippin. — De pouca serventia posso ser para o seu senhor, mas farei o que puder, em memória do bravo Boromir.
— Passem bem! — disse Ingold; e os homens abriram caminho para Scadufax, que atravessou um portão estreito na muralha. — Que você possa trazer bons conselhos a Denethor em sua necessidade, e a todos nós, Mithrandir! — exclamou Ingold. — Mas você chega com noticias de tristeza e Perigo, como dizem que é seu hábito.
— Isso porque raramente venho quando minha ajuda não é necessária — respondeu Gandalf — E, quanto a conselhos, a você diria que é tarde demais para consertar a muralha do Pelennor. A coragem será agora sua melhor defesa contra a tempestade que se aproxima — essa é a única esperança que trago. Pois nem todas as noticias que trago são más. Mas abandonem suas trolhas e afiem suas espadas.
— O trabalho estará terminado antes do fim da tarde — disse Ingold. — Esta, a última parte da muralha a ser erguida em defesa: a menos aberta ao ataque, pois volta-se para nossos amigos de Rohan. Você sabe alguma coisa sobre eles? Será que responderão á convocação?
— Sim, eles virão. Mas lutaram muitas batalhas em sua retaguarda. Esta, como qualquer outra estrada, deixou de conduzir para a segurança. Estejam vigilantes. Se não fosse por Gandalf, o Corvo da Tempestade, vocês teriam visto um exército de inimigos vindo de Anórien, e nenhum Cavaleiro de Rohan. E isso ainda pode acontecer. Passem bem, e não durmam!
Gandalf agora penetrava a ampla região além de Rammas Echor.
Assim os homens de Gondor chamavam a muralha externa que haviam construído á custa de grande trabalho, depois que Ithilien caíra sob a sombra do Inimigo. A muralha se estendia por dez milhas ou mais, saindo dos pés das montanhas e depois retornando, fechando em seu interior os campos de Pelennor: belas e férteis regiões citadinas nas longas encostas e patamares que desciam até os níveis inferiores do Anduin. Em seu ponto mais afastado do Grande Portão da Cidade, a nordeste, a muralha ficava a quatro léguas de distância, e lá, de um barranco franzido, viam-se as grandes planícies margeando o rio, e os homens tinham-na feito alta e forte; pois naquele ponto, sobre um dique murado, a estrada entrava vindo dos vaus e pontes de Osgiliath, e atravessava um portão vigiado entre torres com ameias. No ponto mais próximo, a muralha ficava a pouco mais de uma légua da Cidade, a sudeste. Ali o Anduin, desenhando um grande cotovelo em torno das colinas de Emyn Arnen em Ithilien do Sul, fazia uma curva fechada a oeste, e a muralha externa se erguia exatamente sobre sua margem; abaixo dela ficavam os cais e desembarcadouros do Harlond, para embarcações que subiam a correnteza vindo dos feudos do sul.
As regiões citadinas eram ricas, com amplas lavouras e muitos pomares, e fazendas com fornos e silos, currais e estábulos, e muitos riachos ondulando através do verde, descendo das regiões mais altas até o Anduin. Apesar disso, os pastores e lavradores que moravam ali não eram muitos, e a maior parte do povo de Gondor vivia nos sete círculos da Cidade, ou nos altos vales das fronteiras montanhosas em Lossarnach, ou mais além, ao sul, na bela Lebennin com seus cinco lépidos rios.
Ali, entre as montanhas e o mar, morava um povo forte. Eram considerados homens de Gondor, mas seu sangue era mesclado, e havia pessoas baixas e morenas entre eles, cujos antepassados eram na maioria os homens esquecidos que moraram na sombra das montanhas nos Anos Escuros, antes da chegada dos reis. Mas mais além, no grande feudo de Belfalas, morava o Príncipe Imrahil, em seu castelo de Doí
Amroth perto do mar, e ele tinha sangue nobre, e seu povo também, homens grandes e altivos com olhos cinzentos da cor do mar.
Depois que Gandalf tinha cavalgado por algum tempo, a luz do dia aumentou no céu. E Pippin despertou e ergueu os olhos. A sua esquerda viu um mar de névoa, formando uma sombra desolada no céu ao leste, mas à sua direita grandes montanhas erguiam suas cabeças, formando uma cadeia que vinha do oeste e chegava a um final íngreme e abrupto, como se na formação daquela região o Rio tivesse irrompido através de uma grande barreira, esculpindo um poderoso vale a fim de transformá-lo numa terra de batalha e debate nos tempos vindouros. E no ponto onde as Montanhas Brancas de Ered Nimrais chegavam ao fim ele viu, como Gandalf prometera, a massa escura do Monte Mindolluin, as sombras púrpuras e escuras de seus altos vales, e sua alta face branqueando no dia que avançava. E sobre o seu joelho protuberante ficava a Cidade Guardada, que com suas sete muralhas de pedra, tão fortes e antigas, não dava a impressão de ter sido construída, mas sim esculpida por gigantes nos próprios ossos da terra.
No momento em que Pippin olhava boquiaberto, as muralhas passaram de um cinza indistinto para um tom branco, levemente rosado pela aurora; e de repente o sol subiu acima da sombra do leste e enviou um raio que bateu na face da Cidade. Então Pippin deu um grito, pois a Torre de Ecthelion, erguendo-se altiva dentro das muralhas mais altas, brilhou contra o céu, reluzindo qual esporão de pérola e prata, alta, bela e elegante, com seu pináculo faiscando como se fosse de cristais; e bandeiras brancas se abriram e tremularam nos baluartes ao compasso da brisa da manhã, e alto e distante Pippin ouviu um toque cristalino, que parecia sair de trombetas de prata.
Assim Gandalf e Peregrin cavalgaram até o Grande Portão dos homens de Gondor ao nascer do sol, e as portas de ferro se abriram diante deles.
— Mithrandir! Mithrandir! — gritavam os homens. — Agora sabemos que a tempestade realmente está próxima!
— Está sobre vocês — disse Gandalf. — Cavalguei em suas próprias asas. Deixem-me passar! Devo encontrar-me com o seu Senhor, Denethor, enquanto sua regência ainda perdura. O que quer que aconteça, vocês chegaram ao fim da Gondor que conheceram. Deixem-me passar!
Os homens recuaram diante do comando da voz do mago e não o interrogaram mais, embora olhassem admirados para o hobbit montado diante dele e para o cavalo que os trazia. Pois o povo da Cidade raramente usava cavalos e eles quase nunca eram vistos nas ruas, exceto aqueles montados Pelos mensageiros de seu senhor. E disseram: — Não é este um dos grandes corcéis do Rei de Rohan? Talvez os rohirrim venham logo para aumentar fossa força. — Mas Scadufax subiu com altivez a estrada longa e sinuosa.
O modelo de Minas Tirith era tal que a Cidade fora construída em Sete níveis, cada um cavado no flanco da colina, e ao redor de cada nível se erguia uma muralha, e em cada muralha havia um portão. Mas os portões não eram alinhados, o Grande Portão da Muralha da Cidade ficava no ponto leste do circuito, mas o seguinte voltava-se parcialmente para o sul, e o terceiro parcialmente para o norte, e assim, ora de um lado, ora do outro, dispunham-se os portões na subida, de modo que o caminho pavimentado que ia na direção da Cidadela virava-se primeiro para um lado e depois para o outro pela encosta da colina. E, cada vez que o caminho passava pela linha do Grande Portão, atravessava um túnel em arco, perfurando um vasto pilar de rocha cujo corpo enorme e protuberante dividia em dois todos os círculos da Cidade, com a exceção do primeiro. Pois, em parte devido ao formato inicial da colina, e em parte ao oficio e trabalho árduo dos antigos, ali se erguia, por detrás do amplo pátio além do Portão, uma alta fortaleza de pedra, com sua borda pontuda como a quilha de um navio voltada para o leste. A fortaleza subia até o nível do círculo superior, e ali era coroada por um baluarte, de forma que os habitantes da Cidadela, como marinheiros num navio muito alto, podiam observar do topo, numa linha vertical, o Portão que ficava mais de duzentos metros abaixo. A entrada para a Cidadela também dava para o leste, mas era cavada no coração da rocha. Ali uma longa rampa iluminada conduzia ao sétimo portão. Dessa forma os homens atingiam finalmente o Pátio Alto, e a Praça da Fonte diante dos pés da Torre Branca: alta e elegante, noventa metros da base até o pináculo, onde a bandeira dos Regentes tremulava trezentos metros acima da planície.
Realmente era uma cidadela forte, que não poderia facilmente ser tomada por um exército inimigo, se houvesse alguém lá dentro que soubesse manejar armas; a não ser que algum inimigo viesse por trás e escalasse as fraldas inferiores do Mindolluin, e assim chegasse ao patamar estreito que juntava a Colina da Guarda á massa da montanha. Mas aquele patamar, que atingia o nível da quinta muralha, era cercado com grandes baluartes até o precipício que se projetava sobre sua extremidade oeste, e naquele espaço ficavam casas e túmulos abobadados de reis e senhores antigos, para sempre silenciosos entre a montanha e a torre.
Pippin observava num espanto crescente a grande cidade de pedra, mais vasta e esplêndida do que qualquer coisa que jamais sonhara, maior e mais forte que Isengard, e muito mais bonita. Apesar disso, na verdade, a cidade estava se deteriorando ano após ano, já sem metade dos homens que poderiam morar confortavelmente ali. Em cada rua passavam por alguma grande casa ou pátio, em cujas portas e portões em arco estavam esculpidas muitas letras belas de formatos estranhos e antigos: nomes que Pippin supôs serem de grandes homens e famílias que outrora moraram lá; mas agora estavam em silêncio, sem ruídos de passos em suas amplas calçadas, ou de vozes nos salões, nem qualquer rosto olhando das portas ou janelas vazias.
Finalmente saíram da sombra para o sétimo portão, e o sol quente que brilhava além do rio, no momento em que Frodo caminhava nas clareiras de Ithilien, reluzia aqui nas paredes lisas e nos pilares profundos, e no grande arco com fecho esculpido à semelhança de uma cabeça de rei coroada. Gandalf desmontou, pois não se permitia a entrada de nenhum cavalo na Cidadela, e Scadufax se deixou levar embora ao comando suave de seu dono.
Os Guardas do portão estavam vestidos de preto, e seus elmos tinham formatos estranhos, com a parte superior muito alta e com protetores faciais perfeitamente ajustados ao rosto, e acima desses protetores encaixavam-se as asas brancas de pássaros marinhos; mas os elmos cintilavam com uma chama de prata, pois na realidade eram feitos de mithril, legados da glória de dias antigos. Sobre as vestes negras estava bordada em branco uma árvore florescendo como neve sob uma corôa de prata e estrelas de muitas pontas. Esse era o uniforme dos herdeiros de Elendil, e ninguém o usava em Gondor, a não ser os Guardas da Cidadela diante do Pátio da Fonte, onde a Arvore Branca outrora crescera.
Já parecia que a noticia de sua chegada os precedera; imediatamente foram admitidos, silenciosamente e sem perguntas. Gandalf atravessou depressa o pátio pavimentado com pedras brancas. Uma fonte suave brincava ali no sol da manhã, e um gramado verde-claro jazia ao redor dela; mas na névoa, inclinando-se sobre o lago, havia uma árvore morta, e gotas pingavam tristemente de seus ramos secos e quebrados, caindo de novo na água límpida.
Pippin a contemplou enquanto corria atrás de Gandalf. A cena era melancólica, pensou ele, e ficou imaginando por que a árvore morta fora deixada naquele lugar onde todo o resto era bem cuidado.
Sete estrelas, sete pedras e uma árvore branca.
As palavras murmuradas por Gandalf retornaram-lhe á mente. E então viu-se às portas do grande palácio sob a torre reluzente, e seguindo o mago passou pelas altas sentinelas e entrou nas sombras frescas e ressonantes da casa de pedra.
Desceram uma passagem pavimentada, longa e vazia, e enquanto caminhavam Gandalf falou baixinho para Pippin.
— Cuidado com suas palavras, Mestre Peregrin! Isso não é hora para atrevimentos de hobbits. Théoden é um velho gentil. Denethor é um outro tipo, orgulhoso e astuto, um homem de linhagem e poder muito maiores, embora não seja chamado de rei. Mas ele vai se dirigir a maior parte do tempo a você, e interrogá-lo muito, uma vez que você pode lhe contar sobre seu filho Boromir. Denethor o amava muito: talvez demais, sobretudo porque eles eram diferentes. Mas usando o disfarce desse amor ele vai considerar mais fácil saber o que deseja por seu intermédio, e não por mim. Não lhe conte mais do que o necessário, e deixe de lado o assunto da missão de Frodo. Vou cuidar disso no tempo certo. E não diga nada também sobre Aragorn. a não ser que seja inevitável.
— Por que não? Qual é o problema com Passolargo? – Pippin sussurrou. — Ele tinha a intenção de vir para cá, não tinha? E de qualquer forma estará chegando em breve.
— Talvez, talvez — disse Gandalf. — Mas, se vier, é provável que chegue de uma forma que ninguém espera, nem mesmo Denethor. Será melhor assim. Pelo menos é melhor que chegue sem ter sido anunciado por nós.
Gandalf parou diante de uma porta alta de metal polido.
— Veja, Mestre Pippin, não há tempo agora para instruí-lo sobre a história de Gondor, embora talvez fosse melhor se você tivesse aprendido algo sobre o assunto, quando ainda estava procurando ninhos de pássaros e gazeteando nos bosques do Condado. Faça como eu ordeno! É pouco inteligente, quando se traz a um senhor poderoso a noticia da morte de seu herdeiro, falar muito sobre a chegada de alguém que, se chegar, reivindicará a realeza. Isso basta?
— A realeza? — perguntou Pippin surpreso.
— É isso mesmo — disse Gandalf. — Se você viajou todos esses dias com os ouvidos tapados e o cérebro adormecido, acorde agora! — O mago bateu na porta.
A porta se abriu, mas não se viu ninguém abrindo-a. Pippin divisou um grande salão. Era iluminado por janelas profundas ao longo dos amplos corredores dos dois lados, atrás das fileiras de altos pilares que sustentavam o teto.
Monolitos de mármore negro, eles se erguiam até grandes capitéis esculpidos na forma de muitas figuras estranhas de animais e folhas: bem acima, na sombra, a ampla abóbada reluzia num ouro pálido, combinado com esculturas de muitas cores. Não havia nada pendurado, nem tapetes mostrando cenas de histórias, nem objetos tecidos ou de madeira. naquele longo salão solene; mas entre os pilares erguia-se um exército de altas imagens gravadas na pedra fria.
De repente Pippin lembrou-se das rochas esculpidas dos Argonath, e ficou tomado de admiração, olhando aquela avenida de reis há muito mortos. Na extremidade, sobre uma plataforma de muitos degraus, erguia-se um trono alto sob um dossel de mármore, que tinha a forma de um elmo coroado. Atrás dele, gravada na parede e adornada com pedras, via-se a imagem de uma árvore em flor. Mas o trono estava vazio. Ao pé da plataforma, sobre o degrau inferior, que era largo e profundo, havia uma cadeira de pedra preta e sem adornos, e nela estava sentado um velho que olhava para o próprio colo. Em sua mão via-se um bastão branco com um botão de ouro. Não ergueu os olhos. Solenemente os dois caminharam pelo longo piso na direção dele, até ficarem a três passos de seu escabelo. Então Gandalf falou.
— Salve, Senhor e Regente de Minas Tirith, Denethor, filho de Ecthelion! Venho com conselhos e notícias nesta hora escura...
Então o velho ergueu os olhos. Pippin viu seu rosto esculpido, com ossos salientes e pele de marfim, com o longo nariz adunco entre os olhos escuros e profundos, que o fizeram lembrar-se mais de Aragorn que de Boromir.
— Realmente a hora é escura disse o velho —, e nessas horas espera-se a sua chegada, Mithrandir. Mas, embora todos os sinais prenunciem que o fim de Gondor se aproxima, menor para mim agora é essa treva que a minha própria treva. Foi-me dito que você traz consigo alguém que viu meu filho morrer. É ele?
— É — disse Gandalf. — Um dos dois. O outro está com Théoden de Rohan e provavelmente chegará mais tarde. São Pequenos, como vê, embora este não seja aquele de quem os presságios falaram.
— Apesar disso, um Pequeno — disse Denethor com um ar severo —, e tenho pouco amor pelo nome, uma vez que aquelas malditas palavras vieram perturbar nossos planos e levar meu filho na missão alucinada que o conduziu à morte. Meu Boromir! Agora precisamos de você. Faramir deveria ter ido em seu lugar.
— Ele teria ido — disse Gandalf — Não seja injusto em sua tristeza! Boromir reivindicou a missão e não admitiu que ninguém mais a assumisse. Era um homem obstinado, que fazia o que desejava. Viajei longamente ao lado dele e aprendi muito sobre sua personalidade. Mas você fala de sua morte. Já sabia da noticia antes de nossa chegada?
— Recebi isto — disse Denethor, colocando de lado o bastão e erguendo do colo a coisa que estivera fitando. Em cada mão ele ergueu uma metade de uma grande corneta partida ao meio: um chifre de touro selvagem adornado de prata.
— Essa é a corneta que Boromir sempre carregava! — exclamou Pippin.
— Exatamente — disse Denethor. — E em minha época eu a carreguei, e da mesma forma fizeram todos os primogênitos de nossa casa, desde os anos imemoriais antes da queda dos reis, desde que Vorondil, pai de Mardil, caçou as reses selvagens de Araw nos distantes campos de Rhún. Ouvi-a soando fraca nas fronteiras do norte há treze dias, e o rio a trouxe a mim, quebrada. Nunca mais tocará. — Parou de falar e fez-se um silêncio pesado. De repente virou seu olhar obscuro na direção de Pippin: — Que me diz sobre isso, Pequeno?
— Treze, treze dias — vacilou Pippin. — Sim, acho que é isso mesmo. estava ao lado dele, no momento em que tocou a corneta. Mas nenhuma ajuda chegou. Apenas mais orcs.
— Então — disse Denethor, lançando um olhar agudo para o rosto de Pippin. — Você estava lá? Conte-me mais! Por que nenhuma ajuda chegou?
E como você escapou, e ele não, sendo um homem tão poderoso, com apenas orcs para enfrentá-lo?
Pippin corou e esqueceu o medo. — O homem mais poderoso pode ser morto por uma flecha — disse ele —; e Boromir teve o corpo perfurado por várias. Quando o vi pela última vez, ele recostou-se numa árvore e arrarancou uma lança com plumas pretas de seu flanco. Então desmaiei e fui capturado. Não o vi mais, e não sei de mais nada. Mas respeito sua memória, pois ele era muito corajoso. Morreu para nos salvar, a meu parente Meriadoc e a mim, atocaiados na floresta pelos soldados do Senhor do Escuro; e, embora ele tenha perecido e fracassado, minha gratidão é a mesma.
Então Pippin olhou nos olhos do velho, pois o orgulho se agitava de maneira estranha dentro dele, ainda mordido pelo desprezo e pela suspeita daquela voz fria. — Pouca serventia, sem dúvida, um senhor de homens tão poderoso achará num hobbit, um Pequeno vindo do Condado do norte; mas mesmo assim vou oferecê-la, em pagamento da minha dívida. — Afastando para o lado a capa cinzenta num movimento brusco, Pippin puxou a espada e a depôs aos pés de Denethor.
Um sorriso pálido, como o reluzir de um sol frio numa manhã de inverno, passou pelo rosto do velho, mas ele curvou a cabeça e estendeu a mão, colocando de lado os pedaços da corneta. — Dê-me a arma! — disse ele.
Pippin a ergueu e apresentou-lhe o punho.
— De onde veio isto? — perguntou Denethor. — Muitos, muitos anos repousam sobre ela. Sem dúvida é uma espada criada por nossos próprios parentes do norte, no passado distante.
— Veio dos túmulos que jazem nas fronteiras de minha terra — disse Pippin. — Mas apenas criaturas más moram lá agora, e não estou disposto a falar mais sobre elas.
— Percebo que histórias estranhas se entretecem ao seu redor — disse Denethor —, e mais uma vez fica demonstrado que as aparências podem dar uma idéia falsa sobre o homem — ou sobre o Pequeno. Aceito seu serviço. Pois você não se intimida com as palavras, e tem uma fala cortês, embora o som dela possa nos parecer estranho aqui no sul. E precisaremos de todas as pessoas corteses, sejam elas grandes ou pequenas, nos dias vindouros. Preste-me seu juramento agora.
— Pegue o punho — disse Gandalf— e fale depois do Senhor, se estiver resolvido em relação a isso. — Estou — disse Pippin.
O velho colocou a espada sobre seu colo, e Pippin pôs a mão no punho, e disse devagar, repetindo as palavras de Denethor:
— Aqui juro fidelidade e serviço a Gondor, e ao Senhor e Regente do reino, falando e calando, agindo e não agindo, vindo e indo, na necessidade e na fartura, na paz ou na guerra, na vida ou na morte, desta hora em diante, até que meu senhor me libere, ou a morte me leve, ou o mundo acabe. Assim digo eu, Peregrin, filho de Paladin do Condado dos Pequenos.
— E isso eu escuto, Denethor, filho de Ecthelion, Senhor de Gondor, Regente do Alto Rei, e não me esquecerei, nem deixarei de recompensar o que me é oferecido: fidelidade com amor, coragem com respeito, perjúrio com vingança – Depois Pippin recebeu de volta a espada e a colocou na bainha.
— E agora — disse Denethor — minha primeira ordem para você: fale e não deixe de dizer nada! Conte-me toda a sua história, e trate de recordar-se de tudo o que puder sobre Boromir, meu filho. Sente-se agora e comece!
Enquanto falava, tocou um pequeno gongo de prata que ficava perto de seu escabelo, e imediatamente serviçais apareceram. Pippin percebeu então que eles tinham estado em alcovas dos dois lados da porta, sem serem vistos quando ele e Gandalf entraram.
— Tragam vinho, comida e cadeiras para os convidados – disse Denethor — e cuidem para que ninguém nos incomode pelo período de uma hora.
— É todo o tempo de que disponho, pois há muito mais coisas a fazer disse ele a Gandalf. — Muitas e mais importantes, pode parecer, e apesar disso para mim são menos urgentes. Mas talvez possamos conversar outra vez no fim do dia.
— E mais cedo, deve-se esperar — disse Gandalf — Pois eu não vim de Isengard até aqui, ao longo de cento e cinquenta léguas, na velocidade do vento, apenas para trazer-lhe um pequeno guerreiro, por mais cortês que ele seja. Não significa nada para você o fato de Théoden ter lutado numa grande batalha, e Isengard estar derrotada, e eu ter quebrado o cajado de Saruman?
— Significa muito. Mas já sei o suficiente sobre esses feitos para fazer meus próprios planos contra a ameaça do leste. — Voltou os olhos escuros para Gandalf, e agora Pippin percebia uma semelhança entre os dois, e sentia a tensão entre eles, quase como se visse uma linha de fogo latente traçada de olho a olho, que poderia de repente explodir em chamas.
Na verdade, Denethor se assemelhava muito mais a um grande mago que Gandalf, com mais realeza, mais beleza, mais poder e mais idade.
Apesar disso um sentido em Pippin, que não era a visão, percebia que Gandalf tinha o poder maior, e a sabedoria mais profunda, e uma majestade velada. E era mais velho, muito mais velho.
"Quanto mais velho?", perguntou-se ele, e então pensou como era estranho nunca ter pensado nisso antes. Barbárvore dissera algo sobre os magos, mas mesmo naquele momento ele não pensara em Gandalf como um deles, O que era Gandalf? Em que lugar e época distantes surgira no mundo, e quando o deixaria? Então suas meditações foram interrompidas, e ele viu que Denethor e Gandalf ainda estavam se olhando, olhos nos olhos, como se estivessem lendo a mente um do outro.
Mas foi Denethor quem desviou o olhar primeiro.
— Sim — disse ele —, pois, embora as Pedras estejam perdidas, pelo que dizem, ainda os senhores de Gondor têm um olhar mais agudo que os homens inferiores, e muitas mensagens chegam a eles. Mas sentem-se agora!
Os homens vieram trazendo uma cadeira e um banco baixo, e um deles trouxe uma bandeja com uma jarra de prata e taças, e bolos brancos.
Pippin sentou-se, mas não conseguiu tirar os olhos do velho senhor. Seria verdade, ou ele apenas imaginara, que enquanto Denethor falava das Pedras um brilho repentino de seu olhar se dirigira ao rosto de Pippin?
— Agora conte-me sua história, meu vassalo – disse Denethor, num tom de voz que misturava cortesia e caçoada. — Pois as palavras de uma pessoa tão amiga de meu filho serão realmente bem-vindas. Pippin jamais esqueceu aquela hora, no grande salão, sob o olhar agudo do Senhor de Condor, continuamente apunhalado por suas perguntas perspicazes, e consciente todo o tempo de Gandalf ao seu lado, observando, escutando e (assim sentia Pippin) controlando sua ira crescente e sua impaciência.
Quando a hora terminou e Denethor mais uma vez tocou o gongo, Pippin se sentia exausto. "Não podem ser mais de nove horas", pensou ele. "Conseguiria agora devorar três desjejuns a fio."
— Conduzam o Senhor Mithrandir ao alojamento preparado para ele — disse Denethor — e seu companheiro poderá se alojar com ele por enquanto, se quiser. Que seja divulgado que agora eu o tomei sob juramento a meu serviço, e ele deverá ser conhecido como Peregrin, filho de Paladin, e terá direito a aprender as senhas inferiores. Enviem ordens aos Capitães dizendo que devem me encontrar aqui, o mais cedo possível depois do soar da terceira hora.
— E você, meu Senhor Mithrandir, deverá vir também, como e quando quiser. Ninguém impedirá que venha até mim a qualquer hora, com exceção das minhas breves horas de sono. Deixe que a ira que sente em relação á tolice de um velho se esvaia, e depois retorne para meu consolo.
— Tolice? — disse Gandalf. — Não, meu senhor; quando for um parvo estará morto. Pode mesmo usar sua tristeza como um disfarce. Pensa que não entendo seu propósito em interrogar por uma hora alguém que sabe o mínimo, enquanto eu fico sentado observando?
— Se entende, então fique feliz — respondeu Denethor. – O orgulho seria tolice, se desdenhasse ajuda e aconselhamento na necessidade, mas você distribui essas dádivas de acordo com seus próprios desígnios. Apesar disso, o Senhor de Gondor não deve ser transformado na ferramenta dos propósitos de outros homens, não importa quanto sejam valorosos. E para ele não há propósito mais alto no mundo, como ele se apresenta agora, do que o bem de Gondor; e a lei de Gondor, meu senhor, é minha e de nenhum outro homem, a não ser que o rei retorne.
— A não ser que o rei retorne? — disse Gandalf. — Bem, meu senhor Regente, é sua tarefa manter ainda algum reino tendo em vista esse evento, que agora poucos esperam ver. Nessa tarefa terá toda a ajuda que estiver disposto a pedir. Mas vou lhe dizer isto: a lei de nenhum reino é minha, nem a de Gondor nem a de qualquer outro, grande ou pequeno. Mas todas as coisas que correm perigo no mundo como ele agora se apresenta, estas são a minha preocupação E, de minha parte, não terei fracassado inteiramente em minha missão, mesmo que Gondor venha a perecer, se alguma coisa atravessar esta noite e ainda puder crescer bela e dar flores e frutos de novo nos dias vindouros— Pois também sou um regente. Você não sabia? — E com isso virou-se e se afastou do salão, com Pippin correndo ao seu lado.
Gandalf não olhou para Pippin, nem lhe dirigiu nenhuma palavra, enquanto os dois caminhavam. O guia os conduziu pela porta do salão, e depois os levou através do Pátio da Fonte para uma alameda entre altas construções de pedra.
Depois de várias curvas chegaram a uma casa próxima à muralha da Cidadela, no lado norte, não muito distante da saliência que ligava a colina às montanhas. No interior, no primeiro andar acima da rua, subindo uma escada grande e esculpida, ele os levou para uma bela sala iluminada e arejada, com belos reposteiros de fosco brilho dourado, sem figuras. Havia poucos móveis: uma pequena mesa, duas cadeiras e um banco; mas dos dois lados havia alcovas com cortinas e camas bem guarnecidas, com jarras e vasilhas para se lavarem. Havia três janelas altas e estreitas que davam para o norte, sobre a grande curva do Anduin, ainda oculto pela névoa, correndo na direção dos Emyn Muil e de Rauros lá adiante. Pippin precisava subir no banco para olhar por sobre o peitoril largo de pedra.
— Está zangado comigo, Gandalf? — disse ele, quando o guia saiu e fechou a porta. — Fiz o melhor que pude.
— Realmente fez! — disse Gandalf, rindo de repente, e vindo ficar ao lado de Pippin, colocando o braço sobre os ombros do hobbit, e olhando através da janela. Pippin observou com certa surpresa aquele rosto agora bem perto ao lado do seu, pois o som do riso fora alegre e contente. Mesmo assim, no rosto do mago só viu no inicio linhas de preocupação e de tristeza; todavia, olhando com mais atenção o hobbit percebeu que, subjugada a tudo, havia uma grande alegria: uma fonte de contentamento suficiente para fazer todo um reino rir, caso extravasasse.
— Realmente você fez o melhor que pôde — disse o mago —, e espero que demore muito até você se achar encurralado assim de novo, entre dois velhos tão terríveis. Apesar disso, o Senhor de Gondor soube mais por você do que você possa ter imaginado, Pippin. Você não conseguiu ocultar o fato de que não foi Boromir quem liderou a Comitiva que deixou Moria, e que havia entre vocês alguém de grande honra, que estava vindo para Minas Tirith, e que esse alguém possuía uma espada famosa. Os homens de Gondor consideram muito as histórias dos dias antigos; e Denethor tem meditado bastante na rima e nas palavras ruína de Isildur, desde que Boromir partiu.
— Ele não é como os outros homens de sua época, Pippin, e, qualquer que seja sua descendência de pai para filho, por algum acaso o sangue que corre em suas veias é praticamente o sangue legítimo do Ponente; como também o que corre nas veias de seu outro filho, Faramir, e apesar disso não corria nas de Boromir, a quem ele amava mais. Ele tem uma visão aguda. Pode perceber, se forçar sua vontade, muito do que se passa nas mentes dos homens, mesmo daqueles que moram em lugares distantes. É difícil enganá-lo, e perigoso tentar.
— Lembre-se disso! Pois agora você deve servi-lo sob juramento. Não sei o que passou por sua cabeça, ou em seu coração, para que fizesse aquilo. Mas foi bem feito. Não impedi, pois ações generosas não devem ser reprimidas por conselhos frios. Tocou-lhe o coração, além de (permita-me dizer) diverti-lo. E no mínimo agora você está livre para caminhar à vontade em Minas Tirith – quando não estiver desempenhando alguma tarefa. Pois há um outro lado. Você está sob as ordens do Senhor, e disso ele não se esquecerá. Por isso, tenha cuidado! Calou-se e suspirou. — Bem, não é necessário preocupar-se com o que o amanhã poderá trazer. Em primeiro lugar, porque o amanhã trará certamente coisas piores que hoje, ainda por muitos dias vindouros. E não há mais nada que eu possa fazer para evitá-lo. O tabuleiro está armado, e as peças estão se movendo. Uma peça que desejo muito encontrar é Faramir, agora o herdeiro de Denethor. Não acho que ele esteja na Cidade, mas não tive tempo de colher noticias. Preciso ir, Pippin. Devo estar nesse conselho de senhores e obter todas as informações possíveis. Mas o lance agora é do Inimigo, e ele está prestes a abrir totalmente seu jogo. E é provável que os peões possam ter um campo de visão tão amplo quanto qualquer outra peça, Peregrin, filho de Paladin, soldado de Gondor. Afie sua espada!
Gandalf foi até a porta, e ali virou-se. — Estou com pressa, Pippin — disse ele. — Faça-me um favor quando sair. Antes mesmo de descansar, se não estiver cansado demais. Vá procurar Scadufax e veja como ele está alojado. Este povo é gentil com os animais, pois é um povo bom e sábio, mas tem menos habilidades com cavalos que outros.
Dizendo isso, Gandalf saiu, e naquele momento ouviu-se um sino tocando suave e límpido numa torre da cidadela. Soou três vezes, como prata no ar, e parou: a terceira hora depois do nascer do sol.
Depois de um minuto, Pippin passou pela porta, desceu a escada e foi olhar na rua. O sol agora brilhava quente e claro, e as torres e velhas casas projetavam longas e nítidas sombras na direção do oeste. Alto no ar azul, o Monte Mindolluin erguia seu elmo branco e sua capa de neve. Homens armados iam de um lado para o outro nos caminhos da Cidade, como se ao bater das horas devessem mudar de posto e atividade.
Nove horas nós diríamos no Condado — disse Pippin em voz alta para si mesmo. — Hora exata para um desjejum agradável perto da janela aberta ao sol da primavera.
E como adoraria um desjejum! Será que essas pessoas têm desjejum alguma vez, ou será que já passou da hora? E quando será que almoçam, e onde?
De repente notou um homem, vestido de branco e preto, vindo pela rua estreita do centro da Cidadela na direção dele. Pippin sentiu-se solitário e tomou a decisão de falar quando o homem passasse; mas não foi necessário. O homem veio exatamente na direção dele.
— Você é Peregrin, o Pequeno? — disse ele. — Ouvi dizer que você jurou servir ao Senhor e à Cidade. Bem-vindo! — Estendeu a mão e Pippin a apertou.
— Meu nome é Beregond, filho de Baranor. Não tenho obrigações esta manhã, e fui enviado para lhe ensinar as senhas e para lhe contar algumas das muitas coisas que sem dúvida você deseja saber. E, quanto a mim, gostaria de saber sobre você também. Pois nunca antes nesta terra vimos um Pequeno, e, embora tenhamos ouvido falar sobre eles, pouco se fala deles nas histórias que conhecemos. Além do mais, você é amigo de Mithrandir. Você o conhece bem?
— Bem — disse Pippin — ele é meu conhecido desde o início de minha curta vida, como se pode dizer; ultimamente tenho viajado com ele para lugares distantes. Mas há muito a ser lido naquele livro, e não posso afirmar que vi mais que uma ou duas páginas. Apesar disso, talvez eu o conheça tão bem como qualquer um, com exceção de uns poucos. Aragorn era o único em nossa Comitiva, eu acho, que realmente o conhecia bem.
— Aragorn? — disse Beregond. — Quem é ele?
— Oh! — gaguejou Pippin — era um homem que viajou conosco. Acho que agora está em Rohan.
— Você esteve em Rohan, ouvi dizer. Há muitas coisas que gostaria de lhe perguntar sobre aquela terra também, pois depositamos naquele povo grande parte da pouca esperança que nos resta. Mas estou me esquecendo de minha missão, que era responder primeiro ao que você perguntasse. O que gostaria de saber, Mestre Peregrin?
— É, bem — disse Pippin — se eu puder ousar dizer isto, uma pergunta que está queimando em minha cabeça neste momento é, bem, e o desjejum e tudo mais? Quero dizer, quais são as horas das refeições, se é que você me entende, e onde é a sala de jantar, se é que existe uma? E as estalagens? Eu procurei, mas não vi nenhuma em nossa subida, embora tenha vindo carregado pela esperança de poder conseguir um gole de cerveja quando chegássemos nas casas dos homens sábios e corteses.
Beregond lançou-lhe um olhar sério.
— Um típico veterano, pelo que vejo — disse ele. — Dizem que os homens que vão guerrear longe de casa estão sempre de olho na próxima oportunidade de conseguir comida e bebida, embora eu mesmo não seja um homem viajado. Quer dizer que você não comeu nada hoje?
— Bem, sim, para ser educado, digo que comi sim — disse Pippin. — Mas nada além de uma taça de vinho e um ou dois pedaços de bolo branco graças à cortesia de seu senhor; mas em troca disso ele me torturou com uma hora de interrogatório, e isso é um trabalho que dá fome.
Beregond riu.
— A mesa, homens pequenos podem ser responsáveis pelos maiores feitos, dizemos por aqui. Mas você quebrou seu jejum como qualquer homem na Cidadela, e com maiores honras. Esta é uma fortaleza e uma torre de guarda, que está agora em regime de guerra. Levantamo-nos antes de o sol nascer, e comemos alguma coisinha na luz cinzenta, e vamos fazer nossos deveres na primeira hora. Mas não se desespere! — disse Beregond rindo outra vez, ao ver a frustração nos olhos de Pippin. — Aqueles que tiveram trabalho pesado tomam alguma coisa para renovar suas forças no meio da manhã. Há o almoço ao meio-dia ou mais tarde, como permitirem os deveres; e os homens se reúnem para a refeição do dia, e para a diversão que ainda é possível, na hora do pôr-do-sol.
— Venha! Vamos caminhar um pouco e depois achar alguma coisa para repor as energias, e comida e bebida na ameia, apreciando a bela manhã.
— Um momento! — disse Pippin corando. — A voracidade, ou a fome, como você gentilmente diz, me tirou isso da cabeça. Mas Gandalf, Mithrandir, como vocês o chamam, me pediu que fosse ver o seu cavalo — Scadufax, um grande corcel de Rohan, e a menina dos olhos do rei, pelo que ouvi, embora tenha sido doado a Mithrandir por seus serviços. Acho que seu novo dono o ama mais do que ama a muitos homens, e, se a boa vontade dele tem algum valor para esta cidade, vocês devem tratar Scadufax com todas as honras: com maior gentileza do que trataram este hobbit, se for possível.
— Hobbit? — disse Beregond.
— É assim que nos chamamos a nós mesmos — disse Pippin.
— Fico feliz em sabê-lo — disse Beregond —, pois agora posso dizer que sotaques estranhos não estragam belas falas, e os hobbits são um povo que fala bonito. Mas venha! Deve apresentar-me a esse bom cavalo. Adoro animais, e raramente os vemos nesta cidade de pedra; pois meu povo veio dos vales das montanhas, e antes disso de Ithilien. Mas não tema! O encontro será rápido, uma mera visita de cortesia, e depois então vamos para as despensas.
Pippin viu que Scadufax fora bem alojado e cuidado. Pois no sexto círculo, do lado de fora das muralhas da Cidadela, havia alguns belos estábulos onde eram mantidos alguns cavalos velozes, ao lado dos alojamentos dos mensageiros do Senhor: homens sempre prontos a partir ao comando urgente de Denethor ou de seus superiores.
Mas agora todos os cavalos e mensageiros estavam ausentes em lugares distantes.
Quando Pippin entrou no estábulo, Scadufax relinchou e virou a cabeça. — Bom dia! — disse Pippin. — Gandalf virá assim que puder. Está ocupado, mas envia seus cumprimentos, e eu devo cuidar para que tudo esteja bem com você; espero que você esteja descansando, depois de seus longos trabalhos.
Scadufax empinou a cabeça e pateou o chão. Mas permitiu que Beregond lhe segurasse a cabeça de leve e acariciasse seus grandes flancos.
— Dá a impressão de que ele está sendo preparado para uma corrida, e não de que acaba de chegar de uma longa viagem – disse Beregond. — Como é forte e altivo!
Onde está seu arreio? Deve ser valioso e bonito.
— Nenhum é valioso e bonito o suficiente para ele — disse Pippin. — Ele não aceita nenhum. Se consentir em levá-lo, ele o leva; senão, bem, não há freio, rédea, chicote ou correia que possam domá-lo. Passe bem, Scadufax! Tenha paciência. A batalha se aproxima.
Scadufax levantou a cabeça e soltou um relincho que fez o estábulo tremer, e eles cobriram os ouvidos. Então saíram, após verificarem que a manjedoura estava bem cheia.
— E agora, para a nossa manjedoura — disse Beregond, levando Pippin de volta à Cidadela, e para uma porta do lado norte da grande torre. Ali desceram por uma escada longa e fresca até uma alameda larga iluminada por lamparinas.
Havia postigos nas paredes laterais, e um deles estava aberto.
— Este é o armazém e a despensa de minha companhia da Guarda — disse Beregond. — Meus cumprimentos, Targon! — chamou ele através do postigo. -Ainda é cedo, mas temos aqui um novato que o Senhor tomou a seu serviço. Ele cavalgou numa longa e distante viagem, com o cinto bem apertado, teve um trabalho duro durante a manhã e está faminto. Traga-nos o que tiver!
Conseguiram pão, manteiga, queijo e maçãs: as últimas do suprimento de inverno, enrugadas, mas doces e firmes; e um odre de couro cheio de cerveja recém-tirada do barril, e pratos e copos de madeira. Colocaram tudo num cesto de vime e subiram de volta para o sol; Beregond levou Pippin a um ponto na extremidade leste da grande ameia saliente, onde havia um vão de janela nas muralhas com um assento de pedra colocado abaixo do peitoril. Dali podiam observar a manhã sobre o mundo.
Comeram e beberam, falando algumas vezes de Gondor, de seus modos e costumes, e outras do Condado e das estranhas terras que Pippin vira. E, à medida que conversavam, Beregond ia ficando mais assombrado, — olhava com admiração cada vez maior para o hobbit, que balançava as pernas curtas enquanto estava sentado no banco, ou ficava na ponta dos pés sobre ele para espiar por cima do parapeito as terras lá embaixo.
— Não vou esconder de você, Mestre Peregrim – disse Beregond —, que para nós você parece quase uma de nossas crianças, um rapaz de nove verões mais ou menos; apesar disso, você enfrentou perigos e viu maravilhas que poucos de nossos barbas-cinzentas poderiam se gabar de ter visto. Pensei que fosse um capricho do nosso Senhor contratar um pajem nobre, à moda dos reis de antigamente, como se diz. Mas vejo que não é assim, e você deve perdoar minha tolice.
— Eu perdôo — disse Pippin. — Embora você não esteja muito errado. Sou pouco mais que um garoto pelos padrões de meu povo, e ainda levará quatro anos até que eu "atinja a maioridade", como dizemos no Condado. Mas não se incomode comigo. Venha, olhe e diga o que posso ver.
O sol agora se erguia, e a névoa nos vales lá embaixo havia subido. Uma última porção flutuava, um pouco acima de suas cabeças, como fragmentos de nuvens brancas carregados pela brisa constante que soprava do leste, agora agitando e balançando as bandeiras e insígnias brancas da cidadela.
Lá embaixo, no fundo do vale, a cerca de cinco léguas de distância em linha reta, podia-se ver o Grande Rio agora cinzento e luminoso, saindo do noroeste e fazendo uma grande curva para o sul e depois outra vez para o oeste, até se perder de vista na névoa tremeluzente, além da qual jazia o Mar, a cinquenta léguas de distância.
Pippin conseguia enxergar todo o Pelennor se estendendo diante dele, salpicado na distância de fazendas e pequenas muralhas, celeiros e estábulos, mas em lugar algum se viam reses ou outros animais. Várias estradas e trilhas cruzavam os campos verdes, e havia muita gente indo e vindo: carroças movendo-se em fila na direção do Grande Portão, e outras saindo. De vez em quando um cavaleiro subia, saltava da sela e corria para dentro da Cidade. Mas a maior parte do tráfego saía pela estrada principal, que se virava para o sul e depois, curvando-se mais rápido que o Rio, contornava as colinas e logo sumia de vista. Era ampla e bem pavimentada, e ao longo de sua margem leste corria uma larga pista verde para cavalos, e além desta havia uma muralha. Cavaleiros galopavam de um lado para o outro, mas toda a rua parecia estar sufocada com grandes carroças cobertas indo para o sul. Mas logo Pippin viu que, na verdade, tudo era bem organizado: as carroças avançavam em três fileiras, uma mais veloz puxada por cavalos; a segunda mais lenta, grandes carroções com belas mantas multicoloridas, puxados por bois; e ao longo da borda oeste da estrada muitos veículos menores puxados por homens que avançavam a muito custo.
— Aquela é a estrada que conduz aos vales de Tumladen e lossarnach, e para as aldeias das montanhas, e depois continua até Lebennin — disse Beregond. –Ali vão as últimas carroças levando para o refúgio os anciãos, as crianças, e as mulheres que precisam acompanhá-las. Todos precisam estar longe do Portão, deixando a estrada livre por uma légua antes do meio-dia: esta foi a ordem. Uma triste necessidade. — Ele suspirou. — Poucos, talvez, daqueles agora separados poderão se encontrar de novo. E sempre houve muito poucas crianças nesta cidade; mas agora não resta nenhuma — exceto alguns rapazes novos que se recusam a partir, e podem encontrar alguma tarefa a desempenhar: meu próprio filho é um deles.
Ficaram em silêncio por um tempo. Pippin olhou ansioso para o leste, como se a qualquer momento esperasse ver milhares de orcs inundando os campos. — O que vejo ali? — perguntou ele, apontando para baixo, para o meio da grande curva do Anduin. — Aquela é outra cidade, ou o quê?
— Foi uma cidade — disse Beregond —, a mais importante de Gondor, da qual esta era apenas uma fortaleza. Pois aquelas são as ruínas de Osgiliath, dos dois lados do Anduin, a qual nossos inimigos tomaram e incendiaram há muito tempo. Apesar disso, conseguimos recuperá-la nos dias da juventude de Denethor: não para morarmos nela, mas para mantê-la como um posto avançado, e para reconstruir a ponte para a passagem de nossos exércitos. E então vieram os Cavaleiros Cruéis, de Minas Morgul.
— Os Cavaleiros Negros? — disse Pippin, abrindo os olhos, que ficaram esbugalhados e escuros com o despertar de um velho medo.
— Sim, eles são negros — disse Beregond — e agora vejo que você sabe alguma coisa sobre eles, embora não os tenha mencionado em nenhuma de suas histórias.
— Sei sobre eles — disse Pippin baixinho, mas não vou falar neles agora, tão perto, tão perto. — Interrompeu o que dizia e levantou os olhos acima do Rio, tendo a impressão de que tudo o que conseguia ver era uma sombra vasta e ameaçadora. Talvez fossem montanhas assomando no limiar da visão, suas afiadas bordas suavizadas por cerca de vinte léguas de ar enevoado; talvez fosse apenas uma parede de nuvens, e além dela uma escuridão ainda mais profunda. Mas, ainda enquanto olhava, Pippin teve a impressão de que a escuridão crescia e se adensava, muito lentamente, lentamente se erguendo para sufocar as regiões ensolaradas.
— Tão perto de Mordor? — disse Beregond em voz baixa. — Sim, lá está ela. Raramente pronunciamos seu nome; mas sempre moramos à vista daquela sombra: algumas vezes ela parece mais sumida e distante; outras vezes mais próxima e escura. Agora está crescendo e escurecendo, e portanto nosso medo e nossa inquietude crescem também. E os Cavaleiros Cruéis, menos de um ano atrás, conseguiram reconquistar as travessias, e muitos de nossos melhores homens foram mortos. Foi Boromir quem finalmente conseguiu afastar o inimigo desta margem ocidental, e ainda mantemos em nosso poder a metade mais próxima de Osgiliath. Por um curto tempo. Mas aguardamos agora um novo ataque lá. Talvez o ataque principal da guerra que se aproxima.
— Quando? — disse Pippin. — Você tem uma idéia? Pois na noite passada vi os faróis e os mensageiros; Gandalf disse que isso era um sinal de que a guerra começara. Ele parecia estar com uma pressa desesperada. Mas agora parece que tudo ficou mais calmo outra vez.
— Somente porque agora tudo está pronto — disse Beregond.
— É apenas uma tomada de fôlego antes do mergulho.
— Mas por que os faróis estavam acesos a noite passada?
— É tarde demais para enviar pessoas em busca de ajuda quando você já está cercado — respondeu Beregond. — Mas desconheço os planos do Senhor e de seus capitães. Eles têm muitos meios de conseguir notícias. E o Senhor Denethor é diferente de outros homens: ele enxerga longe. Alguns dizem que, quando ele se senta em seu alto aposento na Torre durante a noite, e direciona seu pensamento neste ou naquele caminho, ele consegue ler alguma coisa do futuro, e de vez em quando vasculha a própria mente do Inimigo, digladiando-se com ele. Tanto assim que ele está velho, desgastado precocemente. Mas de qualquer forma meu senhor Faramir está longe, além do Rio em alguma missão perigosa, e ele pode ter enviado notícias.
— Mas, se quer saber qual, na minha opinião, seria o motivo de os faróis se acenderem, foi a noticia que chegou ontem á noite de Lebennin. Há uma grande esquadra se aproximando da foz do Anduin, liderada pelos corsários de Umbar no sul. Já faz tempo que deixaram de temer o poder de Gondor, e se aliaram ao Inimigo, e agora desferem um pesado golpe a favor dele. Pois esse ataque retirará grande parte da ajuda que procurávamos conseguir de Lebennin e Belfalas, onde o povo é valente e numeroso. Mais que nunca voltamos nossos pensamentos para o norte e para Rohan, e estamos muito alegres por essa noticia de vitória que vocês trazem agora.
— E mesmo assim — ele parou e se levantou, olhando em volta, para o norte, o leste e o sul — os acontecimentos em Isengard devem nos advertir de que estamos presos numa grande rede e estratégia. Não é mais uma contenda nos vaus, atacando por Ithilien e por Anórien, com emboscadas e pilhagens. Esta é uma grande guerra planejada há muito tempo, e nela somos apenas uma peça, não importa o que o orgulho possa dizer. As coisas estão se movendo no extremo leste, além do Mar Interno, sabemos pelos relatos; e também no norte, na Floresta das Trevas e mais além; e ao sul em Harad. E agora todos os reinos deverão ser submetidos à prova, para resistir ou cair — sob a Sombra.
— Apesar disso, Mestre Peregrin, temos esta honra: sempre fomos o alvo do maior ódio do Senhor do Escuro, pois esse ódio vem das profundezas do tempo, por sobre as profundidades do Mar. Aqui o golpe do martelo será mais forte. E por esse motivo Mithrandir veio até aqui com tanta pressa. Pois, se cairmos, quem resistirá? E, Mestre Peregrin, você tem alguma esperança de que possamos resistir?
Pippin não respondeu. Olhou as grandes muralhas, e as torres e as altivas bandeiras, e o sol no céu alto, e depois para a escuridão que se adensava no leste; pensou nos longos dedos daquela Sombra: os orcs das florestas e montanhas, a traição de Isengard, os pássaros de olhos malévolos, e os Cavaleiros Negros até mesmo nas alamedas do Condado — e pensou também no terror alado, os nazgúl. Estremeceu, e teve a impressão de que a esperança definhava. E naquele exato momento o sol, por um instante, vacilou e foi obscurecido, como se uma asa negra tivesse passado por ele. Quase inaudível ele teve a impressão de captar, alto e muito acima nos céus, um grito: fraco, mas de estremecer o coração, cruel e frio. Ficou branco e encolheu-se contra a muralha.
— Que foi isso? — perguntou Beregond. — Você também sentiu alguma coisa?
— Senti — murmurou Pippin. — É o sinal de nossa queda, e a sombra da destruição, um Cavaleiro Cruel dos ares.
— Sim, a sombra da destruição — disse Beregond. – Receio que Minas Tirith deva cair. A noite se aproxima. O próprio calor de meu sangue parece que me foi roubado.
Por um tempo ficaram sentados juntos, cabisbaixos e calados.
Então, de repente, Pippin ergueu os olhos e viu que o sol ainda estava brilhando e as bandeiras continuavam tremulando ao vento. Sacudiu o corpo. — Passou — disse ele. — Não, meu coração ainda não vai se desesperar. Gandalf pereceu, retornou e está conosco. Podemos resistir, nem que seja numa só perna, ou até mesmo de joelhos.
— Muito bem dito! — exclamou Beregond, levantando-se e andando de um lado para o outro em largas passadas. — Não, embora todas as coisas irremediavelmente devam chegar a um fim em determinada hora, Gondor ainda não perecerá Nem mesmo se as muralhas forem tomadas por um inimigo impiedoso que construa uma parede de cadáveres diante delas. Ainda há outras fortalezas, e caminhos secretos de fuga para dentro das montanhas. A esperança e a memória ainda viverão em algum vale oculto, onde a relva é verde.
— Mesmo assim, eu gostaria que tudo terminasse, para o bem ou para o mal — disse Pippin. — Não sou de forma alguma um guerreiro, e me desagrada a idéia da batalha; mas esperar no limiar de uma batalha da qual eu não posso escapar é pior que tudo. Como este dia já parece longo! Seria mais feliz se não fôssemos obrigados a vigiar e resistir, sem fazer qualquer movimento e sem desferir o primeiro golpe. Nenhum golpe teria sido desferido em Rohan, eu acho, se não fosse por Gandalf.
— Ah! Nesse ponto você toca na ferida de muitas pessoas! – disse Beregond. — Mas as coisas podem mudar com o retorno de Faramir. Ele é corajoso, mais corajoso do que muitos julgam; nestes dias os homens demoram a crer que um capitão possa ser sábio e versado nos pergaminhos da tradição e das canções como ele é, e ser ao mesmo tempo um homem audacioso e de julgamento rápido no campo de batalha. Mas Faramir é assim. Menos temerário e ansioso que Boromir, mas não menos resoluto. Mesmo assim, o que poderá ele fazer realmente? Não podemos atacar as montanhas do... do reino que fica mais além. Nosso alcance está diminuído, e não podemos atacar até que algum inimigo invada nossa esfera. Ai então nossa mão deverá ser pesada. — Beregond bateu no punho da espada.
Pippin olhou para ele: grande, altivo e nobre, como todos os homens que já vira naquela terra; um brilho faiscava em seus olhos ao pensar na batalha. "É uma pena, mas minha mão parece mais leve que uma pluma", pensou ele, mas não disse nada. "Um peão, Gandalf dissera? Talvez, mas no tabuleiro errado."
Assim conversaram até que o sol atingiu seu apogeu, e de repente os sinos do meio-dia soaram, e a Cidadela começou a se agitar; todos, exceto as sentinelas, estavam indo fazer suas refeições.
— Você não vem comigo? — disse Beregond. — Pode se juntar ao meu grupo hoje. Não sei a que companhia será designado, ou talvez o Senhor possa mantê-lo sob seu comando direto. Mas você será bem-vindo. E será bom que conheça o maior número possível de nossos homens, enquanto ainda houver tempo.
— Ficarei feliz em acompanhá-lo — disse Pippin. — Sinto-me solitário, para falar a verdade. Deixei para trás meu melhor amigo, em Rohan, e não tenho tido ninguém para conversar ou para fazer brincadeiras. Quem sabe eu não possa realmente juntar-me á sua companhia? Você é o capitão? Se esse é o caso, você poderia me aceitar, ou dizer uma palavra a meu favor?
— Não, não — riu Beregond. — Não sou o capitão. Não sou oficial, nem graduado e nem tenho qualquer título, não passando de um simples soldado da Terceira Companhia da Cidadela. Mesmo assim, Mestre Peregrin, ser apenas um soldado da Guarda da Torre de Gondor é algo respeitável na Cidade, e esses homens gozam de respeito nesta terra.
— Então é uma posição muito acima da minha pessoa – disse Pippin.
— Leve-me de volta ao nosso quarto, e, se Gandalf não estiver lá, irei aonde você quiser como seu convidado.
Gandalf não estava no alojamento e não enviara qualquer recado; então Pippin acompanhou Beregond e foi apresentado aos homens da Terceira Companhia. E, ao que pareceu, isso foi motivo de honra tanto para Beregond como para seu convidado, pois Pippin foi muito bem recebido. Já se tinha comentado muito na Cidadela sobre o companheiro de Mithrandir, e sobre sua longa conversa a portas fechadas com o Senhor, e corriam boatos de que um Príncipe dos Pequenos viera do norte para oferecer a Gondor obediência e cinco mil espadas. E alguns diziam que, quando os Cavaleiros viessem de Rohan, cada um traria em sua garupa um guerreiro do povo dos Pequenos, miúdo talvez, mas valente.
Embora Pippin tenha precisado, contra a sua vontade, destruir essa lenda esperançosa, não conseguiu se livrar dessa nova posição, que seria bem adequada, pensavam os homens, a alguém que tivesse sido amigo de Boromir e que fosse respeitado pelo Senhor Denethor. Agradeceram-lhe por ter vindo se juntar a eles, ouviram com avidez suas palavras e histórias sobre as terras estrangeiras, e lhe ofereceram toda a comida e a cerveja que ele poderia desejar. Na verdade, o único problema de Pippin era manter cautela", seguindo o conselho de Gandalf, e não ficar com a língua solta, como fica um hobbit entre amigos.
Finalmente, Beregond se levantou.
— Até logo, por enquanto! — disse ele. — Tenho tarefas a cumprir agora até o pôr-do-sol, como todos os outros aqui, eu acho. Mas, se você está se sentindo solitário, como disse, talvez aprecie um guia alegre para conduzi-lo pela Cidade. Meu filho terá prazer em acompanhá-lo. Um bom rapaz, posso dizer. Se isso lhe agradar, desça até o círculo mais baixo e pergunte pela Velha Hospedaria na Rath Celerdain, a rua dos Lampioneiros.
Você poderá encontrá-lo lá, juntamente com outros rapazes que permanecem na Cidade. Pode haver coisas que valham a pena ver junto ao Grande Portão, antes que ele seja fechado.
Saiu, e logo depois todos os outros o seguiram. O dia permanecia agradável, embora estivesse ficando enevoado, e estava quente para março, mesmo naquela região do sul. Pippin se sentia sonolento, mas o alojamento parecia melancólico, e ele decidiu descer e explorar a Cidade. Levou para Scadufax alguns alimentos que separara, e que foram muito bem aceitos, embora o cavalo não parecesse estar sentindo falta de comida. Então Pippin desceu por longos caminhos sinuosos.
As pessoas olhavam-no muito enquanto ele passava. Quando passava, os homens eram de uma cortesia grave, saudando-o à maneira de Gondor, curvando a cabeça com a mão sobre o peito; mas atrás de si Pippin escutava muitos chamados, como se os que estivessem para fora chamassem aqueles no interior das casas para que viessem ver o Príncipe dos Pequenos, o companheiro de Mithrandir. Muitos usavam idiomas diferentes da Língua Geral, mas não demorou muito para que Pippin percebesse pelo menos o significado de Ernil i Pheriannath, e sabia que esse título o precedera na Cidade.
Finalmente passou por ruas com arcos e por muitas alamedas e calçadas belas, chegando até o círculo maior e mais baixo, e ali lhe indicaram o caminho da rua dos Lampioneiros, uma rua larga que conduzia ao Grande Portão. Nela encontrou a Velha Hospedaria, um grande prédio de pedra desgastada e cinzenta, com duas alas que avançavam até a rua, e entre elas um gramado verde, atrás do qual ficava a casa de muitas janelas. Ao longo de toda a fachada havia um pórtico com pilares, e um lance de escada que descia até o gramado. Meninos brincavam entre os pilares, as únicas crianças que Pippin vira em Minas Tirith, e ele parou para observá-las.
De repente um deles o avistou, e com um grito veio saltando pelo gramado até a rua, seguido de vários outros. Ali parou na frente de Pippin, fitando-o de cima a baixo.
— Meus cumprimentos! — disse o menino. — De onde você vem? Vejo que é um forasteiro.
— Eu era — disse Pippin —; mas dizem que agora me transformei num homem de Gondor.
— Ora, ora — disse o menino. — Então somos todos homens aqui. Mas quantos anos tem, e qual é o seu nome? Eu já tenho dez anos, e logo estarei medindo um metro e meio. Sou mais alto que você. Mas, também, meu pai é um Guarda, um dos mais altos. E o seu?
— Que pergunta devo responder primeiro? — disse Pippin. — Meu pai cultiva as terras ao redor de Poçalvo, perto de Tuqueburgo, no Condado. Tenho quase vinte e nove anos, o que quer dizer que em idade estou na sua frente; apesar disso meço apenas um metro e vinte, e não é provável que eu cresça mais, exceto para os lados.
— Vinte e nove — disse o menino soltando um assobio. – Que coisa, você é bem velho. Da mesma idade do meu tio Jorlas. Mesmo assim — acrescentou ele cheio de autoconfiança —, aposto que poderia virá-lo de cabeça para baixo ou derrubá-lo no chão.
— Talvez possa, se eu permitir — disse Pippin com uma risada. — E talvez eu pudesse fazer o mesmo com você: conhecemos alguns truques de luta em nossa pequena terra. Lá, deixe-me dizer, sou considerado singularmente grande e forte, e nunca permiti que ninguém me colocasse de cabeça para baixo. Então, se houvesse uma tentativa sua, e eu não visse outra solução, talvez tivesse de matá-lo. Pois, quando você for mais velho, aprenderá que as pessoas não são sempre o que aparentam, e, embora você tenha me tomado por um menino forasteiro e frágil, e uma presa fácil, deixe-me adverti-lo: não sou o que está pensando; sou um Pequeno, forte, corajoso e malvado! — Pippin deu um sorriso tão sinistro que o menino recuou um passo, mas imediatamente avançou com punhos cerrados e a luz da batalha nos olhos.
— Não! — disse Pippin rindo. — Também não deve acreditar no que os forasteiros dizem sobre si mesmos! Não sou um lutador. Mas seria mais educado, de qualquer forma, se o desafiante dissesse quem é.
O menino se empertigou cheio de orgulho. — Sou Bergil, filho de Beregond da Guarda — disse ele.
— Foi o que pensei — disse Pippin — pois você se parece com seu pai. Eu o conheço, e ele me mandou procurá-lo.
— Então por que não disse imediatamente? — disse Bergil, e de repente uma expressão frustrada cobriu-lhe o rosto. — Não me diga que ele mudou de idéia, e decidiu me mandar embora com as donzelas! Mas não pode ser, as últimas carroças já se foram.
— A mensagem dele é menos ruim que essa, se é que não é boa — disse Pippin. — Ele manda dizer que, se você preferir isso a me virar de cabeça para baixo, pode me mostrar a Cidade durante algum tempo e alegrar minha solidão. Em retribuição posso lhe contar umas histórias de terras distantes.
Bergil bateu palmas, e riu aliviado. — Está tudo bem – gritou ele. — Então venha! Estávamos de saída para o Portão para ver os acontecimentos. Vamos agora.
— O que está acontecendo lá?
— Os Capitães das Terras Estrangeiras estão sendo esperados na Estrada Sul antes do pôr-do-sol. Venha conosco e verá.
Bergil acabou se mostrando um bom companheiro, a melhor companhia que Pippin teve desde que se separara de Merry, e logo os dois estavam rindo e conversando alegremente enquanto andavam pelas ruas, sem se darem conta dos muitos olhares que os homens lhes dirigiam. Logo se viram em meio a um tropel, indo para o Grande Portão. Ali Pippin cresceu muito na estima de Bergil, pois, quando falou seu nome e a senha, o guarda o saudou e permitiu que passasse. Além disso, permitiu também que o hobbit levasse consigo o companheiro.
— Isso é bom! — disse Bergil. — Não é mais permitido que nós garotos atravessemos o portão sem um adulto. Agora poderemos ver melhor.
Além do Portão havia uma multidão de homens ao longo da borda da estrada e do grande espaço pavimentado para o qual todos os caminhos para Minas Tirith convergiam. Todos os olhos se voltavam para o sul, e logo um murmúrio se ergueu. — Há poeira lá adiante! Eles estão chegando!
Pippin e Bergil se esgueiraram para a frente da multidão.
Cornetas soaram a alguma distância, e o ruido de aplausos veio na direção deles como um vento crescente.
Então ouviu-se um alto clangor de trombeta, e por toda a volta as pessoas gritavam.
— Forlong! Forlong! — ouviu Pippin. — O que eles estão dizendo? — perguntou ele.
— Forlong chegou — respondeu Bergil. — O velho Forlong, o Gordo, o senhor de Lossarnach. Lá vive meu avô. Viva! Lá vem ele. O bom e velho Forlong!
Á frente da fila vinha caminhando um grande cavalo de pernas grossas, e nele um homem de ombros largos e enorme cintura, mas velho e de barba grisalha; mesmo assim estava vestido de malha metálica e usava um elmo negro, carregando uma lança comprida e pesada. Atrás dele marchava orgulhosa uma fileira empoeirada de homens, bem armados e carregando grandes machados-de-batalha; tinham os rostos sinistros, eram mais baixos e um tanto mais morenos que qualquer homem que Pippin já vira em Gondor.
— Forlong! — gritavam os homens. — Coração sincero, amigo sincero! Forlong! — Mas, quando os homens de Lossarnach haviam passado, eles murmuraram:
— Tão poucos! Duzentos, é essa a conta? Esperávamos dez vezes esse número. Essa vai ser a última novidade da esquadra negra. Estão enviando apenas um décimo de sua força. Mesmo assim, qualquer número já é um ganho.
E assim as companhias vieram e foram saudadas e aplaudidas e passaram através do Portão, homens das Terras Estrangeiras marchando para defender a Cidade de Gondor numa hora escura; mas sempre em número reduzido, sempre menos homens do que se esperava, ou do que se pedira. Os homens do Vale Ringló atrás do filho de seu senhor, Dervorin, avançando a pé: três centenas. Das regiões altas de Morthond, o grande Vale da Raiz Negra, o alto Duinhir e seus filhos,
Duilin e Derufin, e quinhentos arqueiros. De Anfalas, a distante Praia Comprida, uma longa fileira de homens de vários tipos, caçadores e pastores, e homens de pequenas aldeias, parcamente equipados, exceto os homens da casa de Golasgil, seu senhor. De Lamedon, alguns montanheses austeros sem um capitão. Pescadores do Ethir, cerca de uma centena ou mais, dispensados dos navios. Hirluin, o Belo, das Colinas Verdes de Pinnath Gelin, com três centenas de esplêndidos homens vestidos de verde. E por último o mais altivo, Imrahil, Príncipe de Doí Amroth, parente do Senhor, com bandeiras cor de ouro ostentando seu símbolo: o Navio e o Cisne de Prata, e uma companhia de cavaleiros bem paramentados, montando cavalos cinzentos; atrás deles sete centenas de soldados, altos como senhores, de olhos cinzentos, cabelos escuros, cantando enquanto avançavam. E isso era tudo, menos de três mil no total. Ninguém mais viria.
Seus gritos e as pisadas de seus pés entraram na Cidade e foram sumindo.
Os que assistiam ficaram em silêncio por um tempo. Pairava poeira no ar, pois o vento cessara e o fim da tarde estava pesado. A hora do fechamento do Portão já se aproximava, e o sol vermelho já estava atrás do Mindolluin. A sombra caiu sobre a Cidade.
Pippin ergueu os olhos, com a impressão de que o céu ficara cor de cinza, como se uma enorme poeira e fumaça pairassem acima deles, e a luz passasse vagamente por elas. Mas no oeste o sol que morria incendiara toda a fumaça, e agora o Mindolluin se erguia negro contra um fogo aceso salpicado de cinzas.
— Assim termina um belo dia em ira! — disse ele, esquecido do menino ao seu lado.
— Assim será, se eu não estiver em casa antes dos sinos do pôr-do-sol — disse Bergil. — Venha! Aí está a trombeta que anuncia o fechamento do Portão.
De mãos dadas entraram de novo na Cidade, os últimos a atravessarem o Portão antes que fosse fechado; quando alcançaram a rua dos Lampioneiros, todos os sinos nas torres badalavam solenemente. Luzes se acendiam em muitas janelas, e das casas e das guaritas dos soldados ao longo das muralhas vinha o som de canções.
— Até logo, por esta vez — disse Bergil. — Leve minhas saudações a meu pai, e agradeça-lhe pela companhia que me enviou. Volte logo, eu lhe peço. Quase chego a desejar agora que não houvesse guerra, pois então poderíamos ter-nos divertido um bocado. Poderíamos ter viajado para Lossarnach, para a casa de meus avós; é bom estar lá na primavera, as florestas e campos ficam cheios de flores. Mas talvez ainda possamos visitar aquela região juntos. O nosso Senhor nunca será derrotado, e meu pai é muito corajoso. Até logo, e espero que retorne!
Separaram-se e Pippin correu de volta para a Cidadela. Pareceu-lhe um caminho longo, e ele ficou com calor e muita fome; a noite se fechava rápida e escura. Nem sequer uma estrela apontava no céu. Chegou atrasado para a refeição do dia na Companhia, e Beregond o recebeu com alegria, sentando-se ao seu lado para saber notícias do filho. Depois da refeição Pippin permaneceu lá por mais um tempo, e então saiu, pois foi tomado de uma estranha melancolia, desejando muito ver Gandalf de novo.
— Você sabe o caminho? — perguntou Beregond à porta do pequeno salão, ao norte da Cidadela, onde estavam sentados. — A noite está escura, e mais escura do que nunca desde que recebemos ordens para diminuir a intensidade das luzes dentro da Cidade, com recomendações de que nenhuma fosse acesa do lado de fora das muralhas. E posso lhe dar uma noticia de outra ordem: você será convocado pelo Senhor Denethor amanhã bem cedo. Receio que você não esteja designado para a Terceira Companhia. Mesmo assim, podemos ter esperanças de nos encontrar de novo. Até logo e durma em paz!
O alojamento estava escuro, exceto por uma pequena lamparina acesa sobre a mesa. Gandalf não estava lá. A melancolia se abateu ainda mais pesada sobre Pippin. Subiu no banco e tentou espiar pela janela, mas era como olhar dentro de um lago de tinta. Desceu, fechou a janela e foi dormir. Ficou um tempo deitado, atento, tentando escutar ruídos do retorno de Gandalf, e então passou para um sono inquieto.
Durante a noite foi acordado por uma luz, e viu que Gandalf retornara e estava andando de um lado para o outro na sala além da cortina de sua alcova. Havia velas na mesa e rolos de pergaminhos. Ouviu o suspiro do mago, que murmurou: — Quando retornará Faramir?
— Olá! — disse Pippin, metendo a cabeça na abertura da cortina. Pensei que tinha se esquecido completamente de mim. Fico feliz por vê-lo de volta. Foi um longo dia.
— Mas a noite será curta demais — disse Gandalf. — Voltei para cá porque precisava de um pouco de paz, sozinho. Você deveria dormir numa cama, enquanto ainda pode. Ao nascer do dia eu o levarei até o Senhor Denethor de novo. Ou melhor, quando vier a convocação, não ao nascer do dia. A Escuridão começou. Não haverá aurora.
A PASSAGEM DA COMPANHIA CINZENTA
Gandalf fora embora, e o ruido surdo dos cascos de Scadufax se perdia na noite, quando Merry voltou ao encontro de Aragorn. Trazia apenas um embrulho pequeno, pois perdera sua mochila no Parth Galen, e tudo o que tinha eram algumas poucas coisas úteis que apanhara nas ruínas de Isengard. Flasufel já estava selado. Legolas e Gimli, com seu cavalo, estavam ali perto.
— Então quatro membros da Comitiva ainda restam — disse Aragorn.
— Vamos continuar cavalgando juntos. Mas não iremos sozinhos, como eu havia pensado. Agora o rei está determinado a partir imediatamente. Desde a passagem da sombra alada, ele deseja retornarás colinas sob a proteção da noite.
— E depois para onde? — perguntou Legolas.
— Ainda não sei dizer — respondeu Aragorn. — Quanto ao rei, irá à concentração de tropas que convocou em Edoras, daqui a quatro noites. E lá, eu acho, saberá notícias da guerra, e os Cavaleiros de Rohan descerão até Minas Tirith. Exceto eu e quem quer que esteja disposto a me seguir.
— Conte comigo! — exclamou Legolas. — E comigo também! – disse o anão.
— Bem, quanto a mim — disse Aragorn — tudo está escuro á minha frente. Também devo descer até Minas Tirith, mas ainda não vejo a estrada. Uma hora há muito preparada se aproxima.
— Não me deixem para trás! — disse Merry. — Ainda não fui de muita utilidade, mas não quero ser deixado de lado, como bagagem a ser apanhada quando tudo terminar. Não acho que os Cavaleiros queiram se incomodar comigo agora. Embora o rei, é claro, tenha dito que eu deveria sentar ao seu lado quando chegássemos à sua casa, para lhe contar tudo sobre o Condado.
— Sim — disse Aragorn — e sua estrada segue com ele, eu acho, Merry. Mas não espere divertimento no fim. Demorará muito, receio eu, até que Théoden possa se sentar tranquilo outra vez em Meduseld. Muitas esperanças fenecerão nesta primavera amarga.
Logo todos estavam prontos para partir — vinte e quatro cavalos, com Gimli na garupa de Legolas, e Merry na frente de Aragorn. De repente estavam cavalgando rápido através da noite. Não fazia muito tempo que tinham passado pelos túmulos nos Vaus do Isen, quando um Cavaleiro veio da retaguarda e alcançou a fila onde estavam.
— Meu senhor — disse ele ao rei —, há cavaleiros atrás de nós. Quase nos alcançando, galopando em grande velocidade.
Imediatamente Théoden ordenou uma pausa. Os Cavaleiros se viraram e agarraram as lanças. Aragorn desmontou e colocou Merry no chão e puxando sua espada parou ao lado do estribo do rei. Éomer e seu séquito se dirigiram à retaguarda. Merry mais que nunca se sentiu como bagagem inútil, e ficou pensando o que faria se houvesse uma luta supondo que a pequena escolta do rei fosse presa e derrotada, e só ele escapasse na escuridão — sozinho nos campos desertos de Rohan, sem idéia de onde estava em todo aquele espaço de milhas intermináveis? "De nada adiantaria", pensou ele. Puxou a espada e apertou o cinto.
A lua que ia descendo foi obscurecida por uma grande nuvem flutuante, mas de repente surgiu clara de novo. Então todos ouviram o som de cascos, e no mesmo momento viram figuras escuras rapidamente se aproximando pela trilha que vinha dos vaus. O luar reluzia aqui e ali nas pontas das lanças. Não se podia calcular o número dos perseguidores mas no mínimo eles não pareciam um grupo menor que a escolta do rei.
Quando estavam a uns cinquenta passos de distância Éomer gritou em voz alta: -Alto! Alto! Quem cavalga em Rohan?
Os perseguidores de súbito frearam suas montarias. Seguiu-se um silêncio então, á luz do luar, foi possível ver um cavaleiro desmontando e caminhando para a frente num passo lento. Sua mão apareceu branca assim que ele a ergueu, com a palma para fora, em sinal de paz; mas os homens do rei agarraram suas armas. A dez passos o homem parou. Era alto, uma sombra escura. Então sua voz soou.
— Rohan? Você disse Rohan? Essa é uma palavra alegre. Estamos vindo de muito longe á procura dessa terra, e temos pressa em achá-la.
— Vocês a encontraram — disse Éomer. — Quando atravessaram os vaus lá adiante, entraram nela. Mas este é o reino de Théoden, o Rei. Ninguém cavalga aqui a não ser com a sua permissão. Quem é você? Que significa essa pressa?
— Sou Halbarad Dúnadan, guardião do norte — exclamou o homem. Procuramos um certo Aragorn, filho de Arathorn, e ouvimos dizer que ele estava em Rohan.
— E também o encontraram! — exclamou Aragorn. Dando as rédeas para Merry, correu á frente e abraçou o recém-chegado. — Halbarad! — disse ele. – De todas as alegrias, esta era a menos esperada!
Merry deu um suspiro de alivio. Tinha pensado que aquele era um dos últimos truques de Saruman, para atocaiar o rei enquanto estava acompanhado apenas por alguns homens; mas parecia que não seria necessário morrer defendendo Théoden, não por enquanto, de qualquer forma. Embainhou a espada.
— Está tudo bem — disse Aragorn, voltando-se. — Aqui estão alguns de meus parentes, que vêm das terras distantes onde morei. Mas por que vêm, e quantos são, Halbarad deverá nos contar.
— Tenho trinta homens comigo — disse Halbarad. — Foi o máximo de patentes que conseguimos reunir ás pressas; mas os irmãos Elladan e Elrobir cavalgaram conosco, desejando ir para a guerra. Viemos na maior velocidade possível, quando chegou a sua convocação.
— Mas eu não os convoquei — disse Aragorn —, exceto apenas em desejo. Meus pensamentos frequentemente têm-se voltado em sua direção, e hoje mais do que nunca; apesar disso, não enviei mensagem alguma. Mas venham! Todos esses assuntos podem esperar. Vocês nos encontram cavalgando com pressa e em perigo. Acompanhem-nos agora, se o rei der sua permissão. Théoden ficou realmente feliz com a noticia. Isso é bom! – disse ele.
— Se esses seus parentes forem de alguma forma parecidos com você, meu senhor Aragorn, trinta desses cavaleiros serão uma força que não poderá ser avaliada pelo número de cabeças.
Então os Cavaleiros partiram de novo, e Aragorn por um tempo cavalgou com os dúnedain, e, quando tinham conversado sobre os acontecimentos no norte e no sul, Elrobir lhe disse:
— Trago-lhe uma mensagem de meu pai: Os dias agora são curtos. Se estás com pressa, lembra-te das Sendas dos Mortos.
— Sempre meus dias me pareceram curtos demais para realizar meu desejo — respondeu Aragorn. — Mas realmente grande será minha pressa quando eu tomar essa estrada.
— Isso logo vetemos — disse Elrohir. — Mas deixemos de falar dessas coisas aqui na estrada aberta!
E Aragorn disse para Halbarad:
— O que é isso que você carrega, Primo? — Pois ele viu que em vez de uma lança Halbarad trazia um grande cajado, como se fosse um estandarte, mas que estava embrulhado num tecido negro, amarrado com várias correias.
— É um presente que eu trago da Senhora de Valfenda — respondeu Halbarad. — Ela o teceu em segredo, e a confecção foi demorada. Mas ela também lhe manda uma mensagem: Os dias são curtos. Ou nossa esperança chega, ou todas as esperanças se acabam. Portanto envio-te o que fiz para ti. Passe bem, Pedra Élfica!
E Aragorn disse:
— Agora sei o que você carrega. Carregue-o para mim por mais um tempo! — E voltou-se e olhou na distância ao norte, sob as grandes estrelas e depois ficou em silêncio e não disse mais nada enquanto durou a viagem noturna.
Era noite alta e o leste estava cinzento quando subiram finalmente a Garganta do Abismo, e retornaram ao Forte da Trombeta. Ali deveriam se deitar e descansar por um breve período, e fazer planos.
Merry dormiu até ser acordado por Legolas e Gimli. — O sol está alto
— disse Legolas. — Os outros estão em plena atividade. Venha, Mestre Preguiçoso, e dê uma olhada no lugar enquanto ainda pode!
— Houve uma batalha aqui três dias atrás — disse Gimli —, e aqui Legolas e eu jogamos um jogo que eu venci por apenas um único orc. Venha ver como foi! E há cavernas, Merry, cavernas maravilhosas! Vamos visita-las, Legolas, o que você acha?
— Não! Não há tempo — disse o elfo. — Não estrague essa maravilha com a pressa! Dei minha palavra de que voltarei aqui com você, se um dia de paz e liberdade surgir outra vez. Mas agora é quase meio-dia, e a essa hora deveremos almoçar, e depois partir novamente, pelo que ouvi. Merry se levantou e bocejou. Suas poucas horas de sono foram muito menos que o suficiente; estava cansado e bastante desanimado. Sentia a falta de Pippin, e sentia também que não passava de um peso morto, enquanto todo o mundo fazia planos para se apressar num negócio que ele não entendia completamente.
— Onde está Aragorn? — perguntou ele.
— Num alto aposento do Forte — disse Legolas.
— Não dormiu nem descansou, eu acho. Foi para lá há algumas horas, dizendo que precisava pensar, e apenas o seu parente, Halbarad, foi com ele; mas ele está tomado por alguma dúvida ou preocupação negra. São uma companhia estranha, esses recém-chegados — disse Gimli.
Homens robustos e de porte nobre, que fazem com que os Cavaleiros de
Rohan fiquem quase parecendo crianças ao lado deles; pois eles são homens de rostos austeros, marcados como pedras desgastadas, exatamente como o próprio Aragorn e também falam muito pouco.
— Mas assim como Aragorn são corteses, quando quebram seu silêncio — disse Legolas. — E você notou os irmãos Elladan e Elrohir? Seus trajes são menos sombrios que os dos outros, e são belos e galantes como Senhores Élficos; e isso não é de admirar nos filhos de Elrond de Valfenda.
— Por que vieram? Você ficou sabendo? — perguntou Merry.
Agora já vestido, jogou a capa cinzenta sobre os ombros e os três caminharam juntos na direção do portão arruinado do Forte.
— Responderam a uma convocação, como você ouviu – disse Gimli. Uma mensagem chegou a Valfenda, dizem eles: Aragorn precisa de seu povo. Que os dúnedain cavalguem para encontrá-lo em Rohan! Mas de onde veio essa mensagem eles não sabem ao certo. Gandalf a enviou, eu arriscaria dizer.
— Foi Galadriel — disse Legolas. — Ela não falou , através de Gandalf, da cavalgada da Companhia Cinzenta que viria do norte?
— Você tem razão — disse Gimli — A Senhora da Floresta! Ela leu muitos corações e desejos. Agora, por que nós também não desejamos a participação de nossos parentes, Legolas?
Legolas parou diante do portão e voltou os olhos claros para o norte e para o leste, com o sofrimento estampado em seu belo rosto. – Não acho que alguém viria — respondeu ele. — Eles não precisam cavalgar ao encontro da guerra; a guerra já marcha em suas próprias terras.
Por um tempo os três companheiros caminharam juntos, comentando sobre um ou outro lance da batalha; desceram do portão quebrado e passaram pelos túmulos dos mortos na relva ao lado da estrada, até que pararam sobre o Dique de Helm e observaram a Garganta. A Colina da Morte ainda estava lá, negra, alta e pedregosa, e ainda havia marcas bem visíveis na grama removida e pisada pelos huorns. O povo da Terra Parda e muitos homens da guamição do Forte estavam trabalhando no Dique ou nos campos e ao redor das muralhas destruídas mais além; apesar disso, tudo parecia estranhamente quieto: um vale cansado, repousando depois de uma grande tempestade.
Logo os três voltaram e se dirigiram à refeição do meio-dia no salão do Forte.
O rei já estava lá, e logo que entraram ele chamou Merry e lhe ofereceu uma cadeira ao seu lado. — Não é como eu gostaria – disse Théoden —, pois este lugar é pouco parecido com minha casa em Edoras. E seu amigo, que também deveria estar aqui, partiu. Mas pode demorar muito até que nos sentemos, você e eu, à alta mesa em Meduseld; não haverá tempo para banquetes quando eu retornar. Mas venha agora! Coma e beba e vamos conversar um pouco enquanto pudermos. Depois você deverá cavalgar comigo.
— Eu posso? — disse Merry, surpreso e deliciado. – Seria esplêndido! — O hobbit nunca ficara tão agradecido diante de palavras corteses. — Receio estar apenas atrapalhando todo o mundo — gaguejou ele—; mas ficaria feliz em poder fazer qualquer coisa que estivesse ao meu alcance, o senhor sabe.
— Não duvido disso — disse o rei. — Mandei preparar um bom pônei montanhês para você. Vai conduzi-lo com a velocidade de qualquer cavalo pelas estradas que tomaremos. Pois vou partir do Forte e passar por trilhas nas montanhas, evitando a planície, e dessa forma vou chegar a Edoras pelo Templo da Colina, onde a
Senhora Éowyn me aguarda. Você será meu escudeiro, se isso lhe agrada.
Existe neste lugar algum equipamento de guerra, Éomer, que meu nobre espadachim possa usar?
— Não há grandes arsenais aqui, meu senhor — respondeu Éomer.
— Talvez encontremos um elmo leve que lhe possa servir; mas não temos malhas metálicas ou espadas que se ajustem ao seu tamanho.
— Eu tenho uma espada — disse Merry, saltando da cadeira e puxando de sua bainha negra a pequena espada brilhante. Cheio de um súbito afeto por aquele velho, ajoelhou-se sobre um dos joelhos, tomou-lhe a mão e beijou-a.
— Permita-me depositar a espada de Meriadoc do Condado em seu colo, Rei Théoden! — exclamou ele. — Aceite meu serviço, se lhe aprouver.
— Aceito com satisfação — disse o rei, e, colocando as longas e velhas mãos sobre os cabelos castanhos do hobbit, abençoou-o. — Levante-se agora, Meriadoc, escudeiro de Rohan, da casa de Meduseld! — disse ele. — Pegue sua espada e conduza-a para uma sorte feliz.
— O senhor será como um pai para mim — disse Merry.
— Por pouco tempo — disse Théoden.
Os dois conversaram durante a refeição, até que de repente Éomer falou.
— A hora que marcamos para partir se aproxima, meu senhor – disse ele. — Devo pedir que os homens toquem as trombetas? Mas onde está Aragorn? Seu lugar está vazio, e ele não comeu.
— Vamos nos aprontar para partir — disse Théoden —; mas faça com que uma mensagem seja enviada ao Senhor Aragorn, dizendo que a hora se aproxima.
O rei com sua guarda, acompanhado de Merry, desceu do portão do Forte para o ponto no gramado onde os Cavaleiros estavam se reunindo.
Muitos já estavam montados. Seria uma grande companhia; pois o rei estava deixando apenas uma pequena guarnição no Forte, e todos os que podiam ser utilizados estavam indo para o encontro de armas em Edoras. Mil lanceiros já haviam, na realidade, partido durante a noite; mas ainda haveria mais quinhentos acompanhando o rei, na maioria homens dos campos e vales do Folde Ocidental.
Os guardiões estavam sentados um pouco mais longe, em silêncio, num grupo ordenado, armados com lanças, arcos e espadas. Estavam vestidos com capas de um cinza-escuro, e seus capuzes cobriam elmo e cabeça.
Os cavalos eram fortes e de porte altivo, mas tinham pêlo duro e um estava ali sem seu cavaleiro; era o próprio cavalo de Aragorn que tinham trazido do norte; Roheryn era seu nome. Não havia brilho de pedras ou ouro, nem qualquer coisa bonita nos seus estribos e arreios; nem os seus cavaleiros usavam qualquer insígnia ou símbolo, a não ser o broche no formato de uma estrela raiada de prata, que cada um tinha espetado sobre o ombro esquerdo.
O rei montou seu cavalo, Snawmana, e Merry se pôs ao lado dele em seu pônei: este chamava-se Stybba. De repente Éomer saiu do portão acompanhado de Aragorn e Halbarad, este trazendo o grande cajado, todo embrulhado no tecido negro, e dois homens altos, nem jovens nem velhos.
Eram tão parecidos os filhos de Elrond que poucos conseguiam distinguir um outro; cabelos escuros, olhos cinzentos, e nos rostos a beleza dos elfos, vestidos da mesma forma em malhas brilhantes sob as capas de um cinza-prateado. Atrás deles caminhavam Legolas e Gimli. Mas Merry só tinha olhos para Aragorn, tão assustadora era a mudança que se operara nele, como se em uma noite anos tivessem desabado sobre sua cabeça. O rosto estava austero, cor de cinza e exausto.
— Estou preocupado, senhor — disse ele, parando ao lado do cavalo do rei. — Ouvi palavras estranhas, e vejo novos perigos á frente. Esforcei-me muito pensando, e agora receio que deva mudar meu propósito. Diga-me, Théoden, você cavalga agora para o Templo da Colina; quanto tempo levará para que chegue lá?
— Agora já passa uma hora do meio-dia — disse Éomer. -Antes da noite do terceiro dia a contar de agora devemos chegar à Fortaleza. A lua então terá passado um dia de sua fase cheia, e a concentração de tropas que o rei pediu acontecerá no dia seguinte. Não podemos ser mais rápidos, se quisermos reunir a força de Rohan.
Aragorn ficou em silêncio por um momento. Três dias – murmurou ele —, e a concentração das tropas de Rohan terá apenas começado. Mas vejo que não se pode apressá-la. Ergueu os olhos e parecia ter tomado alguma decisão; seu rosto estava menos preocupado. — Então, com a sua permissão, senhor, devo fazer novos planos para mim e meu povo. Devemos ir por nossa própria estrada, não mais em segredo. Para mim, o tempo de clandestinidade acabou. Vou cavalgar pelo caminho mais rápido, e vou tomar as Sendas dos Mortos.
— As Sendas dos Mortos — disse Théoden, estremecendo. — Por que você as menciona? — Éomer virou-se e fitou Aragorn, e Merry teve a impressão de que os rostos dos Cavaleiros que estavam por perto e puderam ouvir ficaram pálidos à menção daquelas palavras. — Se realmente existirem tais sendas — disse Théoden —, o portão para elas está no Templo da Colina; mas nenhum homem vivo pode passar por ele.
— Que pena, Aragorn, meu amigo! — disse Éomer. – Esperava que pudéssemos cavalgar juntos para a guerra; mas, se você procura as Sendas dos Mortos, então chegou a hora de nossa separação, e é pouco provável que nos encontremos de novo sob este sol.
— Não obstante, tomarei aquela estrada — disse Aragorn. — Mas digo a você, Éomer, que na batalha poderemos nos encontrar de novo, mesmo que todos os exércitos de Mordor se posicionem entre nós.
— Faça como quiser, meu senhor Aragorn — disse Théoden. — É o seu destino, talvez, trilhar caminhos estranhos que os outros não ousam. Esta despedida me entristece, e diminui minha força; mas agora devo tomar as estradas das montanhas sem mais delongas. Passe bem!
— Até logo, senhor! — disse Aragorn. — Cavalgue para a fama! Até logo,
Merry! Deixo você em boas mãos, melhor do que esperávamos quando caçavamos os orcs em Fangorn. Legolas e Gimli ainda vão caçar ao meu lado espero, mas não nos esqueceremos de você.
— Adeus! — disse Merry. Não conseguiu encontrar outras palavras. Sentiu-se muito pequeno e estava consternado e deprimido diante de todas aquelas palavras melancólicas. Mais do que nunca sentia falta da inesgotável alegria de Pippin. Os
Cavaleiros estavam prontos, e os cavalos, inquietos; Merry desejava que partissem e terminassem logo com aquilo.
Agora Théoden se dirigia a Éomer, erguendo a mão e falando em voz alta, e com aquela palavra os Cavaleiros partiram. Passaram pelo Dique e desceram a Garganta, e depois, virando-se depressa para o leste, pegaram a trilha que contornava os pés das colinas por cerca de uma milha até que, curvando-se para o sul, passava por trás das colinas e desaparecia de vista. Aragorn cavalgou até o Dique e ficou observando até que os homens do rei estivessem bem distantes, na Garganta. Então virou-se para Halbarad.
— Lá se vão três entes que amo, e o menor deles não menos – disse ele.
— Ele não sabe para que fim se dirige; mas, se soubesse, mesmo assim prosseguiria.
— Um povo pequeno, mas de grande valor, são as pessoas do Condado — disse Halbarad. — Sabem pouco de nosso longo trabalho para salvaguardar suas fronteiras, mas mesmo assim não lhes guardo ressentimento.
— E agora nossos destinos estão entrelaçados – disse Aragorn. — Mesmo assim, infelizmente, aqui temos de nos separar. Bem, preciso comer um pouco, e depois nós também devemos partir depressa. Venham, Legolas e Gimli! Preciso lhes falar enquanto como.
Juntos voltaram ao Forte, mas por algum tempo Aragorn ficou sentado em silêncio à mesa do salão, e os outros aguardando que ele falasse.
— Vamos! — disse Legolas finalmente. — Fale e se reconforte, e espante a sombra! O que aconteceu desde que retornamos a este lugar triste na manhã cinzenta?
— Uma luta de certa forma mais dificil para mim que a batalha do Forte da Trombeta — respondeu Aragorn. — Olhei na Pedra de Orthanc, meus amigos.
— Você olhou naquela maldita pedra de feitiçaria! – exclamou Gimli com medo e estupefação cobrindo-lhe o rosto. — Disse alguma coisa a... ele? Até mesmo Gandalf temia tal encontro.
— Você esquece quem é a pessoa a que se dirige – disse Aragorn de modo austero, e seus olhos faiscaram. — Não proclamei meu título diante das portas de Edoras? Que receiam que eu possa ter dito a ele? Não, Gimli — disse ele numa voz mais suave, e o ar severo desapareceu de seu rosto; agora parecia alguém que trabalhara sem descanso através de várias noites de sofrimento. — Não, meus amigos, eu sou o dono legítimo da Pedra, e eu tinha tanto o direito como a força para usá-la, ou pelo menos julguei que fosse assim— Do direito não se pode duvidar. A força apenas suficiente. Respirou fundo. — Foi uma luta amarga, e o cansaço demora a passar. Não disse a ele palavra alguma, e no fim domei a Pedra segundo a minha vontade. Só isso será dificil para ele suportar. E ele me viu. Sim, Mestre Gimli, ele me viu, mas numa roupagem diferente da que vocês enxergam agora. Se isso o ajudar, então fiz uma coisa ruim. Mas não acho que seja assim. Saber que eu estou vivo e caminho sob o sol foi um duro golpe para o coração dele, julgo eu, pois não sabia disso até agora. Os olhos em Orthanc não enxergaram através da armadura de Théoden; mas Sauron não esqueceu Isildur e a espada de Elendil. Agora, no momento exato de seus grandes desígnios o herdeiro de Isildur e a Espada são revelados; pois eu lhe mostrei a lâmina reforjada. Ele ainda não tem tanto poder para estar acima do medo; não, a dúvida constantemente o corrói.
— Mas ele controla um grande domínio, apesar de tudo — disse Gimli —; e agora atacará mais rápido.
— O golpe apressado geralmente se perde — disse Aragorn. — Devemos pressionar nosso Inimigo, e não mais esperar que ele ataque. Vejam, meus amigos, quando dominei a Pedra, aprendi muitas coisas. Vi um grande perigo inesperado vindo do sul e se aproximando de Gondor, que retirará grande parte da força de defesa de Minas Tirith. Se não houver um contragolpe rápido, acho que a Cidade estará perdida antes que dez dias se passem.
— Então ela se perderá — disse Gimli. — Pois que socorro há que possamos enviar àquela direção, e como poderia chegar a tempo?
— Não tenho Socorro para enviar portanto devo ir em pessoa, disse Aragorn. — Mas só há um caminho através das montanhas que pode me conduzir até a região costeira antes que tudo esteja perdido. As Sendas dos Mortos.
— As Sendas dos Mortos! — disse Gimli — É um nome cruel, pouco do agrado dos homens de Rohan, pelo que vi. Podem os vivos usar essa estrada, sem que pereçam? E, mesmo que você passe por esse caminho, que eficácia terão tão Poucos contra os golpes de Mordor?
— Os vivos nunca usaram aquela estrada desde a chegada dos rohirrim — disse Aragorn —, pois ela está fechada para eles. Mas nesta hora escura o herdeiro de Isildur poderá tomá-la, se ousar fazê-lo. Escutem! Esta é a mensagem que os filhos de Elrond me trazem, enviada de Valfenda por seu pai, o mais sábio na tradição: Peçam a Aragorn que se lembre das palavras do vidente e das Sendas dos Mortos.
— E quais podem ser as palavras do vidente? – disse Legolas.
— Assim falou Malbeth o Vidente nos dias de Arvedui o último rei de Fornost — disse Aragorn:
Sobre a terra se estende uma sombra terrível,
Lançando sobre o oeste longas asas de trevas.
A Torre treme; das tumbas de reis
a sina se aproxima. Os Mortos despertam,
chegada é a hora dos que foram perjuros:
junto á Pedra de Erech de pé ficarão
para ouvir a corneta ecoar nas colinas
De quem será a corneta? Quem irá chamar
da dúbia meia-luz o olvidado povo?
O herdeiro daquele a quem foi feita a jura.
Do norte ele virá movido pela sorte.
Seguirá pela Porta para as Sendas dos Mortos.
— Caminhos obscuros, sem dúvida — disse Gimli —, mas esses versos não são menos obscuros para mim.
— Se vocês pudessem entendê-los melhor, então eu pediria que me acompanhassem — disse Aragorn —, pois tal caminho devo trilhar. Mas não vou de bom grado; apenas a necessidade me move. Portanto, só poderia aceitar que vocês me acompanhassem se fosse por sua livre e espontânea vontade, pois encontrarão árdua fadiga e grande medo, e talvez coisa pior.
— Irei com você, mesmo que seja pelas Sendas dos Mortos, e para qualquer fim que elas possam conduzir — disse Gimli.
— Também irei — disse Legolas —, pois não temo os Mortos.
— Espero que o olvidado povo não tenha olvidado como se luta — disse Gimli — caso contrário, não vejo por que deveríamos molestá-los.
— Isso saberemos se conseguirmos chegar a Erech – disse Aragorn. — Mas o juramento que quebraram foi o de lutar contra Sauron, portanto eles devem lutar, se quiserem cumpri-lo. Pois em Erech se ergue uma pedra negra que foi trazida de Númenor, como se conta, por Isildur; e ela foi colocada sobre uma colina, e sobre ela o Rei das Montanhas jurou fidelidade a ele no inicio do reino de Gondor. Mas, quando Sauron retornou e ficou outra vez poderoso, Isildur convocou os homens das Montanhas para que cumprissem seu juramento, e eles não cumpriram: tinham adotado Sauron durante os Anos Escuros.
— Então Isildur disse ao rei deles: "Tu serás o último rei. E, se o oeste se mostrar mais forte que teu Mestre Negro, esta maldição eu lanço sobre ti e teu povo: jamais descansar enquanto o juramento não for cumprido. Pois esta guerra perdurará por anos sem conta, e vós sereis chamados mais uma vez antes do fim." E eles fugiram diante da ira de Isildur, e não ousaram avançar para lutar a favor de Sauron; esconderam-se em lugares secretos nas montanhas e não tiveram contato com outros homens; e lentamente foram se extinguindo nas colinas desoladas. E o terror dos Mortos Insones paira sobre a colina de Erech e sobre todos os lugares onde aquele povo subsistia. Mas por esse caminho devo ir, já que não há nenhum vivo que possa me ajudar.
Levantou-se.
— Venham! — gritou ele, puxando da bainha a espada, que reluziu na dúbia luz do salão do Forte. — Para a Pedra de Erech! Procuro as Sendas dos Mortos. Que me acompanhe quem quiser!
Legolas e Gimli não responderam, mas levantaram-se e seguiram Aragorn, saindo do salão. Sobre a relva esperavam, imóveis e em silêncio, os guardiões encapuzados.
Legolas e Gimli montaram. Aragorn saltou no lombo de Roheryn. Então Halbarad ergueu uma grande corneta, cujo clangor ecoou no Abismo de Helm; e com isso partiram em disparada, descendo a Garganta como um trovão, enquanto todos os homens que ficaram no Dique ou no Forte observavam assombrados.
E, enquanto Théoden ia pelas morosas trilhas das colinas, a Companhia Cinzenta passou depressa através da planície, e no dia seguinte á tarde chegaram a Edoras, e ali fizeram apenas uma pausa breve, antes de avançar subindo o vale; assim chegaram ao Templo da Colina ao cair da noite.
A Senhora Éowyn os cumprimentou e ficou feliz com a sua chegada, pois nunca vira homens mais poderosos que os dúnedain e os belos filhos de Elrond; mas seus olhos repousavam principalmente em Aragorn. E, quando se sentaram à ceia com ela, os dois conversaram, e ela ficou sabendo sobre tudo o que se passara desde a partida de Théoden, fatos sobre os quais ela apenas recebera notícias apressadas; quando ouviu sobre a batalha no Abismo de Helm, sobre a grande matança dos inimigos, e sobre o ataque de Théoden e todos os seus cavaleiros, os olhos dela brilharam.
Mas finalmente ela disse:
— Senhores, estão cansados e devem agora ir para suas camas, com todo o conforto que se possa improvisar. Mas amanhã alojamentos melhores serão preparados para vocês.
Mas Aragorn disse:
— Não, senhora, não se preocupe conosco! Se pudermos dormir aqui esta noite e quebrar nosso jejum amanhã, isso será o suficiente. Pois cavalgo numa missão de extrema urgência, e com a primeira luz da manhã devemos partir.
Ela lhe sorriu e disse:
— Então foi uma enorme gentileza, senhor, terem cavalgado tantas milhas fora de seu caminho para trazer notícias para Éowyn, e conversar com ela em seu exílio.
— Na verdade nenhum homem consideraria tal viagem um desperdício — disse Aragorn —; e, apesar disso, senhora, eu não poderia ter vindo até aqui se a estrada que devo tomar não passasse pelo Templo da Colina.
E ela respondeu como alguém que não gostou do que ouviu:
— Então, senhor, você está perdido; pois do Vale Harg nenhuma estrada vai para o leste ou para o sul; e é melhor que retorne por onde veio.
— Não, senhora — disse ele —, não estou perdido pois andei nesta terra antes que você nascesse para enfeita-la. Há uma estrada que sai deste vale e essa estrada tomarei. Amanhã cavalgarei pelas Sendas dos Mortos.
Então ela o fitou como alguém que está chocado; seu rosto embranqueceu, e por um longo período não disse mais nada, enquanto todos ficaram em silêncio.
— Mas, Aragorn — disse ela finalmente —, então sua missão é procurar a morte? Pois isso é tudo o que encontrará naquela estrada. Eles não permitem que os vivos passem.
— Eles podem tolerar que eu passe — disse Aragorn —; mas no mínimo vou arriscar. Nenhuma outra estrada servirá.
— Mas isso é loucura — disse ela. — Pois aqui há homens de fama e coragem, que você não deveria levar para as sombras, mas conduzir para a guerra, onde se precisa de homens. Imploro que fique e cavalgue com meu irmão, pois assim os nossos corações se alegrarão e nossa esperança será maior.
— Não é loucura, senhora — respondeu ele —; pois irei por um caminho predeterminado. Mas aqueles que me seguem o fazem de livre e espontânea vontade, e, se quiserem agora ficar e cavalgar com os Rohirrim, podem fazê-lo. Mas eu vou tomar as Sendas dos Mortos, sozinho, se for necessário.
Então ela não disse mais nada, e todos comeram em silêncio; mas seus olhos estavam sempre em Aragorn, e os outros perceberam que sua mente estava atormentada.
Finalmente se levantaram, pediram permissão à Senhora, agradeceram-lhe e foram descansar.
Mas, quando Aragorn chegou à barraca onde deveria se alojar com Legolas e Gimli, e seus companheiros entraram, veio a Senhora Éowyn atrás dele e o chamou.
Ele se virou e a viu como um brilho na noite, pois estava toda vestida de branco; mas tinha os olhos em chamas.
— Aragorn — disse ela —, por que você vai por essa estrada mortal?
— Porque preciso — disse ele. — Só assim posso ver qualquer esperança de desempenhar meu papel na guerra contra Sauron. Não escolho trilhas de perigo,
Éowyn. Se pudesse ir para onde meu coração mora, estaria no norte distante, caminhando no belo vale de Valfenda.
Por um momento ela ficou quieta, como se estivesse ponderando o significado daquelas palavras. Então, de repente, colocou-lhe a mão sobre o ombro.
— Você é um senhor austero e resoluto,disse ela —, e assim os homens ganham fama. — Fez uma pausa. — Senhor — disse ela , se precisa ir, então permita que eu o siga. Pois estou cansada de me esconder covardemente nas colinas, e desejo enfrentar o perigo e a batalha.
— Seu dever está com seu povo, respondeu ele.
— Já ouvi demais sobre deveres — exclamou ela. — Mas por acaso não sou da Casa de Eorl, uma escudeira e não uma ama-seca? Já servi a pés vacilantes por muito tempo. Uma vez que eles já não vacilam, ao que parece, não posso eu passar minha vida como desejar?
— Poucos podem fazer isso com honra — respondeu ele. — Mas quanto a senhora: não aceitou o encargo de governar seu povo até que o senhor retorne?
Se não tivesse sido escolhida, então algum marechal ou capitão teria sido colocado no mesmo lugar, e não poderia fugir da incumbência, estando cansado ou não.
Serei sempre eu a escolhida? — disse ela num tom amargo. – Serei sempre deixada para trás quando os Cavaleiros partem, para cuidar da casa enquanto eles ganham fama, e para preparar-lhes cama e comida, esperando seu regresso?
— Logo pode chegar um tempo — disse ele — em que ninguém retornará. Então haverá necessidade de valor sem fama, pois ninguém se recordará dos feitos realizados na derradeira defesa de suas casas. Apesar disso, os feitos não serão menos corajosos por não serem celebrados.
E ela respondeu:
— Todas as suas palavras querem dizer apenas isto: você é uma mulher, e seu papel é na casa. Mas, quando os homens estiverem mortos na batalha e com honra, você tem a permissão para ser queimada na casa, pois os homens não mais precisarão dela. Mas eu sou da Casa de Eorl, e não uma serviçal. Posso cavalgar e brandir uma espada, e não temo o sofrimento ou a morte.
— O que teme, senhora? — perguntou ele.
— Uma gaiola — disse ela. — Ficar atrás de grades, até que o hábito e a velhice as aceitem e todas as oportunidades de realizar grandes feitos estejam além de qualquer lembrança ou desejo.
— E mesmo assim me aconselhou a não me aventurar na estrada que escolhi, só porque é perigosa?
— Dessa forma um pode aconselhar o outro — disse ela. — Mas eu não lhe peço que fuja do perigo, mas que cavalgue para a batalha, onde sua espada possa conquistar fama e vitória. Não gostaria que uma coisa que é nobre e excelente fosse desperdiçada à toa.
— Nem eu — disse ele. — Portanto lhe digo, senhora: Fique!
Pois você não tem missão alguma no sul.
— Os que te acompanham também não têm. Eles só vão porque não estão dispostos a se separar de ti... porque te amam. — Então virou-se e desapareceu dentro da noite.
Quando chegou a luz do dia no céu, mas antes que o sol tivesse subido acima das altas cordilheiras do leste, Aragorn se aprontou para partir. Sua companhia estava toda montada, e ele prestes a saltar para a sela, quando a Senhora Éowyn veio lhes dizer adeus. Estava vestida como um Cavaleiro, e trazia uma espada na cintura.
Na mão trazia uma taça, e levando-a aos lábios bebeu um pouco, desejando— lhes boa viagem; depois ofereceu a taça a Aragorn; ele bebeu e disse: — Até logo, Senhora de Rohan! Bebo ao sucesso de sua Casa, e ao seu, e de todo o seu povo. Diga ao seu irmão: além das sombras podemos nos reencontrar!
Então Gimli e Legolas, que estavam próximos, tiveram a impressão de que ela estava chorando, e numa pessoa tão austera e altiva isso parecia mais triste.
Mas ela disse:
— Aragorn, tu vais?
— Eu vou — disse ele.
— Então tu não permitirás que eu cavalgue com este grupo, como pedi?
— Não permitirei, senhora. Pois isso eu não poderia conceder sem a permissão do rei e de seu irmão, e eles não retornarão antes de amanhã. Mas agora conto cada hora, na realidade cada minuto. Adeus!
Então ela caiu de joelhos, dizendo:
— Eu te imploro!
— Não, senhora disse ele, tomando-lhe a mão e erguendo-a. Então deu-lhe um beijo na mão e saltou na sela, e partiu sem olhar para trás, e só aqueles que o conheciam bem e estavam próximos dele viram a dor que levava consigo.
Mas Éowyn ficou imóvel como uma figura esculpida em pedra, as mãos crispadas ao longo do corpo, olhando-os até que desaparecessem nas sombras sob a negra Dwimorberg, a Montanha Assombrada, na qual ficava o Portão dos Mortos.
Quando desapareceram de vista, ela se virou e, aos tropeços, como uma cega, voltou ao seu alojamento. Mas ninguém de seu povo viu essa despedida, pois todos haviam-se escondido de medo e não ousaram sair até que o dia despertasse, e os incautos forasteiros já tivessem ido embora.
E alguns diziam:
— Eles são criaturas élficas. Que vão para seu lugar, os locais escuros, e que nunca mais voltem. Os tempos já são malignos o bastante.
A luz ainda estava cinzenta quando a cavalgada começou, pois o sol ainda não tinha subido sobre as cordilheiras negras da Montanha Assombrada diante deles.
Foram tomados de pavor, no momento em que passaram entre as fileiras de pedras antigas e assim atingiram o Dimholt. Ali, sob a escuridão de árvores negras que nem mesmo Legolas conseguiria suportar por muito tempo, encontraram uma concavidade abrindo-se na raiz da montanha, e bem na trilha deles erguia-se uma única rocha poderosa, semelhante a um dedo em gesto de condenação.
— Meu sangue está gelado — disse Gimli, mas os outros ficaram em silêncio, e a voz do anão morreu nas úmidas agulhas de abeto aos seus pés. Os cavalos se recusaram a passar pela pedra ameaçadora, exigindo que os cavaleiros desmontassem e os conduzissem. E então finalmente afundaram na fenda; ali se erguia uma parede de pedra íngreme, e na parede a Porta Negra abria-se diante deles como se fosse a própria boca da noite. Sinais e figuras apareciam entalhados acima de seu amplo arco, ilegíveis de tão apagados, e o medo fluía dela como um vapor cinzento.
O grupo parou. e não havia um só coração entre eles que não estremecesse, a não ser o coração de Legolas dos elfos, que não temia fantasmas de homens.
— Esta é uma porta maligna — disse Halbarad —, e minha morte jaz atrás dela. Não obstante, ousarei passar por ela; mas nenhum cavalo entrara.
— Mas precisamos entrar, e, portanto, os cavalos devem ir também — disse Aragorn. — Pois, se conseguirmos passar por esta escuridão, muitas léguas se estendem á frente, e cada hora perdida ali trará o triunfo de Sauron para mais perto. Sigam-me!
Então Aragorn foi na frente, e a força de sua vontade nessa hora foi tamanha que todos os dúnedain e seus cavalos o seguiram. E, na realidade, o amor que o cavalos dos guardiões tinham por seus cavaleiros era tão grande que os animais estavam dispostos a enfrentar até mesmo o terror da Porta, se os corações de seus donos estivessem firmes ao caminharem ao lado deles. Mas Arod, o cavalo de Rohan, recusava-se a entrar, e parou suando e tremendo num medo que dava pena de ver.
Então Legolas colocou a mão sobre os olhos do animal e cantou algumas palavras que pairaram suaves na escuridão, até que o cavalo se deixou conduzir, e Legolas entrou.
E ali ficou Gimli, o anão, completamente sozinho.
Os joelhos tremiam, e ele estava furioso consigo mesmo.
— Esta é uma coisa de que ninguém nunca ouviu falar! — disse ele. — Um elfo entra debaixo da terra e um anão não tem a coragem! — Com isso mergulhou para dentro. Mas parecia-lhe que seus pés pesavam como chumbo na entrada; imediatamente foi acometido de uma cegueira, até mesmo ele, Gimli, filho de Glóin, que já caminhara sem medo em muitos lugares profundos do mundo.
Aragorn trouxera tochas do Templo da Colina, e agora ia à frente erguendo uma nas mãos; Elladan, na retaguarda, levava outra, e Gimli, aos tropeços, lutava para conseguir alcançá-lo. Não conseguia enxergar nada, exceto a chama fraca das tochas; mas, se o grupo parava, parecia haver um sussurro interminável de vozes por toda a volta, um murmúrio em palavras numa língua que ele nunca ouvira antes.
Nada atacou o grupo, nem impediu sua passagem. Mesmo assim, o medo não parava de crescer dentro do anão á medida que ele avançava: principalmente porque sabia agora que não haveria como voltar; todas as trilhas atrás estavam apinhadas por um exército que os seguia na escuridão.
Assim se passou um tempo impossível de se calcular, até que Gimli avistou algo que posteriormente sempre odiaria recordar. A estrada era ampla, pelo que podia julgar, mas agora o grupo de repente chegava a um grande espaço vazio, e não havia mais muralhas em nenhum dos lados. O pavor que sentia era tão grande que mal conseguia andar. Na distância, à esquerda, algo brilhou na escuridão assim que a tocha de Aragorn se aproximou. Então Aragorn parou e foi verificar o que era aquilo.
— Ele não sente medo? — murmurou o anão. — Em qualquer outra caverna, Gimli, filho de Glóin, teria sido o primeiro a correr em direção ao brilho do ouro. Mas não aqui! Que o ouro fique onde está!
Mesmo assim chegou mais perto, e viu Aragorn ajoelhado, enquanto Elladan erguia as duas tochas. Diante dele estavam os ossos de um homem forte. Estivera vestido de malha metálica, e sua armadura jazia ainda inteira, pois o ar da caverna era seco como pó; sua cota era dourada. O cinto era de ouro e granadas, e rico em ouro era o elmo sobre os ossos de sua cabeça, caída com o rosto contra o chão. O homem tombara perto da parede oposta da caverna, pelo que se podia presumir, e diante dele havia uma porta de pedra hermeticamente fechada: os ossos de seus dedos ainda agarravam as fendas. Uma espada quebrada e chanfrada jazia ao seu lado, como se ele tivesse golpeado a rocha em seu último desespero.
Aragorn não o tocou, mas, depois de fitá-lo em silêncio por um tempo, levantou-se e suspirou.
— Para cá, até o mundo se acabar, nunca virão as flores de simbelmyné — murmurou ele. — Nove e sete túmulos existem agora, cobertos de grama verde, e durante todos os longos anos este homem jaz ao lado da porta que não conseguiu destrancar. Para onde ela conduz? Por que queria passar? Ninguém jamais saberá!
— Pois esta não é minha missão! — exclamou ele, voltando-se e dirigindo-se á escuridão sussurrante. — Mantenham seus tesouros e segredos ocultos nos Anos Amaldiçoados! Só queremos rapidez. Deixem-nos passar, e depois venham!
Convoco-os a irem para a Pedra de Erech!
Não houve resposta, a não ser um silêncio completo, mais terrível que os sussurros anteriores; e então um vento gelado soprou, no qual as tochas tremeluziram e se apagaram, e não puderam ser reacendidas. Do tempo que se seguiu, uma ou muitas horas, Gimli se recordaria pouco. Os outros continuaram avançando, mas ele sempre ficava para trás, perseguido por um terror que o procurava e parecia estar o tempo todo prestes a agarrá-lo; atrás dele vinha um rumor como a sombra do ruido de muitos pés. Avançou aos tropeços até ficar rastejando como um animal no solo, sentindo que não suportaria mais aquilo: devia ou achar um caminho e escapar ou correr alucinadamente ao encontro do medo que o perseguia.
De repente ouviu um tilintar de água, um ruído forte e límpido como uma pedra caindo num sonho de sombra escura. A luz aumentou e eis que o grupo passou através de outro portão, largo e de arco alto, e um riacho corria ao lado deles; mais adiante, descendo abruptamente, havia uma estrada entre penhascos íngremes pontas de faca contra o céu lá em cima Tão profundo e estreito era aquele abismo que o céu ficava escuro, e nele pequenas estrelas reluziam. Apesar disso, como Gimli veio a saber depois, ainda faltavam duas horas para o pôr-do-sol do dia em que tinham partido do Templo da Colina, embora, por tudo o que saberia dizer na ocasião, pudesse tratar-Se do nascer do sol em algum ano posterior, ou em algum outro mundo.
A companhia montou de novo, e Gimli voltou para junto de Legolas. Cavalgaram em fila, e o fim de tarde escureceu num azul profundo; e ainda o medo os perseguia.
Legolas, voltando-se para falar com Gimli, olhou para trás, e o anão viu diante de seu rosto o faiscar dos olhos brilhantes do elfo. Atrás deles vinha Elladan, o último da Companhia, mas ele não era o último que descia a estrada.
— Os Mortos estão nos seguindo — disse Legolas. — Vejo vultos de homens e cavalos, e pálidas bandeiras como retalhos de nuvens, e lanças como arbustos hibernais numa noite de névoa. Os Mortos estão nos seguindo.
— Sim, os Mortos vêm atrás de nós. Eles foram convocados — disse Elladan.
Por fim a Companhia saiu da garganta, de repente, como se tivesse saído de uma fenda numa parede, e lá estava a região montanhosa de um grande vale diante deles, e o riacho que corria ao lado saltava com uma voz fria por sobre várias cachoeiras.
— Em que lugar da Terra-média estamos"? — perguntou Gimli, e Elladan respondeu: — Descemos das cabeceiras do Morthond, o rio longo e frio que corre para finalmente encontrar o mar que banha os muros de Doí Amroth. De agora em diante você não precisa perguntar a razão de seu nome: Raiz Negra os homens o chamam.
O Vale do Morthond formava uma grande baia que batia contra as íngremes encostas meridionais das montanhas. Suas ladeiras inclinadas eram cobertas de grama, mas tudo estava cinzento àquela hora, pois o sol se fora, e lá embaixo luzes piscavam nas casas dos homens. O vale era rico e muitas pessoas moravam lá.
Então, sem se virar, Aragorn disse em voz alta, para que todos pudessem ouvir: — Amigos, esqueçam o cansaço! Cavalguem agora, cavalguem! Devemos chegar à Pedra de Erech antes do fim do dia, e ainda temos um longo caminho pela frente. — Dessa forma, sem olhar para trás, eles cavalgaram através dos campos nas montanhas, até chegarem a uma ponte sobre a correnteza crescente onde encontraram uma estrada que descia até o povoado.
As luzes se apagavam nas casas e aldeias à medida que eles se aproximavam, e as portas se fechavam, e as pessoas que estavam nos campos gritavam de medo e corriam alucinadas como corças perseguidas. Sempre se ouvia o mesmo grito na noite que se adensava: "O Rei dos Mortos! O Rei dos Mortos está nos atacando!"
Sinos tocavam lá embaixo, e todos os homens fugiam do rosto de Aragorn; mas a Companhia Cinzenta, em sua pressa, cavalgava como um bando de caçadores, até seus cavalos ficarem trôpegos de cansaço. E dessa forma, um pouco antes da meia-noite, e numa escuridão igual á das cavernas das montanhas, finalmente chegaram à Colina de Erech.
Por muito tempo, o terror dos Mortos pairara sobre aquela colina e sobre os campos vazios ao redor dela. Pois no topo erguia-se uma pedra negra, redonda como um grande globo, da altura de um homem, embora uma metade estivesse enterrada no chão. Tinha uma aparência sobrenatural, como se tivesse caído do céu, como acreditavam alguns; mas aqueles que ainda recordavam a tradição do Ponente contavam que ela fora trazida da ruína de Númenor e colocada ali por Isildur em sua chegada.
Ninguém do povo do vale ousava se aproximar dela, nem estavam dispostos a morar nas proximidades, pois diziam que era um ponto de encontro dos Homens da Sombra, e ali eles se reuniam em tempos de medo, ajuntando-se ao redor da Pedra e sussurrando.
Para essa Pedra a Companhia se dirigiu e parou na calada da noite. Então Elrohir deu uma corneta de prata a Aragorn, que a tocou; os que estavam nas proximidades tiveram a impressão de ouvir o som de outras cornetas em resposta, como se fosse um eco em cavernas profundas e distantes. Não ouviram qualquer outro som, e mesmo assim perceberam que um grande exército se reunia ao redor de toda a colina sobre a qual eles estavam; um vento frio como o hálito dos fantasmas desceu das montanhas.
Mas Aragorn desmontou, e parando ao lado da Pedra gritou numa voz poderosa:
— Perjuros, por que viestes?
Então ouviu-se uma voz saída da noite, que lhe respondeu, como se viesse de muito longe:
— Para cumprir nosso juramento e ter paz.
Então Aragorn disse: — Finalmente é chegada a hora. Agora vou para
Pelargir, sobre o Anduin, e deveis me seguir. E, quando toda esta terra estiver livre dos servidores de Sauron, vou considerar o juramento cumprido, e tereis paz e podereis partir para sempre. Pois eu sou Elessar, herdeiro de Isildur de Gondor.
E com isso ordenou que Halbarad desfraldasse o grande estandarte que havia trazido, e eis que era negro, e, se nele havia qualquer símbolo. Estava oculto na escuridão. Então fez-se silêncio, e nem sequer um sussurro ou um suspiro se ouviu outra vez durante toda a longa noite. A Companhia acampou ao lado da Pedra, mas dormiram pouco, por causa do medo das Sombras que os cercavam.
Mas, quando chegou a aurora, fria e pálida, Aragorn se levantou imediatamente, e conduziu a Companhia adiante na viagem de maior velocidade e cansaço que qualquer um deles conhecera, exceto ele próprio, e apenas sua disposição conseguia fazer com que os outros continuassem. Nenhum outro homem mortal teria suportado a viagem, nenhum, exceto os dúnedain do norte, e com eles Gimli, o anão, e Legolas dos elfos.
Passaram pela Garganta de Tarlang e chegaram a Lamedon, e o Exército da Sombra se apressava atrás deles, e o medo ia adiante, até que chegaram a Calembel à margem do Ciril, e o sol desceu feito sangue atrás das pinnath Geliu, na distância a oeste atrás deles. Encontraram as terras e os vaus do Ciril abandonados, pois muitos homens haviam partido para a guerra, e todos os que ficaram fugiram para as colinas ao ouvirem os rumores sobre a chegada do Rei dos Mortos. Mas no dia seguinte não houve aurora, e a Companhia Cinzenta passou para dentro da escuridão da Tempestade de Mordor e se perdeu da visão dos mortais; mas os Mortos a seguiram.
A CONCENTRAÇÃO DAS TROPAS DE ROHAN
Agora todas as estradas corriam juntas para o leste, ao encontro da guerra iminente e do ataque da Sombra. E, no momento em que Pippin se postava no Grande Portão da Cidade e via o Príncipe de Doí Amroth entrar cavalgando com suas insígnias, o Rei de Rohan desceu as colinas.
O dia terminava. Nos últimos raios do sol os Cavaleiros projetavam sombras longas e pontudas que os precediam. A escuridão já penetrara embaixo das florestas murmurantes de abetos que cobriam as encostas íngremes das montanhas. Agora o rei cavalgava devagar no fim do dia. De repente, a trilha contornou uma enorme saliência de pedra nua e mergulhou na escuridão das árvores que suspiravam suavemente. Foram descendo cada vez mais numa longa fila sinuosa. Quando finalmente chegaram ao fundo da garganta, viram que a noite já caíra nos lugares profundos. O sol se fora. O crepúsculo se deitava sobre as cachoeiras.
Durante todo o dia, bem abaixo deles, um riacho saltitante viera descendo da passagem alta que ficava mais atrás, abrindo seu caminho estreito por entre muralhas cobertas de pinheiros; agora corria através de um portão de pedra e passava para um vale mais largo. Os Cavaleiros o seguiram, e de repente o Vale Harg estendia-se diante deles, ressoando com o barulho das águas no início da noite. Ali o branco Riacho de Neve, encontrando-se com córregos menores, corria veloz, vaporizando-se nas pedras descendo para Edoras, para as colinas verdes e para as planícies. Mais ao longe e a direita, no topo do grande vale, o poderoso Picorrijo assomava sobre seus amplos contrafortes envoltos em nuvens; mas seu pico dentado, vestido de neve eterna, reluzia bem acima do mundo, com sombras azuladas no leste, manchado pelo vermelho do pôr-do-sol no oeste.
Merry observava surpreso aquela terra estranha, sobre a qual ouvira muitas histórias durante a longa viagem. Era um mundo sem céu, no qual seu olho, através de espaços escuros de ar sombrio, via apenas encostas sempre subindo, grandes muralhas de pedra atrás de grandes muralhas, e precipícios sinistros envoltos pela névoa. Ficou por um momento numa espécie de devaneio, ouvindo o ruído da água, o sussurro das árvores escuras, os estalidos das rochas, e o vasto silêncio de espera que pairava acima de qualquer som. Ele amava as montanhas, ou amara pensar nelas se erguendo à margem das histórias trazidas de longe; mas agora sentia-se acabrunhado pelo peso insuportável da Terra-média. Desejava isolar-se da imensidão numa sala tranquila, ao lado de uma fogueira.
Estava muito cansado pois, embora tivessem cavalgado devagar, haviam feito pouquíssimas pausas na viagem. Hora após hora por quase três dias fatigantes, ele estivera sacolejando sobre passagens, através de longos vales e cruzando muitos rios. Algumas vezes, nos pontos onde o caminho era mais largo, cavalgara ao lado do rei, sem notar que muitos dos Cavaleiros sorriam ao ver os dois juntos: o hobbit montando o pequeno pônei cinzento e peludo, e o Senhor de Rohan em seu grande cavalo branco. Nessas ocasiões conversara com Théoden, contando-lhe sobre sua terra natal e sobre os afazeres do povo do Condado, ou ouvindo por sua vez histórias sobre a Terra dos Cavaleiros e seus poderosos homens de antigamente. Mas na maior parte do tempo, especialmente nesse último dia, Merry tinha cavalgado sozinho logo atrás do rei, sem dizer nada, e tentando entender a fala lenta e sonora de Rohan usada pelos homens que vinham atrás dele. Era uma língua da qual Merry tinha a impressão de conhecer muitas palavras, embora fossem pronunciadas com mais sonoridade e força do que no Condado, e apesar disso ele não conseguia juntar essas palavras. Algumas vezes algum Cavaleiro levantava sua voz cristalina numa canção animadora, e Merry sentia seu coração bater mais forte, embora sem saber sobre o que falava a canção.
Mesmo assim sentia-se solitário, mais ainda quando chegava o fim do dia. Perguntava-se onde, em todo aquele mundo estranho, fora parar Pippin. e o que aconteceria com Aragorn, Legolas e Gimli. Depois, de repente, sentindo um frio em seu coração, pensou em Frodo e Sam. — Estou me esquecendo deles! disse para si mesmo num tom reprovatório. — E apesar disso eles são mais importantes que todos nós. E eu vim para ajudá-los, mas agora devem estar a centenas de milhas daqui, se ainda estiverem vivos. — Teve um calafrio.
— O Vale Harg, finalmente! — disse Éomer. — Nossa viagem está quase no fim. — Eles pararam. As trilhas que desciam da garganta estreita eram íngremes. Era possível apenas entrever, como que olhando de uma janela alta, o grande vale no crepúsculo lá embaixo. Uma única luz fraca aparecia piscando ao lado do rio.
Esta viagem talvez tenha acabado — disse Théoden —, mas ainda tenho muito o que viajar. Ontem à noite a lua estava cheia, e amanhã cedo devo cavalgar até Edoras para a concentração da Terra dos Cavaleiros. Mas, se o senhor aceitasse meu conselho — disse Éomer numa voz baixa —, depois o senhor voltaria para cá e aqui ficaria, até que a guerra estivesse terminada, com vitória ou derrota.
Théoden sorriu.
— Não, meu filho, pois dessa forma irei chamá-lo, não diga as palavras suaves de Língua de Cobra a meus ouvidos de velho! — Esticou o corpo e olhou para trás, vendo a longa fileira de seus homens sumindo dentro do crepúsculo. — Parece que longos anos se passaram no espaço de dias desde que cavalguei para o oeste; mas jamais me apoiarei num cajado de novo. Se perdermos a guerra, de que adiantará eu me esconder nas colinas? E, se vencermos, que motivo haverá para tristeza, mesmo que eu pereça usando minhas últimas forças? Mas vamos deixar isso de lado agora. Esta noite vou descansar na Fortaleza do Vale Harg. Ao menos uma noite de paz nos resta. Vamos continuar a cavalgada!
No crepúsculo que se adensava eles desceram para o vale. Ali o Riacho de Neve corria próximo ás paredes ocidentais, e logo a trilha os conduziu a um vau onde as águas rasas murmuravam alto sobre as pedras. O vau estava guardado. Com a aproximação do rei, muitos homens saltaram da sombra das rochas, e, quando o viram, gritaram com vozes alegres: — o Rei Théoden! O Rei Théoden! O Rei da Terra dos Cavaleiros retorna!
Então um deles fez soar um longo toque numa corneta, que ecoou no vale.
Outras cornetas responderam, e luzes brilharam do outro lado do rio.
De repente elevou-se um grande coro de trombetas lá de cima, emitido de algum lugar côncavo, ao que parecia, e que reunia as notas numa só voz, e a enviava retumbando e batendo nas muralhas de pedra.
Assim o Rei da Terra dos Cavaleiros retornou vitorioso do oeste para o Templo da Colina, sob os pés das Montanhas Brancas. Ali encontrou já reunida a força que restava de seu povo, pois logo que ficaram sabendo da chegada os capitães cavalgaram ao seu encontro no vau, trazendo mensagens de Gandalf. Dúnhere, chefe do povo do Vale Harg, vinha á frente.
— Três dias atrás, ao amanhecer, senhor— disse ele —, Scadufax chegou a Edoras na velocidade do vento, vindo do oeste; Gandalf trouxe notícias de sua vitória para alegrar nossos corações. Mas também trouxe mensagens suas para que apressássemos a reunião dos Cavaleiros. E então veio a Sombra alada.
— A Sombra alada? — disse Théoden. — Nós também a vimos, mas foi na calada da noite anterior à partida de Gandalf.
— Pode ser, senhor — disse Dúnhere. -Apesar disso, a mesma, ou outra semelhante a ela, uma escuridão que vôa na forma de um pássaro monstruoso, sobrevoou Edoras naquela manhã, e todos os homens ficaram tomados de medo. Pois ela deu um vôo rasante sobre Meduseld, e, quando abaixou, quase tocando o cume, ouvimos um grito que paralisou nossos corações. Foi então que Gandalf nos aconselhou a não nos reunirmos nos campos, mas a encontrá-lo aqui no vale sob as montanhas. E ele ordenou que só acendêssemos luzes ou fogueiras em caso de extrema necessidade. E assim foi feito. Gandalf falou com grande autoridade.
Confiamos que esse seja o seu desejo. Não se viu nenhuma dessas coisas malignas no Vale Harg.
— Isso é bom — disse Théoden. — Agora vou cavalgar para a Fortaleza e lá, antes de descansar, encontrarei os marechais e capitães. Quero vê-los O mais cedo possível!
Agora a estrada conduzia para o leste, direto através do vale, que nesse ponto não tinha muito mais que oitocentos metros de largura. Planícies e Campinas de capim grosso, agora cinzento ao cair da noite, jaziam por toda a volta; mas à frente, do lado oposto do vale, Merry viu uma parede franzida, uma última saliência das grandes raízes do Picorrijo, fendida pelo rio em eras passadas.
Em todos os espaços planos havia um grande agrupamento de homens. Alguns apinhados na borda da estrada, saudando o rei e os cavaleiros que vinham do oeste com gritos alegres; mas estendendo-se na distância atrás deles viam-se fileiras ordenadas de tendas e barracas, e colunas de cavalos amarrados em estacas, e um grande estoque de armas, e pilhas de lanças eretas como matas de árvores recém plantadas. Agora toda a grande assembléia estava mergulhando na escuridão e mesmo assim, embora o vento da noite soprasse gelado das alturas, nenhuma lamparina reluzia, nenhuma fogueira fora acesa. Sentinelas com vestes pesadas caminhavam de um lado para o outro.
Merry ficou imaginando quantos Cavaleiros havia. Não conseguia calcular o número na escuridão que se adensava, mas parecia-lhe um grande exército, com milhares de homens. Enquanto ele esquadrinhava todos os pontos, o grupo do rei atingiu o penhasco que assomava na encosta leste do vale; ali, de repente, a trilha começou a subir, e Merry ergueu os olhos assombrado. Estava numa estrada como nunca vira antes, um grande trabalho de mãos humanas, feito em épocas além do alcance das canções.
Subia fazendo curvas, ziguezagueando como uma cobra, abrindo seu caminho através da encosta íngreme de pedra. Inclinada como uma escada, curvava-se para lá e para cá á medida que ia subindo. Para cima, os cavalos conseguiam andar, e as carroças podiam ser lentamente puxadas; mas nenhum inimigo poderia avançar por aquele caminho se este fosse defendido lá de cima, a não ser que esse inimigo chegasse pelos ares. A cada curva da estrada postavam-se grandes rochas que haviam sido esculpidas á semelhança de homens, enormes e desajeitados, agachados, de pernas cruzadas, com os braços fortes cruzados sobre barrigas robustas. Alguns, com o passar dos anos, tinham perdido todos os traços, exceto os buracos escuros dos olhos, que ainda fitavam tristes os passantes. Os Cavaleiros mal olhavam para eles.
Chamavam-nos de homens-púkel, pouca atenção lhes davam: naquelas imagens não restava qualquer poder ou terror, mas Merry os fixava surpreso e com um sentimento quase de dó, à medida que eles iam assomando melancolicamente no crepúsculo.
Depois de um tempo olhou para trás e percebeu que já tinha subido várias dezenas de metros acima do vale, mas ainda conseguia divisar lá embaixo uma linha sinuosa de cavaleiros atravessando o vau e avançando em fila ao longo da estrada em direção ao acampamento preparado para eles.
Apenas o rei e sua guarda subiriam até a Fortaleza.
Finalmente a companhia do rei atingiu uma borda íngreme, e a estrada ascendente avançou por um corte feito nas muralhas de pedra, e assim subiu uma pequena encosta e atingiu uma plataforma larga. Os homens a chamavam de Firienfeld, um campo de grama e charneca na montanha, bem acima do leito profundo do Riacho de Neve, que passava pelo colo das grandes montanhas lá atrás: o Picorrijo ao sul; ao norte o maciço de Serraferro com seus dentes de serrote, entre os quais, à frente dos cavaleiros, postava-se a muralha negra da Dwimorberg, a Montanha Assombrada, saindo de encostas íngremes cobertas de pinheiros sombrios. Dividindo a plataforma ao meio havia uma linha dupla de pedras fincadas e disformes, que iam desaparecendo no crepúsculo, sumindo entre as árvores. Aqueles que ousavam passar por aquela estrada logo atingiam o negro Dimholt sob Dwimorberg, e a ameaça do pilar de pedra, com a boca escura e escancarada da porta proibida.
Assim era o escuro Templo da Colina, trabalho de homens havia muito esquecidos. Ninguém se lembrava dos seus nomes, e nenhuma canção ou lenda os celebrava.
Com que propósito haviam construído esse lugar, para ser uma cidade ou um templo secreto ou um túmulo de reis, ninguém sabia dizer. Ali tinham trabalhado durante os Anos Escuros, antes que qualquer navio chegasse às praias do oeste, ou Gondor dos dúnedain fosse construída; agora tinham desaparecido, e restavam apenas os velhos homens-púkel, ainda sentados nas curvas da estrada.
Merry olhou para as fileiras de pedras em desfile: estavam desgastadas e escuras; algumas inclinadas, algumas caídas, outras rachadas ou quebradas; pareciam fileiras de velhos dentes famintos. Ficou pensando o que poderiam ser, e esperava que o rei não fosse segui-las em direção à escuridão mais além.
Então percebeu que havia tendas e barracas aglomerando se dos dois lados do caminho de pedra, mas que não estavam armadas perto das árvores, parecendo antes agruparem-se longe delas, na direção da borda do penhasco. A maioria estava à direita, onde o Fíríenfeld era mais amplo; à esquerda havia um acampamento menor, no meio do qual se erguia um alto pavilhão. Deste lado vinha agora um cavaleiro para encontrá-los, e eles deixaram a estrada.
Assim que se aproximaram, Merry percebeu que o cavaleiro era uma mulher com longos cabelos trançados que reluziam no crepúsculo, mas ela usava um elmo, e estava vestida até a cintura como um guerreiro, trazendo uma espada no cinto.
— Salve, Senhor da Terra dos Cavaleiros! — exclamou ela. – Meu coração se alegra com seu retorno.
— É você, Éowyn — disse Théoden — está tudo bem com você?
— Está tudo bem — respondeu ela, mas Merry teve a impressão de que sua voz a traía, e poderia pensar que Éowyn estivera chorando, se isso fosse possível em uma pessoa com o rosto tão austero. Está tudo bem. Foi uma estrada cansativa para o povo, afastado repentinamente de suas casas. Houve palavras duras, pois faz tempo que a guerra nos expulsou dos campos verdes, mas não houve más ações. Tudo agora está em ordem, o senhor vê E seu alojamento já está preparado, pois recebi notícias completas sobre vocês e a hora de sua chegada. Então Aragorn veio — disse Éomer. — Ele ainda está aqui?
— Não, ele se foi — disse Éowyn, virando-se e olhando para as montanhas, escuras contra o leste e o sul.
— Para onde foi? — perguntou Éomer.
— Eu não sei -respondeu ela. — Chegou á noite, e partiu ontem de manhã, antes que o sol tivesse subido acima dos topos das montanhas. Ele partiu.
— Você está triste, filha — disse Théoden. — O que aconteceu? Diga-me, ele falou daquela estrada? — O rei apontou a distância, ao longo das linhas de pedra que se escureciam na direção da Dwimorberg. — Falou das Sendas dos Mortos?
— Sim, senhor — disse Éowyn. — E penetrou nas sombras das quais nunca ninguém retornou. Não pude dissuadi-lo. Ele partiu.
— Então nossos caminhos estão separados — disse Éomer. — Ele se perdeu. Devemos cavalgar sem ele, e nossa esperança diminui.
Devagar passaram através da charneca baixa e da grama das montanhas, sem falar mais nada, até chegarem ao pavilhão do rei. Ali Merry viu que tudo estava preparado, e que ele mesmo não fora esquecido. Uma pequena tenda fora armada para ele ao lado do alojamento do rei; ali sentou-se sozinho, enquanto os homens andavam de um lado para o outro, entrando para ver o rei e se aconselhar com ele.
A noite se aproximou, e os topos das colinas parcialmente visíveis a oeste ficaram coroados de estrelas, mas o leste estava escuro e vazio. As pedras enfileiradas foram lentamente desaparecendo de vista, mas ainda além delas, mais negra que a escuridão, espreitava a vasta sombra agachada da Dwimorberg.
— As Sendas dos Mortos — murmurou Merry para si mesmo. — As Sendas dos Mortos? O que significa tudo isso? Todos me abandonaram agora. Cada um em direção a um destino: Gandalf e Pippin para a guerra no leste; Sam e Frodo para Mordor; Passolargo, Legolas e Gimli para as Sendas dos Mortos. Mas minha vez chegará em breve, suponho eu. Gostaria de saber sobre o que estão conversando, e o que o rei pretende fazer. Pois agora devo ir aonde ele for.
Em meio a esses pensamentos melancólicos, Merry de repente se lembrou de que estava com muita fome! Levantou-se para ver se alguém naquele estranho acampamento sentia a mesma coisa. Mas nesse exato momento uma trombeta soou, e um homem veio chamando-o, ao escudeiro do rei, para que servisse à mesa do rei.
Na parte interna do pavilhão havia um espaço exíguo, isolado por telas bordadas, e coberto de peles; ali, a uma pequena mesa, estava sentado Théoden com Éomer, Éowyn e Dúnhere, senhor do Vale Harg. Merry ficou de pé ao lado do banco do rei e o serviu, até que o velho, saindo de pensamentos profundos, virou-se para ele e sorriu.
— Venha, Mestre Meriadoc! — disse ele. — Você não ficará de pé. Vai sentar-se ao meu lado, enquanto eu permanecer em minhas próprias terras, e alegrará meu coração com histórias.
Abriu-se espaço para o hobbit á esquerda do rei, mas ninguém pediu qualquer história. Na realidade houve pouca conversa, e eles comeram e beberam em silêncio a maior parte do tempo, até que, finalmente, criando coragem, Merry fez a pergunta que o atormentava.
— Já duas vezes, senhor, ouvi sobre as Sendas dos Mortos — disse ele. — O que são elas? Para onde foi Passolargo, quero dizer, o Senhor Aragorn, aonde ele foi?
O rei suspirou, mas ninguém respondeu; finalmente Éomer falou.
— Nós não sabemos, e nossos corações estão pesados — disse ele. — Mas, quanto às Sendas dos Mortos, você mesmo caminhou nos primeiros passos dela. Não, não estou pronunciando palavras de mau agouro! A estrada que subimos é o acesso à Porta que fica mais além, no Dimholt. Mas o que fica atrás dela, homem nenhum sabe.
— Homem nenhum sabe — disse Théoden. — Apesar disso, antigas lendas, agora raramente contadas, têm algo a reportar. Se essas histórias antigas, que passaram de pai para filho na Casa de Eorl, falam a verdade, então a Porta sob a Dwimorberg conduz a um caminho secreto que passa por baixo da montanha e se dirige para algum fim esquecido. Mas ninguém jamais se aventurou a entrar para vasculhar seus segredos desde que Baldor, filho de Brego, passou pela Porta e nunca mais foi visto entre os homens. Ele fez um juramento temerário, ao esvaziar o chifre naquele banquete que Brego fez para consagrar o recém-construído palácio de Meduseld, e ele jamais chegou ao trono do qual era herdeiro. As pessoas dizem que os Homens Mortos, dos Anos Escuros, guardam o caminho e não permitem que nenhum homem vivo penetre seus salões ocultos; mas algumas vezes eles próprios podem ser vistos saindo da Porta como sombras e descendo a pedregosa estrada. Então o povo do Vale tranca as portas e cobre as janelas, sentindo medo. Mas os Mortos raramente saem, e só em horas de grande inquietação ou quando a morte se aproxima.
— Apesar disso comenta-se no Vale Harg — disse Éowyn numa voz baixa — que em noites sem luar, há pouco tempo, um grande exército numa formação estranha passou. De onde vinha ninguém pôde saber, mas subiu a estrada de pedra e desapareceu dentro da colina, como se estivesse rumando para um encontro marcado.
— Então por que Aragorn foi por esse caminho? – perguntou Merry. — Vocês não conhecem nenhum motivo que pudesse explicar isso?
— A não ser que, como seu amigo, ele tenha lhe dito palavras que não ouvimos — disse Éomer —, ninguém agora na terra dos vivos pode dizer quais são os seus propósitos.
— Ele parecia muito mudado em comparação a quando o vi na casa do rei — disse Éowyn -: mais austero, mais velho. Pareceu-me alguém às portas da morte, como alguém que é chamado pelos Mortos.
— Talvez ele tenha sido chamado — disse Théoden —; e meu coração me diz que não o verei de novo. Apesar disso, ele é um homem nobre, com um destino importante. E console-se com isso, filha, uma vez que você parece precisar de consolo em sua tristeza por esse hóspede. Comenta-se que, quando os Eorlingas vieram do norte e finalmente passaram subindo ao longo do Riacho de Neve, procurando lugares seguros para se refugiarem em tempos de necessidade, Brego e seu filho Baldor subiram a Escada da Fortaleza e assim chegaram diante da Porta. No limiar estava sentado um velho, de uma idade incalculável em anos; fora alto e nobre, mas agora estava desgastado como uma pedra velha. Na realidade, tomaram-no por uma pedra, pois não se moveu, nem disse palavra alguma, até que eles tentaram passar por ele e entrar. E então uma voz saiu do corpo dele, como se viesse do chão, e para o assombro dos dois falou na língua do oeste: O caminho está fechado.
— Então eles pararam e olharam para ele, percebendo que ainda estava vivo; mas ele não retribuiu o olhar, O caminho está fechado — disse a voz outra vez. — Foi fechado por aqueles que estão Mortos, e os Mortos o guardam, ate que chegue o tempo. O caminho está fechado.
— E quando será o tempo? — disse Baldor. Mas nunca conseguiu qualquer resposta. Pois o velho morreu naquela hora e caiu com o rosto no chão; e nunca mais meu povo teve notícias dos antigos moradores das montanhas. Apesar disso, talvez o tempo previsto tenha chegado, e Aragorn possa passar.
— Mas como poderá um homem descobrir se o tempo chegou ou não, a não ser desafiando a Porta? — disse Éomer. — E por aquele caminho eu não iria nem mesmo se todos os exércitos de Mordor estivessem diante de mim, e eu estivesse sozinho e sem outro refúgio. É pena que uma disposição para a morte deva recair sobre um homem de coração tão grande nesta hora de necessidade! Já não há coisas malignas suficientes, sem que se precise procurar embaixo da terra? A guerra se aproxima.
Fez uma pausa, pois naquele momento ouviu-se um ruido do lado de fora, uma voz de homem chamando o nome de Théoden, e a sentinela exigindo a senha.
De repente o capitão da Guarda abriu a cortina. — Está aqui um homem, senhor — disse ele —, um mensageiro de Gondor. Deseja vê-lo imediatamente.
— Faça-o entrar! — disse Théoden.
Um homem alto entrou, e Merry sufocou um grito; por um momento teve a impressão de que Boromir estava vivo outra vez e retornara. Então viu que não era verdade; o homem era um forasteiro, embora parecido com Boromir como se fosse um parente dele, alto e de olhos cinzentos, de porte altivo. Estava vestido como um cavaleiro, com uma capa verde-escuro sobre uma cota de malha fina; na frente de seu elmo estava gravada uma pequena estrela de prata. Na mão trazia uma única flecha, adornada com plumas negras e com farpas de aço; mas a ponta era pintada de vermelho.
Ajoelhou-se e apresentou a flecha a Théoden.
— Salve, Senhor dos Rohirrim, amigo de Gondor! — disse ele. — Sou Hirgon, mensageiro de Denethor, e trago-lhe este símbolo de guerra. Gondor está numa grande necessidade. Várias vezes os rohirrim nos ajudaram, mas agora o Senhor Denethor solicita toda a sua força e toda a sua velocidade, para que Gondor não venha a cair.
— A Flecha Vermelha! — disse Théoden, segurando-a como alguém que recebe uma convocação há muito esperada mas terrível quando chega. Sua mão tremeu.
— A Flecha Vermelha não foi vista na Terra dos Cavaleiros durante toda a minha vida! As coisas realmente chegaram a este ponto? E o que o Senhor Denethor calcula que seja toda a minha força e toda a minha velocidade?
— Isso é o senhor quem melhor sabe — disse Hirgon. – Mas em breve pode acontecer que Minas Tirith seja cercada, e, a não ser que o senhor tenha a força para quebrar um cerco de muitos exércitos, o Senhor Denethor me ordena dizer-lhe que ele julga que as fortes armas dos rohirrim ficariam melhor no interior das muralhas do que do lado de fora.
— Mas ele sabe que somos um povo que luta de preferência montado em cavalos e em espaços abertos, e também sabe que somos um povo disperso, e precisamos de tempo para reunirmos nossos Cavaleiros. Não é verdade, Hirgon, que o Senhor de Minas Tirith sabe mais do que coloca em sua mensagem? Pois já estamos em guerra. Como você deve ter ouvido, você não nos encontra totalmente despreparados. Gandalf, o Cinzento, esteve entre nós, e neste exato momento estamos concentrando nossas tropas para a batalha no leste.
— O que o Senhor Denethor possa saber ou supor sobre todas essas coisas não posso dizer — respondeu Hirgon. — Mas realmente nosso caso é desesperador. Mas meu senhor não lhe envia nenhum comando, ele lhe implora apenas para que se recorde da velha amizade e dos juramentos feitos há muito tempo, e que para o seu próprio bem faça o que puder. Ficamos sabendo que muitos reis cavalgaram do leste a serviço de Mordor. Do norte até o campo de Dagorlad há conflitos e rumores de guerra. No sul os haradrim estão se movendo, e o medo paira sobre todas as nossas regiões costeiras, de modo que receberemos pouca ajuda de lá. Apresse-se! Pois é diante das muralhas de Minas Tirith que o destino de nossa época será decidido, e, se a maré não for estancada ali, então inundará todos os belos campos de Rohan, e nem mesmo aqui, neste Forte entre as colinas, haverá refúgio.
— Notícias negras — disse Théoden —, e apesar disso não de todo inesperadas. Mas diga a Denethor que, mesmo se Rohan não se sentisse ameaçada, ainda assim iríamos em seu auxílio. Mas sofremos muitas perdas em nossas batalhas contra o traidor Saruman, e precisamos ainda pensar em nossa fronteira ao norte e a leste, como esclarece a própria mensagem que ele envia. Um poder tão grande como o que o Senhor do Escuro parece agora controlar poderia muito bem nos cercar em batalha dentro da Cidade, e mesmo assim atacar com grande força do outro lado do Rio, lá adiante. além do Portão dos Reis.
— Mas não faremos mais planos de prudência. Iremos. O encontro de armas está marcado para o dia de amanhã. Quando tudo estiver em ordem, partiremos.
Poderia ter enviado dez mil lanceiros através da planície para o desalento de nossos inimigos. O número será menor agora, receio eu, pois não deixarei minhas fortalezas totalmente desprotegidas. Apesar disso, no mínimo seis mil deverão cavalgar atrás de mim. Pois diga a Denethor que nesta hora o Rei da Terra dos Cavaleiros descerá até Gondor, embora seja possível que ele não retorne. Mas é uma longa estrada, e homens e animais devem chegar ao fim com forças ainda para lutar. Pode levar uma semana, a contar do dia de amanhã, até que vocês ouçam o grito dos Filhos de Eorl chegando do norte.
— Uma semana! — disse Hirgon. — Se deve ser assim, que seja. Mas é provável que só encontrem muralhas arruinadas daqui a sete dias, a não ser que outro auxilio inesperado chegue. Ainda assim, vocês poderão pelo menos perturbar os orcs e os homens morenos em seu banquete na Torre Branca.
— Pelo menos faremos isso — disse Théoden. — Mas eu próprio acabei de chegar de uma batalha e de uma longa viagem, e agora vou descansar. Permaneça aqui esta noite. Então poderá assistir à concentração das tropas de Rohan e partir mais feliz pelo espetáculo que viu, e mais depressa pelo descanso. Pela manhã os conselhos são melhores, e a noite altera muitos pensamentos.
Com isso o rei ficou de pé, e todos se levantaram. — Agora todos devem ir descansar — disse ele —, e durmam bem. E de você, Mestre Meriadoc, não necessito mais esta noite. Mas fique pronto para minha convocação assim que o sol nascer.
— Estarei a postos — disse Merry —, mesmo que ordene que eu cavalgue com o senhor pelas Sendas dos Mortos.
— Não pronuncie palavras de mau agouro! — disse o rei. — Pois é possível que haja mais de uma estrada digna de tal nome. Mas eu não disse que ordenaria que você cavalgasse comigo em qualquer estrada. Boa noite!
— Não vou ficar para trás, para ser apanhado na volta! — disse Merry.
— Não vou ficar para trás, não vou! — E repetindo isso inúmeras vezes para si mesmo finalmente adormeceu em sua tenda. Foi acordado por um homem que o sacudia. — Acorde, acorde, Mestre Hobbit! — exclamou ele, e finalmente Merry despertou de seus sonhos profundos e sentou-se num sobressalto. Achou que ainda estava muito escuro.
— Qual é o problema"? — perguntou ele.
— O rei o chama.
— Mas o sol ainda não nasceu — disse Merry.
— Não, e não nascerá hoje, Mestre Hobbit. E nunca mais, poderíamos presumir sob esta nuvem. Mas o tempo não pára, embora o sol esteja perdido. Depressa!
Jogando sobre o corpo algumas roupas, Merry olhou lá fora. O mundo estava sombrio. O próprio ar parecia escuro, e todas as coisas ao redor estavam negras, cinzentas e sem sombras; havia uma grande imobilidade. Não se via o vulto de uma nuvem sequer, a não ser que estivesse muito distante, na direção do oeste, onde os mais longínquos dedos da grande escuridão ainda avançavam rastejando, e uma pequena luz escoava através deles. Acima pairava um teto pesado, sombrio e disforme, e a luz mais parecia estar se extinguindo do que aumentando.
Merry viu muitas pessoas de pé, olhando para o alto e murmurando; seus rostos estavam sombrios e tristes, alguns amedrontados. Com o coração pesado, o hobbit se dirigiu até onde se encontrava o rei. Hirgon, o cavaleiro de Gondor, estava lá diante dele, e ao lado agora estava um outro homem, parecido com ele e com roupas semelhantes, mas mais baixo e troncudo.
Quando Merry entrou ele estava falando com o rei.
— Vem de Mordor. senhor— disse ele. — Começou ontem, ao pôr-do-sol Das colinas do Folde Oriental de seu reino eu a vi se erguendo e se alastrando no céu, e toda a noite, durante a minha cavalgada, ela me seguiu, devorando as estrelas. Agora a grande nuvem paira sobre toda a região daqui até as Montanhas da Sombra; e está ficando mais densa. A guerra já começou.
Por um tempo o rei ficou sentado e em silêncio. Finalmente falou.
— Então por fim chegamos a ela — disse ele -: a grande batalha de nossa era, na qual muitas coisas deverão morrer. Mas pelo menos não há mais necessidade de nos escondermos. Vamos cavalgar pelo caminho direto e na estrada aberta com toda a nossa velocidade. A concentração das tropas deve começar imediatamente, sem esperar por ninguém que esteja atrasado. Vocês têm bons estoques em Minas Tirith?
Pois, se devemos cavalgar com a maior rapidez possível, então devemos estar leves, levando apenas comida e bebida que nos sustentem até a batalha.
— Temos um enorme estoque, preparado há muito tempo – respondeu Hirgon. — Partam agora com a maior leveza e velocidade possível!
— Então chame os arautos, Éomer — disse Théoden. — Que os Cavaleiros sejam reunidos!
Éomer saiu e de repente as trombetas soaram na Fortaleza e muitas outras lá de baixo responderam; mas suas vozes não mais soavam cristalinas e corajosas como Merry as ouvira na noite anterior. Pareciam abafadas e roucas, zurrando funestas.
O rei virou-se para Merry. — Estou indo para a guerra, Mestre Meriadoc — disse ele. — Em breve deverei tomar a estrada. Dispenso-o de meu serviço, mas não de minha amizade. Você permanecerá aqui, e, se quiser, poderá servir à Senhora Éowyn, que governará o povo em meu lugar.
— Mas, mas, senhor — gaguejou Merry. — Eu lhe ofereci minha espada. Não quero me separar de sua pessoa desta forma, Rei Théoden. E, como todos os meus amigos foram para a batalha, eu me sentiria envergonhado se ficasse para trás.
— Mas nós montamos cavalos altos e velozes — disse Théoden —; e, embora você possa ter grande coragem, não pode cavalgar esses animais.
— Então amarre-me ao lombo de um, ou deixe-me andar pendurado num estribo, ou qualquer outra coisa — disse Merry. — Há uma longa estrada a percorrer; mas eu irei correndo, se não puder cavalgar, mesmo que tenha de gastar meus pés e chegar com semanas de atraso.
Théoden sorriu.
— Seria melhor que eu o levasse comigo na garupa de Snawmana — disse ele. — Mas pelo menos você cavalgará comigo até Edoras para ver Meduseld; pois devo fazer esse caminho. Até lá Stybba pode levá-lo: a grande corrida não começará até atingirmos as planícies.
Então Éowyn se levantou.
— Venha agora Merriadoc. Vou lhe mostrar as armas que preparei para você. — Os dois saíram juntos. — Apenas esse pedido Aragorn me fez — disse Éowyn, enquanto eles passavam por entre as tendas —, que você fosse armado para a batalha. Eu garanti que seria assim, que faria o possível. Pois meu coração me diz que você vai precisar dessas armas antes do fim.
Então ela levou Merry a uma barraca em meio aos alojamentos da guarda do rei, e lá um armeiro lhe trouxe um pequeno elmo, um escudo redondo, e outras armas.
— Não temos malhas que lhe sirvam — disse Éowyn —, nem tempo para forjar uma cota desse tipo; mas aqui também há um gibão de couro resistente, um cinto e uma faca. A espada você já tem.
Merry fez uma reverência, e a senhora lhe mostrou o escudo, que era parecido com aquele que dera a Gimli e ostentava a insígnia do cavalo branco.
— Pegue todas essas coisas — disse ela — e conduza-as a um bom desenlace! Adeus agora, Mestre Meriadoc! Mas talvez nos encontremos outra vez, você e eu.
Foi assim que, em meio a uma escuridão que se adensava, o Rei da Terra dos Cavaleiros se aprontou para conduzir todos os seus homens na estrada para o leste.
Os corações estavam pesados, e muitos estremeciam diante da sombra. Mas eram um povo resoluto, leal ao seu senhor, e ouvia-se pouco choro ou murmúrio, mesmo no acampamento da Fortaleza, onde se abrigavam os exilados de Edoras, mulheres; crianças e velhos. O destino pairava sobre eles, que o enfrentavam em silencio.
Duas rápidas horas se passaram, e agora o rei montava seu cavalo branco, refulgindo na meia-luz. Parecia orgulhoso e altivo, embora o cabelo que esvoaçava embaixo de seu alto elmo parecesse neve; muitos se surpreenderam com ele, e alegraram-se ao vê-lo ereto e destemido.
Lá nas amplas planícies ao lado do rio ruidoso estavam agrupadas muitas companhias que perfaziam quase cinco mil e quinhentos Cavaleiros completamente armados, e muitas centenas de outros homens com cavalos avulsos levemente carregados. Uma única trombeta soou. O rei levantou a mão, e então, em silêncio, o exército da Terra dos Cavaleiros começou a se mover. Na frente iam doze dos homens da casa do rei, Cavaleiros de renome. Depois ia o rei com Éomer à sua direita.
Dissera adeus a Éowyn em cima, no Forte, e a lembrança lhe trazia tristeza, mas agora voltava sua mente para a estrada que se estendia à frente. Atrás dele Merry montado em Stybba, com os mensageiros de Gondor, e mais atrás outros doze homens da casa do rei. Passaram pelas longas fileiras de homens que esperavam com rostos austeros e imóveis. Mas, quando chegaram quase ao fim da fileira, um deles ergueu os olhos, lançando um olhar agudo para o hobbit. "Um jovem", pensou Merry ao retribuir o olhar, "menor em tamanho e corpulência que muitos." Merry capturou o brilho de olhos cristalinos e cinzentos, e então estremeceu, pois de repente lhe ocorreu o pensamento de que aquele era o rosto de uma pessoa sem esperança que partia ao encontro da morte.
Continuaram descendo pela estrada cinzenta ao lado do Riacho de Neve, correndo sobre suas pedras, através das aldeias de Sob-templo e de Sobre-riacho, onde muitos rostos tristes de mulheres olhavam através de portas escuras; assim, sem cornetas ou harpas ou música de vozes humanas, começou a grande cavalgada para o leste, da qual as canções de Rohan se ocuparam por muitas vidas de homem posteriormente.
Do Templo da Colina na manhã calada com nobre e capitão saiu o filho de Thengel: para Edoras ele veio, para os velhos salões dos guardas de Rohan envoltos em neblina; das madeiras douradas imersas em dor. Adeus ele deu ao seu povo em liberdade, ao lar, ao alto assento e aos sagrados recintos, onde tanto celebrara até a luz se apagar. Em frente vai o rei, o medo atrás ficando, adiante o destino. Sua lealdade ele manteve; juras que fizera, todos as cumpriram.
Em frente vai Théoden.
Cinco noites, cinco dias, avante para o leste foram os eorlingas Pelo Folde e por Fenmark e por Firienholt, seis milhares de lanças para Sunlending, Mundburg magnífica aos pés do Mindolluin, dos reis do Mar cidade no reino do sul infestado de inimigos, sitiado pelo fogo.
O Destino os dirigia.
As trevas dominaram cavalo e cavaleiro; cascos na distância sumiram no silêncio: assim rezam as canções.
Foi realmente numa escuridão cada vez mais profunda que o rei chegou a Edoras, embora não passasse do meio-dia. Ali fizeram apenas uma pausa curta e fortaleceram -seu exército com algumas dezenas de Cavaleiros que haviam chegado atrasados para o encontro de armas. Agora, tendo comido, ele se aprontava para partir novamente, e desejou ao seu escudeiro uma estada feliz. Mas Merry implorou pela última vez que não se separasse dele.
— Esta não é uma viagem para animais como Stybba, como eu já lhe falei — disse Théoden. — E, numa batalha como a que pensamos travar nos campos de Gondor, o que você faria, Mestre Meriadoc, embora você seja um espadachim, e maior na coragem do que na estatura?
— Quanto a isso, quem pode saber? respondeu Merry. — Mas por que, meu senhor, fui aceito como espadachim, senão para ficar ao seu lado? E eu não permitiria que de mim as canções dissessem que sempre fiquei para trás.
— Recebi-o para protegê-lo — respondeu Théoden — e também para que cumprisse minhas ordens. Nenhum de meus Cavaleiros pode levá-lo como fardo. Se a batalha estivesse diante de meus portões, talvez seus feitos fossem recordados pelos menestréis mas são cento e duas léguas daqui até Nundburg, onde Denethor é senhor. Não direi mais nada.
Merry fez uma reverência e se afastou infeliz, olhando as fileiras de cavaleiros. As companhias já estavam se aprontando para partir: os homens apertando cilhas, tratando das selas, acariciando seus cavalos; alguns olhavam aflitos para o céu ameaçador. Sem ser notado, um cavaleiro se aproximou e falou baixinho ao ouvido do hobbit.
— Quando a vontade não falta, caminho se abre, assim dizemos nós — sussurrou ele —; e foi isso o que aconteceu comigo. — Merry ergueu os olhos e viu que era o jovem Cavaleiro que notara durante a manhã. — Você deseja ir aonde o Senhor da Terra dos Cavaleiros for: vejo isso em seus olhos.
— Desejo — disse Merry.
— Então irá comigo — disse o Cavaleiro. — Vou levá-lo sentado na minha frente sob minha capa até que estejamos bem longe, e esta escuridão esteja ainda mais escura. Essa boa vontade não lhe deveria ter sido negada. Não diga mais nada para ninguém, mas venha!
— Fico imensamente grato! — disse Merry. — Obrigado, senhor, embora eu não saiba seu nome.
— Não sabe? — disse o Cavaleiro baixinho. — Então chame-me de Dernhelm.
Foi assim que, quando o rei partiu, na frente de Dernhelm foi montado Meriadoc, o hobbit, e o grande corcel cinzento Windfola fez pouco do fardo, pois Bernhelm era menos pesado que muitos homens, embora esbelto e de corpo bem feito.
Avançaram para dentro da sombra. Nos maciços de salgueiros, onde o Riacho de Neve corria para desembocar no Entágua, doze léguas a leste de Edoras, eles acamparam naquela noite. E depois continuaram de novo através do Folde, e através de Fenmark, onde á direita grandes florestas de carvalhos subiam nas encostas das colinas, sob as sombras do escuro Halifirien, ao lado das fronteiras de Gondor; mas á esquerda a névoa pairava nos pântanos alimentados pelas desembocaduras do Entágua. Enquanto cavalgavam chegaram-lhes aos ouvidos os boatos da guerra no norte. Homens sozinhos, cavalgando alucinados, trouxeram notícias sobre os inimigos atacando as fronteiras orientais, sobre exércitos de orcs marchando no Descampado de Rohan..
— Avante! Avante! — gritou Éomer. — É tarde demais agora para desviarmos. Os charcos do Entágua deverão guardar nosso flanco. Precisamos agora de velocidade. Avante!
E assim o Rei Théoden partiu de seu próprio reino, e milha após milha a longa estrada avançava sinuosa, e as colinas dos faróis passaram marchando: Calenhad, Min-Rimmon, Erelas, Nardol. Mas suas fogueiras estavam apagadas. Toda a terra estava cinzenta e quieta, e cada vez mais a escuridão se adensava diante deles, e a esperança minguava em seus corações.
O CERCO DE GONDOR
Pippin foi acordado por Gandalf. Havia velas acesas no quarto, pois apenas uma fraca luz crepuscular entrava pelas janelas; o ar estava pesado como se uma tempestade se aproximasse.
— Que horas são? — perguntou Pippin bocejando.
— Já passa da segunda hora — disse Gandalf. — Hora de levantar e se fazer apresentável. O Senhor da Cidade o convoca para informá-lo sobre seus novos deveres.
— E ele vai providenciar o desjejum?
— Não, eu providenciei isso: tudo o que você vai comer até o meio-dia. A comida agora está sendo racionada.
Pippin olhou desolado para o pequeno pedaço de pão e a porção muito inadequada (achou ele) de manteiga que lhe foi servida, ao lado de uma xícara de leite aguado.
— Por que você me trouxe para cá? — disse ele.
— Você sabe muito bem disse Gandalf. — Para mantê-lo longe de confusão; e, se você não aprecia estar aqui, é melhor se lembrar de que foi você quem atraiu a confusão. — Pippin não disse mais nada.
Logo estava descendo mais uma vez com Gandalf pelo frio corredor que levava à porta do Salão da Torre. Denethor estava sentado lá numa escuridão cinzenta, como uma aranha velha e paciente, na opinião de Pippin; não parecia ter mudado de posição desde o dia anterior. Apontou uma cadeira para Gandalf, mas deixou Pippin um tempo parado de pé, sem lhe dar atenção. De repente o velho voltou-se para ele:
— Bem, Mestre Peregrin, espero que tenha usado o dia de ontem em seu proveito, e a seu gosto. Mas receio que a mesa seja mais pobre nesta Cidade do que você poderia desejar.
Pippin teve uma sensação incômoda de que a maioria do que tinha falado ou feito chegara, de alguma forma, ao conhecimento do Senhor da Cidade, que também estava adivinhando grande parte de seus pensamentos. Não respondeu.
— O que você poderia fazer a meu serviço?
— Pensei que minhas tarefas seriam designadas pelo senhor.
— E serão, quando eu souber para que serviço você serve -disse Denethor. — Mas isso talvez eu saiba mais depressa se o mantiver ao meu lado. O escudeiro de minha câmara pediu permissão para ir á guarnição externa, de modo que você deve substitui-lo por algum tempo. Vai me servir, levar recados e conversar comigo. se a guerra e o planejamento me deixarem algum tempo de sobra. Sabe cantar"?
— Sei — disse Pippin. — Quero dizer, bem o suficiente para o meu próprio povo. Mas não temos canções adequadas para grandes salões e tempos ruins. Raramente cantamos sobre qualquer coisa mais terrível que o vento ou a chuva. E a maioria de minhas canções é sobre coisas que nos fazem rir, ou sobre comida e bebida, é claro.
— E por que essas canções seriam inadequadas para meus salões, ou para horas como estas"? Quem viveu muito tempo sob a Sombra está proibido de ouvir os ecos de uma terra não perturbada por ela? Nesse caso poderemos sentir que nossa vigilância não foi em vão, embora não tenha sido reconhecida. Pippin sentiu o coração pesado. Não apreciava a idéia de cantar qualquer canção do Condado para o Senhor de Minas Tirith, com certeza não as cômicas que ele sabia melhor; essas eram muito, bem, rústicas para uma ocasião daquelas. No entanto foi dispensado, pelo momento, da penosa provação.
Não lhe foi ordenado que cantasse. Denethor voltou-se para Gandalf, perguntando coisas sobre os rohirrim e suas estratégias, e sobre a posição de Éomer, o sobrinho do rei. Pippin ficou surpreso ao ver a quantidade de coisas que o Senhor parecia saber sobre um povo que vivia distante, embora, pensou ele, muitos anos devessem ter passado desde que Denethor cavalgara fora de seus domínios.
De repente Denethor acenou para Pippin e o dispensou de novo por um tempo.
— Vá até os arsenais da Cidadela — disse ele — e pegue o seu uniforme e as armas da Torre. Vai encontrar tudo preparado. Dei ordens nesse sentido ontem.
Volte quando estiver devida mente vestido!
Foi como ele dissera, e Pippin logo se viu trajado com uma roupa estranha, toda preta e prateada. Tinha uma pequena cota de malha, com anéis forjados de aço, talvez, embora fossem pretos como o azeviche; também um elmo alto com pequenas asas de corvo dos dois lados, adornado com uma estrela de prata no centro do diadema. Sobre a cota de malha trazia um pequeno casaco preto, com o símbolo da Árvore bordado em prata no peito. Suas roupas antigas foram dobradas e guardadas, mas lhe permitiram ficar com a capa cinzenta de Lórien, embora não pudesse usá-la quando estivesse trabalhando. Mal sabia que agora estava parecendo realmente o Ernil i Pheriannath, o Príncipe dos Pequenos, que as pessoas diziam que ele era; mas não se sentia á vontade, e a melancolia começou a derrotar o seu humor.
Ficou escuro e sombrio o dia todo. Desde a aurora sem sol até a noite, a sombra pesada se aprofundou, e todos os corações da Cidade estavam oprimidos. Lá em cima uma grande nuvem passava lentamente para o oeste, vinda da Terra Negra, devorando a luz, carregada por um vento de guerra; mas mais abaixo o ar estava parado e sem vento, como se o Vale do Andum esperasse pelo ataque de uma tempestade destruidora.
Lá pela décima primeira hora, finalmente dispensado do serviço por um tempo, Pippin saiu e foi procurar comida e bebida para alegrar seu coração pesado e transformar sua tarefa de servir em algo mais suportável. No refeitório encontrou outra vez Beregond, que acabara de chegar de uma missão pelo Pelennor, saindo das Torres de Guarda sobre o Passadiço. Juntos foram caminhando até as muralhas, pois Pippin se sentia enclausurado do lado de dentro, e sufocado atê mesmo na alta cidadela.
Agora estavam sentados lado a lado outra vez no parapeito que dava para o leste, onde tinham comido e conversado no dia anterior.
Estava na hora do pôr-do-sol, mas a grande mortalha agora se estendera para dentro do oeste, e só quando ela finalmente afundou no Mar o Sol libertou-se para emitir um brilho breve de despedida antes da noite, no mesmo momento em que Frodo o via na Encruzilhada, incidindo sobre a cabeça do rei caido. Mas aos campos do Pelennor, sob a sombra do Mindolluin, não chegou nenhum raio: estava tudo escuro e desolado.
Pippin tinha a impressão de que já fazia anos que se sentara lá, em algum tempo semi-esquecido quando ele ainda era um hobbit, um andarilho alegre que pouco se importava com os perigos pelos quais passara. Agora era um pequeno soldado numa cidade que se preparava para um grande ataque, vestido á moda altiva mas sombria da Torre de Guarda.
Em algum outro tempo e lugar, Pippin poderia ter ficado satisfeito com suas novas vestes, mas agora sabia que não estava tomando parte em alguma brincadeira; era agora, num jogo sério como a morte, o servidor de um senhor severo, correndo o maior dos perigos. A cota de malha era incômoda, e o elmo pesava-lhe sobre a cabeça. Jogara a capa em cima do banco. Desviou seu olhar cansado dos campos escuros lá embaixo e bocejou; depois veio um suspiro.
— Cansado do trabalho de hoje? — disse Beregond.
— Estou — disse Pippin —, muito: exausto por não fazer nada e esperar. Fiquei batendo os calcanhares contra a porta do quarto de meu mestre por muitas horas arrastadas, enquanto ele debatia com Gandalf e o Príncipe e outras pessoas importantes. E não estou habituado, Mestre Beregond, a ficar com fome servindo, enquanto os outros comem. Isso é uma terrível provação para um hobbit. Sem dúvida você está pensando que eu deveria sentir a honra mais intensamente. Mas de que adianta essa honra? E mesmo a comida e a bebida, de que adiantam elas sob esta sombra que avança? O que significa isso? O próprio ar parece estar espesso e escuro! É freqüente aqui essa escuridão, quando sopra o vento do leste?
— Não — respondeu Beregond —, isso não é natural. É algum artifício da malícia dele; algum tumulto de fumaça que ele envia da Montanha do Fogo para turvar nossos corações e nossas mentes. E realmente o efeito é esse. Gostaria que o Senhor Faramir retornasse. Ele não desanimaria. Mas, agora, quem pode saber se ele algum dia vai voltar do outro lado do Rio vindo da Escuridão?
— É — disse Pippin -. Gandalf também está ansioso. Ficou desapontado, julgo eu, por não ter encontrado Faramir aqui. E onde se meteu ele"? Deixou o conselho do Senhor antes da refeição do meio-dia, e tive a impressão de que estava de mau humor. Talvez tenha tido a premonição de alguma má noticia.
De repente, enquanto conversavam, emudeceram, como se transformados em pedras alertas. Pippin se agachou tapando os ouvidos com as mãos, mas Beregond, que estivera olhando para fora no parapeito enquanto falava de Faramir, permaneceu ali, imóvel, com o olhar assustado. Pippin conhecia o grito arrepiante que ouvira: era o mesmo que ouvira havia muito tempo no Pântano do Condado, mas agora crescera em força e ódio, atravessando o coração com um desespero venenoso.
Finalmente Beregond falou com dificuldade.
— Eles chegaram! — disse ele. — Tome coragem e olhe! Há seres cruéis lá embaixo.
Com relutância Pippin subiu no banco e olhou por sobre a muralha. O Pelennor jazia escuro abaixo dele, desaparecendo na linha quase invisível do Grande Rio.
Mas agora, voando em rápidos círculos através dele, como sombras de uma noite precoce, ele viu no ar, abaixo de onde estava, cinco figuras semelhantes a pássaros, horríveis como aves carniceiras, e apesar disso maiores que águias, cruéis como a morte. Em alguns momentos voavam mais baixo, arriscando-se a chegar quase ao alcance das flechas que vinham das muralhas, outras vezes voavam para longe em círculos.
— Cavaleiros Negros! — murmurou Pippin. — Cavaleiros Negros do ar! Mas veja, Beregond! — exclamou ele. — Com certeza estão procurando algo. Veja como eles fazem círculos e mergulham em vôos rasantes, sempre descendo na direção daquele ponto ali. E você está vendo alguma coisa se mexendo no chão? Coisinhas escuras. Sim, homens montados em cavalos: quatro ou cinco. Ah! Não consigo suportar isso! Gandalf! Gandalf, salve-nos! Um outro grito penetrante cresceu e diminuiu, e Pippin se jogou da muralha de novo, ofegando como um animal acossado. Fraco e aparentemente remoto, através daquele grito estarrecedor, ele ouviu subindo lá de baixo o som de uma trombeta terminando numa nota longa e aguda.
— Faramir! O Senhor Faramir! É o chamado dele! – gritou Beregond.
— Homem corajoso! Mas como poderá alcançar o Portão, se esses nojentos falcões do inferno tiverem outras armas além do medo? Mas olhe! Eles continuam resistindo. Vão chegar até o Portão. Não! Os cavalos estão ficando loucos. Veja!
Os homens foram jogados no chão, e estão correndo a pé. Não, um ainda está montado, mas está voltando em direção aos outros. Com certeza é o Capitão: ele consegue controlar tanto animais quanto homens. Ah! Lá está uma das criaturas nojentas arremetendo contra ele! Socorro! Socorro! Ninguém vai ajudá-lo? Faramir!
Dizendo isso Beregond deu um salto e correu para dentro da escuridão. Envergonhado do próprio medo, enquanto Beregond da Guarda pensava primeiro no capitão que amava, Pippin se levantou e espiou lá fora. Naquele momento captou um clarão branco e prateado vindo do norte, como uma pequena estrela descendo nos campos sombrios.
Movia-se com a velocidade de uma flecha, e crescia à medida que se aproximava, convergindo rapidamente com a fuga dos quatro homens em direção ao Portão. Pippin teve a impressão de que uma luz pálida se espalhava ao redor da estrela, e as sombras pesadas abriam caminho diante dela; então, assim que se aproximou mais, o hobbit pensou ter ouvido, como um eco nas muralhas, uma voz imponente chamando.
— Gandalf! — gritou ele. — Gandalf! Ele sempre aparece quando as coisas estão pretas. Avante! Avante, Cavaleiro Branco! Gandalf, Gandalf! — berrou ele alucinado, como o espectador de um grande páreo, motivando um corredor que não precisa mais de torcida.
Mas agora as escuras sombras de rapina estavam cientes do recém chegado. Uma descreveu um giro na direção dele; mas Pippin teve a impressão de que ele ergueu a mão, e dela um raio de luz branca cortou os ares acima. O nazgúl soltou um grito longo e choroso e desviou-se, e depois disso os outros quatro hesitaram, então, erguendo-se em rápidas espirais, rumaram para o leste, desaparecendo na baixa nuvem acima deles; lá embaixo, no Pelennor, a escuridão pareceu menos densa por um tempo.
Pippin assistia a tudo, e viu que o homem a cavalo e o Cavaleiro Branco se encontraram e pararam, aguardando os outros que vinham a pé.
Agora homens corriam da Cidade em direção a eles, e logo todos passaram e desapareceram sob as muralhas externas e o hobbit sabia que estavam entrando pelo Portão.
Supondo que imediatamente viriam para a Torre para ver o Regente, correu para a entrada da cidadela. Ali juntou-se a muitos outros que das altas muralhas tinham assistido á corrida e ao resgate.
Não demorou muito para que se ouvisse um clamor nas ruas que vinham dos círculos exteriores e subiam; muitas pessoas aplaudiam e bradavam os nomes de Faramir e Mithrandir. De repente Pippin viu tochas, e à frente de uma multidão dois cavaleiros avançando devagar: um em vestes brancas que já não brilhavam; estava agora empalidecido no crepúsculo como se seu fogo se tivesse exaurido ou ocultado; o outro era sombrio, e estava com a cabeça curvada. Os dois desmontaram e, enquanto cavalariços levavam Scadufax e o outro cavalo, caminharam na direção da sentinela do portão: Gandalf num passo firme, a capa cinzenta jogada para trás e o fogo ainda ardendo em seus olhos; o outro, todo vestido de verde, avançava devagar, num passo vacilante, como alguém que está exausto ou ferido.
Pippin abriu caminho para a frente assim que eles passaram sob a lamparina abaixo do arco do portão e, quando viu o rosto pálido de Faramir, perdeu o fôlego.
Era um rosto atingido pelo medo e pela angústia, mas que agora dominara o sentimento e estava tranquilo. Altivo e solene, ele parou por um momento enquanto falava com o guarda, e Pippin, olhando para ele, viu como Faramir era parecido com seu irmão Boromir — de quem Pippin gostara desde o início, admirando os modos nobres e ao mesmo tempo gentis do grande homem. Mesmo assim, de repente, sentiu por Faramir uma coisa que nunca sentira antes. Ele era alguém com um ar de alta nobreza, como o que Aragorn certas vezes revelara, talvez não tão alta, mas também não tão insondável e remota: um ar dos Reis de Homens nascidos numa época posterior, mas tocados pela sabedoria e pela tristeza da Raça Antiga. Agora percebia por que Beregond pronunciava seu nome com tanta devoção. Era um capitão que os homens seguiriam, que ele próprio seguiria, até mesmo sob a sombra das asas negras.
— Faramir! — gritou ele junto com os outros. — Faramir! -
E Faramir captando a estranha voz do hobbit em meio á aclamação dos homens da Cidade, virou-se e desceu os olhos até ele, estupefato.
— De onde você vem? — disse ele. — Um Pequeno, e com o uniforme da Torre! De onde...
Mas nesse momento Gandalf parou ao seu lado e falou. — Ele veio comigo da terra dos Pequenos — disse ele. — Veio comigo. Mas não vamos ficar mais tempo aqui. Há muito o que dizer e fazer, e você está cansado. Ele virá conosco. Na verdade, é o que deve fazer, pois, se não estiver esquecendo suas novas tarefas mais facilmente do que eu, ele deve servir seu senhor outra vez agora. Venha, Pippin, siga-nos!
Então finalmente eles chegaram ao aposento particular do Senhor da Cidade. Três cadeiras com espaldares altos estavam dispostas ao redor de um braseiro de carvão; trouxeram vinho; ali Pippin, quase sem ser notado, ficou atrás da cadeira de Denethor e sentiu o cansaço diminuir, tão grande foi a atenção que deu a tudo o que foi dito.
Depois que Faramir havia comido pão branco e bebido um gole de vinho, sentou-se numa cadeira baixa á esquerda de seu pai. Um pouco afastado, do lado oposto, estava Gandalf numa cadeira de madeira esculpida, e a princípio parecia estar dormindo. Pois no inicio Faramir falou apenas da missão para a qual fora enviado dez dias antes, e trouxe notícias de Ithilien e dos movimentos do Inimigo e seus aliados; contou também sobre a luta na estrada, na qual os homens de Harad e seu grande animal foram derrotados: um capitão relatando ao seu senhor esses assuntos frequentemente tratados, coisas pequenas de uma guerra de fronteiras que agora pareciam inúteis e insignificantes, desprovidas de uma importância maior.
Então, de repente, Faramir olhou para Pippin.
— Mas agora vamos tratar de assuntos estranhos — disse ele. — Pois este não é o primeiro Pequeno que vejo saindo das lendas do norte e entrando nas terras do sul.
Ao ouvir isso, Gandalf aprumou-se agarrando os braços da cadeira, mas não disse nada, e com um olhar conteve a exclamação nos lábios de Pippin. Denethor olhou para os rostos deles e fez um sinal com a cabeça, como se quisesse dizer que lera ali muitas coisas, antes mesmo de serem mencionadas.
Lentamente, enquanto os outros ficaram sentados e imóveis, Faramir contou sua história com os olhos fixos em Gandalf a maior parte do tempo, embora de vez em quando seu olhar se desviasse para Pippin, como que tentando recordar-se melhor dos outros hobbits que vira.
à medida que se desenrolava a história sobre o encontro de Faramir com Frodo e seu servidor, e sobre os eventos em Henneth Annún, Pippin percebeu que as mãos de Gandalf estavam trêmulas, agarrando-se aos braços da cadeira. Agora pareciam brancas e muito velhas, e olhando para elas, de repente, com um arrepio de medo, Pippin viu que Gandalf, o próprio Gandalf, estava preocupado, até mesmo amedrontado. O ar da sala estava parado e pesado. Finalmente, quando Faramir relatou sua separação dos viajantes, e a resolução deles de ir para Cirith Ungol, sua voz ficou mais baixa, e ele balançou a cabeça e suspirou. Então Gandalf saltou de pé.
— Cirith Ungol? Vale Morgul? — disse ele. — O dia, Faramir, o dia: Quando você se separou deles? Quando acha que eles atingiriam aquele vale amaldiçoado?
— Separei-me deles há dois dias, pela manhã — disse Faramir. — São quinze léguas de lá até o vale do Morgulduin, se eles foram direto para o sul; e então haveria mais cinco léguas a oeste da Torre amaldiçoada. Andando o mais rápido possível, eles não poderiam chegar lá antes de hoje, e talvez não tenham chegado ainda. Na verdade percebo o que você teme. Mas a escuridão não se deve á aventura deles. Começou na noite de ontem, e toda Ithilien ficou coberta de sombra a noite passada.
— Para mim está claro que o Inimigo planeja há muito tempo este ataque contra nós, e a hora já estava determinada antes mesmo que os viajantes deixassem a minha companhia.
Gandalf andava de um lado para o outro.
— Dois dias atrás, pela manhã, quase três dias de viagem! A que distância daqui fica o lugar onde vocês se separaram?
— Cerca de vinte e cinco léguas num vôo de pássaro – respondeu Faramir. Mas eu não consegui chegar mais rápido. Ontem pernoitei em Andros, a longa ilha do Rio ao norte, onde mantemos um ponto de defesa; temos cavalos do lado de cá do rio. A medida que a escuridão foi se aproximando, percebi que precisava me apressar, de modo que cavalguei para cá com mais três homens que também tinham montarias. O resto de minha companhia enviei para fortalecer a guarnição nos vaus de Osgiliath. Espero que não tenha feito nada de errado – disse ele olhando para o pai.
— Nada de errado? — gritou Denethor, e seus olhos de repente faiscaram. — Por que está perguntando? Os homens estavam sob o seu comando. Ou será que você quer saber o que penso sobre todos os seus atos? Na minha presença, sua postura é humilde; apesar disso, faz tempo que você não se desvia de seu próprio caminho a conselho meu. Veja, você falou com habilidade, como sempre; mas eu, então, não vi seu olho fixo em Mithrandir, procurando saber se você falou bem ou demais? Faz tempo que seu coração lhe pertence. Meu filho, seu pai está velho, mas não está decrépito. Consigo ver e ouvir, como sempre foi meu hábito; e pouco do que você deixou de dizer ou disse com meias palavras é segredo para mim. Agora conheço a resposta para vários enigmas. Lamento, lamento por Boromir!
— Se o que fiz lhe desagrada, meu pai — disse Faramir numa voz suave —, gostaria de ter sabido a sua opinião antes que o fardo de uma decisão tão dificil fosse jogado em minhas costas.
— E isso faria com que você alterasse a sua decisão? – disse Denethor.
— Você teria agido da mesma forma, julgo eu. Conheço-o bem. Seu desejo é parecer sempre nobre e generoso como um rei de antigamente, bondoso, gentil. Essas qualidades servem para alguém de sangue nobre, se essa pessoa detiver o poder em tempos de paz. Mas nas horas de desespero a recompensa pela gentileza pode ser a morte.
— Então, que assim seja! — disse Faramir.
— Que assim seja! — gritou Denethor. — Mas não se trata apenas da sua morte, Senhor Faramir: também da morte de seu pai, e de todo o seu povo, que você deve proteger agora que Boromir partiu.
— Gostaria então — disse Faramir — que nossos lugares tivessem sido trocados?
— Sim, realmente gostaria — disse Denethor. — Pois Boromir era fiel a mim, e não era pupilo de nenhum mago. Teria pensado na necessidade de seu pai, e não teria jogado fora o que lhe fosse oferecido pela sorte. Ele me teria trazido um presente valioso.
Por um momento, Faramir perdeu o controle.
— Eu lhe pediria, meu pai, que se lembrasse do motivo pelo qual eu, e não ele, estava em Ithilien. Pelo menos em uma ocasião o seu desejo prevaleceu, não muito tempo atrás. Foi o Senhor da Cidade que lhe designou a missão.
— Não remexa o amargor da taça que preparei para mim mesmo — disse Denethor. — Já não o provei por muitas noites em minha boca, pressentindo que um sabor ainda pior estava no fundo? Como realmente percebo agora. Gostaria que não tivesse sido assim! Gostaria que aquela coisa tivesse chegado até mim!
— Console-se! — disse Gandalf. — Não havia nenhuma possibilidade de Boromir trazê-la até você. Ele está morto, e morreu de forma nobre; que possa agora descansar em paz! Mas você se engana. Ele teria estendido a mão para essa coisa, e ao tomá-la teria sucumbido. Guardá-la-ia para si mesmo, e retornando não seria reconhecido por seu pai.
O rosto de Denethor se fechou, ficando duro e frio. – Na sua opinião Boromir era menos maleável em suas mãos, não é verdade? — disse ele em voz baixa.
— Mas eu, que era seu pai, digo que ele me teria trazido a coisa. Você talvez seja sábio, Mithrandir, e apesar disso, com todas as sutilezas, você não detém toda a sabedoria. Pode haver planos que não sejam nem as teias dos magos nem a pressa dos tolos. Nesse assunto, tenho mais conhecimento e sabedoria do que você supõe.
— Qual é então a sua sabedoria? — perguntou Gandalf.
— A suficiente para perceber que há duas loucuras que se devem evitar. Usar essa coisa é perigoso. Nesta hora, enviá-la nas mãos de um Pequeno desmiolado para dentro da terra do próprio Inimigo, como você fez, e também este meu filho, isso é sandice.
— E o Senhor Denethor, que teria ele feito?
— Nenhuma das duas coisas. Mas, com toda certeza, por argumento algum teria ele colocado essa coisa num perigo que elimina as esperanças de qualquer um, a não ser que se trate de um tolo, arriscando nossa completa ruína, no caso de o Inimigo recuperar o que perdeu. Não, ela deveria ter sido guardada, escondida, muito bem escondida. Não usada, eu lhe digo, exceto numa extrema necessidade, mas colocada fora do alcance dele, a não ser que ocorresse uma vitória tão decisiva que o que acontecesse depois não nos incomodasse, pois estaríamos mortos.
— Você está pensando, meu senhor, como é seu costume, apenas em Gondor — disse Gandalf. — Apesar disso há outros homens e outras vidas, e outro tempo ainda por vir. E, quanto a mim, condôo-me até dos escravos dele.
— E onde os outros homens poderão buscar socorro, se Gondor cair? — respondeu Denethor. — Se eu tivesse essa coisa agora, nas profundas galerias desta cidadela, não estaríamos tremendo de medo sob esta escuridão, temendo o pior, e nossos planos não estariam sendo ameaçados. Se não confia que eu resista ao teste, você ainda não me conhece.
— Não obstante, não confio em você — disse Gandalf. – Se confiasse, poderia tê-la enviado para cá, a fim de que você a guardasse, poupando-me a mim e a muitos outros de uma grande carga de angústia. E agora, ouvindo-o falar, confiou menos ainda em você, não mais do que confiava em Boromir. Não, contenha sua ira! Não confio nem em mim mesmo nesse assunto, e recusei a coisa, mesmo quando me foi oferecida como um presente. Você é forte e ainda pode se controlar em alguns pontos, Denethor, mas, se tivesse recebido essa coisa, ela o teria derrotado. Se fosse enterrada embaixo das raízes do Mindolluin, ainda assim ela iria continuar queimando sua mente, enquanto cresce a escuridão, e sobrevém coisas ainda piores, que logo nos surpreenderão.
Por um momento, os olhos de Denethor voltaram a brilhar quando se fixaram em Gandalf, e Pippin sentiu mais uma vez a tensão entre as disposições de ambos; mas agora quase parecia que os olhares dos dois eram como lâminas de olho a olho, faiscando à medida que se digladiavam. Pippin tremeu, temendo algum golpe terrível.
Mas de repente Denethor relaxou e ficou frio de novo. Encolheu os ombros.
— Se eu tivesse! Se você tivesse! — disse ele. – Essas palavras e esses "sês" são inúteis. A coisa foi para dentro da Sombra, e agora apenas o tempo mostrará que destino está sendo reservado para ela e para nós. Não demorará muito. No tempo que ainda nos resta, que todos os que lutam contra o Inimigo á sua maneira fiquem unidos, e que mantenham a esperança enquanto puderem, e depois da esperança ainda a coragem de morrer em liberdade. — Voltou-se para Faramir. — O que você acha da guarnição em Osgiliath?
— Não é forte — disse Faramir. — Enviei a companhia de Ithilien para fortalecê-la, como já disse.
— Não será suficiente, julgo eu — disse Denethor. — É lá que será desferido o primeiro golpe. Eles precisarão de algum capitão forte ali.
— Ali e em muitos outros lugares — disse Faramir, suspirando. — Lamento por meu irmão, a quem eu também amava! — Levantou-se. – Permita que eu me vá, pai?— E então curvou-se e debruçou-se sobre a cadeira de Denethor.
— Vejo que está cansado — disse este. — Cavalgou um longo caminho com grande rapidez, e sob sombras do mal no ar, pelo que soube.
— Não vamos falar disso! — disse Faramir.
— Então não falemos — disse Denethor. — Vá e descanse como puder. O dever de amanhã será mais duro.
Todos deixaram então o Senhor da Cidade e foram descansar enquanto ainda podiam. Do lado de fora havia uma escuridão sem estrelas quando Gandalf, com Pippin ao seu lado levando uma pequena tocha, dirigiu-se para o seu alojamento.
Não disseram nada até estarem a portas fechadas. Então, finalmente, Pippin tomou a mão de Gandalf.
— Diga-me — disse ele —, há alguma esperança? Quero dizer, para Frodo; ou pelo menos sobretudo para Frodo?
Gandalf colocou a mão sobre a cabeça de Pippin. — Nunca houve muita esperança — disse ele. — só houve a esperança de um tolo, como me disseram. E quando ouvi sobre Cirith Ungol... — Parou de falar e dirigiu-se para a janela, como se seus olhos pudessem penetrar a noite no leste. — Cirith Ungol! — murmurou ele. -
Por que por ali, eu me pergunto? — Voltou-se. — Agora há pouco, Pippin, meu coração quase parou, quando ouvi esse nome. E apesar disso, na verdade, acredito que a notícia de Faramir traz alguma esperança. Pois parece claro que nosso Inimigo finalmente começou sua guerra, fazendo o primeiro movimento enquanto Frodo ainda estava livre. Então agora, por muitos dias, ele ficará com o olho voltado para um lado ou para o outro, sem fixar seus próprios domínios. E, contudo, Pippin, já sinto, a distância, seu medo e sua pressa. Ele começou mais cedo do que pretendia. Aconteceu alguma coisa que o incitou.
Gandalf parou por um momento, pensando.
— Talvez — murmurou ele. — Talvez até mesmo a sua tolice tenha ajudado, meu rapaz. Deixe-me ver: agora deve fazer uns cinco dias que ele descobriu que derrotamos Saruman e pegamos a Pedra. E o que se pode presumir disso? Não poderíamos usa-la para muitas coisas, ou sem que ele soubesse. Ah! Eu fico pensando. Aragorn? A hora dele se aproxima. E no fundo ele é forte e resoluto, Pippin: corajoso, determinado, capaz de fazer seus próprios planos e se expor a grandes riscos se for necessário. É possível. Ele pode ter usado a Pedra mostrando-se para o Inimigo, exatamente com o propósito de desafiá-lo. Fico pensando. Bem, não saberemos a resposta até que os Cavaleiros de Rohan cheguem, se eles não chegarem tarde demais. Os dias à nossa frente serão malignos. Vamos dormir, enquanto podemos!
— Mas — disse Pippin.
— Mas o quê? — disse Gandalf. — Só permitirei um único mas esta noite.
— Gollum — disse Pippin. — Como é que eles poderiam estar andando com ele, até mesmo seguindo-o? E pude perceber que Faramir não gostou mais do que você do lugar para o qual ele os estava levando. Qual é o problema?
— Não posso responder isso agora — disse Gandalf. – Mesmo assim, meu coração de alguma forma sabia que Frodo e Gollum iriam se encontrar antes do fim. Para o bem ou para o mal. Mas sobre Cirith Ungol não falarei esta noite. Traição, é a traição que receio; traição daquela criatura miserável. Mas precisava ser assim. Vamos nos lembrar de que um traidor pode trair-se a si mesmo e fazer o bem que não pretende. Pode ser assim, algumas vezes. Boa noite!
O dia seguinte chegou com uma manhã que se assemelhava a um crepúsculo escuro, e os corações dos homens, por um período mais leves com a chegada de Faramir, ficaram pesados de novo. As Sombras aladas não foram vistas de novo naquele dia, mas de vez em quando, bem acima da cidade, um grito fraco chegava, muitos que ouviam ficavam paralisados com um terror passageiro, enquanto os menos corajosos estremeciam e choravam.
E agora Faramir partira outra vez.
— Eles não lhe dão descanso — murmuravam alguns. — O Senhor é muito duro com o filho, e agora ele deve fazer o serviço de dois, por ele e pelo outro que não retornará — E a todo momento os homens olhavam para o norte, perguntando-se: — Onde estão os Cavaleiros de Rohan?
Era verdade que Faramir não partira por opção própria. Mas o Senhor da Cidade era o mestre do Conselho, e não estava disposto naquele dia a se curvar às opiniões dos outros. Cedo naquela manhã o Conselho fora convocado. Lá todos os capitães julgaram que, por causa da ameaça no sul, o exército que tinham era fraco demais para desferir por sua própria iniciativa qualquer golpe de guerra, a não ser talvez que os Cavaleiros de Rohan chegassem. Enquanto isso, deveriam guarnecer as muralhas com soldados e esperar.
— Contudo — disse Denethor —, não devemos abandonar facilmente as defesas externas, a Rammas construída com tanto trabalho. E o Inimigo devera pagar caro por atravessar o Rio. Isso ele não pode fazer, com força suficiente para tomar de assalto a Cidade, nem pelo norte de Cair Andros, por causa dos pântanos, nem pelo sul na direção de Lebennin, por causa da amplitude do Rio, que exige muitos barcos. É em Osgiliath que vai concentrar seu peso, como antes, quando Boromir não permitiu que ele passasse.
— Foi apenas uma tentativa — disse Faramir. — Hoje podemos fazer com que o Inimigo nos pague dez vezes pelo nosso prejuízo na passagem e mesmo assim lamentar a troca. Pois ele pode se permitir perder um exército com mais tranquilidade do que nós podemos perder uma companhia. E a retirada daqueles que colocamos espalhados nos campos será perigosa, se ele conseguir atravessar com toda a força.
— E Cair Andros? — disse o Príncipe. — Ela também deve ter proteção, se Osgiliath for defendida. Não vamos nos esquecer do perigo á nossa esquerda. Pode ser que os rohirrim venham, e pode ser que não. Mas Faramir nos falou de um grande exército que saiu do Portão Negro e que se aproxima cada vez mais. Mais de um exército pode sair por ali, e atacar muito mais que uma passagem.
— Na guerra é preciso arriscar muita coisa — disse Denethor. — Cair Andros está guarnecida, e não podemos enviar mais homens para lá por enquanto. Mas não entregarei o Rio e o Pelennor sem lutar — não se houver aqui um capitão ainda com coragem de fazer a vontade de seu senhor.
Todos ficaram em silêncio, mas finalmente Faramir disse:
— Não me oponho à sua vontade, pai. Uma vez que Boromir lhe foi roubado, farei o que puder no lugar dele — se o senhor assim ordenar.
— Assim ordeno — disse Denethor.
— Então adeus — disse Faramir. — Mas, se eu retornar, faça melhor juízo de mim.
— Isso depende de como você retornar — disse Denethor.
Foi Gandalf quem por último falou com Faramir antes que este partisse para o leste.
— Não jogue fora sua vida temerariamente ou movido pela mágoa – disse ele. — Você será necessário aqui, para outras coisas além da guerra. Seu pai O ama, Faramir, e vai se lembrar disso antes do fim. Adeus!
Então agora o Senhor Faramir partira novamente, levando consigo um grupo de homens voluntários ou disponíveis. Nas muralhas alguns observavam através da escuridão, com os olhos voltados para a cidade arruinada, e ficavam imaginando o que estaria acontecendo lá, pois não se enxergava nada. E outros, como sempre, olhavam para o norte e contavam as léguas que Théoden de Rohan deveria percorrer.
— Será que virá? Será que vai se lembrar de nossa velha aliança? — perguntavam-se eles.
— Sim, ele virá — dizia Gandalf —, mesmo que chegue tarde demais. Mas pensem! Na melhor das hipóteses, a Flecha Vermelha não pode ter chegado até ele há mais de dois dias, e são longas as milhas desde Edoras.
Já era noite quando a notícia chegou. Um homem veio dos vaus cavalgando depressa, dizendo que um exército tinha saído de Minas Morgul e já estava se aproximando de Osgiliath; a ele tinham-se juntado regimentos vindos do sul, os haradrim, homens cruéis e altos. — E ficamos sabendo — disse o mensageiro — que o Capitão Negro os lidera novamente, e o seu terror o antecede através do Rio.
Com essas palavras de mau agouro terminava o terceiro dia desde que Pippin chegara a Minas Tirith. Poucos foram descansar, pois pequena era a esperança de que até mesmo Faramir pudesse resistir nos vaus por muito tempo.
O dia seguinte, embora a escuridão já tivesse atingido seu auge e não pudesse ficar mais densa, pesou mais no coração dos homens, tomados de grande terror. Más noticias logo tornaram a chegar. A passagem do Anduin fora conquistada pelo Inimigo. Faramir estava se retirando para a muralha do Pelennor, reagrupando seus homens nos Fortes do Passadiço, mas sua tropa era dez vezes menor que a do Inimigo.
— Se ele conseguir voltar através do Pelennor, os inimigos estarão nos seus calcanhares — disse o mensageiro. — Eles pagaram caro por terem atravessado, mas menos caro do que imaginávamos. O plano foi bem feito. Agora vemos que, em segredo, eles há muito tempo vêm construindo balsas e barcaças em Osgiliath Oriental.
Atravessaram como um enxame de besouros. Mas é o Capitão Negro quem nos derrota. Poucos suportam e resistem até mesmo ao rumor de sua chegada. Seu próprio povo estremesse diante dele, e se mataria se ele ordenasse.
— Então precisam mais de mim lá do que aqui – disse Gandalf, partindo imediatamente, e seu brilho logo desapareceu de vista.
E por toda aquela noite Pippin, solitário e insone, ficou na muralha, olhando para o leste.
Os sinos do dia mal tinham soado de novo, um arremedo na escuridão iniluminada, quando na distância ele viu chamas se arremessando nos ares, ao longe nos espaços escuros onde ficavam as muralhas do Pelennor. Os vigias gritaram, e todos os homens da cidade prepararam suas armas. Agora, com frequência, via-se um clarão vermelho, e em seguida através do ar pesado ouviam-se estrondos surdos.
— Tomaram a muralha! — gritavam os homens. — Estão abrindo fendas. Eles estão chegando.
— Onde está Faramir? — gritou Beregond desesperado. – Não me digam que ele tombou!
Foi Gandalf quem trouxe as primeiras noticias. Com um punhado de cavaleiros ele chegou no meio da manhã, escoltando uma fileira de carroças. Estavam cheias de homens feridos, e de tudo o que pudera ser salvo dos escombros os Fortes do Passadiço. Dirigiu-se imediatamente a Denethor. O Senhor da Cidade estava sentado num alto aposento acima do Salão da Torre Branca com Pippin ao seu lado; através das janelas sombrias, ao norte, ao sul e ao leste, ele fixava os olhos escuros, como se tentasse penetrar as sombras da destruição que o circundavam.
Olhava com mais insistência para o norte, e de vez em quando parava para escutar, como se por alguma arte antiga seus ouvidos pudessem ouvir o trovão de cascos sobre as planícies distantes.
— Faramir chegou? perguntou ele.
— Não — disse Gandalf — Mas ainda estava vivo quando o deixei. Contudo está resolvido a ficar na retaguarda, para evitar que a retirada através do Pelennor se transforme numa fuga desordenada. Talvez consiga manter seus homens reunidos pelo tempo necessário, mas eu duvido. Está encurralado por um inimigo poderoso demais. Pois chegou quem eu temia.
— Não... o Senhor do Escuro? — exclamou Pippin, esquecendo sua posição devido ao pavor.
Denethor riu de um modo amargo.
— Não, ainda não, Mestre Peregrin! Ele não virá, a não ser para triunfar sobre mim quando tudo estiver perdido. Ele usa outros como suas armas. Assim fazem os grandes senhores, se forem sábios, Mestre Pequeno. Ou por que motivo estaria eu aqui, sentado em minha torre e pensando, assistindo, esperando, pondo em risco até mesmo meus filhos? Pois ainda consigo brandir uma arma.
Levantou-se e abriu sua longa capa negra. Surpreendentemente, vestia uma cota de malha por baixo, e no cinto trazia uma longa espada, com grande punho, numa bainha negra e prateada.
— Assim sempre andei, e assim agora por muitos anos tenho dormido — disse ele —, para evitar que meu corpo fique fraco e amedrontado.
— Mesmo assim, o mais cruel de todos os capitães do senhor de Barad-dûr já é dono de suas muralhas externas — disse Gandalf — Rei de Angmar de outrora, Feiticeiro, Espectro do Anel, Senhor dos Nazgúl, uma lança de terror na mão de Sauron, sombra de desespero.
— Então, Mithrandir, você teve um inimigo à sua altura disse Denethor. — Quanto a mim, sei há muito tempo quem é o principal capitão dos exércitos da Torre Escura. Foi só para dizer isso que você retornou? Ou será que se retirou por estar em desvantagem?
Pippin estremeceu, temendo que Gandalf fosse tomado de uma ira repentina, mas seu medo foi infundado.
— Pode ter sido isso – respondeu Gandalf numa voz suave. — Mas nosso teste de forças ainda não começou. E, se palavras pronunciadas antigamente forem verdadeiras, ele não deverá cair pela mão do homem, e o destino que o aguarda é desconhecido dos Sábios. Seja como for, o Capitão do Desespero não está avançando, ainda. Ele governa bem de acordo com as regras que você acabou de mencionar, na retaguarda, empurrando antes para a frente seus escravos alucinados.
— Não, eu vim mais para proteger os homens feridos que ainda podem ser curados; pois a Rammas está grandemente destruída, e logo o exército de Morgul entrará por vários pontos. E vim principalmente para dizer isto: logo haverá uma batalha nos campos. É preciso preparar uma surtida. Que seja de homens montados. Neles repousa nossa pequena esperança, pois em uma coisa apenas o inimigo ainda está mal equipado: tem poucos cavaleiros.
— E nós também temos poucos. Agora seria o momento exato de os Cavaleiros de Rohan chegarem — disse Denethor.
— É provável que vejamos outros chegando primeiro – disse Gandalf, fugitivos de Cair Andros já nos alcançaram. A ilha caiu. Um outro exército saiu pelo Portão Negro, atravessando pelo nordeste.
Alguns o acusaram, Mithrandir, de se deliciar em trazer más noticias — disse Denethor —, mas para mim isso já não é mais novidade: eu sabia disso antes do cair da noite de ontem. E, quanto à surtida, já pensei nesse assunto. Vamos descer.
O tempo passou. Por fim as sentinelas nas muralhas conseguiram ver a retirada das companhias avançadas. Pequenos grupos de homens cansados e frequentemente feridos chegaram primeiro com pouca ordem; alguns corria alucinados, como se estivessem sendo perseguidos. Na distância ao leste fogueiras longínquas bruxuleavam, e agora parecia que em alguns pontos elas rastejavam através da planície. Casas e celeiros estavam em chamas. Então, de vários pontos, pequenos rios de fogo rubro vieram correndo, ziguezagueando através da escuridão, convergindo na direção da linha da larga estrada que conduzia do portão à Cidade de Osgiliath.
— O inimigo — murmuravam os homens. -A barreira caiu. Lá vêm eles aos borbotões através das brechas! E parece que estão carregando tochas. Onde está o nosso pessoal?
Começava a noite, e a luz estava tão fraca que mesmo os homens de visão penetrante da Cidadela mal conseguiam discernir as formas nos campos, a não ser apenas os incêndios que cada vez mais se multiplicavam, e as linhas de fogo que cresciam em tamanho e velocidade. Finalmente, a menos de uma milha da Cidade, um grupo de homens mais bem ordenado apareceu, marchando sem correr, ainda se mantendo unido.
As sentinelas prenderam a respiração.
— Faramir deve estar lá — diziam elas. — Ele consegue dominar homens e animais. Conseguirá chegar até aqui.
Agora a retirada principal estava a menos de quatrocentos metros de distância. Surgindo do fundo da escuridão galopava uma pequena companhia de cavaleiros, tudo o que restava da retaguarda. Mais uma vez se viraram acuados, enfrentando as linhas de fogo que avançavam. Então, de repente, houve um tumulto de gritos ferozes. Cavaleiros inimigos foram chegando e varrendo tudo. As linhas de fogo transformaram-se em rios flamejantes: fileira após fileira de orcs carregando tochas, e sulistas bárbaros com bandeiras vermelhas, gritando em línguas rudes, avançando numa onda, alcançando os soldados em retirada. E, com um grito cortante, da escuridão do céu negro caíram as sombras aladas, os nazgúl mergulhando para a matança.
A retirada se transformou numa debandada. Os homens já se dispersavam, fugindo alucinados, feito malucos, para todos os lados, jogando fora suas armas, gritando de medo, tombando ao chão.
Nesse momento uma trombeta soou na Cidadela, e Denethor finalmente liberou a surtida. Reunidos á sombra do Portão, e sob as muralhas que se erguiam do lado de fora, eles estiveram aguardando um sinal dele: todos os homens com montarias que haviam permanecido na Cidade. Agora saltavam á frente, em forma, num galope rápido, atacando com grande alarido. E das muralhas um grito veio em resposta, pois à frente de todos os demais apareciam os cavaleiros do cisne de Doí Amroth, encabeçados por seu Príncipe com insígnia azul.
— Amroth por Gondor! — gritavam eles. — Amroth por Faramir!
Como trovões eles caíram sobre o inimigo nos dois flancos da retirada; um cavaleiro disparou á frente, veloz como o vento sobre a relva; Scadufax o levava, brilhante, mais uma vez revelado, com uma luz emanando de sua mão erguida.
Os nazgúl soltaram um guincho e fugiram, pois seu Capitão ainda não estava pronto para desafiar o fogo branco de seu oponente. Os exércitos de Morgul, concentrados em sua presa, pegos desprevenidos numa carreira desabalada, dispersaram-se e se espalharam como faiscas ao vento. As companhias avançadas, com grande disposição, viraram-se e atacaram seus perseguidores. Caçadores se transformaram em caça. A retirada virou um assalto. Orcs e homens caídos cobriram o campo, e um cheiro forte subiu das tochas lançadas ao chão, crepitando e se extinguindo numa fumaça espiralada. A cavalaria avançava.
Mas Denethor não permitiu que fossem longe. Embora o inimigo estivesse sob controle e por enquanto rechaçado, grandes exércitos chegavam do leste. Mais uma vez soou a trombeta, ordenando a retirada. A cavalaria de Gondor parou.
Atrás de sua proteção, as companhias avançadas reorganizaram suas fileiras. Agora retornavam, marchando compassadamente. Atingiram o Portão da Cidade e entraram, num passo imponente; e também com imponência o povo da Cidade olhava para eles e gritava-lhes elogios, mas mesmo assim tinham os corações perturbados. Pois as companhias estavam lamentavelmente reduzidas. Faramir perdera um terço de seus homens. E onde estava ele?
Chegou por último. Seus homens entraram. Os cavaleiros montados retornaram, na retaguarda a bandeira de Doí Amroth e o Príncipe. E em seus braços, em seu cavalo, carregava o corpo de seu parente, Faramir, filho de Denethor, encontrado no campo de batalha.
— Faramir! Faramir! — gritaram os homens, chorando nas ruas. Mas ele não respondia, e foi levado pela estrada sinuosa até a Cidadela e à presença do pai.
No momento em que os nazgúl desviaram do ataque do Cavaleiro Branco, uma seta mortal veio voando e Faramir, que estivera impedindo o avanço de um campeão montado de Harad, tombou no chão. Apenas o ataque de Doí Amroth pudera salvá-lo das espadas rubras do sul, que o teriam golpeado ali no chão.
O Príncipe Imrahil levou Faramir para a Torre Branca, e disse:
— Seu filho retornou, senhor, depois de grandes feitos — e então fez um relato de tudo o que vira.
Denethor se levantou e olhou no rosto do filho, sem dizer nada. Depois ordenou que arrumassem uma cama no aposento para Faramir e saíssem. Mas ele mesmo subiu até a sala secreta no topo da torre; muitos que olhavam lá para cima naquela hora viram uma luz pálida que tremeluziu e faiscou nas janelas estreitas por algum tempo, e depois piscou e se extinguiu. E, quando Denethor novamente desceu, foi até Faramir e sentou-se ao seu lado sem dizer palavra; mas o rosto do Senhor estava cinzento, mais cadavérico que o do filho.
Então agora, finalmente, a Cidade estava cercada, fechada num circulo de adversários. A Rammas fora derrubada, e todo o Pelennor estava abandonado ao Inimigo.
A última palavra que veio de fora das muralhas foi trazida por homens fugindo pela estrada norte antes que o Portão se fechasse. Eram remanescentes da guarda que fora mantida no ponto onde o caminho de Anórien e Rohan entrava nos povoados. Ingold os conduzia, o mesmo que havia admitido Gandalf e Pippin menos de cinco dias antes, quando o sol ainda surgia e a manhã trazia esperanças.
— Não há noticia dos rohirrim — disse ele. — Rohan não virá agora. Ou, se vier, isso não nos servirá de nada. O novo exército do qual tivemos notícias chegou primeiro, vindo do outro lado do rio passando por Andros, ouvi dizer. São fortes: batalhões de orcs do Olho, e incontáveis companhias de homens de um outro tipo que nunca vimos antes. Não são altos, mas corpulentos e sisudos, Barbados como os anões, brandindo grandes machados. Achamos que eles vêm de alguma região selvagem do amplo leste. Tomaram a estrada do norte, e muitos avançaram até Anórien. Os rohirrim estão impossibilitados de chegar.
O Portão foi fechado. Durante toda a noite, vigias nas muralhas ouviram os rumores dos inimigos que perambulavam do lado de fora, queimando árvores e campos, apunhalando qualquer homem que encontrassem, vivo ou morto. Não se podia adivinhar quantos tinham atravessado o rio no escuro, mas quando a manhã, ou sua sombra embaçada, avançou furtivamente sobre a planície, percebeu-se que o medo noturno não superestimara o número. A planície estava escurecida pelas suas companhias marchando, e até onde a vista alcançava surgiam, como florescências nojentas de fungos, por toda a volta da cidade sitiada, grandes acampamentos de tendas negras ou de um vermelho sombrio.
Diligentes feito formigas, orcs apressados cavavam, cavavam longas trincheiras fundas num enorme círculo, fora do alcance de flechas que partissem das muralhas; e assim que cada trincheira ia sendo terminada, enchiam-na de fogo, embora não se pudesse ver como o alimentavam ou acendiam, se por arte ou feitiçaria. Durante todo o dia o trabalho continuou, enquanto os homens de Minas Tirith assistiam, sem poder impedi-lo. E, á medida que cada metro de trincheira se completava, eles divisavam grandes carroças se aproximando; logo, mais companhias do inimigo, cada uma protegida por uma trincheira, instalavam rapidamente grandes máquinas para o lançamento de projéteis. Não havia nas muralhas da Cidade nenhum mecanismo grande o suficiente para alcançar tão longe ou impedir o trabalho.
No início os homens riram e não temeram aqueles instrumentos. Pois a muralha principal da cidade era extremamente alta e de uma espessura impressionante, e fora construída antes que o poder e o oficio de Númenor declinassem no exílio; sua face externa era semelhante á da Torre de Orthanc, rígida, escura e lisa, imune a fogo ou aço, indestrutível, exceto por alguma convulsão que lacerasse o próprio solo no qual ela se erguia.
— Não — diziam eles —, nem que o próprio Inominado atacasse; nem mesmo ele conseguirá entrar aqui enquanto ainda estivermos vivos. – Mas alguns respondiam:
— Enquanto ainda estivermos vivos? Por quanto tempo? Ele tem uma arma que já pôs por terra muitas fortalezas desde o inicio do mundo. A fome. As estradas estão bloqueadas. Rohan não chegará.
Mas as máquinas não desperdiçaram tiros contra a parede indômita. Não era qualquer salteador ou chefe orc que iria ordenar o assalto sobre o maior inimigo do Senhor de Mordor. Dirigiam-no uma força e uma mente de malícia. Assim que as grandes catapultas foram montadas, em meio a muitos gritos e ao rangido de cordas e manivelas, elas começaram a arremessar projéteis a uma altura impressionante, de modo que passavam bem acima do parapeito e caíam com um baque surdo dentro do primeiro círculo da Cidade; muitos deles, por alguma arte secreta, explodiam em chamas enquanto caiam.
Logo já havia grande perigo de incêndio atrás da muralha, e todos os que estavam disponíveis se ocupavam em dominar as chamas que se deflagravam em vários pontos. Então, em meio aos golpes mais poderosos, veio uma outra saraivada, menos destruidora e no entanto mais horrível. Por todas as ruas e alamedas atrás do Portão caíam pequenos projéteis redondos que não explodiam. Mas, quando os homens corriam para saber o que poderia ser aquilo, soltavam gritos ou choravam. O Inimigo estava arremessando para dentro da Cidade todas as cabeças daqueles que tinham caído na luta em Osgiliath, ou na Rammas, ou nos campos. Eram horripilantes de se olhar, pois, embora algumas estivessem esmagadas e disformes, e algumas tivessem sido cruelmente estraçalhadas, muitas ainda conservavam seus traços, indicando que aqueles homens tinham morrido em sofrimento; todas estavam marcadas com o símbolo maligno do Olho sem Pálpebra. Mesmo desfiguradas e aviltadas como estavam, freqüentemente era possível que daquela forma um homem revisse o rosto de alguém que conhecera, que já andara armado e orgulhoso, ou cultivara os campos ou, vindo dos verdes vales das colinas, cavalgara para lá num dia de folga.
Em vão os homens mostravam os punhos para os impiedosos inimigos que se aglomeravam diante do Portão. Não se importavam com pragas, e nem entendiam as línguas dos homens do oeste, pois gritavam com vozes roucas como animais e aves de rapina. Mas logo restavam poucos em Minas Tirith com coragem suficiente para se erguer e desafiar os exércitos de Mordor. Pois o Senhor da Torre Escura tinha ainda uma outra arma, mais rápida que a fome, o medo e o desespero.
Os nazgúl vieram de novo, e, agora que o Senhor do Escuro crescia e exibia sua força, da mesma forma as vozes deles, que expressavam apenas a sua vontade e malícia, se encheram de maldade e horror. Faziam círculos acima da Cidade, como abutres que aguardam sua parcela de carne humana destinada a morrer. Voavam fora do alcance da vista ou de algum tiro, e mesmo assim estavam sempre presentes, e suas vozes mortais rasgavam o ar. Ao invés de diminuírem, a cada grito iam ficando mais insuportáveis. Por fim até mesmo os mais corajosos se jogavam no chão quando a ameaça oculta passava sobre suas cabeças, ou então ficavam de pé, deixando cair as armas das mãos paralisadas, enquanto suas mentes eram invadidas por um negror total, e eles não pensavam mais na guerra, mas só em se esconder e rastejar, e morrer.
Durante todo aquele dia negro, Faramir ficou em sua cama, no aposento da Torre Branca, delirando numa febre desesperada, morrendo, disse alguém, e logo "morrendo" diziam todos os homens nas muralhas e nas ruas. E ao seu lado sentava-se seu pai, não dizendo nada, mas observando sem dar qualquer atenção á defesa.
Pippin nunca conhecera horas tão escuras, nem mesmo quando estivera nas garras dos Uruk-hai. Seu dever era permanecer ao lado do Senhor, e foi isso o que fez, aparentemente esquecido, em pé junto á porta do quarto escuro, dominando os próprios medos da melhor maneira possível. E enquanto observava teve a impressão de que Denethor envelhecia diante de seus olhos, como se algo tivesse arrebentado em sua altiva obstinação, derrotando sua vontade inflexível. Talvez a tristeza tivesse feito aquilo, e o remorso. Naquele rosto outrora empedernido, Pippin enxergava lágrimas, mais insuportáveis que a ira.
— Não chore, meu senhor — gaguejou ele. — Talvez ele melhore. O senhor solicitou a presença de Gandalf?
— Não me console com magos! — disse Denethor. -A esperança do tolo fracassou. O Inimigo descobriu isso, e agora seu poder aumenta; ele enxerga nossos próprios pensamentos, e tudo o que fizermos será desastroso.
— Enviei meu filho, sem meus agradecimentos, sem minha bênção, em direção a um perigo desnecessário, e aqui jaz ele, com veneno nas veias. Não, não, o que quer que aconteça agora na guerra, também minha linhagem está se extinguindo, até mesmo a Casa dos Regentes fracassou. Pessoas mesquinhas deverão governar os últimos remanescentes dos Reis dos Homens, escondendo-se nas colinas até que sejam todos caçados.
Homens vieram á porta bradando pelo Senhor da Cidade.
— Não, não descerei — disse ele. — Preciso ficar ao lado de meu filho. Pode ser que ele ainda fale antes do fim. Mas o fim está perto. Sigam quem quiserem, até mesmo o Tolo Cinzento, embora a esperança dele tenha fracassado. Ficarei aqui
Foi assim que Gandalf tomou para si o comando da última defesa da
Cidade de Gondor. Aonde quer que fosse, fazia com que os corações dos homens ficassem de novo mais leves, e as sombras aladas desaparecessem da lembrança. Passava incansável da Cidadela para o Portão, do norte para o sul em torno da muralha; com ele ia o Príncipe de Doí Amroth em sua cota metálica brilhante. Pois ele e seus cavaleiros ainda se comportavam como senhores nos quais a raça de Númenor se mantinha integra. Os homens que os viam sussurravam, dizendo: — É possível que velhas histórias falem a verdade; há sangue élfico nas veias dessa gente, pois o povo de Nimrodel certa vez morou naquela terra, há muito tempo. — E então alguém cantava em meio á escuridão alguns versos da Balada de Nimrodel, ou outras canções do Vale do Anduin, vindas de tempos imemoriais.
E apesar disso, quando os dois se iam, as sombras se fechavam sobre os homens de novo, e seus corações ficavam frios, e a bravura de Gondor se acabava em cinzas. E assim, lentamente, eles passavam de um dia sombrio de temores para a escuridão de uma noite desesperada. Fogueiras agora devastavam sem qualquer resistência o primeiro circulo da Cidade, e a guarnição sobre a muralha externa já estava em vários pontos impedida de bater em retirada. Os leais que lá permaneciam em seus postos eram poucos; a maioria tinha fugido para além do segundo portão.
Muito atrás da batalha, uma ponte fora construída rapidamente sobre o Rio, e durante todo o dia mais homens e equipamentos de guerra tinham feito a travessia aos borbotões. Por fim agora, no meio da noite, o ataque fora liberado. A vanguarda atravessou as trincheiras de fogo por várias trilhas sinuosas que haviam sido deixadas entre elas. Avançavam, sem se preocuparem com suas perdas á medida que se aproximavam, ainda reunidos em grupos, ao alcance dos arqueiros nas muralhas.
Mas agora, na realidade, restavam ali muito poucos para que o prejuízo fosse grande, embora a luz das fogueiras expusesse muitos alvos para os arqueiros de cuja habilidade Gondor outrora se gabara. Então, percebendo que a coragem da Cidade já estava derrotada, o Capitão oculto exibiu sua força. Lentamente as grandes torres de sítio construídas em Osgiliath foram rolando para a frente através da escuridão.
Mensageiros foram outra vez até o aposento da Torre Branca, e Pippin os deixou entrar, pois eles insistiram. Denethor desviou lentamente a cabeça do rosto de Faramir, e olhou para eles em silêncio.
— O primeiro círculo da Cidade está em chamas, senhor — disseram eles. — Quais são as suas ordens? Ainda é o Senhor e o Regente. Nem todos estão dispostos a seguir Mithrandir. Os homens estão fugindo das muralhas, deixando-as desguarnecidas.
— Por quê? Por que fogem os tolos? — disse Denethor. – É melhor ser queimado mais cedo que mais tarde, pois esse será nosso fim. Voltem para a sua fogueira! E eu? Irei agora para a minha pira. Para a minha pira. Nada de túmulo para Denethor e Faramír. Nada disso! Nada de longos sonos de morte embalsamada. Vamos arder como arderam os reis bárbaros antes que qualquer navio tivesse vindo do oeste para cá. O Ocidente fracassou. Voltem e queimem!
Os mensageiros, sem reverência ou resposta, viraram-se e saíram correndo.
Nesse momento Denethor se levantou, soltando a mão febril de
Faramir que estivera segurando.
— Ele está queimando, já está queimando — disse ele com tristeza. — A casa de seu espírito está desmoronando. — Então, andando suavemente na direção de Pippin, desceu os olhos até ele.
— Adeus! — disse ele. -Adeus, Peregrin, filho de Paladin! Seu serviço foi curto, e agora está chegando ao fim. Eu o dispenso do pouco que resta. Vá agora, e morra da maneira que lhe pareça melhor. E com quem desejar, até mesmo aquele amigo cuja loucura o trouxe para esta morte. Mande chamar meus serviçais, e depois vá. Adeus!
— Não direi adeus, meu senhor — disse Pippin, ajoelhando-se. E então, de repente, mais uma vez á maneira dos hobbits, levantou-se e olhou nos olhos do velho.
— Vou deixá-lo, senhor — disse ele —; pois realmente desejo muito ver Gandalf. Mas ele não é um tolo, e eu não vou pensar em morrer ate que ele perca as esperanças na vida. Mas de minha palavra e de seu serviço não quero ser dispensado enquanto o senhor viver. E, se finalmente eles chegarem á Cidadela, espero estar aqui para ficar ao seu lado, e talvez fazer por merecer as armas que me foram dadas.
— Faça como quiser, Mestre Pequeno — disse Denethor. – Mas minha vida acabou. Mande chamar meus serviçais! — Voltou-se para Faramir.
Pippin o deixou e chamou os serviçais: vieram seis homens da casa, fortes e belos; apesar disso, tremeram ao chamado. Mas numa voz suave Denethor lhes ordenou que colocassem cobertas quentes na cama de Faramir e a levassem. Assim fizeram eles, e, erguendo a cama, levaram-na do aposento. Andavam devagar, para incomodar o homem febril o mínimo possível, e Denethor, agora curvado sobre um cajado, os seguia; por último vinha Pippin.
Saíram da Torre Branca, como se fosse um funeral, para dentro da escuridão, onde a nuvem que pairava sobre a Cidade era iluminada por baixo por laivos de um vermelho apagado. Suavemente atravessaram o grande pátio, e a um comando de Denethor pararam ao lado da Árvore Seca.
Tudo era silêncio, salvo o rumor da guerra na Cidade lá embaixo, e eles ouviam a água pingando melancólica dos galhos mortos para dentro do lago escuro.
Então avançaram através do portão da Cidadela, onde a sentinela os observou com surpresa e desânimo á medida que eles foram passando. Virando-se para o oeste, finalmente chegaram a uma porta na parede dos fundos do sexto circulo. Chamava-se Fen Hollen, pois sempre se mantinha fechada, exceto em ocasiões de funerais, e apenas o Senhor da Cidade poderia usar aquele caminho, ou aqueles que usavam o símbolo das tumbas e cuidavam das casas dos mortos. Além dela se estendia uma rua sinuosa que descia em muitas curvas para a região estreita sob a sombra do precipício do Mindolluin, onde ficavam os túmulos dos Reis mortos e os dos seus Regentes.
Um porteiro estava sentado numa guarita ao lado da rua, e com medo nos olhos ele se aproximou, trazendo uma lanterna na mão. Ao ouvir a ordem do Senhor, destrancou a porta, e sem ruido ela recuou; eles atravessaram, tomando a lamparina da mão do porteiro. Estava escuro no caminho que subia entre muralhas antigas e balaústres de muitos pilares que assomavam ao brilho oscilante da lamparina. Os passos lentos ecoavam, à medida que eles iam descendo, descendo, até que finalmente chegaram à rua Silenciosa, Rath Dinen, entre abóbadas pálidas e salões vazios e imagens de homens mortos muito tempo atrás; entraram na Casa dos Regentes, e colocaram no chão o seu fardo.
Ali Pippin, observando inquieto tudo á sua volta, viu que estava num amplo cômodo abobadado, que parecia todo coberto pelas grandes cortinas de sombra que a pequena lamparina projetava nas paredes amortalhadas. E quase invisíveis havia ali muitas fileiras de mesas, esculpidas no mármore, e sobre cada mesa jazia uma forma dormente, com as mãos unidas, e a cabeça repousando sobre a pedra. Mas uma mesa mais próxima era ampla e estava vazia. Sobre ela, a um sinal de Denethor, eles colocaram Faramir e seu pai lado a lado, e os cobriram com uma mesma coberta, e então ficaram com as cabeças baixas como alguém que chora do lado de um leito de morte. Depois Denethor falou numa voz baixa.
— Aqui esperaremos — disse ele. — Mas não quero que mandem chamar os embalsamadores. Tragam-nos lenha de queima rápida, e coloquem-na em toda a nossa volta, e embaixo; derramem óleo sobre ela. E, quando eu mandar, lancem uma tocha. Façam isso e não falem mais comigo. Adeus!
— Com a sua permissão, senhor — disse Pippin, virando-se e fugindo amedrontado daquela casa de morte. "Pobre Faramir", pensou ele. "Preciso encontrar Gandalf. Pobre Faramir! É muito provável que precise mais de remédios suponho eu; e ele não terá tempo a perder com moribundos ou loucos!"
Ao pé da porta, dirigiu-se a um dos serviçais que ficara de guarda. — seu senhor está fora de si — disse ele. — Tenham calma! Não tragam fogo para este lugar enquanto Faramir viver! Não façam nada até que Gandalf chegue!
— Quem é o senhor de Minas Tirith? — respondeu o homem. — O Senhor Denethor ou o Caminheiro Cinzento?
— O Caminheiro Cinzento e ninguém mais, ao que parece — disse Pippin, e foi correndo de volta pelo caminho sinuoso, com a maior velocidade que conseguiu imprimir aos pés, passando pelo porteiro atônito, saindo pela porta, e adiante, até chegar perto do portão da Cidadela. A sentinela o saudou á sua passagem, e ele reconheceu a voz de Beregond.
— Aonde vai assim correndo, Mestre Peregrin? — gritou ele.
— Procurar Mithrandir — respondeu Pippin.
— As mensagens do Senhor são urgentes, e eu não poderia retardá-las — disse Beregond —; mas diga-me depressa, se puder: o que está acontecendo? Para onde foi o meu Senhor? Acabei de assumir meu posto, mas ouvi falar que ele passou na direção da Porta Fechada, e homens levavam á frente Faramir.
— É — disse Pippin — para a rua Silenciosa.
Beregond baixou a cabeça para esconder as lágrimas.
— Disseram que ele estava morrendo — disse ele suspirando —, e agora está morto.
— Não — disse Pippin —, ainda não. E até mesmo agora sua morte ainda pode ser impedida, eu acho. Mas o Senhor da Cidade, Beregond, caiu antes que sua cidade fosse tomada. Está obcecado pela morte, e transformou-se numa pessoa perigosa. — Rapidamente contou sobre as estranhas palavras e atos de Denethor. — Preciso encontrar Gandalf com urgência.
— Então deve descer até a batalha.
— Eu sei. O Senhor me deu permissão. Mas, Beregond, se você puder, faça alguma coisa para impedir que algo terrível aconteça.
— O Senhor não permite que aqueles que vestem o negro e a prata deixem seus postos por qualquer motivo, a não ser por sua própria ordem.
— Bem, você deve escolher entre ordens e a vida de Faramir — disse Pippin. — E, quanto a ordens, acho que você está lidando com um louco, e não com um senhor. Preciso correr. Voltarei se puder.
Saiu numa corrida desabalada, e foi descendo na direção da cidade externa. Homens fugindo do incêndio passavam por ele, e alguns, vendo seu uniforme, voltavam-se e gritavam, mas Pippin não lhes dava atenção. Finalmente passou pelo Segundo Portão, além do qual enormes labaredas subiam entre as muralhas.
Apesar disso, tudo parecia estranhamente silencioso. Não se ouvia nenhum barulho, gritos de batalha ou troar de armas. Então, de repente, houve um berro pavoroso, uma grande batida e um estrondo profundo e retumbante. Forçando-se a avançar, contra uma rajada de medo e horror que quase o derrubou de joelhos, Pippin virou uma esquina que se abria no páteo amplo da cidade. Ficou paralizado. Encontrara Gandalf, mas recuou, escondendo-se numa sombra.
Desde a meia-noite prosseguia o ataque. Tambores retumbavam. Ao norte e ao sul, as companhias inimigas, uma atrás da outra, avançavam contra as muralhas.
Chegavam animais enormes, parecendo edifícios moveis a luz rubra e oscilante, os múmakil de Harad, arrastando pelas alamedas enormes torres e máquinas, em meio ao incêndio. Seu Capitão já não se preocupava muito com o que faziam ou quantos poderiam ser mortos: seu único objetivo era testar a força da defesa e manter os homens de Gondor ocupados em vários lugares. Era contra o Portão que ele jogaria seu maior peso. O Portão podia ser muito forte, feito de aço e ferro, guardado por torres e baluartes de pedra invencível, e apesar disso era a chave, o ponto mais fraco em toda aquela muralha alta e impenetrável. Os tambores retumbaram mais alto. As labaredas subiram com mais força. Grandes máquinas se arrastavam através do campo, e no meio havia um enorme aríete, grande como uma árvore da floresta, de trinta metros de comprimento, oscilando preso a fortes correntes. Estivera sendo forjado por muito tempo nas escuras ferrarias de Mordor, e sua cabeça hedionda, moldada em aço negro, tinha o formato de um lobo voraz; possuía feitiços de destruição. Chamavam-no Grond, em memória do Martelo do Mundo Subterrâneo de outrora. Grandes animais o puxavam, orcs se amontoavam em volta dele, e atrás vinham os trolls das montanhas para manejá-lo. Mas em volta do Portão a resistência ainda era forte, e ali os cavaleiros de Doí Amroth e os mais resistentes da guarnição se mantinham sitiados. Choviam flechas e lanças; torres de sitio tombavam ou de repente se incendiavam como tochas. Por toda a volta, diante das muralhas dos dois lados do Portão, o chão estava coberto de escombros e de corpos dos mortos; mesmo assim, como se guiados por uma loucura, mais e mais deles chegavam.
Grond se aproximava. O fogo não atacava o seu suporte; embora de vez em quando algum dos grandes animais que o puxavam enlouquecesse e espalhasse atropelo e destruição em meio aos incontáveis orcs que o escoltavam, seus corpos eram jogados de lado e outros tomavam-lhes o lugar.
Grond se aproximava. Os tambores retumbavam alucinadamente. Por sobre os montes de mortos um vulto hediondo surgiu: um cavaleiro, alto, encapuzado, coberto por um manto negro. Lentamente, pisando e esmagando os caídos, cavalgou á frente, sem se importar com a possibilidade de ser atingido por uma lança. Parou e ergueu uma enorme espada pálida. Assim que fez isso, um grande terror atingiu a todos, defensores e inimigos; as mãos dos homens ficaram imóveis ao longo dos corpos, e nenhum arco zuniu. Por um momento, todos ficaram paralisados.
Os tambores retumbaram e repicaram. Num impulso enorme, Grond foi arrastado à frente. Atingiu o Portão. Balançou no ar. Um enorme estrondo retumbou
Através da Cidade, como um trovão rolando nas nuvens. Mas as portas de ferro e os pilares de aço resistiram ao golpe.
Então o Capitão Negro se ergueu nos estribos e gritou numa voz apavorante, pronunciando em alguma língua esquecida palavras de poder e terror capazes de estraçalhar coração e pedra.
Três vezes gritou. Três vezes o grande aríete retumbou. E de repente, no último golpe, o Portão de Gondor partiu-se. Como se sob o efeito de algum feitiço explosivo, ele caiu aos pedaços: houve um clarão de luz cortante, e as portas se espatifaram no chão.
Para dentro cavalgou o Senhor dos Nazgúl. Uma grande figura negra contra as labaredas ao fundo, ele assomou, transformado numa enorme ameaça de desespero. Para dentro cavalgou o Senhor dos Nazgúl, pelo arco que nenhum inimigo jamais atravessara, e todos fugiam diante dele.
Todos exceto um. Esperando ali, imóvel e calado no pátio diante do portão, estava Gandalf montado em Scadufax: Scadufax que era o único entre os cavalos livres da terra capaz de suportar o terror, imóvel, imperturbável como uma imagem esculpida em Rath Dinen.
— Não pode entrar aqui — disse Gandalf, e a enorme sombra parou. — Volte para o abismo que lhe foi preparado! Volte! Caia no nada que aguarda você e seu Mestre. Vá!
O Cavaleiro Negro jogou para trás o capuz e todos ficaram atônitos: ele tinha uma corôa real, e mesmo assim ela não repousava sobre nenhuma cabeça visível As labaredas rubras reluziam entre a corôa e os ombros largos e escuros protegidos pela capa. De uma boca invisível veio uma risada mortal.
— Velho tolo! — disse ele. — Velho tolo! Esta é a minha hora. Não reconhece a morte ao deparar com ela? Morra agora e pragueje em vão! — E com essas palavras ergueu a espada, de cuja lâmina escorriam chamas.
Gandalf não se mexeu. E naquele exato momento, em algum pátio distante da Cidade, um galo cantou. Cantou num tom estridente e cristalino sem se importar com feitiçaria ou guerra, apenas saudando a manhã que no céu, acima das sombras da morte, chegava com a aurora. E como em resposta veio de longe uma outra nota. Trombetas, trombetas, trombetas. Ecoaram fracas nas encostas escuras do Mindolluin.
Grandes trombetas do norte, num clangor alucinado. Rohan finalmente chegara.
A CAVALGADA DOS ROHIRRIM
Estava escuro e Merry, deitado no chão e enrolado num cobertor, não enxergava nada. Apesar disso, embora a noite estivesse sufocada e sem vento, por toda a sua volta árvores ocultas suspiravam suavemente. Levantou a cabeça.
Então ouviu outra vez: um som semelhante a tambores fracos nas colinas cobertas por florestas e nos patamares das montanhas. De repente o rufar cessava e depois começava outra vez em algum outro ponto, ora mais próximo, ora mais distante. Merry perguntava-se se os vigias também teriam ouvido. Não se podiam vê-las, mas ele sabia que por toda a volta estavam as companhias dos rohirrim. Sentia no escuro o cheiro dos cavalos, e os ouvia mudar de posição pateando de leve o chão coberto de agulhas de pinheiro. O exército estava acampado em meio aos bosques de pinheiros que se aglomeravam em torno do Farol Eilenach, uma colina alta que se destacava das longas cordilheiras da Floresta Drúadan, ao lado da grande estrada em Anórien Oriental.
Apesar de cansado, Merry não conseguia dormir. Já havia cavalgado quatro dias seguidos, e a escuridão que se adensava ia lentamente pesando cada vez mais em seu coração. Começou a se perguntar por que insistira tanto em vir, quando lhe foram dados todos os motivos, até mesmo a ordem de seu senhor, para ficar para trás. Pensava também se o rei sabia que sua ordem fora desobedecida e estava zangado. Talvez não. Parecia haver algum entendimento entre Dernhelm e Elfhelm, o Marechal que comandava o éored no qual estavam. Ele e todos os seus homens ignoravam Merry e fingiam não ouvir se ele falasse. Era como se o hobbit fosse apenas um outro saco que Dernhelm estava carregando. Dernhelm não era consolo: nunca falava com ninguém. Merry se sentia pequeno, inconveniente, e solitário.
O momento agora era de ansiedade, e o exército corria perigo. Estavam a menos de um dia de cavalgada das muralhas externas de Minas Tirith, que circundavam os povoados. Batedores haviam sido enviados à frente. Alguns não tinham retornado. Outros, voltando às pressas, contaram que a estrada fora tomada por exércitos inimigos. Nela acampava uma tropa inimiga, três milhas a oeste do Mon Din, e alguns homens avançavam pela estrada, não estando a mais de três léguas de distância. Orcs perambulavam nas colinas e florestas ao longo da estrada. O rei e Éomer discutiam seus planos durante as vigias noturnas.
Merry queria conversar com alguém e pensava em Pippin. Mas isso só aumentava sua ansiedade. Pobre Pippin, enclausurado na grande cidade de pedra, sozinho e com medo. Merry desejou ser um Cavaleiro alto como Éomer, e poder tocar uma corneta ou alguma outra coisa, para ir a galope resgatar o amigo. Sentou-se, escutando escutando os tambores que batiam de novo, agora bem próximos. De repente ouviu vozes falando baixo, e viu lamparinas fracas, semiveladas, passando através das árvores.
Perto dele homens começaram a se mover no escuro em várias direções.
Um vulto alto assomou e tropeçou nele, amaldiçoando as raízes das árvores. Merry reconheceu a voz de Ellhelm, o Marechal.
— Não sou uma raiz de árvore, Senhor — disse ele —, nem um saco de bagagem, mas um hobbit escoriado. O mínimo que pode fazer para consertar a situação é me explicar o que está acontecendo.
— Qualquer coisa que consiga acontecer nessa escuridão dos demônios respondeu Elfhelm. — Mas meu senhor enviou mensagens para que nos preparássemos. Podemos receber ordens para partir a qualquer momento.
— Então o inimigo está vindo? — perguntou Merry ansioso. — Aqueles são os tambores deles? Comecei a pensar que fosse a minha imaginação, pois ninguém mais parecia tomar conhecimento deles.
— Não, não — disse Elfhelm. — O inimigo está na estrada, não nas colinas. Você está ouvindo os woses, os homens selvagens da Floresta: essa é a sua maneira de conversarem a distância. Eles ainda habitam a Floresta Drúadan, pelo que se comenta. São remanescentes de um tempo mais antigo, vivendo escondidos e em pequeno número, selvagens e cautelosos como os animais. Eles não vão para a guerra com Gondor e a Terra dos Cavaleiros, mas agora estão preocupados com a escuridão e a chegada dos orcs: receiam que os Anos Escuros estejam retornando, o que parece suficientemente provável. Fiquemos agradecidos por não estarem nos caçando: pois eles usam flechas envenenadas, pelo que se diz, e têm habilidades incomparáveis nas florestas. Mas ofereceram seus serviços a Théoden.
Neste momento um de seus líderes está sendo levado à presença do rei. Lá vão as luzes. Ouvi dizer isso e mais nada. E agora preciso me ocupar das ordens de meu senhor.
— Aprume-se, Mestre Saco! — Elfhelm desapareceu nas sombras.
Merry não gostara nada daquela conversa de homens selvagens e flechas envenenadas, mas além disso um grande peso o acabrunhava. Era insuportável esperar. Desejava saber o que aconteceria. Levantou-se e logo estava andando com cuidado atrás da última lamparina, antes que ela desaparecesse em meio ás árvores.
De repente atingiu um espaço aberto, onde uma pequena barraca fora armada para o rei, sob uma árvore frondosa. Uma lamparina grande, coberta na parte superior, estava pendurada num galho e projetava no chão um pálido circulo de luz. Sentados ali estavam Théoden e Éomer e diante deles, no chão, uma figura estranha de homem, atarracado, nodoso feito uma rocha velha, e os fios de sua barba rala se espalhavam no queixo encaroçado como musgo seco. Tinha as pernas curtas, os braços gordos, era troncudo e roliço, vestido apenas com palha ao redor da cintura. Merry teve a impressão de tê-lo visto em algum outro lugar antes, e de repente se lembrou dos homens-Púkel do Templo da Colina. Ali estava uma daquelas imagens antigas revivida, ou talvez um descendente em linha direta, através de anos incontáveis, dos modelos usados pelos artesãos esquecidos de antigamente.
Estavam em silêncio quando Merry se aproximou, e então o homem selvagem começou a falar, aparentemente respondendo a alguma pergunta. Sua voz era grave e gutural; apesar disso, para a surpresa de Merry, ele falava a Língua Geral, mas de uma maneira pausada, e palavras rudes se misturavam com ela.
— Não, pai dos Cavaleiros — disse ele. — Nós não lutar. Só caçar. Mata gorgún na floresta, odeia os orcs. Vocês também odeia gorgún. Nós ajudar como pode. Homens selvagens ter olhos compridos e orelhas compridas; conhecer todas as trilhas. Homens selvagens viver aqui antes das Casas de Pedra; antes dos homens altos vir da Agua.
— Mas precisamos de ajuda na batalha — disse Éomer. — Como você e seu povo podem nos ajudar?
— Trazer noticias — disse o homem selvagem. — Nós olhar das colinas. Subir montanha grande e olhar para baixo. Cidade de Pedra está fechada. Fora dela queima fogo, agora também dentro. Vocês quer ir para lá? Então precisa ser rápido. Mas gorgún e homens de longe — disse ele acenando um braço curto e nodoso em direção ao leste — está tudo sentado na estrada de cavalo. Muitos, muitos mais que os Cavaleiros.
— Como você pode saber disso? — perguntou Éomer. O rosto achatado do velho e seus olhos escuros não demonstraram nada, mas sua voz ficou perturbada, contrariada. — Homens selvagens ser selvagens, livres, mas não ser crianças — respondeu ele. — Sou um grande líder, Ghân-buri-Ghân. Sei contar muitas coisas: estrelas no céu, folhas em árvores e homens no escuro. Você tem uma vintena de vintenas contando dez vezes e mais cinco. Eles ter mais. Grande luta, e quem vai ganhar? E muitos outros estar em volta das muralhas das Casas de Pedra.
— Ai de nós! Ele fala com grande perspicácia — disse Théoden. – E nossos batedores dizem que o inimigo fez trincheiras e fogueiras na estrada. Não podemos dispersá-los num ataque repentino.
— E apesar disso precisamos de grande velocidade – disse Éomer. — Mundburg está em chamas!
— Deixe Ghân-buri-Ghân terminar! — disse o homem selvagem.
— Ele conhecer mais de uma estrada. Vai levar vocês pela estrada que não tem poço nem gorgún, só homens selvagens e bichos. Muitas trilhas feitas quando o povo das Casas de Pedra era mais forte. Cortaram colinas como os caçadores cortam carne de bicho. Homens selvagens acha que eles come pedra. Eles ir para Rinimon, passando por Drúadan com grandes carroças. Agora ninguém passar mais ali. Estrada esquecida, mas não por homens selvagens. Sobre colina e atrás de colina ela fica ainda debaixo de capim e árvore, lá atrás de Rimmon e descendo para o Din, e no fim volta para a estrada dos Cavaleiros. Homens selvagens mostrar para vocês a estrada. Então vocês matar gorgún, e expulsar a escuridão má com ferro brilhante, e homens selvagens poder voltar para dormir na floresta selvagem.
Éomer e o rei conversaram em sua própria língua. Finalmente Théoden dirigiu-se ao homem selvagem.
— Aceitamos a sua oferta – disse ele. — Pois, embora deixemos uma tropa de inimigos para trás, o que importa isso? Se a Cidade de Pedra cair, então não haverá como retornarmos. Se ela for salva, então o próprio exército orc ficará isolado. Se você for fiel, Ghânburi-Ghân, vamos lhe oferecer uma grande recompensa, e você terá para sempre a amizade da Terra dos Cavaleiros.
— Homens mortos não ser amigos dos homens vivos, e não dar presentes para eles — disse o homem selvagem. — Mas, se Cavaleiros viver depois da Escuridão, então Cavaleiros deixar homens selvagens em paz na floresta e nunca mais caçar eles como bichos. Ghân-buri-Ghân não levar vocês para armadilha. Ele mesmo vai junto com o pai dos Cavaleiros, e, se levar vocês para o lugar errado, vocês mata ele.
— Que assim seja! — disse Théoden.
— Quanto tempo vai levar para passarmos pelo inimigo e voltarmos para a estrada? — perguntou Éomer. — Precisamos ir em ritmo de caminhada, se você nos guiar, e não duvido que a trilha seja estreita.
— Homens selvagens andar rápido a pé — disse Ghân. –A trilha é larga para quatro cavalos no Vale das Carroças de Pedra. — Apontou para o sul. — Mas é estreita no começo e no fim. Homem selvagem andar daqui até o Din entre o nascer do sol e o meio-dia.
— Então devemos contar pelo menos sete horas para os batedores — disse Éomer —; mas é preferível calcularmos umas dez horas para o resto da tropa.
Imprevistos podem nos atrasar, e, se nosso exército se espalhar, vai demorar muito até que consiga se colocar em ordem quando sairmos das colinas. Que horas são agora?
— Quem pode saber? — disse Théoden. — É tudo noite agora.
— Está tudo escuro, mas não é tudo noite — disse Ghân. — Quando o sol aparece homens selvagens sentir, mesmo quando está escondido. Ele já está subindo sobre as montanhas do leste. O dia começar nos campos do céu.
— Então devemos partir o mais cedo possível — disse Éomer. — Mesmo assim não podemos ter esperanças de chegar em auxílio de Gondor ainda hoje.
Merry não esperou para ouvir mais nada. Correu e foi se preparar para a convocação da marcha. Essa era a última etapa antes da batalha. Não lhe parecia provável que muitos sobrevivessem a ela. Mas pensou em Pippin e nas chamas de
Minas Tirith e sufocou o próprio medo.
Tudo correu bem naquele dia, e eles não viram ou ouviram qualquer sinal do inimigo, esperando-os com uma emboscada. Os Homens Selvagens tinham preparado uma proteção de caçadores cuidadosos, de modo que nenhum orc ou espião pudesse saber do movimento nas colinas. A noite estava mais escura que nunca, à medida que eles se aproximaram da cidade sitiada, e os Cavaleiros assaram em longas filas como sombras escuras de homens e cavalos. Cada companhia vinha liderada por um homem da floresta: mas o velho Ghân caminhava ao lado do rei. A partida fora mais demorada que o esperado, pois levou muito tempo para que os Cavaleiros, andando e puxando os cavalos, encontrassem trilhas nas cordilheiras cobertas por matas espessas atrás do acampamento e na descida para o oculto Vale das Carroças de Pedra. Já era fim de tarde quando os que iam à frente atingiram as amplas matas cinzentas estendendo-se além da encosta leste do Amon Din, e mascarando um grande desfiladeiro no conjunto de colinas que, do Nardol até o Diu, corria de leste a oeste.
Pelo desfiladeiro, a esquecida estrada de carroças antigamente descera, voltando para o caminho principal que vinha da Cidade através de Anórien; mas agora por muitas vidas de homem as árvores tinham dominado a região, e a trilha desaparecera, interrompida e encoberta sob as folhas dos anos incontáveis. Mas os maciços de árvores ofereciam aos Cavaleiros sua última esperança de proteção, antes que partissem para a batalha aberta; pois além dos maciços ficavam a estrada e as planícies do Anduin, enquanto ao leste e ao sul as encostas tornavam-se nuas e pedregosas, à medida que as colinas retorcidas se juntavam e subiam, baluarte após baluarte, formando a grande massa do Mindolluin com as suas saliências.
A companhia que liderava parou, e, à medida que aqueles que a seguiam se enfileiravam e saiam através da fenda do Vale das Carroças de Pedra, eles se espalharam procurando locais de acampamento sob as árvores cinzentas. O rei convocou os capitães para um conselho. Éomer enviou batedores para espionar a estrada, mas o velho Ghân balançou a cabeça.
— Não adianta mandar Cavaleiros — disse ele. — Homens selvagens já viu tudo o que pode se ver no ar ruim. Logo chegam aqui para conversar comigo.
Os capitães vieram e então, saindo das árvores, outras figuras púkel se aproximaram, tão semelhantes ao velho Ghân que Merry mal conseguia distingui-los. Falaram com Ghân numa estranha língua gutural.
De repente, Ghân voltou-se para o rei. — Homens selvagens dizer muita coisa — disse ele. — Primeiro precisar cuidado e ainda muitos homens acampados além do Din, uma hora de caminhada daqui — disse ele acenando o braço na direção do farol negro. — Mas ninguém entre este lugar e as novas muralhas do Povo das Pedras.
Muitos trabalhando ali. Muralhas no chão: gorgún derruba elas com o trovão da terra e com bastões de ferro preto. Não tomam cuidado e não olham em volta. Achar que os amigos deles vigia todas as estradas! — Dizendo aquilo, o velho Ghân emitiu um curioso ruido gorgolejante, dando a impressão de estar rindo.
— Boas notícias! — exclamou Éomer. — Mesmo nesta escuridão, a esperança reluz outra vez. As estratégias de nosso Inimigo frequentemente se revertem a nosso favor. A própria escuridão amaldiçoada nos tem sido uma proteção. E, agora que Ele está ávido por destruir Gondor sem deixar pedra sobre pedra, seus orcs afastaram meu maior temor. A muralha externa poderia ter sido ocupada por muito tempo, e usada contra nós. Agora podemos passar por ela – se conseguirmos chegar até lá.
— Mais uma vez lhe agradeço, Ghân-buri-Ghân da floresta — disse Théoden. — Que a boa sorte o acompanhe, pelas boas noticias e por sua orientação!
— Matar gorgún! Matar os orcs! Nenhuma outra palavra agrada aos homens selvagens — respondeu Ghân. — Expulsar ar ruim e escuridão com ferro brilhante!
— Para fazer essas coisas é que cavalgamos até aqui — disse o rei —, e vamos tentá-las. Mas o que conseguiremos só o amanhã mostrará.
Ghân-buri-Ghán se agachou no chão e tocou a terra com a testa ossuda em sinal de despedida. Então levantou-se, como se fosse partir. Mas de repente parou, olhando para cima como um animal assustado da floresta que fareja algo diferente no ar. Seus olhos se iluminaram.
— Vento está mudando! — exclamou ele, e com isso, como num piscar de olhos, ele e seus companheiros desapareceram dentro da escuridão, e nunca mais foram vistos por nenhum Cavaleiro de Rohan. Não muito tempo depois, na distância ao leste, os tambores vibraram outra vez. Mas nenhum coração em todo o exército foi tomado por qualquer tipo de receio de que os homens selvagens não fossem fiéis, embora pudessem parecer estranhos e rudes.
— Não precisamos mais de orientação — disse Elfhelm —, pois há cavaleiros no exército que já desceram até Mundburg em tempos de paz. Eu sou um deles. Quando atingirmos a estrada, ela desviará para o sul, e restarão ainda sete léguas à frente antes de chegarmos à muralha dos povoados. Ao longo da maior parte daquele caminho há mato dos dois lados da estrada. Naquele trecho, os mensageiros de Gondor calculavam atingir sua maior velocidade. Podemos cavalgar por ali com rapidez e sem muito barulho.
— Então, uma vez que precisamos contar com atos cruéis e temos necessidade de todo o nosso vigor — disse Éomer —, sugiro que descansemos agora, e partamos de noite, planejando nossa marcha de tal forma que possamos avançar sobre os campos quando o dia estiver no seu ponto mais claro, ou quando nosso rei der o sinal.
O rei concordou com isso, e os capitães se retiraram. Mas logo Elthehn voltou.
— Os batedores não encontraram nada para reportar além da floresta cinzenta, senhor — disse ele —, exceto dois homens apenas: dois homens mortos e dois cavalos mortos.
— Bem — disse Éomer. — E então?
— O seguinte, senhor: esses homens eram mensageiros de Gondor; provavelmente Hirgon era um deles. Pelo menos sua mão ainda segurava a Flecha Vermelha; mas sua cabeça fora decepada. E também isto: pelos vestígios parece que estavam fugindo em direção ao oeste quando caíram. Pelo que presumo, encontraram o inimigo já sobre a muralha externa, ou atacando-a, quando retornaram — e isso teria sido duas noites atrás, se usaram cavalos descansados de seus postos, como é o costume deles. Não conseguiram chegar à Cidade e retornaram.
— Lamentável! — disse Théoden. — Então Denethor não recebeu noticias de nossa marcha, e vai perder a esperança de que possamos chegar em seu auxilio.
— A necessidade não aceita a demora, mas antes tarde do que nunca — disse Éomer. — E é possível que desta vez o velho ditado seja mais verdadeiro que em qualquer outra ocasião anterior, desde que foi pela primeira vez pronunciado.
Era noite. Dos dois lados da estrada o exército de Rohan avançava em silêncio. Agora o caminho, passando pelas bordas do Mindolluin, desviava para o sul. Ao longe, quase em linha reta, havia um clarão vermelho sob o céu negro, e as encostas da grande montanha assomavam escuras contra ele. Estavam se aproximando da Rammas do Pelennor, mas o dia ainda não chegara.
O rei cavalgava no meio da companhia da frente, acompanhado pelos homens de sua casa. O éored de Elfhelm vinha em seguida, e agora Merry percebia que Dernhelm deixara sua posição e, no escuro, avançava firme para a frente, até que por fim estava cavalgando logo atrás da guarda do rei. Houve uma parada. Merry ouviu vozes na vanguarda falando baixo. Os cavaleiros que se tinham aventurado quase até a muralha retornaram. Vieram ter com o rei.
— Há um grande incêndio, senhor — disse um deles. – A cidade está envolta em chamas e o campo está cheio de inimigos. Mas parece que todos se retiraram para o assalto. Pelo que podemos supor, restam poucos na muralha externa, e estão desatentos, preocupados em destruir.
— Lembra-se das palavras do homem selvagem, senhor? — disse um outro. — Eu vivo no Descampado em tempos de paz; Widfara é meu nome, e a mim também o ar traz notícias. O vento já está virando. Há uma brisa vinda do sul, há nela um cheiro de mar, embora possa ser muito fraco. A manhã trará novidades. Sobre a fumaça surgirá a aurora quando o senhor passar pela muralha.
— Se o que fala é verdade, Widfara, então que você viva a partir deste dia muitos anos de felicidade — disse Théoden. Virou-se para os homens de sua casa que estavam próximos, e falou agora numa voz clara de forma que também vários dos cavaleiros do primeiro éored puderam ouvi-lo:
— É chegada a hora, Cavaleiros de Rohan, filhos de Eorl! O inimigo e o fogo estão diante de vocês, e suas casas ficaram para trás. Apesar disso, embora vocês lutem num campo estrangeiro, para sempre terão direito à glória que colherem lá. Fizeram juramentos: agora devem cumpri-los todos, ao senhor, à terra e á aliança de amizade.
Os homens bateram as lanças contra os escudos.
— Éomer, meu filho! Você deve liderar o primeiro éored — disse Théoden —, que deverá ir atrás da bandeira do rei, ao centro. Elfhelm, conduza sua companhia para a direita quando passarmos pela muralha. E Grimbold deverá conduzir a sua para a esquerda. Que as outras companhias que virão atrás sigam essas três, como puderem. Ataquem onde quer que haja uma concentração inimiga. Não podemos fazer outros planos, pois ainda não sabemos como estão as coisas no campo. Avante agora, e não temam escuridão alguma!
A companhia da frente avançou na velocidade possível, pois ainda estava muito escuro, a despeito de qualquer mudança que Widfara pudesse ter previsto. Merry vinha montado atrás de Dernhelm, segurando-se com a mão esquerda, enquanto tentava com a outra soltar a espada de sua bainha. Agora sentia de forma amarga a verdade das palavras do rei: numa batalha dessas, o que você poderia fazer Meriadoc?, "Apenas isso", pensou ele: "estorvar um cavaleiro e esperar na melhor das hipóteses manter-me na sela e não ser pisoteado até a morte por cascos galopantes!"
Era menos de uma légua até o ponto onde outrora as muralhas externas se erguiam. Logo as atingiram, cedo demais para Merry. Irromperam gritos selvagens, e houve algum choque de armas, que no entanto foi breve. Os orcs ocupados as muralhas eram poucos, e ficaram assustados; foram rapidamente mortos ou expulsos. Diante da ruína do portão norte da Rammas, o rei parou outra vez. O primeiro éored se aproximou e ficou atrás dele, e dos dois lados.
Dernhelm se mantinha próximo ao rei, embora a companhia de Elfhelm
Estivesse distante e à direita. Os homens de Grimbold desviaram e passaram contornando a muralha até chegar a uma grande fenda mais para o leste.
Merry espiou por trás das costas de Dernhelm. Distante, talvez há dez milhas ou mais, havia um grande incêndio, mas entre ele e os Cavaleiros linhas de fogo fulguravam num crescendo constante, a mais próxima estando a menos de uma légua. O hobbit conseguia distinguir pouca coisa mais na planície escura, e até agora não via qualquer esperança de aurora, nem sentia qualquer vento, alterado ou não.
Agora o exército de Rohan avançava em silêncio, entrando no campo de Gondor, inundando-o lentamente mas sem parar, como a maré que sobe e penetra as brechas de um dique que os homens consideravam impermeável. Mas a mente e a vontade do Capitão Negro estavam inteiramente voltadas para a cidade que ruia, e até o momento não lhe chegara qualquer mensagem advertindo-o de que seus planos poderiam apresentar alguma falha.
Depois de um tempo, o rei conduziu seus homens um pouco para o leste, até chegar a um local que ficava entre o fogo do cerco e os campos externos. Ainda não haviam sido desafiados, e ainda Théoden não dera nenhum sinal. Por fim ele parou mais uma vez. A Cidade agora estava mais próxima. Havia no ar um cheiro de fogo e uma sombra da própria morte. Os cavalos sentiam-se inquietos. O rei estava montado em Snawmana, imóvel, assistindo à agonia de Minas Tirith, como se tomado por uma angústia repentina, ou pelo terror. Parecia encolher-se sob o peso da idade. O próprio Merry se sentia como se um grande fardo de terror e dúvida houvesse caído sobre ele. Seu coração batia devagar. O tempo parecia se librar na incerteza. Haviam chegado tarde demais! Tarde demais era pior que nunca! Talvez Théoden vacilasse, talvez curvasse a cabeça e se virasse, indo embora furtivamente para se esconder nas colinas.
Então, de súbito, Merry finalmente a sentiu, sem sombra de dúvida: uma mudança. Sentia o vento no rosto! Surgia uma luz fraca. Distantes, muito além e ao sul, era possível divisar nuvens como formas cinzentas e remotas, subindo, flutuando: a aurora estava atrás delas. Mas naquele mesmo momento houve um clarão, como se um relâmpago tivesse saltado da terra sob a Cidade. Por um cáustico momento permaneceu feito luz deslumbrante em negro e branco, com sua extremidade superior como uma agulha em faiscas; e depois, quando a escuridão se fechou mais uma vez, veio retumbando pelas colinas um grande estrondo.
Àquele som, a figura curvada do rei de repente se aprumou. Agora ele parecia alto e orgulhoso novamente; e levantando-se nos estribos gritou numa voz poderosa, mais cristalina do que qualquer um já ouvira um homem mortal produzir antes:
Acordem, acordem,
Cavaleiros de Théoden!
Duros feitos despertam;
jugo e massacre.
Quebrada será a lança,
trincado será o escudo,
em dia de espada,
vermelho, antes de o sol raiar!
Avante agora, avante!
Avante para Gondor!
E com isso tomou uma grande corneta da mão de Guthláf, seu porta bandeira, e produziu um clangor tão forte que a corneta se partiu em dois pedaços. E imediatamente todas as cornetas do exército se ergueram em música, e o toque das cornetas de Rohan naquela hora era como tempestade sobre a planície, e como um trovão nas montanhas.
Avante agora, avante! Avante para Gondor!
De repente o rei gritou para Snawmana, e o cavalo disparou. Atrás dele sua bandeira tremulava ao vento, corcel branco sobre um campo verde, mas o rei era mais veloz. Depois vieram numa carreira desabalada os cavaleiros de sua casa, mas o rei sempre se mantinha à frente. Éomer cavalgava ali, o rabo— de-cavalo branco de seu elmo solto ao vento, e a vanguarda do primeiro éored rugia como uma onda enorme que se arrebenta em espuma na praia, mas não se podia alcançar Théoden. Parecia um condenado à morte, ou então a fúria da batalha de seus antepassados corria como um fogo novo em suas veias, e ele ia montado em Snawmana como um deus antigo, talvez mesmo como Oromê, o Grande, na batalha dos Valar, quando o mundo era jovem. Seu escudo dourado estava descoberto e era surpreendente ver seu brilho como uma imagem do Sol, e a relva se incendiava verde ao redor dos pés de seu corcel. Pois a manhã chegara, a manhã e um vento do mar; a escuridão fora removida, e os exércitos de Mordor gemeram, tomados de terror, fugiram e morreram, pisoteados pelos cascos da ira. E então todo o exército de Rohan irrompeu numa canção, e cantando enquanto matavam, pois a alegria da batalha estava neles, e o som de sua música, que era belo e terrível, chegava até a Cidade.
A BATALHA DOS CAMPOS DE PELENNOR
Mas não era um chefe-orc nem um salteador qualquer quem comandava o ataque contra Gondor. A escuridão se desfazia precocemente, antes da data que seu Mestre havia determinado: a sorte o traíra pelo momento, e o mundo se voltara contra ele; a vitória lhe escapava das mãos no momento em que as estendia para agarrá-la. Mas seu braço era longo. Ainda estava no comando, controlando grandes poderes. Rei, Espectro do Anel, Senhor dos Nazgúl, ele ainda tinha muitas armas. Abandonou o Portão e desapareceu.
O Rei Théoden da Terra dos Cavaleiros atingira a estrada que conduzia do Portão para o Rio, e rumou para a Cidade, agora a menos de uma milha de distância.
Diminuiu um pouco a velocidade, espreitando novos inimigos, e seus cavaleiros o alcançaram; Dernhelm estava entre eles. À frente e mais próximos das muralhas os homens de Elfhelm estavam em meio às torres de sítio, apunhalando, matando, empurrando os inimigos para dentro das trincheiras em chamas. A metade norte do Pelennor estava quase toda devastada, e lá se viam acampamentos ardendo; os orcs fugiam na direção do Rio como bandos de animais á frente de caçadores; os rohirrim iam de um lado para o outro como bem queriam. Mas ainda não tinham derrubado o cerco, nem tomado o Portão. Muitos inimigos estavam diante dele, e na metade mais distante da planície ainda havia outras tropas por combater. Ao sul, além da estrada, estava a maior força dos haradrim, e lá os seus cavaleiros se reuniam em torno da bandeira de seu capitão. Ele olhou e na luz que crescia viu a bandeira do rei; percebeu que ela estava muito à frente da batalha e com poucos homens em volta. Então encheu-se de uma ira sanguinária e soltou um grito; exibindo sua bandeira, serpente negra sobre escarlate, partiu contra o cavalo branco e o campo verde com uma grande força de homens; as cimitarras nas mãos dos sulistas pareciam estrelas faiscando.
Então Théoden percebeu a presença do inimigo, e não esperou pelo ataque: gritando para Snawmana, atirou-se ao seu encontro. Grande foi o estrondo do choque entre os dois. Mas ardeu com mais intensidade a fúria branca dos homens do norte que eram mais habilidosos e ferinos com lanças longas. Eram poucos mas abriram caminho em meio aos sulistas como um raio na floresta. Bem ao centro da tropa ia Théoden, filho de Thengel, e sua lança se partiu no momento em que ele derrubou o capitão inimigo. Sacou então a espada, avançou contra a bandeira, derrubando seu mastro e quem a carregava, e a serpente negra soçobrou. Todos da cavalaria oponente que escaparam da morte viraram-se e fugiram para longe. Mas eis que, subitamente, em meio à glória do rei, seu escudo dourado embaçou-se. A nova manhã apagou-se no céu. A escuridão caiu sobre ele. Os cavalos empinavam-se relinchando. Homens atirados das selas gemiam no chão.
— Sigam-me! Sigam-me! — gritou Théoden. — Levantem-se, eorlingas!
Não temam a escuridão! — Mas Snawmana, num terror alucinado, levantou-se sobre as pernas traseiras, lutando com o ar, e então, com um rincho horrível, caiu sobre o próprio lombo: uma lança negra o atingira. O rei ficou debaixo do cavalo.
A grande sombra desceu como uma nuvem. E, para a surpresa de todos, era uma criatura alada: se era um pássaro, então era maior que todos os outros pássaros, e era nu, sem penas ou plumas, e suas enormes asas eram como membranas de couro entre dedos de garras; e seu corpo fedia. Talvez fosse uma criatura de um mundo mais antigo, cuja espécie, sobrevivendo em montanhas esquecidas e frias sob a lua, perdurara além de seus dias, e em ninhos hediondos criara esta última criatura extemporânea, voltada para o mal. E o Senhor do Escuro a acolhera, alimentando-a com carnes nojentas, até que crescesse além da medida de todos os seres voadores; depois deu-a de presente a seu servidor, para que fosse sua montaria. A criatura veio descendo, descendo, e então, fechando as membranas que lhe cobriam os dedos, soltou um grito crocitante, e pousou sobre o corpo de Snawmana, enterrando nele as garras e abaixando o pescoço longo e nu. Na criatura estava montado um vulto, coberto com um manto negro, enorme e ameaçador. Usava uma corôa de aço, mas entre corôa e capa não havia nada para se ver, exceto apenas o brilho de um olhar mortal: o Senhor dos Nazgúl.
Voltara para o ar, chamando sua montaria antes que a escuridão cedesse, e agora vinha de novo, trazendo a destruição, transformando esperança em desespero, e vitória em morte. Brandia uma enorme maça negra.
Mas Théoden não estava completamente abandonado. Os cavaleiros de sua casa jaziam mortos ao redor dele, ou então, dominados pela loucura de seus cavalos, tinham sido levados para longe. Mas um ainda permanecia lá: Dernhelm, o jovem, fiel acima de qualquer medo; e chorava, pois amara seu rei como a um pai. Durante todo o ataque, Merry cavalgara ileso atrás dele, até a chegada da Sombra; então
Windfola, em seu terror, derrubou os dois ao chão, e agora corria alucinado sobre a planície. Merry se arrastava de quatro como um animal que não enxerga, e tamanho terror o dominava que ele se sentia doente e cego.
— Homem do Rei! Homem do Rei! — seu coração gritava. — Você deve ficar ao lado dele. O senhor será como um pai para você, foi isso o que você disse. — Mas sua vontade não respondia, e o corpo tremia. Não ousava abrir os olhos nem olhar para cima. Então, na escuridão de sua mente, teve a impressão de ouvir Dernhelm falando: mas agora sua voz parecia estranha, fazendo-o lembrar de alguma outra voz que já ouvira antes.
— Vá embora, criatura asquerosa, senhor das aves carniceiras! Deixe os mortos em paz!
Uma voz fria respondeu:
— Não te intrometas entre o nazgúl e sua presa! Ou ele te matará na tua hora. Vai levar-te embora para as casas de lamentação, além de toda a escuridão, onde tua carne será devorada, e tua mente murcha será desnudada diante do Olho Sem Pálpebra.
Uma espada tiniu ao ser sacada.
— Faça o que quiser; vou impedi-lo, se conseguir.
— Impedir-me? Tu és tolo. Nenhum homem mortal pode me impedir!
Então Merry ouviu o mais estranho de todos os sons daquela hora. Parecia que Dernhelm estava rindo, e sua voz cristalina era como aço.
— Mas não sou um homem mortal! Você está olhando para uma mulher. Sou Éowyn, filha de Éomund. Você está se interpondo entre mim e meu senhor, que também é meu parente. Suma daqui, se não for imortal! Pois seja vivo ou morto-vivo obscuro, vou golpeá-lo se tocar nele.
A criatura alada gritou contra ela, mas o Espectro do Anel não respondeu e ficou em silêncio, como se tomado por uma dúvida repentina. Por um momento, o coração de Merry foi presa de puro assombro. Abriu os olhos e viu que o negrume subira acima deles. Ali, a alguns passos dele, estava o grande animal, e tudo parecia escuro ao seu redor, e sobre ele assomava o Senhor dos Nazgúl como uma sombra de desespero. Um pouco á esquerda estava aquela que ele chamara de Dernhelm. Mas o elmo de seu segredo lhe caíra da cabeça, e os cabelos claros, libertos de seus laços, reluziam num ouro pálido sobre os ombros. Os olhos cinzentos como o mar eram duros e cruéis, e apesar disso havia lágrimas em suas faces. Segurava uma espada na mão, e erguia o escudo contra o horror dos olhos do inimigo. Era Éowyn, e também Dernhelm. Pois na mente de Merry de repente surgiu, como um clarão, a imagem do rosto que ele vira na cavalgada, partindo do Templo da Colina: o rosto de alguém que vai em busca da morte, sem qualquer esperança. Seu coração encheu-se de pena, misturada a uma grande surpresa, e de repente a coragem de sua raça, de inflamação lenta, despertou. Cerrou a mão. Ela não deveria morrer, tão bela, tão desesperada! Pelo menos não morreria sozinha, sem ajuda.
O rosto do inimigo não estava voltado para ele, mas mesmo assim o hobbit mal ousava se mexer, aterrorizado com a possibilidade de que aqueles olhos mortais recaissem sobre ele. Devagar, devagar, começou a se arrastar para o lado; mas o capitão Negro, cheio de dúvidas e de intenções malignas em relação à mulher diante dele, não deu ao hobbit mais atenção do que daria a um verme na lama.
De repente o grande animal bateu suas asas hediondas, e o vento produzido por elas era nojento. Mais uma vez subiu aos ares, e depois se arremessou rápido contra Éowyn, guinchando, atacando com bico e garras.
Mesmo assim ela não recuou: donzela dos rohirrim, filha de reis, esbelta e ao mesmo tempo como uma lâmina de aço, bela mas terrível. Desferiu um golpe rápido, habilidoso e fatal. Cortou fora o pescoço esticado, e a cabeça decepada caiu como uma pedra. Pulou para trás no momento em que a enorme figura caiu destruída, as vastas asas abertas, inerte no chão; e com sua queda a sombra desapareceu. Uma luminosidade caiu ao redor de Éowyn, e seus cabelos reluziram aos raios do sol que nascia.
Da ruína ergueu-se o Cavaleiro Negro, alto e ameaçador, assomando sobre ela. Com um grito de ódio que feria os ouvidos como veneno, desferiu um golpe com sua maça. Partiu-se em pedaços o escudo de Éowyn, e seu braço ficou quebrado; ela cambaleou e caiu de joelhos. Ele pairava sobre ela como uma nuvem, os olhos faiscando; ergueu sua maça para matar.
Mas de repente ele também cambaleou, com um grito lancinante de dor, e seu golpe passou longe, atingindo o chão. A espada de Merry o ferira por trás, rasgando de cima a baixo o manto negro e, passando por baixo da couraça metálica, atravessara o tendão atrás de seu forte joelho.
— Éowyn! Éowyn! — gritava Merry. Então cambaleando, esforçando-se para se levantar, com suas últimas forças, ela enfiou a espada entre corôa e manto, quando os grandes ombros se curvaram diante dela. A espada se estilhaçou faiscando em mil fragmentos. A corôa rolou para o chão estrepitosamente. Éowyn caiu para a frente, sobre o corpo de seu inimigo. Mas eis que o manto e a couraça estavam vazios. Jaziam agora disformes no chão, rasgados e amontoados; e um grito subiu estremecendo o ar, e foi sumindo num gemido chiado, passando com o vento, feito voz fraca e sem corpo, que morreu e foi engolida, e nunca mais foi ouvida naquela era deste mundo.
E lá estava Meriadoc, o hobbit, em meio aos mortos, piscando como uma coruja à luz do dia, pois as lágrimas turvavam-lhe a vista; e através de uma névoa ele olhou para a bela cabeça de Éowyn, que estava deitada e imóvel; olhou então para o rosto do rei, que caíra em meio à própria glória. Pois Snawmana, em sua agonia, rolara o corpo outra vez para longe dele; apesar disso fora a ruína de seu senhor.
Merry abaixou-se e levantou a mão do rei para beijá-la, e foi tomado de surpresa: Théoden abriu os olhos, que ainda brilhavam, e falou numa voz tranquila, apesar da dificuldade.
— Adeus, Mestre Hobbit! — disse ele. — Meu corpo está destruído. Vou ao encontro de meus antepassados. E mesmo na poderosa companhia deles eu agora não me sentirei envergonhado. Derrubei a serpente negra Uma manhã cinzenta, um dia alegre, e um ocaso de ouro!
Merry não conseguiu dizer nada, mas chorou mais uma vez.
— Perdoe-me, senhor — disse ele finalmente —, se desobedeci á sua ordem, e apesar disso não consegui fazer mais nada a seu serviço do que chorar na sua despedida.
O velho rei sorriu.
— Não chore! Está perdoado. Não se pode repudiar um grande coração. Viva feliz agora, e, quando estiver em paz fumando seu cachimbo, pense em mim! Pois nunca mais poderei me sentar ao seu lado em Meduseld, como prometi, nem escutarei você falando sobre o estudo das ervas. — Fechou os olhos, e Merry curvou-se ao lado dele. De repente o rei falou de novo. — Onde está Éomer? Pois meus olhos escurecem, e eu gostaria de vê-lo antes de partir. Ele deve me suceder como rei. E eu gostaria de mandar uma palavra para Éowyn. Ela, ela não queria que eu a deixasse, e agora não a verei de novo, ela que me é mais querida que uma filha.
— Senhor, senhor — começou Merry, gaguejando. — Ela está... – mas naquele momento houve um grande clamor, e por toda a volta cornetas e trombetas ressoaram.
Merry olhou ao redor: esquecera a guerra e o mundo ao seu lado, e tinha a impressão de que muitas horas haviam-se passado desde que o rei cavalgara em direção à própria morte, embora na verdade fizesse pouco tempo. Mas agora percebia que estavam correndo o perigo de ficarem presos bem no centro da grande batalha que logo começaria.
Novas forças do inimigo subiam depressa pela estrada que vinha do Rio; dos pontos sob as muralhas vinham as legiões de Morgul; dos campos do sul vinham a pé homens de Harad, precedidos por cavaleiros, e atrás deles assomavam os enormes lombos dos múmakil, carregando torres de guerra. Mas ao norte a crista branca de Éomer liderava a grande dianteira dos rohirrim, que ele outra vez reunira e ordenara; da Cidade veio toda a força de homens que lá havia, e o cisne prateado de Dol Amroth vinha na vanguarda, expulsando do Portão o inimigo.
Por um instante o pensamento passou pela mente de Merry: "Onde está Gandalf? Não está aqui? Não poderia ter salvo o Rei e Éowyn?" Mas neste momento Éomer se aproximava depressa, e com ele vinham os cavaleiros sobreviventes, que agora tinham dominado os cavalos. Olharam assombrados a carcaça do animal cruel que jazia ali, e seus cavalos recusaram-se a se aproximar. Mas Éomer saltou da sela, e a tristeza e o desespero desabaram sobre ele quando se acercou do rei e parou ao seu lado em silencio.
Um dos cavaleiros tomou a bandeira real da mão de Guthláf, o porta-bandeira que jazia morto, e a ergueu. Lentamente Théoden abriu os olhos. Vendo a bandeira, fez um gesto significando que ela deveria ser entregue a Éomer.
— Salve, Rei da Terra dos Cavaleiros! — disse ele. –Cavalgue agora para a vitória! Mande meu adeus a Éowyn! — Assim morreu, sem saber que Éowyn jazia ao seu lado. E aqueles que estavam perto choraram, gritando:
— Rei Théoden! Rei Théoden!
Mas Éomer lhes disse:
— Não chorem demais! Foi um forte quem caiu, foi digno seu fim. Erguida sua tumba, mulheres chorarão. Agora a guerra chama! — Mas ele próprio chorava enquanto falava. — Que os cavaleiros do rei permaneçam aqui — disse ele — e com a devida honra levem o seu corpo, para evitar que a batalha o pisoteie! Sim, e façam o mesmo com todos os homens do rei que aqui jazem. — Olhou para os mortos, relembrando seus nomes. Então, de repente, viu sua irmã Éowyn deitada, e a reconheceu. Parou um momento, como um homem que no meio de um grito é atingido por uma flecha que lhe trespassa o coração; depois seu rosto ficou mortalmente branco, e uma fúria fria cresceu dentro dele, de tal forma que não conseguiu dizer nada por um tempo. Uma sensação de morte o dominou.
— Éowyn, Éowyn! — gritou ele finalmente. — Éowyn, como veio parar aqui? Que loucura ou feitiçaria é esta? Morte, morte, morte! Morte, leva-nos a todos!
Então, sem pensar nem esperar a aproximação dos homens da Cidade, enterrou as esporas no cavalo e voltou direto para a frente do grande exército, tocando uma corneta, e gritando para que começassem o ataque. Por sobre o campo ecoou sua voz cristalina, chamando:
— Morte! Cavalguem, cavalguem para a morte e para a ruína, e para o fim do mundo!
E com isso o exército começou a se mover. Mas os rohirrim não cantavam mais. Morte, gritavam em uma só voz terrível, e, aumentando a velocidade como uma grande onda, sua batalha circundou seu rei caído e avançou rugindo em direção ao sul.
E ainda Meriadoc, o hobbit, estava ali, piscando entre as lágrimas, e ninguém lhe dirigiu a palavra; na realidade, ninguém parecia tê-lo notado. Limpou o rosto e abaixou-se para apanhar o escudo verde que Éowyn lhe dera, e que ele jogara às costas. Então procurou a espada que deixara cair, pois, no momento em que golpeava o inimigo, sentiu o braço adormecer, e agora só conseguia usar o esquerdo. E ora vejam só, lá estava sua espada, mas a lâmina fumegava como um ramo seco que foi jogado no fogo; enquanto assistia, Merry viu a espada se torcendo e encolhendo, até se consumir. Assim desapareceu a espada das Colinas dos Túmulos, trabalho do Ponente. Mas feliz teria ficado se soubesse o destino dela aquele que a
Forjou lentamente, há muito tempo no Reino do Norte, quando os dúnedain eram jovens, e o maior de seus inimigos era o terror do reino de Angmar e de seu rei feiticeiro. Nenhuma Outra lâmina, nem que mãos mais poderosas a tivessem brandido teria causado naquele inimigo um ferimento tão terrível, abrindo a carne morta-viva, quebrando o encanto que prendia seus tendões invisíveis à sua vontade.
Homens agora erguiam o rei, e, dispondo capas sobre lanças, improvisaram uma maca para levá-lo até a Cidade; outros levantaram Éowyn devagar e a levaram atrás dele. Mas não puderam remover do campo, na mesma hora, os homens da casa do rei; sete dos cavaleiros do rei haviam caído ali e entre eles estava Déorwine, seu chefe. Então separaram-nos dos corpos de seus inimigos e da carcaça do animal cruel e fincaram lanças em torno deles. Depois, quando tudo estava terminado, voltaram e fizeram ali uma fogueira, que queimou a carcaça do animal; mas para Snawmana cavaram um túmulo e sobre ele colocaram uma pedra, na qual foi gravado nas línguas de Gondor e da Terra dos Cavaleiros:
Servo fiel, mas de seu senhor algoz, filho de Pesperto, Snawmana veloz.
A relva cresceu alta e verde sobre o Túmulo de Snawmana, mas o chão onde a criatura foi queimada sempre permaneceu negro e árido.
Agora, devagar e triste, Merry caminhava ao lado dos homens que levavam os mortos, sem dar mais atenção à batalha. Estava cansado e cheio de sofrimento, e suas pernas tremiam como se ele estivesse com calafrios. Uma grande chuva chegou do Mar, e parecia que todos os seres choravam por Théoden e Éowyn, extinguindo as fogueiras da Cidade com lágrimas cinzentas. Foi através de uma névoa que de repente o hobbit viu a vanguarda dos homens de Gondor se aproximando. Imrahíl, Príncipe de Doí Amroth, dirigiu-se até eles e conteve seu cavalo.
— Que fardo carregam, Homens de Rohan? — gritou ele.
— O Rei Théoden — responderam eles. — Está morto. Mas agora o Rei Éomer cavalga para a batalha: aquele com a crista branca ao vento.
Então o príncipe desceu do cavalo e se ajoelhou ao lado da maca, prestando homenagem ao rei e ao seu grande ataque; e chorou. Levantando-se, olhou então para Éowyn e ficou surpreso.
— Temos aqui uma mulher, com certeza? — disse ele. — Será que até mesmo as mulheres dos rohirrim vieram para a guerra em nosso auxilio?
— Não! Apenas uma — responderam eles. — Esta é a Senhora Éowyn, irmã de Éomer e não sabíamos nada sobre sua vinda até esta hora, o que lamentamos muito.
Então o príncipe, vendo a beleza dela, embora o rosto estivesse pálido e frio, tocou-lhe a mão no momento em que se debruçou para olhar mais de perto.
— Homens de Rohan! — gritou ele. — Não há médicos entre vocês? Ela está ferida, talvez mortalmente, mas acho que ainda vive. — Aproximou o metal polido que protegia seu braço dos lábios frios dela e, para a surpresa de todos, uma pequena névoa se formou nele, quase invisível.
— Agora precisamos de pressa! — disse ele, enviando um homem de volta à Cidade para buscar ajuda. Mas ele, curvando-se diante dos mortos, disse-lhes adeus, e montando de novo cavalgou para a batalha.
A fúria da luta aumentava agora nos campos do Pelennor; e o ruído do entrechoque das armas subia aos céus, acompanhado pelos gritos dos homens e pelo relinchar dos cavalos. Soavam cornetas e trombetas zurravam, e os múmakil urravam ao serem fustigados para a guerra. Sob as muralhas ao sul da Cidade, os homens de Gondor sem montarias agora atacavam as legiões de Morgul que ainda estavam ali reunidas, resistindo. Mas os cavaleiros se dirigiram para o leste, em auxílio de Éomer: Húrin, o Alto, Guardião das Chaves, e o Senhor de Lossarnach; Hirluin das Colinas Verdes; o Príncipe Imrahil, o Belo, com seus cavaleiros em toda a sua volta.
O auxilio aos rohirrim não chegou demasiado cedo; a sorte se voltara contra Éomer, e sua fúria o traíra. A grande ira de seu ataque tinha derrotado inteiramente a dianteira do inimigo, e as grandes cunhas de seus Cavaleiros haviam penetrado fundo nas fileiras dos sulistas, derrubando seus cavaleiros e vitimando os que iam a pé. Mas, onde quer que surgissem os múmakil, por ali os cavalos não passavam, recuando e desviando; os grandes monstros continuavam invictos, e erguiam-se como torres de defesa; os haradrim se agrupavam em volta deles. Se os rohirrim, no inicio de seu ataque, totalizaram um número três vezes menor que os haradrim sozinhos, logo as coisas pioraram para eles, pois uma nova força despejava-se agora nos campos, vinda de Osgiliath. Haviam sido reunidos lá, para saquear a cidade e violar Gondor, aguardando o chamado de seu Capitão. Ele agora estava destruido, as Gothmog, o tenente de Morgul, os enviara para a luta: orientais com machados, e variags de Khand; sulistas de vermelho e, provenientes do Extremo Harad, homens negros semelhantes a semi-trolls , com olhos brancos e línguas vermelhas. Alguns ainda corriam na retaguarda dos rohirrim, outros se mantinham no oeste, para afastar as forças de Gondor e evitar que elas se juntassem às de Rohan.
Foi exatamente quando o dia começava a se voltar contra Gondor, e sua esperança vacilava, que um novo grito subiu na Cidade, no meio da manhã, com um vento forte soprando, a chuva se dirigindo para o norte e o sol brilhando Naquele ar claro os vigias das muralhas divisaram ao longe uma nova visão de terror, e perderam as últimas esperanças. Pois o Anduin, a partir da curva do Harlond, corria de maneira que da Cidade os homens conseguiam avistar sua extensão por algumas léguas, e os que enxergavam melhor podiam ver qualquer navio que se aproximasse. Olhando naquela direção, gritavam desesperados; negra contra a água reluzente eles divisaram uma frota trazida pelo vento: dromundas e navios de grande calado com muitos remos, com velas negras enfunadas ao vento.
— Os Corsários de Umbar! — gritavam os homens. — Os Corsários de Umbar! Olhem! Os Corsários de Umbar estão chegando. Então Belfalas foi tomada, e também Ethir e Lebennin. Os Corsários estão nos atacando! É o último golpe do destino!
E alguns, num movimento desordenado, pois não se achava ninguém para comandá-los na Cidade, tocaram os sinos e soaram o alarme; outros tocaram as cornetas sinalizando a retirada.
— De volta para as muralhas! — gritavam eles. – De volta para as muralhas! Voltem para a Cidade antes que todos sejam esmagados! — Mas o vento que impelia os navios carregou para longe todo o seu clamor.
Na verdade, os rohirrim não precisaram de avisos ou alarme.
Podiam ver muito bem por si mesmos os navios negros. Pois agora Éomer estava a menos de uma milha do Harlond, e uma grande tropa de seus primeiros inimigos se postava entre ele e o porto, enquanto novos inimigos vinham avançando num turbilhão pela retaguarda, isolando-o do Príncipe. Agora Éomer olhava para o Rio, e a esperança morreu em seu coração, e chamava de maldito o vento que antes abençoara.
Os exércitos de Mordor, por sua vez, sentiam-se encorajados, e cheios de uma nova gana e fúria avançaram gritando para o ataque. Éomer agora recuperara a austeridade e pensava com clareza.
Mandou tocar as cornetas para reunir sob a sua bandeira todos os homens que pudessem chegar até ali; planejava fazer uma grande parede de escudos no final, e resistir, lutando no chão até que todos caíssem, realizando feitos dignos de canções nos campos do Pelennor, mesmo que não sobrasse nenhum homem no oeste para relembrar o último Rei da Terra dos Cavaleiros. Cavalgou então até um montículo verde e ali fincou sua bandeira, e o Cavalo Branco corria, ondulando ao vento.
Trocando a dúvida, trocando o dúbio pelo dia raiando,
Vim cantando ao sol, espada a brandir
Cheguei ao fim da esperança, o coração partido:
Agora é por raiva, agora é por ruína e um crepúsculo de fogo!
Pronunciou esses versos, porém riu enquanto os dizia. Pois mais uma vez o desejo da batalha corria em suas veias, e ele ainda estava ileso, e era jovem, e era rei: senhor de um povo cruel. E eis que, exatamente no momento em que ria do desespero, olhou de novo para os navios negros, e brandiu a espada desafiando-os.
Então foi tomado de surpresa, e de uma grande alegria; jogou a espada para os ares à luz do sol e exultou ao apanhá-la de novo. Todos os olhos seguiram seu olhar e, de súbito, no navio que vinha à frente, uma grande bandeira se desenrolou, e o vento a exibiu no momento em que o navio virava na direção do Harlond. Ali florescia uma Arvore Branca, representando Gondor; mas havia Sete Estrelas ao redor dela, e em cima uma alta corôa, os símbolos de Elendil, que nenhum senhor portara por anos incontáveis. E as estrelas flamejavam à luz do sol, pois foram feitas com pedras preciosas por Arwen, filha de Elrond; a corôa luzia na manhã, pois era feita de mithril e ouro.
Assim chegou Aragorn, filho de Arathorn, Elessar, herdeiro de Isildur, vindo das Sendas dos Mortos, trazido pelo vento que vinha do Mar até o reino de Gondor, e a alegria dos rohirrim foi uma torrente de riso e um clarão de espadas, e o contentamento e a surpresa da Cidade foi uma música de trombeta e um badalar de sinos. Mas os exércitos de Mordor ficaram atônitos, e lhes parecia um grande feitiço que seus próprios navios estivessem cheios de seus inimigos; foram tomados de um terror negro, percebendo que a maré do destino se voltava contra eles, e seu fim estava próximo.
Os cavaleiros de Doí Amroth cavalgaram para o leste, empurrando o inimigo à sua frente: homens-trolls e variags e orcs que odiavam a luz do sol. Éomer avançou para o sul e os homens fugiram diante dele, ficando presos entre o martelo e a bigorna. Pois agora homens saltavam dos navios para os desembarcadouros do Harlond e avançavam para o norte como uma tempestade. Lá vinham Legolas e Gimli, brandindo seu machado; Halbarad com a bandeira; e Elladan e Elrohir com estrelas na fronte, junto com os dúnedain de mãos inclementes. Guardiões do norte, conduzindo uma grande tropa do valoroso povo de Lebennin e Lamedon e dos feudos do sul. Mas à frente de todos vinha Aragorn, com a Chama do Oeste, Andúril, como um novo fogo aceso, Narsil reforjada, letal como antigamente, e em sua testa brilhava a Estrela de Elendil.
Por fim então Aragorn e Éomer encontraram-se em meio á batalha e debruçaram-se sobre suas espadas e olharam um para o outro e ficaram felizes.
— Assim nos encontramos de novo, embora todos os exércitos de Mordor estivessem entre nós — disse Aragorn. — Não foi o que eu disse, no Forte da Trombeta?
— Foi o que disse — falou Éomer —, mas a esperança muitas vezes engana, e eu não sabia que você era um homem com capacidade de ler o futuro. Mas o auxílio que chega sem ser esperado é duplamente abençoado, e nunca um reencontro de amigos foi tão alegre. — Apertaram as mãos.
— Na verdade, nem poderia ser mais oportuno — disse Éomer. — Sua chegada não foi nada precoce, meu amigo. Muitas perdas e tristezas já nos aconteceram.
— Então vamos vingá-las, antes de falarmos nelas! – disse Aragorn, e os dois voltaram juntos para a batalha.
Ainda tiveram uma luta dura e muito trabalho, pois os sulistas eram homens destemidos e obstinados, e cruéis no desespero; os orientais eram fortes e endurecidos pela guerra, e não pediam trégua. Dessa forma, aqui e acolá, perto de celeiros ou casas incendiadas, sobre monte ou barranco, sob muralhas ou nos campos, eles ainda se reuniam e se reagrupavam, lutando até o fim do dia. Então o sol finalmente se pôs atrás do Mindolluin e encheu todo o céu com um grande incêndio, de modo que as montanhas e as colinas ficaram tingidas de sangue; o fogo reluzia no Rio, e a grama do Pelennor jazia rubra ao cair da noite. E naquela hora a grande Batalha do campo de Gondor terminava, e nenhum inimigo vivo foi deixado dentro do circuito da Rammas. Todos foram mortos, exceto aqueles que fugiram para morrer, ou para se afogar na espuma vermelha do Rio.
Poucos conseguiram se dirigir para o leste, para Morgul ou Mordor, e à terra dos haradrim chegou apenas uma história de um lugar longínquo: um rumor da ira e do terror de Gondor.
Aragorn, Éomer e Imrahil cavalgaram de volta na direção do Portão da Cidade; não sentiam alegria nem tristeza, apenas cansaço. Esses três estavam ilesos, tão grandes eram sua sorte e habilidade e o poder de seus braços; na realidade, na hora de sua ira, poucos tiveram a ousadia de resistir a eles ou encará-los. Mas muitos outros estavam feridos, mutilados ou mortos sobre o campo. Forlong fora atingido pelos machados enquanto lutava, sozinho e sem cavalo; Duilin de Morthond e seu irmão foram pisoteados até a morte quando atacavam os múmakil, trazendo seus arqueiros para mais perto, a fim de que atirassem nos olhos dos monstros. Nem
Hirluin, o Belo, voltaria para Pinnath Gelin, nem Grimbold para Grimslade; também não retornaria para as Terras do Norte Halbarad, guardião de mãos inclementes.
Não poucos haviam perecido, renomados ou desconhecidos, capitães ou soldados; pois foi uma grande batalha e nenhuma história contou um relato completo dela. Assim, depois de muito tempo, um poeta de Rohan disse em sua canção sobre os Túmulos de Mundburg:
Notamos das trompas o eco nas colinas,
o esplendor das espadas no Reino do Sul.
Corcéis galopavam para Petroterra
Lá caiu Théoden, poderoso Thengling,
ao dourado palácio e verdes pastagens
nos campos do norte sem jamais retornar;
senhor de seu exército.
Harding e Guthláf Dúnhere e Déorwine,
o valente Grimbold,
Herefara e Herubrand, Horn e Fastred,
lutaram e tombaram em terra tão distante:
em tumbas de Mundburgjazem sob o chão
com colegas coligados, os senhores de Gondor.
Nem Hirluin, o Belo, às colinas junto ao mar;
nem Forlong, o Velho, aos seus vales em flor jamais
para Arnach, sua terra natal, retornaram em triunfo;
nem os altos arqueiros, Derufin e Duilin,
ás suas águas escuras, lagos de Morthond
sob a sombra das montanhas.
A morte de manhã e no final do dia levou nobres e pobres.
Há muito agora dormem sob a grama
de Gondor junto ao Grande Rio.
Águas como lágrimas, rebrilhando cor de prata
ou vermelhas borbulhavam roncando em tumulto:
espuma tinta de sangue em chama ao pôr-do-sol;
quais faróis as montanhas queimavam noite adentro;
o orvalho era vermelho em Rammas Echor
A PIRA DE DENETHOR
No momento em que a sombra escura se afastou do Portão, Gandalf ainda estava sentado sobre o cavalo, imóvel. Mas Pippin levantou-se, como se tivesse se livrado de um grande peso; parou para escutar as cornetas, e teve a impressão de que seu coração explodiria de felicidade. E nunca mais, nos anos que se seguiram, pôde ele ouvir o soar de uma corneta á distância sem que seus olhos se enchessem de lágrimas. Mas de repente lembrou de sua missão e correu à frente. Naquela hora Gandalf se mexeu, disse alguma coisa a Scadufax e já ia saindo pelo Portão.
— Gandalf, Gandalf! — gritou Pippin, e Scadufax parou.
— O que está fazendo aqui? — disse Gandalf. — Não mandam as leis da Cidade que aqueles vestidos de negro e prata fiquem na Cidadela, a não ser que seu senhor lhes permita que se ausentem?
— Ele me deu permissão — disse Pippin. — Mandou-me embora. Mas fiquei com medo. Algo terrível pode acontecer lá em cima. O Senhor está fora de si, eu acho.
Receio que vá se matar, e matar Faramir também. Você não pode fazer alguma coisa?
Gandalf olhou através do Portão escancarado, e ouviu nos campos o som da batalha que já se formava. Crispou as mãos.
— Preciso ir – disse ele. — O Cavaleiro Negro está à solta, e logo trará a destruição. Não tenho tempo.
— Mas Faramir! — gritou Pippin. Ele não está morto, e vão queima-lo vivo, se ninguém os impedir.
— Queimá-lo vivo? — disse Gandalf. — Que história é essa? Seja rápido!
— Denethor foi para as Tumbas — disse Pippin —, levou Faramir, e diz que todos vamos morrer queimados, que ele não vai esperar, e que seus homens devem fazer uma pira e sobre ela queimá-lo, junto com Faramir. E mandou homens buscarem lenha e óleo. Eu contei isso a Beregond, mas o que pode ele fazer, de qualquer forma? Assim Pippin despejou sua história, esticando os braços para o alto e tocando o joelho de Gandalf com mãos trêmulas. — Você não pode salvar Faramir?
— Talvez eu possa — disse Gandalf. — Mas, se fizer isso, outros morrerão, receio eu. Bem, devo ir até ele, uma vez que ninguém mais poderá ajudá-lo. Mas disso resultarão coisas ruins e tristes. No próprio coração de nossa fortaleza o Inimigo tem forças para nos atacar: pois é a sua vontade que está em ação.
Tomada a decisão, ele agiu com rapidez, e, apanhando Pippin, colocou-o à sua frente no cavalo; a uma palavra sua, Scadufax se virou. Os cascos foram batendo contra o chão íngreme das ruas de Minas Tirith, enquanto o barulho da guerra crescia atrás deles. Em todos os cantos havia homens recuperando-se do desespero e do terror, pegando suas armas e gritando: "Rohan chegou!" Capitães gritavam, companhias se agrupavam; muitos já marchavam na direção do Portão. Encontraram o Príncipe Imrahil, e ele os interpelou:
— Para onde agora, Mithrandir? Os rohirrim estão lutando nos campos de Gondor! Precisamos reunir toda a força que pudermos encontrar.
— Você vai precisar de todos os homens e mais ainda — disse Gandalf — apresse-se ao máximo. Irei quando puder. Mas tenho uma missão para o Senhor Denethor que não pode esperar. Assuma o comando na ausência do Senhor!
Passaram adiante e, ao subirem e se aproximarem da Cidadela, sentiram o vento no rosto, e avistaram na distância o reluzir da manhã, uma luz crescendo no céu do sul. Mas isso lhes trouxe pouca esperança, pois não sabiam que mal os aguardava, e temiam chegar tarde demais.
— A escuridão está passando — disse Gandalf—, mas ainda paira pesada sobre esta Cidade.
No portão da Cidadela não encontraram nenhum guarda. – Então Beregond foi para lá — disse Pippin mais esperançoso. Viraram-se e foram depressa ao longo da estrada que conduzia à Porta Fechada. Esta estava totalmente aberta, e o porteiro jazia diante dela. Estava morto e a chave lhe fora tomada.
— Trabalho do Inimigo! — disse Gandalf. — Ele gosta dessas coisas: amigo guerreando contra amigo; lealdade dividida na confusão dos corações. — Desmontou e ordenou que Scadufax voltasse ao estábulo. Pois, meu amigo — disse ele —, você e eu deveríamos ter cavalgado para os campos há muito tempo, mas outros assuntos me detém. Contudo, venha depressa se eu chamar! Entraram pela Porta e desceram a rua íngreme e sinuosa. A luz crescia; e as altas colunas e as figuras esculpidas ao longo do caminho passavam lentamente como fantasmas cinzentos.
De repente o silêncio foi quebrado, e eles ouviram lá embaixo gritos e o tinir de espadas: tais sons não se ouviam nos lugares sagrados desde a construção da Cidade. Por fim chegaram à Rath Dínen e correram para a Casa dos Regentes, que assomava na meia-luz sob sua grande abóbada.
— Parem! Parem! — gritou Gandalf, saltando na direção da escada de pedra diante da porta. — Parem com esta loucura!
Pois lá estavam os servidores de Denethor empunhando espadas e tochas; mas sozinho, no vestíbulo, no degrau mais alto, estava Beregond, vestido no uniforme negro e prata da Guarda; segurando a porta e impedindo que eles entrassem. Dois já tinham caído sob os golpes de sua espada, manchando de sangue o recinto sagrado; os outros o amaldiçoavam, chamando-o de criminoso e traidor do seu mestre.
No momento em que Gandalf e Pippin avançaram, ouviram a voz de Denethor gritar de dentro da casa dos mortos:
— Depressa, depressa! Façam como ordenei! Matem esse renegado! Ou será que eu mesmo terei de faze-lo? — Então a porta que Beregond mantinha fechada com a mão esquerda foi escancarada, e atrás dela postava-se o Senhor da Cidade, alto e cruel, com uma luz de fogo nos olhos, empunhando uma espada.
Mas Gandalf, num salto, subiu os degraus, e os homens recuaram cobrindo os olhos, pois sua chegada foi como a luz branca que irrompe num lugar escuro, e ele avançou furioso. Levantou a mão e, no instante em que Denethor desferia o golpe, a espada voou pelos ares e caiu atrás dele, nas sombras da casa; o Regente recuou diante de Gandalf, atônito.
— O que é isso, meu senhor? — disse o mago. — As casas dos mortos não são lugar para os vivos. E por que há homens lutando aqui, no Recinto Sagrado, quando já existe guerra o suficiente diante do Portão? Ou será que nosso Inimigo conseguiu até mesmo chegar à Rath Dínen?
— Desde quando o Senhor de Gondor te deve explicações? — disse Denethor. — Ou será que não posso comandar meus servidores?
— Você pode — disse Gandalf — Mas outros podem contestar sua vontade, se ela se voltar para a loucura e a maldade. Onde está Faramir, seu filho?
— Está deitado lá dentro — disse Denethor , queimando, já está queimando. Atearam fogo à sua carne. Mas em breve todos estarão queimando. O oeste fracassou. Tudo irá pelos ares numa grande fogueira, e tudo estará terminado. Cinzas! Cinzas e fumaça carregadas pelo vento!
Então Gandalf, percebendo a loucura que tomava conta do Regente, receou que ele já tivesse feito alguma maldade, e forçou a passagem, seguido por Beregond e Pippin, enquanto Denethor foi recuando para dentro, até ficar ao lado da mesa. Mas lá encontraram Faramir, ainda delirando de febre, deitado sobre a mesa. Embaixo dela havia feixes de lenha, que também se erguiam em pilhas altas por toda a volta, e tudo estava encharcado de óleo, até mesmo as roupas e as cobertas de Faramir; mas ainda não se ateara fogo ao combustível. Então Gandalf revelou a força que nele se ocultava, mesmo quando a luz de seu poder se escondia sob seu manto cinzento.
Saltou por cima dos feixes, e erguendo o enfermo com delicadeza desceu de novo, levando-o na direção da porta. Mas nesse momento Faramir gemeu e chamou pelo pai, em meio ao seu delírio.
Denethor fez um movimento brusco, como alguém que acorda de um transe; o fogo morreu em seus olhos, e ele chorou; depois disse:
— Não me tomem meu filho! Ele está me chamando.
— Está sim — disse Gandalf—, mas você ainda não pode se aproximar dele. Pois ele precisa buscar a cura já no limiar da morte, e talvez não a encontre. Enquanto isso você deve sair para a batalha de sua Cidade, onde talvez a morte o aguarde. No fundo, você sabe disso.
— Ele não acordará de novo — disse Denethor. — A batalha é inútil. Por que deveríamos desejar viver por mais tempo? Por que não deveríamos nos encaminhar para a morte lado a lado?
— A autoridade não lhe foi dada, Regente de Gondor, para ordenar a hora de sua morte — respondeu Gandalf — E apenas os reis bárbaros, sob o domínio do Poder Escuro, fizeram isso, matando-se por orgulho e desespero, assassinando seus parentes para aliviar a própria morte. — Então, passando pela porta, levou Faramir da casa mortal e o deitou na cama em que fora trazido, que agora jazia no vestíbulo. Denethor o seguiu e parou, trêmulo, olhando com ansiedade para o rosto do filho.
E por um instante, enquanto todos estavam quietos e imóveis, assistindo ao Senhor em sua agonia, Denethor vacilou.
— Venha — disse Gandalf. — Há quem precise de nós. Ainda há muita coisa que você pode fazer.
Denethor então riu de repente. Erguia-se alto e garboso outra vez, e com passadas rápidas foi até a mesa e tirou dela o travesseiro no qual sua cabeça estivera deitada. Depois, dirigindo-se para a porta, retirou fora a fronha e eis que entre suas mãos estava um palantír. Ergueu-o, e aqueles que olharam o globo tiveram a impressão de que ele começou a reluzir com uma chama interna, de tal modo que o rosto magro do Senhor se acendeu num fogo rubro, e parecia esculpido em pedra, bem definido com sombras escuras, nobre, altivo e terrível. Seus olhos faiscaram.
— Orgulho e desespero! — gritou ele. -Tu pensaste que os olhos da Torre Branca estavam cegos? Não, vi mais do que sabes, Tolo Cinzento. Pois tua esperança é apenas fruto da ignorância. Então vai e trabalha na cura! Avança e luta! Vaidade. Por pouco tempo pode-se triunfar no campo, por um dia. Mas contra o Poder que agora se levanta não há vitória. Esta Cidade só foi atingida pelo dedo mínimo da mão dele. Todo o leste se mobiliza. E neste momento o vento de tua esperança te ilude e traz pelo Anduin uma esquadra de navios negros. O oeste fracassou. Todos os que não quiserem ser escravos devem agora partir.
— Tais conselhos realmente farão da vitória do Inimigo uma certeza — disse Gandalf.
— Pois continua alimentando esperanças! — disse rindo Denethor. — Então não te conheço, Mithrandir? Tua esperança é governar em meu lugar, ficar atrás de todos os tronos, do norte, do sul ou do oeste. Li tua mente e suas políticas. Achas que não sei que tu ordenaste a este Pequeno que ficasse calado? Que tu o trouxeste aqui para ser um espião em meu próprio aposento? Apesar disso, em nossa conversa eu soube os nomes e os propósitos de todos os teus companheiros. Eu sei! Com a mão esquerda tu me usarias por um tempo como um escudo contra Mordor, enquanto com a mão direita trarias este Guardião do Norte para me suplantar.
— Mas eu te digo, Gandalf Mithrandir, não serei teu brinquedo! Sou um Regente da Casa de Anárion. Não vou me rebaixar para ser o camareiro caduco de um arrivista. Mesmo que a reivindicação dele se mostrasse autêntica, ainda assim ele apenas pertence á linhagem de Isildur. Não me curvaria diante desse sujeito, o último representante de uma casa destruída, há muito tempo desprovida de realeza e dignidade.
— Então, o que escolheria você — disse Gandalf—, se seu desejo pudesse ser realizado?
— Eu escolheria as coisas como elas sempre foram em todos os dias de minha vida — respondeu Denethor — e nos dias de meus antepassados que me precederam: ser o Senhor desta Cidade em paz, e deixar meu lugar para um filho depois de mim, um filho que fosse dono da própria vontade, e não o pupilo de um mago. Mas, se o destino me nega isso, então não quero nada: nem a vida diminuída, nem o amor pela metade, nem a honra abalada.
— A mim não pareceria que um Regente que com fidelidade entrega seu cargo fica diminuído em amor ou em honra — disse Gandalf. — E pelo menos você não privaria seu filho do poder de escolha, enquanto ainda há dúvidas sobre sua morte.
Àquelas palavras, os olhos de Denethor se inflamaram de novo e, levando a pedra debaixo do braço, ele sacou uma faca e deu largas passadas na direção da cama. Mas Beregond saltou à frente e se interpôs entre o Regente e Faramir.
— Então! — gritou Denethor. — Tu já roubaste metade do amor de meu filho. Agora roubas também os corações de meus cavaleiros, de modo que por fim eles me roubam inteiramente o meu filho. Mas pelo menos nisto tu não desafiarás minha vontade: não decidirás sobre o meu próprio fim.
— Venham até aqui! — gritou ele para os servidores. — Venham, se não forem todos covardes! — Então dois deles subiram correndo os degraus na direção do Senhor.
Denethor rapidamente apanhou uma tocha da mão de um deles e voltou correndo para o interior da casa. Antes que Gandalf pudesse impedi-lo, jogou a tocha em meio á lenha, que imediatamente crepitou e rugiu em chamas.
Então Denethor saltou para cima da mesa, e parando ali, envolvido em fogo e fumaça, pegou o cajado de sua regência que estava aos seus pés e quebrou-o contra o joelho. Jogando os pedaços nas chamas, curvou-se e se deitou na mesa, agarrando ao peito com as duas mãos o palantír. E conta-se que, depois desse momento, qualquer um que olhasse dentro da Pedra, a não ser que tivesse uma grande força capaz de dirigir a própria vontade para um outro propósito, veria apenas duas mãos idosas crispando-se no fogo. Gandalf , desolado e aterrorizado, virou o rosto e fechou a porta. Por um tempo ficou parado no limiar, pensando, sem dizer nada, enquanto os que tinham ficado do lado de fora ouviam o rugido do fogo lá dentro. Então Denethor deu um enorme grito, e depois não falou mais nada, nem foi visto de novo por nenhum mortal.
— Assim se vai Denethor, filho de Ecthelion — disse Gandalf. Então voltou-se para Beregond e os servidores do Senhor, que se mantinham imóveis e horrorizados.
— E assim se vão também os dias da Gondor que vocês conheceram; para o bem ou para o mal, eles estão terminados. Atos de maldade foram feitos aqui, mas agora deixem que toda a inimizade que existe entre vocês seja afastada, pois tudo isso foi tramado pelo Inimigo e põe em funcionamento a sua vontade. Vocês foram capturados numa teia de ordens antagônicas, teia esta que não foi tecida por vocês. Mas pensem, servidores do Senhor, cegos em sua obediência, que, se não fosse pela traição de Beregond, Faramir, Capitão da Torre Branca, também teria queimado até a morte.
— Levem deste lugar infeliz seus companheiros caídos. E nós levaremos Faramir, Regente de Gondor, a um lugar onde ele possa dormir em paz, ou morrer, se este for o seu destino.
Então Gandalf e Beregond, erguendo a cama, levaram-na para as Casas de Cura, enquanto Pippin ia atrás deles, de cabeça baixa. Mas os servidores do senhor continuavam imóveis, olhando aterrorizados para a casa dos mortos, e no momento em que Gandalf atingia o fim da Rath Dinen ouviu-se um enorme estrondo. Olhando para trás, eles viram a abóbada da casa se partindo e fumaça saindo pelas brechas; então, com uma precipitação e um estrondo de pedras, a abóbada ruiu numa rajada de fogo; mesmo assim, persistentes, as chamas dançavam e faiscavam em meio aos escombros. Os servidores, amedrontados, correram e seguiram Gandalf.
Depois de algum tempo chegaram de volta á Porta do Regente, e Beregond olhou com tristeza para o porteiro.
— Este feito eu sempre lamentarei — disse ele —; mas eu estava tomado de uma pressa alucinada, e ele não quis ouvir, sacando a espada contra mim. — Então, pegando a chave que tomara do homem morto, fechou a porta, trancando-a. — Deve ser entregue agora ao Senhor Faramir – disse ele.
— O Príncipe de Doí Amroth está no comando, na ausência do Senhor — disse Gandalf —; mas, já que ele não está aqui, devo me responsabilizar por ela. Peço-lhe que guarde a chave num lugar seguro, até que a Cidade esteja em ordem outra vez.
Agora finalmente entravam nos altos círculos da Cidade, e na luz matinal foram fazendo seu caminho na direção das Casas de Cura, eram casas belas, destinadas ao tratamento daqueles que estavam seriamente enfermos, mas agora estavam preparadas para o tratamento de homens feridos na batalha ou agonizantes.
Não ficavam longe da Cidadela, no sexto círculo, próximas à muralha sul, e ao redor delas havia um jardim e um gramado com árvores; era o único estabelecimento do gênero na Cidade.
Ali moravam as poucas mulheres ás quais fora permitido permanecer em
Minas Tirith, uma vez que eram habilidosas na cura ou no auxilio aos curadores.
Mas, no momento em que Gandalf e seus companheiros chegaram carregando a cama á porta principal das Casas, ouviram um grande grito subindo do campo diante do Portão, que foi ficando agudo e passou trespassando o céu, extinguindo-se no vento. Foi um grito tão terrível que por um momento todos ficaram paralisados; mas, quando passou, de repente todos os corações se enlevaram numa esperança que não sentiam desde que a escuridão viera do leste, e tiveram a impressão de que a luz ficava mais clara e que o sol aparecia por entre as nuvens.
Mas o rosto de Gandalf estava grave e triste e, ordenando a Beregond e Pippin que levassem Faramir para as Casas de Cura, ele subiu nas muralhas e ali, como uma figura esculpida em branco, sob a luz do sol novo, olhou para fora. E com a visão que lhe fora dada viu tudo o que ocorrera; quando Éomer se afastou da dianteira de sua tropa e parou ao lado daqueles que haviam caido no campo, suspirou e, cobrindo-se com a capa, abandonou as muralhas. Quando saíram, Beregond e Pippin encontraram-no parado, pensativo, diante da porta das Casas.
Olharam para ele, que por um tempo ficou em silêncio. Por fim falou.
— Meus amigos — disse ele —, e todos vocês, povo desta cidade e das terras do oeste! Acontecimentos muito tristes e importantes se passaram. Devemos chorar ou nos alegrar? Além de qualquer esperança, o Capitão de nossos inimigos foi destruido, e vocês ouviram o eco de seu último desespero. Mas ele não partiu sem antes deixar muito sofrimento e perdas amargas. E isso eu poderia ter evitado, não fosse pela loucura de Denethor. Tão poderoso foi o alcance de nosso Inimigo! É triste, mas agora percebo como sua vontade conseguiu penetrar o próprio coração da Cidade.
— Embora os Regentes considerassem que esse segredo era sabido apenas por eles próprios, há muito tempo desconfiei de que aqui, na Torre Branca, pelo menos uma das Sete Pedras Videntes era preservada. Em seus dias de sabedoria, Denethor não pretendia usá-la, nem desafiar Sauron, sabendo os limites da própria força. Mas sua sabedoria fracassou, e receio que no momento em que o perigo de seu reino cresceu ele tenha olhado dentro da Pedra, sendo ludibriado: muitas vezes, suponho eu, desde que Boromir partiu. Ele era grande demais para se submeter à vontade do Poder do Escuro, mas ele só via as coisas que o Poder lhe permitia ver. O conhecimento que obteve, sem dúvida, muitas vezes lhe foi útil; apesar disso, a visão do grande poder de Mordor que lhe foi revelada alimentou o desespero de seu coração até subjugar sua mente.
— Agora entendo o que me parecia tão estranho! – disse Pippin, estremecendo ao falar de suas recordações. — O Senhor saiu da sala onde Faramir estava, e foi só quando retornou que percebi pela primeira vez que ele estava alterado, envelhecido e destruido.
— Foi exatamente na hora em que Faramir foi trazido para a Torre que muitos de nós vimos uma estranha luz no cômodo mais alto – disse Beregond. — Mas já vimos a luz antes, e corriam havia muito tempo rumores na Cidade de que o Senhor ás vezes lutava em pensamento contra seu Inimigo.
— Então infelizmente minhas suposições estavam corretas – disse Gandalf. — Foi dessa forma que a vontade de Sauron penetrou em Minas Tirith; e dessa forma eu me demorei aqui. E aqui ainda serei forçado a permanecer, pois logo terei outros encargos, além de Faramir.
— Agora preciso descer ao encontro daqueles que chegam. Vi uma cena no campo que me dói muito no coração, e uma tristeza maior ainda pode sobrevir. Venha comigo, Pippin! Mas você, Beregond, deve retornar à Cidadela e contar ao chefe da Guarda de lá o que aconteceu. Receio que será dever dele expulsá-lo da Guarda; mas diga a ele que, se eu puder dar a minha opinião, você deveria ser enviado para as Casas de Cura, para ser o guarda e o servidor de seu capitão, e estar por perto quando ele despertar — se isso vier a acontecer de novo. Pois foi você quem o salvou do fogo. Vá agora! Eu voltarei logo.
Dizendo isso ele se virou e desceu com Pippin na direção da cidade baixa. E, no momento em que se apressavam no caminho, o vento trouxe uma chuva cinzenta, e todas as fogueiras se apagaram, e uma grande fumaça subiu diante deles.
AS CASAS DE CURA
Uma névoa de lágrimas e cansaço cobria os olhos de Merry quando eles se aproximaram das ruínas do Portão de Minas Tirith. Pouca atenção dava ele aos escombros e sinais do massacre que se espalhavam por toda a volta. Havia fogo, fumaça e um cheiro forte no ar; muitas máquinas haviam sido incendiadas ou jogadas nas trincheiras de fogo, como também muitos dos mortos, ao passo que aqui e ali jaziam muitas carcaças dos grandes monstros dos sulistas, semicarbonizados ou destruídos por pedras arremessadas, ou ainda alvejados no meio dos olhos pelas flechas dos valorosos arqueiros de Morthond. A rajada de chuva cessara por um tempo e o sol reluzia alto no céu, mas toda a cidade mais baixa ainda estava envolta num vapor fétido.
Homens já trabalhavam abrindo um caminho através dos destroços da batalha; agora, do Portão, chegavam algumas macas. Com toda a delicadeza, deitaram Éowyn sobre travesseiros macios; mas cobriram o corpo do rei com um grande tecido dourado, e o acompanharam carregando tochas, cujas chamas, pálidas à luz do sol, tremulavam ao vento.
Foi assim que Théoden e Éowyn chegaram á Cidade de Gondor, e todos que os viam descobriam as cabeças e faziam reverência; os dois passaram através das cinzas e da fumaça do circulo queimado, e continuaram subindo ao longo das ruas de pedra. Merry teve a impressão de que a subida durou uma eternidade, uma viagem sem sentido num sonho odioso, que avançava sempre e sempre para algum fim obscuro que a memória não pode reter.
Lentamente as luzes das tochas á sua frente bruxulearam e se extinguiram, e Merry caminhava numa escuridão, ao pensar: "Isto é um túnel que conduz a um túmulo; lá permaneceremos para sempre." Mas de súbito, em seu devaneio, surgiu uma voz viva.
— Merry! Ainda bem que o encontrei!
Ergueu os olhos, e a névoa em seus olhos se dissipou um pouco. Lá estava Pippin! Estavam cara a cara numa passagem estreita que, a não ser pelos dois, estava vazia. Merry esfregou os olhos.
— Onde está o rei? — disse ele. — E Éowyn? – Então tropeçou e caiu sentado na soleira de uma porta, rompendo outra vez em pranto.
— Eles subiram para a Cidadela — disse Pippin. — Acho que você adormeceu andando e pegou o caminho errado. Quando descobrimos que você não estava com eles, Gandalf me mandou procurá-lo. Pobre Merry! Como me alegro em vê-lo outra vez! Mas você está exausto, e não vou incomodá-lo com conversas. Mas, diga-me, está ferido ou machucado?
— Não — disse Merry. — Bem, pelo menos acho que não. Mas não consigo mexer o braço direito, Pippin, desde quando o golpeei. E minha espada se consumiu em chamas, como um pedaço de madeira. O rosto de Pippin estava aflito. — Bem, é melhor vir comigo o mais depressa possível — disse ele. — Gostaria de poder carregá-lo. Você não está em condições de continuar andando. De forma alguma deveriam ter permitido que você andasse, mas deve perdoá-los. Coisas tão terríveis aconteceram na Cidade, Merry, que um pobre hobbit retornando da batalha pode facilmente passar despercebido.
Nem sempre é uma infelicidade passar despercebido — disse Merry. — Foi o que aconteceu comigo agora há pouco, quando não fui visto pelo.. não, não, não consigo falar disso. Ajude-me, Pippin! Está ficando tudo escuro outra vez, e meu braço está tão frio.
— Apóie-se em mim, Merry, meu rapaz! — disse Pippin. — Vamos agora, passo a passo. Não é longe.
— Você vai me sepultar? — disse Merry.
— Claro que não! — disse Pippin, tentando parecer alegre, embora tivesse o coração angustiado pelo medo e pela pena. — Não, você vai para as Casas de Cura.
Saíram do caminho que avançava por entre casas altas e a muralha externa do quarto circulo, retomando a rua principal que subia para a Cidadela. Avançaram passo a passo, enquanto Merry cambaleava e murmurava como alguém que está dormindo.
"Nunca conseguirei levá-lo até lá", pensou Pippin. "Não há ninguém que possa me ajudar? Não posso deixá-lo aqui." Bem nesse momento, para a surpresa do hobbit, um menino chegou correndo às suas costas, e no instante em que passou Pippin reconheceu Bergil, o filho de Beregond.
— Olá — Bergil! — chamou ele. — Aonde está indo? Fico feliz em revê-lo, e ainda vivo!
— Estou a serviço dos Curadores — disse Bergil. – Não posso ficar.
— Não estou pedindo isso! — disse Pippin. — Mas diga-lhes lá em cima que trago comigo um hobbit doente, um perian, veja bem, que chega do campo de batalha. Acho que ele não aguenta chegar até lá andando. Se Mithrandir estiver lá, ficará feliz em receber a mensagem. — Bergil saiu correndo.
"É melhor esperar aqui", pensou Pippin. Então colocou Merry suavemente na calçada, num trecho ensolarado, sentando-se ao lado e deitando no colo a cabeça do amigo. Apalpou seu corpo e suas pernas com delicadeza, e segurou-lhe as mãos entre as suas. A direita estava fria como gelo.
Não demorou muito para que Gandalf em pessoa viesse ao encontro deles. Abaixou-se sobre Merry e acariciou-lhe a fronte; então ergueu-o cuidadosamente. — Ele deveria ter sido carregado com todas as honras para esta cidade — disse ele — Sem dúvida correspondeu à minha confiança; se Elrond não tivesse cedido à minha solicitação, nenhum de vocês dois teria partido; então os males deste dia teriam sido muito mais lamentáveis. — O mago suspirou.
— Apesar disso, tenho um outro encargo em minhas mãos, e durante todo esse tempo a batalha permanece indecisa.
Finalmente Faramir, Éowyn e Meriadoc foram colocados em leitos nas Casas de Cura e lá foram bem cuidados. Pois, embora naqueles últimos tempos todo o conhecimento tivesse decaído em relação aos Dias Antigos, a arte de cura de Gondor ainda era competente, habilidosa nos cuidados com os feridos, e no trato de todas as doenças que pudessem acometer os homens mortais a leste do Mar. Exceto a idade avançada. Para isso não haviam encontrado cura; de fato a longevidade daquele povo diminuíra, ficando pouco maior que a dos outros homens; eram poucos os que ultrapassavam com vigor a conta de cinco vintenas de anos, a não ser nas casas de sangue mais puro. Mas agora sua arte e seu conhecimento se quedavam perplexos, pois havia muitos doentes de uma enfermidade que não podia ser curada; chamavam-na de Sombra Negra, pois vinha dos nazgúl. Aqueles acometidos por ela caiam lentamente num sonho cada vez mais profundo, entrando então no silêncio e numa frieza mortal, e assim morriam.
Parecia aos que cuidavam dos feridos que essa enfermidade se manifestara de maneira grave no Pequeno e na Senhora de Rohan. Ainda algumas vezes, no final da manhã, eles chegaram a falar alguma coisa, murmurando em seus sonhos; os que cuidavam deles escutavam tudo o que diziam, na esperança de talvez aprender alguma coisa que lhes possibilitasse entender-lhes os ferimentos. Mas logo começaram a cair na escuridão, e quando o sol se aproximava do oeste uma sombra cinzenta cobriu os rostos dos doentes. Mas Faramir queimava numa febre que não cedia.
Gandalf ia de um leito para o outro cheio de preocupação, e os atendentes lhe contavam tudo o que tinham conseguido escutar. Assim passou-se o dia, enquanto a grande batalha continuava lá fora em meio a esperanças inconstantes e estranhas noticias; e Gandalf ainda esperava e vigiava, sem sair de perto; finalmente um ocaso rubro cobriu todo o céu, e a luz que vinha das janelas bateu nos rostos cinzentos dos enfermos. Então os que estavam por perto tiveram a impressão de que naquela luz um rubor espalhou-se nos rostos, como se a saúde estivesse retornando, mas aquilo era apenas um arremedo de esperança. Então uma senhora idosa, Ioreth, a mais velha das mulheres que trabalhavam naquela casa, olhando no belo rosto de Faramir, chorou, pois todo o povo o amava. E ela disse:
— Ai de nós se ele morrer! Ah, se houvesse reis em Gondor, como contam que havia outrora! Pois diz a sabedoria que as mãos dos reis são sempre as mãos de um curador. Dessa maneira sempre se sabia quem era o verdadeiro rei.
E Gandalf, que estava ao lado, disse:
— Talvez os homens se recordem de suas palavras por muito tempo, Ioreth! Pois nelas há esperança. Talvez um rei realmente tenha retornado a Gondor; ou será que você não ouviu as estranhas noticias que chegaram à Cidade?
— Tenho estado por demais ocupada com uma coisa e outra para dar atenção a todos os gritos e clamores — respondeu ela. — Tudo o que espero é que esses demônios assassinos não venham até esta Casa perturbar os enfermos.
Então Gandalf saiu apressado, e o fogo no céu já estava se extinguindo, e as colinas em brasa se apagavam, enquanto uma noite de cinzas cobria os campos.
Agora que o sol se punha, Aragorn, Éomer e Imrahil se aproximavam da Cidade com seus capitães e cavaleiros; quando chegaram diante do Portão, Aragorn disse:
— Vejam o sol que se põe num grande fogo! Isto é o sinal do fim e da queda de muitas coisas, e de uma mudança nas marés do mundo. Mas esta Cidade e este reino permaneceram por muitos longos anos nas mãos dos Regentes, e receio que, entrando sem ser convidado, eu desperte dúvidas e controvérsias, que não deveriam surgir enquanto durar a guerra. Não entrarei, nem farei qualquer reivindicação, até que se saiba quem será o vencedor, nós ou Mordor. Os homens devem montar minhas tendas no campo, e aqui aguardarei as boas-vindas do Senhor da Cidade.
Mas Éomer disse:
— Você já ergueu a bandeira dos Reis e exibiu os símbolos da casa de Elendil. Vai permitir que sejam contestados"?
— Não — disse Aragorn. — Mas acho que ainda é cedo, e não desejo disputas, a não ser com nosso Inimigo e seus servidores.
E o Príncipe Imrahil disse:
— Se alguém que é parente do Senhor Denethor puder aconselhá-lo nesta questão, digo-lhe, senhor, que suas palavras são sábias. Ele é um homem obstinado e altivo, mas também é velho; sua disposição tem estado estranha desde que o filho foi atacado. Apesar disso, não gostaria que ficasse como um mendigo na porta.
— Não como um mendigo — disse Aragorn. — Diga como um capitão dos guardiões, que não estão acostumados a cidades e casas de pedra. — Ordenou então que sua bandeira fosse recolhida, e retirou a Estrela do Reino do Norte, deixando-a aos cuidados dos filhos de Elrond.
Então o Príncipe Imrahil e Éomer de Rohan o deixaram, atravessando a Cidade e o tumulto do povo, subindo para a Cidadela; chegaram ao Salão da Torre, procurando o Regente. Mas encontraram vazia a sua cadeira, e diante do estrado jazia em câmara ardente Théoden, Senhor da Terra dos Cavaleiros; doze tochas erguiam-se ao redor de seu corpo, e doze homens o guardavam, cavaleiros de Rohan e de Gondor. Os ornamentos do leito de morte eram verdes e brancos, mas o rei fora coberto até o peito com um grande tecido dourado, sobre o qual repousava a espada desembainhada, e aos pés estava o escudo. A luz das tochas reluzia em seus cabelos brancos como o sol contra o jato de uma fonte, mas o rosto era belo e jovem; apesar disso, expressava uma paz além do alcance da juventude; o rei parecia estar dormindo.
Após terem ficado em silêncio por um tempo ao lado dele, Imrahil disse:
— Onde está o Regente? E onde está Mithrandir"?
Um dos guardas respondeu:
— O Regente de Gondor está nas Casas de Cura.
Mas Éomer disse:
— Onde está a Senhora Éowyn, minha irmã? Certamente deveria estar deitada ao lado do rei, merecendo as mesmas honras. Onde a puseram?
E Imrahil disse:
— Mas a Senhora Éowyn ainda estava viva quando a trouxeram para cá. Você não sabia?
Um alento inesperado chegou tão de repente ao coração de Éomer, e com ele a fisgada da preocupação e do medo renovados, que ele não disse mais nada, e deixou apressado o salão. O Príncipe o seguiu. Quando saíram, a noite já caíra e viam-se muitas estrelas no céu. E lá vinha Gandalf a pé, acompanhado de alguém envolto numa capa cinzenta; encontraram-se diante das portas das Casas de Cura.
Saudaram Gandalf e disseram:
— Estamos á procura do Regente, e disseram que ele está nesta Casa. Ele está ferido? E a Senhora Éowyn, onde está ela?
Gandalf respondeu:
— Ela está lá dentro e ainda está viva, mas ás portas da morte. Mas o Senhor Faramir foi ferido por uma flecha maligna, como ouviram falar, e ele agora é o Regente; Denethor partiu, e de sua casa só restam cinzas.
— Os dois se encheram de surpresa e dor ao ouvir tal relato.
Mas Imrahil disse:
— Então a vitória carece de alegria, e pagamos por ela um preço amargo, se num só dia Gondor e Rohan ficaram privadas de seus senhores. Éomer governa os rohirrim. Quem deverá governar a Cidade enquanto isso? Não devemos agora mandar chamar o Senhor Aragorn?
O homem coberto com a capa disse:
— Ele já chegou. — Então os outros perceberam, no momento em que ele se aproximou da luz da lamparina perto da porta, que se tratava de Aragorn, envolto na capa cinzenta de Lórien que cobria sua armadura, trazendo como insígnia apenas a pedra verde de Galadriel. –Vim porque Gandalf me pediu — disse ele. — Mas por enquanto sou apenas o Capitão dos Dúnedain de Amor; e o Senhor de Doí Amroth deverá governar a Cidade até que Faramir desperte. Mas tenho a opinião de que Gandalf deveria nos governar a todos nos dias que se seguirem em nossas negociações com o inimigo.
— Todos concordaram com isso.
Então Gandalf disse:
— Não fiquemos parados aqui na porta, pois o tempo urge. Vamos entrar! Pois só com a chegada de Aragorn haverá esperança para os enfermos que jazem na Casa. Pois assim falou Ioreth, mulher sábia de Gondor: As mãos do rei são as mãos de um curador, e dessa forma o verdadeiro rei será conhecido.
Aragorn entrou primeiro e os outros o seguiram. À porta estavam dois guardas, vestidos com o uniforme da Cidadela: um era alto, mas o outro mal atingia a altura de um menino; este último, quando os viu, gritou de alegria e surpresa.
— Passolargo! Esplêndido! Sabe, achei que era você nos navios negros. Mas estavam todos gritando corsários, e não quiseram me ouvir. Como fez aquilo?
Aragorn riu e segurou a mão do hobbit.
— É realmente bom encontrá-lo! — disse ele. — Mas ainda não é hora de contar histórias de viajantes.
Mas Imrahil disse a Éomer:
— É assim que dirigimos a palavra a nossos reis? Mas talvez ele assuma a corôa sob um outro nome!
E Aragorn, ouvindo aquilo, voltou-se e disse: — Realmente, pois na língua nobre de antigamente sou Elessar, a Pedra Élfica, e Envinyatar, o Renovador: — ergueu então a pedra que repousava sobre o peito. — Mas "Passolargo" será o nome de minha casa, se esta vier a se estabelecer. Na língua nobre, o nome não soará tão mal, e serei Telcontar, assim como todos os herdeiros de meu corpo.
Com isso entraram na Casa e, enquanto iam em direção aos quartos onde os enfermos estavam sendo cuidados, Gandalf contou os feitos de Éowyn e Meriadoc. — Pois — disse ele — fiquei um longo tempo ao lado deles, e no inicio falavam muito em seus sonhos, antes de mergulharem na escuridão mortal. Além disso, foi-me concedido o poder de ver muitas coisas distantes.
Aragorn foi primeiro ver Faramir, depois a Senhora Éowyn e por último Merry. Após olhar os rostos dos enfermos e examinar seus ferimentos, suspirou.
— Aqui devo exercer todo o poder e a habilidade que me foram concedidos – disse ele. — Como queria que Elrond estivesse conosco, pois ele é o mais velho de nossa raça, e possui os maiores poderes.
E Éomer, vendo como ele estava infeliz e cansado, disse:
— Primeiro precisa descansar, com certeza, e no mínimo comer alguma coisa.
Mas Aragorn respondeu:
— Não, pois para estas três pessoas, principalmente para Faramir, o tempo está se esgotando. Precisamos de toda a rapidez.
Então chamou Ioreth e disse:
— Há nesta Casa algum estoque das ervas de cura?
— Sim, senhor — respondeu ela —; mas acho que não temos o suficiente para todos os que necessitam. Mas não tenho idéia de onde poderemos encontrar mais; falta tudo nestes dias terríveis, por causa dos fogos e incêndios, do reduzido número de meninos mensageiros, e das estradas bloqueadas. Já faz dias sem conta que um transportador que um transportador veio de Lossarnach com provisões! Mas fazemos o possível nesta Casa com o que possuímos, como tenho certeza que Vossa Senhoria verá.
— Julgarei quando vir — disse Aragorn. — Uma coisa também está escassa, tempo para conversas. Você tem athelas?
— Essa eu não conheço, senhor — respondeu ela —, pelo menos não por esse nome. Vou perguntar ao nosso mestre-de-ervas; ele conhece todos os nomes antigos.
— Também é chamada folha-do-rei — disse Aragorn —; talvez você a conheça por esse nome, pois assim as pessoas do campo a chamam nestes últimos tempos.
— Ah, essa! — disse Ioreth. — Bem, se Vossa Senhoria tivesse mencionado esse nome primeiro, eu poderia ter-lhe dito antes. Não, não temos nem um pouco, com certeza. Ora, nunca ouvi dizer que essa erva tivesse grandes poderes de cura; na verdade disse várias vezes a minhas irmãs quando a encontrávamos na floresta: "Folha-do-rei", dizia eu, "nome esquisito, e fico pensando o motivo desse nome; pois, se eu fosse um rei, teria plantas mais belas em meu jardim." Mas ela exala um cheiro doce quando é esmagada, não é mesmo? Se "doce" for a palavra certa: talvez seja mais correto dizer "saudável".
— Realmente saudável — disse Aragorn. — E agora, dama, se você ama o Senhor Faramir, vá com a mesma agilidade de sua língua e me traga folha-do-rei, nem que haja uma só folha na Cidade.
— E se não houver — disse Gandalf — vou a Lossarnach a cavalo com Ioreth na garupa, e ela me levará até a floresta, mas não até as irmãs dela. E Scadufax poderá ensinar-lhe o que significa pressa.
Depois que Ioreth partiu, Aragorn pediu que as outras mulheres providenciassem água quente. Então tomou a mão de Faramir nas suas, e pousou a outra mão na fronte do enfermo. Estava molhada de suor, mas Faramir não se moveu nem fez qualquer sinal; mal parecia estar respirando.
— Ele está quase morto — disse Aragorn voltando-se para Gandalf. — Mas não é por causa do ferimento. Veja! Está cicatrizando. Se Faramir tivesse sido golpeado por algum dardo dos nazgúl, como você pensou, teria morrido na mesma noite. Esse ferimento foi feito por alguma flecha dos sulistas, suponho eu. Quem a retirou? Ela foi guardada?
— Eu a retirei — disse Imrahil — e estanquei o sangue. Mas não guardei a flecha, pois tínhamos muito a fazer. Pelo que recordo, era um dardo do tipo usado pelos sulistas. Mas achei que tinha vindo das Sombras do alto, pois caso contrário não haveria como entender a doença e a febre, já que o ferimento não foi profundo nem mortal. Como então interpreta o fato?
— Cansaço, tristeza pela disposição do pai, um ferimento, e acima de tudo o Hálito Negro — disse Aragorn. — Faramir é um homem de vontade firme, pois já chegara perto da Sombra antes mesmo de partir para a batalha nas muralhas externas. A escuridão deve ter-se apossado lentamente dele, no momento em que lutava e se esforçava para proteger seu posto avançado. Ah, se eu pudesse ter chegado aqui mais cedo!
Logo em seguida entrou o mestre-de-ervas.
— Vossa Senhoria solicitou a folha-do-rei, como os rústicos a chamam — disse ele —, ou athelas na língua nobre, ou ainda para aqueles que conhecem um pouco da língua de Valinor...
— Eu a conheço — disse Aragorn —; e não quero saber se você a chama de aséaaranion ou folha-do-rei, contanto que tenha um pouco.
— Desculpe-me, senhor! disse o homem. — Percebo que é um mestre na tradição, e não simplesmente um capitão de guerra. Mas lamento, senhor, nós não guardamos essa coisa nas Casas de Cura, onde cuidamos apenas dos que estão gravemente enfermos ou feridos. Pois essa erva não possui nenhum poder que conheçamos, talvez apenas o de suavizar um ar pestilento, ou afastar alguma aflição passageira. A não ser, é claro, que se dê importância às rimas de dias antigos, que as mulheres como nossa boa Ioreth ainda repetem sem entender:
Quando o sopro negro desce
e a sombra da morte cresce
e toda a luz se desfaz,
vem athelas! vem athelas!
Vida dos que morrendo estão,
Que o rei detém em sua mão.
Não passam de antigos versos mal feitos, receio eu, deturpados na memória das mulheres velhas. O significado, se realmente existir algum, deixo para que o senhor o julgue. Mas as pessoas velhas ainda usam uma infusão da erva contra dores de cabeça.
— Então, em nome do rei, vá procurar algum velho de menos tradição e mais sabedoria, que tenha um pouco da erva em sua casa! — gritou Gandalf
Agora Aragorn estava de joelhos ao lado de Faramir, com uma mão sobre sua fronte. Os que observavam sentiam que alguma grande luta estava acontecendo. Pois o rosto de Aragorn ficou cinzento de tanto cansaço; de vez em quando, chamava o nome de Faramir, mas sua voz saia cada vez mais fraca, como se o próprio Aragorn estivesse longe dali, vagando em algum vale escuro e distante, chamando alguém que tivesse perdido.
E finalmente Bergil entrou correndo, trazendo seis folhas num pano.
— É folha-do-rei, Senhor — disse ele mas receio que não esteja fresca. Deve ter sido colhida no mínimo há duas semanas. Espero que sirva, Senhor.
Então, olhando para Faramir, o menino rompeu em lágrimas.
Mas Aragorn sorriu.
— Vai servir — disse ele. — Agora o pior já passou. Fique e tranquilize-se! — Então, pegando duas folhas, colocou-as nas mãos e soprou nelas, amassando-as em seguida; imediatamente um frescor de vida encheu o quarto, como se o próprio ar tivesse despertado e estremecido, faiscando de alegria. Depois Aragorn jogou as folhas nas tigelas de água fumegante que lhe foram trazidas, e na mesma hora todos os corações ficaram mais leves. A fragrância que atingiu cada um era como uma lembrança de manhãs orvalhadas, de sol sem sombras, em alguma ter a cujo próprio mundo de beleza primaveril é apenas uma memória fugidia. Aragorn se levantou reconfortado, e seus olhos sorriram no momento em que aproximou a tigela do rosto dormente de Faramir.
— Veja só! Você acreditaria nisto? — disse Ioreth a uma mulher que estava ao seu lado. — A erva é melhor do que eu pensava. Faz-me lembrar das rosas de Imloth Melui, quando eu era uma menina, e nenhum rei poderia exigir erva melhor.
De repente Faramir se mexeu, e abriu os olhos, fitando Aragorn que se debruçava sobre ele; uma luz de consciência e amor se acendeu em seu olhar, e ele falou numa voz baixa.
— O Senhor me chamou. Estou aqui. Qual é a ordem do rei?
— Deixe de caminhar nas sombras, e desperte! – disse Aragorn. — Você está exausto. Descanse um pouco e coma alguma coisa; esteja pronto quando eu retornar.
— Farei isso, senhor — disse Faramir. — Pois quem ficaria deitado sem fazer nada quando o rei está de volta?
— Então até logo! — disse Aragorn. — Devo ver outros que precisam de mim. — Deixou então o quarto com Gandalf e Imrahil; mas Beregond e o filho ficaram, incapazes de conter a alegria que sentiam. Indo atrás de Gandalf e fechando a porta, Pippin ouviu Ioreth exclamar:
— Rei! Você ouviu isso? Que foi que eu disse? As mãos de um curador, foi isso que eu disse. — E logo da Casa propagou-se a noticia de que o rei verdadeiramente estava entre eles, e depois da guerra trouxera a cura, e as novas se espalharam pela Cidade.
Mas Aragorn aproximou-se de Éowyn e disse:
— Temos aqui um ferimento grave; foi um golpe forte. O braço quebrado foi cuidado com a devida habilidade, e vai se recuperar com o tempo, se ela tiver forças para viver. É o braço do escudo que foi ferido, mas o maior mal está no braço da espada. Parece não haver vida nele, apesar de estar inteiro.
— É lamentável! Ela enfrentou um inimigo acima das forças de sua mente e corpo. E aqueles que erguem uma arma contra tal inimigo devem ser mais inflexíveis que o aço, para que o próprio choque não os destrua. Foi um destino cruel que a colocou nesse caminho. Pois é uma linda donzela, a mais bela senhora de uma casa de rainhas. Apesar disso, não sei como devo falar dela. A primeira vez que a vi, percebi sua infelicidade; pareceu-me uma flor branca erguendo — se ereta e altiva, esbelta como um lírio, e mesmo assim sabia que era rígida, como se esculpida em aço por artesãos élficos. Ou será que uma geada havia transformado sua seiva em gelo, e assim ela se erguia, doce e amarga, ainda bela de se olhar, mas ferida, prestes a cair e morrer? A doença de Éowyn começou muito antes deste dia, não é, Éomer?
— Surpreende-me que me pergunte isso, senhor — respondeu ele. — Pois considero-o sem culpa nesse assunto, e em tudo mais; apesar disso, não sabia que Éowyn, minha irmã, havia sido tocada por qualquer geada até a primeira vez em que o viu. Ela sentia medo e preocupação, e os partilhava comigo. Nos dias de Língua de Cobra, quando o rei estava enfeitiçado; cuidava do rei com uma preocupação crescente. Mas isso não a trouxe para este caminho!
— Meu amigo! — disse Gandalf —, você tinha cavalos, e ação armada, e campos livres; mas ela, nascida com o corpo de uma donzela, tinha um espírito e uma coragem no mínimo à altura dos seus. Apesar disso, estava fadada a servir a um velho, a quem amava como a um pai, e a observá-lo cair numa senilidade desonrosa e miserável; seu papel lhe parecia mais ignóbil do que o do bastão no qual ele se apoiava.
— Você acha que Língua de Cobra envenenava apenas os ouvidos de Théoden? Velho caduco! O que é a casa de Eorl a não ser um estábulo com teto de palha, onde os bandidos bebem em meio ao mau cheiro, e seus fedelhos rolam pelo chão junto com os cachorros? Nunca ouviu essas palavras antes? Quem as disse foi Saruman, o professor de Língua de Cobra. Mas não duvido que Língua de Cobra, em casa, tenha adornado seu significado com termos mais astuciosos. Meu senhor, se o amor que sua irmã lhe devotava, juntamente com sua determinação em cumprir seu dever, não lhe tivessem cerrado os lábios, você até poderia ter ouvido palavras semelhantes a essas escapando deles. Mas quem pode saber o que ela falava para a escuridão, sozinha, nas amargas vigílias noturnas, quando toda a sua vida parecia estar se contraindo, e as paredes de seu aposento se fechando à sua volta, uma gaiola para trancafiar algum ser selvagem?
Éomer ficou então em silêncio, olhando para a irmã, como se ponderasse outra vez todos os dias de sua vida que passara junto a ela. Mas Aragorn disse:
— Eu também vi o que você viu, Éomer. Dentre todos os acasos cruéis deste mundo, poucas tristezas trariam mais amargura e vergonha para o coração de um homem do que observar o amor de uma senhora tão bela e corajosa que não pode ser correspondido. A tristeza e a pena me seguiram desde que a deixei, desesperada, no Templo da Colina e cavalguei para as Sendas dos Mortos, e nenhum temor esteve tão presente naquele caminho quanto o que eu sentia pelo que poderia acontecer a ela. Mesmo assim, Éomer, digo-lhe que ela o ama mais verdadeiramente do que a mim; pois você ela ama e conhece; mas em mim ela ama apenas uma sombra e um pensamento: uma esperança de glória e grandes feitos, e de terras distantes dos campos de Rohan.
— Talvez eu tenha o poder de curar-lhe o corpo, e de resgatá-la do vale escuro. Mas para o que ela despertará: para a esperança, para o esquecimento ou para o desespero, não posso saber. Se for para o desespero, então morrerá, a não ser que lhe apareça uma outra cura que não posso trazer. Lamento, pois seus feitos a colocaram entre as rainhas de grande renome.
Então Aragorn abaixou-se e olhou no rosto de Éowyn, que realmente estava branco como um lírio, frio como a geada, e rígido como se esculpido em pedra. Mas ele se inclinou e a beijou na testa, e a chamou suavemente, dizendo:
— Éowyn, filha de Éomund, desperte! Seu inimigo foi-se embora!
Ela não se mexeu, mas agora começava outra vez a respirar fundo, de modo que seu peito subia e descia sob o linho branco do lençol. Mais uma vez Aragorn esmagou duas folhas de athelas e as jogou na água fumegante; banhou então a testa da enferma com a infusão, como também o braço esquerdo, gelado e imóvel sobre a coberta.
Então, talvez porque Aragorn tivesse realmente algum esquecido poder do Ponente, talvez pelo efeito causado pelas palavras ditas sobre a Senhora Éowyn, todos os circunstantes tiveram a impressão de que, á medida que a doce influência da erva se espalhava pelo quarto, um vento penetrante soprava através da janela, sem trazer fragrância alguma, mas era um ar inteiramente fresco, limpo e jovem, como se nunca tivesse sido inspirado por qualquer criatura viva, e tivesse acabado de sair diretamente de montanhas cheias de neve, altas sob uma abóbada de estrelas, ou de praias de prata distantes, banhadas por mares de espuma.
— Desperte, Éowyn, Senhora de Rohan! — disse Aragorn de novo, tomando-lhe a mão direita com a sua e sentindo-a quente, voltando á vida. — Desperte! A sombra se foi e estamos livres da escuridão! – Depois pousou a mão da Senhora na de Éomer e deixou o quarto. — Chame-a! – disse ele e saiu do quarto em silêncio.
— Éowyn, Éowyn! — chamou Éomer em meio às lágrimas.
Mas ela abriu os olhos e disse:
— Éomer! Que ventura é esta? Pois disseram que estava morto. Mas não, essas foram apenas as vozes escuras no meu sonho. Quanto tempo fiquei sonhando?
— Não muito tempo, minha irmã — disse Éomer. — Mas não pense mais nisso!
— Estou sentindo um cansaço estranho — disse ela. – Preciso descansar um pouco. Mas, diga-me, o que aconteceu com o Senhor da Terra dos Cavaleiros? Ai de mim! Não me diga que foi um sonho, pois sei que não foi. Ele está morto como havia previsto.
— Ele está morto disse Éomer —, mas me pediu que em seu nome dissesse adeus a Éowyn, a quem queria mais que a uma filha. Jaz agora com grandes honras na Cidadela de Gondor.
— Isso é triste — disse ela. — No entanto, é melhor que tudo o que ousei esperar nos dias escuros, quando parecia que a Casa de Eorl tinha caído em desonra, atingindo um nível inferior ao da choupana de um pastor. E o escudeiro do rei, o Pequeno? Éomer, você deve nomeá-lo cavaleiro da Terra dos Cavaleiros, pois ele é valoroso.
— Ele repousa nesta Casa, aqui perto, e eu vou vê-lo — disse Gandalf — Éomer ficará aqui por um tempo. Mas ainda não falem de guerra ou inimigo, até que você se recupere completamente. É uma grande alegria vê-la despertar outra vez para a saúde e a esperança, você que é uma senhora tão corajosa.
— Para a saúde? disse Éowyn. — Pode ser que sim. Pelo menos enquanto houver a sela vazia de algum Cavaleiro caído que eu possa ocupar, e feitos a cumprir. Mas para a esperança? Não sei.
Gandalf e Pippin foram para o quarto de Merry, onde encontraram Aragorn em pé ao lado do leito. Pobre Merry! — exclamou Pippin, correndo para perto do amigo, pois teve a impressão de que ele estava pior, com um tom cinzento no rosto, como se um peso de anos de tristeza o oprimisse; de súbito foi tomado por um medo de que Merry pudesse morrer.
— Não tenha medo — disse Aragorn. Cheguei a tempo, e chamei-o de volta. Agora está cansado, e triste, além de ter sofrido um ferimento como o da Senhora Éowyn, quando ousou atacar aquela criatura mortal. Mas esses males podem ser reparados, num espírito tão forte e alegre como o dele. Não poderá se esquecer de sua tristeza, porém esse sentimento não vai escurecer o coração dele, mas trazer-lhe sabedoria.
Então Aragorn colocou a mão na cabeça de Merry e, acariciando suavemente os cachos castanhos, tocou as pálpebras. chamando-o pelo nome.
E quando a fragrância de athelas se espalhou pelo quarto, como o aroma de pomares e de urzais ao sol, cheios de abelhas, de repente Merry acordou e disse:
— Estou com fome. Que horas são?
— Já passou da hora da ceia — disse Pippin —; mas arrisco dizer que poderia lhe trazer alguma coisa, se me permitirem.
— Com certeza permitirão — disse Gandalf. — E qualquer outra coisa que este Cavaleiro de Rohan possa desejar, se puder ser encontrada em Minas Tirith, onde seu nome se cobre de honra.
— Bom! — disse Merry. — Então vou querer uma ceia primeiro, e depois disso um cachimbo. — Ao dizer isso, seu rosto ficou consternado. — Não, cachimbo não. Acho que nunca vou fumar outra vez.
— Por que não? — disse Pippin.
— Bem — respondeu Merry devagar. Ele está morto. Tudo voltou à minha memória. Disse que sentia muito por nunca mais poder ter uma chance de conversar sobre a tradição das ervas comigo. Praticamente a última coisa que disse. Nunca mais conseguirei fumar de novo sem pensar nele e naquele dia, Pippin, quando ele cavalgava para Isengard e foi tão delicado.
— Então, fume, e pense nele! — disse Aragorn. — Pois ele era um coração gentil e um grande rei, que cumpria seus juramentos; saiu das sombras para uma bela manhã derradeira. Embora o tempo em que o serviu tenha sido tão breve, deveria ser uma lembrança alegre e honrosa até o fim de seus dias.
Merry sorriu.
— Então está bem disse ele. Se Passolargo providenciar o necessário, vou fumar e pensar. Eu tinha um pouco do melhor fumo de Saruman em minha mochila, mas o que foi feito dela na batalha, com certeza eu não sei.
— Mestre Meriadoc — disse Aragorn —, se você acha que eu atravessei montanhas e o reino de Gondor, com fogo e espada, para trazer fumo para um soldado descuidado que joga fora seus pertences, está muito enganado. Se sua mochila não for encontrada, então você deve mandar chamar o mestre de ervas desta Casa. E ele vai lhe dizer que não sabia que a erva que você deseja tinha algum poder, mas que ela é vulgarmente chamada de erva-do-homem-do-oeste, enquanto os nobres a chamam de galenas; vai também dizer outros nomes em outras línguas mais eruditas, e depois de acrescentar algumas rimas semi-esquecidas lamentará informar que não existe dessa erva na Casa, e o deixará refletindo sobre a história das línguas.
E é isso que preciso fazer agora. Pois não durmo num leito como este desde que parti do Templo da Colina, e também não comi nada desde a escuridão antes da aurora.
Merry apertou-lhe a mão e a beijou.
— Lamento terrivelmente — disse ele. — Vá agora mesmo! Desde aquela noite em Bri, temos sido um incômodo para você. Mas é o costume de meu povo usar palavras leves em tempos como estes, dizendo menos do que sentimos. Tememos revelar demais. Quando uma brincadeira é fora de hora, faltam-nos as palavras corretas.
Sei muito bem disso, ou não lidaria com você como faço – disse Aragorn. — Que o Condado possa viver para sempre incólume! — Beijando Merry, saiu, acompanhado por Gandalf.
Pippin ficou no quarto. — Nunca houve uma pessoa como ele – disse o hobbit. — Com a exceção de Gandalf, é claro. Acho que os dois são aparentados. Meu querido asno, sua mochila está ao lado da cama, e você a trazia nas costas quando o encontrei. Ele sabia disso o tempo todo, obviamente. E, de qualquer forma, tenho um pouco do meu. Vamos lá! É Folha do Vale Comprido. Encha o cachimbo enquanto eu vou correndo buscar alguma comida. E vamos relaxar um pouco. Puxa! Nós, os Túks e Brandebuques, não conseguimos viver muito tempo nos lugares altos.
— Não mesmo — disse Merry. — Eu não consigo, pelo menos ainda não. Mas no mínimo, Pippin, agora podemos vê-los e honrá-los. Acho que primeiro é melhor amar aquilo que temos condições de amar: deve-se começar em algum lugar e criar algumas raízes, e o solo do Condado é profundo. Mas ainda há coisas mais profundas e mais altas, e nenhum feitor conseguiria cuidar de seu jardim no que ele chama de paz se não fosse por elas, quer ele as conheça ou não. Fico feliz em saber sobre elas, saber um pouco. Mas não sei por que estou falando desse jeito. Onde está o fumo? E pegue o cachimbo em minha mochila, se ele não estiver quebrado.
Às portas das Casas muitos já se juntavam para ver Aragorn, e o seguiram; quando finalmente ele terminou de cear, vieram homens rogando-lhe que curasse seus parentes ou amigos da Sombra Negra. Aragorn levantou-se e saiu ; mandou chamar os filhos de Elrond, e juntos trabalharam até tarde da noite. E o rumor se espalhou pela Cidade: "O Rei realmente voltou outra vez." Chamaram-no de Pedra Élfica, por causa da pedra verde que usava; e assim o nome que ao seu nascimento previram que usaria foi escolhido para ele pelo seu próprio povo.
Quando não conseguia mais trabalhar, cobriu-se com a capa e saiu sorrateiramente da Cidade, indo para sua tenda um pouco antes da aurora, para dormir um pouco. E pela manhã a bandeira de Doí Amroth, um navio branco em forma de cisne sobre águas azuis, esvoaçava no alto da Torre, e os homens erguiam os olhos e imaginavam se a chegada do Rei não passara de um sonho.
Aragorn e Gandalf foram até o Diretor das Casas de Cura e lhe disseram que Faramir e Éowyn deveriam permanecer internados e ainda inspirariam atenção por muitos dias.
— A Senhora Éowyn — disse Aragorn — logo vai querer levantar-se e partir, mas não deve permitir que faça isso, se puder impedi-la de alguma maneira, até que pelo menos dez dias tenham se passado.
— Quanto a Faramir — disse Gandalf —, logo deverá saber que seu pai está morto. Mas a história completa sobre a loucura de Denethor não deverá chegar-lhe aos ouvidos, até que esteja bem curado e tenha tarefas a desempenhar. Cuide para que Beregond e o perian que presenciaram a cena não comentem tais coisas com ele por enquanto!
— E o outro perian, Meriadoc, que está sob meus cuidados, que me dizem dele? — perguntou o Diretor.
— É provável que amanhã esteja bom para se levantar, por um tempo curto disse Aragorn. — Permita que o faça, se ele assim quiser. Pode caminhar um pouco sob os cuidados dos amigos.
— São uma raça notável — disse o Diretor, balançando a cabeça. — De fibra muito forte, julgo eu.
O ÚLTIMO DEBATE
Chegou a manhã após o dia de batalha, uma manhã bela com leves nuvens e o vento se virando para o oeste. Legolas e Gimli sairam logo cedo, e pediram permissão para subirem até a Cidade, pois estavam ansiosos para ver Merry e Pippin.
— É bom saber que ainda estão vivos — disse Gimli —, pois nos custaram muito sofrimento em nossa marcha através de Rohan, e eu não gostaria que todo esse sofrimento fosse desperdiçado.
Juntos, elfo e anão entraram em Minas Tirith, e as pessoas que passavam por eles se assombravam ao verem tais companheiros, pois Legolas tinha no rosto uma beleza que ultrapassava a medida dos homens, e cantava uma canção élfica com voz clara ao caminhar pela manhã; mas Gimli vinha atrás dele andando empertigado, cofiando a barba e fitando tudo ao redor.
— Há um bom trabalho feito em pedra aqui — disse ele, olhando para as muralhas —; mas também há trabalhos piores, e as ruas podiam ter sido mais bem planejadas. Quando Aragorn assumir seu posto, vou lhe oferecer o serviço dos artesãos da Montanha, e vamos fazer desta uma cidade de que se possa sentir orgulho.
— Eles precisam de mais jardins — disse Legolas. – As casas não têm vida, e aqui há pouquíssima coisa que cresce e alegra. Se Aragorn assumir seu posto, o povo da Floresta lhe trará pássaros que cantam e árvores que não morrem.
Finalmente chegaram á presença do Príncipe Imrahil; Legolas, olhando para ele, fez uma grande reverência, pois viu que realmente ele tinha nas veias o sangue dos elfos.
— Salve, senhor! — disse ele. Já faz muito tempo que o povo de Nimrodel deixou as florestas de Lórien, e mesmo assim ainda se pode ver que nem todos partiram do porto de Amroth, navegando para o oeste.
— Assim conta a tradição de minha terra — disse o Príncipe —; mas há anos sem conta não se vê aqui alguém do belo povo. E fico maravilhado em deparar com um deles aqui agora, em meio à tristeza e á guerra. O que procura?
— Sou um dos Nove Companheiros que partiram com Mithrandir de Imíadris — disse Legolas —; e com este anão, meu amigo, vim com o Senhor Aragorn. Mas agora desejamos ver nossos amigos, Meriadoc e Peregrin, que estão sob sua proteção, pelo que ouvimos falar.
— Vão encontrá-los nas Casas de Cura, e vou levá-los até lá — disse
— Basta que peça para alguém nos guiar, senhor— disse Legolas. — Pois Aragorn lhe envia esta mensagem: no momento, ele não deseja entrar outra vez na Cidade. Mas é preciso que os capitães se reúnam imediatamente, e ele pede que o senhor e Éomer de Rohan desçam até suas tendas o mais cedo possível. Mithrandir já está lá.
— Nós iremos — disse Imrahil; despediram-se com palavras corteses.
— Aí está um belo senhor e um grande capitão de homens — disse Legolas. — Se Gondor ainda tem homens assim atualmente, na sua decadência, grande deve ter sido sua glória nos dias de ascensão.
— E sem dúvida o trabalho em pedra que é de boa qualidade é o mais antigo, e foi feito na primeira construção — disse Gimli. — É sempre assim com as coisas que os homens começam; há uma geada na primavera, ou uma praga no verão, e suas promessas fracassam.
— Mas raramente fracassa sua semente — disse Legolas. — Esta fica na poeira e na ruína, para germinar de novo em tempos e lugares inesperados. Os feitos dos homens sobreviverão a nós, Gimli. — Apesar disso, na minha opinião, no fim não sobra nada além do que "poderia ter sido" — disse o Anão.
— Para isso os elfos não têm a resposta — disse Legolas.
Nessa hora o servidor do Príncipe veio e os conduziu até as Casas de Cura; lá viram seus amigos no jardim, e foi um feliz encontro. Por um tempo, caminharam e conversaram, regozijando-se durante um breve lapso de paz e descanso matinal, lá em cima, nos círculos da Cidade batidos pelo vento. Então, quando Merry ficou cansado, foram se sentar sobre a muralha, diante do gramado das Casas de Cura; mais distante ao sul, à frente deles, o Anduin brilhava ao sol, correndo para longe, fora do alcance da visão até mesmo de Legolas, entrando nas amplas planícies e na névoa verde de Lebennin e Ithilien do Sul.
Legolas estava agora em silêncio, enquanto os outros continuavam a conversar. Olhava contra o sol, vendo os brancos pássaros marítimos subindo o Rio.
— Olhem! — gritou ele. — Gaivotas! Estão avançando para a terra. São uma maravilha para os meus olhos, e um distúrbio para meu coração. Nunca as tinha visto em toda a minha vida até chegarmos a Pelargir, e lá as ouvi gritando no ar quando cavalgamos para a batalha dos navios. Então fiquei quieto, esquecendo-me da guerra na Terra-média, pois suas vozes dolentes falavam-me do Mar. O Mar! Ai de mim! Nunca o contemplei ainda. Mas no fundo dos corações de todo o meu povo existe uma saudade do Mar que é perigoso despertar. Ai, as gaivotas! Nunca terei paz outra vez, sob a faia ou sob o olmo.
— Não fale isso! — disse Gimli. — Ainda existem inúmeras coisas para se ver na Terra-média, e grandes trabalhos a fazer. Mas, se todo o belo povo for para os Portos, o mundo será mais monótono para aqueles fadados a ficar.
— Monótono e terrível, realmente! — disse Merry. — Não deve ir para os portos, Legolas. Sempre haverá pessoas, grandes ou pequenas, e até mesmo alguns anões sábios como Gimli, que precisam de você. Pelo menos espero que seja assim. Embora sinta de alguma forma que o pior desta guerra ainda está por vir. Como gostaria que estivesse tudo acabado, e bem acabado!
— Não seja tão melancólico! — exclamou Pippin. — O sol está brilhando, e aqui estamos nós juntos, pelo menos por um ou dois dias. Quero ouvir mais sobre todos vocês. Vamos lá, Gimli! Você e Legolas já mencionaram sua estranha viagem com Passolargo cerca de umas doze vezes esta manhã. Mas não me contaram nada sobre ela.
— O sol pode brilhar aqui — disse Gimli —, mas hà lembranças daquela estrada que não quero evocar da escuridão. Se soubesse o que me esperava, acho que por amizade alguma teria caminhado nas Sendas dos Mortos.
— As Sendas dos Mortos? — disse Pippin. — Ouvi Aragorn dizer esse nome, e fiquei pensando o que poderia significar. Não vai nos contar mais um pouco?
— Não de bom grado — disse Gimli. — Pois naquela estrada fui exposto à vergonha: Gimli, filho de Glóin, que se considerara mais corajoso que os homens, e mais resistente sob a terra que qualquer elfo. Mas não me saí nem uma coisa nem outra, e só continuei na estrada por causa da vontade de Aragorn.
— E também pelo amor que sente por ele — disse Legolas. – Pois todos aqueles que vêm a conhecê-lo acabam amando-o á sua própria maneira, até mesmo a donzela fria dos rohirrim. Foi no início da manhã anterior ao dia em que você chegou lá, Merry, que nós partimos do Templo da Colina, e todo o povo estava dominado por tamanho medo que ninguém assistiu à nossa partida, exceto a Senhora Éowyn, que agora está ferida na Casa lá embaixo. Houve tristeza na despedida, e eu fiquei pesaroso ao assistir à cena.
— Ai de mim! Só tinha pensamentos para minha própria pessoa — disse Gimli. — Não! Não vou falar daquela viagem!
Ficou em silêncio, mas Pippin e Merry estavam tão ávidos por noticias que finalmente Legolas disse:
— Vou contar-lhes o suficiente para que fiquem em paz, pois eu não senti o terror, e não temi as sombras dos homens, que considerei frágeis e desprovidas de poder.
Rapidamente o elfo contou sobre a estrada assombrada sob as montanhas, e sobre o obscuro encontro em Erech, e a grande cavalgada que partiu de lá, noventa e três léguas, até Pelargir sobre o Anduin.
— Quatro dias e quatro noites, mais o inicio de um quinto dia, cavalgamos partindo da Pedra Negra — disse ele. — E eis que na escuridão de Mordor minha esperança aumentou, pois então o exercito de Sauron tem ficado mais forte e mais terrível de se olhar. Alguns eu vi cavalgando, alguns andando a passo largo, mas todos se movendo na mesma grande velocidade. Eram silenciosos, mas tinham um brilho nos olhos. Nas terras altas de Lamedon alcançaram nossos cavalos, espalharam-se à nossa volta e nos teriam ultrapassado, se Aragorn não os tivesse proibido. — A uma ordem sua recuaram. "Até mesmo as sombras dos homens são obedientes à vontade dele", pensei eu. "Elas ainda lhe podem ser úteis!"Cavalgamos num dia de luz, e então veio a manhã sem aurora, e ainda continuamos avançando, cruzando Ciril e Ringló; no terceiro dia chegamos a Linhir, sobre a foz do Gilrain. E lá os homens de Lamedon disputavam os vaus com o povo cruel de Umbar e Harad, que tinha subido o rio navegando. Mas tanto os defensores como os inimigos desistiram da batalha e fugiram quando chegamos, gritando que o Rei dos Mortos os estava atacando. Apenas Angbor, Senhor de Lamedon, teve a coragem de nos esperar; Aragorn então pediu que ele reunisse seu povo e nos seguisse, se eles ousassem, depois que o Exército Cinzento tivesse passado. — "Em Pelargir o Herdeiro de Isildur precisará de você", disse ele. — Assim atravessamos o Gilrain, fazendo com que os aliados de Mordor fugissem em debandada à nossa frente; depois descansamos um pouco. Mas logo Aragorn levantou-se, dizendo: "Vejam, Minas Tirith já está sendo atacada. Receio que caia antes que cheguemos em seu socorro." Assim montamos de novo antes que a noite tivesse passado e avançamos sobre a planície de Lebennin com toda a velocidade que nossos cavalos puderam suportar.
Legolas fez uma pausa e suspirou; voltando os olhos para o sul, cantou em voz baixa:
Em prata fluem os rios de Celos até Erui
Nos verdes campos de Lebennin!
Lá a grama cresce alta. Ao vento que vem do mar
Os brancos lírios dançam,
E os sinos dourados balançam de maílos e alflrin
Nos verdes campos de Lebennin,
Ao vento que vem do Mar
— Verdes são aqueles campos nas canções de meu povo; mas naquela hora estavam escuros, vastidões cinzentas no negrume diante de nós. E naquela imensa região, pisoteando sem qualquer cuidado a grama e as flores, caçamos nossos inimigos durante um dia e uma noite, até que a duras penas chegamos finalmente ao Grande Rio.
— Então pensei comigo mesmo que estávamos próximos do Mar, pois o rio era largo na escuridão, e inúmeros pássaros marítimos gritavam nas margens. Ai, o lamento das gaivotas! A Senhora não tinha me dito para tomar cuidado com elas? E agora não posso esquecê-las.
— De minha parte, não lhes dei atenção — disse Gimli — pois então havíamos finalmente chegado ao momento de travar uma batalha a sério. Lá em peíargir estava a principal frota de Umbar, cinquenta navios grandes e inúmeros outros barcos menores. Muitos daqueles que perseguíramos haviam chegado aos portos na nossa frente, levando consigo o medo; alguns dos navios tinham partido, procurando escapar descendo o Rio ou alcançar a margem oposta, e muitos dos barcos menores estavam em chamas.
Mas os haradrim, acossados até a margem, viraram-se contra nós furiosos em seu desespero; riram-se quando nos observaram, pois ainda formavam uma grande armada.
— Mas Aragorn parou e gritou numa voz forte: "Venham agora! Pela Pedra Negra eu os conclamo!" E de repente o Exército da Sombra, que ficara na retaguarda, no instante supremo avançou como uma onda cinzenta, varrendo tudo o que encontrava pela frente. Ouvi gritos fracos, e toques indistintos de cornetas, e o murmúrio de incontáveis vozes distantes: era como o eco de alguma batalha esquecida dos Anos Escuros de outrora. Espadas pálidas apareceram; mas não sei se as lâminas ainda mordiam, pois os Mortos não precisavam de outra arma além do medo.
Ninguém lhes ofereceu resistência. Tomaram todos os navios que estavam alinhados para a batalha, e depois passaram sobre as águas para aqueles que estavam ancorados; todos os marinheiros foram dominados por uma loucura de terror e saltaram para a água, exceto os escravos acorrentados aos remos. Avançamos impávidos em meio aos nossos inimigos em fuga, varrendo-os como folhas, até chegarmos à margem. E então Aragorn designou, para cada um dos navios que restavam, um dos dúnedain, que consolaram os cativos que estavam a bordo, ordenando-lhes que afastassem o medo e se considerassem livres.
— Antes do final do dia escuro, não restava ninguém do exército inimigo para nos oferecer resistência; todos estavam afogados, ou então fugindo para o sul na esperança de atingirem suas próprias terras a pé Achei estranho e surpreendente o fato de que os desígnios de Mordor devessem ser frustrados por tais espectros de medo e escuridão. Com suas próprias armas o inimigo foi derrotado!
— É realmente estranho — disse Legolas. — Naquele momento, olhei para Aragorn e pensei em que grande e terrível Senhor ele poderia ter-se tornado mediante a força de sua vontade, se tivesse tomado o Anel para si. Não é à toa que Mordor o teme. Mas seu espírito é mais nobre que o entendimento de Sauron; pois não é ele um descendente de Lúthien? Essa linhagem nunca se extinguirá, embora os anos possam se alongar além da conta.
— Essas previsões estão além do alcance dos olhos dos anões — disse Gimli. —Mas Aragorn foi realmente poderoso naquele dia. Vejam bem. Toda a frota negra estava em suas mãos, e ele escolheu para si o maior navio, e nele embarcou. Então mandou tocar um grande conjunto de trombetas, tomadas do inimigo, e o Exército de Sombra se retirou para a margem. Ali ficaram em silêncio, quase invisíveis, a não ser por um brilho vermelho nos olhos, que refletiam o clarão dos barcos em chamas.
E Aragorn dirigiu-se numa voz alta aos Homens Mortos, dizendo:
— Ouçam agora as palavras do Herdeiro de Isildur! O juramento que fizeram está cumprido. Partam então e não voltem a perturbar os vales de novo! Vão e fiquem em paz!"
E então o Rei dos Mortos apresentou-se à frente do exército, quebrou sua lança e a jogou no chão. Depois fez uma grande reverência e virou-se; rapidamente todo o exército cinzento se retirou e desapareceu como uma névoa que é varrida por um vento repentino; tive a impressão de ter acordado de um sonho.
— Naquela noite descansamos enquanto outros trabalhavam. Pois havia muitos cativos que foram libertados, e muitos escravos, agora livres, que eram pessoas de Gondor, aprisionadas em ataques; e logo também se formou um grande ajuntamento de homens de Lebennin e do Ethir, e Angbor de Lamedon veio com todos os cavaleiros que pôde reunir. Agora que o medo dos Mortos passara, vinham para nos ajudar e para ver o Herdeiro de Isildur, pois o rumor desse nome se espalhara como fogo na escuridão. E agora chegamos perto do fim da história. Durante a noite e a madrugada muitos navios foram preparados e guarnecidos com homens; pela manhã a frota partiu. Agora parece que tudo aconteceu há muito tempo, e apesar disso foi apenas na manhã do dia anterior a ontem, o sexto desde que partimos do Templo da Colina.
Mas ainda assim Aragorn estava tomado pelo receio de que o tempo fosse curto demais.
— "São quarenta e duas léguas do Pelargir até o cais de Harlond", dizia ele. "Mesmo assim precisamos chegar ao Harlond amanhã ou teremos falhado completamente."
— Agora os remos eram empunhados por homens livres, que trabalhavam valentemente; apesar disso, subimos o Grande Rio com lentidão; lutávamos contra a corrente, e, embora ela não seja forte no sul, nós não tínhamos a ajuda do vento. Meu coração teria ficado pesado, apesar de toda a nossa vitória nos portos, se Legolas não tivesse soltado uma risada de repente.
— "Levante essa barba, filho de Durin!" — disse ele. "Pois assim diz o ditado: A esperança talvez nasça, quando tudo é desgraça."
Mas que esperança enxergava ao longe ele não disse. Quando a noite chegou, só fez aprofundar a escuridão, e nossos corações estavam fervendo, pois na distância ao norte vimos um clarão vermelho sob a nuvem, e Aragorn disse:
— "Minas Tirith está em chamas."
— Mas á meia-noite a esperança realmente renasceu. Marinheiros do Ethir, olhando para o sul, falaram de uma mudança chegando com um vento forte vindo do Mar. Muito antes de o dia raiar, os navios com mastros içaram as velas, e nossa velocidade aumentou, até que a aurora branqueasse a espuma em nossas proas. E foi assim, vocês sabem, que chegamos na terceira hora da manhã com um belo vento e o sol descoberto, e desfraldamos o grande estandarte na batalha. Foi um grande dia e uma grande hora, não importa o que possa acontecer depois.
— Venha o que vier, grandes feitos não ficam diminuídos em seu valor — disse Legolas. — Foi um grande feito a cavalgada das Sendas dos Mortos, e grande continuará sendo, mesmo que não reste ninguém em Gondor para cantá-lo nos dias que virão.
— E isso pode muito bem acontecer — disse Gimli. — Pois os rostos de Aragorn e Gandalf estão graves. Penso muito em que resoluções estarão tomando nas tendas lá embaixo. De minha parte, como Merry, gostaria que com a nossa vitória a guerra estivesse agora terminada. Mas, no que quer que ainda haja por fazer, espero ter uma parte, pela honra do povo da Montanha Solitária.
— E eu pelo povo da Grande Floresta — disse Legolas —, e por amor do Senhor da Árvore Branca.
Então os companheiros se calaram, mas por um tempo ficaram ali sentados naquele lugar alto, cada um ocupado com seus próprios pensamentos, enquanto os Capitães debatiam.
Quando o Príncipe Imrahil despediu-se de Legolas e Gimli, mandou imediatamente chamar Éomer; os dois desceram juntos da Cidade, e foram para as tendas de Aragorn que estavam armadas no campo, não muito longe do local onde o rei Théoden tombara. E ali tomaram decisões, junto com Gandalf, Aragorn e os filhos de Elrond.
— Meus senhores — disse Gandalf —, ouçam as palavras que disse o Regente de Gondor antes de morrer: Vocês podem triunfar nos campos do Pelennor por um dia, mas contra o Poder que agora surgiu não há vitória. Não estou pedindo que se desesperem, como fez ele, mas para que ponderem a verdade dessas palavras.
— Pedras-videntes não mentem, e nem mesmo o Senhor de Barad-dûr pode fazê-las mentir. Talvez ele possa, com sua vontade, escolher que coisas serão vistas por mentes mais fracas, ou fazê-las interpretar erroneamente o significado do que vêem. Não obstante, não se pode duvidar de que, quando Denethor viu grandes forças reunidas contra ele em Mordor, e mais Outras se reunindo, ele viu o que realmente é.
— Nossa força mal conseguiu vencer o primeiro grande assalto. O próximo será maior. Esta guerra não nos oferece esperança final, como Denethor percebeu. A vitória não pode ser conseguida por meio de armas, quer vocês permaneçam aqui e suportem cerco após cerco, quer saiam em marcha para serem derrotados além do Rio. Vocês têm apenas uma escolha entre os males, e a prudência deveria aconselhá-los a reforçarem todas as fortalezas que possuírem, e lá esperarem o ataque; dessa forma, o tempo antes de seu fim poderá ficar um pouco mais longo.
— Então você aconselha que nos retiremos para Minas Tirith ou Doí Amroth ou para o Templo da Colina, e que fiquemos nesses lugares sentados como crianças sobre castelos de areia, quando a maré está subindo? — disse Imrahil.
— Isso não seria nenhum conselho inédito disse Gandalf. — Não foi isso o que fizeram, ou pouco mais que isso, nos dias de Denethor? Mas não! Eu disse que isso seria prudente. Não aconselho a prudência. Disse que a vitória não poderia ser conquistada por meio de armas. Ainda alimento a esperança na vitória, mas não através de armas. Pois em meio a todas essas estratégias está o Anel de Poder, o alicerce de Barad-dûr, e a esperança de Sauron. Em relação a essa coisa, meus senhores, agora todos vocês sabem o suficiente para o entendimento da nossa situação, e da de Sauron. Se ele a conseguir de volta, a valentia de vocês será inútil, e a vitória dele será rápida e completa: tão completa que ninguém pode prever o fim dela enquanto durar o mundo. Se ela for destruída, então ele cairá, e sua queda será tão grande que ninguém pode prever a possibilidade de que jamais venha a ascender de novo. Pois perderá a melhor parte da força que nasceu junto com ele, e tudo o que foi feito ou começado com esse poder ruirá, e ele ficará mutilado para sempre, transformando-se num simples espírito maligno que se corrói nas sombras, mas que não pode crescer ou tomar forma outra vez. E assim desaparecerá um grande mal deste mundo.
— Outros males existem que poderão vir; pois o próprio Sauron é apenas um servidor ou emissário. Todavia não é nossa função controlar todas as marés do mundo, mas sim fazer o que pudermos para socorrer os tempos em que estamos inseridos, erradicando o mal dos campos que conhecemos, para que aqueles que viverem depois tenham terra limpa para cultivar. Que tempo encontrarão não é nossa função determinar. Agora Sauron sabe de tudo isso, e sabe que essa coisa preciosa que perdeu foi encontrada novamente; mas ainda não sabe onde está, ou pelo menos assim esperamos. E, portanto, agora ele está numa grande dúvida. Pois, se nós encontramos a coisa, há alguns entre nós com força suficiente para controlá-la. Isso ele também sabe. Pois não estou certo, Aragorn, quando suponho que você se mostrou a ele na Pedra de Orthanc?
— Fiz isso antes de partir do Forte da Trombeta — respondeu Aragorn.
— Julguei que o tempo chegara, e que a Pedra viera até mim apenas com esse propósito. Fazia então dez dias que o Portador do Anel partira de Rauros para o leste, e eu pensei que o Olho de Sauron deveria ser atraído para fora de sua própria terra. Pouquíssimas vezes ele foi desafiado depois que retornou para sua Torre. No entanto, se eu tivesse previsto a velocidade do contra-ataque, talvez não tivesse ousado me revelar. Sobrou-me pouco tempo para vir em sua ajuda.
— Mas como fica isso? — perguntou Éomer. Você diz que tudo é inútil se ele tiver o Anel. Por que não deveria ele julgar inútil nos atacar, se nós o tivermos?
— Ele ainda não tem certeza — disse Gandalf —, e não construiu seu poder esperando até que seus inimigos estivessem seguros, como fizemos nós. Além disso, nós não poderíamos aprender como controlar todo o poder num único dia. Na verdade, o Anel só pode ser usado por um único mestre, e não por muitos; ele vai aguardar uma hora de discórdia, antes que um dos grandes entre nós se faça senhor e se coloque acima dos outros. Nessa hora o Anel pode ajudá-lo, se ele for rápido.
— Ele está vigiando. Vê muito e muito escuta. Seus nazgúl ainda estão à solta. Passaram sobre este campo antes de o sol nascer, embora poucos dos que estavam cansados ou dormindo se tenham dado conta disso. Ele estuda os sinais: a Espada que lhe roubou o tesouro reforjada; os ventos da fortuna virando a nosso favor, e a inesperada derrota em seu primeiro ataque, a queda de seu grande Capitão.
— Sua dúvida está crescendo, neste exato momento em que estamos falando aqui. Seu Olho está agora perscrutando em nossa direção, praticamente cego para tudo o mais que se move. Assim devemos mantê-lo. Aí está toda a nossa esperança. Este, então, é o meu conselho: não possuímos o Anel. Por sabedoria, ou por uma grande loucura, nós o enviamos para longe para ser destruido, e para evitar que nos destruísse. Sem o Anel, não podemos pela força destruir a força de Sauron. Mas devemos a todo custo manter seu Olho longe do verdadeiro perigo que o ameaça. Não podemos conquistar a vitória por meio das armas, mas por meio das armas podemos dar ao Portador do Anel sua única oportunidade, por mais frágil que seja.
— Como Aragorn começou, assim devemos continuar. Devemos empurrar Sauron para seu último lance. Devemos atrair sobre nós sua força oculta, de modo que esvazie seus domínios. Devemos marchar ao encontro dele imediatamente. Devemos transformar-nos em iscas, embora suas mandíbulas possam se fechar sobre nós. Ele aceitará essa isca, cheio de esperança e avidez, pois em tamanha audácia julgará estar vendo o orgulho do novo Senhor do Anel, e dirá: "Isso! Ele estica seu pescoço muito cedo e quer chegar muito longe. Deixarei que avance, e eis que o pegarei numa armadilha da qual não poderá escapar. Ali vou esmagá-lo, e o que me tomou em sua insolência será meu outra vez, para sempre."
— Devemos caminhar de olhos abertos em direção a essa armadilha, com coragem, mas com pouca esperança para nós mesmos. Pois, meus senhores, pode muito bem acontecer que literalmente tombemos numa batalha negra longe das terras viventes, de modo que mesmo se Barad-dûr for destruída não viveremos para ver uma nova era. Mas considero que esta é nossa tarefa. E isso é melhor do que perecer, de qualquer forma — como certamente acontecerá, se ficarmos aqui parados — e saber na hora de nossa morte que não vai haver uma nova era.
Ficaram em silêncio por um tempo. Finalmente, Aragorn falou.
— Como já comecei, vou continuar. Chegamos agora exatamente à beira do abismo, onde a esperança é parente do desespero. Hesitar é cair. Que ninguém agora recuse os conselhos de Gandalf, cujos longos trabalhos contra Sauron finalmente serão testados. Se não fosse por ele, tudo estaria perdido há muito tempo. Não obstante, ainda não quero impor minha vontade a ninguém. Que os outros escolham como preferirem.
Então Elrohir disse:
— Viemos do norte com esse propósito, e de Elrond, nosso pai, trouxemos exatamente esse conselho. Não recuaremos.
— Quanto a mim — disse Éomer —, tenho pouco conhecimento dessas questões profundas, mas não preciso dele. Disso eu sei, e para mim é o suficiente: da mesma forma que meu amigo Aragorn socorreu a mim e ao meu povo, agora, quando ele me chama, vou ajudá-lo. Eu irei.
— Quanto a mim — disse Imrahil —, considero o Senhor Aragorn meu rei, quer ele reivindique o título ou não. Um desejo seu é uma ordem. Também irei. Apesar disso, por um tempo ocupo o lugar do Regente de Gondor é meu dever pensar primeiro em seu povo. Devemos ainda dar alguma itenção à prudência. Pois devemos estar preparados para todas as possibilidades, as boas e as más. Agora, pode ser que triunfemos, e enquanto houver alguma esperança nesse sentido Gondor deve ser protegida. Eu não gostaria que voltássemos vitoriosos para uma Cidade em ruínas e com uma terra devastada atrás de nós. E já sabemos pelos rohirrim que há um exército no nosso flanco norte, contra o qual ainda não se lutou.
— Isso é verdade — disse Gandalf — Não aconselho que deixem a Cidade completamente desguarnecida. Na verdade, a força que conduzirmos para o leste não precisa ser grande o suficiente para um assalto real contra Mordor, contanto que seja grande o suficiente para provocar uma batalha. deve se mover com rapidez. Portanto, pergunto aos Capitães: que força poderíamos reunir e conduzir no prazo máximo de dois dias? Recomendo que essa força deve ser formada por homens corajosos que partem por sua própria vontade, conhecendo o perigo que correm.
— Todos estão cansados, e muitos têm ferimentos, leves ou graves — disse Éomer. — E sofremos muitas perdas de cavalos, e isso é difícil suportar. Se devemos partir logo, então não posso ter esperanças de liderar nem sequer dois mil homens, e deixar o mesmo número na defesa da Cidade.
— Não devemos contar apenas com aqueles que lutaram neste campo — disse Aragorn. — Novas forças dos feudos do sul estão a caminho, agora que as costas foram libertadas. Enviei quatro mil homens marchando de Pelargir através de Lossarnach há dois dias; Angbor, o destemido, cavalga á frente deles. Se partirmos em dois dias, eles estarão próximos antes de nossa partida. Além disso, pedi a muitos que me seguissem subindo o Rio, em qualquer embarcação que conseguissem arranjar; com este vento, logo estarão perto; na verdade vários barcos já chegaram ao Harlond. Julgo que poderíamos partir com sete mil homens a pé e a cavalo, e ao mesmo tempo deixar a Cidade com uma defesa melhor do que a que tinha quando começou o ataque.
— O Portão está destruido — disse Imrahil —, e onde agora poderemos encontrar a habilidade para reconstruí-lo e erguê-lo novamente?
— Em Erebor, no reino de Dáin, está tal habilidade — disse Aragorn —; e, se todas as esperanças não fracassarem, então haverá tempo para que eu envie Gimli, filho de Glóin, para buscar a ajuda dos artesãos da Montanha. Mas homens são melhores que portões, e nenhum portão resistirá ao Inimigo se for abandonado pelos homens.
Esse então foi o fim do debate dos senhores: que eles partiriam na segunda manhã após aquele dia com sete mil homens, se pudessem reuni-los; a maior parte dessa força iria a pé, por causa das terras malignas nas quais entrariam. Aragorn deveria encontrar mais dois mil homens entre aqueles que havia reunido junto a si no sul; Imrahil deveria encontrar três mil e quinhentos; Éomer reuniria quinhentos dos rohirrim que estavam desmontados mas eram competentes na guerra, e ele mesmo deveria liderar quinhentos de seus melhores Cavaleiros; haveria uma outra companhia de quinhentos cavaleiros, entre os quais estariam os filhos de Elrond com os dúnedain e os cavaleiros de Doí Amroth: no total, seis mil a pé e mil a cavalo. Mas a força principal dos rohirrim que ainda possuía montarias e era capaz de lutar, cerca de três mil homens sob o comando de Elfhelm, deveria vigiar a Estrada oeste contra o inimigo que estava em Anórien. Imediatamente cavaleiros velozes com a missão de reunir todas as notícias que pudessem foram enviados para o norte, como também para o oeste, partindo de Osgiliath e da estrada de Minas Morgul. E, quando tinham calculado todas as suas forças e ponderado sobre que viagens deveriam fazer e que estradas escolheriam, Imrahil de súbito deu uma risada.
— Certamente — exclamou ele —, esta será a maior piada em toda a história de Gondor, cavalgaremos com sete mil homens, que mal somam o número da vanguarda de seu exército nos tempos de sua força, para atacarmos as montanhas e o impenetrável portão da Terra Negra! Da mesma forma uma criança poderia ameaçar um cavaleiro coberto por uma armadura com um arco feito de barbante num ramo de salgueiro verde! Se o Senhor do Escuro sabe tanto quanto você diz, Mithrandir, será que não vai sorrir ao invés de temer, e com seu dedo mínimo nos esmagar como um mosquito que tenta picá-lo?
— Não, ele vai tentar prender o mosquito e retirar-lhe o ferrão — disse Gandalf. — E há homens entre nós que valem cada um mais que mil cavaleiros vestindo armaduras. Não, ele não sorrirá.
— Nós também não — disse Aragorn. — Se isso for uma piada, então é amarga demais para causar riso. Não, é o último lance numa situação de grande risco, que trará, para um lado ou para o outro, o fim do jogo. — Então sacou Andúril e ergueu-a faiscante ao sol. — Você não será desembainhada outra vez ate que se trave a última batalha — disse ele.
O PORTÃO NEGRO SE ABRE
Dois dias mais tarde o exército do oeste estava todo reunido no Pelennor. A tropa de orcs e orientais retornara de Anórien, mas acossados e dispersados pelos rohirrim eles tinham fugido, derrotados, quase sem resistir, na direção de Cair Andros; com essa ameaça afastada e com novas forças chegando do sul, a Cidade ficou tão bem guarnecida quanto possível. Batedores reportaram que não restava nenhum inimigo nas estradas do leste até a altura da Encruzilhada do Rei Caído. Tudo agora estava pronto para o último golpe. Legolas e Gimli cavalgariam juntos outra vez na companhia de Aragorn e Gandalf, que iam na vanguarda com os dúnedain e os filhos de Elrond. Mas Merry, para a sua vergonha, não deveria ir com eles.
— Você não está em condições de fazer uma viagem dessas — disse-lhe Aragorn. — Mas não tenha vergonha. Se não fizer mais nada nesta guerra, já terá conquistado uma grande honra. Peregrin irá representando o povo do Condado; não lhe inveje a oportunidade de perigo, pois, embora tenha feito o que a sorte lhe permitiu, ele ainda não realizou um feito à altura do seu. Mas, na verdade, todos correm o mesmo risco. Embora possa ser nossa função ir ao encontro de um fim mais amargo diante do Portão de Mordor, se isso acontecer, vocês também chegarão a um confronto final, seja aqui ou em qualquer lugar onde a maré negra venha a alcançá-los. Adeus!
Assim, desalentado, Merry ficou assistindo à concentração do exército. Bergil estava ao lado dele, também amuado, pois seu pai deveria marchar liderando uma companhia de homens da Cidade: porém estava impedido de retomar seu posto na Guarda até que seu caso fosse julgado. No mesmo grupo deveria partir Pippin, como um soldado de Gondor. Merry podia enxergá-lo, não muito distante: um vulto pequeno porém ereto entre os homens altos de Minas Tirith.
Finalmente as trombetas soaram e o exército começou a se mover. Tropa a tropa, companhia a companhia, faziam uma conversão e partiam para o leste. Muito tempo depois que todos tinham sumido de vista descendo a grande estrada para o Passadiço, Merry ficou ali parado. O último brilho do sol da manhã faiscara sobre lança e elmo e se perdera, e ainda ele permanecia ali, com a cabeça curvada e o coração pesado, sentindo-se solitário e sem amigos. Todos os que lhe eram caros haviam partido para dentro da escuridão que pairava sobre o céu distante do leste, e restavam-lhe pouquíssimas esperanças de que um dia voltasse a ver qualquer um deles.
Como se despertada pelo seu estado de desespero, a dor em seu braço retornara, e ele se sentia fraco e velho, e a luz do sol parecia tênue. Acordou com o toque da mão de Bergil.
— Venha, mestre Perian! — disse o menino. — Você ainda sente dores, estou vendo. Vou acompanhá-lo de volta até os Curadores. Mas não tenha medo! Eles voltarão.
Os homens de Minas Tirith nunca serão derrotados. E agora contam com o Senhor Pedra Élfica, e também com Beregond da Guarda.
Antes do meio-dia, o exército chegou a Osgiliath. Ali os trabalhadores e operários disponíveis estavam todos ocupados. Alguns reforçavam as balsas e as pontes flutuantes que o inimigo fizera e em parte destruíra na fuga; alguns reuniam suprimentos e produtos de saques; outros, do lado leste do Rio, erguiam defesas improvisadas.
A vanguarda atravessou as ruínas da Velha Gondor e o amplo Rio, subindo a longa e estreita estrada que nos dias de apogeu fora feita para conduzir da bela Torre do Sol até a alta Torre da Lua, que agora era Minas Morgul em seu vale maldito. Pararam cinco milhas além de Osgiliath, terminando o primeiro dia de marcha. Mas os cavaleiros continuaram avançando, e antes do inicio da noite chegaram á Encruzilhada e ao grande circulo de árvores, onde tudo estava quieto. Não viram sinais do inimigo, nem ouviram qualquer grito ou chamado, nenhuma lança viera voando de alguma rocha ou maciço de árvores pelo caminho; apesar disso, quanto mais avançavam, mais se sentiam observados. Pedra e árvore, folha e capim pareciam estar escutando atentamente. A escuridão se dissipara, e na distância a oeste o sol se punha sobre o Vale do Anduin, e os picos brancos das montanhas se ruborizavam no ar azul; mas uma sombra e um desalento pesavam sobre os Ephel Dúath.
Aragorn postou então trombeteiros em cada uma das quatro estradas que saiam do circulo de árvores, e eles tocaram uma grande fanfarra, e os arautos gritaram em vozes imponentes:
— Os Senhores de Gondor retornaram, e estão tomando posse desta terra que lhes pertence. — A hedionda cabeça de orc que estava fincada sobre a figura esculpida foi derrubada e partida em pedaços, e a velha cabeça do rei foi erguida e colocada de volta em seu lugar, ainda coroada com as flores douradas e brancas: e os homens trabalharam lavando e raspando todos os garranchos horríveis que os orcs haviam desenhado sobre a pedra.
Agora, num debate, alguns opinaram que Minas Morgul deveria ser atacada primeiro e, se conseguissem tomá-la, deveria ser completamente destruída.
— E talvez — disse Imrahil — a estrada que conduz de lá até a passagem acima seja um acesso mais fácil para atacarmos o Senhor do Escuro do que o Portal Norte.
Mas Gandalf imediatamente reprovou a idéia, por causa do mal que morava no vale, onde as mentes dos homens vivos se voltariam para a loucura e o terror, e também por causa das notícias que Faramir trouxera. Pois, se o Portador do Anel tivesse realmente tentado aquele caminho, então, acima de tudo, deveriam desviar o Olho de Mordor de lá. Portanto, no dia seguinte, após a chegada do exército principal, montaram uma forte guarda na Encruzilhada para garantir alguma defesa, no caso de Mordor enviar uma força pela passagem de Morgul, ou trazer mais homens do sul. Para essa guarda escolheram na maioria arqueiros que conheciam os caminhos de Ithilien e que ficariam escondidos nas florestas e veredas nas imediações do encontro dos caminhos. Mas Gandalf e Aragorn cavalgaram com a vanguarda até a entrada do Vale Morgul para observar a cidade maligna. Estava escura e sem vida, pois os orcs e as criaturas inferiores de Mordor que outrora moravam lá haviam sido destruídos em batalha, e os nazgúl estavam fora. Mesmo assim, o ar do vale estava carregado de medo e hostilidade. Então destruíram a ponte maligna, espalharam chamas rubras pelos campos nocivos e partiram.
No dia seguinte, o terceiro após a partida de Minas Tirith, o exército iniciou sua marcha rumo ao norte seguindo a estrada. Por aquele caminho era cerca de cem milhas da Encruzilhada até o Morannon, e o que lhes poderia acontecer até que chegassem lá ninguém sabia. Avançavam abertamente, mas com cautela, com batedores montados à frente, outros a pé dos dois lados, especialmente no flanco leste, pois ali havia maciços escuros de árvores, e um terreno irregular de estreitos vales rochosos e penhascos, atrás dos quais as compridas e sinistras encostas dos Ephel Dúath se amontoavam. O clima do mundo permanecia belo, continuava a soprar o vento oeste, mas nada conseguia dispersar a melancolia e a névoa triste que pairava ao redor das Montanhas da Sombra; atrás delas, ás vezes grandes porções de fumaça subiam e ficavam suspensas nos ventos mais altos.
De quando em quando, Gandalf mandava tocar as trombetas, e os arautos gritavam:
— Os Senhores de Gondor chegaram! Que todos deixem esta terra ou se rendam!
Mas Imrahil disse:
— Não digam Os Senhores de Gondor. Digam O Rei Elessar. Pois esta é uma verdade, mesmo que ele ainda não tenha assumido o trono; isso fará o Inimigo preocupar-se mais, se os arautos usarem esse nome.
E depois disso, três vezes ao dia, os arautos proclamavam a chegada do Rei Elessar. Mas ninguém respondia ao desafio. Não obstante, embora marchassem numa paz aparente, os corações de todo o exército, dos postos mais altos até os mais baixos, estavam pesados, e a cada milha que avançavam ao norte um mau presságio crescia dentro deles. Foi perto do fim do segundo dia desde que partiram em marcha da Encruzilhada que encontraram, pela primeira vez, uma ocasião de batalha. Um poderoso grupo de orcs e orientais tentou aprisionar a companhia que vinha à frente numa emboscada, exatamente no local onde Faramir tinha atocaiado os homens de Harad, no ponto em que a estrada entrava num corte profundo através de uma saliência das colinas a leste. Mas os Capitães do Oeste foram devidamente advertidos por seus batedores, homens habilidosos de Henneth Annún, liderados por Mablung; dessa forma, os que preparavam a emboscada acabaram presos nela. Cavaleiros deram uma grande volta no sentido oeste e vieram atacando o flanco do inimigo e sua retaguarda, e os orcs e orientais foram destruídos ou rechaçados para o leste, na direção das colinas. Mas a vitória pouco encorajou os corações dos capitães.
— É apenas uma simulação — disse Aragorn — e seu principal propósito, julgo eu, foi mais nos levar a uma suposição errada sobre o ponto fraco de nosso Inimigo do que nos causar muito mal, por enquanto. — E daquela noite em diante os nazgúl vieram e passaram a seguir cada movimento do exército. Ainda voavam alto, e fora do alcance da visão, a não ser para Legolas; mesmo assim, sua presença podia ser sentida, na forma de um adensamento das sombras e um obscurecimento do sol, e, embora os Espectros do Anel ainda não estivessem dando vôos rasantes sobre seus inimigos e se mantivessem em silêncio, sem soltar nenhum grito, não se podia afastar o terror que causavam.
Assim foi passando o tempo e a viagem desesperada. No quarto dia posterior á passagem pela Encruzilhada, o sexto depois da partida de Minas Tirith, chegaram por fim ao término das terras viventes, e começaram a penetrar na desolação que se alastrava diante dos portões da Passagem de Cirith Gorgor; conseguiam divisar os pântanos e o deserto que se estendia ao norte e a oeste dos Emyn Muil. Tão desoladas eram aquelas paragens, e tão profundo o horror que pairava sobre elas, que alguns homens do exército sentiram-se acovardados, não conseguindo avançar mais, a pé ou cavalgando, em direção ao norte.
Aragorn olhou para eles, e seus olhos se encheram de pena, e não de ira, pois aqueles eram jovens de Rohan, do distante Folde Ocidental, lavradores de Lossarnach, e para eles, desde a infância, Mordor tinha sido um nome maligno, e apesar disso irreal, uma lenda que não fazia parte de suas vidas simples; e eles caminhavam como homens num sonho hediondo que se tornara realidade, sem entender aquela guerra nem por que o destino os levava para tal paragem.
— Podem ir! — disse Aragorn. — Mas mantenham a honra que puderem. E não corram! Há uma tarefa que podem tentar para assim não se sentirem tão envergonhados. Façam seu caminho pelo sudoeste até chegarem a Cair Andros, e, se a ilha ainda estiver dominada pelos inimigos, como eu suspeito, então reconquistem-na, se puderem, e mantenham-na até o fim em defesa de Gondor e Rohan!
Então alguns, envergonhados diante de tal demência, superaram o medo e continuaram avançando, e os outros ganharam novas esperanças, ouvindo a menção de um feito corajoso à altura deles a que podiam se dedicar, e partiram. Dessa forma, sendo que muitos homens já haviam sido deixados na Encruzilhada, foi com menos de seis mil homens que os Capitães do Oeste chegaram finalmente para desafiar o Portão Negro e o poder de Mordor.
Agora avançavam devagar, esperando a cada hora uma resposta para o seu desafio; mantinham-se juntos, já que seria desperdício de soldados enviar batedores ou grupos pequenos à frente do exército principal. Ao cair da noite do quinto dia de marcha desde o Vale Morgul, acamparam pela última vez, fazendo fogueiras com a madeira morta e com as urzes secas que conseguiram encontrar. Passaram as horas da noite acordados, percebendo muitos seres parcialmente visíveis que andavam e espreitavam por toda a volta; ouviram também uivos de lobos. O vento cessara e todo o ar parecia parado. Podiam ver pouca coisa, pois, embora não houvesse nuvens e a lua crescente já tivesse quatro dias, havia fumaça e vapores que subiam da terra e o luar branco se escondia nas névoas de Mordor.
Ficou frio. Quando chegou a manhã, o vento começou a se agitar outra vez, mas agora vinha do norte, e logo se amainou numa brisa crescente. Todos os seres notívagos tinham-se ido, e a terra parecia vazia. Ao norte, em meio aos seus buracos fétidos jaziam os primeiros grandes outeiros e amontoados de escória, rocha quebrada e terra arruinada, o vômito dos vermes que habitavam Mordor; mas ao sul, agora já próxima, assomava a grande fortaleza de Cirith Gorgor, com o Portão Negro no meio, tendo ao lado as duas Torres dos Dentes, altas e escuras. Pois em sua última marcha os Capitães tinham desviado da estrada principal no ponto em que ela se curvava para o leste, evitando o perigo das colinas à espreita, e agora aproximavam-se do Morannon pelo noroeste, do mesmo modo que Frodo fizera.
As duas enormes portas de ferro do Portão Negro sob seu arco sinistro estavam muito bem fechadas. Sobre a ameia nada se via. Estava tudo quieto, mas persistia a sensação de vigilância. Tinham chegado ao derradeiro estágio de sua loucura e pararam, abandonados e sentindo frio, na luz cinzenta do início do dia, diante de torres e muralhas que seu exército não podia atacar com esperanças, nem mesmo se tivessem levado até lá máquinas muito poderosas, e se as tropas inimigas fossem para guarnecer a muralha e o portão. Mas eles sabiam que todas as colinas e rochas ao redor do Morannon estavam cheias de inimigos ocultos, e o sombrio desfiladeiro mais além era perfurado e cheio de túneis apinhados de ninhadas de seres malignos. E ali parados eles viram todos os nazgúl reunidos, pairando como abutres sobre as Torres dos Dentes, sabendo que estavam sendo vigiados. Mas ainda assim o Inimigo não dava qualquer sinal.
Não lhes restava outra escolha além de desempenhar o seu papel até o fim. Portanto Aragorn agora colocara o exército na melhor formação que pôde planejar: eles foram reunidos em dois grandes montes de pedra arruinada e terra que os orcs tinham acumulado em anos de trabalho. Diante deles, na direção de Mordor, jazia como um fosso um grande pântano de lama fétida e poças putrefatas. Quando tudo estava ordenado, os Capitães cavalgaram á frente na direção do Portão Negro com uma grande guarda de cavaleiros levando a bandeira, acompanhados dos arautos e dos trombeteiros. Lá ia Gandalf como o principal arauto, Aragorn com os filhos de Elrond, Éomer de Rohan e lmrahil; a Legolas, Gimli e Peregrin foi solicitado que também fossem, de modo que todos os inimigos de Mordor tivessem uma testemunha.
Chegaram perto do Morannon, e desfraldaram a bandeira, tocando as trombetas; os arautos avançaram e fizeram suas vozes soar por sobre a muralha de Mordor.
— Apareça! — gritaram eles. — Que o Senhor da Terra Negra apareça! Justiça será feita para com ele. Pois agiu mal travando guerra contra Gondor e roubando suas terras. Portanto o Rei de Gondor ordena que ele repare seus erros e depois parta para sempre. Apareça!
Fez-se um longo silêncio, e não se ouviu nenhum som em resposta, da muralha ou do portão. Mas Sauron já fizera seus planos, e tinha em mente primeiro brincar cruelmente com aqueles camundongos antes de iniciar a matança. Foi assim que, exatamente quando os Capitães estavam prestes a virar as costas, o silêncio foi subitamente quebrado. Veio um longo retumbar de grandes tambores, como trovões nas montanhas, e então um zurrar de cornetas que fez tremer as próprias pedras e feriu os ouvidos dos homens. E então a porta do meio do Portão Negro se abriu com um grande clangor, e de lá saiu uma embaixada da Torre Escura. Como seu líder veio cavalgando um vulto maligno, montado num cavalo negro, se aquilo era um cavalo, pois era enorme e hediondo, e sua cara uma máscara horripilante, mais parecendo um crânio que uma cabeça viva, e das covas de seus olhos e de suas narinas saía fogo. O cavaleiro estava todo vestido de negro, e negro era seu elmo imponente; mas este não era um Espectro do Anel, e sim um homem vivo. Era o Tenente da Torre de Barad-dûr, e seu nome não é lembrado em história alguma, pois ele próprio o esquecera, e ele disse: — Sou a Boca de Sauron. — Mas conta-se que ele foi um renegado, que vinha da raça daqueles que eram chamados de numenorianos negros, pois eles estabeleceram suas moradias na Terra-média durante os dias do domínio de Sauron. e o adoraram, enamorados pelo conhecimento do mal. E ele havia entrado para o serviço da Torre Escura quando esta se ergueu de novo pela primeira vez, e por causa de sua esperteza foi crescendo cada vez mais nos favores do Senhor; aprendeu grandes feitiçarias, e sabia muito da mente de Sauron; era mais cruel que qualquer orc. Era ele que agora saia pelo portão, e com ele vinha apenas uma pequena companhia de soldados arreados de negro, e uma única bandeira, negra e estampada com o vermelho do Olho Maligno. Parando agora a alguns passos dos Capitães do Oeste, ele os olhou de cima a baixo e riu.
— Há alguém nesse bando que tem autoridade para dirigir-se a mim? — perguntou ele. — Ou mesmo com capacidade de me entender? Não tu, pelo menos! —caçoou ele, voltando-se para Aragorn com desprezo. — Para se fazer um rei, é preciso mais que um pedaço de vidro élfico, ou uma gentalha dessas. Ora, qualquer bandido das colinas pode exibir tal sequela!
Aragorn não disse nada em resposta, mas fixou os olhos do outro e sustentou o olhar, e por um momento os dois lutaram assim; mas logo, embora Aragorn não se movesse nem dirigisse a mão para qualquer arma, o outro vacilou e recuou, como se tivesse sido ameaçado por um golpe.
— Sou um arauto e um embaixador, e não posso ser atacado! — gritou ele.
— Onde rezam tais leis — disse Gandalf — também é costume dos embaixadores usarem menos insolência. Mas ninguém o ameaçou. Não tem nada a temer de nós, até que sua missão seja cumprida. Mas, a não ser que seu mestre tenha adquirido mais sabedoria, então você, juntamente com todos os servidores, estará em grande perigo.
— Então! — disse o Mensageiro. — Este é o porta-voz, velho barba-cinzenta? Será que não ouvimos sobre ti algumas vezes, e de tuas andanças, sempre armando planos e traições a distância? Mas desta vez esticaste o teu nariz longe demais, mestre Gandalf, e verás o que acontece para aquele que tece suas tolas teias diante dos pés de Sauron, o Grande. Tenho provas que me mandaram mostrar a ti — a ti especialmente, se tu ousasses aparecer. — Acenou para um dos guardas, e este veio à frente, carregando um pacote embrulhado em tecido negro.
O Mensageiro desembrulhou o pacote, e ali, para a surpresa e frustração de todos os Capitães, ele ergueu primeiro a pequena espada que Sam carregara, e depois uma capa cinzenta com um broche élfico, e finalmente o colete de mithril que Frodo usara, embrulhado em suas vestes rasgadas. Uma escuridão se formou diante dos olhos deles, e tiveram a impressão de que num momento o mundo se paralisara, mas seus corações estavam mortos e sua última esperança desaparecera. Pippin, que estava atrás do Príncipe Imrahil, saltou à frente com um grito de dor.
— Silêncio! — disse Gandalf num tom severo, empurrando-o para trás; o Mensageiro soltou uma alta risada.
— Então você ainda tem outro desses moleques! — exclamou ele. – Que utilidade vê neles não posso adivinhar, mas mandá-los como espiões para Mordor superou até sua costumeira loucura. De qualquer forma, agradeço a ele, pois está claro que pelo menos esse pirralho já viu esses símbolos antes, e agora seria inútil você negar.
— Não desejo negar nada — disse Gandalf. — Na verdade, conheço-os, e toda a sua história, e apesar de seu desdém, nojenta Boca de Sauron, você não pode dizer o mesmo. Mas por que os traz aqui?
— Casaco de anão, capa de elfo, espada do oeste tombado, e espião daquela pequena terra-de-ratos que é o Condado — não, não se assuste! Sabemos muito bem aqui estão as marcas de uma conspiração. Agora, pode ser que aquele que carregava essas coisas fosse uma criatura que vocês não sentissem perder, ou pode ser o contrário: alguém que lhes era caro, talvez? Se for assim, tome resoluções rápidas com a pouca esperteza que lhe resta. Pois Sauron não gosta de espiões, e o destino dessa criatura depende agora de sua escolha.
Ninguém respondeu, mas ele viu todos os rostos pálidos de medo e o horror em seus olhos, e riu outra vez, pois pareceu-lhe que sua brincadeira ia bem.
— Bem, bem! — disse ele. — Ele lhes era querido, estou vendo. Ou quem sabe sua missão era de tal ordem que vocês não queriam que fracassasse? Pois fracassou. E agora ele deverá suportar o lento tormento de anos, tão longo e lento quanto as artes da Grande Torre podem conceber; nunca será libertado, a não ser talvez quando estiver mudado e destruído, de modo que possa vir até vocês, para que vejam o que fizeram. Isso certamente acontecerá — a não ser que vocês aceitem os termos de meu Senhor.
— Diga quais são os termos — disse Gandalf numa voz severa, mas os que estavam perto viram a angústia em seu rosto, e agora ele parecia um homem velho e mirrado, esmagado, finalmente vencido. Ninguém duvidava de que ele fosse aceitar.
— Os termos são estes — disse o Mensageiro, sorrindo e encarando-os um a um-: a gentalha de Gondor e seus iludidos aliados devem retirar-se imediatamente para além do Anduin, não sem primeiro prestarem juramento de nunca mais atacar Sauron, o Grande, aberta ou secretamente. Todas as terras a leste do Anduin deverão pertencer a Sauron para sempre, e unicamente a ele. A região a oeste do Anduin, até as Montanhas Sombrias e o Desfiladeiro de Rohan, deverá pagar tributo a Mordor, e os homens de lá não poderão portar armas, mas terão permissão para governar seus próprios assuntos. No entanto, deverão ajudar a reconstruir Isengard, a qual destruíram por capricho, e essa região será de Sauron, e lá seu tenente deverá morar: não Saruman, mas alguém mais digno de confiança.
Olhando nos olhos do Mensageiro, todos leram seu pensamento. Seria ele aquele tenente que reuniria tudo o que restasse do oeste sob seu controle seria tirano e eles os seus escravos.
Mas Gandalf disse:
— Isso é exigir muito pela entrega de um servidor: que seu Mestre deva receber em troca o que de outra forma lhe custaria muitas guerras! Ou será que o campo de Gondor destruiu sua esperança na guerra, e ele agora deu para barganhar? E, se realmente déssemos tanto valor ao prisioneiro? Que garantia teremos de que Sauron, o Mestre Máximo da Traição, manterá sua parte no acordo? Onde está esse prisioneiro? Que o tragam aqui para que o vejamos, e então consideraremos essas exigências.
Gandalf, atento, olhando para ele como alguém empenhado em esgrimir com um inimigo mortal, teve a impressão de que, pelo tempo de um suspiro, o Mensageiro ficou perdido; mas rapidamente ele riu outra vez.
— Não seja tão insolente a ponto de discutir com a Boca de Sauron! — gritou ele. — Você pede garantias! Sauron não dá nenhuma. Se você implora por sua demência, deve primeiro fazer o que ele ordena. Estes são os seus termos. É pegar ou largar!
— Vamos pegar! — disse Gandalf de repente. Jogou para o lado a capa e uma luz branca brilhou como uma espada naquele lugar escuro.
Diante da mão erguida do mago, o Mensageiro recuou, e Gandalf, avançando, agarrou e tirou dele as provas: casaco, capa e espada.
— Vamos pegar estes em memória de nosso amigo — gritou ele. — Mas, quanto aos seus termos, nós os rejeitamos completamente. Vá embora, pois sua embaixada terminou e a morte se aproxima de você. Não viemos até aqui para desperdiçar palavras fazendo tratos com Sauron, traiçoeiro e maldito, e muito menos com um de seus escravos. Suma daqui! Então o Mensageiro de Mordor não voltou a rir. Seu rosto se contorcia de estupefação e ódio, semelhante ao de um animal selvagem que, ao pular sobre sua presa, é ferido no focinho por um ferrão. Tomado de raiva, a boca babando, emitiu sons estrangulados, sem nexo e cheios de fúria. Mas olhou nos rostos cruéis dos Capitães e em seus olhos fatais, e o medo que sentiu derrotou a ira.
Soltou um enorme grito e, virando-se, saltou sobre o cavalo e com sua companhia galopou alucinadamente de volta para Cirith Gorgor. Mas, enquanto se distanciavam, seus soldados tocaram as cornetas num sinal há muito combinado, e mesmo antes que chegassem ao portão Sauron acionou sua armadilha.
Tambores retumbaram e fogos subiram aos ares. As grandes portas do Portão Negro se escancararam. Delas saiu como uma onda um grande exército, com a mesma rapidez das águas rodopiantes quando uma comporta se abre.
Os Capitães montaram de novo e recuaram, e do exército de Mordor subiu um grito de escárnio. A poeira se ergueu sufocando o ar, pois de um ponto próximo dali veio marchando uma tropa de orientais que estivera esperando pelo sinal nas sombras de Ered Lithui, além da Torre mais distante. As colinas dos dois lados do Morannon despejavam inúmeros orcs. Os homens do oeste estavam encurralados, e logo, por toda a volta dos montes cinzentos onde eles estavam, forças dez vezes maiores e ainda mais numerosas que isso os cercariam num mar de inimigos. Sauron tinha mordido a isca com mandíbulas de aço.
Sobrou pouco tempo para que Aragorn ordenasse a sua batalha.
Sobre um monte estavam ele e Gandalf, e ali, bela e desesperada, erguia-se a bandeira da Árvore e das Estrelas. Sobre o outro monte ao lado erguiam-se as bandeiras de Rohan e Doí Amroth, Cavalo Branco e Cisne de Prata; em torno de cada monte foi formado um circulo que vigiava em todas as direções, eriçado de lanças e espadas. Mas na frente, na direção de Mordor, onde o primeiro e terrível assalto viria, estavam os filhos de Elrond à esquerda, com os dúnedain ao redor deles, e á direita o Príncipe Imrahil com os homens de Doí Amroth, altos e belos, além de soldados escolhidos da Torre da Guarda.
O vento soprou, as trombetas cantaram, flechas zuniram; mas o sol. agora subindo em direção ao sul, foi velado pelos vapores de Mordor, e através de uma névoa ameaçadora ele reluzia, remoto, num vermelho morto, como se fosse o final do dia, ou talvez o fim de todo o mundo de luz. E das trevas que se adensavam os nazgúl vieram com suas vozes frias, gritando palavras de morte; então toda esperança se extinguiu.
Pippin se curvara, esmagado pelo terror contra o chão, quando ouviu Gandalf recusar os termos e condenar Frodo ao tormento da Torre, mas conseguira controlar-se, e agora estava ao lado de Beregond, na primeira fileira de Gondor, com os homens de Imrahil. Pois parecia-lhe melhor morrer logo e deixar a amarga história de sua vida, uma vez que tudo estava arruinado.
— Gostaria que Merry estivesse aqui — ouviu sua própria voz dizer, e pensamentos velozes passaram-lhe pela mente, no momento em que via o inimigo avançando para o ataque. — Bem, bem, agora pelo menos entendo o pobre Denethor um pouco mais. Poderíamos morrer juntos, Merry e eu, já que devemos morrer de qualquer forma, não é mesmo? Bem, como ele não está aqui, espero que encontre um fim mais fácil. Mas agora preciso dar o melhor de mim.
Sacou a espada e a contemplou, e as figuras entrelaçadas, vermelhas e douradas; e as letras fluentes de Númenor brilharam como fogo sobre a lâmina. "Esta espada foi feita justamente para uma hora como esta", pensou ele. "Se pelo menos eu pudesse golpear com ela o Mensageiro nojento, então quase empataria com o velho Merry. Bem, vou golpear alguém deste bando de animais antes do fim. Gostaria de poder ver um sol fresco e a relva verde outra vez."
Então, no momento em que o hobbit pensava em tais coisas, o primeiro ataque chocou-se contra eles. Os orcs, impedidos pelos pântanos que se espalhavam diante dos montes, pararam e derramaram suas flechas contra as fileiras de defesa. Mas em meio a eles chegou, a largas passadas, rugindo como animais, uma grande companhia de trolls das montanhas, vinda de Gorgoroth. Eram mais altos e mais encorpados que homens, e estavam vestidos apenas com malhas justas de escamas resistentes; mas carregavam escudos redondos, enormes e negros, e brandiam pesados martelos em suas mãos encaroçadas. Temerários, mergulharam nas poças e atravessaram-nas andando, urrando enquanto se aproximavam. Como uma tempestade caíram sobre a fileira dos homens de Gondor, batendo sobre elmo e cabeça com arma e escudo, como um ferreiro que malha o ferro quente e flexível. Ao lado de Pippin, Beregond caiu, subjugado e aturdido; o grande chefe dos trolls que o derrubara debruçou-se sobre ele, esticando uma garra sufocante, pois essas cruéis criaturas costumavam morder as gargantas daqueles que derrubavam.
Então Pippin deu um golpe para cima, e a espada com as letras do Ponente perfurou o couro e penetrou fundo nas entranhas do troll, cujo sangue negro jorrou aos borbotões. A criatura cambaleou para a frente e foi ao chão, desmoronando como uma pedra, enterrando os que estavam embaixo. Negrume, fedor e uma dor esmagadora dominaram Pippin, e sua mente caiu numa grande escuridão. "Assim tudo termina como eu suspeitara", disse seu pensamento, no instante em que se perdia; riu um pouco ainda dentro de si mesmo antes de fugir, parecia quase alegre por estar afastando finalmente toda a dúvida, a preocupação e o medo. E então, no momento em que o pensamento voava para dentro do esquecimento, ouviu vozes, que pareciam estar gritando de algum mundo esquecido lá em cima:
— As Águias estão chegando! As Águias estão chegando!
Por mais um momento o pensamento de Pippin perdurou.
— Bilbo! — disse ele. — Mas não! Isso aconteceu na história dele, há muito e muito tempo. Esta é minha história, e agora está terminada. Adeus! — E seu pensamento voou para longe; seus olhos não viram mais nada.
A TORRE DE CIRITH UNGOL
Sam levantou-se do chão com muito esforço. Por um momento perguntou-se onde estava, e então toda a desgraça e o desespero retornaram á sua mente. Estava numa escuridão profunda do lado de fora do portão inferior da fortaleza dos orcs, as portas de bronze estavam fechadas. Certamente ele caíra sem sentidos quando arremessou o corpo contra elas, mas quanto tempo ficara ali deitado não sabia dizer.
Naquela hora estivera fervendo, desesperado e furioso; agora tremia de frio. Arrastou-se até as portas e colou o ouvido contra elas. De um ponto distante lá dentro conseguia escutar vozes de orcs gritando, mas logo cessaram ou ficaram fora do alcance de seus ouvidos, e tudo era silêncio. A cabeça lhe doía, e os olhos viam luzes fantasmagóricas na escuridão, mas ele lutava para se firmar e pensar. De qualquer maneira, estava claro que não havia esperança de entrar na fortaleza dos orcs por aquele portão; ele poderia ficar ali aguardando durante dias antes que se abrisse, e não havia tempo para esperar; o tempo era desesperadamente precioso. Sam não tinha mais dúvidas sobre o seu dever: deveria resgatar seu mestre ou perecer na tentativa.
— É mais provável que eu pereça, e de qualquer modo vai ser bem mais fácil — disse ele num ar severo para si mesmo, recolocando Ferroada na bainha e dando as costas para as portas de bronze. Devagar foi tateando o caminho de volta no escuro ao longo do túnel, sem coragem de usar a luz élfica; enquanto avançava, tentava recapitular os acontecimentos desde que Frodo e ele haviam partido da Encruzilhada. Perguntava-se que horas seriam. Algum ponto entre um dia e o próximo, supunha ele; mas até mesmo dos dias ele perdera a conta. Estava numa terra de escuridão, onde os dias do mundo pareciam esquecidos e onde todos os que entravam também eram esquecidos.
— Queria saber se em algum momento eles pensam em nós — disse ele —, e o que está acontecendo lá longe. Acenou com a mão no ar num gesto vago, mas agora na verdade estava virado para o sul, voltando ao túnel de Laracna, e não para o oeste. No mundo lá fora, no lado oeste aproximava se o meio-dia do décimo quarto dia de março, de acordo com o Registro do Condado, e nesse momento Aragorn conduzia a frota negra saindo de Pelargir, e Merry cavalgava com os rohirrim, descendo o Vale das Carroças de Pedra, enquanto em Minas Tirith subiam as chamas e Pippin observava a loucura crescendo nos olhos de Denethor. Apesar disso, em meio a todas as preocupações e temores, os pensamentos de seus amigos voltavam-se constantemente para Frodo e Sam. Eles não tinham sido esquecidos. Mas estavam fora do alcance de qualquer ajuda, e nenhum pensamento poderia trazer qualquer socorro para Samwise, filho de Hamfast; por isso, ele estava completamente sozinho.
Por fim chegou de volta à porta de pedra do corredor dos orcs, e ainda sem poder descobrir a tranca ou o ferrolho que a mantinha fechada, arrastou-se por cima da mesma forma que antes e deixou-se cair delicadamente no chão. Então avançou furtivamente até a saída do túnel de Laracna, onde os farrapos de sua grande teia ainda balançavam no vento frio. Pois frio lhe parecia o vento, depois da escuridão desagradável que deixara para trás. Mas o seu sopro fez o hobbit reviver.
Arrastou-se com cautela para fora.
Tudo estava funestamente quieto. A luz não passava daquela que se tem no crepúsculo ao fim de um dia escuro. A enorme quantidade de vapor que subia em Mordor e ia flutuando em direção ao oeste ia passando baixo, uma grande onda de fumaça e nuvens agora iluminada outra vez embaixo por um vermelho sombrio.
Sam ergueu os olhos para a torre dos orcs, e de repente, das estreitas janelas, luzes espiaram como pequenos olhos vermelhos. Pensou se aquilo não era algum sinal. O medo que sentira dos orcs, esquecido por um tempo em sua ira e desespero, agora retornava. Pelo que podia ver, havia um único caminho possível a tomar: deveria ir em frente tentando achar a entrada principal da pavorosa torre; mas sentia os joelhos fracos, e percebeu que estava tremendo. Desviando os olhos da torre e dos chifres da fenda diante dele, forçou seus pés relutantes a lhe obedecerem e, devagar, escutando com a máxima atenção, espiando para dentro das densas sombras das rochas ao lado do caminho, refez seus passos, passando pelo lugar onde Frodo caíra, onde ainda perdurava o fedor de Laracna, e depois foi adiante e para cima, até chegar de novo exatamente na fenda onde colocara o Anel e vira passar a companhia de Shagrat. Então parou e sentou-se. Por um momento não conseguiu forçar-se a avançar mais. Sentia que, se transpusesse o topo da passagem e se realmente desse um passo descendo e penetrando a terra de Mordor, esse passo seria irrevogável. Nunca mais poderia voltar. Sem qualquer propósito claro, puxou o Anel e colocou-o de novo no dedo. Imediatamente sentiu o grande fardo de seu peso, e sentiu de novo, agora mais forte e opressiva que nunca, a malícia do Olho de Mordor, perscrutando, tentando penetrar as sombras que fizera para a própria defesa, mas que nesta hora o atrapalhavam em sua inquietude e dúvida.
Como antes, Sam sentiu sua audição aguçada, enquanto para seus olhos as coisas deste mundo pareciam tênues e vagas. As muralhas rochosas da trilha estavam pálidas, como se vistas através de uma névoa, mas ainda na distância Sam ouvia o borbulhar de Laracna em sua desgraça; e roucos e claros, parecendo estar bem próximos, ouviu o som de gritos e o entrechoque de metais. Saltou de pé e forçou o corpo contra a muralha que margeava a trilha. Estava feliz por ter o Anel, pois ali já vinha outra companhia de orcs em marcha. Ou pelo menos foi assim que pensou a princípio. Então, de súbito, percebeu que não se tratava disso, e que sua audição o enganara: os gritos dos orcs vinham da torre, cujo chifre mais alto erguia-se agora bem diante dele, do lado esquerdo da Fenda.
Sam estremeceu e tentou forçar-se a avançar. Era claro que alguma maldade estava acontecendo. Talvez, a despeito de todas as ordens, os orcs, dominados por sua crueldade, estivessem torturando Frodo, ou até mesmo partindo-o aos pedaços com selvageria. Ficou escutando, e teve um laivo de esperança. Não poderia haver muita dúvida: havia luta na torre, os orcs deviam estar lutando entre si, Shagrat e Gorbag haviam chegado ás vias de fato. Apesar de ser uma esperança fugidia a que lhe trouxera a sua suposição, foi o suficiente para despertá-lo. Só poderia haver uma chance. Seu amor por Frodo se elevou acima de todos os outros pensamentos, e, esquecendo o perigo, Sam gritou:
— Estou chegando, Sr. Frodo!
Correu para o topo da trilha ascendente e foi adiante. De súbito o caminho fez uma curva para a esquerda e mergulhou vertiginosamente. Sam cruzara o limiar de Mordor. Retirou o Anel, movido talvez por alguma premonição profunda de perigo, embora consigo mesmo pensasse apenas que desejava enxergar mais claro.
— É melhor dar uma olhada no pior — murmurou ele. — Não adianta ir tropeçando na neblina!
Seu olhar deparou com uma terra dura, cruel e amarga. Diante de seus pés o maciço mais alto dos Ephel Dúath caía vertiginosamente em grandes penhascos, para dentro de uma grande vala, que do outro lado subia num outro maciço, muito mais baixo, com uma borda chanfrada e denteada, com rochedos semelhantes a presas que se sobressaíam negras contra um fundo de luz vermelha: era o sinistro Morgai, o circulo interno das fronteiras da terra. Muito além dele, mas quase em linha reta, através de um amplo lago de escuridão salpicado por pequenas fogueiras, havia um grande clarão de fogo; dele subia em enormes colunas uma fumaça em torvelinhos, de um vermelho empoeirado na parte inferior, negra na parte de cima, onde se misturava à abóbada ondulada que toldava toda aquela terra maldita.
Sam estava olhando para Orodruin, a Montanha de Fogo. De vez em quando, as fornalhas bem abaixo de seu pico de cinzas despejavam, em meio a grandes ondas e convulsões, rios de rocha fundida, saídos de fendas em suas encostas. Alguns corriam reluzindo na direção de Barad-dûr por grandes canais; outros traçavam um caminho sinuoso e entravam na planície de pedra, até se resfriarem e se deitarem como formas retorcidas de dragões, o vômito da atormentada terra. Sam avistou a Montanha da Perdição, e a sua luz, escondida pelo alto escudo dos Ephel Dúath dos olhos daqueles que subiam pela estrada do oeste, agora brilhava contra as rígidas encostas rochosas, de modo que pareciam estar banhadas de sangue.
Naquela luz aterrorizante Sam parou atônito, pois agora, olhando à esquerda, ele conseguia divisar a Torre de Cirith Ungol em toda a sua força. O chifre que vira do outro lado era apenas o torreão mais alto. Seu lado leste projetava-se em três grandes patamares sobre uma saliência na encosta da montanha lá embaixo; sua parte posterior dava para um grande penhasco, do qual saíam baluartes pontiagudos, um sobre o outro, que iam — diminuindo ao subirem, com laterais perpendiculares de habilidosa alvenaria com faces para o nordeste e o sudeste. Ao redor do patamar mais baixo, sessenta metros abaixo de onde estava Sam, havia uma parede com ameia que contornava um pequeno pátio. Seu portão, que ficava na encosta sudeste, abria-se para uma estrada larga, cujo parapeito externo corria sobre a borda de um precipício, até virar-se para o sul e continuar numa descida sinuosa na escuridão, para unir-se à estrada que vinha da Passagem de Morgul. Por ela então atravessava uma fissura denteada no Morgai e saía para o vale de Gorgoroth e para Barad-dûr. O estreito caminho superior no qual Sam estava saltava rapidamente para baixo através de degraus e de uma trilha íngreme, até encontrar a estrada principal sob as muralhas sinistras próximas ao Portão da Torre.
Olhando tudo aquilo Sam de repente entendeu, quase tendo um choque, que aquela fortaleza não fora construída para manter os inimigos fora de Mordor, mas para prendê-los lá dentro. Na realidade era um dos trabalhos realizados muito tempo atrás por Gondor, um posto avançado das defesas de Ithilien no leste, feito quando, depois da Última Aliança, os homens do Ponente passaram a vigiar a terra maligna de Sauron, onde suas criaturas ainda rondavam. Mas como aconteceu com Narchost e Carchost, as Torres dos Dentes, aqui também a vigilância fracassara, e a traição entregara a Torre para o Senhor dos Espectros do Anel, e agora por longos anos ela estivera sob a posse de seres malignos. Desde seu retorno a Mordor, Sauron a considerara útil, pois ele tinha poucos servidores mas muitos escravos do terror, e o principal escopo da torre era ainda, como sempre, evitar a fuga de Mordor. Caso um inimigo fosse tão temerário a ponto de tentar entrar naquela terra secretamente, a torre então era também um último guarda que nunca dormia, vigiando qualquer um que pudesse burlar a vigilância de Morgul e de Laracna.
Sam percebeu muito claramente como seria sem esperança a sua tentativa de se arrastar sob aquelas paredes de muitos olhos e passar pelo portão vigilante. E, mesmo que conseguisse, não poderia avançar muito na estrada vigiada: nem mesmo as sombras negras, que pairavam nas profundezas onde o brilho vermelho não alcançava, poderiam protegê-lo por muito tempo dos orcs e de seus olhos noturnos. Mas, mesmo que a estrada não oferecesse esperanças, sua tarefa agora era muito pior; não se tratava de evitar o portão e escapar, mas de entrar por ele, sozinho.
Seu pensamento voltou-se para o Anel, mas ali não havia consolo, só terror e perigo. Logo que conseguira avistar a Montanha da Perdição, queimando na distância, Sam percebeu uma mudança em seu fardo. A medida que se aproximava das grandes fornalhas onde, nas profundezas do tempo, o Anel fora forjado e moldado, seu poder crescia e ficava mais cruel, não podendo ser controlado a não ser que houvesse alguma vontade poderosa. E no momento em que Sam parara ali, mesmo sem usar o Anel, tendo-o apenas pendurado ao pescoço, ele próprio se sentiu maior, como se estivesse vestindo uma enorme sombra distorcida de si mesmo, uma ameaça enorme e ominosa parada sobre as muralhas de Mordor. O hobbit sentia que de agora em diante só tinha duas escolhas: abster-se do Anel, embora isso pudesse torturá-lo, ou reivindicá-lo, desafiando o poder que se sentava em seu escuro domínio além do vale de sombras. O Anel já o tentava, devorando sua vontade e raciocínio. Fantasias loucas despertavam em sua mente, e ele via Samwise, o Forte, Herói do seu Tempo, caminhando a passos largos com uma espada flamejante através da terra escurecida, e exércitos se arrebanhando a um chamado seu, no momento em que marchava para derrotar Barad-dûr. E então todas as nuvens se dissipavam, e o sol branco brilhava, e a uma ordem sua o vale de Gorgoroth se transformava num jardim de flores e árvores que davam frutos. Ele só tinha de colocar o Anel e reivindicar a sua posse, e tudo isso podia acontecer.
Naquela hora de provação, foi o amor por seu mestre que mais o ajudou a manter-se firme; mas também, no fundo de seu ser, ainda vivia independente seu senso simples de hobbit: sabia em seu coração que não era grande o suficiente para carregar tal fardo, mesmo que aquelas visões não fossem apenas uma mera ilusão para atraiçoá-lo. O pequeno jardim de um jardineiro livre era tudo o que desejava e de que precisava, não um jardim expandido em um reino; queria trabalhar com as próprias mãos, e não ter as mãos dos outros para comandar.
— E de qualquer forma todas essas sensações são apenas uma armadilha — disse ele para si mesmo. — Ele me acharia e me faria morrer de medo antes que conseguisse sequer gritar. Ele me acharia bem rápido, se eu colocasse o Anel aqui em Mordor. Bem, tudo o que posso dizer é: as coisas parecem desastrosas como uma geada na primavera. Bem na hora em que estar invisível seria realmente útil, não posso usar o Anel! E, se conseguir avançar mais um pouco, ele não vai passar de um fardo e um peso a cada passo. Então, que devo fazer?
Na verdade, ele não estava em dúvida. Sabia que precisava descer até o portão e não ficar ali por mais tempo. Com um dar-de-ombros, como se quisesse afastar a sombra e livrar-se dos fantasmas, começou a descer lentamente. A cada passo tinha a impressão de que diminuía. Não tinha ido muito longe e já se via reduzido de novo ao tamanho de um hobbit bem pequeno e amedrontado. Estava agora passando sob as próprias muralhas da Torre, e os gritos e ruídos de luta podiam ser ouvidos sem a ajuda do Anel. No momento, o barulho parecia estar vindo do pátio que ficava atrás da muralha externa.
Sam estava no meio de sua descida pela trilha quando do portão escuro vieram dois orcs correndo, surgindo no clarão vermelho. Não se viraram para ele. Estavam se dirigindo para a estrada principal, mas enquanto corriam tropeçaram e caíram no chão, ficando imóveis. Sam não vira flechas. mas supunha que os orcs tinham sido feridos por outros que estavam nas E ameias ou escondidos na sombra do portão. Avançou, encostando-se na muralha à esquerda. Um olhar para cima lhe revelara que não havia possibilidade de escalá-la.
O trabalho em pedra se erguia a uma altura de nove metros, sem qualquer rachadura ou patamar, até atingir saliências que pareciam degraus invertidos. O portão era o único caminho.
Para a frente, e, enquanto avançava, perguntava-se quantos orcs viviam na Torre com Shagrat, e quantos Gorbag tinha, e qual seria o motivo de sua discussão, se era isso o que estava acontecendo. Tivera a impressão de que a companhia de Shagrat era composta de quarenta elementos, e a de Gorbag lhe parecia mais de duas vezes maior; mas sem dúvida a patrulha de Shagrat representara apenas uma parte de sua guarnição. Era quase certeza que estavam discutindo sobre Frodo e o espólio. Por um segundo Sam parou, pois de repente as coisas lhe pareceram claras, como se as tivesse visto com os próprios olhos. O casaco de mithril! Era claro, Frodo o estava vestindo, e eles o achariam. E, pelo que Sam pudera ouvir, Gorbag o cobiçava. Mas as ordens da Torre Escura eram agora a única proteção de Frodo, e, se fossem ignoradas, ele poderia ser morto a qualquer momento.
— Vamos lá, seu preguiçoso miserável! exclamou Sam para si mesmo. — Agora, vamos! — Sacou Ferroada e correu na direção do portão aberto. Mas, no momento em que estava prestes a passar embaixo do grande arco, sentiu um choque: como se tivesse batido contra alguma teia como a de Laracna, mas desta vez invisível. Não conseguia enxergar obstáculo algum. mas algo forte demais para que pudesse superar pela força de sua vontade barrava-lhe o caminho. Olhou ao redor, e então dentro da sombra do portão viu as Duas Sentinelas.
Eram como grandes figuras sentadas em tronos. Cada uma tinha três corpos unidos, e três cabeças olhando para fora, e para dentro, e através do portão. As cabeças tinham caras de abutres, e em seus grandes joelhos descansavam mãos em forma de garras. Pareciam ter sido entalhadas em enormes blocos de pedra, imóveis, e apesar disso estavam vigilantes: algum espírito terrível de vigilância maligna morava nelas. Conheciam quem era um inimigo. Visível ou invisível, ninguém poderia passar despercebido. Proibiriam sua entrada, ou sua fuga.
Forçando sua disposição, Sam lançou o corpo outra vez para a frente, e parou com um solavanco, cambaleando como se tivesse levado um murro na cabeça e no peito. Então, com enorme ousadia, porque não conseguia pensar em mais nada, respondendo a um pensamento repentino que lhe ocorreu, puxou lentamente o frasco de Galadriel e o ergueu. Rápido a luz branca ganhou vida, e as sombras sob o arco escuro fugiram. As monstruosas Sentinelas continuavam ali sentadas, frias e imóveis, reveladas em toda a sua forma hedionda. Por um momento Sam capturou um faiscar nas pedras negras de seus olhos, cuja própria malícia o fez vacilar; mas lentamente sentiu que a vontade delas titubeava e desmoronava de medo. Passou por elas num salto, mas no momento em que fazia isso, escondendo o frasco de volta em seu peito, percebeu nitidamente, como se uma barra de aço tivesse descido de súbito atrás dele, que a vigilância fora renovada. E daquelas cabeças malignas veio um grito agudo que ecoou nas altas muralhas diante dele. Lá em cima, como um sinal em resposta, um sino estridente emitiu um único toque.
— Tudo acabado! — disse Sam. — Agora toquei a campainha da porta da frente! Bem, que alguém apareça! — gritou ele. — Digam ao Capitão Shagrat que o grande Guerreiro Élfico está aqui, e veio com sua espada élfica!
Não houve resposta. Sam avançou a passos largos. Ferroada emanava um brilho azul em sua mão. O pátio estava envolto em sombras, mas ele podia ver que a calçada estava coberta de corpos. Bem aos seus pés estavam dois arqueiros-orcs com facas enfiadas nas costas. Mais além jaziam muitas outras formas; algumas sozinhas, pois haviam sido golpeadas ou flechadas, outras em pares, uma ainda agarrada à outra, mortas em meio ao espasmo de golpear, esganar, morder. As pedras, borrifadas com sangue escuro, estavam escorregadias.
Sam notou dois uniformes, um marcado com o Olho Vermelho, o outro com uma Lua desfigurada, representando um rosto fantasmagórico de morte; mas ele não parou para olhar mais atentamente. Do outro lado do pátio, uma grande porta ao pé da Torre estava entreaberta, e uma luz vermelha escapava por ela; um grande orc jazia morto no limiar. Sam saltou por sobre o corpo e entrou; depois olhou em volta, perdido. Um corredor largo e retumbante conduzia da porta para a encosta da montanha. Estava parcamente iluminado com tochas de chamas trêmulas presas a suportes nas paredes, mas seu fim distante se perdia na escuridão. Podiam-se ver muitas portas e aberturas dos dois lados, mas o corredor estava vazio, a não ser por mais dois ou três corpos esparramados no chão. Pelo que ouvira da conversa do capitão, Sam sabia que, vivo ou morto, Frodo poderia mais provavelmente ser encontrado num cômodo bem em cima do torreão superior, mas poderia levar um dia de buscas antes que Sam achasse o caminho.
— Suponho que fique perto dos fundos — murmurou Sam. — Toda a Torre sobe inclinando-se para trás. E, de qualquer forma, é melhor que eu siga essas luzes.
Avançou pelo corredor, mas agora devagar, cada passo mais relutante que o anterior. O terror estava começando a dominá-lo outra vez. Não se ouvia qualquer som, exceto a batida de seus pés, que parecia aumentar num barulho ecoante, como o estapear de grandes mãos sobre as rochas. Os cadáveres, o vazio, a umidade das paredes negras que à luz das tochas parecia sangue escorrendo, o medo de uma morte súbita espreitando em alguma porta ou sombra, e atrás de tudo em sua mente a malícia vigilante e atenta no portão: tudo aquilo quase ultrapassava o que ele podia forçar-se a enfrentar. Sam teria preferido uma luta — não com muitos inimigos de uma só vez àquela hedionda e crescente incerteza. Fez um esforço para pensar em Frodo, acorrentado, sofrendo ou morto em algum ponto daquele lugar aterrorizante. Continuou a avançar. Já ultrapassara além da luz das tochas, quase chegando a uma grande porta em arco no fim do corredor, o lado interno do portão inferior, como corretamente supusera, quando ouviu lá de cima um guincho horrível e estrangulado.
Parou de repente. Então ouviu passos se aproximando. Alguém estava correndo a uma grande velocidade, descendo por uma escada ecoante acima de onde Sam estava. Sua força de vontade foi muito fraca e lenta para impedir-lhe o movimento da mão, que buscou a corrente e agarrou o Anel. Mas Sam não o colocou no dedo, pois, no momento em que o agarrava junto ao peito, um orc veio descendo aos trambolhões. Saltando de um buraco escuro à direita, correu na direção de Sam. Já estava a menos de seis passos quando, erguendo a cabeça, viu o hobbit, e Sam pôde ouvir sua respiração entrecortada e ver o brilho em seus olhos injetados de sangue. A criatura parou de repente, aterrorizada, pois o que viu não foi um hobbit pequeno e amedrontado que tentava empunhar uma espada com firmeza: diante de seus olhos estava um grande vulto silencioso, coberto por uma sombra cinzenta, assomando contra a luz vacilante atrás de si; em uma mão segurava uma espada, cuja própria luz já representava uma dor terrível, e a outra estava fechada contra o peito, mas escondia alguma inominável ameaça de força e destruição.
Por um momento o orc ficou agachado, e depois, com um grito hediondo de medo, virou-se e fugiu correndo por onde viera. Diante daquela fuga inesperada, Sam sentiu-se mais encorajado do que qualquer cachorro quando vê o inimigo virar as costas e correr apavorado. Com um grito correu ao encalço dele.
— Sim, o Guerreiro Élfico está à solta! — gritou ele. — Estou chegando. você me mostra o caminho até lá em cima, ou vou arrancar-lhe a pele!
Mas o orc estava em seus próprios domínios, era ligeiro e bem-nutrido. Sam era um forasteiro, faminto e cansado. Os degraus eram muitos, íngremes e sinuosos. Sam começou a ter dificuldades para respirar. O orc logo sumiu de vista, e agora mal se ouviam as fracas batidas de seus pés em fuga para o alto. As vezes dava um grito, cujo eco percorria as paredes. Mas lentamente todo o ruído silenciou.
Sam avançava a duras penas. Sentia que estava no caminho certo, e sua disposição melhorara bastante. Guardou o Anel e apertou o cinto.
— Bem, bem! — disse ele. — Se pelo menos todos eles sentirem por mim e minha Ferroada uma aversão semelhante, isso pode acabar melhor do que eu esperava. E, de qualquer forma, parece que Shagrat, Gorbag e companhia já fizeram quase todo o trabalho por mim. Com a exceção daquele pequeno rato apavorado, acho que não resta ninguém vivo no lugar! — ao dizer isso parou, de súbito, como se tivesse batido a cabeça contra a parede de pedra. O pleno significado do que dissera surpreendeu-o como um murro. Não resta ninguém vivo! De quem fora aquele horrível grito agudo de morte?
— Frodo, Frodo! Mestre! — gritou ele aos soluços. — Se eles o mataram, que farei? Bem, estou chegando finalmente, exatamente ao topo, e verei o que houver para ser visto.
Foi subindo sem parar. Estava escuro, a não ser por uma tocha ocasional, bruxuleando numa curva, ou ao lado de alguma abertura que conduzia para os níveis superiores da Torre. Sam tentou contar os degraus, mas depois de duzentos perdeu a conta. Agora se movia sem fazer ruido, pois tinha a impressão de poder ouvir o som de vozes conversando, ainda bem acima. Restava mais de um rato vivo, ao que parecia.
De repente, quando sentia que não poderia mais respirar, e que seus joelhos já não teriam forças para se dobrar de novo, a escada terminou.
Sam ficou imóvel. As vozes agora soavam altas e próximas. Espiou ao redor. Tinha subido direto para o teto plano do terceiro e mais alto patamar da Torre: um espaço aberto, de cerca de vinte metros de largura, com um parapeito baixo. Ali a escada era coberta por um cômodo pequeno e abobadado no meio do teto, com portas baixas que davam para o leste e para o oeste. A leste Sam conseguia enxergar a planície de Mordor, vasta e escura lá embaixo, e a montanha incandescente na distância. Um novo tumulto estava começando em seus profundos poços, e os rios de fogo reluziam com tanta força que mesmo numa distância de muitas milhas a sua luz iluminava o topo da torre com um clarão vermelho. A oeste a visão ficava bloqueada pela base do grande torreão que se erguia atrás deste pátio superior, e projetava seu chifre bem acima da borda das colinas circundantes. Uma luz vinha da fenda de uma janela. A porta ficava a menos de dez metros de onde se encontrava Sam. Estava aberta mas escura, e de suas sombras vinham as vozes.
No inicio Sam não prestou atenção; afastou-se um passo da porta leste e olhou ao redor. Imediatamente viu que lá em cima a luta fora acirradíssima. Todo o pátio estava abarrotado de orcs mortos, ou ainda de cabeças e pernas decepadas. O lugar fedia a morte. Um rosnado seguido de um golpe e um grito mandou Sam de volta para seu esconderijo feito flecha. Uma voz de orc se ergueu furiosa, e Sam a reconheceu na hora, rouca, brutal, fria. Era Shagrat, o Capitão da Torre, falando.
— Está dizendo que não vai outra vez? Maldito Snaga, seu pequeno verme! Se acha que estou tão machucado que você pode zombar de mim, está errado. Venha aqui, e vou arrancar seus olhos, como acabei de fazer com Radbug. E, quando outros rapazes vierem, vou cuidar de vocês: vou enviá-los para Laracna.
— Eles não virão, não antes que você esteja morto, de qualquer forma — respondeu Snaga zangado. — Eu lhe disse duas vezes que os porcos de Gorbag chegaram ao portão primeiro, e nenhum dos nossos voltou de lá. Lagduf e Muzgash atravessaram correndo, mas foram alvejados. Vi de uma janela, estou lhe dizendo. E eles eram os últimos.
— Então você deve ir. Eu preciso ficar aqui, de qualquer forma. Mas estou ferido. Que os Abismos Negros recebam aquele rebelde nojento do Gorbag!
— A voz de Shagrat começou a enfileirar uma série de palavrões e pragas.
— Dei-lhe mais do que recebi, mas ele me apunhalou, aquele estrume, antes que eu o estrangulasse. Você deve ir, ou vou devorá-lo. As noticias devem chegar a Lugbúrz, ou nós dois acabaremos nos Abismos Negros. É sim, você também. Não vai escapar se escondendo aqui.
— Não vou descer esses degraus de novo — rosnou Snaga —, seja você capitão ou não. Não! Tire as mãos de sua faca, ou vou enfiar uma flecha em suas tripas. Você não será capitão por muito tempo quando Eles ouvirem sobre tudo o que aconteceu. Lutei pela Torre, contra aqueles ratos fedorentos de Morgul, mas vocês dois, os capitães, fizeram uma bela bagunça lutando pelo espólio.
— Já chega! — rosnou Shagrat. — Eu tinha ordens a cumprir. Foi Gorbag quem começou, tentando pegar aquela bela camisa. Bem, foi você quem o deixou com raiva, com esse jeito orgulhoso e superior. E ele teve mais senso que você, de qualquer forma. Ele disse mais de uma vez que o mais perigoso desses espiões ainda estava à solta, e você não quis ouvir. E não quer ouvir agora. Eu lhe digo, Gorbag estava certo. Há um grande lutador por aí, um desses elfos de mãos sanguinárias, ou um dos tarks imundos. Está vindo para cá, estou lhe dizendo. Você ouviu o sino. Ele já passou pelas Sentinelas, e isso é serviço de tark. Ele está na escada. E, até que esteja longe, não vou descer. Nem que você fosse um nazgúl eu desceria.
— Então é assim? — gritou Shagrat. Você vai fazer isso, não vai fazer aquilo? E, quando ele vier, vai sair correndo e me deixar? Ah, não vai não! Antes disso vou fazer em sua barriga uns buracos vermelhos como fazem os vermes.
O orc menor saiu correndo pela porta do torreão. Atrás dele veio Shagrat, um orc grande com braços compridos que, correndo ele agachado, alcançavam o chão. Mas um braço estava ferido e parecia sangrar; o outro segurava um grande fardo preto. No clarão vermelho Sam, encolhendo-se atrás da porta da escadaria, viu de relance seu rosto mau, quando ele passou: parecia que garras cortantes o haviam rasgado, e estava sujo de sangue; pingava baba de suas presas pontudas; rosnava como um animal.
Pelo que Sam pôde perceber, Shagrat perseguiu Soaga ao redor da cobertura, até que, agachando-se e despistando-o, o orc menor arremessou-se com um grito para dentro da torre outra vez e desapareceu. Então Shagrai parou. Da porta leste Sam podia vê-lo agora próximo ao parapeito, resfolegando, sua garra esquerda abrindo-se e fechando-se sem forças. Colocou o fardo no chão e com a garra direita sacou uma longa faca vermelha e cuspiu nela. Indo até o parapeito, debruçou-se, examinando o pátio externo lá embaixo. Gritou duas vezes, mas não veio nenhuma resposta.
De repente, no momento em que Shagrai se abaixava sobre a ameia, com as costas para o topo do telhado, Sam viu surpreso que um dos corpos espalhados estava se mexendo. Arrastava-se. Esticou uma garra e pegou o fardo. Levantou-se com dificuldade. Na outra mão segurava uma lança de ponta larga e haste curta quebrada.
Estava preparado para dar um golpe certeiro. Mas nesse exato momento um chiado escapou-lhe pelos dentes, um resfolegar de dor ou ódio. Rápido como uma serpente, Shagrat deslizou para o lado, virou-se e enfiou sua faca na garganta do inimigo.
— Te peguei, Gorbag! — gritou ele. — Não está bem morto, hein? Betu agora vou terminar meu trabalho. — Saltou sobre o corpo caído e começou a pisoteá-lo e esmagá-lo em sua fúria, abaixando-se vez por outra para furar e rasgar com a faca. Finalmente satisfeito, jogou a cabeça para trás e emitiu um horrível grito gorgolejante de triunfo. Depois lambeu a faca, colocando-a em seguida entre os dentes.
Pegando então o fardo, veio mancando na direção da porta mais próxima que dava para a escadaria.
Sam não teve tempo para pensar. Poderia ter escapado pela outra porta, mas seria praticamente impossível não ser visto; por outro lado, não poderia brincar de esconde-esconde com aquele orc hediondo por muito tempo. Fez o que provavelmente foi a melhor coisa que poderia ter feito. Saltou contra Shagrat com um grito.
Não estava mais segurando o Anel, mas ele estava lá, um poder oculto, uma ameaça assustadora para os escravos de Mordor; e em sua mão levava Ferroada, cuja luz feriu os olhos do orc como o brilho das estrelas cruéis das terríveis terras dos elfos: sonhar com aquelas estrelas já incutia um gélido terror em toda a sua espécie. E Shagrat não conseguia lutar e segurar seu tesouro ao mesmo tempo. Parou, rosnando, mostrando as presas. Então, mais uma vez, á maneira dos orcs, saltou de lado, e, quando Sam pulou sobre ele, o orc, usando o fardo pesado como escudo e arma, arremessou-o com força no rosto do inimigo. Sam cambaleou e, antes que pudesse se recuperar, Shagrat passou por ele como um dardo, descendo a escada.
Sam correu atrás dele, praguejando, mas não chegou muito longe. Logo o pensamento em Frodo retornou-lhe á mente, e ele se lembrou de que o outro orc tinha voltado para dentro do torreão. Ali estava outra escolha terrível, e não restava tempo para ponderar. Se Shagrat escapasse, logo conseguiria ajuda e voltaria. Mas, se Sam o perseguisse, talvez o outro orc fizesse alguma coisa horrível lá em cima. E, de qualquer modo, Shagrat poderia escapar de Sam ou matá-lo. Virou-se depressa e subiu correndo a escada.
— Errado de novo, eu acho! — disse ele suspirando. — Mas meu serviço é ir primeiro diretamente para o topo, não importa o que aconteça depois.
Lá embaixo Shagrat continuou descendo a escada, saindo para o pátio e passando através do portão, com seu fardo precioso. Se Sam o tivesse visto e percebido a dor que tal fuga traria, poderia ter vacilado. Mas agora sua mente estava fixa na última etapa de sua procura. Chegou cautelosamente até a porta do torreão e entrou.
A porta se abria para a escuridão. Mas logo seus olhos perscrutadores perceberam uma luz fraca á direita. Vinha de uma abertura que conduzia a outra escadaria, escura e estreita: parecia ir subindo em caracol pelo torreão, ao longo do interior de sua parede externa, que era redonda. Uma tocha bruxuleava em algum ponto mais acima.
Sam começou a subir sem fazer ruido. Chegou até a tocha gotejante, presa acima de uma porta à esquerda, que dava para a abertura de uma janela sobre o oeste: um dos olhos vermelhos que Frodo e ele haviam visto lá debaixo, perto da boca do túnel. Depressa Sam passou pela porta e correu para o segundo pavimento, temendo a qualquer instante ser atacado e sentir dedos estranguladores agarrarem-lhe a garganta por trás. Chegou perto de uma janela que dava para o leste e de uma outra tocha acima da porta de um corredor que passava pelo meio do torreão. A porta estava aberta e O corredor escuro, a não ser pelo brilho da tocha e o clarão vermelho lá de fora, filtrados pela fenda da janela. Mas a escada terminava ali, e não subia mais. Sam voltou para o corredor. De cada lado havia uma porta baixa; ambas fechadas e trancadas. Não se ouvia nada.
— Beco sem saída — murmurou Sam —; e depois de tanta escalada! Este não pode ser o topo da torre. Mas que posso fazer agora?
Correu de volta para o pavimento inferior e forçou a porta, que não cedeu. Correu para cima de novo, e o suor começou a escorrer-lhe pelo rosto. Sentia que os minutos eram preciosos, mas escapavam um a um, e não havia nada que pudesse fazer. Não se importava mais com Shagrat ou Snaga ou qualquer outro orc que jamais fora parido no mundo. Só pensava em seu mestre, desejando uma visão de seu rosto ou um toque de sua mão. Por fim, sentindo-se exausto e de uma vez por todas derrotado, sentou-se num degrau abaixo do nível do corredor e curvou a cabeça, apoiando-a nas mãos. Estava tudo quieto, num silêncio horrível. A tocha, que já tinha um fogo baixo quando ele chegara, crepitou e se extinguiu, e Sam sentiu a escuridão cobri-lo como uma onda.
Depois, suavemente, para a sua própria surpresa, lá no remoto fim de sua longa jornada e de sua tristeza, movido por um pensamento em seu coração que não sabia distinguir, Sam começou a cantar. Sua voz soava fraca e vacilante na torre fria e escura: a voz de um hobbit exausto e desolado que nenhum orc á escuta poderia confundir com o canto cristalino de um Senhor Élfico. Sam murmurava velhas toadas infantis do Condado, e trechos das rimas do Sr. Bilbo que lhe vinham à mente Como cenas passageiras de sua terra natal. E então, de repente, uma nova força nasceu dentro dele, e sua voz soou firme, enquanto palavras de sua Própria autoria chegaram, sem terem sido chamadas, para encaixar-se na melodia simples.
Pode o oeste ao sol que brilha
em primavera estar,
no verde em flor, do rio na trilha,
o tentilhão cantar
Ou lá talvez em noites claras,
estrelas de elfos, jóias raras,
exibam seus apelos.
Embora aqui, jornada finda,
tu, escuridão, me afluas,
além das altas torres ainda
e das montanhas rijas,
além das sombras vai o sol
e estrelas há nos céus.
E não direi: "Morreu o sol"
e nem direi adeus.
— Além das altas torres ainda — começou ele outra vez, e então parou de repente. Teve a impressão de ouvir uma voz fraca respondendo à sua. Mas agora não ouvia mais nada. Sim, podia ouvir alguma coisa, mas não uma voz.
Passos se aproximavam. Agora uma porta estava sendo aberta com todo o cuidado no corredor acima; as dobradiças rangeram. Sam se agachou e ficou escutando. A porta se fechou com um ruido abafado, e então soou uma voz rosnante de orc.
— Olá! Você ai em cima, seu rato estrumeiro! Pare de guinchar ou vou cuidar de você. Está ouvindo?
Não houve resposta.
— Tudo bem — rosnou Snaga. — Mas vou até ai dar uma olhada em você de qualquer jeito, e ver o que você está aprontando.
As dobradiças rangeram de novo e Sam, agora espiando por cima do canto do limiar do corredor, viu uma faisca de luz vinda de uma porta aberta, e a forma apagada de um orc saindo por ela. Parecia estar carregando uma escada. Num lampejo, Sam percebeu a resposta: para chegar ao cômodo mais alto era necessário passar por um alçapão no teto do corredor. Snaga empurrou a escada para cima, firmou-a, e depois subiu por ela até sumir de vista. Sam ouviu um ferrolho sendo puxado. Depois ouviu a voz hedionda falando de novo.
— Deite-se ai e fique quieto, ou pagará por isso! Acho que não lhe resta muito tempo para viver em paz, mas, se não quiser que a diversão comece já, mantenha sua matraca fechada, está ouvindo? Aí vai um lembrete, para que não se esqueça!
Fez-se um ruido como o de uma chicotada.
Ao ouvir isso, o ódio ardeu no coração de Sam, transformando-se numa fúria repentina. Saltou de pé, correu e subiu pela escada como um gato. Sua cabeça surgiu no meio do chão de um grande cômodo redondo. Uma lâmpada vermelha pendia do teto; a fenda da janela que dava para o oeste era alta e escura. Alguma coisa jazia no solo perto da parede sob a janela mas sobre ela escarranchado aparecia o vulto negro de um orc.
Levantou o chicote uma segunda vez, mas o golpe nunca foi desferido. Com um grito Sam saltou cruzando o chão, empunhando Ferroada. O orc virou-Se, mas antes que pudesse fazer qualquer gesto Sam decepou-lhe a mão que segurava o chicote. Uivando de dor e medo, mas enfurecido, o orc avançou sobre ele com a cabeça baixa. O próximo golpe de Sam passou longe e, perdendo o equilíbrio, ele caiu para trás, agarrando-se no orc no momento em que este tropeçava sobre seu corpo. Antes de conseguir ficar de pé, Sam ouviu um grito e um baque. O orc, em sua pressa louca, tropeçara na ponta da escada e caíra pela abertura do alçapão. Sam deixou de pensar nele. Correu para a figura encolhida no chão. Era Frodo. Estava nu e parecia desmaiado, jazendo sobre um monte de trapos imundos: seu braço estava erguido, protegendo a cabeça, e através de seu flanco desenhava-se a feia marca de uma chicotada.
— Frodo! Sr. Frodo, meu querido! — gritou Sam, com as lágrimas quase a cegá-lo. — É Sam, eu cheguei! — Soergueu o corpo do mestre, apertando-o contra o peito. Frodo abriu os olhos.
— Ainda estou sonhando? — murmurou ele. — Mas os outros sonhos foram terríveis.
— O senhor não está sonhando de jeito nenhum, Mestre — disse Sam. — É verdade. Sou eu. Eu cheguei.
— Mal posso acreditar — disse Frodo, agarrando-o. — Havia um orc com um chicote, e então ele se transforma em Sam! Então afinal de contas eu não estava sonhando quando escutei alguém cantando lá embaixo e tentei responder? Era você?
— Era sim, Sr. Frodo. Tinha perdido as esperanças, quase. Não conseguia encontrá-lo.
— Bem, agora conseguiu, Sam, querido Sam — disse Frodo, recostando-se nos braços delicados do amigo, fechando os olhos, como uma criança que descansa depois que os temores da noite são afastados por alguma voz ou mão amada.
Sam sentia que poderia ficar ali sentado numa felicidade interminável, mas isso não era permitido. Não era suficiente que encontrasse seu mestre; tinha ainda de tentar salvá-lo. Beijou a testa de Frodo.
— Vamos! Acorde, Sr. Frodo! — disse ele, tentando imprimir à voz o mesmo entusiasmo que costumava ter quando abria as cortinas em Bolsão numa manhã de verão.
Frodo suspirou e recostou-se.
— Onde estamos? Como vim parar aqui? — perguntou ele.
— Não há tempo para histórias, até chegarmos a algum outro lugar, Sr. Frodo — disse Sam. — Mas o senhor está no topo daquela torre que nós dois vimos de lá de baixo, perto do túnel, antes que orcs o capturassem. Quanto tempo faz eu não sei. Mais que um dia, eu acho.
— Só isso? — disse Frodo. — Parecem semanas. Você precisa me contar tudo, se tivermos uma chance. Alguma coisa me atingiu, não foi? E eu cai na escuridão e em sonhos ruins; depois acordei e vi que acordar foi pior. Um monte de orcs ao meu redor. Acho que tinham acabado de despejar alguma bebida horrível e ardente pela minha garganta abaixo. Minha cabeça clareou, mas eu estava cansado e sentindo dores. Despiram-me de tudo, e então dois grandes brutos vieram me interrogar, interrogaram-me até que achei que ia enlouquecer, vinham por cima de mim, olhando-me com avidez, acariciando as facas. Nunca vou esquecer aqueles olhos e aquelas garras.
— Não vai mesmo, se ficar falando neles, Sr. Frodo — disse Sam. — E, se não quisermos vê-los de novo, quanto mais cedo sairmos daqui, melhor. Consegue andar?
— Consigo sim — disse Frodo, levantando-se devagar. — Não estou ferido, Sam. Só me sinto muito cansado, e tenho uma dor aqui. — Colocou a mão no pescoço, acima do ombro esquerdo. Ficou de pé, e Sam teve a impressão de que ele estava vestindo chamas: sua pele nua estava escarlate á luz da lamparina. Duas vezes cruzou o recinto.
— Assim está melhor! — disse ele, um pouco mais animado. — Eu não ousava me mexer quando era deixado sozinho, ou um dos guardas chegava. Até que a gritaria e a luta começaram. Os dois grandes brutamontes: discutiram, eu acho. Sobre mim e meus pertences. Fiquei aqui apavorado. E então tudo ficou num silêncio mortal, e isso foi pior.
— É, eles discutiram, ao que parece — disse Sam. – Devia haver umas duzentas dessas criaturas imundas neste lugar. Uma encomenda grande demais para Sam Gamgi, como diria o senhor. Mas eles mesmos se mataram. Foi um golpe de sorte, mas não há tempo para fazer uma canção sobre o acontecido, até que estejamos longe daqui. Agora, que devemos fazer"? O senhor não pode sair caminhando pela Terra Escura nu em pêlo, Sr. Frodo.
— Eles levaram tudo, Sam — disse Frodo. — Tudo o que eu tinha. Você está entendendo? Tudo! — Agachou-se no chão de novo com a cabeça curvada, pois suas próprias palavras lhe trouxeram a totalidade do desastre, e o desespero o dominou. — A Demanda fracassou, Sam. Mesmo que consigamos sair daqui, não poderemos escapar. Só os elfos podem escapar. Para longe, longe da Terra-média, do outro lado do Mar. Mesmo assim, só se o Mar for vasto o suficiente para manter a Sombra longe.
— Não, nem tudo, Sr. Frodo. E a Demanda não fracassou, ainda não. Eu o peguei, Sr. Frodo, com as suas desculpas. E guardei-o a salvo. Esta em volta do meu pescoço agora, e é um fardo terrível, sem dúvida. — Sam tateou o peito buscando o Anel na corrente. — Mas suponho que o senhor deve pegá-lo de volta. — Agora que tinha chegado a hora, Sam relutava em desfazer-se do Anel e sobrecarregar seu mestre com ele de novo.
— Você está com ele? — disse Frodo otegante. — Esta com ele aqui. Sam, você é um prodígio! — Então o tom de sua voz mudou de forma rápida e estranha.
— Passe-o para mim! — gritou ele, levantando-se e estendendo uma mão trêmula. — Passe-o para cá imediatamente! Não pode ficar com ele!
— Está bem, Sr. Frodo — disse Sam, bastante surpreso. – Aqui esta! — Lentamente puxou o Anel e passou a corrente sobre a cabeça. — Mas o senhor está agora na terra de Mordor e, quando sair daqui, verá a Montanha de Fogo e tudo mais. Vai perceber que o Anel ficou muito perigoso agora, e muito difícil de carregar. Se for um trabalho dificil, posso dividi-lo com o senhor, quem sabe?
— Não, não! — gritou Frodo, arrebatando o Anel e a corrente das mãos de Sam. — Nada disso, seu ladrão! — Ofegante, fixava Sam com olhos esbugalhados de medo e hostilidade. Então, de repente, fechando o Anel em uma das mãos, ficou horrorizado. Uma névoa pareceu se dissipar de seus olhos, e ele passou a outra mão sobre a testa, que lhe doía. A visão hedionda lhe parecera tão real, a ele que ainda estava meio perturbado devido ao ferimento e ao medo. Sam se transformara diante de seus olhos num orc, num orc esperto que tateava seu corpo em busca de seu tesouro, uma pequena criatura suja com olhos ávidos e boca salivante. Mas agora a visão passara. Ali estava Sam, ajoelhado diante dele, com o rosto contorcido de dor, como se tivesse sido apunhalado no coração; lágrimas brotavam-lhe dos olhos.
— Oh Sam! — exclamou Frodo. — Que foi que eu disse? Que foi que fiz? Perdoe-me! Depois de tudo o que fez. É o poder horrível do Anel. Gostaria que nunca, nunca ele tivesse sido encontrado. Mas não se importe comigo, Sam. Devo carregar o fardo até o fim. Isso não se pode mudar. Você não pode intervir entre mim e esse destino.
— Está tudo bem, Sr. Frodo — disse Sam, limpando os olhos com a manga da camisa. — Eu entendo. Mas ainda posso ajudar, não posso? Preciso tirá-lo daqui. Imediatamente! Mas primeiro o senhor precisa de umas roupas, e depois de alguma comida. As roupas serão o mais fácil. Como estamos em Mordor, é melhor nos vestirmos á maneira de Mordor; de qualquer forma não há escolha. Terá de ser coisa de orc para o senhor, Sr. Frodo, receio eu. E para mim também. Se vamos juntos, é melhor estarmos vestidos do mesmo jeito. Agora, ponha isso em volta do corpo.
Sam abriu a capa cinzenta e jogou-a sobre os ombros de Frodo. Depois, desafivelando a mochila, colocou-a no chão. Sacou Ferroada da bainha. Mal se via um faiscar em sua lâmina.
— Estava me esquecendo disso, Sr. Frodo — disse ele. — Não, eles não levaram tudo! O senhor me emprestou Ferroada, se pode se lembrar, e o cristal da Senhora. Ainda os tenho Comigo. Mas empreste-os por mais um pouco de tempo, Sr. Frodo. Preciso ir ver o que posso encontrar. O senhor fica aqui. Caminhe um pouco pelo quarto e descance as pernas. Não vou demorar muito.
— Tome cuidado, Sam! — disse Frodo. — E seja rápido. Pode haver orcs ainda vivos, esperando à espreita.
— Preciso arriscar — disse Sam. Dirigiu-se até o alçapão e começou a descer a escada. Num minuto sua cabeça reapareceu. Jogou uma faca comprida no chão.
— Aí está algo que pode ser útil — disse Sam. — Ele está morto: aquele que o chicoteou. Quebrou o pescoço, ao que parece, em sua pressa. Agora o senhor puxe a escada, se conseguir, Sr. Frodo; e não a desça até me ouvir dando a senha. Chamarei Elbereth. O que dizem os elfos. Nenhum orc diria isso.
Frodo ficou por um tempo sentado, tremendo; medos terríveis surgiam uns atrás dos outros em sua mente. Depois levantou-se, passou a capa élfica ao redor do corpo e, para manter a mente ocupada, começou a caminhar de um lado para o outro, esquadrinhando e espiando todos os cantos da prisão. Não demorou muito tempo, embora o medo fizesse parecer que no mínimo uma hora se passara, até que ouvisse a voz de Sam chamando baixinho lá de baixo: Elbereth, Elbereth. Frodo desceu a leve escada. Sam subiu, bufando, carregando um enorme fardo na cabeça. Deixou-o cair com um baque surdo.
— Depressa agora, Sr. Frodo! — disse ele. — Tive de procurar muito atê encontrar alguma coisa pequena o suficiente para pessoas como nós. Vamos ter de adaptar. Mas precisamos nos apressar. Não encontrei nada vivo, e também não vi nada, mas não estou tranquilo. Acho que este lugar está sendo vigiado. Não posso explicar, mas veja: tenho uma sensação de que um daqueles infames Cavaleiros voadores estava por perto, lá em cima na escuridão, onde não pode ser visto.
Abriu o fardo. Frodo olhou enojado para o conteúdo, mas não havia nada a fazer: tinha de vestir aquelas coisas, ou ir pelado. Havia culotes compridos e peludos da pele de algum animal impuro, e uma túnica de couro imundo. Vestiu-os. Sobre a túnica ia um casaco resistente de malha metálica, curto para um orc grande, mas comprido e pesado demais para Frodo. Em volta dele prendeu um cinto, do qual pendia uma bainha curta que segurava uma espada de lâmina larga. Sam trouxera vários capacetes de orcs. Um deles serviu bem na cabeça de Frodo, uma touca negra com aba de ferro, e arcos de ferro cobertos de couro sobre os quais estava pintado em vermelho o Olho maligno, acima de uma bicuda proteção para o nariz.
— As coisas de Morgul, as roupas de Gorbag, eram melhores e mais bem feitas — disse Sam —, mas acho que não daria certo ficar andando em Mordor com os símbolos dele, depois do que aconteceu aqui. Bem, aí está, Sr. Frodo. Um perfeito orczinho se me permite o atrevimento — pelo menos seria, se cobrisse o rosto com uma máscara, tivesse braços mais compridos e as pernas arqueadas. Isso vai esconder algumas marcas características. – colocou uma grande capa negra em volta dos ombros de Frodo. — Agora o senhor está pronto! Pode apanhar um escudo no caminho.
— E você, Sam? — disse Frodo. — Nós não vamos nos vestir de forma parecida?
— Bem, Sr. Frodo, estive pensando — disse Sam. — É melhor que eu não deixe nada de minhas coisas para trás, e não podemos destruí-las. E não posso usar armadura de orc em cima de todas as minhas roupas, posso? Só preciso me cobrir.
Ajoelhou-se e com cuidado dobrou sua capa élfica, que se transformou num volume surpreendentemente pequeno. Colocou-o na mochila que estava no chão. Levantando-se,ajeitou-a nas costas, e jogou outra capa negra nos ombros.
— Pronto! — disse ele. — Agora estamos vestidos de forma praticamente igual. E precisamos sair daqui!
— Não posso fazer o caminho todo correndo, Sam — disse Frodo com um sorriso forçado. — Espero que tenha tomado informações sobre estalagens ao longo da estrada! Ou você se esqueceu da comida e da bebida?
— Desculpe-me, mas realmente me esqueci — disse Sam. Soltou um assobio de desânimo. — Puxa vida, Sr. Frodo, mas agora o senhor me fez sentir uma fome e uma sede terríveis! Não sei quando foi a última vez que alguma gota ou petisco passou pelos meus lábios. Tinha esquecido, tentando encontrá-lo. Mas deixe-me pensar! A última vez que olhei, eu tinha uma quantidade suficiente de pão de viagem, e, das coisas que o Capitão Faramir nos deu, o suficiente para me manter de pé por algumas semanas, se fosse necessário. Mas não resta mais que uma gota em minha garrafa. Não vai ser o suficiente para dois, de jeito nenhum. Os orcs não comem, e não bebem? Ou será que vivem de ar sujo e veneno?
— Não, eles comem e bebem, Sam. A sombra que os criou só pode arremedar, não pode criar: nada realmente novo que se origine dela mesma. Não acho que lhes tenha dado vida, apenas os arruinou e deformou; e, se eles tiverem de viver, precisam viver como as outras criaturas. Ingerem carnes pútridas e águas sujas, se não conseguirem coisa melhor, mas veneno não. Alimentaram-me, e por isso estou em melhores condições que você. Deve haver comida e bebida por aqui em algum lugar.
— Mas não há tempo para procurar — disse Sam.
— Bem, as coisas estão um pouco melhor do que você pensa — disse Frodo. — Tive um bocado de sorte enquanto você estava longe. É verdade que não levaram tudo. Encontrei meu saco de comida em meio a uns trapos no chão. É claro que eles vasculharam tudo. Mas acho que odiaram a mera visão e o cheiro do lembas, mais ainda que Gollum. Está tudo espalhado e alguns estão pisados e quebrados, mas juntei os pedaços. Não é muito menos do que você tem. Mas levaram a comida de Faramir, e rasgaram minha garrafa de água.
— Bem, não há mais nada a dizer — disse Sam. — Temos o suficiente para começar a caminhada. Mas a água vai ser um problema. Mas venha, Sr. Frodo. Vamos! Caso contrário um lago inteiro não nos adiantará de nada!
— Não até você ter comido alguma coisa, Sam — disse Frodo. — Não vou dar um passo. Aqui, pegue esse bolo élfico, e beba o último gole de sua garrafa! A coisa toda é muito desesperadora, então não adianta preocupasse com o amanhã. O amanhã provavelmente não virá.
Finalmente partiram. Desceram pela escada, que depois Sam recolheu e deitou no corredor, ao lado do corpo amontoado do orc morto. A escadaria estava escura, mas no teto ainda se podia ver o clarão da Montanha, embora estivesse morrendo num vermelho apagado. Apanharam dois escudos para completar o disfarce e depois avançaram. Foram descendo aos tropeços a grande escadaria. O alto cômodo da torre lá atrás, onde se tinham encontrado de novo, pareceu-lhes quase aconchegante: agora estavam novamente no espaço aberto, e o terror corria ao longo das paredes. Todos poderiam estar mortos na Torre de Cirith Ungol, mas ela continuava cheia de terror e maldade.
Finalmente chegaram á porta que se abria para o pátio externo, e pararam. Mesmo do ponto onde estavam podiam sentir na pele a malícia das Sentinelas, figuras negras e silenciosas dos dois lados do portão, através das quais o clarão de Mordor palidamente se mostrava. Á medida que iam fazendo o caminho em meio aos corpos hediondos dos orcs, cada passo se tornava mais dificil. Antes mesmo que atingissem o arco, fizeram uma parada. Avançar um centímetro era um sofrimento e um cansaço que lhes afetava a vontade e as pernas.
Frodo não tinha forças para aquela batalha. Caiu no chão.
— Não posso continuar, Sam — murmurou ele. — Vou desmaiar. Não sei o que está acontecendo comigo.
— Eu sei, Sr. Frodo. Aguente firme agora! É o portão. Há algum feitiço ali. Mas eu entrei, e vou sair. Não pode ser mais perigoso que antes. Agora vamos.
Sam puxou o cristal élfico de Galadriel de novo. Como se para fazer jus à sua coragem, e agraciar com esplendor sua fiel mão morena de hobbit que realizara tantos feitos, o cristal brilhou de repente, de forma que todo o pátio sombrio se iluminou numa irradiação ofuscante como a de um relâmpago; mas a luminosidade continuou, e não se extinguiu.
— Gilthoniel, A Elebereth! — gritou Sam. Pois, sem que ele entendesse por quê, seu pensamento saltou de volta para os elfos no Condado, e para a canção que afastou o Cavaleiro Negro no bosque.
— Aiya elenion ancalima! — gritou Frodo outra vez depois dele.
A vontade das Sentinelas foi destruída repentinamente, como o romper-se de uma corda, e Frodo e Sam avançaram aos trambolhões. Depois correram. Atravessaram o portão e passaram pelas grandes figuras sentadas com seus olhos faiscantes. Abriu-se uma fissura.
A pedra principal do arco se quebrou, quase caindo sobre seus calcanhares, e a parede acima desmoronou, caindo em ruínas. Escaparam por um triz. Um sino tocou, e das Sentinelas subiu um gemido agudo e aterrorizante. Lá em cima na escuridão ele teve resposta. Do céu negro veio descendo como um raio uma figura alada, rasgando as nuvens com um guincho pavoroso.
A TERRA DA SOMBRA
Restou a Sam juízo suficiente para enfiar o frasco de volta no peito.
— Corra, Sr. Frodo! — gritou ele. — Não, por ai não! Há um abismo do outro lado da parede. Siga-me!
Fugiram descendo a estrada que saía do portão. Em cinquenta passos, fazendo uma curva fechada ao redor de uma saliência pontuda do penhasco, o caminho os levou para fora do campo de visão da Torre. Por enquanto, tinham escapado. Agachando-se contra a rocha, tomaram fôlego, pondo a mão no peito. Empoleirado na muralha ao lado do portão em ruínas, o nazgúl emitia seus gritos mortais, que ecoavam em todos os penhascos.
Aterrorizados, os dois avançaram aos tropeços. Logo a estrada fez uma curva fechada para o leste outra vez, e os expôs, durante um momento aterrorizante, á visão da Torre. Ao atravessarem correndo, deram uma olhada para trás e viram o grande vulto negro sobre a ameia; depois mergulharam entre duas altas muralhas de pedra, num corte que descia vertiginosamente para encontrar a estrada de Morgul. Chegaram à confluência dos caminhos. Ainda não havia sinal dos orcs, nem de uma resposta ao grito do nazgúl, mas eles sabiam que o silêncio não duraria muito. A qualquer momento, começaria a caçada.
— Isso não vai dar certo, Sam — disse Frodo. — Se fôssemos orcs de verdade, deveríamos estar correndo para a Torre, e não fugindo dela. O primeiro inimigo que encontrarmos nos reconhecerá. Precisamos sair desta estrada de algum jeito.
— Mas não podemos — disse Sam. — Não sem asas.
As encostas orientais dos Ephel Dúath eram mais íngremes, caindo em penhascos e precipícios para o fosso negro que se abria entre eles e a cadeia interna.
Um pouco além da confluência de caminhos, depois de outra subida íngreme, havia uma ponte suspensa de pedra que saltava sobre o abismo e unia a estrada com o outro lado, penetrando as encostas irregulares e os vales do Morgai. Num esforço desesperado, Frodo e Sam correram pela ponte; mas mal tinham atingido o lado oposto quando ouviram a gritaria começar. Atrás deles, agora bem lá em cima sobre a encosta da montanha, assomava a Torre de Cirith Ungol, com suas pedras de brilho baço. De repente seu sino rouco tocou outra vez, e então irrompeu num ribombar estilhaçante.
Cornetas soaram. E agora do fim da ponte chegavam gritos em resposta. Enfiados no abismo escuro, isolados do brilho decrescente do Orodruin, Frodo e Sam não conseguiam enxergar adiante, mas já ouviam o pisar de pés de pés calçados com sola de ferro, e na estrada já soavam rápidas batidas de cascos.
— Rápido, Sam! Vamos pular! — gritou Frodo. Os dois treparam no parapeito baixo da ponte. Felizmente não houve mais nenhuma queda horrenda para dentro do abismo, pois as encostas do Morgai já tinham se elevado quase até o nível da estrada; mas estava escuro demais para que eles pudessem adivinhar a altura da queda.
— Bem, lá vou eu, Sr. Frodo — disse Sam. — Adeus!
Saltou. Frodo pulou atrás. No momento da queda, ouviram o tropel dos cavaleiros velozes atravessando a ponte, e a batida dos pés dos orcs vindo logo atrás.
Mas, se ousasse tanto, Sam teria dado uma risada. Meio receosos de estarem mergulhando em rochas que não conseguiam ver, os hobbits, depois de uma queda de menos de quatro metros, aterrissaram com um baque e um rangido sobre a última coisa que esperariam: um emaranhado de arbustos espinhosos. Ali Sam ficou deitado e quieto, chupando em silêncio o sangue da mão arranhada.
Quando o som de cascos e passos tinha cessado, aventurou-se a sussurrar algo.
— Que o senhor me perdoe, Sr. Frodo, mas não sabia que alguma coisa podia crescer em Mordor! Mas, se soubesse, era exatamente isso que teria procurado. Esses espinhos devem ter uns trinta centímetros de comprimento, a julgar pelas espetadas; perfuraram tudo o que estou vestindo. Gostaria de poder ter vestido aquela camisa de malha metálica!
— As malhas dos orcs não protegem contra esses espinhos — disse Frodo. — Nem mesmo um gibão de couro faria qualquer efeito.
Foi dificil saírem da moita. Os espinheiros eram duros como ferro, e prendiam como garras. As capas já estavam rasgadas e estraçalhadas antes de conseguirem finalmente se libertar.
— Agora, para baixo, Sam — sussurrou Frodo. — Vamos descer depressa para o vale, e depois virar para o norte, o mais depressa possível.
O dia chegava mais uma vez no mundo lá fora, e bem distante da escuridão de Mordor o sol escalava a borda leste da Terra-média; mas ali onde estavam tudo ainda era escuro feito noite. A Montanha se apagou e suas chamas se extinguiram. O clarão desapareceu dos penhascos. O vento leste que estivera soprando desde que os dois hobbits partiram de Ithilien agora parecia morto. Com lentidão e sofrimento, foram descendo, tateando, tropeçando, cambaleando em meio a pedras, espinheiros e madeiras mortas nas sombras cegas, cada vez mais para baixo, até que não conseguiram mais avançar.
Por fim pararam,sentando-se lado a lado, recostados num bloco de pedra. Ambos estavam suando.
— Se Shagrat em pessoa me oferecesse um copo de água, eu aceitaria apertar-lhe a mão — disse Sam.
— Não mencione tais coisas! — disse Frodo. — Isso só piora tudo. — Depois espreguiçou-se, atordoado e exausto, e ficou sem dizer nada por um tempo. Finalmente, com um esforço, levantou-se de novo. Para seu espanto, viu que Sam adormecera.
— Acorde, Sam! — disse ele. — Vamos, já é hora de fazermos um outro esforço.
Sam levantou-se com dificuldade.
— Nunca me aconteceu isso! — disse ele. — Devo ter caído no sono. Faz muito tempo, Sr. Frodo, que não durmo de forma adequada, e meus olhos simplesmente se fecharam sozinhos.
Agora Frodo ia na frente, tentando da melhor maneira possível adivinhar o caminho para o norte, em meio a rochas e blocos de pedra que se amontoavam no fundo do precipício. Mas de repente parou de novo.
— Não adianta, Sam — disse ele. — Não consigo. Esta camisa de malha, quero dizer. Não no meu estado atual. Até mesmo meu casaco de míthril parecia pesar quando eu estava cansado. Isto aqui é muito mais pesado. E para que serve? Não vamos conseguir abrir caminho lutando.
— Mas pode ser que precisemos lutar um pouco — disse Sam.
— E há facas e flechas perdidas. Aquele Gollum não está morto, para começo de conversa. Não gosto de pensar no senhor sem mais nada além de um pedaço de couro entre o corpo e uma punhalada no escuro.
— Olhe aqui, Sam, meu rapaz — disse Frodo. — Estou cansado, exausto e não me resta nenhuma esperança. Mas preciso continuar tentando chegar à Montanha, enquanto puder me mover. Mas não ache que sou mal-agradecido. Odeio pensar no serviço sujo que você deve ter tido em meio aos corpos para achar esta malha de orc para mim.
— Não fale nisso, Sr. Frodo. Por favor! Eu o carregaria nas costas, se pudesse. Tire então a malha. Frodo colocou de lado a capa e tirou a malha de orc, jogando-a longe. Tremeu um pouco.
— O que preciso na verdade é de alguma coisa quente — disse ele. — Ficou frio, ou então peguei um resfriado.
— Pode usar minha capa, Sr. Frodo — disse Sam. Tirou das costas a mochila e puxou dela a capa élfica. — Que tal, Sr. Frodo? — disse ele. — O senhor se embrulha com o farrapo de orc e o prende com o cinto. Depois pode vestir a capa em cima de tudo. Não se parece muito com roupa de orc, mas vai mantê-lo mais aquecido, e arrisco ainda dizer que vai protegê-lo bem mais que qualquer outra coisa. Foi feito pela Senhora.
Frodo pegou a capa e fixou o broche.
— Assim está melhor! — disse ele.
— Sinto-me muito mais leve. Agora posso continuar. Mas esta escuridão cega parece estar penetrando em meu coração. Enquanto estava deitado na prisão, Sam, eu tentava me lembrar do Brandevin, e de Ponta do Bosque, e do Água passando pelo moinho na Vila dos Hobbits. Mas agora não consigo visualizá-los.
— Olhe lá, Sr. Frodo, desta vez é o senhor quem está falando em água! — disse Sam. — Se pelo menos a Senhora pudesse nos ver ou nos ouvir, eu diria a ela: "Minha Senhora, tudo o que queremos é luz e água: apenas água limpa e a luz de um dia claro, coisas melhores que qualquer jóia, com as devidas desculpas." Mas estamos muito longe de Lórien. — Sam suspirou e acenou a mão na direção das alturas dos Ephel Dúath, que agora só se podiam adivinhar como um negrume mais profundo contra o céu negro.
Partiram de novo. Não tinham ido muito longe quando Frodo parou.
— Há um Cavaleiro Negro acima de nós — disse ele. — Posso sentir. É melhor ficarmos parados por um tempo.
Escondendo-se sob um grande bloco de pedra, os dois se sentaram virados para o oeste, e ficaram sem falar por algum tempo. Depois Frodo deu um suspiro de alivio. — Passou — disse ele. Levantaram-se e então ambos olharam assombrados. Mais ao longe, à esquerda, ao sul, contra um céu que ia se acinzentando, os picos e as altas cadeias da grande cordilheira começavam a surgir escuros e negros em formas definidas. A luz estava crescendo atrás deles. Devagar avançava na direção do norte. Uma batalha estava acontecendo lá em cima, nos altos espaços do ar. As nuvens pesadas de Mordor estavam sendo varridas para trás, suas bordas se rasgando á medida que um vento que chegava do mundo vivo ia afastando a fumaça e o vapor na direção da terra escura de onde tinham surgido. Sob as orlas daquele dossel melancólico que se erguia, uma luz fraca se infiltrava para dentro de Mordor como uma manhã pálida através da janela encardida de uma prisão.
— Olhe, Sr. Frodo! —, disse Sam. — Olhe lá! O vento mudou. Alguma coisa está acontecendo. Nem tudo está acontecendo exatamente como Ele quer. Sua escuridão está se rompendo no mundo lá fora. Gostaria de ver o que está se passando!
Era a manhã do décimo quinto dia de março, e sobre o Vale do Anduin o sol subia acima da sombra do leste, e o vento sudoeste soprava. Théoden jazia agonizante nos Campos do Pelennor.
Naquele momento em que Sam e Frodo pararam para observar, a faixa de luz se espalhou ao longo de toda a cadeia dos Ephel Dúath, e então os dois viram uma sombra, movendo-se a uma grande velocidade e vindo do oeste, a princípio apenas um ponto negro contra a tira reluzente acima dos topos das montanhas, mas crescendo sempre, até mergulhar como um raio dentro do dossel negro e passar muito acima deles. Quando avançou, emitiu um longo grito agudo, a voz de um nazgúl; mas aquele grito não teve mais qualquer efeito de terror sobre eles: era um grito de aflição e assombro, más noticias para a Torre Escura. O Senhor dos Espectros do Anel encontrara seu fim.
— Que foi que eu disse? Alguma coisa está acontecendo! – exclamou Sam. — Shagrat disse: "A guerra está indo bem"; mas Gorbag não estava tão certo. E nesse ponto ele também tinha razão. As coisas estão melhorando, Sr, Frodo. Agora o senhor não tem alguma esperança?
— Bem, não muita, Sam — suspirou Frodo. — Aquilo está acontecendo lá longe, além das montanhas. Estamos indo para o leste, não para o oeste. E estou tão cansado! E o Anel pesa tanto, Sam. E começo a vê-lo em minha mente todo o tempo, como uma grande roda de fogo.
O entusiasmo de Sam voltou a arrefecer imediatamente. Olhou para seu mestre cheio de ansiedade, e tomou-lhe a mão.
— Vamos, Sr. Frodo — disse ele. — Consegui uma coisa que desejava: um pouco de luz. O suficiente para nos ajudar, mas suponho que também seja perigosa. Tente avançar um pouco mais, e então vamos deitar perto um do outro e descansar um pouco. Mas coma alguma coisa agora, um pouco da comida dos elfos; pode trazer-lhe mais coragem.
Dividindo um bolo de lembas, e mastigando-o da melhor maneira possível com suas bocas ressecadas, Frodo e Sam continuaram aos tropeços. A luz, embora fosse fraca como a de um crepúsculo cinzento, era agora suficiente para permitir que os dois vissem que estavam afundados no vale entre as montanhas. A encosta subia suavemente rumo ao norte, e no fundo passava o leito de um riacho, que agora estava seco e morto. Além de seu curso pedregoso eles viram um caminho batido que corria sinuoso sob os pés dos penhascos a oeste. Se soubessem, poderiam ter chegado até ali mais rápido, pois tratava-se de uma trilha que abandonava a estrada principal de Morgul na extremidade ocidental da ponte e ia descendo através de uma longa escada cortada na pedra até o fundo do vale. Era usada por patrulhas ou por mensageiros que precisavam chegar rápido a postos e fortalezas secundários que ficavam mais ao norte, entre Cirith Ungol e os estreitos da Boca Ferrada, as mandíbulas de ferro de Carach Angren.
Usar tal trilha era perigoso para os hobbits, mas eles precisavam de rapidez, e Frodo sentia que não conseguiria enfrentar o esforço de descer por entre os blocos de pedra ou pelos vales sem trilhas do Morgai. E ele achava que o caminho do norte era, talvez, o que os perseguidores julgariam menos provável para eles dois. O inimigo vasculharia com todo o cuidado a estrada ao leste para a planície, ou a passagem que voltava para o Oeste. Só quando estivesse bem ao norte da Torre é que ele pretendia mudar de rumo e procurar algum caminho que os levasse para o leste, na última e mais desesperada etapa de sua jornada. Por isso, eles agora atravessaram o leito pedregoso e tomaram a trilha dos orcs, e por algum tempo avançaram ao longo dela. Os penhascos à esquerda projetavam-se para a frente, e os dois hobbits não podiam ser vistos de cima; mas a trilha fazia muitas curvas, e a cada curva eles levavam a mão até o punho de suas espadas e avançavam com toda a cautela.
A luz não ficou mais forte, pois o Orodruin ainda expelia uma grande quantidade de vapor que, chocando-se lá no alto com os ares em sentido contrário, subia cada vez mais, até atingir uma região acima do vento onde se espalhava num teto incomensurável, cujo pilar central subia das sombras além do limite da visão. Já tinham se arrastado por mais de uma hora quando ouviram um som que os fez parar. Inacreditável, mas inconfundível. Água correndo. Por uma fenda do lado esquerdo, tão profunda e estreita que parecia que o penhasco negro tinha sido partido por um enorme machado, a água pingava: as últimas sobras, talvez, de alguma chuva suave recolhida de mares ensolarados, mas que tivera o mau destino de cair finalmente sobre as muralhas da Terra Negra e de escorrer infrutífera para desaparecer em meio á poeira. Naquele ponto ela saía da rocha num pequeno filete, que depois de um salto atravessava a trilha, e virando-se para o sul fugia veloz para se perder em meio ás pedras mortas.
Sam saltou na direção da água.
— Se algum dia eu encontrar a Senhora de novo, direi a ela! — gritou ele. — Luz, e agora água! — Então parou. — Deixe-me beber primeiro, Sr. Frodo — disse ele.
— Está certo, mas há espaço suficiente para os dois.
— Não quis dizer isso — disse Sam. — Quero dizer: se for venenosa, ou alguma coisa que logo mostrará seu efeito maligno, bem, antes eu que o senhor, mestre, se o senhor me entende.
— Entendo. Mas acho que vamos confiar em nossa sorte juntos, Sam; ou em nossa bênção. Mesmo assim, tenha cuidado agora; talvez esteja gelada demais!
A água estava fresca, mas não fria como gelo, e tinha um gosto desagradável, ao mesmo tempo amargo e oleoso, ou pelo menos era isso que os dois teriam dito lá em casa. Aqui a água parecia estar acima de qualquer elogio, e além do medo ou da prudência. Beberam á vontade, e Sam reabasteceu a garrafa.
Depois disso Frodo se sentiu melhor, e eles continuaram por várias milhas, até que o alargamento da estrada e a presença de uma parede áspera ao longo da borda os advertiram de que estavam chegando perto de alguma outra fortaleza orc.
— É aqui que mudamos de rumo, Sam — disse Frodo. – E devemos virar para o leste. — Suspirou ao olhar para as cordilheiras lúgubres do outro lado do vale. — Só me restam forças suficientes para procurar algum buraco lá em cima. Depois preciso descansar um pouco.
Agora o leito do rio estava um pouco abaixo da trilha. Desceram até ele, e começaram a atravessar. Para a surpresa dos dois, depararam com poças escuras, alimentadas por fios de água que vinham descendo de alguma fonte nas encostas do vale. Nas bordas externas, sob as montanhas a oeste, Mordor era uma terra agonizante, mas que ainda não morrera. E ali as coisas ainda cresciam, ásperas, retorcidas, amargas, lutando pela vida. Nas fendas do Morgai, do outro lado, árvores baixas e raquíticas se penduravam à espreita, touceiras de capim grosso e cinzento lutavam com as pedras que eram cobertas de musgos esbranquiçados; por todo lado espalhavam-se grandes emaranhados de sarças retorcidas. Algumas tinham espinhos longos e cortantes, outras exibiam farpas em forma de gancho que rasgavam como facas. As folhas sombrias e murchas de um ano anterior pendiam delas, rangendo e rilhando nos ares tristes, mas seus rebentos habitados por vermes estavam apenas se abrindo. Moscas, pardas, cinzentas ou negras, marcadas como os orcs com uma mancha no formato de um olho vermelho, zumbiam e picavam; sobre os maciços de urzais, nuvens de mosquitos famintos rodopiavam e dançavam.
— Roupa de orc não adianta — disse Sam, abanando os braços. — Gostaria de ter couro de orc.
Por fim Frodo não conseguia avançar mais. Os dois tinham escalado uma garganta estreita e inclinada, mas ainda havia um longo caminho para percorrer antes mesmo que pudessem avistar a última cordilheira escarpada.
— Preciso descansar agora, Sam, e dormir, se puder — disse Frodo.
Olhou ao redor, mas naquela terra desolada parecia não haver lugar algum onde mesmo um animal pudesse se aconchegar. Finalmente, exaustos, os dois se esconderam sob uma cortina de sarças que pendiam como um tapete por sobre uma encosta rochosa baixa. Ali se sentaram e fizeram a refeição que lhes foi possível.
Reservando o precioso lembas para os dias penosos à frente, comeram metade da provisão de Faramir que restara na mochila de Sam: um pouco de fruta seca, e uma fatia fina de carne defumada; beberam também uns goles de água. Tinham bebido outra vez a água nas poças do vale, mas estavam muito sedentos de novo. Havia um resquício amargo no ar de Mordor que ressecava a boca. Quando Sam pensava em água, até mesmo seu espírito cheio de esperança fraquejava. Além do Morgai deveriam atravessar a aterrorizante planície de Gorgoroth.
— Agora o senhor dorme primeiro, Sr. Frodo — disse ele. — Está ficando escuro de novo. Calculo que este dia esteja quase terminado.
Frodo suspirou e adormeceu quase antes de Sam terminar suas palavras. Sam lutava contra o próprio cansaço, e segurou a mão de Frodo, e assim, sentado, até que a noite profunda caiu. Então, por fim, para manter se acordado, saiu do esconderijo e ficou observando. A região parecia cheia de estalos, rangidos e ruídos dissimulados, mas não havia som de vozes ou passos. Bem acima dos Ephel Dúath, no oeste, o céu noturno estava Pálido e baço. Lá, espiando por entre os restos de nuvens sobre uma rocha pontiaguda nas montanhas, Sam viu uma estrela branca reluzir por uns momentos. Sua beleza arrebatou-lhe o coração, quando desviou os olhos da terra desolada, e ele sentiu a esperança retornar. Pois como um raio, cristalino e frio, invadiu-o o pensamento de que afinal de contas a Sombra era apenas uma coisa pequena e passageira: havia luz e uma beleza nobre que eram eternas e estavam além do alcance dela. A canção que cantara na torre fora mais um desafio que uma esperança, pois naquela hora pensara em si mesmo. Agora, por um momento, sua própria sorte, e até a de seu mestre, deixaram de preocupá-lo. Sam voltou às sarças e se deitou ao lado de Frodo, e, deixando de lado todo o medo, mergulhou num sono profundo e despreocupado.
Acordaram juntos, de mãos dadas. Sam estava quase refeito, pronto para um outro dia, mas Frodo suspirava. Dormira um sono inquieto, cheio de sonhos com fogo, e acordar não lhe trouxe consolo algum. Mesmo assim, seu sono não deixara de ter um poder restaurador: sentia-se mais forte, mais apto a suportar seu fardo na próxima etapa. Os dois não sabiam que horas eram, nem por quanto tempo tinham dormido; mas, depois de um bocado de comida e um gole de água, continuaram subindo a garganta, até que ela terminou numa ladeira íngreme cheia de entulho e pedras escorregadias. Nesse ponto os últimos seres vivos desistiram de sua luta; os topos do Morgai eram desprovidos de vegetação, pontiagudos, nus como uma lousa.
Depois de muito vagar e procurar, encontraram um caminho pelo qual poderiam subir, e com mais uns trinta metros de escalada usando mãos e pés estavam lá em cima. Atingiram uma fenda entre dois rochedos escuros, e passando no meio viram-se exatamente na borda da última divisa de Mordor. Abaixo, no fundo de um precipício de cerca de quatrocentos e cinquenta metros, jazia a planície interna, espalhando-se numa escuridão disforme que sumia de vista. O vento do mundo soprava agora do oeste, e as grandes nuvens subiam alto, flutuando para o leste; mas mesmo assim apenas uma luz cinzenta chegava aos campos desolados de Gorgoroth.
Ali a fumaça subia do chão e espreitava nas concavidades; vapores escapavam das fissuras da terra.
Ainda distante, pelo menos a quarenta milhas, os dois viram a Montanha da Perdição, com seus pés ancorados em ruínas de cinza, seu enorme cone subindo a uma altura impressionante, onde sua cabeça estava envolta em densas nuvens. Suas chamas estavam agora enfraquecidas, e a Montanha parecia dormir num sono sem fogo, ameaçadora e perigosa como uma fera adormecida. Atrás dela pairava uma sombra vasta, ominosa como um céu de trovoada; eram os véus de Barad-dûr que agora surgia na distância, sobre um longo espinhaço das Montanhas Cinzentas que se projetava do norte. O poder Escuro estava afundado em pensamentos, e o Olho se voltava para dentro, ponderando acontecimentos que traziam dúvida e medo: uma espada brilhante, um rosto severo de rei, eram o que ele via, e por um tempo deu pouca atenção às outras coisas; e toda a sua grande fortaleza, portão sobre portão, e torre sobre torre, estava envolta numa escuridão crescente.
Frodo e Sam observaram toda aquela terra odiosa num misto de repugnância e espanto. Entre eles e a montanha fumegante, e ao redor dela ao norte e ao sul, tudo parecia arruinado e morto, um deserto queimado e sufocado. Ficaram imaginando como o Senhor daquele reino conseguia manter e alimentar seus escravos e exércitos. Pois ele tinha exércitos. Até onde a vista alcançava, ao longo das bordas do Morgai e mais além, ao sul, havia acampamentos, alguns feitos de tendas, e outros organizados como pequenas cidades. Uma das maiores estava bem abaixo deles. A menos de uma milha de distância na planície, ela se amontoava como um enorme ninho de insetos, com ruas retas e áridas cheias de barracos e longos prédios baixos e sem cor. Pela cidade o chão estava apinhado de gente indo de um lado para o outro; uma estrada larga saía do povoado em direção ao sudeste para encontrar o caminho de Morgul, e ao longo dela corriam muitas fileiras de pequenas figuras negras.
— Não gosto nem um pouco da aparência das coisas — disse Sam. — Bastante desesperadoras, eu diria a não ser pelo fato de que um bando de gente assim deve ter poços ou água, para não falar em comida. E estes são homens, não orcs, ou meus olhos estão completamente enganados.
Nem ele nem Frodo sabiam coisa alguma sobre os grandes campos de trabalho escravo mais ao sul daquele vasto reino, além da fumaça da Montanha, próximos às águas escuras e tristes do Lago Núrnen; nem das grandes estradas que corriam para o leste e para o sul, levando a terras que pagavam tributo a Mordor, das quais os soldados da Torre traziam longos comboios de carroças com mercadorias, produtos de saques e novos escravos. Ali, nas regiões do norte, havia minas e forjas, e a concentração de tropas para uma guerra longamente planejada; ali o Poder Escuro, movendo Seus exércitos como peças num tabuleiro, os estava reunindo. Seus primeiros movimentos, seus primeiros testes de força, haviam sido feitos sobre a linha ocidental, ao norte e ao sul. Agora os retirara, trazendo novas forças, preparando ao redor de Cirith Gorgor um golpe vingador. E, se também fosse o seu propósito defender a Montanha contra qualquer aproximação, dificilmente poderia ter feito trabalho melhor.
— Bem — continuou Sam. — O que quer que eles tenham para comer e beber, não podemos consegui-lo. Pelo que posso ver, não há caminho para descermos.
E nós não poderíamos atravessar toda aquela terra aberta infestada de inimigos, ainda que conseguíssemos descer.
— Mesmo assim precisamos tentar — disse Frodo. — Não é pior do que eu esperava. Nunca tive esperanças de atravessar. E não consigo ver qualquer esperança agora. Mas ainda preciso fazer o melhor que puder. No momento isso significa evitar ser capturado enquanto for possível. Então acho que ainda precisamos rumar para o norte, e ver como é ali, onde a planície aberta é mais estreita.
— Acho que sei como vai ser — disse Sam. — Onde é mais estreita os orcs e homens estarão mais amontoados. O senhor vai ver, Sr. Frodo.
— Arrisco dizer que vou, se conseguirmos ir tão longe — disse Frodo, virando-se.
Logo viram que era impossível avançar por sobre a crista do Morgai, ou em qualquer ponto ao longo dos níveis mais altos, que eram sem trilhas e cheios de fissuras profundas. No fim foram forçados a descer de volta para o precipício que tinham escalado e a procurar um caminho ao longo do vale. Foi uma caminhada árdua, pois eles não se arriscaram a atravessar até a trilha na encosta oeste. Depois de uma milha ou mais os dois viram, abrigada numa concavidade ao pé do penhasco, a fortaleza orc que já adivinhavam estar bem próxima: uma muralha e um aglomerado de casebres de pedra, espalhados ao redor da boca escura de uma caverna. Não se via movimento algum, mas os hobbits passaram por ela com toda a cautela, mantendo-se o mais perto possível dos arbustos espinhosos que cresciam densos nesse ponto, ao longo dos dois lados do velho curso de água. Avançaram mais duas ou três milhas, e a fortaleza orc se escondeu atrás deles; mas mal tinham recomeçado a respirar com mais liberdade quando ouviram vozes de orcs, altas e rudes. Rapidamente se esgueiraram para um esconderijo atrás de um arbusto escuro e atrofiado. As vozes se aproximaram. De repente dois orcs surgiram. Um estava vestido em farrapos castanhos e armado com um arco de chifre: era de uma raça pequena, tinha a pele negra e vinha farejando com as largas narinas: evidentemente algum tipo de batedor. O outro era um grande orc lutador, parecido com os da companhia de Shagrat, ostentando o símbolo do Olho. Também trazia um arco nas costas e carregava uma lança curta de cabeça larga. Como de costume, estavam discutindo, e, sendo de raças diferentes, usavam a Língua Geral à sua maneira. A menos de vinte passos de onde os hobbits estavam á espreita o orc pequeno estacou.
— Agora! — rosnou ele. — Vou para casa. — Apontou através do vale para a fortaleza orc. — Não adianta mais ficar gastando meu nariz em pedras. Não resta nenhum vestígio, estou dizendo. Perdi o rastro seguindo o que você falou. O rastro subiu pelas colinas, não foi ao longo do vale, estou dizendo.
— Vocês, farejadorezinhos, não servem para muita coisa — disse o orc grande. — Acho que olhos são melhores que seu nariz ranhento.
— Então o que você viu com eles? — rosnou o outro. — Besteira! Você nem sabe o que está procurando.
— E de quem é a culpa? — disse o soldado. — Minha é que não. Isso vem Lá de Cima. Primeiro dizem que é um grande elfo vestido com armadura brilhante, depois é um tipo pequeno de homem-anão, depois deve ser um bando de uruk-hai rebelde; ou ainda pode ser tudo isso junto.
— Ah! — disse o batedor. — Eles perderam a cabeça, isso é que é. E alguns dos chefes vão perder a pele também, eu acho, se o que ouvi for verdade: Torre atacada e tudo mais, e centenas de seus rapazes assassinados, e prisioneiro que fugiu. Se é assim que vocês fazem, não me admira que haja más notícias sobre as batalhas.
— Quem disse que há más notícias? — gritou o soldado.
— E quem disse que não?
— Isso é conversa dos malditos rebeldes, e vou perfurá-lo, se não calar a boca, está entendendo?
— Está certo! Está certo! — disse o batedor. — Não vou dizer mais nada e vou continuar pensando. Mas o que o ladrão preto tem a ver com tudo isso? Aquele comilão das mãos chatas?
— Não sei. Nada, talvez. Mas ele não está metido em coisa boa, xeretando por aí, eu aposto. Maldito! Foi só ele ter escapado de nós e fugido e chegaram ordens dizendo que o querem vivo, e depressa.
— Bem, espero que o encontrem vivo, e o façam passar um mau pedaço — rosnou o batedor. — Ele confundiu o rastro lá atrás, pegando aquele casaco de malha que achou jogado no chão, e chapinhando por todo o lugar antes que eu chegasse lá.
— Isso lhe salvou a vida, de qualquer forma — disse o soldado. — Veja bem, antes de saber que o queriam eu atirei nele, um golpe certeiro, a cinquenta passos,
bem no meio das costas, e ele continuou correndo.
— Bobagem! Você errou a pontaria — disse o batedor. – Primeiro você golpeia ao léu, depois corre muito devagar, e só depois manda chamar os pobres batedores. Estou cheio de você. — Ao dizer isso, disparou a correr.
— Volte aqui — gritou o soldado—, ou vou denunciar você!
— Para quem? Não para o seu precioso Shagrat. Ele não vai mais ser capitão.
— Vou dar seu nome e número para os nazgúl — disse o soldado, abaixando a voz num chiado. — Um deles é o encarregado da Torre agora.
O outro parou, e sua voz se encheu de medo e ódio.
— Seu maldito espião, delator, ladrão! — gritou ele. — Não consegue fazer o seu serviço, e nem ser leal ao seu próprio povo. Vá para os seus Guinchadores sujos, e que eles arranquem sua pele! Se o inimigo não o pegar primeiro. Ouvi dizer que assassinaram o Número Um, e espero que seja verdade!
O orc grande, de lança na mão, correu atrás dele. Mas o batedor, saltando de trás de uma pedra, enterrou uma flecha no olho do soldado que vinha correndo, e que a seguir caiu com um baque. O outro fugiu através do vale e desapareceu.
Por um tempo os hobbits continuaram em silêncio. Por fim Sam se manifestou.
— Bem, isso é o que eu chamo de golpe certeiro — disse ele. — Se esse espírito de amizade se espalhasse em Mordor, metade de nossos problemas estariam terminados.
— Quieto, Sam — sussurrou Frodo. — Pode haver outros por aí. É evidente que escapamos por pouco, e a caçada estava mais perto de nosso rastro do que imaginávamos. Mas este é o espírito de Mordor, Sam; está espalhado em todos os seus cantos. Os orcs sempre se comportam assim quando estão sozinhos, pelo menos é o que contam as histórias. Mas você não pode alimentar muita esperança a partir desse fato. Eles nos odeiam muito mais, todos eles e o tempo todo. Se aqueles dois nos tivessem visto, teriam suspendido a discussão até estarmos mortos.
Fez-se outro longo silêncio. Sam o interrompeu de novo, desta vez com um sussurro.
— O senhor ouviu o que eles falaram sobre aquele comilão, Sr. Frodo? Eu lhe disse que Gollum ainda não estava morto, não disse?
— Sim, eu me lembro. E fiquei me perguntando como você sabia — disse Frodo.
— Bem, vamos lá! Acho que é melhor não sairmos daqui enquanto não estiver bem escuro. Então você pode me contar como é que sabe, e tudo o que aconteceu. Isso se não fizer muito barulho.
— Vou tentar — disse Sam —, mas, quando penso naquele Fedegoso, fico com tanta raiva que poderia gritar.
Lá ficaram os hobbits sentados sob a proteção do arbusto espinhoso, enquanto a luz desolada de Mordor desaparecia devagar dentro de uma noite profunda e sem estrelas. Sam contou aos ouvidos de Frodo, com as melhores palavras que pôde encontrar, tudo sobre o ataque traiçoeiro de Gollum, sobre o horror de Laracna, e suas próprias aventuras com os orcs. Quando terminou, Frodo não disse nada, mas tomou-lhe a mão e a apertou. Finalmente se moveu.
— Bem, suponho que precisamos continuar outra vez — disse ele. Fico pensando quanto tempo levará até que realmente sejamos capturados e termine todo o esforço e a necessidade de nos escondermos, em vão. — Levantou-se. — Está escuro, e não podemos usar o cristal da Senhora. Guarde-o em segurança para mim, Sam. Não tenho onde guardá-lo agora, a não ser em minha mão, e vou precisar das duas mãos nesta noite cega. Quanto a Ferroada, ela é sua. Tenho uma espada de orc, mas não acho que será meu papel desferir qualquer golpe outra vez.
Foi dificil e perigoso para os dois avançar durante a noite naquela terra sem trilhas, mas lentamente e á custa de muitos tropeços eles conseguiram prosseguir com esforço para o norte, hora após hora, ao longo da borda leste do vale pedregoso. Quando surgiu uma luz cinzenta sobre as montanhas ocidentais, muito depois de o dia se abrir nas terras distantes, esconderam-Se de novo e dormiram um pouco, revezando-se. Nas horas de vigília Sam se ocupava pensando em comida. Por fim, quando Frodo despertou e falou em comer e se preparar para mais um esforço, ele fez a pergunta que mais preocupava sua mente.
— Com as minhas desculpas, Sr. Frodo — disse ele —, mas o senhor tem alguma noção de quanto ainda teremos de caminhar?
— Não, não tenho nenhuma noção clara, Sam — respondeu Frodo. — Em Valfenda, antes de partirmos, mostraram-me um mapa de Mordor que foi feito antes de o Inimigo retornar para cá, mas só me lembro dele vagamente. O que recordo com mais clareza é que havia um lugar no norte onde a cordilheira ocidental e a do norte projetavam contrafortes que quase se encontravam. Isso deve ficar no mínimo a vinte léguas da ponte lá atrás, perto da Torre. Pode ser um bom ponto para atravessarmos. Mas, é claro, se chegarmos lá, estaremos mais longe da Montanha do que estávamos, a umas sessenta milhas dela, eu acho. Suponho que já nos afastamos doze léguas da ponte, rumando para o norte. Mesmo que tudo corra bem, eu não conseguiria chegar á montanha em menos de uma semana. Temo, Sam, que o fardo fique muito pesado, e que eu avance cada vez mais devagar à medida que formos nos aproximando.
Sam suspirou.
— Era exatamente isso que eu temia — disse ele. — Para não falar em água, temos de comer menos, Sr. Frodo, ou então avançar um pouco mais rápido, pelo menos enquanto ainda estivermos aqui neste vale. Mais um bocado e a comida estará terminada, tirando o pão de viagem dos elfos.
— Vou tentar ser um pouco mais rápido, Sam — disse Frodo, respirando fundo. — Vamos, então! Vamos começar uma outra marcha.
Ainda não estava bem escuro. Avançaram com dificuldade noite adentro. As horas se passaram numa marcha cansativa e penosa, com algumas poucas paradas. Aos primeiros sinais de luz cinzenta sob as bordas do dossel de sombra, eles se esconderam outra vez numa concavidade escura, abaixo de uma saliência rochosa.
Lentamente a luz aumentou, até ficar mais clara do que nunca. Um vento forte soprava do oeste e varria dos ares mais altos a fumaça de Mordor. Não demorou muito para que os hobbits conseguissem visualizar o formato da terra no raio de algumas milhas. O fosso entre as montanhas e o Morgai diminuíra cada vez mais durante a subida, e a borda interna agora não passava de um patamar nas encostas íngremes dos Ephel Dúath; mas a leste a queda para o Gorgoroth era abrupta como sempre. À frente o curso de água terminava em degraus quebrados de pedra; da cordilheira principal lançava-se um contraforte alto e nu, que avançava para o leste como uma muralha. Para encontrá-lo ali, vindo da enevoada cordilheira norte de Ered Lirhui, um longo braço pontudo se estendia; entre as extremidades havia um desfiladeiro estreito: Carach Angren, a Boca Ferrada, além da qual ficava o profundo vale de Udún. Naquele vale atrás do Moratmon estavam os túneis e os depósitos de armas que os servidores de Mordor haviam feito para a defesa do Portão Negro; e ali agora o seu Senhor estava reunindo às pressas grandes forças para enfrentar o ataque dos Capitães do Oeste. Sobre os contrafortes salientes, fortes e torres haviam sido construídos, e ali queimavam fogueiras de acampamento; através de todo o desfiladeiro fora erguida uma muralha de terra, e fora escavada uma trincheira funda que só podia ser atravessada por uma única ponte.
Algumas milhas ao norte, lá em cima, no ângulo onde o contraforte ocidental se destacava da cordilheira principal, ficava o velho castelo de Durthang, agora transformado numa das muitas fortalezas orcs que se aglomeravam ao redor do vale de Udún. Uma estrada, já visível na luz crescente, vinha descendo dele numa trilha sinuosa, até que, a apenas uma ou duas milhas de onde os hobbits estavam, ela se virava para o leste e corria ao longo de um patamar cortado na encosta do contraforte, e assim descia até a planície, para prosseguir até a Boca Ferrada. Olhando aquilo, os hobbits tiveram a impressão de que toda a viagem para o norte fora inútil. A planície à direita era escura e esfumaçada, e ali não conseguiram ver nem acampamentos nem tropas em movimento; mas toda aquela região estava sob a vigilância dos fortes de Carach Angren.
— Chegamos a um beco sem saída, Sam — disse Frodo. — Se avançarmos, só chegaremos àquela torre orc, mas a única estrada que podemos tomar é a que desce dela — a não ser que voltemos. Não podemos escalar para o oeste, nem descer para o leste.
— Então vamos tomar a estrada, Sr. Frodo — disse Sam. — Devemos tomá-la e testar nossa sorte, se é que existe alguma sorte em Mordor. Ficar vagando ou tentar voltar seria o mesmo que nos entregarmos. Nossa comida não vai durar muito. Temos de ir até lá, e rápido!
— Certo, Sam — disse Frodo. — Conduza-me! Enquanto lhe restar alguma esperança. A minha não existe mais. Mas não posso ir rápido, Sam. Só vou segui-lo a passadas lentas.
— Antes que comece qualquer passada lenta, o senhor precisa dormir e comer, Sr. Frodo. Venha e faça essas duas coisas como puder!
Deu água a Frodo, e mais um naco do pão-de-viagem, e fez um travesseiro com sua capa para deitar a cabeça do mestre. Frodo estava cansado demais para discutir a questão, e Sam não lhe disse que ele bebera a última gota da água, e comera a parte da comida que cabia a Sam, além da sua própria parte. Quando Frodo adormeceu, Sam se debruçou sobre ele, para escutar sua respiração e examinar-lhe o rosto. Estava fino e marcado, mas enquanto dormia parecia alegre e sem temores.
— Bem, lá vou eu, Mestre! — Sam murmurou consigo mesmo. — Preciso abandoná-lo por um tempo e confiar na sorte. Precisamos de água, ou não conseguiremos ir mais longe.
Sam se arrastou para fora do esconderijo e, avançando de pedra em pedra com um cuidado que era exagerado até para um hobbit, desceu até o curso de água, chegando aos degraus de pedra onde havia muito tempo, sem dúvida, sua fonte viera jorrando numa pequena cachoeira. Tudo agora parecia seco e quieto; mas, combatendo o desespero, Sam se agachou à escuta, e para seu deleite captou o som de água correndo. Descendo alguns degraus encontrou um riacho pequeno de água escura que saía da encosta da colina, e enchia uma pequena poça exposta, da qual se derramava de novo, para desaparecer sobre as pedras nuas. Sam experimentou a água, que lhe pareceu suficientemente boa. Então bebeu bastante, reabasteceu a garrafa e virou-se para voltar. Nesse momento viu de relance uma forma negra ou uma sombra correndo por entre as pedras próximas ao esconderijo de Frodo. Contendo um grito, saltou da fonte e correu, pulando de pedra em pedra. Era uma criatura cautelosa, difícil de enxergar, mas Sam tinha poucas dúvidas a respeito dela: desejava colocar-lhe as mãos no pescoço. Mas a criatura o ouviu chegando e fugiu depressa. Sam teve a impressão de vê-la uma última vez, espiando por sobre a borda do precipício oriental, antes de se abaixar e desaparecer.
— Bem, a sorte não me abandonou — murmurou Sam —, mas foi por pouco. Já não basta termos orcs aos milhares sem aquele vilão malcheiroso xeretando por aqui? Gostaria que tivessem atirado nele! — Sentou-se ao lado de Frodo e não o acordou, mas não ousou dormir. Por fim, quando já sentia seus olhos se fechando e percebeu que sua luta para se manter acordado não poderia prosseguir por muito tempo, acordou Frodo com delicadeza.
— Aquele Gollum está rondando de novo, receio eu, Sr. Frodo — disse ele. — Na melhor das hipóteses, se não era ele, então existem dois idênticos. Saí um pouco para procurar água e o vi farejando por aí bem na hora em que estava voltando. Acho que não é seguro nós dois dormirmos ao mesmo tempo, e, com as suas desculpas, não consigo mais manter meus olhos abertos.
— Bendito Sam! — disse Frodo. — Deite-se e aproveite bem a sua vez! Mas eu prefiro Gollum aos orcs. De qualquer jeito, ele não nos entregará a eles — a não ser que ele mesmo seja capturado.
— Mas ele pode praticar um bocado de roubos e assassinatos por conta própria — resmungou Sam. — Mantenha os olhos abertos, Sr. Frodo. Há uma garrafa cheia de água. Beba. Podemos enchê-la de novo quando partirmos.
— Dizendo isso, Sam mergulhou no sono.
A luz estava sumindo quando ele acordou. Frodo estava sentado, apoiando as costas na pedra, mas adormecera. A garrafa de água estava vazia. Não havia sinal de Gollum.
A escuridão de Mordor retornara, e as fogueiras de acampamento nas montanhas queimavam fortes de novo, quando os hobbits partiram na etapa mais perigosa de sua viagem. Primeiro foram até o pequeno riacho, e depois, subindo com cautela, chegaram à estrada no ponto onde ela se virava para o leste na direção da Boca Ferrada, que ficava a vinte milhas dali. Não era uma estrada larga, não tinha parede ou parapeito nas margens, e á medida que avançava a queda íngreme de sua borda aumentava mais e mais. Os hobbits não ouviam qualquer movimento, e, depois de ficarem escutando por um tempo, partiram rumo ao leste num passo continuo.
Depois de percorrerem cerca de doze milhas, pararam. Um pouco atrás. a estrada virara em direção ao norte, e o trecho que haviam percorrido estava agora escondido. O resultado disso foi desastroso. Descansaram por alguns minutos e então avançaram. Mas não tinham dado muitos passos quando, de repente, na quietude da noite, ouviram o som que o tempo todo haviam temido em segredo: o ruido de pés marchando. Ainda estavam a alguma distância atrás deles, mas, virando-se, os dois puderam ver o piscar de tochas fazendo a curva a cerca de uma milha de distância, e estavam se aproximando depressa: depressa demais para que Frodo pudesse escapar correndo ao longo da estrada.
— Era isso o que eu temia, Sam — disse Frodo. — Confiamos na sorte, e ela nos abandonou. Estamos encurralados. — Olhou alucinado para a parede enrugada, onde os antigos construtores da estrada haviam cortado a rocha num ângulo reto por muitos metros acima de suas cabeças. Correu para o outro lado e olhou por sobre a borda num poço de escuridão. — Finalmente estamos encurralados! — disse ele. Foi se abaixando até o chão ao pé da muralha de pedra e curvou a cabeça.
— Parece que sim — disse Sam. — Bem, não há nada a fazer, exceto esperar para ver. — E com isso sentou-se ao lado de Frodo sob a sombra do penhasco.
Não tiveram de esperar muito. Os orcs vinham num passo rápido. Os que estavam nas primeiras colunas traziam tochas. Vinham avançando chamas rubras no escuro, crescendo rapidamente. Agora Sam também curvara a cabeça, na esperança de esconder o rosto quando as tochas os alcançassem; colocou os escudos diante dos joelhos para esconder seus pés. "Se pelo menos estiverem com pressa e deixarem em paz um par de soldados cansados, avançando em sua marcha!", pensou ele.
E assim pareceu que fariam. Os orcs que vinham à frente avançavam num trote, ofegantes, com as cabeças baixas. Era um bando das raças menores, sendo levados contra a vontade para as guerras do Senhor do Escuro; só se preocupavam em terminar a marcha e escapar do chicote. Ao lado, subindo e descendo a fila, iam dois da raça cruel e grande dos uruks, estalando açoites e gritando. Coluna após coluna passou, e a luz denunciadora das tochas já estava um pouco à frente. Sam segurou a respiração. Agora mais da metade da fila já tinha passado. Então, de repente, um dos condutores de escravos enxergou as duas figuras à margem da estrada. Aplicou-lhes uma chicotada e gritou:
— Ei, vocês! Levantem-se! — Eles não responderam, e com um grito ele deteve toda a companhia.
— Vamos, suas lesmas! — gritou ele. — Não é hora de vagabundear. — Deu um passo na direção deles, e mesmo no escuro reconheceu os símbolos de seus escudos.
— Desertando, hein? — rosnou ele. — Ou pensando no assunto? Todo o seu povo deveria estar dentro de Udún antes da noite de ontem. Vocês sabem disso. De pé e atrás de mim, ou vou pegar seus números e denunciá-los.
Com um esforço os dois hobbits ficaram de pé, e mantendo-se curvados, mancando como se fossem soldados de pés feridos, arrastaram-se até o fim da fila.
— Não, não lá atrás — gritou o condutor de escravos. — Três colunas á frente. E fiquem lá, ou vão se ver comigo, quando eu chegar ao fim da fila! — Lançou o longo açoite estalando sobre suas cabeças, e então com um outro estalo e um grito ordenou que a companhia continuasse marchando num trote forçado.
Foi dificil para o pobre Sam, cansado como estava; mas para Frodo foi um tormento, que logo se transformou num pesadelo. Travou os dentes e tentou deixar de pensar, esforçando-se para avançar. O fedor dos ores suados ao seu redor era sufocante, e ele começou a ofegar de sede. Foram avançando sempre, e ele colocava toda a sua determinação em respirar e manter os pés em movimento, sem ousar pensar para que final maligno se dirigia, suportando tudo aquilo. Não havia esperança de escapar sem ser visto. De vez em quando o condutor recuava e zombava deles.
— Olhem lá! — dizia ele rindo, ameaçando chicotear-lhes as pernas. — Onde há um açoite há um aceite, suas lesmas. Aguentem firmes! Eu daria um refresco para vocês agora, mas vocês vão levar tantas chicotadas quantas suas peles puderem suportar quando chegarem atrasados ao acampamento. Vai fazer bem. Não sabem que estamos em guerra?
Tinham avançado algumas milhas, e a estrada finalmente descia uma longa ladeira para entrar na planície. quando a força de Frodo começou a desaparecer e sua vontade vacilou. Ele se arrastava e tropeçava. Desesperado, Sam tentava ajudá-lo e mantê-lo de pé, embora sentisse que ele próprio mal conseguiria aguentar aquele passo por muito mais tempo: seu mestre cairia ou desmaiaria, e tudo seria descoberto; e seus duros esforços teriam sido em vão. "Pelo menos vou pegar aquele condutor grande". pensou ele.
Então, no momento em que estava levando a mão ao punho da espada, chegou um alivio inesperado. Estavam agora na planície, chegando perto da entrada de Udún.
Um pouco à frente, antes do portão na extremidade da ponte, a estrada do oeste convergia com outras que vinham do sul e de Barad-dûr. Ao longo de todas as estradas tropas se moviam, pois os Capitães do Oeste estavam avançando e o Senhor do Escuro apressava suas forças na direção do norte. Foi assim que várias companhias se encontraram na encruzilhada, na escuridão além da luz das fogueiras de acampamento sobre as muralhas. Imediatamente houve um grande tropel e xingamentos, pois cada tropa queria chegar primeiro ao portão e terminar a marcha. Embora os condutores gritassem e aplicassem os chicotes, irromperam brigas e espadas foram sacadas. Uma tropa de uruks bem armados de Barad-dûr atacou uma fileira de Durthang, criando confusão. como estava de dor e cansaço, Sam despertou, agarrou depressa a sua chance, e jogou-se no chão, arrastando Frodo consigo. Orcs caíram sobre os dois, rosnando e xingando, até que finalmente, sem serem notados, os dois pularam por sobre a borda oposta da estrada. Ali havia um meio-fio alto pelo qual os condutores de tropas podiam se guiar na noite escura ou no nevoeiro, e que subia um pouco acima do nível da região aberta. Ficaram quietos por um tempo. Estava escuro demais para procurar um esconderijo, se é que havia algum por ali. Mas Sam sentiu que precisavam no mínimo se distanciar um pouco mais das estradas e ficar fora do alcance da luz das tochas.
— Venha, Sr. Frodo! sussurrou ele. Rasteje mais um pouco, e depois o senhor pode descansar em paz.
Num último esforço desesperado, Frodo se levantou usando as mãos e lutou por talvez mais uns vinte metros. Então mergulhou num poço raso que se abriu inesperadamente diante deles, e lá ficou deitado feito morto.
A MONTANHA DA PERDIÇÃO
Sam colocou a capa esfarrapada de orc sob a cabeça do mestre, cobrindo-se com o manto cinzento de Lórien; enquanto isso acontecia, seus pensamentos fugiram para aquele belo lugar, e para os elfos, esperando que o tecido feito por aquelas mãos pudesse ter alguma virtude de mantê-los escondidos superando qualquer esperança naquele deserto de medo. Ouviu as brigas e os gritos diminuindo, enquanto as tropas avançavam através da Boca Ferrada. Parecia que na confusão e na mistura de várias companhias pão haviam dado pela falta deles, pelo menos não por enquanto. Sam tomou um gole de água, mas forçou Frodo a beber, e, quando seu mestre tinha melhorado um pouco, deu-lhe um naco inteiro do precioso pão de viagem e o fez comer. Então, exaustos demais até para sentirem muito medo, os dois se esticaram no chão. Dormiram um pouco, num sono sobressaltado, pois o suor esfriava-lhes os corpos, as pedras machucavam e eles tremiam. Lá do norte, da direção do Portão Negro através de Cirith Gorgor, vinha sussurrando junto ao chão uma aragem tênue e fria.
Pela manhã uma luz cinzenta apareceu de novo, pois nas altas regiões o Vento Oeste ainda soprava; mas lá embaixo nas pedras, atrás das fronteiras da Terra Negra, o ar parecia quase morto, frio e ao mesmo tempo sufocante. A terra ao redor era desolada, plana e pardacenta. Nada se movia agora nas estradas próximas, mas Sam temia os olhos vigilantes na muralha da Boca Ferrada, a menos de duzentos metros ao norte. No sudeste, distante como uma sombra escura e vertical, assomava a Montanha. Despejava fumaça, e, enquanto a porção que subia mais alto se distanciava para o leste, grandes nuvens pesadas flutuavam descendo pelas suas encostas e se espalhavam sobre a terra. A algumas milhas ao nordeste, os pés das Montanhas Cinzentas eram como sombrios fantasmas cor de cinza, atrás dos quais as nevoentas montanhas do norte erguiam-se como uma fileira de nuvens pouco mais escuras que o céu baixo.
Sam tentava adivinhar as distâncias e decidir que caminho deveriam tomar.
— Parecem no mínimo cinquenta milhas — murmurou ele desanimado, fitando a montanha ameaçadora —, e o que leva um dia vai levar uma semana com o Sr. Frodo nas condições em que está. Balançou a cabeça, e, enquanto calculava, um novo pensamento escuro cresceu em sua mente. A esperança morrera por muito tempo em seu forte coração, e até agora ele Sempre conseguira pensar um pouco na volta para casa. Mas a amarga verdade chegara até ele por fim: na melhor das hipóteses, a provisão que tinham os levaria até seu objetivo, e...
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