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O Retrato - P.2 / Érico Veríssimo
O Retrato - P.2 / Érico Veríssimo

 

 

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O TEMPO E O VENTO

O Retrato - Parte II

 

x

O Correio do Povo de 13 de fevereiro noticiava que o marechal Hermes da Fonseca chegara a Porto Alegre, tendo sido recebido festivamente. Um dos oradores que o saudaram, falando em nome do operariado, dissera que a espada do marechal, que tanto atemorizava os civilistas, havia de converter-se num ramo de flores, síntese da aspiração mais elevada dos povos à paz. O préstito do candidato oficial estacionara à frente do prédio da Federação, sendo Hermes da Fonseca acolhido por uma salva de palmas, enquanto, das sacadas, senhoras e senhoritas atiravam sobre ele rosas e jasmins.

Rodrigo leu a notícia com impaciente má vontade.

- Deviam mas era atirar trampa na cabeça desse farsante! Naquele dia foi procurado por don Pepe.

- Neco me ha dicho...

- Pois é, Pepe, preciso muito de ti. Alguma vez em tu perra vida trabalhaste em tipografia?

O espanhol fez um gesto largo.

- Pues claro, hombre! He sido tipógrafo en Bilbao, en un periódico anarquista clandestino.

Rodrigo deu uma palmada nas costas do amigo.

- Pois foi o céu que te enviou.

- O ei infierno.

- Não interessa. O importante é que vieste. Preciso botar o meu jornal na rua amanhã. O marechal vai passar por aqui lá pelo dia 19. Quero que A Farpa esteja na rua quando esse palhaço chegar...

- Bueno...

- Vamos pôr mãos à obra. Eu escrevo e tu compões e imprimes. Que tal?

- Pues...

- Pago-te bem. Deixo o ordenado a teu critério. Quanto queres?

- Hombre, no soy mercenário. Trabalhar é por amor a la lucha. Y por la amistad.

- Feito!

Instalaram as oficinas da a Farpa - uma caixa de tipos, uma prensa de provas e um prelo - na parte do porão que ficava por baixo da sala de visitas. A luz entrava por uma janela lateral e pelos olhos-de -boi que respiravam para a rua.

- Eis a nossa barricada! - disse Rodrigo, entregando a oficina ao espanhol. - Fica te entretendo por aí com essas bugigangas, enquanto eu vou lá pra cima escrever o editorial.

Subiu para o escritório, arregaçou as mangas da camisa, experimentou a pena, olhou para as tiras de papel que pusera sobre o Iniretat e começou a escrever:

Surge A Farpa à luz da publicidade num dos momentos mais dramáticos da história da nacionalidade brasileira. Diremos sem eufemismos ou meias palavras que este hebdomadário se propõe, antes de mais nada, ser a livre tribuna dos oprimidos contra os opressores, da justiça contra o arbítrio, do direito contra a força, da fraternidade contra o banditismo. Isto vale dizer que A Farpa é um jornal de oposição, uma bandarilha colorida e aguçada a espicaçar constantemente os flancos do touro cruel e brutal do situacionismo!

Releu o que havia escrito, acendeu um cigarro, satisfeito consigo mesmo. Imaginou a cara do Trindade ao ler o primeiro número do jornal. Molhou a pena na tinta (ah, como um tinteiro de bronze e granito melhora o estilo!) e prosseguiu:

Santa Fé, onde há tantos anos a liberdade tem sido amordaçada, o direito espezinhado e a justiça broncamente substituída pelo mandonismo, terá neste semanário político e literário uma voz corajosa, clara e candente, a clamar pelos direitos dos espoliados e pelas reivindicações dos desprotegidos da sorte. Fiel aos princípios do mais puro republicanismo, A Farpa pugnará na presente campanha presidencial pela candidatura civilista, recomendando o grande, o imenso, o imortal Rui Barbosa, o gênio da raça, ao eleitorado livre de Santa Fé, do Rio Grande e do Brasil!

Basta - disse para si mesmo. É bom que seja uma coisa curta pró castelhano compor em tipo graúdo, com cercadura. Levantou-se, foi até a janela lateral da sala de visitas, meteu a cabeça para fora e gritou:

- Pepito!

Quando o outro apareceu, disse:

- Escuta só.

Leu-lhe com voz vibrante o que havia escrito. Ao terminar, baixou os olhos para don Pepe, que cofiava o cavanhaque com sua longa mão ossuda de Quixote.

Que tal?

- Muy débil.

Rodrigo deu um palmada no peitoril da janela.

- Por que débil?

- Hay que poner más vitríolo en tus frases, hombre. Hay que agitar!

- Que mais queres?

- Más pasión, más sangre.

- O sangue virá depois. Toma. Compõe isso, que agora vou arrasar o Trindade num artigo especial.

Entregou as tiras a don Pepe e voltou a sentar-se à mesa. Estava com calor e com sede. Pensou em sair, tomar uma bebida fresca no Schnitzler, ou então algo de forte que lhe desse mais fogo às idéias e ao estilo. Boa sugestão... Foi até o guarda-comida da sala de jantar, apanhou uma garrafa de conhaque, encheu um cálice, bebeu-o dum sorvo, voltou para o bureau, pegou a caneta e escreveu o título do artigo. "Perfil dum tirano." Começou com o esforço biográfico em que contava a origem duvidosa do intendente de Santa Fé. Depois enumerou seus crimes, crueldade e desmandos, terminando assim:

E hoje aí está ele, o mala cara cínico, empoleirado na cadeira de intendente, como um reizinho num trono, César de paródia, Napoleão de opereta. Pensará o sátrapa que se sumiram da face da terra os homens de coragem, inteligência e dignidade!

E quando, momentos depois, Licurgo entrou no escritório, Rodrigo leu-lhe em voz alta o que acabara de escrever. O velho escutou em silêncio e não fez nenhum comentário.

- Então, papai? Gostou?

Licurgo tirou da boca o cigarro, tornou a enrolá-lo lentamente e só depois de soltar uma longa baforada é que falou.

- Meu filho, sei que sou um homem ignorante. Posso não ter muitas luzes, mas tenho alguma experiência. Acho que o senhor se excedeu nesse artigo.

Rodrigo ergueu-se da cadeira.

- Mas numa questão como esta, papai, não pode haver meias medidas e meias palavras.

- Quem está com a boa causa não precisa ofender ninguém. O seu jornal deve ser um jornal de princípios e não de ataques pessoais. Não provoque os outros sem necessidade. Critique as pessoas quando elas procederem mal. Mas deixe a vida particular do indivíduo de lado...

Uma idéia passou rápida pelo espírito de Rodrigo: o velho tem medo que, em represália, A Voz da Serra mexa em sua vida privada, trazendo à luz o caso da Ismália.

- Então o senhor acha...

- Acho que deve modificar a linguagem. Não quero que digam que estamos provocando barulho. Temos o direito de escrever o que pensamos e de lutar pelas nossas idéias. Mas não devemos ofender os outros. E depois, nem todos os que vão votar no marechal é porque são patifes ou covardes. O senhor sabe disso.

- Bom, se essa é a sua opinião... - murmurou Rodrigo, com a sensação de haver recebido uma ducha fria na cabeça.

- Essa é a minha opinião. E acho que também é a sua. Pense bem.

Quando o pai se retirou, Rodrigo tomou da pena e cravou-a com raiva no pano do bureau, partindo-a. Foi até a janela, respirou com força, murmurou um par de palavrões e tornou a sentar-se. Como era possível fazer um jornal vibrante sem ataques pessoais? No entanto, sabia que o pai estava com a razão, era exatamente isso que o enfurecia.

- Laurinda! - gritou. A mulata apareceu.

- Me traga qualquer coisa pra beber. Estou com sede.

- Pensa que não tenho mais que fazer?

- Um refresco! Minha cabeça está fervendo.

Laurinda trouxe uma limonada, que Rodrigo bebeu sofregamente, com muito ruído.

- Será que este calor não vai parar?

- Não sei, menino. Não sou Deus.

- Ai que saudade do banho na sanga!

Tirou impetuosamente a camisa, jogou-a ao chão, amassou com fúria as tiras de papel em que havia traçado o perfil do tirano, e jogou-as no cesto. Colocou uma pena nova na caneta, mergulhou-a no tinteiro e ficou pensando no que ia escrever. Por fim, bocejando, contrariado e infeliz, começou:

A Farpa não foi fundada para ofender quem quer que seja. Nossos objetivos são os mais elevados. De resto, como poderíamos nós censurar os que nos atacam em nossa fé política, se nós mesmos não respeitarmos as convicções alheias? Este semanário pretende manter-se no nível superior do bom jornalismo e jamais descerá ao terreno mesquinho e lamacento das retaliações pessoais. Será, antes de mais nada, uma tribuna limpa e justa, sempre aberta aos que tiverem fome e sede de justiça.

- Laurinda, me traz outra limonada - gritou. E, como não obtivesse resposta, esqueceu-se do que pedira.

Releu o que havia escrito, franziu os lábios. Uma droga. Uma redação de colegial.

Repoltreou-se, recostou a cabeça no respaldo da cadeira e ficou olhando para o teto. O suor escorria-lhe pelo torso em grossas bagas.

Quando o espanhol voltou com a primeira prova de parte do editorial, Rodrigo leu em voz alta, mas sem o menor entusiasmo, o que acabara de escrever.

- Hombre, quê sucedió? - perguntou Pepe, num sussurro teatral. - Te hás achicado? Te hás acobardado? Cofio!

Rodrigo contou-lhe a conversa que tivera com o pai. Depois, erguendo-se brusco, agarrou as lapelas do casaco do pintor e perguntou:

- Fala com sinceridade, Pepito, será que o velho tem mesmo razão?

- Pero no se trata de tener razón, hombre, sino pasión. - Berrou: - Pasión! Hay que agitar. Sem pasión no se puede hacer nada. Se vás a escribir cositas templadas como essas, entonces para que mantener un periódico?

- Isso, Pepe, isso mesmo. Pra que fazer um jornal se a gente não pode dizer tudo que pensa, tudo que sente, hein? É preciso sacudir esta cidade adormecida e acobardada!

Sentou-se sobre a mesa e ficou olhando pensativamente para a cesta de papéis. De súbito inclinou-se sobre ela, apanhou as tiras que amarrotara, alisou-as sobre a mesa com a palma da mão e entregou-as ao amigo:

- Compõe esta verrina. Vou desobedecer a meu pai mas obedecer à minha consciência. E seja o que Deus quiser. Amanhã, quando o jornal estiver na rua, o papai terá que se render diante do fato consumado!

Pepe olhou longa e apaixonadamente para Rodrigo.

- Bendita sea la madre que te parió, hijo mio!

Fez meia-volta e saiu da sala nos seus passos leves e curtos de toureiro.

Ao descer ao porão, cerca das cinco da tarde, Rodrigo verificou decepcionado que Pepe mal havia terminado a composição do editorial  do "Perfil dum tirano".

- Só uma página pronta. o jornal tem que sair amanhã sem falta!

- Soy un ser humano, no un dínamo. No puedo hacer milagros.

Sobre uma mesinha tosca de pinho, erguiam-se numa pilha os livros que Rodrigo trouxera de sua biblioteca e nos quais marcara os trechos que deviam ser transcritos n 'A Farpa - "Pra encher lingüiça, sabes, Pepito?" - Eram: uma das Canções sem metro de Raul Pompéia; um poema de Guerra Junqueira sobre a História; uma pequena fábula de Coelho Neto e versículos de Assim falava Zaratustra.

- E ainda temos mais isto - disse Rodrigo, mostrando as tiras que trazia. Era um artigo doutrinário, "O verdadeiro conceito de democracia", e uma página humorística em que, sob o pseudónimo de Fra Diavolo, ridicularizava o Amintas e o delegado de polícia.

- Neste passo, A Farpa só pode aparecer depois d'amanhã. Que droga!

Inclinado sobre a caixa de tipos, sempre de boina na cabeça, don Pepe limitou-se a encolher os ombros.

- Ah! - exclamou Rodrigo, dando uma palmada na testa. - Espere, que já volto.

Atirou os originais em cima da mesa, saiu apressado e voltou meia hora depois, trazendo pelo braço um mulato lívido, com grandes olhos brilhantes de tuberculoso.

- Don Pepe, este moço é um tipógrafo competente. Trabalhava pró Mendanha e agora vai nos ajudar.

O espanhol mal se dignou a lançar para o recém-chegado um olhar perfunctório.

- Mas doutor... - balbuciou o tipógrafo.

- Já sei. O Trindade ameaçou você. Mas não tenha medo, que não vai lhe acontecer nada. Dou-lhe a minha palavra de honra.

- Não é por mim, doutor, mas acontece que tenho mulher e filhos...

- Já lhe disse que o Titi Trindade não vai ficar sabendo de nada. Vamos, tire o casaco e comece logo a trabalhar. Estamos atrasados.

O homem continuou imóvel onde estava, os braços caídos. De repente frechou na direção da porta. Rodrigo, porém, barrou-lhe o caminho.

- Alto lá! Daqui você não sai vivo.

Tirou da cintura o revólver de cabo de madrepérola e apontou-o para o mulato, que estacou, os olhos esbugalhados fitos no cano da arma, os beiços trêmulos, o suor a pingar-lhe da testa.

- Hay que agitar.

Meu Deus, como é que posso fazer uma coisa destas - pensava Rodrigo, sentindo, com uma agudeza cada vez maior, o grotesco da situação.

Guardou o revólver, acercou-se do mulato e pousou-lhe fraternalmente a mão no ombro.

- Vamos, companheiro. Não precisamos brigar. Trabalhe só hoje... Pago-lhe duzentos mil-réis, o que você não ganhava num mês com o Mendanha!

- Não é questão do dinheiro, doutor - choramingou o outro -, é que o coronel me chamou na Intendência e me disse que se eu ficasse trabalhando com o senhor, ele...

Calou-se, engasgado. Rodrigo cresceu sobre o outro.

- Estamos num país livre, onde cada qual faz o que bem entende. E você vai trabalhar por bem ou por mal.

Sorria interiormente da incoerência entre suas palavras e seus atos, achando, porém, a coisa toda mais divertida que séria. Pegou um dos livros e meteu-o nas mãos do tipógrafo. - Comece por aqui.

O mulato tirou o casaco, arregaçou as mangas, fungando e ainda trémulo, e pôs-se a trabalhar.

- Hay un espacio en blanco en la primera página. Rodrigo olhou por cima do ombro do espanhol e resolveu:

- Ponha isto dentro dum quadrado.

Rabiscou num pedaço de papel: Dr. Rodrigo Terra Cambará. Formado pela Faculdade de Medicina de Porto Alegre. Clínica Geral. Consultório: Farmácia Popular, das 3 às 6 da tarde. Grátis aos pobres.

Pepe leu o anúncio e fez uma careta de náusea.

- La repulsiva caridad cristiana.

O tipógrafo trabalhava em silêncio, e houve um minuto em que Rodrigo e o pintor ficaram a observar o mulato, fascinados pela rapidez com que ele compunha. Seus dedos alongados moviam-se numa dança ágil e graciosa sobre os caixotins dos tipos.

Trabalharam até o escurecer.

- Tengo hambre - disse Pepe a Rodrigo, no momento em que este acendeu a lâmpada de acetilene.

- Vocês vão comer aqui. Já mandei buscar o jantar. Quando a comida chegou, o artista pôs seu prato em cima

do volume de Nietzsche e comeu ali de pé, teso e digno, ao passo que o tipógrafo, sentado num mocho, olhava com uma tristeza resignada de presidiário para seu bife.

- Não há de ser nada - murmurou Rodrigo, aproximando-se dele. - Fui obrigado a usar a violência porque se trata duma boa causa. Você então não quer que seus filhos cresçam livres e felizes numa terra de justiça e liberdade? Ou prefere que eles se criem sem espinha dorsal e passem a vida lambendo as botas do Trindade?

O mulato ergueu para ele os olhos assustados.

- Eu não me meto em política, doutor.

- Não se trata de política, homem, mas da dignidade humana.

- O que eu sei é que vou pagar caro por esta brincadeira.

- Já lhe disse que ninguém ficará sabendo que você trabalhou pra nós.

- Ora, não falta quem vá contar ao coronel... Rodrigo fez um gesto de impaciência.

Às nove da noite a composição estava pronta, as páginas armadas, as provas revisadas.

- Toca a imprimir, Pepito!

Quando o primeiro número d'A Farpa saiu do prelo, Rodrigo trouxe-o para perto da lâmpada e começou a examiná-lo avidamente.

- Está um colosso! Vai ser um sucesso!

O espanhol, que acionava o prelo com o rosto banhado em suor e os olhos incendiados, exclamou:

- Ay, madrecita mia! Lãs cosas que he hecho en mi perra vida!

Tiraram-se quinhentos exemplares.

- Mandamos uns cem para os distritos - decidiu Rodrigo -, uns cinqüenta para Cruz Alta, outros cinqüenta para Passo Fundo e o resto distribuímos na cidade.

Mandou Bento buscar Chiru e Neco. Quando estes chegaram, alguns minutos depois, pôs-se a confabular com os amigos.

- Como é que vamos fazer a distribuição?

- O Trindade sabe que o jornal está por sair - disse Chiru - e deve andar de olho vivo. A coisa não vai ser fácil. Quem sair distribuindo A Farpa tem que ir armado e disposto a tudo.

- Naturalmente - replicou Rodrigo. - Mas tive uma idéia... Se sairmos a fazer a distribuição agora, aposto como pegamos a capangada do Titi dormindo...

- Hay que hacer eso a la luz meridiana - bravateou Pepe. Rodrigo, porém, já tinha seu plano formado:

- Botamos os jornais no meu carro e saímos os quatro pelas ruas principais, metendo A Farpa por baixo de cada porta. - Consultou o relógio. - Faltam dez pra meia-noite. Às doze em ponto começamos... Estás armado, Chiru?

- Claro.

- E tu, Pepe?

- Mi arma es mi personalidad, son mis convicciones.

A todas essas, o mulato continuava sentado a um canto, os ombros caídos, as mãos a escudar os olhos. Ao vê-lo, Rodrigo, que o havia esquecido por completo, exclamou:

- O nosso amigo tipógrafo!

Tirou da carteira duas cédulas de cinqüenta mil réis e meteu-as no bolso do outro.

- Só vai servir pra pagar o meu enterro, doutor. Sou um homem morto.

- Morto qual nada! De agora em diante você vai ficar sob a minha proteção. Não se mexa daí... Não! O melhor é ir pra cima. Vamos!

Tomou o braço do mulato e puxou-o consigo, rumo dos fundos da casa. Andava no ar um cheiro familiar de pão quente, que Rodrigo aspirou com delícia. Trepou na cerca que separava o Sobrado da padaria.

- Ó Chico!

O padeiro apareceu.

- Só Rodrigo, então, que é que há de novo?

- Me dá dois pães bem quentinhos.

Chico Pão afastou-se num marche-marche solícito, entrou em casa e voltou pouco depois com quatro pães embrulhados em papel pardo.

- Quanto é, Chico?

- Ora, havia de ter graça...

Rodrigo tirou do bolso um exemplar d'A Farpa e deu-o ao vizinho:

- Pois te pago com o primeiro número do meu jornal. Também quentinho do forno. Vais ser o primeiro a ler o grande órgão. Boa noite!

Saltou para o chão, tornou a segurar o braço do tipógrafo e arrastou-o até a cozinha. Bateu à porta do quarto de Laurinda e acordou-a, gritando:

- Vem me fazer um café!

A mulata apareceu, estremunhada. - "Este corno malcriado sem-vergonha, tirando a gente da cama a esta hora" - e caminhou às tontas para o fogão.

- Paciência, Laurinda. É pró bem da pátria e da humanidade. Deu-lhe uma palmada cordial nas nádegas. - Vem fazer um café pró nosso amigo Gutenberg.

Sorriu, apontando para o tipógrafo.

- Meu nome é Camilo.

- Um café bem quentinho, Laurinda.

Desfez o embrulho, cortou um pão pelo meio, barrou uma das metades de manteiga e comeu-a sofregamente.

- Não deixe o Camilo sair enquanto eu não voltar. Laurinda respondeu-lhe com um bocejo.

À frente do Sobrado, Rodrigo reuniu-se aos companheiros, que já tinham subido para o carro com a pilha de jornais.

- Toca, Bento. Devagar. Vamos começar pela casa do Alvarino Amaral. Chiru, tu vais pela direita. E tu Pepito, pela esquerda. Não gastem pólvora em chimango. O Pitombo, por exemplo, não merece receber o nosso órgão. Neco, tu ficas comigo.

A distribuição foi feita em pouco mais de meia hora, sem o menor incidente, e Rodrigo teve o cuidado de fazer que todos os figurões da terra recebessem um exemplar d'A Farpa.

Ao voltar ao Sobrado, entregou o tipógrafo aos cuidados de Chiru, Pepe e Neco:

- Levem agora o nosso amigo pra casa. E vocês também podem ir. Amanhã nos encontraremos na farmácia às oito. Está combinado?

Esfregou as mãos, radiante:

- A coisa toda correu melhor do que eu esperava!

Entrou no Sobrado trauteando uma valsa. No patamar da escada, no andar superior, apareceu-lhe o vulto de Maria Valéria, com uma vela acesa na mão.

- Seu pai perguntou onde você tinha ido.

- Andamos distribuindo o jornal pela cidade, Dinda.

- Você anda mas é procurando sarna pra se coçar.

Como única resposta Rodrigo sorriu, aproximando-se da tia e beijou-lhe a testa. Depois entrou no quarto, riscou um fósforo, acendeu o lampião sobre a mesinha de cabeceira, escancarou as janelas que davam para a rua, despiu-se por completo e atirou-se na cama. Estava cansado e feliz. Entregou-se à recordação das coisas que fizera nas últimas vinte e quatro horas...

Desobedeci a meu próprio pai, lancei uma colossal provocação ao situacionismo; mexi, enfim, num ninho de marimbondos... Estamos em minoria absoluta. Eles podem assaltar o Sobrado e massacrar seus moradores. Podem mandar seus beleguins atacar-me numa esquina à noite. E no município inteiro não haverá quem ouse protestar contra essas violências, pois quem erguer a voz será também esmagado. O próprio coronel Jairo, com todos os seus protestos de amizade, dirá que como militar tem que ficar neutro na questão...

Tudo isso, longe de deixar Rodrigo amedrontado, dava-lhe uma alegria nervosa que lhe roubava o sono, tornando-lhe difícil o ficar deitado, apesar da canseira que lhe moía o corpo. Desejava com ansiedade a vinda do novo dia, a fim de poder tomar o pulso da cidade, auscultar aquele coração débil, meio morto que, com toda a certeza, ia começar a pulsar furiosamente depois que seus habitantes lessem A Farpa. Que batesse de susto, de alegria, ou surpresa, mas que pulsasse, isso era o essencial, que mandasse, através de suas veias e artérias, um sangue vivo, quente, turbulento, capaz de desentorpecer-lhe os membros...

Rodrigo respirou fundo, passou as mãos cariciosamente pelo tórax inflado e depois pelos músculos do braço. Era bom viver, e a melhor maneira de provar a si mesmo e aos outros que estava vivo era amando e lutando. Imaginou o que Flora ia sentir quando lesse A Farpa. Santo Deus! Acho que nestas últimas doze horas não pensei uma única vez na minha querida...

Veio-lhe à mente a presença do tipógrafo com tanta nitidez, que teve a impressão de sentir-lhe até o cheiro. Como foi que tive a coragem de ameaçar com o revólver

aquele pobre-diabo? As coisas que a gente faz num impulso, sem pensar! Isso prova que ainda não me conheço direito...

Apagou a luz.

Faut cultiver notre jardin. Oui, M. Voltaire, mas que devo fazer se uma cobra venenosa entra no meu jardim? Segurar a jararaca candidamente, mon cher Candide, e beijar-lhe a boca? Não. Écraser l'infâme, isso sim, pau na cabeça dela. O Titi Trindade é a jararaca do meu jardim. E, no fim de contas, prezados leitores Da

Farpa, é necessário que os bons sejam também fortes e tenham coragem de ser violentos e até cruéis quando essa violência e essa crueldade forem necessárias para o bem-estar da comunidade!

Ouviu o relógio grande da sala de jantar bater uma hora, uma e meia, duas... Revolvia-se na cama, irritado por não poder conciliar o sono. Pôs-se de pé num pulo, andou um pouco às cegas pelo quarto escuro, pensando vagamente em tomar um soporífero. Depois atirou-se na cama de bruços, agarrando o travesseiro com ambas as mãos, e ficou nessa posição até adormecer.

XI

Acordou às dez da manhã seguinte e, ao descer para o café, verificou com certo alívio que o pai já havia saído.

Foi até a farmácia e encontrou o prático debruçado sobre o balcão, tomando um mate.

- Bom dia, Gabriel.

O empregado perfilou-se, meio desconcertado, sem saber o que fazer com a cuia.

- Bom dia, doutor.

Rodrigo bateu-lhe afetuosamente no ombro.

- Bom proveito. Também aceito um chimarrão.

Gabriel Luigi sorriu. Era um rapaz de vinte anos, alto e espigado, de cabelos crespos e castanhos. Tinha uma fisionomia plácida e algo de fraternalmente aliciante nos olhos cor de mel queimado. Filho de colonos italianos de Garibaldina, deixara a casa paterna aos quinze anos para tentar a vida em Santa Fé. O Freitas, tomado de simpatia pelo menino, transformara-o num excelente prático de farmácia.

Rodrigo entrou no consultório, que ainda cheirava a tinta fresca, sentou-se à mesa, segurou com ambas as mãos o corta-papel de marfim lavrado, e passeou o olhar em torno. Lá estavam, nas prateleiras do armário os tratados de medicina com suas lombadas severas. Contra a parede, sob a janela que dava para a rua, havia um divã

coberto de oleado preto. A um canto branquejava a mesa de operações, com um balde de metal ao lado. Num pequeno  armário todo de vidro, reluziam, frios e assépticos, os instrumentos cirúrgicos.

Rodrigo olhava para todas essas coisas com uma certa perplexidade, como se não soubesse por que ou para que estavam ali. Folheou um bloco de papéis de receita que tinham seu nome no cabeçalho, e sorriu. Sim, era médico e pretendia levar a sério a profissão, cumprir à risca o voto de esculápio. Mas o que o interessava no momento - empurrando a medicina para um plano inferior - era sua luta contra o Trindade.

Pôs-se a tamborilar na mesa com a ponta do corta-papel. Estava ansioso por saber da reação da cidade ao primeiro número d'A Farpa. Mas por onde andará essa gente que não aparece?

O prático entrou com a cuia e entregou-a a Rodrigo.

- Então, Gabriel, que é que há de novo?

- Nada que eu saiba, doutor. Rodrigo deu um chupão na bomba.

- Não ouviu falar nada sobre o jornal?

- Que jornal?

Os olhos do farmacêutico eram límpidos e puros como os duma criança. Rodrigo sorriu para disfarçar seu desapontamento.

- O Chiru não apareceu ainda?

- Não senhor.

Devolveu a cuia ao prático, ergueu-se e foi até a porta da farmácia. Naquele instante, o Cuca Lopes chegava.

- Menino - despejou ele, logo ao entrar, atirando-se numa cadeira. - O Trindade está fulo de raiva.

Os olhos de Rodrigo brilharam.

- Então o touro já sentiu a farpa no lombo?

- Diz-que está lá na Intendência, caminhando dum lado pra outro, botando a boca no mundo.

- Quem foi que te contou?

- Um primo meu que é oficial de justiça. - Cuca fez uma pausa, passou o lenço encardido pela testa, olhou firme para Rodrigo e murmurou: - Mas tu é um bicho, hein? É preciso ter caracu pra fazer o que fizeste.

- Tragam um mate pró Cuca!

Poucos minutos depois apareceu o Chiru, também esbaforido, com quase um palmo de lenço encarnado a pender-lhe do bolso superior do casaco.

- Foi uma bomba! Pior que o cometa. O Amintas, vi ele ind'agorinha, chega a estar verde de raiva.

Contou detalhes. O delegado de polícia ameaçava céus e terra: ia mandar empastelar a redação d'A Farpa, dar uma sova em Pepe Garcia, chamar o diretor do jornal à responsabilidade...

- Eles que venham! - exclamou Rodrigo, batendo no cabo do revólver que trazia à cintura.

A cuia andou a roda. Cuca estava tão excitado, que não podia parar no mesmo lugar. Rodopiava como uma piorra, cheirava a ponta dos dedos e de instante a instante exclamava:

- Este nosso Rodrigo é mesmo um bicharedo! Chiru lançou-lhe um olhar enviesado e rosnou:

- Cala a boca, Cuca. Quem te vê pensa que és nosso amigo. Todo o mundo sabe que não passas dum xereta safado, um leva e traz que acende uma vela a Deus e outra ao diabo!

Cuca Lopes recuou três passos, num movimento rítmico que foi quase uma figura de ballet.

- Eu, Chiru!? - gritou, espalmando as mãos sobre o peito. - Que injustiça! Sou amigo do Rodrigo até debaixo d'água, não é, Rodrigo? Sempre fui, sempre serei.

- Te conheço bem das casas velhas... - replicou Chiru.

- Vamos, rapazes - apaziguou-os o dono da farmácia. - Nada de briguinhas! Precisamos estar unidos pra enfrentar a canalha.

Cuca recostou-se no balcão, vexado.

- Esse Chiru sempre foi um ingrato. Não é de hoje...

- Toma mais um mate, Cuca - convidou Rodrigo. - O Chiru está brincando.

- Não, muitas grácias. Preciso ir andando. Até logo, Rodrigo, conta sempre comigo.

Saiu para o sol. O fundilho de suas calças de brim pardo reluziam. Em duas largas passadas, Chiru aproximou-se da porta e bradou:

- Vai agora beber água na orelha do Titi, sem-vergonha! Cuca voltou a cabeça, pôs a língua para fora e depois continuou a andar, rua do Comércio abaixo.

Don Pepe apareceu por volta das onze. Os outros o miraram interrogadoramente.

- Então? Que é que se conta por aí?

O pintor sentou-se, tirou a boina e passou os dedos por entre as melenas. - Estoy muy fatigado.

- Mas não ouviste comentar nada, homem? - indagou Chiru. - E impossível!

- He oído dos o três comentários.

- Favoráveis? Desfavoráveis? Desembucha!

- Ay que ver primero quien los hace...

- Deixa de conversa e conta logo tudo. Pepe ergueu os olhos.

- Por ejemplo, hablé com tu papá... Rodrigo aproximou-se, curioso.

- Ele já leu?

- Creo que si.

- Homem de Deus, que foi que ele disse?

- Nada. Cerrado como una tumba.

- Ora! Está claro que o papai não gostou do tom do jornal. Mas agora é tarde pra voltar atrás. - Sorriu. - Parece mentira, mas o primeiro que vou enfrentar por causa d'A Farpa não vai ser o Trindade nem o Amintas nem o Madruga, mas sim o meu próprio pai...

- Não te achiques, hijo.

À hora do almoço, Rodrigo foi o último a sentar à mesa. Aproximou-se de Licurgo e beijou-lhe a mão. - A bênção, papai.

O velho não disse o costumeiro "Deus te abençoe, meu filho". Apenas pigarreou e ficou a olhar para o prato, Rodrigo beijou a testa da madrinha e sentou-se em silêncio. Maria Valéria começou a servir. Durante dez minutos nenhum outro ruído se ouviu na sala de jantar além do tique-taque do relógio de pêndulo, das batidas dos talheres nos pratos e de um que outro pigarro seco de Licurgo.

Até quando ele vai ficar assim? - perguntou Rodrigo a si mesmo.

O velho, porém, não tardou a falar.

- Li o seu jornal.

Rodrigo depôs o garfo sobre o prato, encarou o pai, esperando que ele continuasse. Licurgo passou o guardanapo pelos lábios:

- O senhor, então, não quis seguir o meu conselho...

- Sei que não procedi direito. Mas meu desejo de luta era tão grande, que me deixei levar por um impulso...

-- Pois fez muito mal, e agora tem que agüentar as conseqüências.

- Nunca pretendi fugir à responsabilidade!

- O Trindade pode processar o senhor por crime de calúnia.

- Mas não se trata de nenhuma calúnia. Tudo o que escrevi sobre ele é verdade.

- O senhor tem provas?

- São coisas que todo o mundo sabe.

- Mas na hora de depor perante os tribunais, não aparece ninguém, todos se acobardam.

- Todos menos eu.

De olhos postos no prato, Maria Valéria comia no mais absoluto silêncio. Não olhava para o pai nem para o filho: era como se estivesse sozinha à mesa.

Houve uma nova pausa, prolongada e tensa.

Rodrigo amassava com o garfo uma batata, pensando no que devia dizer. Sentia-se infeliz. Era-lhe insuportável a idéia de que o velho pudesse estar zangado com ele.

- E agora, que é que o senhor acha que devo fazer? - perguntou com bruscada humildade.

Sem fitar o filho, Licurgo respondeu:

- Continuar com o jornal pra não dizerem que o senhor se acobardou. E não andar mais por aí de noite sozinho. O Trindade é capaz de tudo. Um homem precisa ter coragem, mas não deve ser temerário. Ande sempre armado, mas, por amor de Deus - acrescentou, alteando subitamente a voz e batendo com o punho cerrado na mesa - não provoque os outros sem necessidade!

Afastou o prato num gesto brusco.

- Se um filho meu fosse um cobarde, claro que eu ficava envergonhado. Mas não pense que estou contente por ter um filho desordeiro!

Rodrigo ficou vermelho. Quis continuar a comer mas não pôde. O alimento como que se lhe trancava na garganta, descia-lhe a custo pelo esôfago, caindo-lhe no estômago quase como um peso de pedra.

- O senhor sabe que não sou nenhum desordeiro.

- Não é, mas se portou como se fosse.

Entrou a negra Paula com uma travessa de arroz com galinha.

- Não quero mais nada - disse Licurgo.

- Eu também não.

- Leve esse prato pra cozinha. A preta obedeceu.

Que me resta fazer? - refletia Rodrigo. Imaginou uma solução dramática. "Pois bem, papai. Acho que sou demais nesta casa. Não quero que o senhor, o Bio e a madrinha venham a sofrer as conseqüências dos meus atos. Vou fazer uma declaração pública dizendo que eu, só eu sou responsável pelo que A Farpa publicou. Adeus, papai. Adeus, Dinda. Viu mentalmente a cena. Ergueu-se da mesa, subiu ao quarto, arrumou as malas, deixou o Sobrado e mudou-se para o Hotel dos Viajantes. Dias depois, apareceu-lhe o Bio. "Que história é essa, homem? O velho anda triste, não come, não dorme, só fala em ti. Volta pra casa. Ele mandou pedir desculpas pelo que te disse. Vem, não sejas bobo."- "Não, mano, é ainda muito cedo, a minha ferida ainda está sangrando. Deixa o velho sofrer um pouco."

- Papai - exclamou, com voz quebrada pela emoção -, sei que fiz mal em não seguir o seu conselho. Mas, por favor, me diga agora francamente o que é que devo fazer. Não quero que ninguém sofra por causa de meu... de minha...

Calou-se. O velho começou a palitar os dentes e seu rosto refletia uma tristeza preguiçosa e oblíqua de caboclo.

O senhor sabe o que aconteceu pr'aquele moço que lê ajudou a fazer o jornal?

Rodrigo teve um sobressalto:

- O tipógrafo? Não.

Foi esbordoado hoje de manhã por dois policiais. Ficou

atirado no barro, numa rua do Purgatório.

- Não me disseram nada! Quem foi que lhe contou?

- Ninguém me contou. Eu ia passando a cavalo e vi o homem caído. Eu mesmo levei ele pra casa...

Rodrigo respirava com dificuldade, a indignação a encher-lhe sufocadoramente o peito. Ergueu-se.

- Aonde vai?

- Preciso ir ver esse pobre homem.

- O dr. Matias já fez os curativos nele.

- Mas eu não posso deixar de ir vê-lo.

- Se eu fosse o senhor, nem entrava naquela casa. O homem me disse que foi obrigado a trabalhar contra a vontade. Contou até que o senhor ameaçou ele com um revólver... é verdade?

- É...

Maria Valéria olhou vivamente para o sobrinho. Rodrigo sentia-se aniquilado.

Sentou-se e por alguns segundos permaneceu calado, de olhos baixos. Depois perguntou:

- Os ferimentos são graves?

- Talvez não sejam coisas de matar, mas leves não são. O senhor sabe como é que a polícia age.

Rodrigo amarfanhava o guardanapo na mão crispada. Pensava na cara pálida e assustada do tipógrafo, lembrava-se da desagradável impressão de fragilidade que tivera ao segurar-lhe o braço magro... Miseráveis! Covardes! Surrarem um pobre homem fraco e doente...

Licurgo pigarreou.

- Não vai comer mais nada, menino? - perguntou Maria Valéria.

Rodrigo sacudiu negativamente a cabeça. Levantou-se e deixou a sala em passo acelerado.

Subiu para a água-furtada. Escancarou a janela, sentou no peitoril e ficou a olhar distraidamente para as copas do arvoredo da praça. Mundo absurdo! Um homem bem-intencionado ergue-se corajosamente para lutar contra o erro, a violência e a injustiça e no processo mesmo dessa luta fere inadvertidamente um inocente...

Tentou fumar. O cigarro, porém, lhe soube mal. Jogou-o fora, irritado. Pôs-se a assobiar algo sem melodia. Olhou a lombada dos livros, apanhou um velho volume e abriu-o ao acaso. Poemas de Heine em alemão. Na margem superior duma das primeiras páginas, estava escrito um nome em tinta desbotada: Gertrude Weil. Quem seria? Mas que importa? Quem sou eu? Que sou eu? Apenas um vaidoso, um feixe de apetites e contradições? Um homem decente? Um farsante? Que devo fazer? Voltar atrás, ou continuar lutando? Claro que vou continuar! O tipógrafo tuberculoso não será a última vítima desses bandidos. (Vou mandar à casa dele um envelope com duzentos mil-réis dentro.) Outras cabeças rolarão... Talvez a minha. Andréa Chénier ao pé da guilhotina...

Olhou para a campânula do velho fonógrafo. Precisava ouvir um pouco de música. Algo de forte, para reanimá-lo. Tamagno numa das árias de Andréa Chénier. Caruso na Celeste Aída...

Tirou o casaco, fechou a porta, apanhou um livro ao acaso e estendeu-se no catre. O melhor mesmo é dormir, deixar que as águas agitadas serenem e toda a sujeira caia no fundo. Lembrou-se duma peça de Ibsen que lera havia pouco: O inimigo do povo, O dr. Stockmann estava com a verdade, por isso não trepidara em ficar sozinho contra o resto da população de sua cidade. Se fosse necessário ele, Rodrigo Cambará, ficaria sozinho contra toda Santa Fé. Inclusive contra meu pai - murmurou, sentindo ainda o travo amargo de seu ressentimento para com o velho. Leu uma página inteira sem compreender nada. Os olhos seguiam as palavras, mas a atenção estava nos pensamentos e estes corriam num tumulto.

Com o livro pousado sobre o peito, Rodrigo modorrava, olhando fixamente para um desenho que a umidade traçara na parede e que lhe lembrava a representação dum rio num mapa. O rio Amazonas - dizia dona Malvina - é o rio mais caudaloso do mundo velho sem porteira - exclamou Liroca. A ordem dos fatores não altera o produto - insistia a mestra, riscando algarismos e figuras geométricas no quadro negro. A hipotenusa e o cateto... o catete era um bicho... Não irás ao Catete, marechal... Escreverei um artigo de fundo no próximo número provando por a + b que a hipotenusa não irá ao cateto...

Dormiu um sono profundo. Acordou duas horas mais tarde, banhado em suor. Deixou o catre, aturdido, caminhou às tontas ao redor da água-furtada e, por alguns segundos, não atinou com a razão por que estava ali. De repente lhe veio à mente a lembrança desagradável do seu diálogo com o pai à hora do almoço. Que bom se tudo tivesse sido um sonho!

Por volta das cinco da tarde, Rodrigo foi chamado ao escritório, onde encontrou o pai em companhia de Joca Prates e Pedro Teixeira. Cumprimentou estes últimos com certa reserva, pois num relance compreendeu que - republicanos e íntimos de Titi Trindade - ali estavam em cumprimento duma missão política. De resto, a cara sombria do velho era um indício de que algo desagradável se estava passando.

- Sente-se.

- Estou bem de pé, papai.

Licurgo procurou resumir a situação. O coronel Prates e o coronel Teixeira tinham vindo em nome do intendente...

- Não senhor - explicou Joca Prates. - Nós não viemos propriamente em nome do coronel Trindade. Viemos em nosso nome...

- Pois é - interrompeu-o Licurgo, impaciente, olhando para o filho. - O que sei é que querem que o senhor pare com seus ataques à situação.

Pela maneira como o pai resumira o caso, Rodrigo sentiu que ele repudiava aquela tentativa de conciliação.

- Isto é... - disse Joca Prates, brincando com a corrente do relógio - nós somos amigos do Curgo e do senhor, dr. Rodrigo, não queremos que esse negócio continue assim, porque pode acabar mal...

Rodrigo sorriu.

- E o que é que o senhor chama de "acabar mal"?

- Ora, acabar em briga, em vias de fato, não é, coronel? Joca Prates voltou os olhos para o companheiro, que sacudiu lentamente a cabeça.

Houve uma curta pausa. Licurgo olhava fixamente para o retrato de Júlio de Castilhos. Rodrigo continuava de pé, a encarar com firmeza Joca Prates, que se remexeu na cadeira.

- O coronel Trindade até não queria que nós viéssemos aqui. Os senhores sabem, ele é um homem violento. Mas eu insisti. Ora, que diabo, pensei, no final de contas o Curgo também é republicano... não custa falar... pois é... às vezes falando a gente arranja as coisas, não é coronel?

Com as mãos trançadas sobre o ventre, os olhos pesados como se ainda não tivessem espantado o torpor da sesta, Pedro Teixeira tornou a sacudir a cabeça, num sonolento acordo.

- Devo esclarecer aos senhores que meu pai nada tem a ver com o que escrevi Na Farpa. A responsabilidade total é minha, só minha. Papai até reprovou a linguagem que usei...

Licurgo interveio:

- Não reprovei coisa nenhuma! O que o senhor fez está muito bem-feito e agora não voltamos atrás.

Fitou um olhar duro nos visitantes e acrescentou:

- Podem dizer isso a quem interessar.

-- É o diabo - murmurou Joca Prates. - Nós queríamos evitar que essa história azedasse. Sei como são essas coisas. Pode dar em droga...

- Pode até correr sangue - reforçou Pedro Teixeira. Rodrigo sorriu.

- Sangue? Há muito tempo que corre sangue impunemente neste município, cavalheiros. Se os senhores têm boa memória, devem estar lembrados do que aconteceu ao Tito Chaves. O sangue desse moço empapou o barro da rua Voluntários da Pátria. Ninguém me contou: eu vi. Inda hoje de manhã os beleguins do Trindade quase mataram a espadaços um pobre tipógrafo que teve a audácia de me ajudar a compor o jornal. E é para o povo ficar sabendo dessas barbaridades e de muitas outras que eu fundei A Farpa e hei de mantê-la até o dia em que nossa gente crie vergonha e ponha o Titi para fora da Intendência a toque de caixa!

Estava vermelho, excitado, com vontade de levar longe, muito longe aquele destampatório. O pai, porém, cortou-lhe a palavra com um gesto. Os dois visitantes consultaram-se com o olhar. Joca Prates cuspiu na escarradeira, limpou os lábios com o lenço e murmurou:

- É o diabo...

Fez-se um silêncio de constrangimento.

- Com boa vontade tudo pode se arranjar - tentou ainda o pai de Ritinha.

Licurgo estava sentado numa posição rígida, as mãos a segurar com força as guardas da cadeira. Seu rosto era a máscara mesma da obstinação.

- No sábado vai aparecer A Voz da Serra - contou Joca Prates. - E eles vão lê atacar forte, Curgo.

- Que ataquem!

- E ao senhor também, doutor.

- Não estou esperando outra coisa.

- Mas é que a gente podia dar um jeito... Somos todos republicanos. Essas brigas de família só trazem vantagens prós maragatos.

- Agora é tarde demais - disse Licurgo.

Os visitantes levantaram-se pesadamente, com a relutância de quem ainda não considera dita a última palavra.

- Bom, se a coisa é assim, nós vamos embora, não é, compadre?

Licurgo acompanhou-os até a porta.

- Quero que vassuncê compreenda, Curgo - começou Joca Prates, quando já estava no vestíbulo.

- Eu compreendo muito bem, Joca. Mas não tem jeito. Com certa impaciência foi empurrando o outro na direção da escada. Pedro Teixeira já estava na calçada e começava a fazer um crioulo.

- Vassuncê é um homem impossível - murmurou Joca Prates, sacudindo lentamente a cabeça. No meio da escada voltou-se ainda:

- Se o dr. Júlio de Castilhos estivesse vivo, nada disso acontecia.

As palavras que Licurgo Cambará disse a seguir não foram propriamente articuladas: foram escarradas para baixo, com raiva surda:

- Se o dr. Júlio de Castilhos estivesse vivo, esse sacripanta do Trindade não estava na Intendência. Estava mas era na cadeia!

Rodrigo tomou um banho rápido, meteu-se numa roupa de linho branco, levou um bom tempo diante do espelho a dar o nó na gravata e depois, assobiando a ária do conde Danilo, A viúva alegre, embebeu o lenço em perfume e ajeitou-o no bolso superior do paletó. Estava de novo alegre, a cabeça leve, o peito desoprimido. As palavras do pai soavam-lhe alvissareiramente na memória. Não reprovei coisa nenhuma. O que o senhor fez está muito bem-feito. Isso significa que ele fez as pazes comigo, que estou perdoado. Papai é um homem imprevisível. À hora do almoço me chama de desordeiro: agora me apoia em toda a linha... Seja como for, é melhor assim. Fico sem remorsos.

- Aonde vai a esta hora? - perguntou Maria Valéria.

- Dar uma volta. Estou ansioso por saber qual foi a reação da cidade ao primeiro número d'A Farpa.

Ela mirou o afilhado de alto a baixo.

- Não sei de quem foi que você herdou essa faceirice.

- Não herdei de ninguém. É minha mesmo. Até logo. Desceu os degraus, lépido. Na calçada parou, olhou na direção da Intendência e sorriu. O Sobrado e o paço municipal estavam frente a frente, pareciam medir-se de longe como duas cidadelas adversas.

Entrou na Estrela d'Alva, abraçou Chico Pão, perguntou-lhe se tinha gostado d'A Farpa e, antes que o homem tivesse tempo de gaguejar seus elogios saiu por outra porta, entrando em seguida em sua farmácia. Ludovico, o aprendiz, estava recostado no balcão, lendo o Almanaque de Ayer. Ergueu os olhos assustados e Rodrigo então descobriu com que bicho o rapaz se parecia.

- Como vais, ratão-do-banhado?

Ludovico sorriu, encafifado. Temendo que ele não tivesse gostado da brincadeira, Rodrigo tirou do bolso um patacão, gritou:

- Toma! - e atirou a moeda para o guri, que a apanhou

no ar.

- Como vai o movimento, Gabriel?

O prático, metido num guarda-pó branco muito asseado, respondeu:

- A féria de hoje vai ser boa, doutor.

Rodrigo olhou em torno e viu alguns claros nas prateleiras.

- Precisamos ver as nossas faltas.

- Por falar nisso, chegou ontem um viajante da Drogaria Inglesa.

- Pois quando o homem aparecer, faz os pedidos. Tu entendes disso melhor que eu.

Leu no rosto do outro a satisfação que estas palavras lhe causavam.

- Precisamos criar aqui uma seção de perfumaria. Olha, Gabriel, vai hoje ou amanhã lá no Pitombo e encomenda um balcão novo, com frente de vidro, assim como uma vitrina, compreendes?

É pra botar os perfumes. Mas quem vai fazer os pedidos sou eu. Em matéria de perfumaria sou doutor.

Abriu a caixa, tirou dela um chumaço de cédulas e, sem contá-las, meteu-as no bolso.

- Sabes duma coisa, Gabriel? Vou mandar buscar de Porto Alegre uma caixa registradora.

Percebeu que o prático não sabia de que se tratava.

- Nunca viste? É uma máquina pra guardar dinheiro. Aperta-se nuns botões pra marcar a importância da venda, depois se force uma manivela e a gaveta se abre automaticamente.

- Veja só...

- Nossa farmácia vai ser a primeira casa comercial de Santa Fé a ter uma registradora. Estamos no século XX, Gabriel. O século do progresso!

O prático escutava-o, com uma luz de afeição quase filial a animar-lhe os olhos pueris.

- Bom. Se alguém perguntar por mim, diz que fui até o Schnitzler.

Ganhou a calçada e começou a descer a rua. À primeira esquina encontrou o Liroca, que o envolveu num abraço.

- Li o teu jornal, Rodrigo - disse ele, grave e afetuoso. - Está bom, muito bom, especial! Teus escritos até me lembraram os do Conselheiro Gaspar Martins. É bem como dizia o finado meu pai: "A quem Deus promete não falta".

- Ó Liroca, não me podias fazer elogio maior!

O narigão de José Lírio reluzia, pontilhado de cravos.

- Agora tu precisas te cuidar muito - segredou, com ar de conspirador. - Essa gente é capaz de tudo.

Rodrigo ia continuar seu caminho, mas o outro segurou-lhe o braço.

- Não quero ser importuno, mas quando é que me arranjas aquele negócio?

- Que negócio?

- A minha volta ao Sobrado.

- Já está quase arranjado - mentiu. - Não te aflijas. É questão de dias...

As feições de Liroca, de ordinário fixas numa expressão de rabugice, adoçaram-se.

- Deus te pague!

E enquanto Rodrigo se afastava, já completamente esquecido dele, José Lírio ficou a resmungar elogios ao amigo, ali parado à esquina, com o lenço encarnado a esvoaçar à brisa da tarde.

À frente da Confeitaria Schnitzler, Rodrigo encontrou o tenente Rubim Veloso, de braços abertos. Estava à paisana, os lábios arregaçados num sorriso que lhe descobria toda a dentuça.

- Ah! O homem do dia. Venha de lá um abraço!

Rodrigo estava surpreendido ante aquela inesperada cordialidade. Depois do baile de 31 de dezembro encontrara o tenente Rubim uma única vez e recebera dele um cumprimento seco.

- Sabe que li seu jornal. Está esplêndido!

- Pensei que, como partidário do marechal... O outro atalhou-o:

- Não se trata do marechal Hermes nem do senador Rui Barbosa. O que vejo no Farpa é, antes de tudo, a voz dum homem que ergue a luva do desafio, e faz isso com inteligência, coragem e altivez. Sim senhor, meus parabéns!

Entraram na confeitaria, sentaram-se a uma mesa. A dentuça do tenente continuava exposta.

- O mundo é dos fortes, da águia e não do cordeiro. Mas vamos tomar alguma coisa!

Marta Schnitzler aproximou-se. Estava vestida de branco e seus cabelos recendiam a macela. Rodrigo aspirou o perfume da alemãzinha e teve o desejo de enlaçar-lhe a cintura, sentá-la sobre os joelhos, beijar-lhe a boca, manipular-lhe os seios. Pediram cervejas.

- Há homens que se exprimem através da arte - disse Rubim, tirando o pince-nez, bafejando as lentes, e limpando-as com o lenço.

À paisana, seu todo de boneco desengonçado ficava ainda mais acentuado.

- Um quadro - continuou o oficial - uma escultura, uma sinfonia... Mas há outros que se exprimem na luta, na ação. Um ato de coragem e hombridade vale tanto quanto a Odisséia de Homero, o Daviã de Miguel Ângelo ou a Patética.  Beethoven, César, Napoleão, Bismarck são artistas a seu modo. O clã do cordeiro objetará que, pra eles atingirem a glória, será necessário morrer muita gente. Mas que importa a morte de alguns milhares ou milhões de seres humanos num mundo que está cada vez mais atravancado? Qual é o destino das massas senão trabalhar e morrer a fim de permitir a floração dos super-homens? A Revolução Francesa com toda a sua sangueira está plenamente justificada por ter tornado possível Napoleão Bonaparte. Napoleão está completamente redimido de qualquer pecado por ter tornado possível o nacionalismo. E não é só isso. Os maiores acontecimentos do século XIX devem-se a Napoleão!

Marta trouxe as cervejas.

- À sua saúde, dr. Rodrigo!

- Não me chame de doutor, senão serei obrigado a chamar você de tenente.

- Seja! À sua saúde, Rodrigo!

Rubim bebeu com gosto e lambeu a espuma que lhe ficara nos lábios.

- Agora vou lhe fazer uma confissão... - disse. - Na noite em que nos conhecemos lá no clube, não gostei de sua cara...

- Ah... sim? Mas por quê?

A Rodrigo era difícil acreditar que alguém pudesse não gostar dele.

- Ora, pareceu-me um desses muitos moços bonitos, enfants gâtés, filhinhos de papai que se adornam dum diploma e vêm parasitar à sombra das tradições da família...

Rodrigo escutava, sorrindo, enquanto com a ponta da unha do indicador raspava o rótulo úmido da garrafa.

- E eis que de repente surge A Farpa. Agora estou ansioso por ver a réplica. Calculo que o revide seja mais feroz que o ataque.

- Eu também. A Voz vai aparecer sábado.

- Depois vou esperar ansioso a sua tréplica.

- E como acha que vai terminar tudo isso?

- A bala! - exclamou Rubim, desatando numa gargalhada assustadora que fez avançar o limpa-trilhos da dentadura, crescer as bochechas, dando-lhe ao rosto um ar entre imbecil e simpático de boneco de ventríloquo. O acesso de riso convulsivo durou alguns segundos.

- Não sabe se o coronel Jairo leu o meu jornal? Rubim tornou a encher o copo.

- Leu.

- Que foi que achou?

- Ora, você sabe, o coronel não é bem deste mundo. É um homem culto, de coração puro. Vive nas esferas positivistas com aquela tolice da religião da humanidade, a acreditar em coisas que não existem nem podem existir. Não tem os pés bem plantados na terra. Pois o homem leu o jornal, olhou para mim, mordeu os bigodes e disse: "Esse rapaz tem mesmo fibra e talento. Mas o ataque me parece um tanto forte..."

- Um tanto?

Rubim desatou nova gargalhada. Rodrigo mirava-o, fascinado por aquela fealdade paradoxalmente sedutora.

- Devo fazer uma restrição. Não. Muitas restrições. O que admiro em você é o espírito combativo, a coragem de se rebelar contra a situação, estando, como está, numa minoria, não direi esmagadora, mas com mais precisão, esmagável. Mas não concordo com certos termos de seu editorial. Refiro-me àquela história de opressor e oprimido, etc... O homem fraco não merece viver. Não vale a pena quebrar lança por ele.

Rodrigo sorria. Não estava disposto a discutir. A admiração do tenente pela sua coragem bastava-lhe. No momento nem  chegava a desejar que o outro estivesse de acordo com todas as suas idéias.

- Bem, enfim cada qual pensa a seu modo...

- Você mesmo no fundo concordará comigo. Há de chegar a hora em que o que vale mesmo é a ação, a violência e não essa conversa fiada sobre direitos, justiça e não sei mais o quê.

Em pensamento Rodrigo viu-se de revólver em punho a intimidar o tipógrafo.

- Não creio...

No balcão onde estava embrulhando uma cuca, Júlio Schnitzler fez-lhe um sinal amistoso. Rodrigo notou com satisfação que Marta o namorava, postada à porta que dava para a cozinha, de onde vinha um agradável cheiro de molho de manteiga.

Rubim baixou a voz, olhou o interlocutor bem nos olhos e disse:

- Vou lhe fazer outra confissão, e esta a maior de todas. Quer saber qual é a paixão dominante da minha vida? A política.

- Engraçado... Pensei que fosse a carreira das armas.

- Também é. Não vê que ambas têm uma analogia profunda?

- Como?

- Ambas dão aquilo que mais ambiciono: força, poder, a volúpia de mandar, conduzir homens. Outra coisa não desejam todos esses políticos pequenos e grandes, esses chefetes distritais, municipais, estaduais e federais. No entanto, vivem a falar em direito, justiça e democracia, pura conversa fiada para iludir o eleitorado, porque, na verdade, o que querem mesmo é poder discricionário. É ou não é?

- Não é bem assim... Rodrigo cocava a alemãzinha.

Rubim tornou a encher o copo e a enxugá-lo em seguida, num largo sorvo. Tocou o peito do outro com o indicador entesado.

- É por isso que gosto do senador Pinheiro Machado. Sabe o que quer, não esconde objetivos e porta-se de acordo com suas ideias. Conhece aquela sua frase: "Para governar este país não é preciso surrar, basta erguer o rebenque".

- Não acredito que o senador tenha dito isso.

- Pois eu acredito. O estilo é dele. Pinheiro Machado é um nietzschiano que provavelmente nunca leu Nietzsche. É a grande figura do teatro político do Brasil, a força por trás do trono.

- Um Metternich guasca? Um Talleyrand dos pampas? Um Maquiavel serrano?

- Nada disso! Por que buscar símiles estrangeiros? Sejamos nacionalistas. Nossa mania de imitação faz com que os argentinos nos chamem de macaquitos. - Mudou de tom. - Por falar nisso, estou convencido de que uma guerra entre o Brasil e a Argentina é inevitável, questão apenas de tempo...

- Ora, tenente, não vejo razão...

- E será preciso razão para começar uma guerra?

- Bom, por algum motivo as guerras começam...

- Diga-me uma coisa: quando dois tigres se defrontam e agridem na floresta, há alguma razão para isso?

- Mas o caso é diferente.

- Não se iluda. O Brasil e a Argentina são as duas potências mais fortes da América do Sul e portanto adversários naturais, competidores natos... Uma guerra entre ambos é uma fatalidade e, se a coisa é assim, o melhor é que comecemos desde já a pensar realisticamente. Tivemos há pouco um atrito por causa das Missões. Outros virão... E eu lhe asseguro que o Exército não está dormindo.

Tirou um lápis do bolso e esboçou um mapa da América do Sul no mármore da mesa.

- Olhe, aqui está o Brasil, aqui a Argentina. É possível que eles invadam por ali... Na primeira fase da campanha, tudo indica que eles nos levarão de roldão até, digamos, Santa Catarina ou Paraná... É aí que nossa contra-ofensiva começará para só terminar em Buenos Aires. Nosso potencial humano é maior, nossos recursos econômicos mais largos.

Entrou em detalhes técnicos. A atenção de Rodrigo já não seguia mais as palavras do oficial. Não estava interessado naquela guerra hipotética entre a Argentina e o Brasil, mas sim em sua guerra particular contra Titi Trindade e seus asseclas. E naquele exato instante estava interessado também em Marta, que não tirava os olhos dele, e, muito corada, lhe sorria um sorriso entre tímido e provocante.

- Menina, outra cerveja! - gritou Rubim. E prosseguiu em sua ofensiva rumo de Buenos Aires. Marta aproximou-se para pôr a nova garrafa sobre a mesa. Rodrigo baixou os olhos para os tornozelos da rapariga, imaginando as pernas e as coxas que a saia escondia.

- Desafio a que me contestem! - exclamou o tenente de artilharia. - Os limites do Brasil devem ir no mínimo até a margem esquerda do rio da Prata. No mínimo! Foi um erro histórico entregar a Colônia do Sacramento aos castelhanos!

Naquele momento Pepe Garcia entrou no café e Rodrigo chamou-o.

- Senta, homem. Já conhecias o tenente Rubim Veloso? Don Pepe olhou para o oficial e inclinou de leve a cabeça.

- Que é feito de ti? Estava com medo que te tivessem prendido... ou assassinado.

O pintor estava sério. Olhou para os lados, com ar misterioso.

- Creo que me siguen, hijo.

- Quem?

- No sé. Es un presentimiento...

- Estás com medo?

- Miedo, yo? No me conoces.

- Toma alguma cousa.

O espanhol pediu um cálice de conhaque, bebeu e limpou os bigodes com a manga do casaco.

- El miedo es un preconcepto burguês! Voltou-se para Rubim, e encarou-o firme.

- No tengo el más mínimo placer en conocerlo, capitán!

XII

Sábado pela manhã, Chiru entrou intempestivamente no Sobrado com um número d'A Voz da Serra na mão.

- Olha só o que o canalha escreveu!

Bufava, furioso, passando atabalhoadamente o lenço pela cara gotejante de suor. Rodrigo pegou o jornal com sofreguidão. O ataque vinha na primeira página: era um editorial composto em tipo negrito com cercadura dupla. O título, em caracteres maiúsculos e grossos, era: "Sepulcro caiado".

- Te prepara, menino - disse Chiru - porque a coisa é braba.

A simples leitura do cabeçalho, Rodrigo sentiu montar-lhe no peito uma raiva destruidora que o deixou estonteado, anuviando-lhe os olhos, impedindo-o de ler com clareza. Entrou no escritório e disse ao amigo com voz fosca:

- Fecha essa porta.

Chiru obedeceu. Rodrigo sentou-se ao bureau e leu o editorial - a primeira vez com açodamento e um ódio surdo, sem entender muito bem o que lia, pois a cada momento sua atenção fugia do artigo e ele ficava a imaginar coisas excitantes - dar uma sova no Amintas... entrar na Intendência, ir direito ao gabinete do Titi, segurá-lo pela lapela do casaco e partir-lhe a cara... correr à redação d'A Voz e quebrar tudo: vidros, móveis, máquinas, cabeças...

Leu o artigo duas vezes. Era duma torpeza sem par. A verrina era tão vil, tão sórdida, que chegava a cheirar mal.

De onde partem as pedradas traiçoeiras que pretendem atingir o honrado governo deste município? De alguma casa que não tem telhado de vidro? Não. Elas partem duma casa vulnerabilíssima, do Sobrado dos Cambarás, sepulcro caiado, mansão do vício, da iniqüidade, da desídia e da podridão; duma casa que, para usarmos a imagem do grande Guerra Junqueira, é sinistra e suja como o lençol das velhas prostitutas; duma casa cujo chefe, em vez de dar-se o respeito que se exige de todo o cidadão digno desse título, afronta nossa sociedade vivendo amancebado com uma mulher por ele teúda e manteúda, a quem instalou numa casa à rua dos Farrapos, como é de todos sabido e notório. É lá que ele passa muitas de suas noites em orgias inconfessáveis.

Do meio para o fim, o artigo assumia um tom sarcástico.

E agora que já demos ao pai o que ele merecia, vamos ao filho. Não gastaremos muita cera com tão ruim defunto. Que importância pode ter o dr. Rodrigo Cambará (ai, doutor da mula ruça!) esse mocinho pelintra que pensa conquistar Santa Fé com sua "formidável" inteligência e seus dotes físicos? Ai, Rodriguinho! Onde foi que compraste tuas botininhas de cano de camurça? E as tuas águas-de-cheiro? Quem confeccionou essas roupinhas que te fazem o dandy mais completo de Santa Fé? Teria sido o Salomão Padilha, teu amiguinho particular? Dizem que trouxeste de Porto Alegre muitos caixões com bugigangas, e que entre estas veio um gramofone, com chapas de Caruso. Será que o grande tenor canta a famosa canção intitulada Ismália Caré? O estribilho é assim:

Ai Licurgo Cambará Ai Licurgo Cambaré Onde está, onde estará A tua Ismália Caré?

Ouvimos também dizer que o dandy trouxe muitos vinhos e conservas estrangeiras. Decerto tudo isso é para as orgias do Sobrado, em que tomam parte ele, o pai, o irmão e outros cafajestes que infestam a nossa cidade.

Como tudo aquilo era abjeto, barato, indigno!

Rodrigo ergueu-se, brusco, foi até uma das janelas, olhou na direção da Intendência e começou a soltar impropérios.

Voltou-se para o amigo.

Depois disso, Chiru, só a bala - disse com voz apertada.

- É a única resposta.

- Calma, menino!

- Envolverem nisso meu pai, minha casa, minha família - vociferou, apanhando de novo o jornal. - Escuta só. Ai, Rodriguinho! Me tratando como se eu fosse um efeminado. Me comparando com o Salomão. Só a bala, Chiru.

- Não te precipites. Não caias na armadilha que te prepararam. Calma, calma.

Rodrigo, porém, não lhe dava atenção. Desferiu um pontapé na cesta de papel e virou-a.

- Será que o papai já leu essa sujeira?

- Se não leu, vai ler...

- E a tia? Que é que a Dinda vai dizer de tudo isso?

- É o diabo...

Rodrigo estava ferido. Esperava dos inimigos muitos insultos. Imaginara-os, porém, de outra natureza. Preferia que o Amintas lhe tivesse dito os nomes mais sujos do dicionário, mas que o houvesse tratado de homem para homem. No entanto o cafajeste fizera humorismo, como se ele, Rodrigo Cambará, fosse um menino de colégio e ainda por cima um maricas!

Atirou-se numa cadeira e ali ficou a olhar fixamente para Chiru.

- Com que cara vou aparecer pró papai? Me diga, com que cara?

Naquele instante a porta abriu-se e Licurgo entrou. O filho pôs-se de pé como um autômato, voltando os olhos instintivamente para o jornal.

Licurgo, que fizera o mesmo, murmurou:

- Já li.

Sentou-se e começou a fazer um cigarro. Suas mãos estavam um tanto trêmulas. Por alguns segundos ninguém falou.

- Me dê o fogo, Chiru.

Chiru apalpou os bolsos, atrapalhado, e levou um tempão para encontrar os fósforos. Licurgo acendeu o cigarro.

- Eu sabia que eles iam me atacar por esse lado. A culpa é nossa: foi o seu jornal que começou os ataques pessoais, meu filho.

Rodrigo olhava para o chão, de crista caída. Queria dizer alguma coisa, pedir perdão ao pai ou blasfemar, mas não conseguia arrancar nada do peito.

- Não tenho do que me envergonhar - disse Licurgo, depois de algum tempo. - Nem tenho que dar satisfações a ninguém.

Os outros continuavam calados. Erguendo os olhos para o filho, o senhor do Sobrado perguntou:

- Quando é que vai sair o próximo número do jornal? Era a última coisa que Rodrigo esperava ouvir.

- Não sei... Talvez amanhã.

- Então precisamos começar a trabalhar desde já. Rodrigo bravateou:

- Antes de preparar o segundo número Da Farpa, acho que devia sair e quebrar a cara do Amintas.

Licurgo sacudiu a cabeça, numa lenta mas obstinada negativa.

- Não, meu filho. Essas coisas a gente não faz assim. A esta hora o canalha deve estar fechado em casa, com guardas na porta, e quando sair pra rua há de ser com um batalhão atrás. Já lhe disse mais duma vez que não confunda coragem com temeridade. Pra gente ganhar uma batalha é preciso chegar vivo ao fim.

- Isso, coronel! - exclamou Chiru - isso! Voltou-se para Rodrigo:

- Vamos, homem. Começa a escrever, senão eles vão pensar que nos acovardamos. Aproveita enquanto a coisa está quente.

- Vai então chamar o Pepe. Temos que começar agora mesmo.

Compunha mentalmente frases tremendas para arrasar o Trindade e o Amintas.

Chiru retirou-se. Rodrigo teve ímpetos de abraçar o pai, mas não ousou o gesto. Como achasse que devia dizer alguma coisa, balbuciou com afetuosa humildade:

- O senhor então me autoriza a continuar? Licurgo falou sem olhar para o filho.

- Quando se pega na rábica do arado, deve-se ir até o fim do rego.

Quando se viu a sós no escritório, Rodrigo escancarou as janelas e pôs a funcionar o gramofone. Caruso encheu a sala com sua voz vibrante e metálica. Era a grande ária de Radamés. Rodrigo acendeu apressadamente um cigarro, sentou-se ao bureau, mudou a pena da caneta e tirou da gaveta algumas tiras de papel em branco. Tinha já achado a forma que ia dar à sua resposta ao cachorro do Amintas. Escreveu o titulo: "Carta aberta a um crápula". Apanhou A Voz da Serra e releu, agora com mais calma, o editorial. Viu em pensamento a cara pálida do rábula, chegou até a sentir o cheiro enjoativo do perfume que ele usava, e mentalmente esbofeteou-o muitas vezes, com a palma e as costas da mão, como se estivesse a lavar a tapas aquelas bochechas repulsivas. Ficou, depois, a escutar o tenor, pensando vagamente em faraós, pirâmides, guerreiros...

O que sentia agora era uma raiva fria e fina, de mistura com a sensação de haver sido vítima duma formidável injustiça. De certo modo julgava-se inatacável ou pelo menos invulnerável. Quando lançara A Farpa, estava decidido a manter-se sereno, viesse o que viesse, fosse qual fosse a linguagem de seus inimigos no revide. No entanto, o editorial do crápula - era forçoso confessar - fizera-o perder as estribeiras, tocando-o fundo. Agora, à idéia de que Flora já tivesse lido aqueles insultos imundos à sua pessoa, a seu pai, a seu irmão, à sua casa - sim, porque aquilo atingia até tia Maria Valéria! - ele compreendia que a coisa chegara a um ponto em que tinha de passar do terreno da palavra escrita para o da reação física. No entanto A Farpa precisava sair, para que a população de Santa Fé visse que ele não recuara e estava disposto a tudo.

O tenor aproximava-se da frase final. Rodrigo levantou-se, como se a ele e não a Caruso competisse arrancar do peito um si natural. Un trono vicino al ciel! - cantou Radamés. O copo vazio, em cima do bureau, vibrou. A voz de Caruso sumiu-se ficando apenas o chiado da agulha a raspar no disco. Rodrigo fez parar o gramofone, voltou para a mesa e começou a carta:

Pústula: Quando Deus, num momento infeliz de mau humor, resolveu criar-te, viu logo que não eras digno dum ventre de mulher, e por isso te fez nascer numa cloaca, como produto do viscoso conúbio entre uma ameba disentérica e um verme recém-cevado no cadáver dum chacal.

Releu o período, achou que estava bem, e continuou: És um aborto langanhento, e o simples fato de existires constitui um formidável insulto ao género humano. Pretendeste atingir com tua baba ofidica minha casa, minha família, minha pessoa, mas o que fizeste, molusco, foi apenas cuspir para o céu: a podridão que jorrou de tua pena mercenária caiu-te inteira e fedorenta nessa cara ridícula de funâmbulo.

Ergueu-se, ficou a caminhar na sala dum lado para outro, com o papel na mão, mordendo freneticamente a ponta da caneta. Aquilo estava ainda fraco. Era preciso ferir o outro mais fundo. Sentou-se de novo e escreveu:

Perguntas onde comprei as minhas botinas de cano-de-camurça. Eu te direi, antes de mais nada, que as comprei com dinheiro limpo, honestamente ganho, e não com dinheiro sujo, roubado aos cofres públicos, como é o com que te paga o Titi Trindade, teu patrão. E sabes para que as comprei? Foi para te aplicar um pontapé no traseiro na primeira oportunidade em que te encontrar, seja onde for, estejas com quem estiveres. Porque se a um macho se bate na cara, a um invertido se bate no rabo!

- Aqui está o que eu queria! - exclamou, dando uma palmada na mesa.

Quando don Pepe chegou, já sem casaco e de mangas arregaçadas, Rodrigo mostrou-lhe o que acabara de escrever.

- Precioso, hijito, precioso. Ahora, a trabajar y a trabajar.

- Precisamos lançar A Farpa amanhã.

- Imposible. Estoy solo.

- Desta vez vamos publicar o jornal só com duas páginas. É por causa do efeito rnoral. Tem de sair logo, pra coisa não esfriar. Começa a compor esta carta aberta. Vamos, desce pra oficina. Vou agora dar a dose do Trindade.

À tardinha daquele mesmo dia, Neco entrou no Sobrado e, com ares misteriosos, arrastou Rodrigo para a janela, mostrando-lhe um homem que estava parado na calçada fronteira.

- Sabes quem é aquele cabra?

- Não.

- O Dente Seco.

- Opa!

Rodrigo debruçou-se à janela para olhar melhor, já com um desejo formigante de interpelar o forasteiro. Neco, porém, puxou-o para trás, fazendo com que ambos ficassem a observar o gaúcho dum ângulo de onde não pudessem ser vistos por ele.

- Sabes o que me aconteceu? Pois o bandido hoje me entra todo pimpão na barbearia, pendura o chapéu no cabide e senta-se na cadeira. Eu, que não conhecia o bicho, perguntei: "Cabelo ou barba?" Ele respondeu seco: "Barba". Olhei pra cabeleira dele e fiquei com vontade de meter a tesoura. O bicho é cabeludo, Rodrigo, os cabelos dele dão pra, fazer trança. Comecei a examinar a cara do homem pelo espelho. Ele viu que eu estava olhando e perguntou: "Sabe quem sou eu?" Respondi que não. E o homem: "Me chamo Silvino Neves, mas me tratam por Dente Seco".

- E tu, que disseste?

- Ora, fiquei mais pra lá que mais pra cá, e achei melhor dizer que já conhecia ele de nome. Ensaboei a cara do cabra e indaguei assim com ar de quem não quer nada: "Ainda que mal pergunte, que é que o patrício anda fazendo por estas bandas?" E tu sabes o que foi que ele respondeu? "Vim fazer um servicinho pró coronel Trindade." Comecei a passar a navalha no assentador. "Que servicinho?" E ele, mais que depressa: "Dar um susto nuns mocinhos bonitos". E meio que riu. Quando eu já estava barbeando o bandido, ele revirou os olhos pra cima, viu o meu lenço colorado e disse: "Pelo que vejo, o amigo é maragato, não?" "Dos quatro costados", respondi. "Pois então me faça essa barba direito, senão nos estranhamos."

- E tu... fizeste direito?

Rodrigo não tirava os olhos de Dente Seco, que continuava no mesmo lugar, picando fumo com uma faca de lâmina larga, e a olhar sempre fixamente para o Sobrado.

- Naturalmente - respondeu Neco. - Mas quando passei a navalha nos gargomilos do homem me veio uma idéia. Se eu aperto o fio agora, talvez salve a vida de muita gente, talvez salve até a vida do Rodrigo. Palavra de honra, bandido não sou, mas que senti cócegas nos dedos, isso senti. E tu sabes duma coisa, menino? O diabo parece que adivinhou meus pensamentos e perguntou: "Vassuncê já degolou alguém?" Respondi que não. "Pois então não sabe o que perdeu."

Rodrigo observava o bandido. Era um homem de meia-idade, baixo e fino de corpo. Estava de chapéu de barbicacho, camisa branca, lenço verde ao pescoço, bombachas de riscado e botas muito sujas. Como ele erguesse a cabeça para olhar a água-furtada, Rodrigo pôde ver-lhe melhor o rosto triangular e acobreado, de bigodes espessos e negros que lembravam fumo em rama e lhe escorriam pelos cantos da boca com as pontas quase a tocarem os lóbulos das orelhas.

Esse cachorro está me provocando... - murmurou Rodrigo, por entre dentes. - Decerto pensa que vai me assustar. Acho melhor ir perguntar o que ele quer...

Fez menção de sair da sala, mas Neco segurou-o pelo braço e, como naquele instante Licurgo entrasse, o barbeiro pô-lo ao corrente do que se passava.

- Fique quieto, meu filho. O que eles querem é que o senhor aceite a provocação pra lê matarem e depois dizerem que foram agredidos.

Dente Seco botou a faca na bainha, tirou a palha de trás da orelha, pôs nela o fumo picado, enrolou o crioulo, ficou por algum tempo batendo o isqueiro e, aceso o cigarro, saiu a andar lentamente na direção da Intendência.

Às oito da noite o coronel Jairo Bittencourt desceu dum carro à frente do Sobrado e bateu na porta. Conduzido para a sala de visitas, à presença de Licurgo e Rodrigo, colocou sobre o consolo o pacote que trazia, e foi logo dizendo, na sua maneira pomposa mas calidamente cordial:

- Vim apresentar meus respeitos aos queridos amigos e renovar meus protestos de amizade...

E como pai e filho nada dissessem, prosseguiu:

- O ataque de que fostes alvo é duma mesquinhez sem limites. Como militar não me é lícito tomar partido em questões políticas. Mas acontece, caros amigos, que quando entrei para o Exército ninguém me exigiu que abdicasse dos direitos de cidadão, nem dos sentimentos de fraternidade, de dignidade, de justiça, de... - Ergueu a mão e começou a abri-la e fechá-la, como se quisesse apanhar no ar a palavra arisca - de... enfim, de solidariedade social. E como cidadão, como ser humano, não posso deixar de lançar meu protesto contra a maneira brutal e injusta como o jornal da situação atacou esta família e esta casa.

Licurgo estava tão constrangido, que pigarreava repetidamente, olhando para o bico das próprias botinas.

- Posso garantir-vos que meu protesto não é platônico, pois acabo de enviar uma carta enérgica, embora vazada em termos decorosos, ao redator d'A Voz da Serra, protestando contra sua linguagem e suas calúnias.

- Muito obrigado - disse Rodrigo - sua amizade muito nos desvanece.

Como os três estivessem ainda de pé, Licurgo convidou:

- Sente-se, coronel.

Jairo Bittencourt sentou-se, trançou as pernas, tirou do bolso um lenço e passou-o pelo rosto. Olhou longa e afetuosamente para Rodrigo:

- O meu prezado amigo é duma combatividade e duma coragem admiráveis.

- É bondade sua...

Erguendo a mão sardenta e rosada, o militar segurou o braço de Rodrigo, que se conservava de pé, ao lado de sua cadeira.

- Se permite que um homem mais velho que o senhor e naturalmente mais experimentado, embora não mais culto nem mais talentoso, lhe faça uma observação...

- Faça, coronel.

- Promete que não me vai levar a mal?

- Ora, por quem é!

- Eu diria que lhe está faltando ainda uma orientação doutrinária... O amigo tem o sentimento da justiça social. O que lhe falta é uma base ideológica sólida. Perdoe a franqueza.

- Talvez... O coronel naturalmente está falando como positivista convicto...

- Naturalmente! E que melhor base existe para uma ação social que o positivismo?

Fez um gesto largo de apóstolo jovial. Depois, ergueu-se e apanhou o pacote que deixara em cima do consolo, sob o grande espelho. Tirou o invólucro de papel pardo e aproximou-se de Rodrigo com um livro na mão.

- Vou lhe pedir um favor, um grande, imenso favor. - Bateu na capa do volume. - Leia isto quando tiver tempo. - Système de Politique Positive, de Augusto Comte. E um livro básico. Leia e medite. Não me conformo com a idéia de que um moço esclarecido e combativo como o senhor fique por mais tempo divorciado da boa causa.

- Mas coronel.

- Eu sei o que vai dizer. Mas não diga nada antes de ler a obra. Se depois de chegar à última página não estiver ainda convencido das verdades que o livro encerra... paciência. Mas leia.

- Está bom - disse Rodrigo, folheando distraidamente o volume. E mentiu: - Vou começar hoje mesmo.

Jairo tornou a sentar-se.

- Mas então - perguntou - depois do ataque que sofreram, qual vai ser a vossa atitude?

- Vamos contra-atacar.

- Se me permite a pergunta, em que termos?

- Nos mais violentos. Quer ouvir o editorial que escrevi? O militar fez um sinal afirmativo. Rodrigo tirou do bolso uma prova da carta aberta e começou a lê-la com veemência. De quando em quando erguia os olhos para observar as reações do outro. O rosto do coronel, de ordinário rosado, foi ficando aos poucos cor de lacre. Quando Rodrigo chegou ao final do artigo, Jairo Bittencourt pôs-se de pé bruscamente.

- Mas é uma barbaridade! - Voltou-se para Licurgo. - E o senhor vai permitir que se publique isso?

- Por que não? O Rodrigo é maior e sabe o que faz. Como que aturdido, o positivista olhava do pai para o filho.

- Mas depois disso, senhores, não pode haver mais argumentos senão a violência, a agressão física!

Rodrigo encarava o visitante em silêncio, gozando o efeito que a carta aberta produzira nele. Jairo segurou-o pelos ombros e sacudiu-o.

- Em nome de tudo quanto é mais sagrado, peço-lhe que não publique essa carta!

- O artigo que escrevi contra o Trindade é um pouquinho mais violento... Assassino é a palavra menos ofensiva que usei.

- Por favor! Terminemos com isso enquanto é tempo. Essa polémica pode ter conseqüências trágicas não só para esta casa como para toda a família santa-fezense.

- Agora é tarde, coronel. O jornal está pronto e vai ser distribuído amanhã à porta da matriz, na hora da missa.

- Mas é um acinte.

- Exatamente. Nós queremos que seja isso mesmo: um acinte. O comandante do regimento de infantaria ofegava, e em suas narinas esvoaçaram pelinhos fulvos. Seus olhos claros fitavam ora o rosto de Rodrigo, que sorria, ora o de Licurgo, que continuava taciturno. Por fim o militar tornou a sentar-se, desta vez pesadamente, como num dramático final de ato, e ficou por muitos segundos em silêncio, a olhar para o soalho. Depois, com voz mais calma:

- Se o senhor quer realmente servir sua terra e sua gente, não é essa a orientação que deve dar à campanha. As ofensas pessoais não conduzem a parte nenhuma a não ser à violência e à destruição. O que precisamos é construir e não destruir.

- Eu pretendo também construir, coronel. O senhor acha possível plantar alguma coisa útil num terreno cheio de ervas daninhas? O que estou fazendo é arrancar essas ervas. É duro, perigoso e cruel, mas necessário.

- Mas acontece que estais em absoluta minoria! Sabeis disso melhor que eu. O intendente é senhor de baraço e cutelo. Olhe, não quero ser veículo de boatos nem de intrigas, mas pessoa de muita responsabilidade me assegurou que o delegado de polícia mandou vir de fora um indivíduo de maus antecedentes, um capanga...

- Eu sei. Por sinal hoje à tardinha ele estava parado ali na calçada fronteira, olhando para o Sobrado.

O coronel meneou a cabeça lentamente.

- Tudo isso é puro desperdício de energia, puro malbaratar de coragem e ímpeto combativo. É uma atitude suicida, dr. Rodrigo, e eu não posso permitir que amigos queridos se lancem assim para a morte.

Levantou-se com o ar de quem ia fazer algo de violento e definitivo.

Licurgo, que passara todo o tempo a pontilhar a conversa com seus pigarros secos, perguntou:

- O senhor, então, como autoridade militar, vai proibir que o jornal de meu filho saia?

- Absolutamente! Seria outro ato de violência não só inconstitucional como também contrário às minhas convicções políticas e filosóficas.

Deixou cair os braços e soltou um prolongado suspiro.

- Enfim, fiz o que pude, cumpri o meu dever. E agora, se me dão licença, retiro-me. Meus respeitos à sra. dona Maria Valéria.

Apertou a mão de Licurgo. Rodrigo tomou-lhe cordialmente o braço e levou-o até a porta.

- Não quero que vá embora zangado comigo, coronel... Peço-lhe que compreenda a minha situação...

O militar sorriu.

- Também já tive vinte e quatro anos, meu amigo. Rodrigo percebeu que Jairo estava comovido. Pararam no meio da calçada.

- E não se aflija, coronel. Não vai me acontecer nada.

- E que é que lhe dá tanta certeza disso?

- Um pressentimento, algo que não sei explicar. No fundo sou um otimista incorrigível. Sempre fui. Acho que não se fabricou ainda a bala que há de me matar.

Pensou em que naquele mesmo momento podia ser alvejado por alguém que estivesse atocaiado nas sombras da praça, e essa possibilidade de perigo produziu-lhe uma estranha sensação de gozo.

Abraçaram-se. E quando o coronel já estava a atravessar a rua, Rodrigo gritou-lhe:

- Precisamos qualquer noite destas fazer uma tertúlia aqui em casa, comer um caviarzinho com champanha e ouvir boa música. E meus respeitos à esposa, coronel!

Quando o outro se sumiu entre as sombras do arvoredo, Rodrigo ficou ainda por algum tempo a contemplar as estrelas.

XIII

Na manhã seguinte, pouco antes das dez horas, deixou o Sobrado e atravessou a rua em passadas vagarosas, na direção da matriz, cujos sinos badalavam anunciando que a missa ia começar. Caminhava com uma lentidão calculada, atento às pessoas que àquela hora se dirigiam para o templo ou passeavam pelas redondezas, num ócio domingueiro. Tinha vestido pela primeira vez uma muito bem cortada roupa de tussor de seda - coisa que até então ninguém vira em Santa Fé -, calçava sapatos de verniz de bico fino e levava na cabeça, que mantinha altivamente erguida, um palheta de copa baixa e aba curta e espessa. Estava de rosto recém-escanhoado (o Neco viera ao Sobrado às sete da manhã, para barbeá-lo) e passara alguns minutos diante do espelho a escolher uma gravata que combinasse com o tom de palha da fatiota.

Avistou Emerenciana Amaral, que caminhava penosamente entre duas filhas, e sorriu para ela, tirando o chapéu. Cumprimentou também Maneco Macedo, que descia de seu carro à frente da igreja. Queria que todos o vissem alegre e sereno, para ficarem sabendo que a lama jogada contra ele pelo escriba do Trindade não o atingira. Parou um instante na calçada fronteira à matriz e ficou a olhar as pessoas que entravam. Tirou do bolso o relógio: faltavam ainda cinco minutos para começar a missa. Decidiu - e essa decisão lhe deu uma cócega de antecipação parecida com a que sentia quando, nos tempos de menino, aproveitava os silêncios da sesta para ir furtivamente à despensa roubar bom-bocados - decidiu passar pela Intendência antes de entrar na igreja. Pôs-se em movimento e, quando estava já na metade da quadra, avistou Laço Madruga, que caminhava na mesma direção mas em sentido oposto. Era a primeira vez que encontrava um de seus inimigos frente a frente, depois que atirara a primeira farpa. O delegado de polícia estava vestido de preto e, como era seu hábito, caminhava de cabeça baixa, a aba do chapéu de feltro puxada sobre os olhos, as mãos às costas, segurando a grossa bengala de castão de prata. Um soldado da guarda municipal seguia-o, armado de espada e Nagant, e também com a aba do quepe caída sobre a testa. Instintivamente Rodrigo levou a mão à altura do rim direito e apalpou o cabo do revólver. Começou a assobiar automaticamente a havaneira da Carmen. Achava-se agora a poucos passos do famigerado Madruga, o terror de Santa Fé! Murmurava-se que fora ele próprio quem degolara o Tito Chaves. Canalha!

O capitão Madruga ergueu os olhos e fitou-os em Rodrigo, que o encarou firme. Aconteceu, então, algo de inesperado. O delegado fez avançar o braço esquerdo, cuja mão segurava a bengala, e com o indicador da mão direita bateu na aba do chapéu, dizendo claramente: "Bom dia!" Rodrigo sentiu um súbito calor nas faces e quedou-se por um instante confuso. Teve pena do animal e ao mesmo tempo desejou cuspir-lhe na cara.

Vá gente entender as pessoas! Quando imaginei que ia me meter a bengala na cabeça, o homem me deseja bom-dia!

Continuou a andar, mas com a cadência dos passos alterada. E, à medida que se afastava do delegado, ia sendo invadido por um sentimento de despeito, pois já agora lhe parecia que a atitude benévola do capitão Madruga dava a entender que o bandido não o tratava como homem, mas sim como um menino a cujas má-criações não se deve dar muita importância.

Cachorro! - murmurou. - Depois de tudo o que eu disse, ainda me cumprimenta! É o cúmulo do rebaixamento!

Parou diante do edifício da Intendência, já agora sem saber ao certo se havia ou não, na confusão do momento, correspondido ao cumprimento do facínora. A dúvida embaraçosa picou-o por alguns instantes.

Os sinos silenciaram. Rodrigo voltou apressado para a igreja, entrou e assistiu à missa até o fim, suspirando com impaciência durante o longo e fastidioso sermão do padre Kolb.

À medida que se aproximava o fim do culto, sentia sua ansiedade aumentar. Que iria acontecer quando se pusessem a distribuir o jornal? Talvez os capangas de Trindade andassem pelos arredores e o tiroteio começasse ali mesmo, na frente da igreja, o que seria desastroso, pois havia mulheres e crianças na missa. Eu devia ter escolhido outro lugar e outra hora... Diabo!

Quando a missa terminou e os fiéis começaram a sair, Rodrigo postou-se do lado de fora da porta do templo, no alto dos degraus, de onde avistou logo o Chiru, que começava a distribuir A Farpa, gritando e fazendo largos gestos de camelô. Maneco Macedo e Joca Prates receberam seus exemplares: o primeiro, sorrindo, o segundo de cenho fechado. Outras pessoas, no estonteamento da surpresa, pegavam automaticamente a folha que Chiru lhes dava e muitos, depois de verem do que se tratava, amassavam o jornal e o lançavam na sarjeta. Rodrigo não podia perceber se faziam isso com raiva ou apenas com medo de serem apanhados pela gente de Titi com aquela coisa comprometedora na mão. No meio da rua, Bento também andava ativo na distribuição, ao mesmo passo que, parado a uma esquina, don Pepe atacava todos que por ali passavam e metia-lhes nas mãos ou debaixo dos braços, meio à força, um, dois ou mais exemplares do jornal, gritando:

- Edición especial de La Farpa, matutino independiente! Vamos, senores, que esto es grátis. Hay que agitar!

Muitos passavam de largo; outros pegavam a folha e paravam para ler os cabeçalhos. Alguns até pareciam ensaiar protestos. O vento fazia esvoaçar os jornais que juncavam as calçadas e o pavimento da rua. Rodrigo avistou, sob as árvores da praça, o Neco Rosa no momento em que ele metia à força debaixo do sovaco de Arrigo Cervi um jornal dobrado. Várias mulheres à frente da igreja puseram-se a falar nervosamente e Rodrigo entreouviu algumas das palavras que diziam - ligeiro... vamos embora... vai haver briga... Nossa Senhora... onde está o teu pai? As caboclinhas do coronel Cacique desceram os degraus em fila indiana, todas vestidas de branco. Rodrigo tirou o chapéu, num prolongado cumprimento que pretendia abranger toda a família Fagundes. O coronel Cacique parou e sua face lustrosa e gorda alargou-se ainda mais num sorriso.

- Que negócio é esse?

- Começou a inana, coronel! E a edição especial d'A Farpa.

- O senhor tem tutano mesmo, moço!

Rodrigo viu quando Chiru fez menção de entregar um exemplar d'A Farpa a Cuca Lopes, que sacudia as mãos e a cabeça em frenéticos gestos negativos. E como o outro procurasse meter-lhe à força o jornal no bolso, Cuca saiu quase a correr na direção da praça, em cuja calçada foi atacado pelo Neco, de quem se esquivou, quebrando o corpo e embarafustando em ritmo de fuga por entre plátanos e cinamomos.

Rodrigo contemplava a cena, exaltado. Lá ia a Ritinha Prates, ao lado dos pais. O tenente Lucas a seguia de pequena distância, metido no seu uniforme de gala. Os lenços vermelhos que drapejavam como pendões de guerra nos pescoços de Chiru e Neco; o vestido azul-elétrico da Gioconda; a sombrinha verde de Ritinha; as calças de garança do tenente de obuseiros; o vaivém das gentes nas ruas e calçadas, num movimento multicor de calidoscópio; o repicar dos sinos, que parecia emprestar uma certa iridescência à dourada claridade da manhã - tudo isso, sob o vasto e límpido azul do céu, dava à cena um ar festivo de feira.

Rodrigo sorriu ao avistar Salomão Padilha que, de fraque cor de café com leite, calças e chapéu da mesma cor, passava rebolando a bengala de junco e as ancas. O pelintra! O sem-vergonha! O cara-dura!

Dentro de poucos minutos a rua e a calçada fronteiras ao templo ficaram quase desertas. Don Pepe, Chiru e Neco aproximaram-se do amigo, de mãos vazias e caras radiantes.

- Magnífico, pessoal! - elogiou-os Rodrigo. - Serviço muito limpo.

- Estou admirado de não ter aparecido nenhum beleguim - comentou Chiru.

- Dei um jornal pró capitão Madruga - gabou-se Neco. E Chiru:

- Meti um no bolso do juiz de comarca. Don Pepe sorria silencioso.

- E tu, homem?

O espanhol perfilou-se.

- He tenido el gran placer de regalar a don Kolb, el cura, un ejemplar del periódico. Lo echó lejos, me miro con un santo horror, como si yo fuera el propio Satanás, y me dijo algo en alemán. Creo que ofendió mi madre.

Rodrigo atravessou a rua e continuou a andar na direção da rua do Comércio. Como os companheiros fizessem menção de segui-lo, deteve-os com um gesto.

- Fiquem aqui. Vou descer a rua sozinho. Não quero que pensem que ando cercado de capangas.

Os outros obedeceram, contrariados. E quando Rodrigo já se afastara deles uns dez passos, Chiru gritou:

- Te cuida, homem! - E em tom mais baixo: - Esse menino se arrisca demais.

Aquela hora viam-se muitas pessoas às janelas pois era hábito dos moradores da rua do Comércio virem todos os domingos assistir à passagem dos que voltavam da missa. Rodrigo cumprimentava amavelmente os conhecidos. Notava com satisfação que era olhado dum modo todo especial e sabia que, depois que passava, as comadres ficavam a fazer comentários. Era o homem do dia. Fizera o que até então ninguém tivera a coragem de fazer em Santa Fé: atacara de frente e de rijo o sátrapa municipal e sua camarilha. Ah! Era uma pena que Flora tivesse ido passar o resto do verão numa das estâncias do pai, pois lhe seria muito agradável ir agora até a casa dela... Em todo o caso prolongaria a caminhada até o Schnitzler e entraria para tomar uma cerveja fresca ou um Fernet.

- Bom dia!

Tirou o chapéu ao defrontar a residência do Marcelino Veiga que estava debruçado à janela. Pareceu-lhe que o homem respondeu, ao cumprimento com certa relutância e sem a habitual cordialidade. Será que esse cachorro está com medo de se comprometer? Ele teve ímpetos de parar e gritar: "Não preciso de teu cumprimento! Por que não o cortas duma vez? Comigo não há meias medidas, quero tudo claro!"

Continuou, porém, a andar, sorrindo com superioridade e lamentando que houvesse em Santa Fé tantos homens indecisos, incapazes dum gesto de coragem cívica, de desprendimento, de...

Avistou o Dente Seco, de rebenque na mão, encostado na porta da Farmácia Humanidade... Ai, ai, ai... Vamos ter barulho, instintivamente apalpou o revólver e a seguir desabotoou o casaco. A prudência me manda atravessar a rua, mudar de calçada... Mas a prudência que vá pró diabo. Não vou dar a ninguém o gostinho de dizer que tive medo.

Havia à frente da farmácia um pequeno grupo de homens que fumavam e palestravam. Ao verem Rodrigo aproximar-se, mudaram imediatamente de atitude: ficaram numa imobilidade e num silêncio tensos, a olhar alternadamente do moço do Sobrado para o capanga do Trindade.

Rodrigo passou pela frente do caboclo a passo lento. Que boa cara para uma bofetada - pensou, ao lançar para o outro um olhar enviesado. Ali estava o tipo clássico do bandido: melenudo, as mandíbulas quadradas, os olhos estreitos, a bigodeira basta... Rodrigo não pôde deixar de sentir certo mal-estar ao cruzar tão perto daquele homem que fora chamado a Santa Fé "para assustar uns mocinhos".

Estava já distante de Dente Seco uns cinco passos quando ouviu uma voz em falsete:

- Ai-ai, mamãe! Que rica mocinha!

Foi como se lhe tivessem chicoteado a cara. Voltou-se, brusco, e olhou. De mãos na cintura, agora no meio da calçada, o capanga contemplava-o, rindo provocadoramente.

- Falou comigo?

- Falei - retrucou o bandido. - Quer me arranhar o papo guri?

Sem dizer palavra, Rodrigo avançou... Viu o cabra dar dois passos à retaguarda e erguer o rebenque. Saltou para um lado, mas não pôde esquivar-se de todo ao golpe, que lhe arrancou o chapéu, atingindo-lhe de refilão o braço esquerdo. Dente Seco tornou a golpear, de novo Rodrigo quebrou o corpo. A sola do rebenque, porém, mordeu-lhe a ponta da orelha e caiu-lhe em cheio no ombro. Com um vigor que a raiva duplicara, Rodrigo atracou-se com o bandido, agarrou com ambas as mãos a haste do rebenque e arrebatou-o com tão furioso repelão, que quase tombou de costas, e durante a fração de segundo em que ele ficou a debater-se para manter o equilíbrio, o outro levou a mão à cintura e arrancou o revólver. Rodrigo, entretanto, não lhe deu tempo de fazer mais nada. Segurando o rebenque pela ponta, desferiu com o cabo um golpe seco no pulso do capanga, que deixou cair a arma. E quando o viu inclinar-se para apanhá-la, cerrou os dentes e, cego de ódio, golpeou-lhe violentamente a nuca com a argola do rebenque. O cabra caiu de borco, sem soltar um ai.

O grupo que se havia dispersado quando a briga começara, tornou a reunir-se. Rodrigo atirou o rebenque na sarjeta, apanhou o chapéu, enfiou-o na cabeça, e pôs-se a limpar as mãos no lenço com um cuidado exagerado.

Sentiu que lhe seguravam o braço. Olhou. Era o tenente Lucas, que lhe perguntava, aflito: "Que foi que houve? Estás ferido?"

Fez um sinal com a cabeça, mostrando o homem que continuava estendido na calçada, imóvel. Depois voltou-se e começou a caminhar, rumo do Sobrado. Naquele momento surgiam curiosos de todos os lados; pessoas saíam de suas casas e se aglomeravam, já numa algazarra, ao redor de Dente Seco. Rodrigo ouvia palavras soltas - morto?... chamem um médico... barbaridade!

Estarei pálido? Ou vermelho? Apalpou o cabo do revólver. Sentia como que uma cinta de ferro a apertar-lhe o peito, dificultando-lhe a respiração. As pernas, porém, estavam firmes. Aos poucos começou a ficar tomado de uma satisfação selvagem, que lhe dava uma vontade de gritar coisas para as pessoas que se achavam às janelas ou que passavam por ele na calçada. Parou a uma esquina e olhou para trás. Havia agora à frente da Farmácia Humanidade uma pequena multidão. Nas proximidades da praça, encontrou Chiru, Neco e don Pepe, que sabiam já do conflito e queriam pormenores. Rodrigo resumiu dramaticamente a situação:

- Deixei o Dente Seco estirado na calçada na frente da farmácia do Zago.

Entrou calmamente no Sobrado e contou ao pai e à tia, já mais exaltado, o que acontecera. Tirou da carteira um cigarro e acendeu-o, verificando, com profunda satisfação, que suas mãos não tremiam.

- O homem ficou muito ferido? - indagou Licurgo, apreensivo.

Fingindo uma indiferença que estava longe de sentir, Rodrigo respondeu:

- Não tenho a menor idéia.

- Não me olhe com essa cara, Dinda! - exclamou quando, ao erguer os olhos, viu Maria Valéria plantada em sua frente, com os braços cruzados.

- Ué! Que cara?

- A senhora parece que ainda não se convenceu de que não sou mais criança. Está aí me olhando como se eu tivesse feito uma travessura.

- E não fez? Então andar de açoites na rua com um bandido é coisa que se faça?

- Fui provocado.

- Por que não voltou pra casa depois da missa? Por que foi se mostrar na rua do Comércio?

Licurgo andava dum lado para outro, mastigando nervosamente a ponta do cigarro apagado. Maria Valéria foi até a cozinha, de onde voltou pouco depois com uma xícara de café.

- Tome.

- Não estou nervoso. Olhe.

Espalmou a mão no ar para mostrar a firmeza dos dedos.

- Mesmo que não esteja, café sempre é bom. Tome duma vez.

Rodrigo segurou a xícara e bebeu um gole.

- Hum! Está amargo.

- Assim é melhor.

Bebeu com certa relutância, fazendo caretas, bem como nos tempos de menino, quando a madrinha o obrigava a tomar óleo de rícino, seguido de café amargo "pra tirar o gosto ruim da boca".

- Não está lastimado?

- Não - respondeu Rodrigo com o laconismo de quem queria cortar o assunto.

A ponta da orelha esquerda agora lhe ardia, como se estivesse queimada. Cachorro! Não me arrependo do que fiz. Os bandidos vão ver, duma vez por todas, com quem estão tratando.

O relógio da sala de jantar começou a bater as doze badaladas do meio-dia.

- O almoço está pronto - anunciou Maria Valéria.

- Ora! - exclamou Licurgo, agastado. - Numa hora destas quem é que vai pensar em comida? Sabe lá o que aconteceu pr'aquele homem...

Só então é que passou pela cabeça de Rodrigo a idéia de que podia ter matado o capanga. Isso lhe deu uma tão desagradável sensação de frio interior e náusea, que por um instante teve a impressão de que ia regurgitar o café. Lembrava-se de ter batido na nuca do caboclo com o cabo do rebenque, de ferro maciço, munido duma argola também de ferro... Recordou, com um calafrio, o ruído fofo que o golpe produzira... Mas não... Não dei com tanta violência que pudesse... Qual! Não adiantava querer iludir-se. Sabia que tinha golpeado Dente Seco com a força que lhe vinha da raiva... Santo Deus! Se matei o cabra, estou perdido.

Pôs-se de pé bruscamente.

- Papai, preciso ir ver se o homem já voltou a si... Licurgo olhou para o filho com ar autoritário.

- Ninguém me sai desta casa. Fique sentado e espere.

- O senhor se esquece de que sou médico.

- Mas não é o único na cidade.

- O meu dever era ter ficado lá pra medicar a criatura.

- E por que não ficou?

Rodrigo não achou resposta. Via agora como tinha procedido mal. Em vez de mandar carregar o caboclo para dentro da farmácia, tratando de reanimá-lo - recriminava-se ele -, assumira uma "atitude heróica", só porque havia uma platéia e ele queria proporcionar ao público o espetáculo de sua coragem, de seu sangue-frio, de seu aplomb. Pouco lhe importara a vida daquele ser humano (um facínora, sim, mas uma criatura de Deus) pois o dr. Rodrigo Terra Cambará só tivera olhos e cuidados para seu penacho!

Por um instante os dois homens mediram-se com o olhar. Rodrigo de repente percebeu que, pela primeira vez em sua vida, acendera um cigarro diante do pai. Jogou-o na escarradeira e, sem dizer palavra, entrou no escritório, fechando a porta a chave.

Sentado ao pé do gramofone, a olhar fixamente para a campânula, Rodrigo debatia-se numa confusão de sentimentos. Ora se arrependia do que havia feito - a começar pela provocação que lançara a Trindade e sua gente e que redundara naquele conflito com Dente Seco -, ora procurava convencer-se de que procedera com acerto e de que as coisas não podiam ter se passado de outra maneira. Devia ele, na frente de tanta gente, "pagar um vale" e continuar a andar indiferente, quando o cabra lhe atirara em rosto uma frase gaiata em que sua masculinidade era posta em dúvida? Claro que não. Por outro lado, a idéia de ter matado um homem enchia-o dum horror, duma sombria sensação de culpa. Era como se, de repente, em sua vida se tivesse feito um hiato, um vácuo medonho dentro do qual só ouvia o latejar medroso do próprio sangue...

Assassino. Eu, um assassino. Nunca esperei que isso me pudesse acontecer. Meu nome nos jornais, em todos os jornais do país. Estão vendo aquele sujeito que ali vai? É o dr. Rodrigo Cambará. Matou um homem. Foi absolvido mas o remorso está acabando com ele aos poucos. Não tem ainda trinta anos mas está com a cabeça completamente branca.

Adeus, Flora! Adeus, belos planos! Adeus, música! Adeus, livros! Adeus, carreira! Adeus, tudo! É estúpido, estúpido, estúpido... Ficou olhando para o chão, a repetir a palavra, obstinadamente, e a sacudir a cabeça.

De súbito veio-lhe uma esperança. E se o homem não morreu? Claro. Como é que posso ter como certa uma coisa que pode não ter acontecido. Em sua mente soou uma voz... "Esses golpes na nuca são sempre fatais." Imaginou o dr. Matias a escrever o atestado de óbito: "Causa mortis, fratura na base do crânio produzida por um instrumento... "O corpo do Dente Seco velado na Intendência, com todas as honras. O bandido apresentado a Santa Fé, ao Rio Grande do Sul e ao Brasil como um mártir republicano. A exploração que o Titi Trindade ia fazer de tudo aquilo... O que o pulha do Amintas ia escrever na Voz... A lama que outra vez iam jogar sobre o Sobrado e os Cambarás... Corja! Deu um murro na guarda da cadeira e procurou encher-se dum sentimento de indignação suficientemente forte para afogar o próprio remorso. E se o capanga tivesse conseguido me meter uma bala na cabeça? Quem ficaria caído na calçada era eu...

Em sua mente um quadro delineou-se, nítido: o cadáver de Rodrigo Cambará estendido sobre a mesa da sala de jantar, entre quatro velas acesas, cercado de parentes e amigos que lhe choravam a morte, enquanto o Pitombo em sua oficina batia os pregos do esquife em que haviam de enterrar o moço do Sobrado. Vinte e quatro anos... Na flor da idade... Que banditismo!

Levantou-se, num acesso de autocomiseração.

Sim, eu podia estar morto. Sejamos lógicos e não apenas sentimentais. Compare-se a vida do Dente Seco com a minha. Dum lado, um bandido que cometeu vários crimes, cortou muitas vidas, um assalariado, um homem bronco e cruel, socialmente inútil. Do outro, um cidadão de bons sentimentos, nobre e caridoso, culto e cheio de belos planos de trabalho...

Mas a verdade é que ele estava vivo, ao passo que o outro... Tornou a sentar-se. Beber um cálice de conhaque? Sim. Ia fazer-lhe bem, muito bem. O remédio era embriagar-se e esquecer aqueles pensamentos negros. Pensou em Deus. Deus era o Supremo Juiz. Deus via tudo. Deus era justo.

Desabotoou o colarinho, desfez o nó da gravata e achou-se supinamente ridículo naquela fatiota de tussor de seda. Ai Rodriguinho, quem confeccionou essas roupinhas que te fazem o dandy mais completo de Santa Fé? Cachorros! Provocaram um homem e o resultado está aí...

Olhou para o armário de livros, para as lombadas de couro com letras douradas. Aqueles autores queridos eram testemunhas silenciosas de que a vida com que ele sonhara nada tinha a ver com os Amintas, os Trindades, os Madrugas e os Dentes Secos. Era antes uma vida de bondade e harmonia. (Pero hay que definir, hijito!) Desejava construir e não destruir, curar e não ferir.

- É o Destino - murmurou. - O Destino que nos arrasta, queiramos ou não...

Ouviu vozes na sala vizinha. Pouco depois, duas batidas à porta. Seu coração disparou. Decerto alguém chegara para contar-lhe que Dente Seco estava morto. Deu alguns passos e abriu a porta. O tenente Lucas entrou e caiu-lhe nos braços.

- Antes de mais nada, parabéns pelo golpe de mestre. Foi a briga mais rápida que vi em toda a minha vida. Sim senhor, golpe de mestre. E que calma, rapaz, que linha!

Lucas Araújo atirou o quepe para cima do bureau, recuou dois passos e olhou Rodrigo de alto a baixo.

- Sim senhor! Meus parabéns!

O outro olhava-o sem compreender. Mal pôde balbuciar:

- Então... e o homem?

Naquele instante entrou Licurgo, seguido de Maria Valéria, e os três ficaram a olhar num silêncio interrogador para o tenente de obuseiros.

- Levamos o bicho pra dentro da farmácia e chamamos o dr. Matias. Mas que cara, Seu Rodrigo! É de tirar o sono de qualquer. Nunca vi bigodeira como aquela...

- Por amor de Deus, tenente! O homem morreu ou não morreu?

Lucas soltou uma risada.

- Morreu coisa nenhuma! Aquele tipo só com obus!

- Já voltou a si?

- Quando saí de lá, estava começando a gemer e a resmungar.

- Que é que o doutor diz?

- Diz que o que salvou o cabra foi ele ser guedelhudo. A cabeleira amorteceu o golpe.

Rodrigo soltou um assobio. Uma grande sensação de alívio amolentava-lhe o corpo e desoprimia o peito. Teve vontade de rir e ao mesmo tempo de chorar. Sentou-se pesadamente.

- Dinda, nos traga um conhaque. Enxugou a testa que um suor frio umedecia.

- O ferimento é sério? - indagou Licurgo.

- Brincadeira não é... - respondeu Lucas. - Diz o médico que por uns dias o homem tem de ficar na cama. Mas vai sarar. Não quebrou nada. Só ficou com um galo quase do tamanho dum ovo de galinha.

Rodrigo lançou para o tenente um olhar de agradecimento, como se ele tivesse acabado de salvar-lhe a vida.

Maria Valéria entrou trazendo numa bandeja a garrafa de conhaque e três cálices, que Rodrigo encheu. (Engraçado, logo agora que tudo passou é que minha mão está tremendo.)

- Vamos beber um brinde, tenente. Lucas Araújo ergueu o cálice:

- Ao dr. Rodrigo Cambará, com votos para que sua boa estrela jamais se apague, e para que Deus lhe conserve o olho vivo, o pé ligeiro e a mão firme.

Rodrigo gostou do brinde. Sentia uma alegria mole e boba de convalescente.

Licurgo não quis beber. Estava visivelmente apreensivo.

- Mas será mesmo que o ferimento do homem não é sério? Ouvi dizer que esses golpes de cabeça às vezes na hora parecem sem importância mas depois...

- Ora, papai! - exclamou Rodrigo, tornando a encher os cálices. - Não devemos ser pessimistas. À tua saúde, Lucas!

Tornaram a beber.

- Não se assuste, coronel - disse o tenente de obuseiros, voltando-se para o dono da casa. - Esses caboclos têm fôlego de gato. Vai ver como dentro de dois dias o Dente Seco está de pé.

- Está de pé - completou Maria Valéria - e vai acabar dando um tiro no Rodrigo. Era melhor que tivesse morrido.

- Nem diga isso, Dinda! Queria que eu fosse um assassino?

- Morrido de morte natural... - corrigiu-se ela. - Ou então que nunca tivesse nascido.

- Sua tia tem razão - murmurou Licurgo. - Daqui por diante o senhor tem que se cuidar muito. Homens como o Dente Seco são vingativos.

- Mas não há nada que possa com uma boa estrela - observou o oficial.

Licurgo sacudiu a cabeça.

- Não acredito nessas coisas.

Houve um curto silêncio, ao cabo do qual Maria Valéria se voltou para o cunhado.

- Meia hora depois do meio-dia. Posso servir o almoço?

- Pode.

- O tenente almoça conosco - disse Rodrigo, passando o braço sobre os ombros do amigo.

- E por que não?

- Para comemorar, tomaremos um bom Médoc.

- Santas palavras!

E então, perplexos, Maria Valéria e Licurgo viram o tenente de obuseiros gritar allez houp! - como os artistas de circo de cavalinhos - dar uma corrida, virar uma cambalhota e depois fazer uma mesura, atirando beijos para um público imaginário. Rodrigo sorriu, mas o rosto do pai e o da tia permaneceram sérios. No de Licurgo havia um ar taciturno de reprovação. No de Maria Valéria, um meio sorriso de tolerância, que, traduzido em palavras, queria dizer: ''Coitado, é louco".

Chiru apareceu à hora em que se servia a sobremesa. Despejou as novidades: Dente Seco havia sido levado em braços à casa do Madruga, onde estava hospedado. O Titi Trindade bufava de raiva e falava em represálias. A cidade inteira vibrava com o incidente e Rodrigo era o herói do dia.

As três da tarde, depois duma sesta em que não conseguira pregar olho, Rodrigo botou o chapéu na cabeça e o revólver na cintura, e foi até a farmácia, a qual de acordo com o convénio feito com Zago, estava aberta àquele domingo. À porta da padaria, Chico Pão, os olhos meio anuviados, abraçou efusivamente o amigo, gaguejando protestos de solidariedade. Na farmácia, o prático pareceu espantado de vê-lo.

- Então, Gabriel velho, que é que há de novo?

- Muita coisa, doutor.

- Conte lá!

- Estão dizendo que vão atacar o Sobrado.

- Conversas, Gabriel, cão que ladra não morde.

- E que vão também atacar a farmácia e quebrar tudo.

- E tu acreditas nisso? Gabriel engoliu em seco.

- Acredito. Não foi um nem dois que me disseram. lnd'agorinha o Cuca Lopes andou por aqui...

- O Cuca é um boateiro.

- O dr. Matias também me contou que estão falando em toda a cidade que o assalto vai ser hoje de noite.

- Qual!

Rodrigo entrou assobiando no consultório. Sentou-se à mesa, pegou um lápis, pôs-se a fazer rabiscos no bloco de receituário, onde escreveu muitas vezes, em letras de imprensa, o nome da namorada.

Tirou do bolso o termómetro de ouro - presente de sua madrinha - e ficou a olhar fixamente para ele. Seu primeiro e mais importante cliente havia sido sua própria terra natal, que sofria de marasmo crônico e pavores noturnos. Quem estava com febre e febre alta era Santa Fé. Ele, Rodrigo Cambará, havia provocado essa febre. A cidade saíra de seu torpor, a cidade delirava. Ele sentia isso no ar, no jeito como as pessoas o fitavam na rua... Depois do almoço aparecera no Sobrado o Neco, que lhe transmitira impressões colhidas em rodas da Confeitaria Schnitzler e à porta do Comercial. Diziam-se frases como estas: "O Rodrigo é um bichão. É preciso ter tutano pra enfrentar o Dente Seco... Só a cara do bicho é de matar a gente de susto". ''E sabem da melhor? Ele estava armado e nem encostou o dedo no revólver." Murmurava-se até que alguém ouvira a Gioconda dizer - e de todas as frases era essa a que mais lisonjeava Rodrigo - "Isso é que é homem".

Rodrigo sorria, olhando para o termômetro, quando o Cuca irrompeu no consultório:

- Sabes da última? O Dente Seco já está de pé.

- Não imaginas como essa notícia me alegra...

- Me contaram que ele jurou que vai te matar.

- Que esperavas que ele fizesse, depois do que aconteceu? Que me desse beijinhos?

Cuca aproximou-se do amigo e sussurrou:

- Pessoa muito chegada ao Titi me garantiu que eles vão atacar o Sobrado hoje de noite. Já estão reunindo gente da Intendência. Te conto isso, Rodrigo, porque sou teu amigo.

- Está bom, Cuca. Muito obrigado pela informação. Mas não acredito.

Durante o resto da tarde, porém, continuaram a chegar à farmácia pessoas que repetiam a advertência. A cidade estava cheia de boatos. Afirmava-se que quem ia comandar o ataque era o próprio capitão Madruga. Um amigo chegou a aconselhar:

- Pelas dúvidas o melhor é fechar a farmácia, não acha?

- A farmácia continuará aberta até a hora de costume - replicou Rodrigo.

Ao chegar a casa, encontrou o pai no escritório.

- Estão falando que a canalha vai atacar o Sobrado - disse o Velho.

- O senhor acredita nisso?

- Essa gente é capaz de tudo.

- Acha, então, que devemos nos preparar?

- Acho.

Rodrigo chamou Bento.

- Bata na casa do Marcelino Veiga e peça para ele nos vender quatro caixas de balas de revólver calibre 38. Tome o dinheiro. - O boleeiro já estava na calçada quando Rodrigo lhe gritou da janela:

- Traga dez!

Pensou: O Marcelino vai logo contar ao Trindade que estamos nos preparando... Esfregou as mãos, satisfeito. Começava a acreditar na possibilidade do ataque, e isso lhe dava uma exaltação guerreira. Era preciso, porém, que a corja do Trindade e toda Santa Fé ficassem sabendo que ali no Sobrado ninguém estava atemorizado. Pôs o gramofone a funcionar, e por muito tempo as pessoas que passavam na rua ouviram a voz de Caruso, de Amato e da Melba, a cantar árias vibrantes.

- Não seria bom mandar a madrinha e a Laurinda pra casa da tia Vanja? - perguntou Rodrigo ao pai.

Antes que este tivesse tempo de responder, Maria Valéria protestou:

- Daqui ninguém me tira. Havia de ter graça. Se pude agüentar o sítio de 95, por que é que hei de fugir agora?

Essas palavras encerraram a questão. Rodrigo beijou a testa da madrinha e foi azeitar o revólver.

À tardinha tiveram uma surpresa agradável. Toríbio apeou do cavalo no quintal do Sobrado e entrou pela cozinha como um furacão.

- Me prepara um mate, Laurinda - gritou ao passar pela mulata.

Beijou a mão do pai, abraçou o irmão e foi logo reclamando: -- Egoísta! Como é que não mandaste me avisar de nada? Quando li o artigo da Voz o sangue me ferveu. Dei seis tiros num tronco de corticeira pra aliviar o peito. Nas Três Forquilhas me contaram hoje do teu pega com o tal de Dente Seco. E verdade? Rodrigo contou-lhe a história com pormenores.

- A todas essas eu lá na estância, marcando terneiro e botando creolina em bicheira... Vocês me fazem cada uma!

Maria Valéria entrou nesse momento e, vendo Toríbio, exclamou:

- Xii... Era o que faltava. Chegou o capitão Rompe-Ferro. Vá lavar essa cara, menino!

Durante o jantar Rodrigo narrou animadamente a Toríbio os últimos acontecimentos. Depois da sobremesa, mostrou-lhe o último número d'A Farpa, que o irmão leu, às gargalhadas, sob o olhar desaprovador do pai.

Pouco antes das oito horas começaram a chegar os amigos. O primeiro foi o Chiru Mena, de bombachas, botas e esporas, revólver e adaga na cintura, um largo chapelão com barbicacho na cabeça, e um pala atirado sobre o ombro.

- Ué! - exclamou Maria Valéria. - Vai viajar? Um tanto desconcertado, Chiru retrucou:

- Nunca se sabe, dona. A gente tem que estar preparado pra tudo.

Pouco depois chegou o Neco Rosa, também armado de pistola e faca, trazendo o violão a tiracolo. Pepe Garcia não tardou a aparecer; vinha como de costume sem um canivete no bolso. Tirou a boina, dobrou-a, meteu-a no bolso e, aproximando-se grave de Rodrigo, cochichou:

- He oído decir que el ataque está aplazado para la media noche en punto. La cosa es seria, hijito.

Rodrigo sorriu e deu-lhe uma palmada amistosa no ombro.

- Entra, Pepito, e fica à vontade.

Era como se estivesse recebendo amigos para uma festa. Maria Valéria olhava para os recém-chegados com uma pontinha de má vontade. Ao vê-los entrar para a sala de visitas, lançava-lhes olhares fiscalizadores para os pés, a ver se não estavam sujos de barro ou esterco.

As oito em ponto. Cacique Fagundes apareceu, chamou Rodrigo à parte e disse que trazia um recado. Alvarino Amaral mandava dizer que, apesar de não manter relações de amizade com Licurgo, estava disposto a vir com os filhos machos ajudar a defender o Sobrado contra a corja do Trindade.

- Espere aí, coronel, que eu vou dizer ao papai.

Licurgo escutou o recado de seu desaféto com a fisionomia impassível. Por fim resmungou:

- Não acredito que ele tenha coragem de entrar no Sobrado.

- Papai, o senhor deve compreender que a intenção do homem é boa.

- Somos inimigos e eu não posso me esquecer que ele já atirou contra esta casa. Não me falem mais nisso!

Rodrigo voltou ao emissário.

- O Velho não aceita o oferecimento, coronel. O senhor conhece o papai. É um homem muito difícil. - Pegou no braço do caboclo. - Escute. Conte a coisa com jeito ao Alvarino, diga que eu compreendo o gesto dele e estou muito grato...

Cacique Fagundes encolheu os ombros.

- Em todo o caso, dei o recado.

Saiu para levar a resposta ao Alvarino Amaral e voltou pouco depois para ficar. Entrou no momento mesmo em que chegava ao Sobrado um grupo: o coronel Maneco Macedo com seus seis filhos, o mais moço dos quais tinha apenas dezessete anos. Estavam armados de revólver e faca, e traziam lenços vermelhos amarrados ao pescoço. Comovido ante aquele quadro, Rodrigo recebeu-os com efusão, abraçando todos os Macedos, cujo chefe exclamou:

- Não quisemos perder esta festa. Foi por isso que viemos sem convite.

Desataram todos a rir. Rodrigo correu para a madrinha:

- Mande preparar um mate e uns cafezinhos, Dinda. Maria Valéria, que pelo vão da porta olhava fixamente para as botas dos recém-chegados, murmurou:

- Isto até parece velório.

- Se for velório de alguém - retrucou Rodrigo - que seja do Trindade.

Licurgo conversava com o Cacique e Maneco Macedo, e seu semblante continuava anuviado. Discutiam as probabilidades daquêle ataque, no qual o coronel Fagundes absolutamente não acreditava ("Só se o Titi estiver louco varrido") e sobre o qual Licurgo manifestava suas dúvidas.

- Mas se vierem - concluiu Maneco Macedo - vão encontrar com quem tratar.

Rodrigo mandou fechar todas as janelas do andar inferior. Reuniu depois os amigos e disse-lhes de onde deviam atirar no caso de ser a casa assaltada. Era-lhe agradável assumir aqueles ares de comandante. Ouvidas as instruções de combate, os homens se dividiram em dois grupos. No escritório ficaram os mais velhos. Na sala de jantar, os mais moços. Vieram duas cuias e o chimarrão correu ambas as rodas.

Chiru e Bio trocaram bravatas. Don Pepe recordou suas negras noites de conspirador em cidades da Espanha. Alguém pediu a Neco que cantasse, e o barbeiro, não se fazendo rogar, tirou uns acordes do violão, limpou a garganta e cantou a Margarida vai à fonte.

O tempo passava. Por volta das nove e meia, Rodrigo subiu à água-furtada e de lá ficou a espreitar a praça. Pareceu-lhe ver movimentos suspeitos à frente da Intendência, um entrar e sair de gente. Um vulto moveu-se na calçada fronteira ao Sobrado e depois se diluiu nas sombras do arvoredo. A rua do Comércio àquela hora estava completamente deserta. A notícia do assalto espalhara-se por toda a cidade: era natural que ninguém ousasse sair de casa depois do escurecer, temendo as balas perdidas.

Rodrigo atirou as pernas por cima do peitoril da janela e começou a caminhar sobre o telhado, achando saborosa aquela sensação de perigo iminente: podia escorregar e cair... podia ser alvejado por algum inimigo atocaiado nas sombras da praça. Lembrou-se das histórias que se contavam em torno do cerco do Sobrado, em 95. Olhou instintivamente para a torre da igreja. A silhueta do galo do cata-vento recortava-se, negra e nítida, contra o azul-violeta do céu. Uma brisa fresca, que recendia a campo noturno, bafejou-lhe a face. Acendeu um cigarro, ergueu a cabeça e quedou-se a olhar para as estrelas, tirando um prazer esquisitamente vertiginoso da idéia de estar se oferecendo como alvo ao inimigo invisível. Era quase o mesmo que caminhar sobre um fio de arame estendido entre a água-furtada e a torre da matriz... E de súbito, no campo de sua memória, armou-se um remoto circo: a japonesinha, de pára-sol colorido na mão, equilibrava-se no arame... Ah, as paixões da adolescência!...

Voltou para a água-furtada e depois desceu. Neco cantava A casa branca da serra.

Bio bocejou.

- Acho que esses calças-frouxas ficaram com medo de nos atacar.

- São quase dez horas... - disse alguém.

Naquele instante bateram à porta da frente. Neco Rosa calou-se. Fez-se um silêncio repentino. Bio quis abrir a janela, mas Rodrigo deteve-o.

- Espera. Pode ser uma cilada. Deixa que eu vou ver. Dirigiu-se para o vestíbulo, de revólver na mão, desceu os degraus, parou junto da porta e esperou. Tornaram a bater: duas pancadas fortes e distintas.

- Quem é?

- Sou eu.

- Eu quem?

- O Liroca.

Rodrigo abriu a porta e deixou o amigo entrar.

- Homem de Deus! Que foi que te aconteceu?

- Faz duas horas que estou escondido ali na praça, falando sozinho, numa luta de consciência. Entro ou não entro? Se não entro, podem pensar que sou um ingrato que abandona os amigos na hora amarga. Se entro, o Licurgo pode me botar pra rua com um pontapé no rabo. É uma situação horrorosa, Rodrigo.

- Vamos subir...

Liroca segurou com força o braço do outro.

- Não. Tens que primeiro arranjar o consentimento do teu pai. Sem isso não entro. Mas se ele não me deixar entrar, palavra que fico deitado na porta, como um cachorro escorraçado. E quando a capangada do Trindade chegar, vão me furar o corpo a bala, me deixar que nem paliteiro.

Rodrigo subiu, chamou o pai à parte e pô-lo ao corrente da situação. Licurgo mordeu a ponta do cigarro por alguns segundos, sem dizer palavra.

Depois:

- É preciso não ter nenhum amor-próprio pra fazer uma coisa dessas.

- Ora papai, tenha pena do homem. Faz anos que ele anda rondando o Sobrado. O Liroca é uma boa alma. Se cometeu algum erro, está arrependido...

- E o senhor pensa que eu estou satisfeito por ver toda essa gente de lenço vermelho dentro da minha casa? Em 95 eles estavam do lado de fora atirando contra nós, contra mim, contra sua mãe, contra sua tia, contra seu irmão, contra o senhor, contra os meus amigos. Pensa que me esqueci?

Rodrigo reprimiu a custo um suspiro de impaciência.

- Mas o senhor se esquece que os que hoje vão atirar contra o Sobrado e contra nós estão do lado de fora e não têm lenço vermelho no pescoço!

Licurgo engoliu em seco. Rodrigo pôs-lhe afetuosamente a mão no ombro e, com voz macia e persuasiva:

- Deixe o Liroca entrar. - pediu. - Eu respondo por ele. Vai ficar quietinho num canto sem incomodar ninguém. Eu lhe garanto que será o dia mais feliz da vida dele.

Por um instante Licurgo permaneceu mudo. Depois, olhando para o filho, resmungou:

- Está bem. Mande o homem entrar. Mas não me faça apertar a mão dele.

Rodrigo correu a buscar Liroca, que entrou de chapéu na mão, arrastando os pés, murmurando boas-noites desajeitados para todos, sem olhar direito para ninguém.

- Não se preocupe com o papai - sussurrou-lhe Rodrigo ao ouvido. - Faz de conta que ele não está aqui. Essas coisas se resolvem devagarinho.

Liroca sentou-se a um canto, com o chapéu sobre os joelhos, e quando Maria Valéria atravessou a sala, tesa, sem sequer olhar para o recém-vindo, este soltou um fundo suspiro. E como todos ali soubessem de sua antiga "paixão" pela cunhada de Licurgo, houve risinhos abafados, troca de sinais gaiatos, piscadelas.

Quando o relógio de pêndulo deu onze badaladas, Toríbio achou que os capangas do Trindade não viriam mais.

- Está muito abafado aqui dentro, pessoal. Vamos abrir as janelas.

Sem esperar a aprovação do pai ou do irmão, escancarou as janelas da sala de visitas e debruçou-se para fora, bem no instante em que subia da rua um tropel em cadência militar.

Rodrigo precipitou-se para a janela e viu com surpresa que um pelotão de soldados do Exército fazia alto à frente do Sobrado. Um superior no qual reconheceu o tenente Lucas começou a dar vozes de comando e a soldadesca formou diante da casa numa fileira singela, ali ficando em posição de descanso.

- Lucas! - gritou Rodrigo. - Que história é essa? Lá debaixo, o tenente de obuseiros respondeu:

- Não se impressione. São ordens do coronel Jairo. Daqui a pouco ele estará aqui.

Licurgo, que também se aproximara da janela, resmungou:

- Minha casa cercada de soldados... Era só o que faltava. Poucos minutos depois o coronel Jairo Bittencourt entrava apressadamente no Sobrado. Estava de uniforme caqui, com o rosto mais rosado que de costume. Fechou-se com Licurgo e Rodrigo no escritório:

- Quando me informaram que o intendente pretendia assaltar esta casa para empastelar a redação d'A Farpa, tomei todas as precauções para evitar a hecatombe!

Parou e tomou fôlego.

- Faz exatamente duas horas e quarenta minutos que tenho um pelotão de armas embaladas, de prontidão ali na rua do Poncho Verde.

Licurgo, que o mirava, sério, disse com pachorra:

- Não era preciso se incomodar, coronel.

- Até a última hora duvidei que o coronel Trindade tivesse coragem de levar a cabo essa barbaridade. Por fim fui pessoalmente verificar o que havia. Pois bem. Os boatos se confirmavam. O homem estava com toda a polícia municipal e mais um grupo de capangas preparados para o assalto. Tivemos uma altercação. O intendente quis me amedrontar, dizendo que eu não tinha direito de me meter em política. Ameaçou de me denunciar ao ministro da Guerra, de passar um telegrama ao presidente do estado, queixar-se ao marechal Hermes e não sei mais o quê. Perdi a calma e gritei-lhe um par de verdades que tinha atravessadas na garganta há muito tempo.

Sentou-se e, com voz mais calma, pediu:

- Um copo d'água, por favor.

- Que tal um conhaque, coronel?

- Não. Água.

Rodrigo saiu do escritório e voltou trazendo a água, que Jairo bebeu dum sorvo só. Depois de passar o lenço pelos lábios e pelos bigodes, continuou:

- E disse-lhe mais: "Se vossência persistir nessa loucura e atirar seus apaniguados contra o Sobrado, dou-lhe a minha palavra de cidadão e de soldado como nenhum deles voltará vivo!" "Mas isso é uma arbitrariedade!", gritou ele. E eu respondi: "Para preservar vidas humanas sou capaz de cometer todas as arbitrariedades e de passar por cima de todas as leis!"

- Magnífico, coronel!

- Ah! E disse-lhe mais: "Mande o seu capanga Dente Seco embora daqui o quanto antes! Sei para que o senhor mandou buscá-lo. E desde já eu o responsabilizo pelo que possa acontecer ao dr. Rodrigo Cambará e seus parentes e amigos".

Calou-se. Um pingo de suor caiu-lhe do queixo na túnica. Rodrigo aproximou-se do militar e apertou-lhe a mão num agradecimento silencioso.

- Pode mandar embora os seus amigos. Meus soldados ficarão montando guarda ao Sobrado até o amanhecer.

- Não carece - disse Licurgo.

- Não poderei dormir tranqüilo se eles não ficarem.

Jairo Bittencourt ergueu-se e caminhou para o gramofone, sorrindo.

- Então este é o famoso aparelho que o amigo mandou buscar?

- É um primor, coronel. Quer ouvir alguma coisa?

- Não. Obrigado. Fica para outra ocasião. Preciso voltar a casa. A Carmem está sozinha e preocupadíssima, a coitadinha!

- Mas ouça só uma chapa...

- Está bem.

Rodrigo pôs o gramofone a funcionar. Os primeiros acordes da ouverture de Egmont encheram a sala. O coronel deixou escapar um suspiro de satisfação.

- A música, a divina música! Como é que pode haver gente no mundo que não compreenda nem ame a arte? Quando ouço música, comovo-me a ponto de me virem lágrimas aos olhos. O que está faltando à humanidade, meu caro dr. Rodrigo, é uma religião. Fé, fé e amor é o que necessita este velho mundo cansado!

Licurgo pitava calmamente, olhando para o oficial com olhos apertados e cépticos.

Na sala contígua, Maria Valéria aproximou-se de Bio:

- Tocarem música a esta hora da noite! Estão doidos varridos...

Don Pepe, que bebera com Toríbio toda uma garrafa de caninha, acercou-se da janela, lançou um olhar sobranceiro para os soldados e, fitando depois a igreja, bradou:

- Clero y ejército! Los dos aliados de la burguesia! Me cago en la leche de la madre de todos los militares, de todos los curas, de todos los burgueses!

Após uma curta pausa, acrescentou:

- Me cago en la leche de mi propia madre! Voltou a cabeça e baixou a voz, respeitosamente.

- Con el perdón de usted, dona Maria Valéria...

XIV

Dias depois, encontrando Chiru e Neco na farmácia, à hora do chimarrão matinal, Rodrigo fez com ambos um exame da situação. A intervenção decidida do coronel Jairo dera novo rumo aos acontecimentos. Dali por diante, Aristiliano Trindade teria de andar com mais cuidado, e rigorosamente dentro da lei. Constava que mandara Dente Seco de volta para Soledade: havia quem afirmasse ter visto o capanga, com a cabeça envolta em ataduras, entrar numa diligência que deixara a cidade uma daquelas madrugadas.

- Ganhamos a primeira batalha! - exclamou Rodrigo jovialmente sentado no bureau do consultório. - Ataquei o situacionismo, disse horrores do intendente, do delegado e de toda a sua camarilha. Mandam buscar um bandido pra me assustar e eu deixo o cabra estirado na calçada, sem sentidos. O Trindade planeja um assalto ao Sobrado e o coronel Jairo intervém, dando claramente a entender que está do nosso lado, isto é, do lado do direito, da razão, da justiça...

- E agora?

Rodrigo apanhou a espátula e premiu-lhe a ponta contra o ventre de Chiru. - Agora chegamos ao ponto que eu desejava. Minha intenção nunca foi provocar barulho, mas botar as coisas nos seus devidos lugares. Descobri as baterias, mostrei que não tenho medo e principalmente, provei ao povo da minha terra que é possível ir contra a situação sem perigo de perder a vida ou ser espaldeirado na rua pela polícia. Em última análise, apliquei no eleitorado indeciso uma injeção de óleo canforado. Pois bem. De hoje em diante A Farpa mudará de tom, transformando-se de jornal de ataques pessoais em jornal puramente doutrinário. Vou dar a essa corja uma lição de elegância moral!

- Que história é essa? - perguntou Neco Rosa.

- Quinta-feira que vem, o marechal chega com sua comitiva. Nesse dia vou fazer sair mais um número d'A Farpa, e o editorial será uma saudação cordial ao candidato militarista.

- Saudação? - estranhou Chiru.

- Saudação. Vou elogiar o homem, porque no fim de contas o Hermes parece um sujeito bem-intencionado...

Neco tirou a bomba da boca.

- Estás louco? Rodrigo sorriu:

- Nunca estive tão bom do juízo em toda a minha vida. Chiru fungava, o cenho cerrado:

- O marechal não passa dum boneco manejado pelo Pinheiro Machado, que não é trigo limpo.

- Sabes duma coisa, Chiru? Tenho um fraco pelo senador...

- Não diga isso! O Pinheiro é a asa negra do Brasil. Quero ver a caveira dele, pra felicidade da nossa terra.

- Bom, não vamos discutir esse assunto agora. Mas, voltando ao editorial, farei ver aos leitores que não estamos fanatizados pela causa civilista e sabemos reconhecer também o mérito de nossos adversários. Está claro que no fim do artigo puxo brasa pró nosso assado, provo por a + b que o senador Rui Barbosa é superior ao marechal. Mas provo com idéias, com fatos e não com adjetivos apaixonados.

Efetivamente, no dia em que o marechal Hermes da Fonseca chegou a Santa Fé, A Farpa foi distribuída pela manhã por toda a cidade. Trazia na primeira página, dentro de vistosa cercadura, um editorial cujo fecho rezava:

Bem-vindo, pois, seja o ilustre candidato oficial à cidade de Santa Fé, que saberá recebê-lo de braços abertos e um sorriso amigo nos lábios, embora seu coração palpite de admiração e simpatia pelo candidato civilista, para o qual está reservando seus votos, no próximo e grandioso pleito de primeiro de março!

O trem que conduzia o marechal Hermes da Fonseca e sua comitiva chegou a Santa Fé às onze da manhã e foi esperado na estação da estrada de ferro pelos representantes militares, que envergavam uniformes de gala, e pelas autoridades civis, à frente das quais se achava o coronel Aristilíano Trindade, muito pouco à vontade dentro dum apertado fraque preto. Na plataforma transbordante de gente, a banda de música do regimento de infantaria tocava dobrados. No largo estavam formados os trezentos e tantos alunos do Colégio Elementar David Canabarro, que agitaram bandeirinhas e soltaram vivas quando o marechal apareceu à porta da estação.

A pedido do intendente as casas comerciais haviam cerrado suas portas, e o nordeste que soprava aquela manhã bulia com as bandeiras hasteadas à frente da Casa Sol, da repartição dos Correios e Telégrafos, do Clube Comercial e do Centro Republicano.

O jornal da situação, aparecido na véspera, informara que o marechal passaria o resto daquele dia em Santa Fé, continuando a viagem para Cruz Alta na manhã seguinte. No salão nobre da Intendência haveria, com início à uma hora, grande banquete de cento e vinte talheres, em homenagem ao "futuro presidente da República", o qual, "após o ágape", se recolheria a "'seus aposentos, para um merecido repouso". As cinco da tarde, Sua Excelência visitaria os quartéis e o Centro Republicano, onde lhe seria oferecida uma taça de champanha. À noite estaria presente ao "comício monstro a realizar-se em sua honra à frente do paço municipal".

Faltava um quarto para o meio-dia quando o carro da Intendência, de tolda arriada, chegou à praça da Matriz, conduzindo Hermes da Fonseca ladeado pelo coronel Trindade e pelo coronel Prates. O marechal estava à paisana, numa roupa cor de chumbo, e trazia na cabeça um chapéu do Panamá.

A gente do Sobrado - menos Licurgo, que se fechara no quarto, birrento, "'para não ver a cara do sargentão" - debruçou-se às janelas da sala de visitas. Olhando para o rosto corado do candidato militarista, com o seu volumoso nariz adunco, Toríbio murmurou:

- Eta bichinho bem feio!

Da janela, Maria Valéria retrucou:

- O Dr. Rui não é nenhuma beldade.

- Quem tem talento não carece de formosura, titia.

No momento em que o carro defrontava o Sobrado, Joca Prates murmurou qualquer coisa ao ouvido do marechal, que voltou a cabeça para a direita, na direção dos irmãos Cambarás, e tirou o chapéu. Sua calva reluziu ao sol.

- Bom dia, filho da mãe... - murmurou Toríbio por entre dentes.

Num assomo de cordialidade, Rodrigo fez um largo aceno para o visitante.

Pouco depois do carro oficial, desfilou pela frente do Sobrado a banda de música militar, tocando O General Oyama, o dobrado predileto de Rodrigo. O negro Sérgio marchava na vanguarda dos músicos, soltando foguetes, que acendia em tições conduzidos pelos moleques que o acolitavam.

A melodia vibrante espraiava-se no ar, e não só as superfícies polidas dos instrumentos de metal refletiam a claridade da manhã como também suas rútilas vozes reverberavam festivamente naquele largo cheio de ecos.

O nordeste fazia girar o galo do cata-vento da torre. As copas do arvoredo da praça agitavam-se, num verde movimento de água. De cada lado da porta central da Intendência, a bandeira nacional e a do Rio Grande drapejavam alegremente. Os rojões explodiam como tiros de canhão. As narinas dilatadas, a respiração já meio opressa, Rodrigo ia sendo aos poucos tomado dum entusiasmo marcial. Tudo aquilo - o esfuziar e o estrugir dos foguetes, a música, as bandeiras, o vento, o sol, os uniformes flamantes, o faiscar dos metais -, tudo aquilo lhe sugeria guerra e heroísmo. E um passado inteiro feito de textos e gravuras escolares, discursos patrióticos, romances de capa e espada, hinos, heróis, mártires, clarinadas, apoteoses; todo um passado de mitos que Rodrigo julgava mortos, ergueu-se como um vagalhão e arrebatou-o, atirando-o, por um mágico segundo, às praias da infância. Lomas Valentinas... Riachuelo... Itororó... Quem for brasileiro que me siga!... Com a cavalaria dos Farrapos conquistarei o mundo!... Tiradentes esquartejado... Frei Caneca... Ana Néri... Filipe Camarão... O estudante alsaciano batendo no peito: A França está aqui dentro!... O tamborzinho inglês que não sabia tocar retirada... Ó auriverde pendão de minha terra, que a brisa do Brasil beija e balança!

Rodrigo estava inquieto. Queria aproveitar a presença do marechal para fazer alguma coisa, e começava a irritar-se porque não conseguia descobrir o que era. Tinha energias de sobra para gastar, e no entanto ali estava à janela, inerte. Não se conformava com a idéia de não participar - fosse como fosse - daquele momento cívico. Arrependia-se de não ter mandado imprimir boletins com frases anti-hermistas, para distribuir agora ali na praça, às barbas do candidato oficial.

Don Pepe entrou no Sobrado em grande agitação e puxou Rodrigo para um canto.

- Que oportunidad, hijo, que oportunidad! Una bombita, no más que una bombita chiquitita y, ay madre de mi alma, que hermoso espectáculo.

Rodrigo sorria. Os ardores niilistas do espanhol o divertiam. O pintor estava a andar para diante e para trás, nos seus passinhos nervosos.

- Es que estoy perdido en esta miserable ciudad, hombre. Estoy ablandado, no hago nada. Sabes lo que decía Bakunin del verdadero anarquista?

Ah! O grande Bakunin escrevera em seu Catecismo que o revolucionário não deve ter interesses pessoais nem sentimentos nem propriedade. Deve concentrar-se num único pensamento: a Revolução. Um único alvo deve preocupá-lo: a destruição. Despreza a moral, pois para ele é moral tudo quanto possa favorecer a Revolução. Entre o verdadeiro anarquista e a sociedade existe uma luta de morte, um ódio irreconciliável. Ele deve estar sempre pronto a morrer, a suportar mil torturas e a matar com suas próprias mãos todos quantos ponham obstáculos à Revolução. Toda a afeição deve ser-lhe estranha, pois os sentimentos dessa natureza podem às vezes deter-lhe o braço.

- Mas como explicas - perguntou Rodrigo - que o grande Tolstói seja anarquista e pregue o amor como a lei suprema da vida?

- Tolstói es un anarquista moderado. Yo soy un anarquista exaltado. - Depois duma pausa reflexiva, ajuntou: - Pêro hay que respectar el viejito, corio!

Sentou-se dramaticamente no sofá.

- Ay! Una bombita, no más que una bombita...

- Vamos tomar alguma coisa, Pepito?

- Si. Soda cáustica.

Bio foi buscar as garrafas de cerveja que havia posto a refrescar dentro do poço. Encheram os copos, fizeram um brinde ao candidato civilista e à sua próxima vitória. Com os bigodes coroados de espuma, as magras pernas estendidas, don Pepe tomou a palavra e procurou provar aos amigos que, em última análise, o assassínio político devia ser considerado também como uma das belas-artes. Ah! Os formosos atentados da França! Vaillant, fazendo jus a seu nome, atirara uma bomba no Parlamento. Caserio abatera em Lyon, a golpes de punhal, o presidente Sadi Carnot. Os mais lindos atentados do mundo, porém, eram os russos! Alexandre II fora vitimado por uma bomba nilista em 1881... Exaltado, o espanhol pintava o quadro. As ruas de Moscou sob um céu funéreo, de chumbo e triste... O czar passando no seu carro, cercado de cossacos... De repente, surge o anarquista, precipita-se para o meio da rua com um objeto negro apertado contra o peito e lança-se aos pés dos cavalos... Um clarão, uma explosão medonha e o czar lá se vai pelos ares, com carruagem, cavalo, nilista e tudo!

Em 1902 os anarquistas russos liquidaram Bobollepot, ministro da Instrução. Em 1903, Bogdanovitch, governador militar de Ufa. Em 1905 tombara o grão-duque Sérgio, comandante militar de Moscou. E Pepe ia pronunciando os nomes das vítimas com o mesmo prazer com que um guloso mencionaria pratos esquisitos: Bobikov, Boguslavski, Sipiaguin... Governadores, ministros, grãoduques, reis... Que safra magnífica! O pintor lambia os beiços.

- Y que hago yo, senores, que hago yo? Pufi Bebo cerveza en Santa Fé con dos representantes de la burguesia!

Olhou desconsolado para o copo vazio, que Toríbio se apressou a encher.

- Está bem, don Pepe - disse Rodrigo, sorrindo. - Presta um serviço à pátria e à humanidade. Assassina o Titi Trindade.

O espanhol olhou firme para o amigo, o cenho franzido. Depois fez uma careta de repugnância.

- Trindad? Trindad es indigno de la lâmina de mi punal! Rodrigo desatou a rir, pois sabia que o punhal de Pepe Garcia, bem como suas bombas, tinha uma existência puramente imaginária.

Aquela noite Rodrigo foi com Toríbio, Chiru e Neco sentar-se debaixo da figueira da praça, a fim de observar o comício mais de perto. Uma grande multidão aglomerava-se à frente da Intendência, que tinha as janelas e portas escancaradas, e todas as dependências iluminadas. Era uma noite de lua nova, e os lampiões que o negro Sérgio acendera ao anoitecer, mal alumiavam a cena com sua luz escassa e amarelenta.

De vez em quando foguetes subiam, zunindo, e espocavam no alto, em relâmpagos seguidos de estrondos que o eco duplicava. Um que outro viva se erguia no meio do povo.

Uma multidão humana - refletiu Rodrigo - não diferia muito dum rebanho de carneiros fácil de conduzir. Mais uma vez lhe veio, profundíssima, a orgulhosa certeza de não ter nenhuma vocação para carneiro. A simples idéia de estar ali protegido pela sombra da figueira, a espiar clandestinamente o comício, dava-lhe uma vil sensação de inferioridade.

Pouco antes das nove horas, o grupo que havia pouco saíra do Centro Republicano, puxado pela banda de música militar e carregando bandeiras e fachos acesos, chegava à praça e, depois de passar sob vivas e estampidos de foguetes pela quadra do Sobrado e pela da matriz, fez alto diante do paço.

Contemplando a turbamulta, aquela aglomeração de vultos escuros sem fisionomias (aqui e ali se vislumbrava um que outro semblante ao clarão dum archote), Rodrigo murmurava: "Pura Idade Média... Pura Idade Média". Pensou em autos-de-fé, câmaras de tortura, tribunais inquisitoriais... E por alguns instantes brincou com uma idéia que lhe produziu uma sensação de vácuo na boca do estômago. Precipitar-se a correr, entrar na Intendência, aproximar-se duma das janelas e dali fazer um discurso-relâmpago contra o marechal... Imaginou a reação do povo, a fúria do Trindade e seus asseclas, o tumulto, a confusão... Isso lhe deu um prazer tão intimamente intenso, que foi quase como se tivesse posto a idéia em prática.

Uma pancada de bombo. A música cessou. Ergueram-se novos vivas, a que o povo respondeu num coro roufenho. E quando Hermes da Fonseca apareceu à janela, acompanhado de Aristiliano Trindade, o povo rompeu em aplausos e aclamações, enquanto a banda atacava o Hino Nacional.

Discursou em primeiro lugar o promotor público, saudando o homenageado em nome do intendente e da população do município. Falou a seguir Amintas Camacho, como porta-voz da mocidade santa-fezense. O marechal foi o último orador da noite. Leu o discurso em voz tão baixa, que Rodrigo e os amigos quase nada puderam ouvir.

- Xô mico! - exclamou Toríbio.

Rodrigo estava agora fechado num silêncio soturno. Sentia-se roubado, diminuído por não estar participando positiva ou negativamente do comício. Arrependia-se de ter tratado tão bem no seu editorial o candidato militarista. Devia, isso sim, ter aproveitado a oportunidade para arrasá-lo. Maldito sentimentalismo!

- Depois duma bambochata dessa. - disse Toribio, quando a multidão começou a dispersar-se - só uma boa farra!

- Idéia mãe! - aprovou o Neco. - Vamos até a Pensão Veneza. Que tal, Rodrigo?

- Não contem comigo. Já disse que não tenciono ir mais a esses lugares.

Chiru, vezado em assumir ares paternais, interveio:

- Não. Ir à pensão é perigoso. Muitos desses hermistas que saíram do comício na certa vão também pra lá, se embebedam e acabam nos provocando.

- Pois se provocarem, se briga - simplificou Bio.

- Não é negócio. Tenho outra idéia. Vamos buscar umas raparigas e umas cervejas e tocamos pra casa do Saturno. Me passa aí vinte mil-réis.

Rodrigo meteu a mão no bolso, meio contrariado, e tirou a carteira.

- Mas não contem comigo - repetiu, dando o dinheiro ao amigo.

- E agora? - Chiru olhou para Neco. - Que raparigas tu achas que devemos levar?

O barbeiro refletiu por alguns segundos.

- Tem a Deá, a china Amândia, a Ruiva...

- Está bem. Somos três.

- Falta uma. Vamos levar a Morena pró Rodrigo.

- Já disse que não vou - repetiu este último, mas já com menos ênfase. Aqueles nomes de mulher haviam-lhe soado aos ouvidos como uma música cheia de inesperadas promessas.

Toribio tomou-lhe o braço e puxou-o consigo.

- Vamos, homem, não sejas bobo.

Rodrigo deixou-se levar. Que diabo! Não podia ir dormir àquela hora... Não estava disposto a ler nem a ouvir música. Ficar caminhando á toa e sozinho pela cidade, como um cachorro sem dono? No fim de contas...

- Que tal é a Morena? - indagou.

Chiru passou-lhe o braço sobre os ombros e começou a contar-lhe maravilhas da rapariga. Tinha um sinal na cara, uns vinte anos, era boa de peitos, boa de ancas, assim com um jeito de castelhana, mas crioula de Santa Fé, Rodrigo velho, prata da casa, um peixão!

No princípio da segunda quinzena daquele fevereiro, chegou a Santa Fé um grupo de cinco membros influentes do Partido Democrático de Cruz Alta, que foram logo procurar Licurgo e Rodrigo, com os quais confabularam longamente, tratando de conseguir que ambos se filiassem ao novo partido que Assis Brasil lançara de maneira tão espetacular na famosa convenção de Santa Maria, em 1908. Licurgo repeliu a sugestão, alegando que era castilhista e que castilhista pretendia continuar até o fim.

- Mas pense bem, coronel, o dr. Assis Brasil também continua castilhista. O Partido Democrático nada mais é que o Republicano passado a limpo!

Licurgo, porém, manteve-se irredutível. Quanto a Rodrigo, declarou que acompanharia o pai aonde quer que ele fosse.

- Bom - disse por fim um dos democratas -, já que essa questão está encerrada, vamos tratar da propaganda civilista em Santa Fé. Estamos às portas das eleições e temos que fazer alguma coisa enquanto é tempo.

Combinaram realizar um comício em praça pública naquela mesma semana, e irem depois em caravana visitar vários distritos, especialmente as colónias de Garibaldina e Nova Pomerânia.

Licurgo não escondia seu pessimismo. Achava agora que fazer propaganda do candidato civilista em Santa Fé era puro desperdício de tempo, energia e dinheiro. Estava convencido de que a eleição, como de costume, seria uma fraude e o candidato oficial sairia vitorioso por grande maioria de votos. Entretanto, como prova de sua boa vontade, estava disposto a contribuir com dinheiro para custear as caravanas.

O comício dos civilistas em Santa Fé realizou-se à noite, à frente do Sobrado, de cuja sacada Rodrigo e dois outros oradores dirigiram a palavra a um público entusiasta mas escasso. Nessa noite, temendo que o intendente mandasse dissolver o comício a bala - como se murmurava -, o coronel Jairo mandara patrulhas do Exército, montadas e armadas de mosquetões, rondar a praça desde o anoitecer até as primeiras horas da madrugada.

No dia seguinte Rodrigo acompanhou os democratas de Cruz Alta numa excursão pelo interior do município. Achou penosa a viagem de jardineira por aquelas estradas esbarrancadas e poeirentas. Em Garibaldina conseguiram para o comício uma assistência de quinze pessoas. Postado na boleia da jardineira, em vão Rodrigo no seu discurso invocou Garibaldi, o guerreiro de dois mundos. Garibaldi, o campeão da liberdade, que passara por aquelas campinas em sua prodigiosa aventura libertária. Falou também em Dante, em Mazzini e até no papa. Recitou trechos literários em italiano, enquanto o suor lhe escorria pelo corpo todo e ele sonhava com um banho e uma larga sesta em cama limpa. Via a seu redor as faces vermelhas dos colonos, que o escutavam com a mão em pala sobre os olhos, por causa da claridade do sol a pino. Era domingo e haviam aproveitado a hora da saída da missa para realizar o comício. Terminado este, Rodrigo visitou um dos maiorais da terra, o velho Lunardi, cujo filho, o Marco, havia sido seu colega de escola primária em Santa Fé. Tratou de saber com quantos votos podia o senador Rui Barbosa contar ali em Garibaldina. O velho desiludiu-os. Talvez na colônia o candidato civilista não conseguisse um único voto. Rodrigo voltou-se para o amigo de infância:

- Nem o teu, Marco?

O outro sacudiu negativamente a cabeça.

- Nem o meu.

- Mas por quê, homem?

- Se nós votamos contra o governo - justificou-se o rapaz - o subdelegado persegue a gente, carrega nos impostos. Ninguém quer ser prejudicado.

- Mas é um absurdo! - exclamou Rodrigo, batendo com o punho na mesa. - Estamos num país livre em que cada cidadão pode e deve votar em quem bem entender!

Marco sorriu. Era um homem troncudo e atlético, de quase dois metros de altura. Os cabelos bronzeados coroavam-lhe a face duma simpatia aliciante, em que a tez cor de tijolo contrastava agradavelmente com os olhos azuis. Desde menino Rodrigo sentia uma grande atração por aquele "gringuinho" com o qual tantas vezes jogara sapata e bandeira à frente do Sobrado. O velho Lunardi mandara-o aprender as primeiras letras em Santa Fé, visto como não havia escolas em Garibaldina. Agora, homem feito, auxiliava o pai no trabalho da lavoura, cujos produtos levava periodicamente à sede do município, para vender. Mas seu grande sonho - contara ele um dia a Rodrigo - era montar na cidade uma fábrica de massas alimentícias.

- Marco - disse-lhe Rodrigo, quando pôde falar a sós com o amigo -, estou desapontado contigo.

O colono ficou silencioso, de cabeça baixa, e pôs-se a riscar o chão com a ponta do pé descalço. Tinha uma voz macia, duma doçura que estava em desacordo com sua estatura física.

- Pois é...

- Que diabo! Dependia de vocês todos se unirem e resolverem falar grosso. Que era que o Trindade ia fazer? Aumentar os impostos é ilegal. Mandar a polícia espingardear os colonos? Claro que ele não chegaria a esse extremo. Vocês são como bois, que não têm consciência da própria força e se deixam levar por qualquer criança!

Marco Lunardi fitou em Rodrigo os olhos claros, e com sua voz mansa, cheia de esses chiantes e apertados de vêneto, replicou:

- Boi não vota nem paga imposto.

Rodrigo deu-lhe uma palmada no ombro e disse com afetuosa energia:

- Pois tenho pena de ti e da tua raça. Fica agüentando a canga. E adeus! Temos ainda hoje um comício em Nova Pomerânia.

Na colónia alemã não tiveram melhor sorte. O comício realizou-se à noite, no salão do clube ginástico, e a ele compareceram.

Para que não se diga que ando enxergando fantasmas e, qual novo quixote, transformando o moinho d'água do velho Spielvogel em guerreiros fabulosos, transcrevo um trecho tirado do livro A Arcádia da Alemanha, de Leyser, e citado na obra Contrastes e confrontos, do eminente escritor Euclides da Cunha. Ei-lo: "Hoje, nestas províncias (Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul) cerca de 30% dos habitantes são germanos ou seus descendentes: e, por certo, nos pertence o futuro dessa parte do mundo. De feito, ali no Brasil meridional, há paragens ricas e salubres, onde os alemães podem conservar a nacionalidade, e um glorioso futuro se antolha a tudo o que se compreende na palavra germanismus".

Foi, pois, com pessimismo que Rodrigo viu aproximar-se o dia das eleições. Os jornais traziam notícias de distúrbios nas ruas de Porto Alegre, onde civilistas e hermistas trocavam sopapos e bengaladas.

Ali em Santa Fé o governo fazia preparativos para a luta eleitoral. Cuca Lopes viera esbaforido ao Sobrado contar que vira o Dente Seco entrar na Intendência, a cabeça ainda envolta em ataduras. E não estava só: iam com ele uns dois ou três tipos de má catadura, armados até os dentes. A coisa está feia, menino!

Chegavam diariamente à cidade grupos de cavaleiros, vindos do interior do município. Eram caboclos bem montados que percorriam as ruas fazendo grande estardalhaço, os rebenques erguidos, as abas dos sombreros quebrados na frente, os palas ondulando ao vento. Passavam pelo Sobrado soltando vivas ao Partido Republicano, ao coronel Trindade, ao dr. Borges de Medeiros, ao dr. Carlos Barbosa e, eventualmente, ao marechal Hermes. Apeavam à frente da Intendência, onde a maioria ficava hospedada. Da janela de sua casa, Rodrigo via essas cavalgaras e murmurava, indignado:

- Isto é um país de botocudos. Só a bala!

Sua indignação subiu ao auge quando um dia, perto das onze da manhã, os peões de Trindade trouxeram para a praça grandes quartos de reses e puseram-se a fazer fogo debaixo da figueira, dentro duma longa vala rasa. Churrasco para a capangada! - compreendeu Rodrigo. E teve gana de gritar desaforos.

Pouco antes do meio-dia começaram a aparecer os caboclos e se foram sentando ou deitando à larga sombra da figueira. Um deles se pôs a tocar cordeona e, dentro em pouco, dois cabras começaram a trovar. Um deles cantou:

Eu me chamo Antônio Almeida Do Jari sou natural E cá estou em Santa Fé Pra votar no marechal - Oigalê bichinho bom, seu! - gritou um bigodudo que picava fumo recostado ao tronco da grande árvore. A gaita chorou sozinha por algum tempo. Por fim outro caboclo soltou a voz:

Pra votar no marechal Foi que vim de Santa Rosa Ai que surra vamos dar Nesse tal de Rui Barbosa!

Rodrigo arrastou o gramofone para perto da janela e fê-lo funcionar. E Caruso, cantando o Che gélida menina, entrou também no torneio de trovadores.

O dia 1° de março amanheceu sombrio e abafado. Rodrigo havia sido indicado pela oposição para fiscal duma das mesas eleitorais. Pôs o revólver na cintura, uma caixa de balas no bolso e encaminhou-se para seu posto, no salão nobre do Centro Republicano. A chamada dos eleitores começou às sete da manhã. Plantados junto da porta, os capangas do Trindade ofereciam cédulas com o nome dos candidatos oficiais a todos os eleitores que entravam.

Estes, em sua quase totalidade, tomavam docilmente dos papeluchos e depositavam-nos na urna, depois de assinar a autêntica. Os que se recusavam a isso, tinham os nomes acintosamente anotados. De raro em raro aparecia um maragato de lenço "colorado" no pescoço, trazendo já na mão sua chapa, que metia na urna com ar altivo e quase provocador.

Rodrigo estava deprimido. Deve ser o calor - concluiu, tirando o casaco e desabotoando o colarinho. Passou o lenço pelo rosto e pensou em que tinha de passar o dia inteiro ali naquela sala desagradável que tresandava a sarro de cigarro crioulo e a suor humano.

O mesário que fazia a chamada, gritou:

- Arnesto Tavare Nune.

Apareceu um homenzinho baixo, de ar bisonho.

- Protesto, senhor presidente! - bradou Rodrigo.

- Por quê?

- Este sujeito é um impostor. Ernesto Tavares Nunes já morreu. O presidente dirigiu-se ao eleitor.

- Como é o seu nome?

O homem olhou primeiro para Rodrigo, hesitante, depois para a cédula que um capanga lhe havia posto nas mãos, e finalmente balbuciou, visivelmente embaraçado:

- Arnesto Tavare Nune. Rodrigo pôs-se de pé.

- Apelo para os membros da mesa e para os senhores aqui presentes que sabem tão bem quanto eu que Ernesto Tavares Nunes está morto e enterrado!

Fez-se um silêncio.

- Vamos ao cemitério - convidou Rodrigo - e eu lhes mostrarei o túmulo desse cidadão.

O presidente da mesa coçou a cabeça com a ponta da caneta.

- Dr. Rodrigo, nós não temos tempo pra essas coisas, e mesmo a lei não nos autoriza...

- Ora, quem quer falar em lei! Vamos ao registro de óbitos, então.

- O homem vai votar e o senhor depois lavra o seu protesto.

- A velha história! Meu protesto não será levado em conta! É a indecência de sempre!

- Assine seu nome aqui - disse o presidente ao eleitor.

- Continuem a farsa! - gritou Rodrigo. Sentou-se, indignado, pegou um lápis e começou a escrever numa folha de papel todos os palavrões que sentia ímpetos de atirar na cara do presidente da mesa e na dos fiscais hermistas.

Ao meio-dia Bento apareceu, trazendo-lhe um prato de comida e uma garrafa de cerveja. Contou que a coisa ia muito mal para os civilistas na maioria das mesas.

- Lastimaram um homem - sussurrou o caboclo ao ouvido do patrão.

- Quem?

- Um filho do Maneco Vieira. Quiseram obrigar o rapaz a pegar uma chapa do marechal, ele se incomodou, disse uns desaforos e então fechou o tempo.

- Está muito ferido?

- Bastantinho.

Rodrigo largou o talher e afastou o prato.

- Com essa gente, só a bala! - disse em voz alta, lançando olhares torvos na direção dos outros componentes da mesa, que também comiam ao pé da urna.

Acendeu um cigarro, ficou a fumar e a caminhar dum lado para outro, sentindo mais que nunca o calor, a pressão atmosférica, o desejo de ir embora e a miséria de tudo aquilo.

À tarde, Chiru veio anunciar-lhe a chegada de eleitores picapaus que haviam votado pela manhã em Cruz Alta e que agora estavam votando pela segunda vez na mesa instalada no edifício da Intendência.

- Dizem que no interior do município houve barulho feio - acrescentou.

Eleitores continuavam a chegar ao Centro Republicano. Pelo que Rodrigo observara, os civilistas ali estavam apenas com uns escassos cinco por cento da votação, e esse talvez fosse um cálculo otimista.

- Só há um lugar onde vamos vencer - disse a Chiru. - E no terceiro distrito.

O terceiro distrito era uma espécie de feudo dos Macedos. Lá Rui Barbosa teria maioria absoluta, pois nele votariam todos os Macedos, que não eram poucos, e mais seus numerosos peões, capatazes, posteiros, agregados e amigos.

- Mas aposto que os hermistas vão dar um jeito de anular essa mesa - retrucou Rodrigo.

Depois de encerrada a votação, lavrou seu protesto, assinou a ata, com uma violenta ressalva, e ergueu-se para sair. O presidente da mesa estendeu-lhe a mão. Rodrigo murmurou apenas "Passe bem", voltou-lhe as costas e se foi. Estava cansado, desiludido e triste. Ansiava por um banho, mas um banho que não só lhe lavasse o corpo como também a alma.

Seguiu rua do Comércio acima, rumo do Sobrado. Viam-se nas calçadas grupos que comentavam animadamente as eleições. Um céu baixo de sépia pesava sobre a cidade, e andava na atmosfera carregada de eletricidade um prenúncio de tempestade e desastre. Por que será que Santa Fé não tem ainda uma fábrica de gelo? - pensava Rodrigo.

Por que será que não tem luz elétrica? Por que será que ainda não criou vergonha?

Concluiu que não valia a pena sacrificar-se por aquele burgo podre. Os santa-fezenses simplesmente não queriam ser salvos...

Entrou no Sobrado. Maria Valéria veio a seu encontro:

- Graças a Deus você chegou! Já estava começando a ficar assustada. Ainda bem que não lhe aconteceu nada.

- Quem foi que lhe disse? Me aconteceu tudo. Acabo de me desiludir da política, da minha terra, da minha gente e de mim mesmo.

- Pois não é sem tempo. Agora sossegue o pito e cuide da sua vida.

- E o que vou fazer. Papai já chegou?

- Já. Na mesa que ele fiscalizou, correu tudo em ordem.

- E o Bio?

- Ainda não veio.

Rodrigo apanhou o sabonete e uma toalha, entrou no quarto de banho, despiu-se e tomou uma prolongada ducha fria. Estava a enxugar-se quando Toríbio entrou e despejou a notícia:

- Houve barulho no terceiro distrito e mataram um filho do Maneco Macedo!

Por alguns segundos Rodrigo quedou-se mudo, de boca entreaberta, a olhar estupidamente para o irmão.

- Qual deles? - perguntou por fim.

- O mais moço.

Rodrigo sentou-se num mocho e ali ficou, enrolado na toalha, os olhos fitos no chão, o ritmo da respiração alterada, e já começando a sentir de novo o suor escorrer-lhe pelo corpo.

Bio tirou a roupa e foi para baixo do chuveiro.

- Houve um tiroteio brabo - contou. - O Trindade sabia que o marechal ia perder a eleição no terceiro distrito e mandou pra lá a capangada. Quando a votação acabou, quiseram roubar a urna. Foi aí que começou o cu-de-boi.

De olhos fechados, Bio recebia o jorro d'água em pleno rosto. Rodrigo estava tão cansado e deprimido, que parecia ter perdido a capacidade de indignar-se.

Toríbio fechou a torneira.

- Morreram também dois dos capangas. E sabes quem era um deles? O teu amigo, o Dente Seco. Caiu abraçado com a urna.

Às nove horas Licurgo Cambará e os filhos tomaram o carro e dirigiram-se para a casa dos Macedos, onde estava sendo velado o corpo do caçula da família. A noite continuava abafada, o ar parado. A cidade fervilhava de boatos sombrios. Murmurava-se que Titi Trindade, em represália pela morte de seus cabos eleitorais, ia atacar a bala a casa dos Macedos.

No carro, os três Cambarás deixavam-se levar em silêncio. Licurgo pigarreava, com uma insistência que já começava a irritar o filho mais moço.

Boatos negros começaram a circular pela cidade. Afirmava-se que os Macedos se preparavam para exigir de Amintas Camacho Lima satisfação. Dizia-se: "Se é verdade, vai correr muito sangue, porque o Amintas tem as costas quentes". Pouco depois do meio dia, alguém contou na roda de chimarrão da farmácia do Zago que os Macedos estavam-se armando (tinham até mandado buscar três peões da estância) para ir àquela tarde empastelar A Voz e dar uma sumanta em seu diretor.

Licurgo e Rodrigo correram à casa dos Macedos e, verificando que eles pretendiam mesmo atacar a redação do jornal situacionista, procuraram dissuadi-los disso.

- É uma loucura, Maneco - disse Licurgo -, vassuncês estão em minoria, vão ser massacrados.

- Que m'importa? Esse negócio não pode ficar assim. É uma vergonha.

Por fim, impaciente, esgotados os argumentos, Licurgo exclamou:

- Pois se vassuncês vão, nós vamos também!

Rodrigo, porém, telefonou ao coronel Jairo e pediu-lhe o auxílio. O comandante do regimento de infantaria apressou-se a vir à casa de Maneco Macedo. Fechou-se com ele num quarto e, após um colóquio que durou quase uma hora, arrancou-lhe a promessa, sob palavra de honra, de não levar adiante seu propósito. Depois que o comandante se retirou, Maneco olhou para Licurgo.

- Estou desmoralizado. Mataram meu filho e eu aqui parado, fechado dentro de casa, sem fazer nada.

Rodrigo tentou consolá-lo. Todo o mundo sabia que os Macedos tinham reagido com hombridade à agressão, e uma das provas disso era que dois dos bandidos do Trindade haviam ficado estendidos no chão, sem vida.

- Mas essa cachorrada escreveu aquelas sujeiras no jornal! Rodrigo voltou para casa e redigiu um telegrama de protesto, que devia ser dirigido ao presidente da República, narrando os acontecimentos do terceiro distrito, acusando o Trindade e seu delegado de polícia como responsáveis pelo conflito, e exigindo justiça. Saiu depois de casa em casa a colher assinaturas para o memorial. Todos os federalistas assinaram sem hesitar; alguns republicanos dissidentes fizeram o mesmo; mas muitos foram os que se esquivaram, usando de subterfúgios ou dizendo claramente que não queriam meter-se naquele embrulho. Ao fim do dia o telegrama contava apenas com quarenta e três assinaturas. Rodrigo, que esperara conseguir no mínimo cento e cinqüenta, estava desapontado. Santa Fé era um caso perdido.

Decidiu imprimir um número especial d'A Farpa. Sentou-se a mesa e redigiu um manifesto ao povo de sua terra, dando a verdadeira versão da "tragédia do terceiro distrito" e concitando os conterrâneos a reagir por todos os meios - primeiro pelos legais e depois, se falhassem estes, pelos ilegais - contra aquela situação vergonhosa que os aviltava, pondo em constante perigo a vida dos homens livres do município. Num outro artigo atacou o governo, que fraudara as eleições, acusou o intendente e o delegado de polícia, e lançou sobre o Amintas - "capacho imundo, escriba crapuloso - uma nova rajada de insultos.

Chamou Pepe Garcia e fê-lo compor e imprimir às pressas o número especial. E, pronta a edição, estava a pique de telefonar para Chiru e Neco, pedindo-lhes que viessem ajudá-lo na distribuição, quando Toríbio interveio:

- Não! Agora a coisa é comigo. Que diabo! Vocês nunca deixam nada pra mim. Quem vai distribuir o teu pasquim sou eu, não de carro, que não sou maricas, mas a cavalo e em plena luz do dia. Mas fecha essa boca, não digas nada pró papai nem pra titia, senão eles me estragam a festa.

Vestiu a melhor bombacha, amarrou um lenço de seda branca no pescoço, botou o revólver na cintura, montou no bragado, apanhou um monte de jornais e saiu a distribuí-los. Começou pela rua do Comércio. Fazia o cavalo subir nas calçadas, aproximava-se das janelas abertas e atirava para dentro de cada casa um exemplar da folha. Na rua entregava-os a amigos, conhecidos e desconhecidos. Fazia isso com tamanha decisão, com tão turbulenta energia, que os outros nem sabiam como recusar. E quando alguém lhe dizia ou fazia que não, Bio perseguia-o, chegava a meter-lhe o cavalo em cima, gritando: "Pega o jornal, molenga!" E assim foi descendo em ziguezague a rua principal. A frente da Casa Sol uns três republicanos conversavam com Marcelino Veiga. Toríbio aproximou-se do grupo, exclamando jovialmente: "Olha A Farpa, minha gente!" Houve murmúrios de protesto no grupo e, como Bio insistisse em dar-lhes o jornal, os homens lhe viraram a cara. Vendo, porém, que o cavalo subia para a calçada, embarafustaram quase em pânico para dentro da loja. "Fugindo, covardes!" Toríbio impeliu o bragado loja adentro e pôs-se a atirar jornais a torto e a direito, gritando e rindo no meio do susto de empregados e fregueses, enquanto as patas e ancas do animal iam derrubando caixas e sacos, fazendo grandes queijos caírem das prateleiras e saírem rolando pelo soalho, e tombando, numa barulheira que agravava a confusão, panelas, canecos, latas e garrafas. Glorioso, Toríbio saiu por outra porta e prosseguiu na tarefa. Ao chegar à praça Ipiranga, aproximou-se da casa de Titi Trindade e jogou para dentro, através duma janela aberta, um maço de jornais. Depois enfiou pela rua Voluntários da Pátria, sempre em ziguezague e, ao cruzar a esquina da rua do Poncho Verde, avistou o Amintas, que caminhava na calçada oposta. Fez o cavalo atravessar a rua à trote e gritou: "Pára aí, cachorro! Tenho um presente pra ti!" Ao avistar Toríbio Cambará, o redator Da Voz recuou alguns passos e encostou-se na parede, amarelo de pavor. Toríbio entregou-lhe um jornal, que ele apanhou automaticamente, os olhos muito arregalados e turvos de medo fitos no rosto do cavaleiro. O bragado estava a encostar o focinho na cara do rábula. "Não tenhas medo que não vou te fazer nada, miserável! Não costumo surrar em fêmea." Meteu os calcanhares nos flancos do animal e gritou: "Vamos embora, bragado velho, porque isto aqui está fedendo!"

Ao chegar ao Sobrado, encontrou o pai de cara amarrada. - Já fiquei sabendo das suas estripulias. O Veiga me telefonou fazendo queixa do senhor.

Toríbio nada disse. E Rodrigo, que se achava presente, percebeu imediatamente que o Velho não estava muito disposto a repreender o filho.

Por alguns instantes nenhum dos três falou. Por fim, Licurgo tirou do bolso um pedaço de fumo em rama e começou a picá-lo. Olhando para Bio, disse:

- O senhor e eu não temos mais nada que fazer na cidade. Já votamos, já cumprimos a nossa obrigação. Vamos voltar amanhã pró Angico. E o senhor, seu Rodrigo, comece também a cuidar da sua vida, que já não é sem tempo.

XV

Licurgo e Toríbio voltaram para o Angico, e Rodrigo ficou com a madrinha no Sobrado, o que lhe deu uma gostosa sensação de liberdade. Queria bem ao pai, respeitava-o, e era-lhe intimamente necessária a idéia de que ele o estimava e admirava. No entanto, quando o velho estava perto, não podia deixar de sentir uma impressão de mal-estar, por ver um implacável olho fiscalizador permanentemente focado em sua pessoa. Não havia criatura mais crítica de seus atos que Maria Valéria, mas Rodrigo tinha para com ela a liberdade de replicar. Além do mais, as repreensões da tia geralmente faziam-no rir. Com Licurgo, porém, era diferente. Havia pouco, ao receber algumas caixas de vinhos franceses e italianos encomendadas a uma firma de Porto Alegre, Rodrigo transformara um dos compartimentos do porão numa adega. Levara o pai a vê-la, mas o único comentário que arrancara dele fora uma série de pigarros de contrariedade. Soube depois que o Velho dissera à cunhada: "Esse rapaz é um perdulário. Não sei por quem puxou".

Doutra feita, durante o almoço, Rodrigo abrira uma garrafa de Borgonha. Ao fazer menção de encher o cálice do pai, este o detivera.

- Pra mim, não.

No dia seguinte, vendo o filho abrir uma garrafa de Chianti, franzira o cenho.

- O senhor pretende tomar vinho todos os dias?

Fora uma pergunta desconcertante. Num rompante, Rodrigo meteu a rolha no gargalo, saiu da sala a pisar duro, levando a garrafa de volta à adega. Passaram o resto do almoço num silêncio que em vão Bio mais duma vez tentara romper.

A primeira coisa que Rodrigo fez quando o pai deixou o Sobrado foi mandar esconder todas as escarradeiras que se achavam espalhadas pela casa. "Uma porcaria, Dinda, uma coisa dum mau gosto horrendo!"

Maria Valéria encolheu os ombros.

- Sua alma, sua palma.

- Se dependesse só de mim - murmurou Rodrigo -, eu tirava também aquele retrato do Júlio de Castilhos da parede do escritório...

- Se você tirar, seu pai bota o mundo abaixo.

- Não é que eu não admire o homem... Mas acontece que esse retrato tem qualquer coisa de cemitério, de mausoléu. Temos de alegrar esta casa. Precisamos de cor!

Estava pensando em quadros com mulheres nuas - nus artísticos, naturalmente - reproduções de obras de pintores famosos como Rubens, Ticiano, Manet, Renoir... Ah! Como ele gostaria de ter no Sobrado as sugestivas pinturas de Toulouse-Lautrec, tão típicas da galante vida parisiense!

- Dinda - disse ele um dia, ao erguer-se da mesa do almoço -, vou convidar uns amigos para virem aqui em casa no sábado de noite.

Ela olhou de viés para o afilhado.

- Festa?

- Não, não se assuste. Uma pequena reunião. Que diabo! Gosto de gente, não quero viver como uma fera enjaulada. Vou convidar o coronel Jairo, o tenente Lucas, o tenente Rubim... Pode vir também o Chiru, o Saturnino, o espanhol...

- Isso está me cheirando a festa.

Tomou-lhe a cabeça com ambas as mãos e deu-lhe um sonoro beijo na face. Ela permaneceu séria e fria.

- Não adianta me adular. Conheço bem as suas manhas.

- Venha me fazer um cafuné.

- Pensa que não tenho mais o que fazer?

Rodrigo arrastou-a para o quarto, estendeu-se na cama, na beira da qual Maria Valéria se sentou. Seus dedos loucos e magros meteram-se pelos cabelos do sobrinho e começaram a friccionar-lhe o couro cabeludo, vagarosamente.

Ele cerrou os olhos, com um profundo suspiro de prazer. O relógio lá embaixo bateu uma badalada.

- Não há nada no mundo melhor que um cafuné. Aaaai! Feliz de quem tem uma tia, quando essa tia é um anjo!

- Hum...

- Devagarinho... Assim...

- Não suje a colcha, porcalhão, tire essas botinas. Rodrigo fez um pé descalçar o outro e jogou os sapatos para fora do leito.

- Dinda, vou lhe contar meus planos. Daqui por diante pretendo cuidar da profissão, do consultório, da farmácia. O resto que vá pró diabo!

- Promessa de bêbado.

- Palavra de honra. Esse país não tem jeito. Só uma revolução.

Soergueu-se na cama, e, como se a frase anterior tivesse sido dita por ela e não por ele, perguntou:

- Fazer uma revolução com quem? Com o povo? Mas não é possível ir contra as classes armadas! (Na verdade não se estava dirigindo à tia, mas aos leitores d'A Farpa.) Neste pobre país parece que nada se pode fazer sem o concurso dos militares. Foram civis como Castilhos, Patrocínio, Bocaiuva e outros que fizeram a República com idéias. Mas na hora de dar o golpe, desgraçadamente recorreu-se ao Exército. O primeiro presidente foi um marechal. E que fez ele? Dissolveu o Congresso. Agora, pra mal dos pecados, parece que vamos ter outro soldado na presidência. Outro Fonseca! Este país está perdido. Só uma revolução!

Tornou a deitar-se. De novo os dedos de Maria Valéria se afundaram em seus cabelos.

- Coce mais pra baixo, Dinda. Não, mais pra baixo. Aí...

- Não sei por que essa gente só pensa em política.

- Eu sei. É porque a política lhes da as coisas que eles mais ambicionam: posições de mando, força, prestígio. não há quem não goste disso.

- Você não é obrigado a se meter...

- Mas acontece que também gosto!

- Estás bem arranjado...

Fez-se um longo silêncio durante o qual Rodrigo pareceu adormecido. Maria Valéria parou o cafuné e fez menção de levantar-se. Ele sorriu, segurando com um gesto vivo o pulso da tia.

- Ia fugindo, não, sua traidora? Fique aí, que eu quero lhe contar outro segredo. Vou me casar ainda este ano.

- Pra que tanta pressa?

- Ora! Preciso ter minha mulher, meus filhos, meu lar...

- Mas tudo vem a seu tempo. Não é bom a gente precipitar as coisas.

- Não sou homem de meias medidas. Não tenho paciência pra esperar. Veja o que aconteceu pró Macedinho. Morreu com dezessete anos.

- O Fandango está com cem.

- Seja como for, já resolvi. Sabe quem é ela?

- A filha do Babalo.

- Claro, quem mais podia ser? A moça mais bonita e prendada de Santa Fé. Não é do seu gosto?

- É.

- Então diga isso com mais entusiasmo.

- É.

- Quando ela voltar de fora, vou falar com o pai.

- Sabe que o Babalo anda mal de negócios?

- Mais uma razão pra apressar o casamento.

- Já falou com a moça?

- Não. Mas tenho a certeza de que ela vai me dar o sim.

- Presunçoso.

A voz de Rodrigo estava começando a ficar arrastada, e ele sorria com a languidez da sonolência.

- É bom viver, titia... Mesmo que a gente viva cem anos como o Fandango, ainda é pouco. Quero viver cento e vinte... cento e oitenta... cento e sessenta... - Mal movia os lábios. - Mil e quatrossss...

Adormeceu sorrindo. Maria Valéria ergueu-se e saiu do quarto na ponta dos pés.

Laurinda olhava com uma expressão de perplexidade para Rodrigo, que, parado junto da mesa da cozinha, barrava de caviar pequenos quadrados de pão que ele mesmo acabara de cortar com todo o cuidado.

- Parece mentira! - exclamou a mulata, olhando para Maria Valéria. - O Rodrigo virou mulher.

- Prove, titia!

- Não quero. Isso é capaz de me arruinar o estômago.

- Coma tu, então, Laurinda.

- Credo! Essa porqueira até parece chumbo miúdo.

A negra Paula, que estava acocorada no canto da cozinha, soltou a sua risada cava e rouca.

Rodrigo meteu o pedaço de pão na boca e por um instante ficou a mastigá-lo com delícia.

- Milagres dos milagres! - exclamou, metendo a ponta da faca dentro da lata de caviar. - A Argentina planta o trigo, pescadores escandinavos pescam esturjões no mar do Norte e com suas ovas se fabrica o caviar. O Chico Pão faz o pão com farinha argentina e o dr. Rodrigo Cambará passa nele o caviar nórdico para oferecer aos seus convidados, um dos quais nasceu no Rio de Janeiro, os outros em Sergipe, em Alagoas, na Espanha e em jacarezinho, quarto distrito de Santa Fé. E assim é a vida, meus senhores!

Ali estava uma boa coisa para dizer aos convidados no momento em que lhes servisse a iguaria.

Voltou-se para a cozinheira e, mostrando-lhe uma lata de salsichas de Viena:

- Bom, Laurinda, lá pelas nove horas tu me botas essas latas em banho-maria. Não te esqueças, sim? Essa coisa tem que ser servida quente. Saiu da cozinha assobiando uma valsa. Maria Valéria seguia-o com um olhar em que havia um misto de censura e maldisfarçada admiração.

Rodrigo abriu as janelas que davam para a rua, acendeu os bicos de acetilene, aproximou-se do consolo, ajeitou as rosas que mandara botar no vaso, e depois mirou-se por um instante no espelho. Que o Sobrado tomava outro jeito, não havia que negar. Tinha mandado fazer uma estante especial para o gramofone, com gavetas destinadas aos discos. Comprara um tapete feito a mão para a sala de visitas e um pêlo de tigre para o chão do escritório. Pensou no pai... Como acontecia com quase todos os homens do campo, Licurgo Cambará desprezava o conforto. Gaúchos como ele em geral dormiam em camas duras, sentavam-se em cadeiras duras, lavavam-se com sabão de pedra e pareciam achar indigno de macho tudo quanto fosse expressão de arte, beleza e bom gosto. Isso explicava a nudez e o desconforto de suas casas, a aspereza espartana de suas vidas.

Aproximou-se do gramofone, abriu uma das gavetas da estante escolheu um disco Lon do Val - colocou-o no prato e estava a dar manivela ao aparelho quando Maria Valéria entrou.

- Acho que você não devia tocar música.

- Por quê?

- Faz tão pouco tempo que morreu o Macedinho...

Por um instante Rodrigo hesitou, não sabendo se devia ou não dar razão a tia. Bastou-lhe, porém, uma fração de segundo para perceber que ia cometer uma indelicadeza. Diabo, como é que eu não penso numa coisa dessas! Ficou a censurar-se a si próprio, mas nem por isso menos contrariado por não poder ouvir música.

Eram oito e quarenta da noite quando o próprio Rodrigo foi à cozinha buscar a bandeja onde estava a travessa com pão e caviar. Voltou para a sala de visitas, radiante.

- Vejam só quanta coisa aconteceu através do tempo e do espaço para que este simples momento fosse possível! - Parou no meio da peça e passeou o olhar pelas faces dos convivas. - Um lavrador na Argentina plantou o trigo...

E desenvolveu a tese. Quando terminou, o coronel Jairo avançou para ele, de braços abertos.

- Pois tudo isso é sociologia, meu caro doutor! Para Comte todos esses elementos contavam, no estudo da história!

Rodrigo fez a bandeja andar à roda.

O tenente Lucas provou o caviar e em seguida representou a pantomima do homem envenenado: atirou-se ao chão e começou a rolar no tapete, as mãos crispadas sobre o ventre, o rosto convulsionado. Liroca, que aparecera sem ser convidado, estava quieto no seu canto, a olhar para o pândego, com uma expressão entre rabugenta e triste.

Chiru fumava, recostado ao peitoril duma das janelas, discutindo com Saturnino o resultado das eleições. Meteu um pedaço de pão na boca e engoliu-o sem mastigar.

- Vamos beber alguma coisa! - exclamou Rodrigo.

Foi até a cozinha e voltou com uma garrafa de champanha. Fez saltar a rolha, que bateu no espelho e caiu entre as rosas do vaso. O vinho jorrou sobre o tapete. Rodrigo encheu a primeira taça e entregou-a ao coronel. Serviu depois os outros. Liroca e Saturnino não quiseram beber. Lucas perguntou a Rodrigo se nunca havia bebido "champanha de cascata". De cascata? Sim - com a sua licença, coronel - despeja-se a garrafa na cabeça duma mulher bonita, o champanha escorre pelo rosto, pelos peitos, a gente se agacha, mete a boca debaixo dos seios da criatura, e bebe...

- Devasso! - exclamou Rodrigo, lembrando-se de que, não fazia muito, ele próprio bebera champanha nos sapatos dourados duma atriz.

O coronel ficou muito vermelho e levou o copo de limonada aos lábios, depois de erguê-lo, num brinde silencioso. Liroca continuava a olhar, intrigado, para o tenente de obuseiros. Chiru achou a idéia de Lucas interessante.

- Vou experimentar na primeira ocasião. Só que é uma brincadeira meio cara...

- O que é caro é bom - retrucou o tenente.

Chiru e Saturnino entraram a discutir animadamente as eleições. Nos primeiros dias de março o Correio do Povo publicara alguns resultados parciais das cidades, que acusavam pequeno saldo de votos favorável a Rui Barbosa. Agora, porém, vinham de todo o país telegramas desanimadores para os civilistas: o marechal estava vitorioso na maioria das urnas, e tudo indicava que o candidato oposicionista se encontrava irremediavelmente derrotado. Rui Barbosa lançara um manifesto, afirmando que as eleições haviam sido feitas sob pressão do governo, à sombra da fraude: os herraistas subtraíam as atas ou as falsificavam. A propalada neutralidade de Nilo Peçanha - clamava o candidato civilista - era como as saias postas em moda na França por Mme. de Maintenon para esconder a barriga das mulheres grávidas.

- Esse manifesto do Rui - interpretou Saturnino - é uma confissão pública de derrota.

- Cala a boca, animal!

Jairo pôs afetuosamente a mão no ombro do ecónomo.

- Meu amigo, não vamos trazer à baila esse assunto ingrato. Já basta o que aconteceu...

- Isso mesmo, Saturno - disse Chiru -, mete a viola no saco.

Saturnino encolheu os ombros.

- Foste tu quem puxou o assunto.

Don Pepe chegou depois das nove. Como Rodrigo lhe oferecesse caviar e champanha, recusou-se por considerar ambas essas coisas símbolos dos prazeres da alta burguesia. Aceitou, porém, pão simples e vinho tinto, "expressiones de la tierra y del pueblo". Sentou-se, um pouco taciturno, e ficou a comer e beber em silêncio.

Rodrigo Foi buscar as salsichas de Viena, trazendo com elas uma garrafa de vinho branco e cálices, que encheu generosamente. Liroca não pôde deixar de murmurar:

- Que desperdício...

- Que ceia régia! - exclamou Jairo.

- É para comemorar a minha retirada da vida política... - disse Rodrigo, um pouco por brincadeira e um pouco a sério.

Don Pepe lançou-lhe um olhar que exigia explicações.

- Não me olhes assim, Pepito. Aqui onde me vês, sou um homem mudado. - Sentia-se tonto, aéreo, irresponsável. - Santa Fé não merece o nosso sacrifício. Os povos têm o governo que merecem, não é, coronel Jairo? Sejamos egoístas. Bebamos vinhos estrangeiros e comamos caviar. A vida é curta. - Ergueu a taça. - À saúde... de quem?

Pepe ergueu-se, teatral.

- A la salud de todos los que muneran en vano por sus ideales!

- Vai mesmo desertar a arena? - perguntou Rubim. E acrescentou. - Não acredito. Qual é a sua opinião, coronel?

O comandante do regimento de infantaria coçou o queixo e olhou para Rodrigo.

- O homem se agita e a humanidade o conduz. Os vivos são sempre cada vez mais governados pelos mortos. O dr. Rodrigo não poderá fugir ao seu destino.

Com uma salsicha apertada entre o polegar e o indicador, o tenente Lucas dirigia-se a Liroca, que o escutava com o ar de quem está diante dum débil mental.

- Pois é como lhe digo, sr. Liroca. Estas linguicinhas vêm da cidade de Viena e são feitas de carne de criança. Mas tem que ser de criança com menos de dez anos. Quanto mais novo o bebé mais tenra a carne. Trincou a salsicha e explicou.

- Por exemplo, esta é feita da coxinha de um recém-nascido. José Lírio mirava-o de soslaio, sério.

- Moço, o senhor pensa que eu sou algum bobo?

Rodrigo desenvolvia para Jairo e Rubim uma tese que se poderia intitular "O Brasil, país perdido". Perdido qual nada! - protestou o coronel. O Brasil tinha um futuro fabuloso.

Rubim sacudia a cabeça. Achava que o progresso não pode ser nunca o resultado do esforço coletivo, mas sim a obra magnífica duma casta superior, a qual só poderá existir à custa do trabalho escravo das massas, cuja missão é mourejar a fim de que os super homens se possam entregar ao cultivo do espírito, das artes e da ciência.

- Mas que absurdo! - protestou Rodrigo. - Para principiar: como pôr em prática esse individualismo aristocrático?

- Muito simples - replicou Rubim, com sua voz de flauta. Tomou um gole de champanha. - Nietzsche preconiza, e nisso estou plenamente de acordo com o Mestre, a formação do Estado militar.

- Tenente! - repreendeu-o Jairo, sorrindo.

- Estamos entre amigos, coronel. Mas, como dizia, só esse Estado militar é que poderá consolidar o domínio da casta superior, usando da força para organizar disciplinarmente todos os recursos sociais...

- Mas será uma ditadura insuportável! - atalhou-o Rodrigo. E tomou com fúria um largo gole de champanha, enchendo logo em seguida a taça com vinho branco.

- Isso mesmo. Uma ditadura. E insuportável, sim, para as classes inferiores. Porque será preciso esmagar sempre todas as tentativas de insurreição das massas.

Don Pepe levantou-se, avançou para o tenente de artilharia e, erguendo a mão que segurava o copo, como se fosse atirar vinho na cara do militar, bradou:

- Pêro no hay fuerza humana que pueda detener las masas! Rubim limitou-se a lançar para o espanhol um rápido olhar neutro.

- O Brasil - continuou - é um país novo e informe, que só poderá ser governado mediante uma ditadura de ferro.

Jairo estava escandalizado.

- Tenente, o senhor está se excedendo! Rubim sorriu e encheu o cálice de vinho.

- Coronel, estou apenas dizendo o que penso.

- Deus nos livre de ter o tenente um dia na presidência da República! - exclamou Rodrigo.

Olhou para Pepe, que começava já a dar seus passinhos para diante e para trás, e viu nos olhos do anarquista duas bombas prestes a explodir.

- Essa casta superior - prosseguiu Rubim, cruzando as pernas - não deverá de maneira nenhuma preocupar-se com a educação das classes populares. O cultivo das massas pode prejudicar os objetivos mais altos do Estado, isto é, a formação da aristocracia...

Rodrigo já não sabia ao certo o que o embriagava mais, se o vinho ou as idéias do tenente de artilharia.

- A cerrar todas las escuelas! - exclamou Don Pepe, abrindo os braços como um crucificado. - A quemar todos los libros! El senor tenente quiere para su clase el monopólio de la cultura!

Rodrigo, que estava curioso por ouvir toda a tese do oficial, fez um sinal para que o espanhol se calasse.

- E qual é a finalidade dessa tua esplêndida, mirabolante aristocracia? - perguntou.

- Produzir a raça superior, o super-homem, que está para o homem atual assim como este para os animais.

- Tenente! - advertiu Jairo. - Não beba mais. A dentuça avançou, nua e cintilante.

- Nunca em toda a minha vida, coronel, estive mais lúcido que agora.

Continuou:

- No mundo primitivo o bom era o audaz, o forte; o mau era o débil, o impotente. Depois veio o cristianismo e subverteu tudo.

- Me cago en la leche del cristianismo!

Liroca arrancou do fundo do peito um longo suspiro, e seus olhos se dirigiram para a sala contígua, por onde passara, havia pouco, vago e aéreo como um espectro, o vulto de Maria Valéria.

- Então não acreditas na concepção evolucionista da história? - perguntou Rodrigo, que se sentia como suspenso no ar.

Rubim sacudiu vigorosamente a cabeça.

- Acho a concepção erradíssima. É um otimismo tolo acreditar no progresso ininterrupto da humanidade.

O coronel Jairo remexeu-se na cadeira e olhou o relógio.

- Dez e meia. Preciso retirar-me. A Carmem, coitadinha, ficou sozinha em casa. Pôs a mão no ombro de Rodrigo:

- O meu amigo precisa casar-se o quanto antes, para eu poder trazer a Carmem a estes esplêndidos serões.

Despediu-se. Rodrigo levou-o até a porta, junto da qual o militar ciciou:

- O Rubim ás vezes me desconcerta quando expõe essas idéias extravagantes. Pode até parecer que esse é o ponto de vista do Exército, mas asseguro-lhe que não é. E, meu caro doutor, não confunda a ditadura científica, humaníssima e nobre, preconizada pelo grande Augusto Comte, com essa bárbara ditadura que o tenente prega.

Apertaram-se as mãos.

- Foi uma noitada agradabilíssima. Boa noite!

Pouco depois das onze, Chiru e Saturnino retiraram-se. Era hábito de ambos caminhar todas as noites pela cidade, até alta madrugada. Lucas deixou também o Sobrado dez minutos mais tarde, confidenciando ao ouvido de Rodrigo que tinha combinado passar a noite com uma "morena cotuba", na Pensão Veneza. Desceu de gatinhas a escada do vestíbulo.

Como Rubim também fizesse menção de ir-se, Rodrigo deteve-o.

- Fica, homem. é muito cedo. Vamos tomar ainda um licorzinho especial. E tu, Pepito, no te muevas. Quero mostrar a vocês uma coisa...

De repente, dando com os olhos em Liroca, que, de pálpebras caídas, continuava sentado no seu canto, exclamou:

- Liroca velho de guerra! Por que é que estás aí tão quieto? Não comeste nada. Não bebeste nada. Que é que tens? Estás triste?

- É a minha sina, Rodrigo, é a minha sina. Suspirou.

Rodrigo foi buscar no escritório um exemplar do Correio do Povo que havia guardado com especial cuidado.

- Não sei se vocês leram esta notícia... Edmond Rostand acaba de levar à cena no teatro Porte Saint-Martin a sua nova peça, Chantecler, na qual trabalhou durante doze anos. Diz o jornal que não se fala noutra coisa em Paris. As confeitarias fazem bolos, tortas e pastelões com efígie de Rostand, e a imagem de seu herói, o Chantecler, anda por todos os cantos, nas vitrinas, nas revistas, nos jornais, no coração do povo parisiense. O que já se escreveu sobre essa peça dá para encher toda uma biblioteca!

- Y que hay de tan extraordinário en esas cosas?

- Paris está em polvorosa! A revista Llustration comprou a Rostand os direitos de reproduzir na íntegra o Chantecler, e está agora processando em nome do autor os jornais parisienses L Eclair e o Paris Journal ainda Secolo, de Milão, por terem eles publicado sem licença o compte rendu e algumas estrofes da peça...

- Escândalos de la podrida sociedad burguesa! - exclamou o espanhol. E apanhou distraído, com as pontas dos dedos, o último quadrado de pão com caviar.

Rodrigo bebeu sofregamente um largo gole de vinho.

- No dia 6 de fevereiro, por ocasião do ensaio geral de Chantecler, o Boulevard Saint-Martin estava agitadíssimo. Uma enorme multidão se apinhava à porta do teatro.

- Mas afinal de contas - interrompeu-o Rubim - em que consiste a peça?

- Originalíssima! Imaginem vocês que as personagens são quase todas animais domésticos: galos, galinhas, cães, faisões... E os atores aparecem realmente travestidos nesses animais!

- Ridículo! - bradou Pepe Garcia.

- Não - protestou Rodrigo - quando temos no papel de Chantecler um Lucien Guitry, no de Cão um Jean Coquelin e no de Faisoa uma Mme Simone.

- Assim mesmo é um pouco... esquisito.

- O primeiro ato passa-se num terreiro. O cenário foi feito em tais dimensões que os espectadores têm a impressão de que os "animais" são realmente do tamanho de galos, galinhas, etc.... E a história, em suma, é esta: Chantecler é o rei despótico do terreiro. A Galinha está despeitada e cheia de ciúmes, por que o Galo prefere as outras a ela...

- Ridículo! Infantil! - exclamou o pintor.

- Temos então o eterno triângulo do romance francês. O Galo está apaixonado por uma bela faisoa... pela qual também se morre de amores um galo mais novo.

- Nesse caso - interrompeu-o Rubim, com seu amor à precisão - não se trata mais dum triângulo.

- Bom, seja o que for, a situação é essa. No primeiro ato vemos a vida íntima do galinheiro, onde impera Sua Majestade Chantecler, que está convencido de que, sem o seu cocorocó matinal, o sol jamais se ergueria. No segundo ato a cena mostra os ramos superiores das árvores duma floresta, onde uns mochos se acham empoleirados. É noite e a coisa toda tem um ar de sabbat. As aves noturnas conspiram, querem matar o Galo, pois estão também convencidas de que é Chantecler quem obriga o sol a erguer-se todas as manhãs, trazendo para o mundo a luz, a maior inimiga dos mochos.

- Pêro, hijo, eso es un cuento de liadas!

- Espere, Pepito. No terceiro ato o Galo é informado da conspiração, mas não lhe dá a menor importância, pois está preocupado com o que o Cão, seu amigo fiel, lhe veio contar: um galo novo acaba de fazer uma declaração de amor à Faisoa. Furioso, Chantecler provoca o rival para um duelo. Trava-se uma luta de vida e de morte em que o galo jovem é vencido. A Faisoa toma o vencedor nos braços e embala-o com palavras de amor. Chantecler adormece no colo da amada e, ao despertar, verifica, estonteado, que o dia já vai alto. Então o sol pode nascer sem que ele cante? Não é ele, o Galo, quem regula o curso do rei do dia? Em vão a bem-amada lhe recita ao ouvido belas palavras de amor. Chantecler morre de vergonha e humilhação.

Rodrigo calou-se, levou o cálice à boca, esvaziou-o, e olhou depois para os amigos. Rubim sorria, a cabeça recostada no respaldo da cadeira. Pepe mirava o amigo com fisionomia inescrutável.

- Que tal, Liroca? - perguntou Rodrigo, curioso por saber o que José Lírio, natural do quarto distrito de Santa Fé, pensava da peça de Edmond Rostand.

- Que bicho é essa tal de faisoa?

- É a fêmea do faisão, um galináceo de carne muito gostosa, uma verdadeira iguaria.

Liroca ficou um momento calado, com ar reflexivo. Depois murmurou, sério:

- Galo velho de bom gosto...

- Rubim, que tal?

Rodrigo deu uma palmada na perna do tenente.

- Parece-me uma grande borracheira - disse este.

- Borracheira? Então escuta este Hino ao Sol e me diz se uma peça que tem uma jóia poética deste quilate pode ser considerada uma borracheira.

Aproximou o jornal dos olhos:

To i qui sèches lês pleurs dês moinarei graminées Qiá jais d'itne fleur morte un vivant papillon Lorsqu'on you, s'effeuillant comme dês destinées, Tremhler nu vent dês Pyrénées, Lês amandiers dn Roussillon.

Sentiu que a voz lhe saía um tanto arrastada, como se a língua e os lábios estivessem inchados. Diabo! O vinho francês devia ajudar a gente a falar melhor a língua de Rostand...

J e t'aelore, Solei l! Ô toi dont Ia lumière, Pour bénir chaque front et múrir chaque ciei, Entrant dans chaqiíe fleur et dans chaque chaumière,

Se divise et demeure entière Ainsi que l'amour maternel!

Vieram-lhe lágrimas aos olhos, como acontecia sempre que lia um trecho literário com emoção. Rubim escutava, as mãos trançadas diante do peito, como se estivesse orando. Pepe mastigava com dignidade uma salsicha. Liroca, o olhar embaciado de sono, mirava fixamente o tapete e de quando em quando cabeceava.

- Agora prestem bem atenção! - pediu Rodrigo. E recitou:

Je t'adore, Soleil! Tu mets dans l'air dês roses,

Dês flammes dans Ia source, un dieu dans lê buisson!

Tu prends un arbre obscur et tu l'apothéoses!

O Soleil! toi sans qui lês choses

Ne seraient que cê qu'elles sontí

Rodrigo atirou o jornal no chão.

- Se isto não é uma peça de antologia, então não me chamo mais Rodrigo Terra Cambará! Bolas!

Rubim abriu os olhos.

- É bonito, não há dúvida. Mas apenas bonito.

- O Chantecler é o teu super-homem, Rubim! Não compreendes isso? O rei absoluto do terreiro! Os mochos e os melros são a massa que tanto detestas, a massa que conspira inutilmente.

Rubim sacudiu a cabeça.

- Não, Rodrigo. O meu super-homem venceria o galo mais novo no duelo, mas depois não dormiria o sono da vitória nos braços da bem-amada.

- Por quê? Acaso o teu super-homem terá de ser necessariamente um impotente sexual?

- Meu caro Rodrigo, para o super-homem a felicidade não consiste na posse dum objeto determinado, mas sim numa continuada superação de si mesmo. O que importa para ele é a vontade de poder, que consiste em desejar e escolher o sofrimento e a dor, se tanto for necessário para essa superação. No exemplo de Chantecler vimos como a mulher pode desviar o super-homem de seus objetivos mais altos. E não esqueças que no meu mundo ideal, se queres usar os símbolos desse teu Rostand, o sol de fato não se erguerá sem que Chantecler, o super-homem, cante!

- Isso sim é um conto de fadas!

- E o meu Chantecler não admitirá no seu terreiro leis que glorifiquem a fraqueza como acontece nesta nossa sociedade regida pela moral cristã, que é uma moral de escravos. Para principiar, o super-homem terá de ser duro e cruel consigo mesmo e viverá numa constante busca de novas aventuras. Ele sofrerá e fará os outros sofrerem.

Rodrigo desatou a rir.

- De que estás rindo?

- Estou te vendo fantasiado de galo, recitando no meio dum palco...

- Estás bêbedo!

- Talvez. Mas vamos tomar ainda um licorzinho. Serviu-lhes Chartreuse. E, enquanto os outros bebiam, apanhou o jornal do chão e leu mais um trecho da peça.

CHANTECLER Je chaute! Vainement

La nuit, four transiger, m 'offre lê crépuscule, Je ebante! Et tout à coup...

LA FAISANE

Chantecler!

CHANTECLER

Je recule, ébloui de me voir moi-même tout vermeil. Et d'avoir, mói, lê Coq, fait lever lê soleil.

Don Pepe se pôs de pé:

- Mierda para el gallo, mierda para la gailina, mierda para la humanidad! Buenas noches, caballeros!

Enfiou a boina e saiu. Rubim e Liroca também se foram pouco depois. Rodrigo ficou algum tempo à janela, olhando a praça deserta, as estrelas, e pensando em Paris. Fechou depois as janelas, apagou as luzes e dirigiu-se para a escada. Quando ia subir, viu surgir lá no último degrau Maria Valéria.

- Isso são horas de deitar? - perguntou ela. - Os galos já estão cantando.

- Ébloui de me voir moi-mème tout vermeil - murmurou Rodrigo. E, alteando a voz, recitou como se estivesse num palco: - Et d'avoir, mói, lê Coq, fait lever lê soleil!

XVI

Naquela terceira semana de março, abriu o consultório. Os primeiros doentes que lhe apareceram foram pobres-diabos do Purgatório, do Barro Preto e da Sibéria. Entravam humildes e acanhados, contavam seus males, mostravam onde sentiam suas dores, iam como que amontoando todas as suas queixas sobre a mesa do médico. Rodrigo examinava-os - bote a língua... respire forte... diga trinta e três - aplicava-lhes o estetoscópio no peito, nas costas, auscultava-lhes o coração, os pulmões, e, enquanto fazia essas coisas, procurava conter o mais possível a respiração, pois o cheiro daqueles corpos encardidos e molambentos lhe era insuportável. Por fim sentava-se e, após um breve interrogatório, fazia uma prescrição e entregava-a ao paciente.

- Mande preparar este remédio aqui na farmácia. Tome uma colher das de sopa de duas em duas horas.

Na maioria dos casos o doente quedava-se a olhar imbecilmente para o papelucho.

- Mas é que não tenho dinheiro, doutor...

- Isso não vai lhe custar nada. A consulta também é grátis. Os clientes balbuciavam agradecimentos e se iam. Rodrigo então abria as janelas para deixar entrar o ar fresco, lavava as mãos demoradamente com sabonete de Houbigant, tirava do bolso o lenço perfumado de Royal Cyclamen e agitava-o de leve junto do nariz. Concluía que o sacerdócio da medicina, visto através da arte e da literatura, era algo de belo, nobre e limpo. Na realidade, porem, impunha um tributo pesadíssimo à sensibilidade do sacerdote, principalmente ao seu olfato. Rodrigo comovia-se até as lágrimas diante da miséria descrita em livros ou representada em quadros; posto, porém, diante dum miserável de carne e osso - e em geral aquela pobre gente era mais osso que carne - ficava tomado dum misto de repugnância e impaciência. Achava impossível amar a chamada "humanidade sofredora", pois ela era feia, triste e malcheirante. No entanto - refletia, quando ficava a sós no consultório com seus melhores pensamentos e intenções - teoricamente amava os pobres e, fosse como fosse, estava fazendo alguma coisa para minorar-lhes os sofrimentos. Não tens razão, meu caro Rubim. Podemos e devemos elevar o nível material e espiritual das massas. Tenho uma grande admiração por César, Cromwell, Napoleão, Bolívar; foram homens de prol, dotados de energia, coragem e audácia, figuras admiradas, respeitadas e temidas. Mas para mim, meu caro coronel Jairo, é mais importante ser amado que respeitado e mesmo admirado.

O tipo humano ideal, o supremo paradigma, seria uma combinação de Napoleão Bonaparte e Abraão Lincoln. O ditador perfeito, amigos, será o homem que tiver as mais altas qualidades do soldado corso combinadas com as do lenhador de Illinois. O diabo é que a bondade e a força são atributos que raramente ou nunca se encontram reunidos numa mesma e única pessoa. A menos que essa pessoa seja eu - acrescentou, um pouco por brincadeira e um pouco a sério.

Certa madrugada, pouco depois das três e meia, o telefone do Sobrado tilintou insistentemente. Maria Valéria, que tinha o sono leve, acordou, acendeu a vela, apanhou o castiçal e desceu a atender o chamado. Quem falava, aflitíssima, era a esposa do dr. Eurípedes Gonzaga, o juiz de comarca. Pedia por amor de Deus que o dr. Rodrigo corresse a sua casa, pois o marido estava gravemente enfermo.

Maria Valéria tornou a subir, entrou no quarto do sobrinho, ficou um instante parada a contemplá-lo e depois, numa súbita resolução, inclinou-se sobre ele e sacudiu-o. Rodrigo resmungou qualquer coisa, entreabriu os olhos e à luz da vela entreviu o rosto da tia, confusamente, como num sonho. Tornou a cerrar os olhos e voltou-se para o outro lado. Maria Valéria sacudiu-o de novo e, quando lhe pareceu que o sobrinho estava mais desperto, transmitiu-lhe o recado. Como ele permanecesse de olhos fechados, deu um puxão nas cobertas e aproximou a chama da vela do rosto do rapaz. - Vamos, cumpra a sua obrigação. Ué, gente! Não quis ser doutor? Agora agüente. O homem está passando mal.

Sentado na cama, Rodrigo coçava a cabeleira revolta, bocejando. Pôs-se de pé em movimentos tardos. Maria Valéria meteu a mão dentro do jarro do lavatório e respingou água fria no rosto do afilhado, o que o deixou mais desperto, mas nem por isso menos irritado. Tirarem um homem da cama àquela hora da madrugada. Enfiou as calças e as botinas, e por um momento ficou desorientado, a dar voltas inúteis pelo quarto. A tia tornou a sacudi-lo e repetiu-lhe o recado, lentamente, com toda a clareza, para que ele compreendesse o que se estava passando. Desceram a escada juntos. Rodrigo resmungava... Que era que o juiz estava sentindo? Aposto como andou comendo alguma porcaria. É sempre assim. Tiram um cristão da cama por qualquer indigestão sem importância. Não terão sal amargo ou bicarbonato em casa? Por que não chamaram o dr. Matias?

- Vou acordar o Bento pra ir com você.

- Não sou nenhuma criança. Vou sozinho.

- Está bem. Mas vá.

Apanhou a maleta e saiu. Ficou por alguns segundos à esquina, como se tivesse perdido a memória ou caído de súbito numa fantástica cidade desconhecida. Voltou a cabeça para o Sobrado, a cuja porta luzia a chama da vela de Maria Valéria.

- É na casa do dr. Eurípedes - dizia ela. - Pra aquele lado, menino!

Rodrigo fez meia-volta e seguiu pela rua do Comércio, ouvindo o som e o eco dos próprios passos, e achando que isso tornava ainda mais profunda a solidão da noite. As chamas dos lampiões agonizavam. As estrelas estavam apagadas. Rodrigo sentia um peso nos olhos, uma lassidão nos membros, uma vontade de atirar-se na calçada e ali ficar estendido, dormindo... Havia já caminhado duas quadras quando lhe ocorreu que se esquecera de pôr o revólver na cintura. Mas agora não volto. Quem é que vai se lembrar de me atacar a estas horas da madrugada?

A esposa do juiz, que ele conhecia apenas de cumprimento, esperava-o a porta da casa, pálida e escabelada. Rodrigo foi levado imediatamente ao quarto do casal, onde encontrou o dr. Eurípedes Gonzaga sentado na cama, a tossir e debater-se numa falta de ar que lhe transtornava as feições. Pelas comissuras dos lábios escorria-lhe uma baba rosada.

- Ele está vomitando sangue, doutor! - choramingou a mulher.

O juiz de comarca olhou para Rodrigo e no primeiro momento pareceu não reconhecê-lo. Depois balbuciou:

- Me acuda, doutor, eu morro...

O peito magro arfava. Da boca entreaberta saía um ronco de estertor e pelo rosto lívido escorria-lhe um suor lento e viscoso. Rodrigo sentou-se na beira do leito.

- Calma, dr. Eurípedes, eu estou aqui, o senhor não vai morrer. Chegue um pouquinho pra cá. Assim...

Encostou o ouvido nas costas do paciente e pôs-se a escutar. Que ruído era aquele? Uma chuva de estertores úmidos, de cima para baixo... Hum! Auscultou o coração, que batia num ritmo de galope. Tomou o pulso: acelerado e arritmico.

Em sua memória desenhou-se a figura do professor Graciano Braga numa aula remota: "...e nesse caso devemos então pensar logo num edema pulmonar agudo!"

Sim. Devia ser um edema agudo de pulmão: a respiração curta e opressa, a dispneia, a expectoração rosada... Mas se fosse uma crise de asma? O diabo era que não conhecia o passado mórbido do homem... Tentar fazer perguntas àquelas duas criaturas alarmadas seria pura perda de tempo. Era necessário agir com urgência.

- Ai! - gemeu o magistrado. - Ai que eu morro... Abram uma janela, quero ar...

Parada ao pé da cama, a mulher chorava desatadamente, cobrindo o rosto com as mãos.

Rodrigo abriu a maleta para ver se tinha trazido os instrumentos e os remédios de que ia precisar. Felizmente não lhe faltava nada do essencial.

- Uma vela, depressa!

Ao som da palavra vela a sra. Gonzaga teve um sobressalto, deixou cair os braços e fitou no médico os olhos cheios dum súbito pavor.

- É pra desinfetar a lanceta - esclareceu Rodrigo. - Vamos, dona, traga uma vela, uns três lenços limpos e um prato fundo.

Teve de repetir o pedido, antes que a mulher se dispusesse a atendê-lo. Depois que ela saiu do quarto, voltou-se para o paciente:

- Coragem, meu amigo. Vou lhe fazer uma pequena sangria e dar-lhe uma injeção de morfina para aliviar a dispnéia. Vai ser o mesmo que tirar com a mão essa falta de ar e essa angústia.

A esposa do juiz voltou com os objetos pedidos.

- Agora a senhora vai me fazer um favor de esperar no corredor. Quando voltar, verá como seu marido ressuscitou...

Tomou delicadamente o braço da dona da casa e conduziu-a para fora do quarto. Fechou a porta, tirou o casaco, arregaçou as mangas da camisa e pôs-se a trabalhar. Garroteou o braço direito do paciente com um dos lenços, acendeu a vela e passou-lhe na chama a lâmina do bisturi.

- Uma linda veia! Não se mexa. Vai doer menos que a picadura duma agulha.

Aproximou a ponta da lanceta da veia da prega do cotovelo.

- Pronto!

O sangue esguichou e começou a escorrer para dentro do prato que Rodrigo colocara debaixo do braço do doente. Quando lhe pareceu que já havia no recipiente uns trezentos centímetros cúbicos, fez com os lenços restantes um curativo compressivo na veia. Olhou para o juiz.

A cabeça recostada no travesseiro, o dr. Eurípedes sorria respiração normalizada, as feições tranqüilas. O homem estava salvo.

Rodrigo ergueu-se, assobiando de mansinho. Se não chego em tempo, era uma vez um juiz de comarca!

Pôs a seringa a ferver e, minutos depois, aplicou no músculo do paciente, uma injeção de morfina.

- Nunca vi veias melhores que as suas!- elogiou. - Agora não há mais perigo. O senhor vai dormir em paz...

- Parece até um milagre, doutor - murmurou o doente com voz débil.

Rodrigo abriu a porta e a sra. Gonzaga entrou.

- Veja como seu marido está outro! Agora o que ele precisa é ficar em repouso absoluto. Dê-lhe amanhã de manhã um purgativo. Pode ser de aguardente alemã. Quanto à alimentação, só líquidos.

A sra. Gonzaga olhou longamente para o marido e depois para o médico. Seus lábios se moveram como para dizer alguma coisa de sua boca não saiu o menor som. Estava duma palidez cadavérica e suas mãos tremiam. Rodrigo observou que os olhos dela se vidravam e, prevendo o que ia acontecer, deu dois passos à frente e enlaçou a cintura da mulher no momento exato em que ela perdia os sentidos.

- Era só o que me faltava!

Ergueu a magra senhora nos braços e deitou-a na cama a lado do marido, que dormia tranqüilamente.

Uma hora depois estava na rua, a caminho do Sobrado. Havia animado e medicado a sra. Gonzaga, deixando-a aos cuidado duma vizinha solícita.

Sentia-se feliz. Tinha salvo uma vida. Lembrava-se do cálido olhar de gratidão que lhe dirigira a esposa do juiz ao despedir-se dele. Aquilo fizera-o sentir-se maior e melhor. Digam o que disserem, a profissão médica é dura e difícil, mas tem as suas compensações.

Pôs-se a cantarolar. À esquina da rua do Poncho Verde encontrou o Chico Pão na sua carroça, a entregar pão à freguesia. Fê-lo parar, contou-lhe de onde vinha e de como salvara a vida do dr. Eurípedes. Pediu-lhe um pão cabrito, que o padeiro lhe deu com um sorriso amoroso, e continuou a andar. Galos cantavam nos quintais. Je chante! Vainement la riuit, pour transiger, m'offre le crépuscule. Mas o que eu quero mesmo é o sol, o sol... O Salvini nos Espectros de Ibsen, engatinhando como uma criança no palco, pedindo o sol, mãe, o sol... Mói, lê Coq, je veux le soleil! Mas quem me vê a esta hora da madrugada, na rua, comendo pão, vai pensar que estou voltando de alguma farra, bêbedo. Bela profissão escolhi! Mas que diabo! Um homem tem que sair de seu comodismo se quiser fazer alguma coisa pela humanidade. O Rubim é uma besta. O Nietzsche é outra.

Parou a uma esquina e olhou para o nascente, onde a barra do dia era dum ouro que se degradava em púrpura. Ébloiii fie me voir to u t vermeil. Havia um doce e leve mistério nas ruas adormecidas, uma frescura transparente de vidro no ar. Acendeu um cigarro, tragou a fumaça e depois expeliu-a com força. Como sabe mal o fumo quando a gente está em jejum! Mói lê Coq, je veux un chimarrão.

Ia passando pela frente da meia-água onde morava Neco Rosa. Parou, bateu à janela, uma, duas, três vezes, primeiro de leve, e por fim aos murros. Fez o amigo sair da cama e esquentar a água para um mate. Ficaram depois sentados em mochos, sob as laranjeiras do pomar, a saborear o amargo, a fumar e a conversar.

Quando Rodrigo chegou ao Sobrado, o sol já havia saído. Maria Valéria, que esperava o sobrinho, debruçada à janela, exclamou:

- Pensei que tinha lhe acontecido alguma coisa. Já ia mandar o Bento atrás de você.

- A senhora sabe que meu anjo da guarda é muito forte.

- É Mas tenho medo que um dia ele canse.

Uma tarde Rodrigo recebeu no consultório a visita do dr. Matias, um homem baixo e franzino, de bigodes grisalhos de foca, e óculos de grossas lentes.

- Vim fazer uma visita ao meu caro colega.

Não havia o menor tom de sarcasmo na voz da criatura. Rodrigo achou aquilo divertido. O dr. Matias era o médico de sua família, uma das mais vivas recordações da infância. Verificou, divertido, que diante do homenzinho, ele quase chegava a sentir as impressões do menino quando via o "doutor" entrar no Sobrado: a medrosa expectativa do óleo de rícino) da cataplasma de mostarda e linhaça, do clister... Como era dramático o instante em que o dr. Matias lhe metia na boca o cabo duma colher para examinar-lhe a garganta! Ah! Os angustiosos segundos em que se debatia numa ânsia de vômito... Todas essas impressões estavam ligadas à figura do velho médico, ao seu cheiro de iodofórmio e sarro de cigarro, à sua "voz de queijo bichado", aos seus dedos de pontas amareladas de nicotina, e ao ruído que Seus punhos engomados produziam quando ele sacudia o termômetro para fazer o mercúrio baixar. Ali estava agora o lendário dr. Matias com sua roupa surrada e a sua maleta negra. Não tinha mudado muito. Estava apenas mais grisalho.

- Sente, doutor.

O dr. Matias olhou em torno, deteve-se a examinar a lombada dos livros. Depois dirigiu o olhar para os instrumentos cirúrgicos.

- Vocês são médicos modernos. Eu sou da velha escola. Menos livros, menos petrechos, porém mais prática.

- O médico é mais importante que a medicina, doutor. O que vale mesmo é a experiência pessoal.

O dr. Matias tirou fumo duma bolsa de borracha e começou a enrolar um cigarro em papel de alcatrão. Depois de acendê-lo e soltar uma baforada, olhou para Rodrigo com ar escrutador.

- Então, como vai se dando na profissão?

- Bem. Não tenho por que me queixar.

- Já fez alguma burrada?

- Acho que sim.

- Isso é do programa. Não se impressione. Acontece com todos. No final de contas os médicos não sabem nada. Nem os grandes do Rio de Janeiro nem os figurões da Europa Todos vão mas é no palpite, na apalpação.

- Eu sei.

- E se a gente fosse pensar no que não sabe e nas doenças que não têm cura, acabava ficando louco. Tu pensas?

- Faço o possível pra não pensar.

- Olha, vou te dar um conselho. Não vás muito atrás de conversa de doentes. Eles falam demais. E quanto mais falam menos a gente entende o que é que estão sentindo.

- Já descobri isso.

- E mesmo quando não for caso de dar remédio, dê remédio, porque o paciente desconfia do doutor que não receita muita droga. E quando estiver diante dum caso complicado e ficar no escuro, receite uma dose pequena de citrato de magnésia. Não faz mal pra ninguém. É só pra ganhar tempo e estudar melhor o caso. Mas não digas nunca que não sabes. O doente pode perder a fé... e adeus, tia Chica!

- Muito obrigado pelos conselhos, doutor. O outro lançou-lhe um olhar enviesado.

- Acho que tu estás rindo de mim por dentro e dizendo: "Esse velho bobo e ignorante me vem aqui com um sermão que ninguém lhe encomendou". É isso mesmo. Tens razão. Mas sabes duma coisa? Muita dor de barriga te curei, guri. Pra mim tu és sempre aquele piá que ia roubar doce da despensa de Maria Valéria e depois quem pagava o pato era eu, que tinha de sair de casa em noite de minuano pra ir te apertar a barriga, sem-vergonha!

Rodrigo soltou uma risada. O velhote entrara em seu consultório cerimonioso, chamando-lhe colega: agora tratava-o como se ele ainda tivesse doze anos.

- Sente, doutor - insistiu.

- Não. Isto é visita de médico. Vou andando. Ah! Outra coisa. No princípio a gente se atrapalha no receituário, na dosagem dos medicamentos. Quem nos salva de matar os doentes são os farmacêuticos práticos, como esse menino, o Gabriel, que é uma jóia, ou como o Zago, que é um falador sem-vergonha, mas profissional muito competente. Pois não te afobes, Rodrigo, que Roma não foi feita num dia. E depois, para um caso de aperto, o Chernoviz está aí mesmo. Não é nenhuma vergonha a gente consultar o Livro. É melhor que intoxicar ou matar o paciente.

Apanhou a bolsa. Sua calva sebosa reluzia, como a sua roupa preta já ruça. Junto da porta disse ainda:

- E não te iludas com a clientela. No fundo essa gente acredita mas é nessas negras velhas benzedeiras e nos curandeiros. E quando a gente não acerta logo com o remédio prós achaques deles, procuram logo o índio Taboca, que vem com as suas agüinhas milagrosas e suas benzeduras.

- Em caso de aperto - sorriu Rodrigo - o recurso então é pedir uma conferência médica com o Taboca.

O dr. Matias piscou-lhe o olho.

- Pois tu sabes duma coisa? Uma vez até eu recorri ao Taboca.

- Como foi isso?

- Não vale a pena falar nessa história. Até mais ver! Enfiou na cabeça o velho chapéu de feltro negro e se foi. Por uma curiosa coincidência, no fim daquela semana Rodrigo se viu frente a frente com o curandeiro índio cuja legenda ele conhecia desde criança. Toríbio mandara trazer do Angico para o Sobrado o negro Antero, que havia sido picado por uma cobra venenosa.

O peão chegou já porejando sangue, a língua paralisada, os olhos amortecidos. Rodrigo não encontrou na cidade uma única ampola de soro antiofídico. Censurou Gabriel, aos berros, por ter deixado o estoque da farmácia desfalcado dum medicamento de tamanha importância. Foi rude para com o Zago e, como este lhe respondesse com outro desaforo, esteve a ponto de esbofeteá-lo, no que foi impedido por Toríbio, que o arrastou para fora da Farmácia Humanidade. Ao chegarem ao Sobrado, Maria Valéria sugeriu que chamassem o Taboca. Rodrigo achou a idéia absurda e recusou-se a tomar parte "naquela palhaçada". A verdade é que, com ou sem seu beneplácito, Taboca apareceu: um índio retaco, de tez acobreada, olhos enviesados e pêlo duro - homem taciturno e de poucas falas. Tirou do bolso das calças de riscado a garrafa que trazia a sua "milagrosa agüinha" e deu-a de beber ao doente. Acocorou-se depois ao pé do catre onde jazia Antero, fustigou-lhe o rosto com um galho de arruda, murmurou algumas palavras em guarani e por fim se ergueu:

- Tá bom o homem.

Maria Valéria acompanhou-o até a porta e meteu-lhe um patacão no bolso. No fim do dia Antero estava melhor: movia os lábios, balbuciava algumas palavras, cessara por completo de sangrar. Na manhã seguinte deixou a cama, dizendo que se sentia perfeitamente bem.

Olhando para o peão, Rodrigo fez reflexões amargas. Taboca, um curandeiro índio, acabara de salvar a vida do negro Antero, que no Angico partilhara com ele, dr. Rodrigo, o amor da chinoca Ondina. Era o desprestígio da raça branca, da cultura e da ciência! - concluiu, sorrindo e achando tudo aquilo muito estranho. Chers Messieurs Richet et Charcot, estais convidados a explicar os mistérios das milagrosas agiiinhas do Taboca! Porque mói, eu desisto.

Uma tarde, depois de atender a um velho polaco reumático, uma china que dizia sofrer de "flautos", e um caboclo que sentia "uma pontada no peito que arresponde nos bofes" -, Rodrigo foi procurado por um dos filhos de Spielvogel, o Arno, que se queixava de dores no estômago e tonturas. Examinou com todo o cuidado, interrogou-o minuciosamente, receitou-lhe uma poção e prescreveu-lhe uma dieta. No momento em que o cliente se preparava para sair, aconteceu algo que chocou Rodrigo dum modo que jamais ele poderia imaginar. No momento em que terminava de vestir o paletó, Arno Spielvogel meteu a mão no bolso e perguntou:

- Quanto lhe devo?

Rodrigo teve a impressão de que o esbofeteavam e seu primeiro impulso foi o de agredir o outro fisicamente. Aquele "quanto lhe devo'' dito de cima para baixo (o rapaz tinha quase dois metros de altura) como que colocava o teuto-brasileiro numa posição superior à sua, assim como a do patrão perante o empregado.

Vermelho, o rosto a arder, Rodrigo teve uma rápida hesitação, mas depois, com a voz alterada pela indignação, vociferou:

- Não me deve coisíssima nenhuma!

- Mas como, doutor?

- Já lhe disse que não me deve nada.

O rapaz mantinha a mão no bolso e olhava espantado para o médico.

- Desculpe, eu... eu só queria lhe pagar. Pensei... Caindo em si, Rodrigo tratou de remendar a situação.

- Depois falamos nisso. O tratamento não está terminado. Você terá que voltar aqui dentro duma semana.

- Bem. Então... muito obrigado.

Depois que o cliente saiu, Rodrigo sentou-se, pegou o corta papel e começou a tamborilar nervosamente sobre a mesa. É melhor eu ir me acostumando com essas coisas. No fim de contas um médico tem de cobrar as consultas... O dr. Miguel Couto cobra, não cobra? O dr. Olinto de Oliveira não vive de ar...

Mas, fosse como fosse, receber dinheiro diretamente das mãos dos clientes era coisa que, na sua opinião, dava ao consultório um ar de banca de mercado público, de boliche de beira de estrada. Decidiu que dali por diante, em matéria de dinheiro, os clientes pagantes se entenderiam na farmácia com o Gabriel. Para que, diabo, tinha então aquela bela máquina registradora National?

Numa manhã de sábado, quando já se preparava para ir a casa almoçar, recebeu no consultório a visita do Ananias Silva. O aguadeiro de Santa Fé queixava-se de dores nos rins e de cansaço - "uma lombeira danada, doutor, uma fraqueza..." Rodrigo examinou-o, lembrando-se das histórias que Toríbio lhe contara a respeito do "pipeiro".

- Ananias, não vou lhe receitar muitos remédios, mas quero lhe dar um conselho.

- Qual é, doutor? - perguntou o homenzinho, sungando as calças e metendo as fraldas da camisa para dentro.

- Diminua a sua atividade.

- Que atividade?

- Você sabe. Não estou me referindo à sua pipa, mas às suas mulheres.

- Ora, doutor!

O aguadeiro parecia ofendido.

- Fale a verdade, Ananias. Pra médico e padre a gente não deve mentir. Você tem ou não tem duas mulheres?

O "pipeiro" começou a coçar o queixo, onde apontava uma barbicha rala e dura. Fitou no médico seus olhinhos de esclerótica amarelada.

- Pois é, dizem...

- Com quantos anos está?

- Cinqüenta e quatro.

- Pois já é tempo de criar juízo. Uma mulher é o quanto lhe basta... - Rodrigo fez uma pausa e depois acrescentou, sorrindo: - Zé do Meio.

O aguadeiro também sorriu, descobrindo dois cacos de dentes e as gengivas descoradas. E, entre gaiato e encabulado, informou:

- Uma delas até nem funciona mais, doutor.

Rodrigo soltou uma risada e mandou o Ananias embora com uma receita, novas recomendações e uma cordial palmada nas costas.

Em princípios de abril, teve Rodrigo alguns casos felizes que de certo modo o ajudaram a firmar a reputação de médico na cidade, onde já se começava a falar - notava ele, envaidecido - no seu "olho clínico". Alegrava-o também saber que era o ídolo da pobreza e que em certos ranchos do Barro Preto, do Purgatório e da Sibéria, seu nome era venerado como o de um santo.

O Chiru - a quem naqueles dias Rodrigo dera os duzentos mil-réis que deviam custear sua encantada excursão em busca dos tesouros dos jesuítas - contou um dia a Maria Valéria, na presença de Rodrigo, "as Àfricas do seu afilhado".

- O diabo nasceu mesmo pra médico, dona. Tem um jeito com os doentes, que só vendo. O filhinho do Luís Macedo que ele tratou, acordava de noite e choramingava que queria o doutor. O Teixeirinha me disse que quando estava de cama com febre, só de ver o Rodrigo entrar no quarto já melhorava... Olhou para o amigo.

- Não sei o que e que esse filho da mãe tem na cara que todo mundo fica logo gostando dele.

Rodrigo escutava em silêncio, intimamente satisfeito com as palavras do Chiru, mas fazendo gestos que davam a entender que a coisa não era bem assim, que o outro exagerava...

- E o dr. Eurípedes? Anda dizendo pra todo o mundo que estava já no fundo da cova quando apareceu o Rodrigo e puxou ele pra cima. A mulher do juiz, essa então acha que é Deus no céu e o dr. Rodrigo na terra. Esse filho duma mãe!

Enfim, refletia Rodrigo, seus planos se realizavam, seu programa de vida se cumpria. Estava fazendo alguma coisa pelos pobres de sua cidade natal. Só de sua cidade? Não. Já lhe chegavam clientes do interior, das colônias, de outros municípios... Começava a ser respeitado - ele via, sentia - e não havia a menor dúvida que já era amado. Tudo isso lhe dava uma profunda satisfação íntima, uma reconfortante paz de espírito.

Claro, havia momentos em que simplesmente não podia agüentar o ambiente do consultório, que cheirava a suor humano, pus, sangue, éter, fenol, iodo... Era com ansiedade que esperava a hora de voltar para casa. Havia também os dias de mau humor em que lhe era difícil suportar com paciência, e mantendo o ar paternal, as longas conversas dos clientes, que nunca iam direto ao assunto, que faziam intermináveis rodeios, contando doenças passadas, não só próprias como também de pessoas da família, vizinhos e conhecidos. Detestava os chamados à noite, principalmente quando o levavam a algum rancho das zonas conhecidas pela denominação geral de "pra lá dos trilhos", e nas quais se metia em bibocas, as vezes com barro até meia canela, entrando em ranchos fétidos e miseráveis, iluminados a vela de sebo.

Não raro, quando lhe caía nas mãos um caso difícil, alguma doença que não sabia diagnosticar ou curar, seu amor-próprio recebia golpes terríveis que o deixavam por algumas horas, às vezes durante dias inteiros, mal-humorado e já quase decidido a abandonar a profissão, ''porque afinal de contas, Chiru, eu não preciso dessa porcaria pra viver".

Esses momentos escuros, porém, eram passageiros. Diante dum caso bonito sentia a confiança em si mesmo retornar e, com ela, a alegria de ser médico, a volúpia de se saber necessário na comunidade, querido e admirado pelos amigos e pelos clientes.

Havia quase um mês que A Farpa não aparecia. Quando amigos pediam notícias do "grande hebdomadário", Rodrigo respondia: "Não morreu. Está apenas hibernando. No momento crítico reaparecerá". Com momento crítico, ele queria dizer a hora em que soassem de novo os clarins de guerra, em que fosse preciso atacar o situacionismo, protestando contra alguma nova arbitrariedade do Titi Trindade, ou respondendo a alguma verrina d'A Voz da Serra. O jornal republicano, entretanto, andava nas últimas semanas surpreendentemente benévolo para com a oposição. Ocupava-se de modo quase exclusivo com o resultado das eleições, segundo o qual o candidato oficial estava vitorioso em todo o país. Os editoriais do Amintas tinham agora caráter doutrinário, falavam em "verdadeira democracia" e faziam elogios ao dr. Borges de Medeiros "nosso ínclito chefe" e ao senador Pinheiro Machado, "o gigante do Palácio Monroe".

Rodrigo lia os resultados das eleições sem grande emoção. Estava já certo de que o candidato civilista perdera a batalha. O próprio Rui Barbosa, reconhecendo isso, publicara nos jornais do Rio de Janeiro e de São Paulo um artigo em que falava nos "Estados escravizados". Rodrigo atirava longe os jornais num gesto teatral com o qual queria dar a entender que estava não só desiludido da política como também indiferente ante os resultados daquela farsa eleitoral. Meter-se em política seria não só perder tempo como também fazer papel de tolo. De resto, não trocava seu prestígio de médico pela posição do Trindade ou de qualquer deputado estadual ou federal. Sentia-se forte, feliz e de consciência tranqüila. Chegara a Santa Fé e erguera a luva do desafio, dando à canalha governista e ao povo de sua terra uma prova de hombridade. Exercia agora um direito que ninguém lhe poderia tirar: o de cultivar em paz seu jardim.

Flora voltara da estância com os pais, e Rodrigo, naquelas tardes de princípio de outono, costumava passar depois do banho pela frente da casa da namorada. Parava à esquina e olhava para as janelas agora abertas, onde as cortinas de renda branca esvoaçavam. E por trás dessas cortinas entrevia o vulto de sua amada. Quedava-se longamente na esquina a fumar, meio encabulado por estar-se portando como um adolescente, num namorico indigno de sua idade e de sua posição social. Fazia, depois, uma volta completa à praça, onde os plátanos já começavam a perder as folhas. Andava no ar um escondido arrepio de inverno. Rodrigo recitava baixinho poemas de Verlaine e Samain. Tornava a passar pela casa de Aderbal Quadros, verificando com satisfação que lá estava ainda Flora por trás das cortinas, à sua espera...

Pensava num pretexto para se aproximar da moça de maneira digna. As oportunidades, porém, não eram muitas. Depois da morte do Macedinho, o clube não dera mais bailes. Flora pouco saía à rua. Todos os domingos pela manhã Rodrigo ia esperar à porta da igreja o fim da missa e, quando a moça saía pelo braço da mãe, ele as seguia a uma distância respeitosa. Flora jamais voltava a cabeça para trás, e, embora desejasse ver essa prova de interesse da parte da namorada, ele sabia antecipadamente que ficaria decepcionado se ela fizesse esse gesto. Havia coisas que podiam ficar bem para a Esmeralda e para as Fagundes, mas não para a Flora Quadros.

Num daqueles dias, Gabriel lhe contou que andavam murmurando com insistência que o cometa de Halley ia destruir o mundo. Rodrigo bateu-lhe afetuosamente no ombro e, pensando em Flora, respondeu:

- O fim do mundo? Qual nada, Gabriel, o mundo agora é que vai principiar.

Certa manhã Cuca Lopes entrou no consultório e, sem ao menos dizer bom-dia, foi contando:

- Sabes duma? O Zago anda falando pra todo o mundo que tu és o doutor das chinas.

Rodrigo, que amanhecera de bom humor, soltou uma risada.

- Pois é a pura verdade, o Zago tem razão. E podes dizer pr'aquele boticário de meia-tigela que prefiro ser médico do chinaredo do Barro Preto a ter de tratar das mazelas morais dele!

Mas as chinas que freqüentavam o consultório do Rodrigo não eram propriamente as marafonas descalças e molambentas do Barro Preto ou do Purgatório, e sim as prostitutas mais categorizadas de Santa Fé, as que tinham casa própria - em geral montada e mantida por algum comerciante ou fazendeiro do município - as que usavam na intimidade quimono de seda e chinelos com pompom, as que aos domingos iam, muito bem vestidas, à missa da matriz. Muitas dessas mulheres eram aceitas até pelas famílias mais humildes do lugar, principalmente pelas que viviam nas vizinhanças, e com as quais Rodrigo freqüentes vezes as vira conversando e tomando mate doce, sentadas à frente de suas casas.

Vestiam-se e portavam-se como damas e - diferentes das profissionais francesas, judias e polacas que Rodrigo conhecera em Porto Alegre e que trabalhavam doze horas por dia como verdadeiras máquinas de fazer dinheiro - dificilmente recebiam mais dum homem por noite. Rodrigo observara também que, em matéria de amor, aquelas prostitutas nacionais e provincianas observavam uma rigorosa ortodoxia, o que - concluía ele entre sério e trocista - era um padrão de honra para nossa raça. Tinham dignidade e recato, e sempre que no consultório a natureza do exame a que se iam submeter exigia que se despissem, elas o faziam com certa relutância e com um pudor que no princípio deixara Rodrigo um tanto desconcertado. Raramente ou nunca se referiam ao ato sexual, e quando o faziam era por meio de eufemismos que seriam ridículos se não fossem antes de tudo comovedores.

Entre seus clientes Rodrigo contava agora a famosa Rosa Branca - Rosinha Peito-de-Pomba na intimidade -, prostituta famosa na história galante da cidade, não só por ter dormido com várias gerações de santa-fezenses, como também e principalmente por ter a postura e muitas das virtudes duma romana. Alta, farta de seios, com cabelos dum crespo duvidoso, a pele cor de marfim e grandes olhos escuros e bondosos de mãe de família, agora no fim da casa dos quarenta era ainda uma mulher vistosa que chamava a atenção quando passava na rua, fazendo os homens voltarem a cabeça e arrancando deles comentários como este: "Sim senhor, a Rosinha ainda está em forma!"

Caíra na vida aos quinze anos e desde essa idade até o presente exercera a profissão com competência e honestidade. Afirmava-se que sempre recusara receber dinheiro dos moços pobres que a procuravam, e por mais duma vez tirava muitos deles de aperturas financeiras. Era uma mulher limpa, que adorava os perfumes ativos e as cores berrantes. Em sua casa, dum asseio impecável, viam-se por todos os cantos vasos de flores artificiais; na sala de visitas, em que havia uma abundância de almofadões de cetim de tons vivos, estava entronizada uma imagem do mártir São Sebastião.

Rosinha sabia receber os fregueses, obsequiando-os com um cálice de licor de butiá e com bolinhos de polvilho. Nunca os levava para o quarto sem antes entretê-los na sala de visitas com uma conversação bem-educada, e jamais se deitava com eles sem primeiro apagar a luz. E quando algum rapazote de quatorze ou quinze anos vinha procurá-la, ela o repelia, escandalizada, e mandava-o embora depois de pregar-lhe um sermão.

José Lírio era grande entusiasta da Rosinha Peito-de-Pomba e mais duma vez Rodrigo ouvira do amigo esta opinião: "É uma verdadeira dama".

Agora, na vizinhança da casa dos cinquenta, Rosa Branco vivia amasiada com o Marcelino Veiga e era-lhe - todos sabiam - duma fidelidade verdadeiramente conjugal.

Rodrigo gostava de conversar com essa espécie de clientela. As prostitutas lhe faziam confidências e pediam-lhe conselhos. E como ele recusasse terminantemente cobrar-lhes as consultas e os tratamentos ("Havia de ter graça, madrinha, eu receber dinheiro dessas chinas!") elas lhe mandavam presentinhos, lenços de seda com as iniciais R. C. bordadas a um canto, gravatas, cestos com ovos, cocadas, pastéis...

Um dia, à hora do almoço, Rodrigo reproduziu para a tia um diálogo interessante que mantivera aquela manhã no consultório com uma de suas "cortesãs". Maria Valéria escutou-o em silêncio e por fim disse: "Agora só falta você trazer uma dessas piguanchas pra almoçar aqui em casa". Pra escandalizar a madrinha, Rodrigo replicou: "Por que não? São mulheres muito limpas e direitas. E fique sabendo duma coisa, Dinda, nunca me faltaram com o respeito".

Mas naquela tarde a moreninha que vivia com um filho do Joca Prates tentou seduzi-lo à hora da consulta: Rodrigo repeliu-a com jeito, com um sorriso paternal e indulgente de quem quer dizer: "Ora vamos deixar dessas bobagens, menina". A rapariga retirou-se, mal podendo conter o despeito, e Rodrigo voltou para casa contente consigo mesmo, orgulhoso de seu autodomínio, que lhe permitira manter a ética profissional pois, que diabo! a rapariga era nova e bonita, uma morena bem-feita de corpo, com um sinal preto na face esquerda e uns olhos travessos. Quando, porém, voltou ao consultório, dois dias depois, a morena repetiu o assédio, beijando-o na boca no momento em que ele baixava o rosto para auscultar-lhe o coração. (Mas não é que esta diabinha está me provocando mesmo?) Rodrigo achou que aquilo era um abuso e que, afinal de contas, ele não era de ferro. Agarrou a cliente com uma fúria de canibal e atirou-a para cima do divã.

Naquele dia voltou para casa numa confusão de sentimentos. Estava um pouco decepcionado consigo mesmo por ter fraquejado e ao mesmo tempo contente por não haver perdido a gostosa oportunidade. Por outro lado esforçava-se para não dar ouvido a uma voz interior, que lhe sugeria num cochicho malicioso que a profissão médica estava cheia de oportunidades eróticas, como aquela. Como para afugentar o demônio íntimo pôs-se a cantarolar um trecho de Von Suppé. Entrou em casa, tomou um banho de chuveiro, vestiu-se, gritou sorrindo para o Bento que atrelasse os corcéis à carruagem e poucos minutos depois estava passando de carro pela frente da casa de Aderbal Quadros. Flora achava-se à janela, toda vestida de branco, e como de costume ficou ruborizada ao cumprimentá-lo.

Em casa, aquela noite, Rodrigo fez um silencioso mas solene voto de castidade. E, para se fortalecer em sua resolução, pediu o auxílio de Caruso, Amato e Tamagno, que ficaram boa parte do serão a cantar para ele suas árias mais heróicas.

Desde que chegara a Santa Fé, de volta do Angico, Rodrigo raramente se erguia da cama antes das nove da manhã. Esse hábito irritava Licurgo que, antes de partir para a estância, advertira:

- Acho que o senhor anda levantando muito tarde. Isso não está direito.

Rodrigo sabia que o levantar da cama cedo era parte importantíssima do ritual daquela ferrenha religião do dever e do trabalho, professada por gente da tempera de seu pai e de Aderbal Quadros. Achavam esses dois gaúchos ortodoxos que um homem deve trabalhar de sol a sol e que há algo de desonroso e indecente no dormir até tarde, pois isso sugere noite de orgia, vícios condenáveis, vadiagem e falta de força de vontade; é, em suma, um péssimo hábito que atrasa a vida das pessoas ao mesmo tempo que lhes solapa o caráter.

No entanto, agora que o pai se encontrava no Angico, Rodrigo, que nunca conseguia dormir antes de uma da madrugada, só deixava o quarto, na manhã seguinte, depois das nove. Dessa hora em diante seguia uma norma para ele docemente agradável e que, muito nova, não tinha ainda o caráter rançoso da rotina.

Descia para a cozinha e lá tomava dois ou três mates com a tia e Laurinda. Depois bebia uma pequena xícara de café simples, sem o que não podia fumar, e se dirigia para a farmácia, onde ficava a atender os clientes até as onze, hora da roda de chimarrão, à qual compareciam invariavelmente o Chiru, o Neco e don Pepe, e na qual se falava principalmente em mulheres e política. Nos momentos em que não estava a dizer mal do clero e da burguesia ou a derrubar cabeças coroadas, Pepe Garcia era um conversador pitoresco que sabia narrar com verve suas viagens pelo mundo e suas experiências com "esos animalitos singulares llamados mujeres". Chiru vendia seus campos imaginários ou então dissertava sobre os fabulosos tesouros dos jesuítas que haviam de trazer-lhe a independência financeira para o resto da vida. Não raro aparecia para chupar apressadamente um chimarrão o dr. Matias, e ao se retirar enchia os bolsos de almanaques e figurinhas, que costumava distribuir com grande sucesso entre seus clientes. O próprio tenente Rubim uma vez que outra entrava na roda das onze, embora se recusasse a participar do chimarrão, por achar aquilo uma coisa "anti-higiênica e promíscua" - observação que deixava Chiru profundamente ofendido.

Rodrigo detestava comer sozinho, e era raro o dia em que não tivesse um convidado ou dois à mesa. Chiru, no dizer de Maria Valéria, estava ficando um verdadeiro "freguês de caderno". Já pela manhã, antes de sair, Rodrigo entrava na cozinha e começava a abrir e cheirar as panelas, perguntando: "Que é que vamos ter pró almoço, Laurinda?" Dava sugestões, pedia pratos especiais e quase sempre, insatisfeito com o que a mulata preparava, abria vidros de azeitonas recheadas, latinhas de paté fie foie gras, de sardinhas portuguesas ou anchovas e comia esses petiscos antes, durante e às vezes depois do almoço ou do jantar, aproveitando a ausência do pai - que só voltaria ao Sobrado em princípios do inverno -, tomava sempre às refeições uma garrafa de vinho francês ou italiano. Quando via Chiru beber Chianti ou Médoc em longos sorvos, protestava:

- Isso não é água, animal! Vinho se bebe aos pouquinhos, degustando bem. Assim... Estás vendo, selvagem?

Chiru sorria, olhava para Maria Valéria, sacudia a cabeçorra leonina, dando a entender que perdoava tudo a Rodrigo porque lhe queria muito bem.

O Lucas era também um dos convivas habituais dos jantares do Sobrado. Fazia horrores à mesa, simulava comer o guardanapo, os talheres, contorcia o rosto nas caretas mais grotescas. Rodrigo ria-se não porque achasse muita graça nas momices do tenente de obuseiros, mas porque queria ser-lhe simpático. Maria Valéria, essa ficava a cozinhar o convidado com seu olhar fixo e frio, o rosto absolutamente sério. Às vezes o mais que dizia era: "Muito riso, pouco siso". Como último recurso, Lucas escondia o rosto nas mãos e desatava num simulacro de choro, soluçando convulsivamente.

Um domingo Rodrigo teve à mesa do almoço o coronel Jairo e a esposa. O positivista apreciou os vinhos, saboreou o jantar, falou em Augusto Comte, nos grandes couraçados que o governo havia adquirido - o Minas Gerais e o São Paulo, unia honra para a nossa Marinha! - e, à sobremesa, pôs-se a elogiar Rodrigo, a contar-lhe o que ouvira na cidade a seu respeito. Era um grande médico - dizia-se -, um grande caráter e um grande coração!

- O senhor, dr. Rodrigo, professa, talvez sem o saber, a religião positivista. Vive para os outros, altruisticamente, cultivando a família, a pátria e a humanidade.

Fez um largo gesto com a mão que segurava o cálice do Borgonha. Enquanto o marido falava, prosseguindo em seus ditirambos, Carmem Bittencourt ali continuava calada e tristonha, toda vestida de escuro, com um solitário a faiscar-lhe num dos magros dedos. Rodrigo lançava-lhe de vez em quando olhares furtivos. Não queria demorar nela os olhos, temendo que o coronel pudesse achá-lo impertinente. Era-lhe, porém, agradável mirar aquele rosto duma beleza meio apagada, a qual lhe lembrava estranhamente certas nêsperas que, de tão maduras, estão a pique de se tomarem murchas mas que apesar disso ou, melhor, por isso mesmo perdem a acidez, e são duma doçura e maciez deliciosas.

Seria tísica, como se murmurava? Rodrigo imaginou-se a encostar o ouvido naquele descarnado peito. Diga trinta e três, minha senhora. Trinta e três. Trinta e três. Não diga mais nada. Diga só se é feliz. Fale a verdade. Um médico é como um sacerdote. Abra a sua alma. Abra o seu corpinho. Que seios, que mãos, que lábios gelados! O senhor me perdoe, dr. Pasteur, mas há ocasiões em que não acredito em bacilos...

Quando deu acordo de si estava a olhar fixamente para a mulher de Jairo Bittencourt, o qual naquele momento lhe perguntava:

- Então, já leu o Système de politique positive que lhe emprestei?

- Ah! Não, coronel. Ainda não tive tempo. O senhor não imagina como tenho trabalhado naquele consultório!

Uma vez por semana Laurinda fazia sua famosa feijoada completa. Nessas ocasiões Rodrigo convidava Chiru, Neco e don Pepe. A presença desses amigos como que lhe fazia o apetite redobrar. Tinha-se a impressão de que para aquele quarteto comer não era apenas uma coisa necessária e gostosa, mas de certo modo também humorística.

A feijoada como que possuía a virtude de despertar-lhes uma espécie de erotismo verbal. Enquanto a comiam com gulosa pressa, Pepe recordava anedotas fescemnas de frades em torno de estômago e sexo, comidas e mulheres. Contava-as, lambendo os bigodes, nos momentos em que Maria Valéria se retirava da sala de jantar para ir buscar alguma coisa ou dar alguma ordem à cozinha. E quanto mais comiam, mais fome pareciam ter e mais disposição para contar histórias escatológicas. Rodrigo nunca provocava esses torneios frascários e quando Neco ou Chiru se lançavam a ele, queria convencer-se a si mesmo de que aquelas porcarias lhe feriam a sensibilidade refinada de civilização. Soltava, porém, gargalhadas gostosas às piadas dos outros, e por fim ele próprio começava a contar suas anedotas, usando de circunlóquios e eufemismos quando a madrinha se encontrava à mesa.

Rematavam a feijoada com caninha, "pra consertar o estômago", e depois ficavam jiboiando, numa sonolência feliz e meio estúpida. Neco Chiru e o espanhol retiravam-se do Sobrado e, com os olhos já pesados de sono, Rodrigo subia para o quarto. Como de costume, atirava-se na cama e dormia sem tardar.

Acordava por volta das três, com a língua pastosa, a cabeça pesada e uma vontade rabugenta de brigar com todo o mundo. Tomava um cafezinho, acendia um cigarro e voltava para o consultório, onde ficava até às cinco e meia ou seis.

A parte mais amorável de sua rotina incipiente era a descida da rua do Comércio, às seis e meia da tarde, rumo da casa da namorada. Parava sempre que encontrava amigos no caminho. Tinha o cuidado de deter-se junto da janela à qual Emerenciana Amaral estava debruçada e ali ficava, por cinco sólidos minutos, a conversar com a matrona, a dizer que ela estava de muito boa aparência, e a recusar sempre os convites que ela lhe fazia para entrar, "pois eu já disse ao Alvarino que vocês têm que acabar com essas bobagens de política e fazer as pazes".

Dona Emerenciana queixava-se invariavelmente de pontadas, palpitações e dizia mal do dr. Matias, que nunca acertava com um remédio para seus achaques.

No mínimo três vezes por semana Rodrigo entrava na Funilaria Vesúvio, do italiano Camerino, um homem retaco, de nariz vermelho de palhaço, espessos bigodões castanhos - a única pessoa em Santa Fé que era vista a comer tomates maduros às dentadas, como quem come uma pêra ou uma maçã. Dante, o filho do funileiro, havia instalado na pequena sala da funilaria sua cadeira de engraxate. O italiano não cansava de contar a Rodrigo que seu bambino estava juntando dinheiro para custear futuramente os estudos.

Rodrigo um dia perguntara ao menino.

- Que é que vais ser quando fores grande?

- Doutor - respondera Dante, lustrando as botinas do "moço do Sobrado".

- Advogado?

- Não. Doutor de curar gente.

Tinha dez anos, um par de olhos vivos e uma cara redonda, de feições agradáveis, em que o vermelho das bochechas carnudas era realçado pelas manchas escuras de pomada e tinta de sapato que lhe riscavam as faces.

Rodrigo dava-lhe sempre gorjetas generosas e tinha um prazer especial em passar a mão pela cabeleira ríspida do guri, dizendo:

- Dante Camerino, bello bambino, bravo piccolino, futuro dottorino!

Dia sim, dia não, Rodrigo entrava na barbearia do Neco, sentava-se na cadeira, fechava os olhos e entregava o rosto ao seresteiro, que ele continuava a considerar o pior barbeiro do planeta. E, enquanto a navalha lhe cantava nas faces, ouvia o Neco contar as "últimas", narrar alguma farra da noite anterior, noticiar a chegada de alguma rapariga nova ou então cantarolar modinhas em voga.

Conheces esta, Rodrigo? "Quisera amar-te, mas não posso, Elvira, porque gelado tenho o peito meu." É um schottish supimpa! E esta?

A Europa curvou-se ante o Brasil e clamou parabéns em meigo tom." E a respeito do Santos Dumont, o inventor do aeroplano.

A modinha é do Eduardo das Neves...

Já estava começando a fazer parte também da rotina de Rodrigo debruçar-se a uma das janelas do Sobrado no momento em que o velho Sérgio, o acendedor de lampiões, vinha chegando com a escadinha às costas. Era um negro alto e descarnado, de pele bronzeada, com um bigode, uma barbicha e uma certa finura de traços que lhe davam ares dum nobre etíope. Desde menino Rodrigo ouvia a Laurinda afirmar que nas noites de sexta-feira o Sérgio virava lobisomem e saía pelas ruas a uivar, entrando nos quintais para devorar galinhas. E ai de quem se atravessasse no seu caminho!

Quando Sérgio encostava a escada no poste, à esquina do Sobrado, Rodrigo de ordinário mantinha com ele demorados diálogos, e nunca deixava de atirar-lhe um níquel de quatrocentos réis, que o preto aparava com o seboso chapéu de feltro, ficando lá embaixo a fazer mesuras e a resmungar, de olhos postos no chão, como se estivesse falando com uma terceira pessoa. "É como eu digo. O dr. Rodrigo não é soberbo. Conversa com os pobres. É como eu digo. Um moço de senhoria e distinta consideração."

Rodrigo sempre tivera curiosidade de conhecer a vida íntima daquele vulto espigado que ao anoitecer andava pela cidade de poste em poste a prender fogo nas mechas dos lampiões. Que será do Sérgio quando vier a luz elétrica? - pensava, às vezes.

E uma noitinha, estando em veia romântica, ao ver o negro no alto da escada, perguntou-lhe:

Sérgio, será que existe no céu alguém encarregado de acender as estrelas todas as noites?

O lobisomem ficou por um instante em grave silêncio e depois, voltando a cabeça, respondeu:

Ha sim, senhor. São os anjos de Deus, Pai de nós todos.

Durante algumas semanas, Rodrigo frequentou quase todas as noites o clube, onde passava as horas a jogar pôquer com amigos. Era mau jogador, não tinha sorte e invariavelmente perdia. Voltava para casa vagamente inquieto, pois percebia que, se continuasse a encher as noites daquela forma, acabaria irremediavelmente dominado pela paixão do jogo. Conhecia-se bem e sabia que esse era um de seus fracos. Se se entregasse de novo à fascinação do pano verde (em Porto Alegre durante todo um ano fora escravo da roleta, na qual perdera um dinheirão), sua vida estaria arruinada e seus mais belos planos iriam águas abaixo. Era por isso que agora, ao anoitecer, fazia o possível para resistir à tentação de ir ao clube. Convidava amigos para virem ao Sobrado, abria latas de conserva e garrafas de vinho, punha o gramofone a funcionar e tratava de interessar-se pela palestra dos visitantes.

Quando não aparecia ninguém - o que era raro - fechava-se no escritório para ler. Tinha a atenção vaga e dificilmente conseguia vencer mais de cinco páginas duma sentada. Lia muitos livros ao mesmo tempo. Alternava os romances de boidevard com obras mais sérias. Muitas vezes largava La chemise de Mme Crapoiiillot para pegar La vite de Jesus. Às vezes tomava-se de brios profissionais e abria um tratado de medicina, principalmente quando tinha em mãos algum caso difícil que lhe exigia conhecimentos especializados. Mas acabava bocejando e fechando o livro. Aquilo era supinamente cacete. A medicina que fosse para o diabo!

Em meados de abril recebeu de Paris os primeiros números de Illustration. Folheou-os avidamente, com um prazer não só visual mas também tátil e olfativo, pois era com volúpia que passava a mão espalmada no papel gessado da revista e aspirava-lhe o cheiro de tinta. No fim de contas, aquilo era um pedaço de sua querida Paris que lhe chegava pelo correio!

Um daqueles números trazia no frontispício um desenho que representava Chantecler (M. Guitry) apoiando com a asa La Faisane (Mme Simon) a qual, perseguida pelo Cão Briffaut, refugiara-se num canto no terreiro e agora estava desfalecida nos "braços" do Galo.

Rodrigo leu com avidez o artigo em que se descrevia as peripécias que precederam a mise-en-scène de Chantecler, os patins sociais e literários de Paris a propósito da peça, as discussões de Coquelin com Edel, o desenhista de figurinos, em torno das dificuldades surgidas com relação aos costumes. Que fazer da cabeça dos artistas? Conservar-lhes os rostos? E os braços... deixá-los livres ou dissimulá-los sob as asas? Mas seria possível para um comediante recitar seu papel sem gesticular? Coquelin afirmava que não. Um dia estava ele a tomar seu banho quando Edel chegou. Começaram a falar no Chantecler e o ator, tomado de entusiasmo, pôs-se a recitar o Hino ao Sol. Ao terminar, perguntou: "Hein? Não é bonito? Que dizes, Edel?" O desenhista respondeu: "Digo que acabas de me fornecer a prova que eu procurava há tanto tempo. Recitaste magnificamente o Hino ao Sol sem tirar os braços de dentro d'água! Está provado que se pode declamar sem gestos!"

Rodrigo estava encantado com a oportunidade de participar das conversas de bastidores, penetrar na caixa do teatro Porte SaintMartin, espiar para dentro dos camarins e ver atores e atrizes a se meterem naqueles grotescos costumes que os transformavam em enormes galos, galinhas, faisões, melros, cães e mochos - que ali estavam maravilhosamente reproduzidos em cores nas páginas de Illustration.

Mergulhou fundo na leitura do primeiro ato da peça, que vinha transcrito integralmente no número 12 de fevereiro. Leu das sete e meia da noite até às onze. Ao fechar a revista, sentiu de súbito, pesada e angustiante como nunca, a solidão do Sobrado. Caminhou até a janela, como que sufocado, numa busca de ar. Era uma noite de lua nova, pobre de estrelas, e só a luz tíbia dos lampiões alumiava as ruas. Um ventinho em que já se sentia um precoce calafrio de inverno, remexia as folhas secas no chão da praça. Não se via vivalma naquelas redondezas.

Rodrigo começou a andar pelo escritório, dum lado para outro, mascando um cigarro apagado. Dinda estava fechada no quarto.

A criadagem, dormindo. Por onde andariam àquela hora os patifes do Chiru, do Neco e do espanhol? Teve ímpetos de gritar. A vida que levava era a mais estúpida que se podia imaginar. Para onde quer que se voltasse, só via homens: na farmácia, no Sobrado, no clube. Só machos, machos, machos! Precisava casar, ter mulher em casa, carinho, filhos, calor humano, aconchego... Detestava aquela solidão. Illustration lhe havia trazido imagens de Paris, ecos da vida da Cidade Luz. Damas em vestidos de noite, envoltas em peles, faiscantes de jóias, perfumadas e belas, dentro de automóveis à saída de teatros; homens de casaca, chapéu alto, sobretudos de astracã... Cancãs no Moulin Rouge. Museus, livrarias, cafés. A boémia intelectual da Rive Gaúche. Canções alegres, ditos espirituosos, gente civilizada e interessante. Vida, enfim! Que tinha ele em Santa Fé? A civilização da vaca, do sebo, do charque. A boçalidade, a banalidade, a rotina, a pobreza de espírito, o atraso dum século! Ou vou para Paris o ano que vem ou me caso. Ou faço as duas coisas. Ou meto uma bala nos miolos.

Apanhou o chapéu e saiu. Desceu a rua do Comércio, monologando sobre suas tristezas. Parou à frente do clube, pensou num joguinho de pôquer, mas reagiu contra a idéia e continuou a andar. Entrou na Confeitaria Schnitzler e sentou-se a uma mesa, na sala deserta. Quando Marta se aproximou, pediu-lhe algo de comer. A moça trouxe um sanduíche, especialidade da casa: rodelas de presunto e mortadela entre duas grossas e largas fatias de pão de centeio barradas de manteiga. Rodrigo gritou:

- Uma cerveja preta!

Deu uma dentada no sanduíche e começou a mastigá-lo com uma pressa gulosa. Encheu o copo de cerveja e bebeu. Podia estar bebendo vin blanc e comendo iguarias esquisitas num café-concerto de Paris. Imaginou Marta vestida como as bailarinas de cancã: as pernas modeladas por meias de seda preta, um bom palmo de coxa branca à mostra, juntamente com as ligas, as calças de renda... Rodrigo olhava cupidamente para a filha do confeiteiro, que estava recostada ao caixilho da porta do corredor. Num dado momento teve a impressão de que Marta lhe sorria de modo significativo. E como ela em seguida fizesse meia-volta e se encaminhasse para o fundo do corredor sombrio, ele não hesitou sequer por um segundo. Ergueu-se, apressado, e seguiu-a. Lá estava o vulto claro da alemãzinha... Rodrigo avançou, enlaçou-lhe a cintura, apertou-a contra a parede e beijou-lhe avidamente a boca. Marta entregou-se sem a menor resistência. Rodrigo sentiu nas suas o calor das faces dela. E já sua mão começava a explorar o corpo da rapariga, quando alguém riscou um fósforo. Voltando-se num sobressalto, Rodrigo viu, à luz da minúscula chama, a cara de Túlio Schnitzler.

- Ah, doutor! Isso não se faz!

Soltou Marta, que se precipitou para o salão da confeitaria. Na penumbra mal se distinguia o vulto do confeiteiro.

Rodrigo encaminhou-se em passos firmes e dignos para o salão. Ao passar por perto do outro, pensou: Agora ele vai me agarrar... Schnitzler, porém, não se moveu. Sem olhar para trás, Rodrigo aproximou-se de Marta.

- Quanto é?

- Quatro mil-réis.

Meteu nas mãos da moça uma cédula de dez, voltou-lhe as costas e saiu da confeitaria sem dizer palavra. O vento fresco da noite bateu-lhe em cheio no rosto. Foi bom o alemão ter aparecido - refletiu - senão, podia ter acontecido o diabo...

Levava, porém, um sentimento de derrota e estava furioso consigo mesmo, principalmente por ter tratado tão mal a alemãzinha à saída.

Ao chegar à casa subiu logo para o quarto e meteu-se na cama. Custou-lhe um pouco dormir. Teve um sonho confuso: andava de gôndola pelas ruas inundadas de Paris... Na proa ia um vulto que lhe parecia ora Flora Quadros ora Marta Schnitzler. A Torre Eiffel erguia-se acima do casario, imensa e ereta. O velho Sérgio, vestido de galo, andava acendendo as luzes de Paris. E Rodrigo achava estranho que o Sobrado estivesse na Place de L'Étoile, o que afinal de contas tornava Paris conveniente mas prosaica. O gondoleiro (seria o Schnitzler?) cantava uma canção que ele se esforçava por identificar mas não conseguia.

Abriu os olhos e continuou a ouvir a voz do gondoleiro. Aos poucos identificou, na penumbra, a silhueta familiar dos móveis do quarto.

A voz vinha da rua. Uma serenata! Desperto, Rodrigo sentou-se na cama. Reconheceu o vozeirão do Neco. Pôs-se de pé, caminhou até a janela e ergueu a guilhotina. Lá estava o barbeiro, a dedilhar o violão e a cantar.

Quisera amar-te mas não posso, Elvira Porque gelado tenho o peito meu.

Saturnino acompanhava-o com trémulos de flauta. No vulto ao lado do ecónomo, Rodrigo reconheceu Chiru. Inclinou-se sobre o peitoril e gritou:

- Que bobagem é essa serenata em noite sem lua?

Neco Rosa calou-se. Por alguns instantes só se ouviram os trinados da flauta do Saturnino. Por fim este também cessou de tocar.

- Nós não cantamos para lua, homem! - replicou Chiru. - Cantamos pras moças. Desce e vem com a gente!

- Que horas são?

- Uma e pouco. É cedo.

- Esperem que já desço.

Vestiu-se às pressas e foi reunir-se aos amigos.

- Aonde é que vamos? - perguntou.

- Vamos primeiro fazer uma serenata pra Esmeralda...

Rodrigo encolheu os ombros. O itinerário pouco lhe importava. O essencial era fazer alguma coisa aquela noite, fosse o que fosse.

XVII

Em fins de abril Rodrigo recebeu um chamado que o deixou em alvoroço. Aderbal Quadros telefonou uma tarde, pedindo-lhe fosse ver sua mulher, que estava de cama, com uma pontada nos rins.

Babalo recebeu-o à porta com uma cordialidade que muito o desvaneceu, e levou-o imediatamente ao quarto do casal. Dona Laurentina achava-se recostada em travesseiros, em cima da cama, mas completamente vestida, com um xale de lã sobre os ombros. Era uma senhora de meia-idade, e seus cabelos negros e lisos, entre os quais se viam raros fios brancos, estavam puxados para trás, num coque. Seu rosto, de expressão severa mas serena, lembrava o duma estátua que tivesse sido talhada naquela pedra morena das calçadas de Santa Fé.

Ao entrar, Aderbal gracejou:

- Preciso lê avisar, doutor, que a Titina não acredita no senhor como médico...

Laurentina apertou a mão do recém-chegado:

- Como é que vou acreditar, se já peguei ele no colo? Rodrigo tratou com carinho a mãe de Flora: sentou-se na beira da cama, enquanto lhe tomava o pulso, fez-lhe perguntas nesse tom que os mais velhos usam para com as crianças quando querem convencê-las de que estão sendo tratadas como gente grande.

- Aposto como está doente porque fez alguma travessura! - sorriu, ao pôr-lhe o termômetro debaixo do braço. - Conte aqui em segredo pró seu amigo de infância...

Laurentina permanecia séria e calada, fitando no doutor seus olhos descrentes e dando a entender que se prestava a todas aquelas coisas apenas para contentar o marido.

- Eu disse pró Aderbal que não era preciso chamar médico. Já estou melhor. Acho que é dos rins.

- Agora vamos ver, dona Laurentina. Fique bem quietinha. Tirou o termômetro e ergueu-o contra a luz.

- Ótimo! Não tem febre.

- Estás vendo, Aderbal?

Rodrigo começou a apalpar a cintura da paciente.

- Dói aqui?

- Um pouco.

- E aqui?

- Também.

- É a primeira vez que sente essas pontadas?

- Não.

- Agora me conte um segredo. Que foi que a senhora andou fazendo de ontem pra cá? Fale a verdade.

Ela hesitou por um instante.

- Não andei fazendo nada, ora essa!

Rodrigo ergueu os olhos para Aderbal, que picava fumo tranqüilamente ao pé da cama.

- Ontem essa mulher lavou o soalho e andou descalça na umidade.

Rodrigo deu uma palmada na própria coxa:

- Aí está! Logo vi. Por castigo agora tem de ficar uns dias de resguardo na cama, debaixo das cobertas.

- Não posso! Tenho muito que fazer.

- Não tem fun-fun nem fole de ferreiro! São ordens que estou lhe dando. Tem tomado algum remédio caseiro?

- Chá de pata-de-vaca.

- Pois continue com o seu chazinho e tome mais as cápsulas que vou lhe receitar.

Fez uma prescrição, recomendou uma dieta e, dando como encerrada a consulta, puxou outros assuntos, não só porque lhe era agradável conversar com os pais da Flora, como também porque desejava prolongar a visita, na esperança de ver a moça. Babalo falou nas suas estâncias, no seu gado, nas suas roças. Saltou depois para a política e contou os atos de violência e arbitrariedade que presenciara na mesa eleitoral em que votara. Era, como Licurgo, um velho castilhista desiludido com o partido.

- É a sina deste pobre país! - exclamou. - Os homens de honra e saber nunca vão pró governo. A morte do dr. Júlio de Castilhos foi um desastre pra toda a nação.

Tinha uma voz lenta e por assim dizer quadrada. Falava dum jeito seco: não pronunciava réis, mais e pois e sim rés, más e pós. Pitoresco contador de causos, sua pachorra era famosa na cidade. Enfrentava as situações mais difíceis e embaraçosas com uma calma imperturbável. Jamais perdia as estribeiras e tinha sempre nas conjunturas mais dramáticas um dito chistoso, e nas maiores desgraças uma serena atitude filosófica. Havia pouco, Cuca Lopes encontrara-o na rua e gritara: "Seu Babalo, a coisa está preta. O cometa vem aí e diz que o mundo vai acabar!" Aderbal Quadros parou, tirou uma palha de trás da orelha e respondeu: "Será que ainda dá tempo pra eu pitar um crioulo?

Homem de estatura média e constituição sólida, tinha uma face máscula e um tanto angulosa, duma tonalidade de marfim antigo. O nariz era fino e nobre e seus olhos escuros e meio amendoados estavam quase sempre tocados dum brilho risonho e malicioso, mesmo quando a boca carnuda, dum vermelho enxuto e pardacento, permanecia séria. Recém-entrado na casa dos cinqüenta, os cabelos já se lhe faziam ralos, e nos bigodes e na pêra começavam a apontar fios prateados.

Rodrigo olhava com simpatia para aquele homem que ali estava em mangas de camisa, bombachas de riscado, chinelos sem meias e que, mesmo dentro de casa, conservava ordinariamente o chapéu na cabeça.

Ouviu-se um rumor de passos no corredor. Rodrigo ficou alerta, em alegre antecipação, esperando que Flora entrasse a qualquer minuto. Os passos, entretanto, apagaram-se e a porta do quarto permaneceu fechada.

Malditas convenções sociais! Por que não posso dizer claramente a estas duas simpáticas criaturas que estou apaixonado pela Flora e que desejo casar-me com ela? Pró diabo as convenções! Levantou-se e disse:

- Talvez este não seja o momento oportuno, mas há muito desejo dizer uma coisa ao senhor, seu Aderbal, e à senhora, dona Laurentina...

Fez uma pausa, um tanto embaraçado, porque no silêncio do quarto teve a impressão de que suas palavras continuavam soando no ar, como se houvessem sido pronunciadas por uma quarta pessoa e ele ainda as escutasse, achando-as tolas e improváveis.

- Não farei rodeios, irei direito ao assunto, Gosto muito de Flora e minhas intenções para com ela são as mais sérias... e nem poderia ser de outro modo.

Laurentina mirava-o com uma expressão pétrea. Babalo amaciava vagarosamente as partículas de fumo depositadas no côncavo da mão, como se, indiferente às palavras do visitante, tivesse toda a atenção concentrada no crioulo que fazia.

- Estou com vinte e quatro anos, tenho uma profissão certa e não é nenhum segredo que pertenço a uma família de posses. Sei que isso não é tudo. Para um homem como o senhor, seu Aderbal, isso talvez até não seja nada. Não me compete falar de minhas qualidades pessoais, do meu caráter. Cometi muitos erros e sei que nem sempre tive um comportamento exemplar. Mas asseguro-lhes, sob palavra de honra, que hoje sou um homem diferente, que estou encarando a vida com a maior seriedade. Preciso e desejo casar, ter uma esposa e um lar. Não apenas porque minha profissão exija que eu seja casado, mas porque meu coração se inclina para o casamento, e principalmente porque tenho uma afeição muito grande pela Flora...

Calou-se. Estava começando a ficar comovido com suas próprias palavras. Sentiu a testa úmida de suor e ficou meio decepcionado por não notar no casal Quadros nenhuma reação particular ao seu discurso. Esperava que Babalo o abraçasse, num impeto de cordialidade, exclamando: "Não pode haver partido melhor pra minha filha!"

Naquele instante, Aderbal colocava o fumo picado sobre a palha. Enrolou o cigarro, levou-o à boca, bateu nos bolsos à procura do isqueiro e, como não o encontrasse, olhou para Rodrigo:

- Me dê o fogo.

Acendeu o cigarro e soltou algumas baforadas, como se nada de extraordinário estivesse acontecendo. Rodrigo esperava, com uma incómoda sensação de frio interior. Era como se houvesse acabado de defender uma tese e agora esperasse o veredicto duma banca examinadora inescrutável.

Por fim a voz grave e descansada de Babalo encheu o quarto:

- Pôs me alegro, Rodrigo. Sou amigo do Licurgo dês do tempo que eu era pião de estância e passava com meu pai lá pelo Angico, levando tropas pra Passo Fundo e Soledade. Lê conheço desde criança. E isso de ter feito farras é coisa que acontece pra qualquer um. Eu não fiz porque não tive tempo, trabalhava de sol a sol, meu pai me trazia num cortado loco. - Sorriu, seus olhos travessos se apertaram e luziram. - Agora estou velho demais pra começar.

Voltou-se para a mulher.

- Pôs nós fazemos muito gosto, não é, Titina?

Não se moveu um único músculo na face da mulher. Por um segundo, Rodrigo se sentiu perdido, como um ator que no meio da peça tivesse esquecido o papel.

- Pois bem - disse por fim - eu lhe peço, seu Aderbal, que, depois que eu sair, fale com a sua filha. Se ela corresponde à minha afeição, quero que o senhor me dê licença pra frequentar a casa...

- Já? - deixou escapar Laurentina.

- E por que não? Creio que conheço Flora o suficiente... Não há razão pra termos de passar por todas essas fases tolas: o namorico de longe, a conversa ao pé da janela, etc. ...

- O dr. Rodrigo tem razão, Titina. Não estamos más em mil oitocentos e oitenta e dós.

Pôs a mão no ombro do rapaz.

- O meu noivado com a Titina foi combinado entre o pai dela e o meu. Quando eu ia visitar a noiva, quem me recebia era o futuro sogro. A Titina ficava me espiando por uma fresta da porta.

- Ficava coisa nenhuma! Não seja gabola.

- Só vi a noiva bem de perto no dia do casamento. - Apontou para a mulher. - Foi por isso que cometi esse erro!

Soltou uma risada, que também era lenta, clara e quadrada como a voz.

- Estamos em 1910 - continuou - e não no tempo do ariri. O dr. Rodrigo não anda de carreta. Anda mas é de trem.

Fez uma pausa e depois, num tom mais sério, prometeu:

- Vou conversar com a Flora.

Rodrigo saiu feliz da casa dos Quadros. Atravessou a rua e teve a intuição de que Flora estava a espiá-lo por trás da cortina duma das janelas. Voltou a cabeça e verificou que não se enganava. Achou, entretanto, que seria mais delicado fingir que não a vira. Por isso não a cumprimentou. Continuou a andar, trauteando o Loin du bal. Estava ganho o dia. Apressara de muitos meses o noivado. Flora evidentemente daria o sim, e dentro de breve ele estaria a freqüentar-lhe a casa. Duas ou três vezes por semana? Três. Terças, quintas e sábados. Um que outro domingo, também. Dali ao noivado seria um pulo; do noivado ao casamento, outro pulo. Quando ele completasse vinte e cinco anos, em dezembro, poderia comemorar o acontecimento em companhia da esposa. Flora Quadros Cambará.

Ia tão satisfeito da vida, que ao encontrar no meio da quadra o padre marista com quem viajara de Santa Maria a Santa Fé, abraçou-o com uma cordialidade ruidosa, uma efusão que suas relações com o homem não justificavam.

- Mas onde é que se tem metido, irmão Jacques?

- Oh, muito ocupado no colégio.

-- Apareça lá pelo Sobrado uma noite destas. Vá jantar com a gente. Quero lhe mostrar uns livros franceses e umas revistas que recebi de Paris. - Piscou-lhe o olho. - Tenho uns Borgonhas e uns Médocs de primeira ordem. Est-ce que vous n'aimezpás un bon verre de vin, hein?

- Mais oui! - exclamou o marista. - Certainement, mon cher docteur!

E ficou vermelhíssimo, como se já houvesse bebido os vinhos do outro. Contou-lhe que o Colégio Champagnat progredia e seus eleves já cantavam canções francesas. Connaissez-vouz l'histoire du petit navire? Cantarolou os dois primeiros versos. Rodrigo não conhecia. E Jacques Meunier, os olhos muito azuis a refletirem a claridade daquela tarde de abril, contou também que estava tratando de fundar um clube de futebol. Vous savez, Cruz Alta já tem um time, por que Santa Fé não pode ter também o seu, e muito melhor, hein?

- O senhor também vai jogar? - troçou Rodrigo.

- Claro. Eu era o melhor center-forward da minha cidade natal.

- Conto com o senhor para ajudar o nosso sport club, sim? Rodrigo prometeu-lhe tudo: prestigiar o novo grêmio, ajudá-lo com dinheiro... E se o irmão Jacques quisesse, ele poderia até vestir uma camiseta colorida, uns calções curtos e sair a dar pontapés numa bola!

Despedir-se rindo, com um forte e demorado abraço.

Pouco depois Rodrigo avistou Marco Lunardi, no momento em que o gringo saía da Casa Schultz, com um saco de farinha de trigo às costas.

- Atlas carregando o mundo sobre os ombros! - exclamou. Ao ver o amigo, Marco largou o saco no chão e parou no meio da calçada. Tinha os cabelos, o rosto e a roupa manchados de farinha. As calças de riscado estavam arregaçadas até meia canela. Seus grandes pés rosados e encardidos achavam-se bem plantados no chão, dando uma impressão de equilíbrio e solidez. Mais uma vez a beleza física daquele colono produziu em Rodrigo um cordial sentimento de inveja. Chegava a achar quase ofensivo que um diabo daqueles, nascido em Garibaldina, duma família de imigrantes, pudesse ser um tão belo espécime humano. Parecia mais um ator caracterizado para representar o aspecto de um colono, que um colono autêntico.

- Como vai Garibaldina?

- Regular pra campanha.

- E quando é que vens pra cidade homem?

- Quando puder comprar as máquinas pra fábrica.

- Quanto te falta ainda?

- Ah, muito dinheiro.

- Diga quanto.

- Uns dois contos e pico.

- Bagatela, Marco, bagatela.

Rodrigo estava exaltado, via o mundo a luz cor-de-rosa, bom, fácil.

- Bagatela pró senhor...

- Pelo amor de Deus não me chame de senhor. Mirou o amigo, de alto a baixo.

- Pois manda buscar essas máquinas, o quanto antes, homem! Eu te dou o dinheiro que falta.

Marco sorriu. Parecia não saber se Rodrigo estava brincando ou falando sério.

- Palavra de honra. Te dou o dinheiro.

- Mas como?

- Te empresto. Quando puder, me paga. Se não puder, não pagas. Pronto.

- Mas doutor...

- Doutor coisa nenhuma!

começa a fazer as tuas massas.

O colono sorria pelos olhos azuis, pelas faces rosadas, suas grandes mãos calosas pareciam sorrir também. No entanto continuava mudo. - Aparece no Sobrado quando quizeres, que eu te dou o dinheiro.

- Eu assino uma letra. Não assinas coisíssima nenhuma, não sou argiota. Estendeu a mão.

- Até logo, Marco Lunardi.

- Estou com as mãos sujas doutor.

- Deixa de bobagens. As mãos dum homem honrado sempre estão limpas.

Neste ponto quem se comoveu foi o próprio Rodrigo, pois os olhos do colono se embaciaram, e o seu pomo-de-adão pôs-se a subir e descer no sólido pescoço vermelho.

Apertaram-se as mãos demoradamente. Depois abraçaram-se. Como sua cabeça mal chegasse à altura do ombro do outro, Rodrigo não pôde deixar de aspirar o cheiro acre daquele corpo suado, o que lhe deitou a perder a emoção do movimento.

Continuou a andar. A vida é boa. Flora me ama. Vou ajudar esse rapaz a realizar um sonho.

Entrou na Funilaria Vesúvio. Deitado de bruços, os cotovelos fincados no chão, as mãos a apoiar a cabeça, Dante Camerino lia uma brochura. Rodrigo acocorou-se junto do pequeno engraxate e leu o título do livro: Cinco semanas em balão.

- Vou te dar todas as obras de Júlio Verne que tenho em casa. Aparece por lá no sábado e leva um cesto grande, ouviste?

Dante sorriu, pondo à mostra os dentes miúdos e limosos. Rodrigo passou-lhe a mão pela cabeça. Dante Camerino, bello bambino, bravo piccolino, futuro dottorino.

- Engraxa o sapato, doutor? - gritou o funileiro, do fundo da oficina.

- Fica pra outro dia! De novo ganhou a rua.

Encontrou o Cuca à porta da Farmácia Popular.

- Que é que há de novo?

- Está feia essa história do cometa.

- Que história, homem?

- Então não leste o Correio do Povo de hoje? Falta pouco tempo pró bicho aparecer. Estão dizendo que ou a Terra se espatifa ou nós morremos envenenados pelo rabo do bruto.

Rodrigo entrou no laboratório, onde Gabriel também quis saber se o doutor achava possível que o fim do mundo estivesse marcado para meados de maio. Viço, o aprendiz, aproximou-se do patrão e focou nele os olhinhos vivos de roedor.

Rodrigo tirou o chapéu, sentou-se e pôs-se a falar sobre o cometa de Halley, baseado num artigo de Camille Flammarion que lera em Illustration.

- Tudo quanto se tem publicado até agora é considerado prematuro pelos cientistas, principalmente essas histórias que falam do envenenamento da humanidade e do fim do mundo. Em maio que vem, haverá um encontro do cometa de Halley com a Terra. Viço, vá esquentar a água pró mate! Nesse dia a cauda do cometa estará dirigida pra cá. Se ela nos atingir, ficaremos submersos nesse apêndice gasoso, compreendem?

- De que é feito o rabo do cometa? - indagou o Cuca, que de certo modo parecia encarar aqueles acontecimentos siderais como uma espécie de mexerico social do cosmos.

- É duma matéria radiante muito rarefeita - explicou Rodrigo, felicitando-se intimamente por ter boa memória. - E o nosso planeta atravessará a cauda do cometa como uma bala de canhão atravessaria uma cerração de inverno, com uma velocidade de cento e seis mil quilómetros por hora.

- Pomba!

- Mas esse encontro - esclareceu Rodrigo - só se dará se a cauda do cometa tiver uma extensão de mais de vinte e três milhões de quilómetros...

Ao chegar à casa contou à tia com minúcias sua conversa com os Quadros. Maria Valéria escutou, imperturbável.

- Para que tanta pressa em frequentar a casa da moça?

- Ora, é o meu jeito. Não tenho paciência pra esperar.

- Você puxou foi pelo seu bisavô. Tia Bibiana me contava que o capitão Rodrigo era homem que fazia tudo fora de hora e andava sempre com pressa, como se o mundo fosse acabar.

- Pois pra ele o mundo não acabou cedo mesmo? O capitão morreu antes dos quarenta. Decerto tinha algum pressentimento e queria aproveitar.

- Boa desculpa...

Naquelas primeiras semanas de maio Rodrigo notou em Santa Fé um absoluto desacordo entre o tempo e as pessoas. Os dias eram tranqüilos, duma beleza doce e madura, os céus distantes, os crepúsculos vespertinos longos. Pairava no ar uma paz lânguida, tocada de brumas douradas e sombras lilases. As pessoas, porém, andavam inquietas, moviam-se e falavam com nervosismo, numa expectativa de catástrofe. Claro, havia os descrentes que se riam daquelas tolas histórias de fim do mundo. Lembravam-se de outras eras, outros cometas e vãos temores. Esses continuavam a viver em paz. A maioria, porém, se fazia perguntas e não eram poucos os que tratavam de reunir seus familiares, a fim de que a hecatombe não os apanhasse separados. Os Teixeiras reuniram-se todos na fazenda na esperança, talvez, de que o cataclismo pudesse ser menos violentamente sentido no campo que na cidade. Homens que estavam projetando viagens por aqueles dias, adiavam-nas. Os que se achavam fora de Santa Fé, apressavam-se a voltar para casa. Nas lojas, escritórios e repartições públicas já não se trabalhava direito, e o cometa de Halley (a que Liroca insistia em chamar "cometa do Alves") era o assunto permanente de todas as rodas. Alguém bravateou: "Que venha esse cometa. Mas é preciso que ele tenha muito caracu pra acabar com o Rio Grande!" O padre Kolb nos seus sermões dizia não acreditar que Deus estivesse mesmo com tenções de "liquitar sua opra magnífica", mas aconselhava os crentes a que, pelas dúvidas, se fossem preparando para o pior. Assim, naqueles dias teve um número desusado de fiéis no confessionário. Mulheres piedosas acendiam velas para os santos de sua devoção, fazendo as mais extravagantes promessas. Outras começavam as visitas de despedida, corriam às casas de amigos e parentes. Nem todas -- notava Rodrigo - se entregavam a isso com sinceridade, na crença absoluta de que o mundo fosse mesmo acabar. Em sua maioria diziam esses adeuses por precaução, porque sabiam por experiência própria que as piores coisas podem acontecer. Muitas, entretanto, pareciam aproveitar a ocasião apenas para acelerar o passo da vida, de ordinário tão lento e igual, pois o fim do mundo não deixava de ser um assunto fora do comum.

Alguns homens procuravam-se para liquidar dívidas ou desfazer negócios; houve até mesmo uns dois ou três casos de inimigos que se reconciliaram. E don Pepe, que parecia querer arrogar para o anarquismo o direito de destruir pessoas e coisas, comentou: "Quién sabe Dios aderió al anarquismo y quiere destruir el mundo con una bombita?"

Dona Evangelina Mena, a tia de Chiru, veio um dia procurar Rodrigo ao Sobrado. Era uma velhinha muito asseada, com cara de querubim, cabelos completamente brancos, pele rosada e olhos claros. Tinha qualquer coisa de esquilo no jeito ágil e vivo de andar, mexer a cabeça e gesticular.

Viúva sem filhos, vivia com aquele sobrinho, que levara para sua casa no dia em que o rapaz, aos dez anos, ficara órfão de pai e mãe Chamava-lhe meu "velocino de ouro" por causa de sua cabeleira crespa e loira, e tivera sempre para com ele mimos de avó.

Ao completar vinte e um anos, Chiru entrara na posse da herança dos pais, mas antes de chegar aos vinte e cinco anos havia já perdido tudo em maus negócios e prodigalidades.

Desde o dia em que seu "velocino de ouro" ficara sem vintém, tia Vanja passara a sustentá-lo. Proprietária duma casinha à rua Voluntários da Pátria, era tida como a mais hábil doceira e bordadeira de Santa Fé. Fazia bolos, doces, tortas e pastéis para casamentos, batizados e banquetes. Bordava colchas, toalhas, guardanapos e roupa-branca para enxovais. Era assim que sustentava a casa e as vadiagens do sobrinho.

Desde criança Rodrigo sentia um enternecido fascínio por aquela criaturinha recendente a patchuli que costumava passar-lhe a mão pelos cabelos, murmurando: "De quem é esta bolinha de Ébano?" Ébano, então, passou a ser para o menino Rodrigo uma palavra misteriosa, inseparável dos cheiros de tia Vanja, e do contato macio de suas mãos. Não havia em Santa Fé casa que Rodrigo gostasse mais de visitar que a meia-água da tia de Chiru. "É um verdadeiro brinco", diziam dela as comadres. Evangelina Mena muitas vezes à noite recitava para o "velocino de ouro" e para a "bolinha de ébano" O noivado do sepulcro. Apagava a luz e, depois que via os dois meninos sentados direitinhos a seu lado, como pintos sob as asas duma galinha, começava:

Vai alta a lua! na mamão da morte Já meia-noite com vagar soou; Que paz tranqüila! dos vaivéns da sorte Só tem descanso quem ali baixou.

Tinha uma voz fina e melodiosa, que lembrava o som duma caixinha-de-música. Rodrigo sentia um calafrio na espinha quando o poema chegava ao trágico final:

Quando risonho despontava o dia, Já desse drama nada havia então. Mais que uma tumba funeral vazia, Quebrada a lousa por ignota mão.

Porém mais tarde, quando foi volvido Das sepulturas o gelado pó, Dois esqueletos, um ao outro unido, Foram achados num sepulcro só.

Findo o recitativo, tia Vanja erguia-se, acendia o lampião e, ainda com lágrimas nos olhos, dava sorrindo aos dois meninos suas deliciosas balas de ovos.

Rodrigo sempre achara que tia Vanja era diferente de todas as outras pessoas que ele conhecia. Só mais tarde, ao voltar numas férias para casa, com o curso de preparatórios terminado, é que percebera, encantado, que a velhota falava como as personagens dos folhetins que lia com tanta paixão. Tia Vanja era uma literata!

Rodrigo nunca esquecera o diálogo que, já moço, entreouvira no Sobrado entre Evangelina Mena e Maria Valéria Terra.

- A senhora já viu o despautério? - disse a primeira. - Uma matilha de cães andarengos anda infestando as ruas de nossa urbe. Urge aos poderes competentes tomar uma providência enérgica, a fim de coibir o abuso.

A outra fez uma observação seca:

- É uma cachorrada braba, mesmo.

- Dar-lhes veneno seria crueldade, pois, como diz o anexim popular, maltratar os animais é indício de mau caráter. Aliás os pobres irracionais não têm culpa de serem como são. Se o Todo Poderoso assim os fez, decerto é porque assim os quer, a senhora não acha?

- É.

- Mas também temos que levar em conta a conveniência dos transeuntes, pois esses animais não têm o menor senso de decência, de decoro e de higiene.

- Muito homem também não tem.

Rodrigo ficou numa agradável expectativa quando a madrinha lhe veio dizer aquele dia:

- A dona Vanja está aí e quer falar com você. Precipitou-se para a sala de visitas e beijou a mão da velha amiga.

- Então, que milagre é este?

- Ora, Rodriguinho, quando Maomé não vai à montanha, a montanha vai a Maomé.

Soltou a minúscula risada melodiosa. Sentou-se, compôs o vestido com um gesto faceiro e fitou no rapaz os olhos de boneca.

- Pois estou muito apreensiva, meu filho. O Chiru meteu-se-lhe na cabeça de ir fazer escavações nas ruínas jesuíticas de São Miguel.

- E que tem isso, tia Vanja? Deixe aquele marmanjo ir pra se desiludir duma vez por todas e não incomodar mais a gente com essas bobagens de tesouros enterrados.

- Mas é que agora vai surgir esse cometa de Halley, e afirmam os cientistas que teremos um cataclismo universal. Talvez tudo isso não passe de grosseiro erro de cálculo astronômico mas como diz o rifão popular, mais vale prevenir que remediar, e como o fato tem visos de verdade... Bem, eu não sei. Mas suponhamos que a cauda do dito seja sólida e colida com o nosso planeta... Imaginemos essa hipótese horrenda, meu anjo, onde iremos nós todos parar? Que acontecerá para esta humanidade sofredora que Deus fez à sua santa imagem?

- Sim, mas que é que o cometa de Halley tem a ver com a viagem do Chiru às Missões?

- Rodriguinho, será que não compreende o que a tua tia está insinuando? O Chiru quer embarcar a semana que vem, e eu acho arriscado esse menino viajar agora. Vamos que o cometa...

- Ora, tia Vanja!

- Não sei, podes apodar-me de alarmista, mas apesar de eu ser um pouco como São Tomé, que queria ver para crer, como rezam as Escrituras, estou muito apreensiva. E meus pressentimentos, meu anjo, sempre se confirmam. Nós vamos ainda nos incomodar com esse cometa. Toma nota do que eu digo. Imagina tu se esse astro errante e indesejável surpreende o menino em pleno descampado...

Calou-se, suspirou, brincou com a bolsa de croché pousada no regaço e por fim tornou a falar.

- Eu queria que tu convencesses o Chiru a transferir essa viagem. O rapaz não me ouve. É um obstinado, puxou ao pai, que Deus o tenha em sua santa glória! E, tu sabes, quem herda não furta.

- Está bem. Posso lhe garantir que o Chiru não sairá de Santa Fé antes do cometa passar. Se for preciso, sou capaz até de prender aquele safado no porão.

- Coitado!

Pouco antes de sair, tia Vanja tirou da bolsa umas balas de ovos e meteu-as nas mãos de Rodrigo.

- Toma. Sei que são balinhas da tua preferência.

A porta da rua ergueu o braço e passou a mão pela cabeça de Rodrigo.

- Quem é a minha bolinha de ébano? - Fez um muxoxo. - Antigamente eu baixava a mão pra te acariciar a cabeça. Agora tenho de erguer. Mas isso é lei da vida. Uns crescem, outros minguam. Deus te abençoe, meu anjo.

Pôs-se na ponta dos pés, beijou a testa do rapaz e se foi, muito tesa, caminhando miudinho e depressa, a voltar a cabeça dum lado para outro.

Naquele mesmo dia Rodrigo conversou com o Chiru e foi-lhe facílimo convencê-lo a transferir a excursão às Missões para qualquer data depois da passagem do cometa.

- Já que o tesouro esperou tantos anos - filosofou o velocino de ouro - acho que não vai se perder por esperar mais um mês.

XVIII

Quando, naquela noite de terça-feira, Rodrigo saiu para visitar Flora - depois de haver passado longos minutos diante do espelho a pentear-se e a aperfeiçoar o nó da gravata -, Maria Valéria despediu-se dele com estas palavras:

- Pobre da Titina! Está de cacete em casa.

- Qual! Ela vai pegar pra genro o melhor partido de Santa Fé!

Rodrigo ia quase sempre de carro à casa da futura noiva, aspirando o ar daquelas noites outonais, recendentes a folhas secas queimadas, o que o levava a pensar - ele não sabia bem por quê - em cidades orientais que nunca vira, como Cairo, Istambul, Bagdá... Recomendava sempre ao Bento que não apressasse o andar dos animais. Fazia já parte daquela suave rotina ficar ali no carro antegozando o serão que ia passar junto da namorada. Levava-lhe todas as noites um presentinho, por mais insignificante que fosse: barras de chocolate, bombons, números de O Malho e da Kosmos, ou então livros. Descobrira com alegria que Flora gostava de ler e tinha até sua instruçãozinha. Claro, estava ainda na fase dos romances de água com açúcar de Macedo e Alencar, mas, que diabo! era já um princípio. Com o tempo, pouco a pouco, havia de trazê-la para um tipo mais sério de leitura. Não raro levava-lhe também os almanaques e as figurinhas em tricromia que certas fábricas de produtos farmacêuticos costumavam mandar como brinde às farmácias - efígies de santos ou heróis, reproduções de quadros célebres, historietas cômicas. Flora recebia essas coisas com uma tão simples alegria menineira, que ele, Rodrigo Cambará, o civilizado, achava uma graça e um encanto indescritíveis naquela inocência. A coisa toda chegava a ter um sabor entre doce e picante, que o deixava ao mesmo tempo enternecido e excitado, fazendo-o sentir pela namorada, ora ternuras de irmão mais velho ora ardores de amante.

Nas primeiras visitas, Flora revelara um acanhamento que seria constrangedor para outro que não fosse Rodrigo. Falava pouco, corava com freqüência, chegava a não ter coragem de encarar o futuro noivo, limitando-se a lançar-lhe olhares furtivos. Ele, entretanto, não cessava de contar histórias dos tempos de estudante e anedotas de consultório. E assim, na sala de visitas da residência dos Quadros, iluminada pela luz dum antigo lampião de quebra-luz esférico, aqueles serões passavam depressa. Dona Laurentina não se afastava da sala. Ficava sentada na sua cadeira de balanço, ao pé da mesinha do lampião, e Rodrigo tinha a impressão de que com um olho fazia croché e com outro fiscalizava os namorados, cujas cadeiras estavam afastadas uma da outra quase um metro. Aderbal aparecia às vezes no princípio do serão, conversava um pouco com o futuro genro, e depois se recolhia, pois era hábito seu ir para a cama antes das nove.

Às oito invariavelmente entrava na sala uma criada preta, que servia café com roscas de polvilho ou bolinhos de coalhada.

Uma noite em que se fizera um silêncio mais prolongado e dona Laurentina, com os óculos na ponta do nariz, parecia absorta no seu croché, Rodrigo contemplou Flora longamente, com olho crítico, procurando descobrir que traço ou combinação de traços naquele rosto tinha sobre ele um fascínio tão poderoso. Pensou nas mulheres que lhe haviam feito "bater a passarinha", segundo uma expressão muito do agrado de Maria Valéria. Claro, não negava que gostasse de todas as mulheres e que dificilmente voltaria as costas a qualquer portadora de saia razoavelmente bonita que lhe fizesse um aceno. Sabia que, em matéria de amor, era eclético. Tivera, porém, na vida umas três mulheres que lhe haviam transtornado a cabeça. A primeira que lhe veio à mente foi a equilibrista do Circo Sabbatini, Kazuko Tasaki, a japonesinha que o fizera fugir de casa aos dezessete anos e seguir os burlantins até Passo Fundo, de onde o pai o arrastara à força, de volta para Santa Fé.

Lembrou-se depois duma paraense que o deliciara e ao mesmo tempo atormentara, no primeiro ano de estudante... Houvera também a mulher de um professor em cuja casa costumava almoçar aos domingos - criatura estranha, dez anos mais velha que ele, e pela qual tivera uma paixão que lhe parecera devastadora, a maior de todas, a última... Numa sucessão de imagens rápidas, teve no campo da memória a japonesinha a equilibrar-se no arame, com um párasol na mão, as curtas coxas e pernas apertadas numa roupa de malha branca, um saiote vaporoso de bailarina, a cabeleira preta e lustrosa, de franja, a emoldurar-lhe a cara de boneca... A seguir viu os lábios de Jussara, que dizia ter sangue índio nas veias, Jussara de pele cor de canela e olhos enviesados... Mas a imagem da paraense fundiu-se com a de outra mulher. Dona Lúcia passava-lhe o prato de peixe e sorria: seus olhos verdes e oblíquos tinham algo que lembrava um aquário ou o fundo do mar; o rosto era ovalado e dum moreno de terra de Siena. Descobri! - concluiu Rodrigo a olhar para a namorada. Flora tinha olhos de musmé e tez trigueira - dois traços presentes no rosto das três mulheres do passado. Era como se a acrobata, a bugra e a mulher do professor se houvessem encontrado milagrosamente numa única e maravilhosa mulher que estava agora à sua frente, ao alcance de suas mãos e que dentro em breve seria sua esposa, senhora do Sobrado, mãe de seus filhos. Teve então ímpetos de erguer-se, tomá-la nos braços, beijar-lhe a boca - coisa que não fizera a Kazuko, de quem não conseguira aproximar-se, nem a Lúcia, que jamais suspeitara de sua paixão.

Na noite da quinta-feira seguinte, Rodrigo levou a Flora uns números de Illustration, o que lhe pareceu excelente pretexto para se aproximar um pouco mais da namorada, no momento em que fossem folhear juntos as revistas. Dona Laurentina, entretanto, não cessava de vigiá-los. E ele, contrariado, teve de manter uma distância respeitável de Flora, e nem uma vez as pontas de seus dedos tocaram as mãos dela, e não houve sequer o mais leve roçar casual de cotovelos. Folheou as revistas, leu as legendas das gravuras, dissertou sobre as belezas das cidades européias, como se as tivesse realmente visitado, e deteve-se nas páginas que mostravam Paris durante a grande inundação do último janeiro.

- Olhe, esta é a Rua Saint-Dommique. Não parece um canal de Veneza, com esses barcos navegando por entre as casas?

Flora sacudia a cabeça, sorrindo, o rosto afogueado.

- Sabe o que é aquilo lá no fundo? A famosa Torre Eiffel, um arcabouço de aço de trezentos metros de altura. Agora aqui temos um efeito noturno na praça do Palácio Bourbon. Ali está a ponte da praça de L'Alma, a avenida Montaigne e o cais da Conférence.

Falava naqueles lugares com uma intimidade de velho conhecido. O mais que Flora arriscava fazer eram perguntas tímidas:

- E aquilo ali?

- É uma cena de L'Opéra-Comique. A inundação interrompeu o serviço de luz elétrica e a Ópera teve de dar função à luz de lâmpadas de acetilene... Está vendo? Ali está o maestro, parte da orquestra e a primeira fila de espectadores...

Não resistiu ao desejo de dar à namorada uma demonstração de sua pronúncia francesa. Leu:

- ...cê qui riempecha pás l'Opéra-Comique deprésenter un soir un pittoresque spectacle de son orchestre, éclairé par dês lanternes du modele lê plus primitif.

Traduziu. Depois voltou a cabeça para Flora e os olhos de ambos se encontraram por alguns instantes que para Rodrigo foram de deliciosa, esquisita vertigem.

- Ah! Paris! - suspirou ele. - Um dia nós dois havemos de ir lá.

A mãe de Flora ergueu vivamente os olhos do croché e fitou-os em Rodrigo, que se apressou a explicar:

- Quando nos casarmos, dona Laurentina, um de meus planos é fazer com a Flora uma viagem à Europa. Talvez seja a nossa viagem de núpcias. Quem sabe?

O rosto duro da futura sogra permaneceu impassível e indecifrável. Dona Laurentina tornou a baixar os olhos para o croché. Rodrigo continuou a folhear a revista. Apontou para uma gravura que mostrava o recinto dum salão de Berlim, onde se realizava uma exposição de arte francesa do século XVIII: quatrocentas obras de pintores e escultores como Watteau, Fragonard, Pajou, Pesne, Boucher... Rodrigo percebeu logo que Flora estava interessada principalmente nos vestidos das personalidades femininas que haviam comparecido à exposição, com seus monumentais chapéus emplumados, de abas largas, as cinturas finas e as saias rodadas e compridas. Traduziu:

- "Entre as personalidades presentes achavam-se S. M. Guilherme II, da Alemanha, a imperatriz, a Kronprizessin, o senhor embaixador da França e o barão Henri de Rothschild". Veja quanta gente importante! Se isso fosse em 1911 eles talvez tivessem de acrescentar: "Entre os convidados viam-se o dr. Rodrigo Cambará e exma. esposa..."

Fechou as revistas e falou nos seus planos de vida. Flora escutava-o com atenção. Ao cabo de cinco minutos dona Laurentina começou a pigarrear com tanta insistência, que Rodrigo compreendeu o que ela queria dizer. Afastou sua cadeira (Agora - refletiu, meio ressentido - só comunicações semafóricas ou telegráficas...) e o serão continuou. Como sempre, ao ouvir o relógio bater as primeiras badaladas das dez, Rodrigo despediu-se de Flora ali na sala, na presença da mãe, num rápido aperto de mão que ele tentou, mas em vão, tornar mais prolongado. Dona Laurentina acompanhou-o até a porta e a despedida seguiu a fórmula de costume.

- Boa noite. Lembranças pra Maria Valéria.

- Serão dadas. Boa noite.

No dia 12 de maio o coronel Jairo telefonou a Rodrigo:

- Então, já soube da infausta nova?

- Não, coronel. Que foi?

- Morreu Eduardo VII.

- Quem?

- O rei da Inglaterra.

- Ah...

- Uma grande perda para o Reino Unido e para a humanidade. Eduardo VII era um monarca popular, um verdadeiro liberal, um grande diplomata e um gentleman na mais lídima acepção do termo. Não sei o que vai ser dos ingleses agora, porque o filho dele, o Jorge, parece não ter a fibra do pai. Enfim, a História tem de seguir seu curso e os vivos serão sempre cada vez mais governados pelos mortos.

- Amanhã talvez estejamos todos mortos, coronel.

- Olá! Olá! Como disse?

- Disse que amanhã talvez estejamos todos mortos. O cometa de Halley anda por aí...

- Havemos de sobreviver, dr. Rodrigo, não tenha dúvida... Sabia que há uns dois meses esse mesmo cometa atravessou a órbita da Terra? Pois é como lhe digo. Não creio que possa haver qualquer colisão. Segundo os cálculos astronômicos, a 1° de abril o cometa atravessará a órbita de Vénus e no próximo dia 30 cortará a da Terra pela segunda vez...

Rodrigo sorriu:

- E o senhor não acha que isso é uma provocação?

A risada do coronel chegou-lhe ao ouvido como o zumbido duma abelha encerrada numa caixa de fósforos.

Naquele mesmo dia don Pepe irrompeu no Sobrado trazendo debaixo do braço um quadro enrolado em jornais. Depô-lo sobre uma cadeira, tirou a boina, jogou-a longe e sentou-se. Rodrigo provocou-o:

- Sabes quem morreu? Eduardo VII da Inglaterra.

O artista, porém, pareceu não ouvir o que ele dizia. Apontou para o quadro.

- Todo lo que yo esperaba ocurrió. Burgueses tramposos!

- Conta logo, Pepito. Que foi que houve?

- No aceptaron mi cuadro.

- O retrato do coronel Teixeira?

- Mas por quê?

- Porque está demasiado bien hecho, demasiado artístico, demasiado parecido.

Ergueu-se, começou a caminhar miudinho: três passos à frente, três à retaguarda.

- Pero no se trata de una semblanza fotográfica, no señor, pero psicológica.

Olhou sério e firme para o amigo.

- Rodrigo, quiero tu opinión sincera sobre mi obra. No hables en seguida, si no tienes opinión. Mira, analiza, compa y después juzga.

Avançou para o quadro, rasgou os jornais e deixou a tela mostra. A primeira vista, o retrato chocou Rodrigo. Havía nele; algo de brutal, de disforme, de caricatural, e um empastamento de cores que causava certa confusão no espírito do observador. Aos poucos, porém, foi começando a descobrir a intenção do artista. O que ali estava na tela era uma estranha figura, metade homem, metade animal. Rodrigo punha a mão em pala sobre os olhos, recuava, avançava, procurando olhar a pintura de diferentes ângulos.

- Y que tal?

- Pepito, te juro como, dum certo modo não fotográfico, está parecido. Há qualquer coisa nesse quadro...

- Que hay, eso yo lo sé, madre de mi vida! - Tomou o braço do amigo e explicou: - Mira, hijito, no te parece natural que un hombre que vive del buey, con el buey y para el buey acabe adquiriendo el aspecto de un buey?

- Levaste a coisa longe demais. Chegaste a botar chifres na testa do homem. Olha que isso pode ser mal interpretado...

- Pues, hombre, no sou apenas cuernos de buey, no senior. La simbologia es más sutil. Son los cuernos de satanás!

- Por quê? Não vejo nada de satânico no Coronél Pedro Teixeira.

- Es un burgués y la burguesia ha vendido su alma al diablo. Mira, por que crêes que el fondo del cuadro tiene el caolor de la sangre? No es solamente la sangre de las vacas y carneros sacrificados en los mataderos, pero también la sangre de todos los hombres que muríeran en todas las revoluciones hechas en el interés de la clase de Tejera. Ven, acércate del cuadro. Que hay en lugar de la pupila en el ojo izquierdo?

- Uma libra esterlina?

- Claro! Es la unica cosa que los burgueses sabem ver. Oro, dinero, libras! Y esos labios gruesos denotam animalidad, ausencia de preocupaciones espirituales.

- Mas o homem tem algumas qualidades positivas e até nobres, Pepe. É: um cidadão honesto e um bom chefe de família.

- Me cago en la leche de la família Tejera y de todas las famílias.

Rodrigo contemplava o quadro. Apesar de todas as extravagâncias do pintor, podia-se reconhecer naquele misto de homem-fauno-boi-satanás, o pachorrento Pedro Teixeira, estancieiro e argentário.

- Não admira que não o tivessem aceito o quadro, Pepe. Esse retrato é um insulto.

- El unico insultado soy yo, el artista. - O Coronél Teixeira viu isso?

- No. Pero el Coronél Prates, que me lo encomendó, lo ha visto.

- E que foi que disse?

- Se quedó indignado, me dijo que no me pagaria un tostón.

- Pois eu te pago. Pepe, te compro o quadro, gosto dele.

Quanto queres?

Pepe refletiu por um instante.

- Nada. Te lo regalo. Sí quieres pagarme con algo, dame um copetín de cognac.

Quando Rodrigo saiu da sala para ir buscar a bebida, o espanhol ficou a resmungar:

- No se por qué me quedo en esta ciudad podrída.

Naquele anoitecer, ao subir a escada para acender o lampião da esquina do Sobrado, o velho Sérgio saudou Rodrigo:

- Salve o Dr. Rodrigo neste dia glorioso para nós, os morenos. Salve a Rainha D. Isabel, moça de muito saber e condições. Salve D. Pedro II, nosso Imperador festeiro, e Deus Nosso Senhor, pai dos brancos e dos pretos.

Sua voz, cava e áspera, parecia sair duma gruta escura cheia de morcegos.

De sua janela, Rodrigo atirou um patacão, que o negro apanhou com o chapéu, ficando a examinar a moeda e a resmonear.

- Moço de muita senhoria e da mais distinta consideração. Fala com os pobres, não é soberbo. Deus lhe dê muita vida e uma boa morte.

Acendeu a mecha, repôs a manga no lugar, desceu a escada, pô-la ao ombro e continuou seu caminho.

Rodrigo achava-se tomado dum inexplicável mal-estar, duma espécie de premonição de desastre cuja origem não podia precisar. Era a noite em que se esperava o aparecimento do cometa. Estava claro que ele não acreditava na possibilidade dum choque com a Terra. Que tinha, então? Devia estar feliz, pois às oito horas ia fazer o pedido de casamento. Escrevera, havia dias, para o Angico, pedindo licença ao pai para dar um caráter oficial ao noivado. Viera-lhe uma resposta seca mas positiva:

Acho precipitado o pedido, pois faz tão pouco tempo que o senhor freqüenta a casa da moça, mas em todo o caso o senhor é um homem feito e sabe o que quer e eu faço gosto, pois a Flora é uma moça prendada, filha dum amigo meu. O senhor tem meu consentimento.

Aderbal Quadros esperava-o aquela noite, e Rodrigo pensava agora nas palavras com que ia fazer o pedido. Como tudo aquilo era complicado e até certo ponto, ridículo!

Jantou sem muito apetite. Durante a refeição a tia mirava-o de quando em quando com seu olhar frio mas interessado.

- Não fique tão nervoso. Essa história é mais fácil do que parece.

- Não estou nervoso.

- Eu então é que estou...

- A senhora está mas é com ciúme.

- Você não se enxerga!

- Se dependesse da senhora eu passava o resto da vida solteirão.

- Não seja bobo.

- Está se vendo que a Dinda não está contente.

- Eu só disse que você está indo com muita sede ao pote. Podia esperar um pouco mais pra fazer o pedido.

- Ora, titia!

Fez um gesto brusco, derrubou o cálice, e uma mancha de vinho alastrou-se na toalha branca.

- Sinal de sorte... - murmurou Maria Valéria.

- Superstições!

Houve um silêncio em que Rodrigo se imaginou na sala de visitas dos Quadros, à frente de Aderbal. "Tenho a honra de pedir..." A voz da tia cortou-lhe o pensamento.

- Ficava mais bonito que o senhor esperasse seu pai pra ele mesmo fazer o pedido.

- Que absurdo! Isso se usava antigamente, no tempo do onça. Hoje as coisas estão mudadas.

- Mas era uma consideração pró seu pai.

Rodrigo ficou irritado porque, no fundo, achava que a madrinha tinha razão. Precipitara-se. Não lhe teria feito nenhum mal esperar mais um mês... Por outro lado, já que freqüentava a casa de Flora, achara melhor oficializar logo o noivado para evitar os falatórios. Mas desde quando estou dando importância à língua do povo? Vão todos pró inferno! Faço o que entendo. Sou dono do meu nariz.

Levantou-se, subiu ao quarto, escovou os dentes, e postou-se diante do espelho, numa toilette demorada. Meteu-se numa fatiota de casimira cor de chumbo, de paletó trespassado. Pela primeira vez ia usar o chapéu-coco - a que o Chiru e outros idiotas insistiam em chamar de cartola. Sabia que podiam rir de sua elegância cosmopolita naquela terra de botocudos. Quebraria a cara de quem se atrevesse a tanto.

Ficou por alguns minutos ao pé do lavatório, indeciso diante dos frascos de perfume que se alinhavam na prateleira, sob o espelho. Por fim decidiu-se pelo de Quelques fleurs, destampou-o, encostou a boca do vidro contra a lapela e emborcou. Fez o mesmo no lenço.

Antes de sair apresentou-se à tia.

- Estou direito?

Ela o examinou com ar crítico.

- Enfeitado que nem o mastro da festa do Divino e fedendo como um zorrilho.

Rodrigo não gostou da brincadeira.

- Até logo, Dinda.

- Vá e faça papel bonito.

Quando ele já estava na calçada, Maria Valéria debruçou-se à janela.

- Mas não marque o casamento pra amanhã, ouviu? Tem tempo.

Rodrigo entrou no carro.

- Vamos, Bento.

Os cavalos puseram-se em movimento. Rodrigo notou uma animação desusada na rua do Comércio: muitas pessoas debruçadas às janelas, vultos a andar dum lado para outro nas calçadas. O cometa - concluiu. E lamentou a própria imprevidência. Ao marcar aquela noite para o pedido de casamento, não se lembrara do aparecimento do cometa. Sempre imaginara que o noivado do "moço do Sobrado" pudesse ser um acontecimento social capaz de fazer Santa Fé vibrar, de levar dezenas de curiosos até a frente do palacete dos Quadros, onde ficariam a olhar para as janelas festivamente iluminadas, a esperar com ansiedade a chegada do noivo e dos convidados. Nada disso, porém, ia acontecer. Toda a gente estava preocupada com o cometa de Halley. As janelas da casa da noiva estariam fechadas. Babalo comunicara-lhe que não ia fazer festa, que a cerimônia teria caráter simples, pois não convidara para ela nem os parentes mais chegados.

Não que eu seja vaidoso - refletia Rodrigo, como a querer convencer-se a si mesmo -, não que eu goste de me mostrar, mas que diabo! esta é uma noite importante da minha vida. Só se contrata casamento uma vez. É natural que eu queira deixar a data assinalada para sempre. No entanto aqui vou para o pedido de casamento sozinho, sem meu pai (e a voz da tia em sua mente: "por culpa sua!", sem meu irmão, sem um único amigo. Na casa da minha noiva não haverá ninguém além dela, da mãe e do pai. Pronunciarei a frase convencional, porei a aliança no dedo da moça, e voilà, estaremos noivos. Virá licor, doces, um café... Dona Laurentina nem sequer sorrirá para nós, Babalo talvez fique na sala a prosear sobre a safra, o carrapato do gado ou a vitória do marechal... Depois irá para a cama, à hora do costume; dona Titina ficará a fazer aquele seu eterno croché, e eu me quedarei como um dois de paus na frente da noiva, sem poder ao menos tocar-lhe a fímbria do vestido com a ponta dos dedos.

Suspirou, sentindo-se vítima duma colossal conspiração. Ficou a escutar melancólico o castanholar das patas dos cavalos nas pedras da rua. Um vulto se destacou dum grupo à frente do clube, fez-lhe um aceno e gritou-lhe um boa-noite efusivo. Rodrigo ergueu com indiferença o braço, como um príncipe blasé que responde à saudação dum súdito.

Santo Deus, estarei doente? Decerto é febre. Levou a mão à testa. Não. Fresca..

Era então a languidez do outono - refletiu - aqueles cheiros de ramos e folhas secas queimados. (Ó Istambul! Ó Bagdá! Ó Scheherazade! Era a mágoa de verificar que nem todos os seus belos sonhos se faziam realidade.)

O carro parou à frente da casa de Aderbal Quadros. Rodrigo olhou em torno e não viu vivalma. Um grande acontecimento, o meu noivado! - refletiu com amargura. - Um formidável sucesso!

- Venha me buscar às dez em ponto - disse ao boleeiro.

Apeou, apalpou o bolso e apertou o estojo de veludo onde estava a aliança. Bateu à porta e depois ficou ajeitando o nó da gravata.

Naquela noite muita gente não dormiu em Santa Fé. As janelas de suas casas, nos quintais, nas calçadas, no meio das ruas e praças, os santa-fezenses esquadrinhavam o céu com o olhar. O padre Kolb, que passara boa parte da noite numa das salas privadas da Confeitaria Schnitzler a beber cerveja em canecões bávaros de barro, saiu por volta das onze e, ao cruzar pela frente do Comercial, vendo um grupo de homens com os rostos voltados para o céu, parou e ergueu o dedo profético.

- Deviam estar procurando não o cometa, mas Deus! Ficou debaixo do lampião, imponente na sua batina negra, o rosto imerso na sombra que sobre ele projetava a larga aba do chapéu. Um gracioso respondeu:

- Não enxergamos ainda nem o cometa nem Deus, padre. O vigário de Santa Fé empertigou o busto, inflou o peito, pareceu que ia dizer uma coisa tremenda, uma formidável verdade apocalíptica, mas permaneceu em silêncio, deixando escapar o ar pelo nariz, num sopro sibilante. Continuou depois seu caminho, o trancão firme, numa milagrosa linha reta.

Às duas da madrugada ainda não se via no céu o menor sinal do cometa. "Que fracasso!" - exclamavam alguns, decepcionados. "Xô mico!" era uma exclamação que se ouvia em diversos lugares. "Vá a gente acreditar nesses astrônomos. Pra mim o homem do campo entende mais de tempo e de estrelas que todos esses sabichões que manejam o telescópio."

Muitos foram deitar-se, desiludidos. Um escriturário da intendência disse à mulher: "Ó Domiciana, se o fim do mundo começar, tu me acorda, j'ouviu?" E meteu-se na cama. Neco, Chiru e Saturnino, que haviam preparado uma serenata especial para o cometa, resolveram fazê-la para Rodrigo. Plantaram-se à frente do Sobrado e atacaram uma valsa. Rodrigo assomou à janela:

- Entrem. Vamos comer e beber alguma coisa. Estou sem sono.

O trio aceitou o convite e ele se dirigiu para a cozinha a preparar os hors-d'oeuvres.

- Não façam muito barulho - recomendou ao voltar. - A madrinha está dormindo.

Pelas janelas entrava um cheiro de pão quente. Neco dedilhava o violão, cantando em surdina um fado que aprendera com certo caixeiro-viajante português, numa memorável noite de farra.

Puseram-se a comer, a beber e a conversar. O relógio do refeitório bateu três badaladas.

Poucos minutos depois das três da madrugada, a cauda do cometa apontou no céu, nas bandas de leste, por trás das coxilhas da Sibéria. Começou, então, o alvoroço na cidade. "Olha o bruto!" - exclamavam. Homens e mulheres, alguns em camisolas de dormir, apareciam às janelas. Houve correrias nas ruas, exclamações de triunfo e de pavor. Alguns fiéis bateram à porta da igreja e o padre Kolb, que ainda não pregara olho, mandou o sacristão abrir o templo, que dentro em pouco ficou cheio de mulheres ajoelhadas, a rezar.

Lucas e Rubim entraram no Sobrado, encontrando Rodrigo e os amigos completamente alheios ao grande acontecimento.

Dirigiram-se todos para a cozinha, de cuja janela ficaram a contemplar a cauda do cometa, que subia no céu como o feixe luminoso dum gigantesco holofote.

- Mas onde está o núcleo? Ninguém respondeu.

- Vênus ainda não apareceu... - estranhou Rubim.

- Parece até que se a gente subir a coxilha da Sibéria pode agarrar o rabo do bruto.

- Olhem lá! - exclamou Saturnino. - Estrelas cadentes.

- Bólides - corrigiu o tenente de artilharia. Eram riscos luminosos que cortavam o céu por baixo da cauda do cometa.

Rodrigo apreciava a cena, deslumbrado. O ar frio da madrugada bafejava-lhe o rosto. Seus olhos estavam fitos no céu luminoso que se estendia no horizonte, mas dentro em breve seus pensamentos nada tinham a ver com o cometa. Recordava-se do momento em que fizera o pedido de casamento. Já não lamentava mais que a cerimônia houvesse sido tão simples e sossegada, pois tivera uma longa e amistosa conversa com Babalo, que lhe contara de seus negócios, dos grandes prejuízos que vinha tendo naqueles cinco últimos anos com a plantação de trigo em grande escala. "Mas por que é que o senhor insiste?" E o futuro sogro lhe respondera: "Não há nada mais lindo que um trigal maduro. E depois, amigo, é com trigo que se faz pão, e não há nada melhor que a gente comer pão do trigo que plantou..." Babalo plantava trigo por uma razão poética! Tinham ficado os quatro na doce paz da sala, à luz do lampião, como se aquela casa estivesse fora do tempo e do espaço.

A voz de Rubim despertou Rodrigo do devaneio. O tenente de artilharia afirmava que a cauda do cometa tinha mais de trinta milhões de quilômetros de comprimento. Saturnino sacudiu a cabeça, numa aquiescência respeitosa. Chiru, porém, pôs em dúvida a exatidão daquela fantástica cifra. Neco dedilhava o violão, cantarolando uma toada campeira.

Os bólides continuavam a riscar o céu.

Rodrigo voltou com os amigos para a sala de jantar, onde Rubim e Lucas participaram dos restos daquela ceia improvisada, e os outros continuaram as libações. Ao emborcar o quinto copo de vinho, Lucas, com a voz arrastada, confessou que estava loucamente apaixonado.

- Quem é a felizarda? - indagou Rodrigo. Rubim informou:

- A filha do coronel Prates.

- A Ritinha? Magnífico. Uma bela moça.

O alagoano, porém, estava infeliz. O pai da jovem não aprovava o namoro. A família fazia-lhe desfeitas.

- Por que, Rodriguinho? - perguntou ele, de olhos amortecidos. - Por quê? Sou um sujeito direito, não faço mal a ninguém. Sou um pândego, sim senhor, sou o André Deed, o Max Linder, o Bigodinho, mas isso não é crime, não é mesmo? Não é mesmo?

Puxava com insistência a manga do casaco de Rodrigo, repetindo a pergunta.

- Claro que não, Lucas. Mas tudo isso se arranja com o tempo.

O tenente de obuseiros sacudia a cabeça, desesperançado.

- Não se arranja, não, o remédio é eu tomar uma bebedeira e sair comandando a bateria pela rua, nu em pêlo, sabes, Rodrigo? Nu em pêlo, em cima dum cavalo, de espada em punho, estás me ouvindo? De espada na mão e nuzinho da silva, a cavalo, sabes? E passar pela frente da casa da Ritinha, de espada na mão, a cavalo, e nu, pra desacatar a família, sabes?

Rodrigo sorria, olhando para Rubim, que folheava distraidamente um número de Illustration. Neco e Saturnino tocavam uma valsa lenta e sentimental, em doce surdina.

Os trêmulos da flauta pareciam soluços, e os bordões do violão sugeriam graves, profundas paixões humanas. Lucas escutava, repoltreado na cadeira, a túnica completamente desabotoada, o copo vazio na mão que pendia abandonada ao longo da cadeira. Junto da mesa, Chiru raspava com a faca o fundo da lata de pâté de foie gras.

Rodrigo olhou em torno.

- Daqui a vinte anos, amigos, estarei falando a meus filhos a respeito desta noite. Direi: "Quando o cometa de Halley apareceu, em 1910, vocês não eram nascidos e o papai tinha apenas vinte e quatro anos. Todos pensavam que o mundo ia acabar, no entanto nada de maior aconteceu. Reuni no Sobrado os meus melhores amigos e ficamos comendo, bebendo e conversando até o raiar do dia".

- Tu és feliz - lamuriou o Lucas -, terás, um dia, mulher e filhos. Eu vou ficar um velho solteirão, reumático, linfático, sorumbático, caquético. Vou pedir minha transferência pró Amazonas. Quero morrer comido por uma onça. Ou de febre balaústre.

- Palustre - corrigiu Rubim, sorrindo.

- Balaústre - repetiu o outro. - Não é, Rodrigo? Tu que és médico... Febre balaústre. Me bota mais vinho. Balaústre!

Falava de boca mole, babando-se.

A música, chorosa e lânguida, parecia narrar a história dum amor infeliz. Ei a uma valsinha brasileira de serenata, doce como uma noite de luar, sentimental como as raparigas que morrem de amor. Lucas escutava-a, enquanto grossas lágrimas lhe escorriam pelas faces e pingavam na túnica. Chiru encheu o copo e ergueu-o num brinde:

- Ao nosso Rodrigo, que hoje contratou casamento!

Rodrigo e Rubim ergueram os copos e fizeram as bordas tocarem-se de leve. Saturnino, que tinha o bocal da flauta colado ao lábio, saudou o amigo com um alçar de sobrancelhas. Neco sacudiu a cabeça melenuda.

A valsa terminou. Houve aplausos discretos. Rubim aproximou mais dos olhos a revista em que estivera a ler um artigo ilustrado sobre a construção do canal do Panamá.

Deu uma palmada na coxa.

- Aqui está uma admirável ilustração para a minha tese sobre as relações entre as elites e as massas. Quem idealizou o canal do Panamá? Um super-homem: De Lesseps. Outros homens de prol compreenderam o alcance dessa gigantesca obra e a puseram em execução. Uma equipe de engenheiros e empreiteiros competentes, isto é, uma aristocracia da inteligência e da cultura, encarregou-se da direção dos trabalhos. E a massa, uma multidão de índios, mestiços e negros, trabalha como os escravos trabalharam para construir as pirâmides do Egito. Muitos deles estão morrendo e hão de morrer como moscas. Mas que importa? Esse é o destino da ralé.

Chiru escutava-o com ar inteligente. Não cansava de dizer que admirava o saber e que, apesar de ignorante, podia apreciar os homens preparados. Aproximou-se do tenente de artilharia, por cima de cujo ombro ficou a olhar as fotografias da obra do canal estampadas nas páginas de Illustration.

- Mas sem essa ralé - replicou Rodrigo -, sem essa escória que tanto desprezas, não será possível a construção do canal.

- Claro! Que seria dos teus gaúchos se não fossem os cavalos que montam e os bois que puxam as carretas? Não será isso que me levará a colocar o cavalo ou o boi no mesmo nível do cavaleiro e do carreteiro.

Neco tirou um acorde do violão e começou a cantarolar a Casinha pequenina.

Tu não te lembras da casinha pequenina,

Onde nosso amor nasceu? Tinha um coqueiro do lado, que coitado,

De saudade já morreu...

Puxou um sentido ai, que lhe veio do fundo do peito de seresteiro.

- Eu quero mamãe! - soluçou Lucas.

Saturnino depôs a flauta sobre o consolo, aproximou-se do tenente com ares de enfermeiro, tirou-lhe o copo da mão, limpou com um lenço a baba que lhe escorria pelo queixo e tratou de fazê-lo sentar-se direito.

Rubim, ainda com LIllustration sob os olhos, traduziu:

- A França não poderia esquecer que foi ela a iniciadora dessa grande empresa, que foi ela que começou os trabalhos com mais sucesso do que se quer reconhecer. Não foi sem um profundo desapontamento que viu escapar-lhe a glória de levar a cabo uma tarefa tão memorável, e, desde então, sempre seguiu com uma atenção benevolente os esforços dos americanos aplicados na continuação dessa obra.

Atirou a revista em cima da mesa e ajustou o pince-nez no nariz.

- Os franceses não podem esconder o seu despeito diante do fato de serem os americanos e não eles quem está construindo o canal do Panamá.

- E é pena - observou Rodrigo - porque tenho mais confiança na engenharia francesa do que na norte-americana.

Intimamente não ignorava que isso era mero "palpite", nascido de sua simpatia pela França, pois para falar a verdade não sabia quase nada da engenharia francesa e muito menos da norte-americana.

- Esse canal interessa principalmente à América do Norte - disse Rubim. - É uma obra de alcance não só comercial como também estratégico.

Rodrigo deu, então, voz à sua má vontade para com os Estados Unidos. Era um pais grosseiramente materialista, uma nação de novos-ricos e comerciantes empedernidos. Que grande poeta, que grande romancista, que grande filósofo, que grande pintor, que grande compositor haviam dado ao mundo? A única figura de estatura universal que tinham produzido - por uma inexplicável aberração - fora a de Abraão Lincoln. Confundiam tamanho com qualidade, preocupavam-se demais com cifras e estatísticas. Tudo quanto possuíam ou faziam era "o maior do mundo". E, apesar de serem senhores dum território quase tão grande como o do Brasil, estavam estendendo seus tentáculos de polvo pelos países vizinhos, tinham já abocanhado Puerto Rico, e viviam a meter-se na vida de Cuba e do México, do qual já haviam arrebatado o Texas e a Califórnia.

- E como detesto Theodore Roosevelt! - exclamou. - Esse sargentão caçador de onças!

- Pois eu o admiro - retrucou Rubim. - Pode não ter a inteligência dum super-homem, mas tem os nervos, a vontade e a coragem dum líder.

- Dêem-me a França! Toujours la France, l'esport, la finesse, la juste mesure!

Não estava bem certo de amar a justa medida, mas - que diabo! - quando se está um pouco tonto, ama-se tudo, tudo menos Teddy Roosevelt!

- A França morreu em 70 - replicou o tenente de artilharia.- De lá pra cá tem procurado no amor, na depravação, nos bizantinismos literários, no refinamento do gosto, uma compensação para seu fracasso como nação guerreira. Os descendentes de Napoleão Bonaparte hoje em dia bebem champanha nos sapatinhos das vedettes, dançam cancã nos cafés-concertos e lêem novelas pornográficas. Uma nação em pleno processo de decadência!

- Tu não te lembras das tuas juras, ó perjura? - perguntava o Neco com voz dolente. Saturnino lidava ainda com Lucas, que agora ressonava, o queixo caído sobre o peito.

- Toujours la France! - gritou Rodrigo. E em seguida, levando o indicador aos lábios, murmurou: - Silêncio, a Dinda está dormindo.

- Pois me dêem a Alemanha - retrucou Rubim -, a terra dos grandes filósofos, dos grandes músicos, dos grandes poetas e dos grandes guerreiros.

- Vive la France!

Rodrigo lançou um olhar amoroso para a aliança de ouro que lhe luzia no anular da mão direita.

- Viva o Brasil, bolas! - vociferou Chiru, vermelho de patriotismo.

Saturnino aproximou-se de Rodrigo.

- O Lucas está bêbedo como um gambá.

Todas as atenções se voltaram para o tenente de obuseiros. Rubim tentou acordá-lo mas não conseguiu.

- E agora, como é que vou levar esse cavalheiro para o hotel?

- Deixe o tenente aqui - sugeriu Rodrigo. - Tenho camas de sobra lá em cima. Neco! Pára com essa cantoria e vem nos dar uma demão. Chiru, tu que és um Hércules...

Chiru passou os braços por baixo das axilas de Lucas e trançou as mãos contra o peito dele; Neco segurou o tenente pelas pernas e assim o levaram para cima, estendendo-o na cama de Toríbio. Saturnino tirou-lhe as botinas e a túnica, afrouxou-lhe a cinta e cobriu-o com uma colcha.

Eram mais de quatro horas da madrugada quando os amigos deixaram o Sobrado. Duma das janelas do escritório, Rodrigo acompanhou-os com o olhar. Chiru ia de braço dado com Rubim, provavelmente a falar-lhe em tesouros enterrados e salamancas. Atrás deles, Neco e Saturnino tocavam uma polca, e por muito tempo ainda, mesmo depois que o grupo desapareceu por entre as árvores da praça, Rodrigo ficou a ouvir os trinados da flauta.

Fechou as janelas, voltou para a cozinha e ali se quedou a olhar para o cometa. Seu núcleo finalmente se fazia visível - um ponto luminoso e nítido na extremidade superior da cauda, que tomava um quarto do céu. Vénus agora brilhava intensamente.

XIX

Junho entrou com fortes geadas. Um velho morador de Santa Fé garantiu: "Vamos ter um inverno brabo". Rodrigo tirara do guarda-roupa, numa aura de naftalina muito agradável a seu olfato, pelo que evocava de coisas limpas e civilizadas - o sobretudo de casimira preta com gola de astracã. E era com prazer que o usava à noite, quando saía a visitar a noiva. Enfiava também as luvas de pele de cão e as polainas de camurça cinzenta. Não podia deixar de sorrir ao pensar no berrante contraste entre seus trajes citadinos e os dos homens que encontrava nas ruas, encolhidos dentro de ponchos, os pés metidos em botas embarradas, as caras assombreadas sob as largas abas dos chapéus campeiros.

Numa fria manhã daquela primeira semana de inverno, chegou um próprio do Angico, trazendo-lhe um bilhete de Licurgo:

Meu filho. O velho Fandango morreu hoje ao clarear do dia e nós vamos retardar o enterro para o senhor poder assistir.

Rodrigo leu e releu o lacônico bilhete com o espírito em branco, sem sentir a emoção que a notícia devia despertar-lhe. Sua primeira impressão foi de contrariedade: sair de jardineira num dia gelado como aquele e rodar durante quatro horas a fio pelas estradas que levavam à estância, era positivamente a última coisa que ele desejava. O bilhete, porém, podia ser resumido numa palavra: Venha. Mostrou-o à tia.

- Pobre do velho. Eu também vou.

Embarcaram logo após o almoço e chegaram à estância por volta das quatro e meia. Rodrigo abraçou o pai - que lhe pareceu desfigurado e abatido - e o irmão, que lhe contou como Fandango morrera. O velho estava debruçado sobre uma cerca, bombeando o nascer do sol, quando de repente caiu para a frente, sem um ai, e ali ficou, dobrado sobre a tábua, com os braços pendentes.

- Não morreu - concluiu Toríbio. - Foi uma vela que o vento apagou.

O vento soprava ainda sobre as coxilhas do Angico, entrava assobiando pelas frestas da casa e fazia farfalhar os bambuais no fundo do quintal. Os campos eram dum triste tom de mate, sob o céu de cinza.

Fandango estava estendido dentro dum caixão rústico que os peões haviam feito com madeira dos matos do Angico. Parecia apenas adormecido e Rodrigo teve a impressão de que ele sorria. Era um sorriso matreiro, como se o velho estivesse empulhando a morte ou zombando daquela gente que ali estava ao redor do seu corpo, calada e séria, enquanto as chamas das velas de sebo lutavam com o vento, num aflitivo apaga-não-apaga.

Peões, agregados e posseiros do Angico encontravam-se no velório com suas mulheres, chinas e filhos. Rodrigo reconheceu, em muitas daquelas fisionomias, traços que lhe eram familiares. Na pequena peça achavam-se congregados quase todos os Gares moradores dos campos de seu pai. Muitas das mulheres estavam grávidas, as barrigas intumescidas sob os molambos sem cor. Viu Ondina a um canto e achou-a mais corpulenta, mais adulta. Olhou com certa apreensão para o ventre da chinoca, mas ficou tranqüilo ao verificar que ela não apresentava nenhum sinal externo de gravidez.

Licurgo acercou-se do filho e murmurou:

- O velho vivia dizendo que queria ser enterrado no topo da coxilha do Coqueiro Torto. Vamos fazer a vontade dele.

Rodrigo sacudiu a cabeça lentamente. Sentia muito frio e o quadro que tinha diante dos olhos deixava-o confrangido. Não lamentava o velho Fandango, que afinal de contas, vivera vida longa e rica. Tinha pena, isso sim, dos outros, dos que o estavam velando. Era, porém, uma pena temperada de impaciência, uma piedade sem calor humano, em suma, um sentimento gelado e triste como aquela tarde de junho. Por mais que se esforçasse, não podia amar aquela gente e era-lhe difícil e constrangedor ficar com aqueles miseráveis por muito tempo na mesma sala, a sentir-lhes o cheiro, a ver-lhes as caras terrosas, algumas das quais duma fealdade simiesca.

Maria Valéria aproximou-se do caixão, olhou longamente para o velho amigo e depois fez algo que Rodrigo jamais poderia esperar dela. Inclinou-se e depôs um beijo na testa do morto. E de olhos secos, fisionomia impassível, fez meia-volta e se foi.

Às cinco horas da tarde, o cortejo fúnebre deixou a casa da estância. Como o caixão não tivesse alças, foi levado numa carroça. Licurgo, ladeado pelos filhos, seguiu a pé atrás do veículo, encabeçando o cortejo.

Das estâncias das redondezas viera gente a cavalo, de carreta, de carroça ou a pé para assistir ao funeral: fazendeiros, agregados, capatazes, peões, posteiros. Vieram também índios vagos, esmoleiros e até alguns gringos das colônias. Todos conheciam e amavam Fandango. Cavalarianos postaram-se em duas longas alas na encosta da coxilha e, quando a carroça passou com o corpo, tiraram os chapéus. Lá no alto, ao pé do coqueiro torto, em torno da cova aberta pelo negro Antero, via-se uma aglomeração de homens, mulheres e crianças.

Contemplando o quadro do sopé da coxilha, Rodrigo sentiu um calafrio, e a custo conteve as lágrimas. Aquilo lhe parecia o funeral dum guerreiro antigo. O vento gemia. O cenário em derredor tinha uma beleza severa e áspera. No entanto, refletiu ele, Fandango costumava dizer: "Quero que meu enterro seja abaixo de gaita e que seis morochas bem guapas carreguem cantando este corpo velho, coxilha acima".

Antes de descerem o caixão ao fundo da cova, abriram-no mais uma vez.

Fandango ainda sorria. Num ímpeto que não procurou conter, Rodrigo saltou para cima da carroça e falou:

- Fandango, amigo velho, quero te dizer alguma coisa em meu nome e no de todos os teus amigos, antes que te vás embora pra sempre. Um hornem como tu não pode se acabar. Algo de ti tem de continuar com a gente, e é por isso que nós vamos te plantar no chão, nesta terra boa do Angico, na esperança de que te transformes amanhã numa árvore de sombra, bela, forte e generosa como tu. Viveste uma vida comprida e cheia. Morreste como querias: de pé e de repente. Não eras apenas um homem, mas também um símbolo - um símbolo deste velho Rio Grande indomável, meio rude mas cavalheiresco e bravo, eras o representante duma estirpe antiga e nobre, que hoje está correndo o risco de se acabar...

Fez uma pausa. Olhou para o pai. Licurgo estava de cabeça baixa, apertando com força o chapéu nas mãos crispadas. Ao seu lado, Toríbio, de cara erguida, não fazia nenhum gesto para esconder as lágrimas que lhe escorriam pelas faces.

Rodrigo, então, não pôde mais conter o pranto. Tentou continuar o discurso, mas um soluço lhe afogou a voz. Por alguns segundos ficou a chorar de mansinho, com as mãos espalmadas sobre o rosto, mais comovido com suas próprias palavras e com a beleza do momento do que com a morte do amigo. Por fim, mais calmo, enxugando os olhos com o lenço, prosseguiu:

- Tinhas o mapa do Rio Grande na cabeça e no coração. Por onde quer que andasses, até os passarinhos te conheciam e estimavam. Foste um sábio e um santo à tua maneira, um rapsodo desta terra e desta gente, o melhor contador de causos que conheci. E neste momento, no outro lado da vida, montado num dos teus muitos pingos de estimação que morreram antes de ti, imagino-te cruzando num trote faceiro as invernadas da eternidade. Vejo-te chegar à porteira do céu, gritando: "Ó de casa!" E vejo São Pedro olhar para fora e dizer aos seus anjos: "Abram a porta, meninos, é o Fandango. Entre, compadre, sente e tome um mate, faz de conta que a casa é sua". Fandango, amigo velho, até por lá!

O caixão foi descido à cova. Licurgo agachou-se, apanhou um punhado de terra e atirou-o sobre ele. Outros o imitaram. O negro Antero tomou da pá e começou a entupir a cova. Aos poucos o grupo se foi dispersando.

Ao descerem para a casa, Licurgo resmungou, taciturno:

- Não carecia o senhor fazer discurso. O Fandango não era homem dessas coisas...

Rodrigo, que imaginava o pai orgulhoso de sua oração, ficou desapontado. Sentiu-se, porém, um pouco consolado quando Bio, tomando-lhe afetuosamente o braço, cochichou:

- Me fizeste chorar, filho da mãe.

- Eu também chorei...

- Somos duas vacas.

Em fins de julho, a caminho de São Luís, o senador Pinheiro Machado fez uma breve visita a Santa Fé. Hospedou-se na casa de Joca Prates, confabulou com os correligionários, foi homenageado no Centro Republicano e, durante várias horas, fez a cidade vibrar com sua presença.

Quando saiu à rua, de botas, bombachas, casaco de casimira escura, chapéu de feltro negro, e um pala de seda enrolado no pescoço e atirado por cima do ombro - mulheres corriam às janelas para vê-lo passar, homens detinham-se nas calçadas, cumprimentavam-no respeitosamente, tirando os chapéus, e depois ficavam a segui-lo com o olhar. E assim, ladeado por Joca Prates e Titi Trindade, o senador subiu a pé a rua do Comércio, encabeçando um grupo que foi aos poucos engrossando e que, ao chegar à praça da Matriz, parecia quase uma procissão. Pinheiro Machado entrou com a comitiva na Intendência, onde foi homenageado pela Câmara Municipal, cujo presidente o saudou num breve discurso. Menos de meia hora mais tarde, saiu sozinho do paço municipal, atravessou a rua, entrou na praça e parou um instante junto ao busto do fundador de Santa Fé. E os curiosos que o observavam, viram depois o político mais poderoso do Brasil cruzar a praça a bater na porta do Sobrado. O senador ia visitar os Cambarás! A notícia espalhou-se, rápida, pela cidade, despertando os comentários mais desencontrados. "Vai puxar as orelhas do Licurgo e do filho"- diziam uns. "Qual! - retrucavam outros - Vai só visitar um velho correligionário e amigo." "Pois eu acho - insinuava-se ainda - que o senador quer trazer a ovelha negra de volta ao aprisco republicano...

Rodrigo estava no consultório quando lhe vieram contar a grande novidade. Seu primeiro impulso foi o de voltar correndo para casa. O amor-próprio, porém, ditou-lhe outra conduta. Que diabo! A visita não é pra mim... Afinal de contas, estamos em campos opostos nesta campanha política. Se o homem quiser conversar comigo, que venha ao meu consultório. Se não quiser, que vá pró diabo!

Sabia, porém, que essa atitude de superioridade estava longe de ser sincera. Na realidade, a notícia da visita do senador ao Sobrado deixara-o alvoroçado. Mandou embora os clientes que se encontravam na sala de espera, lavou as mãos, vestiu o casaco, sentou-se à mesa e começou a rabiscar nervosamente nos papéis de receita. Não podia esconder sua admiração por aquela figura de caudilho urbano. Sempre achara prodigioso que um homem nascido numa casinhola da rua do Comércio, em Cruz Alta, pudesse ter atingido tamanhas altitudes na geografia política do Brasil. Seus ditos e a crônica de seus feitos corriam o país de norte a sul, constituindo já elemento de folclore. Muitas vezes em discussões no Senado fizera frente a Rui Barbosa e, embora não pudesse ombrear com a "Águia de Haia" em matéria de erudição e eloqüência, sua presença de espírito, sua solércia e seu bom senso de tropeiro lhe haviam feito levar a melhor em mais duma polêmica com o senador baiano.

Rodrigo sentia-se não só fascinado como também intrigado por aquela personalidade complexa, que às vezes lhe parecia um singular ponto de encontro do campo com a cidade. Pinheiro Machado trajava com o esmero dum Brummel, mas as bombachas e as botas com esporas lhe sentavam tão bem quanto o fraque e as botinas de verniz. O fato de ser visto na rua do Ouvidor de colarinho engomado e plastrão não o impedia de levar um punhal na cava do colete a fantasia. Embora não fosse homem habituado a recorrer à violência, poder-se-ia dizer que psicologicamente trazia sempre nas mãos um rebenque com o qual não hesitava em fustigar a cara dos insolentes. Sedutor consumado, sabia fascinar tanto as mulheres como os homens, e para aliciar adeptos entre estes últimos, contava-se que costumava alternar o tratamento paternal com o sobranceiro, chegando, não raro, a usar artifícios quase femininos de conquista. Era fora de dúvida que nascera para mandar. Tinha como poucos o senso de autoridade combinado com o da oportunidade, e mesmo os que não o amavam (e estes eram legião) não deixavam de respeitá-lo ou admirá-lo.

E esse homem excepcional entrara, havia pouco, no Sobrado!

Rodrigo pôs-se de pé e caminhou até a janela, no instante em que Pepe Garcia chegava à farmácia.

- Mira, hijito! - gritou o pintor, excitado, irrompendo no consultório. - El senador está en tu casa.

- Eu sabia - respondeu Rodrigo, com buscada indiferença.

- Tu papá te llama. El senador quiere hablar contigo, Rodrigo pôs o chapéu e saiu. No caminho perguntou:

- Falaste com o homem?

- Pues claro. Don Licurgo me lo presentó.

- Que achaste dele?

- Es muy hombre. Me gustaría pintar su retrato. Parece um jefe gitano. Que quererá el de ti?

Rodrigo sorriu:

- Decerto vem me oferecer a pasta da Justiça...

- Quien sabe, hijo? Chiru dice que nasciste empelicado...

- Anda. Después me lo contarás todo.

Achavam-se os três na sala de visitas, e Licurgo, no breve silêncio que se fizera após as apresentações, puxara já três pigarros. Sentado numa poltrona, com as pernas cruzadas, Pinheiro Machado olhou firme para Rodrigo, com ar avaliador.

- Estive conversando com seu pai - disse, com sua voz pausada e grave. - Um homem como ele, um castilhista dos bons tempos, não pode ficar à margem do partido. Essas brigas de família são como chuvas de verão: caem com muito barulho mas passam.

Rodrigo olhava intensamente para o senador, cuja presença parecia aquecer a atmosfera da sala. Don Pepe tinha razão. Aquele homem de negra cabeleira crespa e olhos magnéticos lembrava mesmo um chefe cigano. Em seu rosto, dum moreno queimado, havia uma expressão que tanto sugeria crueldade como ascetismo: podia ser tanto a face dum bandoleiro como a dum profeta, Era, sem a menor dúvida, a máscara dum condutor de homens. O visitante puxou do bolso a cigarreira de ouro, tirou dela um crioulo caprichosamente feito, prendeu-o entre os lábios e pôs-se a bater distraído nos bolsos. Rodrigo ergueu-se, rápido, riscou um fósforo e aproximou-o da ponta do cigarro do senador.

(Um dia - contava-se - estando a jogar bilhar com amigos no Rio de Janeiro, Pinheiro Machado fez uma pausa para acender o crioulo. Como o vissem apalpar os bolsos à procura de fogo, dois dos companheiros riscaram fósforos ao mesmo tempo, com uma presteza servil. Mas o senador entrementes encontrara o isqueiro, com o qual acendeu o cigarro, murmurando com toda a pachorra: "Quem pita carrega fogo".)

Rodrigo corou, soprou a chama do fósforo e volveu para sua cadeira, furioso consigo mesmo por se ter mostrado tão solícito.

O senador entrecerrou os olhos e lançou para o mais jovem dos Cambarás um olhar cativante.

- O senhor, dr. Rodrigo, um moço inteligente e de futuro, que é que está fazendo fora do partido?

- Senador, devo dizer-lhe com toda a sinceridade que nas últimas eleições não só permaneci fora do partido como também...

Pinheiro Machado cortou-lhe a frase com um gesto.

- Eu sei, eu sei... Estou à par de todas as suas atividades. Vi o seu jornal, li os seus artigos.

Rodrigo sentiu-se diante de Malvina Travassos, professora pública, na hora negra da palmatória.

- O senhor pertence a uma antiga família republicana. Nesta hora, qualquer divisão do partido só poderá ajudar nossos inimigos. Aliás, todo o seu esforço ficou perdido... O candidato civilista foi derrotado, o marechal Hermes está eleito, será empossado por bem ou por mal, e há de governar até o fim de seu quatriênio com a maioria ou sem ela!

Rodrigo olhava fixamente para as botas lustrosas do senador, que tinha os pés pequenos (coisa - dizia-se - de que ele próprio se envaidecia).

Em vão Rodrigo se esforçava por combater o sentimento de culpa que o desconcertava e inibia. Tomara as palavras do visitante como uma repreensão paternal. De resto, Pinheiro Machado parecia-se um pouco com seu pai, não só no físico como também no timbre de voz e no jeito pausado e grave de pronunciar as palavras.

- Afinal de contas - animou-se Rodrigo a perguntar - que é que o senador propõe?

- Que cessem duma vez por todas esses ataques mútuos, que não dispersem forças, que não percam tempo com essas brigas municipais. Já bastam os inimigos que o Rio Grande tem fora daqui!

- Mas voltar atrás agora seria uma desmoralização...

- Quanto tempo faz que seu jornal não aparece?

- Uns meses...

- Pois então? Ninguém obriga o senhor a continuar. Fique quieto poi uns tempos. O Trindade me garantiu que A Voz já cessou por completo os ataques. É ou não é verdade?

Rodrigo sacudiu a cabeça lentamente, numa afirmativa relutante. Por alguns segundos Pinheiro Machado ficou a pitar em silêncio, mas com o olhar sempre focado no rosto do interlocutor.

- Ainda que mal pergunte, doutor, que foi que o senhor pretendeu mesmo com a sua campanha contra o intendente?

- Fazer justiça, senador.

Pinheiro Machado sorriu o seu famoso sorriso só de olhos, em que os lábios permaneciam imóveis e apertados.

Olhou para Licurgo e, fazendo com a cabeça um sinal na direção de Rodrigo, perguntou:

- Com quantos anos está essa figura?

- Vinte e quatro - respondeu o rapaz, com uma aspereza agressiva.

- Tem ainda muito que aprender...

O visitante passou pelos cabelos a mão pequena e bem modelada.

- Não, senador, ou a gente nasce decente ou nunca mais aprende.

Esperou que o outro explodisse num protesto. Pinheiro Machado, porém, olhou reflexivamente para a ponta do cigarro.

- Todas as coisas dependem del cristal com que se las mira, como dizem os castelhanos. É muito difícil fazer sempre o bem ao povo sem nunca causar-lhe algum mal. O senhor, que é médico, sabe disso melhor que eu... Um tumor às vezes pode vir a furo com emplastro de basilicão. Mas há tumores que pedem bisturi. Talho de bisturi dói, mas é para o bem do paciente.

Rodrigo sorriu. O senador sofismava.

- Eu só lamento que um moço como o senhor - continuou este último - gaste a sua energia e o seu talento nestas questiúnculas inglórias.

Licurgo olhava também fixamente para o filho. Parece que sou um réu - pensava Rodrigo.

- Calculo que o senhor não queira passar toda a vida a escrever catilinárias contra o Titi Trindade. Tem que se projetar no cenário estadual e mais tarde no federal. Não acha, coronel?

Rodrigo percebeu um tremor na pálpebra do olho esquerdo do pai.

- É, meu filho, o senador tem toda razão.

- Mas uma reconciliação agora seria vergonhosa e eu prefiro o anonimato, o ostracismo político, tudo, a ter que me retratar.

- Não estou pedindo que o senhor se retrate. Seria uma indignidade. Fique quieto no seu canto e vamos deixar que o tempo se encarregue do resto.

Quando o visitante se retirava, Rodrigo percebeu que Maria Valéria ficava a espiá-lo pela fresta duma porta. Licurgo levou o senador até a porta, onde se apertaram as mãos.

- Sua visita foi uma honra para esta casa.

Rodrigo sentiu um contentamento de namorado quando Pinheiro Machado pôs-lhe a mão no ombro, já com uma intimidade de velho amigo.

- Vamos, Rodrigo, quero que me acompanhes até a casa do Joca Prates. Não tenhas receio, o Trindade não estará lá e, se estiver, dou-te a minha palavra como não te forçarei a uma reconciliação com ele.

Foi com uma exaltada sensação de orgulho que Rodrigo saiu a caminhar pela rua do Comércio ao lado de Pinheiro Machado.

- Vou conversar com o dr. Borges de Medeiros a teu respeito - prometeu o senador. - Vejo em ti um bom corte de deputado. É só questão de tempo. Estás ainda muito moço. Mas... digamos, daqui a uns quatro ou cinco anos, quem sabe? Deixa que esses petiços de fôlego curto fiquem correndo carreira nestas canchas municipais. Tu és parelheiro que merece tomar parte em páreos mais importantes.

Está tentando me subornar - refletiu Rodrigo - está me acenando com uma deputação...

Não sabia se devia indignar-se ou envaidecer-se ante aquelas palavras. Amanhã poderia fazer o que bem lhe aprouvesse: ressuscitar A Farpa, romper fogo de novo contra a situação, atacar o próprio Pinheiro Machado... (esta idéia lhe dava uma reconfortante sensação de força, por mais improvável que parecesse). Agora, porém, ele, Rodrigo Cambará, simplesmente se entregava ao esquisito prazer de ser cortejado por uma figura do porte do "condestável da República".

Entraram a conversar sobre as últimas eleições, e, ao passarem pela frente do Centro Republicano, de cujas janelas muitos dos apaniguados de Titi Trindade viram com indisfarçável espanto Pinheiro Machado de braço dado com o diretor Da Farpa, Rodrigo perguntou:

- O senhor não acha uma pena que um homem da inteligência, da cultura e do caráter de Rui Barbosa não tenha ainda conseguido chegar à presidência da República?

O outro, que naquele momento tirava o chapéu para responder ao cumprimento dum homem que passava a cavalo pelo meio da rua, pareceu não ter ouvido toda a pergunta. Deu alguns passos mais em silêncio e, depois, sem fugir completamente ao assunto, desconversou:

- Quando meus amigos vieram me dizer que o Rodrigues Alves tinha recusado sua candidatura pela oposição, estavam todos contentes, pois achavam que no senador Rui Barbosa teríamos um adversário fraco, sem dinheiro nem partido. Discordei deles e disse: "Estão enganados! Não podíamos ter pior adversário. Se o candidato fosse o conselheiro Rodrigues Alves, ele ficaria em casa, depois de fazer dois ou três discursos, e seus correligionários é que teriam de levar adiante a campanha, e, fechadas as Câmaras, a comédia estaria acabada. Mas com Rui a coisa muda de figura. Esse homenzinho vai agitar o país inteiro, na imprensa e na praça pública. Não se iludam, o Rui não teme coisa alguma. Ouçam o que lhes digo, rapazes, esse baiano só tem uma qualidade maior que seu talento: é a sua coragem".

Pouco depois, quando já se aproximava da praça Ipiranga, Pinheiro Machado baixou a voz:

- Sabes que a situação financeira do Rui é calamitosa? Não tem dinheiro e está cheio de dívidas. Foi o que ganhou com a campanha civilista.

Rodrigo sorriu.

- Então essa história de "mártir da convenção" é mais que uma frase?...

O senador sacudiu lentamente a cabeça. E minutos depois, à frente da casa de Joca Prates, disse ao apertar a mão de Rodrigo:

- Há homens que nasceram talhados para o sacrifício. Mas uma coisa te posso garantir: eu não tenho vocação para mártir.

                                                                                           

                                                                                CONTINUA

 

                      

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