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Vergil Duclairc é um homem acostumado a vencer. Como recém-nomeado tutor da senhorita Bianca Kenwood, está decidido a encontrá-la e devolvê-la ao lar custe o que custar, embora a última coisa que podia imaginar era achar sua pupila vestida de modo escandaloso cantando em um teatro de duvidosa reputação. Mas ainda estava menos preparado para a implacável atração que sentiu por ela somente em vê-la, um desejo que não pode permitir deixar fluir por medo de desmascarar segredos que jurou guardar.
De sua parte, Bianca não está disposta a abandonar sua independência, mas há algo irresistível no belo e persistente visconde Duclairc que o converte não só no administrador de sua herança, mas também no dono de seu coração. A jovem descobrirá em seguida que Vergil é um homem de profundos segredos e de uma sensualidade perturbadora a qual não se pode resistir. Quando suas vidas estão a ponto de mudar e seus caminhos a se separar, crescerá entre ambos uma paixão que os permitirá lutar contra o mundo ao qual pertencem.
Capítulo 1
O canto de Jane Ormond, que Vergil apreciava a contra gosto, não apaziguou sua ira nem um pouco. Lamentava terrivelmente não poder jogá-la na prisão de Newgate, a que pertencia.
Ia vestida como uma rainha francesa do século passado, mas não parecia cômoda em seu papel. Movia-se com rigidez, como se temesse que a alta peruca branca caísse ou que o miriñaque[1] do vestido inclinasse. A confiança de sua voz contrastava com sua fragilidade física. E sua pose de profissional cheia de segurança destoava durante os breves momentos de vulnerabilidade.
Ele não se sentia deslumbrado com seus estudados encantos. Com seus olhos grandes, seus lábios carnudos e sua insinuada fragilidade, aparentava o tipo mais perigoso de inocência, dessa que impulsionaria um homem a sacrificar sua vida com o objetivo de protegê-la, mas que também poderia despertar outra parte escura, e conseguir que esse mesmo homem se imaginasse lhe arrancando a roupa e destruindo essa inocência.
Moveu-se em direção a ele, levantando a cabeça para cantar as notas mais altas em uma exibição vocal. Seus olhares se encontraram. Por um momento apareceu em seu rosto um brilho de curiosidade, como se percebesse que ele não estaria ali se não fosse pelo dever.
Ele sabia que não havia nada em sua aparência que pudesse revelar isso. Aquela sala de jogos incluía espetáculos para atender aos gostos dos homens de sua classe. Eles podiam descansar de suas apostas naquele salão para comer e desfrutar de um concerto de ópera, ou, mais tarde, desfrutar de formas de entretenimento muito mais baixas.
Ela o olhou por um tempo mais longo do que devia em resposta à inspeção a que se sentia submetida. Ele se surpreendeu ante a inquietante combinação de proteção e erotismo que aqueles grandes olhos convocavam, e se concentrou em todos os problemas que ocasionou durante as últimas duas semanas.
Morton se deixou cair na outra cadeira da mesa. Parecia desconjurado, com sua pinta de urso e sua barba fora de moda.
—A garota está aqui — disse— Em uma estadia traseira. A senhorita Ormond a traz aqui a cada noite, para que a espere enquanto ela canta. Falei com o homem da porta e ele as viu entrar juntas esta noite.
Vergil se levantou.
—A senhorita Ormond cantará outra canção depois da ária. Faremos agora. Temos que tirar à garota antes que acabe. —A senhorita Ormond, sem suspeitar nada, continuava com seus gorjeios— Se for inteligente, nos perseguirá pela costa quando se der conta de que seus planos fracassaram. Quanto à garota, a levaremos ao campo para que se recupere, e ninguém se inteirará de nada.
Estava contando é obvio, naturalmente, que a senhorita Jane Ormond ainda não vendeu à garota pelo maior preço. Concentrou sua atenção no rosto aparentemente ingênuo sob a muito alta peruca branca. Podia ver-se um traço de inteligência naqueles olhos. Não, essa mulher não teria se arriscado tanto por um prêmio tão pequeno como o dinheiro que podia obter de vender uma virgem. Possivelmente teria planejado pedir um resgate, mas o mais provável era que tivesse intenção de vender à garota para algum casamento. Ela, sem dúvida, tinha notícias de sua herança desde que servia de criada e partiram juntas da América.
Tudo aquilo podia ter sido evitado se Derem estivesse mais atento. A culpa era em realidade dele, por ter enviado seu irmão para receber o navio, mas quem ia pensar que uma criada que não era mais que uma menina se atreveria a fazer semelhante coisa.
O corredor de má morte contrastava com a opulência do salão. Morton assinalou para uma porta escondida sob uma escada. Vergil girou o trinco.
Já havia visitado camarins de cantoras, e normalmente era um autêntico desastre ao que se refere à ordem. Entretanto, aquele diminuto espaço foi arrumado cuidadosamente. Havia um par de velas sobre uma mesa, em que também podia ver-se um espelho e um recipiente com pinturas. Disfarces e roupas de dia penduravam de uma fila de cabides colocados na parede. À direita da mesa havia uma cadeira entre as sombras, onde uma moça permanecia sentada com uma agulha fazendo acertos em um tecido que sustentava perto das chamas.
—Senhorita Bianca Kenwood?
Ela levantou o olhar surpreendida e ele imediatamente começou a calcular quanto teria que incrementar o suborno que pensava fazer a Dante. Sem dúvida poderia tratar-se de uma garota doce, mas Dante julgava às mulheres por seu aspecto físico, não por seu caráter, e o dela não impressionava muito. As mechas de cabelo castanho que escapavam de seu gorro pareciam mais crespados que frisados. Seu nariz era arrebitado, o qual poderia ter resultado encantador no caso de que não fosse tão largo.
—Senhorita Kenwood, sou Laclere.
—Oh!
—Este é Morton, meu (criado). Tenho um carro estacionado atrás do edifício e a levaremos ali imediatamente. Sua terrível experiência terminou e te asseguro que ninguém jamais terá notícia deste desafortunado incidente.
—Oh! Oh, Deus…
—Por favor, é necessário sairmos agora. Falarei com a senhorita Ormond mais tarde. No momento, o melhor será que a tiremos daqui.
—Oh, não acredito que… Isto é… — Andou para trás, fazendo gestos de resistência e confusão. Ele se inclinou para ela e sorriu para transmitir confiança. Precaveu-se de que seu vestido era muito comum, um simples vestido longo e cinza. Era evidente que não tinha nenhuma noção do que era se vestir na moda.
—Vamos querida. Será melhor que saiamos antes que…
—Quem é você? —A indignada voz que fazia a pergunta era feminina, melodiosa e jovem.
Vergil deu a volta para ver Maria Antonieta ante a porta, com os braços em jarras e as mãos apoiadas sobre seu magro talhe. O vestido de largos quadris ocupava toda a soleira.
—E bem? Quem é você, senhor, e o que está fazendo aqui?
A senhorita Kenwood se levantou de um salto e se precipitou para a senhorita Ormond, que a abraçou de maneira protetora. Ou seja, que assim é como tinha ocorrido. Naturalmente, ela tinha cercado amizade com a garota. De outra forma não teria funcionado.
—Seu concerto terminou? —perguntou ele.
—Os lieder são peças breves. Agora, me faça o favor de sair. Minha irmã e eu…
—Senhorita Ormond, essa jovem não é sua irmã. Não são parentes. A convenceu a vir com você, mas sua ação não foi outra coisa mais que um sequestro e deverá ser examinada ante um juiz.
A senhorita Ormond afastou brandamente à garota e depois apertou seu vestido para conseguir entrar na estadia. A largura da ridícula saia obrigou Morton a se aproximar da parede.
Ela cruzou os braços. O gesto fez que Vergil se fixasse na forma em que seus peitos apareciam esmagados, sob o rígido sutiã.
—Quem é você?
—Vergilius Duclairc, o visconde Laclere. A senhorita Kenwood é minha pupila, como você já sabe.
Ela baixou lentamente o olhar, e logo voltou a elevá-lo.
—Eu não sei nada disso.
O aprumo que demonstrava, apesar de ter sido surpreendida em fragrante delito, acabou com a paciência de Vergil.
—Não tente brincar comigo, jovenzinha. A forma em que traiu a confiança de sua companheira de viagem é simplesmente abominável. O perigo e o possível escândalo ao que submeteu esta moça durante as últimas semanas são indesculpáveis. A partir de agora não tolerarei nenhuma intromissão. Se você se der pressa, poderá estar a caminho de volta a América antes que amanheça, mas unicamente estou disposto a fazer esta concessão por deferência à senhorita Kenwood.
Ela nem sequer pestanejou. Avançou uns passos para diante até que os volantes de sua saia roçaram a perna dele e levantou a vista para olhá-lo de uma forma curiosa.
—Assim é você um desses.
Ele a olhou fixamente. Se fosse um homem lhe daria uma boa surra.
Ela dirigiu a vista para a perturbada garota, encolhida com medo contra o vão da porta.
—Pelo visto parece que tudo terminou. É uma lástima, realmente acreditei que conseguiria. —Fez um gesto e a senhorita Kenwood se uniu a ela para ajudá-la a desprender e dobrar os objetos que tinha pendurados nos cabides.
Ele se colocou entre elas, pegou um vestido das mãos de sua pupila e o jogou para um lado.
—Iremos agora mesmo. Se a senhorita Kenwood tiver pertences aqui ou no lugar onde se aloja, enviarei alguém para buscá-los.
A senhorita Ormond sorriu de uma forma muito insolente.
—Oh, definitivamente é você um desses. Muito seguro de si mesmo. Um homem que decide que rumo seguir e que está sempre seguro do que é o correto. Advertiram-me que neste país havia muitos homens como você, homens que estão convencidos de que jamais cometem enganos.
Ele sentiu que se ruborizava ante a suja afirmação dessa pomba presunçosa. Já tinha sido suficiente. Pegou com sua mão a larga manga de tecido cinza de sua pupila.
A senhorita Ormond mudou de posição e obstruiu sua retirada com a largura de seu vestido. Com uma mão, suave e cálida, agarrou a mão dele e com delicadeza fez que seus dedos se abrissem e o tecido largo e cinza se deslizasse deles.
Uns olhos azuis o olharam com zombador deleite.
—Bem, esta vez cometeu um engano, Vergilius Duclairc, visconde Laclere. De fato, você está completamente equivocado. Ela não é Bianca Kenwood. Sou eu.
Ele teve um momento de confusão até que o significado daquelas palavras o golpeou. Insinuações de problemas se atropelaram em sua mente, uma luminosa névoa de premonições que sugeria que algo que parecia bastante simples de resolver acabava de voltar-se perigosamente complicado. Dirigiu seu olhar para o tímido passarinho cinza que retorcia as mãos, e depois para aquela ave do paraíso, borrada e cheia de confiança em si mesma, e se perguntou como teria reagido Dante ante desse escandaloso acontecimento.
***
Zas. Zas. Zas.
O látego de montar golpeava contra as altas botas do visconde Laclere enquanto caminhava acima e abaixo frente à chaminé.
No divã, Bianca abraçava Jane, e dava tapinhas no seu ombro. Na outra ponta do salão, meio adormecida, a condessa de Glasbury irmã do visconde, piscava com consternação, vestida com uma bata verde de estilo oriental.
Bianca pensou que era de muito má educação por parte de Vergil Duclairc arrastar Jane e a ela até a casa da condessa e interromper seu sono. Se ele deixasse de dar voltas ao assunto e de caminhar de um lado a outro, ela poderia esclarecer as coisas rapidamente e poderiam partir.
Zas. Zas.
—Não estará planejando usar isso, verdade? —perguntou Bianca. Sua voz rompeu o tenso silêncio que se fez depois que ele explicou à condessa onde encontrou sua pupila desaparecida após duas longas semanas de busca.
Ele parou em seco uma de suas idas e vindas para dar a volta e olhá-la. Era um homem alto, magro e robusto de uns vinte e cinco anos, com surpreendentes olhos azuis e o cabelo ondulado e escuro um pouco despenteado, como ditava a moda. Atrativo, de fato. Possivelmente inclusive bonito se deixasse de pôr essa cara mal-humorada, de momento ela não podia saber.
—O látego — insistiu— Não pretende usá-lo? Devo te dizer que tenho vinte anos, e Jane tem vinte e dois, o que significa que já passamos da idade para estas coisas. Embora minha tia tivesse uma criada que foi cortejada por um cavalheiro inglês que disse que há muitos homens que usam o látego com suas mulheres aqui na Inglaterra, o qual me pareceu bastante curioso, e que há outros que de fato querem mulheres para lhes dar chicotadas, o qual para mim não tem nenhum sentido.
A condessa ficou boquiaberta. De repente parecia completamente acordada.
Vergil se voltou para sua irmã com uma paciência cheia de tensão, e assinalou para o divã como querendo dizer «o vê?».
—Asseguro-lhe, senhorita Kenwood —disse a condessa com um sorriso vacilante— que, sem dúvida, meu irmão não tem nenhuma intenção de…
Vergil baixou as pálpebras como se não houvesse nenhuma razão de usar o «sem dúvida». Cruzou as mãos atrás das costas e estudou a moça com severidade.
—Meu irmão foi esperar seu navio em Liverpool. Por que não conseguiu encontrá-la?
Bianca considerou a possibilidade de usar a elaborada história cheia de peripécias que inventou se por acaso as coisas se estragavam, tal como tinha ocorrido. Mas de repente pareceu que era muito pouco convincente.
Examinou os olhos azuis que a esquadrinhavam. Tia Edith havia dito que os aristocratas ingleses eram gente indolente e decadente, um pouco estúpidos, e Bianca acreditava que aquilo seria certo. Infelizmente aquele parecia ser uma exceção, ao menos em relação ao último ponto. Não parecia capaz de acreditar em confusas histórias a respeito de uma moça inocente e desventurada.
—Havia a bordo um marinheiro que nos ajudou a tirar nossos baús e a encontrar um carro de aluguel antes que alguém viesse nos recolher.
—Ficou amiga de um marinheiro? —A condessa lançou a seu irmão um olhar oblíquo e este fechou por um momento os olhos.
—Senhorita Kenwood, talvez ocorreu um mal-entendido. O procurador de seu avô contatou com um advogado de Baltimore, o senhor Williams, para dirigir este assunto. Ele falou com você, ou acaso não fez? É possível que foi mal informada?
—Certamente falou comigo. É um homem muito agradável. De fato conseguiu nossa passagem para o navio.
—Escreveu-me dizendo que o faria. Explicou a você que um membro de nossa família iria recolhê-la em Liverpool?
—Explicou-o com muita claridade. Minha tia não teria me permitido vir se não tivesse convencida de que me recolheriam.
—Então admite você que desembarcou por sua conta própria sem esperar um acompanhante e que não foi acidental que meu irmão não a encontrasse?
—Não foi acidental. Foi completamente deliberado.
Por alguma razão sua franqueza o deixou mudo. Olhou-a como se fosse impossível compreendê-la.
—Acredito que será melhor que se sente Vergil, assim ela se sentirá menos incômoda — disse a condessa— Podemos falar as coisas com calma. Estou segura de que a senhorita Kenwood terá uma explicação para tudo.
Vergil se sentou em um pequeno banco, mas continuou envenenando a moça com sua atitude.
—Você tem alguma explicação?
—É obvio. —Jane dormiu apoiada em seu ombro e o peso morto a distraiu. O abraço tinha feito que sua peruca se desequilibrasse e se torcesse. Esses vestidos antigos não estavam desenhados para sentar-se e a saia formava uma espécie de plataforma a seu redor. O espartilho sob o disfarce lhe cravava ao lado da cintura.
Sentia-se um pouco ridícula e muito incômoda e lamentava que aquele visconde com ar de grandeza não a tivesse deixado tempo para trocar-se e lavar-se antes de arrastá-la até o carro.
—A explicação, senhorita Kenwood. Eu gostaria de ouvi-la.
—A verdade, senhor Duclairc, é que não acredito que gostará.
Ele entrecerrou os olhos.
—Seja como for vamos provar.
Ela subiu uma perna e a colocou sob seu traseiro para levantar-se um pouco mais. A condessa pestanejou. O visconde elevou uma sobrancelha em atitude de censura. Ao dar-se conta de que a perna que pendurava estava descoberta até a metade da panturrilha, Bianca sorriu a modo de desculpa e puxou a borda de sua saia para baixo.
—Senhor Duclairc, fui informada a respeito dos planos de minha visita aqui. Simplesmente decidi fazer umas pequenas mudanças. Se o senhor Williams falou com você a respeito de mim, você deve saber que eu vivia com minha tia avó Edith mais como uma companheira que como uma pupila. Viajei muito quando minha mãe vivia, e aprendi a cuidar de mim mesma. Sou considerada muito amadurecida para minha idade.
—Ele só me escreveu dizendo que sua tia era um baluarte da sociedade de Baltimore e que você era uma jovem bem educada. —Seu tom dava a entender que o senhor Williams devia alguma explicação.
—Sei que meu avô o nomeou meu protetor em seu testamento. É um gesto encantador e comovente. Provavelmente ele queria cobrir a eventualidade de que eu necessitasse realmente um protetor, mas obviamente não é o caso. Por outro lado, sou americana, assim não posso entender de que modo um testamento inglês pode estabelecer algum tipo de autoridade sobre mim.
—Será um prazer explicar mais tarde.
Ela já sabia a explicação. Simplesmente não a aceitava.
—Ante a insistência do senhor Williams, aceitei vir aqui para estudar assuntos referentes à minha herança e arrumá-los pessoalmente. Entretanto, nunca disse que iria ficar com sua família. —Omitiu o fato insignificante de que tampouco nunca havia dito que não fosse fazê-lo e que quando subiu a bordo desse navio tanto o agradável senhor Williams como a velha tia Edith davam por certo que era exatamente isso o que faria.
—A quem pensava visitar, querida? —perguntou a condessa— Vê Vergil, disse que haveria uma explicação. Ela esperava que outros amigos fossem recolhê-la e não se apresentaram.
A expressão dele se fez cautelosa.
—É assim, senhorita Kenwood?
—Não — admitiu ela. Curiosamente, ele pareceu aliviado— Minha intenção é viver por minha conta, com Jane como acompanhante. Em relação à oferta de alojamento em sua casa de campo… Bom, me sentiria como uma intrusa, e, além disso, prefiro a vida da cidade. E é obvio, não queria que se atrasassem minhas lições.
—Lições?
—Lições de canto. Esse é o motivo de ter vindo. Meus instrutores em Baltimore me disseram que me levaram tão longe quanto podiam e que a partir de agora necessitava professores melhores. Meu plano é tomar lições em Londres até que o assunto de minha herança esteja resolvido, e depois usar os ganhos para ir a Milão.
O visconde suspirou, levantou-se e começou a caminhar de novo frente à chaminé. A condessa inclinou sua cabeça de cabelo negro confidencialmente.
—Acredito que é maravilhoso que sinta esse ardor por sua música. Quanto talento! Quando formos a Londres para a temporada, estou segura de que poderemos encontrar um professor de canto. Conheço bastante gente nos círculos de arte e de música.
—Obrigado por tão amável oferecimento, mas não quero esperar até a temporada, seja quando for. As lições de canto foram o autêntico propósito de minha viagem e penso começá-las em seguida.
Vergil esfregou as superficiais rugas que se formavam entre suas sobrancelhas.
—Senhorita Kenwood, não quero incomodá-la, mas preciso saber como você conseguiu cantar nesse local.
—Vergil…
—Não, Penelope, é melhor esclarecê-lo agora e saber exatamente a que enfrentamos. Senhorita Kenwood?
—Bom, alugar esse carro para chegar a Londres resultou muito caro. Custou mais do dinheiro que trazia comigo. Quando chegamos a Londres encontrei emprego cantando, para nos manter até que pudesse obter o dinheiro do patrimônio de meu avô.
—Que inteligente e competente por sua parte — disse Penelope.
Vergil tinha o aspecto de alguém que jamais admirou virtudes como a inteligência ou a competência.
—É consciente da reputação desse lugar? Sabe o que ocorre no cenário depois de suas árias?
—Nunca ficamos. Parecia uma sala de música comum.
—Do mais comum. Nossa única esperança é que seu disfarce esconda sua identidade e que nenhuma das pessoas que te encontre no futuro a reconheça. Resulta escandaloso que uma mulher cante em um cenário de qualquer tipo, mas em um como esse, pintada e com esses babados… — Fez um gesto assinalando seu vestido, seu rosto, sua peruca.
—Minha mãe cantava em um cenário senhor Duclairc e este é seu vestuário.
—Estou segura de que era uma cantora encantadora — se apressou a dizer Penelope.
—Deixa de seguir a corrente, Pen. Talvez isso seja aceitável nos Estados Unidos, mas não na Inglaterra, senhorita Kenwood.
—Posto que não seja inglesa, isso não me preocupa. Acredito que o melhor será evitar qualquer contato social para que você não deva preocupar-se com minhas atuações, não parece? —Fez um sorriso forçado, como o animando a aceitar a lógica daquele raciocínio— Agora que já cumpriu com seu dever assegurando-se de que estou a salvo, por favor, leve Jane e a mim ao nosso alojamento.
—Você ficará aqui esta noite. Farei com que tragam seus pertences e que se relate ao proprietário da sala de jogos que suas atuações acabaram.
—Devo declinar sua oferta, senhor Duclairc. Não quero abusar da hospitalidade de sua irmã, e tenho a intenção de continuar com meu emprego. Como cantora, necessito experiência com o público e…
Ele a interrompeu com um gesto autoritário.
—Não. Definitivamente não. Não viverá de forma independente sem uma acompanhante e tampouco vai pavonear sobre um cenário. Enquanto esteja aqui eu sou responsável por você e deverá comportar-se como se espera de uma jovem dama.
Bianca devolveu o olhar a aquele intratável, alto e imponente visconde. Que um velho avaro, a quem nunca conheceu, pudesse ter complicado sua vida dessa maneira com os garranchos de uma pluma, resultava intolerável. Não esperava que o visconde a encontrasse tão rápido. Não esperava ter aquela conversa até estar preparada.
Vergil cruzou os braços. Aquela pose o fazia parecer muito alto e poderoso. Era o tipo de postura que devia adotar um rei quando ordenava executar alguém.
—Amanhã minha irmã acompanhará você e a sua criada até o campo — entoou, como expressando a vontade de um juiz— Não falará com ninguém a respeito desta experiência, nem sequer a outros membros de minha família. No que concerne ao mundo, você foi recolhida no navio e esteve sob nosso amparo desde o começo.
—Se você me tirar de Londres, será contra minha própria vontade. Como você disse antes, isso é um sequestro. Eu também posso ir me queixar ante o tribunal de Justiça.
Ela olhou com frieza.
—É legalmente impossível para mim sequestrá-la, senhorita Kenwood. Sou seu tutor. Até que você cumpra vinte e um anos ou se case permanecerá sob minha custódia. Pen, pede à governanta que mostre à senhorita Kenwood e à senhorita Ormond suas acomodações.
Despachada como uma escolar travessa, Bianca achou a si mesma e a uma sonolenta Jane guiadas por uma mulher através do corredor. Zangada por ter visto frustrado seu plano, e desconcertada ao ver aquele estranho assumindo uma responsabilidade que certamente desejaria não ter que assumir, baixou a escada guiada por aquela mulher.
Algo no final daquela confrontação a perturbava. Foi chegar ao patamar da escada quando se precaveu da importante omissão. «Até que você cumpra vinte e um anos ou se case permanecerá sob minha custódia.»
Ou até que abandone a Inglaterra, naturalmente. Verdade?
—Não acredita que foi muito duro com ela? —perguntou Penelope.
—Absolutamente. —Vergil observava Bianca Kenwood enquanto esta subia a escada cambaleando com suas delicadas sapatilhas de seda. A chuva de premonições se converteu em uma tormenta de neve.
Que desastre.
—É uma estrangeira aqui, Vergil. Ignorante de nossos costumes. Sem dúvida, as pessoas na América se comportam de maneira mais informal.
—Não acredito Pen. Ela sabia perfeitamente o que estava fazendo. —O qual significava que estava fazendo exatamente o que queria e pressupondo que aquilo o induziria a lavar as mãos a respeito dela.
Deu a volta, pensando em tomar um copo de porto antes de partir. Precisava fazer planos sobre como preparar seu irmão e como frear à senhorita Kenwood para que aquele caveira não ficasse impressionado por ela.
Penelope o pegou pelo braço, detendo-o.
—Foi muito amável de sua parte não dizer nada a respeito de como deve dirigir-se a você. Compreendeu que era só sua ingenuidade o que a fazia te chamar todo o tempo senhor Duclairc. Ela se sentia envergonhada e você foi muito generoso. O explicarei amanhã.
É isso o que Penelope viu naqueles olhos azuis? Ingenuidade? Vergonha? Normalmente sua irmã mais velha se mostrava mais ardilosa, apesar de sua natureza otimista.
—Não será necessário dar explicações, Pen. Apostaria mil libras que a senhorita Kenwood sabe perfeitamente qual é a forma apropriada de dirigir-se a um visconde.
Capítulo 2
Vergil lançou a seu camareiro seu chapéu empapado e desatou com violência o nó de seu lenço.
—Uísque para os dois, Morton. Depois desta viagem, necessito. Leva Hampton acima quando chegar.
Ao final de dez minutos, Morton não só serviu as bebidas, mas também queijo e carne de ave fria, acendeu um pequeno fogo na biblioteca e conseguiu que Vergil estivesse seco e arrumado. Não é que houvesse ninguém ante quem tivesse que estar arrumado. Só umas poucas estadias da luxuosa casa de Londres estavam abertas e, além de Morton, havia só outros dois criados.
Tampouco tinha por que arrumar-se para receber Julian Hampton. O advogado da família o viu em outras ocasiões vestido de maneira muito informal. Entretanto, a vida que levava em Londres requeria que se respeitassem as aparências.
Sentou-se junto ao fogo, bebendo a sorvos seu uísque com dois grandes livros em seus joelhos. Já sabia o que mostravam esses documentos e o que diria Hampton. As finanças da família Duclairc não atravessavam um período de prosperidade. Só a cuidadosa direção de Vergil durante aquele último ano tinha evitado o desastre total.
Ultimamente, entretanto, não teve muito tempo para dedicar-se a essas coisas. Outros assuntos, mais urgentes e também mais interessantes, tinham requerido sua atenção. Assuntos como o que acabava de atender no norte.
E agora, é obvio, precisava ocupar-se daquele novo assunto chamado Bianca Kenwood. As possíveis complicações que aquilo podia representar o fizeram fechar os olhos.
A imagem dela cintilou atrás de suas pálpebras, assim como ocorreu muito frequentemente durante as últimas duas semanas. Viu-a sentada na sala de estar de Pen com aquele absurdo vestido, sua magra perna pendurando do divã e a sapatilha de seda arqueando um pouco seu pequeno pé. Estava do mais inapresentável. Além de incorrigível e impertinente e maliciosa e fascinante…
Fascinante? Que ideia tão curiosa. De onde sairia?
—O senhor Hampton — anunciou Morton.
Julian Hampton entrou, levando posta sua cara de advogado. Sempre o fazia quando se encontravam por assuntos de negócios. Já que se tratava de um velho amigo provavelmente era necessário, especialmente quando tinham que falar de más notícias. Vergil viu aquela expressão muito frequentemente durante o último ano.
—Estudou-os? —perguntou Hampton, assinalando os tomos ao tempo que tomava assento e aceitava o copo que oferecia Morton.
—Espero que as coisas tenham mudado um pouco.
—Um pouco. A solvência nos faz gestos. Se sua irmã vivesse em Laclere Park…
—Não posso pedir que seja tão dependente.
—Ou se Dante vivesse de acordo com seus meios…
—Jamais o fez, assim não há nenhuma esperança.
—Poderia consolidar a granja e arrendar a terra.
—Essa é uma velha litania, Hampton, e já sabe minha resposta. Meu pai e meu irmão não jogaram essas famílias, e eu tampouco o farei.
—Bom, ao menos não estão na borda do abismo.
Estavam mais perto do abismo do que sabia Hampton e do que revelavam aqueles tomos. Entretanto, Vergil tinha um plano para tentar solucioná-lo. Infelizmente, uma parte fundamental desse plano podia causar problemas. A parte chamada Bianca Kenwood.
Hampton sorriu. Isso nunca era um bom sinal, especialmente na cara de seu advogado.
—Deve melhorar as coisas do modo mais simples. O modo tradicional.
—Sim, suponho que o pai de Fleur será muito generoso. Deveria estar agradecido de que meu valor tenha aumentado tanto depois da morte de meu irmão. Com o tempo, suponho que consentirei em me casar. De momento, entretanto, outros enredos fazem que resulte impossível.
Hampton não era um homem muito expressivo, assim que o brilho de curiosidade e preocupação que relampejou em seus olhos fez Vergil ter sabor que falou muito.
—Posso te procurar ajuda? Tenho experiência em negociar para que meus clientes solucionem seus enredos. —Destacou a última palavra de uma forma que parecia aludir a problemas de natureza romântica.
O enredo em que Vergil se achava envolvido necessitava algo mais que a destreza de Hampton para chegar a desembaraçar-se.
—É insuperável nisso, e aceitaria sua ajuda se acreditasse que poderia servir de algo. Não sei como conseguiu convencer o conde para que liberasse minha irmã.
—Todos os homens têm segredos que querem esconder. O conde de Glasbury simplesmente tem mais que a maioria. Como vai à condessa?
—Está bastante contente, e acabou por preferir aqueles círculos sociais que a aceitam.
—Sua queda teria sido muito pior se não fosse por você.
Vergil sabia. Graças a sua fama de homem íntegro e decente conseguiu aliviar o impacto social que foi o fato de que Pen se separasse do conde; também obteve que se subtraísse importância aos diversos pecados de Dante e inclusive que se retificasse em parte a fama que tinham os Duclairc por seu comportamento e suas ideias pouco convencionais. Apesar de que sua família atirasse para baixo, ele conseguiu que se mantivessem flutuando. Com muita dificuldade.
—Acabamos? —perguntou Vergil, levantando.
—Pelo visto você acredita que sim.
Vergil deixou cair os livros ao chão.
—Pode deixar para outro dia os detalhes tristes. Me diga o que esteve fazendo, além de dar conselhos a insensatos como eu.
—Se todos meus clientes fossem tão insensatos como você, morreria de fome.
A gravidade da expressão de Hampton se esfumaçou e voltou a ser o apreciado amigo de Vergil.
Resultou que esteve fazendo muito pouco. Hampton não frequentava muito as reuniões sociais, e permanecia um pouco à margem quando ia a elas. As mulheres o achavam melancólico e misterioso, enquanto que os homens o consideravam orgulhoso e aborrecido. Com seu cabelo negro e seus traços perfeitos e afiados, Hampton parecia uma figura desenhada com tinta e pluma por um ilustrador. O problema para a maioria da gente era que a ilustração vinha sem pé.
—Saint John voltou para Londres — disse Hampton— Burchard e eu nos encontraremos com ele no Corbet amanhã. Witherby e os outros provavelmente virão também. Agora que retornou de onde seja que estivesse, por que não se reúne conosco? A Sociedade do Duelo estará completa outra vez.
Estava se referindo ao grupo de homens jovens que se reuniam em Hampstead na academia de esgrima de Chevalier Corbet há cinco anos. Vergil não praticava com eles há meses.
Sua ausência resultava tão estranha porque ele foi o eixo da roda em torno do qual se agrupavam os outros homens. Conhecia Hampton desde a adolescência, e se fez amigo de Cornell Witherby durante a época universitária. Adrian Burchard, filho de um conde, o conheceu nos círculos da nobreza. Inclusive Daniel Saint John, o marinheiro, acrescentou-se à Sociedade do Duelo através de Vergil graças a sua amizade com Penelope.
—Oxalá pudesse, mas devo me encontrar com Dante e levá-lo a Laclere Park. Temos assuntos a atender ali.
—Burchard ficará decepcionado. Esteve te procurando para discutir sobre algo que não quer divulgar. Suponho que se tratará de política.
Se Adrian Burchard estava procurando alguém, logo o encontraria. Adrian era a última pessoa que Vergil desejaria ver interessado em suas atividades.
—Escreverei para ele o convidando a ir me visitar. Espero estar aqui durante vários dias.
—Por que não convida também Witherby? A prolongada ausência da condessa em Londres o tornou melancólico.
—Possivelmente assim se inspire para escrever outra ode. Witherby terá que esperar sua vez. A senhorita Kenwood chegou à Inglaterra, e Penelope a levou ao campo por uma temporada.
—Há algum problema?
Não estava claro se Hampton se referia a Bianca Kenwood ou à forma em que Cornell Witherby estava cortejando Penelope. Embora a primeira não prometesse nada mais que problemas, Vergil também preferiria se livrar do segundo. Ter um bom amigo apaixonado por uma irmã mais velha, especialmente quando essa irmã se acha separada de seu marido, só e vulnerável, era o tipo de situação que podia arruinar uma amizade.
—Não há nenhum tipo de problema. A senhorita Kenwood é encantadora. Estou desejando que a conheça.
Até esse ponto se enredou com suas confusões. Estava mentindo a um homem que conhecia há meia vida.
Hampton desviou a conversa para assuntos de política. Enquanto falavam de liberais e conservadores, as manifestações violentas e as mudanças ocorridas depois da morte do último ministro de Assuntos Exteriores, a mente de Vergil se mantinha ocupada com as questões privadas que o esperavam no campo.
Uma e outra vez aparecia em sua cabeça à imagem de uma moça vestida como uma rainha francesa, desafiando-o com uma excessiva auto-suficiência, e uma bonita perna pendurando por debaixo de uma prega indecorosamente alta.
***
—Sigo sem entender sua impaciência — disse Dante. Jogou a cinza de seu puro através da janela da carruagem— Não vejo a razão de que me fizesse voltar da Escócia. Ela não alcançará a maior idade até dentro de um ano.
Isso significava uma eternidade dada à forma em que Dante calculava seu calendário com as mulheres. Normalmente era capaz de cortejar, seduzir, levar a cama e desprezar duas amantes ao mesmo tempo. Vergil estudou o jovem e belo rosto de seu irmão, seus limpos olhos e seu cabelo castanho escuro. A história de Dante com as mulheres foi quase inevitável com traços como os seus. Vergil viu como damas da mais alta linhagem ficavam sem fôlego quando Dante se aproximava.
—Começa a temporada muito antes de seu aniversário, e com a estreia em sociedade de Charlotte não podemos exatamente ir todos à cidade, e deixar aqui à senhorita Kenwood. Já terão que estar casados então, e não só prometidos.
—Por quê? Você acha que algum caçador de fortunas tomará meu lugar? —O tom de Dante deixava ver que aquilo era absurdo.
«Não, acredito que se ela está casada, poderemos impedir que nem chegue a pisar em Londres se for necessário», pensou Vergil. Só a ideia de ver Bianca Kenwood entre a sociedade educada, tratando duques e condes de senhores e anunciando sua pretensão de estudar ópera era suficiente para deixar seu ânimo pelo chão aquele último dia de agosto.
Mas a pergunta de Dante também aguçava aquela premonição que continuava obcecando-o desde que abandonou a casa de Penelope aquela noite. Seria melhor que Dante acabasse com aquilo enquanto o campo estivesse livre.
Dante o olhou diretamente nos olhos.
—Já estamos quase chegando. Não acha que deveria me dizer isso já?
—Te dizer o que?
—Não me disse grande coisa a respeito da senhorita Kenwood, com quem espero me casar. Encontro-o um pouco suspeito. Depois de tudo, você a conheceu. Ambos sabemos que não tenho outra escolha mais que aceitar, mas se deve me fazer alguma advertência, seu tempo está acabando.
—Se não a descrevi com detalhes, é porque isso seria pouco delicado de se fazer. Não é um de seus cavalos de corridas.
—Não a descreveu absolutamente.
—Muito bem. É de compleição média e esbelta, com olhos azuis.
—De que cor é seu cabelo?
Como diabos ia saber. Que cor de cabelo podia ocultar-se debaixo daquela ridícula peruca?
—Até que ponto é má?
Vergil tinha toda a intenção de advertir Dante, mas não encontrava a forma apropriada de abordar o assunto. Um matiz de culpa coloria suas reflexões quando tentava fazê-lo. Afinal, virtualmente meteu seu irmão naquilo à força. Embora não é que Dante resistisse muito ao saber que em um ano ela receberia mais de cinco mil libras.
—O problema não é seu aspecto. Suas maneiras, entretanto…
—Isso é tudo? Está preocupado por uns poucos enganos de etiqueta? O que esperava? É americana. Pen a preparará em pouco tempo.
Falar de uns poucos enganos de etiqueta não fazia justiça a Bianca Kenwood, mas deixou passar.
—É obvio. Entretanto, ela é… Especial.
—Especial?
—Poderia dizer-se inclusive que é estranha.
—Estranha?
—E possivelmente um pouco… Original. O qual pode remediar-se, naturalmente. Enquanto sustentamos esta conversa Pen a tem em suas mãos.
Através do guichê do carro, Dante olhou mal-humorado a visão da campina de Sussex. Vergil não sabia se continuava, mas quase estavam chegando e mal ficava tempo.
—Necessita mão dura. É um pouco independente, por assim dizer de algum modo. —O olhar de seu irmão deslizou para ele— Independente… Tem alguns caprichos. É por sua juventude, passará.
—Seria de imensa ajuda que pudesse completar sua descrição acrescentando alguma informação a respeito de sua beleza.
Sem dúvida. O problema era que ele não sabia se ela era bela. Só recordava seus grandes olhos, com aquela interessante faísca de inteligência e vitalidade que havia neles.
Que mais podia acrescentar? Toda aquela pintura de teatro ocultava seu rosto. Era provável que sua pele fosse preciosa, mas quem poderia estar seguro antes de ver seu rosto lavado? Também sua silhueta parecia bonita, mas podia ter sido pelo vestido. E fazer algum comentário sobre sua sensualidade… Não era muito apropriado tratando-se da futura noiva de um irmão.
—Maldita seja, se for vulgar não estou disposto a fazê-lo, Vergil. E você não deveria desejar que o fizesse. Além do fato de que ela repercutiria positivamente em mim e minha família, posso ignorá-la virtualmente por completo uma vez que estejamos casados, inclusive poderia ir viver na cidade e deixá-la aqui, que é de fato o que pretendo fazer. E até que se case com Fleur e estabeleça sua própria descendência, coisa que está demorando muito em fazer, eu sou seu herdeiro e essa americana poderia acabar convertendo-se na viscondessa Laclere.
Não necessitava que Vergil enumerasse a seu jovem irmão os obstáculos que o esperavam naquele caminho. Abismos muito mais profundos e numerosos do que Dante imaginava. Um favo desses abismos. Se pudesse pensar em alguma alternativa o teria feito, mas depois de duas semanas considerando distintas opções sempre terminava chegando à mesma conclusão. Era necessário que Bianca Kenwood fosse atada a sua família com correntes indestrutíveis.
Dante mordeu o lábio inferior e voltou a olhar através do guichê com seus olhos de espessas pestanas.
—A renda de seus recursos será minha? Como depositário, você não interferirá? E minha atribuição continuará até o casamento, aumentando como o acordo?
—É obvio. Também prometo continuar dirigindo os investimentos financeiros, como solicitou. A renda dos recursos é segura, mas outros assuntos requerem ser fiscalizados, e eu sei que você odeia essas coisas.
Dante fez um gesto de desdém.
—São coisas sórdidas e chatas. Duvido que valha a pena preocupar-se com elas. Pode vendê-las ou conservá-las, o que achar melhor. Depois de ver como se arrumou após a morte de Milton, seria um idiota se me atrevesse a te questionar.
Viajavam silenciosamente através dos bosques de carvalhos e fresnos que havia atrás de Laclere Park. Vergil preferia esse caminho ao longo horizonte de paisagem que se abria da parte frontal, e sempre dava instruções a seu chofer para que se aproximasse da casa por ali. Normalmente servia como um espaço de transição, uns poucos quilômetros durante os quais se preparava para assumir seu papel de visconde Laclere e confrontar as responsabilidades que este conduzia.
Fez aquele caminho pela primeira vez quando chegou à notícia da morte de Milton; escolheu então aquela longa rota para demorar sua chegada, lutando contra emoções conflitivas e agudos ressentimentos pelas mudanças que suportaria em sua vida a repentina morte de seu irmão.
Foi naqueles bosques onde terminou aceitando aquela nova realidade e suas correspondentes restrições. Não chegou nem a intuir até que ponto complicaria sua vida a morte de seu irmão. Restrições, mistérios e decepções o estavam esperando ao final daquela viagem.
De repente Dante se inclinou sobre a janela. Afiou o olhar.
—Que diabos…?
—Algum problema? —Vergil afastou um pouco a cabeça de Dante para poder aparecer a sua através da janela aberta.
—Ali, no lago. Espera, há árvores que nos tampam a vista. Agora. Essa não é Charlotte?
As árvores eram mais magras agora que passavam em frente do lago. Duas mulheres estavam se banhando, rindo e salpicando-se. Virtualmente nuas, pois suas roupas se tornaram transparentes pela água. Diabos, sim, era sua irmã pequena, Charlotte, com aquela criada, Jane Ormond.
Um terceiro corpo feminino emergiu de repente da água. A roupa empapada se aderia a sua pele a obscurecendo um pouco. Bonitos ombros… Umas costas que ia se estreitando… Uma pequena cintura… Gráceis quadris… Finalmente os topos de suas encantadoramente arredondadas nádegas apareceram à vista. Uma larga cabeleira loira se desdobrou em um leque sobre a água para aferrar-se depois a aquele corpo em espessa queda de uma cabeça bem formada.
Seus esbeltos braços começaram a golpear a superfície da água, criando ondas na direção de suas companheiras de jogo. As outras duas gritaram e empreenderam um maciço contra ataque de salpicaduras, enviando jorros de água ao redor dela até que acabou parecendo uma imagem emergente em meio de um sonho de bruma.
Ela lançou um chiado de jubiloso protesto. Rindo, deu a volta para responder ao ataque.
Vergil não podia estar seguro de que aqueles grandes olhos azuis viram passar o carro com seus dois atônitos ocupantes. Mas o certo é que ela se deteve, cobriu os peitos com um braço e deslizou a outra mão até o triângulo de sombra que havia justo entre suas coxas. Durante um breve instante antes de dar a volta e voltar a afundar-se na água, adotou a pose da Vênus de Botticelli, uma deusa de rosto adorável e formas luxuriosas, jorrando água, ainda virginal e pudica, mas já amadurecida e apaixonada. Aquela mescla de instinto protetor e desejos eróticos que Vergil experimentou na sala de jogos ressurgiu com força.
Ele e Dante se recuperaram ao mesmo tempo. Endireitaram-se e se afundaram em seus assentos.
Seu irmão o olhou com suspicacia.
—O que era isso?
—Não estou totalmente seguro, mas acredito que era a senhorita Kenwood.
Dante fechou os olhos e apoiou a cabeça contra o respaldo do assento.
—Deixe assegurar que entendi minha posição, Vergil. Tenho que me casar com isso? Tenho que me sacrificar no altar pelo deus da estabilidade financeira e ser forçado a ter como companheira durante o resto de minha vida essa fêmea que acabamos de ver? Uma garota tão especial, estranha e independente que se banha quase nua diante da estrada a plena luz do dia e influência nossa irmã a fazer o mesmo? Você pretendia me coagir, achando necessária a ameaça de retirar minha atribuição? Ela é a noiva que escolheu para mim?
—Sim. —Realmente não havia nada a acrescentar.
Dante manteve sua pose pensativa durante um longo tempo. Seus olhos se abriram. Uma limpa simpatia brilhou neles. Um sorriso muito masculino apareceu lentamente.
—Obrigado.
***
—Muito bem, Pen. Muito bem.
Penelope ruborizou com um tom rosado ainda mais intenso que o que sua pele tinha adquirido enquanto ele explicava sua história.
—Não me jogue a culpa. Não podia imaginar uma coisa assim. Ela foi uma hóspede da mais cortês. Seu comportamento não resultou inapropriado absolutamente. Ao menos até onde eu sei.
Acompanhou esta última observação de uma pequena careta. Penelope era suficientemente inteligente para reconhecer que a escapada desse dia era uma amostra de que ela não conhecia as atividades da senhorita Kenwood em todo seu alcance. Vergil imaginou toda uma série de escandalosos episódios tendo lugar sob o nariz da confiada Penelope.
—Durante sua estadia aqui parecia sentir-se como um peixe na água.
—Dadas as circunstâncias, «como um peixe na água» não é a melhor expressão que possa escolher Pen.
Pen abaixou a cabeça, envergonhada e sem forças ante a acusação. Dante deu uma palmada em seu ombro para consolá-la. Era simplesmente incapaz de imaginar o pior, e era sempre muito pormenorizada.
Bianca Kenwood provavelmente se deu conta em seguida de como era Penelope e tirou vantagem disso.
O que a senhorita Kenwood precisava era uma tia similar a uma velha harpia cheia de caráter que não permitisse desafiá-la, capaz de fazer tremer às moças jovens com seu olhar de aço e cujas estritas advertências provocassem uma imediata submissão.
Desgraçadamente, essa tia não existia.
—Talvez banhar-se assim seja normal na América.
—Por favor, Pen.
—Falarei com ela, e darei em Charlotte uma boa reprimenda.
—Não fará tal coisa.
—Pretende fazê-lo em meu lugar? Oh, Vergil, desejaria que não o fizesse. Seu rosto adquire uma expressão muito peculiar cada vez que se menciona seu nome. Suspeito que te vê como o guardião de um cárcere, e se for assim, o pior que pode fazer ao voltar a vê-la é lhe dar uma lição de comportamento…
—Não direi uma palavra sobre este assunto. Ninguém o fará. E tampouco a Charlotte. Mencioná-lo seria admitir que Dante e eu fomos testemunhas do ocorrido. —Não se atrevia sequer a contemplar a ideia dessa confrontação. Reconhecer o fato suporia ter que confrontar uma embaraçosa e difícil… Intimidade— Não temos mais remédio que ignorar o que aconteceu. Falarei com Charlotte em termos gerais para evitar que se deixe influenciar.
Dante se uniu a eles, com aspecto de estar contente e sentindo-se mais fresco ao mudar de roupa. Levava um traje delicioso perfeitamente engomado. Seu rosto estava cheio de espera sob seus cabelos cuidadosamente despenteados, um pouco compridos como marcava a moda romântica.
—É muito amável por sua parte se reunir conosco durante uns poucos dias — disse Penelope, levantando-se para lhe dar um beijo.
—Às vezes posso sentir falta da família, Pen. De fato, é provável que fique pelo menos uma semana. Sim, ficarei uma semana. —A piscada que lançou a Vergil fez com que Penelope franzisse o cenho com curiosidade.
Vergil devolveu um olhar reprovatório. Penelope não sabia nada a respeito dos planos que eles tinham em relação à senhorita Kenwood. Além disso, por alguma razão, a confiança em si mesmo que demonstrava seu irmão o irritava.
—Uma semana inteira? Isso é maravilhoso, Dante, e muito amável por sua parte. Sei quanto odeia o campo se não houver um bom esporte.
—Bom, Pen, há esportes e logo há esportes. Disseram-me que Verg comprou um novo cavalo que precisa domar e me senti obrigado a ajudá-lo, já que tenho tão boa mão com os animais e é, além disso, um presente para mim.
—Um cavalo novo? Vergil, não me disse nada.
—Chegará dentro de uns dias — murmurou ele. Que inteligente por parte de Dante. Desfrutar da metáfora e de passagem sair ganhando um cavalo. Não era uma metáfora tão má. A senhorita Kenwood tinha um ar menos de inacabada que de indômita. Era típico de Dante que tivesse fichado uma mulher em poucos segundos a uns sessenta metros de distância, e se deleitava no desafio que o estava esperando. Não era assombroso que parecesse tão insuportavelmente feliz.
A égua em questão se uniu a eles ao final de pouco tempo, chegando junto a Charlotte acompanhada de um fraco rangido de anáguas. Charlotte estava tão encantadora como de costume, sua elegância de magro salgueiro ainda ficava suavizada por sua inocência infantil. Junto ao cabelo negro, a pele branca e o vestido rosa pálido de Charlotte, Bianca Kenwood exalava um ar de senhorita de campo.
Seu vestido azul era um pouco antiquado e pouco atrativo. Sua pele tinha um bronzeado fora de moda, mas a ideia que fez de sua irrepreensível beleza foi acertada. Seu cabelo loiro dourado estava recolhido em um simples coque que enfatizava sua feminina, mas firme mandíbula destacando o contorno da parte inferior de seu rosto, com forma de coração. Dificilmente se ajustaria à definição de beleza da moda, mas possuía uma formosura singular, transbordava saúde e se movia com uma elegância amadurecida.
Dante a estudou com olhos calculadores durante um breve instante antes que Penelope o chamasse para apresentá-lo. Esse exame fez com que Vergil se sentisse incômodo. De repente se sentia sujo por aquele negócio. Ridículo. Semelhantes acertos se faziam todo o tempo, e frequentemente com menos sutileza.
Dante avançou para sua presa. Seu êxito com as mulheres estava mais no magnetismo do que na perseguição. Certa dama confessou uma vez a Vergil que quando Dante olhava uma mulher nos olhos esta se sentia como se ele pudesse ler sua alma e seus cuidados a deixavam sem respiração.
Se fosse assim, pelo visto a alma de Bianca Kenwood não era fácil de observar. Respondeu à saudação de Dante com soltura e não pareceu ficar sem respiração absolutamente. Vergil não pôde deixar de admirar seu aprumo, apesar de que o plano seria que ela caísse apaixonada por Dante a primeira vista.
—E recorda Vergil — acrescentou Penelope rapidamente, fazendo um gesto em sua direção.
—Dificilmente poderia esquecer o senhor Duclairc. Estou encantada de voltar a lhe ver. Possivelmente antes que se vá possamos ter uma conversa.
—É obvio, se assim o deseja.
Oh, desejava-o. Esteve guardando palavra após palavra há duas semanas. Dificilmente poderia ter enterrado seu ressentimento ante a imperiosa intromissão que a enviou até ali.
Deu-se conta de que o estava olhando com raiva, e de que todo mundo estava observando que o fazia.
—Está encontrando agradável sua estadia aqui? —perguntou Dante, guiando-a para o sofá.
—Muito agradável, obrigado.
Sentou-se ao lado dela, dedicando toda sua atenção. Era um homem bonito, mas um pouco delicado em suas formas e em seu rosto, como se Deus, ao esculpir os ossos de seu irmão mais velho tivesse esgotado seus melhores materiais e tivesse logo que arrumar-se com o resto. Formosos olhos marrons a contemplavam sob uns volumosos cílios. Uma faísca de familiaridade um tanto inapropriada brilhava neles.
Sim, eles as viram. Discutiu isso com Charlotte que não havia ninguém olhando no carro que passava. Em realidade, por um momento acreditou ver uns rostos espionando-a, mas ao comprovar que ninguém dizia nada horas depois de sua volta, simplesmente supôs…
—Assim leva o nome do poeta italiano — disse, sentindo-se muito desconfortável ante a ideia de que Vergil Duclairc a tivesse visto virtualmente nua. Curiosamente, o fato de que aquele seu irmão também a tivesse visto não importava muito.
—Foi uma desafortunada ideia de meu pai. Dava-se ares de poeta épico e pôs em seus filhos os nomes dos melhores. Nosso irmão mais velho se chamava Milton.
—Podia ter sido pior. Podia ter escolhido os nomes dos herois em lugar dos nomes dos autores.
Charlotte riu.
—Teria sido horrível. Ulisses, e Eneas e coisas assim.
—Ou poderia ter se motivado pelas histórias de Camelot que mais tarde o fascinaram tanto — acrescentou Dante— Lancelot, Gawain e Galahad.
Brincaram com aquela ideia durante um momento, e Penelope se uniu a eles. O homem que permanecia junto à janela não o fez, mas Bianca notou que seguia as brincadeiras com maior interesse do que seus olhares ocasionais pareciam revelar.
Podia ver seu adversário claramente de sua posição. Possuía uma figura refinada, era alto e magro, mas seus ombros e suas pernas sugeriam mais força da que era claramente visível. Naquele momento não tinha um olhar de desgosto, sim, era bastante bonito com seus ossos marcados, como cinzelados com certa aspereza. Seus olhos azuis surpreendiam penetrantes sob suas sobrancelhas escuras.
Eram penetrantes agora, que acabavam de descobri-la olhando-o. Ela dirigiu sua atenção a Dante, conseguindo —ou ao menos assim esperava— não ruborizar-se. Tinha a incômoda sensação de que durante aquele olhar o visconde estava recordando o que viu no lago.
Dante acabava de dizer algo. Ela respondeu com uma pergunta, retornando incômoda ao bate-papo banal típico da casa.
—E você o que faz?
Enfrentou-se a um silêncio total.
—Fazer? —repetiu Dante depois de contar até dez.
—Seu irmão é um membro do Parlamento, conforme entendi. Qual é sua ocupação?
Charlotte riu. A mandíbula de Vergil parecia mais rígida que de costume, mas uma faísca de brilho apareceu em seus olhos quando deu a volta para prestar toda a atenção em seu irmão.
Dante sorriu.
—Sou um cavalheiro.
—Jamais sugeriria o contrário, mas qual é seu emprego?
—Quando meu irmão diz que é um cavalheiro não está evitando sua pergunta, senhorita Kenwood. Está respondendo — explicou Vergil.
Em outras palavras, ser um cavalheiro significava que não tinha um emprego remunerado. A refinação do homem que havia a seu lado de repente pareceu tão estranha como os índios que viu em uma ocasião quando sua mãe percorria os povos próximos à fronteira. Era outro exemplo do que tia Edith queria dizer quando a advertiu que encontraria aquele país familiar em certas coisas, mas muito estranho em outras.
—Sem dúvida terão cavalheiros nos Estados Unidos — disse Penelope.
—Temos homens de grande riqueza e posição. Há fazendas tão grandes como esta. Mas um homem que não trabalha… Enfim, é considerado como quase pecaminoso.
Imediatamente desejou não tê-lo expresso dessa forma, embora pensasse que tanta indolência era uma evidência de uma séria falta de caráter. Não desejava insultar aquelas pessoas, com três das quais não teve nenhuma discussão.
A única com quem sim teve uma discussão rompeu o incômodo silêncio.
—Que pitoresco. Mas afinal de contas, seu país é ainda jovem.
Vindo de qualquer dos outros o teria deixado passar.
—A velha Inglaterra está aprendendo que há força na juventude.
—Refere-se a nossa última guerra. Uma escaramuça menor. Teria acabado de modo distinto se Napoleão não nos tivesse deixado tão ocupados.
Por alguma razão, com muita dificuldade, ela conseguiu manter um tom civilizado.
—Meu pai morreu nessa escaramuça, senhor Duclairc.
Fez-se outro silêncio tenso. Penelope sorriu fracamente e se levantou.
—Por que não pensamos em comer?
Dante tentou monopolizar a atenção de Bianca durante o almoço. O visconde não falou muito. Em várias ocasiões em que deu uma olhada o surpreendeu esquadrinhando-a, como se estivesse se perguntando o que era o que tinha diante. Nada mais que problemas, ela gostaria de advertir. Realmente deveria me enviar de passeio de uma vez por todas.
Ela estava decidida a abordá-lo depois do almoço para esclarecer coisas, mas Vergil se retirou, depois de desculpar-se, logo que voltaram para a sala de estar. Dante, entretanto, ficou unindo-se a elas para jogar cartas.
O moço elogiou o jogo de Bianca mais do que seu talento merecia. A familiaridade crescia com o passar das horas e os sorrisos de Dante começaram a adquirir uma calidez perturbadora. Ela começou a suspeitar que Vergil a estava evitando e usava Dante para distraí-la.
—Onde está o visconde? —acabou perguntando a Charlotte— Talvez goste de me substituir.
—Estará na biblioteca, suponho. Ou em seu escritório.
Bianca se levantou.
—Me desculpem. O convidarei a unir-se a nós.
Não esperou que dessem permissão; atravessou a sala de estar e se encaminhou pelo corredor para a biblioteca.
Ele estava ali, sentado ante o escritório examinando uns papéis. Levantou a vista ao ouvi-la entrar e ficou de pé.
—Parece surpreso em me ver. Cometi um engano? Supõe-se que devia ter pedido uma audiência? —perguntou.
—É obvio que não. Supus que meu irmão e minhas irmãs a manteriam entretida toda à tarde, isso é tudo.
—As cartas não me divertem muito tempo se me dão de presente todas as mãos. Se estivéssemos jogando por dinheiro, a esta altura já teria ganhado toda a fortuna de seu irmão. Decidi dar um descanso a seu orgulho e generosidade.
—Somente está tentando fazer com que se sinta bem recebida. Entretanto, me alegro de que tenha me procurado. Quero me desculpar por meu imprudente comentário na sala de estar. Devia ter tido em conta a possibilidade de que tivesse sofrido nessa guerra. Não pretendia menosprezar o sacrifício de seu pai.
A sinceridade com que se expressou a deixou desarmada. Não parecia tão severo como de costume.
—Possivelmente agora entenda por que não desejo prolongar muito minha visita a este país, senhor Duclairc, e por que não quero formar parte da sociedade para a qual sua irmã tenta me preparar. Queria retornar a Londres o antes possível para me ocupar de meus assuntos.
—A guerra terminou faz tempo, senhorita Kenwood. Nossos países voltam a ser amigos. Quanto a seus assuntos, estou me ocupando deles em seu lugar — disse esse último com um firme sorriso que parecia indicar que considerava pouco recomendável dirigir a conversa nessa direção.
—Está me convencendo de que cometi um engano vindo à Inglaterra. Deveria ter seguido minha primeira inclinação e dizer ao senhor Williams que vendesse os investimentos que herdei.
—Isso não pode fazer-se. A maior parte de seu patrimônio pertence a um fundo de investimentos. A menos que se faça uma solicitação ante o tribunal de Chancery, o qual é um processo muito longo que levaria anos, é impossível romper os termos desse fundo de investimentos.
—Isso ele me explicou. Minha segunda ideia foi então arrumar as coisas para que me enviasse a renda a Baltimore.
—E por que não o fez? Especialmente tendo em conta que nos acusa de está-la prejudicando.
—Como expliquei em Londres, tinha razões para vir.
—Sim, suas aulas de ópera. —Seu tom transmitia o alívio que sentia ante o fato de que esses planos tivessem fracassado.
Mas necessitaria mais que a desaprovação daquele homem para fazê-los fracassar de tudo. Esses planos continuavam vivos, e ela estava desesperadamente impaciente por fazê-los progredir.
—Sejam quais sejam minhas razões, estou na Inglaterra por um curto período de tempo e tenho interesses que não podem ser satisfeitos enquanto permaneça nesta casa. Não aceito sua intromissão. Não necessito um guardião.
—Tendo em conta como a conheci, acredito que é óbvio que sim o necessita. E hoje não tem feito nada que possa me fazer mudar de ideia.
Estava se referindo ao lago. Em realidade não houve nenhuma mudança em sua expressão, mas aquele provocador murmúrio formou redemoinhos entre eles. Entrou no corpo de Bianca fazendo que seus membros estremecessem. Sim, a viu com aquela roupa empapada. E apesar de sua aparência desapaixonada, naquele momento estava vendo-a outra vez.
Por um instante, em seus olhos se acendeu um brilho que indicava que ele era consciente de que ela sabia. Esse reconhecimento acrescentou um matiz perigoso a sua masculinidade. De repente ela se sentiu em desvantagem e teve que lutar para recuperar sua indignação.
—Não consigo compreender por que você insiste tanto em complicar a minha vida.
—O testamento de seu avô cedia a responsabilidade ao visconde Laclere. Ia destinado ao meu irmão, mas dado que não mudou o testamento depois da morte de Milton, me corresponde. Eu não evito meus deveres, não importa quão problemáticos possam chegar a ser.
—Eu o libero de seu dever. E agora peço que me permita partir para Londres amanhã pela manhã.
—Não.
Ela esperava ouvir algo mais, mas nada mais foi acrescentado. Aquela palavra foi sua única resposta. Não.
Ela o observou, procurando o modo de ganhar aquela estúpida batalha. Devolveu o olhar como um general que é consciente da superioridade de seu exército.
Ela deu a volta. Em uns poucos dias esperava que chegassem seus reforços. Morria de impaciência por jogá-los contra ele.
—Senhorita Kenwood, se você voltar para a sala de estar, tenha a amabilidade de dizer a Charlotte que venha ver-me antes de retirar-se.
***
Bianca subiu a escada e deu uma volta através da enorme casa de estilo gótico até chegar a seu quarto. Era o dormitório mais longo e luxuoso que jamais havia usado, com um espelho emoldurado em ouro e móveis de madeira belamente esculpidos. Jane se aproximou dela para começar a desabotoar o vestido, ao mesmo tempo em que mexericava a respeito dos criados e arrendatários. Aquele mundo mais vulgar soava mais interessante que esse outro no que Bianca passou seus últimos dias.
As últimas duas semanas pareciam dois meses. Davam passeios. Arrumavam as flores. Trocavam visitas com vizinhos que ela não conhecia. Falavam sobre moda e sobre quem era quem na alta sociedade. Tudo enquanto Pen instruía à americana selvagem para ensiná-la a expressar-se e comportar-se adequadamente na Inglaterra.
Bianca chegou ao ponto de invejar os criados ocupados em polir a prata. Finalmente teve algumas ideias para romper a monotonia.
Charlotte apareceu justo quando Bianca já vestia sua bata. Teve um pequeno bate-papo com seu irmão.
—Não disse nenhuma palavra sobre o lago. —subiu à cama de um salto enquanto Jane começava a escovar o cabelo de Bianca— Em realidade o que queria era falar de você.
—De mim?
—Perguntou o que esteve fazendo. Não o disse dessa forma, claro. Quis saber se estava contente e com o que se entretinha.
«O maldito intrometido…»
—Acredito que sabe o do lago e joga a culpa em você, e quer saber se tem estado fazendo alguma outra coisa escandalosa.
«Maldito arrogante, pretensioso…»
—Depois me deu um sermão. Explicou que me criaram de um modo diferente e permitiram a você mais liberdades do que era apropriado, e que eu não devia me deixar influenciar por você e fazer coisas que não fossem apropriadas. Contei ao menos dez vezes a palavra «apropriado» antes que terminasse. Prometi a ele que me comportarei de maneira muito correta enquanto esteja aqui. —Charlotte sorriu— Acredito que tem ao santo de meu irmão muito preocupado.
Bianca não sabia o que dizer. Foi criada de um modo distinto, e permitiram mais liberdades das que Charlotte jamais chegaria a conhecer, mas não havia nada inapropriado nisso, tão somente pouco convencional, inclusive tendo em conta os costumes americanos. Além disso, ela planejava uma vida destinada a ser pouco convencional, mas não inapropriada, apesar de que Vergil Duclairc assumisse o contrário.
Charlotte se recostou na espaçosa cama.
—Estou encantada de que Dante veio nos visitar. Não o faz frequentemente. Prefere Londres. —Levantou o olhar com astúcia— Se supõe que não sei, mas acredito que tem uma amante ali. Este último ano venho intuindo que meu irmão é um pouco canalha. Você o que pensa? Acredita que Dante é um mulherengo?
—Não saberia dizê-lo — respondeu Bianca, embora adivinhasse que Dante era um autêntico mulherengo. Pensou, além disso, que aquele mulherengo a viu virtualmente nua e que passou a tarde lhe dirigindo intensos olhares e calorosos sorrisos.
—Sempre pensei que Vergil poderia parecer um bom mulherengo também, sempre e quando alguém não o conhecesse. Tem aspecto de ser, mas claro… Ele é tão correto. Esteve cortejando Fleur durante um ano e nunca o vi fazer nada mais que lhe tocar a mão.
Bianca ouviu falar da perfeita, etérea e saudável Fleur, que supostamente era a prometida de Vergil. Logo esperavam uma visita dela e de sua mãe.
Bianca não tinha intenção de seguir ali quando viessem.
—Charlotte, esta é a única propriedade que tem sua família?
—Há outras aqui em Sussex, mas ninguém as visita salvo Vergil. Não estão em muito bom estado. Papai não cuidou bem de algumas coisas. Estava tão ocupado com seus escritos e depois com a reconstrução desta casa. Vergil tem também um imóvel no norte. É sua parte da herança de nossa mãe.
—Vivem alguns parentes nesses outros lugares?
—Não há mais parentes ali, ou ao menos não há parentes dos que estejamos perto. Papai tendia a encerrar-se e perdemos o contato com eles enquanto vivia. Milton também era um pouco estranho. Vergil não é o menos excêntrico, e não reavivou os laços.
Não havia parentes próximos. Nenhuma tia, nem prima que pudesse fazer cargo de uma pupila errante.
—Acredito que meu irmão gosta de você — disse Charlotte.
«Que irmão?» Bianca reprimiu a impulsiva pergunta antes que saísse de sua garganta, surpreendida pelo sobressalto de excitação que a acompanhou.
—Estou segura de que simplesmente se sentia obrigado a me entreter.
—É muito estranho que Dante se sinta obrigado a fazer algo. Deixou-te ganhar nas cartas e não parou de te sorrir.
—Equivoca-se, mas se estiver certa e é um mulherengo, dificilmente poderia me sentir adulada.
—Oh, não tem que preocupar-se por isso. Sabe que é a protegida de Vergil e nossa convidada. —deslizou da cama— Será melhor que vá dormir. Dante nos levará a um passeio amanhã. Será divertido. É um perito com o látego e sempre conduz muito rápido.
—Também nos acompanhará o visconde?
—Não se preocupe, não vai danificar nossa diversão. Quando nos levantarmos, ele já viveu um dia completo. Levanta-se a alvorada, para ocupar-se dos assuntos da fazenda.
Quando Charlotte se foi, Bianca se sentou sobre a cama abraçada a seus joelhos.
Assim Vergil Duclairc se preocupava que a senhorita Kenwood pudesse supor uma má influência para sua irmã. Advertiu Charlotte que tomasse cuidado. O que faria aquele santo se chegasse a convencer-se de que a senhorita Kenwood não só era um pouco diferente, mas também muito pouco convencional e inclusive algo selvagem?
Não haveria outros parentes a quem enviá-la e resultaria muito perigoso tê-la ali. Não haveria mais remédio que romper todos os vínculos sociais e deixá-la seguir seu caminho. Seria a única decisão responsável para um irmão responsável.
Se asseguraria de que esse visconde concluísse que sua presença e influência naquela casa era totalmente inaceitável.
—Jane, quero que tome emprestados para mim alguns objetos dos criados. Dos homens concretamente.
Capítulo 3
Vergil pegou as botas limpas que oferecia Morton e as pôs. Aceitou o linho engomado e com destreza atou seu lenço com um nó conservador. Morton lhe sustentava o traje negro de montar.
Esses preparativos matinais eram uma rotina tanto em Laclere Park como em Londres, e Vergil os seguia de forma instintiva enquanto organizava em sua mente seus planos e deveres. Continuava se surpreendendo que não tivesse nenhuma dificuldade em abandonar certos detalhes ou hábitos quando as circunstâncias o requeriam.
Mal tinha amanhecido quando saiu pela porta e caminhou através do rocio até o estábulo. Preferia aquele silêncio, aquela solitária forma de cavalgar para romper o dia antes do circuito oficial que teria que fazer mais tarde com seu agente imobiliário. Era um dos poucos hábitos que tinha conservado de seus anos livres como segundo filho. Às vezes recuperava aquela crença juvenil nas oportunidades sem limites que permitiu então sua insignificância. Podia simplesmente ser, não o senhor vigiando seus domínios, a não ser unicamente um homem que cavalgava através do campo, admirando sua beleza e sonhando ao ritmo da vida.
Do estábulo chegavam sons. George, um moço do estábulo ruivo e rechonchudo, ria enquanto um moço mais jovem vestido com calças de montar e chapéu de palha murmurava alguma coisa. Juntos ajustavam as bridas a uma égua de cor castanha.
George ouviu as pisadas de Vergil e se virou ruborizado.
O menino mais jovem simplesmente ficou rígido. Vergil notou algo familiar naquelas costas esbelta, e se precaveu da forma peculiar em que as calças se esticavam sobre a curva das nádegas. Viu aquelas formas antes, emergindo nuas da água.
—Senhorita Kenwood, vejo que você também cavalga cedo.
Ela se voltou despreocupadamente, como se ninguém devesse se surpreender de encontrá-la nessa situação por usar calças de montar todos os dias. Talvez fosse assim. Quem podia sabê-lo? Pen, Charlotte e Dante provavelmente não sairiam de seus quartos até meio-dia.
—Pensei que seria agradável sair para cavalgar pela manhã. —Ajustou o freio como alguém que sabia o que estava fazendo.
—George se ofereceu a te acompanhar? Que cavalheiresco por sua parte.
—Tinha intenções de cavalgar sozinha.
—Bom, não podemos permiti-lo a uma hora tão inoportuna. Entretanto, pode cavalgar comigo. —Examinou a égua— Cometeu um engano, George. Se este animal for para a senhorita Kenwood, necessitará uma cadeira de mulheres. Depois pode preparar meu cavalo. Esperaremos fora.
Bianca caminhou para o pátio com ele. Ele retrocedeu um pouco na luz chapeada da manhã e percorreu um metro e sessenta e cinco de moléstia com seu olhar.
Sua camisa de algodão formava uma bolsa em torno de seu corpo, mas mesmo assim revelava o inchaço de seus peitos. As calças de montar penduravam folgadas de suas coxas até as botas, onde se introduziam, mas não eram folgadas em nenhum outro lugar. O chapéu de palha sobre sua testa enfatizava seus olhos.
Tinha todo o aspecto de uma mulher provocadora e de má reputação.
Caminhou para frente e golpeou a perna com o látego. O ligeiro picor o distraiu do impulso de… Nada que pudesse contemplar e sem dúvida nada que pudesse nomear.
—George demorará a preparar os cavalos. Volta para seu quarto e troque de roupa.
Ela baixou as pálpebras ante aquela ordem. Ele esperava que ela resistisse. Que demônios faria ele então? Ninguém debaixo de sua autoridade nunca o havia desafiado, e menos uma mulher. Por sorte, ela deu a volta e caminhou a grandes pernadas em direção à casa.
Ele retornou ao estábulo.
—A senhorita Kenwood cavalga sozinha frequentemente? —perguntou ao George.
George deu de ombros.
—Só estas últimas manhãs, milord. Ouvi um ruído aqui a semana passada e a encontrei selando essa égua, por isso a ajudei.
—E sua indumentária?
—Chegou com essa roupa esta manhã. Tem sentido, porque sempre cavalga escarranchada. É uma boa pessoa, só que com uma mentalidade um pouco livre para este lugar. São diferentes, os americanos. Falam como se o conhecessem de toda a vida. —inclinou-se para revisar uma ferradura.
—Sim, são diferentes. Não me deixe suspeitar que interpretou mal essa familiaridade.
George lançou um olhar de horror como se a insinuação fosse muito escandalosa para ser considerada. Vergil pegou as rédeas da égua e a levou até o pátio.
A senhorita Kenwood saiu da casa justo quando George tirava fora o cavalo castrado de Vergil. Levava uma bata de montar violeta de corte austero e com poucos adornos. Sobre seu penteado formal se encarapitava uma alta cartola, cuja borda roçava suas sobrancelhas.
—Onde tinha planejado cavalgar? —perguntou ele assim que estiveram montados.
—Oh, simplesmente queria dar um passeio pelos arredores.
Ele a conduziu através do parque. Ela não deixava de queixar-se por sua posição na cadeira de montar. Escorregava por ambos os lados olhando as pernas com o cenho franzido.
—Não está acostumada a isto?
—Não vivia nas margens da civilização. Também em Baltimore as mulheres fazem coisas horríveis e perigosas.
—Ali cavalgava escarranchada?
—Sim. —Olhou-o com atitude desafiante, depois sorriu de maneira zombadora— Tia Edith me proibia montar à inglesa a menos que avançasse a passo de tartaruga, e eu não me sentia inclinada a fazê-lo. Ela sabia de muitas mulheres que caíram da cadeira de montar quando cavalgavam rápido.
—E como reagia as pessoas quando cavalgava escarranchada através da cidade, com calças de montar e com botas?
—Se não fosse à sobrinha-neta de tia Edith, alguns teriam se escandalizado. Ninguém se atreve a atacá-la. Quando era moça participou ativamente em nossa guerra da Independência. Conhece todos os grandes homens daquela época. Se um presidente fizer visitas a uma mulher, ninguém se atreve a criticá-la muito.
—Parece uma mulher muito interessante. É uma lástima que não tenha te acompanhado nesta viagem.
—Se não fosse à idade, o teria feito. Estaria agora ali atrás, exortando George para que compreendesse que ele é igual aos outros moços e não deveria curvar-se ante ninguém.
—A Inglaterra não necessita radicais importados. Estamos criando muitos de produção própria. E não é que George se encurve. Retrocedeu porque sabe que levanta suspeitas sobre um homem o fato de que esteja a sós comportando-se de maneira tão familiar com uma dama jovem, especialmente a uma hora como essa.
—Já vejo. Entretanto, você é um homem e agora está a sós comigo, não? Isso é suspeito?
A insinuação o deixou desconcertado. O sorriso zombador da senhorita Kenwood era um indício de que não se achava ante uma escolar ingênua que permanecia ignorante sobre o que podia ocorrer entre um homem e uma mulher juntos e sozinhos durante horas.
—Sou seu tutor. É como se fosse seu pai.
Ela se pôs a rir a gargalhadas, melodiosas como o timbre de sua voz.
—Que o céu me ampare, senhor Duclairc. Com um pai como você teria me convertido na mais aborrecida das mulheres.
—Quer dar a entender que os pais aborrecidos criam filhas aborrecidas?
«Está insinuando que sou um homem aborrecido, uma espécie de bagagem molesta?» O desejo de demonstrar até que ponto podia deixar de ser aborrecido penetrou em sua mente desde que a tinha visto no estábulo.
—Não, senhor. Simplesmente acredito que os pais estritos criam filhas de mente muito estreita.
—Concluo que sua educação, menos ortodoxa, salvou-te de ter uma mente estreita.
Ela posou seus grandes olhos azuis nele durante um momento, observando-o como se fosse capaz de ver as noites e inapropriadas imagens que avançavam sigilosamente em torno das bordas de sua mente ao aludir impulsivamente essa indiscreta questão. O impacto daquele olhar nu foi tão assombroso como se ela acabasse de acariciar sua coxa.
—Tive experiências no mundo, senhor Duclairc, e por isso minha mente não é estreita. Quando meu pai morreu, minha mãe teve que manter-se e me manter, por isso voltou a cantar. Eu tinha onze anos então, e durante os seis anos seguintes vivemos uma vida errante, viajando uma grande parte do ano.
«Experiências no mundo.» Bianca devia ter dezessete anos ao morrer sua mãe, uma garota bonita viajando na companhia de uma mãe cuja profissão sem dúvida implicava tratar com homens.
—Minha opinião teria sido que o acertado seria te deixar com sua tia, em vez de te arrastar por cidades e povos estranhos.
—Ah, sim? Essa teria sido sua opinião? —Ela estava sugerindo que ele era tão previsível que essa opinião não a surpreendia absolutamente— Eu não teria insistido em ficar, não depois de perder meu pai. Minha mãe necessitava alguém que cuidasse dela. Não era uma mulher muito prática. Tocava-me assegurar que chegasse de um lugar a outro.
—Um estranho papel para uma menina.
—Não fui menina por muito tempo, e não é que estivesse planejado que me encarregasse dessas coisas. Simplesmente o fazia porque ela era muito torpe organizando as viagens.
«Não fui menina por muito tempo.»
—A vida deveria ser muito aborrecida quando foi viver com sua tia.
—Estava preparada. A morte de minha mãe acabou com minha vitalidade, e precisava estar um tempo instalada em um lugar para pôr as coisas em seu lugar. Só quando tia Edith contratou para mim um professor de música comecei a recuperar meu estado normal.
Vergil imaginava. Aquela menina precoce com sua mãe caprichosa, organizando o valor a ser pagos pelos concertos nas Igrejas e nos pequenos povoados. Os papéis estariam invertidos e aquela pequena garota loira se encarregaria de negociar pelo transporte e de administrar os recursos, emocionante, possivelmente, e sem dúvida uma experiência que a faria amadurecer.
Entretanto, não era uma infância normal. Não teve horas de brincadeiras despreocupadas e, provavelmente, tampouco teria amigos. Sem mais amparo, nem segurança que a que ela mesma pudesse procurar. Sentiu certa compaixão por ela e admirou sua força, apesar de que essa força prometesse ser um inconveniente.
Seu passeio distraído os levou até a parte sul do lago e deram a volta para retornar. A senhorita Kenwood parecia irritantemente indiferente ante o fato de achar-se no mesmo lugar onde no dia anterior foi tão indiscreta.
—Nossa família viveu aqui desde o tempo dos normandos — explicou ele, decidindo que devia impressioná-la com a história da família e prepará-la para os cuidados de Dante— Tanto nosso nome como o da fazenda provêm destas águas. «Lago claro.» Duclairc é uma junção de du clair lac, igual é Laclere.
—Tempos dos normandos. Naqueles tempos, os antepassados dos Kenwood provavelmente viviam em cabanas.
—Bom, o dinheiro tem seu modo de nivelar essas diferenças.
—Que ideia tão democrática, senhor Duclairc. Quase americana.
Ele entrou pelo caminho que conduzia para as granjas.
—Pode parar com isso. Já foi suficiente.
—Parar com o que?
—Senhor Duclairc.
—Não pretendia ofender. Tia Edith me fez prometer que não faria reverências a nenhum aristocrata, nem sequer ao rei.
—Seus diplomatas se adaptam aos costumes quando vêm a este país, como o fazem a maioria dos visitantes.
—Eu não sou uma diplomata. E tia Edith…
—Sim, sim, a revolução e tudo isso. Se se dirigir a mim como lorde Laclere conjura o fantasma de Washington, pode me chamar simplesmente Laclere.
—Que generoso por sua parte. Então possivelmente você poderia me chamar Bianca.
Ele preferiria não fazê-lo. Certamente. Inclusive aquela vaga familiaridade com essa jovem estava provocando sensações muito incômodas. Ela era sua pupila e logo poderia chegar a converter-se na esposa de seu irmão, e ele a encontrava exasperante, para falar de um modo delicado. Ao mesmo tempo, um atrativo e desconcertante fogo crescia em seu interior. Borbulhas em ebulição rompiam de vez em quando a superfície, pequenas explosões que não estava disposto a aceitar debaixo daquelas circunstâncias. Sob nenhuma circunstância. Chamá-la Bianca unicamente obteria que outra dessas borbulhas estalasse ao pronunciar seu nome.
—Acredito que isso seria muito familiar.
—Bom, então possivelmente Laclere também seja muito familiar. —Ela inclinou a cabeça— Já sei. O chamarei tio Vergil. Apesar de que disse que o fato de ser meu protetor o converte em uma espécie de pai, dizer «papai» soaria ridículo.
«Tio Vergil, por Deus.» Ele conseguiu olhar por debaixo da asa de seu chapéu e captou um fugaz sorriso. Estava brincando com ele deliberadamente e ele continuava mordendo a isca.
O pior era que suas provocadoras ambiguidades e seus olhares oblíquos a deixava com um ar mundano que tornava implacável aquele fervor que ele sentia.
—Tio Vergil, estamos perto da fronteira com Woodleigh?
—Está justo ao outro lado dessa colina. Pode ver a casa dessa cúpula. Você gostaria de subir?
Ela aceitou. A Vergil não passou despercebido que ela soube como encontrar o caminho mais simples sem necessidade de sua ajuda.
Bianca chegou até o topo da colina de onde se divisavam os principais campos de Woodleigh. A distância conseguiu ver a imponente mansão de inspiração clássica que Adam Kenwood construiu.
—É muito grande, não?
—Sim.
Ele respondeu em voz baixa, mas ela pôde ouvir um deixe de desaprovação. Muito grande. Muito. Essa enorme massa resultava vulgar, especialmente para alguém que acabava de ser renomado barão. Sua condição de novo rico se deixava ver dos alicerces até as chaminés. Vergil deveria ser amigo de Adam, ou do contrário seu avô não o teria renomado seu tutor, mas ao que parece isso não liberava aquele velho comerciante do julgamento desse aristocrata cuja linhagem se remontava à época dos normandos.
Ela não lamentava aquela censura. De fato, agradava-a. Embora Adam Kenwood tenha deixado em herança uma fortuna, ela o odiava de todos os modos. Se tivesse legado aquela casa a ela, a teria feito arder até seus alicerces. Ela sabia que ele cometeu um grande pecado, e não cabia dúvida de que muitos outros tinham escurecido sua vida.
Bianca baixou a colina a meio galope até os campos. Vergil chegou até seu lado quando se deteve frente à casa.
—Me ajude a desmontar, por favor.
—Senhorita Kenwood, seu primo herdou esta propriedade, e ainda não retornou da França. Deveria esperar que ele se instalasse aqui antes de fazer uma visita. A casa esteve fechada durante meses, e unicamente há uns poucos criados cuidando da propriedade.
—De fato, meu primo retornou há uma semana. Me ajude a baixar ou saltarei de um modo nada elegante.
A ajudou a descer do cavalo.
—Pretende entrar, verdade?
—Pode ser que Nigel, meu primo, tenha obtido a casa e as terras, mas os objetos privados de meu avô me pertencem. Quero ver como estão. Assim que explique quem sou e quais são meus direitos os criados me deixarão fazê-lo.
Ele aceitou sua decisão mais rápido do que ela esperava, e conseguiu que os deixassem entrar. Uma vez ali a acompanhou até o escritório de Adam Kenwood.
Bianca se deteve no centro da estadia e respirou o aroma da presença de seu avô. Um piso de madeira cobria a parte baixa das paredes, e um enorme escritório estava posto de lado em um canto. Havia prateleiras com pastas e grandes livros, mas outros documentos tinham sido amontoados em embalagens de madeira que se alinhavam ao longo de uma parede e rodeavam um pequeno baú.
Ela notou que Vergil a contemplava da soleira.
—Você o conhecia bem? —perguntou ela.
—Antes de construir Woodleigh tinha uma relação de amizade com meu irmão mais velho, Milton. Depois da morte de Milton, cheguei a conhecer Adam bastante bem.
—Nisso me leva vantagem. Eu sabia que era o avô da Inglaterra, mas meus pais nunca falavam dele. Ao me fazer maior me dei conta de que esse velho homem permitiu que meu pai vivesse na pobreza enquanto ele acumulava uma enorme fortuna. —Estendeu o braço para assinalar a luxuosa casa.
Vergil entrou na estadia e examinou as gavetas do escritório.
—Seu avô obteve muitos lucros da frota marinha e outros comércios. Durante as primeiras batalhas de Napoleão, seus navios fizeram um grande serviço ao Governo, e o rei lhe outorgou o título de barão. Como a maioria dos homens, ele pretendia que seu filho fosse um cavalheiro e planejava educá-lo para isso. Entendi que seu pai tinha outras ideias e por isso partiu para América.
—Acredito que não foi sua decisão ir a América o que fez que se distanciassem, mas sim a decisão de casar-se com minha mãe. Não era uma esposa adequada para o filho de um homem que lutava para abrir caminho na alta sociedade da Inglaterra.
Ele tirou uma pasta de uma gaveta e a folheou.
—Como já te expliquei, uma profissão como a de sua mãe não está bem vista aqui.
—Suspeito que não esteja bem vista em nenhuma parte. Minha mãe não estava tão má vista em parte por seu parentesco com tia Edith. Além disso, interrompeu sua profissão ao casar-se com meu pai. Ela dava aulas particulares, e ela conseguiu manter a casa com dignidade apesar das circunstâncias. Não foi suficiente para aquele velho homem.
Ele voltou a colocar a pasta em seu lugar e depois de uma inspeção mais atenta extraiu outra.
—Bom, ao final se lembrou de você.
—Desgraçadamente, o final chegou um pouco tarde.
—Ouço um deixe de amargura.
Havia um deixe de amargura. Até ela notou o ressentimento que podia ouvir em sua voz.
—Uma minúscula parte dessa herança teria economizado muitos pesares a minha mãe, e provavelmente até teria salvado sua vida. Morreu de uma febre da qual se contagiou enquanto viajávamos.
Ele levantou a vista da pasta como se ela houvesse dito algo particularmente interessante.
—Já vejo. Assim agora quer se vingar de Adam pela morte de sua mãe, usando sua fortuna para se converter em uma artista como a mulher que ele repudiou.
Aquela acusação lhe fez sentir uma pequena fúria dando voltas em sua cabeça.
—Você frivoliza meu propósito. Aspirava minha carreira como cantora de ópera muito antes de me inteirar dessa herança. —Observou de novo a estadia— Entretanto, agora que o diz, há certa justiça em usar o dinheiro desse homem para me converter precisamente no que ele desprezava.
—Parece mais uma brincadeira pesada que justiça. Antes que desfrute com sua brincadeira deveria te explicar que uma parte do que sabe sobre seu avô se apóia em um engano.
—Que engano?
—Pelo que ele me disse, estou seguro de que não rompeu relação com seu pai. Foi seu pai quem rompeu com ele.
—Não acredito.
—Pode acreditar no que quiser, mas isso era o que Adam recordava.
Aquilo estragou a brincadeira e a justiça. Provocou uma fratura no ressentimento que lhe gelava a alma, aquele ressentimento que tinha crescido em seu coração enquanto contemplava como sua mãe tossia e perdia a vida em uma hospedagem de aluguel nas margens do mundo.
—Disse isso a você só para que não o acreditasse frio e desalmado.
—Minha opinião não lhe importava muito.
—Então mentiu a si mesmo, para poder morrer sem culpa.
—Possivelmente.
Ela observou os documentos que havia na estadia. A verdade provavelmente estaria em alguma parte. Deveria procurar as cartas de seu pai. Inclusive podia haver algumas de sua mãe pedindo ajuda quando enviuvou.
Em realidade não deveria importar o que aconteceu, mas importava. Se ia construir sua vida ao amparo da riqueza daquele homem, queria saber se devia estar agradecida ou brincar com ele enquanto o fazia.
—Há algum modo de saber o que é o que me pertence do que há aqui?
—O advogado separou os papéis. Aquelas gavetas contêm os que são pessoais, enquanto as contas da propriedade estão nas estantes. —Assinalou o pequeno baú— Suponho que o que havia em seu escritório e outras coisas de valor estão ali sob chave.
—Quero ler esses documentos pessoais. Perguntarei a meu primo se posso o visitar e fazê-lo.
—Seria mais conveniente levá-los a Laclere Park. Ali poderá revisar o material a seu desejo. Me encarregarei da transferência.
—Estou segura de que meu primo não se importaria que revisasse os documentos aqui.
—Sim me importaria.
Ela o olhou diretamente aos olhos.
—Não tem sentido mudá-los duas vezes. Esperarei até que possam enviar-se a meu próprio alojamento em Londres.
Lhe devolveu o olhar.
—Não tem alojamento em Londres, e não o terá por muito tempo.
Ela não esperava que fosse tanto tempo, mas ele não se deu conta ainda.
—De acordo, para começar levemos isto a Laclere Park.
Quando abandonaram a casa, ela viu que ele ainda levava uma pasta. Ele notou seu olhar de curiosidade.
—Há aqui algumas cartas de meu irmão. Espero que não te importe que tome emprestada esta pasta para lê-las.
—Absolutamente. —Comoveu-a que quisesse fazê-lo. Era mais sentimental do que ela esperava— Quando seu irmão faleceu?
Ele a ajudou a montar o cavalo.
—Faz menos de um ano.
—Possivelmente haja mais cartas. Quando tivermos todo o material em Laclere Park, poderemos as procurar.
Enquanto passeavam com seus cavalos para os campos, um jovem loiro galopou para eles, saudando com o braço.
Parecia um modelo extraído de uma lâmina de moda, com o elaborado nó de seu lenço, seu alto chapéu de castor e seu moderno casaco.
O jovem desceu de seu cavalo e tirou o chapéu.
—Senhorita Kenwood! Que feliz coincidência vê-la outra vez. Pensar que se tivesse ficado mais um dia em Londres, como tinha planejado não a teria encontrado.
Vergil não se alterou por esse «outra vez».
—Você deve ser Nigel Kenwood, o primo de minha pupila. Eu sou Laclere.
—É um prazer o conhecer por fim, lorde Laclere.
—Teria o chamado se soubesse que residia em Woodleigh. Pensei que ainda estava na França. Minhas desculpas.
Nigel sorriu a Bianca. Pareciam-se um pouco. Seus olhos eram igualmente azuis e seu cabelo igualmente dourado. Um homem bonito decidiu, exceto as expressões de seu rosto sugeriam um temperamento instável.
—Levo aqui só uma semana. Revisar os assuntos de Woodleigh me manteve muito ocupado, mas agora minha vida está se estabilizando.
—Então deve visitar logo Laclere Park. Estou seguro de que as damas estarão encantadas. Há muito poucos rostos novos no campo.
—Obrigado. Farei.
Nigel sorriu de novo a Bianca com admiração. Bianca lhe devolveu um doce sorriso. Vergil sorriu muito fracamente aos dois.
Prestou a Nigel mais atenção da devida.
Graças a Deus Vergil era um homem inteligente. Ela não tinha nenhuma intenção de mentir, só estava semeando nele suficiente preocupação para que decidisse não expor sua influência a doce Charlotte.
Rechaçaram o convite de Nigel a um refrigério e retomaram seu caminho. Vergil se aproximou dela.
—Já tinha conhecido o novo barão. Não o mencionou.
—Não o fiz? Há uns dias cavalguei perto de Woodleigh e o encontrei. Pareceu-me correto parar e falar com ele, já que é meu parente.
—Mostrou-te Woodleigh?
«Entrou na casa? Esteve a sós com ele em sua casa?» A expressão dele permanecia tão cuidadosamente impassível que lhe deu vontade de rir.
—Sim, fez. Era a propriedade de meu avô, assim tinha curiosidade. —Em realidade só tinha visto os jardins, mas se sentiu contente consigo mesma por ter deixado o visconde dando voltas a uma nova ambiguidade.
—Acredito que era sua intenção desde o começo visitar Woodleigh para investigar o escritório de Adam esta manhã. Estou feliz de que tenha podido satisfazer esse desejo.
Ela não acreditava que ele estivesse feliz absolutamente. Parecia estar considerando o que implicava que ela visitasse Woodleigh com camisa e calças de montar sabendo possivelmente que Nigel não estava em Londres.
Ela concluiu que, em termos gerais, aquela manhã de passeio a cavalo tinha sido um êxito.
Tomaram um caminho de volta mais direto. Ela se sentia agora mais segura em sua cadeira de montar de mulher, galopou através do parque e não diminuiu o ritmo quando entraram no bosque. A rosada luz do sol penetrava entre os ramos, criando maravilhosas e imprecisas manchas enquanto ela avançava velozmente. Aquele efeito visual a distraía e se achava despreparada quando de repente, e de forma inexplicável, seu cavalo encabritou de um modo violento.
O entorno seguiu sendo impreciso, mas agora de um modo diferente. O chão e as árvores pareciam dar voltas enquanto ela lutava para recuperar o controle sobre o animal. Este estava como louco e se retorcia parado sobre as patas traseiras. A cadeira de montar não pôde sustentá-la. Caiu ao chão sobre seu estômago e recebeu um impacto que aturdiu seus sentidos.
Ainda mais espantoso foi o peso que imediatamente caiu sobre suas costas e os antebraços que sentia a cada lado de sua cabeça. Vergil estava em cima dela, cobrindo suas costas e sua cabeça com seu próprio corpo. Ela lutou contra ele indignada e abriu a boca para protestar.
Um estalo quebrou o silêncio da manhã. Vergil a pegou pelos ombros com firmeza e lhe deu a volta apoiando-a sobre o barro.
—Vigia seus disparos! —gritou ele encolerizado na direção do som. Com a mão direita apertava os extremos das rédeas e os dois cavalos relinchavam e faziam cambalhotas.
De repente não lhe importou que estivessem ridículos, escancarados juntos desse modo.
—Quem será que disparou?
—Caçadores furtivos, provavelmente procurando faisões. É muito audaz por sua parte usar revólveres em lugar de armadilhas. Só se atrevem a fazê-lo muito cedo na manhã. Estamos a vários quilômetros da casa e eles supõem que as famílias estão ainda na cama.
Ouviu-se um novo estalo. Desta vez ela ouviu um pequeno golpe como o de uma bola, contra a árvore que tinham à esquerda. Os cavalos encabritaram e quase conseguiram soltar-se. Vergil soltou uma maldição e voltou a gritar.
Ele continuava apertado contra ela, com todo seu peso sobre suas costas. Sua respiração fazia cócegas em sua nuca. O tecido de suas mangas roçava brandamente suas bochechas.
Ela não se sentia nada em perigo, a não ser segura e protegida do modo mais quente. A íntima proximidade acendeu nela uma ardente resposta. Respirou seu aroma a sabão e couro, e um estranho bater de asas a percorreu, do coração até o estômago.
—Agora pode entender por que não deve cavalgar a esta hora. É perigoso — disse ele.
—Você vai cavalgar.
—É diferente. —Ela sentia as palavras junto a seu ouvido, como se ele tivesse aproximado ainda mais a cabeça. Tinha-a abraçada contra o chão, o queixo dela se apoiava sobre as folhas e a terra. A cálida brisa de seu fôlego acariciava suas têmporas, fazendo que aquele bater de asas se voltasse furioso.
Ele se elevou, mas sem afastar-se completamente. Permaneceu sobre ela. Algo que não era capaz de nomear vertia dele para ela. Isso a assustou. O bater de asas se fez ainda mais forte e encheu seu peito.
Deu a volta e o olhou diretamente aos olhos. Ninguém em sua vida jamais cuidou dela de uma maneira tão… Explícita. Ao menos não de tão perto. Aquele olhar pareceu penetrar diretamente em sua mente e explorar sua vontade.
Já não se sentia segura e protegida. Mas bem o contrário. O bater de asas se multiplicou adquirindo um ritmo frenético e um zumbido que se apoderou de seu corpo e de seus membros. Os alertas de uma advertência. E excitação.
A tensão que refletia em sua expressão o fazia extraordinariamente atrativo. Incorporou-se, de joelhos, para lhe oferecer sua mão e ajudá-la a sentar-se.
—Se machucou ao cair?
Ela moveu as pernas com cautela.
—Só fiquei sem fôlego. Em realidade a queda não foi muito forte, mas estarei um pouco dolorida amanhã. —apressou-se a levantar-se— Como protetor é excelente, tio Vergil. Não haveria muitos homens dispostos a lançar seu corpo entre a bala de um mosquete e uma mulher que mal conhecem.
—Qualquer homem inglês de honra o teria feito senhorita Kenwood.
Fizeram os cavalos caminhar durante um tempo para que se acalmassem, depois cavalgaram os últimos quilômetros de volta a casa. Sua silenciosa companhia a incomodava e aquela estranha excitação ainda deixava ouvir seu murmúrio. Nos estábulos, ele se deixou cair do cavalo e foi ajudá-la a desmontar. Ela se deteve quando seus braços a alcançaram.
Ele notou sua vacilação. Seus olhos azuis se encontraram com os dela de uma maneira especial. Ela começou a respirar com dificuldade e se sentia incapaz de afastar o olhar.
Uns dedos fortes rodearam sua cintura e a deslizaram para baixo. Deu a impressão de que ele demorava muito em soltá-la, o momento pareceu prolongar-se enquanto ele a sustentava tão somente a escassos centímetros. A suave pressão de suas mãos e a cercania de seu corpo a fizeram tremer.
—Obrigado. Desfrutei muito do passeio a cavalo. —Ela recuperou sua compostura e deu a volta.
—Me alegro de que tenha desfrutado, especialmente já que é o último.
Ela deu meia volta para olhá-lo no rosto.
—Está dizendo que não poderei voltar a cavalgar enquanto esteja aqui?
—Naturalmente que pode, acompanhada e bem entrado o dia. Entretanto, pedirei aos moços que não voltem a te dar um cavalo tão cedo pela manhã, e a nenhuma hora se pretende ir sozinha. —Ele se expressou com tanta autoridade e tanta calma como sempre, mas ela sentiu crescer a tensão a seu redor— Não organizará mais encontros furtivos com seu primo Nigel. Poderá vê-lo quando ele vier aqui de visita, ou quando Penelope convidá-lo.
Encontros furtivos? Sua imaginação extraiu daquelas ambiguidades mais conclusões das que ela pretendia.
Continuou caminhando sem corrigi-lo.
«Deixemos que pense o pior.»
***
Vergil aproximou uma cadeira à cama, sentou-se nela e levantou sua bota para dar a seu irmão um bom empurrão no quadril.
Dante gemeu e cobriu os olhos com um braço. Olhou por debaixo deste, viu Vergil e voltou a resmungar com resignação. Deixou escapar um suspiro de irritação e se incorporou para apoiar-se contra a cabeceira.
—Bom dia, Vergil.
Vergil viu o peito nu de seu irmão e observou os dois copos e a garrafa de vinho vazia que havia sobre a mesa.
—Quase toda a noite com Marian suponho. Disse-lhe que deixe às criadas em paz, Dante. Não quero que ninguém as incomode.
—Um homem não molesta Marian; ele luta por sua vida. Mas o que acontece com você. Por mais que lhe goste. Não seria discreto por sua parte.
—Tampouco é discreto pela tua. A mulher que pretende se casar está na casa.
Dante apoiou a cabeça contra a cabeceira e sorriu.
—Ah, sim, a bela Bianca. Sua descrição não lhe fez justiça. É realmente uma coisinha doce e jovem, só que um pouco ingênua. É encantador ver como luta por imitar nossas formas.
«um pouco ingênua?»
—Acabo de dar uma longa volta com sua coisinha doce e jovem.
—A julgar pelo estado de seu casaco, parece que esteve derrubando pelo chão com ela.
—Alguns caçadores furtivos estavam atirando e acabamos caindo do cavalo. —Não era exatamente isso o que tinha acontecido, mas não fazia sentido explicar detalhes que suscitariam perguntas a respeito— Me alegra saber que a senhorita Kenwood te parece apropriada. Entretanto, devo te advertir que tem concorrência.
—Nada sério — disse Dante bocejando.
—Nem sequer ouviu de quem se trata.
—Confio em que não seja você.
Vergil lhe lançou um olhar mordaz que escondia um incômodo sentimento de culpa.
—Só estava brincando, Vergil — sorriu Dante— Está tão claro que não encaixam e que ela te odeia que não pude resistir.
A menos que ele se equivocou completamente ao interpretar as coisas quando estavam atirados no chão, se encaixavam de um modo estupendo e perturbador.
—Seu rival não sou eu, a não ser um homem com um título nobiliário.
Aquilo freou a alegria de seu irmão. Dante tinha uma suprema confiança em sua habilidade para tratar com as mulheres, mas dado que era o filho mais jovem dita habilidade não tinha por que traduzir-se na possibilidade de casar-se com quem quisesse.
—De quem se trata?
—De seu primo, Nigel Kenwood.
—O segundo barão de Woodleigh? Com seu título recém estreado e de pouca subida não impressiona a ninguém.
—A ela não importam as delicadas questões do nascimento e a fila, e eles são parentes, o qual significa que têm um vínculo natural. Eu acreditei que ele se achava na França, administrando a herança de Adam, mas temo que retornou antes do que eu calculava. A questão é que já está aqui e se estabeleceu como nosso vizinho. Suspeito que tinha a esperança de encontrá-la aqui conosco. Afinal, ela recebeu quase tudo o que não foi deixado à caridade. Suponho que ele acredita que tem algum direito a ela.
Dante não parecia exatamente preocupado, mas Vergil monopolizou sua atenção.
—O que sabe você desse primo dele?
—É o neto do irmão de Adam. Começaram juntos nos negócios, mas o irmão teve um problema financeiro e Adam comprou sua parte. O pai de Nigel não quis tocar o negócio, apesar de Adam lhe ofereceu participar. Nigel, por sua parte, decidiu fazer-se artista e viveu em Paris até alcançar sua maioridade.
—Um boêmio? Sejamos sérios, Vergil, não acredito que…
—Não é um pintor. É músico. Adam se gabou uma vez sobre o menino e seu pianoforte.
—Ah, bom. Um músico. Pequeno motivo para alarmar-se.
—A senhorita Kenwood também se dedica à música, assim é provável que sim haja um motivo para inquietar-se, e até para alarmar-se.
Dante elevou suas sobrancelhas ante essa nova fofoca.
—É cantor — explicou Vergil— Gosta da ópera. Assim Nigel tem um possível atrativo. Interesse em comum e um parentesco de sangue.
—Exagera as duas coisas. Estamos falando de casamento, não de uma relação amorosa. Tinham nossos pais interesses em comum? Você e Fleur têm algum interesse em comum?
Ele e Fleur tinham em comum os interesses mais básicos, mas aquele não era o assunto. Vergil ficou de pé.
—Bom, mais te vale atuar com rapidez. Eu tentarei evitar que Nigel faça visitas frequentes, mas não posso impedir sua entrada na casa.
Caminhou até a porta. A voz de Dante o seguiu.
—Bom, e agora, irmão mais velho, o quão rápido quer que vá?
Vergil deu a volta para olhar Dante. Imagens desse peito e esses braços nus abraçando Bianca estalaram em sua mente, incitando-o a uma reação desagradável. Durante um momento não respondeu, enquanto tentava desfazer-se das imagens e da ira. Aquele abraço seria inevitável. E necessário.
—Não chegue a desonrá-la —disse— E mantém suas mãos afastadas de Marian enquanto esteja nesta casa. Não quero que as damas se escandalizem.
Capítulo 4
Penelope visitou o escritório de Vergil aquela tarde, para lhe comunicar que tinha recebido uma carta no correio do dia dizendo que Fleur e sua mãe viriam de visita em um prazo de dez dias.
—Estarei fora na semana anterior, mas prometo voltar a tempo — a tranquilizou ele.
—Acredito que também convidarei alguns amigos de Londres — disse Penelope— Darei a Bianca à oportunidade de desdobrar suas asas.
—Não convide muita gente, Pen. E escolhe cuidadosamente.
—Há outra coisa, Vergil. Suspeito que Dante esteja começando a ter certa debilidade por ela.
Ele tentou concentrar-se no que Pen estava dizendo, mas sua mente estava absorta contemplando à senhorita Kenwood estendida sobre o chão e olhando-o com um rubor de surpresa que lhe enviava rajadas de calor através de suas veias. Suas mãos notavam sua feminina cintura uma vez mais e seu corpo lhe advertia o perigo da cercania ao ajudá-la a descer do cavalo. Um misterioso perfume de lavanda enchia sua cabeça.
—Não se preocupe Pen. Dante não se verá envolto em uma confusão sem dar-se conta.
—Não me preocupo com Dante. Bianca, entretanto, parece tão ingênua.
«Ingênua?»
—E Dante… Vergil, não sei se você é consciente, estou segura de que ninguém fala contigo sobre isto, vendo que é tão… Mas se rumoreja que é um mulherengo implacável.
Perguntou-se do que pensaria Pen que falavam os homens quando se reuniam depois de comer com uma taça de porto e uns cigarros. Passou anos recebendo brincadeiras pelas conquistas de seu irmão, e em mais de uma ocasião se viu obrigado a olhar de frente um marido irado.
—Inclusive Dante respeita as regras básicas. Se estiver interessado nela, estou seguro de que isso o honra.
Ela pestanejou atônita.
—Permitiria?
—Por que não teria que fazê-lo?
—Ela é muito ignorante das questões mundanas e se desiludiria terrivelmente quando soubesse a verdade a respeito dele.
—Não quero interferir, Pen. Deixemos que as coisas sigam seu curso. Se ele a conquista, terão que solucionar seus assuntos da mesma forma que todos os casais o fazem.
—Você pode dizer isso, mas eu sempre lamentei que ninguém tivesse me advertido a respeito de Anthony.
Ele quis fazê-lo, mas não o correspondia sendo tão somente um jovenzinho, especialmente com sua mãe viva e encarregando-se de tudo. Um moço não podia aproximar-se de sua irmã mais velha e informá-la de que o maravilhoso conde com quem estava disposta a casar-se tinha fama de libertino, e que as escuras alusões a seus pecados não eram das típicas.
Entretanto, alguém devia tê-la advertido, e ele recordava muito bem a infelicidade de sua irmã. A separação oficial do conde durante esses últimos cinco anos havia lhe trazido certa paz, mas a custa de sua reputação social e uma permanente solidão. A lembrança de que um mau matrimônio podia ser o inferno o fez sentir-se incômodo a respeito de Bianca, e desejou que Pen não tivesse trazido a conversa seu próprio matrimônio, sem amor e sem filhos.
Ela o olhou com feminino ceticismo.
—Manterei minha língua presa e observarei como se desenvolvem as coisas, mas se suspeitar que ele está jogando com ela, chamarei sua atenção severamente, Vergil. Isso é algo que não tolerarei.
—Faz o que acredite ser o melhor, Pen.
Ela saiu, e ele voltou a se concentrar na carta que estava lendo quando entrou.
Examinou o conteúdo outra vez. O maior problema de um segredo é que sempre reclama sua atenção no momento mais inoportuno. Tinha planejado ficar ali todo o tempo que Dante estivesse, mas agora não ia ser possível.
Saiu do escritório e se dirigiu a seu aposentos para dizer a Morton que empreenderia uma viagem depois de amanhã.
***
À tarde do dia seguinte Bianca se achava sentada no salão, dando golpezinhos com o pé de maneira impaciente. Esperava que logo se apresentasse uma visita. Infelizmente, aquele que anunciava o cartão que o mordomo entregou a Pen não era o mesmo que ela esperava.
Nigel entrou despreocupado, com um ar muito romântico graças a seu paletó parisiense tão estreito na cintura, seu cachecol escuro e seu cabelo despenteado que chegava ao ombro. Obsequiou Bianca um acolhedor sorriso de familiaridade enquanto Pen o recebia.
—Retornou recentemente de Paris — me disse Charlotte— Assim tem que nos contar tudo sobre Paris.
Nigel as entreteve amavelmente com algumas descrições das últimas modas. Bianca mal escutava, apesar de que seu primo virtualmente dirigisse a ela toda sua atenção. Ela estava atenta aos ruídos de outra chegada.
As portas se abriram, mas só para dar passo a Vergil e a Dante.
—Espero que seu propósito seja ficar em Woodleigh, ao menos durante o outono — disse Penelope.
—Essa é minha intenção.
—Logo vou ter umas visitas em casa, e conto com que se una a nós sempre que puder.
—É muito amável por sua parte. Visitava meu tio-avô com pouca frequência, assim sou virtualmente novo neste lugar.
—Não passou muito tempo na Inglaterra estes últimos anos, verdade Kenwood? —perguntou Vergil.
—Preferi Paris. Encontro que a cultura ali é de superior qualidade. A vida artística é muito rica.
—Você tem interesse nas artes? —perguntou Penelope— Então desfrutará com os convidados em minha festa. Sua prima, sem ir mais longe, é uma artista excelente. Canta como um anjo e teve a gentileza de entreter Charlotte e a mim em mais de uma ocasião.
A expressão de Nigel mostrava um educado interesse, mas também ia carregada de um matiz condescendente. Bianca supôs que devia ter conhecido muitas mulheres jovens cujos amigos acreditavam que cantavam como anjos.
—Nos deixe convencê-la para que cante agora — disse Charlotte— Vergil e Dante nunca a ouviram.
—Será uma honra acompanhá-la — ofereceu Nigel— Sou bastante aceitável com o pianoforte.
Bianca se sentia um pouco encurralada. Ela só tinha entretido Penelope e Charlotte com canções populares de salão, e não pode praticar seriamente durante as últimas duas semanas. Ao mesmo tempo, a oportunidade de cantar, inclusive embora não pudesse dar o melhor de si mesma, excitava-a.
Todos foram ao salão de música e Nigel ocupou seu lugar frente ao pianoforte.
—Meu repertório de canções populares é limitado — advertiu ele, dando-se certa importância.
—Possivelmente então tenha mais sentido uma ária.
Ele levantou o olhar agradavelmente surpreso. Ficaram de acordo em interpretar uma de Mozart, uma que ela tinha estado estudando justo antes de deixar Baltimore. A perspectiva dessa pequena atuação acelerou seu coração.
Os outros se colocaram em bancos e em cadeiras. Nigel começou a tocar para introduzir a peça.
Com o som das notas o espírito de Bianca imediatamente renasceu. Não precisava conter sua voz como quando praticava escalas em seu quarto. Não era o frio isolamento que tinha experimentado quando escapulia longe para cantar no campo. A alegria que sentia ao deixar sair sua voz com força dava cor aos sons.
As reações de sua pequena audiência produziram uma espécie de poder.
Penelope permanecia aniquilada, Dante encantado, Charlotte confusa, e Vergil fortemente interessado. Ela olhou Nigel e o viu dar sua surpreendida aprovação. Sua destreza com o pianoforte era considerável, e ela tinha a sensação de que ele sabia que o público apreciava essa destreza.
Ao terminar, a sala estava tão silenciosa que ela podia ouvir o zumbido dos insetos através da janela aberta. Ela desfrutou daquele momento de torcida euforia e depois relaxou.
—Foi assombroso, querida prima — disse Nigel com serenidade— Esteve estudando a sério.
—Surpreendeu a todos, Bianca — disse Penelope— E sua interpretação foi magistral, senhor Nigel. Já vejo que a música é um interesse sério para você.
—Não um interesse, a não ser uma paixão. —Seus olhos procuraram os de Bianca com um brilho trêmulo que parecia indicar que ambos compartilhavam um segredo que os outros jamais entenderiam.
—Deve me prometer que tocará para meus convidados. Possivelmente também poderemos persuadir Bianca para que cante. Será uma noite maravilhosa.
—Será uma honra para mim.
Ele começou a preparar-se para sair, rogando a Penelope que visitasse logo Woodleigh. O mordomo entrou antes que Pen o chamasse, com um cartão de visita.
—Acaba de chegar um homem, minha senhora. Deseja ver a senhorita Kenwood.
Penelope examinou o cartão e elevou as sobrancelhas ao entregar-lhe a Bianca. Antes de lê-lo, ela já sabia de quem se tratava.
O visitante que tinha estado esperando por fim tinha chegado.
—É um assunto de negócios, Penelope. Há algum lugar onde possa me entrevistar com ele a sós?
—Leva-o a meu escritório — indicou Vergil ao mordomo— A senhorita Kenwood poderá atender ali seus negócios.
Bianca se despediu de Nigel e depois se apressou a ir ao escritório, sentindo ainda a alegria do canto.
Nunca esteve no escritório. Estava orientado ao norte, e a luz se filtrava através das janelas góticas iluminando fracamente a escura mesa de madeira, as paredes cheias de livros e as paisagens de aquarela.
Seu visitante aproximou uma cadeira à janela.
—Senhor Peterson, estou encantada de que tenha vindo.
—Senti alívio ao receber sua chamada, senhorita Kenwood. Ao ver que não ia a nossa última entrevista fiquei preocupado.
—Lorde Laclere me encontrou e pôs em marcha outros planos para minha visita a seu país.
Ela se sentou em um assento acolchoado junto à janela. O batente era muito largo. Continha uma coleção de curiosos brinquedos. Um era uma catapulta feita de madeira e cadeias. Outro, uma carruagem de madeira e couro. Um terceiro não parecia ser nada em particular, tão somente um conjunto de rampas estriadas entrelaçando-se entre si, decorado com corrente e rodas.
O tipo de construção era algo rudimentar. Ela supôs que se tratava de objetos que Vergil tinha fabricado quando era menino. A ideia de que o sério e formal visconde guardasse lembranças de sua infância em seu santuário íntimo era adorável, embora se sentisse incapaz de imaginar de menino um homem como aquele.
O senhor Peterson era um homem de meia idade, pálido e calvo, com uns olhos cinza que podiam parecer sagazes ou respeitosos segundo as circunstâncias. Quando ela o visitou em Londres pela primeira vez, seu lado perspicaz tinha entendido rapidamente que embora ela não pudesse pagar seus honorários naquele momento, tinha expectativas que resolveriam as coisas adequadamente.
—Examinou o testamento? —perguntou ela.
—O fiz. Tive uma entrevista com o advogado de seu avô. Ele pareceu surpreender-se de que tivesse me encarregado o assunto, mas cooperou até onde estava obrigado a fazê-lo. Não mais, entretanto.
—E que conclusões tirou? Posso me liberar do domínio de lorde Laclere?
—Se ele não se ocupasse de você, ou houvesse alguma evidência de fraude, seria possível fazer algo a respeito, mas a Corte não permitiria a independência que você está procurando. Se o visconde não fosse seu tutor, outra pessoa seria nomeada em seu lugar. Com um homem de sua categoria, qualquer abuso de sua posição teria que ser realmente terrível para que se pudesse levar ante a Corte.
Ela se sentiu furiosa ante a decepção. Aquele brinquedo inútil captou sua atenção e viu uma pequena bola de chumbo em sua base. Refletindo a respeito de qual seria sua próxima estratégia com Vergil, pegou distraidamente a bola e a soltou sobre a rampa superior. Começou a rodar costa abaixo, de uma rampa a seguinte, de um lado ao outro, pondo em movimento várias pequenas rodas e polias cada vez que seu peso mudava de nível.
—Senhorita Kenwood, não se trata de uma situação permanente… Será menos de um ano. Você é uma moça e rica, e é compreensível que seu avô tenha querido protegê-la para evitar que seja vítima de algum caçador de fortunas sem escrúpulos.
—Quanto de rica?
—Perdoe? Supunha que você sabia.
—Sei em termos gerais. Mas exatamente a quanto ascende minha fortuna?
—Os ganhos pelo fundo de dinheiro investido sobem ao menos a três mil libras este ano.
—Essa quantidade por si só já é uma fortuna, e muito mais do que necessito para meus planos.
—Seu tutor dirigirá essa soma, subministrando os recursos de acordo com as necessidades que você tenha e os gastos que deva cobrir. Ele tem a obrigação de ser razoável em relação a seus pedidos.
Ela duvidava que Vergil fosse tão razoável para lhe dar várias centenas de libras que a permitissem escapar para Milão. Se ele controlava seus ganhos, controlava também seus movimentos. Em definitivo, controlava sua vida.
—Quanto à outra parte de sua herança, tudo resulta muito mais complicado — disse o senhor Peterson, continuando com seu relatório.
—Que outra parte?
—Seu avô era um homem de negócios. Para o final de sua vida vendeu a maioria deles. Entretanto, conservou três sociedades. Duas eram pequenas parcelas de companhias de transportes, e a terceira era a maior parte de uma companhia de algodão em Manchester. Também foram legadas a você suas ações nesses negócios, menos dez por cento das da fábrica, que foram cedidas ao seu primo.
—Entretanto, o visconde também é meu administrador. Ele dirige esses investimentos.
—As ações nessas sociedades não são parte dos investimentos permanentes, como sim o são os recursos de investimento. Se você se casar ou se faz maior de idade, ele deverá renunciar ao controle sobre elas. De fato me surpreende que ele não tenha vendido esses negócios. Representam uma ameaça para sua riqueza. Se algo sair mal, todos os proprietários são responsáveis pelas dívidas incorridas.
Aqueles negócios em realidade não lhe interessavam muito, a menos…
—Também há ganhos que provêm desses negócios?
—O advogado não esteve disposto a me permitir ver os documentos. Eu acredito que a fábrica deve dar lucros.
—E o que ocorre com esses ganhos?
—Vão para seu administrador, que presumivelmente os investe em mais investimentos. Ou se não, são enviados ao seu tutor.
Que era a mesma pessoa. Administrador. Tutor. Qualquer que fosse o lugar para o qual se desviava a conversa acabava indo parar em Vergil Duclairc.
—Senhor Peterson, eu gostaria que você estivesse presente enquanto falo com lorde Laclere. A situação que criou é intolerável. Estou prisioneira aqui.
Ela chamou o mordomo para que solicitasse a presença de Vergil. O senhor Peterson pareceu muito incômodo ante a ideia dessa entrevista. Quando Vergil entrou pela porta, o respeito havia superado a suspicacia naqueles olhos cinza, e a calvície daquele homem mostrava pequenas gotas de suor.
—Lorde Laclere, este é o senhor Peterson. Ele é meu procurador.
Vergil examinou friamente o advogado com um gesto aristocrático de aborrecimento. O senhor Peterson se desfez em um molho de nervos. Bianca lutou contra o impulso de bronquear com ele para que se comportasse como um homem.
Vergil posou sobre ela um olhar muito sério.
—Não sabia que tinha contratado um advogado, senhorita Kenwood.
—Foi uma das primeiras coisas das que me ocupei ao chegar a Londres.
—O advogado de seu avô, ou o meu, ou inclusive eu pessoalmente, teríamos lhe explicado gostosamente algo que precisasse saber.
—Pensei que era melhor ter meu próprio representante e decidir por mim mesma o que era o que precisava saber.
—Confio em que o senhor Peterson tenha satisfeito do toda sua curiosidade.
—Quase tudo. Falou-me a respeito das ações de negócios que herdei e sugeriu que você deveria as ter vendido, para maior segurança.
—Eu não o expressei dessa maneira milord — se apressou a esclarecer o senhor Peterson— Só lhe expliquei as leis em relação às responsabilidades financeiras dos sócios.
—Como deveria fazer com um cliente. Estou obtendo informação sobre o valor das ações. Como administrador seria irresponsável por minha parte as vender a um preço muito baixo. Houve várias propostas em relação à venda que terei em consideração quando estiver em melhores condições para julgar se forem justas. Entretanto, estas coisas levam seu tempo. É difícil obter informação honesta dos gerentes e dos outros proprietários.
—Excelente milord. Justo o tipo de prudente supervisão que alguém esperaria. Acredito que é evidente que tudo está em perfeita ordem, senhorita Kenwood, e que é você afortunada pelo fato de que lorde Laclere se faça cargo de…
—Quando se recebem os benefícios das companhias? —perguntou ela.
Uma paciência de aço controlou a mandíbula e a boca de Vergil.
—Se houver benefícios, as companhias os pagam uma vez ao ano. Serão reaplicados em recursos do Governo.
—E os recursos de investimento por eles mesmos deram lucros desde a morte de meu avô?
—Sim, deram.
—E essa parte dos benefícios foi também reaplicada?
—A maior parte.
A maior parte, mas não toda.
—Senhor Peterson, seria tão amável de me esperar na biblioteca?
O senhor Peterson estava encantado de fazê-lo. Quase tropeçou ao retirar-se apressadamente.
Bianca ocupou uma cadeira frente à Vergil.
—Quero que arrume as coisas para que os ganhos fiquem a minha disposição.
—Não tenho nenhuma intenção de fazer isso.
—Trata-se de minha herança.
—Inclusive embora fosse a mais sensata das jovens, não estaria cumprindo com meu dever se te deixasse dispor desse dinheiro. O certo é que confessou ter propósitos que me converteriam em um conspirador de sua ruína. É totalmente impossível.
—O senhor Peterson me explicou que se espera que um tutor seja razoável em relação a esses recursos.
—Com uma parte é suficiente para cobrir suas necessidades. Os lojistas só têm que me enviar suas faturas. As costureiras e outros profissionais que atendem às mulheres estão acostumados a isso. A menos que haja algum gasto exagerado por sua parte não precisamos voltar a falar disto.
—Dado que não há costureiras nesta casa não corro o perigo de ser acusada de nenhum gasto exagerado.
A expressão dele se suavizou um pouco.
—Minhas desculpas. É obvio que você gostaria de desfrutar dos frutos de sua enorme fortuna. Pedirei a Penelope que te leve a Londres dentro de umas poucas semanas.
—Obrigado. Entretanto, necessitarei um pouco de dinheiro para gastos menores agora. Tenho que comprar uns poucos artigos de natureza pessoal.
Tal como ela esperava, a palavra pessoal o impediu de seguir investigando. Abriu uma gaveta do escritório.
—Espero que vinte libras seja suficiente — disse ela.
—Isso é muito dinheiro para gastos menores, senhorita Kenwood.
—Usarei uma parte para pagar o senhor Peterson.
—O senhor Peterson pode me enviar sua fatura.
—Prefiro que não o faça. Prefiro que recorde quem o contratou. Tampouco me parece correto lhe pedir que aguarde minha herança.
Vergil tirou vários bilhetes da gaveta e os colocou em uma pilha sobre o escritório. Caminhou para ela, sem poder ocultar por mais tempo sua irritação. Ela com muita dificuldade pôde evitar encolher-se de medo ante a autoridade que emanava dele.
—Não estou acostumado a discussões abertas sobre assuntos de dinheiro, e muito menos com mulheres. Não estou disposto a tolerar perguntas que impliquem dúvidas a respeito de minha honestidade e minha capacidade na hora de administrar seu patrimônio, e menos diante de um homem que não conheço.
Ele se inclinou e se agarrou aos braços da cadeira. Ela se encolheu contra o respaldo, afastando-se das faíscas que brilhavam em seus olhos, tão somente a umas polegadas de seu rosto.
—A questão é senhorita Kenwood, que agora mesmo o tio Vergil está pensando que sua desrespeitosa pupila merece uma boa surra.
Os lábios dela se abriram com indignação. Ele saiu disparado e se afastou a grandes pernadas até a porta.
Logo que ele saiu, recolheu os bilhetes e se reuniu com o senhor Peterson. Entregou-lhe dez libras.
—Isto é em pagamento por seus honorários e gastos até o momento. Quero que você guarde o que sobre e abra uma conta para mim no banco. Use seu próprio nome se for necessário.
—Seguro que lorde Laclere terá uma conta onde se possam fazer remessas bancárias.
—Quero ter minha própria conta, e não quero que ele saiba. Me escreva informando quando estiver feito. Também quero que faça averiguações a respeito dessas ofertas para a compra das ações das companhias.
—Se insistir, verei o que posso averiguar. Devo lhe escrever aqui?
—Sim. Não acredito que o visconde me deixe ir muito longe durante um tempo.
Provavelmente não até que se casasse ou fizesse vinte e um anos.
Ela não tinha intenção de fazer o primeiro e tampouco de esperar o segundo. Se o senhor Peterson conseguia os nomes das partes interessadas nas sociedades, ela poderia conseguir o dinheiro necessário para ir à Itália, apesar do obstáculo que representava Vergil Duclairc.
***
Vergil com muita dificuldade conseguiu acalmar sua fúria depois da surpresa de encontrar-se com o senhor Peterson, quando outra visita inesperada chegou à última hora da tarde. Adrian Burchard, um dos amigos de Vergil, entrou em seu escritório, graças a Deus o distraindo das insistentes e eróticas imagens de uma Bianca Kenwood domesticada.
—Fazia muito tempo que não nos víamos Burchard — disse Vergil, lhe dando boas vindas.
—Se passasse algo mais que uns poucos dias em Londres cada vez que vai, não teria sido tanto tempo. Onde esteve metido? —Os escuros e exóticos olhos de Adrian não pareciam estar esperando uma resposta interessante.
E tampouco a conseguiu. Vergil assinalou o escritório.
—Temo que os assuntos familiares me tiveram a maior parte do tempo ocupado. —O conteúdo da afirmação era certo, mas não o gesto que a acompanhou e suas implicações. Não tinha passado em Laclere Park mais tempo que em Londres.
Dentre todos seus amigos, Burchard era o mais capaz de precaver-se dos silêncios.
—Com frequência escapei ao norte, à propriedade que tenho ali. Aí não tenho que me comportar como um visconde — acrescentou Vergil precisamente para romper o silêncio— É uma sorte que tenha cavalgado até aqui para me liberar de ter que exercer de visconde esta tarde.
—Lamento te dizer que esta não é uma visita social. Demos um passeio e te explicarei.
Cheio de curiosidade, Vergil o acompanhou até o princípio do caminho que dava a casa. Adrian o conduziu até o lugar onde outro caminho assinalava o fim da propriedade. Ali, à sombra de uma árvore, esperava um carro.
Um homem mais velho com um proeminente nariz farpado estava sentado em seu interior.
—Podia ter me avisado de que havia trazido Wellington contigo.
O duque o ouviu por acaso.
—Pedi que o trouxesse sem anunciar minha presença, e Burchard cumpriu com sua missão ao pé da letra.
—Sua excelência nos honra com esta visita.
—Não é uma visita, por isso pedi a Burchard que te trouxesse até aqui. Não pretendo ofender sua irmã, Laclere. Simplesmente hoje não tenho tempo para bate-papos de salão. —Fez um gesto com sua bengala — Este parece um caminho agradável e sombreado. Façamos um pouco de exercício.
Vergil começou a caminhar, com Adrian a seu lado. Adrian se converteu no protegido de Wellington. O mecenato daquele grande homem lhe proporcionou um lugar na Câmara dos Comuns como terceiro filho do conde de Dincaster.
Durante uns minutos se ouviu o rítmico ruído das botas contra o chão. O duque não tentou cobri-lo com elogios ou frases de rigor.
—Vim tratar de um tema delicado — disse por fim— Não há uma boa maneira de abordá-lo, assim irei direto ao ponto. Vim fazer umas perguntas sobre a morte de seu irmão. Sempre sinto curiosidade quando um homem morre por causa de uma ferida de bala disparada por si mesmo de forma acidental. Sou consciente de que não é fácil que isso ocorra. Quero saber se no caso de seu irmão não foi um acidente a não ser um suicídio.
Vergil dirigiu a Adrian um olhar ressentido, e este respondeu negando sutilmente com a cabeça. A evidência de que Adrian não tinha sido desleal ou indiscreto acalmou seu aborrecimento.
—Sim. Unicamente a família e uns poucos amigos sabem.
—Aprecio sua confiança em minha discrição, mas receber a confirmação de minhas suspeitas não me dá nenhuma satisfação. Me diga, alguma vez se expôs que resulta estranho que tenhamos tido dois suicídios de pessoas importantes durante a mesma semana? Seu irmão e o de Castlereagh.
—Meu irmão era propenso a crises de profunda melancolia. O ministro de Assuntos Exteriores estava desequilibrado. Foi uma coincidência.
—Laclere, não estou convencido de que foi uma coincidência. Existe alguma possibilidade de que seu irmão tenha sido vítima de uma chantagem? Você achou alguma prova neste sentido? Pergunto porquê há indícios de que Castlereagh sim foi.
—Acreditava que essas suspeitas tinham sido enterradas. Por você.
—Considerando sua posição dificilmente podia deixá-lo assim. Aquele homem era vítima de delírios, assim que concedi a ele pouca credibilidade. Entretanto, as últimas vezes que o vi me disse algo sobre uma carta. Aludiu a seus temores de ser convertido no alvo de um escândalo.
Um escândalo. Vergil suspeitava onde iria parar aquilo e não queria ir por esse caminho.
—Como você disse, era vítima de delírios.
Wellington deu cinco passos antes de reatar a conversa.
—O autor da carta afirma ter provas de certa atividade criminosa.
Vergil se deteve, forçando Adrian e Wellington a fazê-lo também.
—Assim depois de meses de reflexões esse detalhe me permitiu fazer algum tipo de conexão com meu irmão?
—Laclere, o deixe terminar — disse Adrian.
—Nem pensar!
—Compreendo sua ira, Laclere. Asseguro que a única conexão que vi foi a dos dois suicídios, um dos quais pode ter sido resultado de uma chantagem. —A voz de Wellington cobrou severidade— O pergunto outra vez, tem alguma razão para suspeitar que seu irmão pôde ter sido também vítima de uma chantagem? Para que não sinta a tentação de mentir em altares de proteger seu nome, me deixe lhe dizer que acredito que outras pessoas estão sendo vítimas agora, esse acidente de caça de lorde Fairhall em maio não foi o que parece, e teremos mais desastres e mortes se não chegarmos até o final deste assunto.
A fúria de Vergil se fez mais intensa. Não foi pelo tom severo do duque. Esteve pensando naquele segredo durante quase um ano, perguntando-se se as coincidências e as conexões que ele mesmo suspeitava não eram mais que seus próprios delírios.
—Sim, acredito que Milton estava sendo chantageado. Acredito que é por isso que se matou. Ele deixou uma carta. Encontrei-a entre seus papéis, onde ele sabia que eu procuraria para me ocupar dos gastos da fazenda. Aludia a uma traição, se era a ele ou a outra pessoa não sei. A maior parte da carta falava da família, e de que seria melhor que ele saísse de cena antes que nos arruinássemos. Eu quis acreditar que se referia às finanças, que estavam em uma situação péssima então. Entretanto, estive me perguntando se não o tinham obrigado a escrever essa carta.
Sentaram-se sobre o tronco de uma árvore caída enquanto ele contava sua história. Wellington fazia desenhos na terra com sua bengala enquanto escutava.
—Suponhamos que em ambos os casos houve uma chantagem. O objetivo era que morressem? —perguntou Adrian.
—Essa é a questão, não? —disse Wellington.
—No caso de meu irmão a razão da chantagem só podia ser para tirar dinheiro. Não havia nenhum modo de que alguém soubesse que não podia pagar. Nossa situação financeira não era óbvia. Ele gastava como se não houvesse um problema.
—Normalmente, se supõe que o único que quer um chantagista é sangrar sua vítima. Entretanto, o momento que estamos vivendo… Tivemos provas de que há radicais tentando assassinar membros do Governo e da Casa dos Lordes. A situação, portanto é propícia para provocar problemas deste tipo.
—Meu irmão não se destacava no Governo.
—Tinha interesse na política.
—Um interesse teórico.
—Um interesse teórico radical. Isso deve tê-lo levado a contatar com homens que defendem a violência e que poderiam enredá-lo, e através dele outros — disse Wellington — Ele deve ter se comunicado ou associado inocentemente com homens desses, só para que logo usassem essa conexão contra ele mais tarde.
O comentário pendurava no ar, mendigando uma resposta. O duque tinha articulado claramente os próprios temores de Vergil a respeito da morte de Milton.
—Você encontrou cartas que demonstrassem uma relação de amizade entre seu irmão e o ministro de Assuntos Exteriores? —perguntou Wellington.
—Não as busquei. —Era mentira. Uma maldita mentira. Entretanto, não podia permitir que a hipótese se convertesse em um fato tão facilmente.
—Possivelmente deveria fazê-lo.
—Estive procurando em outras direções. Não acredito que haja uma conexão direta entre essas mortes, exceto possivelmente pelo mesmo chantagista. Estou mais interessado em encontrar esse homem que em averiguar quão pecados ele descobriu.
—Assim que essa é a razão pela que não esteve muito em Londres e tampouco aqui — disse Adrian— Progrediu algo?
—Um pouco. —Condenadamente pouco considerando quanto de seu tempo e de sua vida investiu nisso.
—Não há nada que eu possa fazer a respeito, salvo observar o comportamento dos homens e me perguntar se estão preocupados — disse Wellington— Tenho razões para pensar que vários estão. É uma ideia horrenda, a de que alguém esteja desentranhando segredos e usando-os para intimidar ou extorquir seus amigos. E o pior é que esses homens andam tão escassos de dinheiro que tiram a vida para escapar.
—E você, Burchard? Qual é seu interesse nisto, ou só veio hoje para organizar um encontro privado com Sua Excelência? —perguntou Vergil.
Wellington respondeu enquanto os três se levantavam para retornar até o carro escondido.
—Ele está fazendo algumas discretas averiguações para mim sobre lorde Fairhall. Dado que você sabe que é um homem de confiança espero que compartilhe com ele algo que averigúe para que possamos resolver este assunto de uma maneira rápida.
—É obvio.
Era outra mentira descarada. Adrian era um amigo, e tinha experiência tanto em investigações como em discrição, mas Vergil não tinha intenção de revelar o que descobrisse a ninguém se isso podia repercutir negativamente em Milton ou na família Duclairc.
Ele suspeitava que assim seria por todas as razões que cuidadosamente evitou discutir.
Capítulo 5
—Vê o que quero dizer? —sussurrou Charlotte.
Estava sentada junto à Bianca no salão enquanto os convidados chegavam à festa.
Vergil se achava de pé ante o suporte, conversando amavelmente com Fleur e sua mãe, a senhora Monley. Tinham chegado justo depois do meio-dia, em uma magnífica carruagem.
—Nada — murmurou Charlotte, sacudindo a cabeça— Não… Bom, não sei… Sua atitude. Vergil poderia perfeitamente estar falando comigo e Fleur com seu pai.
Sentada do outro lado de Charlotte, Diane Saint John, uma das amigas mais queridas da condessa, dava golpezinhos na mão. Seus olhos cheios de sentimento se voltavam risonhos quando olhavam para o suporte.
—Eu não me preocuparia com seu irmão ou a senhorita Monley. As coisas nem sempre são o que parecem nestes assuntos. Os vê estupendamente juntos, não? Um bom casal.
Sim faziam um bom casal. Fleur era toda cortesia e elegância, alta e magra, com a pele de alabastro e o cabelo escuro. Os cachos caíam de um coque decorado com lacinhos, emoldurando seu rosto ovalado que levava no centro uma boca franzida como uma rosa. A Bianca parecia uma pessoa inteligente, de voz suave, cujos olhos marrons estavam atentos a todos os detalhes.
Bianca experimentou uma vaga decepção ao notar que Fleur não a desagradava instantaneamente, ao mesmo tempo em que sentia uma inexplicável pontada de melancolia cada vez que olhava ao grupo junto à lareira.
—Tenho medo de que Vergil esteja se sacrificando por sua fortuna — disse Charlotte— Parece contente de vê-la, mas tendo em conta que sua família deixou Londres há oito semanas e, entretanto, estiveram separados todo este tempo…
—Isso não sabe — disse a senhora Saint John— Pode ser que quando ele não está aqui nem em Londres vá visitá-la.
—Eu acredito que não. A maioria das vezes vai a seu imóvel de Lancashire. Diz a seus agentes, a Pen e a instrutora que vem ficar comigo onde podem encontrá-lo. Se não se tratasse de Vergil, qualquer um poderia suspeitar que vai visitar uma mulher ali. Alguém que ama, mas com quem não pode casar-se.
Bianca se meteu de repente na conversa olhando fixamente Charlotte com uma expressão triste.
—Sugerir isso é escandaloso.
—Tenho entendido que esse tipo de coisas é muito habitual. Pen inclusive me insinuou que devo esperar que meu marido tenha outras relações de vez em quando.
A senhora Saint John baixou as pálpebras.
—Acredito que muita gente foi indiscreta quando fala ao seu redor, Charlotte.
Bianca viu que a senhora Saint John não havia dito que Charlotte estava equivocada, ou que sua ignorância a tivesse levado a interpretar mal as palavras de Penelope.
—Bom, isso explicaria muitas coisas. Para começar aquilo. —Charlotte fez um gesto com a cabeça em direção ao suporte da lareira— A demora em anunciar o compromisso formal por outro. Com sua beleza e sua riqueza ela não tem por que estar o esperando. O estranho é que a Fleur não parece importar que as coisas estejam assim. É sua mãe quem se impacienta.
Sim, sua mãe estava se impacientando. Os olhos da senhora Monley eram os mais iluminados pelo fogo da lareira. Seguia a conversa de sua filha com um encantador sorriso e um movimento de cabeça que dava à pluma de seu turbante de seda e cordões um inquisitivo ângulo.
—A noite promete alongar-se. Deveria se retirar para descansar — disse uma voz masculina.
Bianca afastou sua atenção da lareira para ver que Daniel Saint John se uniu a elas e se dirigia a sua esposa. Aquele homem atrativo que podia deslizar rapidamente de uma passiva frieza a uma atenção intensa, enfocava esta agora no que mais o interessava.
—Daniel se mostra muito protetor comigo quando estou em estado — confessou Diane com um sorriso— Depois de dois filhos, querido, já não sou tão frágil.
—De todos os modos, é necessário que descanse. —Ofereceu-lhe a mão para acompanhá-la.
A Bianca não passou despercebido o olhar que trocaram. Ternura, humor e uma absoluta devoção fluíam nesse fugaz contato. Era como se anos de lembranças colorissem a forma em que viam um ao outro, e enriquecessem inclusive aquela comum troca.
Bianca voltou a dirigir o olhar à lareira e viu como o comportamento de Vergil e Fleur contrastava com o daquele outro casal.
O comentário de Charlotte teve para ela uma nova dimensão. Não havia necessidade de uma demonstração aberta de paixão e afeto. De uma maneira silenciosa que não implica o contato físico, um homem e uma mulher podem estar intimamente conectados.
Diane Saint John aceitou a sugestão de seu marido e se levantou.
—Suponho que um breve descanso pode ser uma boa ideia. —Juntos, sem falar, mas dizendo-se muito, dirigiram-se para o salão.
A atividade do vestíbulo anunciava a chegada de outro carro.
—Por fim o último. —Charlotte ficou em pé— Este deve ser o da senhora Gaston. É uma das amigas de Pen e uma grande mecenas das artes. Apoiou Pen quando outros a abandonaram após sua separação. Acredito que Pen a convidou pensando em você, por sua carreira de cantora.
Bianca e Charlotte seguiram Penelope e Vergil para receber à nova convidada.
A senhora Gaston tinha vindo em uma grande carruagem. Pen se adiantou estendendo os braços para lhe dar a bem-vinda.
—Que amável por sua parte fazer um encaixe para vir a nossa pequena festa.
A senhora Gaston era uma bela mulher de sorriso encantador, maçãs do rosto marcadas e um cabelo castanho acobreado. Movia-se com uma orgulhosa elegância, levava um casaco com um exótico estampado e um chapéu com plumas extravagantes.
—É você a que foi amável ao me dar uma oportunidade para escapar da cidade durante uns dias. Entretanto, temo que dei um passo em falso e devo pedir sua indulgência por isso.
—Um passo em falso? Você? Nunca.
—Infelizmente sim. Trouxe uma amiga comigo.
—Quando lhe escrevi disse que seus amigos seriam bem-vindos.
—Sim, fez. Normalmente no caso de trazer alguém eu teria escrito para lhe avisar. Mas esta amiga chegou à cidade inesperadamente.
Um lacaio se aproximou até a porta aberta da carruagem. Uma mão enluvada e uma manga na moda apareceu. Uma cabeça escura de elegante penteado e chapéu se agachou enquanto a amiga em questão inclinava seu corpo para descer.
—Maria — exclamou Pen, abraçando a escultural figura envolta em musselina azul pálida— Ninguém sabia que viria nos visitar este ano. É uma surpresa maravilhosa para mim.
O rosto da mulher não era formoso, com suas feições muito marcadas, mas sua forma de comportar-se transmitia uma sólida dignidade e inspirava confiança.
—Foi uma decisão impulsiva por minha parte, querida minha. Milão é horrível com o calor. Meus músicos estão se comportando como meninos mimados, e o tenor para a próxima produção é um jovem idiota e arrogante que não se deixa dirigir. Simplesmente deixei a todos. Vamos ver como as arrumam sem Catalani.
—Oh, Deus, que sorte — sussurrou Charlotte a Bianca— Sabe quem é?
Bianca sabia. A mais importante cantora de ópera da Inglaterra, Maria Catalani, retornou da Itália há seis anos e agora dirigia uma companhia de ópera em Milão.
Que maravilhoso golpe de sorte. Com a senhora Gaston e Catalani ali, aquela festa prometia ser enormemente mais interessante do que esperava.
Vergil se adiantou para saudar Catalani, beijando sua mão de maneira lisonjeadora. Ela disse algo em voz baixa e seu rosto se iluminou com um sorriso.
Se a visita inesperada de uma cantora de ópera afligia Laclere, este não o demonstrou. Provavelmente trataria do assunto com Penelope mais tarde.
Penelope conduziu seus novos convidados ao interior da casa.
A Bianca tremia os joelhos pela emoção.
—Esta deve ser Charlotte. Já parece uma jovenzinha, encantadora — disse Catalani— Já teve sua estréia em sociedade?
—No próximo ano — explicou Pen— Vergil não aprova que nestes dias as garotas se apresentem a uma idade tão jovem.
Catalani olhou para trás ao visconde que as seguia e franziu os lábios com picardia.
—Um bom estratagema, e será muito efetiva. Deixemos que tenham que esperar por um diamante assim. Será a sensação da temporada, Charlotte. Predigo que seus irmãos necessitarão lacaios extras para vigiar as paredes do jardim.
Pen atraiu Catalani até Bianca.
—Esta é Bianca Kenwood, de Baltimore. É a pupila de Vergil.
—Nunca tive o prazer de visitar seu país. Temos que falar. Tenho muitas perguntas a fazer.
—E eu também tenho perguntas para você. Visitarei a Itália muito em breve.
—Está planejando uma grande viagem para sua irmã e sua pupila, lorde Laclere? —perguntou Catalani enquanto Pen a conduzia para o interior da casa— Necessitará dez lacaios extras então, se envia duas belezas como estas a meu país.
Bianca se apressou a alcançar Charlotte, atônita pelo curso dos acontecimentos. Essa festa prometia ser o ponto culminante de sua estadia na Inglaterra.
—Por hoje já estão todos os convidados — explicou Charlotte— Pen disse que o senhor Witherby escreveu dizendo que chegaria amanhã pela manhã. Vamos descansar um momento antes de jantar.
Bianca decidiu não fazê-lo a menos que ficasse claro que Catalani também se retirava. Esperou até que a imponente mulher subisse a escada flutuando com Penelope a seu lado.
Ficou sozinha de pé no vestíbulo vazio, sabendo que seria totalmente impossível descansar. Procurando alguma forma de aliviar sua ansiedade, entrou na biblioteca, encontrou o volume de poemas de Shelley que tinha estado lendo e se amassou em um divã encarado uma janela.
Aquele era seu lugar favorito para ler, especialmente pelas tardes. Uma luz tênue penetrava através da janela acompanhada de uma suave brisa. Ninguém podia vê-la ali a menos que se aproximasse do divã. Aquele tinha se convertido em um de seus poucos cantos privados.
Ouviu-se o ruído de passos de alguém que entrava na estadia. Ela se incorporou um pouco para ver de quem se tratava. Dante a reconheceu e caminhou para ela; levava seu chapéu e o látego de montar. Sentou-se em uma poltrona, frente a ela e esticou as pernas; também levava botas.
—Chegaram todos? —desapareceu de casa depois da chegada de Fleur.
—Todos menos o senhor Witherby.
—Surpreende-me que se atrase. Esperava que quisesse aproveitar cada momento para seduzir minha irmã.
—Charlotte?
—Pen. Converteu-se em um amigo muito especial para ela durante o último ano. Ou ao menos ele pensa que assim é. Não sei que ideia tem Pen a respeito, embora pareça desfrutar de sua companhia. Estou seguro de que é por isso que o convidou, apesar de que também é um velho amigo de Vergil.
A frase «amigo muito especial» aludia a algo mais que a uma mera relação de companheirismo. Dante frequentemente se despistava e falava daquela maneira tão familiar, como se compartilhassem alguma compreensão do mundo. Aquele tom de conspiração implicava um tipo de intimidade.
Ele vadiava com ar despreocupado, olhando-a por debaixo das grossas pestanas desse modo que sempre a fazia sentir-se tão incômoda. Sempre estavam a sós quando a olhava dessa forma.
—Maria Catalani acaba de chegar com a senhora Gaston. Foi uma surpresa para todos —disse ela.
Aquilo pegou sua atenção.
—A senhora Gaston está aqui? Deveria ter perguntado a Pen a quem esperava receber antes de aceitar ficar.
—Não te cai bem?
—É por pura insistência que conseguiu introduzir-se em muitos círculos. Vê a si mesma como uma grande patrocinadora de artistas e quer que todos saibam como promove suas corridas.
—Faz? Promove corridas?
Ele deu de ombros.
—Não saberia lhe dizer isso. Os círculos artísticos de Pen não me interessam muito, e parece que isso é o que temos aqui. A senhora Gaston e Catalani, diz. Lorde Calne é outro patrocinador das artes. Cornell Witherby será uma boa companhia, ao menos, apesar de que com os outros que há aqui provavelmente só falará de sua poesia. Espero que Vergil o distraia com outras coisas.
—Crê que Vergil permitirá que Catalani fique?
—Por que não ia fazê-lo?
—Isso pensei, possivelmente, com Fleur aqui e Charlotte e…
Seu comentário o deixou preocupado.
—Esta é a festa de Pen, e meu irmão sabe o que isso significa. Vergil pode ser um santo, mas nunca se comporta de um modo rude. Por outro lado, Catalani tem suficiente poder para ocultar os meios pelos que conseguiu sua fama. —levantou-se— Acredito que darei um passeio. Será uma honra se me acompanhar. Te mostrarei as ruínas.
Bianca já tinha encontrado as ruínas medievais que se conservavam no parque Laclere, e não queria as visitar sozinha com um mulherengo. E menos ainda com um que naquele momento a olhava com esse brilho nos olhos.
—Obrigado, mas acredito que continuarei um bom momento lendo.
Uma repentina irritação alterou sua expressão. Para sua surpresa ele se aproximou e acariciou sua mandíbula com um dedo.
—Não tem que ter medo de mim Bianca.
Ela se tornou para trás ante seu gesto.
—Seu irmão diz que aqui não é habitual dirigir-se a uma mulher de um modo tão familiar.
—Eu não sou meu irmão.
Não, não era. A última semana ela tinha sido o centro da atenção desse jovem. Tinha tentado desanimá-lo. Ao que parecia sem êxito.
Sua mão a tocou outra vez, sustentando seu queixo. Os olhos de Bianca se alargaram com incredulidade quando ele inclinou sua cabeça para cima, aproximou a sua e lhe deu um beijo nos lábios. Aconteceu tão rápido que a impressão lhe fez ficar completamente imóvel.
Ele a interpretou mal. inclinou-se para ela e a beijou profundamente, ao tempo que a abraçava.
Ela se separou dele e o lançou contra a janela com uma assombrosa fúria. Raivosa e envergonhada o enfrentou.
—Não se atreva a voltar a fazer isso.
Ele se levantou.
—Minhas desculpas. Deveria ter te pedido primeiro permissão.
—Não o teria obtido.
—Eu acredito que sim.
—Interpreta mal nossa amizade.
—Não acredito. Está assustada e confusa, e isso é normal para alguém tão inocente. Não voltarei a te beijar sem sua permissão, mas quando lhe pedir isso me dará isso.
Ela andava a provas procurando uma resposta mordaz. Ele sorriu com uma confiança em si mesmo que resultava insofrível e saiu da estadia.
Ela voltou a afundar-se no divã, levantou as pernas e se encolheu em seu canto. O que teria feito pensar a aquele patife que ela reagiria bem ante semelhante coisa? Teria ouvido algo a respeito de seus espetáculos em Londres? Até onde ela sabia, tinha ido a um.
Que sorte para ela que o irmão equivocado tivesse concluído que ela era um pouco selvagem e descuidada com o decoro.
***
—Se escondendo das obrigações de sua condição? —perguntou Dante ao entrar no escritório onde Vergil se achava lendo sua correspondência.
—Tomando um descanso porque se seguir sorrindo durante mais tempo meus lábios vão se romper.
—Tampouco está tão mal. Convidou Witherby e Saint John, assim poderá se divertir.
Vergil estava agradecido de que Pen tivesse convidado Daniel e Diane Saint John. Não os via há meses. Eram também amigos de Pen.
Ela tinha amizade com Diane Saint John quando a jovem acabava de chegar a Londres, e desempenhou um papel nos dramáticos acontecimentos que precederam o casamento de Diane com o magnata de uma companhia naval.
Quanto a Witherby, Vergil suspeitava que Pen o convidasse por razões que nada tinham a ver com que ele se divertisse.
Dante vadiava apoiado contra o marco da janela e, distraidamente, deixava cair a bolinha de chumbo sobre as rampas do brinquedo.
—Fleur está tão encantadora como sempre. Podemos esperar que anunciem seu compromisso uma noite destas depois do jantar?
—Não acredito.
—Já é hora, Verg.
—Dentre todas as pessoas que poderiam me dar lições, Dante, você seria o último. Minhas responsabilidades com os membros atuais desta família pesam mais que qualquer responsabilidade que pudesse ter respeito a membros futuros.
—Está me dizendo que resultamos tão caros que não pode te permitir uma esposa?
—Estou dizendo que qualquer mulher que se case comigo terá certas expectativas que neste momento não estou em condições de cumprir. O qual nos conduz ao assunto de seu próprio matrimônio, que será um alívio significativo para nossas cargas financeiras. Devolvo-te a pergunta. Devemos esperar uma notícia? Recordo um jovem cheio de confiança em si mesmo dizendo com presunção que uma semana bastaria.
—Maldita seja, estas coisas levam seu tempo. Além disso, ela é… Difícil de entender.
Levou uma cadeira junto ao escritório e se sentou à mesma altura que seu irmão do outro lado, com as pernas cruzadas, apoiando o braço sobre a mesa e deixando descansar sobre este a cabeça. Era a pose que Dante adotava quando queria falar «de homem a homem».
Dado que o tema de conversa era Bianca Kenwood, Vergil teria desejado economizar as confidências. Bianca constantemente penetrava em seus pensamentos, e a última noite, depois de sua volta a Laclere Park, surpreendeu-se rondando o salão entre as damas até que ela se retirou.
—Às vezes penso que ganhei terreno só para acabar por me dar conta de que era uma ilusão. Ela parece muito quente uma manhã, mas pela tarde a vejo ser igualmente calorosa com um criado. Posa esses grandes olhos azuis em mim e penso que deveria lhe propor matrimônio naquele mesmo momento, mas depois me ignora durante toda a hora seguinte. Às vezes penso que estou tratando com uma garota tão ignorante que nem sequer nota meu interesse, e outras vezes…
—Outras vezes?
—Outras vezes me pergunto se é tudo menos ignorante e se não está me tratando como um brinquedo. Me perdoe, mas estamos falando sem disfarces.
—Você certamente sim.
—Pergunto-me se está sendo deliberadamente intrigante. Esquiva de um modo calculado.
—Soa-me como se lhe estivesse jogando a culpa de seu fracasso.
—Possivelmente. Mas há algo nela indefinível… Um ar, uma fragrância, não sei o que. A olho e vejo toda a inocência da primavera, e de repente me devolve o olhar e me encontro pensando que seria uma esplêndida amante. É uma combinação confusa e fascinante.
Assim Dante acabou percebendo aquilo que Vergil notou nessa primeira noite na sala de jogos, e muito frequentemente após.
—Confio em que não seja muito fascinante.
—É obvio que não. Mas deixa a um fora de jogo. Há uma arte na sedução, e conhecer a mulher é uma parte essencial.
—Sempre estou agradecido por suas instruções nessas matérias, Dante, mas vamos ao ponto. Se propuser matrimônio amanhã, acredita que aceitará?
—Maldita seja se sei.
Isso significava que provavelmente não.
—Sabe que está interessado por ela? Talvez interprete seus cuidados como uma amostra de simples amizade, uma mão amistosa em um país estranho.
—Agora já sabe.
—O que significa isso?
—Acabo de vê-la na biblioteca.
—Declarou suas intenções?
Dante olhou ao longe e Vergil instantaneamente soube que tinha expressado seus interesses com ações, e não com palavras.
Quase salta por cima do escritório para estrangulá-lo.
—Me deixe expressá-lo de outro modo. Sabe que suas intenções são honestas?
—De que outro modo poderiam ser? Ela é sua pupila.
Vergil esfregou o cenho.
—Bom, suponhamos que ela ouviu falar sobre você…
—De quem? Seria estranho que Pen fosse contando histórias.
—De outra pessoa. Um criado. Jane, sua empregada. Nigel Kenwood.
—Não viu Nigel mais que uma vez em toda a semana, quando Pen o convidou, e não estiveram a sós, assim que ele não pôde…
—De quem é Dante. Supondo que alguém contou algo. Se você não explicar que suas intenções são honestas, ela poderia pensar que a persegue por outras razões.
Dante se endireitou.
—Se for assim, fui insultado.
—De todos os modos…
—Não sou um descarado.
—Recomendo que esclareça as coisas. Se ela te interpretou mal, só conseguirá que a partir de agora te evite.
Dante se levantou e caminhou até a janela.
—É obvio, tem razão. Entretanto, se fizer uma proposta de matrimônio e me rechaça se acabou o jogo. Explicar minhas intenções, embora não seja pedir a mão, termina sendo o mesmo. As garotas têm estes caprichos, e um homem que as persegue apesar delas fica como um parvo. Estava sentado na biblioteca e me surpreendi perguntando isso acaso não é contraditório?
—O que diz não tem muito sentido.
—O que acontece se ela é realmente inocente, mas tem à outra dentro? O homem que conseguisse despertá-la estaria em uma posição muito poderosa a respeito dela. Se se tratar de chegar pelo caminho mais rápido, pois…
—Não.
—Não estou falando de nada desonroso, Vergil. Só um pequeno escarcéu que nos economizaria muito tempo.
—Não fará nada que possa comprometê-la nem remotamente.
—Está sendo pouco prático e se preocupa muito pelo decoro. A ideia foi tua, recorda? Se a comprometer, o matrimônio será inevitável.
Não era seu tão cacarejado sentido do decoro o que se rebelava contra as insinuações de Dante, a não ser algo mais visceral, algo que tinha a ver com um fervor incessante, o perfume de lavanda e uma voz melodiosa que tinha estado cantando em sua memória durante uma semana de viagem e obrigações. Ao menos ser um santo tinha suas vantagens. Não podia malograr seus planos, mas não permitiria que Dante estendesse uma armadilha à garota.
—Ganhar honestamente o afeto de uma mulher pode parecer um longo e tedioso esforço a um homem acostumado a aproveitar as paixões rápidas, Dante, mas se pretende consegui-la é o que terá que fazer.
—Ao menos alguém nesta família tem um pouco de paixão. Entre você e Milton…
Ante a menção do nome de seu irmão todo o corpo de Vergil se esticou.
—Acredito que deveria ser muito cuidadoso e não mencionar Milton e seu imprudente apetite na mesma frase.
O ressentimento escureceu o rosto de Dante.
—Continua me culpando de algo que não pude prever.
—Equivoca-se. Não te culpo. Não havia forma de que soubesse o que pretendia fazer. Mas não o coloque nestas discussões. Me insulte tudo o que queira, mas deixa nosso irmão e sua memória à margem deste assunto. Nada disso tem a ver com a senhorita Kenwood e sua forma de se comportar com ela.
—Ah, sim, a adorável Bianca. Está tão preocupado por ela que está te pondo muito sutil, Verg. Seu amparo é curiosamente seletivo e meio cego. Não permitirá que ninguém comprometa sua pupila, mas está disposto a consentir que se veja atada por toda vida a um homem que despreza.
Aquelas palavras deram no alvo por razões que Dante nunca saberia.
—Eu não te desprezo.
—Ah, não? Pode ser que não me culpe, mas jamais me perdoou.
Vergil viu dor naquele belo rosto que nunca se mostrava preocupado. Devia ter sido mais consciente do sentimento de culpa que a morte de Milton causou em Dante.
Era estranho que a discussão sobre uma garota que não tinha nada a ver com aquele episódio o tirasse do baú.
—Posso te fazer críticas sobre a forma em que vive sua vida, mas isso não reflete meus sentimentos com respeito ao rol que desempenhou sem te dar conta no desastre do ano passado. Não precisa ser perdoado por isso, Dante. A ignorância não é uma ofensa imperdoável. Se nunca falei disto contigo antes, não foi porque te jogue a culpa a não ser só porque não quero me lembrar daquilo. Entretanto, possivelmente minha reserva não tenha sido justa para você.
O rosto de Dante era uma imagem de tensa serenidade, mas seus olhos brilhavam.
—Eu estava aqui. Jantei com ele. Deveria ter visto…
—Estou agradecido que esteve com ele durante sua última hora. Acredito que ele também esteve.
O ar na estadia estava carregado com a crua intimidade que tinha nascido de uma franqueza inesperada. Caiu uma barreira invisível cuja existência Vergil jamais foi consciente. O abismo que se abriu entre eles após a morte de Milton foi superado, e tudo devido às conflitivas emoções que a presença de Bianca Kenwood criou naquela casa.
Olhou seu jovem irmão com novos olhos, e percebeu uma profundidade cuidadosamente disfarçada por aquele despreocupado libertino. Poderia ter homens piores para ela.
Dante sorriu com ironia e se dirigiu sem pressa até a porta.
—Farei a sua maneira, Verg. Será interessante, tentar inspirar um afeto casto nada mais que com insinuações. Mas me limita injustamente. Não posso jogar minha melhor carta. Depois de tudo, não tenho nada a oferecer à garota mais que o prazer.
Uma hora antes, Vergil teria estado de acordo.
Capítulo 6
Na manhã seguinte Vergil foi o primeiro a baixar à sala do café da manhã. Queria tomar o café da manhã sozinho antes que chegassem os convidados.
Acabava de se sentar ante seu prato quando um movimento junto à janela chamou sua atenção. O brilho verde e dourado de uma cabeça loira e uma figura esbelta desapareceram entre os arbustos.
Bianca Kenwood se levantou ao amanhecer.
Afastou a vista da janela com preocupação. Dante disse que ela só havia visto Nigel Kenwood uma vez, mas Dante não sabia nada a respeito das aventuras a alvorada de Bianca. Era possível que ela e Nigel levassem uma semana vendo-se em segredo.
Deixou que uma espessa cortina cobrisse a imagem que se formava em sua mente. Não havia nenhuma prova sólida de que estivesse se encontrando com seu primo. Ao mesmo tempo, qualquer que fosse seu propósito, o certo era que entrava alegremente no parque ao amanhecer apesar do perigo dos caçadores furtivos com o que teve que enfrentar naquele dia a cavalo. Aquele episódio teria bastado para que qualquer jovem normal desde aquele dia temesse aventurar-se a sair a menos que a acompanhasse meio exército.
Mas ela não era uma jovem normal.
Antes que o servissem o café da manhã, saiu ao jardim e se dirigiu para o caminho por onde ela entrou.
—Laclere.
Vergil se voltou para a voz que o chamava. Cornell Witherby se aproximou dele dando grandes pernadas através do caminho que conduzia ao estábulo.
Ao entrar no atalho, o dourado e o verde ficavam engolidos pela erva.
—Não me diga que cavalgou durante a noite, Witherby. —Vergil viu que o recém-chegado ia vestido com uma jaqueta marrom de montar e calças de cor parda clara. As botas pareciam novas e o cabelo loiro que aparecia sob seu chapéu tinha um corte moderno.
Witherby era muito belo e parecia estar com um humor estupendo.
—Cavalguei a maior parte do caminho ontem pela tarde e dormi em uma estalagem.
—Estava ansioso para chegar?
—A cidade se tornou ruidosa estes últimos dias. Há manifestações diariamente. Muitos arrestos. Me fará bem o ar do campo. A musa se volta irritável ante tantas distrações.
—Confio em que não se distraia aqui. O café da manhã te espera, mas deverá alimentar sua musa em solitário. Minha irmã ainda não se levantou para cumprir com seu papel de anfitriã.
Witherby esboçou um sorriso ao ouvir mencionar Penelope. Ele sabia que Vergil sabia suas intenções, e Vergil sabia que ele sabia, mas um homem não fala dessas coisas com o pretendente de sua irmã casada, nem sequer embora sejam velhos amigos.
—Ficará feliz em saber que a reunião é de artistas, como é de esperar com Pen — disse Vergil.
—As festas da condessa são sempre deliciosas. Espero que esta supere as outras.
Vergil decidiu não especular sobre quanto deleite poderia estar Witherby antecipando. Uma casa de campo grande e tranquila oferece todo tipo de oportunidades para a intimidade.
Com firmeza afastou esses pensamentos de sua mente.
—Está vestido para cavalgar — observou Witherby— Vou contigo.
—Primeiro um passeio, depois cavalgaremos. Vá e se instale com a maior comodidade que possa. Saint John está aqui, além disso, normalmente baixa cedo, assim não se aborrecerá muito tempo.
Dando pernadas alegres e calmas Witherby se dirigiu para a casa. Vergil esperou até perdê-lo de vista, depois deu a volta e prosseguiu em busca de Bianca.
Quando conseguiu divisá-la reduziu o passo para poder segui-la a uma distância prudente.
A seguia porque se preocupava com sua segurança, mas também devia admitir que queria saber se Nigel a esperava em algum lugar.
Quando tinha entrado mais de um quilômetro entre as árvores, ela tomou um atalho que ia para o oeste. Ele viu que se dirigia para as ruínas. Não era um bom sinal. O castelo medieval era um lugar ideal para um encontro de casal.
Ela já não estava à vista quando ele entrou entre a erva alta que rodeava as ruínas das mais antigas fortificações do parque Laclere. Da torre tinha sobrevivido meia armação, e só uma sessão das velhas ameias perdurava, muitas paredes vieram abaixo e outras se viam a ponto de desmoronar. Grandes pedras dispersas cobertas de más ervas deixavam claro que uma vez serviram como o muro de amparo. De toda a estrutura da muralha o único relativamente intacto era uma solitária torre quadrada.
O assaltaram nostálgicas lembranças da infância, como o do fácil vínculo que uma vez compartilhou com Dante, e que os segredos e a falta de cuidado quase destruíram. Esquadrinhou a paisagem em busca do rastro da senhorita Kenwood.
De repente um som apagado e doce flutuou através do silêncio da manhã. Elevava-se e baixava como uma suave onda no meio da brisa, enviando redemoinhos que o rodeavam. Ele o seguiu até a fonte de onde provinha na torre quadrada, e entrou através da soleira de pedras.
O som o afogou, elevando-se fora das paredes e a abóbada. Acima na câmara da sentinela, a senhorita Kenwood praticava suas escalas, e sua voz ganhava em volume com cada ascensão que repetia. Ele se deteve e ouviu a escala de repetições de alguém que afiava e esquentava sua voz.
Ela se interrompeu e ele a ouviu falar. A Nigel? O homem devia usar sua música para atraí-la até ali. Se assim era, não corria um perigo imediato. Ele duvidava que ela decidisse abandonar sua paixão original para dedicar-se a explorar outras justo agora.
O som emergiu de novo, baixando torrencialmente a escada. Agora não se tratava de escalas, mas sim de uma ária de Rossini.
A melodia o embargou. Precisa e disciplinada, tinha a textura da elaborada canção de um pássaro, empapava a mente, transbordava o coração e agitava os sentimentos do modo em que a melhor música sempre faz. Os sensuais matizes de sua voz alagaram o reservado esconderijo que ele esteve lutando para manter a salvo.
Quase de um modo involuntário, suas pernas o conduziram à escura escada, para a sereia que sem saber o atraía a uma borda proibida.
Ela estava de pé só na câmara, de costas a ele, emoldurada pelas linhas das paredes que se estreitavam para formar um teto abobadado. Nigel não estava. Não havia ninguém ali. Ela devia ter falado consigo mesma.
Ele apoiou o ombro contra o marco da entrada, para olhar e escutar. Desejava poder ver seu rosto, mas em sua memória ainda conservava a radiante expressão da que tinha sido testemunha aquele dia em que ela atuou no salão de música.
Não lutou contra suas reações. Teria sido incapaz de fazê-lo embora gostasse de fazer. Em lugar disso deixou que suas notas se elevassem em uma maré que fez desaparecer o mundo inteiro exceto essa paixão dela e seu próprio e atônito desejo.
A fazia sentir-se tão bem. Transportada. Gloriosa. Sua voz tomava o poder de seu corpo e dissolvia sua substância até que só o canto existia. As pedras enriqueciam o timbre como nenhuma sala poderia fazer. Ela desejava poder levar Catalani ali.
Terminou muito rápido, e ela, com pesar, sustentou a última nota mais do que a partitura requeria. Esta ficou pendurando por cima dela, gotejando como o néctar de uma gema no interior de seu espírito aberto.
E finalmente se extinguiu, deixando-a gasta e um pouco melancólica.
De repente notou que não estava sozinha. Temendo que Dante a tivesse seguido deu a volta com receio.
O visconde estava apoiado com ar despreocupado contra a entrada da câmara, com os braços cruzados sobre o peito, olhando-a. Estava muito bonito, e havia nele algo intenso apesar de sua pose despreocupada.
—Seguiu-me até aqui, tio Vergil? Para me espiar?
—Foi só para te proteger, mas sim, a segui.
—Estou segura de que não corro perigo no parque Laclere. Seus audazes caçadores furtivos devem ter se mudado ou mudado seus métodos de caça. Não houve disparos esta última semana.
—Se sabe isso, é porque deve ter vindo aqui frequentemente. Sempre para cantar?
A câmara tinha uma janela, não maior que a fenda de uma flecha. Ela se dirigiu para ali, afastando-se dele. As pedras aumentavam os matizes do tom de Vergil e isso a fez mostrar-se precavida. Seus olhos tinham uma expressão oculta que ela não podia ler. Sua presença a impressionava como se fosse perigosa. Era uma reação ridícula, mas não podia evitá-la.
Examinou a paisagem, evitando seu olhar fixo.
—Não aceito a situação que te faz pensar que tem direito de me interrogar. Sim, venho aqui frequentemente, geralmente em manhãs como esta. Encontrei esta torre um dia enquanto cavalgava. E sim, para cantar.
—Sozinha?
Ela o olhou por cima do ombro.
—Acaso acredita que marquei um encontro com Nigel aqui? Seguiu-me para me proteger de intenções desonestas? —A ideia lhe deu vontade de rir. Um amparo tão cuidadoso de sua virtude no campo enquanto seu próprio irmão a assaltava na biblioteca— Perdeu seu passeio a cavalo para nada. Não me ocorreu a ideia de usar esta torre para encontros desse tipo. Terei-o em mente para futuras ocasiões.
—Duvido que o faça. Não terá tempo para pôr em prática. Não a adverti antes, mas esta câmara afeta ao som do mesmo modo que as antigas Igrejas normandas. Qualquer que seja a potencial atração de seu primo, estas pedras têm mais.
—Possivelmente ele deva escutar. Como fez você.
Ele se separou da parede com um vago sorriso.
—Se o fizer, definitivamente necessitará amparo.
Caminhou para ela despreocupadamente. Ela sem se dar conta se afastou até a borda. Em realidade era uma tolice, mas aquele dia havia nele algo diferente. Algo fascinante, mas também desconcertante.
—Pen anunciou que cantará esta noite. Está ensaiando sua atuação, para se assegurar que estará nas melhores condições frente à Catalani?
—Sim.
—Falou um bom momento com ela ontem à noite. Um encontro tete a tete. Suponho que explicou seus planos.
—Não tem por que preocupar-se, não vou pôr nem você nem Pen em uma situação delicada. Ninguém mais me ouviu e acredito que ela sabe que é necessária a discrição entre os convidados de um visconde.
Ele continuava movendo-se, olhando ao redor do cômodo como se não tivesse estado ali em muito tempo. Ela sentia constantemente o impulso de partir longe.
—O que te aconselhou Catalani?
—Estava de acordo comigo em que se quero receber a melhor instrução devia ir a Itália, ou trazer um dos melhores professores aqui. Enquanto isso, deu-me o nome de um tutor com quem poderia trabalhar em Londres. Recomendou-me o senhor Bardi, que trabalha como professor do bel canto com alguns dos melhores cantores de Londres.
—Nenhum outro conselho? Não esperava que Catalani fosse tão reservada.
—Perguntou-me se entendia essa vida, se sabia o que implicava.
—E sabe?
—Sei que implica trabalho duro. Contínuas viagens. A necessidade de atuar apesar de estar cansada ou doente.
—Não é a isso a que ela se referia.
Seu rosto se acendeu.
—Sei a que se referia.
—Não acredito que saiba. Não de verdade. Duvido que tenha a mais remota ideia do que significa se converter em alguém que nenhuma mulher respeitável teria como amiga. Essa cantora de ópera pode visitar casas como esta, mas só há uma Catalani. Não será o mesmo para você. Não haverá nenhuma tia Edith na Inglaterra ou na Itália para te proteger das más línguas.
A irritação a fez ficar cravada no chão.
—Sei o que essa gente chamada decente pensa sobre essas mulheres. De fato vi muitos homens decentes aproximar-se de minha mãe às vezes. Quando cresci entendi o que queriam. Tratarei com eles como ela o fazia. Supõe-se que devo renunciar a algo importante para mim, essencial para mim, por culpa de preconceitos sem fundamento?
Ele continuava caminhando. Fazendo círculos e círculos. Se ele não fosse o proprietário de uma cidadela, se sua conduta não fosse tão despreocupada, ela teria sucumbido à sensação de estar sendo acossada. Por ser alto ele devia permanecer perto do centro do cômodo, e o círculo que desenhava parecia bastante menor agora que ela se achava justo no centro.
—Os preconceitos a respeito de muitas atrizes e cantoras estão muito bem fundados — disse ele, como se discutir sobre mulheres de má reputação fosse um tema perfeitamente aceitável.
—A vida dessas mulheres é muito insegura, e eu suponho que muitas artistas precisam aceitar o amparo que lhes oferecem.
—Você acredita que é o desespero o que faz que essas mulheres se convertam em amantes e cortesãs, e que sua herança te salvará? Seu julgamento é mais duro que o meu. Eu assumo que é a solidão. Um matrimônio decente é quase impossível. Haverá quem esteja disposto, mas ninguém a quem você seja capaz de amar.
Aquela conversa tão delicada se tornou de repente pessoal.
—Sei. Entretanto, há coisas que valem sacrifícios.
—Uma vida inteira de sacrifícios? Pensa isso agora, mas e dentro de dez anos? E de quinze? Sem casar, sem filhos, sem lar. Entendo que é mais triste que escandaloso que para a maioria dessas mulheres o dia começa quando alguém lhes oferece algo parecido ao amor e o agarram. Não importa o que decidam quando começam, depois de um período virtuoso, uma solidão antinatural, a escolha é virtualmente inevitável.
—Como se atreve a prognosticar um futuro tão desolado e sórdido para mim? É muito cínico ao afirmar que se perseguir minha carreira de cantora, estarei predestinada a me afundar. Embora tampouco veja por que se importa tanto.
Ele se deteve e se afastou uns passos.
—Sou responsável por você.
—E por isso se mete em minha vida, para me proteger de mim mesma. Durante dez meses.
—Mais. Se puder achar a maneira.
«Mais!»
—Não se atreva a tentar me impor mais obstáculos. Não o tolerarei.
—Sua decisão me deixa pouca escolha. Deve acreditar que pode viver como uma monja, mas duvido que possa fazer isso indefinidamente.
—Suas implicações são tão insultantes como escandalosas.
—Não são insultantes absolutamente. E escandalosas só se acabar por te converter na amante de um homem em lugar de na esposa de um homem.
—Cruzou a linha, cavalheiro. É impróprio que me fale dessa forma, inclusive sendo meu protetor.
Vergil inclinou a cabeça e um sorriso sarcástico bateu as asas brevemente em seus lábios.
—Cruzei a linha? É bastante provável. Surpreendo a mim mesmo. — Olhou a seu redor como se de repente se desse conta de onde estavam. —Terminou ou pretende seguir praticando?
—Quero ensaiar a ária uma vez mais. Voltarei para casa em seguida.
—Esperarei e te acompanharei de volta.
Apoiou-se outra vez contra a parede, em uma pose de relaxada paciência. Ela notou um acanhamento peculiar.
Ela se dispôs a dar volta, mas ele negou com a cabeça.
—Se não puder praticar com um homem te olhando, como atuará em um teatro que esteja cheio deles?
«Porque isso é diferente.» Parecia uma resposta irracional, mas era diferente. O foco de dois olhos, desses dois olhos, incomodava-a mais que um oceano de rostos. A atenção de uma pessoa, dessa pessoa, agitava-a mais que uma sala de concertos cheia a transbordar. Se ao menos outra pessoa estivesse presente, isso teria servido para diluir essa conexão singular. Depois de tudo, ele esteve no salão de música e ela não reagiu assim.
Ela afastou seu olhar e tentou apagar a consciência dele, mas não funcionou. A ária começou fracamente, como se o ar encontrasse um obstáculo ao passar através de sua garganta. A obstrução fez que seu coração palpitasse nervosamente. Estúpido. Estúpido. Recuperou certa calma graças ao ressentimento por sua intrusão e encontrou seu caminho.
A música se encarregou do resto. A concentração na técnica e a expressão a absorveram. O regozijo a transportou. Entretanto, não foi como a última vez. Outro espírito se unia a ela naquela viagem, seguindo-a, empurrando-a, abrangendo-a. Ao seguir com a canção não pôde resistir a olhá-lo. Ele esperava de um modo indiferente, olhando para baixo, um homem oferecendo educadamente seu tempo antes de passar a dedicar-se a outras coisas mais importantes.
Ele notou sua atenção. Elevou seu olhar e encontrou com o dela. Ela quase se quebra em um abrupto silêncio. Os olhos dele resultavam mais desconcertantes que de costume. Sua expressão profundamente cálida, sutilmente selvagem e claramente masculina não tinha nada de paternal ou distante, e muito menos de protetora.
Deus santo foi seu canto o que tinha provocado isso?
Apesar de seu desconcerto inicial, uma surpreendente emoção a atravessou como um raio. Em lugar de vacilar sua voz remontou voo. Não podia afastar a vista dele e a ária criava entre eles uma provocadora união. Espiritual. Sensual. Quase erótica.
Um instinto de alarme a sacudiu, apesar de que uma embriagadora sensação de poder crescia. A euforia se transformava em algo inegavelmente físico entre sua fascinante conexão.
Ela não poderia ter se detido embora tivesse querido. Emoções desconhecidas impulsionavam sua voz com novas paixões. Fechou os olhos ao final, mais para conter as sensações que para saboreá-lo. As pedras sustentaram os últimos sons como o silencioso eco de um longo pulsar do coração.
Não queria abrir os olhos. Ali ocorreu algo que não queria saber, algo que não implicava palavras nem tato, mas que era mais indecoroso que o beijo de Dante. Ele devia saber. Ela devia ter parado. Não queria olhá-lo até que aquela terrível falta de fôlego se aplacou.
Uma brisa cálida a fez abrir um pouco as pálpebras e viu umas botas limpas perto de sua saia. Uma mão dele, magra e forte, tomou a sua, a levou até os lábios e lhe deu um beijo veloz.
—Seu canto é nada menos que magnífico senhorita Kenwood. Catalani ficará impressionada esta noite.
Ela teve que olhá-lo. Ele fez um gesto formal assinalando a escada. Sua expressão recuperou seu habitual autodomínio e altivez, mas a outra seguia ali, como se o manto de reserva com que ele a cobriu fosse transparente.
Guiou-a pelo caminho, dando sua mão para baixar as tortuosas rochas, uma cuidadosa representação de uma imparcial e cortês preocupação. Enquanto davam a volta ao longo da parede para chegar até o atalho, ele se deteve e elevou a vista até as ameias.
—É muito pitoresco — disse ela, esperando que um pequeno bate-papo servisse para vencer aquela estranha sensação que parecia instalada.
—Meu pai considerou a possibilidade de restaurá-lo e reconstruí-lo. Mas finalmente, em lugar disso decidiu remodelar a casa. Isto teria custado três fortunas em lugar de uma, e o resultado teria sido uma moradia apenas habitável.
—Acredito que é mais bonito tal e como está, aos pedaços e com retalhos de história aparecendo entre os arbustos. Seria uma tolice reconstruí-lo completamente e com cimento novo.
—Estávamos acostumados a brincar aqui de meninos. Dante e eu éramos os cavalheiros, e obrigávamos Pen a interpretar o papel da dama prisioneira por um malvado guardião. —Um amplo sorriso apareceu ao dizê-lo— Você pode interpretar esse papel agora.
A pequena trama que contou podia tê-la ajudado a reduzir a percepção de tê-lo de pé junto a ela, mas simplesmente não era capaz de responder com o mesmo tom.
—Brincava também seu irmão mais velho com vocês?
—Quando éramos muito jovens sim o fazia. Depois cresceu e nos deixou para trás, suponho. —Seu olhar às ameias se voltou reflexivo— Quando se fez maior se refugiou em seus próprios interesses, e em sua própria mente. Quando começou a ir à universidade já era um estranho.
—É por isso que agora quer ler suas cartas? Para conhecer coisas dele que não te permitiu conhecer enquanto vivia?
De repente moveu a cabeça e lhe dirigiu um estranho olhar, como se ela o tivesse surpreendido.
—Suponho que sim, em parte.
Sua atenção se separou das emoções para voltar a centrar-se na torre outra vez. Ela se obrigou a afastar o olhar, para a parede.
—Eu gostaria de explorar o torreão algum dia.
—Não recomendo isso. Há anos é perigoso. O passeio pela muralha também é. Não havia tantas pedras espalhadas pelo chão quando era menino.
Para enfatizar sua afirmação, uma pedra do tamanho de um punho caiu ao chão, aterrissando justo aos seus pés. Vergil olhou para cima franzindo o cenho, esquadrinhando com seus olhos as ameias. Bianca deu a volta para afastar-se.
Um ruído sinistro se ouviu acima. Outra pedra caiu, golpeando o ombro de Bianca.
De repente tudo se fazia impreciso. Ele a pegou pelo braço para afastá-la, fazendo-a apoiar-se contra a parede. Ela comprovou que se achava imobilizada, entre uma pedra dura e um corpo duro também, com os ombros abraçados por uns braços que a cobriam, seu rosto escondido contra o pescoço dele e sua cabeça apertada contra a sua. Sua vista quase já tinha se endireitado quando uma avalanche letal de grandes rochas caiu ante eles, uma delas ricocheteou sobre suas cabeças antes de cair ao chão roçando as costas de Vergil.
Ela olhou horrorizada a chuva de morte e se encolheu dentro de seu refúgio. Pareceu transcorrer uma eternidade antes que os chiados e estrondos cessassem.
Vergil elevou a cabeça para examinar a parte superior do muro.
—Toda uma parte das ameias veio abaixo.
—Uma lição apropriada para evitar o encontro com estas ruínas no futuro. Quem imaginava que a tranquila Laclere Park podia ser tão perigoso?
Ela falou presa do nervosismo apoiada contra seu lenço. O tecido azul de seu casaco acariciava suas bochechas e seus dedos descansavam na seda bordada de rosas de seu colete cinza. A comoção a colocou em um estado de alerta extremamente sensível e uma parte de sua mente, de maneira absurda, contemplava a variedade de texturas de seus objetos. E a maravilhosa segurança que proporcionava seus braços. E sua masculina fragrância.
—É possível que meu canto tenha ocasionado isto?
—O mais provável é que a gravidade tenha rematado o que o tempo iniciou. De todos os modos, as possibilidades de presenciar algo assim são mínimas. Possivelmente sua voz acrescentasse um empurrão. —Inclinou a cabeça para ver seu rosto— Está ferida?
—Acredito que não.
Uma mão deslizou ao longo de suas costas para apertá-lo brandamente no ombro.
—E aqui dói?
—Está um pouco dolorido. Mas o mais provável é que só tenha um arranhão.
Ele não a soltou. Com uma mão ainda a envolvia e a outra descansava cuidadosamente em seu braço debaixo do ombro ferido. Sentir-se protegida por sua força a tranquilizava muito.
—Isto é mais ou menos o que disse depois que o cavalo te lançou ao chão. Supõe-se que deveria desmaiar ao enfrentar tanto perigo.
Ela sabia que ele não se referia às rochas, nem aos caçadores furtivos, a não ser à proximidade física que ambos os episódios favoreceram.
Sua advertência soou tão clara como uma sereia junto a seu ouvido. Mas não pôde lhe fazer caso. Sua masculinidade a fazia sentir-se pequena e indefesa de um modo deliciosamente pecaminoso.
Ela levantou a vista para seus reflexivos olhos.
—Eu nunca desmaio.
Voltou a ver nele aquela expressão que tinha quando se achavam no cômodo de pedra, enchendo-a de maravilhosas palpitações. A mão que tinha sobre seu braço deslizou para seu ombro, para voltar a baixar.
—Não desmaia? Nunca?
Ela voltou a sentir a lenta carícia. A suave fricção criou um murmúrio de sensações. Dentro dela. Através dela. Aquela ária havia a tornado vulnerável, e o medo tinha arrebatado seu habitual autodomínio.
Devia fazer algum comentário malicioso para acabar com esse pequeno jogo, mas só queria que aqueles dedos voltassem a deslizar sobre seu braço.
—Nunca.
—Todas as garotas deveriam desmaiar ao menos uma vez.
A mão a acariciou para cima e não baixou. Foi uma lenta carícia. Delicada sobre seu ombro, quente ao passar por seu pescoço, suave em sua bochecha, firme entre seu cabelo.
Ela quase se derrete quando ele inclinou a cabeça e a beijou nos lábios.
Lábios quentes. Firmes e controlados como tudo nele. Pausados. Comedidos, mas decididos. Ele roçou sua boca com carícias antes de passar a um jogo mais sedutor. Sutis beliscões fizeram que seu lábio inferior pulsasse e tremesse. As estocadas de uma língua diabólica enviaram espetadas dispersas através de seu rosto e seu pescoço. A sensibilidade de seus seios despertou e ela instintivamente o abraçou, procurando o contato que sua profunda ternura reclamava.
Ele a apertou para senti-la mais perto e a olhou de um modo tenso e cheio de avaliação. Da garganta dela escapou um suspiro ao sentir a pressão em seu peito. Beijando-a com feroz rendição, arrastou-a até a soleira da torre, entre a luz salpicada e as pedras frias.
Apoiou-se contra a parede e a atraiu contra seu corpo em meio de um torvelinho. Seus braços a rodearam e a dominaram, segurando-a firmemente contra seu corpo e os encantos de sua boca. Beijos febris assaltaram seu pescoço e suas orelhas, despertando um frenético e insistente anseio. Seus lábios seduziram os dela abrindo-os para uma investigação interna de escandalosa intimidade.
Ela se agarrou a ele e se rendeu tonta pelas extraordinárias sensações, elevando-se impotente em meio de uma euforia em que tudo se voltava impreciso.
Era tão agradável. Glorioso. Transcendente. A exaltação de seu canto feito física. O poder e potencial da última ária convertido em substância.
Aqui. Agora. Sim. Com uma voz inaudível seu sangue estalava em demandas entre seus ofegos. Aqui. Agora. Perfeito. Escandalosos batimentos de seu corpo se uniam ao canto. Inclusive sua mente, a parte que deveria conhecer melhor, repetia uma litania de escandalosos impulsos. Suas mãos deslizaram descaradamente sob a jaqueta dele para acariciar e agarrar seus lados e suas costas.
Algo se esticou dentro dele. Ela notou uma mudança perigosa e soube que seu gesto funcionou como algum tipo de afirmação. Os braços dele a acariciaram de uma forma possessiva e seu corpo arqueado se esticou com um impulso indecente. Suas mãos começaram uma exploração através de suas anáguas e ali ficaram. Sua imperiosa paixão e o lugar para onde ele se aventurava deveria assustá-la, mas a excitação só a permitia lamentar que a quantidade de roupa se interpusesse separando-os e inibindo-os.
«Sim. Quero… Quero…» Não sabia o que. Uma fome urgente pulsava através dela, com uma origem e um destino que não entendia. «Mais perto. Mais. Eu quero…»
Como se ele tivesse ouvido seu rogo silencioso, sua mão deslizou sobre sua cintura. Mantendo o polegar em seu estômago e os outros dedos em suas costas acariciaram para cima a bandagem de seu vestido. A desejada expectativa reduziu a respiração dela a uma série de inalações entrecortadas. Um beijo surpreendentemente suave acompanhou o gesto de sua mão para seus seios.
«Oh… Oh.» As deliciosas sensações que sua carícia provocou a deixou aturdida. Atravessaram-na e fluíram através dela, unindo-se aos estímulos provocados pelos crescentes beijos que lhe dava no pescoço e os assaltos a sua boca, que obscureciam sua mente. Deu e recebeu prazer a seu desejo, e o corpo dela, afligido e sem forças só podia aceitá-lo e submeter-se, muito ignorante para oferecer mais que consentimento ao ardor que ambos liberavam e subjugavam.
Os dedos brincavam com o tecido que cobria seus mamilos, duros e ardentes… «Sim…» Procurando agora o babado de seu decote… «Por favor…» Deslizando sob o tecido para explorar o novo desenfreio da pele contra a pele… «Ah, sim…» Seus braços a atraíram mais perto, com mais dureza, e um joelho dele pressionou entre as anáguas e a saia, a pressão foi vergonhosamente bem recebida… «Oh… Céus…» O vestido começou a soltar-se enquanto o corpo da manga deslizava pelo braço e uma mão elevava seu seio nu para uma cabeça morena… «Oh…» Ele o acolheu na umidade de sua boca e com seus quentes lábios iniciou um tortuoso percurso desde umas suaves mordidas até… «Oh…» Uns lamentos escandalosamente excitantes… «Oh…» Deliciosas correntes de prazer desceram por seus poros, enchendo-a, exigindo mais…
…Um movimento, um fraco rangido, ressoou entre as pedras.
Ele se endireitou bruscamente, cobrindo a nudez dela com seu peito, rodeando-a com seus braços para protegê-la enquanto escutava atento. O possível significado daqueles sons abriu passo através dos aturdidos sentidos de Bianca, destruindo o mundo de sensuais sonhos e fazendo-a voltar sem piedade para a realidade.
—Há alguém…? —sussurrou, apertando os dentes contra o lento desdobramento de sua excitação física. Ainda podia ouvir algo, era mais a vibração transportada através do muro que um som real. Incomodava como uma invasão entre os batimentos de seus corações.
Subiu a alça da blusa e a manga do vestido, logo a afastou.
—Fique aqui.
Caminhou a grandes pernadas até a torre. Ela lutou freneticamente contra seus objetos, conseguindo com muita dificuldade recompor seu vestido, experimentando a severa culpa de um criminoso surpreendido no ato do delito. Um abismo se abriu em seu coração.
Se alguém os visse, seria desastroso.
Podia ouvi-lo caminhando ao redor. O largo abismo se converteu em um enjoo, um imenso vazio. Cobrou consciência de seu comportamento como se recebesse um golpe. Aquilo tinha sido uma loucura. Ela tinha atuado de forma desavergonhada. Eles nem sequer se gostavam.
Ouviu-o voltar e tentou fortalecer seu ânimo.
Apareceu ante a soleira, uma forma magra e escura rodeada de luz. Ela não podia ver bem seu rosto.
—Se havia alguém aqui, já se foi. Deve ter sido tão somente um animal.
Ela rezou para que assim fosse, e esperava que se alguém veio da casa para explorar o torreão, não tinha esquadrinhado de perto a entrada da torre.
Ofereceu a mão em um gesto enérgico para fazê-la seguir. Ela se perguntava o que se suporia que deveria fazer ou dizer uma mulher depois de um comportamento tão descarado, e sentiu quase náuseas ante tanta confusão e vergonha. Empreenderam o caminho de volta para casa.
Ele não disse uma palavra. Para ela foi o quilômetro mais longo que já caminhou em sua vida.
Tentou achar consolo na ideia de que tinha demonstrado que era muito perigosa para estar perto de Charlotte, mas a ideia de abandonar Laclere Park estranhamente incrementou sua consternação.
Ele se deteve ante as árvores próximas ao estábulo.
—Faltam-me as palavras, senhorita Kenwood. Meu comportamento foi abominável, e me desculpar não é suficiente. Prometo que não tenho o costume de pressionar às mulheres jovens desta forma. A única explicação que posso dar é que não era eu mesmo esta manhã.
«Não o foi?» de repente o que ocorreu não resultava tão surpreendente tratando-se desse homem. Pareceu que o acontecido era uma consequência natural de seu caráter, um pouco controlado, mas que sempre estava ali, como uma corrente subterrânea sob a calma, uma corrente percebida, mas nunca vista e impossível de nomear. Esta produziu tensão entre eles desde o começo, como uma maré perigosa. Ela havia sentido seus efeitos, mas até hoje não os tinha entendido.
Ele seguia com os olhos sobre o atalho, sem olhá-la. Com suas palavras assumia a culpa, mas ela se perguntou o que pensaria realmente. Que demonstrou que não podia viver como uma monja? Que sua natureza era a de uma cortesã e ele deveria permitir que conseguisse a ruína que procurava? «Pressionar» não descrevia realmente o que ocorreu e os dois sabiam.
—Não fui prejudicada.
—Se nos vissem, definitivamente sim seria prejudicada.
—Eu não acredito que nos viram. Se alguém se aproximasse da entrada da torre, teríamos percebido.
—Se tivesse razão, isso só evitaria as piores das possíveis repercussões. Não pode negar que minhas ações foram indesculpáveis e desonestas, sobre tudo porque sou responsável por você. A comprometi, e não importa se alguém sabe ou não. Se você o exigir, farei o correto contigo.
—O correto? Quer dizer… Oh, não, essa é uma ideia absurda.
—Certamente promete ser uma ideia complicada, considerando… Bom… Enfim, complicada. De todos os modos…
—Não nos deixemos levar por seu senso de decoro e de dever, por favor. Não me sinto comprometida, nem arruinada.
Depois de dizer isto recebeu um severo olhar.
—Ah, não? É uma jovem extraordinariamente serena.
Aí estava. A insinuação de indecorosa cumplicidade por sua parte. Em realidade o animou, se a pessoa quisesse olhar as coisas com franqueza. Aquele olhar e aquela pergunta revelavam o que ele tinha em mente, e era difícil culpá-lo, considerando todas as ambiguidades que deliberadamente deixou cair com respeito a suas experiências.
—Digamos que não me sinto tão comprometida para recorrer a uma medida tão extrema como o matrimônio. Possivelmente simplesmente deveríamos esquecer este assunto.
—Sua equanimidade me impressiona. Deveria estar agradecido de que se mostre tão compassiva.
Não se sentia absolutamente compassiva. Sentia-se transtornada, desolada, decepcionada. Descer daquela glória a essa discussão formal sobre como expiar a poderosa experiência que compartilharam… Dava vontade de feri-lo, de bater nele, de dar uma bofetada que vencesse essas frias considerações sobre como retificar sua imprudência.
—Simplesmente não desejo complicar as coisas mais que o necessário, especialmente de um modo que me faria perder o controle sobre meu futuro e requereria um sacrifício por ambas as partes que levaria a uma vida inteira de infelicidade. Não me casaria contigo fosse qual fosse o escândalo que me ameaçasse. Entretanto, nossas futuras relações se tornaram embaraçosas. Acredito que será melhor que aceite minhas preferências a respeito de minha estadia na Inglaterra. Jane e eu encontraremos uma casa em Londres e…
—Serei eu que me afastarei. Minhas visitas a Laclere Park serão pouco frequentes e breves durante os próximos meses.
—Isso é muito injusto com suas irmãs.
—Quando você for à cidade passar a temporada minha presença será inevitável, mas por então possivelmente o tempo terá atenuado minha ofensa.
Ele não queria dizer isso. Sabia que não tinha sido realmente uma ofensa. Não se podia dizer que a tinha forçado ou forçado a si mesmo.
Ela deu a volta, aliviada e ao mesmo tempo triste por saber que depois daquela festa seriam muito poucas as ocasiões em que o veria.
Capítulo 7
Vergil estava certo. Ela seria uma amante esplêndida.
Tentou impedir aquele pensamento enquanto cavalgava de volta para as ruínas. Dava voltas em sua cabeça, uma reação absolutamente desonrosa de um homem que sucumbiu a desonrosas inclinações.
Seu comportamento foi vergonhoso. Censurável. Enlouquecido.
Isso não o impedia de voltar a rememorar e experimentar o contente consentimento que ela mostrou. Sentiu em sua boca seus suaves lábios e seus doces peitos. Explorou sua vibrante excitação com a pressão de seu joelho.
Se o intruso não os tivesse interrompido, a teria levado ao cômodo e teria feito amor até que as pedras ressonassem com seus gritos.
E ela permitiria.
Parou e bateu a palma da mão contra uma árvore, em busca de uma realidade tangível que pudesse destruir o desejo que voltava a dominá-lo.
«Confusa», havia dito Dante.
Maldita seja, sim era confusa.
Ela nem sequer gostava dele. Raramente falavam sem discutir. Ele esteve rondando em sua presença os últimos dois dias, mas ela nunca o buscava. E que então se lançou para cima sem nenhum tipo de inibições…
Caminhou com passo decidido através das árvores, possuído por um estado de ânimo perigoso. A calma que ela mostrou no estábulo foi mais que perturbadora. Exasperante. Quase para ruborizar-se. Uma serenidade total. Ele foi uma mescla desordenada de impulsos contraditórios, enquanto que ela se mostrou incrivelmente tranquila. «Não fui prejudicada.»
«Quase te arranco a roupa e te atiro ao chão sobre uma pedra.»
«Não me sinto comprometida, nem arruinada.»
«Bem, maldita seja, eu sim. Os homens que seduzem suas pupilas são repugnantes.»
«Não me casaria contigo fosse qual fosse o escândalo que me ameaçasse.»
Parou na borda da clareira do castelo com essas palavras ecoando uma e outra vez em sua memória.
Ele deveria se sentir agradecido ante seu terminante rechaço. Mas em vez disso experimentou uma ira irracional. Em parte porque sua serenidade o fazia perguntar-se se tudo teria sido para ela simplesmente um jogo caprichoso. E, sobre tudo, porque sua determinação o fazia cobrar consciência do fato deprimente de que ela jamais seria sua da forma em que ele queria.
Menos mal. Seria uma amante esplêndida, mas uma esposa impossível.
Deixaria que Dante se arrumasse com ela.
Essa ideia incitou nele um ressentimento primitivo e possessivo. Tentou reprimi-lo esforçando-se para concentrar-se nas ameias do castelo.
Uma escada se elevava em uma das bordas do muro, tão danificada que faltavam todos os degraus. Só podia subi-la esticando as pernas em busca de perigosos pontos de apoio para os pés. Uma pequena seção de rochas caiu sobre a erva enquanto escalava. Detinha-se a cada momento, tentando identificar se o som se parecia com aquele que tinha ouvido quando sustentava Bianca na torre.
Acima no caminho da muralha existiam ocos. Alguém tinha substituído algumas zonas desaparecidas com madeira nova, mas outras consistiam em fragmentos de tábuas podres, que sem dúvida não haviam sido reparados ao menos há um século.
Avançou com cuidado até chegar ao ponto do muro onde um enorme dente das ameias se desprendeu por completo. Aí abaixo se via o novo montão de pedras. «Quem teria imaginado que a tranquila Laclere Park podia ser tão perigosa?»
Uma questão endiabradamente certa.
Examinou a rugosa superfície onde as pedras se encontravam até tão pouco tempo e apalpou a argamassa das pedras que ainda se sustentavam em pé. As ligaduras podres caíam em uma pequena chuva de pó, unindo-se com um montão de pedrinhas a seus pés.
Nada parecido podia ver-se no resto das ameias. Examinou a superfície das pedras outra vez, procurando o rastro de alguma ferramenta. Podiam ser fruto de sua imaginação os sutis arranhões provocados por um instrumento metálico?
Caçadores furtivos disparando armas de fogo e depois uma muralha que vinha abaixo. Possivelmente tão somente fosse uma coincidência. Não havia nenhuma evidência do contrário. De todos os modos não gostava disso.
Desceu da muralha, procurando alguma prova de que alguém mais tivesse estado ali recentemente. Os sons da torre de pedra rondavam em sua memória. Não ouviu ninguém caminhando pelo atalho. Entretanto, aquele intruso podia ter sido simplesmente um dos convidados explorando o pitoresco castelo Laclere Park.
Retornou para casa. Quando passou ante a sala do café da manhã, viu Bianca em uma mesa na companhia de Cornell Witherby e Daniel Saint John.
Ela sorria e ria ante alguma brincadeira de Witherby.
Que incrível serenidade.
Provavelmente para ela só foi um jogo caprichoso, uma maneira de demonstrar ao santo que não era tão puro. «Possivelmente simplesmente deveríamos esquecer este assunto.» Dirigiu-se a seu escritório dando grandes passos, ressentido até a medula por um ponto de honestidade que admitia que enquanto ela poderia ser capaz de esquecê-lo, ele certamente não era.
«Eu nunca desmaio.»
«Por mim o fez!»
Estava reagindo como um moço inexperiente e isso o irritava ainda mais. Enviou um lacaio para procurar Morton, depois se recostou em sua poltrona e pegou alguns papéis.
Morton chegou quando estava terminando seu escrito.
—Quero que esta carta dirigida ao advogado de Adam Kenwood seja enviada a Londres pelo correio urgente — disse enquanto selava a missiva— Leva-a ao povoado pessoalmente agora mesmo. —Pôs a carta entre os grossos dedos de Morton— Ficará aqui quando voltar a partir para o norte. Eu não gosto da ideia de deixar à senhorita Kenwood em Laclere Park sem ninguém que a vigie.
—Acredita que corre algum outro perigo?
Vergil sabia que Morton empregava a palavra «outro» porque estava pensando no perigo que todas as mulheres belas corriam estando perto de Dante.
Possivelmente corria esse perigo. Ele não sabia. Entretanto, considerando os caçadores furtivos, as paredes que desabam e os assaltos do visconde Laclere, o perigo de estar perto de um libertino era muito menos preocupante.
***
Depois do jantar Bianca se achava sentada entre Fleur e a senhora Gaston, conversando com Pen e Cornell Witherby.
—Será uma série de epopéias — explicava à senhora Gaston— Vendidas por assinatura, embora financie a impressão. O poema do senhor Witherby será o primeiro.
Cornell Witherby sorriu modestamente. Penelope lhe dedicou um olhar cheio de admiração.
A senhora Gaston tinha a si mesma como uma rainha aceitando comemorações e oferecendo favores. Seu cabelo castanho avermelhado brilhava como o cobre à luz da lareira, e a satisfação que sentia ante sua própria importância se deixava ler em seu rosto.
—Enquanto nós falamos os impressores já estão trabalhando. Espero que cause sensação e que se necessitem mais edições. Não pelos benefícios materiais, é obvio. Pelo alcance das pessoas de bom gosto e sensibilidade o prodigioso talento do senhor Witherby é minha meta.
Falava como se o conselho divino ditasse seu trabalho, mas Bianca suspeitava que a importância que se outorgava ao ser patrocinadora a motivava muito mais que seu amor pela arte.
—Quais serão os outros poetas? —perguntou Fleur.
O que seguiu foi uma discussão sobre os méritos dos jovens poetas que poderiam merecer o mecenato.
Bianca mal ouvia o que diziam.
Passar a tarde desfrutando da doce companhia de Fleur provocou um horrível sentimento de culpa. A fria amostra de cortesia de Vergil deixou um vazio devastador. Um relógio interno advertia o passo de cada minuto daquele comprido dia com tic-tacs de agonia.
Tentou não voltar a olhar Vergil, nem dirigir-se a ele, mas era consciente dele a cada instante. Sentia sua presença quando estava perto. Ouvia cada palavra que dizia, inclusive embora se achasse na outra ponta da estadia.
Duas Biancas reagiam ante cada movimento dele. A velha Bianca, a inteligente, catalogava seus defeitos com uma ira mordaz. Mas havia uma nova que rezava para obter algum sinal por parte dele. Esta nova Bianca se rebaixava com lastimosos suspiros, mas a velha Bianca não podia fazê-la desaparecer.
De algum modo, de algum modo, superaria esse dia.
—… Haverá terríveis problemas se revogarmos a Ata de Combinação — entoou lorde Calne enquanto ele, Vergil e o senhor Saint John caminhavam para o pequeno grupo— Se se permitir que as classes mais baixas se agrupem, a ordem se verá ameaçada. Não podemos permiti-lo. É muito perigoso. Poderia terminar como a França em 93. Lamentará Laclere.
Pequenas chamas apareceram nos olhos de Daniel Saint John. Olhou lorde Calne como se fosse um imbecil.
—Parece como se soubesse muito pouco sobre o que aconteceu na França. Do contrário entenderia que as pessoas não podem viver para sempre com uma bota pisando em sua cabeça.
O rosto de lorde Calne ficou vermelho.
Vergil falou de forma apaziguadora.
—A Inglaterra não pode apoiar sua política nos excessos do povo francês de uma geração anterior, Calne.
—Oh, Deus nos libere. Política! —Cornell Witherby protestou brandamente, dirigindo-se às damas— Não serve nada mais que para a sátira.
Um calor especial brilhou em seus olhos ao dirigir seu bom humor para Pen, que ria. Parecia que Dante estava certo a respeito de sua amizade especial.
Sentindo-se em um estado de ânimo crítico em relação aos homens, Bianca o esquadrinhou minuciosamente. Aparentava uma boa figura e era de meia altura, mas sua postura tinha uma severidade muito pouco poética, como se uma vara de aço tivesse sido soldada a sua coluna. O cabelo loiro caía sobre sua testa e suas bochechas. Seu rosto era talvez um pouco alargado, mas era um homem atrativo ao redor de vinte e cinco anos de idade.
O fato de que cortejasse uma mulher que oficialmente estava casada não contava nada nas considerações de Bianca a respeito de ser bom para Pen. Muito mais significativo que isso era a atitude de absoluta devoção que tinha ao olhar para Penelope.
Ela jamais viu Vergil olhando daquele modo a uma mulher, nem sequer a Fleur. Quando o visconde Laclere examinava uma mulher, ela tinha a impressão de que estava avaliando seus defeitos.
Naturalmente isso não ocorreu quando a escutou cantar.
E decididamente tampouco ao beijá-la.
Nem ao lhe tirar o vestido.
Nem…
—Bom, ao menos essas liberações políticas mantêm seu impressor ocupado — disse a senhora Gaston.
Witherby suspirou.
—Foi só para dar suporte às artes literárias que aceitei o passatempo dessa imprensa. Preferiria dizer aos homens que rechacem qualquer comissão que não tenha a ver com poesia. Entretanto, os panfletos servem estupendamente para custear os trabalhos importantes. Assim ocorre com o patrocínio de grandes damas como você.
A senhora Gaston pareceu agradada com a adulação, e com seu êxito ao desviar a atenção para ela.
—Anular é uma necessidade moral. É uma falta de sentido proibir a homens livres assembleias livres — dizia Saint John aos homens que se achavam de pé perto.
—Se estiverem tão insatisfeitos deixemos que se vão —disse a senhora Gaston, unindo-se à conversa— Uma passagem grátis a Austrália para os que estejam descontentes. Não entendo por que ninguém propõe uma coisa assim. Para mim é uma saída completamente lógica.
—Se dá a todos os homens a oportunidade de votar, poderão decidir sobre seu futuro e estarão menos descontentes — disse Saint John.
—Acaso a multidão de Manchester deveria decidir as leis? —perguntou lorde Calne— A Câmara dos Comuns já está bastante alterada para acrescentar radicais e irlandeses.
Pen dirigiu a Saint John um sorriso suplicante e tranquilizador. O qual reprimiu a resposta destrutiva que pensou.
—As pessoas de Manchester não são uma multidão — disse Vergil— Eles estão ajudando a Inglaterra a se converter na nação mais rica do mundo. As cidades industriais como Manchester não podem continuar sendo privadas do direito ao voto por regras de distrito redigidas há séculos. É inevitável uma reforma do Parlamento.
Pen olhou seu irmão pondo os olhos em branco, a modo de reprovação por seguir alimentando a discussão.
Lorde Calne parecia estar sofrendo uma espécie de apoplexia.
—Antes me condeno no inferno. Se apoiar isso, Laclere está traindo seu sangue. Essas cidades do norte são lugares terríveis. Sujas de fábricas e máquinas e homens vis enriquecendo-se com comércios fétidos. Ouvi que é pior que em Londres. Não, me dê o ar limpo do campo e uma boa caçada. Nunca permitiremos que nos arrebatem isso.
Pen viu sua oportunidade.
—E como vai à caça em sua fazenda este ano? Podemos esperar as habituais caçadas magníficas?
—Parece boa, parece boa. Embora haja uma batalha contínua com os caçadores furtivos. Terei que levar cinco homens para as reuniões do trimestre.
A mudança de tema deu a Bianca uma oportunidade para escapar da proximidade de Vergil. Desculpou-se.
Os homens menos predispostos à política se dispersaram pela estadia. Nigel falava com Catalani e com a senhora Monley perto da janela. Seu primo a olhou com um caloroso e acolhedor sorriso quando ela passou ante ele.
Bianca se uniu a Diane Saint John, Charlotte e Dante.
Estavam falando sobre os dois filhos dos Saint John. Dante mostrava mais interesse nas travessuras dos pequenos meninos do que Bianca esperava, mas se aproximou para sentar-se a seu lado assim que ela chegou e permitiu que as damas conduzissem a conversa.
—Esteve muito calada hoje — disse ele em voz baixa— Espero que não esteja afligida por meu mau comportamento.
Ela quase esqueceu aquele beijo na biblioteca.
—Estou afligida ante tantos rostos novos. Tenho poucos temas que tratar com eles.
—Bom, aqui vem Saint John. É dono de uma companhia naval, como foi seu avô, assim tem algo em comum com ele.
Daniel Saint John se afastou da companhia de lorde Calne e se aproximava deles.
—Saint John, você conhecia Adam Kenwood, verdade? —perguntou Dante para facilitar as coisas a ela.
—Conheci-o sendo muito jovem. De fato, minha primeira viagem quando era um moço foi a bordo de um de seus navios. Muito antes que ele se dedicasse às finanças, é obvio.
—Quando ocorreu isso? —Bianca se sentiu obrigada a continuar a conversa, já que Dante iniciou por ela.
—Faz anos. Vendeu seus navios… Faz coisa de uns dez anos.
—Navegou com ele bastante tempo?
—Não, somente uma vez. Abandonei o navio ao chegar às Antilhas e encontrei um camarote com outro capitão.
—As regras de meu avô não o atraíam, suponho.
—Seu avô não era o capitão. Só era o dono dos navios e organizava os carregamentos. Eu simplesmente decidi navegar em outra parte.
Estava mentindo. Bianca estava segura disso por essa forma de falar muito educada.
—É estranho que vendesse todos os navios de uma vez — disse Dante— Ter uma frota de navios e no dia seguinte de repente ficar sem nenhum…
—Dado que comprei dois estava encantado de que o fizesse — disse Saint John.
—O que transportavam seus navios? —perguntou Bianca.
—Todo tipo de mercadorias, suponho, como meus.
Ela tinha a sensação de que o senhor Saint John se limitava a agradá-los, e não estava sendo muito franco. Dante tinha razão, era estranho que seu avô vendesse todos os navios de uma vez, não importava o que dissesse este outro comerciante marítimo.
Não teve tempo de pressioná-lo para conseguir uma explicação mais clara, porque Pen se dirigiu até o centro da estadia e reclamou atenção.
—Temos a sorte de contar com vários músicos consumados entre nós esta noite, e eu abusei de dois deles, o senhor Nigel Kenwood e a senhorita Bianca Kenwood, pedindo a eles que nos ofereçam uma atuação. Passemos com eles ao salão de música e os ofereçamos nossa agradecida atenção.
Ela mesma abriu caminho. Dante se dispôs a acompanhar Bianca, mas o senhor Saint John reclamou primeiro sua atenção.
—Parece que Catalani sabe quando deixar passo aos jovens.
—É amável por sua parte dizer isso, mas duvido que ela tema que eu possa lhe fazer concorrência.
—Cedeu a atuação por uma razão. Sabe que seu instrumento já não é o que era. —Pôs a mão dela entre seu braço enquanto caminhavam com o passar do corredor— Nervosa?
—Horrivelmente nervosa. Ansiava que chegasse este momento, e agora…
—Então isso explica seu ar distraído de hoje. Minha mulher me comentou isso. Ela é muito observadora a seu modo silencioso, e temia que você estivesse preocupada com algo. Se sentirá aliviada ao saber que se tratava de seu medo de cometer alguma estupidez na atuação de esta noite. Lhe direi que se tratava disso, e que é perfeitamente normal.
Não o era. Não para ela. Mas isto era diferente. Durante todo o dia a tinha aterrorizado a ideia de que chegasse esse momento. Voltar a cantar essa ária, diante de toda essa gente, com ele sentado ali… Algo se retorcia em seu interior com cada passo que dava.
Nigel ocupou seu lugar ante o piano. Os convidados se sentaram nas cadeiras colocadas ante ela. Vergil escolheu permanecer de pé junto à parede, perto de Fleur.
Ela o olhou, esperando um sorriso de boa sorte. Ele não se deu conta, pois se inclinou para dizer algo a sua prometida. Seu coração se encheu. Estava tão atrativo com seu casaco de um verde escuro e suas calças nata, com suas mechas onduladas emoldurando seu rosto e seus olhos azuis iluminados com um brilho de humor enquanto sorria a sua dama.
Deu-se conta com um sobressalto de que Nigel começou a introdução. Ela lutou para preparar-se.
Da outra ponta da estadia, Vergil a olhou.
Ela falhou. Essa primeira nota simplesmente não saía. Voltou-se para Nigel com desespero, suplicando sem palavras. Ele improvisou até que voltou a levar a melodia ao princípio outra vez. Ela se concentrou no chão e conseguiu acalmar-se. Ao levantar a vista viu um casaco verde deslizando através da porta.
«Obrigado.»
Afinou cada nota com precisão, mas sua alma não estava totalmente implicada nelas. Vergil podia não estar presente na sala, mas se achava em sua cabeça, confundindo-a com aquele olhar alarmante, misturando-se em seu espírito com lembranças indecorosas. Aquela ária não soou como a última vez nas ruínas, com sua emocionante exaltação. Uma emoção diferente gotejava desta vez. Um estranho oco existia em seu interior e a música o levava mais profundo e o enchia com um penetrante e doloroso desejo. Ao acabar ela não sabia se a atuação tinha saído bem ou não.
—Esplêndido, prima — sussurrou Nigel no meio do silêncio que se produziu.
O esforço a deixou imersa em uma névoa de melancolia. Deu uma olhada à expressão pensativa de Catalani enquanto recebia os elogios de outros convidados.
Catalani caminhou para ela, puxou-a pelas mãos e a afastou para um lado.
—Os anos me tornaram cética, e confesso que esperava uma voz bonita, adequada para salões e Igrejas. Estava equivocada. Possui um grande talento, querida. É excepcional.
Qualquer outro dia o julgamento de Catalani teria produzido euforia. Essa noite tão somente acrescentava um grande nó a mais ao matagal de emoções que a confundiam.
Pen encabeçou a marcha para a biblioteca para jogar cartas, mas Bianca se desculpou, dizendo que queria retirar-se. Seguiu à comitiva através do corredor, mas se desviou ao chegar à escada. Nigel se separou de outros.
—Esperava que nos encontrássemos jogando na mesma mesa, prima.
—Seria uma má companhia esta noite. A emoção de cantar com Catalani presente…
—É obvio. Entendo. De todas as formas agradeceria poder passar um momento mais contigo. Muito em comum, prima. Eu gostaria de te conhecer melhor.
Por mais que insistisse em usar a palavra «prima», por mais que empregasse um tom formal e correto suas intenções saíam à luz. O interesse que sentia por ela brilhava em sua expressão. Ela suspeitou que se naquele momento se achassem sozinhos no jardim Nigel teria tentado beijá-la.
Três homens em dois dias. Ela não tinha ideia de que fosse tão fácil voltar-se promíscua.
A experiência daquela manhã a havia tornado cínica. Possivelmente o interesse de Nigel fosse honesto.
—Se juntará com os outros para cavalgar amanhã pela manhã? —perguntou ele.
Pen organizou para todos uma visita pela fazenda, que terminaria com um almoço nas ruínas. Retornar ali tão cedo seria horrível.
—Não acredito. Não me encontro bem, ficarei aqui descansando.
Abriu-se a porta do estúdio que dava ao corredor. Dela emergiu a alta figura do visconde Laclere, que se dirigia à biblioteca. Ao vê-los se deteve, ficando de pé ante eles como uma sentinela. Nigel o olhou e a seguir dirigiu a ela um sorriso íntimo.
—Eu gostaria de falar contigo em algum momento em que seu guardião não esteja me olhando por cima do ombro. Os dois estamos sozinhos no mundo, e os parentes podem ser uma fonte de consolo. Se alguma vez necessitar minha ajuda, espero que venha a mim.
—É muito amável por sua parte me fazer essa oferta. Agora deveria se unir aos outros, eu preciso estar sozinha.
Vergil não se moveu, nem sequer quando Nigel passou ante ele lhe dirigindo uma saudação e entrou na biblioteca. Simplesmente seguia ali de pé, olhando-a. Ela queria girar a cabeça e afastar-se com altiva indiferença. Mas não podia mover-se.
—Retira-se?
—Sim. A noite foi uma prova.
—Eu acredito que a noite foi um triunfo. Escutei você. Superou a si mesma. Quanto ao dia, suponho que foi uma prova, e me desculpo por isso.
Ela não queria voltar a ouvir nada mais a respeito de suas desculpas.
—Os papéis pessoais de seu avô chegaram esta manhã — disse ele— A maioria das caixas está em meu escritório para que não a incomodem, mas separei as que correspondem aos anos em que seu pai vivia com ele e as mandei levar a seu quarto, junto com o que havia no escritório.
—Obrigado. —esforçou-se para mover-se e chegar até a escada.
—Há algo mais. Devo insistir em que não deve voltar a sair sozinha pela manhã cedo.
—Está preocupado por minha virtude? — A pergunta surgiu sem que ela pudesse impedir.
Ele nem sequer teve a decência de mostrar-se envergonhado.
—Estou preocupado por sua segurança.
—Irei onde queira e ensaiarei sempre que puder.
—Não pela manhã, e não sozinha. Se quiser praticar em privado e se preocupa que em seu quarto possa incomodar os outros, usa meu escritório. Mas não saia da casa.
—Continua cortando a correia, Laclere. Por que não me ata ao pilar da cama?
Seus olhos azuis a olharam de uma maneira que nada tinha a ver com o que usou nas insossas admoestações que acabava de lhe fazer.
—Tem talento para provocar as imagens mais surpreendentes, senhorita Kenwood. —deu a volta— Até amanhã então.
Jane a esperava em seu quarto. Sentia-se bem ao poder estar a sós com alguém que a conhecia há anos.
—Os convidados realmente o passam bem, verdade? —disse Jane— Todos esses homens bonitos com seus trajes elegantes.
Jane viu aquela viagem desde o começo como uma boa oportunidade para que Bianca encontrasse um marido. Nunca reconheceu que a falta de pretendentes em Baltimore era voluntária; o resultado de esmeradas dissuasões.
—Esse senhor Witherby parece prometedor. Um cavalheiro conforme se diz, e bastante atrativo.
—Suspeito que se interesse por Penelope.
Jane franziu o cenho.
—Por uma mulher casada? Separada ou não, isso é o que é. Bom, o visconde está fora de jogo. Está a ponto de prometer-se à senhorita Monley. E menos mal. Quem iria querer um homem tão estrito e severo? Sempre fica o irmão mais jovem de Charlotte, embora se diga…
—Sei o que se diz.
Jane a ajudou a colocar a camisola.
—Todos esses homens solteiros e nem sequer uma paquera? Quem ia esperar que a Inglaterra fosse tão aborrecida.
Algo menos aborrecida, e o de paquera não serviria nem para começar a descrever até que ponto estava se convertendo no contrário do aborrecimento.
—Meu primo Nigel me deu a conhecer seu interesse.
—Nunca gostei da ideia de que os parentes se mesclem. Não é bom juntar o sangue.
—É um parente bastante longínquo.
—Certo. Só que ouvi dizer embaixo que se parece muito a Dante. Vive endividado. Não pode permitir-se essa vida tão elegante. Seu avô deixou a você a maior parte do dinheiro. Diz-se que seu primo só tem dinheiro suficiente para manter o imóvel, e que tudo está disposto de forma que não possa acessar mais que os ganhos correspondentes para cada ano.
—Onde se inteira de todas essas coisas?
—Os criados daqui conhecem os poucos criados que ficam ali. Os arrendatários falam entre eles. É igual em nossa vizinhança. Tudo entra através da porta da cozinha — disse Jane— Se ele expressou esse tipo de interesse, deveria saber que pode ser como Dante em outros sentidos também. Parece que seu primo não está sempre só nessa grande casa. Uma mulher o visitou secretamente a semana passada. Segue meu conselho. Não acredito que queira o interesse desse homem.
Bianca não queria o interesse de nenhum homem. Rotundamente não. Nada mais que distrações, isso é o que eram os homens. Potencialmente distrações permanentes, assim funcionava o mundo. E, como ela vinha aprendendo a trancos e barrancos, fontes de dor e confusão.
Ansiava adormecer, mas sabia que só ocorreria quando estivesse completamente esgotada. Quando Jane saiu, aproximou as velas às caixas e ao baú, empilhados perto da lareira, e se sentou no chão para descobrir o que podiam revelar.
Uma chave estava na fechadura do baú. Girando-a abriu a tampa para examinar o conteúdo do escritório de Adam Woodleigh.
Tocou as plumas e o tinteiro barato. Buscou entre papéis cheios de escritas. Um tinha escrito o nome do irmão de Vergil, junto com outros, e ela supôs que foram os últimos que seu avô escreveu.
Uma pilha de cartas, atadas com um barbante, chamaram sua atenção. Estava a ponto de abri-las quando viu a saudação que encabeçava a primeira. Escrito pela mão de um homem, dirigia-se a Adam como «Meu mais querido amigo».
Com uma saudação como essa não podiam ser de seu pai. Provavelmente seriam do anterior visconde. As daria a Vergil.
Em um pequeno estojo de couro encontrou uma miniatura de uma mulher loira. Imaginou que seria sua avó. Encontrou certo parecido com seu pai, e a assaltaram lembranças de seu amor e sua nobre honestidade. Sua garganta ardia como se uma velha dor se unisse as novas.
Uma flor seca caiu em seu colo enquanto devolvia a diminuta pintura a seu ninho de veludo.
A flor não parecia muito velha. Não se desfez ao tocá-la, parecia que estava a anos naquele estojo.
Imaginou um homem velho recolhendo uma flor no jardim quando saía para caminhar e abrindo mais tarde esse estojo que continha a lembrança de sua esposa. Imaginou Adam lhe deixando essa pequena oferenda.
Fechou de repente o estojo. Não queria ficar sentimental com esse homem. Provavelmente a flor esteve ali sempre e foi sua avó quem a colocou ali.
O outro baú continha pastas. Adam foi um homem organizado, cada pasta correspondia há um ano e dito ano estava escrito na parte dianteira. Ela procurou as correspondentes aos anos em que ainda não tinha nascido, justo quando seu pai abandonou a Inglaterra.
Levou algum tempo encontrar o ano preciso. Não sabia que seu pai viajou a América ao menos seis anos antes que ela nascesse.
Era uma pasta magra com umas poucas cartas. Três eram de seu pai. Leu-as e compreendeu a razão pela que Adam Kenwood e seu filho se separaram.
Não foi por causa de sua mãe. Ocorreu antes que seus pais se conhecessem. Vergil estava certo a respeito do ocorrido. Seu pai rompeu a relação. Em uma carta onde rechaçava a oferta de uma pensão por parte de Adam expôs as razões.
As explicações esvaziaram seu coração das últimas frestas de alegria e confiança. O sonho que a sustentou desde a morte de sua mãe balançou como se seus alicerces tivessem sido atacados. A herança de repente a golpeou como uma brincadeira malvada, um chamariz do diabo para fazê-la pecar.
Não era para menos que seu pai tivesse dado as costas à fazenda e ao status que Adam edificou.
Seu avô fez sua primeira fortuna com o comércio de escravos.
CONTINUA
Vergil Duclairc é um homem acostumado a vencer. Como recém-nomeado tutor da senhorita Bianca Kenwood, está decidido a encontrá-la e devolvê-la ao lar custe o que custar, embora a última coisa que podia imaginar era achar sua pupila vestida de modo escandaloso cantando em um teatro de duvidosa reputação. Mas ainda estava menos preparado para a implacável atração que sentiu por ela somente em vê-la, um desejo que não pode permitir deixar fluir por medo de desmascarar segredos que jurou guardar.
De sua parte, Bianca não está disposta a abandonar sua independência, mas há algo irresistível no belo e persistente visconde Duclairc que o converte não só no administrador de sua herança, mas também no dono de seu coração. A jovem descobrirá em seguida que Vergil é um homem de profundos segredos e de uma sensualidade perturbadora a qual não se pode resistir. Quando suas vidas estão a ponto de mudar e seus caminhos a se separar, crescerá entre ambos uma paixão que os permitirá lutar contra o mundo ao qual pertencem.
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Capítulo 1
O canto de Jane Ormond, que Vergil apreciava a contra gosto, não apaziguou sua ira nem um pouco. Lamentava terrivelmente não poder jogá-la na prisão de Newgate, a que pertencia.
Ia vestida como uma rainha francesa do século passado, mas não parecia cômoda em seu papel. Movia-se com rigidez, como se temesse que a alta peruca branca caísse ou que o miriñaque[1] do vestido inclinasse. A confiança de sua voz contrastava com sua fragilidade física. E sua pose de profissional cheia de segurança destoava durante os breves momentos de vulnerabilidade.
Ele não se sentia deslumbrado com seus estudados encantos. Com seus olhos grandes, seus lábios carnudos e sua insinuada fragilidade, aparentava o tipo mais perigoso de inocência, dessa que impulsionaria um homem a sacrificar sua vida com o objetivo de protegê-la, mas que também poderia despertar outra parte escura, e conseguir que esse mesmo homem se imaginasse lhe arrancando a roupa e destruindo essa inocência.
Moveu-se em direção a ele, levantando a cabeça para cantar as notas mais altas em uma exibição vocal. Seus olhares se encontraram. Por um momento apareceu em seu rosto um brilho de curiosidade, como se percebesse que ele não estaria ali se não fosse pelo dever.
Ele sabia que não havia nada em sua aparência que pudesse revelar isso. Aquela sala de jogos incluía espetáculos para atender aos gostos dos homens de sua classe. Eles podiam descansar de suas apostas naquele salão para comer e desfrutar de um concerto de ópera, ou, mais tarde, desfrutar de formas de entretenimento muito mais baixas.
Ela o olhou por um tempo mais longo do que devia em resposta à inspeção a que se sentia submetida. Ele se surpreendeu ante a inquietante combinação de proteção e erotismo que aqueles grandes olhos convocavam, e se concentrou em todos os problemas que ocasionou durante as últimas duas semanas.
Morton se deixou cair na outra cadeira da mesa. Parecia desconjurado, com sua pinta de urso e sua barba fora de moda.
—A garota está aqui — disse— Em uma estadia traseira. A senhorita Ormond a traz aqui a cada noite, para que a espere enquanto ela canta. Falei com o homem da porta e ele as viu entrar juntas esta noite.
Vergil se levantou.
—A senhorita Ormond cantará outra canção depois da ária. Faremos agora. Temos que tirar à garota antes que acabe. —A senhorita Ormond, sem suspeitar nada, continuava com seus gorjeios— Se for inteligente, nos perseguirá pela costa quando se der conta de que seus planos fracassaram. Quanto à garota, a levaremos ao campo para que se recupere, e ninguém se inteirará de nada.
Estava contando é obvio, naturalmente, que a senhorita Jane Ormond ainda não vendeu à garota pelo maior preço. Concentrou sua atenção no rosto aparentemente ingênuo sob a muito alta peruca branca. Podia ver-se um traço de inteligência naqueles olhos. Não, essa mulher não teria se arriscado tanto por um prêmio tão pequeno como o dinheiro que podia obter de vender uma virgem. Possivelmente teria planejado pedir um resgate, mas o mais provável era que tivesse intenção de vender à garota para algum casamento. Ela, sem dúvida, tinha notícias de sua herança desde que servia de criada e partiram juntas da América.
Tudo aquilo podia ter sido evitado se Derem estivesse mais atento. A culpa era em realidade dele, por ter enviado seu irmão para receber o navio, mas quem ia pensar que uma criada que não era mais que uma menina se atreveria a fazer semelhante coisa.
O corredor de má morte contrastava com a opulência do salão. Morton assinalou para uma porta escondida sob uma escada. Vergil girou o trinco.
Já havia visitado camarins de cantoras, e normalmente era um autêntico desastre ao que se refere à ordem. Entretanto, aquele diminuto espaço foi arrumado cuidadosamente. Havia um par de velas sobre uma mesa, em que também podia ver-se um espelho e um recipiente com pinturas. Disfarces e roupas de dia penduravam de uma fila de cabides colocados na parede. À direita da mesa havia uma cadeira entre as sombras, onde uma moça permanecia sentada com uma agulha fazendo acertos em um tecido que sustentava perto das chamas.
—Senhorita Bianca Kenwood?
Ela levantou o olhar surpreendida e ele imediatamente começou a calcular quanto teria que incrementar o suborno que pensava fazer a Dante. Sem dúvida poderia tratar-se de uma garota doce, mas Dante julgava às mulheres por seu aspecto físico, não por seu caráter, e o dela não impressionava muito. As mechas de cabelo castanho que escapavam de seu gorro pareciam mais crespados que frisados. Seu nariz era arrebitado, o qual poderia ter resultado encantador no caso de que não fosse tão largo.
—Senhorita Kenwood, sou Laclere.
—Oh!
—Este é Morton, meu (criado). Tenho um carro estacionado atrás do edifício e a levaremos ali imediatamente. Sua terrível experiência terminou e te asseguro que ninguém jamais terá notícia deste desafortunado incidente.
—Oh! Oh, Deus…
—Por favor, é necessário sairmos agora. Falarei com a senhorita Ormond mais tarde. No momento, o melhor será que a tiremos daqui.
—Oh, não acredito que… Isto é… — Andou para trás, fazendo gestos de resistência e confusão. Ele se inclinou para ela e sorriu para transmitir confiança. Precaveu-se de que seu vestido era muito comum, um simples vestido longo e cinza. Era evidente que não tinha nenhuma noção do que era se vestir na moda.
—Vamos querida. Será melhor que saiamos antes que…
—Quem é você? —A indignada voz que fazia a pergunta era feminina, melodiosa e jovem.
Vergil deu a volta para ver Maria Antonieta ante a porta, com os braços em jarras e as mãos apoiadas sobre seu magro talhe. O vestido de largos quadris ocupava toda a soleira.
—E bem? Quem é você, senhor, e o que está fazendo aqui?
A senhorita Kenwood se levantou de um salto e se precipitou para a senhorita Ormond, que a abraçou de maneira protetora. Ou seja, que assim é como tinha ocorrido. Naturalmente, ela tinha cercado amizade com a garota. De outra forma não teria funcionado.
—Seu concerto terminou? —perguntou ele.
—Os lieder são peças breves. Agora, me faça o favor de sair. Minha irmã e eu…
—Senhorita Ormond, essa jovem não é sua irmã. Não são parentes. A convenceu a vir com você, mas sua ação não foi outra coisa mais que um sequestro e deverá ser examinada ante um juiz.
A senhorita Ormond afastou brandamente à garota e depois apertou seu vestido para conseguir entrar na estadia. A largura da ridícula saia obrigou Morton a se aproximar da parede.
Ela cruzou os braços. O gesto fez que Vergil se fixasse na forma em que seus peitos apareciam esmagados, sob o rígido sutiã.
—Quem é você?
—Vergilius Duclairc, o visconde Laclere. A senhorita Kenwood é minha pupila, como você já sabe.
Ela baixou lentamente o olhar, e logo voltou a elevá-lo.
—Eu não sei nada disso.
O aprumo que demonstrava, apesar de ter sido surpreendida em fragrante delito, acabou com a paciência de Vergil.
—Não tente brincar comigo, jovenzinha. A forma em que traiu a confiança de sua companheira de viagem é simplesmente abominável. O perigo e o possível escândalo ao que submeteu esta moça durante as últimas semanas são indesculpáveis. A partir de agora não tolerarei nenhuma intromissão. Se você se der pressa, poderá estar a caminho de volta a América antes que amanheça, mas unicamente estou disposto a fazer esta concessão por deferência à senhorita Kenwood.
Ela nem sequer pestanejou. Avançou uns passos para diante até que os volantes de sua saia roçaram a perna dele e levantou a vista para olhá-lo de uma forma curiosa.
—Assim é você um desses.
Ele a olhou fixamente. Se fosse um homem lhe daria uma boa surra.
Ela dirigiu a vista para a perturbada garota, encolhida com medo contra o vão da porta.
—Pelo visto parece que tudo terminou. É uma lástima, realmente acreditei que conseguiria. —Fez um gesto e a senhorita Kenwood se uniu a ela para ajudá-la a desprender e dobrar os objetos que tinha pendurados nos cabides.
Ele se colocou entre elas, pegou um vestido das mãos de sua pupila e o jogou para um lado.
—Iremos agora mesmo. Se a senhorita Kenwood tiver pertences aqui ou no lugar onde se aloja, enviarei alguém para buscá-los.
A senhorita Ormond sorriu de uma forma muito insolente.
—Oh, definitivamente é você um desses. Muito seguro de si mesmo. Um homem que decide que rumo seguir e que está sempre seguro do que é o correto. Advertiram-me que neste país havia muitos homens como você, homens que estão convencidos de que jamais cometem enganos.
Ele sentiu que se ruborizava ante a suja afirmação dessa pomba presunçosa. Já tinha sido suficiente. Pegou com sua mão a larga manga de tecido cinza de sua pupila.
A senhorita Ormond mudou de posição e obstruiu sua retirada com a largura de seu vestido. Com uma mão, suave e cálida, agarrou a mão dele e com delicadeza fez que seus dedos se abrissem e o tecido largo e cinza se deslizasse deles.
Uns olhos azuis o olharam com zombador deleite.
—Bem, esta vez cometeu um engano, Vergilius Duclairc, visconde Laclere. De fato, você está completamente equivocado. Ela não é Bianca Kenwood. Sou eu.
Ele teve um momento de confusão até que o significado daquelas palavras o golpeou. Insinuações de problemas se atropelaram em sua mente, uma luminosa névoa de premonições que sugeria que algo que parecia bastante simples de resolver acabava de voltar-se perigosamente complicado. Dirigiu seu olhar para o tímido passarinho cinza que retorcia as mãos, e depois para aquela ave do paraíso, borrada e cheia de confiança em si mesma, e se perguntou como teria reagido Dante ante desse escandaloso acontecimento.
***
Zas. Zas. Zas.
O látego de montar golpeava contra as altas botas do visconde Laclere enquanto caminhava acima e abaixo frente à chaminé.
No divã, Bianca abraçava Jane, e dava tapinhas no seu ombro. Na outra ponta do salão, meio adormecida, a condessa de Glasbury irmã do visconde, piscava com consternação, vestida com uma bata verde de estilo oriental.
Bianca pensou que era de muito má educação por parte de Vergil Duclairc arrastar Jane e a ela até a casa da condessa e interromper seu sono. Se ele deixasse de dar voltas ao assunto e de caminhar de um lado a outro, ela poderia esclarecer as coisas rapidamente e poderiam partir.
Zas. Zas.
—Não estará planejando usar isso, verdade? —perguntou Bianca. Sua voz rompeu o tenso silêncio que se fez depois que ele explicou à condessa onde encontrou sua pupila desaparecida após duas longas semanas de busca.
Ele parou em seco uma de suas idas e vindas para dar a volta e olhá-la. Era um homem alto, magro e robusto de uns vinte e cinco anos, com surpreendentes olhos azuis e o cabelo ondulado e escuro um pouco despenteado, como ditava a moda. Atrativo, de fato. Possivelmente inclusive bonito se deixasse de pôr essa cara mal-humorada, de momento ela não podia saber.
—O látego — insistiu— Não pretende usá-lo? Devo te dizer que tenho vinte anos, e Jane tem vinte e dois, o que significa que já passamos da idade para estas coisas. Embora minha tia tivesse uma criada que foi cortejada por um cavalheiro inglês que disse que há muitos homens que usam o látego com suas mulheres aqui na Inglaterra, o qual me pareceu bastante curioso, e que há outros que de fato querem mulheres para lhes dar chicotadas, o qual para mim não tem nenhum sentido.
A condessa ficou boquiaberta. De repente parecia completamente acordada.
Vergil se voltou para sua irmã com uma paciência cheia de tensão, e assinalou para o divã como querendo dizer «o vê?».
—Asseguro-lhe, senhorita Kenwood —disse a condessa com um sorriso vacilante— que, sem dúvida, meu irmão não tem nenhuma intenção de…
Vergil baixou as pálpebras como se não houvesse nenhuma razão de usar o «sem dúvida». Cruzou as mãos atrás das costas e estudou a moça com severidade.
—Meu irmão foi esperar seu navio em Liverpool. Por que não conseguiu encontrá-la?
Bianca considerou a possibilidade de usar a elaborada história cheia de peripécias que inventou se por acaso as coisas se estragavam, tal como tinha ocorrido. Mas de repente pareceu que era muito pouco convincente.
Examinou os olhos azuis que a esquadrinhavam. Tia Edith havia dito que os aristocratas ingleses eram gente indolente e decadente, um pouco estúpidos, e Bianca acreditava que aquilo seria certo. Infelizmente aquele parecia ser uma exceção, ao menos em relação ao último ponto. Não parecia capaz de acreditar em confusas histórias a respeito de uma moça inocente e desventurada.
—Havia a bordo um marinheiro que nos ajudou a tirar nossos baús e a encontrar um carro de aluguel antes que alguém viesse nos recolher.
—Ficou amiga de um marinheiro? —A condessa lançou a seu irmão um olhar oblíquo e este fechou por um momento os olhos.
—Senhorita Kenwood, talvez ocorreu um mal-entendido. O procurador de seu avô contatou com um advogado de Baltimore, o senhor Williams, para dirigir este assunto. Ele falou com você, ou acaso não fez? É possível que foi mal informada?
—Certamente falou comigo. É um homem muito agradável. De fato conseguiu nossa passagem para o navio.
—Escreveu-me dizendo que o faria. Explicou a você que um membro de nossa família iria recolhê-la em Liverpool?
—Explicou-o com muita claridade. Minha tia não teria me permitido vir se não tivesse convencida de que me recolheriam.
—Então admite você que desembarcou por sua conta própria sem esperar um acompanhante e que não foi acidental que meu irmão não a encontrasse?
—Não foi acidental. Foi completamente deliberado.
Por alguma razão sua franqueza o deixou mudo. Olhou-a como se fosse impossível compreendê-la.
—Acredito que será melhor que se sente Vergil, assim ela se sentirá menos incômoda — disse a condessa— Podemos falar as coisas com calma. Estou segura de que a senhorita Kenwood terá uma explicação para tudo.
Vergil se sentou em um pequeno banco, mas continuou envenenando a moça com sua atitude.
—Você tem alguma explicação?
—É obvio. —Jane dormiu apoiada em seu ombro e o peso morto a distraiu. O abraço tinha feito que sua peruca se desequilibrasse e se torcesse. Esses vestidos antigos não estavam desenhados para sentar-se e a saia formava uma espécie de plataforma a seu redor. O espartilho sob o disfarce lhe cravava ao lado da cintura.
Sentia-se um pouco ridícula e muito incômoda e lamentava que aquele visconde com ar de grandeza não a tivesse deixado tempo para trocar-se e lavar-se antes de arrastá-la até o carro.
—A explicação, senhorita Kenwood. Eu gostaria de ouvi-la.
—A verdade, senhor Duclairc, é que não acredito que gostará.
Ele entrecerrou os olhos.
—Seja como for vamos provar.
Ela subiu uma perna e a colocou sob seu traseiro para levantar-se um pouco mais. A condessa pestanejou. O visconde elevou uma sobrancelha em atitude de censura. Ao dar-se conta de que a perna que pendurava estava descoberta até a metade da panturrilha, Bianca sorriu a modo de desculpa e puxou a borda de sua saia para baixo.
—Senhor Duclairc, fui informada a respeito dos planos de minha visita aqui. Simplesmente decidi fazer umas pequenas mudanças. Se o senhor Williams falou com você a respeito de mim, você deve saber que eu vivia com minha tia avó Edith mais como uma companheira que como uma pupila. Viajei muito quando minha mãe vivia, e aprendi a cuidar de mim mesma. Sou considerada muito amadurecida para minha idade.
—Ele só me escreveu dizendo que sua tia era um baluarte da sociedade de Baltimore e que você era uma jovem bem educada. —Seu tom dava a entender que o senhor Williams devia alguma explicação.
—Sei que meu avô o nomeou meu protetor em seu testamento. É um gesto encantador e comovente. Provavelmente ele queria cobrir a eventualidade de que eu necessitasse realmente um protetor, mas obviamente não é o caso. Por outro lado, sou americana, assim não posso entender de que modo um testamento inglês pode estabelecer algum tipo de autoridade sobre mim.
—Será um prazer explicar mais tarde.
Ela já sabia a explicação. Simplesmente não a aceitava.
—Ante a insistência do senhor Williams, aceitei vir aqui para estudar assuntos referentes à minha herança e arrumá-los pessoalmente. Entretanto, nunca disse que iria ficar com sua família. —Omitiu o fato insignificante de que tampouco nunca havia dito que não fosse fazê-lo e que quando subiu a bordo desse navio tanto o agradável senhor Williams como a velha tia Edith davam por certo que era exatamente isso o que faria.
—A quem pensava visitar, querida? —perguntou a condessa— Vê Vergil, disse que haveria uma explicação. Ela esperava que outros amigos fossem recolhê-la e não se apresentaram.
A expressão dele se fez cautelosa.
—É assim, senhorita Kenwood?
—Não — admitiu ela. Curiosamente, ele pareceu aliviado— Minha intenção é viver por minha conta, com Jane como acompanhante. Em relação à oferta de alojamento em sua casa de campo… Bom, me sentiria como uma intrusa, e, além disso, prefiro a vida da cidade. E é obvio, não queria que se atrasassem minhas lições.
—Lições?
—Lições de canto. Esse é o motivo de ter vindo. Meus instrutores em Baltimore me disseram que me levaram tão longe quanto podiam e que a partir de agora necessitava professores melhores. Meu plano é tomar lições em Londres até que o assunto de minha herança esteja resolvido, e depois usar os ganhos para ir a Milão.
O visconde suspirou, levantou-se e começou a caminhar de novo frente à chaminé. A condessa inclinou sua cabeça de cabelo negro confidencialmente.
—Acredito que é maravilhoso que sinta esse ardor por sua música. Quanto talento! Quando formos a Londres para a temporada, estou segura de que poderemos encontrar um professor de canto. Conheço bastante gente nos círculos de arte e de música.
—Obrigado por tão amável oferecimento, mas não quero esperar até a temporada, seja quando for. As lições de canto foram o autêntico propósito de minha viagem e penso começá-las em seguida.
Vergil esfregou as superficiais rugas que se formavam entre suas sobrancelhas.
—Senhorita Kenwood, não quero incomodá-la, mas preciso saber como você conseguiu cantar nesse local.
—Vergil…
—Não, Penelope, é melhor esclarecê-lo agora e saber exatamente a que enfrentamos. Senhorita Kenwood?
—Bom, alugar esse carro para chegar a Londres resultou muito caro. Custou mais do dinheiro que trazia comigo. Quando chegamos a Londres encontrei emprego cantando, para nos manter até que pudesse obter o dinheiro do patrimônio de meu avô.
—Que inteligente e competente por sua parte — disse Penelope.
Vergil tinha o aspecto de alguém que jamais admirou virtudes como a inteligência ou a competência.
—É consciente da reputação desse lugar? Sabe o que ocorre no cenário depois de suas árias?
—Nunca ficamos. Parecia uma sala de música comum.
—Do mais comum. Nossa única esperança é que seu disfarce esconda sua identidade e que nenhuma das pessoas que te encontre no futuro a reconheça. Resulta escandaloso que uma mulher cante em um cenário de qualquer tipo, mas em um como esse, pintada e com esses babados… — Fez um gesto assinalando seu vestido, seu rosto, sua peruca.
—Minha mãe cantava em um cenário senhor Duclairc e este é seu vestuário.
—Estou segura de que era uma cantora encantadora — se apressou a dizer Penelope.
—Deixa de seguir a corrente, Pen. Talvez isso seja aceitável nos Estados Unidos, mas não na Inglaterra, senhorita Kenwood.
—Posto que não seja inglesa, isso não me preocupa. Acredito que o melhor será evitar qualquer contato social para que você não deva preocupar-se com minhas atuações, não parece? —Fez um sorriso forçado, como o animando a aceitar a lógica daquele raciocínio— Agora que já cumpriu com seu dever assegurando-se de que estou a salvo, por favor, leve Jane e a mim ao nosso alojamento.
—Você ficará aqui esta noite. Farei com que tragam seus pertences e que se relate ao proprietário da sala de jogos que suas atuações acabaram.
—Devo declinar sua oferta, senhor Duclairc. Não quero abusar da hospitalidade de sua irmã, e tenho a intenção de continuar com meu emprego. Como cantora, necessito experiência com o público e…
Ele a interrompeu com um gesto autoritário.
—Não. Definitivamente não. Não viverá de forma independente sem uma acompanhante e tampouco vai pavonear sobre um cenário. Enquanto esteja aqui eu sou responsável por você e deverá comportar-se como se espera de uma jovem dama.
Bianca devolveu o olhar a aquele intratável, alto e imponente visconde. Que um velho avaro, a quem nunca conheceu, pudesse ter complicado sua vida dessa maneira com os garranchos de uma pluma, resultava intolerável. Não esperava que o visconde a encontrasse tão rápido. Não esperava ter aquela conversa até estar preparada.
Vergil cruzou os braços. Aquela pose o fazia parecer muito alto e poderoso. Era o tipo de postura que devia adotar um rei quando ordenava executar alguém.
—Amanhã minha irmã acompanhará você e a sua criada até o campo — entoou, como expressando a vontade de um juiz— Não falará com ninguém a respeito desta experiência, nem sequer a outros membros de minha família. No que concerne ao mundo, você foi recolhida no navio e esteve sob nosso amparo desde o começo.
—Se você me tirar de Londres, será contra minha própria vontade. Como você disse antes, isso é um sequestro. Eu também posso ir me queixar ante o tribunal de Justiça.
Ela olhou com frieza.
—É legalmente impossível para mim sequestrá-la, senhorita Kenwood. Sou seu tutor. Até que você cumpra vinte e um anos ou se case permanecerá sob minha custódia. Pen, pede à governanta que mostre à senhorita Kenwood e à senhorita Ormond suas acomodações.
Despachada como uma escolar travessa, Bianca achou a si mesma e a uma sonolenta Jane guiadas por uma mulher através do corredor. Zangada por ter visto frustrado seu plano, e desconcertada ao ver aquele estranho assumindo uma responsabilidade que certamente desejaria não ter que assumir, baixou a escada guiada por aquela mulher.
Algo no final daquela confrontação a perturbava. Foi chegar ao patamar da escada quando se precaveu da importante omissão. «Até que você cumpra vinte e um anos ou se case permanecerá sob minha custódia.»
Ou até que abandone a Inglaterra, naturalmente. Verdade?
—Não acredita que foi muito duro com ela? —perguntou Penelope.
—Absolutamente. —Vergil observava Bianca Kenwood enquanto esta subia a escada cambaleando com suas delicadas sapatilhas de seda. A chuva de premonições se converteu em uma tormenta de neve.
Que desastre.
—É uma estrangeira aqui, Vergil. Ignorante de nossos costumes. Sem dúvida, as pessoas na América se comportam de maneira mais informal.
—Não acredito Pen. Ela sabia perfeitamente o que estava fazendo. —O qual significava que estava fazendo exatamente o que queria e pressupondo que aquilo o induziria a lavar as mãos a respeito dela.
Deu a volta, pensando em tomar um copo de porto antes de partir. Precisava fazer planos sobre como preparar seu irmão e como frear à senhorita Kenwood para que aquele caveira não ficasse impressionado por ela.
Penelope o pegou pelo braço, detendo-o.
—Foi muito amável de sua parte não dizer nada a respeito de como deve dirigir-se a você. Compreendeu que era só sua ingenuidade o que a fazia te chamar todo o tempo senhor Duclairc. Ela se sentia envergonhada e você foi muito generoso. O explicarei amanhã.
É isso o que Penelope viu naqueles olhos azuis? Ingenuidade? Vergonha? Normalmente sua irmã mais velha se mostrava mais ardilosa, apesar de sua natureza otimista.
—Não será necessário dar explicações, Pen. Apostaria mil libras que a senhorita Kenwood sabe perfeitamente qual é a forma apropriada de dirigir-se a um visconde.
Capítulo 2
Vergil lançou a seu camareiro seu chapéu empapado e desatou com violência o nó de seu lenço.
—Uísque para os dois, Morton. Depois desta viagem, necessito. Leva Hampton acima quando chegar.
Ao final de dez minutos, Morton não só serviu as bebidas, mas também queijo e carne de ave fria, acendeu um pequeno fogo na biblioteca e conseguiu que Vergil estivesse seco e arrumado. Não é que houvesse ninguém ante quem tivesse que estar arrumado. Só umas poucas estadias da luxuosa casa de Londres estavam abertas e, além de Morton, havia só outros dois criados.
Tampouco tinha por que arrumar-se para receber Julian Hampton. O advogado da família o viu em outras ocasiões vestido de maneira muito informal. Entretanto, a vida que levava em Londres requeria que se respeitassem as aparências.
Sentou-se junto ao fogo, bebendo a sorvos seu uísque com dois grandes livros em seus joelhos. Já sabia o que mostravam esses documentos e o que diria Hampton. As finanças da família Duclairc não atravessavam um período de prosperidade. Só a cuidadosa direção de Vergil durante aquele último ano tinha evitado o desastre total.
Ultimamente, entretanto, não teve muito tempo para dedicar-se a essas coisas. Outros assuntos, mais urgentes e também mais interessantes, tinham requerido sua atenção. Assuntos como o que acabava de atender no norte.
E agora, é obvio, precisava ocupar-se daquele novo assunto chamado Bianca Kenwood. As possíveis complicações que aquilo podia representar o fizeram fechar os olhos.
A imagem dela cintilou atrás de suas pálpebras, assim como ocorreu muito frequentemente durante as últimas duas semanas. Viu-a sentada na sala de estar de Pen com aquele absurdo vestido, sua magra perna pendurando do divã e a sapatilha de seda arqueando um pouco seu pequeno pé. Estava do mais inapresentável. Além de incorrigível e impertinente e maliciosa e fascinante…
Fascinante? Que ideia tão curiosa. De onde sairia?
—O senhor Hampton — anunciou Morton.
Julian Hampton entrou, levando posta sua cara de advogado. Sempre o fazia quando se encontravam por assuntos de negócios. Já que se tratava de um velho amigo provavelmente era necessário, especialmente quando tinham que falar de más notícias. Vergil viu aquela expressão muito frequentemente durante o último ano.
—Estudou-os? —perguntou Hampton, assinalando os tomos ao tempo que tomava assento e aceitava o copo que oferecia Morton.
—Espero que as coisas tenham mudado um pouco.
—Um pouco. A solvência nos faz gestos. Se sua irmã vivesse em Laclere Park…
—Não posso pedir que seja tão dependente.
—Ou se Dante vivesse de acordo com seus meios…
—Jamais o fez, assim não há nenhuma esperança.
—Poderia consolidar a granja e arrendar a terra.
—Essa é uma velha litania, Hampton, e já sabe minha resposta. Meu pai e meu irmão não jogaram essas famílias, e eu tampouco o farei.
—Bom, ao menos não estão na borda do abismo.
Estavam mais perto do abismo do que sabia Hampton e do que revelavam aqueles tomos. Entretanto, Vergil tinha um plano para tentar solucioná-lo. Infelizmente, uma parte fundamental desse plano podia causar problemas. A parte chamada Bianca Kenwood.
Hampton sorriu. Isso nunca era um bom sinal, especialmente na cara de seu advogado.
—Deve melhorar as coisas do modo mais simples. O modo tradicional.
—Sim, suponho que o pai de Fleur será muito generoso. Deveria estar agradecido de que meu valor tenha aumentado tanto depois da morte de meu irmão. Com o tempo, suponho que consentirei em me casar. De momento, entretanto, outros enredos fazem que resulte impossível.
Hampton não era um homem muito expressivo, assim que o brilho de curiosidade e preocupação que relampejou em seus olhos fez Vergil ter sabor que falou muito.
—Posso te procurar ajuda? Tenho experiência em negociar para que meus clientes solucionem seus enredos. —Destacou a última palavra de uma forma que parecia aludir a problemas de natureza romântica.
O enredo em que Vergil se achava envolvido necessitava algo mais que a destreza de Hampton para chegar a desembaraçar-se.
—É insuperável nisso, e aceitaria sua ajuda se acreditasse que poderia servir de algo. Não sei como conseguiu convencer o conde para que liberasse minha irmã.
—Todos os homens têm segredos que querem esconder. O conde de Glasbury simplesmente tem mais que a maioria. Como vai à condessa?
—Está bastante contente, e acabou por preferir aqueles círculos sociais que a aceitam.
—Sua queda teria sido muito pior se não fosse por você.
Vergil sabia. Graças a sua fama de homem íntegro e decente conseguiu aliviar o impacto social que foi o fato de que Pen se separasse do conde; também obteve que se subtraísse importância aos diversos pecados de Dante e inclusive que se retificasse em parte a fama que tinham os Duclairc por seu comportamento e suas ideias pouco convencionais. Apesar de que sua família atirasse para baixo, ele conseguiu que se mantivessem flutuando. Com muita dificuldade.
—Acabamos? —perguntou Vergil, levantando.
—Pelo visto você acredita que sim.
Vergil deixou cair os livros ao chão.
—Pode deixar para outro dia os detalhes tristes. Me diga o que esteve fazendo, além de dar conselhos a insensatos como eu.
—Se todos meus clientes fossem tão insensatos como você, morreria de fome.
A gravidade da expressão de Hampton se esfumaçou e voltou a ser o apreciado amigo de Vergil.
Resultou que esteve fazendo muito pouco. Hampton não frequentava muito as reuniões sociais, e permanecia um pouco à margem quando ia a elas. As mulheres o achavam melancólico e misterioso, enquanto que os homens o consideravam orgulhoso e aborrecido. Com seu cabelo negro e seus traços perfeitos e afiados, Hampton parecia uma figura desenhada com tinta e pluma por um ilustrador. O problema para a maioria da gente era que a ilustração vinha sem pé.
—Saint John voltou para Londres — disse Hampton— Burchard e eu nos encontraremos com ele no Corbet amanhã. Witherby e os outros provavelmente virão também. Agora que retornou de onde seja que estivesse, por que não se reúne conosco? A Sociedade do Duelo estará completa outra vez.
Estava se referindo ao grupo de homens jovens que se reuniam em Hampstead na academia de esgrima de Chevalier Corbet há cinco anos. Vergil não praticava com eles há meses.
Sua ausência resultava tão estranha porque ele foi o eixo da roda em torno do qual se agrupavam os outros homens. Conhecia Hampton desde a adolescência, e se fez amigo de Cornell Witherby durante a época universitária. Adrian Burchard, filho de um conde, o conheceu nos círculos da nobreza. Inclusive Daniel Saint John, o marinheiro, acrescentou-se à Sociedade do Duelo através de Vergil graças a sua amizade com Penelope.
—Oxalá pudesse, mas devo me encontrar com Dante e levá-lo a Laclere Park. Temos assuntos a atender ali.
—Burchard ficará decepcionado. Esteve te procurando para discutir sobre algo que não quer divulgar. Suponho que se tratará de política.
Se Adrian Burchard estava procurando alguém, logo o encontraria. Adrian era a última pessoa que Vergil desejaria ver interessado em suas atividades.
—Escreverei para ele o convidando a ir me visitar. Espero estar aqui durante vários dias.
—Por que não convida também Witherby? A prolongada ausência da condessa em Londres o tornou melancólico.
—Possivelmente assim se inspire para escrever outra ode. Witherby terá que esperar sua vez. A senhorita Kenwood chegou à Inglaterra, e Penelope a levou ao campo por uma temporada.
—Há algum problema?
Não estava claro se Hampton se referia a Bianca Kenwood ou à forma em que Cornell Witherby estava cortejando Penelope. Embora a primeira não prometesse nada mais que problemas, Vergil também preferiria se livrar do segundo. Ter um bom amigo apaixonado por uma irmã mais velha, especialmente quando essa irmã se acha separada de seu marido, só e vulnerável, era o tipo de situação que podia arruinar uma amizade.
—Não há nenhum tipo de problema. A senhorita Kenwood é encantadora. Estou desejando que a conheça.
Até esse ponto se enredou com suas confusões. Estava mentindo a um homem que conhecia há meia vida.
Hampton desviou a conversa para assuntos de política. Enquanto falavam de liberais e conservadores, as manifestações violentas e as mudanças ocorridas depois da morte do último ministro de Assuntos Exteriores, a mente de Vergil se mantinha ocupada com as questões privadas que o esperavam no campo.
Uma e outra vez aparecia em sua cabeça à imagem de uma moça vestida como uma rainha francesa, desafiando-o com uma excessiva auto-suficiência, e uma bonita perna pendurando por debaixo de uma prega indecorosamente alta.
***
—Sigo sem entender sua impaciência — disse Dante. Jogou a cinza de seu puro através da janela da carruagem— Não vejo a razão de que me fizesse voltar da Escócia. Ela não alcançará a maior idade até dentro de um ano.
Isso significava uma eternidade dada à forma em que Dante calculava seu calendário com as mulheres. Normalmente era capaz de cortejar, seduzir, levar a cama e desprezar duas amantes ao mesmo tempo. Vergil estudou o jovem e belo rosto de seu irmão, seus limpos olhos e seu cabelo castanho escuro. A história de Dante com as mulheres foi quase inevitável com traços como os seus. Vergil viu como damas da mais alta linhagem ficavam sem fôlego quando Dante se aproximava.
—Começa a temporada muito antes de seu aniversário, e com a estreia em sociedade de Charlotte não podemos exatamente ir todos à cidade, e deixar aqui à senhorita Kenwood. Já terão que estar casados então, e não só prometidos.
—Por quê? Você acha que algum caçador de fortunas tomará meu lugar? —O tom de Dante deixava ver que aquilo era absurdo.
«Não, acredito que se ela está casada, poderemos impedir que nem chegue a pisar em Londres se for necessário», pensou Vergil. Só a ideia de ver Bianca Kenwood entre a sociedade educada, tratando duques e condes de senhores e anunciando sua pretensão de estudar ópera era suficiente para deixar seu ânimo pelo chão aquele último dia de agosto.
Mas a pergunta de Dante também aguçava aquela premonição que continuava obcecando-o desde que abandonou a casa de Penelope aquela noite. Seria melhor que Dante acabasse com aquilo enquanto o campo estivesse livre.
Dante o olhou diretamente nos olhos.
—Já estamos quase chegando. Não acha que deveria me dizer isso já?
—Te dizer o que?
—Não me disse grande coisa a respeito da senhorita Kenwood, com quem espero me casar. Encontro-o um pouco suspeito. Depois de tudo, você a conheceu. Ambos sabemos que não tenho outra escolha mais que aceitar, mas se deve me fazer alguma advertência, seu tempo está acabando.
—Se não a descrevi com detalhes, é porque isso seria pouco delicado de se fazer. Não é um de seus cavalos de corridas.
—Não a descreveu absolutamente.
—Muito bem. É de compleição média e esbelta, com olhos azuis.
—De que cor é seu cabelo?
Como diabos ia saber. Que cor de cabelo podia ocultar-se debaixo daquela ridícula peruca?
—Até que ponto é má?
Vergil tinha toda a intenção de advertir Dante, mas não encontrava a forma apropriada de abordar o assunto. Um matiz de culpa coloria suas reflexões quando tentava fazê-lo. Afinal, virtualmente meteu seu irmão naquilo à força. Embora não é que Dante resistisse muito ao saber que em um ano ela receberia mais de cinco mil libras.
—O problema não é seu aspecto. Suas maneiras, entretanto…
—Isso é tudo? Está preocupado por uns poucos enganos de etiqueta? O que esperava? É americana. Pen a preparará em pouco tempo.
Falar de uns poucos enganos de etiqueta não fazia justiça a Bianca Kenwood, mas deixou passar.
—É obvio. Entretanto, ela é… Especial.
—Especial?
—Poderia dizer-se inclusive que é estranha.
—Estranha?
—E possivelmente um pouco… Original. O qual pode remediar-se, naturalmente. Enquanto sustentamos esta conversa Pen a tem em suas mãos.
Através do guichê do carro, Dante olhou mal-humorado a visão da campina de Sussex. Vergil não sabia se continuava, mas quase estavam chegando e mal ficava tempo.
—Necessita mão dura. É um pouco independente, por assim dizer de algum modo. —O olhar de seu irmão deslizou para ele— Independente… Tem alguns caprichos. É por sua juventude, passará.
—Seria de imensa ajuda que pudesse completar sua descrição acrescentando alguma informação a respeito de sua beleza.
Sem dúvida. O problema era que ele não sabia se ela era bela. Só recordava seus grandes olhos, com aquela interessante faísca de inteligência e vitalidade que havia neles.
Que mais podia acrescentar? Toda aquela pintura de teatro ocultava seu rosto. Era provável que sua pele fosse preciosa, mas quem poderia estar seguro antes de ver seu rosto lavado? Também sua silhueta parecia bonita, mas podia ter sido pelo vestido. E fazer algum comentário sobre sua sensualidade… Não era muito apropriado tratando-se da futura noiva de um irmão.
—Maldita seja, se for vulgar não estou disposto a fazê-lo, Vergil. E você não deveria desejar que o fizesse. Além do fato de que ela repercutiria positivamente em mim e minha família, posso ignorá-la virtualmente por completo uma vez que estejamos casados, inclusive poderia ir viver na cidade e deixá-la aqui, que é de fato o que pretendo fazer. E até que se case com Fleur e estabeleça sua própria descendência, coisa que está demorando muito em fazer, eu sou seu herdeiro e essa americana poderia acabar convertendo-se na viscondessa Laclere.
Não necessitava que Vergil enumerasse a seu jovem irmão os obstáculos que o esperavam naquele caminho. Abismos muito mais profundos e numerosos do que Dante imaginava. Um favo desses abismos. Se pudesse pensar em alguma alternativa o teria feito, mas depois de duas semanas considerando distintas opções sempre terminava chegando à mesma conclusão. Era necessário que Bianca Kenwood fosse atada a sua família com correntes indestrutíveis.
Dante mordeu o lábio inferior e voltou a olhar através do guichê com seus olhos de espessas pestanas.
—A renda de seus recursos será minha? Como depositário, você não interferirá? E minha atribuição continuará até o casamento, aumentando como o acordo?
—É obvio. Também prometo continuar dirigindo os investimentos financeiros, como solicitou. A renda dos recursos é segura, mas outros assuntos requerem ser fiscalizados, e eu sei que você odeia essas coisas.
Dante fez um gesto de desdém.
—São coisas sórdidas e chatas. Duvido que valha a pena preocupar-se com elas. Pode vendê-las ou conservá-las, o que achar melhor. Depois de ver como se arrumou após a morte de Milton, seria um idiota se me atrevesse a te questionar.
Viajavam silenciosamente através dos bosques de carvalhos e fresnos que havia atrás de Laclere Park. Vergil preferia esse caminho ao longo horizonte de paisagem que se abria da parte frontal, e sempre dava instruções a seu chofer para que se aproximasse da casa por ali. Normalmente servia como um espaço de transição, uns poucos quilômetros durante os quais se preparava para assumir seu papel de visconde Laclere e confrontar as responsabilidades que este conduzia.
Fez aquele caminho pela primeira vez quando chegou à notícia da morte de Milton; escolheu então aquela longa rota para demorar sua chegada, lutando contra emoções conflitivas e agudos ressentimentos pelas mudanças que suportaria em sua vida a repentina morte de seu irmão.
Foi naqueles bosques onde terminou aceitando aquela nova realidade e suas correspondentes restrições. Não chegou nem a intuir até que ponto complicaria sua vida a morte de seu irmão. Restrições, mistérios e decepções o estavam esperando ao final daquela viagem.
De repente Dante se inclinou sobre a janela. Afiou o olhar.
—Que diabos…?
—Algum problema? —Vergil afastou um pouco a cabeça de Dante para poder aparecer a sua através da janela aberta.
—Ali, no lago. Espera, há árvores que nos tampam a vista. Agora. Essa não é Charlotte?
As árvores eram mais magras agora que passavam em frente do lago. Duas mulheres estavam se banhando, rindo e salpicando-se. Virtualmente nuas, pois suas roupas se tornaram transparentes pela água. Diabos, sim, era sua irmã pequena, Charlotte, com aquela criada, Jane Ormond.
Um terceiro corpo feminino emergiu de repente da água. A roupa empapada se aderia a sua pele a obscurecendo um pouco. Bonitos ombros… Umas costas que ia se estreitando… Uma pequena cintura… Gráceis quadris… Finalmente os topos de suas encantadoramente arredondadas nádegas apareceram à vista. Uma larga cabeleira loira se desdobrou em um leque sobre a água para aferrar-se depois a aquele corpo em espessa queda de uma cabeça bem formada.
Seus esbeltos braços começaram a golpear a superfície da água, criando ondas na direção de suas companheiras de jogo. As outras duas gritaram e empreenderam um maciço contra ataque de salpicaduras, enviando jorros de água ao redor dela até que acabou parecendo uma imagem emergente em meio de um sonho de bruma.
Ela lançou um chiado de jubiloso protesto. Rindo, deu a volta para responder ao ataque.
Vergil não podia estar seguro de que aqueles grandes olhos azuis viram passar o carro com seus dois atônitos ocupantes. Mas o certo é que ela se deteve, cobriu os peitos com um braço e deslizou a outra mão até o triângulo de sombra que havia justo entre suas coxas. Durante um breve instante antes de dar a volta e voltar a afundar-se na água, adotou a pose da Vênus de Botticelli, uma deusa de rosto adorável e formas luxuriosas, jorrando água, ainda virginal e pudica, mas já amadurecida e apaixonada. Aquela mescla de instinto protetor e desejos eróticos que Vergil experimentou na sala de jogos ressurgiu com força.
Ele e Dante se recuperaram ao mesmo tempo. Endireitaram-se e se afundaram em seus assentos.
Seu irmão o olhou com suspicacia.
—O que era isso?
—Não estou totalmente seguro, mas acredito que era a senhorita Kenwood.
Dante fechou os olhos e apoiou a cabeça contra o respaldo do assento.
—Deixe assegurar que entendi minha posição, Vergil. Tenho que me casar com isso? Tenho que me sacrificar no altar pelo deus da estabilidade financeira e ser forçado a ter como companheira durante o resto de minha vida essa fêmea que acabamos de ver? Uma garota tão especial, estranha e independente que se banha quase nua diante da estrada a plena luz do dia e influência nossa irmã a fazer o mesmo? Você pretendia me coagir, achando necessária a ameaça de retirar minha atribuição? Ela é a noiva que escolheu para mim?
—Sim. —Realmente não havia nada a acrescentar.
Dante manteve sua pose pensativa durante um longo tempo. Seus olhos se abriram. Uma limpa simpatia brilhou neles. Um sorriso muito masculino apareceu lentamente.
—Obrigado.
***
—Muito bem, Pen. Muito bem.
Penelope ruborizou com um tom rosado ainda mais intenso que o que sua pele tinha adquirido enquanto ele explicava sua história.
—Não me jogue a culpa. Não podia imaginar uma coisa assim. Ela foi uma hóspede da mais cortês. Seu comportamento não resultou inapropriado absolutamente. Ao menos até onde eu sei.
Acompanhou esta última observação de uma pequena careta. Penelope era suficientemente inteligente para reconhecer que a escapada desse dia era uma amostra de que ela não conhecia as atividades da senhorita Kenwood em todo seu alcance. Vergil imaginou toda uma série de escandalosos episódios tendo lugar sob o nariz da confiada Penelope.
—Durante sua estadia aqui parecia sentir-se como um peixe na água.
—Dadas as circunstâncias, «como um peixe na água» não é a melhor expressão que possa escolher Pen.
Pen abaixou a cabeça, envergonhada e sem forças ante a acusação. Dante deu uma palmada em seu ombro para consolá-la. Era simplesmente incapaz de imaginar o pior, e era sempre muito pormenorizada.
Bianca Kenwood provavelmente se deu conta em seguida de como era Penelope e tirou vantagem disso.
O que a senhorita Kenwood precisava era uma tia similar a uma velha harpia cheia de caráter que não permitisse desafiá-la, capaz de fazer tremer às moças jovens com seu olhar de aço e cujas estritas advertências provocassem uma imediata submissão.
Desgraçadamente, essa tia não existia.
—Talvez banhar-se assim seja normal na América.
—Por favor, Pen.
—Falarei com ela, e darei em Charlotte uma boa reprimenda.
—Não fará tal coisa.
—Pretende fazê-lo em meu lugar? Oh, Vergil, desejaria que não o fizesse. Seu rosto adquire uma expressão muito peculiar cada vez que se menciona seu nome. Suspeito que te vê como o guardião de um cárcere, e se for assim, o pior que pode fazer ao voltar a vê-la é lhe dar uma lição de comportamento…
—Não direi uma palavra sobre este assunto. Ninguém o fará. E tampouco a Charlotte. Mencioná-lo seria admitir que Dante e eu fomos testemunhas do ocorrido. —Não se atrevia sequer a contemplar a ideia dessa confrontação. Reconhecer o fato suporia ter que confrontar uma embaraçosa e difícil… Intimidade— Não temos mais remédio que ignorar o que aconteceu. Falarei com Charlotte em termos gerais para evitar que se deixe influenciar.
Dante se uniu a eles, com aspecto de estar contente e sentindo-se mais fresco ao mudar de roupa. Levava um traje delicioso perfeitamente engomado. Seu rosto estava cheio de espera sob seus cabelos cuidadosamente despenteados, um pouco compridos como marcava a moda romântica.
—É muito amável por sua parte se reunir conosco durante uns poucos dias — disse Penelope, levantando-se para lhe dar um beijo.
—Às vezes posso sentir falta da família, Pen. De fato, é provável que fique pelo menos uma semana. Sim, ficarei uma semana. —A piscada que lançou a Vergil fez com que Penelope franzisse o cenho com curiosidade.
Vergil devolveu um olhar reprovatório. Penelope não sabia nada a respeito dos planos que eles tinham em relação à senhorita Kenwood. Além disso, por alguma razão, a confiança em si mesmo que demonstrava seu irmão o irritava.
—Uma semana inteira? Isso é maravilhoso, Dante, e muito amável por sua parte. Sei quanto odeia o campo se não houver um bom esporte.
—Bom, Pen, há esportes e logo há esportes. Disseram-me que Verg comprou um novo cavalo que precisa domar e me senti obrigado a ajudá-lo, já que tenho tão boa mão com os animais e é, além disso, um presente para mim.
—Um cavalo novo? Vergil, não me disse nada.
—Chegará dentro de uns dias — murmurou ele. Que inteligente por parte de Dante. Desfrutar da metáfora e de passagem sair ganhando um cavalo. Não era uma metáfora tão má. A senhorita Kenwood tinha um ar menos de inacabada que de indômita. Era típico de Dante que tivesse fichado uma mulher em poucos segundos a uns sessenta metros de distância, e se deleitava no desafio que o estava esperando. Não era assombroso que parecesse tão insuportavelmente feliz.
A égua em questão se uniu a eles ao final de pouco tempo, chegando junto a Charlotte acompanhada de um fraco rangido de anáguas. Charlotte estava tão encantadora como de costume, sua elegância de magro salgueiro ainda ficava suavizada por sua inocência infantil. Junto ao cabelo negro, a pele branca e o vestido rosa pálido de Charlotte, Bianca Kenwood exalava um ar de senhorita de campo.
Seu vestido azul era um pouco antiquado e pouco atrativo. Sua pele tinha um bronzeado fora de moda, mas a ideia que fez de sua irrepreensível beleza foi acertada. Seu cabelo loiro dourado estava recolhido em um simples coque que enfatizava sua feminina, mas firme mandíbula destacando o contorno da parte inferior de seu rosto, com forma de coração. Dificilmente se ajustaria à definição de beleza da moda, mas possuía uma formosura singular, transbordava saúde e se movia com uma elegância amadurecida.
Dante a estudou com olhos calculadores durante um breve instante antes que Penelope o chamasse para apresentá-lo. Esse exame fez com que Vergil se sentisse incômodo. De repente se sentia sujo por aquele negócio. Ridículo. Semelhantes acertos se faziam todo o tempo, e frequentemente com menos sutileza.
Dante avançou para sua presa. Seu êxito com as mulheres estava mais no magnetismo do que na perseguição. Certa dama confessou uma vez a Vergil que quando Dante olhava uma mulher nos olhos esta se sentia como se ele pudesse ler sua alma e seus cuidados a deixavam sem respiração.
Se fosse assim, pelo visto a alma de Bianca Kenwood não era fácil de observar. Respondeu à saudação de Dante com soltura e não pareceu ficar sem respiração absolutamente. Vergil não pôde deixar de admirar seu aprumo, apesar de que o plano seria que ela caísse apaixonada por Dante a primeira vista.
—E recorda Vergil — acrescentou Penelope rapidamente, fazendo um gesto em sua direção.
—Dificilmente poderia esquecer o senhor Duclairc. Estou encantada de voltar a lhe ver. Possivelmente antes que se vá possamos ter uma conversa.
—É obvio, se assim o deseja.
Oh, desejava-o. Esteve guardando palavra após palavra há duas semanas. Dificilmente poderia ter enterrado seu ressentimento ante a imperiosa intromissão que a enviou até ali.
Deu-se conta de que o estava olhando com raiva, e de que todo mundo estava observando que o fazia.
—Está encontrando agradável sua estadia aqui? —perguntou Dante, guiando-a para o sofá.
—Muito agradável, obrigado.
Sentou-se ao lado dela, dedicando toda sua atenção. Era um homem bonito, mas um pouco delicado em suas formas e em seu rosto, como se Deus, ao esculpir os ossos de seu irmão mais velho tivesse esgotado seus melhores materiais e tivesse logo que arrumar-se com o resto. Formosos olhos marrons a contemplavam sob uns volumosos cílios. Uma faísca de familiaridade um tanto inapropriada brilhava neles.
Sim, eles as viram. Discutiu isso com Charlotte que não havia ninguém olhando no carro que passava. Em realidade, por um momento acreditou ver uns rostos espionando-a, mas ao comprovar que ninguém dizia nada horas depois de sua volta, simplesmente supôs…
—Assim leva o nome do poeta italiano — disse, sentindo-se muito desconfortável ante a ideia de que Vergil Duclairc a tivesse visto virtualmente nua. Curiosamente, o fato de que aquele seu irmão também a tivesse visto não importava muito.
—Foi uma desafortunada ideia de meu pai. Dava-se ares de poeta épico e pôs em seus filhos os nomes dos melhores. Nosso irmão mais velho se chamava Milton.
—Podia ter sido pior. Podia ter escolhido os nomes dos herois em lugar dos nomes dos autores.
Charlotte riu.
—Teria sido horrível. Ulisses, e Eneas e coisas assim.
—Ou poderia ter se motivado pelas histórias de Camelot que mais tarde o fascinaram tanto — acrescentou Dante— Lancelot, Gawain e Galahad.
Brincaram com aquela ideia durante um momento, e Penelope se uniu a eles. O homem que permanecia junto à janela não o fez, mas Bianca notou que seguia as brincadeiras com maior interesse do que seus olhares ocasionais pareciam revelar.
Podia ver seu adversário claramente de sua posição. Possuía uma figura refinada, era alto e magro, mas seus ombros e suas pernas sugeriam mais força da que era claramente visível. Naquele momento não tinha um olhar de desgosto, sim, era bastante bonito com seus ossos marcados, como cinzelados com certa aspereza. Seus olhos azuis surpreendiam penetrantes sob suas sobrancelhas escuras.
Eram penetrantes agora, que acabavam de descobri-la olhando-o. Ela dirigiu sua atenção a Dante, conseguindo —ou ao menos assim esperava— não ruborizar-se. Tinha a incômoda sensação de que durante aquele olhar o visconde estava recordando o que viu no lago.
Dante acabava de dizer algo. Ela respondeu com uma pergunta, retornando incômoda ao bate-papo banal típico da casa.
—E você o que faz?
Enfrentou-se a um silêncio total.
—Fazer? —repetiu Dante depois de contar até dez.
—Seu irmão é um membro do Parlamento, conforme entendi. Qual é sua ocupação?
Charlotte riu. A mandíbula de Vergil parecia mais rígida que de costume, mas uma faísca de brilho apareceu em seus olhos quando deu a volta para prestar toda a atenção em seu irmão.
Dante sorriu.
—Sou um cavalheiro.
—Jamais sugeriria o contrário, mas qual é seu emprego?
—Quando meu irmão diz que é um cavalheiro não está evitando sua pergunta, senhorita Kenwood. Está respondendo — explicou Vergil.
Em outras palavras, ser um cavalheiro significava que não tinha um emprego remunerado. A refinação do homem que havia a seu lado de repente pareceu tão estranha como os índios que viu em uma ocasião quando sua mãe percorria os povos próximos à fronteira. Era outro exemplo do que tia Edith queria dizer quando a advertiu que encontraria aquele país familiar em certas coisas, mas muito estranho em outras.
—Sem dúvida terão cavalheiros nos Estados Unidos — disse Penelope.
—Temos homens de grande riqueza e posição. Há fazendas tão grandes como esta. Mas um homem que não trabalha… Enfim, é considerado como quase pecaminoso.
Imediatamente desejou não tê-lo expresso dessa forma, embora pensasse que tanta indolência era uma evidência de uma séria falta de caráter. Não desejava insultar aquelas pessoas, com três das quais não teve nenhuma discussão.
A única com quem sim teve uma discussão rompeu o incômodo silêncio.
—Que pitoresco. Mas afinal de contas, seu país é ainda jovem.
Vindo de qualquer dos outros o teria deixado passar.
—A velha Inglaterra está aprendendo que há força na juventude.
—Refere-se a nossa última guerra. Uma escaramuça menor. Teria acabado de modo distinto se Napoleão não nos tivesse deixado tão ocupados.
Por alguma razão, com muita dificuldade, ela conseguiu manter um tom civilizado.
—Meu pai morreu nessa escaramuça, senhor Duclairc.
Fez-se outro silêncio tenso. Penelope sorriu fracamente e se levantou.
—Por que não pensamos em comer?
Dante tentou monopolizar a atenção de Bianca durante o almoço. O visconde não falou muito. Em várias ocasiões em que deu uma olhada o surpreendeu esquadrinhando-a, como se estivesse se perguntando o que era o que tinha diante. Nada mais que problemas, ela gostaria de advertir. Realmente deveria me enviar de passeio de uma vez por todas.
Ela estava decidida a abordá-lo depois do almoço para esclarecer coisas, mas Vergil se retirou, depois de desculpar-se, logo que voltaram para a sala de estar. Dante, entretanto, ficou unindo-se a elas para jogar cartas.
O moço elogiou o jogo de Bianca mais do que seu talento merecia. A familiaridade crescia com o passar das horas e os sorrisos de Dante começaram a adquirir uma calidez perturbadora. Ela começou a suspeitar que Vergil a estava evitando e usava Dante para distraí-la.
—Onde está o visconde? —acabou perguntando a Charlotte— Talvez goste de me substituir.
—Estará na biblioteca, suponho. Ou em seu escritório.
Bianca se levantou.
—Me desculpem. O convidarei a unir-se a nós.
Não esperou que dessem permissão; atravessou a sala de estar e se encaminhou pelo corredor para a biblioteca.
Ele estava ali, sentado ante o escritório examinando uns papéis. Levantou a vista ao ouvi-la entrar e ficou de pé.
—Parece surpreso em me ver. Cometi um engano? Supõe-se que devia ter pedido uma audiência? —perguntou.
—É obvio que não. Supus que meu irmão e minhas irmãs a manteriam entretida toda à tarde, isso é tudo.
—As cartas não me divertem muito tempo se me dão de presente todas as mãos. Se estivéssemos jogando por dinheiro, a esta altura já teria ganhado toda a fortuna de seu irmão. Decidi dar um descanso a seu orgulho e generosidade.
—Somente está tentando fazer com que se sinta bem recebida. Entretanto, me alegro de que tenha me procurado. Quero me desculpar por meu imprudente comentário na sala de estar. Devia ter tido em conta a possibilidade de que tivesse sofrido nessa guerra. Não pretendia menosprezar o sacrifício de seu pai.
A sinceridade com que se expressou a deixou desarmada. Não parecia tão severo como de costume.
—Possivelmente agora entenda por que não desejo prolongar muito minha visita a este país, senhor Duclairc, e por que não quero formar parte da sociedade para a qual sua irmã tenta me preparar. Queria retornar a Londres o antes possível para me ocupar de meus assuntos.
—A guerra terminou faz tempo, senhorita Kenwood. Nossos países voltam a ser amigos. Quanto a seus assuntos, estou me ocupando deles em seu lugar — disse esse último com um firme sorriso que parecia indicar que considerava pouco recomendável dirigir a conversa nessa direção.
—Está me convencendo de que cometi um engano vindo à Inglaterra. Deveria ter seguido minha primeira inclinação e dizer ao senhor Williams que vendesse os investimentos que herdei.
—Isso não pode fazer-se. A maior parte de seu patrimônio pertence a um fundo de investimentos. A menos que se faça uma solicitação ante o tribunal de Chancery, o qual é um processo muito longo que levaria anos, é impossível romper os termos desse fundo de investimentos.
—Isso ele me explicou. Minha segunda ideia foi então arrumar as coisas para que me enviasse a renda a Baltimore.
—E por que não o fez? Especialmente tendo em conta que nos acusa de está-la prejudicando.
—Como expliquei em Londres, tinha razões para vir.
—Sim, suas aulas de ópera. —Seu tom transmitia o alívio que sentia ante o fato de que esses planos tivessem fracassado.
Mas necessitaria mais que a desaprovação daquele homem para fazê-los fracassar de tudo. Esses planos continuavam vivos, e ela estava desesperadamente impaciente por fazê-los progredir.
—Sejam quais sejam minhas razões, estou na Inglaterra por um curto período de tempo e tenho interesses que não podem ser satisfeitos enquanto permaneça nesta casa. Não aceito sua intromissão. Não necessito um guardião.
—Tendo em conta como a conheci, acredito que é óbvio que sim o necessita. E hoje não tem feito nada que possa me fazer mudar de ideia.
Estava se referindo ao lago. Em realidade não houve nenhuma mudança em sua expressão, mas aquele provocador murmúrio formou redemoinhos entre eles. Entrou no corpo de Bianca fazendo que seus membros estremecessem. Sim, a viu com aquela roupa empapada. E apesar de sua aparência desapaixonada, naquele momento estava vendo-a outra vez.
Por um instante, em seus olhos se acendeu um brilho que indicava que ele era consciente de que ela sabia. Esse reconhecimento acrescentou um matiz perigoso a sua masculinidade. De repente ela se sentiu em desvantagem e teve que lutar para recuperar sua indignação.
—Não consigo compreender por que você insiste tanto em complicar a minha vida.
—O testamento de seu avô cedia a responsabilidade ao visconde Laclere. Ia destinado ao meu irmão, mas dado que não mudou o testamento depois da morte de Milton, me corresponde. Eu não evito meus deveres, não importa quão problemáticos possam chegar a ser.
—Eu o libero de seu dever. E agora peço que me permita partir para Londres amanhã pela manhã.
—Não.
Ela esperava ouvir algo mais, mas nada mais foi acrescentado. Aquela palavra foi sua única resposta. Não.
Ela o observou, procurando o modo de ganhar aquela estúpida batalha. Devolveu o olhar como um general que é consciente da superioridade de seu exército.
Ela deu a volta. Em uns poucos dias esperava que chegassem seus reforços. Morria de impaciência por jogá-los contra ele.
—Senhorita Kenwood, se você voltar para a sala de estar, tenha a amabilidade de dizer a Charlotte que venha ver-me antes de retirar-se.
***
Bianca subiu a escada e deu uma volta através da enorme casa de estilo gótico até chegar a seu quarto. Era o dormitório mais longo e luxuoso que jamais havia usado, com um espelho emoldurado em ouro e móveis de madeira belamente esculpidos. Jane se aproximou dela para começar a desabotoar o vestido, ao mesmo tempo em que mexericava a respeito dos criados e arrendatários. Aquele mundo mais vulgar soava mais interessante que esse outro no que Bianca passou seus últimos dias.
As últimas duas semanas pareciam dois meses. Davam passeios. Arrumavam as flores. Trocavam visitas com vizinhos que ela não conhecia. Falavam sobre moda e sobre quem era quem na alta sociedade. Tudo enquanto Pen instruía à americana selvagem para ensiná-la a expressar-se e comportar-se adequadamente na Inglaterra.
Bianca chegou ao ponto de invejar os criados ocupados em polir a prata. Finalmente teve algumas ideias para romper a monotonia.
Charlotte apareceu justo quando Bianca já vestia sua bata. Teve um pequeno bate-papo com seu irmão.
—Não disse nenhuma palavra sobre o lago. —subiu à cama de um salto enquanto Jane começava a escovar o cabelo de Bianca— Em realidade o que queria era falar de você.
—De mim?
—Perguntou o que esteve fazendo. Não o disse dessa forma, claro. Quis saber se estava contente e com o que se entretinha.
«O maldito intrometido…»
—Acredito que sabe o do lago e joga a culpa em você, e quer saber se tem estado fazendo alguma outra coisa escandalosa.
«Maldito arrogante, pretensioso…»
—Depois me deu um sermão. Explicou que me criaram de um modo diferente e permitiram a você mais liberdades do que era apropriado, e que eu não devia me deixar influenciar por você e fazer coisas que não fossem apropriadas. Contei ao menos dez vezes a palavra «apropriado» antes que terminasse. Prometi a ele que me comportarei de maneira muito correta enquanto esteja aqui. —Charlotte sorriu— Acredito que tem ao santo de meu irmão muito preocupado.
Bianca não sabia o que dizer. Foi criada de um modo distinto, e permitiram mais liberdades das que Charlotte jamais chegaria a conhecer, mas não havia nada inapropriado nisso, tão somente pouco convencional, inclusive tendo em conta os costumes americanos. Além disso, ela planejava uma vida destinada a ser pouco convencional, mas não inapropriada, apesar de que Vergil Duclairc assumisse o contrário.
Charlotte se recostou na espaçosa cama.
—Estou encantada de que Dante veio nos visitar. Não o faz frequentemente. Prefere Londres. —Levantou o olhar com astúcia— Se supõe que não sei, mas acredito que tem uma amante ali. Este último ano venho intuindo que meu irmão é um pouco canalha. Você o que pensa? Acredita que Dante é um mulherengo?
—Não saberia dizê-lo — respondeu Bianca, embora adivinhasse que Dante era um autêntico mulherengo. Pensou, além disso, que aquele mulherengo a viu virtualmente nua e que passou a tarde lhe dirigindo intensos olhares e calorosos sorrisos.
—Sempre pensei que Vergil poderia parecer um bom mulherengo também, sempre e quando alguém não o conhecesse. Tem aspecto de ser, mas claro… Ele é tão correto. Esteve cortejando Fleur durante um ano e nunca o vi fazer nada mais que lhe tocar a mão.
Bianca ouviu falar da perfeita, etérea e saudável Fleur, que supostamente era a prometida de Vergil. Logo esperavam uma visita dela e de sua mãe.
Bianca não tinha intenção de seguir ali quando viessem.
—Charlotte, esta é a única propriedade que tem sua família?
—Há outras aqui em Sussex, mas ninguém as visita salvo Vergil. Não estão em muito bom estado. Papai não cuidou bem de algumas coisas. Estava tão ocupado com seus escritos e depois com a reconstrução desta casa. Vergil tem também um imóvel no norte. É sua parte da herança de nossa mãe.
—Vivem alguns parentes nesses outros lugares?
—Não há mais parentes ali, ou ao menos não há parentes dos que estejamos perto. Papai tendia a encerrar-se e perdemos o contato com eles enquanto vivia. Milton também era um pouco estranho. Vergil não é o menos excêntrico, e não reavivou os laços.
Não havia parentes próximos. Nenhuma tia, nem prima que pudesse fazer cargo de uma pupila errante.
—Acredito que meu irmão gosta de você — disse Charlotte.
«Que irmão?» Bianca reprimiu a impulsiva pergunta antes que saísse de sua garganta, surpreendida pelo sobressalto de excitação que a acompanhou.
—Estou segura de que simplesmente se sentia obrigado a me entreter.
—É muito estranho que Dante se sinta obrigado a fazer algo. Deixou-te ganhar nas cartas e não parou de te sorrir.
—Equivoca-se, mas se estiver certa e é um mulherengo, dificilmente poderia me sentir adulada.
—Oh, não tem que preocupar-se por isso. Sabe que é a protegida de Vergil e nossa convidada. —deslizou da cama— Será melhor que vá dormir. Dante nos levará a um passeio amanhã. Será divertido. É um perito com o látego e sempre conduz muito rápido.
—Também nos acompanhará o visconde?
—Não se preocupe, não vai danificar nossa diversão. Quando nos levantarmos, ele já viveu um dia completo. Levanta-se a alvorada, para ocupar-se dos assuntos da fazenda.
Quando Charlotte se foi, Bianca se sentou sobre a cama abraçada a seus joelhos.
Assim Vergil Duclairc se preocupava que a senhorita Kenwood pudesse supor uma má influência para sua irmã. Advertiu Charlotte que tomasse cuidado. O que faria aquele santo se chegasse a convencer-se de que a senhorita Kenwood não só era um pouco diferente, mas também muito pouco convencional e inclusive algo selvagem?
Não haveria outros parentes a quem enviá-la e resultaria muito perigoso tê-la ali. Não haveria mais remédio que romper todos os vínculos sociais e deixá-la seguir seu caminho. Seria a única decisão responsável para um irmão responsável.
Se asseguraria de que esse visconde concluísse que sua presença e influência naquela casa era totalmente inaceitável.
—Jane, quero que tome emprestados para mim alguns objetos dos criados. Dos homens concretamente.
Capítulo 3
Vergil pegou as botas limpas que oferecia Morton e as pôs. Aceitou o linho engomado e com destreza atou seu lenço com um nó conservador. Morton lhe sustentava o traje negro de montar.
Esses preparativos matinais eram uma rotina tanto em Laclere Park como em Londres, e Vergil os seguia de forma instintiva enquanto organizava em sua mente seus planos e deveres. Continuava se surpreendendo que não tivesse nenhuma dificuldade em abandonar certos detalhes ou hábitos quando as circunstâncias o requeriam.
Mal tinha amanhecido quando saiu pela porta e caminhou através do rocio até o estábulo. Preferia aquele silêncio, aquela solitária forma de cavalgar para romper o dia antes do circuito oficial que teria que fazer mais tarde com seu agente imobiliário. Era um dos poucos hábitos que tinha conservado de seus anos livres como segundo filho. Às vezes recuperava aquela crença juvenil nas oportunidades sem limites que permitiu então sua insignificância. Podia simplesmente ser, não o senhor vigiando seus domínios, a não ser unicamente um homem que cavalgava através do campo, admirando sua beleza e sonhando ao ritmo da vida.
Do estábulo chegavam sons. George, um moço do estábulo ruivo e rechonchudo, ria enquanto um moço mais jovem vestido com calças de montar e chapéu de palha murmurava alguma coisa. Juntos ajustavam as bridas a uma égua de cor castanha.
George ouviu as pisadas de Vergil e se virou ruborizado.
O menino mais jovem simplesmente ficou rígido. Vergil notou algo familiar naquelas costas esbelta, e se precaveu da forma peculiar em que as calças se esticavam sobre a curva das nádegas. Viu aquelas formas antes, emergindo nuas da água.
—Senhorita Kenwood, vejo que você também cavalga cedo.
Ela se voltou despreocupadamente, como se ninguém devesse se surpreender de encontrá-la nessa situação por usar calças de montar todos os dias. Talvez fosse assim. Quem podia sabê-lo? Pen, Charlotte e Dante provavelmente não sairiam de seus quartos até meio-dia.
—Pensei que seria agradável sair para cavalgar pela manhã. —Ajustou o freio como alguém que sabia o que estava fazendo.
—George se ofereceu a te acompanhar? Que cavalheiresco por sua parte.
—Tinha intenções de cavalgar sozinha.
—Bom, não podemos permiti-lo a uma hora tão inoportuna. Entretanto, pode cavalgar comigo. —Examinou a égua— Cometeu um engano, George. Se este animal for para a senhorita Kenwood, necessitará uma cadeira de mulheres. Depois pode preparar meu cavalo. Esperaremos fora.
Bianca caminhou para o pátio com ele. Ele retrocedeu um pouco na luz chapeada da manhã e percorreu um metro e sessenta e cinco de moléstia com seu olhar.
Sua camisa de algodão formava uma bolsa em torno de seu corpo, mas mesmo assim revelava o inchaço de seus peitos. As calças de montar penduravam folgadas de suas coxas até as botas, onde se introduziam, mas não eram folgadas em nenhum outro lugar. O chapéu de palha sobre sua testa enfatizava seus olhos.
Tinha todo o aspecto de uma mulher provocadora e de má reputação.
Caminhou para frente e golpeou a perna com o látego. O ligeiro picor o distraiu do impulso de… Nada que pudesse contemplar e sem dúvida nada que pudesse nomear.
—George demorará a preparar os cavalos. Volta para seu quarto e troque de roupa.
Ela baixou as pálpebras ante aquela ordem. Ele esperava que ela resistisse. Que demônios faria ele então? Ninguém debaixo de sua autoridade nunca o havia desafiado, e menos uma mulher. Por sorte, ela deu a volta e caminhou a grandes pernadas em direção à casa.
Ele retornou ao estábulo.
—A senhorita Kenwood cavalga sozinha frequentemente? —perguntou ao George.
George deu de ombros.
—Só estas últimas manhãs, milord. Ouvi um ruído aqui a semana passada e a encontrei selando essa égua, por isso a ajudei.
—E sua indumentária?
—Chegou com essa roupa esta manhã. Tem sentido, porque sempre cavalga escarranchada. É uma boa pessoa, só que com uma mentalidade um pouco livre para este lugar. São diferentes, os americanos. Falam como se o conhecessem de toda a vida. —inclinou-se para revisar uma ferradura.
—Sim, são diferentes. Não me deixe suspeitar que interpretou mal essa familiaridade.
George lançou um olhar de horror como se a insinuação fosse muito escandalosa para ser considerada. Vergil pegou as rédeas da égua e a levou até o pátio.
A senhorita Kenwood saiu da casa justo quando George tirava fora o cavalo castrado de Vergil. Levava uma bata de montar violeta de corte austero e com poucos adornos. Sobre seu penteado formal se encarapitava uma alta cartola, cuja borda roçava suas sobrancelhas.
—Onde tinha planejado cavalgar? —perguntou ele assim que estiveram montados.
—Oh, simplesmente queria dar um passeio pelos arredores.
Ele a conduziu através do parque. Ela não deixava de queixar-se por sua posição na cadeira de montar. Escorregava por ambos os lados olhando as pernas com o cenho franzido.
—Não está acostumada a isto?
—Não vivia nas margens da civilização. Também em Baltimore as mulheres fazem coisas horríveis e perigosas.
—Ali cavalgava escarranchada?
—Sim. —Olhou-o com atitude desafiante, depois sorriu de maneira zombadora— Tia Edith me proibia montar à inglesa a menos que avançasse a passo de tartaruga, e eu não me sentia inclinada a fazê-lo. Ela sabia de muitas mulheres que caíram da cadeira de montar quando cavalgavam rápido.
—E como reagia as pessoas quando cavalgava escarranchada através da cidade, com calças de montar e com botas?
—Se não fosse à sobrinha-neta de tia Edith, alguns teriam se escandalizado. Ninguém se atreve a atacá-la. Quando era moça participou ativamente em nossa guerra da Independência. Conhece todos os grandes homens daquela época. Se um presidente fizer visitas a uma mulher, ninguém se atreve a criticá-la muito.
—Parece uma mulher muito interessante. É uma lástima que não tenha te acompanhado nesta viagem.
—Se não fosse à idade, o teria feito. Estaria agora ali atrás, exortando George para que compreendesse que ele é igual aos outros moços e não deveria curvar-se ante ninguém.
—A Inglaterra não necessita radicais importados. Estamos criando muitos de produção própria. E não é que George se encurve. Retrocedeu porque sabe que levanta suspeitas sobre um homem o fato de que esteja a sós comportando-se de maneira tão familiar com uma dama jovem, especialmente a uma hora como essa.
—Já vejo. Entretanto, você é um homem e agora está a sós comigo, não? Isso é suspeito?
A insinuação o deixou desconcertado. O sorriso zombador da senhorita Kenwood era um indício de que não se achava ante uma escolar ingênua que permanecia ignorante sobre o que podia ocorrer entre um homem e uma mulher juntos e sozinhos durante horas.
—Sou seu tutor. É como se fosse seu pai.
Ela se pôs a rir a gargalhadas, melodiosas como o timbre de sua voz.
—Que o céu me ampare, senhor Duclairc. Com um pai como você teria me convertido na mais aborrecida das mulheres.
—Quer dar a entender que os pais aborrecidos criam filhas aborrecidas?
«Está insinuando que sou um homem aborrecido, uma espécie de bagagem molesta?» O desejo de demonstrar até que ponto podia deixar de ser aborrecido penetrou em sua mente desde que a tinha visto no estábulo.
—Não, senhor. Simplesmente acredito que os pais estritos criam filhas de mente muito estreita.
—Concluo que sua educação, menos ortodoxa, salvou-te de ter uma mente estreita.
Ela posou seus grandes olhos azuis nele durante um momento, observando-o como se fosse capaz de ver as noites e inapropriadas imagens que avançavam sigilosamente em torno das bordas de sua mente ao aludir impulsivamente essa indiscreta questão. O impacto daquele olhar nu foi tão assombroso como se ela acabasse de acariciar sua coxa.
—Tive experiências no mundo, senhor Duclairc, e por isso minha mente não é estreita. Quando meu pai morreu, minha mãe teve que manter-se e me manter, por isso voltou a cantar. Eu tinha onze anos então, e durante os seis anos seguintes vivemos uma vida errante, viajando uma grande parte do ano.
«Experiências no mundo.» Bianca devia ter dezessete anos ao morrer sua mãe, uma garota bonita viajando na companhia de uma mãe cuja profissão sem dúvida implicava tratar com homens.
—Minha opinião teria sido que o acertado seria te deixar com sua tia, em vez de te arrastar por cidades e povos estranhos.
—Ah, sim? Essa teria sido sua opinião? —Ela estava sugerindo que ele era tão previsível que essa opinião não a surpreendia absolutamente— Eu não teria insistido em ficar, não depois de perder meu pai. Minha mãe necessitava alguém que cuidasse dela. Não era uma mulher muito prática. Tocava-me assegurar que chegasse de um lugar a outro.
—Um estranho papel para uma menina.
—Não fui menina por muito tempo, e não é que estivesse planejado que me encarregasse dessas coisas. Simplesmente o fazia porque ela era muito torpe organizando as viagens.
«Não fui menina por muito tempo.»
—A vida deveria ser muito aborrecida quando foi viver com sua tia.
—Estava preparada. A morte de minha mãe acabou com minha vitalidade, e precisava estar um tempo instalada em um lugar para pôr as coisas em seu lugar. Só quando tia Edith contratou para mim um professor de música comecei a recuperar meu estado normal.
Vergil imaginava. Aquela menina precoce com sua mãe caprichosa, organizando o valor a ser pagos pelos concertos nas Igrejas e nos pequenos povoados. Os papéis estariam invertidos e aquela pequena garota loira se encarregaria de negociar pelo transporte e de administrar os recursos, emocionante, possivelmente, e sem dúvida uma experiência que a faria amadurecer.
Entretanto, não era uma infância normal. Não teve horas de brincadeiras despreocupadas e, provavelmente, tampouco teria amigos. Sem mais amparo, nem segurança que a que ela mesma pudesse procurar. Sentiu certa compaixão por ela e admirou sua força, apesar de que essa força prometesse ser um inconveniente.
Seu passeio distraído os levou até a parte sul do lago e deram a volta para retornar. A senhorita Kenwood parecia irritantemente indiferente ante o fato de achar-se no mesmo lugar onde no dia anterior foi tão indiscreta.
—Nossa família viveu aqui desde o tempo dos normandos — explicou ele, decidindo que devia impressioná-la com a história da família e prepará-la para os cuidados de Dante— Tanto nosso nome como o da fazenda provêm destas águas. «Lago claro.» Duclairc é uma junção de du clair lac, igual é Laclere.
—Tempos dos normandos. Naqueles tempos, os antepassados dos Kenwood provavelmente viviam em cabanas.
—Bom, o dinheiro tem seu modo de nivelar essas diferenças.
—Que ideia tão democrática, senhor Duclairc. Quase americana.
Ele entrou pelo caminho que conduzia para as granjas.
—Pode parar com isso. Já foi suficiente.
—Parar com o que?
—Senhor Duclairc.
—Não pretendia ofender. Tia Edith me fez prometer que não faria reverências a nenhum aristocrata, nem sequer ao rei.
—Seus diplomatas se adaptam aos costumes quando vêm a este país, como o fazem a maioria dos visitantes.
—Eu não sou uma diplomata. E tia Edith…
—Sim, sim, a revolução e tudo isso. Se se dirigir a mim como lorde Laclere conjura o fantasma de Washington, pode me chamar simplesmente Laclere.
—Que generoso por sua parte. Então possivelmente você poderia me chamar Bianca.
Ele preferiria não fazê-lo. Certamente. Inclusive aquela vaga familiaridade com essa jovem estava provocando sensações muito incômodas. Ela era sua pupila e logo poderia chegar a converter-se na esposa de seu irmão, e ele a encontrava exasperante, para falar de um modo delicado. Ao mesmo tempo, um atrativo e desconcertante fogo crescia em seu interior. Borbulhas em ebulição rompiam de vez em quando a superfície, pequenas explosões que não estava disposto a aceitar debaixo daquelas circunstâncias. Sob nenhuma circunstância. Chamá-la Bianca unicamente obteria que outra dessas borbulhas estalasse ao pronunciar seu nome.
—Acredito que isso seria muito familiar.
—Bom, então possivelmente Laclere também seja muito familiar. —Ela inclinou a cabeça— Já sei. O chamarei tio Vergil. Apesar de que disse que o fato de ser meu protetor o converte em uma espécie de pai, dizer «papai» soaria ridículo.
«Tio Vergil, por Deus.» Ele conseguiu olhar por debaixo da asa de seu chapéu e captou um fugaz sorriso. Estava brincando com ele deliberadamente e ele continuava mordendo a isca.
O pior era que suas provocadoras ambiguidades e seus olhares oblíquos a deixava com um ar mundano que tornava implacável aquele fervor que ele sentia.
—Tio Vergil, estamos perto da fronteira com Woodleigh?
—Está justo ao outro lado dessa colina. Pode ver a casa dessa cúpula. Você gostaria de subir?
Ela aceitou. A Vergil não passou despercebido que ela soube como encontrar o caminho mais simples sem necessidade de sua ajuda.
Bianca chegou até o topo da colina de onde se divisavam os principais campos de Woodleigh. A distância conseguiu ver a imponente mansão de inspiração clássica que Adam Kenwood construiu.
—É muito grande, não?
—Sim.
Ele respondeu em voz baixa, mas ela pôde ouvir um deixe de desaprovação. Muito grande. Muito. Essa enorme massa resultava vulgar, especialmente para alguém que acabava de ser renomado barão. Sua condição de novo rico se deixava ver dos alicerces até as chaminés. Vergil deveria ser amigo de Adam, ou do contrário seu avô não o teria renomado seu tutor, mas ao que parece isso não liberava aquele velho comerciante do julgamento desse aristocrata cuja linhagem se remontava à época dos normandos.
Ela não lamentava aquela censura. De fato, agradava-a. Embora Adam Kenwood tenha deixado em herança uma fortuna, ela o odiava de todos os modos. Se tivesse legado aquela casa a ela, a teria feito arder até seus alicerces. Ela sabia que ele cometeu um grande pecado, e não cabia dúvida de que muitos outros tinham escurecido sua vida.
Bianca baixou a colina a meio galope até os campos. Vergil chegou até seu lado quando se deteve frente à casa.
—Me ajude a desmontar, por favor.
—Senhorita Kenwood, seu primo herdou esta propriedade, e ainda não retornou da França. Deveria esperar que ele se instalasse aqui antes de fazer uma visita. A casa esteve fechada durante meses, e unicamente há uns poucos criados cuidando da propriedade.
—De fato, meu primo retornou há uma semana. Me ajude a baixar ou saltarei de um modo nada elegante.
A ajudou a descer do cavalo.
—Pretende entrar, verdade?
—Pode ser que Nigel, meu primo, tenha obtido a casa e as terras, mas os objetos privados de meu avô me pertencem. Quero ver como estão. Assim que explique quem sou e quais são meus direitos os criados me deixarão fazê-lo.
Ele aceitou sua decisão mais rápido do que ela esperava, e conseguiu que os deixassem entrar. Uma vez ali a acompanhou até o escritório de Adam Kenwood.
Bianca se deteve no centro da estadia e respirou o aroma da presença de seu avô. Um piso de madeira cobria a parte baixa das paredes, e um enorme escritório estava posto de lado em um canto. Havia prateleiras com pastas e grandes livros, mas outros documentos tinham sido amontoados em embalagens de madeira que se alinhavam ao longo de uma parede e rodeavam um pequeno baú.
Ela notou que Vergil a contemplava da soleira.
—Você o conhecia bem? —perguntou ela.
—Antes de construir Woodleigh tinha uma relação de amizade com meu irmão mais velho, Milton. Depois da morte de Milton, cheguei a conhecer Adam bastante bem.
—Nisso me leva vantagem. Eu sabia que era o avô da Inglaterra, mas meus pais nunca falavam dele. Ao me fazer maior me dei conta de que esse velho homem permitiu que meu pai vivesse na pobreza enquanto ele acumulava uma enorme fortuna. —Estendeu o braço para assinalar a luxuosa casa.
Vergil entrou na estadia e examinou as gavetas do escritório.
—Seu avô obteve muitos lucros da frota marinha e outros comércios. Durante as primeiras batalhas de Napoleão, seus navios fizeram um grande serviço ao Governo, e o rei lhe outorgou o título de barão. Como a maioria dos homens, ele pretendia que seu filho fosse um cavalheiro e planejava educá-lo para isso. Entendi que seu pai tinha outras ideias e por isso partiu para América.
—Acredito que não foi sua decisão ir a América o que fez que se distanciassem, mas sim a decisão de casar-se com minha mãe. Não era uma esposa adequada para o filho de um homem que lutava para abrir caminho na alta sociedade da Inglaterra.
Ele tirou uma pasta de uma gaveta e a folheou.
—Como já te expliquei, uma profissão como a de sua mãe não está bem vista aqui.
—Suspeito que não esteja bem vista em nenhuma parte. Minha mãe não estava tão má vista em parte por seu parentesco com tia Edith. Além disso, interrompeu sua profissão ao casar-se com meu pai. Ela dava aulas particulares, e ela conseguiu manter a casa com dignidade apesar das circunstâncias. Não foi suficiente para aquele velho homem.
Ele voltou a colocar a pasta em seu lugar e depois de uma inspeção mais atenta extraiu outra.
—Bom, ao final se lembrou de você.
—Desgraçadamente, o final chegou um pouco tarde.
—Ouço um deixe de amargura.
Havia um deixe de amargura. Até ela notou o ressentimento que podia ouvir em sua voz.
—Uma minúscula parte dessa herança teria economizado muitos pesares a minha mãe, e provavelmente até teria salvado sua vida. Morreu de uma febre da qual se contagiou enquanto viajávamos.
Ele levantou a vista da pasta como se ela houvesse dito algo particularmente interessante.
—Já vejo. Assim agora quer se vingar de Adam pela morte de sua mãe, usando sua fortuna para se converter em uma artista como a mulher que ele repudiou.
Aquela acusação lhe fez sentir uma pequena fúria dando voltas em sua cabeça.
—Você frivoliza meu propósito. Aspirava minha carreira como cantora de ópera muito antes de me inteirar dessa herança. —Observou de novo a estadia— Entretanto, agora que o diz, há certa justiça em usar o dinheiro desse homem para me converter precisamente no que ele desprezava.
—Parece mais uma brincadeira pesada que justiça. Antes que desfrute com sua brincadeira deveria te explicar que uma parte do que sabe sobre seu avô se apóia em um engano.
—Que engano?
—Pelo que ele me disse, estou seguro de que não rompeu relação com seu pai. Foi seu pai quem rompeu com ele.
—Não acredito.
—Pode acreditar no que quiser, mas isso era o que Adam recordava.
Aquilo estragou a brincadeira e a justiça. Provocou uma fratura no ressentimento que lhe gelava a alma, aquele ressentimento que tinha crescido em seu coração enquanto contemplava como sua mãe tossia e perdia a vida em uma hospedagem de aluguel nas margens do mundo.
—Disse isso a você só para que não o acreditasse frio e desalmado.
—Minha opinião não lhe importava muito.
—Então mentiu a si mesmo, para poder morrer sem culpa.
—Possivelmente.
Ela observou os documentos que havia na estadia. A verdade provavelmente estaria em alguma parte. Deveria procurar as cartas de seu pai. Inclusive podia haver algumas de sua mãe pedindo ajuda quando enviuvou.
Em realidade não deveria importar o que aconteceu, mas importava. Se ia construir sua vida ao amparo da riqueza daquele homem, queria saber se devia estar agradecida ou brincar com ele enquanto o fazia.
—Há algum modo de saber o que é o que me pertence do que há aqui?
—O advogado separou os papéis. Aquelas gavetas contêm os que são pessoais, enquanto as contas da propriedade estão nas estantes. —Assinalou o pequeno baú— Suponho que o que havia em seu escritório e outras coisas de valor estão ali sob chave.
—Quero ler esses documentos pessoais. Perguntarei a meu primo se posso o visitar e fazê-lo.
—Seria mais conveniente levá-los a Laclere Park. Ali poderá revisar o material a seu desejo. Me encarregarei da transferência.
—Estou segura de que meu primo não se importaria que revisasse os documentos aqui.
—Sim me importaria.
Ela o olhou diretamente aos olhos.
—Não tem sentido mudá-los duas vezes. Esperarei até que possam enviar-se a meu próprio alojamento em Londres.
Lhe devolveu o olhar.
—Não tem alojamento em Londres, e não o terá por muito tempo.
Ela não esperava que fosse tanto tempo, mas ele não se deu conta ainda.
—De acordo, para começar levemos isto a Laclere Park.
Quando abandonaram a casa, ela viu que ele ainda levava uma pasta. Ele notou seu olhar de curiosidade.
—Há aqui algumas cartas de meu irmão. Espero que não te importe que tome emprestada esta pasta para lê-las.
—Absolutamente. —Comoveu-a que quisesse fazê-lo. Era mais sentimental do que ela esperava— Quando seu irmão faleceu?
Ele a ajudou a montar o cavalo.
—Faz menos de um ano.
—Possivelmente haja mais cartas. Quando tivermos todo o material em Laclere Park, poderemos as procurar.
Enquanto passeavam com seus cavalos para os campos, um jovem loiro galopou para eles, saudando com o braço.
Parecia um modelo extraído de uma lâmina de moda, com o elaborado nó de seu lenço, seu alto chapéu de castor e seu moderno casaco.
O jovem desceu de seu cavalo e tirou o chapéu.
—Senhorita Kenwood! Que feliz coincidência vê-la outra vez. Pensar que se tivesse ficado mais um dia em Londres, como tinha planejado não a teria encontrado.
Vergil não se alterou por esse «outra vez».
—Você deve ser Nigel Kenwood, o primo de minha pupila. Eu sou Laclere.
—É um prazer o conhecer por fim, lorde Laclere.
—Teria o chamado se soubesse que residia em Woodleigh. Pensei que ainda estava na França. Minhas desculpas.
Nigel sorriu a Bianca. Pareciam-se um pouco. Seus olhos eram igualmente azuis e seu cabelo igualmente dourado. Um homem bonito decidiu, exceto as expressões de seu rosto sugeriam um temperamento instável.
—Levo aqui só uma semana. Revisar os assuntos de Woodleigh me manteve muito ocupado, mas agora minha vida está se estabilizando.
—Então deve visitar logo Laclere Park. Estou seguro de que as damas estarão encantadas. Há muito poucos rostos novos no campo.
—Obrigado. Farei.
Nigel sorriu de novo a Bianca com admiração. Bianca lhe devolveu um doce sorriso. Vergil sorriu muito fracamente aos dois.
Prestou a Nigel mais atenção da devida.
Graças a Deus Vergil era um homem inteligente. Ela não tinha nenhuma intenção de mentir, só estava semeando nele suficiente preocupação para que decidisse não expor sua influência a doce Charlotte.
Rechaçaram o convite de Nigel a um refrigério e retomaram seu caminho. Vergil se aproximou dela.
—Já tinha conhecido o novo barão. Não o mencionou.
—Não o fiz? Há uns dias cavalguei perto de Woodleigh e o encontrei. Pareceu-me correto parar e falar com ele, já que é meu parente.
—Mostrou-te Woodleigh?
«Entrou na casa? Esteve a sós com ele em sua casa?» A expressão dele permanecia tão cuidadosamente impassível que lhe deu vontade de rir.
—Sim, fez. Era a propriedade de meu avô, assim tinha curiosidade. —Em realidade só tinha visto os jardins, mas se sentiu contente consigo mesma por ter deixado o visconde dando voltas a uma nova ambiguidade.
—Acredito que era sua intenção desde o começo visitar Woodleigh para investigar o escritório de Adam esta manhã. Estou feliz de que tenha podido satisfazer esse desejo.
Ela não acreditava que ele estivesse feliz absolutamente. Parecia estar considerando o que implicava que ela visitasse Woodleigh com camisa e calças de montar sabendo possivelmente que Nigel não estava em Londres.
Ela concluiu que, em termos gerais, aquela manhã de passeio a cavalo tinha sido um êxito.
Tomaram um caminho de volta mais direto. Ela se sentia agora mais segura em sua cadeira de montar de mulher, galopou através do parque e não diminuiu o ritmo quando entraram no bosque. A rosada luz do sol penetrava entre os ramos, criando maravilhosas e imprecisas manchas enquanto ela avançava velozmente. Aquele efeito visual a distraía e se achava despreparada quando de repente, e de forma inexplicável, seu cavalo encabritou de um modo violento.
O entorno seguiu sendo impreciso, mas agora de um modo diferente. O chão e as árvores pareciam dar voltas enquanto ela lutava para recuperar o controle sobre o animal. Este estava como louco e se retorcia parado sobre as patas traseiras. A cadeira de montar não pôde sustentá-la. Caiu ao chão sobre seu estômago e recebeu um impacto que aturdiu seus sentidos.
Ainda mais espantoso foi o peso que imediatamente caiu sobre suas costas e os antebraços que sentia a cada lado de sua cabeça. Vergil estava em cima dela, cobrindo suas costas e sua cabeça com seu próprio corpo. Ela lutou contra ele indignada e abriu a boca para protestar.
Um estalo quebrou o silêncio da manhã. Vergil a pegou pelos ombros com firmeza e lhe deu a volta apoiando-a sobre o barro.
—Vigia seus disparos! —gritou ele encolerizado na direção do som. Com a mão direita apertava os extremos das rédeas e os dois cavalos relinchavam e faziam cambalhotas.
De repente não lhe importou que estivessem ridículos, escancarados juntos desse modo.
—Quem será que disparou?
—Caçadores furtivos, provavelmente procurando faisões. É muito audaz por sua parte usar revólveres em lugar de armadilhas. Só se atrevem a fazê-lo muito cedo na manhã. Estamos a vários quilômetros da casa e eles supõem que as famílias estão ainda na cama.
Ouviu-se um novo estalo. Desta vez ela ouviu um pequeno golpe como o de uma bola, contra a árvore que tinham à esquerda. Os cavalos encabritaram e quase conseguiram soltar-se. Vergil soltou uma maldição e voltou a gritar.
Ele continuava apertado contra ela, com todo seu peso sobre suas costas. Sua respiração fazia cócegas em sua nuca. O tecido de suas mangas roçava brandamente suas bochechas.
Ela não se sentia nada em perigo, a não ser segura e protegida do modo mais quente. A íntima proximidade acendeu nela uma ardente resposta. Respirou seu aroma a sabão e couro, e um estranho bater de asas a percorreu, do coração até o estômago.
—Agora pode entender por que não deve cavalgar a esta hora. É perigoso — disse ele.
—Você vai cavalgar.
—É diferente. —Ela sentia as palavras junto a seu ouvido, como se ele tivesse aproximado ainda mais a cabeça. Tinha-a abraçada contra o chão, o queixo dela se apoiava sobre as folhas e a terra. A cálida brisa de seu fôlego acariciava suas têmporas, fazendo que aquele bater de asas se voltasse furioso.
Ele se elevou, mas sem afastar-se completamente. Permaneceu sobre ela. Algo que não era capaz de nomear vertia dele para ela. Isso a assustou. O bater de asas se fez ainda mais forte e encheu seu peito.
Deu a volta e o olhou diretamente aos olhos. Ninguém em sua vida jamais cuidou dela de uma maneira tão… Explícita. Ao menos não de tão perto. Aquele olhar pareceu penetrar diretamente em sua mente e explorar sua vontade.
Já não se sentia segura e protegida. Mas bem o contrário. O bater de asas se multiplicou adquirindo um ritmo frenético e um zumbido que se apoderou de seu corpo e de seus membros. Os alertas de uma advertência. E excitação.
A tensão que refletia em sua expressão o fazia extraordinariamente atrativo. Incorporou-se, de joelhos, para lhe oferecer sua mão e ajudá-la a sentar-se.
—Se machucou ao cair?
Ela moveu as pernas com cautela.
—Só fiquei sem fôlego. Em realidade a queda não foi muito forte, mas estarei um pouco dolorida amanhã. —apressou-se a levantar-se— Como protetor é excelente, tio Vergil. Não haveria muitos homens dispostos a lançar seu corpo entre a bala de um mosquete e uma mulher que mal conhecem.
—Qualquer homem inglês de honra o teria feito senhorita Kenwood.
Fizeram os cavalos caminhar durante um tempo para que se acalmassem, depois cavalgaram os últimos quilômetros de volta a casa. Sua silenciosa companhia a incomodava e aquela estranha excitação ainda deixava ouvir seu murmúrio. Nos estábulos, ele se deixou cair do cavalo e foi ajudá-la a desmontar. Ela se deteve quando seus braços a alcançaram.
Ele notou sua vacilação. Seus olhos azuis se encontraram com os dela de uma maneira especial. Ela começou a respirar com dificuldade e se sentia incapaz de afastar o olhar.
Uns dedos fortes rodearam sua cintura e a deslizaram para baixo. Deu a impressão de que ele demorava muito em soltá-la, o momento pareceu prolongar-se enquanto ele a sustentava tão somente a escassos centímetros. A suave pressão de suas mãos e a cercania de seu corpo a fizeram tremer.
—Obrigado. Desfrutei muito do passeio a cavalo. —Ela recuperou sua compostura e deu a volta.
—Me alegro de que tenha desfrutado, especialmente já que é o último.
Ela deu meia volta para olhá-lo no rosto.
—Está dizendo que não poderei voltar a cavalgar enquanto esteja aqui?
—Naturalmente que pode, acompanhada e bem entrado o dia. Entretanto, pedirei aos moços que não voltem a te dar um cavalo tão cedo pela manhã, e a nenhuma hora se pretende ir sozinha. —Ele se expressou com tanta autoridade e tanta calma como sempre, mas ela sentiu crescer a tensão a seu redor— Não organizará mais encontros furtivos com seu primo Nigel. Poderá vê-lo quando ele vier aqui de visita, ou quando Penelope convidá-lo.
Encontros furtivos? Sua imaginação extraiu daquelas ambiguidades mais conclusões das que ela pretendia.
Continuou caminhando sem corrigi-lo.
«Deixemos que pense o pior.»
***
Vergil aproximou uma cadeira à cama, sentou-se nela e levantou sua bota para dar a seu irmão um bom empurrão no quadril.
Dante gemeu e cobriu os olhos com um braço. Olhou por debaixo deste, viu Vergil e voltou a resmungar com resignação. Deixou escapar um suspiro de irritação e se incorporou para apoiar-se contra a cabeceira.
—Bom dia, Vergil.
Vergil viu o peito nu de seu irmão e observou os dois copos e a garrafa de vinho vazia que havia sobre a mesa.
—Quase toda a noite com Marian suponho. Disse-lhe que deixe às criadas em paz, Dante. Não quero que ninguém as incomode.
—Um homem não molesta Marian; ele luta por sua vida. Mas o que acontece com você. Por mais que lhe goste. Não seria discreto por sua parte.
—Tampouco é discreto pela tua. A mulher que pretende se casar está na casa.
Dante apoiou a cabeça contra a cabeceira e sorriu.
—Ah, sim, a bela Bianca. Sua descrição não lhe fez justiça. É realmente uma coisinha doce e jovem, só que um pouco ingênua. É encantador ver como luta por imitar nossas formas.
«um pouco ingênua?»
—Acabo de dar uma longa volta com sua coisinha doce e jovem.
—A julgar pelo estado de seu casaco, parece que esteve derrubando pelo chão com ela.
—Alguns caçadores furtivos estavam atirando e acabamos caindo do cavalo. —Não era exatamente isso o que tinha acontecido, mas não fazia sentido explicar detalhes que suscitariam perguntas a respeito— Me alegra saber que a senhorita Kenwood te parece apropriada. Entretanto, devo te advertir que tem concorrência.
—Nada sério — disse Dante bocejando.
—Nem sequer ouviu de quem se trata.
—Confio em que não seja você.
Vergil lhe lançou um olhar mordaz que escondia um incômodo sentimento de culpa.
—Só estava brincando, Vergil — sorriu Dante— Está tão claro que não encaixam e que ela te odeia que não pude resistir.
A menos que ele se equivocou completamente ao interpretar as coisas quando estavam atirados no chão, se encaixavam de um modo estupendo e perturbador.
—Seu rival não sou eu, a não ser um homem com um título nobiliário.
Aquilo freou a alegria de seu irmão. Dante tinha uma suprema confiança em sua habilidade para tratar com as mulheres, mas dado que era o filho mais jovem dita habilidade não tinha por que traduzir-se na possibilidade de casar-se com quem quisesse.
—De quem se trata?
—De seu primo, Nigel Kenwood.
—O segundo barão de Woodleigh? Com seu título recém estreado e de pouca subida não impressiona a ninguém.
—A ela não importam as delicadas questões do nascimento e a fila, e eles são parentes, o qual significa que têm um vínculo natural. Eu acreditei que ele se achava na França, administrando a herança de Adam, mas temo que retornou antes do que eu calculava. A questão é que já está aqui e se estabeleceu como nosso vizinho. Suspeito que tinha a esperança de encontrá-la aqui conosco. Afinal, ela recebeu quase tudo o que não foi deixado à caridade. Suponho que ele acredita que tem algum direito a ela.
Dante não parecia exatamente preocupado, mas Vergil monopolizou sua atenção.
—O que sabe você desse primo dele?
—É o neto do irmão de Adam. Começaram juntos nos negócios, mas o irmão teve um problema financeiro e Adam comprou sua parte. O pai de Nigel não quis tocar o negócio, apesar de Adam lhe ofereceu participar. Nigel, por sua parte, decidiu fazer-se artista e viveu em Paris até alcançar sua maioridade.
—Um boêmio? Sejamos sérios, Vergil, não acredito que…
—Não é um pintor. É músico. Adam se gabou uma vez sobre o menino e seu pianoforte.
—Ah, bom. Um músico. Pequeno motivo para alarmar-se.
—A senhorita Kenwood também se dedica à música, assim é provável que sim haja um motivo para inquietar-se, e até para alarmar-se.
Dante elevou suas sobrancelhas ante essa nova fofoca.
—É cantor — explicou Vergil— Gosta da ópera. Assim Nigel tem um possível atrativo. Interesse em comum e um parentesco de sangue.
—Exagera as duas coisas. Estamos falando de casamento, não de uma relação amorosa. Tinham nossos pais interesses em comum? Você e Fleur têm algum interesse em comum?
Ele e Fleur tinham em comum os interesses mais básicos, mas aquele não era o assunto. Vergil ficou de pé.
—Bom, mais te vale atuar com rapidez. Eu tentarei evitar que Nigel faça visitas frequentes, mas não posso impedir sua entrada na casa.
Caminhou até a porta. A voz de Dante o seguiu.
—Bom, e agora, irmão mais velho, o quão rápido quer que vá?
Vergil deu a volta para olhar Dante. Imagens desse peito e esses braços nus abraçando Bianca estalaram em sua mente, incitando-o a uma reação desagradável. Durante um momento não respondeu, enquanto tentava desfazer-se das imagens e da ira. Aquele abraço seria inevitável. E necessário.
—Não chegue a desonrá-la —disse— E mantém suas mãos afastadas de Marian enquanto esteja nesta casa. Não quero que as damas se escandalizem.
Capítulo 4
Penelope visitou o escritório de Vergil aquela tarde, para lhe comunicar que tinha recebido uma carta no correio do dia dizendo que Fleur e sua mãe viriam de visita em um prazo de dez dias.
—Estarei fora na semana anterior, mas prometo voltar a tempo — a tranquilizou ele.
—Acredito que também convidarei alguns amigos de Londres — disse Penelope— Darei a Bianca à oportunidade de desdobrar suas asas.
—Não convide muita gente, Pen. E escolhe cuidadosamente.
—Há outra coisa, Vergil. Suspeito que Dante esteja começando a ter certa debilidade por ela.
Ele tentou concentrar-se no que Pen estava dizendo, mas sua mente estava absorta contemplando à senhorita Kenwood estendida sobre o chão e olhando-o com um rubor de surpresa que lhe enviava rajadas de calor através de suas veias. Suas mãos notavam sua feminina cintura uma vez mais e seu corpo lhe advertia o perigo da cercania ao ajudá-la a descer do cavalo. Um misterioso perfume de lavanda enchia sua cabeça.
—Não se preocupe Pen. Dante não se verá envolto em uma confusão sem dar-se conta.
—Não me preocupo com Dante. Bianca, entretanto, parece tão ingênua.
«Ingênua?»
—E Dante… Vergil, não sei se você é consciente, estou segura de que ninguém fala contigo sobre isto, vendo que é tão… Mas se rumoreja que é um mulherengo implacável.
Perguntou-se do que pensaria Pen que falavam os homens quando se reuniam depois de comer com uma taça de porto e uns cigarros. Passou anos recebendo brincadeiras pelas conquistas de seu irmão, e em mais de uma ocasião se viu obrigado a olhar de frente um marido irado.
—Inclusive Dante respeita as regras básicas. Se estiver interessado nela, estou seguro de que isso o honra.
Ela pestanejou atônita.
—Permitiria?
—Por que não teria que fazê-lo?
—Ela é muito ignorante das questões mundanas e se desiludiria terrivelmente quando soubesse a verdade a respeito dele.
—Não quero interferir, Pen. Deixemos que as coisas sigam seu curso. Se ele a conquista, terão que solucionar seus assuntos da mesma forma que todos os casais o fazem.
—Você pode dizer isso, mas eu sempre lamentei que ninguém tivesse me advertido a respeito de Anthony.
Ele quis fazê-lo, mas não o correspondia sendo tão somente um jovenzinho, especialmente com sua mãe viva e encarregando-se de tudo. Um moço não podia aproximar-se de sua irmã mais velha e informá-la de que o maravilhoso conde com quem estava disposta a casar-se tinha fama de libertino, e que as escuras alusões a seus pecados não eram das típicas.
Entretanto, alguém devia tê-la advertido, e ele recordava muito bem a infelicidade de sua irmã. A separação oficial do conde durante esses últimos cinco anos havia lhe trazido certa paz, mas a custa de sua reputação social e uma permanente solidão. A lembrança de que um mau matrimônio podia ser o inferno o fez sentir-se incômodo a respeito de Bianca, e desejou que Pen não tivesse trazido a conversa seu próprio matrimônio, sem amor e sem filhos.
Ela o olhou com feminino ceticismo.
—Manterei minha língua presa e observarei como se desenvolvem as coisas, mas se suspeitar que ele está jogando com ela, chamarei sua atenção severamente, Vergil. Isso é algo que não tolerarei.
—Faz o que acredite ser o melhor, Pen.
Ela saiu, e ele voltou a se concentrar na carta que estava lendo quando entrou.
Examinou o conteúdo outra vez. O maior problema de um segredo é que sempre reclama sua atenção no momento mais inoportuno. Tinha planejado ficar ali todo o tempo que Dante estivesse, mas agora não ia ser possível.
Saiu do escritório e se dirigiu a seu aposentos para dizer a Morton que empreenderia uma viagem depois de amanhã.
***
À tarde do dia seguinte Bianca se achava sentada no salão, dando golpezinhos com o pé de maneira impaciente. Esperava que logo se apresentasse uma visita. Infelizmente, aquele que anunciava o cartão que o mordomo entregou a Pen não era o mesmo que ela esperava.
Nigel entrou despreocupado, com um ar muito romântico graças a seu paletó parisiense tão estreito na cintura, seu cachecol escuro e seu cabelo despenteado que chegava ao ombro. Obsequiou Bianca um acolhedor sorriso de familiaridade enquanto Pen o recebia.
—Retornou recentemente de Paris — me disse Charlotte— Assim tem que nos contar tudo sobre Paris.
Nigel as entreteve amavelmente com algumas descrições das últimas modas. Bianca mal escutava, apesar de que seu primo virtualmente dirigisse a ela toda sua atenção. Ela estava atenta aos ruídos de outra chegada.
As portas se abriram, mas só para dar passo a Vergil e a Dante.
—Espero que seu propósito seja ficar em Woodleigh, ao menos durante o outono — disse Penelope.
—Essa é minha intenção.
—Logo vou ter umas visitas em casa, e conto com que se una a nós sempre que puder.
—É muito amável por sua parte. Visitava meu tio-avô com pouca frequência, assim sou virtualmente novo neste lugar.
—Não passou muito tempo na Inglaterra estes últimos anos, verdade Kenwood? —perguntou Vergil.
—Preferi Paris. Encontro que a cultura ali é de superior qualidade. A vida artística é muito rica.
—Você tem interesse nas artes? —perguntou Penelope— Então desfrutará com os convidados em minha festa. Sua prima, sem ir mais longe, é uma artista excelente. Canta como um anjo e teve a gentileza de entreter Charlotte e a mim em mais de uma ocasião.
A expressão de Nigel mostrava um educado interesse, mas também ia carregada de um matiz condescendente. Bianca supôs que devia ter conhecido muitas mulheres jovens cujos amigos acreditavam que cantavam como anjos.
—Nos deixe convencê-la para que cante agora — disse Charlotte— Vergil e Dante nunca a ouviram.
—Será uma honra acompanhá-la — ofereceu Nigel— Sou bastante aceitável com o pianoforte.
Bianca se sentia um pouco encurralada. Ela só tinha entretido Penelope e Charlotte com canções populares de salão, e não pode praticar seriamente durante as últimas duas semanas. Ao mesmo tempo, a oportunidade de cantar, inclusive embora não pudesse dar o melhor de si mesma, excitava-a.
Todos foram ao salão de música e Nigel ocupou seu lugar frente ao pianoforte.
—Meu repertório de canções populares é limitado — advertiu ele, dando-se certa importância.
—Possivelmente então tenha mais sentido uma ária.
Ele levantou o olhar agradavelmente surpreso. Ficaram de acordo em interpretar uma de Mozart, uma que ela tinha estado estudando justo antes de deixar Baltimore. A perspectiva dessa pequena atuação acelerou seu coração.
Os outros se colocaram em bancos e em cadeiras. Nigel começou a tocar para introduzir a peça.
Com o som das notas o espírito de Bianca imediatamente renasceu. Não precisava conter sua voz como quando praticava escalas em seu quarto. Não era o frio isolamento que tinha experimentado quando escapulia longe para cantar no campo. A alegria que sentia ao deixar sair sua voz com força dava cor aos sons.
As reações de sua pequena audiência produziram uma espécie de poder.
Penelope permanecia aniquilada, Dante encantado, Charlotte confusa, e Vergil fortemente interessado. Ela olhou Nigel e o viu dar sua surpreendida aprovação. Sua destreza com o pianoforte era considerável, e ela tinha a sensação de que ele sabia que o público apreciava essa destreza.
Ao terminar, a sala estava tão silenciosa que ela podia ouvir o zumbido dos insetos através da janela aberta. Ela desfrutou daquele momento de torcida euforia e depois relaxou.
—Foi assombroso, querida prima — disse Nigel com serenidade— Esteve estudando a sério.
—Surpreendeu a todos, Bianca — disse Penelope— E sua interpretação foi magistral, senhor Nigel. Já vejo que a música é um interesse sério para você.
—Não um interesse, a não ser uma paixão. —Seus olhos procuraram os de Bianca com um brilho trêmulo que parecia indicar que ambos compartilhavam um segredo que os outros jamais entenderiam.
—Deve me prometer que tocará para meus convidados. Possivelmente também poderemos persuadir Bianca para que cante. Será uma noite maravilhosa.
—Será uma honra para mim.
Ele começou a preparar-se para sair, rogando a Penelope que visitasse logo Woodleigh. O mordomo entrou antes que Pen o chamasse, com um cartão de visita.
—Acaba de chegar um homem, minha senhora. Deseja ver a senhorita Kenwood.
Penelope examinou o cartão e elevou as sobrancelhas ao entregar-lhe a Bianca. Antes de lê-lo, ela já sabia de quem se tratava.
O visitante que tinha estado esperando por fim tinha chegado.
—É um assunto de negócios, Penelope. Há algum lugar onde possa me entrevistar com ele a sós?
—Leva-o a meu escritório — indicou Vergil ao mordomo— A senhorita Kenwood poderá atender ali seus negócios.
Bianca se despediu de Nigel e depois se apressou a ir ao escritório, sentindo ainda a alegria do canto.
Nunca esteve no escritório. Estava orientado ao norte, e a luz se filtrava através das janelas góticas iluminando fracamente a escura mesa de madeira, as paredes cheias de livros e as paisagens de aquarela.
Seu visitante aproximou uma cadeira à janela.
—Senhor Peterson, estou encantada de que tenha vindo.
—Senti alívio ao receber sua chamada, senhorita Kenwood. Ao ver que não ia a nossa última entrevista fiquei preocupado.
—Lorde Laclere me encontrou e pôs em marcha outros planos para minha visita a seu país.
Ela se sentou em um assento acolchoado junto à janela. O batente era muito largo. Continha uma coleção de curiosos brinquedos. Um era uma catapulta feita de madeira e cadeias. Outro, uma carruagem de madeira e couro. Um terceiro não parecia ser nada em particular, tão somente um conjunto de rampas estriadas entrelaçando-se entre si, decorado com corrente e rodas.
O tipo de construção era algo rudimentar. Ela supôs que se tratava de objetos que Vergil tinha fabricado quando era menino. A ideia de que o sério e formal visconde guardasse lembranças de sua infância em seu santuário íntimo era adorável, embora se sentisse incapaz de imaginar de menino um homem como aquele.
O senhor Peterson era um homem de meia idade, pálido e calvo, com uns olhos cinza que podiam parecer sagazes ou respeitosos segundo as circunstâncias. Quando ela o visitou em Londres pela primeira vez, seu lado perspicaz tinha entendido rapidamente que embora ela não pudesse pagar seus honorários naquele momento, tinha expectativas que resolveriam as coisas adequadamente.
—Examinou o testamento? —perguntou ela.
—O fiz. Tive uma entrevista com o advogado de seu avô. Ele pareceu surpreender-se de que tivesse me encarregado o assunto, mas cooperou até onde estava obrigado a fazê-lo. Não mais, entretanto.
—E que conclusões tirou? Posso me liberar do domínio de lorde Laclere?
—Se ele não se ocupasse de você, ou houvesse alguma evidência de fraude, seria possível fazer algo a respeito, mas a Corte não permitiria a independência que você está procurando. Se o visconde não fosse seu tutor, outra pessoa seria nomeada em seu lugar. Com um homem de sua categoria, qualquer abuso de sua posição teria que ser realmente terrível para que se pudesse levar ante a Corte.
Ela se sentiu furiosa ante a decepção. Aquele brinquedo inútil captou sua atenção e viu uma pequena bola de chumbo em sua base. Refletindo a respeito de qual seria sua próxima estratégia com Vergil, pegou distraidamente a bola e a soltou sobre a rampa superior. Começou a rodar costa abaixo, de uma rampa a seguinte, de um lado ao outro, pondo em movimento várias pequenas rodas e polias cada vez que seu peso mudava de nível.
—Senhorita Kenwood, não se trata de uma situação permanente… Será menos de um ano. Você é uma moça e rica, e é compreensível que seu avô tenha querido protegê-la para evitar que seja vítima de algum caçador de fortunas sem escrúpulos.
—Quanto de rica?
—Perdoe? Supunha que você sabia.
—Sei em termos gerais. Mas exatamente a quanto ascende minha fortuna?
—Os ganhos pelo fundo de dinheiro investido sobem ao menos a três mil libras este ano.
—Essa quantidade por si só já é uma fortuna, e muito mais do que necessito para meus planos.
—Seu tutor dirigirá essa soma, subministrando os recursos de acordo com as necessidades que você tenha e os gastos que deva cobrir. Ele tem a obrigação de ser razoável em relação a seus pedidos.
Ela duvidava que Vergil fosse tão razoável para lhe dar várias centenas de libras que a permitissem escapar para Milão. Se ele controlava seus ganhos, controlava também seus movimentos. Em definitivo, controlava sua vida.
—Quanto à outra parte de sua herança, tudo resulta muito mais complicado — disse o senhor Peterson, continuando com seu relatório.
—Que outra parte?
—Seu avô era um homem de negócios. Para o final de sua vida vendeu a maioria deles. Entretanto, conservou três sociedades. Duas eram pequenas parcelas de companhias de transportes, e a terceira era a maior parte de uma companhia de algodão em Manchester. Também foram legadas a você suas ações nesses negócios, menos dez por cento das da fábrica, que foram cedidas ao seu primo.
—Entretanto, o visconde também é meu administrador. Ele dirige esses investimentos.
—As ações nessas sociedades não são parte dos investimentos permanentes, como sim o são os recursos de investimento. Se você se casar ou se faz maior de idade, ele deverá renunciar ao controle sobre elas. De fato me surpreende que ele não tenha vendido esses negócios. Representam uma ameaça para sua riqueza. Se algo sair mal, todos os proprietários são responsáveis pelas dívidas incorridas.
Aqueles negócios em realidade não lhe interessavam muito, a menos…
—Também há ganhos que provêm desses negócios?
—O advogado não esteve disposto a me permitir ver os documentos. Eu acredito que a fábrica deve dar lucros.
—E o que ocorre com esses ganhos?
—Vão para seu administrador, que presumivelmente os investe em mais investimentos. Ou se não, são enviados ao seu tutor.
Que era a mesma pessoa. Administrador. Tutor. Qualquer que fosse o lugar para o qual se desviava a conversa acabava indo parar em Vergil Duclairc.
—Senhor Peterson, eu gostaria que você estivesse presente enquanto falo com lorde Laclere. A situação que criou é intolerável. Estou prisioneira aqui.
Ela chamou o mordomo para que solicitasse a presença de Vergil. O senhor Peterson pareceu muito incômodo ante a ideia dessa entrevista. Quando Vergil entrou pela porta, o respeito havia superado a suspicacia naqueles olhos cinza, e a calvície daquele homem mostrava pequenas gotas de suor.
—Lorde Laclere, este é o senhor Peterson. Ele é meu procurador.
Vergil examinou friamente o advogado com um gesto aristocrático de aborrecimento. O senhor Peterson se desfez em um molho de nervos. Bianca lutou contra o impulso de bronquear com ele para que se comportasse como um homem.
Vergil posou sobre ela um olhar muito sério.
—Não sabia que tinha contratado um advogado, senhorita Kenwood.
—Foi uma das primeiras coisas das que me ocupei ao chegar a Londres.
—O advogado de seu avô, ou o meu, ou inclusive eu pessoalmente, teríamos lhe explicado gostosamente algo que precisasse saber.
—Pensei que era melhor ter meu próprio representante e decidir por mim mesma o que era o que precisava saber.
—Confio em que o senhor Peterson tenha satisfeito do toda sua curiosidade.
—Quase tudo. Falou-me a respeito das ações de negócios que herdei e sugeriu que você deveria as ter vendido, para maior segurança.
—Eu não o expressei dessa maneira milord — se apressou a esclarecer o senhor Peterson— Só lhe expliquei as leis em relação às responsabilidades financeiras dos sócios.
—Como deveria fazer com um cliente. Estou obtendo informação sobre o valor das ações. Como administrador seria irresponsável por minha parte as vender a um preço muito baixo. Houve várias propostas em relação à venda que terei em consideração quando estiver em melhores condições para julgar se forem justas. Entretanto, estas coisas levam seu tempo. É difícil obter informação honesta dos gerentes e dos outros proprietários.
—Excelente milord. Justo o tipo de prudente supervisão que alguém esperaria. Acredito que é evidente que tudo está em perfeita ordem, senhorita Kenwood, e que é você afortunada pelo fato de que lorde Laclere se faça cargo de…
—Quando se recebem os benefícios das companhias? —perguntou ela.
Uma paciência de aço controlou a mandíbula e a boca de Vergil.
—Se houver benefícios, as companhias os pagam uma vez ao ano. Serão reaplicados em recursos do Governo.
—E os recursos de investimento por eles mesmos deram lucros desde a morte de meu avô?
—Sim, deram.
—E essa parte dos benefícios foi também reaplicada?
—A maior parte.
A maior parte, mas não toda.
—Senhor Peterson, seria tão amável de me esperar na biblioteca?
O senhor Peterson estava encantado de fazê-lo. Quase tropeçou ao retirar-se apressadamente.
Bianca ocupou uma cadeira frente à Vergil.
—Quero que arrume as coisas para que os ganhos fiquem a minha disposição.
—Não tenho nenhuma intenção de fazer isso.
—Trata-se de minha herança.
—Inclusive embora fosse a mais sensata das jovens, não estaria cumprindo com meu dever se te deixasse dispor desse dinheiro. O certo é que confessou ter propósitos que me converteriam em um conspirador de sua ruína. É totalmente impossível.
—O senhor Peterson me explicou que se espera que um tutor seja razoável em relação a esses recursos.
—Com uma parte é suficiente para cobrir suas necessidades. Os lojistas só têm que me enviar suas faturas. As costureiras e outros profissionais que atendem às mulheres estão acostumados a isso. A menos que haja algum gasto exagerado por sua parte não precisamos voltar a falar disto.
—Dado que não há costureiras nesta casa não corro o perigo de ser acusada de nenhum gasto exagerado.
A expressão dele se suavizou um pouco.
—Minhas desculpas. É obvio que você gostaria de desfrutar dos frutos de sua enorme fortuna. Pedirei a Penelope que te leve a Londres dentro de umas poucas semanas.
—Obrigado. Entretanto, necessitarei um pouco de dinheiro para gastos menores agora. Tenho que comprar uns poucos artigos de natureza pessoal.
Tal como ela esperava, a palavra pessoal o impediu de seguir investigando. Abriu uma gaveta do escritório.
—Espero que vinte libras seja suficiente — disse ela.
—Isso é muito dinheiro para gastos menores, senhorita Kenwood.
—Usarei uma parte para pagar o senhor Peterson.
—O senhor Peterson pode me enviar sua fatura.
—Prefiro que não o faça. Prefiro que recorde quem o contratou. Tampouco me parece correto lhe pedir que aguarde minha herança.
Vergil tirou vários bilhetes da gaveta e os colocou em uma pilha sobre o escritório. Caminhou para ela, sem poder ocultar por mais tempo sua irritação. Ela com muita dificuldade pôde evitar encolher-se de medo ante a autoridade que emanava dele.
—Não estou acostumado a discussões abertas sobre assuntos de dinheiro, e muito menos com mulheres. Não estou disposto a tolerar perguntas que impliquem dúvidas a respeito de minha honestidade e minha capacidade na hora de administrar seu patrimônio, e menos diante de um homem que não conheço.
Ele se inclinou e se agarrou aos braços da cadeira. Ela se encolheu contra o respaldo, afastando-se das faíscas que brilhavam em seus olhos, tão somente a umas polegadas de seu rosto.
—A questão é senhorita Kenwood, que agora mesmo o tio Vergil está pensando que sua desrespeitosa pupila merece uma boa surra.
Os lábios dela se abriram com indignação. Ele saiu disparado e se afastou a grandes pernadas até a porta.
Logo que ele saiu, recolheu os bilhetes e se reuniu com o senhor Peterson. Entregou-lhe dez libras.
—Isto é em pagamento por seus honorários e gastos até o momento. Quero que você guarde o que sobre e abra uma conta para mim no banco. Use seu próprio nome se for necessário.
—Seguro que lorde Laclere terá uma conta onde se possam fazer remessas bancárias.
—Quero ter minha própria conta, e não quero que ele saiba. Me escreva informando quando estiver feito. Também quero que faça averiguações a respeito dessas ofertas para a compra das ações das companhias.
—Se insistir, verei o que posso averiguar. Devo lhe escrever aqui?
—Sim. Não acredito que o visconde me deixe ir muito longe durante um tempo.
Provavelmente não até que se casasse ou fizesse vinte e um anos.
Ela não tinha intenção de fazer o primeiro e tampouco de esperar o segundo. Se o senhor Peterson conseguia os nomes das partes interessadas nas sociedades, ela poderia conseguir o dinheiro necessário para ir à Itália, apesar do obstáculo que representava Vergil Duclairc.
***
Vergil com muita dificuldade conseguiu acalmar sua fúria depois da surpresa de encontrar-se com o senhor Peterson, quando outra visita inesperada chegou à última hora da tarde. Adrian Burchard, um dos amigos de Vergil, entrou em seu escritório, graças a Deus o distraindo das insistentes e eróticas imagens de uma Bianca Kenwood domesticada.
—Fazia muito tempo que não nos víamos Burchard — disse Vergil, lhe dando boas vindas.
—Se passasse algo mais que uns poucos dias em Londres cada vez que vai, não teria sido tanto tempo. Onde esteve metido? —Os escuros e exóticos olhos de Adrian não pareciam estar esperando uma resposta interessante.
E tampouco a conseguiu. Vergil assinalou o escritório.
—Temo que os assuntos familiares me tiveram a maior parte do tempo ocupado. —O conteúdo da afirmação era certo, mas não o gesto que a acompanhou e suas implicações. Não tinha passado em Laclere Park mais tempo que em Londres.
Dentre todos seus amigos, Burchard era o mais capaz de precaver-se dos silêncios.
—Com frequência escapei ao norte, à propriedade que tenho ali. Aí não tenho que me comportar como um visconde — acrescentou Vergil precisamente para romper o silêncio— É uma sorte que tenha cavalgado até aqui para me liberar de ter que exercer de visconde esta tarde.
—Lamento te dizer que esta não é uma visita social. Demos um passeio e te explicarei.
Cheio de curiosidade, Vergil o acompanhou até o princípio do caminho que dava a casa. Adrian o conduziu até o lugar onde outro caminho assinalava o fim da propriedade. Ali, à sombra de uma árvore, esperava um carro.
Um homem mais velho com um proeminente nariz farpado estava sentado em seu interior.
—Podia ter me avisado de que havia trazido Wellington contigo.
O duque o ouviu por acaso.
—Pedi que o trouxesse sem anunciar minha presença, e Burchard cumpriu com sua missão ao pé da letra.
—Sua excelência nos honra com esta visita.
—Não é uma visita, por isso pedi a Burchard que te trouxesse até aqui. Não pretendo ofender sua irmã, Laclere. Simplesmente hoje não tenho tempo para bate-papos de salão. —Fez um gesto com sua bengala — Este parece um caminho agradável e sombreado. Façamos um pouco de exercício.
Vergil começou a caminhar, com Adrian a seu lado. Adrian se converteu no protegido de Wellington. O mecenato daquele grande homem lhe proporcionou um lugar na Câmara dos Comuns como terceiro filho do conde de Dincaster.
Durante uns minutos se ouviu o rítmico ruído das botas contra o chão. O duque não tentou cobri-lo com elogios ou frases de rigor.
—Vim tratar de um tema delicado — disse por fim— Não há uma boa maneira de abordá-lo, assim irei direto ao ponto. Vim fazer umas perguntas sobre a morte de seu irmão. Sempre sinto curiosidade quando um homem morre por causa de uma ferida de bala disparada por si mesmo de forma acidental. Sou consciente de que não é fácil que isso ocorra. Quero saber se no caso de seu irmão não foi um acidente a não ser um suicídio.
Vergil dirigiu a Adrian um olhar ressentido, e este respondeu negando sutilmente com a cabeça. A evidência de que Adrian não tinha sido desleal ou indiscreto acalmou seu aborrecimento.
—Sim. Unicamente a família e uns poucos amigos sabem.
—Aprecio sua confiança em minha discrição, mas receber a confirmação de minhas suspeitas não me dá nenhuma satisfação. Me diga, alguma vez se expôs que resulta estranho que tenhamos tido dois suicídios de pessoas importantes durante a mesma semana? Seu irmão e o de Castlereagh.
—Meu irmão era propenso a crises de profunda melancolia. O ministro de Assuntos Exteriores estava desequilibrado. Foi uma coincidência.
—Laclere, não estou convencido de que foi uma coincidência. Existe alguma possibilidade de que seu irmão tenha sido vítima de uma chantagem? Você achou alguma prova neste sentido? Pergunto porquê há indícios de que Castlereagh sim foi.
—Acreditava que essas suspeitas tinham sido enterradas. Por você.
—Considerando sua posição dificilmente podia deixá-lo assim. Aquele homem era vítima de delírios, assim que concedi a ele pouca credibilidade. Entretanto, as últimas vezes que o vi me disse algo sobre uma carta. Aludiu a seus temores de ser convertido no alvo de um escândalo.
Um escândalo. Vergil suspeitava onde iria parar aquilo e não queria ir por esse caminho.
—Como você disse, era vítima de delírios.
Wellington deu cinco passos antes de reatar a conversa.
—O autor da carta afirma ter provas de certa atividade criminosa.
Vergil se deteve, forçando Adrian e Wellington a fazê-lo também.
—Assim depois de meses de reflexões esse detalhe me permitiu fazer algum tipo de conexão com meu irmão?
—Laclere, o deixe terminar — disse Adrian.
—Nem pensar!
—Compreendo sua ira, Laclere. Asseguro que a única conexão que vi foi a dos dois suicídios, um dos quais pode ter sido resultado de uma chantagem. —A voz de Wellington cobrou severidade— O pergunto outra vez, tem alguma razão para suspeitar que seu irmão pôde ter sido também vítima de uma chantagem? Para que não sinta a tentação de mentir em altares de proteger seu nome, me deixe lhe dizer que acredito que outras pessoas estão sendo vítimas agora, esse acidente de caça de lorde Fairhall em maio não foi o que parece, e teremos mais desastres e mortes se não chegarmos até o final deste assunto.
A fúria de Vergil se fez mais intensa. Não foi pelo tom severo do duque. Esteve pensando naquele segredo durante quase um ano, perguntando-se se as coincidências e as conexões que ele mesmo suspeitava não eram mais que seus próprios delírios.
—Sim, acredito que Milton estava sendo chantageado. Acredito que é por isso que se matou. Ele deixou uma carta. Encontrei-a entre seus papéis, onde ele sabia que eu procuraria para me ocupar dos gastos da fazenda. Aludia a uma traição, se era a ele ou a outra pessoa não sei. A maior parte da carta falava da família, e de que seria melhor que ele saísse de cena antes que nos arruinássemos. Eu quis acreditar que se referia às finanças, que estavam em uma situação péssima então. Entretanto, estive me perguntando se não o tinham obrigado a escrever essa carta.
Sentaram-se sobre o tronco de uma árvore caída enquanto ele contava sua história. Wellington fazia desenhos na terra com sua bengala enquanto escutava.
—Suponhamos que em ambos os casos houve uma chantagem. O objetivo era que morressem? —perguntou Adrian.
—Essa é a questão, não? —disse Wellington.
—No caso de meu irmão a razão da chantagem só podia ser para tirar dinheiro. Não havia nenhum modo de que alguém soubesse que não podia pagar. Nossa situação financeira não era óbvia. Ele gastava como se não houvesse um problema.
—Normalmente, se supõe que o único que quer um chantagista é sangrar sua vítima. Entretanto, o momento que estamos vivendo… Tivemos provas de que há radicais tentando assassinar membros do Governo e da Casa dos Lordes. A situação, portanto é propícia para provocar problemas deste tipo.
—Meu irmão não se destacava no Governo.
—Tinha interesse na política.
—Um interesse teórico.
—Um interesse teórico radical. Isso deve tê-lo levado a contatar com homens que defendem a violência e que poderiam enredá-lo, e através dele outros — disse Wellington — Ele deve ter se comunicado ou associado inocentemente com homens desses, só para que logo usassem essa conexão contra ele mais tarde.
O comentário pendurava no ar, mendigando uma resposta. O duque tinha articulado claramente os próprios temores de Vergil a respeito da morte de Milton.
—Você encontrou cartas que demonstrassem uma relação de amizade entre seu irmão e o ministro de Assuntos Exteriores? —perguntou Wellington.
—Não as busquei. —Era mentira. Uma maldita mentira. Entretanto, não podia permitir que a hipótese se convertesse em um fato tão facilmente.
—Possivelmente deveria fazê-lo.
—Estive procurando em outras direções. Não acredito que haja uma conexão direta entre essas mortes, exceto possivelmente pelo mesmo chantagista. Estou mais interessado em encontrar esse homem que em averiguar quão pecados ele descobriu.
—Assim que essa é a razão pela que não esteve muito em Londres e tampouco aqui — disse Adrian— Progrediu algo?
—Um pouco. —Condenadamente pouco considerando quanto de seu tempo e de sua vida investiu nisso.
—Não há nada que eu possa fazer a respeito, salvo observar o comportamento dos homens e me perguntar se estão preocupados — disse Wellington— Tenho razões para pensar que vários estão. É uma ideia horrenda, a de que alguém esteja desentranhando segredos e usando-os para intimidar ou extorquir seus amigos. E o pior é que esses homens andam tão escassos de dinheiro que tiram a vida para escapar.
—E você, Burchard? Qual é seu interesse nisto, ou só veio hoje para organizar um encontro privado com Sua Excelência? —perguntou Vergil.
Wellington respondeu enquanto os três se levantavam para retornar até o carro escondido.
—Ele está fazendo algumas discretas averiguações para mim sobre lorde Fairhall. Dado que você sabe que é um homem de confiança espero que compartilhe com ele algo que averigúe para que possamos resolver este assunto de uma maneira rápida.
—É obvio.
Era outra mentira descarada. Adrian era um amigo, e tinha experiência tanto em investigações como em discrição, mas Vergil não tinha intenção de revelar o que descobrisse a ninguém se isso podia repercutir negativamente em Milton ou na família Duclairc.
Ele suspeitava que assim seria por todas as razões que cuidadosamente evitou discutir.
Capítulo 5
—Vê o que quero dizer? —sussurrou Charlotte.
Estava sentada junto à Bianca no salão enquanto os convidados chegavam à festa.
Vergil se achava de pé ante o suporte, conversando amavelmente com Fleur e sua mãe, a senhora Monley. Tinham chegado justo depois do meio-dia, em uma magnífica carruagem.
—Nada — murmurou Charlotte, sacudindo a cabeça— Não… Bom, não sei… Sua atitude. Vergil poderia perfeitamente estar falando comigo e Fleur com seu pai.
Sentada do outro lado de Charlotte, Diane Saint John, uma das amigas mais queridas da condessa, dava golpezinhos na mão. Seus olhos cheios de sentimento se voltavam risonhos quando olhavam para o suporte.
—Eu não me preocuparia com seu irmão ou a senhorita Monley. As coisas nem sempre são o que parecem nestes assuntos. Os vê estupendamente juntos, não? Um bom casal.
Sim faziam um bom casal. Fleur era toda cortesia e elegância, alta e magra, com a pele de alabastro e o cabelo escuro. Os cachos caíam de um coque decorado com lacinhos, emoldurando seu rosto ovalado que levava no centro uma boca franzida como uma rosa. A Bianca parecia uma pessoa inteligente, de voz suave, cujos olhos marrons estavam atentos a todos os detalhes.
Bianca experimentou uma vaga decepção ao notar que Fleur não a desagradava instantaneamente, ao mesmo tempo em que sentia uma inexplicável pontada de melancolia cada vez que olhava ao grupo junto à lareira.
—Tenho medo de que Vergil esteja se sacrificando por sua fortuna — disse Charlotte— Parece contente de vê-la, mas tendo em conta que sua família deixou Londres há oito semanas e, entretanto, estiveram separados todo este tempo…
—Isso não sabe — disse a senhora Saint John— Pode ser que quando ele não está aqui nem em Londres vá visitá-la.
—Eu acredito que não. A maioria das vezes vai a seu imóvel de Lancashire. Diz a seus agentes, a Pen e a instrutora que vem ficar comigo onde podem encontrá-lo. Se não se tratasse de Vergil, qualquer um poderia suspeitar que vai visitar uma mulher ali. Alguém que ama, mas com quem não pode casar-se.
Bianca se meteu de repente na conversa olhando fixamente Charlotte com uma expressão triste.
—Sugerir isso é escandaloso.
—Tenho entendido que esse tipo de coisas é muito habitual. Pen inclusive me insinuou que devo esperar que meu marido tenha outras relações de vez em quando.
A senhora Saint John baixou as pálpebras.
—Acredito que muita gente foi indiscreta quando fala ao seu redor, Charlotte.
Bianca viu que a senhora Saint John não havia dito que Charlotte estava equivocada, ou que sua ignorância a tivesse levado a interpretar mal as palavras de Penelope.
—Bom, isso explicaria muitas coisas. Para começar aquilo. —Charlotte fez um gesto com a cabeça em direção ao suporte da lareira— A demora em anunciar o compromisso formal por outro. Com sua beleza e sua riqueza ela não tem por que estar o esperando. O estranho é que a Fleur não parece importar que as coisas estejam assim. É sua mãe quem se impacienta.
Sim, sua mãe estava se impacientando. Os olhos da senhora Monley eram os mais iluminados pelo fogo da lareira. Seguia a conversa de sua filha com um encantador sorriso e um movimento de cabeça que dava à pluma de seu turbante de seda e cordões um inquisitivo ângulo.
—A noite promete alongar-se. Deveria se retirar para descansar — disse uma voz masculina.
Bianca afastou sua atenção da lareira para ver que Daniel Saint John se uniu a elas e se dirigia a sua esposa. Aquele homem atrativo que podia deslizar rapidamente de uma passiva frieza a uma atenção intensa, enfocava esta agora no que mais o interessava.
—Daniel se mostra muito protetor comigo quando estou em estado — confessou Diane com um sorriso— Depois de dois filhos, querido, já não sou tão frágil.
—De todos os modos, é necessário que descanse. —Ofereceu-lhe a mão para acompanhá-la.
A Bianca não passou despercebido o olhar que trocaram. Ternura, humor e uma absoluta devoção fluíam nesse fugaz contato. Era como se anos de lembranças colorissem a forma em que viam um ao outro, e enriquecessem inclusive aquela comum troca.
Bianca voltou a dirigir o olhar à lareira e viu como o comportamento de Vergil e Fleur contrastava com o daquele outro casal.
O comentário de Charlotte teve para ela uma nova dimensão. Não havia necessidade de uma demonstração aberta de paixão e afeto. De uma maneira silenciosa que não implica o contato físico, um homem e uma mulher podem estar intimamente conectados.
Diane Saint John aceitou a sugestão de seu marido e se levantou.
—Suponho que um breve descanso pode ser uma boa ideia. —Juntos, sem falar, mas dizendo-se muito, dirigiram-se para o salão.
A atividade do vestíbulo anunciava a chegada de outro carro.
—Por fim o último. —Charlotte ficou em pé— Este deve ser o da senhora Gaston. É uma das amigas de Pen e uma grande mecenas das artes. Apoiou Pen quando outros a abandonaram após sua separação. Acredito que Pen a convidou pensando em você, por sua carreira de cantora.
Bianca e Charlotte seguiram Penelope e Vergil para receber à nova convidada.
A senhora Gaston tinha vindo em uma grande carruagem. Pen se adiantou estendendo os braços para lhe dar a bem-vinda.
—Que amável por sua parte fazer um encaixe para vir a nossa pequena festa.
A senhora Gaston era uma bela mulher de sorriso encantador, maçãs do rosto marcadas e um cabelo castanho acobreado. Movia-se com uma orgulhosa elegância, levava um casaco com um exótico estampado e um chapéu com plumas extravagantes.
—É você a que foi amável ao me dar uma oportunidade para escapar da cidade durante uns dias. Entretanto, temo que dei um passo em falso e devo pedir sua indulgência por isso.
—Um passo em falso? Você? Nunca.
—Infelizmente sim. Trouxe uma amiga comigo.
—Quando lhe escrevi disse que seus amigos seriam bem-vindos.
—Sim, fez. Normalmente no caso de trazer alguém eu teria escrito para lhe avisar. Mas esta amiga chegou à cidade inesperadamente.
Um lacaio se aproximou até a porta aberta da carruagem. Uma mão enluvada e uma manga na moda apareceu. Uma cabeça escura de elegante penteado e chapéu se agachou enquanto a amiga em questão inclinava seu corpo para descer.
—Maria — exclamou Pen, abraçando a escultural figura envolta em musselina azul pálida— Ninguém sabia que viria nos visitar este ano. É uma surpresa maravilhosa para mim.
O rosto da mulher não era formoso, com suas feições muito marcadas, mas sua forma de comportar-se transmitia uma sólida dignidade e inspirava confiança.
—Foi uma decisão impulsiva por minha parte, querida minha. Milão é horrível com o calor. Meus músicos estão se comportando como meninos mimados, e o tenor para a próxima produção é um jovem idiota e arrogante que não se deixa dirigir. Simplesmente deixei a todos. Vamos ver como as arrumam sem Catalani.
—Oh, Deus, que sorte — sussurrou Charlotte a Bianca— Sabe quem é?
Bianca sabia. A mais importante cantora de ópera da Inglaterra, Maria Catalani, retornou da Itália há seis anos e agora dirigia uma companhia de ópera em Milão.
Que maravilhoso golpe de sorte. Com a senhora Gaston e Catalani ali, aquela festa prometia ser enormemente mais interessante do que esperava.
Vergil se adiantou para saudar Catalani, beijando sua mão de maneira lisonjeadora. Ela disse algo em voz baixa e seu rosto se iluminou com um sorriso.
Se a visita inesperada de uma cantora de ópera afligia Laclere, este não o demonstrou. Provavelmente trataria do assunto com Penelope mais tarde.
Penelope conduziu seus novos convidados ao interior da casa.
A Bianca tremia os joelhos pela emoção.
—Esta deve ser Charlotte. Já parece uma jovenzinha, encantadora — disse Catalani— Já teve sua estréia em sociedade?
—No próximo ano — explicou Pen— Vergil não aprova que nestes dias as garotas se apresentem a uma idade tão jovem.
Catalani olhou para trás ao visconde que as seguia e franziu os lábios com picardia.
—Um bom estratagema, e será muito efetiva. Deixemos que tenham que esperar por um diamante assim. Será a sensação da temporada, Charlotte. Predigo que seus irmãos necessitarão lacaios extras para vigiar as paredes do jardim.
Pen atraiu Catalani até Bianca.
—Esta é Bianca Kenwood, de Baltimore. É a pupila de Vergil.
—Nunca tive o prazer de visitar seu país. Temos que falar. Tenho muitas perguntas a fazer.
—E eu também tenho perguntas para você. Visitarei a Itália muito em breve.
—Está planejando uma grande viagem para sua irmã e sua pupila, lorde Laclere? —perguntou Catalani enquanto Pen a conduzia para o interior da casa— Necessitará dez lacaios extras então, se envia duas belezas como estas a meu país.
Bianca se apressou a alcançar Charlotte, atônita pelo curso dos acontecimentos. Essa festa prometia ser o ponto culminante de sua estadia na Inglaterra.
—Por hoje já estão todos os convidados — explicou Charlotte— Pen disse que o senhor Witherby escreveu dizendo que chegaria amanhã pela manhã. Vamos descansar um momento antes de jantar.
Bianca decidiu não fazê-lo a menos que ficasse claro que Catalani também se retirava. Esperou até que a imponente mulher subisse a escada flutuando com Penelope a seu lado.
Ficou sozinha de pé no vestíbulo vazio, sabendo que seria totalmente impossível descansar. Procurando alguma forma de aliviar sua ansiedade, entrou na biblioteca, encontrou o volume de poemas de Shelley que tinha estado lendo e se amassou em um divã encarado uma janela.
Aquele era seu lugar favorito para ler, especialmente pelas tardes. Uma luz tênue penetrava através da janela acompanhada de uma suave brisa. Ninguém podia vê-la ali a menos que se aproximasse do divã. Aquele tinha se convertido em um de seus poucos cantos privados.
Ouviu-se o ruído de passos de alguém que entrava na estadia. Ela se incorporou um pouco para ver de quem se tratava. Dante a reconheceu e caminhou para ela; levava seu chapéu e o látego de montar. Sentou-se em uma poltrona, frente a ela e esticou as pernas; também levava botas.
—Chegaram todos? —desapareceu de casa depois da chegada de Fleur.
—Todos menos o senhor Witherby.
—Surpreende-me que se atrase. Esperava que quisesse aproveitar cada momento para seduzir minha irmã.
—Charlotte?
—Pen. Converteu-se em um amigo muito especial para ela durante o último ano. Ou ao menos ele pensa que assim é. Não sei que ideia tem Pen a respeito, embora pareça desfrutar de sua companhia. Estou seguro de que é por isso que o convidou, apesar de que também é um velho amigo de Vergil.
A frase «amigo muito especial» aludia a algo mais que a uma mera relação de companheirismo. Dante frequentemente se despistava e falava daquela maneira tão familiar, como se compartilhassem alguma compreensão do mundo. Aquele tom de conspiração implicava um tipo de intimidade.
Ele vadiava com ar despreocupado, olhando-a por debaixo das grossas pestanas desse modo que sempre a fazia sentir-se tão incômoda. Sempre estavam a sós quando a olhava dessa forma.
—Maria Catalani acaba de chegar com a senhora Gaston. Foi uma surpresa para todos —disse ela.
Aquilo pegou sua atenção.
—A senhora Gaston está aqui? Deveria ter perguntado a Pen a quem esperava receber antes de aceitar ficar.
—Não te cai bem?
—É por pura insistência que conseguiu introduzir-se em muitos círculos. Vê a si mesma como uma grande patrocinadora de artistas e quer que todos saibam como promove suas corridas.
—Faz? Promove corridas?
Ele deu de ombros.
—Não saberia lhe dizer isso. Os círculos artísticos de Pen não me interessam muito, e parece que isso é o que temos aqui. A senhora Gaston e Catalani, diz. Lorde Calne é outro patrocinador das artes. Cornell Witherby será uma boa companhia, ao menos, apesar de que com os outros que há aqui provavelmente só falará de sua poesia. Espero que Vergil o distraia com outras coisas.
—Crê que Vergil permitirá que Catalani fique?
—Por que não ia fazê-lo?
—Isso pensei, possivelmente, com Fleur aqui e Charlotte e…
Seu comentário o deixou preocupado.
—Esta é a festa de Pen, e meu irmão sabe o que isso significa. Vergil pode ser um santo, mas nunca se comporta de um modo rude. Por outro lado, Catalani tem suficiente poder para ocultar os meios pelos que conseguiu sua fama. —levantou-se— Acredito que darei um passeio. Será uma honra se me acompanhar. Te mostrarei as ruínas.
Bianca já tinha encontrado as ruínas medievais que se conservavam no parque Laclere, e não queria as visitar sozinha com um mulherengo. E menos ainda com um que naquele momento a olhava com esse brilho nos olhos.
—Obrigado, mas acredito que continuarei um bom momento lendo.
Uma repentina irritação alterou sua expressão. Para sua surpresa ele se aproximou e acariciou sua mandíbula com um dedo.
—Não tem que ter medo de mim Bianca.
Ela se tornou para trás ante seu gesto.
—Seu irmão diz que aqui não é habitual dirigir-se a uma mulher de um modo tão familiar.
—Eu não sou meu irmão.
Não, não era. A última semana ela tinha sido o centro da atenção desse jovem. Tinha tentado desanimá-lo. Ao que parecia sem êxito.
Sua mão a tocou outra vez, sustentando seu queixo. Os olhos de Bianca se alargaram com incredulidade quando ele inclinou sua cabeça para cima, aproximou a sua e lhe deu um beijo nos lábios. Aconteceu tão rápido que a impressão lhe fez ficar completamente imóvel.
Ele a interpretou mal. inclinou-se para ela e a beijou profundamente, ao tempo que a abraçava.
Ela se separou dele e o lançou contra a janela com uma assombrosa fúria. Raivosa e envergonhada o enfrentou.
—Não se atreva a voltar a fazer isso.
Ele se levantou.
—Minhas desculpas. Deveria ter te pedido primeiro permissão.
—Não o teria obtido.
—Eu acredito que sim.
—Interpreta mal nossa amizade.
—Não acredito. Está assustada e confusa, e isso é normal para alguém tão inocente. Não voltarei a te beijar sem sua permissão, mas quando lhe pedir isso me dará isso.
Ela andava a provas procurando uma resposta mordaz. Ele sorriu com uma confiança em si mesmo que resultava insofrível e saiu da estadia.
Ela voltou a afundar-se no divã, levantou as pernas e se encolheu em seu canto. O que teria feito pensar a aquele patife que ela reagiria bem ante semelhante coisa? Teria ouvido algo a respeito de seus espetáculos em Londres? Até onde ela sabia, tinha ido a um.
Que sorte para ela que o irmão equivocado tivesse concluído que ela era um pouco selvagem e descuidada com o decoro.
***
—Se escondendo das obrigações de sua condição? —perguntou Dante ao entrar no escritório onde Vergil se achava lendo sua correspondência.
—Tomando um descanso porque se seguir sorrindo durante mais tempo meus lábios vão se romper.
—Tampouco está tão mal. Convidou Witherby e Saint John, assim poderá se divertir.
Vergil estava agradecido de que Pen tivesse convidado Daniel e Diane Saint John. Não os via há meses. Eram também amigos de Pen.
Ela tinha amizade com Diane Saint John quando a jovem acabava de chegar a Londres, e desempenhou um papel nos dramáticos acontecimentos que precederam o casamento de Diane com o magnata de uma companhia naval.
Quanto a Witherby, Vergil suspeitava que Pen o convidasse por razões que nada tinham a ver com que ele se divertisse.
Dante vadiava apoiado contra o marco da janela e, distraidamente, deixava cair a bolinha de chumbo sobre as rampas do brinquedo.
—Fleur está tão encantadora como sempre. Podemos esperar que anunciem seu compromisso uma noite destas depois do jantar?
—Não acredito.
—Já é hora, Verg.
—Dentre todas as pessoas que poderiam me dar lições, Dante, você seria o último. Minhas responsabilidades com os membros atuais desta família pesam mais que qualquer responsabilidade que pudesse ter respeito a membros futuros.
—Está me dizendo que resultamos tão caros que não pode te permitir uma esposa?
—Estou dizendo que qualquer mulher que se case comigo terá certas expectativas que neste momento não estou em condições de cumprir. O qual nos conduz ao assunto de seu próprio matrimônio, que será um alívio significativo para nossas cargas financeiras. Devolvo-te a pergunta. Devemos esperar uma notícia? Recordo um jovem cheio de confiança em si mesmo dizendo com presunção que uma semana bastaria.
—Maldita seja, estas coisas levam seu tempo. Além disso, ela é… Difícil de entender.
Levou uma cadeira junto ao escritório e se sentou à mesma altura que seu irmão do outro lado, com as pernas cruzadas, apoiando o braço sobre a mesa e deixando descansar sobre este a cabeça. Era a pose que Dante adotava quando queria falar «de homem a homem».
Dado que o tema de conversa era Bianca Kenwood, Vergil teria desejado economizar as confidências. Bianca constantemente penetrava em seus pensamentos, e a última noite, depois de sua volta a Laclere Park, surpreendeu-se rondando o salão entre as damas até que ela se retirou.
—Às vezes penso que ganhei terreno só para acabar por me dar conta de que era uma ilusão. Ela parece muito quente uma manhã, mas pela tarde a vejo ser igualmente calorosa com um criado. Posa esses grandes olhos azuis em mim e penso que deveria lhe propor matrimônio naquele mesmo momento, mas depois me ignora durante toda a hora seguinte. Às vezes penso que estou tratando com uma garota tão ignorante que nem sequer nota meu interesse, e outras vezes…
—Outras vezes?
—Outras vezes me pergunto se é tudo menos ignorante e se não está me tratando como um brinquedo. Me perdoe, mas estamos falando sem disfarces.
—Você certamente sim.
—Pergunto-me se está sendo deliberadamente intrigante. Esquiva de um modo calculado.
—Soa-me como se lhe estivesse jogando a culpa de seu fracasso.
—Possivelmente. Mas há algo nela indefinível… Um ar, uma fragrância, não sei o que. A olho e vejo toda a inocência da primavera, e de repente me devolve o olhar e me encontro pensando que seria uma esplêndida amante. É uma combinação confusa e fascinante.
Assim Dante acabou percebendo aquilo que Vergil notou nessa primeira noite na sala de jogos, e muito frequentemente após.
—Confio em que não seja muito fascinante.
—É obvio que não. Mas deixa a um fora de jogo. Há uma arte na sedução, e conhecer a mulher é uma parte essencial.
—Sempre estou agradecido por suas instruções nessas matérias, Dante, mas vamos ao ponto. Se propuser matrimônio amanhã, acredita que aceitará?
—Maldita seja se sei.
Isso significava que provavelmente não.
—Sabe que está interessado por ela? Talvez interprete seus cuidados como uma amostra de simples amizade, uma mão amistosa em um país estranho.
—Agora já sabe.
—O que significa isso?
—Acabo de vê-la na biblioteca.
—Declarou suas intenções?
Dante olhou ao longe e Vergil instantaneamente soube que tinha expressado seus interesses com ações, e não com palavras.
Quase salta por cima do escritório para estrangulá-lo.
—Me deixe expressá-lo de outro modo. Sabe que suas intenções são honestas?
—De que outro modo poderiam ser? Ela é sua pupila.
Vergil esfregou o cenho.
—Bom, suponhamos que ela ouviu falar sobre você…
—De quem? Seria estranho que Pen fosse contando histórias.
—De outra pessoa. Um criado. Jane, sua empregada. Nigel Kenwood.
—Não viu Nigel mais que uma vez em toda a semana, quando Pen o convidou, e não estiveram a sós, assim que ele não pôde…
—De quem é Dante. Supondo que alguém contou algo. Se você não explicar que suas intenções são honestas, ela poderia pensar que a persegue por outras razões.
Dante se endireitou.
—Se for assim, fui insultado.
—De todos os modos…
—Não sou um descarado.
—Recomendo que esclareça as coisas. Se ela te interpretou mal, só conseguirá que a partir de agora te evite.
Dante se levantou e caminhou até a janela.
—É obvio, tem razão. Entretanto, se fizer uma proposta de matrimônio e me rechaça se acabou o jogo. Explicar minhas intenções, embora não seja pedir a mão, termina sendo o mesmo. As garotas têm estes caprichos, e um homem que as persegue apesar delas fica como um parvo. Estava sentado na biblioteca e me surpreendi perguntando isso acaso não é contraditório?
—O que diz não tem muito sentido.
—O que acontece se ela é realmente inocente, mas tem à outra dentro? O homem que conseguisse despertá-la estaria em uma posição muito poderosa a respeito dela. Se se tratar de chegar pelo caminho mais rápido, pois…
—Não.
—Não estou falando de nada desonroso, Vergil. Só um pequeno escarcéu que nos economizaria muito tempo.
—Não fará nada que possa comprometê-la nem remotamente.
—Está sendo pouco prático e se preocupa muito pelo decoro. A ideia foi tua, recorda? Se a comprometer, o matrimônio será inevitável.
Não era seu tão cacarejado sentido do decoro o que se rebelava contra as insinuações de Dante, a não ser algo mais visceral, algo que tinha a ver com um fervor incessante, o perfume de lavanda e uma voz melodiosa que tinha estado cantando em sua memória durante uma semana de viagem e obrigações. Ao menos ser um santo tinha suas vantagens. Não podia malograr seus planos, mas não permitiria que Dante estendesse uma armadilha à garota.
—Ganhar honestamente o afeto de uma mulher pode parecer um longo e tedioso esforço a um homem acostumado a aproveitar as paixões rápidas, Dante, mas se pretende consegui-la é o que terá que fazer.
—Ao menos alguém nesta família tem um pouco de paixão. Entre você e Milton…
Ante a menção do nome de seu irmão todo o corpo de Vergil se esticou.
—Acredito que deveria ser muito cuidadoso e não mencionar Milton e seu imprudente apetite na mesma frase.
O ressentimento escureceu o rosto de Dante.
—Continua me culpando de algo que não pude prever.
—Equivoca-se. Não te culpo. Não havia forma de que soubesse o que pretendia fazer. Mas não o coloque nestas discussões. Me insulte tudo o que queira, mas deixa nosso irmão e sua memória à margem deste assunto. Nada disso tem a ver com a senhorita Kenwood e sua forma de se comportar com ela.
—Ah, sim, a adorável Bianca. Está tão preocupado por ela que está te pondo muito sutil, Verg. Seu amparo é curiosamente seletivo e meio cego. Não permitirá que ninguém comprometa sua pupila, mas está disposto a consentir que se veja atada por toda vida a um homem que despreza.
Aquelas palavras deram no alvo por razões que Dante nunca saberia.
—Eu não te desprezo.
—Ah, não? Pode ser que não me culpe, mas jamais me perdoou.
Vergil viu dor naquele belo rosto que nunca se mostrava preocupado. Devia ter sido mais consciente do sentimento de culpa que a morte de Milton causou em Dante.
Era estranho que a discussão sobre uma garota que não tinha nada a ver com aquele episódio o tirasse do baú.
—Posso te fazer críticas sobre a forma em que vive sua vida, mas isso não reflete meus sentimentos com respeito ao rol que desempenhou sem te dar conta no desastre do ano passado. Não precisa ser perdoado por isso, Dante. A ignorância não é uma ofensa imperdoável. Se nunca falei disto contigo antes, não foi porque te jogue a culpa a não ser só porque não quero me lembrar daquilo. Entretanto, possivelmente minha reserva não tenha sido justa para você.
O rosto de Dante era uma imagem de tensa serenidade, mas seus olhos brilhavam.
—Eu estava aqui. Jantei com ele. Deveria ter visto…
—Estou agradecido que esteve com ele durante sua última hora. Acredito que ele também esteve.
O ar na estadia estava carregado com a crua intimidade que tinha nascido de uma franqueza inesperada. Caiu uma barreira invisível cuja existência Vergil jamais foi consciente. O abismo que se abriu entre eles após a morte de Milton foi superado, e tudo devido às conflitivas emoções que a presença de Bianca Kenwood criou naquela casa.
Olhou seu jovem irmão com novos olhos, e percebeu uma profundidade cuidadosamente disfarçada por aquele despreocupado libertino. Poderia ter homens piores para ela.
Dante sorriu com ironia e se dirigiu sem pressa até a porta.
—Farei a sua maneira, Verg. Será interessante, tentar inspirar um afeto casto nada mais que com insinuações. Mas me limita injustamente. Não posso jogar minha melhor carta. Depois de tudo, não tenho nada a oferecer à garota mais que o prazer.
Uma hora antes, Vergil teria estado de acordo.
Capítulo 6
Na manhã seguinte Vergil foi o primeiro a baixar à sala do café da manhã. Queria tomar o café da manhã sozinho antes que chegassem os convidados.
Acabava de se sentar ante seu prato quando um movimento junto à janela chamou sua atenção. O brilho verde e dourado de uma cabeça loira e uma figura esbelta desapareceram entre os arbustos.
Bianca Kenwood se levantou ao amanhecer.
Afastou a vista da janela com preocupação. Dante disse que ela só havia visto Nigel Kenwood uma vez, mas Dante não sabia nada a respeito das aventuras a alvorada de Bianca. Era possível que ela e Nigel levassem uma semana vendo-se em segredo.
Deixou que uma espessa cortina cobrisse a imagem que se formava em sua mente. Não havia nenhuma prova sólida de que estivesse se encontrando com seu primo. Ao mesmo tempo, qualquer que fosse seu propósito, o certo era que entrava alegremente no parque ao amanhecer apesar do perigo dos caçadores furtivos com o que teve que enfrentar naquele dia a cavalo. Aquele episódio teria bastado para que qualquer jovem normal desde aquele dia temesse aventurar-se a sair a menos que a acompanhasse meio exército.
Mas ela não era uma jovem normal.
Antes que o servissem o café da manhã, saiu ao jardim e se dirigiu para o caminho por onde ela entrou.
—Laclere.
Vergil se voltou para a voz que o chamava. Cornell Witherby se aproximou dele dando grandes pernadas através do caminho que conduzia ao estábulo.
Ao entrar no atalho, o dourado e o verde ficavam engolidos pela erva.
—Não me diga que cavalgou durante a noite, Witherby. —Vergil viu que o recém-chegado ia vestido com uma jaqueta marrom de montar e calças de cor parda clara. As botas pareciam novas e o cabelo loiro que aparecia sob seu chapéu tinha um corte moderno.
Witherby era muito belo e parecia estar com um humor estupendo.
—Cavalguei a maior parte do caminho ontem pela tarde e dormi em uma estalagem.
—Estava ansioso para chegar?
—A cidade se tornou ruidosa estes últimos dias. Há manifestações diariamente. Muitos arrestos. Me fará bem o ar do campo. A musa se volta irritável ante tantas distrações.
—Confio em que não se distraia aqui. O café da manhã te espera, mas deverá alimentar sua musa em solitário. Minha irmã ainda não se levantou para cumprir com seu papel de anfitriã.
Witherby esboçou um sorriso ao ouvir mencionar Penelope. Ele sabia que Vergil sabia suas intenções, e Vergil sabia que ele sabia, mas um homem não fala dessas coisas com o pretendente de sua irmã casada, nem sequer embora sejam velhos amigos.
—Ficará feliz em saber que a reunião é de artistas, como é de esperar com Pen — disse Vergil.
—As festas da condessa são sempre deliciosas. Espero que esta supere as outras.
Vergil decidiu não especular sobre quanto deleite poderia estar Witherby antecipando. Uma casa de campo grande e tranquila oferece todo tipo de oportunidades para a intimidade.
Com firmeza afastou esses pensamentos de sua mente.
—Está vestido para cavalgar — observou Witherby— Vou contigo.
—Primeiro um passeio, depois cavalgaremos. Vá e se instale com a maior comodidade que possa. Saint John está aqui, além disso, normalmente baixa cedo, assim não se aborrecerá muito tempo.
Dando pernadas alegres e calmas Witherby se dirigiu para a casa. Vergil esperou até perdê-lo de vista, depois deu a volta e prosseguiu em busca de Bianca.
Quando conseguiu divisá-la reduziu o passo para poder segui-la a uma distância prudente.
A seguia porque se preocupava com sua segurança, mas também devia admitir que queria saber se Nigel a esperava em algum lugar.
Quando tinha entrado mais de um quilômetro entre as árvores, ela tomou um atalho que ia para o oeste. Ele viu que se dirigia para as ruínas. Não era um bom sinal. O castelo medieval era um lugar ideal para um encontro de casal.
Ela já não estava à vista quando ele entrou entre a erva alta que rodeava as ruínas das mais antigas fortificações do parque Laclere. Da torre tinha sobrevivido meia armação, e só uma sessão das velhas ameias perdurava, muitas paredes vieram abaixo e outras se viam a ponto de desmoronar. Grandes pedras dispersas cobertas de más ervas deixavam claro que uma vez serviram como o muro de amparo. De toda a estrutura da muralha o único relativamente intacto era uma solitária torre quadrada.
O assaltaram nostálgicas lembranças da infância, como o do fácil vínculo que uma vez compartilhou com Dante, e que os segredos e a falta de cuidado quase destruíram. Esquadrinhou a paisagem em busca do rastro da senhorita Kenwood.
De repente um som apagado e doce flutuou através do silêncio da manhã. Elevava-se e baixava como uma suave onda no meio da brisa, enviando redemoinhos que o rodeavam. Ele o seguiu até a fonte de onde provinha na torre quadrada, e entrou através da soleira de pedras.
O som o afogou, elevando-se fora das paredes e a abóbada. Acima na câmara da sentinela, a senhorita Kenwood praticava suas escalas, e sua voz ganhava em volume com cada ascensão que repetia. Ele se deteve e ouviu a escala de repetições de alguém que afiava e esquentava sua voz.
Ela se interrompeu e ele a ouviu falar. A Nigel? O homem devia usar sua música para atraí-la até ali. Se assim era, não corria um perigo imediato. Ele duvidava que ela decidisse abandonar sua paixão original para dedicar-se a explorar outras justo agora.
O som emergiu de novo, baixando torrencialmente a escada. Agora não se tratava de escalas, mas sim de uma ária de Rossini.
A melodia o embargou. Precisa e disciplinada, tinha a textura da elaborada canção de um pássaro, empapava a mente, transbordava o coração e agitava os sentimentos do modo em que a melhor música sempre faz. Os sensuais matizes de sua voz alagaram o reservado esconderijo que ele esteve lutando para manter a salvo.
Quase de um modo involuntário, suas pernas o conduziram à escura escada, para a sereia que sem saber o atraía a uma borda proibida.
Ela estava de pé só na câmara, de costas a ele, emoldurada pelas linhas das paredes que se estreitavam para formar um teto abobadado. Nigel não estava. Não havia ninguém ali. Ela devia ter falado consigo mesma.
Ele apoiou o ombro contra o marco da entrada, para olhar e escutar. Desejava poder ver seu rosto, mas em sua memória ainda conservava a radiante expressão da que tinha sido testemunha aquele dia em que ela atuou no salão de música.
Não lutou contra suas reações. Teria sido incapaz de fazê-lo embora gostasse de fazer. Em lugar disso deixou que suas notas se elevassem em uma maré que fez desaparecer o mundo inteiro exceto essa paixão dela e seu próprio e atônito desejo.
A fazia sentir-se tão bem. Transportada. Gloriosa. Sua voz tomava o poder de seu corpo e dissolvia sua substância até que só o canto existia. As pedras enriqueciam o timbre como nenhuma sala poderia fazer. Ela desejava poder levar Catalani ali.
Terminou muito rápido, e ela, com pesar, sustentou a última nota mais do que a partitura requeria. Esta ficou pendurando por cima dela, gotejando como o néctar de uma gema no interior de seu espírito aberto.
E finalmente se extinguiu, deixando-a gasta e um pouco melancólica.
De repente notou que não estava sozinha. Temendo que Dante a tivesse seguido deu a volta com receio.
O visconde estava apoiado com ar despreocupado contra a entrada da câmara, com os braços cruzados sobre o peito, olhando-a. Estava muito bonito, e havia nele algo intenso apesar de sua pose despreocupada.
—Seguiu-me até aqui, tio Vergil? Para me espiar?
—Foi só para te proteger, mas sim, a segui.
—Estou segura de que não corro perigo no parque Laclere. Seus audazes caçadores furtivos devem ter se mudado ou mudado seus métodos de caça. Não houve disparos esta última semana.
—Se sabe isso, é porque deve ter vindo aqui frequentemente. Sempre para cantar?
A câmara tinha uma janela, não maior que a fenda de uma flecha. Ela se dirigiu para ali, afastando-se dele. As pedras aumentavam os matizes do tom de Vergil e isso a fez mostrar-se precavida. Seus olhos tinham uma expressão oculta que ela não podia ler. Sua presença a impressionava como se fosse perigosa. Era uma reação ridícula, mas não podia evitá-la.
Examinou a paisagem, evitando seu olhar fixo.
—Não aceito a situação que te faz pensar que tem direito de me interrogar. Sim, venho aqui frequentemente, geralmente em manhãs como esta. Encontrei esta torre um dia enquanto cavalgava. E sim, para cantar.
—Sozinha?
Ela o olhou por cima do ombro.
—Acaso acredita que marquei um encontro com Nigel aqui? Seguiu-me para me proteger de intenções desonestas? —A ideia lhe deu vontade de rir. Um amparo tão cuidadoso de sua virtude no campo enquanto seu próprio irmão a assaltava na biblioteca— Perdeu seu passeio a cavalo para nada. Não me ocorreu a ideia de usar esta torre para encontros desse tipo. Terei-o em mente para futuras ocasiões.
—Duvido que o faça. Não terá tempo para pôr em prática. Não a adverti antes, mas esta câmara afeta ao som do mesmo modo que as antigas Igrejas normandas. Qualquer que seja a potencial atração de seu primo, estas pedras têm mais.
—Possivelmente ele deva escutar. Como fez você.
Ele se separou da parede com um vago sorriso.
—Se o fizer, definitivamente necessitará amparo.
Caminhou para ela despreocupadamente. Ela sem se dar conta se afastou até a borda. Em realidade era uma tolice, mas aquele dia havia nele algo diferente. Algo fascinante, mas também desconcertante.
—Pen anunciou que cantará esta noite. Está ensaiando sua atuação, para se assegurar que estará nas melhores condições frente à Catalani?
—Sim.
—Falou um bom momento com ela ontem à noite. Um encontro tete a tete. Suponho que explicou seus planos.
—Não tem por que preocupar-se, não vou pôr nem você nem Pen em uma situação delicada. Ninguém mais me ouviu e acredito que ela sabe que é necessária a discrição entre os convidados de um visconde.
Ele continuava movendo-se, olhando ao redor do cômodo como se não tivesse estado ali em muito tempo. Ela sentia constantemente o impulso de partir longe.
—O que te aconselhou Catalani?
—Estava de acordo comigo em que se quero receber a melhor instrução devia ir a Itália, ou trazer um dos melhores professores aqui. Enquanto isso, deu-me o nome de um tutor com quem poderia trabalhar em Londres. Recomendou-me o senhor Bardi, que trabalha como professor do bel canto com alguns dos melhores cantores de Londres.
—Nenhum outro conselho? Não esperava que Catalani fosse tão reservada.
—Perguntou-me se entendia essa vida, se sabia o que implicava.
—E sabe?
—Sei que implica trabalho duro. Contínuas viagens. A necessidade de atuar apesar de estar cansada ou doente.
—Não é a isso a que ela se referia.
Seu rosto se acendeu.
—Sei a que se referia.
—Não acredito que saiba. Não de verdade. Duvido que tenha a mais remota ideia do que significa se converter em alguém que nenhuma mulher respeitável teria como amiga. Essa cantora de ópera pode visitar casas como esta, mas só há uma Catalani. Não será o mesmo para você. Não haverá nenhuma tia Edith na Inglaterra ou na Itália para te proteger das más línguas.
A irritação a fez ficar cravada no chão.
—Sei o que essa gente chamada decente pensa sobre essas mulheres. De fato vi muitos homens decentes aproximar-se de minha mãe às vezes. Quando cresci entendi o que queriam. Tratarei com eles como ela o fazia. Supõe-se que devo renunciar a algo importante para mim, essencial para mim, por culpa de preconceitos sem fundamento?
Ele continuava caminhando. Fazendo círculos e círculos. Se ele não fosse o proprietário de uma cidadela, se sua conduta não fosse tão despreocupada, ela teria sucumbido à sensação de estar sendo acossada. Por ser alto ele devia permanecer perto do centro do cômodo, e o círculo que desenhava parecia bastante menor agora que ela se achava justo no centro.
—Os preconceitos a respeito de muitas atrizes e cantoras estão muito bem fundados — disse ele, como se discutir sobre mulheres de má reputação fosse um tema perfeitamente aceitável.
—A vida dessas mulheres é muito insegura, e eu suponho que muitas artistas precisam aceitar o amparo que lhes oferecem.
—Você acredita que é o desespero o que faz que essas mulheres se convertam em amantes e cortesãs, e que sua herança te salvará? Seu julgamento é mais duro que o meu. Eu assumo que é a solidão. Um matrimônio decente é quase impossível. Haverá quem esteja disposto, mas ninguém a quem você seja capaz de amar.
Aquela conversa tão delicada se tornou de repente pessoal.
—Sei. Entretanto, há coisas que valem sacrifícios.
—Uma vida inteira de sacrifícios? Pensa isso agora, mas e dentro de dez anos? E de quinze? Sem casar, sem filhos, sem lar. Entendo que é mais triste que escandaloso que para a maioria dessas mulheres o dia começa quando alguém lhes oferece algo parecido ao amor e o agarram. Não importa o que decidam quando começam, depois de um período virtuoso, uma solidão antinatural, a escolha é virtualmente inevitável.
—Como se atreve a prognosticar um futuro tão desolado e sórdido para mim? É muito cínico ao afirmar que se perseguir minha carreira de cantora, estarei predestinada a me afundar. Embora tampouco veja por que se importa tanto.
Ele se deteve e se afastou uns passos.
—Sou responsável por você.
—E por isso se mete em minha vida, para me proteger de mim mesma. Durante dez meses.
—Mais. Se puder achar a maneira.
«Mais!»
—Não se atreva a tentar me impor mais obstáculos. Não o tolerarei.
—Sua decisão me deixa pouca escolha. Deve acreditar que pode viver como uma monja, mas duvido que possa fazer isso indefinidamente.
—Suas implicações são tão insultantes como escandalosas.
—Não são insultantes absolutamente. E escandalosas só se acabar por te converter na amante de um homem em lugar de na esposa de um homem.
—Cruzou a linha, cavalheiro. É impróprio que me fale dessa forma, inclusive sendo meu protetor.
Vergil inclinou a cabeça e um sorriso sarcástico bateu as asas brevemente em seus lábios.
—Cruzei a linha? É bastante provável. Surpreendo a mim mesmo. — Olhou a seu redor como se de repente se desse conta de onde estavam. —Terminou ou pretende seguir praticando?
—Quero ensaiar a ária uma vez mais. Voltarei para casa em seguida.
—Esperarei e te acompanharei de volta.
Apoiou-se outra vez contra a parede, em uma pose de relaxada paciência. Ela notou um acanhamento peculiar.
Ela se dispôs a dar volta, mas ele negou com a cabeça.
—Se não puder praticar com um homem te olhando, como atuará em um teatro que esteja cheio deles?
«Porque isso é diferente.» Parecia uma resposta irracional, mas era diferente. O foco de dois olhos, desses dois olhos, incomodava-a mais que um oceano de rostos. A atenção de uma pessoa, dessa pessoa, agitava-a mais que uma sala de concertos cheia a transbordar. Se ao menos outra pessoa estivesse presente, isso teria servido para diluir essa conexão singular. Depois de tudo, ele esteve no salão de música e ela não reagiu assim.
Ela afastou seu olhar e tentou apagar a consciência dele, mas não funcionou. A ária começou fracamente, como se o ar encontrasse um obstáculo ao passar através de sua garganta. A obstrução fez que seu coração palpitasse nervosamente. Estúpido. Estúpido. Recuperou certa calma graças ao ressentimento por sua intrusão e encontrou seu caminho.
A música se encarregou do resto. A concentração na técnica e a expressão a absorveram. O regozijo a transportou. Entretanto, não foi como a última vez. Outro espírito se unia a ela naquela viagem, seguindo-a, empurrando-a, abrangendo-a. Ao seguir com a canção não pôde resistir a olhá-lo. Ele esperava de um modo indiferente, olhando para baixo, um homem oferecendo educadamente seu tempo antes de passar a dedicar-se a outras coisas mais importantes.
Ele notou sua atenção. Elevou seu olhar e encontrou com o dela. Ela quase se quebra em um abrupto silêncio. Os olhos dele resultavam mais desconcertantes que de costume. Sua expressão profundamente cálida, sutilmente selvagem e claramente masculina não tinha nada de paternal ou distante, e muito menos de protetora.
Deus santo foi seu canto o que tinha provocado isso?
Apesar de seu desconcerto inicial, uma surpreendente emoção a atravessou como um raio. Em lugar de vacilar sua voz remontou voo. Não podia afastar a vista dele e a ária criava entre eles uma provocadora união. Espiritual. Sensual. Quase erótica.
Um instinto de alarme a sacudiu, apesar de que uma embriagadora sensação de poder crescia. A euforia se transformava em algo inegavelmente físico entre sua fascinante conexão.
Ela não poderia ter se detido embora tivesse querido. Emoções desconhecidas impulsionavam sua voz com novas paixões. Fechou os olhos ao final, mais para conter as sensações que para saboreá-lo. As pedras sustentaram os últimos sons como o silencioso eco de um longo pulsar do coração.
Não queria abrir os olhos. Ali ocorreu algo que não queria saber, algo que não implicava palavras nem tato, mas que era mais indecoroso que o beijo de Dante. Ele devia saber. Ela devia ter parado. Não queria olhá-lo até que aquela terrível falta de fôlego se aplacou.
Uma brisa cálida a fez abrir um pouco as pálpebras e viu umas botas limpas perto de sua saia. Uma mão dele, magra e forte, tomou a sua, a levou até os lábios e lhe deu um beijo veloz.
—Seu canto é nada menos que magnífico senhorita Kenwood. Catalani ficará impressionada esta noite.
Ela teve que olhá-lo. Ele fez um gesto formal assinalando a escada. Sua expressão recuperou seu habitual autodomínio e altivez, mas a outra seguia ali, como se o manto de reserva com que ele a cobriu fosse transparente.
Guiou-a pelo caminho, dando sua mão para baixar as tortuosas rochas, uma cuidadosa representação de uma imparcial e cortês preocupação. Enquanto davam a volta ao longo da parede para chegar até o atalho, ele se deteve e elevou a vista até as ameias.
—É muito pitoresco — disse ela, esperando que um pequeno bate-papo servisse para vencer aquela estranha sensação que parecia instalada.
—Meu pai considerou a possibilidade de restaurá-lo e reconstruí-lo. Mas finalmente, em lugar disso decidiu remodelar a casa. Isto teria custado três fortunas em lugar de uma, e o resultado teria sido uma moradia apenas habitável.
—Acredito que é mais bonito tal e como está, aos pedaços e com retalhos de história aparecendo entre os arbustos. Seria uma tolice reconstruí-lo completamente e com cimento novo.
—Estávamos acostumados a brincar aqui de meninos. Dante e eu éramos os cavalheiros, e obrigávamos Pen a interpretar o papel da dama prisioneira por um malvado guardião. —Um amplo sorriso apareceu ao dizê-lo— Você pode interpretar esse papel agora.
A pequena trama que contou podia tê-la ajudado a reduzir a percepção de tê-lo de pé junto a ela, mas simplesmente não era capaz de responder com o mesmo tom.
—Brincava também seu irmão mais velho com vocês?
—Quando éramos muito jovens sim o fazia. Depois cresceu e nos deixou para trás, suponho. —Seu olhar às ameias se voltou reflexivo— Quando se fez maior se refugiou em seus próprios interesses, e em sua própria mente. Quando começou a ir à universidade já era um estranho.
—É por isso que agora quer ler suas cartas? Para conhecer coisas dele que não te permitiu conhecer enquanto vivia?
De repente moveu a cabeça e lhe dirigiu um estranho olhar, como se ela o tivesse surpreendido.
—Suponho que sim, em parte.
Sua atenção se separou das emoções para voltar a centrar-se na torre outra vez. Ela se obrigou a afastar o olhar, para a parede.
—Eu gostaria de explorar o torreão algum dia.
—Não recomendo isso. Há anos é perigoso. O passeio pela muralha também é. Não havia tantas pedras espalhadas pelo chão quando era menino.
Para enfatizar sua afirmação, uma pedra do tamanho de um punho caiu ao chão, aterrissando justo aos seus pés. Vergil olhou para cima franzindo o cenho, esquadrinhando com seus olhos as ameias. Bianca deu a volta para afastar-se.
Um ruído sinistro se ouviu acima. Outra pedra caiu, golpeando o ombro de Bianca.
De repente tudo se fazia impreciso. Ele a pegou pelo braço para afastá-la, fazendo-a apoiar-se contra a parede. Ela comprovou que se achava imobilizada, entre uma pedra dura e um corpo duro também, com os ombros abraçados por uns braços que a cobriam, seu rosto escondido contra o pescoço dele e sua cabeça apertada contra a sua. Sua vista quase já tinha se endireitado quando uma avalanche letal de grandes rochas caiu ante eles, uma delas ricocheteou sobre suas cabeças antes de cair ao chão roçando as costas de Vergil.
Ela olhou horrorizada a chuva de morte e se encolheu dentro de seu refúgio. Pareceu transcorrer uma eternidade antes que os chiados e estrondos cessassem.
Vergil elevou a cabeça para examinar a parte superior do muro.
—Toda uma parte das ameias veio abaixo.
—Uma lição apropriada para evitar o encontro com estas ruínas no futuro. Quem imaginava que a tranquila Laclere Park podia ser tão perigoso?
Ela falou presa do nervosismo apoiada contra seu lenço. O tecido azul de seu casaco acariciava suas bochechas e seus dedos descansavam na seda bordada de rosas de seu colete cinza. A comoção a colocou em um estado de alerta extremamente sensível e uma parte de sua mente, de maneira absurda, contemplava a variedade de texturas de seus objetos. E a maravilhosa segurança que proporcionava seus braços. E sua masculina fragrância.
—É possível que meu canto tenha ocasionado isto?
—O mais provável é que a gravidade tenha rematado o que o tempo iniciou. De todos os modos, as possibilidades de presenciar algo assim são mínimas. Possivelmente sua voz acrescentasse um empurrão. —Inclinou a cabeça para ver seu rosto— Está ferida?
—Acredito que não.
Uma mão deslizou ao longo de suas costas para apertá-lo brandamente no ombro.
—E aqui dói?
—Está um pouco dolorido. Mas o mais provável é que só tenha um arranhão.
Ele não a soltou. Com uma mão ainda a envolvia e a outra descansava cuidadosamente em seu braço debaixo do ombro ferido. Sentir-se protegida por sua força a tranquilizava muito.
—Isto é mais ou menos o que disse depois que o cavalo te lançou ao chão. Supõe-se que deveria desmaiar ao enfrentar tanto perigo.
Ela sabia que ele não se referia às rochas, nem aos caçadores furtivos, a não ser à proximidade física que ambos os episódios favoreceram.
Sua advertência soou tão clara como uma sereia junto a seu ouvido. Mas não pôde lhe fazer caso. Sua masculinidade a fazia sentir-se pequena e indefesa de um modo deliciosamente pecaminoso.
Ela levantou a vista para seus reflexivos olhos.
—Eu nunca desmaio.
Voltou a ver nele aquela expressão que tinha quando se achavam no cômodo de pedra, enchendo-a de maravilhosas palpitações. A mão que tinha sobre seu braço deslizou para seu ombro, para voltar a baixar.
—Não desmaia? Nunca?
Ela voltou a sentir a lenta carícia. A suave fricção criou um murmúrio de sensações. Dentro dela. Através dela. Aquela ária havia a tornado vulnerável, e o medo tinha arrebatado seu habitual autodomínio.
Devia fazer algum comentário malicioso para acabar com esse pequeno jogo, mas só queria que aqueles dedos voltassem a deslizar sobre seu braço.
—Nunca.
—Todas as garotas deveriam desmaiar ao menos uma vez.
A mão a acariciou para cima e não baixou. Foi uma lenta carícia. Delicada sobre seu ombro, quente ao passar por seu pescoço, suave em sua bochecha, firme entre seu cabelo.
Ela quase se derrete quando ele inclinou a cabeça e a beijou nos lábios.
Lábios quentes. Firmes e controlados como tudo nele. Pausados. Comedidos, mas decididos. Ele roçou sua boca com carícias antes de passar a um jogo mais sedutor. Sutis beliscões fizeram que seu lábio inferior pulsasse e tremesse. As estocadas de uma língua diabólica enviaram espetadas dispersas através de seu rosto e seu pescoço. A sensibilidade de seus seios despertou e ela instintivamente o abraçou, procurando o contato que sua profunda ternura reclamava.
Ele a apertou para senti-la mais perto e a olhou de um modo tenso e cheio de avaliação. Da garganta dela escapou um suspiro ao sentir a pressão em seu peito. Beijando-a com feroz rendição, arrastou-a até a soleira da torre, entre a luz salpicada e as pedras frias.
Apoiou-se contra a parede e a atraiu contra seu corpo em meio de um torvelinho. Seus braços a rodearam e a dominaram, segurando-a firmemente contra seu corpo e os encantos de sua boca. Beijos febris assaltaram seu pescoço e suas orelhas, despertando um frenético e insistente anseio. Seus lábios seduziram os dela abrindo-os para uma investigação interna de escandalosa intimidade.
Ela se agarrou a ele e se rendeu tonta pelas extraordinárias sensações, elevando-se impotente em meio de uma euforia em que tudo se voltava impreciso.
Era tão agradável. Glorioso. Transcendente. A exaltação de seu canto feito física. O poder e potencial da última ária convertido em substância.
Aqui. Agora. Sim. Com uma voz inaudível seu sangue estalava em demandas entre seus ofegos. Aqui. Agora. Perfeito. Escandalosos batimentos de seu corpo se uniam ao canto. Inclusive sua mente, a parte que deveria conhecer melhor, repetia uma litania de escandalosos impulsos. Suas mãos deslizaram descaradamente sob a jaqueta dele para acariciar e agarrar seus lados e suas costas.
Algo se esticou dentro dele. Ela notou uma mudança perigosa e soube que seu gesto funcionou como algum tipo de afirmação. Os braços dele a acariciaram de uma forma possessiva e seu corpo arqueado se esticou com um impulso indecente. Suas mãos começaram uma exploração através de suas anáguas e ali ficaram. Sua imperiosa paixão e o lugar para onde ele se aventurava deveria assustá-la, mas a excitação só a permitia lamentar que a quantidade de roupa se interpusesse separando-os e inibindo-os.
«Sim. Quero… Quero…» Não sabia o que. Uma fome urgente pulsava através dela, com uma origem e um destino que não entendia. «Mais perto. Mais. Eu quero…»
Como se ele tivesse ouvido seu rogo silencioso, sua mão deslizou sobre sua cintura. Mantendo o polegar em seu estômago e os outros dedos em suas costas acariciaram para cima a bandagem de seu vestido. A desejada expectativa reduziu a respiração dela a uma série de inalações entrecortadas. Um beijo surpreendentemente suave acompanhou o gesto de sua mão para seus seios.
«Oh… Oh.» As deliciosas sensações que sua carícia provocou a deixou aturdida. Atravessaram-na e fluíram através dela, unindo-se aos estímulos provocados pelos crescentes beijos que lhe dava no pescoço e os assaltos a sua boca, que obscureciam sua mente. Deu e recebeu prazer a seu desejo, e o corpo dela, afligido e sem forças só podia aceitá-lo e submeter-se, muito ignorante para oferecer mais que consentimento ao ardor que ambos liberavam e subjugavam.
Os dedos brincavam com o tecido que cobria seus mamilos, duros e ardentes… «Sim…» Procurando agora o babado de seu decote… «Por favor…» Deslizando sob o tecido para explorar o novo desenfreio da pele contra a pele… «Ah, sim…» Seus braços a atraíram mais perto, com mais dureza, e um joelho dele pressionou entre as anáguas e a saia, a pressão foi vergonhosamente bem recebida… «Oh… Céus…» O vestido começou a soltar-se enquanto o corpo da manga deslizava pelo braço e uma mão elevava seu seio nu para uma cabeça morena… «Oh…» Ele o acolheu na umidade de sua boca e com seus quentes lábios iniciou um tortuoso percurso desde umas suaves mordidas até… «Oh…» Uns lamentos escandalosamente excitantes… «Oh…» Deliciosas correntes de prazer desceram por seus poros, enchendo-a, exigindo mais…
…Um movimento, um fraco rangido, ressoou entre as pedras.
Ele se endireitou bruscamente, cobrindo a nudez dela com seu peito, rodeando-a com seus braços para protegê-la enquanto escutava atento. O possível significado daqueles sons abriu passo através dos aturdidos sentidos de Bianca, destruindo o mundo de sensuais sonhos e fazendo-a voltar sem piedade para a realidade.
—Há alguém…? —sussurrou, apertando os dentes contra o lento desdobramento de sua excitação física. Ainda podia ouvir algo, era mais a vibração transportada através do muro que um som real. Incomodava como uma invasão entre os batimentos de seus corações.
Subiu a alça da blusa e a manga do vestido, logo a afastou.
—Fique aqui.
Caminhou a grandes pernadas até a torre. Ela lutou freneticamente contra seus objetos, conseguindo com muita dificuldade recompor seu vestido, experimentando a severa culpa de um criminoso surpreendido no ato do delito. Um abismo se abriu em seu coração.
Se alguém os visse, seria desastroso.
Podia ouvi-lo caminhando ao redor. O largo abismo se converteu em um enjoo, um imenso vazio. Cobrou consciência de seu comportamento como se recebesse um golpe. Aquilo tinha sido uma loucura. Ela tinha atuado de forma desavergonhada. Eles nem sequer se gostavam.
Ouviu-o voltar e tentou fortalecer seu ânimo.
Apareceu ante a soleira, uma forma magra e escura rodeada de luz. Ela não podia ver bem seu rosto.
—Se havia alguém aqui, já se foi. Deve ter sido tão somente um animal.
Ela rezou para que assim fosse, e esperava que se alguém veio da casa para explorar o torreão, não tinha esquadrinhado de perto a entrada da torre.
Ofereceu a mão em um gesto enérgico para fazê-la seguir. Ela se perguntava o que se suporia que deveria fazer ou dizer uma mulher depois de um comportamento tão descarado, e sentiu quase náuseas ante tanta confusão e vergonha. Empreenderam o caminho de volta para casa.
Ele não disse uma palavra. Para ela foi o quilômetro mais longo que já caminhou em sua vida.
Tentou achar consolo na ideia de que tinha demonstrado que era muito perigosa para estar perto de Charlotte, mas a ideia de abandonar Laclere Park estranhamente incrementou sua consternação.
Ele se deteve ante as árvores próximas ao estábulo.
—Faltam-me as palavras, senhorita Kenwood. Meu comportamento foi abominável, e me desculpar não é suficiente. Prometo que não tenho o costume de pressionar às mulheres jovens desta forma. A única explicação que posso dar é que não era eu mesmo esta manhã.
«Não o foi?» de repente o que ocorreu não resultava tão surpreendente tratando-se desse homem. Pareceu que o acontecido era uma consequência natural de seu caráter, um pouco controlado, mas que sempre estava ali, como uma corrente subterrânea sob a calma, uma corrente percebida, mas nunca vista e impossível de nomear. Esta produziu tensão entre eles desde o começo, como uma maré perigosa. Ela havia sentido seus efeitos, mas até hoje não os tinha entendido.
Ele seguia com os olhos sobre o atalho, sem olhá-la. Com suas palavras assumia a culpa, mas ela se perguntou o que pensaria realmente. Que demonstrou que não podia viver como uma monja? Que sua natureza era a de uma cortesã e ele deveria permitir que conseguisse a ruína que procurava? «Pressionar» não descrevia realmente o que ocorreu e os dois sabiam.
—Não fui prejudicada.
—Se nos vissem, definitivamente sim seria prejudicada.
—Eu não acredito que nos viram. Se alguém se aproximasse da entrada da torre, teríamos percebido.
—Se tivesse razão, isso só evitaria as piores das possíveis repercussões. Não pode negar que minhas ações foram indesculpáveis e desonestas, sobre tudo porque sou responsável por você. A comprometi, e não importa se alguém sabe ou não. Se você o exigir, farei o correto contigo.
—O correto? Quer dizer… Oh, não, essa é uma ideia absurda.
—Certamente promete ser uma ideia complicada, considerando… Bom… Enfim, complicada. De todos os modos…
—Não nos deixemos levar por seu senso de decoro e de dever, por favor. Não me sinto comprometida, nem arruinada.
Depois de dizer isto recebeu um severo olhar.
—Ah, não? É uma jovem extraordinariamente serena.
Aí estava. A insinuação de indecorosa cumplicidade por sua parte. Em realidade o animou, se a pessoa quisesse olhar as coisas com franqueza. Aquele olhar e aquela pergunta revelavam o que ele tinha em mente, e era difícil culpá-lo, considerando todas as ambiguidades que deliberadamente deixou cair com respeito a suas experiências.
—Digamos que não me sinto tão comprometida para recorrer a uma medida tão extrema como o matrimônio. Possivelmente simplesmente deveríamos esquecer este assunto.
—Sua equanimidade me impressiona. Deveria estar agradecido de que se mostre tão compassiva.
Não se sentia absolutamente compassiva. Sentia-se transtornada, desolada, decepcionada. Descer daquela glória a essa discussão formal sobre como expiar a poderosa experiência que compartilharam… Dava vontade de feri-lo, de bater nele, de dar uma bofetada que vencesse essas frias considerações sobre como retificar sua imprudência.
—Simplesmente não desejo complicar as coisas mais que o necessário, especialmente de um modo que me faria perder o controle sobre meu futuro e requereria um sacrifício por ambas as partes que levaria a uma vida inteira de infelicidade. Não me casaria contigo fosse qual fosse o escândalo que me ameaçasse. Entretanto, nossas futuras relações se tornaram embaraçosas. Acredito que será melhor que aceite minhas preferências a respeito de minha estadia na Inglaterra. Jane e eu encontraremos uma casa em Londres e…
—Serei eu que me afastarei. Minhas visitas a Laclere Park serão pouco frequentes e breves durante os próximos meses.
—Isso é muito injusto com suas irmãs.
—Quando você for à cidade passar a temporada minha presença será inevitável, mas por então possivelmente o tempo terá atenuado minha ofensa.
Ele não queria dizer isso. Sabia que não tinha sido realmente uma ofensa. Não se podia dizer que a tinha forçado ou forçado a si mesmo.
Ela deu a volta, aliviada e ao mesmo tempo triste por saber que depois daquela festa seriam muito poucas as ocasiões em que o veria.
Capítulo 7
Vergil estava certo. Ela seria uma amante esplêndida.
Tentou impedir aquele pensamento enquanto cavalgava de volta para as ruínas. Dava voltas em sua cabeça, uma reação absolutamente desonrosa de um homem que sucumbiu a desonrosas inclinações.
Seu comportamento foi vergonhoso. Censurável. Enlouquecido.
Isso não o impedia de voltar a rememorar e experimentar o contente consentimento que ela mostrou. Sentiu em sua boca seus suaves lábios e seus doces peitos. Explorou sua vibrante excitação com a pressão de seu joelho.
Se o intruso não os tivesse interrompido, a teria levado ao cômodo e teria feito amor até que as pedras ressonassem com seus gritos.
E ela permitiria.
Parou e bateu a palma da mão contra uma árvore, em busca de uma realidade tangível que pudesse destruir o desejo que voltava a dominá-lo.
«Confusa», havia dito Dante.
Maldita seja, sim era confusa.
Ela nem sequer gostava dele. Raramente falavam sem discutir. Ele esteve rondando em sua presença os últimos dois dias, mas ela nunca o buscava. E que então se lançou para cima sem nenhum tipo de inibições…
Caminhou com passo decidido através das árvores, possuído por um estado de ânimo perigoso. A calma que ela mostrou no estábulo foi mais que perturbadora. Exasperante. Quase para ruborizar-se. Uma serenidade total. Ele foi uma mescla desordenada de impulsos contraditórios, enquanto que ela se mostrou incrivelmente tranquila. «Não fui prejudicada.»
«Quase te arranco a roupa e te atiro ao chão sobre uma pedra.»
«Não me sinto comprometida, nem arruinada.»
«Bem, maldita seja, eu sim. Os homens que seduzem suas pupilas são repugnantes.»
«Não me casaria contigo fosse qual fosse o escândalo que me ameaçasse.»
Parou na borda da clareira do castelo com essas palavras ecoando uma e outra vez em sua memória.
Ele deveria se sentir agradecido ante seu terminante rechaço. Mas em vez disso experimentou uma ira irracional. Em parte porque sua serenidade o fazia perguntar-se se tudo teria sido para ela simplesmente um jogo caprichoso. E, sobre tudo, porque sua determinação o fazia cobrar consciência do fato deprimente de que ela jamais seria sua da forma em que ele queria.
Menos mal. Seria uma amante esplêndida, mas uma esposa impossível.
Deixaria que Dante se arrumasse com ela.
Essa ideia incitou nele um ressentimento primitivo e possessivo. Tentou reprimi-lo esforçando-se para concentrar-se nas ameias do castelo.
Uma escada se elevava em uma das bordas do muro, tão danificada que faltavam todos os degraus. Só podia subi-la esticando as pernas em busca de perigosos pontos de apoio para os pés. Uma pequena seção de rochas caiu sobre a erva enquanto escalava. Detinha-se a cada momento, tentando identificar se o som se parecia com aquele que tinha ouvido quando sustentava Bianca na torre.
Acima no caminho da muralha existiam ocos. Alguém tinha substituído algumas zonas desaparecidas com madeira nova, mas outras consistiam em fragmentos de tábuas podres, que sem dúvida não haviam sido reparados ao menos há um século.
Avançou com cuidado até chegar ao ponto do muro onde um enorme dente das ameias se desprendeu por completo. Aí abaixo se via o novo montão de pedras. «Quem teria imaginado que a tranquila Laclere Park podia ser tão perigosa?»
Uma questão endiabradamente certa.
Examinou a rugosa superfície onde as pedras se encontravam até tão pouco tempo e apalpou a argamassa das pedras que ainda se sustentavam em pé. As ligaduras podres caíam em uma pequena chuva de pó, unindo-se com um montão de pedrinhas a seus pés.
Nada parecido podia ver-se no resto das ameias. Examinou a superfície das pedras outra vez, procurando o rastro de alguma ferramenta. Podiam ser fruto de sua imaginação os sutis arranhões provocados por um instrumento metálico?
Caçadores furtivos disparando armas de fogo e depois uma muralha que vinha abaixo. Possivelmente tão somente fosse uma coincidência. Não havia nenhuma evidência do contrário. De todos os modos não gostava disso.
Desceu da muralha, procurando alguma prova de que alguém mais tivesse estado ali recentemente. Os sons da torre de pedra rondavam em sua memória. Não ouviu ninguém caminhando pelo atalho. Entretanto, aquele intruso podia ter sido simplesmente um dos convidados explorando o pitoresco castelo Laclere Park.
Retornou para casa. Quando passou ante a sala do café da manhã, viu Bianca em uma mesa na companhia de Cornell Witherby e Daniel Saint John.
Ela sorria e ria ante alguma brincadeira de Witherby.
Que incrível serenidade.
Provavelmente para ela só foi um jogo caprichoso, uma maneira de demonstrar ao santo que não era tão puro. «Possivelmente simplesmente deveríamos esquecer este assunto.» Dirigiu-se a seu escritório dando grandes passos, ressentido até a medula por um ponto de honestidade que admitia que enquanto ela poderia ser capaz de esquecê-lo, ele certamente não era.
«Eu nunca desmaio.»
«Por mim o fez!»
Estava reagindo como um moço inexperiente e isso o irritava ainda mais. Enviou um lacaio para procurar Morton, depois se recostou em sua poltrona e pegou alguns papéis.
Morton chegou quando estava terminando seu escrito.
—Quero que esta carta dirigida ao advogado de Adam Kenwood seja enviada a Londres pelo correio urgente — disse enquanto selava a missiva— Leva-a ao povoado pessoalmente agora mesmo. —Pôs a carta entre os grossos dedos de Morton— Ficará aqui quando voltar a partir para o norte. Eu não gosto da ideia de deixar à senhorita Kenwood em Laclere Park sem ninguém que a vigie.
—Acredita que corre algum outro perigo?
Vergil sabia que Morton empregava a palavra «outro» porque estava pensando no perigo que todas as mulheres belas corriam estando perto de Dante.
Possivelmente corria esse perigo. Ele não sabia. Entretanto, considerando os caçadores furtivos, as paredes que desabam e os assaltos do visconde Laclere, o perigo de estar perto de um libertino era muito menos preocupante.
***
Depois do jantar Bianca se achava sentada entre Fleur e a senhora Gaston, conversando com Pen e Cornell Witherby.
—Será uma série de epopéias — explicava à senhora Gaston— Vendidas por assinatura, embora financie a impressão. O poema do senhor Witherby será o primeiro.
Cornell Witherby sorriu modestamente. Penelope lhe dedicou um olhar cheio de admiração.
A senhora Gaston tinha a si mesma como uma rainha aceitando comemorações e oferecendo favores. Seu cabelo castanho avermelhado brilhava como o cobre à luz da lareira, e a satisfação que sentia ante sua própria importância se deixava ler em seu rosto.
—Enquanto nós falamos os impressores já estão trabalhando. Espero que cause sensação e que se necessitem mais edições. Não pelos benefícios materiais, é obvio. Pelo alcance das pessoas de bom gosto e sensibilidade o prodigioso talento do senhor Witherby é minha meta.
Falava como se o conselho divino ditasse seu trabalho, mas Bianca suspeitava que a importância que se outorgava ao ser patrocinadora a motivava muito mais que seu amor pela arte.
—Quais serão os outros poetas? —perguntou Fleur.
O que seguiu foi uma discussão sobre os méritos dos jovens poetas que poderiam merecer o mecenato.
Bianca mal ouvia o que diziam.
Passar a tarde desfrutando da doce companhia de Fleur provocou um horrível sentimento de culpa. A fria amostra de cortesia de Vergil deixou um vazio devastador. Um relógio interno advertia o passo de cada minuto daquele comprido dia com tic-tacs de agonia.
Tentou não voltar a olhar Vergil, nem dirigir-se a ele, mas era consciente dele a cada instante. Sentia sua presença quando estava perto. Ouvia cada palavra que dizia, inclusive embora se achasse na outra ponta da estadia.
Duas Biancas reagiam ante cada movimento dele. A velha Bianca, a inteligente, catalogava seus defeitos com uma ira mordaz. Mas havia uma nova que rezava para obter algum sinal por parte dele. Esta nova Bianca se rebaixava com lastimosos suspiros, mas a velha Bianca não podia fazê-la desaparecer.
De algum modo, de algum modo, superaria esse dia.
—… Haverá terríveis problemas se revogarmos a Ata de Combinação — entoou lorde Calne enquanto ele, Vergil e o senhor Saint John caminhavam para o pequeno grupo— Se se permitir que as classes mais baixas se agrupem, a ordem se verá ameaçada. Não podemos permiti-lo. É muito perigoso. Poderia terminar como a França em 93. Lamentará Laclere.
Pequenas chamas apareceram nos olhos de Daniel Saint John. Olhou lorde Calne como se fosse um imbecil.
—Parece como se soubesse muito pouco sobre o que aconteceu na França. Do contrário entenderia que as pessoas não podem viver para sempre com uma bota pisando em sua cabeça.
O rosto de lorde Calne ficou vermelho.
Vergil falou de forma apaziguadora.
—A Inglaterra não pode apoiar sua política nos excessos do povo francês de uma geração anterior, Calne.
—Oh, Deus nos libere. Política! —Cornell Witherby protestou brandamente, dirigindo-se às damas— Não serve nada mais que para a sátira.
Um calor especial brilhou em seus olhos ao dirigir seu bom humor para Pen, que ria. Parecia que Dante estava certo a respeito de sua amizade especial.
Sentindo-se em um estado de ânimo crítico em relação aos homens, Bianca o esquadrinhou minuciosamente. Aparentava uma boa figura e era de meia altura, mas sua postura tinha uma severidade muito pouco poética, como se uma vara de aço tivesse sido soldada a sua coluna. O cabelo loiro caía sobre sua testa e suas bochechas. Seu rosto era talvez um pouco alargado, mas era um homem atrativo ao redor de vinte e cinco anos de idade.
O fato de que cortejasse uma mulher que oficialmente estava casada não contava nada nas considerações de Bianca a respeito de ser bom para Pen. Muito mais significativo que isso era a atitude de absoluta devoção que tinha ao olhar para Penelope.
Ela jamais viu Vergil olhando daquele modo a uma mulher, nem sequer a Fleur. Quando o visconde Laclere examinava uma mulher, ela tinha a impressão de que estava avaliando seus defeitos.
Naturalmente isso não ocorreu quando a escutou cantar.
E decididamente tampouco ao beijá-la.
Nem ao lhe tirar o vestido.
Nem…
—Bom, ao menos essas liberações políticas mantêm seu impressor ocupado — disse a senhora Gaston.
Witherby suspirou.
—Foi só para dar suporte às artes literárias que aceitei o passatempo dessa imprensa. Preferiria dizer aos homens que rechacem qualquer comissão que não tenha a ver com poesia. Entretanto, os panfletos servem estupendamente para custear os trabalhos importantes. Assim ocorre com o patrocínio de grandes damas como você.
A senhora Gaston pareceu agradada com a adulação, e com seu êxito ao desviar a atenção para ela.
—Anular é uma necessidade moral. É uma falta de sentido proibir a homens livres assembleias livres — dizia Saint John aos homens que se achavam de pé perto.
—Se estiverem tão insatisfeitos deixemos que se vão —disse a senhora Gaston, unindo-se à conversa— Uma passagem grátis a Austrália para os que estejam descontentes. Não entendo por que ninguém propõe uma coisa assim. Para mim é uma saída completamente lógica.
—Se dá a todos os homens a oportunidade de votar, poderão decidir sobre seu futuro e estarão menos descontentes — disse Saint John.
—Acaso a multidão de Manchester deveria decidir as leis? —perguntou lorde Calne— A Câmara dos Comuns já está bastante alterada para acrescentar radicais e irlandeses.
Pen dirigiu a Saint John um sorriso suplicante e tranquilizador. O qual reprimiu a resposta destrutiva que pensou.
—As pessoas de Manchester não são uma multidão — disse Vergil— Eles estão ajudando a Inglaterra a se converter na nação mais rica do mundo. As cidades industriais como Manchester não podem continuar sendo privadas do direito ao voto por regras de distrito redigidas há séculos. É inevitável uma reforma do Parlamento.
Pen olhou seu irmão pondo os olhos em branco, a modo de reprovação por seguir alimentando a discussão.
Lorde Calne parecia estar sofrendo uma espécie de apoplexia.
—Antes me condeno no inferno. Se apoiar isso, Laclere está traindo seu sangue. Essas cidades do norte são lugares terríveis. Sujas de fábricas e máquinas e homens vis enriquecendo-se com comércios fétidos. Ouvi que é pior que em Londres. Não, me dê o ar limpo do campo e uma boa caçada. Nunca permitiremos que nos arrebatem isso.
Pen viu sua oportunidade.
—E como vai à caça em sua fazenda este ano? Podemos esperar as habituais caçadas magníficas?
—Parece boa, parece boa. Embora haja uma batalha contínua com os caçadores furtivos. Terei que levar cinco homens para as reuniões do trimestre.
A mudança de tema deu a Bianca uma oportunidade para escapar da proximidade de Vergil. Desculpou-se.
Os homens menos predispostos à política se dispersaram pela estadia. Nigel falava com Catalani e com a senhora Monley perto da janela. Seu primo a olhou com um caloroso e acolhedor sorriso quando ela passou ante ele.
Bianca se uniu a Diane Saint John, Charlotte e Dante.
Estavam falando sobre os dois filhos dos Saint John. Dante mostrava mais interesse nas travessuras dos pequenos meninos do que Bianca esperava, mas se aproximou para sentar-se a seu lado assim que ela chegou e permitiu que as damas conduzissem a conversa.
—Esteve muito calada hoje — disse ele em voz baixa— Espero que não esteja afligida por meu mau comportamento.
Ela quase esqueceu aquele beijo na biblioteca.
—Estou afligida ante tantos rostos novos. Tenho poucos temas que tratar com eles.
—Bom, aqui vem Saint John. É dono de uma companhia naval, como foi seu avô, assim tem algo em comum com ele.
Daniel Saint John se afastou da companhia de lorde Calne e se aproximava deles.
—Saint John, você conhecia Adam Kenwood, verdade? —perguntou Dante para facilitar as coisas a ela.
—Conheci-o sendo muito jovem. De fato, minha primeira viagem quando era um moço foi a bordo de um de seus navios. Muito antes que ele se dedicasse às finanças, é obvio.
—Quando ocorreu isso? —Bianca se sentiu obrigada a continuar a conversa, já que Dante iniciou por ela.
—Faz anos. Vendeu seus navios… Faz coisa de uns dez anos.
—Navegou com ele bastante tempo?
—Não, somente uma vez. Abandonei o navio ao chegar às Antilhas e encontrei um camarote com outro capitão.
—As regras de meu avô não o atraíam, suponho.
—Seu avô não era o capitão. Só era o dono dos navios e organizava os carregamentos. Eu simplesmente decidi navegar em outra parte.
Estava mentindo. Bianca estava segura disso por essa forma de falar muito educada.
—É estranho que vendesse todos os navios de uma vez — disse Dante— Ter uma frota de navios e no dia seguinte de repente ficar sem nenhum…
—Dado que comprei dois estava encantado de que o fizesse — disse Saint John.
—O que transportavam seus navios? —perguntou Bianca.
—Todo tipo de mercadorias, suponho, como meus.
Ela tinha a sensação de que o senhor Saint John se limitava a agradá-los, e não estava sendo muito franco. Dante tinha razão, era estranho que seu avô vendesse todos os navios de uma vez, não importava o que dissesse este outro comerciante marítimo.
Não teve tempo de pressioná-lo para conseguir uma explicação mais clara, porque Pen se dirigiu até o centro da estadia e reclamou atenção.
—Temos a sorte de contar com vários músicos consumados entre nós esta noite, e eu abusei de dois deles, o senhor Nigel Kenwood e a senhorita Bianca Kenwood, pedindo a eles que nos ofereçam uma atuação. Passemos com eles ao salão de música e os ofereçamos nossa agradecida atenção.
Ela mesma abriu caminho. Dante se dispôs a acompanhar Bianca, mas o senhor Saint John reclamou primeiro sua atenção.
—Parece que Catalani sabe quando deixar passo aos jovens.
—É amável por sua parte dizer isso, mas duvido que ela tema que eu possa lhe fazer concorrência.
—Cedeu a atuação por uma razão. Sabe que seu instrumento já não é o que era. —Pôs a mão dela entre seu braço enquanto caminhavam com o passar do corredor— Nervosa?
—Horrivelmente nervosa. Ansiava que chegasse este momento, e agora…
—Então isso explica seu ar distraído de hoje. Minha mulher me comentou isso. Ela é muito observadora a seu modo silencioso, e temia que você estivesse preocupada com algo. Se sentirá aliviada ao saber que se tratava de seu medo de cometer alguma estupidez na atuação de esta noite. Lhe direi que se tratava disso, e que é perfeitamente normal.
Não o era. Não para ela. Mas isto era diferente. Durante todo o dia a tinha aterrorizado a ideia de que chegasse esse momento. Voltar a cantar essa ária, diante de toda essa gente, com ele sentado ali… Algo se retorcia em seu interior com cada passo que dava.
Nigel ocupou seu lugar ante o piano. Os convidados se sentaram nas cadeiras colocadas ante ela. Vergil escolheu permanecer de pé junto à parede, perto de Fleur.
Ela o olhou, esperando um sorriso de boa sorte. Ele não se deu conta, pois se inclinou para dizer algo a sua prometida. Seu coração se encheu. Estava tão atrativo com seu casaco de um verde escuro e suas calças nata, com suas mechas onduladas emoldurando seu rosto e seus olhos azuis iluminados com um brilho de humor enquanto sorria a sua dama.
Deu-se conta com um sobressalto de que Nigel começou a introdução. Ela lutou para preparar-se.
Da outra ponta da estadia, Vergil a olhou.
Ela falhou. Essa primeira nota simplesmente não saía. Voltou-se para Nigel com desespero, suplicando sem palavras. Ele improvisou até que voltou a levar a melodia ao princípio outra vez. Ela se concentrou no chão e conseguiu acalmar-se. Ao levantar a vista viu um casaco verde deslizando através da porta.
«Obrigado.»
Afinou cada nota com precisão, mas sua alma não estava totalmente implicada nelas. Vergil podia não estar presente na sala, mas se achava em sua cabeça, confundindo-a com aquele olhar alarmante, misturando-se em seu espírito com lembranças indecorosas. Aquela ária não soou como a última vez nas ruínas, com sua emocionante exaltação. Uma emoção diferente gotejava desta vez. Um estranho oco existia em seu interior e a música o levava mais profundo e o enchia com um penetrante e doloroso desejo. Ao acabar ela não sabia se a atuação tinha saído bem ou não.
—Esplêndido, prima — sussurrou Nigel no meio do silêncio que se produziu.
O esforço a deixou imersa em uma névoa de melancolia. Deu uma olhada à expressão pensativa de Catalani enquanto recebia os elogios de outros convidados.
Catalani caminhou para ela, puxou-a pelas mãos e a afastou para um lado.
—Os anos me tornaram cética, e confesso que esperava uma voz bonita, adequada para salões e Igrejas. Estava equivocada. Possui um grande talento, querida. É excepcional.
Qualquer outro dia o julgamento de Catalani teria produzido euforia. Essa noite tão somente acrescentava um grande nó a mais ao matagal de emoções que a confundiam.
Pen encabeçou a marcha para a biblioteca para jogar cartas, mas Bianca se desculpou, dizendo que queria retirar-se. Seguiu à comitiva através do corredor, mas se desviou ao chegar à escada. Nigel se separou de outros.
—Esperava que nos encontrássemos jogando na mesma mesa, prima.
—Seria uma má companhia esta noite. A emoção de cantar com Catalani presente…
—É obvio. Entendo. De todas as formas agradeceria poder passar um momento mais contigo. Muito em comum, prima. Eu gostaria de te conhecer melhor.
Por mais que insistisse em usar a palavra «prima», por mais que empregasse um tom formal e correto suas intenções saíam à luz. O interesse que sentia por ela brilhava em sua expressão. Ela suspeitou que se naquele momento se achassem sozinhos no jardim Nigel teria tentado beijá-la.
Três homens em dois dias. Ela não tinha ideia de que fosse tão fácil voltar-se promíscua.
A experiência daquela manhã a havia tornado cínica. Possivelmente o interesse de Nigel fosse honesto.
—Se juntará com os outros para cavalgar amanhã pela manhã? —perguntou ele.
Pen organizou para todos uma visita pela fazenda, que terminaria com um almoço nas ruínas. Retornar ali tão cedo seria horrível.
—Não acredito. Não me encontro bem, ficarei aqui descansando.
Abriu-se a porta do estúdio que dava ao corredor. Dela emergiu a alta figura do visconde Laclere, que se dirigia à biblioteca. Ao vê-los se deteve, ficando de pé ante eles como uma sentinela. Nigel o olhou e a seguir dirigiu a ela um sorriso íntimo.
—Eu gostaria de falar contigo em algum momento em que seu guardião não esteja me olhando por cima do ombro. Os dois estamos sozinhos no mundo, e os parentes podem ser uma fonte de consolo. Se alguma vez necessitar minha ajuda, espero que venha a mim.
—É muito amável por sua parte me fazer essa oferta. Agora deveria se unir aos outros, eu preciso estar sozinha.
Vergil não se moveu, nem sequer quando Nigel passou ante ele lhe dirigindo uma saudação e entrou na biblioteca. Simplesmente seguia ali de pé, olhando-a. Ela queria girar a cabeça e afastar-se com altiva indiferença. Mas não podia mover-se.
—Retira-se?
—Sim. A noite foi uma prova.
—Eu acredito que a noite foi um triunfo. Escutei você. Superou a si mesma. Quanto ao dia, suponho que foi uma prova, e me desculpo por isso.
Ela não queria voltar a ouvir nada mais a respeito de suas desculpas.
—Os papéis pessoais de seu avô chegaram esta manhã — disse ele— A maioria das caixas está em meu escritório para que não a incomodem, mas separei as que correspondem aos anos em que seu pai vivia com ele e as mandei levar a seu quarto, junto com o que havia no escritório.
—Obrigado. —esforçou-se para mover-se e chegar até a escada.
—Há algo mais. Devo insistir em que não deve voltar a sair sozinha pela manhã cedo.
—Está preocupado por minha virtude? — A pergunta surgiu sem que ela pudesse impedir.
Ele nem sequer teve a decência de mostrar-se envergonhado.
—Estou preocupado por sua segurança.
—Irei onde queira e ensaiarei sempre que puder.
—Não pela manhã, e não sozinha. Se quiser praticar em privado e se preocupa que em seu quarto possa incomodar os outros, usa meu escritório. Mas não saia da casa.
—Continua cortando a correia, Laclere. Por que não me ata ao pilar da cama?
Seus olhos azuis a olharam de uma maneira que nada tinha a ver com o que usou nas insossas admoestações que acabava de lhe fazer.
—Tem talento para provocar as imagens mais surpreendentes, senhorita Kenwood. —deu a volta— Até amanhã então.
Jane a esperava em seu quarto. Sentia-se bem ao poder estar a sós com alguém que a conhecia há anos.
—Os convidados realmente o passam bem, verdade? —disse Jane— Todos esses homens bonitos com seus trajes elegantes.
Jane viu aquela viagem desde o começo como uma boa oportunidade para que Bianca encontrasse um marido. Nunca reconheceu que a falta de pretendentes em Baltimore era voluntária; o resultado de esmeradas dissuasões.
—Esse senhor Witherby parece prometedor. Um cavalheiro conforme se diz, e bastante atrativo.
—Suspeito que se interesse por Penelope.
Jane franziu o cenho.
—Por uma mulher casada? Separada ou não, isso é o que é. Bom, o visconde está fora de jogo. Está a ponto de prometer-se à senhorita Monley. E menos mal. Quem iria querer um homem tão estrito e severo? Sempre fica o irmão mais jovem de Charlotte, embora se diga…
—Sei o que se diz.
Jane a ajudou a colocar a camisola.
—Todos esses homens solteiros e nem sequer uma paquera? Quem ia esperar que a Inglaterra fosse tão aborrecida.
Algo menos aborrecida, e o de paquera não serviria nem para começar a descrever até que ponto estava se convertendo no contrário do aborrecimento.
—Meu primo Nigel me deu a conhecer seu interesse.
—Nunca gostei da ideia de que os parentes se mesclem. Não é bom juntar o sangue.
—É um parente bastante longínquo.
—Certo. Só que ouvi dizer embaixo que se parece muito a Dante. Vive endividado. Não pode permitir-se essa vida tão elegante. Seu avô deixou a você a maior parte do dinheiro. Diz-se que seu primo só tem dinheiro suficiente para manter o imóvel, e que tudo está disposto de forma que não possa acessar mais que os ganhos correspondentes para cada ano.
—Onde se inteira de todas essas coisas?
—Os criados daqui conhecem os poucos criados que ficam ali. Os arrendatários falam entre eles. É igual em nossa vizinhança. Tudo entra através da porta da cozinha — disse Jane— Se ele expressou esse tipo de interesse, deveria saber que pode ser como Dante em outros sentidos também. Parece que seu primo não está sempre só nessa grande casa. Uma mulher o visitou secretamente a semana passada. Segue meu conselho. Não acredito que queira o interesse desse homem.
Bianca não queria o interesse de nenhum homem. Rotundamente não. Nada mais que distrações, isso é o que eram os homens. Potencialmente distrações permanentes, assim funcionava o mundo. E, como ela vinha aprendendo a trancos e barrancos, fontes de dor e confusão.
Ansiava adormecer, mas sabia que só ocorreria quando estivesse completamente esgotada. Quando Jane saiu, aproximou as velas às caixas e ao baú, empilhados perto da lareira, e se sentou no chão para descobrir o que podiam revelar.
Uma chave estava na fechadura do baú. Girando-a abriu a tampa para examinar o conteúdo do escritório de Adam Woodleigh.
Tocou as plumas e o tinteiro barato. Buscou entre papéis cheios de escritas. Um tinha escrito o nome do irmão de Vergil, junto com outros, e ela supôs que foram os últimos que seu avô escreveu.
Uma pilha de cartas, atadas com um barbante, chamaram sua atenção. Estava a ponto de abri-las quando viu a saudação que encabeçava a primeira. Escrito pela mão de um homem, dirigia-se a Adam como «Meu mais querido amigo».
Com uma saudação como essa não podiam ser de seu pai. Provavelmente seriam do anterior visconde. As daria a Vergil.
Em um pequeno estojo de couro encontrou uma miniatura de uma mulher loira. Imaginou que seria sua avó. Encontrou certo parecido com seu pai, e a assaltaram lembranças de seu amor e sua nobre honestidade. Sua garganta ardia como se uma velha dor se unisse as novas.
Uma flor seca caiu em seu colo enquanto devolvia a diminuta pintura a seu ninho de veludo.
A flor não parecia muito velha. Não se desfez ao tocá-la, parecia que estava a anos naquele estojo.
Imaginou um homem velho recolhendo uma flor no jardim quando saía para caminhar e abrindo mais tarde esse estojo que continha a lembrança de sua esposa. Imaginou Adam lhe deixando essa pequena oferenda.
Fechou de repente o estojo. Não queria ficar sentimental com esse homem. Provavelmente a flor esteve ali sempre e foi sua avó quem a colocou ali.
O outro baú continha pastas. Adam foi um homem organizado, cada pasta correspondia há um ano e dito ano estava escrito na parte dianteira. Ela procurou as correspondentes aos anos em que ainda não tinha nascido, justo quando seu pai abandonou a Inglaterra.
Levou algum tempo encontrar o ano preciso. Não sabia que seu pai viajou a América ao menos seis anos antes que ela nascesse.
Era uma pasta magra com umas poucas cartas. Três eram de seu pai. Leu-as e compreendeu a razão pela que Adam Kenwood e seu filho se separaram.
Não foi por causa de sua mãe. Ocorreu antes que seus pais se conhecessem. Vergil estava certo a respeito do ocorrido. Seu pai rompeu a relação. Em uma carta onde rechaçava a oferta de uma pensão por parte de Adam expôs as razões.
As explicações esvaziaram seu coração das últimas frestas de alegria e confiança. O sonho que a sustentou desde a morte de sua mãe balançou como se seus alicerces tivessem sido atacados. A herança de repente a golpeou como uma brincadeira malvada, um chamariz do diabo para fazê-la pecar.
Não era para menos que seu pai tivesse dado as costas à fazenda e ao status que Adam edificou.
Seu avô fez sua primeira fortuna com o comércio de escravos.
CONTINUA
Vergil Duclairc é um homem acostumado a vencer. Como recém-nomeado tutor da senhorita Bianca Kenwood, está decidido a encontrá-la e devolvê-la ao lar custe o que custar, embora a última coisa que podia imaginar era achar sua pupila vestida de modo escandaloso cantando em um teatro de duvidosa reputação. Mas ainda estava menos preparado para a implacável atração que sentiu por ela somente em vê-la, um desejo que não pode permitir deixar fluir por medo de desmascarar segredos que jurou guardar.
De sua parte, Bianca não está disposta a abandonar sua independência, mas há algo irresistível no belo e persistente visconde Duclairc que o converte não só no administrador de sua herança, mas também no dono de seu coração. A jovem descobrirá em seguida que Vergil é um homem de profundos segredos e de uma sensualidade perturbadora a qual não se pode resistir. Quando suas vidas estão a ponto de mudar e seus caminhos a se separar, crescerá entre ambos uma paixão que os permitirá lutar contra o mundo ao qual pertencem.
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Capítulo 1
O canto de Jane Ormond, que Vergil apreciava a contra gosto, não apaziguou sua ira nem um pouco. Lamentava terrivelmente não poder jogá-la na prisão de Newgate, a que pertencia.
Ia vestida como uma rainha francesa do século passado, mas não parecia cômoda em seu papel. Movia-se com rigidez, como se temesse que a alta peruca branca caísse ou que o miriñaque[1] do vestido inclinasse. A confiança de sua voz contrastava com sua fragilidade física. E sua pose de profissional cheia de segurança destoava durante os breves momentos de vulnerabilidade.
Ele não se sentia deslumbrado com seus estudados encantos. Com seus olhos grandes, seus lábios carnudos e sua insinuada fragilidade, aparentava o tipo mais perigoso de inocência, dessa que impulsionaria um homem a sacrificar sua vida com o objetivo de protegê-la, mas que também poderia despertar outra parte escura, e conseguir que esse mesmo homem se imaginasse lhe arrancando a roupa e destruindo essa inocência.
Moveu-se em direção a ele, levantando a cabeça para cantar as notas mais altas em uma exibição vocal. Seus olhares se encontraram. Por um momento apareceu em seu rosto um brilho de curiosidade, como se percebesse que ele não estaria ali se não fosse pelo dever.
Ele sabia que não havia nada em sua aparência que pudesse revelar isso. Aquela sala de jogos incluía espetáculos para atender aos gostos dos homens de sua classe. Eles podiam descansar de suas apostas naquele salão para comer e desfrutar de um concerto de ópera, ou, mais tarde, desfrutar de formas de entretenimento muito mais baixas.
Ela o olhou por um tempo mais longo do que devia em resposta à inspeção a que se sentia submetida. Ele se surpreendeu ante a inquietante combinação de proteção e erotismo que aqueles grandes olhos convocavam, e se concentrou em todos os problemas que ocasionou durante as últimas duas semanas.
Morton se deixou cair na outra cadeira da mesa. Parecia desconjurado, com sua pinta de urso e sua barba fora de moda.
—A garota está aqui — disse— Em uma estadia traseira. A senhorita Ormond a traz aqui a cada noite, para que a espere enquanto ela canta. Falei com o homem da porta e ele as viu entrar juntas esta noite.
Vergil se levantou.
—A senhorita Ormond cantará outra canção depois da ária. Faremos agora. Temos que tirar à garota antes que acabe. —A senhorita Ormond, sem suspeitar nada, continuava com seus gorjeios— Se for inteligente, nos perseguirá pela costa quando se der conta de que seus planos fracassaram. Quanto à garota, a levaremos ao campo para que se recupere, e ninguém se inteirará de nada.
Estava contando é obvio, naturalmente, que a senhorita Jane Ormond ainda não vendeu à garota pelo maior preço. Concentrou sua atenção no rosto aparentemente ingênuo sob a muito alta peruca branca. Podia ver-se um traço de inteligência naqueles olhos. Não, essa mulher não teria se arriscado tanto por um prêmio tão pequeno como o dinheiro que podia obter de vender uma virgem. Possivelmente teria planejado pedir um resgate, mas o mais provável era que tivesse intenção de vender à garota para algum casamento. Ela, sem dúvida, tinha notícias de sua herança desde que servia de criada e partiram juntas da América.
Tudo aquilo podia ter sido evitado se Derem estivesse mais atento. A culpa era em realidade dele, por ter enviado seu irmão para receber o navio, mas quem ia pensar que uma criada que não era mais que uma menina se atreveria a fazer semelhante coisa.
O corredor de má morte contrastava com a opulência do salão. Morton assinalou para uma porta escondida sob uma escada. Vergil girou o trinco.
Já havia visitado camarins de cantoras, e normalmente era um autêntico desastre ao que se refere à ordem. Entretanto, aquele diminuto espaço foi arrumado cuidadosamente. Havia um par de velas sobre uma mesa, em que também podia ver-se um espelho e um recipiente com pinturas. Disfarces e roupas de dia penduravam de uma fila de cabides colocados na parede. À direita da mesa havia uma cadeira entre as sombras, onde uma moça permanecia sentada com uma agulha fazendo acertos em um tecido que sustentava perto das chamas.
—Senhorita Bianca Kenwood?
Ela levantou o olhar surpreendida e ele imediatamente começou a calcular quanto teria que incrementar o suborno que pensava fazer a Dante. Sem dúvida poderia tratar-se de uma garota doce, mas Dante julgava às mulheres por seu aspecto físico, não por seu caráter, e o dela não impressionava muito. As mechas de cabelo castanho que escapavam de seu gorro pareciam mais crespados que frisados. Seu nariz era arrebitado, o qual poderia ter resultado encantador no caso de que não fosse tão largo.
—Senhorita Kenwood, sou Laclere.
—Oh!
—Este é Morton, meu (criado). Tenho um carro estacionado atrás do edifício e a levaremos ali imediatamente. Sua terrível experiência terminou e te asseguro que ninguém jamais terá notícia deste desafortunado incidente.
—Oh! Oh, Deus…
—Por favor, é necessário sairmos agora. Falarei com a senhorita Ormond mais tarde. No momento, o melhor será que a tiremos daqui.
—Oh, não acredito que… Isto é… — Andou para trás, fazendo gestos de resistência e confusão. Ele se inclinou para ela e sorriu para transmitir confiança. Precaveu-se de que seu vestido era muito comum, um simples vestido longo e cinza. Era evidente que não tinha nenhuma noção do que era se vestir na moda.
—Vamos querida. Será melhor que saiamos antes que…
—Quem é você? —A indignada voz que fazia a pergunta era feminina, melodiosa e jovem.
Vergil deu a volta para ver Maria Antonieta ante a porta, com os braços em jarras e as mãos apoiadas sobre seu magro talhe. O vestido de largos quadris ocupava toda a soleira.
—E bem? Quem é você, senhor, e o que está fazendo aqui?
A senhorita Kenwood se levantou de um salto e se precipitou para a senhorita Ormond, que a abraçou de maneira protetora. Ou seja, que assim é como tinha ocorrido. Naturalmente, ela tinha cercado amizade com a garota. De outra forma não teria funcionado.
—Seu concerto terminou? —perguntou ele.
—Os lieder são peças breves. Agora, me faça o favor de sair. Minha irmã e eu…
—Senhorita Ormond, essa jovem não é sua irmã. Não são parentes. A convenceu a vir com você, mas sua ação não foi outra coisa mais que um sequestro e deverá ser examinada ante um juiz.
A senhorita Ormond afastou brandamente à garota e depois apertou seu vestido para conseguir entrar na estadia. A largura da ridícula saia obrigou Morton a se aproximar da parede.
Ela cruzou os braços. O gesto fez que Vergil se fixasse na forma em que seus peitos apareciam esmagados, sob o rígido sutiã.
—Quem é você?
—Vergilius Duclairc, o visconde Laclere. A senhorita Kenwood é minha pupila, como você já sabe.
Ela baixou lentamente o olhar, e logo voltou a elevá-lo.
—Eu não sei nada disso.
O aprumo que demonstrava, apesar de ter sido surpreendida em fragrante delito, acabou com a paciência de Vergil.
—Não tente brincar comigo, jovenzinha. A forma em que traiu a confiança de sua companheira de viagem é simplesmente abominável. O perigo e o possível escândalo ao que submeteu esta moça durante as últimas semanas são indesculpáveis. A partir de agora não tolerarei nenhuma intromissão. Se você se der pressa, poderá estar a caminho de volta a América antes que amanheça, mas unicamente estou disposto a fazer esta concessão por deferência à senhorita Kenwood.
Ela nem sequer pestanejou. Avançou uns passos para diante até que os volantes de sua saia roçaram a perna dele e levantou a vista para olhá-lo de uma forma curiosa.
—Assim é você um desses.
Ele a olhou fixamente. Se fosse um homem lhe daria uma boa surra.
Ela dirigiu a vista para a perturbada garota, encolhida com medo contra o vão da porta.
—Pelo visto parece que tudo terminou. É uma lástima, realmente acreditei que conseguiria. —Fez um gesto e a senhorita Kenwood se uniu a ela para ajudá-la a desprender e dobrar os objetos que tinha pendurados nos cabides.
Ele se colocou entre elas, pegou um vestido das mãos de sua pupila e o jogou para um lado.
—Iremos agora mesmo. Se a senhorita Kenwood tiver pertences aqui ou no lugar onde se aloja, enviarei alguém para buscá-los.
A senhorita Ormond sorriu de uma forma muito insolente.
—Oh, definitivamente é você um desses. Muito seguro de si mesmo. Um homem que decide que rumo seguir e que está sempre seguro do que é o correto. Advertiram-me que neste país havia muitos homens como você, homens que estão convencidos de que jamais cometem enganos.
Ele sentiu que se ruborizava ante a suja afirmação dessa pomba presunçosa. Já tinha sido suficiente. Pegou com sua mão a larga manga de tecido cinza de sua pupila.
A senhorita Ormond mudou de posição e obstruiu sua retirada com a largura de seu vestido. Com uma mão, suave e cálida, agarrou a mão dele e com delicadeza fez que seus dedos se abrissem e o tecido largo e cinza se deslizasse deles.
Uns olhos azuis o olharam com zombador deleite.
—Bem, esta vez cometeu um engano, Vergilius Duclairc, visconde Laclere. De fato, você está completamente equivocado. Ela não é Bianca Kenwood. Sou eu.
Ele teve um momento de confusão até que o significado daquelas palavras o golpeou. Insinuações de problemas se atropelaram em sua mente, uma luminosa névoa de premonições que sugeria que algo que parecia bastante simples de resolver acabava de voltar-se perigosamente complicado. Dirigiu seu olhar para o tímido passarinho cinza que retorcia as mãos, e depois para aquela ave do paraíso, borrada e cheia de confiança em si mesma, e se perguntou como teria reagido Dante ante desse escandaloso acontecimento.
***
Zas. Zas. Zas.
O látego de montar golpeava contra as altas botas do visconde Laclere enquanto caminhava acima e abaixo frente à chaminé.
No divã, Bianca abraçava Jane, e dava tapinhas no seu ombro. Na outra ponta do salão, meio adormecida, a condessa de Glasbury irmã do visconde, piscava com consternação, vestida com uma bata verde de estilo oriental.
Bianca pensou que era de muito má educação por parte de Vergil Duclairc arrastar Jane e a ela até a casa da condessa e interromper seu sono. Se ele deixasse de dar voltas ao assunto e de caminhar de um lado a outro, ela poderia esclarecer as coisas rapidamente e poderiam partir.
Zas. Zas.
—Não estará planejando usar isso, verdade? —perguntou Bianca. Sua voz rompeu o tenso silêncio que se fez depois que ele explicou à condessa onde encontrou sua pupila desaparecida após duas longas semanas de busca.
Ele parou em seco uma de suas idas e vindas para dar a volta e olhá-la. Era um homem alto, magro e robusto de uns vinte e cinco anos, com surpreendentes olhos azuis e o cabelo ondulado e escuro um pouco despenteado, como ditava a moda. Atrativo, de fato. Possivelmente inclusive bonito se deixasse de pôr essa cara mal-humorada, de momento ela não podia saber.
—O látego — insistiu— Não pretende usá-lo? Devo te dizer que tenho vinte anos, e Jane tem vinte e dois, o que significa que já passamos da idade para estas coisas. Embora minha tia tivesse uma criada que foi cortejada por um cavalheiro inglês que disse que há muitos homens que usam o látego com suas mulheres aqui na Inglaterra, o qual me pareceu bastante curioso, e que há outros que de fato querem mulheres para lhes dar chicotadas, o qual para mim não tem nenhum sentido.
A condessa ficou boquiaberta. De repente parecia completamente acordada.
Vergil se voltou para sua irmã com uma paciência cheia de tensão, e assinalou para o divã como querendo dizer «o vê?».
—Asseguro-lhe, senhorita Kenwood —disse a condessa com um sorriso vacilante— que, sem dúvida, meu irmão não tem nenhuma intenção de…
Vergil baixou as pálpebras como se não houvesse nenhuma razão de usar o «sem dúvida». Cruzou as mãos atrás das costas e estudou a moça com severidade.
—Meu irmão foi esperar seu navio em Liverpool. Por que não conseguiu encontrá-la?
Bianca considerou a possibilidade de usar a elaborada história cheia de peripécias que inventou se por acaso as coisas se estragavam, tal como tinha ocorrido. Mas de repente pareceu que era muito pouco convincente.
Examinou os olhos azuis que a esquadrinhavam. Tia Edith havia dito que os aristocratas ingleses eram gente indolente e decadente, um pouco estúpidos, e Bianca acreditava que aquilo seria certo. Infelizmente aquele parecia ser uma exceção, ao menos em relação ao último ponto. Não parecia capaz de acreditar em confusas histórias a respeito de uma moça inocente e desventurada.
—Havia a bordo um marinheiro que nos ajudou a tirar nossos baús e a encontrar um carro de aluguel antes que alguém viesse nos recolher.
—Ficou amiga de um marinheiro? —A condessa lançou a seu irmão um olhar oblíquo e este fechou por um momento os olhos.
—Senhorita Kenwood, talvez ocorreu um mal-entendido. O procurador de seu avô contatou com um advogado de Baltimore, o senhor Williams, para dirigir este assunto. Ele falou com você, ou acaso não fez? É possível que foi mal informada?
—Certamente falou comigo. É um homem muito agradável. De fato conseguiu nossa passagem para o navio.
—Escreveu-me dizendo que o faria. Explicou a você que um membro de nossa família iria recolhê-la em Liverpool?
—Explicou-o com muita claridade. Minha tia não teria me permitido vir se não tivesse convencida de que me recolheriam.
—Então admite você que desembarcou por sua conta própria sem esperar um acompanhante e que não foi acidental que meu irmão não a encontrasse?
—Não foi acidental. Foi completamente deliberado.
Por alguma razão sua franqueza o deixou mudo. Olhou-a como se fosse impossível compreendê-la.
—Acredito que será melhor que se sente Vergil, assim ela se sentirá menos incômoda — disse a condessa— Podemos falar as coisas com calma. Estou segura de que a senhorita Kenwood terá uma explicação para tudo.
Vergil se sentou em um pequeno banco, mas continuou envenenando a moça com sua atitude.
—Você tem alguma explicação?
—É obvio. —Jane dormiu apoiada em seu ombro e o peso morto a distraiu. O abraço tinha feito que sua peruca se desequilibrasse e se torcesse. Esses vestidos antigos não estavam desenhados para sentar-se e a saia formava uma espécie de plataforma a seu redor. O espartilho sob o disfarce lhe cravava ao lado da cintura.
Sentia-se um pouco ridícula e muito incômoda e lamentava que aquele visconde com ar de grandeza não a tivesse deixado tempo para trocar-se e lavar-se antes de arrastá-la até o carro.
—A explicação, senhorita Kenwood. Eu gostaria de ouvi-la.
—A verdade, senhor Duclairc, é que não acredito que gostará.
Ele entrecerrou os olhos.
—Seja como for vamos provar.
Ela subiu uma perna e a colocou sob seu traseiro para levantar-se um pouco mais. A condessa pestanejou. O visconde elevou uma sobrancelha em atitude de censura. Ao dar-se conta de que a perna que pendurava estava descoberta até a metade da panturrilha, Bianca sorriu a modo de desculpa e puxou a borda de sua saia para baixo.
—Senhor Duclairc, fui informada a respeito dos planos de minha visita aqui. Simplesmente decidi fazer umas pequenas mudanças. Se o senhor Williams falou com você a respeito de mim, você deve saber que eu vivia com minha tia avó Edith mais como uma companheira que como uma pupila. Viajei muito quando minha mãe vivia, e aprendi a cuidar de mim mesma. Sou considerada muito amadurecida para minha idade.
—Ele só me escreveu dizendo que sua tia era um baluarte da sociedade de Baltimore e que você era uma jovem bem educada. —Seu tom dava a entender que o senhor Williams devia alguma explicação.
—Sei que meu avô o nomeou meu protetor em seu testamento. É um gesto encantador e comovente. Provavelmente ele queria cobrir a eventualidade de que eu necessitasse realmente um protetor, mas obviamente não é o caso. Por outro lado, sou americana, assim não posso entender de que modo um testamento inglês pode estabelecer algum tipo de autoridade sobre mim.
—Será um prazer explicar mais tarde.
Ela já sabia a explicação. Simplesmente não a aceitava.
—Ante a insistência do senhor Williams, aceitei vir aqui para estudar assuntos referentes à minha herança e arrumá-los pessoalmente. Entretanto, nunca disse que iria ficar com sua família. —Omitiu o fato insignificante de que tampouco nunca havia dito que não fosse fazê-lo e que quando subiu a bordo desse navio tanto o agradável senhor Williams como a velha tia Edith davam por certo que era exatamente isso o que faria.
—A quem pensava visitar, querida? —perguntou a condessa— Vê Vergil, disse que haveria uma explicação. Ela esperava que outros amigos fossem recolhê-la e não se apresentaram.
A expressão dele se fez cautelosa.
—É assim, senhorita Kenwood?
—Não — admitiu ela. Curiosamente, ele pareceu aliviado— Minha intenção é viver por minha conta, com Jane como acompanhante. Em relação à oferta de alojamento em sua casa de campo… Bom, me sentiria como uma intrusa, e, além disso, prefiro a vida da cidade. E é obvio, não queria que se atrasassem minhas lições.
—Lições?
—Lições de canto. Esse é o motivo de ter vindo. Meus instrutores em Baltimore me disseram que me levaram tão longe quanto podiam e que a partir de agora necessitava professores melhores. Meu plano é tomar lições em Londres até que o assunto de minha herança esteja resolvido, e depois usar os ganhos para ir a Milão.
O visconde suspirou, levantou-se e começou a caminhar de novo frente à chaminé. A condessa inclinou sua cabeça de cabelo negro confidencialmente.
—Acredito que é maravilhoso que sinta esse ardor por sua música. Quanto talento! Quando formos a Londres para a temporada, estou segura de que poderemos encontrar um professor de canto. Conheço bastante gente nos círculos de arte e de música.
—Obrigado por tão amável oferecimento, mas não quero esperar até a temporada, seja quando for. As lições de canto foram o autêntico propósito de minha viagem e penso começá-las em seguida.
Vergil esfregou as superficiais rugas que se formavam entre suas sobrancelhas.
—Senhorita Kenwood, não quero incomodá-la, mas preciso saber como você conseguiu cantar nesse local.
—Vergil…
—Não, Penelope, é melhor esclarecê-lo agora e saber exatamente a que enfrentamos. Senhorita Kenwood?
—Bom, alugar esse carro para chegar a Londres resultou muito caro. Custou mais do dinheiro que trazia comigo. Quando chegamos a Londres encontrei emprego cantando, para nos manter até que pudesse obter o dinheiro do patrimônio de meu avô.
—Que inteligente e competente por sua parte — disse Penelope.
Vergil tinha o aspecto de alguém que jamais admirou virtudes como a inteligência ou a competência.
—É consciente da reputação desse lugar? Sabe o que ocorre no cenário depois de suas árias?
—Nunca ficamos. Parecia uma sala de música comum.
—Do mais comum. Nossa única esperança é que seu disfarce esconda sua identidade e que nenhuma das pessoas que te encontre no futuro a reconheça. Resulta escandaloso que uma mulher cante em um cenário de qualquer tipo, mas em um como esse, pintada e com esses babados… — Fez um gesto assinalando seu vestido, seu rosto, sua peruca.
—Minha mãe cantava em um cenário senhor Duclairc e este é seu vestuário.
—Estou segura de que era uma cantora encantadora — se apressou a dizer Penelope.
—Deixa de seguir a corrente, Pen. Talvez isso seja aceitável nos Estados Unidos, mas não na Inglaterra, senhorita Kenwood.
—Posto que não seja inglesa, isso não me preocupa. Acredito que o melhor será evitar qualquer contato social para que você não deva preocupar-se com minhas atuações, não parece? —Fez um sorriso forçado, como o animando a aceitar a lógica daquele raciocínio— Agora que já cumpriu com seu dever assegurando-se de que estou a salvo, por favor, leve Jane e a mim ao nosso alojamento.
—Você ficará aqui esta noite. Farei com que tragam seus pertences e que se relate ao proprietário da sala de jogos que suas atuações acabaram.
—Devo declinar sua oferta, senhor Duclairc. Não quero abusar da hospitalidade de sua irmã, e tenho a intenção de continuar com meu emprego. Como cantora, necessito experiência com o público e…
Ele a interrompeu com um gesto autoritário.
—Não. Definitivamente não. Não viverá de forma independente sem uma acompanhante e tampouco vai pavonear sobre um cenário. Enquanto esteja aqui eu sou responsável por você e deverá comportar-se como se espera de uma jovem dama.
Bianca devolveu o olhar a aquele intratável, alto e imponente visconde. Que um velho avaro, a quem nunca conheceu, pudesse ter complicado sua vida dessa maneira com os garranchos de uma pluma, resultava intolerável. Não esperava que o visconde a encontrasse tão rápido. Não esperava ter aquela conversa até estar preparada.
Vergil cruzou os braços. Aquela pose o fazia parecer muito alto e poderoso. Era o tipo de postura que devia adotar um rei quando ordenava executar alguém.
—Amanhã minha irmã acompanhará você e a sua criada até o campo — entoou, como expressando a vontade de um juiz— Não falará com ninguém a respeito desta experiência, nem sequer a outros membros de minha família. No que concerne ao mundo, você foi recolhida no navio e esteve sob nosso amparo desde o começo.
—Se você me tirar de Londres, será contra minha própria vontade. Como você disse antes, isso é um sequestro. Eu também posso ir me queixar ante o tribunal de Justiça.
Ela olhou com frieza.
—É legalmente impossível para mim sequestrá-la, senhorita Kenwood. Sou seu tutor. Até que você cumpra vinte e um anos ou se case permanecerá sob minha custódia. Pen, pede à governanta que mostre à senhorita Kenwood e à senhorita Ormond suas acomodações.
Despachada como uma escolar travessa, Bianca achou a si mesma e a uma sonolenta Jane guiadas por uma mulher através do corredor. Zangada por ter visto frustrado seu plano, e desconcertada ao ver aquele estranho assumindo uma responsabilidade que certamente desejaria não ter que assumir, baixou a escada guiada por aquela mulher.
Algo no final daquela confrontação a perturbava. Foi chegar ao patamar da escada quando se precaveu da importante omissão. «Até que você cumpra vinte e um anos ou se case permanecerá sob minha custódia.»
Ou até que abandone a Inglaterra, naturalmente. Verdade?
—Não acredita que foi muito duro com ela? —perguntou Penelope.
—Absolutamente. —Vergil observava Bianca Kenwood enquanto esta subia a escada cambaleando com suas delicadas sapatilhas de seda. A chuva de premonições se converteu em uma tormenta de neve.
Que desastre.
—É uma estrangeira aqui, Vergil. Ignorante de nossos costumes. Sem dúvida, as pessoas na América se comportam de maneira mais informal.
—Não acredito Pen. Ela sabia perfeitamente o que estava fazendo. —O qual significava que estava fazendo exatamente o que queria e pressupondo que aquilo o induziria a lavar as mãos a respeito dela.
Deu a volta, pensando em tomar um copo de porto antes de partir. Precisava fazer planos sobre como preparar seu irmão e como frear à senhorita Kenwood para que aquele caveira não ficasse impressionado por ela.
Penelope o pegou pelo braço, detendo-o.
—Foi muito amável de sua parte não dizer nada a respeito de como deve dirigir-se a você. Compreendeu que era só sua ingenuidade o que a fazia te chamar todo o tempo senhor Duclairc. Ela se sentia envergonhada e você foi muito generoso. O explicarei amanhã.
É isso o que Penelope viu naqueles olhos azuis? Ingenuidade? Vergonha? Normalmente sua irmã mais velha se mostrava mais ardilosa, apesar de sua natureza otimista.
—Não será necessário dar explicações, Pen. Apostaria mil libras que a senhorita Kenwood sabe perfeitamente qual é a forma apropriada de dirigir-se a um visconde.
Capítulo 2
Vergil lançou a seu camareiro seu chapéu empapado e desatou com violência o nó de seu lenço.
—Uísque para os dois, Morton. Depois desta viagem, necessito. Leva Hampton acima quando chegar.
Ao final de dez minutos, Morton não só serviu as bebidas, mas também queijo e carne de ave fria, acendeu um pequeno fogo na biblioteca e conseguiu que Vergil estivesse seco e arrumado. Não é que houvesse ninguém ante quem tivesse que estar arrumado. Só umas poucas estadias da luxuosa casa de Londres estavam abertas e, além de Morton, havia só outros dois criados.
Tampouco tinha por que arrumar-se para receber Julian Hampton. O advogado da família o viu em outras ocasiões vestido de maneira muito informal. Entretanto, a vida que levava em Londres requeria que se respeitassem as aparências.
Sentou-se junto ao fogo, bebendo a sorvos seu uísque com dois grandes livros em seus joelhos. Já sabia o que mostravam esses documentos e o que diria Hampton. As finanças da família Duclairc não atravessavam um período de prosperidade. Só a cuidadosa direção de Vergil durante aquele último ano tinha evitado o desastre total.
Ultimamente, entretanto, não teve muito tempo para dedicar-se a essas coisas. Outros assuntos, mais urgentes e também mais interessantes, tinham requerido sua atenção. Assuntos como o que acabava de atender no norte.
E agora, é obvio, precisava ocupar-se daquele novo assunto chamado Bianca Kenwood. As possíveis complicações que aquilo podia representar o fizeram fechar os olhos.
A imagem dela cintilou atrás de suas pálpebras, assim como ocorreu muito frequentemente durante as últimas duas semanas. Viu-a sentada na sala de estar de Pen com aquele absurdo vestido, sua magra perna pendurando do divã e a sapatilha de seda arqueando um pouco seu pequeno pé. Estava do mais inapresentável. Além de incorrigível e impertinente e maliciosa e fascinante…
Fascinante? Que ideia tão curiosa. De onde sairia?
—O senhor Hampton — anunciou Morton.
Julian Hampton entrou, levando posta sua cara de advogado. Sempre o fazia quando se encontravam por assuntos de negócios. Já que se tratava de um velho amigo provavelmente era necessário, especialmente quando tinham que falar de más notícias. Vergil viu aquela expressão muito frequentemente durante o último ano.
—Estudou-os? —perguntou Hampton, assinalando os tomos ao tempo que tomava assento e aceitava o copo que oferecia Morton.
—Espero que as coisas tenham mudado um pouco.
—Um pouco. A solvência nos faz gestos. Se sua irmã vivesse em Laclere Park…
—Não posso pedir que seja tão dependente.
—Ou se Dante vivesse de acordo com seus meios…
—Jamais o fez, assim não há nenhuma esperança.
—Poderia consolidar a granja e arrendar a terra.
—Essa é uma velha litania, Hampton, e já sabe minha resposta. Meu pai e meu irmão não jogaram essas famílias, e eu tampouco o farei.
—Bom, ao menos não estão na borda do abismo.
Estavam mais perto do abismo do que sabia Hampton e do que revelavam aqueles tomos. Entretanto, Vergil tinha um plano para tentar solucioná-lo. Infelizmente, uma parte fundamental desse plano podia causar problemas. A parte chamada Bianca Kenwood.
Hampton sorriu. Isso nunca era um bom sinal, especialmente na cara de seu advogado.
—Deve melhorar as coisas do modo mais simples. O modo tradicional.
—Sim, suponho que o pai de Fleur será muito generoso. Deveria estar agradecido de que meu valor tenha aumentado tanto depois da morte de meu irmão. Com o tempo, suponho que consentirei em me casar. De momento, entretanto, outros enredos fazem que resulte impossível.
Hampton não era um homem muito expressivo, assim que o brilho de curiosidade e preocupação que relampejou em seus olhos fez Vergil ter sabor que falou muito.
—Posso te procurar ajuda? Tenho experiência em negociar para que meus clientes solucionem seus enredos. —Destacou a última palavra de uma forma que parecia aludir a problemas de natureza romântica.
O enredo em que Vergil se achava envolvido necessitava algo mais que a destreza de Hampton para chegar a desembaraçar-se.
—É insuperável nisso, e aceitaria sua ajuda se acreditasse que poderia servir de algo. Não sei como conseguiu convencer o conde para que liberasse minha irmã.
—Todos os homens têm segredos que querem esconder. O conde de Glasbury simplesmente tem mais que a maioria. Como vai à condessa?
—Está bastante contente, e acabou por preferir aqueles círculos sociais que a aceitam.
—Sua queda teria sido muito pior se não fosse por você.
Vergil sabia. Graças a sua fama de homem íntegro e decente conseguiu aliviar o impacto social que foi o fato de que Pen se separasse do conde; também obteve que se subtraísse importância aos diversos pecados de Dante e inclusive que se retificasse em parte a fama que tinham os Duclairc por seu comportamento e suas ideias pouco convencionais. Apesar de que sua família atirasse para baixo, ele conseguiu que se mantivessem flutuando. Com muita dificuldade.
—Acabamos? —perguntou Vergil, levantando.
—Pelo visto você acredita que sim.
Vergil deixou cair os livros ao chão.
—Pode deixar para outro dia os detalhes tristes. Me diga o que esteve fazendo, além de dar conselhos a insensatos como eu.
—Se todos meus clientes fossem tão insensatos como você, morreria de fome.
A gravidade da expressão de Hampton se esfumaçou e voltou a ser o apreciado amigo de Vergil.
Resultou que esteve fazendo muito pouco. Hampton não frequentava muito as reuniões sociais, e permanecia um pouco à margem quando ia a elas. As mulheres o achavam melancólico e misterioso, enquanto que os homens o consideravam orgulhoso e aborrecido. Com seu cabelo negro e seus traços perfeitos e afiados, Hampton parecia uma figura desenhada com tinta e pluma por um ilustrador. O problema para a maioria da gente era que a ilustração vinha sem pé.
—Saint John voltou para Londres — disse Hampton— Burchard e eu nos encontraremos com ele no Corbet amanhã. Witherby e os outros provavelmente virão também. Agora que retornou de onde seja que estivesse, por que não se reúne conosco? A Sociedade do Duelo estará completa outra vez.
Estava se referindo ao grupo de homens jovens que se reuniam em Hampstead na academia de esgrima de Chevalier Corbet há cinco anos. Vergil não praticava com eles há meses.
Sua ausência resultava tão estranha porque ele foi o eixo da roda em torno do qual se agrupavam os outros homens. Conhecia Hampton desde a adolescência, e se fez amigo de Cornell Witherby durante a época universitária. Adrian Burchard, filho de um conde, o conheceu nos círculos da nobreza. Inclusive Daniel Saint John, o marinheiro, acrescentou-se à Sociedade do Duelo através de Vergil graças a sua amizade com Penelope.
—Oxalá pudesse, mas devo me encontrar com Dante e levá-lo a Laclere Park. Temos assuntos a atender ali.
—Burchard ficará decepcionado. Esteve te procurando para discutir sobre algo que não quer divulgar. Suponho que se tratará de política.
Se Adrian Burchard estava procurando alguém, logo o encontraria. Adrian era a última pessoa que Vergil desejaria ver interessado em suas atividades.
—Escreverei para ele o convidando a ir me visitar. Espero estar aqui durante vários dias.
—Por que não convida também Witherby? A prolongada ausência da condessa em Londres o tornou melancólico.
—Possivelmente assim se inspire para escrever outra ode. Witherby terá que esperar sua vez. A senhorita Kenwood chegou à Inglaterra, e Penelope a levou ao campo por uma temporada.
—Há algum problema?
Não estava claro se Hampton se referia a Bianca Kenwood ou à forma em que Cornell Witherby estava cortejando Penelope. Embora a primeira não prometesse nada mais que problemas, Vergil também preferiria se livrar do segundo. Ter um bom amigo apaixonado por uma irmã mais velha, especialmente quando essa irmã se acha separada de seu marido, só e vulnerável, era o tipo de situação que podia arruinar uma amizade.
—Não há nenhum tipo de problema. A senhorita Kenwood é encantadora. Estou desejando que a conheça.
Até esse ponto se enredou com suas confusões. Estava mentindo a um homem que conhecia há meia vida.
Hampton desviou a conversa para assuntos de política. Enquanto falavam de liberais e conservadores, as manifestações violentas e as mudanças ocorridas depois da morte do último ministro de Assuntos Exteriores, a mente de Vergil se mantinha ocupada com as questões privadas que o esperavam no campo.
Uma e outra vez aparecia em sua cabeça à imagem de uma moça vestida como uma rainha francesa, desafiando-o com uma excessiva auto-suficiência, e uma bonita perna pendurando por debaixo de uma prega indecorosamente alta.
***
—Sigo sem entender sua impaciência — disse Dante. Jogou a cinza de seu puro através da janela da carruagem— Não vejo a razão de que me fizesse voltar da Escócia. Ela não alcançará a maior idade até dentro de um ano.
Isso significava uma eternidade dada à forma em que Dante calculava seu calendário com as mulheres. Normalmente era capaz de cortejar, seduzir, levar a cama e desprezar duas amantes ao mesmo tempo. Vergil estudou o jovem e belo rosto de seu irmão, seus limpos olhos e seu cabelo castanho escuro. A história de Dante com as mulheres foi quase inevitável com traços como os seus. Vergil viu como damas da mais alta linhagem ficavam sem fôlego quando Dante se aproximava.
—Começa a temporada muito antes de seu aniversário, e com a estreia em sociedade de Charlotte não podemos exatamente ir todos à cidade, e deixar aqui à senhorita Kenwood. Já terão que estar casados então, e não só prometidos.
—Por quê? Você acha que algum caçador de fortunas tomará meu lugar? —O tom de Dante deixava ver que aquilo era absurdo.
«Não, acredito que se ela está casada, poderemos impedir que nem chegue a pisar em Londres se for necessário», pensou Vergil. Só a ideia de ver Bianca Kenwood entre a sociedade educada, tratando duques e condes de senhores e anunciando sua pretensão de estudar ópera era suficiente para deixar seu ânimo pelo chão aquele último dia de agosto.
Mas a pergunta de Dante também aguçava aquela premonição que continuava obcecando-o desde que abandonou a casa de Penelope aquela noite. Seria melhor que Dante acabasse com aquilo enquanto o campo estivesse livre.
Dante o olhou diretamente nos olhos.
—Já estamos quase chegando. Não acha que deveria me dizer isso já?
—Te dizer o que?
—Não me disse grande coisa a respeito da senhorita Kenwood, com quem espero me casar. Encontro-o um pouco suspeito. Depois de tudo, você a conheceu. Ambos sabemos que não tenho outra escolha mais que aceitar, mas se deve me fazer alguma advertência, seu tempo está acabando.
—Se não a descrevi com detalhes, é porque isso seria pouco delicado de se fazer. Não é um de seus cavalos de corridas.
—Não a descreveu absolutamente.
—Muito bem. É de compleição média e esbelta, com olhos azuis.
—De que cor é seu cabelo?
Como diabos ia saber. Que cor de cabelo podia ocultar-se debaixo daquela ridícula peruca?
—Até que ponto é má?
Vergil tinha toda a intenção de advertir Dante, mas não encontrava a forma apropriada de abordar o assunto. Um matiz de culpa coloria suas reflexões quando tentava fazê-lo. Afinal, virtualmente meteu seu irmão naquilo à força. Embora não é que Dante resistisse muito ao saber que em um ano ela receberia mais de cinco mil libras.
—O problema não é seu aspecto. Suas maneiras, entretanto…
—Isso é tudo? Está preocupado por uns poucos enganos de etiqueta? O que esperava? É americana. Pen a preparará em pouco tempo.
Falar de uns poucos enganos de etiqueta não fazia justiça a Bianca Kenwood, mas deixou passar.
—É obvio. Entretanto, ela é… Especial.
—Especial?
—Poderia dizer-se inclusive que é estranha.
—Estranha?
—E possivelmente um pouco… Original. O qual pode remediar-se, naturalmente. Enquanto sustentamos esta conversa Pen a tem em suas mãos.
Através do guichê do carro, Dante olhou mal-humorado a visão da campina de Sussex. Vergil não sabia se continuava, mas quase estavam chegando e mal ficava tempo.
—Necessita mão dura. É um pouco independente, por assim dizer de algum modo. —O olhar de seu irmão deslizou para ele— Independente… Tem alguns caprichos. É por sua juventude, passará.
—Seria de imensa ajuda que pudesse completar sua descrição acrescentando alguma informação a respeito de sua beleza.
Sem dúvida. O problema era que ele não sabia se ela era bela. Só recordava seus grandes olhos, com aquela interessante faísca de inteligência e vitalidade que havia neles.
Que mais podia acrescentar? Toda aquela pintura de teatro ocultava seu rosto. Era provável que sua pele fosse preciosa, mas quem poderia estar seguro antes de ver seu rosto lavado? Também sua silhueta parecia bonita, mas podia ter sido pelo vestido. E fazer algum comentário sobre sua sensualidade… Não era muito apropriado tratando-se da futura noiva de um irmão.
—Maldita seja, se for vulgar não estou disposto a fazê-lo, Vergil. E você não deveria desejar que o fizesse. Além do fato de que ela repercutiria positivamente em mim e minha família, posso ignorá-la virtualmente por completo uma vez que estejamos casados, inclusive poderia ir viver na cidade e deixá-la aqui, que é de fato o que pretendo fazer. E até que se case com Fleur e estabeleça sua própria descendência, coisa que está demorando muito em fazer, eu sou seu herdeiro e essa americana poderia acabar convertendo-se na viscondessa Laclere.
Não necessitava que Vergil enumerasse a seu jovem irmão os obstáculos que o esperavam naquele caminho. Abismos muito mais profundos e numerosos do que Dante imaginava. Um favo desses abismos. Se pudesse pensar em alguma alternativa o teria feito, mas depois de duas semanas considerando distintas opções sempre terminava chegando à mesma conclusão. Era necessário que Bianca Kenwood fosse atada a sua família com correntes indestrutíveis.
Dante mordeu o lábio inferior e voltou a olhar através do guichê com seus olhos de espessas pestanas.
—A renda de seus recursos será minha? Como depositário, você não interferirá? E minha atribuição continuará até o casamento, aumentando como o acordo?
—É obvio. Também prometo continuar dirigindo os investimentos financeiros, como solicitou. A renda dos recursos é segura, mas outros assuntos requerem ser fiscalizados, e eu sei que você odeia essas coisas.
Dante fez um gesto de desdém.
—São coisas sórdidas e chatas. Duvido que valha a pena preocupar-se com elas. Pode vendê-las ou conservá-las, o que achar melhor. Depois de ver como se arrumou após a morte de Milton, seria um idiota se me atrevesse a te questionar.
Viajavam silenciosamente através dos bosques de carvalhos e fresnos que havia atrás de Laclere Park. Vergil preferia esse caminho ao longo horizonte de paisagem que se abria da parte frontal, e sempre dava instruções a seu chofer para que se aproximasse da casa por ali. Normalmente servia como um espaço de transição, uns poucos quilômetros durante os quais se preparava para assumir seu papel de visconde Laclere e confrontar as responsabilidades que este conduzia.
Fez aquele caminho pela primeira vez quando chegou à notícia da morte de Milton; escolheu então aquela longa rota para demorar sua chegada, lutando contra emoções conflitivas e agudos ressentimentos pelas mudanças que suportaria em sua vida a repentina morte de seu irmão.
Foi naqueles bosques onde terminou aceitando aquela nova realidade e suas correspondentes restrições. Não chegou nem a intuir até que ponto complicaria sua vida a morte de seu irmão. Restrições, mistérios e decepções o estavam esperando ao final daquela viagem.
De repente Dante se inclinou sobre a janela. Afiou o olhar.
—Que diabos…?
—Algum problema? —Vergil afastou um pouco a cabeça de Dante para poder aparecer a sua através da janela aberta.
—Ali, no lago. Espera, há árvores que nos tampam a vista. Agora. Essa não é Charlotte?
As árvores eram mais magras agora que passavam em frente do lago. Duas mulheres estavam se banhando, rindo e salpicando-se. Virtualmente nuas, pois suas roupas se tornaram transparentes pela água. Diabos, sim, era sua irmã pequena, Charlotte, com aquela criada, Jane Ormond.
Um terceiro corpo feminino emergiu de repente da água. A roupa empapada se aderia a sua pele a obscurecendo um pouco. Bonitos ombros… Umas costas que ia se estreitando… Uma pequena cintura… Gráceis quadris… Finalmente os topos de suas encantadoramente arredondadas nádegas apareceram à vista. Uma larga cabeleira loira se desdobrou em um leque sobre a água para aferrar-se depois a aquele corpo em espessa queda de uma cabeça bem formada.
Seus esbeltos braços começaram a golpear a superfície da água, criando ondas na direção de suas companheiras de jogo. As outras duas gritaram e empreenderam um maciço contra ataque de salpicaduras, enviando jorros de água ao redor dela até que acabou parecendo uma imagem emergente em meio de um sonho de bruma.
Ela lançou um chiado de jubiloso protesto. Rindo, deu a volta para responder ao ataque.
Vergil não podia estar seguro de que aqueles grandes olhos azuis viram passar o carro com seus dois atônitos ocupantes. Mas o certo é que ela se deteve, cobriu os peitos com um braço e deslizou a outra mão até o triângulo de sombra que havia justo entre suas coxas. Durante um breve instante antes de dar a volta e voltar a afundar-se na água, adotou a pose da Vênus de Botticelli, uma deusa de rosto adorável e formas luxuriosas, jorrando água, ainda virginal e pudica, mas já amadurecida e apaixonada. Aquela mescla de instinto protetor e desejos eróticos que Vergil experimentou na sala de jogos ressurgiu com força.
Ele e Dante se recuperaram ao mesmo tempo. Endireitaram-se e se afundaram em seus assentos.
Seu irmão o olhou com suspicacia.
—O que era isso?
—Não estou totalmente seguro, mas acredito que era a senhorita Kenwood.
Dante fechou os olhos e apoiou a cabeça contra o respaldo do assento.
—Deixe assegurar que entendi minha posição, Vergil. Tenho que me casar com isso? Tenho que me sacrificar no altar pelo deus da estabilidade financeira e ser forçado a ter como companheira durante o resto de minha vida essa fêmea que acabamos de ver? Uma garota tão especial, estranha e independente que se banha quase nua diante da estrada a plena luz do dia e influência nossa irmã a fazer o mesmo? Você pretendia me coagir, achando necessária a ameaça de retirar minha atribuição? Ela é a noiva que escolheu para mim?
—Sim. —Realmente não havia nada a acrescentar.
Dante manteve sua pose pensativa durante um longo tempo. Seus olhos se abriram. Uma limpa simpatia brilhou neles. Um sorriso muito masculino apareceu lentamente.
—Obrigado.
***
—Muito bem, Pen. Muito bem.
Penelope ruborizou com um tom rosado ainda mais intenso que o que sua pele tinha adquirido enquanto ele explicava sua história.
—Não me jogue a culpa. Não podia imaginar uma coisa assim. Ela foi uma hóspede da mais cortês. Seu comportamento não resultou inapropriado absolutamente. Ao menos até onde eu sei.
Acompanhou esta última observação de uma pequena careta. Penelope era suficientemente inteligente para reconhecer que a escapada desse dia era uma amostra de que ela não conhecia as atividades da senhorita Kenwood em todo seu alcance. Vergil imaginou toda uma série de escandalosos episódios tendo lugar sob o nariz da confiada Penelope.
—Durante sua estadia aqui parecia sentir-se como um peixe na água.
—Dadas as circunstâncias, «como um peixe na água» não é a melhor expressão que possa escolher Pen.
Pen abaixou a cabeça, envergonhada e sem forças ante a acusação. Dante deu uma palmada em seu ombro para consolá-la. Era simplesmente incapaz de imaginar o pior, e era sempre muito pormenorizada.
Bianca Kenwood provavelmente se deu conta em seguida de como era Penelope e tirou vantagem disso.
O que a senhorita Kenwood precisava era uma tia similar a uma velha harpia cheia de caráter que não permitisse desafiá-la, capaz de fazer tremer às moças jovens com seu olhar de aço e cujas estritas advertências provocassem uma imediata submissão.
Desgraçadamente, essa tia não existia.
—Talvez banhar-se assim seja normal na América.
—Por favor, Pen.
—Falarei com ela, e darei em Charlotte uma boa reprimenda.
—Não fará tal coisa.
—Pretende fazê-lo em meu lugar? Oh, Vergil, desejaria que não o fizesse. Seu rosto adquire uma expressão muito peculiar cada vez que se menciona seu nome. Suspeito que te vê como o guardião de um cárcere, e se for assim, o pior que pode fazer ao voltar a vê-la é lhe dar uma lição de comportamento…
—Não direi uma palavra sobre este assunto. Ninguém o fará. E tampouco a Charlotte. Mencioná-lo seria admitir que Dante e eu fomos testemunhas do ocorrido. —Não se atrevia sequer a contemplar a ideia dessa confrontação. Reconhecer o fato suporia ter que confrontar uma embaraçosa e difícil… Intimidade— Não temos mais remédio que ignorar o que aconteceu. Falarei com Charlotte em termos gerais para evitar que se deixe influenciar.
Dante se uniu a eles, com aspecto de estar contente e sentindo-se mais fresco ao mudar de roupa. Levava um traje delicioso perfeitamente engomado. Seu rosto estava cheio de espera sob seus cabelos cuidadosamente despenteados, um pouco compridos como marcava a moda romântica.
—É muito amável por sua parte se reunir conosco durante uns poucos dias — disse Penelope, levantando-se para lhe dar um beijo.
—Às vezes posso sentir falta da família, Pen. De fato, é provável que fique pelo menos uma semana. Sim, ficarei uma semana. —A piscada que lançou a Vergil fez com que Penelope franzisse o cenho com curiosidade.
Vergil devolveu um olhar reprovatório. Penelope não sabia nada a respeito dos planos que eles tinham em relação à senhorita Kenwood. Além disso, por alguma razão, a confiança em si mesmo que demonstrava seu irmão o irritava.
—Uma semana inteira? Isso é maravilhoso, Dante, e muito amável por sua parte. Sei quanto odeia o campo se não houver um bom esporte.
—Bom, Pen, há esportes e logo há esportes. Disseram-me que Verg comprou um novo cavalo que precisa domar e me senti obrigado a ajudá-lo, já que tenho tão boa mão com os animais e é, além disso, um presente para mim.
—Um cavalo novo? Vergil, não me disse nada.
—Chegará dentro de uns dias — murmurou ele. Que inteligente por parte de Dante. Desfrutar da metáfora e de passagem sair ganhando um cavalo. Não era uma metáfora tão má. A senhorita Kenwood tinha um ar menos de inacabada que de indômita. Era típico de Dante que tivesse fichado uma mulher em poucos segundos a uns sessenta metros de distância, e se deleitava no desafio que o estava esperando. Não era assombroso que parecesse tão insuportavelmente feliz.
A égua em questão se uniu a eles ao final de pouco tempo, chegando junto a Charlotte acompanhada de um fraco rangido de anáguas. Charlotte estava tão encantadora como de costume, sua elegância de magro salgueiro ainda ficava suavizada por sua inocência infantil. Junto ao cabelo negro, a pele branca e o vestido rosa pálido de Charlotte, Bianca Kenwood exalava um ar de senhorita de campo.
Seu vestido azul era um pouco antiquado e pouco atrativo. Sua pele tinha um bronzeado fora de moda, mas a ideia que fez de sua irrepreensível beleza foi acertada. Seu cabelo loiro dourado estava recolhido em um simples coque que enfatizava sua feminina, mas firme mandíbula destacando o contorno da parte inferior de seu rosto, com forma de coração. Dificilmente se ajustaria à definição de beleza da moda, mas possuía uma formosura singular, transbordava saúde e se movia com uma elegância amadurecida.
Dante a estudou com olhos calculadores durante um breve instante antes que Penelope o chamasse para apresentá-lo. Esse exame fez com que Vergil se sentisse incômodo. De repente se sentia sujo por aquele negócio. Ridículo. Semelhantes acertos se faziam todo o tempo, e frequentemente com menos sutileza.
Dante avançou para sua presa. Seu êxito com as mulheres estava mais no magnetismo do que na perseguição. Certa dama confessou uma vez a Vergil que quando Dante olhava uma mulher nos olhos esta se sentia como se ele pudesse ler sua alma e seus cuidados a deixavam sem respiração.
Se fosse assim, pelo visto a alma de Bianca Kenwood não era fácil de observar. Respondeu à saudação de Dante com soltura e não pareceu ficar sem respiração absolutamente. Vergil não pôde deixar de admirar seu aprumo, apesar de que o plano seria que ela caísse apaixonada por Dante a primeira vista.
—E recorda Vergil — acrescentou Penelope rapidamente, fazendo um gesto em sua direção.
—Dificilmente poderia esquecer o senhor Duclairc. Estou encantada de voltar a lhe ver. Possivelmente antes que se vá possamos ter uma conversa.
—É obvio, se assim o deseja.
Oh, desejava-o. Esteve guardando palavra após palavra há duas semanas. Dificilmente poderia ter enterrado seu ressentimento ante a imperiosa intromissão que a enviou até ali.
Deu-se conta de que o estava olhando com raiva, e de que todo mundo estava observando que o fazia.
—Está encontrando agradável sua estadia aqui? —perguntou Dante, guiando-a para o sofá.
—Muito agradável, obrigado.
Sentou-se ao lado dela, dedicando toda sua atenção. Era um homem bonito, mas um pouco delicado em suas formas e em seu rosto, como se Deus, ao esculpir os ossos de seu irmão mais velho tivesse esgotado seus melhores materiais e tivesse logo que arrumar-se com o resto. Formosos olhos marrons a contemplavam sob uns volumosos cílios. Uma faísca de familiaridade um tanto inapropriada brilhava neles.
Sim, eles as viram. Discutiu isso com Charlotte que não havia ninguém olhando no carro que passava. Em realidade, por um momento acreditou ver uns rostos espionando-a, mas ao comprovar que ninguém dizia nada horas depois de sua volta, simplesmente supôs…
—Assim leva o nome do poeta italiano — disse, sentindo-se muito desconfortável ante a ideia de que Vergil Duclairc a tivesse visto virtualmente nua. Curiosamente, o fato de que aquele seu irmão também a tivesse visto não importava muito.
—Foi uma desafortunada ideia de meu pai. Dava-se ares de poeta épico e pôs em seus filhos os nomes dos melhores. Nosso irmão mais velho se chamava Milton.
—Podia ter sido pior. Podia ter escolhido os nomes dos herois em lugar dos nomes dos autores.
Charlotte riu.
—Teria sido horrível. Ulisses, e Eneas e coisas assim.
—Ou poderia ter se motivado pelas histórias de Camelot que mais tarde o fascinaram tanto — acrescentou Dante— Lancelot, Gawain e Galahad.
Brincaram com aquela ideia durante um momento, e Penelope se uniu a eles. O homem que permanecia junto à janela não o fez, mas Bianca notou que seguia as brincadeiras com maior interesse do que seus olhares ocasionais pareciam revelar.
Podia ver seu adversário claramente de sua posição. Possuía uma figura refinada, era alto e magro, mas seus ombros e suas pernas sugeriam mais força da que era claramente visível. Naquele momento não tinha um olhar de desgosto, sim, era bastante bonito com seus ossos marcados, como cinzelados com certa aspereza. Seus olhos azuis surpreendiam penetrantes sob suas sobrancelhas escuras.
Eram penetrantes agora, que acabavam de descobri-la olhando-o. Ela dirigiu sua atenção a Dante, conseguindo —ou ao menos assim esperava— não ruborizar-se. Tinha a incômoda sensação de que durante aquele olhar o visconde estava recordando o que viu no lago.
Dante acabava de dizer algo. Ela respondeu com uma pergunta, retornando incômoda ao bate-papo banal típico da casa.
—E você o que faz?
Enfrentou-se a um silêncio total.
—Fazer? —repetiu Dante depois de contar até dez.
—Seu irmão é um membro do Parlamento, conforme entendi. Qual é sua ocupação?
Charlotte riu. A mandíbula de Vergil parecia mais rígida que de costume, mas uma faísca de brilho apareceu em seus olhos quando deu a volta para prestar toda a atenção em seu irmão.
Dante sorriu.
—Sou um cavalheiro.
—Jamais sugeriria o contrário, mas qual é seu emprego?
—Quando meu irmão diz que é um cavalheiro não está evitando sua pergunta, senhorita Kenwood. Está respondendo — explicou Vergil.
Em outras palavras, ser um cavalheiro significava que não tinha um emprego remunerado. A refinação do homem que havia a seu lado de repente pareceu tão estranha como os índios que viu em uma ocasião quando sua mãe percorria os povos próximos à fronteira. Era outro exemplo do que tia Edith queria dizer quando a advertiu que encontraria aquele país familiar em certas coisas, mas muito estranho em outras.
—Sem dúvida terão cavalheiros nos Estados Unidos — disse Penelope.
—Temos homens de grande riqueza e posição. Há fazendas tão grandes como esta. Mas um homem que não trabalha… Enfim, é considerado como quase pecaminoso.
Imediatamente desejou não tê-lo expresso dessa forma, embora pensasse que tanta indolência era uma evidência de uma séria falta de caráter. Não desejava insultar aquelas pessoas, com três das quais não teve nenhuma discussão.
A única com quem sim teve uma discussão rompeu o incômodo silêncio.
—Que pitoresco. Mas afinal de contas, seu país é ainda jovem.
Vindo de qualquer dos outros o teria deixado passar.
—A velha Inglaterra está aprendendo que há força na juventude.
—Refere-se a nossa última guerra. Uma escaramuça menor. Teria acabado de modo distinto se Napoleão não nos tivesse deixado tão ocupados.
Por alguma razão, com muita dificuldade, ela conseguiu manter um tom civilizado.
—Meu pai morreu nessa escaramuça, senhor Duclairc.
Fez-se outro silêncio tenso. Penelope sorriu fracamente e se levantou.
—Por que não pensamos em comer?
Dante tentou monopolizar a atenção de Bianca durante o almoço. O visconde não falou muito. Em várias ocasiões em que deu uma olhada o surpreendeu esquadrinhando-a, como se estivesse se perguntando o que era o que tinha diante. Nada mais que problemas, ela gostaria de advertir. Realmente deveria me enviar de passeio de uma vez por todas.
Ela estava decidida a abordá-lo depois do almoço para esclarecer coisas, mas Vergil se retirou, depois de desculpar-se, logo que voltaram para a sala de estar. Dante, entretanto, ficou unindo-se a elas para jogar cartas.
O moço elogiou o jogo de Bianca mais do que seu talento merecia. A familiaridade crescia com o passar das horas e os sorrisos de Dante começaram a adquirir uma calidez perturbadora. Ela começou a suspeitar que Vergil a estava evitando e usava Dante para distraí-la.
—Onde está o visconde? —acabou perguntando a Charlotte— Talvez goste de me substituir.
—Estará na biblioteca, suponho. Ou em seu escritório.
Bianca se levantou.
—Me desculpem. O convidarei a unir-se a nós.
Não esperou que dessem permissão; atravessou a sala de estar e se encaminhou pelo corredor para a biblioteca.
Ele estava ali, sentado ante o escritório examinando uns papéis. Levantou a vista ao ouvi-la entrar e ficou de pé.
—Parece surpreso em me ver. Cometi um engano? Supõe-se que devia ter pedido uma audiência? —perguntou.
—É obvio que não. Supus que meu irmão e minhas irmãs a manteriam entretida toda à tarde, isso é tudo.
—As cartas não me divertem muito tempo se me dão de presente todas as mãos. Se estivéssemos jogando por dinheiro, a esta altura já teria ganhado toda a fortuna de seu irmão. Decidi dar um descanso a seu orgulho e generosidade.
—Somente está tentando fazer com que se sinta bem recebida. Entretanto, me alegro de que tenha me procurado. Quero me desculpar por meu imprudente comentário na sala de estar. Devia ter tido em conta a possibilidade de que tivesse sofrido nessa guerra. Não pretendia menosprezar o sacrifício de seu pai.
A sinceridade com que se expressou a deixou desarmada. Não parecia tão severo como de costume.
—Possivelmente agora entenda por que não desejo prolongar muito minha visita a este país, senhor Duclairc, e por que não quero formar parte da sociedade para a qual sua irmã tenta me preparar. Queria retornar a Londres o antes possível para me ocupar de meus assuntos.
—A guerra terminou faz tempo, senhorita Kenwood. Nossos países voltam a ser amigos. Quanto a seus assuntos, estou me ocupando deles em seu lugar — disse esse último com um firme sorriso que parecia indicar que considerava pouco recomendável dirigir a conversa nessa direção.
—Está me convencendo de que cometi um engano vindo à Inglaterra. Deveria ter seguido minha primeira inclinação e dizer ao senhor Williams que vendesse os investimentos que herdei.
—Isso não pode fazer-se. A maior parte de seu patrimônio pertence a um fundo de investimentos. A menos que se faça uma solicitação ante o tribunal de Chancery, o qual é um processo muito longo que levaria anos, é impossível romper os termos desse fundo de investimentos.
—Isso ele me explicou. Minha segunda ideia foi então arrumar as coisas para que me enviasse a renda a Baltimore.
—E por que não o fez? Especialmente tendo em conta que nos acusa de está-la prejudicando.
—Como expliquei em Londres, tinha razões para vir.
—Sim, suas aulas de ópera. —Seu tom transmitia o alívio que sentia ante o fato de que esses planos tivessem fracassado.
Mas necessitaria mais que a desaprovação daquele homem para fazê-los fracassar de tudo. Esses planos continuavam vivos, e ela estava desesperadamente impaciente por fazê-los progredir.
—Sejam quais sejam minhas razões, estou na Inglaterra por um curto período de tempo e tenho interesses que não podem ser satisfeitos enquanto permaneça nesta casa. Não aceito sua intromissão. Não necessito um guardião.
—Tendo em conta como a conheci, acredito que é óbvio que sim o necessita. E hoje não tem feito nada que possa me fazer mudar de ideia.
Estava se referindo ao lago. Em realidade não houve nenhuma mudança em sua expressão, mas aquele provocador murmúrio formou redemoinhos entre eles. Entrou no corpo de Bianca fazendo que seus membros estremecessem. Sim, a viu com aquela roupa empapada. E apesar de sua aparência desapaixonada, naquele momento estava vendo-a outra vez.
Por um instante, em seus olhos se acendeu um brilho que indicava que ele era consciente de que ela sabia. Esse reconhecimento acrescentou um matiz perigoso a sua masculinidade. De repente ela se sentiu em desvantagem e teve que lutar para recuperar sua indignação.
—Não consigo compreender por que você insiste tanto em complicar a minha vida.
—O testamento de seu avô cedia a responsabilidade ao visconde Laclere. Ia destinado ao meu irmão, mas dado que não mudou o testamento depois da morte de Milton, me corresponde. Eu não evito meus deveres, não importa quão problemáticos possam chegar a ser.
—Eu o libero de seu dever. E agora peço que me permita partir para Londres amanhã pela manhã.
—Não.
Ela esperava ouvir algo mais, mas nada mais foi acrescentado. Aquela palavra foi sua única resposta. Não.
Ela o observou, procurando o modo de ganhar aquela estúpida batalha. Devolveu o olhar como um general que é consciente da superioridade de seu exército.
Ela deu a volta. Em uns poucos dias esperava que chegassem seus reforços. Morria de impaciência por jogá-los contra ele.
—Senhorita Kenwood, se você voltar para a sala de estar, tenha a amabilidade de dizer a Charlotte que venha ver-me antes de retirar-se.
***
Bianca subiu a escada e deu uma volta através da enorme casa de estilo gótico até chegar a seu quarto. Era o dormitório mais longo e luxuoso que jamais havia usado, com um espelho emoldurado em ouro e móveis de madeira belamente esculpidos. Jane se aproximou dela para começar a desabotoar o vestido, ao mesmo tempo em que mexericava a respeito dos criados e arrendatários. Aquele mundo mais vulgar soava mais interessante que esse outro no que Bianca passou seus últimos dias.
As últimas duas semanas pareciam dois meses. Davam passeios. Arrumavam as flores. Trocavam visitas com vizinhos que ela não conhecia. Falavam sobre moda e sobre quem era quem na alta sociedade. Tudo enquanto Pen instruía à americana selvagem para ensiná-la a expressar-se e comportar-se adequadamente na Inglaterra.
Bianca chegou ao ponto de invejar os criados ocupados em polir a prata. Finalmente teve algumas ideias para romper a monotonia.
Charlotte apareceu justo quando Bianca já vestia sua bata. Teve um pequeno bate-papo com seu irmão.
—Não disse nenhuma palavra sobre o lago. —subiu à cama de um salto enquanto Jane começava a escovar o cabelo de Bianca— Em realidade o que queria era falar de você.
—De mim?
—Perguntou o que esteve fazendo. Não o disse dessa forma, claro. Quis saber se estava contente e com o que se entretinha.
«O maldito intrometido…»
—Acredito que sabe o do lago e joga a culpa em você, e quer saber se tem estado fazendo alguma outra coisa escandalosa.
«Maldito arrogante, pretensioso…»
—Depois me deu um sermão. Explicou que me criaram de um modo diferente e permitiram a você mais liberdades do que era apropriado, e que eu não devia me deixar influenciar por você e fazer coisas que não fossem apropriadas. Contei ao menos dez vezes a palavra «apropriado» antes que terminasse. Prometi a ele que me comportarei de maneira muito correta enquanto esteja aqui. —Charlotte sorriu— Acredito que tem ao santo de meu irmão muito preocupado.
Bianca não sabia o que dizer. Foi criada de um modo distinto, e permitiram mais liberdades das que Charlotte jamais chegaria a conhecer, mas não havia nada inapropriado nisso, tão somente pouco convencional, inclusive tendo em conta os costumes americanos. Além disso, ela planejava uma vida destinada a ser pouco convencional, mas não inapropriada, apesar de que Vergil Duclairc assumisse o contrário.
Charlotte se recostou na espaçosa cama.
—Estou encantada de que Dante veio nos visitar. Não o faz frequentemente. Prefere Londres. —Levantou o olhar com astúcia— Se supõe que não sei, mas acredito que tem uma amante ali. Este último ano venho intuindo que meu irmão é um pouco canalha. Você o que pensa? Acredita que Dante é um mulherengo?
—Não saberia dizê-lo — respondeu Bianca, embora adivinhasse que Dante era um autêntico mulherengo. Pensou, além disso, que aquele mulherengo a viu virtualmente nua e que passou a tarde lhe dirigindo intensos olhares e calorosos sorrisos.
—Sempre pensei que Vergil poderia parecer um bom mulherengo também, sempre e quando alguém não o conhecesse. Tem aspecto de ser, mas claro… Ele é tão correto. Esteve cortejando Fleur durante um ano e nunca o vi fazer nada mais que lhe tocar a mão.
Bianca ouviu falar da perfeita, etérea e saudável Fleur, que supostamente era a prometida de Vergil. Logo esperavam uma visita dela e de sua mãe.
Bianca não tinha intenção de seguir ali quando viessem.
—Charlotte, esta é a única propriedade que tem sua família?
—Há outras aqui em Sussex, mas ninguém as visita salvo Vergil. Não estão em muito bom estado. Papai não cuidou bem de algumas coisas. Estava tão ocupado com seus escritos e depois com a reconstrução desta casa. Vergil tem também um imóvel no norte. É sua parte da herança de nossa mãe.
—Vivem alguns parentes nesses outros lugares?
—Não há mais parentes ali, ou ao menos não há parentes dos que estejamos perto. Papai tendia a encerrar-se e perdemos o contato com eles enquanto vivia. Milton também era um pouco estranho. Vergil não é o menos excêntrico, e não reavivou os laços.
Não havia parentes próximos. Nenhuma tia, nem prima que pudesse fazer cargo de uma pupila errante.
—Acredito que meu irmão gosta de você — disse Charlotte.
«Que irmão?» Bianca reprimiu a impulsiva pergunta antes que saísse de sua garganta, surpreendida pelo sobressalto de excitação que a acompanhou.
—Estou segura de que simplesmente se sentia obrigado a me entreter.
—É muito estranho que Dante se sinta obrigado a fazer algo. Deixou-te ganhar nas cartas e não parou de te sorrir.
—Equivoca-se, mas se estiver certa e é um mulherengo, dificilmente poderia me sentir adulada.
—Oh, não tem que preocupar-se por isso. Sabe que é a protegida de Vergil e nossa convidada. —deslizou da cama— Será melhor que vá dormir. Dante nos levará a um passeio amanhã. Será divertido. É um perito com o látego e sempre conduz muito rápido.
—Também nos acompanhará o visconde?
—Não se preocupe, não vai danificar nossa diversão. Quando nos levantarmos, ele já viveu um dia completo. Levanta-se a alvorada, para ocupar-se dos assuntos da fazenda.
Quando Charlotte se foi, Bianca se sentou sobre a cama abraçada a seus joelhos.
Assim Vergil Duclairc se preocupava que a senhorita Kenwood pudesse supor uma má influência para sua irmã. Advertiu Charlotte que tomasse cuidado. O que faria aquele santo se chegasse a convencer-se de que a senhorita Kenwood não só era um pouco diferente, mas também muito pouco convencional e inclusive algo selvagem?
Não haveria outros parentes a quem enviá-la e resultaria muito perigoso tê-la ali. Não haveria mais remédio que romper todos os vínculos sociais e deixá-la seguir seu caminho. Seria a única decisão responsável para um irmão responsável.
Se asseguraria de que esse visconde concluísse que sua presença e influência naquela casa era totalmente inaceitável.
—Jane, quero que tome emprestados para mim alguns objetos dos criados. Dos homens concretamente.
Capítulo 3
Vergil pegou as botas limpas que oferecia Morton e as pôs. Aceitou o linho engomado e com destreza atou seu lenço com um nó conservador. Morton lhe sustentava o traje negro de montar.
Esses preparativos matinais eram uma rotina tanto em Laclere Park como em Londres, e Vergil os seguia de forma instintiva enquanto organizava em sua mente seus planos e deveres. Continuava se surpreendendo que não tivesse nenhuma dificuldade em abandonar certos detalhes ou hábitos quando as circunstâncias o requeriam.
Mal tinha amanhecido quando saiu pela porta e caminhou através do rocio até o estábulo. Preferia aquele silêncio, aquela solitária forma de cavalgar para romper o dia antes do circuito oficial que teria que fazer mais tarde com seu agente imobiliário. Era um dos poucos hábitos que tinha conservado de seus anos livres como segundo filho. Às vezes recuperava aquela crença juvenil nas oportunidades sem limites que permitiu então sua insignificância. Podia simplesmente ser, não o senhor vigiando seus domínios, a não ser unicamente um homem que cavalgava através do campo, admirando sua beleza e sonhando ao ritmo da vida.
Do estábulo chegavam sons. George, um moço do estábulo ruivo e rechonchudo, ria enquanto um moço mais jovem vestido com calças de montar e chapéu de palha murmurava alguma coisa. Juntos ajustavam as bridas a uma égua de cor castanha.
George ouviu as pisadas de Vergil e se virou ruborizado.
O menino mais jovem simplesmente ficou rígido. Vergil notou algo familiar naquelas costas esbelta, e se precaveu da forma peculiar em que as calças se esticavam sobre a curva das nádegas. Viu aquelas formas antes, emergindo nuas da água.
—Senhorita Kenwood, vejo que você também cavalga cedo.
Ela se voltou despreocupadamente, como se ninguém devesse se surpreender de encontrá-la nessa situação por usar calças de montar todos os dias. Talvez fosse assim. Quem podia sabê-lo? Pen, Charlotte e Dante provavelmente não sairiam de seus quartos até meio-dia.
—Pensei que seria agradável sair para cavalgar pela manhã. —Ajustou o freio como alguém que sabia o que estava fazendo.
—George se ofereceu a te acompanhar? Que cavalheiresco por sua parte.
—Tinha intenções de cavalgar sozinha.
—Bom, não podemos permiti-lo a uma hora tão inoportuna. Entretanto, pode cavalgar comigo. —Examinou a égua— Cometeu um engano, George. Se este animal for para a senhorita Kenwood, necessitará uma cadeira de mulheres. Depois pode preparar meu cavalo. Esperaremos fora.
Bianca caminhou para o pátio com ele. Ele retrocedeu um pouco na luz chapeada da manhã e percorreu um metro e sessenta e cinco de moléstia com seu olhar.
Sua camisa de algodão formava uma bolsa em torno de seu corpo, mas mesmo assim revelava o inchaço de seus peitos. As calças de montar penduravam folgadas de suas coxas até as botas, onde se introduziam, mas não eram folgadas em nenhum outro lugar. O chapéu de palha sobre sua testa enfatizava seus olhos.
Tinha todo o aspecto de uma mulher provocadora e de má reputação.
Caminhou para frente e golpeou a perna com o látego. O ligeiro picor o distraiu do impulso de… Nada que pudesse contemplar e sem dúvida nada que pudesse nomear.
—George demorará a preparar os cavalos. Volta para seu quarto e troque de roupa.
Ela baixou as pálpebras ante aquela ordem. Ele esperava que ela resistisse. Que demônios faria ele então? Ninguém debaixo de sua autoridade nunca o havia desafiado, e menos uma mulher. Por sorte, ela deu a volta e caminhou a grandes pernadas em direção à casa.
Ele retornou ao estábulo.
—A senhorita Kenwood cavalga sozinha frequentemente? —perguntou ao George.
George deu de ombros.
—Só estas últimas manhãs, milord. Ouvi um ruído aqui a semana passada e a encontrei selando essa égua, por isso a ajudei.
—E sua indumentária?
—Chegou com essa roupa esta manhã. Tem sentido, porque sempre cavalga escarranchada. É uma boa pessoa, só que com uma mentalidade um pouco livre para este lugar. São diferentes, os americanos. Falam como se o conhecessem de toda a vida. —inclinou-se para revisar uma ferradura.
—Sim, são diferentes. Não me deixe suspeitar que interpretou mal essa familiaridade.
George lançou um olhar de horror como se a insinuação fosse muito escandalosa para ser considerada. Vergil pegou as rédeas da égua e a levou até o pátio.
A senhorita Kenwood saiu da casa justo quando George tirava fora o cavalo castrado de Vergil. Levava uma bata de montar violeta de corte austero e com poucos adornos. Sobre seu penteado formal se encarapitava uma alta cartola, cuja borda roçava suas sobrancelhas.
—Onde tinha planejado cavalgar? —perguntou ele assim que estiveram montados.
—Oh, simplesmente queria dar um passeio pelos arredores.
Ele a conduziu através do parque. Ela não deixava de queixar-se por sua posição na cadeira de montar. Escorregava por ambos os lados olhando as pernas com o cenho franzido.
—Não está acostumada a isto?
—Não vivia nas margens da civilização. Também em Baltimore as mulheres fazem coisas horríveis e perigosas.
—Ali cavalgava escarranchada?
—Sim. —Olhou-o com atitude desafiante, depois sorriu de maneira zombadora— Tia Edith me proibia montar à inglesa a menos que avançasse a passo de tartaruga, e eu não me sentia inclinada a fazê-lo. Ela sabia de muitas mulheres que caíram da cadeira de montar quando cavalgavam rápido.
—E como reagia as pessoas quando cavalgava escarranchada através da cidade, com calças de montar e com botas?
—Se não fosse à sobrinha-neta de tia Edith, alguns teriam se escandalizado. Ninguém se atreve a atacá-la. Quando era moça participou ativamente em nossa guerra da Independência. Conhece todos os grandes homens daquela época. Se um presidente fizer visitas a uma mulher, ninguém se atreve a criticá-la muito.
—Parece uma mulher muito interessante. É uma lástima que não tenha te acompanhado nesta viagem.
—Se não fosse à idade, o teria feito. Estaria agora ali atrás, exortando George para que compreendesse que ele é igual aos outros moços e não deveria curvar-se ante ninguém.
—A Inglaterra não necessita radicais importados. Estamos criando muitos de produção própria. E não é que George se encurve. Retrocedeu porque sabe que levanta suspeitas sobre um homem o fato de que esteja a sós comportando-se de maneira tão familiar com uma dama jovem, especialmente a uma hora como essa.
—Já vejo. Entretanto, você é um homem e agora está a sós comigo, não? Isso é suspeito?
A insinuação o deixou desconcertado. O sorriso zombador da senhorita Kenwood era um indício de que não se achava ante uma escolar ingênua que permanecia ignorante sobre o que podia ocorrer entre um homem e uma mulher juntos e sozinhos durante horas.
—Sou seu tutor. É como se fosse seu pai.
Ela se pôs a rir a gargalhadas, melodiosas como o timbre de sua voz.
—Que o céu me ampare, senhor Duclairc. Com um pai como você teria me convertido na mais aborrecida das mulheres.
—Quer dar a entender que os pais aborrecidos criam filhas aborrecidas?
«Está insinuando que sou um homem aborrecido, uma espécie de bagagem molesta?» O desejo de demonstrar até que ponto podia deixar de ser aborrecido penetrou em sua mente desde que a tinha visto no estábulo.
—Não, senhor. Simplesmente acredito que os pais estritos criam filhas de mente muito estreita.
—Concluo que sua educação, menos ortodoxa, salvou-te de ter uma mente estreita.
Ela posou seus grandes olhos azuis nele durante um momento, observando-o como se fosse capaz de ver as noites e inapropriadas imagens que avançavam sigilosamente em torno das bordas de sua mente ao aludir impulsivamente essa indiscreta questão. O impacto daquele olhar nu foi tão assombroso como se ela acabasse de acariciar sua coxa.
—Tive experiências no mundo, senhor Duclairc, e por isso minha mente não é estreita. Quando meu pai morreu, minha mãe teve que manter-se e me manter, por isso voltou a cantar. Eu tinha onze anos então, e durante os seis anos seguintes vivemos uma vida errante, viajando uma grande parte do ano.
«Experiências no mundo.» Bianca devia ter dezessete anos ao morrer sua mãe, uma garota bonita viajando na companhia de uma mãe cuja profissão sem dúvida implicava tratar com homens.
—Minha opinião teria sido que o acertado seria te deixar com sua tia, em vez de te arrastar por cidades e povos estranhos.
—Ah, sim? Essa teria sido sua opinião? —Ela estava sugerindo que ele era tão previsível que essa opinião não a surpreendia absolutamente— Eu não teria insistido em ficar, não depois de perder meu pai. Minha mãe necessitava alguém que cuidasse dela. Não era uma mulher muito prática. Tocava-me assegurar que chegasse de um lugar a outro.
—Um estranho papel para uma menina.
—Não fui menina por muito tempo, e não é que estivesse planejado que me encarregasse dessas coisas. Simplesmente o fazia porque ela era muito torpe organizando as viagens.
«Não fui menina por muito tempo.»
—A vida deveria ser muito aborrecida quando foi viver com sua tia.
—Estava preparada. A morte de minha mãe acabou com minha vitalidade, e precisava estar um tempo instalada em um lugar para pôr as coisas em seu lugar. Só quando tia Edith contratou para mim um professor de música comecei a recuperar meu estado normal.
Vergil imaginava. Aquela menina precoce com sua mãe caprichosa, organizando o valor a ser pagos pelos concertos nas Igrejas e nos pequenos povoados. Os papéis estariam invertidos e aquela pequena garota loira se encarregaria de negociar pelo transporte e de administrar os recursos, emocionante, possivelmente, e sem dúvida uma experiência que a faria amadurecer.
Entretanto, não era uma infância normal. Não teve horas de brincadeiras despreocupadas e, provavelmente, tampouco teria amigos. Sem mais amparo, nem segurança que a que ela mesma pudesse procurar. Sentiu certa compaixão por ela e admirou sua força, apesar de que essa força prometesse ser um inconveniente.
Seu passeio distraído os levou até a parte sul do lago e deram a volta para retornar. A senhorita Kenwood parecia irritantemente indiferente ante o fato de achar-se no mesmo lugar onde no dia anterior foi tão indiscreta.
—Nossa família viveu aqui desde o tempo dos normandos — explicou ele, decidindo que devia impressioná-la com a história da família e prepará-la para os cuidados de Dante— Tanto nosso nome como o da fazenda provêm destas águas. «Lago claro.» Duclairc é uma junção de du clair lac, igual é Laclere.
—Tempos dos normandos. Naqueles tempos, os antepassados dos Kenwood provavelmente viviam em cabanas.
—Bom, o dinheiro tem seu modo de nivelar essas diferenças.
—Que ideia tão democrática, senhor Duclairc. Quase americana.
Ele entrou pelo caminho que conduzia para as granjas.
—Pode parar com isso. Já foi suficiente.
—Parar com o que?
—Senhor Duclairc.
—Não pretendia ofender. Tia Edith me fez prometer que não faria reverências a nenhum aristocrata, nem sequer ao rei.
—Seus diplomatas se adaptam aos costumes quando vêm a este país, como o fazem a maioria dos visitantes.
—Eu não sou uma diplomata. E tia Edith…
—Sim, sim, a revolução e tudo isso. Se se dirigir a mim como lorde Laclere conjura o fantasma de Washington, pode me chamar simplesmente Laclere.
—Que generoso por sua parte. Então possivelmente você poderia me chamar Bianca.
Ele preferiria não fazê-lo. Certamente. Inclusive aquela vaga familiaridade com essa jovem estava provocando sensações muito incômodas. Ela era sua pupila e logo poderia chegar a converter-se na esposa de seu irmão, e ele a encontrava exasperante, para falar de um modo delicado. Ao mesmo tempo, um atrativo e desconcertante fogo crescia em seu interior. Borbulhas em ebulição rompiam de vez em quando a superfície, pequenas explosões que não estava disposto a aceitar debaixo daquelas circunstâncias. Sob nenhuma circunstância. Chamá-la Bianca unicamente obteria que outra dessas borbulhas estalasse ao pronunciar seu nome.
—Acredito que isso seria muito familiar.
—Bom, então possivelmente Laclere também seja muito familiar. —Ela inclinou a cabeça— Já sei. O chamarei tio Vergil. Apesar de que disse que o fato de ser meu protetor o converte em uma espécie de pai, dizer «papai» soaria ridículo.
«Tio Vergil, por Deus.» Ele conseguiu olhar por debaixo da asa de seu chapéu e captou um fugaz sorriso. Estava brincando com ele deliberadamente e ele continuava mordendo a isca.
O pior era que suas provocadoras ambiguidades e seus olhares oblíquos a deixava com um ar mundano que tornava implacável aquele fervor que ele sentia.
—Tio Vergil, estamos perto da fronteira com Woodleigh?
—Está justo ao outro lado dessa colina. Pode ver a casa dessa cúpula. Você gostaria de subir?
Ela aceitou. A Vergil não passou despercebido que ela soube como encontrar o caminho mais simples sem necessidade de sua ajuda.
Bianca chegou até o topo da colina de onde se divisavam os principais campos de Woodleigh. A distância conseguiu ver a imponente mansão de inspiração clássica que Adam Kenwood construiu.
—É muito grande, não?
—Sim.
Ele respondeu em voz baixa, mas ela pôde ouvir um deixe de desaprovação. Muito grande. Muito. Essa enorme massa resultava vulgar, especialmente para alguém que acabava de ser renomado barão. Sua condição de novo rico se deixava ver dos alicerces até as chaminés. Vergil deveria ser amigo de Adam, ou do contrário seu avô não o teria renomado seu tutor, mas ao que parece isso não liberava aquele velho comerciante do julgamento desse aristocrata cuja linhagem se remontava à época dos normandos.
Ela não lamentava aquela censura. De fato, agradava-a. Embora Adam Kenwood tenha deixado em herança uma fortuna, ela o odiava de todos os modos. Se tivesse legado aquela casa a ela, a teria feito arder até seus alicerces. Ela sabia que ele cometeu um grande pecado, e não cabia dúvida de que muitos outros tinham escurecido sua vida.
Bianca baixou a colina a meio galope até os campos. Vergil chegou até seu lado quando se deteve frente à casa.
—Me ajude a desmontar, por favor.
—Senhorita Kenwood, seu primo herdou esta propriedade, e ainda não retornou da França. Deveria esperar que ele se instalasse aqui antes de fazer uma visita. A casa esteve fechada durante meses, e unicamente há uns poucos criados cuidando da propriedade.
—De fato, meu primo retornou há uma semana. Me ajude a baixar ou saltarei de um modo nada elegante.
A ajudou a descer do cavalo.
—Pretende entrar, verdade?
—Pode ser que Nigel, meu primo, tenha obtido a casa e as terras, mas os objetos privados de meu avô me pertencem. Quero ver como estão. Assim que explique quem sou e quais são meus direitos os criados me deixarão fazê-lo.
Ele aceitou sua decisão mais rápido do que ela esperava, e conseguiu que os deixassem entrar. Uma vez ali a acompanhou até o escritório de Adam Kenwood.
Bianca se deteve no centro da estadia e respirou o aroma da presença de seu avô. Um piso de madeira cobria a parte baixa das paredes, e um enorme escritório estava posto de lado em um canto. Havia prateleiras com pastas e grandes livros, mas outros documentos tinham sido amontoados em embalagens de madeira que se alinhavam ao longo de uma parede e rodeavam um pequeno baú.
Ela notou que Vergil a contemplava da soleira.
—Você o conhecia bem? —perguntou ela.
—Antes de construir Woodleigh tinha uma relação de amizade com meu irmão mais velho, Milton. Depois da morte de Milton, cheguei a conhecer Adam bastante bem.
—Nisso me leva vantagem. Eu sabia que era o avô da Inglaterra, mas meus pais nunca falavam dele. Ao me fazer maior me dei conta de que esse velho homem permitiu que meu pai vivesse na pobreza enquanto ele acumulava uma enorme fortuna. —Estendeu o braço para assinalar a luxuosa casa.
Vergil entrou na estadia e examinou as gavetas do escritório.
—Seu avô obteve muitos lucros da frota marinha e outros comércios. Durante as primeiras batalhas de Napoleão, seus navios fizeram um grande serviço ao Governo, e o rei lhe outorgou o título de barão. Como a maioria dos homens, ele pretendia que seu filho fosse um cavalheiro e planejava educá-lo para isso. Entendi que seu pai tinha outras ideias e por isso partiu para América.
—Acredito que não foi sua decisão ir a América o que fez que se distanciassem, mas sim a decisão de casar-se com minha mãe. Não era uma esposa adequada para o filho de um homem que lutava para abrir caminho na alta sociedade da Inglaterra.
Ele tirou uma pasta de uma gaveta e a folheou.
—Como já te expliquei, uma profissão como a de sua mãe não está bem vista aqui.
—Suspeito que não esteja bem vista em nenhuma parte. Minha mãe não estava tão má vista em parte por seu parentesco com tia Edith. Além disso, interrompeu sua profissão ao casar-se com meu pai. Ela dava aulas particulares, e ela conseguiu manter a casa com dignidade apesar das circunstâncias. Não foi suficiente para aquele velho homem.
Ele voltou a colocar a pasta em seu lugar e depois de uma inspeção mais atenta extraiu outra.
—Bom, ao final se lembrou de você.
—Desgraçadamente, o final chegou um pouco tarde.
—Ouço um deixe de amargura.
Havia um deixe de amargura. Até ela notou o ressentimento que podia ouvir em sua voz.
—Uma minúscula parte dessa herança teria economizado muitos pesares a minha mãe, e provavelmente até teria salvado sua vida. Morreu de uma febre da qual se contagiou enquanto viajávamos.
Ele levantou a vista da pasta como se ela houvesse dito algo particularmente interessante.
—Já vejo. Assim agora quer se vingar de Adam pela morte de sua mãe, usando sua fortuna para se converter em uma artista como a mulher que ele repudiou.
Aquela acusação lhe fez sentir uma pequena fúria dando voltas em sua cabeça.
—Você frivoliza meu propósito. Aspirava minha carreira como cantora de ópera muito antes de me inteirar dessa herança. —Observou de novo a estadia— Entretanto, agora que o diz, há certa justiça em usar o dinheiro desse homem para me converter precisamente no que ele desprezava.
—Parece mais uma brincadeira pesada que justiça. Antes que desfrute com sua brincadeira deveria te explicar que uma parte do que sabe sobre seu avô se apóia em um engano.
—Que engano?
—Pelo que ele me disse, estou seguro de que não rompeu relação com seu pai. Foi seu pai quem rompeu com ele.
—Não acredito.
—Pode acreditar no que quiser, mas isso era o que Adam recordava.
Aquilo estragou a brincadeira e a justiça. Provocou uma fratura no ressentimento que lhe gelava a alma, aquele ressentimento que tinha crescido em seu coração enquanto contemplava como sua mãe tossia e perdia a vida em uma hospedagem de aluguel nas margens do mundo.
—Disse isso a você só para que não o acreditasse frio e desalmado.
—Minha opinião não lhe importava muito.
—Então mentiu a si mesmo, para poder morrer sem culpa.
—Possivelmente.
Ela observou os documentos que havia na estadia. A verdade provavelmente estaria em alguma parte. Deveria procurar as cartas de seu pai. Inclusive podia haver algumas de sua mãe pedindo ajuda quando enviuvou.
Em realidade não deveria importar o que aconteceu, mas importava. Se ia construir sua vida ao amparo da riqueza daquele homem, queria saber se devia estar agradecida ou brincar com ele enquanto o fazia.
—Há algum modo de saber o que é o que me pertence do que há aqui?
—O advogado separou os papéis. Aquelas gavetas contêm os que são pessoais, enquanto as contas da propriedade estão nas estantes. —Assinalou o pequeno baú— Suponho que o que havia em seu escritório e outras coisas de valor estão ali sob chave.
—Quero ler esses documentos pessoais. Perguntarei a meu primo se posso o visitar e fazê-lo.
—Seria mais conveniente levá-los a Laclere Park. Ali poderá revisar o material a seu desejo. Me encarregarei da transferência.
—Estou segura de que meu primo não se importaria que revisasse os documentos aqui.
—Sim me importaria.
Ela o olhou diretamente aos olhos.
—Não tem sentido mudá-los duas vezes. Esperarei até que possam enviar-se a meu próprio alojamento em Londres.
Lhe devolveu o olhar.
—Não tem alojamento em Londres, e não o terá por muito tempo.
Ela não esperava que fosse tanto tempo, mas ele não se deu conta ainda.
—De acordo, para começar levemos isto a Laclere Park.
Quando abandonaram a casa, ela viu que ele ainda levava uma pasta. Ele notou seu olhar de curiosidade.
—Há aqui algumas cartas de meu irmão. Espero que não te importe que tome emprestada esta pasta para lê-las.
—Absolutamente. —Comoveu-a que quisesse fazê-lo. Era mais sentimental do que ela esperava— Quando seu irmão faleceu?
Ele a ajudou a montar o cavalo.
—Faz menos de um ano.
—Possivelmente haja mais cartas. Quando tivermos todo o material em Laclere Park, poderemos as procurar.
Enquanto passeavam com seus cavalos para os campos, um jovem loiro galopou para eles, saudando com o braço.
Parecia um modelo extraído de uma lâmina de moda, com o elaborado nó de seu lenço, seu alto chapéu de castor e seu moderno casaco.
O jovem desceu de seu cavalo e tirou o chapéu.
—Senhorita Kenwood! Que feliz coincidência vê-la outra vez. Pensar que se tivesse ficado mais um dia em Londres, como tinha planejado não a teria encontrado.
Vergil não se alterou por esse «outra vez».
—Você deve ser Nigel Kenwood, o primo de minha pupila. Eu sou Laclere.
—É um prazer o conhecer por fim, lorde Laclere.
—Teria o chamado se soubesse que residia em Woodleigh. Pensei que ainda estava na França. Minhas desculpas.
Nigel sorriu a Bianca. Pareciam-se um pouco. Seus olhos eram igualmente azuis e seu cabelo igualmente dourado. Um homem bonito decidiu, exceto as expressões de seu rosto sugeriam um temperamento instável.
—Levo aqui só uma semana. Revisar os assuntos de Woodleigh me manteve muito ocupado, mas agora minha vida está se estabilizando.
—Então deve visitar logo Laclere Park. Estou seguro de que as damas estarão encantadas. Há muito poucos rostos novos no campo.
—Obrigado. Farei.
Nigel sorriu de novo a Bianca com admiração. Bianca lhe devolveu um doce sorriso. Vergil sorriu muito fracamente aos dois.
Prestou a Nigel mais atenção da devida.
Graças a Deus Vergil era um homem inteligente. Ela não tinha nenhuma intenção de mentir, só estava semeando nele suficiente preocupação para que decidisse não expor sua influência a doce Charlotte.
Rechaçaram o convite de Nigel a um refrigério e retomaram seu caminho. Vergil se aproximou dela.
—Já tinha conhecido o novo barão. Não o mencionou.
—Não o fiz? Há uns dias cavalguei perto de Woodleigh e o encontrei. Pareceu-me correto parar e falar com ele, já que é meu parente.
—Mostrou-te Woodleigh?
«Entrou na casa? Esteve a sós com ele em sua casa?» A expressão dele permanecia tão cuidadosamente impassível que lhe deu vontade de rir.
—Sim, fez. Era a propriedade de meu avô, assim tinha curiosidade. —Em realidade só tinha visto os jardins, mas se sentiu contente consigo mesma por ter deixado o visconde dando voltas a uma nova ambiguidade.
—Acredito que era sua intenção desde o começo visitar Woodleigh para investigar o escritório de Adam esta manhã. Estou feliz de que tenha podido satisfazer esse desejo.
Ela não acreditava que ele estivesse feliz absolutamente. Parecia estar considerando o que implicava que ela visitasse Woodleigh com camisa e calças de montar sabendo possivelmente que Nigel não estava em Londres.
Ela concluiu que, em termos gerais, aquela manhã de passeio a cavalo tinha sido um êxito.
Tomaram um caminho de volta mais direto. Ela se sentia agora mais segura em sua cadeira de montar de mulher, galopou através do parque e não diminuiu o ritmo quando entraram no bosque. A rosada luz do sol penetrava entre os ramos, criando maravilhosas e imprecisas manchas enquanto ela avançava velozmente. Aquele efeito visual a distraía e se achava despreparada quando de repente, e de forma inexplicável, seu cavalo encabritou de um modo violento.
O entorno seguiu sendo impreciso, mas agora de um modo diferente. O chão e as árvores pareciam dar voltas enquanto ela lutava para recuperar o controle sobre o animal. Este estava como louco e se retorcia parado sobre as patas traseiras. A cadeira de montar não pôde sustentá-la. Caiu ao chão sobre seu estômago e recebeu um impacto que aturdiu seus sentidos.
Ainda mais espantoso foi o peso que imediatamente caiu sobre suas costas e os antebraços que sentia a cada lado de sua cabeça. Vergil estava em cima dela, cobrindo suas costas e sua cabeça com seu próprio corpo. Ela lutou contra ele indignada e abriu a boca para protestar.
Um estalo quebrou o silêncio da manhã. Vergil a pegou pelos ombros com firmeza e lhe deu a volta apoiando-a sobre o barro.
—Vigia seus disparos! —gritou ele encolerizado na direção do som. Com a mão direita apertava os extremos das rédeas e os dois cavalos relinchavam e faziam cambalhotas.
De repente não lhe importou que estivessem ridículos, escancarados juntos desse modo.
—Quem será que disparou?
—Caçadores furtivos, provavelmente procurando faisões. É muito audaz por sua parte usar revólveres em lugar de armadilhas. Só se atrevem a fazê-lo muito cedo na manhã. Estamos a vários quilômetros da casa e eles supõem que as famílias estão ainda na cama.
Ouviu-se um novo estalo. Desta vez ela ouviu um pequeno golpe como o de uma bola, contra a árvore que tinham à esquerda. Os cavalos encabritaram e quase conseguiram soltar-se. Vergil soltou uma maldição e voltou a gritar.
Ele continuava apertado contra ela, com todo seu peso sobre suas costas. Sua respiração fazia cócegas em sua nuca. O tecido de suas mangas roçava brandamente suas bochechas.
Ela não se sentia nada em perigo, a não ser segura e protegida do modo mais quente. A íntima proximidade acendeu nela uma ardente resposta. Respirou seu aroma a sabão e couro, e um estranho bater de asas a percorreu, do coração até o estômago.
—Agora pode entender por que não deve cavalgar a esta hora. É perigoso — disse ele.
—Você vai cavalgar.
—É diferente. —Ela sentia as palavras junto a seu ouvido, como se ele tivesse aproximado ainda mais a cabeça. Tinha-a abraçada contra o chão, o queixo dela se apoiava sobre as folhas e a terra. A cálida brisa de seu fôlego acariciava suas têmporas, fazendo que aquele bater de asas se voltasse furioso.
Ele se elevou, mas sem afastar-se completamente. Permaneceu sobre ela. Algo que não era capaz de nomear vertia dele para ela. Isso a assustou. O bater de asas se fez ainda mais forte e encheu seu peito.
Deu a volta e o olhou diretamente aos olhos. Ninguém em sua vida jamais cuidou dela de uma maneira tão… Explícita. Ao menos não de tão perto. Aquele olhar pareceu penetrar diretamente em sua mente e explorar sua vontade.
Já não se sentia segura e protegida. Mas bem o contrário. O bater de asas se multiplicou adquirindo um ritmo frenético e um zumbido que se apoderou de seu corpo e de seus membros. Os alertas de uma advertência. E excitação.
A tensão que refletia em sua expressão o fazia extraordinariamente atrativo. Incorporou-se, de joelhos, para lhe oferecer sua mão e ajudá-la a sentar-se.
—Se machucou ao cair?
Ela moveu as pernas com cautela.
—Só fiquei sem fôlego. Em realidade a queda não foi muito forte, mas estarei um pouco dolorida amanhã. —apressou-se a levantar-se— Como protetor é excelente, tio Vergil. Não haveria muitos homens dispostos a lançar seu corpo entre a bala de um mosquete e uma mulher que mal conhecem.
—Qualquer homem inglês de honra o teria feito senhorita Kenwood.
Fizeram os cavalos caminhar durante um tempo para que se acalmassem, depois cavalgaram os últimos quilômetros de volta a casa. Sua silenciosa companhia a incomodava e aquela estranha excitação ainda deixava ouvir seu murmúrio. Nos estábulos, ele se deixou cair do cavalo e foi ajudá-la a desmontar. Ela se deteve quando seus braços a alcançaram.
Ele notou sua vacilação. Seus olhos azuis se encontraram com os dela de uma maneira especial. Ela começou a respirar com dificuldade e se sentia incapaz de afastar o olhar.
Uns dedos fortes rodearam sua cintura e a deslizaram para baixo. Deu a impressão de que ele demorava muito em soltá-la, o momento pareceu prolongar-se enquanto ele a sustentava tão somente a escassos centímetros. A suave pressão de suas mãos e a cercania de seu corpo a fizeram tremer.
—Obrigado. Desfrutei muito do passeio a cavalo. —Ela recuperou sua compostura e deu a volta.
—Me alegro de que tenha desfrutado, especialmente já que é o último.
Ela deu meia volta para olhá-lo no rosto.
—Está dizendo que não poderei voltar a cavalgar enquanto esteja aqui?
—Naturalmente que pode, acompanhada e bem entrado o dia. Entretanto, pedirei aos moços que não voltem a te dar um cavalo tão cedo pela manhã, e a nenhuma hora se pretende ir sozinha. —Ele se expressou com tanta autoridade e tanta calma como sempre, mas ela sentiu crescer a tensão a seu redor— Não organizará mais encontros furtivos com seu primo Nigel. Poderá vê-lo quando ele vier aqui de visita, ou quando Penelope convidá-lo.
Encontros furtivos? Sua imaginação extraiu daquelas ambiguidades mais conclusões das que ela pretendia.
Continuou caminhando sem corrigi-lo.
«Deixemos que pense o pior.»
***
Vergil aproximou uma cadeira à cama, sentou-se nela e levantou sua bota para dar a seu irmão um bom empurrão no quadril.
Dante gemeu e cobriu os olhos com um braço. Olhou por debaixo deste, viu Vergil e voltou a resmungar com resignação. Deixou escapar um suspiro de irritação e se incorporou para apoiar-se contra a cabeceira.
—Bom dia, Vergil.
Vergil viu o peito nu de seu irmão e observou os dois copos e a garrafa de vinho vazia que havia sobre a mesa.
—Quase toda a noite com Marian suponho. Disse-lhe que deixe às criadas em paz, Dante. Não quero que ninguém as incomode.
—Um homem não molesta Marian; ele luta por sua vida. Mas o que acontece com você. Por mais que lhe goste. Não seria discreto por sua parte.
—Tampouco é discreto pela tua. A mulher que pretende se casar está na casa.
Dante apoiou a cabeça contra a cabeceira e sorriu.
—Ah, sim, a bela Bianca. Sua descrição não lhe fez justiça. É realmente uma coisinha doce e jovem, só que um pouco ingênua. É encantador ver como luta por imitar nossas formas.
«um pouco ingênua?»
—Acabo de dar uma longa volta com sua coisinha doce e jovem.
—A julgar pelo estado de seu casaco, parece que esteve derrubando pelo chão com ela.
—Alguns caçadores furtivos estavam atirando e acabamos caindo do cavalo. —Não era exatamente isso o que tinha acontecido, mas não fazia sentido explicar detalhes que suscitariam perguntas a respeito— Me alegra saber que a senhorita Kenwood te parece apropriada. Entretanto, devo te advertir que tem concorrência.
—Nada sério — disse Dante bocejando.
—Nem sequer ouviu de quem se trata.
—Confio em que não seja você.
Vergil lhe lançou um olhar mordaz que escondia um incômodo sentimento de culpa.
—Só estava brincando, Vergil — sorriu Dante— Está tão claro que não encaixam e que ela te odeia que não pude resistir.
A menos que ele se equivocou completamente ao interpretar as coisas quando estavam atirados no chão, se encaixavam de um modo estupendo e perturbador.
—Seu rival não sou eu, a não ser um homem com um título nobiliário.
Aquilo freou a alegria de seu irmão. Dante tinha uma suprema confiança em sua habilidade para tratar com as mulheres, mas dado que era o filho mais jovem dita habilidade não tinha por que traduzir-se na possibilidade de casar-se com quem quisesse.
—De quem se trata?
—De seu primo, Nigel Kenwood.
—O segundo barão de Woodleigh? Com seu título recém estreado e de pouca subida não impressiona a ninguém.
—A ela não importam as delicadas questões do nascimento e a fila, e eles são parentes, o qual significa que têm um vínculo natural. Eu acreditei que ele se achava na França, administrando a herança de Adam, mas temo que retornou antes do que eu calculava. A questão é que já está aqui e se estabeleceu como nosso vizinho. Suspeito que tinha a esperança de encontrá-la aqui conosco. Afinal, ela recebeu quase tudo o que não foi deixado à caridade. Suponho que ele acredita que tem algum direito a ela.
Dante não parecia exatamente preocupado, mas Vergil monopolizou sua atenção.
—O que sabe você desse primo dele?
—É o neto do irmão de Adam. Começaram juntos nos negócios, mas o irmão teve um problema financeiro e Adam comprou sua parte. O pai de Nigel não quis tocar o negócio, apesar de Adam lhe ofereceu participar. Nigel, por sua parte, decidiu fazer-se artista e viveu em Paris até alcançar sua maioridade.
—Um boêmio? Sejamos sérios, Vergil, não acredito que…
—Não é um pintor. É músico. Adam se gabou uma vez sobre o menino e seu pianoforte.
—Ah, bom. Um músico. Pequeno motivo para alarmar-se.
—A senhorita Kenwood também se dedica à música, assim é provável que sim haja um motivo para inquietar-se, e até para alarmar-se.
Dante elevou suas sobrancelhas ante essa nova fofoca.
—É cantor — explicou Vergil— Gosta da ópera. Assim Nigel tem um possível atrativo. Interesse em comum e um parentesco de sangue.
—Exagera as duas coisas. Estamos falando de casamento, não de uma relação amorosa. Tinham nossos pais interesses em comum? Você e Fleur têm algum interesse em comum?
Ele e Fleur tinham em comum os interesses mais básicos, mas aquele não era o assunto. Vergil ficou de pé.
—Bom, mais te vale atuar com rapidez. Eu tentarei evitar que Nigel faça visitas frequentes, mas não posso impedir sua entrada na casa.
Caminhou até a porta. A voz de Dante o seguiu.
—Bom, e agora, irmão mais velho, o quão rápido quer que vá?
Vergil deu a volta para olhar Dante. Imagens desse peito e esses braços nus abraçando Bianca estalaram em sua mente, incitando-o a uma reação desagradável. Durante um momento não respondeu, enquanto tentava desfazer-se das imagens e da ira. Aquele abraço seria inevitável. E necessário.
—Não chegue a desonrá-la —disse— E mantém suas mãos afastadas de Marian enquanto esteja nesta casa. Não quero que as damas se escandalizem.
Capítulo 4
Penelope visitou o escritório de Vergil aquela tarde, para lhe comunicar que tinha recebido uma carta no correio do dia dizendo que Fleur e sua mãe viriam de visita em um prazo de dez dias.
—Estarei fora na semana anterior, mas prometo voltar a tempo — a tranquilizou ele.
—Acredito que também convidarei alguns amigos de Londres — disse Penelope— Darei a Bianca à oportunidade de desdobrar suas asas.
—Não convide muita gente, Pen. E escolhe cuidadosamente.
—Há outra coisa, Vergil. Suspeito que Dante esteja começando a ter certa debilidade por ela.
Ele tentou concentrar-se no que Pen estava dizendo, mas sua mente estava absorta contemplando à senhorita Kenwood estendida sobre o chão e olhando-o com um rubor de surpresa que lhe enviava rajadas de calor através de suas veias. Suas mãos notavam sua feminina cintura uma vez mais e seu corpo lhe advertia o perigo da cercania ao ajudá-la a descer do cavalo. Um misterioso perfume de lavanda enchia sua cabeça.
—Não se preocupe Pen. Dante não se verá envolto em uma confusão sem dar-se conta.
—Não me preocupo com Dante. Bianca, entretanto, parece tão ingênua.
«Ingênua?»
—E Dante… Vergil, não sei se você é consciente, estou segura de que ninguém fala contigo sobre isto, vendo que é tão… Mas se rumoreja que é um mulherengo implacável.
Perguntou-se do que pensaria Pen que falavam os homens quando se reuniam depois de comer com uma taça de porto e uns cigarros. Passou anos recebendo brincadeiras pelas conquistas de seu irmão, e em mais de uma ocasião se viu obrigado a olhar de frente um marido irado.
—Inclusive Dante respeita as regras básicas. Se estiver interessado nela, estou seguro de que isso o honra.
Ela pestanejou atônita.
—Permitiria?
—Por que não teria que fazê-lo?
—Ela é muito ignorante das questões mundanas e se desiludiria terrivelmente quando soubesse a verdade a respeito dele.
—Não quero interferir, Pen. Deixemos que as coisas sigam seu curso. Se ele a conquista, terão que solucionar seus assuntos da mesma forma que todos os casais o fazem.
—Você pode dizer isso, mas eu sempre lamentei que ninguém tivesse me advertido a respeito de Anthony.
Ele quis fazê-lo, mas não o correspondia sendo tão somente um jovenzinho, especialmente com sua mãe viva e encarregando-se de tudo. Um moço não podia aproximar-se de sua irmã mais velha e informá-la de que o maravilhoso conde com quem estava disposta a casar-se tinha fama de libertino, e que as escuras alusões a seus pecados não eram das típicas.
Entretanto, alguém devia tê-la advertido, e ele recordava muito bem a infelicidade de sua irmã. A separação oficial do conde durante esses últimos cinco anos havia lhe trazido certa paz, mas a custa de sua reputação social e uma permanente solidão. A lembrança de que um mau matrimônio podia ser o inferno o fez sentir-se incômodo a respeito de Bianca, e desejou que Pen não tivesse trazido a conversa seu próprio matrimônio, sem amor e sem filhos.
Ela o olhou com feminino ceticismo.
—Manterei minha língua presa e observarei como se desenvolvem as coisas, mas se suspeitar que ele está jogando com ela, chamarei sua atenção severamente, Vergil. Isso é algo que não tolerarei.
—Faz o que acredite ser o melhor, Pen.
Ela saiu, e ele voltou a se concentrar na carta que estava lendo quando entrou.
Examinou o conteúdo outra vez. O maior problema de um segredo é que sempre reclama sua atenção no momento mais inoportuno. Tinha planejado ficar ali todo o tempo que Dante estivesse, mas agora não ia ser possível.
Saiu do escritório e se dirigiu a seu aposentos para dizer a Morton que empreenderia uma viagem depois de amanhã.
***
À tarde do dia seguinte Bianca se achava sentada no salão, dando golpezinhos com o pé de maneira impaciente. Esperava que logo se apresentasse uma visita. Infelizmente, aquele que anunciava o cartão que o mordomo entregou a Pen não era o mesmo que ela esperava.
Nigel entrou despreocupado, com um ar muito romântico graças a seu paletó parisiense tão estreito na cintura, seu cachecol escuro e seu cabelo despenteado que chegava ao ombro. Obsequiou Bianca um acolhedor sorriso de familiaridade enquanto Pen o recebia.
—Retornou recentemente de Paris — me disse Charlotte— Assim tem que nos contar tudo sobre Paris.
Nigel as entreteve amavelmente com algumas descrições das últimas modas. Bianca mal escutava, apesar de que seu primo virtualmente dirigisse a ela toda sua atenção. Ela estava atenta aos ruídos de outra chegada.
As portas se abriram, mas só para dar passo a Vergil e a Dante.
—Espero que seu propósito seja ficar em Woodleigh, ao menos durante o outono — disse Penelope.
—Essa é minha intenção.
—Logo vou ter umas visitas em casa, e conto com que se una a nós sempre que puder.
—É muito amável por sua parte. Visitava meu tio-avô com pouca frequência, assim sou virtualmente novo neste lugar.
—Não passou muito tempo na Inglaterra estes últimos anos, verdade Kenwood? —perguntou Vergil.
—Preferi Paris. Encontro que a cultura ali é de superior qualidade. A vida artística é muito rica.
—Você tem interesse nas artes? —perguntou Penelope— Então desfrutará com os convidados em minha festa. Sua prima, sem ir mais longe, é uma artista excelente. Canta como um anjo e teve a gentileza de entreter Charlotte e a mim em mais de uma ocasião.
A expressão de Nigel mostrava um educado interesse, mas também ia carregada de um matiz condescendente. Bianca supôs que devia ter conhecido muitas mulheres jovens cujos amigos acreditavam que cantavam como anjos.
—Nos deixe convencê-la para que cante agora — disse Charlotte— Vergil e Dante nunca a ouviram.
—Será uma honra acompanhá-la — ofereceu Nigel— Sou bastante aceitável com o pianoforte.
Bianca se sentia um pouco encurralada. Ela só tinha entretido Penelope e Charlotte com canções populares de salão, e não pode praticar seriamente durante as últimas duas semanas. Ao mesmo tempo, a oportunidade de cantar, inclusive embora não pudesse dar o melhor de si mesma, excitava-a.
Todos foram ao salão de música e Nigel ocupou seu lugar frente ao pianoforte.
—Meu repertório de canções populares é limitado — advertiu ele, dando-se certa importância.
—Possivelmente então tenha mais sentido uma ária.
Ele levantou o olhar agradavelmente surpreso. Ficaram de acordo em interpretar uma de Mozart, uma que ela tinha estado estudando justo antes de deixar Baltimore. A perspectiva dessa pequena atuação acelerou seu coração.
Os outros se colocaram em bancos e em cadeiras. Nigel começou a tocar para introduzir a peça.
Com o som das notas o espírito de Bianca imediatamente renasceu. Não precisava conter sua voz como quando praticava escalas em seu quarto. Não era o frio isolamento que tinha experimentado quando escapulia longe para cantar no campo. A alegria que sentia ao deixar sair sua voz com força dava cor aos sons.
As reações de sua pequena audiência produziram uma espécie de poder.
Penelope permanecia aniquilada, Dante encantado, Charlotte confusa, e Vergil fortemente interessado. Ela olhou Nigel e o viu dar sua surpreendida aprovação. Sua destreza com o pianoforte era considerável, e ela tinha a sensação de que ele sabia que o público apreciava essa destreza.
Ao terminar, a sala estava tão silenciosa que ela podia ouvir o zumbido dos insetos através da janela aberta. Ela desfrutou daquele momento de torcida euforia e depois relaxou.
—Foi assombroso, querida prima — disse Nigel com serenidade— Esteve estudando a sério.
—Surpreendeu a todos, Bianca — disse Penelope— E sua interpretação foi magistral, senhor Nigel. Já vejo que a música é um interesse sério para você.
—Não um interesse, a não ser uma paixão. —Seus olhos procuraram os de Bianca com um brilho trêmulo que parecia indicar que ambos compartilhavam um segredo que os outros jamais entenderiam.
—Deve me prometer que tocará para meus convidados. Possivelmente também poderemos persuadir Bianca para que cante. Será uma noite maravilhosa.
—Será uma honra para mim.
Ele começou a preparar-se para sair, rogando a Penelope que visitasse logo Woodleigh. O mordomo entrou antes que Pen o chamasse, com um cartão de visita.
—Acaba de chegar um homem, minha senhora. Deseja ver a senhorita Kenwood.
Penelope examinou o cartão e elevou as sobrancelhas ao entregar-lhe a Bianca. Antes de lê-lo, ela já sabia de quem se tratava.
O visitante que tinha estado esperando por fim tinha chegado.
—É um assunto de negócios, Penelope. Há algum lugar onde possa me entrevistar com ele a sós?
—Leva-o a meu escritório — indicou Vergil ao mordomo— A senhorita Kenwood poderá atender ali seus negócios.
Bianca se despediu de Nigel e depois se apressou a ir ao escritório, sentindo ainda a alegria do canto.
Nunca esteve no escritório. Estava orientado ao norte, e a luz se filtrava através das janelas góticas iluminando fracamente a escura mesa de madeira, as paredes cheias de livros e as paisagens de aquarela.
Seu visitante aproximou uma cadeira à janela.
—Senhor Peterson, estou encantada de que tenha vindo.
—Senti alívio ao receber sua chamada, senhorita Kenwood. Ao ver que não ia a nossa última entrevista fiquei preocupado.
—Lorde Laclere me encontrou e pôs em marcha outros planos para minha visita a seu país.
Ela se sentou em um assento acolchoado junto à janela. O batente era muito largo. Continha uma coleção de curiosos brinquedos. Um era uma catapulta feita de madeira e cadeias. Outro, uma carruagem de madeira e couro. Um terceiro não parecia ser nada em particular, tão somente um conjunto de rampas estriadas entrelaçando-se entre si, decorado com corrente e rodas.
O tipo de construção era algo rudimentar. Ela supôs que se tratava de objetos que Vergil tinha fabricado quando era menino. A ideia de que o sério e formal visconde guardasse lembranças de sua infância em seu santuário íntimo era adorável, embora se sentisse incapaz de imaginar de menino um homem como aquele.
O senhor Peterson era um homem de meia idade, pálido e calvo, com uns olhos cinza que podiam parecer sagazes ou respeitosos segundo as circunstâncias. Quando ela o visitou em Londres pela primeira vez, seu lado perspicaz tinha entendido rapidamente que embora ela não pudesse pagar seus honorários naquele momento, tinha expectativas que resolveriam as coisas adequadamente.
—Examinou o testamento? —perguntou ela.
—O fiz. Tive uma entrevista com o advogado de seu avô. Ele pareceu surpreender-se de que tivesse me encarregado o assunto, mas cooperou até onde estava obrigado a fazê-lo. Não mais, entretanto.
—E que conclusões tirou? Posso me liberar do domínio de lorde Laclere?
—Se ele não se ocupasse de você, ou houvesse alguma evidência de fraude, seria possível fazer algo a respeito, mas a Corte não permitiria a independência que você está procurando. Se o visconde não fosse seu tutor, outra pessoa seria nomeada em seu lugar. Com um homem de sua categoria, qualquer abuso de sua posição teria que ser realmente terrível para que se pudesse levar ante a Corte.
Ela se sentiu furiosa ante a decepção. Aquele brinquedo inútil captou sua atenção e viu uma pequena bola de chumbo em sua base. Refletindo a respeito de qual seria sua próxima estratégia com Vergil, pegou distraidamente a bola e a soltou sobre a rampa superior. Começou a rodar costa abaixo, de uma rampa a seguinte, de um lado ao outro, pondo em movimento várias pequenas rodas e polias cada vez que seu peso mudava de nível.
—Senhorita Kenwood, não se trata de uma situação permanente… Será menos de um ano. Você é uma moça e rica, e é compreensível que seu avô tenha querido protegê-la para evitar que seja vítima de algum caçador de fortunas sem escrúpulos.
—Quanto de rica?
—Perdoe? Supunha que você sabia.
—Sei em termos gerais. Mas exatamente a quanto ascende minha fortuna?
—Os ganhos pelo fundo de dinheiro investido sobem ao menos a três mil libras este ano.
—Essa quantidade por si só já é uma fortuna, e muito mais do que necessito para meus planos.
—Seu tutor dirigirá essa soma, subministrando os recursos de acordo com as necessidades que você tenha e os gastos que deva cobrir. Ele tem a obrigação de ser razoável em relação a seus pedidos.
Ela duvidava que Vergil fosse tão razoável para lhe dar várias centenas de libras que a permitissem escapar para Milão. Se ele controlava seus ganhos, controlava também seus movimentos. Em definitivo, controlava sua vida.
—Quanto à outra parte de sua herança, tudo resulta muito mais complicado — disse o senhor Peterson, continuando com seu relatório.
—Que outra parte?
—Seu avô era um homem de negócios. Para o final de sua vida vendeu a maioria deles. Entretanto, conservou três sociedades. Duas eram pequenas parcelas de companhias de transportes, e a terceira era a maior parte de uma companhia de algodão em Manchester. Também foram legadas a você suas ações nesses negócios, menos dez por cento das da fábrica, que foram cedidas ao seu primo.
—Entretanto, o visconde também é meu administrador. Ele dirige esses investimentos.
—As ações nessas sociedades não são parte dos investimentos permanentes, como sim o são os recursos de investimento. Se você se casar ou se faz maior de idade, ele deverá renunciar ao controle sobre elas. De fato me surpreende que ele não tenha vendido esses negócios. Representam uma ameaça para sua riqueza. Se algo sair mal, todos os proprietários são responsáveis pelas dívidas incorridas.
Aqueles negócios em realidade não lhe interessavam muito, a menos…
—Também há ganhos que provêm desses negócios?
—O advogado não esteve disposto a me permitir ver os documentos. Eu acredito que a fábrica deve dar lucros.
—E o que ocorre com esses ganhos?
—Vão para seu administrador, que presumivelmente os investe em mais investimentos. Ou se não, são enviados ao seu tutor.
Que era a mesma pessoa. Administrador. Tutor. Qualquer que fosse o lugar para o qual se desviava a conversa acabava indo parar em Vergil Duclairc.
—Senhor Peterson, eu gostaria que você estivesse presente enquanto falo com lorde Laclere. A situação que criou é intolerável. Estou prisioneira aqui.
Ela chamou o mordomo para que solicitasse a presença de Vergil. O senhor Peterson pareceu muito incômodo ante a ideia dessa entrevista. Quando Vergil entrou pela porta, o respeito havia superado a suspicacia naqueles olhos cinza, e a calvície daquele homem mostrava pequenas gotas de suor.
—Lorde Laclere, este é o senhor Peterson. Ele é meu procurador.
Vergil examinou friamente o advogado com um gesto aristocrático de aborrecimento. O senhor Peterson se desfez em um molho de nervos. Bianca lutou contra o impulso de bronquear com ele para que se comportasse como um homem.
Vergil posou sobre ela um olhar muito sério.
—Não sabia que tinha contratado um advogado, senhorita Kenwood.
—Foi uma das primeiras coisas das que me ocupei ao chegar a Londres.
—O advogado de seu avô, ou o meu, ou inclusive eu pessoalmente, teríamos lhe explicado gostosamente algo que precisasse saber.
—Pensei que era melhor ter meu próprio representante e decidir por mim mesma o que era o que precisava saber.
—Confio em que o senhor Peterson tenha satisfeito do toda sua curiosidade.
—Quase tudo. Falou-me a respeito das ações de negócios que herdei e sugeriu que você deveria as ter vendido, para maior segurança.
—Eu não o expressei dessa maneira milord — se apressou a esclarecer o senhor Peterson— Só lhe expliquei as leis em relação às responsabilidades financeiras dos sócios.
—Como deveria fazer com um cliente. Estou obtendo informação sobre o valor das ações. Como administrador seria irresponsável por minha parte as vender a um preço muito baixo. Houve várias propostas em relação à venda que terei em consideração quando estiver em melhores condições para julgar se forem justas. Entretanto, estas coisas levam seu tempo. É difícil obter informação honesta dos gerentes e dos outros proprietários.
—Excelente milord. Justo o tipo de prudente supervisão que alguém esperaria. Acredito que é evidente que tudo está em perfeita ordem, senhorita Kenwood, e que é você afortunada pelo fato de que lorde Laclere se faça cargo de…
—Quando se recebem os benefícios das companhias? —perguntou ela.
Uma paciência de aço controlou a mandíbula e a boca de Vergil.
—Se houver benefícios, as companhias os pagam uma vez ao ano. Serão reaplicados em recursos do Governo.
—E os recursos de investimento por eles mesmos deram lucros desde a morte de meu avô?
—Sim, deram.
—E essa parte dos benefícios foi também reaplicada?
—A maior parte.
A maior parte, mas não toda.
—Senhor Peterson, seria tão amável de me esperar na biblioteca?
O senhor Peterson estava encantado de fazê-lo. Quase tropeçou ao retirar-se apressadamente.
Bianca ocupou uma cadeira frente à Vergil.
—Quero que arrume as coisas para que os ganhos fiquem a minha disposição.
—Não tenho nenhuma intenção de fazer isso.
—Trata-se de minha herança.
—Inclusive embora fosse a mais sensata das jovens, não estaria cumprindo com meu dever se te deixasse dispor desse dinheiro. O certo é que confessou ter propósitos que me converteriam em um conspirador de sua ruína. É totalmente impossível.
—O senhor Peterson me explicou que se espera que um tutor seja razoável em relação a esses recursos.
—Com uma parte é suficiente para cobrir suas necessidades. Os lojistas só têm que me enviar suas faturas. As costureiras e outros profissionais que atendem às mulheres estão acostumados a isso. A menos que haja algum gasto exagerado por sua parte não precisamos voltar a falar disto.
—Dado que não há costureiras nesta casa não corro o perigo de ser acusada de nenhum gasto exagerado.
A expressão dele se suavizou um pouco.
—Minhas desculpas. É obvio que você gostaria de desfrutar dos frutos de sua enorme fortuna. Pedirei a Penelope que te leve a Londres dentro de umas poucas semanas.
—Obrigado. Entretanto, necessitarei um pouco de dinheiro para gastos menores agora. Tenho que comprar uns poucos artigos de natureza pessoal.
Tal como ela esperava, a palavra pessoal o impediu de seguir investigando. Abriu uma gaveta do escritório.
—Espero que vinte libras seja suficiente — disse ela.
—Isso é muito dinheiro para gastos menores, senhorita Kenwood.
—Usarei uma parte para pagar o senhor Peterson.
—O senhor Peterson pode me enviar sua fatura.
—Prefiro que não o faça. Prefiro que recorde quem o contratou. Tampouco me parece correto lhe pedir que aguarde minha herança.
Vergil tirou vários bilhetes da gaveta e os colocou em uma pilha sobre o escritório. Caminhou para ela, sem poder ocultar por mais tempo sua irritação. Ela com muita dificuldade pôde evitar encolher-se de medo ante a autoridade que emanava dele.
—Não estou acostumado a discussões abertas sobre assuntos de dinheiro, e muito menos com mulheres. Não estou disposto a tolerar perguntas que impliquem dúvidas a respeito de minha honestidade e minha capacidade na hora de administrar seu patrimônio, e menos diante de um homem que não conheço.
Ele se inclinou e se agarrou aos braços da cadeira. Ela se encolheu contra o respaldo, afastando-se das faíscas que brilhavam em seus olhos, tão somente a umas polegadas de seu rosto.
—A questão é senhorita Kenwood, que agora mesmo o tio Vergil está pensando que sua desrespeitosa pupila merece uma boa surra.
Os lábios dela se abriram com indignação. Ele saiu disparado e se afastou a grandes pernadas até a porta.
Logo que ele saiu, recolheu os bilhetes e se reuniu com o senhor Peterson. Entregou-lhe dez libras.
—Isto é em pagamento por seus honorários e gastos até o momento. Quero que você guarde o que sobre e abra uma conta para mim no banco. Use seu próprio nome se for necessário.
—Seguro que lorde Laclere terá uma conta onde se possam fazer remessas bancárias.
—Quero ter minha própria conta, e não quero que ele saiba. Me escreva informando quando estiver feito. Também quero que faça averiguações a respeito dessas ofertas para a compra das ações das companhias.
—Se insistir, verei o que posso averiguar. Devo lhe escrever aqui?
—Sim. Não acredito que o visconde me deixe ir muito longe durante um tempo.
Provavelmente não até que se casasse ou fizesse vinte e um anos.
Ela não tinha intenção de fazer o primeiro e tampouco de esperar o segundo. Se o senhor Peterson conseguia os nomes das partes interessadas nas sociedades, ela poderia conseguir o dinheiro necessário para ir à Itália, apesar do obstáculo que representava Vergil Duclairc.
***
Vergil com muita dificuldade conseguiu acalmar sua fúria depois da surpresa de encontrar-se com o senhor Peterson, quando outra visita inesperada chegou à última hora da tarde. Adrian Burchard, um dos amigos de Vergil, entrou em seu escritório, graças a Deus o distraindo das insistentes e eróticas imagens de uma Bianca Kenwood domesticada.
—Fazia muito tempo que não nos víamos Burchard — disse Vergil, lhe dando boas vindas.
—Se passasse algo mais que uns poucos dias em Londres cada vez que vai, não teria sido tanto tempo. Onde esteve metido? —Os escuros e exóticos olhos de Adrian não pareciam estar esperando uma resposta interessante.
E tampouco a conseguiu. Vergil assinalou o escritório.
—Temo que os assuntos familiares me tiveram a maior parte do tempo ocupado. —O conteúdo da afirmação era certo, mas não o gesto que a acompanhou e suas implicações. Não tinha passado em Laclere Park mais tempo que em Londres.
Dentre todos seus amigos, Burchard era o mais capaz de precaver-se dos silêncios.
—Com frequência escapei ao norte, à propriedade que tenho ali. Aí não tenho que me comportar como um visconde — acrescentou Vergil precisamente para romper o silêncio— É uma sorte que tenha cavalgado até aqui para me liberar de ter que exercer de visconde esta tarde.
—Lamento te dizer que esta não é uma visita social. Demos um passeio e te explicarei.
Cheio de curiosidade, Vergil o acompanhou até o princípio do caminho que dava a casa. Adrian o conduziu até o lugar onde outro caminho assinalava o fim da propriedade. Ali, à sombra de uma árvore, esperava um carro.
Um homem mais velho com um proeminente nariz farpado estava sentado em seu interior.
—Podia ter me avisado de que havia trazido Wellington contigo.
O duque o ouviu por acaso.
—Pedi que o trouxesse sem anunciar minha presença, e Burchard cumpriu com sua missão ao pé da letra.
—Sua excelência nos honra com esta visita.
—Não é uma visita, por isso pedi a Burchard que te trouxesse até aqui. Não pretendo ofender sua irmã, Laclere. Simplesmente hoje não tenho tempo para bate-papos de salão. —Fez um gesto com sua bengala — Este parece um caminho agradável e sombreado. Façamos um pouco de exercício.
Vergil começou a caminhar, com Adrian a seu lado. Adrian se converteu no protegido de Wellington. O mecenato daquele grande homem lhe proporcionou um lugar na Câmara dos Comuns como terceiro filho do conde de Dincaster.
Durante uns minutos se ouviu o rítmico ruído das botas contra o chão. O duque não tentou cobri-lo com elogios ou frases de rigor.
—Vim tratar de um tema delicado — disse por fim— Não há uma boa maneira de abordá-lo, assim irei direto ao ponto. Vim fazer umas perguntas sobre a morte de seu irmão. Sempre sinto curiosidade quando um homem morre por causa de uma ferida de bala disparada por si mesmo de forma acidental. Sou consciente de que não é fácil que isso ocorra. Quero saber se no caso de seu irmão não foi um acidente a não ser um suicídio.
Vergil dirigiu a Adrian um olhar ressentido, e este respondeu negando sutilmente com a cabeça. A evidência de que Adrian não tinha sido desleal ou indiscreto acalmou seu aborrecimento.
—Sim. Unicamente a família e uns poucos amigos sabem.
—Aprecio sua confiança em minha discrição, mas receber a confirmação de minhas suspeitas não me dá nenhuma satisfação. Me diga, alguma vez se expôs que resulta estranho que tenhamos tido dois suicídios de pessoas importantes durante a mesma semana? Seu irmão e o de Castlereagh.
—Meu irmão era propenso a crises de profunda melancolia. O ministro de Assuntos Exteriores estava desequilibrado. Foi uma coincidência.
—Laclere, não estou convencido de que foi uma coincidência. Existe alguma possibilidade de que seu irmão tenha sido vítima de uma chantagem? Você achou alguma prova neste sentido? Pergunto porquê há indícios de que Castlereagh sim foi.
—Acreditava que essas suspeitas tinham sido enterradas. Por você.
—Considerando sua posição dificilmente podia deixá-lo assim. Aquele homem era vítima de delírios, assim que concedi a ele pouca credibilidade. Entretanto, as últimas vezes que o vi me disse algo sobre uma carta. Aludiu a seus temores de ser convertido no alvo de um escândalo.
Um escândalo. Vergil suspeitava onde iria parar aquilo e não queria ir por esse caminho.
—Como você disse, era vítima de delírios.
Wellington deu cinco passos antes de reatar a conversa.
—O autor da carta afirma ter provas de certa atividade criminosa.
Vergil se deteve, forçando Adrian e Wellington a fazê-lo também.
—Assim depois de meses de reflexões esse detalhe me permitiu fazer algum tipo de conexão com meu irmão?
—Laclere, o deixe terminar — disse Adrian.
—Nem pensar!
—Compreendo sua ira, Laclere. Asseguro que a única conexão que vi foi a dos dois suicídios, um dos quais pode ter sido resultado de uma chantagem. —A voz de Wellington cobrou severidade— O pergunto outra vez, tem alguma razão para suspeitar que seu irmão pôde ter sido também vítima de uma chantagem? Para que não sinta a tentação de mentir em altares de proteger seu nome, me deixe lhe dizer que acredito que outras pessoas estão sendo vítimas agora, esse acidente de caça de lorde Fairhall em maio não foi o que parece, e teremos mais desastres e mortes se não chegarmos até o final deste assunto.
A fúria de Vergil se fez mais intensa. Não foi pelo tom severo do duque. Esteve pensando naquele segredo durante quase um ano, perguntando-se se as coincidências e as conexões que ele mesmo suspeitava não eram mais que seus próprios delírios.
—Sim, acredito que Milton estava sendo chantageado. Acredito que é por isso que se matou. Ele deixou uma carta. Encontrei-a entre seus papéis, onde ele sabia que eu procuraria para me ocupar dos gastos da fazenda. Aludia a uma traição, se era a ele ou a outra pessoa não sei. A maior parte da carta falava da família, e de que seria melhor que ele saísse de cena antes que nos arruinássemos. Eu quis acreditar que se referia às finanças, que estavam em uma situação péssima então. Entretanto, estive me perguntando se não o tinham obrigado a escrever essa carta.
Sentaram-se sobre o tronco de uma árvore caída enquanto ele contava sua história. Wellington fazia desenhos na terra com sua bengala enquanto escutava.
—Suponhamos que em ambos os casos houve uma chantagem. O objetivo era que morressem? —perguntou Adrian.
—Essa é a questão, não? —disse Wellington.
—No caso de meu irmão a razão da chantagem só podia ser para tirar dinheiro. Não havia nenhum modo de que alguém soubesse que não podia pagar. Nossa situação financeira não era óbvia. Ele gastava como se não houvesse um problema.
—Normalmente, se supõe que o único que quer um chantagista é sangrar sua vítima. Entretanto, o momento que estamos vivendo… Tivemos provas de que há radicais tentando assassinar membros do Governo e da Casa dos Lordes. A situação, portanto é propícia para provocar problemas deste tipo.
—Meu irmão não se destacava no Governo.
—Tinha interesse na política.
—Um interesse teórico.
—Um interesse teórico radical. Isso deve tê-lo levado a contatar com homens que defendem a violência e que poderiam enredá-lo, e através dele outros — disse Wellington — Ele deve ter se comunicado ou associado inocentemente com homens desses, só para que logo usassem essa conexão contra ele mais tarde.
O comentário pendurava no ar, mendigando uma resposta. O duque tinha articulado claramente os próprios temores de Vergil a respeito da morte de Milton.
—Você encontrou cartas que demonstrassem uma relação de amizade entre seu irmão e o ministro de Assuntos Exteriores? —perguntou Wellington.
—Não as busquei. —Era mentira. Uma maldita mentira. Entretanto, não podia permitir que a hipótese se convertesse em um fato tão facilmente.
—Possivelmente deveria fazê-lo.
—Estive procurando em outras direções. Não acredito que haja uma conexão direta entre essas mortes, exceto possivelmente pelo mesmo chantagista. Estou mais interessado em encontrar esse homem que em averiguar quão pecados ele descobriu.
—Assim que essa é a razão pela que não esteve muito em Londres e tampouco aqui — disse Adrian— Progrediu algo?
—Um pouco. —Condenadamente pouco considerando quanto de seu tempo e de sua vida investiu nisso.
—Não há nada que eu possa fazer a respeito, salvo observar o comportamento dos homens e me perguntar se estão preocupados — disse Wellington— Tenho razões para pensar que vários estão. É uma ideia horrenda, a de que alguém esteja desentranhando segredos e usando-os para intimidar ou extorquir seus amigos. E o pior é que esses homens andam tão escassos de dinheiro que tiram a vida para escapar.
—E você, Burchard? Qual é seu interesse nisto, ou só veio hoje para organizar um encontro privado com Sua Excelência? —perguntou Vergil.
Wellington respondeu enquanto os três se levantavam para retornar até o carro escondido.
—Ele está fazendo algumas discretas averiguações para mim sobre lorde Fairhall. Dado que você sabe que é um homem de confiança espero que compartilhe com ele algo que averigúe para que possamos resolver este assunto de uma maneira rápida.
—É obvio.
Era outra mentira descarada. Adrian era um amigo, e tinha experiência tanto em investigações como em discrição, mas Vergil não tinha intenção de revelar o que descobrisse a ninguém se isso podia repercutir negativamente em Milton ou na família Duclairc.
Ele suspeitava que assim seria por todas as razões que cuidadosamente evitou discutir.
Capítulo 5
—Vê o que quero dizer? —sussurrou Charlotte.
Estava sentada junto à Bianca no salão enquanto os convidados chegavam à festa.
Vergil se achava de pé ante o suporte, conversando amavelmente com Fleur e sua mãe, a senhora Monley. Tinham chegado justo depois do meio-dia, em uma magnífica carruagem.
—Nada — murmurou Charlotte, sacudindo a cabeça— Não… Bom, não sei… Sua atitude. Vergil poderia perfeitamente estar falando comigo e Fleur com seu pai.
Sentada do outro lado de Charlotte, Diane Saint John, uma das amigas mais queridas da condessa, dava golpezinhos na mão. Seus olhos cheios de sentimento se voltavam risonhos quando olhavam para o suporte.
—Eu não me preocuparia com seu irmão ou a senhorita Monley. As coisas nem sempre são o que parecem nestes assuntos. Os vê estupendamente juntos, não? Um bom casal.
Sim faziam um bom casal. Fleur era toda cortesia e elegância, alta e magra, com a pele de alabastro e o cabelo escuro. Os cachos caíam de um coque decorado com lacinhos, emoldurando seu rosto ovalado que levava no centro uma boca franzida como uma rosa. A Bianca parecia uma pessoa inteligente, de voz suave, cujos olhos marrons estavam atentos a todos os detalhes.
Bianca experimentou uma vaga decepção ao notar que Fleur não a desagradava instantaneamente, ao mesmo tempo em que sentia uma inexplicável pontada de melancolia cada vez que olhava ao grupo junto à lareira.
—Tenho medo de que Vergil esteja se sacrificando por sua fortuna — disse Charlotte— Parece contente de vê-la, mas tendo em conta que sua família deixou Londres há oito semanas e, entretanto, estiveram separados todo este tempo…
—Isso não sabe — disse a senhora Saint John— Pode ser que quando ele não está aqui nem em Londres vá visitá-la.
—Eu acredito que não. A maioria das vezes vai a seu imóvel de Lancashire. Diz a seus agentes, a Pen e a instrutora que vem ficar comigo onde podem encontrá-lo. Se não se tratasse de Vergil, qualquer um poderia suspeitar que vai visitar uma mulher ali. Alguém que ama, mas com quem não pode casar-se.
Bianca se meteu de repente na conversa olhando fixamente Charlotte com uma expressão triste.
—Sugerir isso é escandaloso.
—Tenho entendido que esse tipo de coisas é muito habitual. Pen inclusive me insinuou que devo esperar que meu marido tenha outras relações de vez em quando.
A senhora Saint John baixou as pálpebras.
—Acredito que muita gente foi indiscreta quando fala ao seu redor, Charlotte.
Bianca viu que a senhora Saint John não havia dito que Charlotte estava equivocada, ou que sua ignorância a tivesse levado a interpretar mal as palavras de Penelope.
—Bom, isso explicaria muitas coisas. Para começar aquilo. —Charlotte fez um gesto com a cabeça em direção ao suporte da lareira— A demora em anunciar o compromisso formal por outro. Com sua beleza e sua riqueza ela não tem por que estar o esperando. O estranho é que a Fleur não parece importar que as coisas estejam assim. É sua mãe quem se impacienta.
Sim, sua mãe estava se impacientando. Os olhos da senhora Monley eram os mais iluminados pelo fogo da lareira. Seguia a conversa de sua filha com um encantador sorriso e um movimento de cabeça que dava à pluma de seu turbante de seda e cordões um inquisitivo ângulo.
—A noite promete alongar-se. Deveria se retirar para descansar — disse uma voz masculina.
Bianca afastou sua atenção da lareira para ver que Daniel Saint John se uniu a elas e se dirigia a sua esposa. Aquele homem atrativo que podia deslizar rapidamente de uma passiva frieza a uma atenção intensa, enfocava esta agora no que mais o interessava.
—Daniel se mostra muito protetor comigo quando estou em estado — confessou Diane com um sorriso— Depois de dois filhos, querido, já não sou tão frágil.
—De todos os modos, é necessário que descanse. —Ofereceu-lhe a mão para acompanhá-la.
A Bianca não passou despercebido o olhar que trocaram. Ternura, humor e uma absoluta devoção fluíam nesse fugaz contato. Era como se anos de lembranças colorissem a forma em que viam um ao outro, e enriquecessem inclusive aquela comum troca.
Bianca voltou a dirigir o olhar à lareira e viu como o comportamento de Vergil e Fleur contrastava com o daquele outro casal.
O comentário de Charlotte teve para ela uma nova dimensão. Não havia necessidade de uma demonstração aberta de paixão e afeto. De uma maneira silenciosa que não implica o contato físico, um homem e uma mulher podem estar intimamente conectados.
Diane Saint John aceitou a sugestão de seu marido e se levantou.
—Suponho que um breve descanso pode ser uma boa ideia. —Juntos, sem falar, mas dizendo-se muito, dirigiram-se para o salão.
A atividade do vestíbulo anunciava a chegada de outro carro.
—Por fim o último. —Charlotte ficou em pé— Este deve ser o da senhora Gaston. É uma das amigas de Pen e uma grande mecenas das artes. Apoiou Pen quando outros a abandonaram após sua separação. Acredito que Pen a convidou pensando em você, por sua carreira de cantora.
Bianca e Charlotte seguiram Penelope e Vergil para receber à nova convidada.
A senhora Gaston tinha vindo em uma grande carruagem. Pen se adiantou estendendo os braços para lhe dar a bem-vinda.
—Que amável por sua parte fazer um encaixe para vir a nossa pequena festa.
A senhora Gaston era uma bela mulher de sorriso encantador, maçãs do rosto marcadas e um cabelo castanho acobreado. Movia-se com uma orgulhosa elegância, levava um casaco com um exótico estampado e um chapéu com plumas extravagantes.
—É você a que foi amável ao me dar uma oportunidade para escapar da cidade durante uns dias. Entretanto, temo que dei um passo em falso e devo pedir sua indulgência por isso.
—Um passo em falso? Você? Nunca.
—Infelizmente sim. Trouxe uma amiga comigo.
—Quando lhe escrevi disse que seus amigos seriam bem-vindos.
—Sim, fez. Normalmente no caso de trazer alguém eu teria escrito para lhe avisar. Mas esta amiga chegou à cidade inesperadamente.
Um lacaio se aproximou até a porta aberta da carruagem. Uma mão enluvada e uma manga na moda apareceu. Uma cabeça escura de elegante penteado e chapéu se agachou enquanto a amiga em questão inclinava seu corpo para descer.
—Maria — exclamou Pen, abraçando a escultural figura envolta em musselina azul pálida— Ninguém sabia que viria nos visitar este ano. É uma surpresa maravilhosa para mim.
O rosto da mulher não era formoso, com suas feições muito marcadas, mas sua forma de comportar-se transmitia uma sólida dignidade e inspirava confiança.
—Foi uma decisão impulsiva por minha parte, querida minha. Milão é horrível com o calor. Meus músicos estão se comportando como meninos mimados, e o tenor para a próxima produção é um jovem idiota e arrogante que não se deixa dirigir. Simplesmente deixei a todos. Vamos ver como as arrumam sem Catalani.
—Oh, Deus, que sorte — sussurrou Charlotte a Bianca— Sabe quem é?
Bianca sabia. A mais importante cantora de ópera da Inglaterra, Maria Catalani, retornou da Itália há seis anos e agora dirigia uma companhia de ópera em Milão.
Que maravilhoso golpe de sorte. Com a senhora Gaston e Catalani ali, aquela festa prometia ser enormemente mais interessante do que esperava.
Vergil se adiantou para saudar Catalani, beijando sua mão de maneira lisonjeadora. Ela disse algo em voz baixa e seu rosto se iluminou com um sorriso.
Se a visita inesperada de uma cantora de ópera afligia Laclere, este não o demonstrou. Provavelmente trataria do assunto com Penelope mais tarde.
Penelope conduziu seus novos convidados ao interior da casa.
A Bianca tremia os joelhos pela emoção.
—Esta deve ser Charlotte. Já parece uma jovenzinha, encantadora — disse Catalani— Já teve sua estréia em sociedade?
—No próximo ano — explicou Pen— Vergil não aprova que nestes dias as garotas se apresentem a uma idade tão jovem.
Catalani olhou para trás ao visconde que as seguia e franziu os lábios com picardia.
—Um bom estratagema, e será muito efetiva. Deixemos que tenham que esperar por um diamante assim. Será a sensação da temporada, Charlotte. Predigo que seus irmãos necessitarão lacaios extras para vigiar as paredes do jardim.
Pen atraiu Catalani até Bianca.
—Esta é Bianca Kenwood, de Baltimore. É a pupila de Vergil.
—Nunca tive o prazer de visitar seu país. Temos que falar. Tenho muitas perguntas a fazer.
—E eu também tenho perguntas para você. Visitarei a Itália muito em breve.
—Está planejando uma grande viagem para sua irmã e sua pupila, lorde Laclere? —perguntou Catalani enquanto Pen a conduzia para o interior da casa— Necessitará dez lacaios extras então, se envia duas belezas como estas a meu país.
Bianca se apressou a alcançar Charlotte, atônita pelo curso dos acontecimentos. Essa festa prometia ser o ponto culminante de sua estadia na Inglaterra.
—Por hoje já estão todos os convidados — explicou Charlotte— Pen disse que o senhor Witherby escreveu dizendo que chegaria amanhã pela manhã. Vamos descansar um momento antes de jantar.
Bianca decidiu não fazê-lo a menos que ficasse claro que Catalani também se retirava. Esperou até que a imponente mulher subisse a escada flutuando com Penelope a seu lado.
Ficou sozinha de pé no vestíbulo vazio, sabendo que seria totalmente impossível descansar. Procurando alguma forma de aliviar sua ansiedade, entrou na biblioteca, encontrou o volume de poemas de Shelley que tinha estado lendo e se amassou em um divã encarado uma janela.
Aquele era seu lugar favorito para ler, especialmente pelas tardes. Uma luz tênue penetrava através da janela acompanhada de uma suave brisa. Ninguém podia vê-la ali a menos que se aproximasse do divã. Aquele tinha se convertido em um de seus poucos cantos privados.
Ouviu-se o ruído de passos de alguém que entrava na estadia. Ela se incorporou um pouco para ver de quem se tratava. Dante a reconheceu e caminhou para ela; levava seu chapéu e o látego de montar. Sentou-se em uma poltrona, frente a ela e esticou as pernas; também levava botas.
—Chegaram todos? —desapareceu de casa depois da chegada de Fleur.
—Todos menos o senhor Witherby.
—Surpreende-me que se atrase. Esperava que quisesse aproveitar cada momento para seduzir minha irmã.
—Charlotte?
—Pen. Converteu-se em um amigo muito especial para ela durante o último ano. Ou ao menos ele pensa que assim é. Não sei que ideia tem Pen a respeito, embora pareça desfrutar de sua companhia. Estou seguro de que é por isso que o convidou, apesar de que também é um velho amigo de Vergil.
A frase «amigo muito especial» aludia a algo mais que a uma mera relação de companheirismo. Dante frequentemente se despistava e falava daquela maneira tão familiar, como se compartilhassem alguma compreensão do mundo. Aquele tom de conspiração implicava um tipo de intimidade.
Ele vadiava com ar despreocupado, olhando-a por debaixo das grossas pestanas desse modo que sempre a fazia sentir-se tão incômoda. Sempre estavam a sós quando a olhava dessa forma.
—Maria Catalani acaba de chegar com a senhora Gaston. Foi uma surpresa para todos —disse ela.
Aquilo pegou sua atenção.
—A senhora Gaston está aqui? Deveria ter perguntado a Pen a quem esperava receber antes de aceitar ficar.
—Não te cai bem?
—É por pura insistência que conseguiu introduzir-se em muitos círculos. Vê a si mesma como uma grande patrocinadora de artistas e quer que todos saibam como promove suas corridas.
—Faz? Promove corridas?
Ele deu de ombros.
—Não saberia lhe dizer isso. Os círculos artísticos de Pen não me interessam muito, e parece que isso é o que temos aqui. A senhora Gaston e Catalani, diz. Lorde Calne é outro patrocinador das artes. Cornell Witherby será uma boa companhia, ao menos, apesar de que com os outros que há aqui provavelmente só falará de sua poesia. Espero que Vergil o distraia com outras coisas.
—Crê que Vergil permitirá que Catalani fique?
—Por que não ia fazê-lo?
—Isso pensei, possivelmente, com Fleur aqui e Charlotte e…
Seu comentário o deixou preocupado.
—Esta é a festa de Pen, e meu irmão sabe o que isso significa. Vergil pode ser um santo, mas nunca se comporta de um modo rude. Por outro lado, Catalani tem suficiente poder para ocultar os meios pelos que conseguiu sua fama. —levantou-se— Acredito que darei um passeio. Será uma honra se me acompanhar. Te mostrarei as ruínas.
Bianca já tinha encontrado as ruínas medievais que se conservavam no parque Laclere, e não queria as visitar sozinha com um mulherengo. E menos ainda com um que naquele momento a olhava com esse brilho nos olhos.
—Obrigado, mas acredito que continuarei um bom momento lendo.
Uma repentina irritação alterou sua expressão. Para sua surpresa ele se aproximou e acariciou sua mandíbula com um dedo.
—Não tem que ter medo de mim Bianca.
Ela se tornou para trás ante seu gesto.
—Seu irmão diz que aqui não é habitual dirigir-se a uma mulher de um modo tão familiar.
—Eu não sou meu irmão.
Não, não era. A última semana ela tinha sido o centro da atenção desse jovem. Tinha tentado desanimá-lo. Ao que parecia sem êxito.
Sua mão a tocou outra vez, sustentando seu queixo. Os olhos de Bianca se alargaram com incredulidade quando ele inclinou sua cabeça para cima, aproximou a sua e lhe deu um beijo nos lábios. Aconteceu tão rápido que a impressão lhe fez ficar completamente imóvel.
Ele a interpretou mal. inclinou-se para ela e a beijou profundamente, ao tempo que a abraçava.
Ela se separou dele e o lançou contra a janela com uma assombrosa fúria. Raivosa e envergonhada o enfrentou.
—Não se atreva a voltar a fazer isso.
Ele se levantou.
—Minhas desculpas. Deveria ter te pedido primeiro permissão.
—Não o teria obtido.
—Eu acredito que sim.
—Interpreta mal nossa amizade.
—Não acredito. Está assustada e confusa, e isso é normal para alguém tão inocente. Não voltarei a te beijar sem sua permissão, mas quando lhe pedir isso me dará isso.
Ela andava a provas procurando uma resposta mordaz. Ele sorriu com uma confiança em si mesmo que resultava insofrível e saiu da estadia.
Ela voltou a afundar-se no divã, levantou as pernas e se encolheu em seu canto. O que teria feito pensar a aquele patife que ela reagiria bem ante semelhante coisa? Teria ouvido algo a respeito de seus espetáculos em Londres? Até onde ela sabia, tinha ido a um.
Que sorte para ela que o irmão equivocado tivesse concluído que ela era um pouco selvagem e descuidada com o decoro.
***
—Se escondendo das obrigações de sua condição? —perguntou Dante ao entrar no escritório onde Vergil se achava lendo sua correspondência.
—Tomando um descanso porque se seguir sorrindo durante mais tempo meus lábios vão se romper.
—Tampouco está tão mal. Convidou Witherby e Saint John, assim poderá se divertir.
Vergil estava agradecido de que Pen tivesse convidado Daniel e Diane Saint John. Não os via há meses. Eram também amigos de Pen.
Ela tinha amizade com Diane Saint John quando a jovem acabava de chegar a Londres, e desempenhou um papel nos dramáticos acontecimentos que precederam o casamento de Diane com o magnata de uma companhia naval.
Quanto a Witherby, Vergil suspeitava que Pen o convidasse por razões que nada tinham a ver com que ele se divertisse.
Dante vadiava apoiado contra o marco da janela e, distraidamente, deixava cair a bolinha de chumbo sobre as rampas do brinquedo.
—Fleur está tão encantadora como sempre. Podemos esperar que anunciem seu compromisso uma noite destas depois do jantar?
—Não acredito.
—Já é hora, Verg.
—Dentre todas as pessoas que poderiam me dar lições, Dante, você seria o último. Minhas responsabilidades com os membros atuais desta família pesam mais que qualquer responsabilidade que pudesse ter respeito a membros futuros.
—Está me dizendo que resultamos tão caros que não pode te permitir uma esposa?
—Estou dizendo que qualquer mulher que se case comigo terá certas expectativas que neste momento não estou em condições de cumprir. O qual nos conduz ao assunto de seu próprio matrimônio, que será um alívio significativo para nossas cargas financeiras. Devolvo-te a pergunta. Devemos esperar uma notícia? Recordo um jovem cheio de confiança em si mesmo dizendo com presunção que uma semana bastaria.
—Maldita seja, estas coisas levam seu tempo. Além disso, ela é… Difícil de entender.
Levou uma cadeira junto ao escritório e se sentou à mesma altura que seu irmão do outro lado, com as pernas cruzadas, apoiando o braço sobre a mesa e deixando descansar sobre este a cabeça. Era a pose que Dante adotava quando queria falar «de homem a homem».
Dado que o tema de conversa era Bianca Kenwood, Vergil teria desejado economizar as confidências. Bianca constantemente penetrava em seus pensamentos, e a última noite, depois de sua volta a Laclere Park, surpreendeu-se rondando o salão entre as damas até que ela se retirou.
—Às vezes penso que ganhei terreno só para acabar por me dar conta de que era uma ilusão. Ela parece muito quente uma manhã, mas pela tarde a vejo ser igualmente calorosa com um criado. Posa esses grandes olhos azuis em mim e penso que deveria lhe propor matrimônio naquele mesmo momento, mas depois me ignora durante toda a hora seguinte. Às vezes penso que estou tratando com uma garota tão ignorante que nem sequer nota meu interesse, e outras vezes…
—Outras vezes?
—Outras vezes me pergunto se é tudo menos ignorante e se não está me tratando como um brinquedo. Me perdoe, mas estamos falando sem disfarces.
—Você certamente sim.
—Pergunto-me se está sendo deliberadamente intrigante. Esquiva de um modo calculado.
—Soa-me como se lhe estivesse jogando a culpa de seu fracasso.
—Possivelmente. Mas há algo nela indefinível… Um ar, uma fragrância, não sei o que. A olho e vejo toda a inocência da primavera, e de repente me devolve o olhar e me encontro pensando que seria uma esplêndida amante. É uma combinação confusa e fascinante.
Assim Dante acabou percebendo aquilo que Vergil notou nessa primeira noite na sala de jogos, e muito frequentemente após.
—Confio em que não seja muito fascinante.
—É obvio que não. Mas deixa a um fora de jogo. Há uma arte na sedução, e conhecer a mulher é uma parte essencial.
—Sempre estou agradecido por suas instruções nessas matérias, Dante, mas vamos ao ponto. Se propuser matrimônio amanhã, acredita que aceitará?
—Maldita seja se sei.
Isso significava que provavelmente não.
—Sabe que está interessado por ela? Talvez interprete seus cuidados como uma amostra de simples amizade, uma mão amistosa em um país estranho.
—Agora já sabe.
—O que significa isso?
—Acabo de vê-la na biblioteca.
—Declarou suas intenções?
Dante olhou ao longe e Vergil instantaneamente soube que tinha expressado seus interesses com ações, e não com palavras.
Quase salta por cima do escritório para estrangulá-lo.
—Me deixe expressá-lo de outro modo. Sabe que suas intenções são honestas?
—De que outro modo poderiam ser? Ela é sua pupila.
Vergil esfregou o cenho.
—Bom, suponhamos que ela ouviu falar sobre você…
—De quem? Seria estranho que Pen fosse contando histórias.
—De outra pessoa. Um criado. Jane, sua empregada. Nigel Kenwood.
—Não viu Nigel mais que uma vez em toda a semana, quando Pen o convidou, e não estiveram a sós, assim que ele não pôde…
—De quem é Dante. Supondo que alguém contou algo. Se você não explicar que suas intenções são honestas, ela poderia pensar que a persegue por outras razões.
Dante se endireitou.
—Se for assim, fui insultado.
—De todos os modos…
—Não sou um descarado.
—Recomendo que esclareça as coisas. Se ela te interpretou mal, só conseguirá que a partir de agora te evite.
Dante se levantou e caminhou até a janela.
—É obvio, tem razão. Entretanto, se fizer uma proposta de matrimônio e me rechaça se acabou o jogo. Explicar minhas intenções, embora não seja pedir a mão, termina sendo o mesmo. As garotas têm estes caprichos, e um homem que as persegue apesar delas fica como um parvo. Estava sentado na biblioteca e me surpreendi perguntando isso acaso não é contraditório?
—O que diz não tem muito sentido.
—O que acontece se ela é realmente inocente, mas tem à outra dentro? O homem que conseguisse despertá-la estaria em uma posição muito poderosa a respeito dela. Se se tratar de chegar pelo caminho mais rápido, pois…
—Não.
—Não estou falando de nada desonroso, Vergil. Só um pequeno escarcéu que nos economizaria muito tempo.
—Não fará nada que possa comprometê-la nem remotamente.
—Está sendo pouco prático e se preocupa muito pelo decoro. A ideia foi tua, recorda? Se a comprometer, o matrimônio será inevitável.
Não era seu tão cacarejado sentido do decoro o que se rebelava contra as insinuações de Dante, a não ser algo mais visceral, algo que tinha a ver com um fervor incessante, o perfume de lavanda e uma voz melodiosa que tinha estado cantando em sua memória durante uma semana de viagem e obrigações. Ao menos ser um santo tinha suas vantagens. Não podia malograr seus planos, mas não permitiria que Dante estendesse uma armadilha à garota.
—Ganhar honestamente o afeto de uma mulher pode parecer um longo e tedioso esforço a um homem acostumado a aproveitar as paixões rápidas, Dante, mas se pretende consegui-la é o que terá que fazer.
—Ao menos alguém nesta família tem um pouco de paixão. Entre você e Milton…
Ante a menção do nome de seu irmão todo o corpo de Vergil se esticou.
—Acredito que deveria ser muito cuidadoso e não mencionar Milton e seu imprudente apetite na mesma frase.
O ressentimento escureceu o rosto de Dante.
—Continua me culpando de algo que não pude prever.
—Equivoca-se. Não te culpo. Não havia forma de que soubesse o que pretendia fazer. Mas não o coloque nestas discussões. Me insulte tudo o que queira, mas deixa nosso irmão e sua memória à margem deste assunto. Nada disso tem a ver com a senhorita Kenwood e sua forma de se comportar com ela.
—Ah, sim, a adorável Bianca. Está tão preocupado por ela que está te pondo muito sutil, Verg. Seu amparo é curiosamente seletivo e meio cego. Não permitirá que ninguém comprometa sua pupila, mas está disposto a consentir que se veja atada por toda vida a um homem que despreza.
Aquelas palavras deram no alvo por razões que Dante nunca saberia.
—Eu não te desprezo.
—Ah, não? Pode ser que não me culpe, mas jamais me perdoou.
Vergil viu dor naquele belo rosto que nunca se mostrava preocupado. Devia ter sido mais consciente do sentimento de culpa que a morte de Milton causou em Dante.
Era estranho que a discussão sobre uma garota que não tinha nada a ver com aquele episódio o tirasse do baú.
—Posso te fazer críticas sobre a forma em que vive sua vida, mas isso não reflete meus sentimentos com respeito ao rol que desempenhou sem te dar conta no desastre do ano passado. Não precisa ser perdoado por isso, Dante. A ignorância não é uma ofensa imperdoável. Se nunca falei disto contigo antes, não foi porque te jogue a culpa a não ser só porque não quero me lembrar daquilo. Entretanto, possivelmente minha reserva não tenha sido justa para você.
O rosto de Dante era uma imagem de tensa serenidade, mas seus olhos brilhavam.
—Eu estava aqui. Jantei com ele. Deveria ter visto…
—Estou agradecido que esteve com ele durante sua última hora. Acredito que ele também esteve.
O ar na estadia estava carregado com a crua intimidade que tinha nascido de uma franqueza inesperada. Caiu uma barreira invisível cuja existência Vergil jamais foi consciente. O abismo que se abriu entre eles após a morte de Milton foi superado, e tudo devido às conflitivas emoções que a presença de Bianca Kenwood criou naquela casa.
Olhou seu jovem irmão com novos olhos, e percebeu uma profundidade cuidadosamente disfarçada por aquele despreocupado libertino. Poderia ter homens piores para ela.
Dante sorriu com ironia e se dirigiu sem pressa até a porta.
—Farei a sua maneira, Verg. Será interessante, tentar inspirar um afeto casto nada mais que com insinuações. Mas me limita injustamente. Não posso jogar minha melhor carta. Depois de tudo, não tenho nada a oferecer à garota mais que o prazer.
Uma hora antes, Vergil teria estado de acordo.
Capítulo 6
Na manhã seguinte Vergil foi o primeiro a baixar à sala do café da manhã. Queria tomar o café da manhã sozinho antes que chegassem os convidados.
Acabava de se sentar ante seu prato quando um movimento junto à janela chamou sua atenção. O brilho verde e dourado de uma cabeça loira e uma figura esbelta desapareceram entre os arbustos.
Bianca Kenwood se levantou ao amanhecer.
Afastou a vista da janela com preocupação. Dante disse que ela só havia visto Nigel Kenwood uma vez, mas Dante não sabia nada a respeito das aventuras a alvorada de Bianca. Era possível que ela e Nigel levassem uma semana vendo-se em segredo.
Deixou que uma espessa cortina cobrisse a imagem que se formava em sua mente. Não havia nenhuma prova sólida de que estivesse se encontrando com seu primo. Ao mesmo tempo, qualquer que fosse seu propósito, o certo era que entrava alegremente no parque ao amanhecer apesar do perigo dos caçadores furtivos com o que teve que enfrentar naquele dia a cavalo. Aquele episódio teria bastado para que qualquer jovem normal desde aquele dia temesse aventurar-se a sair a menos que a acompanhasse meio exército.
Mas ela não era uma jovem normal.
Antes que o servissem o café da manhã, saiu ao jardim e se dirigiu para o caminho por onde ela entrou.
—Laclere.
Vergil se voltou para a voz que o chamava. Cornell Witherby se aproximou dele dando grandes pernadas através do caminho que conduzia ao estábulo.
Ao entrar no atalho, o dourado e o verde ficavam engolidos pela erva.
—Não me diga que cavalgou durante a noite, Witherby. —Vergil viu que o recém-chegado ia vestido com uma jaqueta marrom de montar e calças de cor parda clara. As botas pareciam novas e o cabelo loiro que aparecia sob seu chapéu tinha um corte moderno.
Witherby era muito belo e parecia estar com um humor estupendo.
—Cavalguei a maior parte do caminho ontem pela tarde e dormi em uma estalagem.
—Estava ansioso para chegar?
—A cidade se tornou ruidosa estes últimos dias. Há manifestações diariamente. Muitos arrestos. Me fará bem o ar do campo. A musa se volta irritável ante tantas distrações.
—Confio em que não se distraia aqui. O café da manhã te espera, mas deverá alimentar sua musa em solitário. Minha irmã ainda não se levantou para cumprir com seu papel de anfitriã.
Witherby esboçou um sorriso ao ouvir mencionar Penelope. Ele sabia que Vergil sabia suas intenções, e Vergil sabia que ele sabia, mas um homem não fala dessas coisas com o pretendente de sua irmã casada, nem sequer embora sejam velhos amigos.
—Ficará feliz em saber que a reunião é de artistas, como é de esperar com Pen — disse Vergil.
—As festas da condessa são sempre deliciosas. Espero que esta supere as outras.
Vergil decidiu não especular sobre quanto deleite poderia estar Witherby antecipando. Uma casa de campo grande e tranquila oferece todo tipo de oportunidades para a intimidade.
Com firmeza afastou esses pensamentos de sua mente.
—Está vestido para cavalgar — observou Witherby— Vou contigo.
—Primeiro um passeio, depois cavalgaremos. Vá e se instale com a maior comodidade que possa. Saint John está aqui, além disso, normalmente baixa cedo, assim não se aborrecerá muito tempo.
Dando pernadas alegres e calmas Witherby se dirigiu para a casa. Vergil esperou até perdê-lo de vista, depois deu a volta e prosseguiu em busca de Bianca.
Quando conseguiu divisá-la reduziu o passo para poder segui-la a uma distância prudente.
A seguia porque se preocupava com sua segurança, mas também devia admitir que queria saber se Nigel a esperava em algum lugar.
Quando tinha entrado mais de um quilômetro entre as árvores, ela tomou um atalho que ia para o oeste. Ele viu que se dirigia para as ruínas. Não era um bom sinal. O castelo medieval era um lugar ideal para um encontro de casal.
Ela já não estava à vista quando ele entrou entre a erva alta que rodeava as ruínas das mais antigas fortificações do parque Laclere. Da torre tinha sobrevivido meia armação, e só uma sessão das velhas ameias perdurava, muitas paredes vieram abaixo e outras se viam a ponto de desmoronar. Grandes pedras dispersas cobertas de más ervas deixavam claro que uma vez serviram como o muro de amparo. De toda a estrutura da muralha o único relativamente intacto era uma solitária torre quadrada.
O assaltaram nostálgicas lembranças da infância, como o do fácil vínculo que uma vez compartilhou com Dante, e que os segredos e a falta de cuidado quase destruíram. Esquadrinhou a paisagem em busca do rastro da senhorita Kenwood.
De repente um som apagado e doce flutuou através do silêncio da manhã. Elevava-se e baixava como uma suave onda no meio da brisa, enviando redemoinhos que o rodeavam. Ele o seguiu até a fonte de onde provinha na torre quadrada, e entrou através da soleira de pedras.
O som o afogou, elevando-se fora das paredes e a abóbada. Acima na câmara da sentinela, a senhorita Kenwood praticava suas escalas, e sua voz ganhava em volume com cada ascensão que repetia. Ele se deteve e ouviu a escala de repetições de alguém que afiava e esquentava sua voz.
Ela se interrompeu e ele a ouviu falar. A Nigel? O homem devia usar sua música para atraí-la até ali. Se assim era, não corria um perigo imediato. Ele duvidava que ela decidisse abandonar sua paixão original para dedicar-se a explorar outras justo agora.
O som emergiu de novo, baixando torrencialmente a escada. Agora não se tratava de escalas, mas sim de uma ária de Rossini.
A melodia o embargou. Precisa e disciplinada, tinha a textura da elaborada canção de um pássaro, empapava a mente, transbordava o coração e agitava os sentimentos do modo em que a melhor música sempre faz. Os sensuais matizes de sua voz alagaram o reservado esconderijo que ele esteve lutando para manter a salvo.
Quase de um modo involuntário, suas pernas o conduziram à escura escada, para a sereia que sem saber o atraía a uma borda proibida.
Ela estava de pé só na câmara, de costas a ele, emoldurada pelas linhas das paredes que se estreitavam para formar um teto abobadado. Nigel não estava. Não havia ninguém ali. Ela devia ter falado consigo mesma.
Ele apoiou o ombro contra o marco da entrada, para olhar e escutar. Desejava poder ver seu rosto, mas em sua memória ainda conservava a radiante expressão da que tinha sido testemunha aquele dia em que ela atuou no salão de música.
Não lutou contra suas reações. Teria sido incapaz de fazê-lo embora gostasse de fazer. Em lugar disso deixou que suas notas se elevassem em uma maré que fez desaparecer o mundo inteiro exceto essa paixão dela e seu próprio e atônito desejo.
A fazia sentir-se tão bem. Transportada. Gloriosa. Sua voz tomava o poder de seu corpo e dissolvia sua substância até que só o canto existia. As pedras enriqueciam o timbre como nenhuma sala poderia fazer. Ela desejava poder levar Catalani ali.
Terminou muito rápido, e ela, com pesar, sustentou a última nota mais do que a partitura requeria. Esta ficou pendurando por cima dela, gotejando como o néctar de uma gema no interior de seu espírito aberto.
E finalmente se extinguiu, deixando-a gasta e um pouco melancólica.
De repente notou que não estava sozinha. Temendo que Dante a tivesse seguido deu a volta com receio.
O visconde estava apoiado com ar despreocupado contra a entrada da câmara, com os braços cruzados sobre o peito, olhando-a. Estava muito bonito, e havia nele algo intenso apesar de sua pose despreocupada.
—Seguiu-me até aqui, tio Vergil? Para me espiar?
—Foi só para te proteger, mas sim, a segui.
—Estou segura de que não corro perigo no parque Laclere. Seus audazes caçadores furtivos devem ter se mudado ou mudado seus métodos de caça. Não houve disparos esta última semana.
—Se sabe isso, é porque deve ter vindo aqui frequentemente. Sempre para cantar?
A câmara tinha uma janela, não maior que a fenda de uma flecha. Ela se dirigiu para ali, afastando-se dele. As pedras aumentavam os matizes do tom de Vergil e isso a fez mostrar-se precavida. Seus olhos tinham uma expressão oculta que ela não podia ler. Sua presença a impressionava como se fosse perigosa. Era uma reação ridícula, mas não podia evitá-la.
Examinou a paisagem, evitando seu olhar fixo.
—Não aceito a situação que te faz pensar que tem direito de me interrogar. Sim, venho aqui frequentemente, geralmente em manhãs como esta. Encontrei esta torre um dia enquanto cavalgava. E sim, para cantar.
—Sozinha?
Ela o olhou por cima do ombro.
—Acaso acredita que marquei um encontro com Nigel aqui? Seguiu-me para me proteger de intenções desonestas? —A ideia lhe deu vontade de rir. Um amparo tão cuidadoso de sua virtude no campo enquanto seu próprio irmão a assaltava na biblioteca— Perdeu seu passeio a cavalo para nada. Não me ocorreu a ideia de usar esta torre para encontros desse tipo. Terei-o em mente para futuras ocasiões.
—Duvido que o faça. Não terá tempo para pôr em prática. Não a adverti antes, mas esta câmara afeta ao som do mesmo modo que as antigas Igrejas normandas. Qualquer que seja a potencial atração de seu primo, estas pedras têm mais.
—Possivelmente ele deva escutar. Como fez você.
Ele se separou da parede com um vago sorriso.
—Se o fizer, definitivamente necessitará amparo.
Caminhou para ela despreocupadamente. Ela sem se dar conta se afastou até a borda. Em realidade era uma tolice, mas aquele dia havia nele algo diferente. Algo fascinante, mas também desconcertante.
—Pen anunciou que cantará esta noite. Está ensaiando sua atuação, para se assegurar que estará nas melhores condições frente à Catalani?
—Sim.
—Falou um bom momento com ela ontem à noite. Um encontro tete a tete. Suponho que explicou seus planos.
—Não tem por que preocupar-se, não vou pôr nem você nem Pen em uma situação delicada. Ninguém mais me ouviu e acredito que ela sabe que é necessária a discrição entre os convidados de um visconde.
Ele continuava movendo-se, olhando ao redor do cômodo como se não tivesse estado ali em muito tempo. Ela sentia constantemente o impulso de partir longe.
—O que te aconselhou Catalani?
—Estava de acordo comigo em que se quero receber a melhor instrução devia ir a Itália, ou trazer um dos melhores professores aqui. Enquanto isso, deu-me o nome de um tutor com quem poderia trabalhar em Londres. Recomendou-me o senhor Bardi, que trabalha como professor do bel canto com alguns dos melhores cantores de Londres.
—Nenhum outro conselho? Não esperava que Catalani fosse tão reservada.
—Perguntou-me se entendia essa vida, se sabia o que implicava.
—E sabe?
—Sei que implica trabalho duro. Contínuas viagens. A necessidade de atuar apesar de estar cansada ou doente.
—Não é a isso a que ela se referia.
Seu rosto se acendeu.
—Sei a que se referia.
—Não acredito que saiba. Não de verdade. Duvido que tenha a mais remota ideia do que significa se converter em alguém que nenhuma mulher respeitável teria como amiga. Essa cantora de ópera pode visitar casas como esta, mas só há uma Catalani. Não será o mesmo para você. Não haverá nenhuma tia Edith na Inglaterra ou na Itália para te proteger das más línguas.
A irritação a fez ficar cravada no chão.
—Sei o que essa gente chamada decente pensa sobre essas mulheres. De fato vi muitos homens decentes aproximar-se de minha mãe às vezes. Quando cresci entendi o que queriam. Tratarei com eles como ela o fazia. Supõe-se que devo renunciar a algo importante para mim, essencial para mim, por culpa de preconceitos sem fundamento?
Ele continuava caminhando. Fazendo círculos e círculos. Se ele não fosse o proprietário de uma cidadela, se sua conduta não fosse tão despreocupada, ela teria sucumbido à sensação de estar sendo acossada. Por ser alto ele devia permanecer perto do centro do cômodo, e o círculo que desenhava parecia bastante menor agora que ela se achava justo no centro.
—Os preconceitos a respeito de muitas atrizes e cantoras estão muito bem fundados — disse ele, como se discutir sobre mulheres de má reputação fosse um tema perfeitamente aceitável.
—A vida dessas mulheres é muito insegura, e eu suponho que muitas artistas precisam aceitar o amparo que lhes oferecem.
—Você acredita que é o desespero o que faz que essas mulheres se convertam em amantes e cortesãs, e que sua herança te salvará? Seu julgamento é mais duro que o meu. Eu assumo que é a solidão. Um matrimônio decente é quase impossível. Haverá quem esteja disposto, mas ninguém a quem você seja capaz de amar.
Aquela conversa tão delicada se tornou de repente pessoal.
—Sei. Entretanto, há coisas que valem sacrifícios.
—Uma vida inteira de sacrifícios? Pensa isso agora, mas e dentro de dez anos? E de quinze? Sem casar, sem filhos, sem lar. Entendo que é mais triste que escandaloso que para a maioria dessas mulheres o dia começa quando alguém lhes oferece algo parecido ao amor e o agarram. Não importa o que decidam quando começam, depois de um período virtuoso, uma solidão antinatural, a escolha é virtualmente inevitável.
—Como se atreve a prognosticar um futuro tão desolado e sórdido para mim? É muito cínico ao afirmar que se perseguir minha carreira de cantora, estarei predestinada a me afundar. Embora tampouco veja por que se importa tanto.
Ele se deteve e se afastou uns passos.
—Sou responsável por você.
—E por isso se mete em minha vida, para me proteger de mim mesma. Durante dez meses.
—Mais. Se puder achar a maneira.
«Mais!»
—Não se atreva a tentar me impor mais obstáculos. Não o tolerarei.
—Sua decisão me deixa pouca escolha. Deve acreditar que pode viver como uma monja, mas duvido que possa fazer isso indefinidamente.
—Suas implicações são tão insultantes como escandalosas.
—Não são insultantes absolutamente. E escandalosas só se acabar por te converter na amante de um homem em lugar de na esposa de um homem.
—Cruzou a linha, cavalheiro. É impróprio que me fale dessa forma, inclusive sendo meu protetor.
Vergil inclinou a cabeça e um sorriso sarcástico bateu as asas brevemente em seus lábios.
—Cruzei a linha? É bastante provável. Surpreendo a mim mesmo. — Olhou a seu redor como se de repente se desse conta de onde estavam. —Terminou ou pretende seguir praticando?
—Quero ensaiar a ária uma vez mais. Voltarei para casa em seguida.
—Esperarei e te acompanharei de volta.
Apoiou-se outra vez contra a parede, em uma pose de relaxada paciência. Ela notou um acanhamento peculiar.
Ela se dispôs a dar volta, mas ele negou com a cabeça.
—Se não puder praticar com um homem te olhando, como atuará em um teatro que esteja cheio deles?
«Porque isso é diferente.» Parecia uma resposta irracional, mas era diferente. O foco de dois olhos, desses dois olhos, incomodava-a mais que um oceano de rostos. A atenção de uma pessoa, dessa pessoa, agitava-a mais que uma sala de concertos cheia a transbordar. Se ao menos outra pessoa estivesse presente, isso teria servido para diluir essa conexão singular. Depois de tudo, ele esteve no salão de música e ela não reagiu assim.
Ela afastou seu olhar e tentou apagar a consciência dele, mas não funcionou. A ária começou fracamente, como se o ar encontrasse um obstáculo ao passar através de sua garganta. A obstrução fez que seu coração palpitasse nervosamente. Estúpido. Estúpido. Recuperou certa calma graças ao ressentimento por sua intrusão e encontrou seu caminho.
A música se encarregou do resto. A concentração na técnica e a expressão a absorveram. O regozijo a transportou. Entretanto, não foi como a última vez. Outro espírito se unia a ela naquela viagem, seguindo-a, empurrando-a, abrangendo-a. Ao seguir com a canção não pôde resistir a olhá-lo. Ele esperava de um modo indiferente, olhando para baixo, um homem oferecendo educadamente seu tempo antes de passar a dedicar-se a outras coisas mais importantes.
Ele notou sua atenção. Elevou seu olhar e encontrou com o dela. Ela quase se quebra em um abrupto silêncio. Os olhos dele resultavam mais desconcertantes que de costume. Sua expressão profundamente cálida, sutilmente selvagem e claramente masculina não tinha nada de paternal ou distante, e muito menos de protetora.
Deus santo foi seu canto o que tinha provocado isso?
Apesar de seu desconcerto inicial, uma surpreendente emoção a atravessou como um raio. Em lugar de vacilar sua voz remontou voo. Não podia afastar a vista dele e a ária criava entre eles uma provocadora união. Espiritual. Sensual. Quase erótica.
Um instinto de alarme a sacudiu, apesar de que uma embriagadora sensação de poder crescia. A euforia se transformava em algo inegavelmente físico entre sua fascinante conexão.
Ela não poderia ter se detido embora tivesse querido. Emoções desconhecidas impulsionavam sua voz com novas paixões. Fechou os olhos ao final, mais para conter as sensações que para saboreá-lo. As pedras sustentaram os últimos sons como o silencioso eco de um longo pulsar do coração.
Não queria abrir os olhos. Ali ocorreu algo que não queria saber, algo que não implicava palavras nem tato, mas que era mais indecoroso que o beijo de Dante. Ele devia saber. Ela devia ter parado. Não queria olhá-lo até que aquela terrível falta de fôlego se aplacou.
Uma brisa cálida a fez abrir um pouco as pálpebras e viu umas botas limpas perto de sua saia. Uma mão dele, magra e forte, tomou a sua, a levou até os lábios e lhe deu um beijo veloz.
—Seu canto é nada menos que magnífico senhorita Kenwood. Catalani ficará impressionada esta noite.
Ela teve que olhá-lo. Ele fez um gesto formal assinalando a escada. Sua expressão recuperou seu habitual autodomínio e altivez, mas a outra seguia ali, como se o manto de reserva com que ele a cobriu fosse transparente.
Guiou-a pelo caminho, dando sua mão para baixar as tortuosas rochas, uma cuidadosa representação de uma imparcial e cortês preocupação. Enquanto davam a volta ao longo da parede para chegar até o atalho, ele se deteve e elevou a vista até as ameias.
—É muito pitoresco — disse ela, esperando que um pequeno bate-papo servisse para vencer aquela estranha sensação que parecia instalada.
—Meu pai considerou a possibilidade de restaurá-lo e reconstruí-lo. Mas finalmente, em lugar disso decidiu remodelar a casa. Isto teria custado três fortunas em lugar de uma, e o resultado teria sido uma moradia apenas habitável.
—Acredito que é mais bonito tal e como está, aos pedaços e com retalhos de história aparecendo entre os arbustos. Seria uma tolice reconstruí-lo completamente e com cimento novo.
—Estávamos acostumados a brincar aqui de meninos. Dante e eu éramos os cavalheiros, e obrigávamos Pen a interpretar o papel da dama prisioneira por um malvado guardião. —Um amplo sorriso apareceu ao dizê-lo— Você pode interpretar esse papel agora.
A pequena trama que contou podia tê-la ajudado a reduzir a percepção de tê-lo de pé junto a ela, mas simplesmente não era capaz de responder com o mesmo tom.
—Brincava também seu irmão mais velho com vocês?
—Quando éramos muito jovens sim o fazia. Depois cresceu e nos deixou para trás, suponho. —Seu olhar às ameias se voltou reflexivo— Quando se fez maior se refugiou em seus próprios interesses, e em sua própria mente. Quando começou a ir à universidade já era um estranho.
—É por isso que agora quer ler suas cartas? Para conhecer coisas dele que não te permitiu conhecer enquanto vivia?
De repente moveu a cabeça e lhe dirigiu um estranho olhar, como se ela o tivesse surpreendido.
—Suponho que sim, em parte.
Sua atenção se separou das emoções para voltar a centrar-se na torre outra vez. Ela se obrigou a afastar o olhar, para a parede.
—Eu gostaria de explorar o torreão algum dia.
—Não recomendo isso. Há anos é perigoso. O passeio pela muralha também é. Não havia tantas pedras espalhadas pelo chão quando era menino.
Para enfatizar sua afirmação, uma pedra do tamanho de um punho caiu ao chão, aterrissando justo aos seus pés. Vergil olhou para cima franzindo o cenho, esquadrinhando com seus olhos as ameias. Bianca deu a volta para afastar-se.
Um ruído sinistro se ouviu acima. Outra pedra caiu, golpeando o ombro de Bianca.
De repente tudo se fazia impreciso. Ele a pegou pelo braço para afastá-la, fazendo-a apoiar-se contra a parede. Ela comprovou que se achava imobilizada, entre uma pedra dura e um corpo duro também, com os ombros abraçados por uns braços que a cobriam, seu rosto escondido contra o pescoço dele e sua cabeça apertada contra a sua. Sua vista quase já tinha se endireitado quando uma avalanche letal de grandes rochas caiu ante eles, uma delas ricocheteou sobre suas cabeças antes de cair ao chão roçando as costas de Vergil.
Ela olhou horrorizada a chuva de morte e se encolheu dentro de seu refúgio. Pareceu transcorrer uma eternidade antes que os chiados e estrondos cessassem.
Vergil elevou a cabeça para examinar a parte superior do muro.
—Toda uma parte das ameias veio abaixo.
—Uma lição apropriada para evitar o encontro com estas ruínas no futuro. Quem imaginava que a tranquila Laclere Park podia ser tão perigoso?
Ela falou presa do nervosismo apoiada contra seu lenço. O tecido azul de seu casaco acariciava suas bochechas e seus dedos descansavam na seda bordada de rosas de seu colete cinza. A comoção a colocou em um estado de alerta extremamente sensível e uma parte de sua mente, de maneira absurda, contemplava a variedade de texturas de seus objetos. E a maravilhosa segurança que proporcionava seus braços. E sua masculina fragrância.
—É possível que meu canto tenha ocasionado isto?
—O mais provável é que a gravidade tenha rematado o que o tempo iniciou. De todos os modos, as possibilidades de presenciar algo assim são mínimas. Possivelmente sua voz acrescentasse um empurrão. —Inclinou a cabeça para ver seu rosto— Está ferida?
—Acredito que não.
Uma mão deslizou ao longo de suas costas para apertá-lo brandamente no ombro.
—E aqui dói?
—Está um pouco dolorido. Mas o mais provável é que só tenha um arranhão.
Ele não a soltou. Com uma mão ainda a envolvia e a outra descansava cuidadosamente em seu braço debaixo do ombro ferido. Sentir-se protegida por sua força a tranquilizava muito.
—Isto é mais ou menos o que disse depois que o cavalo te lançou ao chão. Supõe-se que deveria desmaiar ao enfrentar tanto perigo.
Ela sabia que ele não se referia às rochas, nem aos caçadores furtivos, a não ser à proximidade física que ambos os episódios favoreceram.
Sua advertência soou tão clara como uma sereia junto a seu ouvido. Mas não pôde lhe fazer caso. Sua masculinidade a fazia sentir-se pequena e indefesa de um modo deliciosamente pecaminoso.
Ela levantou a vista para seus reflexivos olhos.
—Eu nunca desmaio.
Voltou a ver nele aquela expressão que tinha quando se achavam no cômodo de pedra, enchendo-a de maravilhosas palpitações. A mão que tinha sobre seu braço deslizou para seu ombro, para voltar a baixar.
—Não desmaia? Nunca?
Ela voltou a sentir a lenta carícia. A suave fricção criou um murmúrio de sensações. Dentro dela. Através dela. Aquela ária havia a tornado vulnerável, e o medo tinha arrebatado seu habitual autodomínio.
Devia fazer algum comentário malicioso para acabar com esse pequeno jogo, mas só queria que aqueles dedos voltassem a deslizar sobre seu braço.
—Nunca.
—Todas as garotas deveriam desmaiar ao menos uma vez.
A mão a acariciou para cima e não baixou. Foi uma lenta carícia. Delicada sobre seu ombro, quente ao passar por seu pescoço, suave em sua bochecha, firme entre seu cabelo.
Ela quase se derrete quando ele inclinou a cabeça e a beijou nos lábios.
Lábios quentes. Firmes e controlados como tudo nele. Pausados. Comedidos, mas decididos. Ele roçou sua boca com carícias antes de passar a um jogo mais sedutor. Sutis beliscões fizeram que seu lábio inferior pulsasse e tremesse. As estocadas de uma língua diabólica enviaram espetadas dispersas através de seu rosto e seu pescoço. A sensibilidade de seus seios despertou e ela instintivamente o abraçou, procurando o contato que sua profunda ternura reclamava.
Ele a apertou para senti-la mais perto e a olhou de um modo tenso e cheio de avaliação. Da garganta dela escapou um suspiro ao sentir a pressão em seu peito. Beijando-a com feroz rendição, arrastou-a até a soleira da torre, entre a luz salpicada e as pedras frias.
Apoiou-se contra a parede e a atraiu contra seu corpo em meio de um torvelinho. Seus braços a rodearam e a dominaram, segurando-a firmemente contra seu corpo e os encantos de sua boca. Beijos febris assaltaram seu pescoço e suas orelhas, despertando um frenético e insistente anseio. Seus lábios seduziram os dela abrindo-os para uma investigação interna de escandalosa intimidade.
Ela se agarrou a ele e se rendeu tonta pelas extraordinárias sensações, elevando-se impotente em meio de uma euforia em que tudo se voltava impreciso.
Era tão agradável. Glorioso. Transcendente. A exaltação de seu canto feito física. O poder e potencial da última ária convertido em substância.
Aqui. Agora. Sim. Com uma voz inaudível seu sangue estalava em demandas entre seus ofegos. Aqui. Agora. Perfeito. Escandalosos batimentos de seu corpo se uniam ao canto. Inclusive sua mente, a parte que deveria conhecer melhor, repetia uma litania de escandalosos impulsos. Suas mãos deslizaram descaradamente sob a jaqueta dele para acariciar e agarrar seus lados e suas costas.
Algo se esticou dentro dele. Ela notou uma mudança perigosa e soube que seu gesto funcionou como algum tipo de afirmação. Os braços dele a acariciaram de uma forma possessiva e seu corpo arqueado se esticou com um impulso indecente. Suas mãos começaram uma exploração através de suas anáguas e ali ficaram. Sua imperiosa paixão e o lugar para onde ele se aventurava deveria assustá-la, mas a excitação só a permitia lamentar que a quantidade de roupa se interpusesse separando-os e inibindo-os.
«Sim. Quero… Quero…» Não sabia o que. Uma fome urgente pulsava através dela, com uma origem e um destino que não entendia. «Mais perto. Mais. Eu quero…»
Como se ele tivesse ouvido seu rogo silencioso, sua mão deslizou sobre sua cintura. Mantendo o polegar em seu estômago e os outros dedos em suas costas acariciaram para cima a bandagem de seu vestido. A desejada expectativa reduziu a respiração dela a uma série de inalações entrecortadas. Um beijo surpreendentemente suave acompanhou o gesto de sua mão para seus seios.
«Oh… Oh.» As deliciosas sensações que sua carícia provocou a deixou aturdida. Atravessaram-na e fluíram através dela, unindo-se aos estímulos provocados pelos crescentes beijos que lhe dava no pescoço e os assaltos a sua boca, que obscureciam sua mente. Deu e recebeu prazer a seu desejo, e o corpo dela, afligido e sem forças só podia aceitá-lo e submeter-se, muito ignorante para oferecer mais que consentimento ao ardor que ambos liberavam e subjugavam.
Os dedos brincavam com o tecido que cobria seus mamilos, duros e ardentes… «Sim…» Procurando agora o babado de seu decote… «Por favor…» Deslizando sob o tecido para explorar o novo desenfreio da pele contra a pele… «Ah, sim…» Seus braços a atraíram mais perto, com mais dureza, e um joelho dele pressionou entre as anáguas e a saia, a pressão foi vergonhosamente bem recebida… «Oh… Céus…» O vestido começou a soltar-se enquanto o corpo da manga deslizava pelo braço e uma mão elevava seu seio nu para uma cabeça morena… «Oh…» Ele o acolheu na umidade de sua boca e com seus quentes lábios iniciou um tortuoso percurso desde umas suaves mordidas até… «Oh…» Uns lamentos escandalosamente excitantes… «Oh…» Deliciosas correntes de prazer desceram por seus poros, enchendo-a, exigindo mais…
…Um movimento, um fraco rangido, ressoou entre as pedras.
Ele se endireitou bruscamente, cobrindo a nudez dela com seu peito, rodeando-a com seus braços para protegê-la enquanto escutava atento. O possível significado daqueles sons abriu passo através dos aturdidos sentidos de Bianca, destruindo o mundo de sensuais sonhos e fazendo-a voltar sem piedade para a realidade.
—Há alguém…? —sussurrou, apertando os dentes contra o lento desdobramento de sua excitação física. Ainda podia ouvir algo, era mais a vibração transportada através do muro que um som real. Incomodava como uma invasão entre os batimentos de seus corações.
Subiu a alça da blusa e a manga do vestido, logo a afastou.
—Fique aqui.
Caminhou a grandes pernadas até a torre. Ela lutou freneticamente contra seus objetos, conseguindo com muita dificuldade recompor seu vestido, experimentando a severa culpa de um criminoso surpreendido no ato do delito. Um abismo se abriu em seu coração.
Se alguém os visse, seria desastroso.
Podia ouvi-lo caminhando ao redor. O largo abismo se converteu em um enjoo, um imenso vazio. Cobrou consciência de seu comportamento como se recebesse um golpe. Aquilo tinha sido uma loucura. Ela tinha atuado de forma desavergonhada. Eles nem sequer se gostavam.
Ouviu-o voltar e tentou fortalecer seu ânimo.
Apareceu ante a soleira, uma forma magra e escura rodeada de luz. Ela não podia ver bem seu rosto.
—Se havia alguém aqui, já se foi. Deve ter sido tão somente um animal.
Ela rezou para que assim fosse, e esperava que se alguém veio da casa para explorar o torreão, não tinha esquadrinhado de perto a entrada da torre.
Ofereceu a mão em um gesto enérgico para fazê-la seguir. Ela se perguntava o que se suporia que deveria fazer ou dizer uma mulher depois de um comportamento tão descarado, e sentiu quase náuseas ante tanta confusão e vergonha. Empreenderam o caminho de volta para casa.
Ele não disse uma palavra. Para ela foi o quilômetro mais longo que já caminhou em sua vida.
Tentou achar consolo na ideia de que tinha demonstrado que era muito perigosa para estar perto de Charlotte, mas a ideia de abandonar Laclere Park estranhamente incrementou sua consternação.
Ele se deteve ante as árvores próximas ao estábulo.
—Faltam-me as palavras, senhorita Kenwood. Meu comportamento foi abominável, e me desculpar não é suficiente. Prometo que não tenho o costume de pressionar às mulheres jovens desta forma. A única explicação que posso dar é que não era eu mesmo esta manhã.
«Não o foi?» de repente o que ocorreu não resultava tão surpreendente tratando-se desse homem. Pareceu que o acontecido era uma consequência natural de seu caráter, um pouco controlado, mas que sempre estava ali, como uma corrente subterrânea sob a calma, uma corrente percebida, mas nunca vista e impossível de nomear. Esta produziu tensão entre eles desde o começo, como uma maré perigosa. Ela havia sentido seus efeitos, mas até hoje não os tinha entendido.
Ele seguia com os olhos sobre o atalho, sem olhá-la. Com suas palavras assumia a culpa, mas ela se perguntou o que pensaria realmente. Que demonstrou que não podia viver como uma monja? Que sua natureza era a de uma cortesã e ele deveria permitir que conseguisse a ruína que procurava? «Pressionar» não descrevia realmente o que ocorreu e os dois sabiam.
—Não fui prejudicada.
—Se nos vissem, definitivamente sim seria prejudicada.
—Eu não acredito que nos viram. Se alguém se aproximasse da entrada da torre, teríamos percebido.
—Se tivesse razão, isso só evitaria as piores das possíveis repercussões. Não pode negar que minhas ações foram indesculpáveis e desonestas, sobre tudo porque sou responsável por você. A comprometi, e não importa se alguém sabe ou não. Se você o exigir, farei o correto contigo.
—O correto? Quer dizer… Oh, não, essa é uma ideia absurda.
—Certamente promete ser uma ideia complicada, considerando… Bom… Enfim, complicada. De todos os modos…
—Não nos deixemos levar por seu senso de decoro e de dever, por favor. Não me sinto comprometida, nem arruinada.
Depois de dizer isto recebeu um severo olhar.
—Ah, não? É uma jovem extraordinariamente serena.
Aí estava. A insinuação de indecorosa cumplicidade por sua parte. Em realidade o animou, se a pessoa quisesse olhar as coisas com franqueza. Aquele olhar e aquela pergunta revelavam o que ele tinha em mente, e era difícil culpá-lo, considerando todas as ambiguidades que deliberadamente deixou cair com respeito a suas experiências.
—Digamos que não me sinto tão comprometida para recorrer a uma medida tão extrema como o matrimônio. Possivelmente simplesmente deveríamos esquecer este assunto.
—Sua equanimidade me impressiona. Deveria estar agradecido de que se mostre tão compassiva.
Não se sentia absolutamente compassiva. Sentia-se transtornada, desolada, decepcionada. Descer daquela glória a essa discussão formal sobre como expiar a poderosa experiência que compartilharam… Dava vontade de feri-lo, de bater nele, de dar uma bofetada que vencesse essas frias considerações sobre como retificar sua imprudência.
—Simplesmente não desejo complicar as coisas mais que o necessário, especialmente de um modo que me faria perder o controle sobre meu futuro e requereria um sacrifício por ambas as partes que levaria a uma vida inteira de infelicidade. Não me casaria contigo fosse qual fosse o escândalo que me ameaçasse. Entretanto, nossas futuras relações se tornaram embaraçosas. Acredito que será melhor que aceite minhas preferências a respeito de minha estadia na Inglaterra. Jane e eu encontraremos uma casa em Londres e…
—Serei eu que me afastarei. Minhas visitas a Laclere Park serão pouco frequentes e breves durante os próximos meses.
—Isso é muito injusto com suas irmãs.
—Quando você for à cidade passar a temporada minha presença será inevitável, mas por então possivelmente o tempo terá atenuado minha ofensa.
Ele não queria dizer isso. Sabia que não tinha sido realmente uma ofensa. Não se podia dizer que a tinha forçado ou forçado a si mesmo.
Ela deu a volta, aliviada e ao mesmo tempo triste por saber que depois daquela festa seriam muito poucas as ocasiões em que o veria.
Capítulo 7
Vergil estava certo. Ela seria uma amante esplêndida.
Tentou impedir aquele pensamento enquanto cavalgava de volta para as ruínas. Dava voltas em sua cabeça, uma reação absolutamente desonrosa de um homem que sucumbiu a desonrosas inclinações.
Seu comportamento foi vergonhoso. Censurável. Enlouquecido.
Isso não o impedia de voltar a rememorar e experimentar o contente consentimento que ela mostrou. Sentiu em sua boca seus suaves lábios e seus doces peitos. Explorou sua vibrante excitação com a pressão de seu joelho.
Se o intruso não os tivesse interrompido, a teria levado ao cômodo e teria feito amor até que as pedras ressonassem com seus gritos.
E ela permitiria.
Parou e bateu a palma da mão contra uma árvore, em busca de uma realidade tangível que pudesse destruir o desejo que voltava a dominá-lo.
«Confusa», havia dito Dante.
Maldita seja, sim era confusa.
Ela nem sequer gostava dele. Raramente falavam sem discutir. Ele esteve rondando em sua presença os últimos dois dias, mas ela nunca o buscava. E que então se lançou para cima sem nenhum tipo de inibições…
Caminhou com passo decidido através das árvores, possuído por um estado de ânimo perigoso. A calma que ela mostrou no estábulo foi mais que perturbadora. Exasperante. Quase para ruborizar-se. Uma serenidade total. Ele foi uma mescla desordenada de impulsos contraditórios, enquanto que ela se mostrou incrivelmente tranquila. «Não fui prejudicada.»
«Quase te arranco a roupa e te atiro ao chão sobre uma pedra.»
«Não me sinto comprometida, nem arruinada.»
«Bem, maldita seja, eu sim. Os homens que seduzem suas pupilas são repugnantes.»
«Não me casaria contigo fosse qual fosse o escândalo que me ameaçasse.»
Parou na borda da clareira do castelo com essas palavras ecoando uma e outra vez em sua memória.
Ele deveria se sentir agradecido ante seu terminante rechaço. Mas em vez disso experimentou uma ira irracional. Em parte porque sua serenidade o fazia perguntar-se se tudo teria sido para ela simplesmente um jogo caprichoso. E, sobre tudo, porque sua determinação o fazia cobrar consciência do fato deprimente de que ela jamais seria sua da forma em que ele queria.
Menos mal. Seria uma amante esplêndida, mas uma esposa impossível.
Deixaria que Dante se arrumasse com ela.
Essa ideia incitou nele um ressentimento primitivo e possessivo. Tentou reprimi-lo esforçando-se para concentrar-se nas ameias do castelo.
Uma escada se elevava em uma das bordas do muro, tão danificada que faltavam todos os degraus. Só podia subi-la esticando as pernas em busca de perigosos pontos de apoio para os pés. Uma pequena seção de rochas caiu sobre a erva enquanto escalava. Detinha-se a cada momento, tentando identificar se o som se parecia com aquele que tinha ouvido quando sustentava Bianca na torre.
Acima no caminho da muralha existiam ocos. Alguém tinha substituído algumas zonas desaparecidas com madeira nova, mas outras consistiam em fragmentos de tábuas podres, que sem dúvida não haviam sido reparados ao menos há um século.
Avançou com cuidado até chegar ao ponto do muro onde um enorme dente das ameias se desprendeu por completo. Aí abaixo se via o novo montão de pedras. «Quem teria imaginado que a tranquila Laclere Park podia ser tão perigosa?»
Uma questão endiabradamente certa.
Examinou a rugosa superfície onde as pedras se encontravam até tão pouco tempo e apalpou a argamassa das pedras que ainda se sustentavam em pé. As ligaduras podres caíam em uma pequena chuva de pó, unindo-se com um montão de pedrinhas a seus pés.
Nada parecido podia ver-se no resto das ameias. Examinou a superfície das pedras outra vez, procurando o rastro de alguma ferramenta. Podiam ser fruto de sua imaginação os sutis arranhões provocados por um instrumento metálico?
Caçadores furtivos disparando armas de fogo e depois uma muralha que vinha abaixo. Possivelmente tão somente fosse uma coincidência. Não havia nenhuma evidência do contrário. De todos os modos não gostava disso.
Desceu da muralha, procurando alguma prova de que alguém mais tivesse estado ali recentemente. Os sons da torre de pedra rondavam em sua memória. Não ouviu ninguém caminhando pelo atalho. Entretanto, aquele intruso podia ter sido simplesmente um dos convidados explorando o pitoresco castelo Laclere Park.
Retornou para casa. Quando passou ante a sala do café da manhã, viu Bianca em uma mesa na companhia de Cornell Witherby e Daniel Saint John.
Ela sorria e ria ante alguma brincadeira de Witherby.
Que incrível serenidade.
Provavelmente para ela só foi um jogo caprichoso, uma maneira de demonstrar ao santo que não era tão puro. «Possivelmente simplesmente deveríamos esquecer este assunto.» Dirigiu-se a seu escritório dando grandes passos, ressentido até a medula por um ponto de honestidade que admitia que enquanto ela poderia ser capaz de esquecê-lo, ele certamente não era.
«Eu nunca desmaio.»
«Por mim o fez!»
Estava reagindo como um moço inexperiente e isso o irritava ainda mais. Enviou um lacaio para procurar Morton, depois se recostou em sua poltrona e pegou alguns papéis.
Morton chegou quando estava terminando seu escrito.
—Quero que esta carta dirigida ao advogado de Adam Kenwood seja enviada a Londres pelo correio urgente — disse enquanto selava a missiva— Leva-a ao povoado pessoalmente agora mesmo. —Pôs a carta entre os grossos dedos de Morton— Ficará aqui quando voltar a partir para o norte. Eu não gosto da ideia de deixar à senhorita Kenwood em Laclere Park sem ninguém que a vigie.
—Acredita que corre algum outro perigo?
Vergil sabia que Morton empregava a palavra «outro» porque estava pensando no perigo que todas as mulheres belas corriam estando perto de Dante.
Possivelmente corria esse perigo. Ele não sabia. Entretanto, considerando os caçadores furtivos, as paredes que desabam e os assaltos do visconde Laclere, o perigo de estar perto de um libertino era muito menos preocupante.
***
Depois do jantar Bianca se achava sentada entre Fleur e a senhora Gaston, conversando com Pen e Cornell Witherby.
—Será uma série de epopéias — explicava à senhora Gaston— Vendidas por assinatura, embora financie a impressão. O poema do senhor Witherby será o primeiro.
Cornell Witherby sorriu modestamente. Penelope lhe dedicou um olhar cheio de admiração.
A senhora Gaston tinha a si mesma como uma rainha aceitando comemorações e oferecendo favores. Seu cabelo castanho avermelhado brilhava como o cobre à luz da lareira, e a satisfação que sentia ante sua própria importância se deixava ler em seu rosto.
—Enquanto nós falamos os impressores já estão trabalhando. Espero que cause sensação e que se necessitem mais edições. Não pelos benefícios materiais, é obvio. Pelo alcance das pessoas de bom gosto e sensibilidade o prodigioso talento do senhor Witherby é minha meta.
Falava como se o conselho divino ditasse seu trabalho, mas Bianca suspeitava que a importância que se outorgava ao ser patrocinadora a motivava muito mais que seu amor pela arte.
—Quais serão os outros poetas? —perguntou Fleur.
O que seguiu foi uma discussão sobre os méritos dos jovens poetas que poderiam merecer o mecenato.
Bianca mal ouvia o que diziam.
Passar a tarde desfrutando da doce companhia de Fleur provocou um horrível sentimento de culpa. A fria amostra de cortesia de Vergil deixou um vazio devastador. Um relógio interno advertia o passo de cada minuto daquele comprido dia com tic-tacs de agonia.
Tentou não voltar a olhar Vergil, nem dirigir-se a ele, mas era consciente dele a cada instante. Sentia sua presença quando estava perto. Ouvia cada palavra que dizia, inclusive embora se achasse na outra ponta da estadia.
Duas Biancas reagiam ante cada movimento dele. A velha Bianca, a inteligente, catalogava seus defeitos com uma ira mordaz. Mas havia uma nova que rezava para obter algum sinal por parte dele. Esta nova Bianca se rebaixava com lastimosos suspiros, mas a velha Bianca não podia fazê-la desaparecer.
De algum modo, de algum modo, superaria esse dia.
—… Haverá terríveis problemas se revogarmos a Ata de Combinação — entoou lorde Calne enquanto ele, Vergil e o senhor Saint John caminhavam para o pequeno grupo— Se se permitir que as classes mais baixas se agrupem, a ordem se verá ameaçada. Não podemos permiti-lo. É muito perigoso. Poderia terminar como a França em 93. Lamentará Laclere.
Pequenas chamas apareceram nos olhos de Daniel Saint John. Olhou lorde Calne como se fosse um imbecil.
—Parece como se soubesse muito pouco sobre o que aconteceu na França. Do contrário entenderia que as pessoas não podem viver para sempre com uma bota pisando em sua cabeça.
O rosto de lorde Calne ficou vermelho.
Vergil falou de forma apaziguadora.
—A Inglaterra não pode apoiar sua política nos excessos do povo francês de uma geração anterior, Calne.
—Oh, Deus nos libere. Política! —Cornell Witherby protestou brandamente, dirigindo-se às damas— Não serve nada mais que para a sátira.
Um calor especial brilhou em seus olhos ao dirigir seu bom humor para Pen, que ria. Parecia que Dante estava certo a respeito de sua amizade especial.
Sentindo-se em um estado de ânimo crítico em relação aos homens, Bianca o esquadrinhou minuciosamente. Aparentava uma boa figura e era de meia altura, mas sua postura tinha uma severidade muito pouco poética, como se uma vara de aço tivesse sido soldada a sua coluna. O cabelo loiro caía sobre sua testa e suas bochechas. Seu rosto era talvez um pouco alargado, mas era um homem atrativo ao redor de vinte e cinco anos de idade.
O fato de que cortejasse uma mulher que oficialmente estava casada não contava nada nas considerações de Bianca a respeito de ser bom para Pen. Muito mais significativo que isso era a atitude de absoluta devoção que tinha ao olhar para Penelope.
Ela jamais viu Vergil olhando daquele modo a uma mulher, nem sequer a Fleur. Quando o visconde Laclere examinava uma mulher, ela tinha a impressão de que estava avaliando seus defeitos.
Naturalmente isso não ocorreu quando a escutou cantar.
E decididamente tampouco ao beijá-la.
Nem ao lhe tirar o vestido.
Nem…
—Bom, ao menos essas liberações políticas mantêm seu impressor ocupado — disse a senhora Gaston.
Witherby suspirou.
—Foi só para dar suporte às artes literárias que aceitei o passatempo dessa imprensa. Preferiria dizer aos homens que rechacem qualquer comissão que não tenha a ver com poesia. Entretanto, os panfletos servem estupendamente para custear os trabalhos importantes. Assim ocorre com o patrocínio de grandes damas como você.
A senhora Gaston pareceu agradada com a adulação, e com seu êxito ao desviar a atenção para ela.
—Anular é uma necessidade moral. É uma falta de sentido proibir a homens livres assembleias livres — dizia Saint John aos homens que se achavam de pé perto.
—Se estiverem tão insatisfeitos deixemos que se vão —disse a senhora Gaston, unindo-se à conversa— Uma passagem grátis a Austrália para os que estejam descontentes. Não entendo por que ninguém propõe uma coisa assim. Para mim é uma saída completamente lógica.
—Se dá a todos os homens a oportunidade de votar, poderão decidir sobre seu futuro e estarão menos descontentes — disse Saint John.
—Acaso a multidão de Manchester deveria decidir as leis? —perguntou lorde Calne— A Câmara dos Comuns já está bastante alterada para acrescentar radicais e irlandeses.
Pen dirigiu a Saint John um sorriso suplicante e tranquilizador. O qual reprimiu a resposta destrutiva que pensou.
—As pessoas de Manchester não são uma multidão — disse Vergil— Eles estão ajudando a Inglaterra a se converter na nação mais rica do mundo. As cidades industriais como Manchester não podem continuar sendo privadas do direito ao voto por regras de distrito redigidas há séculos. É inevitável uma reforma do Parlamento.
Pen olhou seu irmão pondo os olhos em branco, a modo de reprovação por seguir alimentando a discussão.
Lorde Calne parecia estar sofrendo uma espécie de apoplexia.
—Antes me condeno no inferno. Se apoiar isso, Laclere está traindo seu sangue. Essas cidades do norte são lugares terríveis. Sujas de fábricas e máquinas e homens vis enriquecendo-se com comércios fétidos. Ouvi que é pior que em Londres. Não, me dê o ar limpo do campo e uma boa caçada. Nunca permitiremos que nos arrebatem isso.
Pen viu sua oportunidade.
—E como vai à caça em sua fazenda este ano? Podemos esperar as habituais caçadas magníficas?
—Parece boa, parece boa. Embora haja uma batalha contínua com os caçadores furtivos. Terei que levar cinco homens para as reuniões do trimestre.
A mudança de tema deu a Bianca uma oportunidade para escapar da proximidade de Vergil. Desculpou-se.
Os homens menos predispostos à política se dispersaram pela estadia. Nigel falava com Catalani e com a senhora Monley perto da janela. Seu primo a olhou com um caloroso e acolhedor sorriso quando ela passou ante ele.
Bianca se uniu a Diane Saint John, Charlotte e Dante.
Estavam falando sobre os dois filhos dos Saint John. Dante mostrava mais interesse nas travessuras dos pequenos meninos do que Bianca esperava, mas se aproximou para sentar-se a seu lado assim que ela chegou e permitiu que as damas conduzissem a conversa.
—Esteve muito calada hoje — disse ele em voz baixa— Espero que não esteja afligida por meu mau comportamento.
Ela quase esqueceu aquele beijo na biblioteca.
—Estou afligida ante tantos rostos novos. Tenho poucos temas que tratar com eles.
—Bom, aqui vem Saint John. É dono de uma companhia naval, como foi seu avô, assim tem algo em comum com ele.
Daniel Saint John se afastou da companhia de lorde Calne e se aproximava deles.
—Saint John, você conhecia Adam Kenwood, verdade? —perguntou Dante para facilitar as coisas a ela.
—Conheci-o sendo muito jovem. De fato, minha primeira viagem quando era um moço foi a bordo de um de seus navios. Muito antes que ele se dedicasse às finanças, é obvio.
—Quando ocorreu isso? —Bianca se sentiu obrigada a continuar a conversa, já que Dante iniciou por ela.
—Faz anos. Vendeu seus navios… Faz coisa de uns dez anos.
—Navegou com ele bastante tempo?
—Não, somente uma vez. Abandonei o navio ao chegar às Antilhas e encontrei um camarote com outro capitão.
—As regras de meu avô não o atraíam, suponho.
—Seu avô não era o capitão. Só era o dono dos navios e organizava os carregamentos. Eu simplesmente decidi navegar em outra parte.
Estava mentindo. Bianca estava segura disso por essa forma de falar muito educada.
—É estranho que vendesse todos os navios de uma vez — disse Dante— Ter uma frota de navios e no dia seguinte de repente ficar sem nenhum…
—Dado que comprei dois estava encantado de que o fizesse — disse Saint John.
—O que transportavam seus navios? —perguntou Bianca.
—Todo tipo de mercadorias, suponho, como meus.
Ela tinha a sensação de que o senhor Saint John se limitava a agradá-los, e não estava sendo muito franco. Dante tinha razão, era estranho que seu avô vendesse todos os navios de uma vez, não importava o que dissesse este outro comerciante marítimo.
Não teve tempo de pressioná-lo para conseguir uma explicação mais clara, porque Pen se dirigiu até o centro da estadia e reclamou atenção.
—Temos a sorte de contar com vários músicos consumados entre nós esta noite, e eu abusei de dois deles, o senhor Nigel Kenwood e a senhorita Bianca Kenwood, pedindo a eles que nos ofereçam uma atuação. Passemos com eles ao salão de música e os ofereçamos nossa agradecida atenção.
Ela mesma abriu caminho. Dante se dispôs a acompanhar Bianca, mas o senhor Saint John reclamou primeiro sua atenção.
—Parece que Catalani sabe quando deixar passo aos jovens.
—É amável por sua parte dizer isso, mas duvido que ela tema que eu possa lhe fazer concorrência.
—Cedeu a atuação por uma razão. Sabe que seu instrumento já não é o que era. —Pôs a mão dela entre seu braço enquanto caminhavam com o passar do corredor— Nervosa?
—Horrivelmente nervosa. Ansiava que chegasse este momento, e agora…
—Então isso explica seu ar distraído de hoje. Minha mulher me comentou isso. Ela é muito observadora a seu modo silencioso, e temia que você estivesse preocupada com algo. Se sentirá aliviada ao saber que se tratava de seu medo de cometer alguma estupidez na atuação de esta noite. Lhe direi que se tratava disso, e que é perfeitamente normal.
Não o era. Não para ela. Mas isto era diferente. Durante todo o dia a tinha aterrorizado a ideia de que chegasse esse momento. Voltar a cantar essa ária, diante de toda essa gente, com ele sentado ali… Algo se retorcia em seu interior com cada passo que dava.
Nigel ocupou seu lugar ante o piano. Os convidados se sentaram nas cadeiras colocadas ante ela. Vergil escolheu permanecer de pé junto à parede, perto de Fleur.
Ela o olhou, esperando um sorriso de boa sorte. Ele não se deu conta, pois se inclinou para dizer algo a sua prometida. Seu coração se encheu. Estava tão atrativo com seu casaco de um verde escuro e suas calças nata, com suas mechas onduladas emoldurando seu rosto e seus olhos azuis iluminados com um brilho de humor enquanto sorria a sua dama.
Deu-se conta com um sobressalto de que Nigel começou a introdução. Ela lutou para preparar-se.
Da outra ponta da estadia, Vergil a olhou.
Ela falhou. Essa primeira nota simplesmente não saía. Voltou-se para Nigel com desespero, suplicando sem palavras. Ele improvisou até que voltou a levar a melodia ao princípio outra vez. Ela se concentrou no chão e conseguiu acalmar-se. Ao levantar a vista viu um casaco verde deslizando através da porta.
«Obrigado.»
Afinou cada nota com precisão, mas sua alma não estava totalmente implicada nelas. Vergil podia não estar presente na sala, mas se achava em sua cabeça, confundindo-a com aquele olhar alarmante, misturando-se em seu espírito com lembranças indecorosas. Aquela ária não soou como a última vez nas ruínas, com sua emocionante exaltação. Uma emoção diferente gotejava desta vez. Um estranho oco existia em seu interior e a música o levava mais profundo e o enchia com um penetrante e doloroso desejo. Ao acabar ela não sabia se a atuação tinha saído bem ou não.
—Esplêndido, prima — sussurrou Nigel no meio do silêncio que se produziu.
O esforço a deixou imersa em uma névoa de melancolia. Deu uma olhada à expressão pensativa de Catalani enquanto recebia os elogios de outros convidados.
Catalani caminhou para ela, puxou-a pelas mãos e a afastou para um lado.
—Os anos me tornaram cética, e confesso que esperava uma voz bonita, adequada para salões e Igrejas. Estava equivocada. Possui um grande talento, querida. É excepcional.
Qualquer outro dia o julgamento de Catalani teria produzido euforia. Essa noite tão somente acrescentava um grande nó a mais ao matagal de emoções que a confundiam.
Pen encabeçou a marcha para a biblioteca para jogar cartas, mas Bianca se desculpou, dizendo que queria retirar-se. Seguiu à comitiva através do corredor, mas se desviou ao chegar à escada. Nigel se separou de outros.
—Esperava que nos encontrássemos jogando na mesma mesa, prima.
—Seria uma má companhia esta noite. A emoção de cantar com Catalani presente…
—É obvio. Entendo. De todas as formas agradeceria poder passar um momento mais contigo. Muito em comum, prima. Eu gostaria de te conhecer melhor.
Por mais que insistisse em usar a palavra «prima», por mais que empregasse um tom formal e correto suas intenções saíam à luz. O interesse que sentia por ela brilhava em sua expressão. Ela suspeitou que se naquele momento se achassem sozinhos no jardim Nigel teria tentado beijá-la.
Três homens em dois dias. Ela não tinha ideia de que fosse tão fácil voltar-se promíscua.
A experiência daquela manhã a havia tornado cínica. Possivelmente o interesse de Nigel fosse honesto.
—Se juntará com os outros para cavalgar amanhã pela manhã? —perguntou ele.
Pen organizou para todos uma visita pela fazenda, que terminaria com um almoço nas ruínas. Retornar ali tão cedo seria horrível.
—Não acredito. Não me encontro bem, ficarei aqui descansando.
Abriu-se a porta do estúdio que dava ao corredor. Dela emergiu a alta figura do visconde Laclere, que se dirigia à biblioteca. Ao vê-los se deteve, ficando de pé ante eles como uma sentinela. Nigel o olhou e a seguir dirigiu a ela um sorriso íntimo.
—Eu gostaria de falar contigo em algum momento em que seu guardião não esteja me olhando por cima do ombro. Os dois estamos sozinhos no mundo, e os parentes podem ser uma fonte de consolo. Se alguma vez necessitar minha ajuda, espero que venha a mim.
—É muito amável por sua parte me fazer essa oferta. Agora deveria se unir aos outros, eu preciso estar sozinha.
Vergil não se moveu, nem sequer quando Nigel passou ante ele lhe dirigindo uma saudação e entrou na biblioteca. Simplesmente seguia ali de pé, olhando-a. Ela queria girar a cabeça e afastar-se com altiva indiferença. Mas não podia mover-se.
—Retira-se?
—Sim. A noite foi uma prova.
—Eu acredito que a noite foi um triunfo. Escutei você. Superou a si mesma. Quanto ao dia, suponho que foi uma prova, e me desculpo por isso.
Ela não queria voltar a ouvir nada mais a respeito de suas desculpas.
—Os papéis pessoais de seu avô chegaram esta manhã — disse ele— A maioria das caixas está em meu escritório para que não a incomodem, mas separei as que correspondem aos anos em que seu pai vivia com ele e as mandei levar a seu quarto, junto com o que havia no escritório.
—Obrigado. —esforçou-se para mover-se e chegar até a escada.
—Há algo mais. Devo insistir em que não deve voltar a sair sozinha pela manhã cedo.
—Está preocupado por minha virtude? — A pergunta surgiu sem que ela pudesse impedir.
Ele nem sequer teve a decência de mostrar-se envergonhado.
—Estou preocupado por sua segurança.
—Irei onde queira e ensaiarei sempre que puder.
—Não pela manhã, e não sozinha. Se quiser praticar em privado e se preocupa que em seu quarto possa incomodar os outros, usa meu escritório. Mas não saia da casa.
—Continua cortando a correia, Laclere. Por que não me ata ao pilar da cama?
Seus olhos azuis a olharam de uma maneira que nada tinha a ver com o que usou nas insossas admoestações que acabava de lhe fazer.
—Tem talento para provocar as imagens mais surpreendentes, senhorita Kenwood. —deu a volta— Até amanhã então.
Jane a esperava em seu quarto. Sentia-se bem ao poder estar a sós com alguém que a conhecia há anos.
—Os convidados realmente o passam bem, verdade? —disse Jane— Todos esses homens bonitos com seus trajes elegantes.
Jane viu aquela viagem desde o começo como uma boa oportunidade para que Bianca encontrasse um marido. Nunca reconheceu que a falta de pretendentes em Baltimore era voluntária; o resultado de esmeradas dissuasões.
—Esse senhor Witherby parece prometedor. Um cavalheiro conforme se diz, e bastante atrativo.
—Suspeito que se interesse por Penelope.
Jane franziu o cenho.
—Por uma mulher casada? Separada ou não, isso é o que é. Bom, o visconde está fora de jogo. Está a ponto de prometer-se à senhorita Monley. E menos mal. Quem iria querer um homem tão estrito e severo? Sempre fica o irmão mais jovem de Charlotte, embora se diga…
—Sei o que se diz.
Jane a ajudou a colocar a camisola.
—Todos esses homens solteiros e nem sequer uma paquera? Quem ia esperar que a Inglaterra fosse tão aborrecida.
Algo menos aborrecida, e o de paquera não serviria nem para começar a descrever até que ponto estava se convertendo no contrário do aborrecimento.
—Meu primo Nigel me deu a conhecer seu interesse.
—Nunca gostei da ideia de que os parentes se mesclem. Não é bom juntar o sangue.
—É um parente bastante longínquo.
—Certo. Só que ouvi dizer embaixo que se parece muito a Dante. Vive endividado. Não pode permitir-se essa vida tão elegante. Seu avô deixou a você a maior parte do dinheiro. Diz-se que seu primo só tem dinheiro suficiente para manter o imóvel, e que tudo está disposto de forma que não possa acessar mais que os ganhos correspondentes para cada ano.
—Onde se inteira de todas essas coisas?
—Os criados daqui conhecem os poucos criados que ficam ali. Os arrendatários falam entre eles. É igual em nossa vizinhança. Tudo entra através da porta da cozinha — disse Jane— Se ele expressou esse tipo de interesse, deveria saber que pode ser como Dante em outros sentidos também. Parece que seu primo não está sempre só nessa grande casa. Uma mulher o visitou secretamente a semana passada. Segue meu conselho. Não acredito que queira o interesse desse homem.
Bianca não queria o interesse de nenhum homem. Rotundamente não. Nada mais que distrações, isso é o que eram os homens. Potencialmente distrações permanentes, assim funcionava o mundo. E, como ela vinha aprendendo a trancos e barrancos, fontes de dor e confusão.
Ansiava adormecer, mas sabia que só ocorreria quando estivesse completamente esgotada. Quando Jane saiu, aproximou as velas às caixas e ao baú, empilhados perto da lareira, e se sentou no chão para descobrir o que podiam revelar.
Uma chave estava na fechadura do baú. Girando-a abriu a tampa para examinar o conteúdo do escritório de Adam Woodleigh.
Tocou as plumas e o tinteiro barato. Buscou entre papéis cheios de escritas. Um tinha escrito o nome do irmão de Vergil, junto com outros, e ela supôs que foram os últimos que seu avô escreveu.
Uma pilha de cartas, atadas com um barbante, chamaram sua atenção. Estava a ponto de abri-las quando viu a saudação que encabeçava a primeira. Escrito pela mão de um homem, dirigia-se a Adam como «Meu mais querido amigo».
Com uma saudação como essa não podiam ser de seu pai. Provavelmente seriam do anterior visconde. As daria a Vergil.
Em um pequeno estojo de couro encontrou uma miniatura de uma mulher loira. Imaginou que seria sua avó. Encontrou certo parecido com seu pai, e a assaltaram lembranças de seu amor e sua nobre honestidade. Sua garganta ardia como se uma velha dor se unisse as novas.
Uma flor seca caiu em seu colo enquanto devolvia a diminuta pintura a seu ninho de veludo.
A flor não parecia muito velha. Não se desfez ao tocá-la, parecia que estava a anos naquele estojo.
Imaginou um homem velho recolhendo uma flor no jardim quando saía para caminhar e abrindo mais tarde esse estojo que continha a lembrança de sua esposa. Imaginou Adam lhe deixando essa pequena oferenda.
Fechou de repente o estojo. Não queria ficar sentimental com esse homem. Provavelmente a flor esteve ali sempre e foi sua avó quem a colocou ali.
O outro baú continha pastas. Adam foi um homem organizado, cada pasta correspondia há um ano e dito ano estava escrito na parte dianteira. Ela procurou as correspondentes aos anos em que ainda não tinha nascido, justo quando seu pai abandonou a Inglaterra.
Levou algum tempo encontrar o ano preciso. Não sabia que seu pai viajou a América ao menos seis anos antes que ela nascesse.
Era uma pasta magra com umas poucas cartas. Três eram de seu pai. Leu-as e compreendeu a razão pela que Adam Kenwood e seu filho se separaram.
Não foi por causa de sua mãe. Ocorreu antes que seus pais se conhecessem. Vergil estava certo a respeito do ocorrido. Seu pai rompeu a relação. Em uma carta onde rechaçava a oferta de uma pensão por parte de Adam expôs as razões.
As explicações esvaziaram seu coração das últimas frestas de alegria e confiança. O sonho que a sustentou desde a morte de sua mãe balançou como se seus alicerces tivessem sido atacados. A herança de repente a golpeou como uma brincadeira malvada, um chamariz do diabo para fazê-la pecar.
Não era para menos que seu pai tivesse dado as costas à fazenda e ao status que Adam edificou.
Seu avô fez sua primeira fortuna com o comércio de escravos.
CONTINUA
Vergil Duclairc é um homem acostumado a vencer. Como recém-nomeado tutor da senhorita Bianca Kenwood, está decidido a encontrá-la e devolvê-la ao lar custe o que custar, embora a última coisa que podia imaginar era achar sua pupila vestida de modo escandaloso cantando em um teatro de duvidosa reputação. Mas ainda estava menos preparado para a implacável atração que sentiu por ela somente em vê-la, um desejo que não pode permitir deixar fluir por medo de desmascarar segredos que jurou guardar.
De sua parte, Bianca não está disposta a abandonar sua independência, mas há algo irresistível no belo e persistente visconde Duclairc que o converte não só no administrador de sua herança, mas também no dono de seu coração. A jovem descobrirá em seguida que Vergil é um homem de profundos segredos e de uma sensualidade perturbadora a qual não se pode resistir. Quando suas vidas estão a ponto de mudar e seus caminhos a se separar, crescerá entre ambos uma paixão que os permitirá lutar contra o mundo ao qual pertencem.
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Capítulo 1
O canto de Jane Ormond, que Vergil apreciava a contra gosto, não apaziguou sua ira nem um pouco. Lamentava terrivelmente não poder jogá-la na prisão de Newgate, a que pertencia.
Ia vestida como uma rainha francesa do século passado, mas não parecia cômoda em seu papel. Movia-se com rigidez, como se temesse que a alta peruca branca caísse ou que o miriñaque[1] do vestido inclinasse. A confiança de sua voz contrastava com sua fragilidade física. E sua pose de profissional cheia de segurança destoava durante os breves momentos de vulnerabilidade.
Ele não se sentia deslumbrado com seus estudados encantos. Com seus olhos grandes, seus lábios carnudos e sua insinuada fragilidade, aparentava o tipo mais perigoso de inocência, dessa que impulsionaria um homem a sacrificar sua vida com o objetivo de protegê-la, mas que também poderia despertar outra parte escura, e conseguir que esse mesmo homem se imaginasse lhe arrancando a roupa e destruindo essa inocência.
Moveu-se em direção a ele, levantando a cabeça para cantar as notas mais altas em uma exibição vocal. Seus olhares se encontraram. Por um momento apareceu em seu rosto um brilho de curiosidade, como se percebesse que ele não estaria ali se não fosse pelo dever.
Ele sabia que não havia nada em sua aparência que pudesse revelar isso. Aquela sala de jogos incluía espetáculos para atender aos gostos dos homens de sua classe. Eles podiam descansar de suas apostas naquele salão para comer e desfrutar de um concerto de ópera, ou, mais tarde, desfrutar de formas de entretenimento muito mais baixas.
Ela o olhou por um tempo mais longo do que devia em resposta à inspeção a que se sentia submetida. Ele se surpreendeu ante a inquietante combinação de proteção e erotismo que aqueles grandes olhos convocavam, e se concentrou em todos os problemas que ocasionou durante as últimas duas semanas.
Morton se deixou cair na outra cadeira da mesa. Parecia desconjurado, com sua pinta de urso e sua barba fora de moda.
—A garota está aqui — disse— Em uma estadia traseira. A senhorita Ormond a traz aqui a cada noite, para que a espere enquanto ela canta. Falei com o homem da porta e ele as viu entrar juntas esta noite.
Vergil se levantou.
—A senhorita Ormond cantará outra canção depois da ária. Faremos agora. Temos que tirar à garota antes que acabe. —A senhorita Ormond, sem suspeitar nada, continuava com seus gorjeios— Se for inteligente, nos perseguirá pela costa quando se der conta de que seus planos fracassaram. Quanto à garota, a levaremos ao campo para que se recupere, e ninguém se inteirará de nada.
Estava contando é obvio, naturalmente, que a senhorita Jane Ormond ainda não vendeu à garota pelo maior preço. Concentrou sua atenção no rosto aparentemente ingênuo sob a muito alta peruca branca. Podia ver-se um traço de inteligência naqueles olhos. Não, essa mulher não teria se arriscado tanto por um prêmio tão pequeno como o dinheiro que podia obter de vender uma virgem. Possivelmente teria planejado pedir um resgate, mas o mais provável era que tivesse intenção de vender à garota para algum casamento. Ela, sem dúvida, tinha notícias de sua herança desde que servia de criada e partiram juntas da América.
Tudo aquilo podia ter sido evitado se Derem estivesse mais atento. A culpa era em realidade dele, por ter enviado seu irmão para receber o navio, mas quem ia pensar que uma criada que não era mais que uma menina se atreveria a fazer semelhante coisa.
O corredor de má morte contrastava com a opulência do salão. Morton assinalou para uma porta escondida sob uma escada. Vergil girou o trinco.
Já havia visitado camarins de cantoras, e normalmente era um autêntico desastre ao que se refere à ordem. Entretanto, aquele diminuto espaço foi arrumado cuidadosamente. Havia um par de velas sobre uma mesa, em que também podia ver-se um espelho e um recipiente com pinturas. Disfarces e roupas de dia penduravam de uma fila de cabides colocados na parede. À direita da mesa havia uma cadeira entre as sombras, onde uma moça permanecia sentada com uma agulha fazendo acertos em um tecido que sustentava perto das chamas.
—Senhorita Bianca Kenwood?
Ela levantou o olhar surpreendida e ele imediatamente começou a calcular quanto teria que incrementar o suborno que pensava fazer a Dante. Sem dúvida poderia tratar-se de uma garota doce, mas Dante julgava às mulheres por seu aspecto físico, não por seu caráter, e o dela não impressionava muito. As mechas de cabelo castanho que escapavam de seu gorro pareciam mais crespados que frisados. Seu nariz era arrebitado, o qual poderia ter resultado encantador no caso de que não fosse tão largo.
—Senhorita Kenwood, sou Laclere.
—Oh!
—Este é Morton, meu (criado). Tenho um carro estacionado atrás do edifício e a levaremos ali imediatamente. Sua terrível experiência terminou e te asseguro que ninguém jamais terá notícia deste desafortunado incidente.
—Oh! Oh, Deus…
—Por favor, é necessário sairmos agora. Falarei com a senhorita Ormond mais tarde. No momento, o melhor será que a tiremos daqui.
—Oh, não acredito que… Isto é… — Andou para trás, fazendo gestos de resistência e confusão. Ele se inclinou para ela e sorriu para transmitir confiança. Precaveu-se de que seu vestido era muito comum, um simples vestido longo e cinza. Era evidente que não tinha nenhuma noção do que era se vestir na moda.
—Vamos querida. Será melhor que saiamos antes que…
—Quem é você? —A indignada voz que fazia a pergunta era feminina, melodiosa e jovem.
Vergil deu a volta para ver Maria Antonieta ante a porta, com os braços em jarras e as mãos apoiadas sobre seu magro talhe. O vestido de largos quadris ocupava toda a soleira.
—E bem? Quem é você, senhor, e o que está fazendo aqui?
A senhorita Kenwood se levantou de um salto e se precipitou para a senhorita Ormond, que a abraçou de maneira protetora. Ou seja, que assim é como tinha ocorrido. Naturalmente, ela tinha cercado amizade com a garota. De outra forma não teria funcionado.
—Seu concerto terminou? —perguntou ele.
—Os lieder são peças breves. Agora, me faça o favor de sair. Minha irmã e eu…
—Senhorita Ormond, essa jovem não é sua irmã. Não são parentes. A convenceu a vir com você, mas sua ação não foi outra coisa mais que um sequestro e deverá ser examinada ante um juiz.
A senhorita Ormond afastou brandamente à garota e depois apertou seu vestido para conseguir entrar na estadia. A largura da ridícula saia obrigou Morton a se aproximar da parede.
Ela cruzou os braços. O gesto fez que Vergil se fixasse na forma em que seus peitos apareciam esmagados, sob o rígido sutiã.
—Quem é você?
—Vergilius Duclairc, o visconde Laclere. A senhorita Kenwood é minha pupila, como você já sabe.
Ela baixou lentamente o olhar, e logo voltou a elevá-lo.
—Eu não sei nada disso.
O aprumo que demonstrava, apesar de ter sido surpreendida em fragrante delito, acabou com a paciência de Vergil.
—Não tente brincar comigo, jovenzinha. A forma em que traiu a confiança de sua companheira de viagem é simplesmente abominável. O perigo e o possível escândalo ao que submeteu esta moça durante as últimas semanas são indesculpáveis. A partir de agora não tolerarei nenhuma intromissão. Se você se der pressa, poderá estar a caminho de volta a América antes que amanheça, mas unicamente estou disposto a fazer esta concessão por deferência à senhorita Kenwood.
Ela nem sequer pestanejou. Avançou uns passos para diante até que os volantes de sua saia roçaram a perna dele e levantou a vista para olhá-lo de uma forma curiosa.
—Assim é você um desses.
Ele a olhou fixamente. Se fosse um homem lhe daria uma boa surra.
Ela dirigiu a vista para a perturbada garota, encolhida com medo contra o vão da porta.
—Pelo visto parece que tudo terminou. É uma lástima, realmente acreditei que conseguiria. —Fez um gesto e a senhorita Kenwood se uniu a ela para ajudá-la a desprender e dobrar os objetos que tinha pendurados nos cabides.
Ele se colocou entre elas, pegou um vestido das mãos de sua pupila e o jogou para um lado.
—Iremos agora mesmo. Se a senhorita Kenwood tiver pertences aqui ou no lugar onde se aloja, enviarei alguém para buscá-los.
A senhorita Ormond sorriu de uma forma muito insolente.
—Oh, definitivamente é você um desses. Muito seguro de si mesmo. Um homem que decide que rumo seguir e que está sempre seguro do que é o correto. Advertiram-me que neste país havia muitos homens como você, homens que estão convencidos de que jamais cometem enganos.
Ele sentiu que se ruborizava ante a suja afirmação dessa pomba presunçosa. Já tinha sido suficiente. Pegou com sua mão a larga manga de tecido cinza de sua pupila.
A senhorita Ormond mudou de posição e obstruiu sua retirada com a largura de seu vestido. Com uma mão, suave e cálida, agarrou a mão dele e com delicadeza fez que seus dedos se abrissem e o tecido largo e cinza se deslizasse deles.
Uns olhos azuis o olharam com zombador deleite.
—Bem, esta vez cometeu um engano, Vergilius Duclairc, visconde Laclere. De fato, você está completamente equivocado. Ela não é Bianca Kenwood. Sou eu.
Ele teve um momento de confusão até que o significado daquelas palavras o golpeou. Insinuações de problemas se atropelaram em sua mente, uma luminosa névoa de premonições que sugeria que algo que parecia bastante simples de resolver acabava de voltar-se perigosamente complicado. Dirigiu seu olhar para o tímido passarinho cinza que retorcia as mãos, e depois para aquela ave do paraíso, borrada e cheia de confiança em si mesma, e se perguntou como teria reagido Dante ante desse escandaloso acontecimento.
***
Zas. Zas. Zas.
O látego de montar golpeava contra as altas botas do visconde Laclere enquanto caminhava acima e abaixo frente à chaminé.
No divã, Bianca abraçava Jane, e dava tapinhas no seu ombro. Na outra ponta do salão, meio adormecida, a condessa de Glasbury irmã do visconde, piscava com consternação, vestida com uma bata verde de estilo oriental.
Bianca pensou que era de muito má educação por parte de Vergil Duclairc arrastar Jane e a ela até a casa da condessa e interromper seu sono. Se ele deixasse de dar voltas ao assunto e de caminhar de um lado a outro, ela poderia esclarecer as coisas rapidamente e poderiam partir.
Zas. Zas.
—Não estará planejando usar isso, verdade? —perguntou Bianca. Sua voz rompeu o tenso silêncio que se fez depois que ele explicou à condessa onde encontrou sua pupila desaparecida após duas longas semanas de busca.
Ele parou em seco uma de suas idas e vindas para dar a volta e olhá-la. Era um homem alto, magro e robusto de uns vinte e cinco anos, com surpreendentes olhos azuis e o cabelo ondulado e escuro um pouco despenteado, como ditava a moda. Atrativo, de fato. Possivelmente inclusive bonito se deixasse de pôr essa cara mal-humorada, de momento ela não podia saber.
—O látego — insistiu— Não pretende usá-lo? Devo te dizer que tenho vinte anos, e Jane tem vinte e dois, o que significa que já passamos da idade para estas coisas. Embora minha tia tivesse uma criada que foi cortejada por um cavalheiro inglês que disse que há muitos homens que usam o látego com suas mulheres aqui na Inglaterra, o qual me pareceu bastante curioso, e que há outros que de fato querem mulheres para lhes dar chicotadas, o qual para mim não tem nenhum sentido.
A condessa ficou boquiaberta. De repente parecia completamente acordada.
Vergil se voltou para sua irmã com uma paciência cheia de tensão, e assinalou para o divã como querendo dizer «o vê?».
—Asseguro-lhe, senhorita Kenwood —disse a condessa com um sorriso vacilante— que, sem dúvida, meu irmão não tem nenhuma intenção de…
Vergil baixou as pálpebras como se não houvesse nenhuma razão de usar o «sem dúvida». Cruzou as mãos atrás das costas e estudou a moça com severidade.
—Meu irmão foi esperar seu navio em Liverpool. Por que não conseguiu encontrá-la?
Bianca considerou a possibilidade de usar a elaborada história cheia de peripécias que inventou se por acaso as coisas se estragavam, tal como tinha ocorrido. Mas de repente pareceu que era muito pouco convincente.
Examinou os olhos azuis que a esquadrinhavam. Tia Edith havia dito que os aristocratas ingleses eram gente indolente e decadente, um pouco estúpidos, e Bianca acreditava que aquilo seria certo. Infelizmente aquele parecia ser uma exceção, ao menos em relação ao último ponto. Não parecia capaz de acreditar em confusas histórias a respeito de uma moça inocente e desventurada.
—Havia a bordo um marinheiro que nos ajudou a tirar nossos baús e a encontrar um carro de aluguel antes que alguém viesse nos recolher.
—Ficou amiga de um marinheiro? —A condessa lançou a seu irmão um olhar oblíquo e este fechou por um momento os olhos.
—Senhorita Kenwood, talvez ocorreu um mal-entendido. O procurador de seu avô contatou com um advogado de Baltimore, o senhor Williams, para dirigir este assunto. Ele falou com você, ou acaso não fez? É possível que foi mal informada?
—Certamente falou comigo. É um homem muito agradável. De fato conseguiu nossa passagem para o navio.
—Escreveu-me dizendo que o faria. Explicou a você que um membro de nossa família iria recolhê-la em Liverpool?
—Explicou-o com muita claridade. Minha tia não teria me permitido vir se não tivesse convencida de que me recolheriam.
—Então admite você que desembarcou por sua conta própria sem esperar um acompanhante e que não foi acidental que meu irmão não a encontrasse?
—Não foi acidental. Foi completamente deliberado.
Por alguma razão sua franqueza o deixou mudo. Olhou-a como se fosse impossível compreendê-la.
—Acredito que será melhor que se sente Vergil, assim ela se sentirá menos incômoda — disse a condessa— Podemos falar as coisas com calma. Estou segura de que a senhorita Kenwood terá uma explicação para tudo.
Vergil se sentou em um pequeno banco, mas continuou envenenando a moça com sua atitude.
—Você tem alguma explicação?
—É obvio. —Jane dormiu apoiada em seu ombro e o peso morto a distraiu. O abraço tinha feito que sua peruca se desequilibrasse e se torcesse. Esses vestidos antigos não estavam desenhados para sentar-se e a saia formava uma espécie de plataforma a seu redor. O espartilho sob o disfarce lhe cravava ao lado da cintura.
Sentia-se um pouco ridícula e muito incômoda e lamentava que aquele visconde com ar de grandeza não a tivesse deixado tempo para trocar-se e lavar-se antes de arrastá-la até o carro.
—A explicação, senhorita Kenwood. Eu gostaria de ouvi-la.
—A verdade, senhor Duclairc, é que não acredito que gostará.
Ele entrecerrou os olhos.
—Seja como for vamos provar.
Ela subiu uma perna e a colocou sob seu traseiro para levantar-se um pouco mais. A condessa pestanejou. O visconde elevou uma sobrancelha em atitude de censura. Ao dar-se conta de que a perna que pendurava estava descoberta até a metade da panturrilha, Bianca sorriu a modo de desculpa e puxou a borda de sua saia para baixo.
—Senhor Duclairc, fui informada a respeito dos planos de minha visita aqui. Simplesmente decidi fazer umas pequenas mudanças. Se o senhor Williams falou com você a respeito de mim, você deve saber que eu vivia com minha tia avó Edith mais como uma companheira que como uma pupila. Viajei muito quando minha mãe vivia, e aprendi a cuidar de mim mesma. Sou considerada muito amadurecida para minha idade.
—Ele só me escreveu dizendo que sua tia era um baluarte da sociedade de Baltimore e que você era uma jovem bem educada. —Seu tom dava a entender que o senhor Williams devia alguma explicação.
—Sei que meu avô o nomeou meu protetor em seu testamento. É um gesto encantador e comovente. Provavelmente ele queria cobrir a eventualidade de que eu necessitasse realmente um protetor, mas obviamente não é o caso. Por outro lado, sou americana, assim não posso entender de que modo um testamento inglês pode estabelecer algum tipo de autoridade sobre mim.
—Será um prazer explicar mais tarde.
Ela já sabia a explicação. Simplesmente não a aceitava.
—Ante a insistência do senhor Williams, aceitei vir aqui para estudar assuntos referentes à minha herança e arrumá-los pessoalmente. Entretanto, nunca disse que iria ficar com sua família. —Omitiu o fato insignificante de que tampouco nunca havia dito que não fosse fazê-lo e que quando subiu a bordo desse navio tanto o agradável senhor Williams como a velha tia Edith davam por certo que era exatamente isso o que faria.
—A quem pensava visitar, querida? —perguntou a condessa— Vê Vergil, disse que haveria uma explicação. Ela esperava que outros amigos fossem recolhê-la e não se apresentaram.
A expressão dele se fez cautelosa.
—É assim, senhorita Kenwood?
—Não — admitiu ela. Curiosamente, ele pareceu aliviado— Minha intenção é viver por minha conta, com Jane como acompanhante. Em relação à oferta de alojamento em sua casa de campo… Bom, me sentiria como uma intrusa, e, além disso, prefiro a vida da cidade. E é obvio, não queria que se atrasassem minhas lições.
—Lições?
—Lições de canto. Esse é o motivo de ter vindo. Meus instrutores em Baltimore me disseram que me levaram tão longe quanto podiam e que a partir de agora necessitava professores melhores. Meu plano é tomar lições em Londres até que o assunto de minha herança esteja resolvido, e depois usar os ganhos para ir a Milão.
O visconde suspirou, levantou-se e começou a caminhar de novo frente à chaminé. A condessa inclinou sua cabeça de cabelo negro confidencialmente.
—Acredito que é maravilhoso que sinta esse ardor por sua música. Quanto talento! Quando formos a Londres para a temporada, estou segura de que poderemos encontrar um professor de canto. Conheço bastante gente nos círculos de arte e de música.
—Obrigado por tão amável oferecimento, mas não quero esperar até a temporada, seja quando for. As lições de canto foram o autêntico propósito de minha viagem e penso começá-las em seguida.
Vergil esfregou as superficiais rugas que se formavam entre suas sobrancelhas.
—Senhorita Kenwood, não quero incomodá-la, mas preciso saber como você conseguiu cantar nesse local.
—Vergil…
—Não, Penelope, é melhor esclarecê-lo agora e saber exatamente a que enfrentamos. Senhorita Kenwood?
—Bom, alugar esse carro para chegar a Londres resultou muito caro. Custou mais do dinheiro que trazia comigo. Quando chegamos a Londres encontrei emprego cantando, para nos manter até que pudesse obter o dinheiro do patrimônio de meu avô.
—Que inteligente e competente por sua parte — disse Penelope.
Vergil tinha o aspecto de alguém que jamais admirou virtudes como a inteligência ou a competência.
—É consciente da reputação desse lugar? Sabe o que ocorre no cenário depois de suas árias?
—Nunca ficamos. Parecia uma sala de música comum.
—Do mais comum. Nossa única esperança é que seu disfarce esconda sua identidade e que nenhuma das pessoas que te encontre no futuro a reconheça. Resulta escandaloso que uma mulher cante em um cenário de qualquer tipo, mas em um como esse, pintada e com esses babados… — Fez um gesto assinalando seu vestido, seu rosto, sua peruca.
—Minha mãe cantava em um cenário senhor Duclairc e este é seu vestuário.
—Estou segura de que era uma cantora encantadora — se apressou a dizer Penelope.
—Deixa de seguir a corrente, Pen. Talvez isso seja aceitável nos Estados Unidos, mas não na Inglaterra, senhorita Kenwood.
—Posto que não seja inglesa, isso não me preocupa. Acredito que o melhor será evitar qualquer contato social para que você não deva preocupar-se com minhas atuações, não parece? —Fez um sorriso forçado, como o animando a aceitar a lógica daquele raciocínio— Agora que já cumpriu com seu dever assegurando-se de que estou a salvo, por favor, leve Jane e a mim ao nosso alojamento.
—Você ficará aqui esta noite. Farei com que tragam seus pertences e que se relate ao proprietário da sala de jogos que suas atuações acabaram.
—Devo declinar sua oferta, senhor Duclairc. Não quero abusar da hospitalidade de sua irmã, e tenho a intenção de continuar com meu emprego. Como cantora, necessito experiência com o público e…
Ele a interrompeu com um gesto autoritário.
—Não. Definitivamente não. Não viverá de forma independente sem uma acompanhante e tampouco vai pavonear sobre um cenário. Enquanto esteja aqui eu sou responsável por você e deverá comportar-se como se espera de uma jovem dama.
Bianca devolveu o olhar a aquele intratável, alto e imponente visconde. Que um velho avaro, a quem nunca conheceu, pudesse ter complicado sua vida dessa maneira com os garranchos de uma pluma, resultava intolerável. Não esperava que o visconde a encontrasse tão rápido. Não esperava ter aquela conversa até estar preparada.
Vergil cruzou os braços. Aquela pose o fazia parecer muito alto e poderoso. Era o tipo de postura que devia adotar um rei quando ordenava executar alguém.
—Amanhã minha irmã acompanhará você e a sua criada até o campo — entoou, como expressando a vontade de um juiz— Não falará com ninguém a respeito desta experiência, nem sequer a outros membros de minha família. No que concerne ao mundo, você foi recolhida no navio e esteve sob nosso amparo desde o começo.
—Se você me tirar de Londres, será contra minha própria vontade. Como você disse antes, isso é um sequestro. Eu também posso ir me queixar ante o tribunal de Justiça.
Ela olhou com frieza.
—É legalmente impossível para mim sequestrá-la, senhorita Kenwood. Sou seu tutor. Até que você cumpra vinte e um anos ou se case permanecerá sob minha custódia. Pen, pede à governanta que mostre à senhorita Kenwood e à senhorita Ormond suas acomodações.
Despachada como uma escolar travessa, Bianca achou a si mesma e a uma sonolenta Jane guiadas por uma mulher através do corredor. Zangada por ter visto frustrado seu plano, e desconcertada ao ver aquele estranho assumindo uma responsabilidade que certamente desejaria não ter que assumir, baixou a escada guiada por aquela mulher.
Algo no final daquela confrontação a perturbava. Foi chegar ao patamar da escada quando se precaveu da importante omissão. «Até que você cumpra vinte e um anos ou se case permanecerá sob minha custódia.»
Ou até que abandone a Inglaterra, naturalmente. Verdade?
—Não acredita que foi muito duro com ela? —perguntou Penelope.
—Absolutamente. —Vergil observava Bianca Kenwood enquanto esta subia a escada cambaleando com suas delicadas sapatilhas de seda. A chuva de premonições se converteu em uma tormenta de neve.
Que desastre.
—É uma estrangeira aqui, Vergil. Ignorante de nossos costumes. Sem dúvida, as pessoas na América se comportam de maneira mais informal.
—Não acredito Pen. Ela sabia perfeitamente o que estava fazendo. —O qual significava que estava fazendo exatamente o que queria e pressupondo que aquilo o induziria a lavar as mãos a respeito dela.
Deu a volta, pensando em tomar um copo de porto antes de partir. Precisava fazer planos sobre como preparar seu irmão e como frear à senhorita Kenwood para que aquele caveira não ficasse impressionado por ela.
Penelope o pegou pelo braço, detendo-o.
—Foi muito amável de sua parte não dizer nada a respeito de como deve dirigir-se a você. Compreendeu que era só sua ingenuidade o que a fazia te chamar todo o tempo senhor Duclairc. Ela se sentia envergonhada e você foi muito generoso. O explicarei amanhã.
É isso o que Penelope viu naqueles olhos azuis? Ingenuidade? Vergonha? Normalmente sua irmã mais velha se mostrava mais ardilosa, apesar de sua natureza otimista.
—Não será necessário dar explicações, Pen. Apostaria mil libras que a senhorita Kenwood sabe perfeitamente qual é a forma apropriada de dirigir-se a um visconde.
Capítulo 2
Vergil lançou a seu camareiro seu chapéu empapado e desatou com violência o nó de seu lenço.
—Uísque para os dois, Morton. Depois desta viagem, necessito. Leva Hampton acima quando chegar.
Ao final de dez minutos, Morton não só serviu as bebidas, mas também queijo e carne de ave fria, acendeu um pequeno fogo na biblioteca e conseguiu que Vergil estivesse seco e arrumado. Não é que houvesse ninguém ante quem tivesse que estar arrumado. Só umas poucas estadias da luxuosa casa de Londres estavam abertas e, além de Morton, havia só outros dois criados.
Tampouco tinha por que arrumar-se para receber Julian Hampton. O advogado da família o viu em outras ocasiões vestido de maneira muito informal. Entretanto, a vida que levava em Londres requeria que se respeitassem as aparências.
Sentou-se junto ao fogo, bebendo a sorvos seu uísque com dois grandes livros em seus joelhos. Já sabia o que mostravam esses documentos e o que diria Hampton. As finanças da família Duclairc não atravessavam um período de prosperidade. Só a cuidadosa direção de Vergil durante aquele último ano tinha evitado o desastre total.
Ultimamente, entretanto, não teve muito tempo para dedicar-se a essas coisas. Outros assuntos, mais urgentes e também mais interessantes, tinham requerido sua atenção. Assuntos como o que acabava de atender no norte.
E agora, é obvio, precisava ocupar-se daquele novo assunto chamado Bianca Kenwood. As possíveis complicações que aquilo podia representar o fizeram fechar os olhos.
A imagem dela cintilou atrás de suas pálpebras, assim como ocorreu muito frequentemente durante as últimas duas semanas. Viu-a sentada na sala de estar de Pen com aquele absurdo vestido, sua magra perna pendurando do divã e a sapatilha de seda arqueando um pouco seu pequeno pé. Estava do mais inapresentável. Além de incorrigível e impertinente e maliciosa e fascinante…
Fascinante? Que ideia tão curiosa. De onde sairia?
—O senhor Hampton — anunciou Morton.
Julian Hampton entrou, levando posta sua cara de advogado. Sempre o fazia quando se encontravam por assuntos de negócios. Já que se tratava de um velho amigo provavelmente era necessário, especialmente quando tinham que falar de más notícias. Vergil viu aquela expressão muito frequentemente durante o último ano.
—Estudou-os? —perguntou Hampton, assinalando os tomos ao tempo que tomava assento e aceitava o copo que oferecia Morton.
—Espero que as coisas tenham mudado um pouco.
—Um pouco. A solvência nos faz gestos. Se sua irmã vivesse em Laclere Park…
—Não posso pedir que seja tão dependente.
—Ou se Dante vivesse de acordo com seus meios…
—Jamais o fez, assim não há nenhuma esperança.
—Poderia consolidar a granja e arrendar a terra.
—Essa é uma velha litania, Hampton, e já sabe minha resposta. Meu pai e meu irmão não jogaram essas famílias, e eu tampouco o farei.
—Bom, ao menos não estão na borda do abismo.
Estavam mais perto do abismo do que sabia Hampton e do que revelavam aqueles tomos. Entretanto, Vergil tinha um plano para tentar solucioná-lo. Infelizmente, uma parte fundamental desse plano podia causar problemas. A parte chamada Bianca Kenwood.
Hampton sorriu. Isso nunca era um bom sinal, especialmente na cara de seu advogado.
—Deve melhorar as coisas do modo mais simples. O modo tradicional.
—Sim, suponho que o pai de Fleur será muito generoso. Deveria estar agradecido de que meu valor tenha aumentado tanto depois da morte de meu irmão. Com o tempo, suponho que consentirei em me casar. De momento, entretanto, outros enredos fazem que resulte impossível.
Hampton não era um homem muito expressivo, assim que o brilho de curiosidade e preocupação que relampejou em seus olhos fez Vergil ter sabor que falou muito.
—Posso te procurar ajuda? Tenho experiência em negociar para que meus clientes solucionem seus enredos. —Destacou a última palavra de uma forma que parecia aludir a problemas de natureza romântica.
O enredo em que Vergil se achava envolvido necessitava algo mais que a destreza de Hampton para chegar a desembaraçar-se.
—É insuperável nisso, e aceitaria sua ajuda se acreditasse que poderia servir de algo. Não sei como conseguiu convencer o conde para que liberasse minha irmã.
—Todos os homens têm segredos que querem esconder. O conde de Glasbury simplesmente tem mais que a maioria. Como vai à condessa?
—Está bastante contente, e acabou por preferir aqueles círculos sociais que a aceitam.
—Sua queda teria sido muito pior se não fosse por você.
Vergil sabia. Graças a sua fama de homem íntegro e decente conseguiu aliviar o impacto social que foi o fato de que Pen se separasse do conde; também obteve que se subtraísse importância aos diversos pecados de Dante e inclusive que se retificasse em parte a fama que tinham os Duclairc por seu comportamento e suas ideias pouco convencionais. Apesar de que sua família atirasse para baixo, ele conseguiu que se mantivessem flutuando. Com muita dificuldade.
—Acabamos? —perguntou Vergil, levantando.
—Pelo visto você acredita que sim.
Vergil deixou cair os livros ao chão.
—Pode deixar para outro dia os detalhes tristes. Me diga o que esteve fazendo, além de dar conselhos a insensatos como eu.
—Se todos meus clientes fossem tão insensatos como você, morreria de fome.
A gravidade da expressão de Hampton se esfumaçou e voltou a ser o apreciado amigo de Vergil.
Resultou que esteve fazendo muito pouco. Hampton não frequentava muito as reuniões sociais, e permanecia um pouco à margem quando ia a elas. As mulheres o achavam melancólico e misterioso, enquanto que os homens o consideravam orgulhoso e aborrecido. Com seu cabelo negro e seus traços perfeitos e afiados, Hampton parecia uma figura desenhada com tinta e pluma por um ilustrador. O problema para a maioria da gente era que a ilustração vinha sem pé.
—Saint John voltou para Londres — disse Hampton— Burchard e eu nos encontraremos com ele no Corbet amanhã. Witherby e os outros provavelmente virão também. Agora que retornou de onde seja que estivesse, por que não se reúne conosco? A Sociedade do Duelo estará completa outra vez.
Estava se referindo ao grupo de homens jovens que se reuniam em Hampstead na academia de esgrima de Chevalier Corbet há cinco anos. Vergil não praticava com eles há meses.
Sua ausência resultava tão estranha porque ele foi o eixo da roda em torno do qual se agrupavam os outros homens. Conhecia Hampton desde a adolescência, e se fez amigo de Cornell Witherby durante a época universitária. Adrian Burchard, filho de um conde, o conheceu nos círculos da nobreza. Inclusive Daniel Saint John, o marinheiro, acrescentou-se à Sociedade do Duelo através de Vergil graças a sua amizade com Penelope.
—Oxalá pudesse, mas devo me encontrar com Dante e levá-lo a Laclere Park. Temos assuntos a atender ali.
—Burchard ficará decepcionado. Esteve te procurando para discutir sobre algo que não quer divulgar. Suponho que se tratará de política.
Se Adrian Burchard estava procurando alguém, logo o encontraria. Adrian era a última pessoa que Vergil desejaria ver interessado em suas atividades.
—Escreverei para ele o convidando a ir me visitar. Espero estar aqui durante vários dias.
—Por que não convida também Witherby? A prolongada ausência da condessa em Londres o tornou melancólico.
—Possivelmente assim se inspire para escrever outra ode. Witherby terá que esperar sua vez. A senhorita Kenwood chegou à Inglaterra, e Penelope a levou ao campo por uma temporada.
—Há algum problema?
Não estava claro se Hampton se referia a Bianca Kenwood ou à forma em que Cornell Witherby estava cortejando Penelope. Embora a primeira não prometesse nada mais que problemas, Vergil também preferiria se livrar do segundo. Ter um bom amigo apaixonado por uma irmã mais velha, especialmente quando essa irmã se acha separada de seu marido, só e vulnerável, era o tipo de situação que podia arruinar uma amizade.
—Não há nenhum tipo de problema. A senhorita Kenwood é encantadora. Estou desejando que a conheça.
Até esse ponto se enredou com suas confusões. Estava mentindo a um homem que conhecia há meia vida.
Hampton desviou a conversa para assuntos de política. Enquanto falavam de liberais e conservadores, as manifestações violentas e as mudanças ocorridas depois da morte do último ministro de Assuntos Exteriores, a mente de Vergil se mantinha ocupada com as questões privadas que o esperavam no campo.
Uma e outra vez aparecia em sua cabeça à imagem de uma moça vestida como uma rainha francesa, desafiando-o com uma excessiva auto-suficiência, e uma bonita perna pendurando por debaixo de uma prega indecorosamente alta.
***
—Sigo sem entender sua impaciência — disse Dante. Jogou a cinza de seu puro através da janela da carruagem— Não vejo a razão de que me fizesse voltar da Escócia. Ela não alcançará a maior idade até dentro de um ano.
Isso significava uma eternidade dada à forma em que Dante calculava seu calendário com as mulheres. Normalmente era capaz de cortejar, seduzir, levar a cama e desprezar duas amantes ao mesmo tempo. Vergil estudou o jovem e belo rosto de seu irmão, seus limpos olhos e seu cabelo castanho escuro. A história de Dante com as mulheres foi quase inevitável com traços como os seus. Vergil viu como damas da mais alta linhagem ficavam sem fôlego quando Dante se aproximava.
—Começa a temporada muito antes de seu aniversário, e com a estreia em sociedade de Charlotte não podemos exatamente ir todos à cidade, e deixar aqui à senhorita Kenwood. Já terão que estar casados então, e não só prometidos.
—Por quê? Você acha que algum caçador de fortunas tomará meu lugar? —O tom de Dante deixava ver que aquilo era absurdo.
«Não, acredito que se ela está casada, poderemos impedir que nem chegue a pisar em Londres se for necessário», pensou Vergil. Só a ideia de ver Bianca Kenwood entre a sociedade educada, tratando duques e condes de senhores e anunciando sua pretensão de estudar ópera era suficiente para deixar seu ânimo pelo chão aquele último dia de agosto.
Mas a pergunta de Dante também aguçava aquela premonição que continuava obcecando-o desde que abandonou a casa de Penelope aquela noite. Seria melhor que Dante acabasse com aquilo enquanto o campo estivesse livre.
Dante o olhou diretamente nos olhos.
—Já estamos quase chegando. Não acha que deveria me dizer isso já?
—Te dizer o que?
—Não me disse grande coisa a respeito da senhorita Kenwood, com quem espero me casar. Encontro-o um pouco suspeito. Depois de tudo, você a conheceu. Ambos sabemos que não tenho outra escolha mais que aceitar, mas se deve me fazer alguma advertência, seu tempo está acabando.
—Se não a descrevi com detalhes, é porque isso seria pouco delicado de se fazer. Não é um de seus cavalos de corridas.
—Não a descreveu absolutamente.
—Muito bem. É de compleição média e esbelta, com olhos azuis.
—De que cor é seu cabelo?
Como diabos ia saber. Que cor de cabelo podia ocultar-se debaixo daquela ridícula peruca?
—Até que ponto é má?
Vergil tinha toda a intenção de advertir Dante, mas não encontrava a forma apropriada de abordar o assunto. Um matiz de culpa coloria suas reflexões quando tentava fazê-lo. Afinal, virtualmente meteu seu irmão naquilo à força. Embora não é que Dante resistisse muito ao saber que em um ano ela receberia mais de cinco mil libras.
—O problema não é seu aspecto. Suas maneiras, entretanto…
—Isso é tudo? Está preocupado por uns poucos enganos de etiqueta? O que esperava? É americana. Pen a preparará em pouco tempo.
Falar de uns poucos enganos de etiqueta não fazia justiça a Bianca Kenwood, mas deixou passar.
—É obvio. Entretanto, ela é… Especial.
—Especial?
—Poderia dizer-se inclusive que é estranha.
—Estranha?
—E possivelmente um pouco… Original. O qual pode remediar-se, naturalmente. Enquanto sustentamos esta conversa Pen a tem em suas mãos.
Através do guichê do carro, Dante olhou mal-humorado a visão da campina de Sussex. Vergil não sabia se continuava, mas quase estavam chegando e mal ficava tempo.
—Necessita mão dura. É um pouco independente, por assim dizer de algum modo. —O olhar de seu irmão deslizou para ele— Independente… Tem alguns caprichos. É por sua juventude, passará.
—Seria de imensa ajuda que pudesse completar sua descrição acrescentando alguma informação a respeito de sua beleza.
Sem dúvida. O problema era que ele não sabia se ela era bela. Só recordava seus grandes olhos, com aquela interessante faísca de inteligência e vitalidade que havia neles.
Que mais podia acrescentar? Toda aquela pintura de teatro ocultava seu rosto. Era provável que sua pele fosse preciosa, mas quem poderia estar seguro antes de ver seu rosto lavado? Também sua silhueta parecia bonita, mas podia ter sido pelo vestido. E fazer algum comentário sobre sua sensualidade… Não era muito apropriado tratando-se da futura noiva de um irmão.
—Maldita seja, se for vulgar não estou disposto a fazê-lo, Vergil. E você não deveria desejar que o fizesse. Além do fato de que ela repercutiria positivamente em mim e minha família, posso ignorá-la virtualmente por completo uma vez que estejamos casados, inclusive poderia ir viver na cidade e deixá-la aqui, que é de fato o que pretendo fazer. E até que se case com Fleur e estabeleça sua própria descendência, coisa que está demorando muito em fazer, eu sou seu herdeiro e essa americana poderia acabar convertendo-se na viscondessa Laclere.
Não necessitava que Vergil enumerasse a seu jovem irmão os obstáculos que o esperavam naquele caminho. Abismos muito mais profundos e numerosos do que Dante imaginava. Um favo desses abismos. Se pudesse pensar em alguma alternativa o teria feito, mas depois de duas semanas considerando distintas opções sempre terminava chegando à mesma conclusão. Era necessário que Bianca Kenwood fosse atada a sua família com correntes indestrutíveis.
Dante mordeu o lábio inferior e voltou a olhar através do guichê com seus olhos de espessas pestanas.
—A renda de seus recursos será minha? Como depositário, você não interferirá? E minha atribuição continuará até o casamento, aumentando como o acordo?
—É obvio. Também prometo continuar dirigindo os investimentos financeiros, como solicitou. A renda dos recursos é segura, mas outros assuntos requerem ser fiscalizados, e eu sei que você odeia essas coisas.
Dante fez um gesto de desdém.
—São coisas sórdidas e chatas. Duvido que valha a pena preocupar-se com elas. Pode vendê-las ou conservá-las, o que achar melhor. Depois de ver como se arrumou após a morte de Milton, seria um idiota se me atrevesse a te questionar.
Viajavam silenciosamente através dos bosques de carvalhos e fresnos que havia atrás de Laclere Park. Vergil preferia esse caminho ao longo horizonte de paisagem que se abria da parte frontal, e sempre dava instruções a seu chofer para que se aproximasse da casa por ali. Normalmente servia como um espaço de transição, uns poucos quilômetros durante os quais se preparava para assumir seu papel de visconde Laclere e confrontar as responsabilidades que este conduzia.
Fez aquele caminho pela primeira vez quando chegou à notícia da morte de Milton; escolheu então aquela longa rota para demorar sua chegada, lutando contra emoções conflitivas e agudos ressentimentos pelas mudanças que suportaria em sua vida a repentina morte de seu irmão.
Foi naqueles bosques onde terminou aceitando aquela nova realidade e suas correspondentes restrições. Não chegou nem a intuir até que ponto complicaria sua vida a morte de seu irmão. Restrições, mistérios e decepções o estavam esperando ao final daquela viagem.
De repente Dante se inclinou sobre a janela. Afiou o olhar.
—Que diabos…?
—Algum problema? —Vergil afastou um pouco a cabeça de Dante para poder aparecer a sua através da janela aberta.
—Ali, no lago. Espera, há árvores que nos tampam a vista. Agora. Essa não é Charlotte?
As árvores eram mais magras agora que passavam em frente do lago. Duas mulheres estavam se banhando, rindo e salpicando-se. Virtualmente nuas, pois suas roupas se tornaram transparentes pela água. Diabos, sim, era sua irmã pequena, Charlotte, com aquela criada, Jane Ormond.
Um terceiro corpo feminino emergiu de repente da água. A roupa empapada se aderia a sua pele a obscurecendo um pouco. Bonitos ombros… Umas costas que ia se estreitando… Uma pequena cintura… Gráceis quadris… Finalmente os topos de suas encantadoramente arredondadas nádegas apareceram à vista. Uma larga cabeleira loira se desdobrou em um leque sobre a água para aferrar-se depois a aquele corpo em espessa queda de uma cabeça bem formada.
Seus esbeltos braços começaram a golpear a superfície da água, criando ondas na direção de suas companheiras de jogo. As outras duas gritaram e empreenderam um maciço contra ataque de salpicaduras, enviando jorros de água ao redor dela até que acabou parecendo uma imagem emergente em meio de um sonho de bruma.
Ela lançou um chiado de jubiloso protesto. Rindo, deu a volta para responder ao ataque.
Vergil não podia estar seguro de que aqueles grandes olhos azuis viram passar o carro com seus dois atônitos ocupantes. Mas o certo é que ela se deteve, cobriu os peitos com um braço e deslizou a outra mão até o triângulo de sombra que havia justo entre suas coxas. Durante um breve instante antes de dar a volta e voltar a afundar-se na água, adotou a pose da Vênus de Botticelli, uma deusa de rosto adorável e formas luxuriosas, jorrando água, ainda virginal e pudica, mas já amadurecida e apaixonada. Aquela mescla de instinto protetor e desejos eróticos que Vergil experimentou na sala de jogos ressurgiu com força.
Ele e Dante se recuperaram ao mesmo tempo. Endireitaram-se e se afundaram em seus assentos.
Seu irmão o olhou com suspicacia.
—O que era isso?
—Não estou totalmente seguro, mas acredito que era a senhorita Kenwood.
Dante fechou os olhos e apoiou a cabeça contra o respaldo do assento.
—Deixe assegurar que entendi minha posição, Vergil. Tenho que me casar com isso? Tenho que me sacrificar no altar pelo deus da estabilidade financeira e ser forçado a ter como companheira durante o resto de minha vida essa fêmea que acabamos de ver? Uma garota tão especial, estranha e independente que se banha quase nua diante da estrada a plena luz do dia e influência nossa irmã a fazer o mesmo? Você pretendia me coagir, achando necessária a ameaça de retirar minha atribuição? Ela é a noiva que escolheu para mim?
—Sim. —Realmente não havia nada a acrescentar.
Dante manteve sua pose pensativa durante um longo tempo. Seus olhos se abriram. Uma limpa simpatia brilhou neles. Um sorriso muito masculino apareceu lentamente.
—Obrigado.
***
—Muito bem, Pen. Muito bem.
Penelope ruborizou com um tom rosado ainda mais intenso que o que sua pele tinha adquirido enquanto ele explicava sua história.
—Não me jogue a culpa. Não podia imaginar uma coisa assim. Ela foi uma hóspede da mais cortês. Seu comportamento não resultou inapropriado absolutamente. Ao menos até onde eu sei.
Acompanhou esta última observação de uma pequena careta. Penelope era suficientemente inteligente para reconhecer que a escapada desse dia era uma amostra de que ela não conhecia as atividades da senhorita Kenwood em todo seu alcance. Vergil imaginou toda uma série de escandalosos episódios tendo lugar sob o nariz da confiada Penelope.
—Durante sua estadia aqui parecia sentir-se como um peixe na água.
—Dadas as circunstâncias, «como um peixe na água» não é a melhor expressão que possa escolher Pen.
Pen abaixou a cabeça, envergonhada e sem forças ante a acusação. Dante deu uma palmada em seu ombro para consolá-la. Era simplesmente incapaz de imaginar o pior, e era sempre muito pormenorizada.
Bianca Kenwood provavelmente se deu conta em seguida de como era Penelope e tirou vantagem disso.
O que a senhorita Kenwood precisava era uma tia similar a uma velha harpia cheia de caráter que não permitisse desafiá-la, capaz de fazer tremer às moças jovens com seu olhar de aço e cujas estritas advertências provocassem uma imediata submissão.
Desgraçadamente, essa tia não existia.
—Talvez banhar-se assim seja normal na América.
—Por favor, Pen.
—Falarei com ela, e darei em Charlotte uma boa reprimenda.
—Não fará tal coisa.
—Pretende fazê-lo em meu lugar? Oh, Vergil, desejaria que não o fizesse. Seu rosto adquire uma expressão muito peculiar cada vez que se menciona seu nome. Suspeito que te vê como o guardião de um cárcere, e se for assim, o pior que pode fazer ao voltar a vê-la é lhe dar uma lição de comportamento…
—Não direi uma palavra sobre este assunto. Ninguém o fará. E tampouco a Charlotte. Mencioná-lo seria admitir que Dante e eu fomos testemunhas do ocorrido. —Não se atrevia sequer a contemplar a ideia dessa confrontação. Reconhecer o fato suporia ter que confrontar uma embaraçosa e difícil… Intimidade— Não temos mais remédio que ignorar o que aconteceu. Falarei com Charlotte em termos gerais para evitar que se deixe influenciar.
Dante se uniu a eles, com aspecto de estar contente e sentindo-se mais fresco ao mudar de roupa. Levava um traje delicioso perfeitamente engomado. Seu rosto estava cheio de espera sob seus cabelos cuidadosamente despenteados, um pouco compridos como marcava a moda romântica.
—É muito amável por sua parte se reunir conosco durante uns poucos dias — disse Penelope, levantando-se para lhe dar um beijo.
—Às vezes posso sentir falta da família, Pen. De fato, é provável que fique pelo menos uma semana. Sim, ficarei uma semana. —A piscada que lançou a Vergil fez com que Penelope franzisse o cenho com curiosidade.
Vergil devolveu um olhar reprovatório. Penelope não sabia nada a respeito dos planos que eles tinham em relação à senhorita Kenwood. Além disso, por alguma razão, a confiança em si mesmo que demonstrava seu irmão o irritava.
—Uma semana inteira? Isso é maravilhoso, Dante, e muito amável por sua parte. Sei quanto odeia o campo se não houver um bom esporte.
—Bom, Pen, há esportes e logo há esportes. Disseram-me que Verg comprou um novo cavalo que precisa domar e me senti obrigado a ajudá-lo, já que tenho tão boa mão com os animais e é, além disso, um presente para mim.
—Um cavalo novo? Vergil, não me disse nada.
—Chegará dentro de uns dias — murmurou ele. Que inteligente por parte de Dante. Desfrutar da metáfora e de passagem sair ganhando um cavalo. Não era uma metáfora tão má. A senhorita Kenwood tinha um ar menos de inacabada que de indômita. Era típico de Dante que tivesse fichado uma mulher em poucos segundos a uns sessenta metros de distância, e se deleitava no desafio que o estava esperando. Não era assombroso que parecesse tão insuportavelmente feliz.
A égua em questão se uniu a eles ao final de pouco tempo, chegando junto a Charlotte acompanhada de um fraco rangido de anáguas. Charlotte estava tão encantadora como de costume, sua elegância de magro salgueiro ainda ficava suavizada por sua inocência infantil. Junto ao cabelo negro, a pele branca e o vestido rosa pálido de Charlotte, Bianca Kenwood exalava um ar de senhorita de campo.
Seu vestido azul era um pouco antiquado e pouco atrativo. Sua pele tinha um bronzeado fora de moda, mas a ideia que fez de sua irrepreensível beleza foi acertada. Seu cabelo loiro dourado estava recolhido em um simples coque que enfatizava sua feminina, mas firme mandíbula destacando o contorno da parte inferior de seu rosto, com forma de coração. Dificilmente se ajustaria à definição de beleza da moda, mas possuía uma formosura singular, transbordava saúde e se movia com uma elegância amadurecida.
Dante a estudou com olhos calculadores durante um breve instante antes que Penelope o chamasse para apresentá-lo. Esse exame fez com que Vergil se sentisse incômodo. De repente se sentia sujo por aquele negócio. Ridículo. Semelhantes acertos se faziam todo o tempo, e frequentemente com menos sutileza.
Dante avançou para sua presa. Seu êxito com as mulheres estava mais no magnetismo do que na perseguição. Certa dama confessou uma vez a Vergil que quando Dante olhava uma mulher nos olhos esta se sentia como se ele pudesse ler sua alma e seus cuidados a deixavam sem respiração.
Se fosse assim, pelo visto a alma de Bianca Kenwood não era fácil de observar. Respondeu à saudação de Dante com soltura e não pareceu ficar sem respiração absolutamente. Vergil não pôde deixar de admirar seu aprumo, apesar de que o plano seria que ela caísse apaixonada por Dante a primeira vista.
—E recorda Vergil — acrescentou Penelope rapidamente, fazendo um gesto em sua direção.
—Dificilmente poderia esquecer o senhor Duclairc. Estou encantada de voltar a lhe ver. Possivelmente antes que se vá possamos ter uma conversa.
—É obvio, se assim o deseja.
Oh, desejava-o. Esteve guardando palavra após palavra há duas semanas. Dificilmente poderia ter enterrado seu ressentimento ante a imperiosa intromissão que a enviou até ali.
Deu-se conta de que o estava olhando com raiva, e de que todo mundo estava observando que o fazia.
—Está encontrando agradável sua estadia aqui? —perguntou Dante, guiando-a para o sofá.
—Muito agradável, obrigado.
Sentou-se ao lado dela, dedicando toda sua atenção. Era um homem bonito, mas um pouco delicado em suas formas e em seu rosto, como se Deus, ao esculpir os ossos de seu irmão mais velho tivesse esgotado seus melhores materiais e tivesse logo que arrumar-se com o resto. Formosos olhos marrons a contemplavam sob uns volumosos cílios. Uma faísca de familiaridade um tanto inapropriada brilhava neles.
Sim, eles as viram. Discutiu isso com Charlotte que não havia ninguém olhando no carro que passava. Em realidade, por um momento acreditou ver uns rostos espionando-a, mas ao comprovar que ninguém dizia nada horas depois de sua volta, simplesmente supôs…
—Assim leva o nome do poeta italiano — disse, sentindo-se muito desconfortável ante a ideia de que Vergil Duclairc a tivesse visto virtualmente nua. Curiosamente, o fato de que aquele seu irmão também a tivesse visto não importava muito.
—Foi uma desafortunada ideia de meu pai. Dava-se ares de poeta épico e pôs em seus filhos os nomes dos melhores. Nosso irmão mais velho se chamava Milton.
—Podia ter sido pior. Podia ter escolhido os nomes dos herois em lugar dos nomes dos autores.
Charlotte riu.
—Teria sido horrível. Ulisses, e Eneas e coisas assim.
—Ou poderia ter se motivado pelas histórias de Camelot que mais tarde o fascinaram tanto — acrescentou Dante— Lancelot, Gawain e Galahad.
Brincaram com aquela ideia durante um momento, e Penelope se uniu a eles. O homem que permanecia junto à janela não o fez, mas Bianca notou que seguia as brincadeiras com maior interesse do que seus olhares ocasionais pareciam revelar.
Podia ver seu adversário claramente de sua posição. Possuía uma figura refinada, era alto e magro, mas seus ombros e suas pernas sugeriam mais força da que era claramente visível. Naquele momento não tinha um olhar de desgosto, sim, era bastante bonito com seus ossos marcados, como cinzelados com certa aspereza. Seus olhos azuis surpreendiam penetrantes sob suas sobrancelhas escuras.
Eram penetrantes agora, que acabavam de descobri-la olhando-o. Ela dirigiu sua atenção a Dante, conseguindo —ou ao menos assim esperava— não ruborizar-se. Tinha a incômoda sensação de que durante aquele olhar o visconde estava recordando o que viu no lago.
Dante acabava de dizer algo. Ela respondeu com uma pergunta, retornando incômoda ao bate-papo banal típico da casa.
—E você o que faz?
Enfrentou-se a um silêncio total.
—Fazer? —repetiu Dante depois de contar até dez.
—Seu irmão é um membro do Parlamento, conforme entendi. Qual é sua ocupação?
Charlotte riu. A mandíbula de Vergil parecia mais rígida que de costume, mas uma faísca de brilho apareceu em seus olhos quando deu a volta para prestar toda a atenção em seu irmão.
Dante sorriu.
—Sou um cavalheiro.
—Jamais sugeriria o contrário, mas qual é seu emprego?
—Quando meu irmão diz que é um cavalheiro não está evitando sua pergunta, senhorita Kenwood. Está respondendo — explicou Vergil.
Em outras palavras, ser um cavalheiro significava que não tinha um emprego remunerado. A refinação do homem que havia a seu lado de repente pareceu tão estranha como os índios que viu em uma ocasião quando sua mãe percorria os povos próximos à fronteira. Era outro exemplo do que tia Edith queria dizer quando a advertiu que encontraria aquele país familiar em certas coisas, mas muito estranho em outras.
—Sem dúvida terão cavalheiros nos Estados Unidos — disse Penelope.
—Temos homens de grande riqueza e posição. Há fazendas tão grandes como esta. Mas um homem que não trabalha… Enfim, é considerado como quase pecaminoso.
Imediatamente desejou não tê-lo expresso dessa forma, embora pensasse que tanta indolência era uma evidência de uma séria falta de caráter. Não desejava insultar aquelas pessoas, com três das quais não teve nenhuma discussão.
A única com quem sim teve uma discussão rompeu o incômodo silêncio.
—Que pitoresco. Mas afinal de contas, seu país é ainda jovem.
Vindo de qualquer dos outros o teria deixado passar.
—A velha Inglaterra está aprendendo que há força na juventude.
—Refere-se a nossa última guerra. Uma escaramuça menor. Teria acabado de modo distinto se Napoleão não nos tivesse deixado tão ocupados.
Por alguma razão, com muita dificuldade, ela conseguiu manter um tom civilizado.
—Meu pai morreu nessa escaramuça, senhor Duclairc.
Fez-se outro silêncio tenso. Penelope sorriu fracamente e se levantou.
—Por que não pensamos em comer?
Dante tentou monopolizar a atenção de Bianca durante o almoço. O visconde não falou muito. Em várias ocasiões em que deu uma olhada o surpreendeu esquadrinhando-a, como se estivesse se perguntando o que era o que tinha diante. Nada mais que problemas, ela gostaria de advertir. Realmente deveria me enviar de passeio de uma vez por todas.
Ela estava decidida a abordá-lo depois do almoço para esclarecer coisas, mas Vergil se retirou, depois de desculpar-se, logo que voltaram para a sala de estar. Dante, entretanto, ficou unindo-se a elas para jogar cartas.
O moço elogiou o jogo de Bianca mais do que seu talento merecia. A familiaridade crescia com o passar das horas e os sorrisos de Dante começaram a adquirir uma calidez perturbadora. Ela começou a suspeitar que Vergil a estava evitando e usava Dante para distraí-la.
—Onde está o visconde? —acabou perguntando a Charlotte— Talvez goste de me substituir.
—Estará na biblioteca, suponho. Ou em seu escritório.
Bianca se levantou.
—Me desculpem. O convidarei a unir-se a nós.
Não esperou que dessem permissão; atravessou a sala de estar e se encaminhou pelo corredor para a biblioteca.
Ele estava ali, sentado ante o escritório examinando uns papéis. Levantou a vista ao ouvi-la entrar e ficou de pé.
—Parece surpreso em me ver. Cometi um engano? Supõe-se que devia ter pedido uma audiência? —perguntou.
—É obvio que não. Supus que meu irmão e minhas irmãs a manteriam entretida toda à tarde, isso é tudo.
—As cartas não me divertem muito tempo se me dão de presente todas as mãos. Se estivéssemos jogando por dinheiro, a esta altura já teria ganhado toda a fortuna de seu irmão. Decidi dar um descanso a seu orgulho e generosidade.
—Somente está tentando fazer com que se sinta bem recebida. Entretanto, me alegro de que tenha me procurado. Quero me desculpar por meu imprudente comentário na sala de estar. Devia ter tido em conta a possibilidade de que tivesse sofrido nessa guerra. Não pretendia menosprezar o sacrifício de seu pai.
A sinceridade com que se expressou a deixou desarmada. Não parecia tão severo como de costume.
—Possivelmente agora entenda por que não desejo prolongar muito minha visita a este país, senhor Duclairc, e por que não quero formar parte da sociedade para a qual sua irmã tenta me preparar. Queria retornar a Londres o antes possível para me ocupar de meus assuntos.
—A guerra terminou faz tempo, senhorita Kenwood. Nossos países voltam a ser amigos. Quanto a seus assuntos, estou me ocupando deles em seu lugar — disse esse último com um firme sorriso que parecia indicar que considerava pouco recomendável dirigir a conversa nessa direção.
—Está me convencendo de que cometi um engano vindo à Inglaterra. Deveria ter seguido minha primeira inclinação e dizer ao senhor Williams que vendesse os investimentos que herdei.
—Isso não pode fazer-se. A maior parte de seu patrimônio pertence a um fundo de investimentos. A menos que se faça uma solicitação ante o tribunal de Chancery, o qual é um processo muito longo que levaria anos, é impossível romper os termos desse fundo de investimentos.
—Isso ele me explicou. Minha segunda ideia foi então arrumar as coisas para que me enviasse a renda a Baltimore.
—E por que não o fez? Especialmente tendo em conta que nos acusa de está-la prejudicando.
—Como expliquei em Londres, tinha razões para vir.
—Sim, suas aulas de ópera. —Seu tom transmitia o alívio que sentia ante o fato de que esses planos tivessem fracassado.
Mas necessitaria mais que a desaprovação daquele homem para fazê-los fracassar de tudo. Esses planos continuavam vivos, e ela estava desesperadamente impaciente por fazê-los progredir.
—Sejam quais sejam minhas razões, estou na Inglaterra por um curto período de tempo e tenho interesses que não podem ser satisfeitos enquanto permaneça nesta casa. Não aceito sua intromissão. Não necessito um guardião.
—Tendo em conta como a conheci, acredito que é óbvio que sim o necessita. E hoje não tem feito nada que possa me fazer mudar de ideia.
Estava se referindo ao lago. Em realidade não houve nenhuma mudança em sua expressão, mas aquele provocador murmúrio formou redemoinhos entre eles. Entrou no corpo de Bianca fazendo que seus membros estremecessem. Sim, a viu com aquela roupa empapada. E apesar de sua aparência desapaixonada, naquele momento estava vendo-a outra vez.
Por um instante, em seus olhos se acendeu um brilho que indicava que ele era consciente de que ela sabia. Esse reconhecimento acrescentou um matiz perigoso a sua masculinidade. De repente ela se sentiu em desvantagem e teve que lutar para recuperar sua indignação.
—Não consigo compreender por que você insiste tanto em complicar a minha vida.
—O testamento de seu avô cedia a responsabilidade ao visconde Laclere. Ia destinado ao meu irmão, mas dado que não mudou o testamento depois da morte de Milton, me corresponde. Eu não evito meus deveres, não importa quão problemáticos possam chegar a ser.
—Eu o libero de seu dever. E agora peço que me permita partir para Londres amanhã pela manhã.
—Não.
Ela esperava ouvir algo mais, mas nada mais foi acrescentado. Aquela palavra foi sua única resposta. Não.
Ela o observou, procurando o modo de ganhar aquela estúpida batalha. Devolveu o olhar como um general que é consciente da superioridade de seu exército.
Ela deu a volta. Em uns poucos dias esperava que chegassem seus reforços. Morria de impaciência por jogá-los contra ele.
—Senhorita Kenwood, se você voltar para a sala de estar, tenha a amabilidade de dizer a Charlotte que venha ver-me antes de retirar-se.
***
Bianca subiu a escada e deu uma volta através da enorme casa de estilo gótico até chegar a seu quarto. Era o dormitório mais longo e luxuoso que jamais havia usado, com um espelho emoldurado em ouro e móveis de madeira belamente esculpidos. Jane se aproximou dela para começar a desabotoar o vestido, ao mesmo tempo em que mexericava a respeito dos criados e arrendatários. Aquele mundo mais vulgar soava mais interessante que esse outro no que Bianca passou seus últimos dias.
As últimas duas semanas pareciam dois meses. Davam passeios. Arrumavam as flores. Trocavam visitas com vizinhos que ela não conhecia. Falavam sobre moda e sobre quem era quem na alta sociedade. Tudo enquanto Pen instruía à americana selvagem para ensiná-la a expressar-se e comportar-se adequadamente na Inglaterra.
Bianca chegou ao ponto de invejar os criados ocupados em polir a prata. Finalmente teve algumas ideias para romper a monotonia.
Charlotte apareceu justo quando Bianca já vestia sua bata. Teve um pequeno bate-papo com seu irmão.
—Não disse nenhuma palavra sobre o lago. —subiu à cama de um salto enquanto Jane começava a escovar o cabelo de Bianca— Em realidade o que queria era falar de você.
—De mim?
—Perguntou o que esteve fazendo. Não o disse dessa forma, claro. Quis saber se estava contente e com o que se entretinha.
«O maldito intrometido…»
—Acredito que sabe o do lago e joga a culpa em você, e quer saber se tem estado fazendo alguma outra coisa escandalosa.
«Maldito arrogante, pretensioso…»
—Depois me deu um sermão. Explicou que me criaram de um modo diferente e permitiram a você mais liberdades do que era apropriado, e que eu não devia me deixar influenciar por você e fazer coisas que não fossem apropriadas. Contei ao menos dez vezes a palavra «apropriado» antes que terminasse. Prometi a ele que me comportarei de maneira muito correta enquanto esteja aqui. —Charlotte sorriu— Acredito que tem ao santo de meu irmão muito preocupado.
Bianca não sabia o que dizer. Foi criada de um modo distinto, e permitiram mais liberdades das que Charlotte jamais chegaria a conhecer, mas não havia nada inapropriado nisso, tão somente pouco convencional, inclusive tendo em conta os costumes americanos. Além disso, ela planejava uma vida destinada a ser pouco convencional, mas não inapropriada, apesar de que Vergil Duclairc assumisse o contrário.
Charlotte se recostou na espaçosa cama.
—Estou encantada de que Dante veio nos visitar. Não o faz frequentemente. Prefere Londres. —Levantou o olhar com astúcia— Se supõe que não sei, mas acredito que tem uma amante ali. Este último ano venho intuindo que meu irmão é um pouco canalha. Você o que pensa? Acredita que Dante é um mulherengo?
—Não saberia dizê-lo — respondeu Bianca, embora adivinhasse que Dante era um autêntico mulherengo. Pensou, além disso, que aquele mulherengo a viu virtualmente nua e que passou a tarde lhe dirigindo intensos olhares e calorosos sorrisos.
—Sempre pensei que Vergil poderia parecer um bom mulherengo também, sempre e quando alguém não o conhecesse. Tem aspecto de ser, mas claro… Ele é tão correto. Esteve cortejando Fleur durante um ano e nunca o vi fazer nada mais que lhe tocar a mão.
Bianca ouviu falar da perfeita, etérea e saudável Fleur, que supostamente era a prometida de Vergil. Logo esperavam uma visita dela e de sua mãe.
Bianca não tinha intenção de seguir ali quando viessem.
—Charlotte, esta é a única propriedade que tem sua família?
—Há outras aqui em Sussex, mas ninguém as visita salvo Vergil. Não estão em muito bom estado. Papai não cuidou bem de algumas coisas. Estava tão ocupado com seus escritos e depois com a reconstrução desta casa. Vergil tem também um imóvel no norte. É sua parte da herança de nossa mãe.
—Vivem alguns parentes nesses outros lugares?
—Não há mais parentes ali, ou ao menos não há parentes dos que estejamos perto. Papai tendia a encerrar-se e perdemos o contato com eles enquanto vivia. Milton também era um pouco estranho. Vergil não é o menos excêntrico, e não reavivou os laços.
Não havia parentes próximos. Nenhuma tia, nem prima que pudesse fazer cargo de uma pupila errante.
—Acredito que meu irmão gosta de você — disse Charlotte.
«Que irmão?» Bianca reprimiu a impulsiva pergunta antes que saísse de sua garganta, surpreendida pelo sobressalto de excitação que a acompanhou.
—Estou segura de que simplesmente se sentia obrigado a me entreter.
—É muito estranho que Dante se sinta obrigado a fazer algo. Deixou-te ganhar nas cartas e não parou de te sorrir.
—Equivoca-se, mas se estiver certa e é um mulherengo, dificilmente poderia me sentir adulada.
—Oh, não tem que preocupar-se por isso. Sabe que é a protegida de Vergil e nossa convidada. —deslizou da cama— Será melhor que vá dormir. Dante nos levará a um passeio amanhã. Será divertido. É um perito com o látego e sempre conduz muito rápido.
—Também nos acompanhará o visconde?
—Não se preocupe, não vai danificar nossa diversão. Quando nos levantarmos, ele já viveu um dia completo. Levanta-se a alvorada, para ocupar-se dos assuntos da fazenda.
Quando Charlotte se foi, Bianca se sentou sobre a cama abraçada a seus joelhos.
Assim Vergil Duclairc se preocupava que a senhorita Kenwood pudesse supor uma má influência para sua irmã. Advertiu Charlotte que tomasse cuidado. O que faria aquele santo se chegasse a convencer-se de que a senhorita Kenwood não só era um pouco diferente, mas também muito pouco convencional e inclusive algo selvagem?
Não haveria outros parentes a quem enviá-la e resultaria muito perigoso tê-la ali. Não haveria mais remédio que romper todos os vínculos sociais e deixá-la seguir seu caminho. Seria a única decisão responsável para um irmão responsável.
Se asseguraria de que esse visconde concluísse que sua presença e influência naquela casa era totalmente inaceitável.
—Jane, quero que tome emprestados para mim alguns objetos dos criados. Dos homens concretamente.
Capítulo 3
Vergil pegou as botas limpas que oferecia Morton e as pôs. Aceitou o linho engomado e com destreza atou seu lenço com um nó conservador. Morton lhe sustentava o traje negro de montar.
Esses preparativos matinais eram uma rotina tanto em Laclere Park como em Londres, e Vergil os seguia de forma instintiva enquanto organizava em sua mente seus planos e deveres. Continuava se surpreendendo que não tivesse nenhuma dificuldade em abandonar certos detalhes ou hábitos quando as circunstâncias o requeriam.
Mal tinha amanhecido quando saiu pela porta e caminhou através do rocio até o estábulo. Preferia aquele silêncio, aquela solitária forma de cavalgar para romper o dia antes do circuito oficial que teria que fazer mais tarde com seu agente imobiliário. Era um dos poucos hábitos que tinha conservado de seus anos livres como segundo filho. Às vezes recuperava aquela crença juvenil nas oportunidades sem limites que permitiu então sua insignificância. Podia simplesmente ser, não o senhor vigiando seus domínios, a não ser unicamente um homem que cavalgava através do campo, admirando sua beleza e sonhando ao ritmo da vida.
Do estábulo chegavam sons. George, um moço do estábulo ruivo e rechonchudo, ria enquanto um moço mais jovem vestido com calças de montar e chapéu de palha murmurava alguma coisa. Juntos ajustavam as bridas a uma égua de cor castanha.
George ouviu as pisadas de Vergil e se virou ruborizado.
O menino mais jovem simplesmente ficou rígido. Vergil notou algo familiar naquelas costas esbelta, e se precaveu da forma peculiar em que as calças se esticavam sobre a curva das nádegas. Viu aquelas formas antes, emergindo nuas da água.
—Senhorita Kenwood, vejo que você também cavalga cedo.
Ela se voltou despreocupadamente, como se ninguém devesse se surpreender de encontrá-la nessa situação por usar calças de montar todos os dias. Talvez fosse assim. Quem podia sabê-lo? Pen, Charlotte e Dante provavelmente não sairiam de seus quartos até meio-dia.
—Pensei que seria agradável sair para cavalgar pela manhã. —Ajustou o freio como alguém que sabia o que estava fazendo.
—George se ofereceu a te acompanhar? Que cavalheiresco por sua parte.
—Tinha intenções de cavalgar sozinha.
—Bom, não podemos permiti-lo a uma hora tão inoportuna. Entretanto, pode cavalgar comigo. —Examinou a égua— Cometeu um engano, George. Se este animal for para a senhorita Kenwood, necessitará uma cadeira de mulheres. Depois pode preparar meu cavalo. Esperaremos fora.
Bianca caminhou para o pátio com ele. Ele retrocedeu um pouco na luz chapeada da manhã e percorreu um metro e sessenta e cinco de moléstia com seu olhar.
Sua camisa de algodão formava uma bolsa em torno de seu corpo, mas mesmo assim revelava o inchaço de seus peitos. As calças de montar penduravam folgadas de suas coxas até as botas, onde se introduziam, mas não eram folgadas em nenhum outro lugar. O chapéu de palha sobre sua testa enfatizava seus olhos.
Tinha todo o aspecto de uma mulher provocadora e de má reputação.
Caminhou para frente e golpeou a perna com o látego. O ligeiro picor o distraiu do impulso de… Nada que pudesse contemplar e sem dúvida nada que pudesse nomear.
—George demorará a preparar os cavalos. Volta para seu quarto e troque de roupa.
Ela baixou as pálpebras ante aquela ordem. Ele esperava que ela resistisse. Que demônios faria ele então? Ninguém debaixo de sua autoridade nunca o havia desafiado, e menos uma mulher. Por sorte, ela deu a volta e caminhou a grandes pernadas em direção à casa.
Ele retornou ao estábulo.
—A senhorita Kenwood cavalga sozinha frequentemente? —perguntou ao George.
George deu de ombros.
—Só estas últimas manhãs, milord. Ouvi um ruído aqui a semana passada e a encontrei selando essa égua, por isso a ajudei.
—E sua indumentária?
—Chegou com essa roupa esta manhã. Tem sentido, porque sempre cavalga escarranchada. É uma boa pessoa, só que com uma mentalidade um pouco livre para este lugar. São diferentes, os americanos. Falam como se o conhecessem de toda a vida. —inclinou-se para revisar uma ferradura.
—Sim, são diferentes. Não me deixe suspeitar que interpretou mal essa familiaridade.
George lançou um olhar de horror como se a insinuação fosse muito escandalosa para ser considerada. Vergil pegou as rédeas da égua e a levou até o pátio.
A senhorita Kenwood saiu da casa justo quando George tirava fora o cavalo castrado de Vergil. Levava uma bata de montar violeta de corte austero e com poucos adornos. Sobre seu penteado formal se encarapitava uma alta cartola, cuja borda roçava suas sobrancelhas.
—Onde tinha planejado cavalgar? —perguntou ele assim que estiveram montados.
—Oh, simplesmente queria dar um passeio pelos arredores.
Ele a conduziu através do parque. Ela não deixava de queixar-se por sua posição na cadeira de montar. Escorregava por ambos os lados olhando as pernas com o cenho franzido.
—Não está acostumada a isto?
—Não vivia nas margens da civilização. Também em Baltimore as mulheres fazem coisas horríveis e perigosas.
—Ali cavalgava escarranchada?
—Sim. —Olhou-o com atitude desafiante, depois sorriu de maneira zombadora— Tia Edith me proibia montar à inglesa a menos que avançasse a passo de tartaruga, e eu não me sentia inclinada a fazê-lo. Ela sabia de muitas mulheres que caíram da cadeira de montar quando cavalgavam rápido.
—E como reagia as pessoas quando cavalgava escarranchada através da cidade, com calças de montar e com botas?
—Se não fosse à sobrinha-neta de tia Edith, alguns teriam se escandalizado. Ninguém se atreve a atacá-la. Quando era moça participou ativamente em nossa guerra da Independência. Conhece todos os grandes homens daquela época. Se um presidente fizer visitas a uma mulher, ninguém se atreve a criticá-la muito.
—Parece uma mulher muito interessante. É uma lástima que não tenha te acompanhado nesta viagem.
—Se não fosse à idade, o teria feito. Estaria agora ali atrás, exortando George para que compreendesse que ele é igual aos outros moços e não deveria curvar-se ante ninguém.
—A Inglaterra não necessita radicais importados. Estamos criando muitos de produção própria. E não é que George se encurve. Retrocedeu porque sabe que levanta suspeitas sobre um homem o fato de que esteja a sós comportando-se de maneira tão familiar com uma dama jovem, especialmente a uma hora como essa.
—Já vejo. Entretanto, você é um homem e agora está a sós comigo, não? Isso é suspeito?
A insinuação o deixou desconcertado. O sorriso zombador da senhorita Kenwood era um indício de que não se achava ante uma escolar ingênua que permanecia ignorante sobre o que podia ocorrer entre um homem e uma mulher juntos e sozinhos durante horas.
—Sou seu tutor. É como se fosse seu pai.
Ela se pôs a rir a gargalhadas, melodiosas como o timbre de sua voz.
—Que o céu me ampare, senhor Duclairc. Com um pai como você teria me convertido na mais aborrecida das mulheres.
—Quer dar a entender que os pais aborrecidos criam filhas aborrecidas?
«Está insinuando que sou um homem aborrecido, uma espécie de bagagem molesta?» O desejo de demonstrar até que ponto podia deixar de ser aborrecido penetrou em sua mente desde que a tinha visto no estábulo.
—Não, senhor. Simplesmente acredito que os pais estritos criam filhas de mente muito estreita.
—Concluo que sua educação, menos ortodoxa, salvou-te de ter uma mente estreita.
Ela posou seus grandes olhos azuis nele durante um momento, observando-o como se fosse capaz de ver as noites e inapropriadas imagens que avançavam sigilosamente em torno das bordas de sua mente ao aludir impulsivamente essa indiscreta questão. O impacto daquele olhar nu foi tão assombroso como se ela acabasse de acariciar sua coxa.
—Tive experiências no mundo, senhor Duclairc, e por isso minha mente não é estreita. Quando meu pai morreu, minha mãe teve que manter-se e me manter, por isso voltou a cantar. Eu tinha onze anos então, e durante os seis anos seguintes vivemos uma vida errante, viajando uma grande parte do ano.
«Experiências no mundo.» Bianca devia ter dezessete anos ao morrer sua mãe, uma garota bonita viajando na companhia de uma mãe cuja profissão sem dúvida implicava tratar com homens.
—Minha opinião teria sido que o acertado seria te deixar com sua tia, em vez de te arrastar por cidades e povos estranhos.
—Ah, sim? Essa teria sido sua opinião? —Ela estava sugerindo que ele era tão previsível que essa opinião não a surpreendia absolutamente— Eu não teria insistido em ficar, não depois de perder meu pai. Minha mãe necessitava alguém que cuidasse dela. Não era uma mulher muito prática. Tocava-me assegurar que chegasse de um lugar a outro.
—Um estranho papel para uma menina.
—Não fui menina por muito tempo, e não é que estivesse planejado que me encarregasse dessas coisas. Simplesmente o fazia porque ela era muito torpe organizando as viagens.
«Não fui menina por muito tempo.»
—A vida deveria ser muito aborrecida quando foi viver com sua tia.
—Estava preparada. A morte de minha mãe acabou com minha vitalidade, e precisava estar um tempo instalada em um lugar para pôr as coisas em seu lugar. Só quando tia Edith contratou para mim um professor de música comecei a recuperar meu estado normal.
Vergil imaginava. Aquela menina precoce com sua mãe caprichosa, organizando o valor a ser pagos pelos concertos nas Igrejas e nos pequenos povoados. Os papéis estariam invertidos e aquela pequena garota loira se encarregaria de negociar pelo transporte e de administrar os recursos, emocionante, possivelmente, e sem dúvida uma experiência que a faria amadurecer.
Entretanto, não era uma infância normal. Não teve horas de brincadeiras despreocupadas e, provavelmente, tampouco teria amigos. Sem mais amparo, nem segurança que a que ela mesma pudesse procurar. Sentiu certa compaixão por ela e admirou sua força, apesar de que essa força prometesse ser um inconveniente.
Seu passeio distraído os levou até a parte sul do lago e deram a volta para retornar. A senhorita Kenwood parecia irritantemente indiferente ante o fato de achar-se no mesmo lugar onde no dia anterior foi tão indiscreta.
—Nossa família viveu aqui desde o tempo dos normandos — explicou ele, decidindo que devia impressioná-la com a história da família e prepará-la para os cuidados de Dante— Tanto nosso nome como o da fazenda provêm destas águas. «Lago claro.» Duclairc é uma junção de du clair lac, igual é Laclere.
—Tempos dos normandos. Naqueles tempos, os antepassados dos Kenwood provavelmente viviam em cabanas.
—Bom, o dinheiro tem seu modo de nivelar essas diferenças.
—Que ideia tão democrática, senhor Duclairc. Quase americana.
Ele entrou pelo caminho que conduzia para as granjas.
—Pode parar com isso. Já foi suficiente.
—Parar com o que?
—Senhor Duclairc.
—Não pretendia ofender. Tia Edith me fez prometer que não faria reverências a nenhum aristocrata, nem sequer ao rei.
—Seus diplomatas se adaptam aos costumes quando vêm a este país, como o fazem a maioria dos visitantes.
—Eu não sou uma diplomata. E tia Edith…
—Sim, sim, a revolução e tudo isso. Se se dirigir a mim como lorde Laclere conjura o fantasma de Washington, pode me chamar simplesmente Laclere.
—Que generoso por sua parte. Então possivelmente você poderia me chamar Bianca.
Ele preferiria não fazê-lo. Certamente. Inclusive aquela vaga familiaridade com essa jovem estava provocando sensações muito incômodas. Ela era sua pupila e logo poderia chegar a converter-se na esposa de seu irmão, e ele a encontrava exasperante, para falar de um modo delicado. Ao mesmo tempo, um atrativo e desconcertante fogo crescia em seu interior. Borbulhas em ebulição rompiam de vez em quando a superfície, pequenas explosões que não estava disposto a aceitar debaixo daquelas circunstâncias. Sob nenhuma circunstância. Chamá-la Bianca unicamente obteria que outra dessas borbulhas estalasse ao pronunciar seu nome.
—Acredito que isso seria muito familiar.
—Bom, então possivelmente Laclere também seja muito familiar. —Ela inclinou a cabeça— Já sei. O chamarei tio Vergil. Apesar de que disse que o fato de ser meu protetor o converte em uma espécie de pai, dizer «papai» soaria ridículo.
«Tio Vergil, por Deus.» Ele conseguiu olhar por debaixo da asa de seu chapéu e captou um fugaz sorriso. Estava brincando com ele deliberadamente e ele continuava mordendo a isca.
O pior era que suas provocadoras ambiguidades e seus olhares oblíquos a deixava com um ar mundano que tornava implacável aquele fervor que ele sentia.
—Tio Vergil, estamos perto da fronteira com Woodleigh?
—Está justo ao outro lado dessa colina. Pode ver a casa dessa cúpula. Você gostaria de subir?
Ela aceitou. A Vergil não passou despercebido que ela soube como encontrar o caminho mais simples sem necessidade de sua ajuda.
Bianca chegou até o topo da colina de onde se divisavam os principais campos de Woodleigh. A distância conseguiu ver a imponente mansão de inspiração clássica que Adam Kenwood construiu.
—É muito grande, não?
—Sim.
Ele respondeu em voz baixa, mas ela pôde ouvir um deixe de desaprovação. Muito grande. Muito. Essa enorme massa resultava vulgar, especialmente para alguém que acabava de ser renomado barão. Sua condição de novo rico se deixava ver dos alicerces até as chaminés. Vergil deveria ser amigo de Adam, ou do contrário seu avô não o teria renomado seu tutor, mas ao que parece isso não liberava aquele velho comerciante do julgamento desse aristocrata cuja linhagem se remontava à época dos normandos.
Ela não lamentava aquela censura. De fato, agradava-a. Embora Adam Kenwood tenha deixado em herança uma fortuna, ela o odiava de todos os modos. Se tivesse legado aquela casa a ela, a teria feito arder até seus alicerces. Ela sabia que ele cometeu um grande pecado, e não cabia dúvida de que muitos outros tinham escurecido sua vida.
Bianca baixou a colina a meio galope até os campos. Vergil chegou até seu lado quando se deteve frente à casa.
—Me ajude a desmontar, por favor.
—Senhorita Kenwood, seu primo herdou esta propriedade, e ainda não retornou da França. Deveria esperar que ele se instalasse aqui antes de fazer uma visita. A casa esteve fechada durante meses, e unicamente há uns poucos criados cuidando da propriedade.
—De fato, meu primo retornou há uma semana. Me ajude a baixar ou saltarei de um modo nada elegante.
A ajudou a descer do cavalo.
—Pretende entrar, verdade?
—Pode ser que Nigel, meu primo, tenha obtido a casa e as terras, mas os objetos privados de meu avô me pertencem. Quero ver como estão. Assim que explique quem sou e quais são meus direitos os criados me deixarão fazê-lo.
Ele aceitou sua decisão mais rápido do que ela esperava, e conseguiu que os deixassem entrar. Uma vez ali a acompanhou até o escritório de Adam Kenwood.
Bianca se deteve no centro da estadia e respirou o aroma da presença de seu avô. Um piso de madeira cobria a parte baixa das paredes, e um enorme escritório estava posto de lado em um canto. Havia prateleiras com pastas e grandes livros, mas outros documentos tinham sido amontoados em embalagens de madeira que se alinhavam ao longo de uma parede e rodeavam um pequeno baú.
Ela notou que Vergil a contemplava da soleira.
—Você o conhecia bem? —perguntou ela.
—Antes de construir Woodleigh tinha uma relação de amizade com meu irmão mais velho, Milton. Depois da morte de Milton, cheguei a conhecer Adam bastante bem.
—Nisso me leva vantagem. Eu sabia que era o avô da Inglaterra, mas meus pais nunca falavam dele. Ao me fazer maior me dei conta de que esse velho homem permitiu que meu pai vivesse na pobreza enquanto ele acumulava uma enorme fortuna. —Estendeu o braço para assinalar a luxuosa casa.
Vergil entrou na estadia e examinou as gavetas do escritório.
—Seu avô obteve muitos lucros da frota marinha e outros comércios. Durante as primeiras batalhas de Napoleão, seus navios fizeram um grande serviço ao Governo, e o rei lhe outorgou o título de barão. Como a maioria dos homens, ele pretendia que seu filho fosse um cavalheiro e planejava educá-lo para isso. Entendi que seu pai tinha outras ideias e por isso partiu para América.
—Acredito que não foi sua decisão ir a América o que fez que se distanciassem, mas sim a decisão de casar-se com minha mãe. Não era uma esposa adequada para o filho de um homem que lutava para abrir caminho na alta sociedade da Inglaterra.
Ele tirou uma pasta de uma gaveta e a folheou.
—Como já te expliquei, uma profissão como a de sua mãe não está bem vista aqui.
—Suspeito que não esteja bem vista em nenhuma parte. Minha mãe não estava tão má vista em parte por seu parentesco com tia Edith. Além disso, interrompeu sua profissão ao casar-se com meu pai. Ela dava aulas particulares, e ela conseguiu manter a casa com dignidade apesar das circunstâncias. Não foi suficiente para aquele velho homem.
Ele voltou a colocar a pasta em seu lugar e depois de uma inspeção mais atenta extraiu outra.
—Bom, ao final se lembrou de você.
—Desgraçadamente, o final chegou um pouco tarde.
—Ouço um deixe de amargura.
Havia um deixe de amargura. Até ela notou o ressentimento que podia ouvir em sua voz.
—Uma minúscula parte dessa herança teria economizado muitos pesares a minha mãe, e provavelmente até teria salvado sua vida. Morreu de uma febre da qual se contagiou enquanto viajávamos.
Ele levantou a vista da pasta como se ela houvesse dito algo particularmente interessante.
—Já vejo. Assim agora quer se vingar de Adam pela morte de sua mãe, usando sua fortuna para se converter em uma artista como a mulher que ele repudiou.
Aquela acusação lhe fez sentir uma pequena fúria dando voltas em sua cabeça.
—Você frivoliza meu propósito. Aspirava minha carreira como cantora de ópera muito antes de me inteirar dessa herança. —Observou de novo a estadia— Entretanto, agora que o diz, há certa justiça em usar o dinheiro desse homem para me converter precisamente no que ele desprezava.
—Parece mais uma brincadeira pesada que justiça. Antes que desfrute com sua brincadeira deveria te explicar que uma parte do que sabe sobre seu avô se apóia em um engano.
—Que engano?
—Pelo que ele me disse, estou seguro de que não rompeu relação com seu pai. Foi seu pai quem rompeu com ele.
—Não acredito.
—Pode acreditar no que quiser, mas isso era o que Adam recordava.
Aquilo estragou a brincadeira e a justiça. Provocou uma fratura no ressentimento que lhe gelava a alma, aquele ressentimento que tinha crescido em seu coração enquanto contemplava como sua mãe tossia e perdia a vida em uma hospedagem de aluguel nas margens do mundo.
—Disse isso a você só para que não o acreditasse frio e desalmado.
—Minha opinião não lhe importava muito.
—Então mentiu a si mesmo, para poder morrer sem culpa.
—Possivelmente.
Ela observou os documentos que havia na estadia. A verdade provavelmente estaria em alguma parte. Deveria procurar as cartas de seu pai. Inclusive podia haver algumas de sua mãe pedindo ajuda quando enviuvou.
Em realidade não deveria importar o que aconteceu, mas importava. Se ia construir sua vida ao amparo da riqueza daquele homem, queria saber se devia estar agradecida ou brincar com ele enquanto o fazia.
—Há algum modo de saber o que é o que me pertence do que há aqui?
—O advogado separou os papéis. Aquelas gavetas contêm os que são pessoais, enquanto as contas da propriedade estão nas estantes. —Assinalou o pequeno baú— Suponho que o que havia em seu escritório e outras coisas de valor estão ali sob chave.
—Quero ler esses documentos pessoais. Perguntarei a meu primo se posso o visitar e fazê-lo.
—Seria mais conveniente levá-los a Laclere Park. Ali poderá revisar o material a seu desejo. Me encarregarei da transferência.
—Estou segura de que meu primo não se importaria que revisasse os documentos aqui.
—Sim me importaria.
Ela o olhou diretamente aos olhos.
—Não tem sentido mudá-los duas vezes. Esperarei até que possam enviar-se a meu próprio alojamento em Londres.
Lhe devolveu o olhar.
—Não tem alojamento em Londres, e não o terá por muito tempo.
Ela não esperava que fosse tanto tempo, mas ele não se deu conta ainda.
—De acordo, para começar levemos isto a Laclere Park.
Quando abandonaram a casa, ela viu que ele ainda levava uma pasta. Ele notou seu olhar de curiosidade.
—Há aqui algumas cartas de meu irmão. Espero que não te importe que tome emprestada esta pasta para lê-las.
—Absolutamente. —Comoveu-a que quisesse fazê-lo. Era mais sentimental do que ela esperava— Quando seu irmão faleceu?
Ele a ajudou a montar o cavalo.
—Faz menos de um ano.
—Possivelmente haja mais cartas. Quando tivermos todo o material em Laclere Park, poderemos as procurar.
Enquanto passeavam com seus cavalos para os campos, um jovem loiro galopou para eles, saudando com o braço.
Parecia um modelo extraído de uma lâmina de moda, com o elaborado nó de seu lenço, seu alto chapéu de castor e seu moderno casaco.
O jovem desceu de seu cavalo e tirou o chapéu.
—Senhorita Kenwood! Que feliz coincidência vê-la outra vez. Pensar que se tivesse ficado mais um dia em Londres, como tinha planejado não a teria encontrado.
Vergil não se alterou por esse «outra vez».
—Você deve ser Nigel Kenwood, o primo de minha pupila. Eu sou Laclere.
—É um prazer o conhecer por fim, lorde Laclere.
—Teria o chamado se soubesse que residia em Woodleigh. Pensei que ainda estava na França. Minhas desculpas.
Nigel sorriu a Bianca. Pareciam-se um pouco. Seus olhos eram igualmente azuis e seu cabelo igualmente dourado. Um homem bonito decidiu, exceto as expressões de seu rosto sugeriam um temperamento instável.
—Levo aqui só uma semana. Revisar os assuntos de Woodleigh me manteve muito ocupado, mas agora minha vida está se estabilizando.
—Então deve visitar logo Laclere Park. Estou seguro de que as damas estarão encantadas. Há muito poucos rostos novos no campo.
—Obrigado. Farei.
Nigel sorriu de novo a Bianca com admiração. Bianca lhe devolveu um doce sorriso. Vergil sorriu muito fracamente aos dois.
Prestou a Nigel mais atenção da devida.
Graças a Deus Vergil era um homem inteligente. Ela não tinha nenhuma intenção de mentir, só estava semeando nele suficiente preocupação para que decidisse não expor sua influência a doce Charlotte.
Rechaçaram o convite de Nigel a um refrigério e retomaram seu caminho. Vergil se aproximou dela.
—Já tinha conhecido o novo barão. Não o mencionou.
—Não o fiz? Há uns dias cavalguei perto de Woodleigh e o encontrei. Pareceu-me correto parar e falar com ele, já que é meu parente.
—Mostrou-te Woodleigh?
«Entrou na casa? Esteve a sós com ele em sua casa?» A expressão dele permanecia tão cuidadosamente impassível que lhe deu vontade de rir.
—Sim, fez. Era a propriedade de meu avô, assim tinha curiosidade. —Em realidade só tinha visto os jardins, mas se sentiu contente consigo mesma por ter deixado o visconde dando voltas a uma nova ambiguidade.
—Acredito que era sua intenção desde o começo visitar Woodleigh para investigar o escritório de Adam esta manhã. Estou feliz de que tenha podido satisfazer esse desejo.
Ela não acreditava que ele estivesse feliz absolutamente. Parecia estar considerando o que implicava que ela visitasse Woodleigh com camisa e calças de montar sabendo possivelmente que Nigel não estava em Londres.
Ela concluiu que, em termos gerais, aquela manhã de passeio a cavalo tinha sido um êxito.
Tomaram um caminho de volta mais direto. Ela se sentia agora mais segura em sua cadeira de montar de mulher, galopou através do parque e não diminuiu o ritmo quando entraram no bosque. A rosada luz do sol penetrava entre os ramos, criando maravilhosas e imprecisas manchas enquanto ela avançava velozmente. Aquele efeito visual a distraía e se achava despreparada quando de repente, e de forma inexplicável, seu cavalo encabritou de um modo violento.
O entorno seguiu sendo impreciso, mas agora de um modo diferente. O chão e as árvores pareciam dar voltas enquanto ela lutava para recuperar o controle sobre o animal. Este estava como louco e se retorcia parado sobre as patas traseiras. A cadeira de montar não pôde sustentá-la. Caiu ao chão sobre seu estômago e recebeu um impacto que aturdiu seus sentidos.
Ainda mais espantoso foi o peso que imediatamente caiu sobre suas costas e os antebraços que sentia a cada lado de sua cabeça. Vergil estava em cima dela, cobrindo suas costas e sua cabeça com seu próprio corpo. Ela lutou contra ele indignada e abriu a boca para protestar.
Um estalo quebrou o silêncio da manhã. Vergil a pegou pelos ombros com firmeza e lhe deu a volta apoiando-a sobre o barro.
—Vigia seus disparos! —gritou ele encolerizado na direção do som. Com a mão direita apertava os extremos das rédeas e os dois cavalos relinchavam e faziam cambalhotas.
De repente não lhe importou que estivessem ridículos, escancarados juntos desse modo.
—Quem será que disparou?
—Caçadores furtivos, provavelmente procurando faisões. É muito audaz por sua parte usar revólveres em lugar de armadilhas. Só se atrevem a fazê-lo muito cedo na manhã. Estamos a vários quilômetros da casa e eles supõem que as famílias estão ainda na cama.
Ouviu-se um novo estalo. Desta vez ela ouviu um pequeno golpe como o de uma bola, contra a árvore que tinham à esquerda. Os cavalos encabritaram e quase conseguiram soltar-se. Vergil soltou uma maldição e voltou a gritar.
Ele continuava apertado contra ela, com todo seu peso sobre suas costas. Sua respiração fazia cócegas em sua nuca. O tecido de suas mangas roçava brandamente suas bochechas.
Ela não se sentia nada em perigo, a não ser segura e protegida do modo mais quente. A íntima proximidade acendeu nela uma ardente resposta. Respirou seu aroma a sabão e couro, e um estranho bater de asas a percorreu, do coração até o estômago.
—Agora pode entender por que não deve cavalgar a esta hora. É perigoso — disse ele.
—Você vai cavalgar.
—É diferente. —Ela sentia as palavras junto a seu ouvido, como se ele tivesse aproximado ainda mais a cabeça. Tinha-a abraçada contra o chão, o queixo dela se apoiava sobre as folhas e a terra. A cálida brisa de seu fôlego acariciava suas têmporas, fazendo que aquele bater de asas se voltasse furioso.
Ele se elevou, mas sem afastar-se completamente. Permaneceu sobre ela. Algo que não era capaz de nomear vertia dele para ela. Isso a assustou. O bater de asas se fez ainda mais forte e encheu seu peito.
Deu a volta e o olhou diretamente aos olhos. Ninguém em sua vida jamais cuidou dela de uma maneira tão… Explícita. Ao menos não de tão perto. Aquele olhar pareceu penetrar diretamente em sua mente e explorar sua vontade.
Já não se sentia segura e protegida. Mas bem o contrário. O bater de asas se multiplicou adquirindo um ritmo frenético e um zumbido que se apoderou de seu corpo e de seus membros. Os alertas de uma advertência. E excitação.
A tensão que refletia em sua expressão o fazia extraordinariamente atrativo. Incorporou-se, de joelhos, para lhe oferecer sua mão e ajudá-la a sentar-se.
—Se machucou ao cair?
Ela moveu as pernas com cautela.
—Só fiquei sem fôlego. Em realidade a queda não foi muito forte, mas estarei um pouco dolorida amanhã. —apressou-se a levantar-se— Como protetor é excelente, tio Vergil. Não haveria muitos homens dispostos a lançar seu corpo entre a bala de um mosquete e uma mulher que mal conhecem.
—Qualquer homem inglês de honra o teria feito senhorita Kenwood.
Fizeram os cavalos caminhar durante um tempo para que se acalmassem, depois cavalgaram os últimos quilômetros de volta a casa. Sua silenciosa companhia a incomodava e aquela estranha excitação ainda deixava ouvir seu murmúrio. Nos estábulos, ele se deixou cair do cavalo e foi ajudá-la a desmontar. Ela se deteve quando seus braços a alcançaram.
Ele notou sua vacilação. Seus olhos azuis se encontraram com os dela de uma maneira especial. Ela começou a respirar com dificuldade e se sentia incapaz de afastar o olhar.
Uns dedos fortes rodearam sua cintura e a deslizaram para baixo. Deu a impressão de que ele demorava muito em soltá-la, o momento pareceu prolongar-se enquanto ele a sustentava tão somente a escassos centímetros. A suave pressão de suas mãos e a cercania de seu corpo a fizeram tremer.
—Obrigado. Desfrutei muito do passeio a cavalo. —Ela recuperou sua compostura e deu a volta.
—Me alegro de que tenha desfrutado, especialmente já que é o último.
Ela deu meia volta para olhá-lo no rosto.
—Está dizendo que não poderei voltar a cavalgar enquanto esteja aqui?
—Naturalmente que pode, acompanhada e bem entrado o dia. Entretanto, pedirei aos moços que não voltem a te dar um cavalo tão cedo pela manhã, e a nenhuma hora se pretende ir sozinha. —Ele se expressou com tanta autoridade e tanta calma como sempre, mas ela sentiu crescer a tensão a seu redor— Não organizará mais encontros furtivos com seu primo Nigel. Poderá vê-lo quando ele vier aqui de visita, ou quando Penelope convidá-lo.
Encontros furtivos? Sua imaginação extraiu daquelas ambiguidades mais conclusões das que ela pretendia.
Continuou caminhando sem corrigi-lo.
«Deixemos que pense o pior.»
***
Vergil aproximou uma cadeira à cama, sentou-se nela e levantou sua bota para dar a seu irmão um bom empurrão no quadril.
Dante gemeu e cobriu os olhos com um braço. Olhou por debaixo deste, viu Vergil e voltou a resmungar com resignação. Deixou escapar um suspiro de irritação e se incorporou para apoiar-se contra a cabeceira.
—Bom dia, Vergil.
Vergil viu o peito nu de seu irmão e observou os dois copos e a garrafa de vinho vazia que havia sobre a mesa.
—Quase toda a noite com Marian suponho. Disse-lhe que deixe às criadas em paz, Dante. Não quero que ninguém as incomode.
—Um homem não molesta Marian; ele luta por sua vida. Mas o que acontece com você. Por mais que lhe goste. Não seria discreto por sua parte.
—Tampouco é discreto pela tua. A mulher que pretende se casar está na casa.
Dante apoiou a cabeça contra a cabeceira e sorriu.
—Ah, sim, a bela Bianca. Sua descrição não lhe fez justiça. É realmente uma coisinha doce e jovem, só que um pouco ingênua. É encantador ver como luta por imitar nossas formas.
«um pouco ingênua?»
—Acabo de dar uma longa volta com sua coisinha doce e jovem.
—A julgar pelo estado de seu casaco, parece que esteve derrubando pelo chão com ela.
—Alguns caçadores furtivos estavam atirando e acabamos caindo do cavalo. —Não era exatamente isso o que tinha acontecido, mas não fazia sentido explicar detalhes que suscitariam perguntas a respeito— Me alegra saber que a senhorita Kenwood te parece apropriada. Entretanto, devo te advertir que tem concorrência.
—Nada sério — disse Dante bocejando.
—Nem sequer ouviu de quem se trata.
—Confio em que não seja você.
Vergil lhe lançou um olhar mordaz que escondia um incômodo sentimento de culpa.
—Só estava brincando, Vergil — sorriu Dante— Está tão claro que não encaixam e que ela te odeia que não pude resistir.
A menos que ele se equivocou completamente ao interpretar as coisas quando estavam atirados no chão, se encaixavam de um modo estupendo e perturbador.
—Seu rival não sou eu, a não ser um homem com um título nobiliário.
Aquilo freou a alegria de seu irmão. Dante tinha uma suprema confiança em sua habilidade para tratar com as mulheres, mas dado que era o filho mais jovem dita habilidade não tinha por que traduzir-se na possibilidade de casar-se com quem quisesse.
—De quem se trata?
—De seu primo, Nigel Kenwood.
—O segundo barão de Woodleigh? Com seu título recém estreado e de pouca subida não impressiona a ninguém.
—A ela não importam as delicadas questões do nascimento e a fila, e eles são parentes, o qual significa que têm um vínculo natural. Eu acreditei que ele se achava na França, administrando a herança de Adam, mas temo que retornou antes do que eu calculava. A questão é que já está aqui e se estabeleceu como nosso vizinho. Suspeito que tinha a esperança de encontrá-la aqui conosco. Afinal, ela recebeu quase tudo o que não foi deixado à caridade. Suponho que ele acredita que tem algum direito a ela.
Dante não parecia exatamente preocupado, mas Vergil monopolizou sua atenção.
—O que sabe você desse primo dele?
—É o neto do irmão de Adam. Começaram juntos nos negócios, mas o irmão teve um problema financeiro e Adam comprou sua parte. O pai de Nigel não quis tocar o negócio, apesar de Adam lhe ofereceu participar. Nigel, por sua parte, decidiu fazer-se artista e viveu em Paris até alcançar sua maioridade.
—Um boêmio? Sejamos sérios, Vergil, não acredito que…
—Não é um pintor. É músico. Adam se gabou uma vez sobre o menino e seu pianoforte.
—Ah, bom. Um músico. Pequeno motivo para alarmar-se.
—A senhorita Kenwood também se dedica à música, assim é provável que sim haja um motivo para inquietar-se, e até para alarmar-se.
Dante elevou suas sobrancelhas ante essa nova fofoca.
—É cantor — explicou Vergil— Gosta da ópera. Assim Nigel tem um possível atrativo. Interesse em comum e um parentesco de sangue.
—Exagera as duas coisas. Estamos falando de casamento, não de uma relação amorosa. Tinham nossos pais interesses em comum? Você e Fleur têm algum interesse em comum?
Ele e Fleur tinham em comum os interesses mais básicos, mas aquele não era o assunto. Vergil ficou de pé.
—Bom, mais te vale atuar com rapidez. Eu tentarei evitar que Nigel faça visitas frequentes, mas não posso impedir sua entrada na casa.
Caminhou até a porta. A voz de Dante o seguiu.
—Bom, e agora, irmão mais velho, o quão rápido quer que vá?
Vergil deu a volta para olhar Dante. Imagens desse peito e esses braços nus abraçando Bianca estalaram em sua mente, incitando-o a uma reação desagradável. Durante um momento não respondeu, enquanto tentava desfazer-se das imagens e da ira. Aquele abraço seria inevitável. E necessário.
—Não chegue a desonrá-la —disse— E mantém suas mãos afastadas de Marian enquanto esteja nesta casa. Não quero que as damas se escandalizem.
Capítulo 4
Penelope visitou o escritório de Vergil aquela tarde, para lhe comunicar que tinha recebido uma carta no correio do dia dizendo que Fleur e sua mãe viriam de visita em um prazo de dez dias.
—Estarei fora na semana anterior, mas prometo voltar a tempo — a tranquilizou ele.
—Acredito que também convidarei alguns amigos de Londres — disse Penelope— Darei a Bianca à oportunidade de desdobrar suas asas.
—Não convide muita gente, Pen. E escolhe cuidadosamente.
—Há outra coisa, Vergil. Suspeito que Dante esteja começando a ter certa debilidade por ela.
Ele tentou concentrar-se no que Pen estava dizendo, mas sua mente estava absorta contemplando à senhorita Kenwood estendida sobre o chão e olhando-o com um rubor de surpresa que lhe enviava rajadas de calor através de suas veias. Suas mãos notavam sua feminina cintura uma vez mais e seu corpo lhe advertia o perigo da cercania ao ajudá-la a descer do cavalo. Um misterioso perfume de lavanda enchia sua cabeça.
—Não se preocupe Pen. Dante não se verá envolto em uma confusão sem dar-se conta.
—Não me preocupo com Dante. Bianca, entretanto, parece tão ingênua.
«Ingênua?»
—E Dante… Vergil, não sei se você é consciente, estou segura de que ninguém fala contigo sobre isto, vendo que é tão… Mas se rumoreja que é um mulherengo implacável.
Perguntou-se do que pensaria Pen que falavam os homens quando se reuniam depois de comer com uma taça de porto e uns cigarros. Passou anos recebendo brincadeiras pelas conquistas de seu irmão, e em mais de uma ocasião se viu obrigado a olhar de frente um marido irado.
—Inclusive Dante respeita as regras básicas. Se estiver interessado nela, estou seguro de que isso o honra.
Ela pestanejou atônita.
—Permitiria?
—Por que não teria que fazê-lo?
—Ela é muito ignorante das questões mundanas e se desiludiria terrivelmente quando soubesse a verdade a respeito dele.
—Não quero interferir, Pen. Deixemos que as coisas sigam seu curso. Se ele a conquista, terão que solucionar seus assuntos da mesma forma que todos os casais o fazem.
—Você pode dizer isso, mas eu sempre lamentei que ninguém tivesse me advertido a respeito de Anthony.
Ele quis fazê-lo, mas não o correspondia sendo tão somente um jovenzinho, especialmente com sua mãe viva e encarregando-se de tudo. Um moço não podia aproximar-se de sua irmã mais velha e informá-la de que o maravilhoso conde com quem estava disposta a casar-se tinha fama de libertino, e que as escuras alusões a seus pecados não eram das típicas.
Entretanto, alguém devia tê-la advertido, e ele recordava muito bem a infelicidade de sua irmã. A separação oficial do conde durante esses últimos cinco anos havia lhe trazido certa paz, mas a custa de sua reputação social e uma permanente solidão. A lembrança de que um mau matrimônio podia ser o inferno o fez sentir-se incômodo a respeito de Bianca, e desejou que Pen não tivesse trazido a conversa seu próprio matrimônio, sem amor e sem filhos.
Ela o olhou com feminino ceticismo.
—Manterei minha língua presa e observarei como se desenvolvem as coisas, mas se suspeitar que ele está jogando com ela, chamarei sua atenção severamente, Vergil. Isso é algo que não tolerarei.
—Faz o que acredite ser o melhor, Pen.
Ela saiu, e ele voltou a se concentrar na carta que estava lendo quando entrou.
Examinou o conteúdo outra vez. O maior problema de um segredo é que sempre reclama sua atenção no momento mais inoportuno. Tinha planejado ficar ali todo o tempo que Dante estivesse, mas agora não ia ser possível.
Saiu do escritório e se dirigiu a seu aposentos para dizer a Morton que empreenderia uma viagem depois de amanhã.
***
À tarde do dia seguinte Bianca se achava sentada no salão, dando golpezinhos com o pé de maneira impaciente. Esperava que logo se apresentasse uma visita. Infelizmente, aquele que anunciava o cartão que o mordomo entregou a Pen não era o mesmo que ela esperava.
Nigel entrou despreocupado, com um ar muito romântico graças a seu paletó parisiense tão estreito na cintura, seu cachecol escuro e seu cabelo despenteado que chegava ao ombro. Obsequiou Bianca um acolhedor sorriso de familiaridade enquanto Pen o recebia.
—Retornou recentemente de Paris — me disse Charlotte— Assim tem que nos contar tudo sobre Paris.
Nigel as entreteve amavelmente com algumas descrições das últimas modas. Bianca mal escutava, apesar de que seu primo virtualmente dirigisse a ela toda sua atenção. Ela estava atenta aos ruídos de outra chegada.
As portas se abriram, mas só para dar passo a Vergil e a Dante.
—Espero que seu propósito seja ficar em Woodleigh, ao menos durante o outono — disse Penelope.
—Essa é minha intenção.
—Logo vou ter umas visitas em casa, e conto com que se una a nós sempre que puder.
—É muito amável por sua parte. Visitava meu tio-avô com pouca frequência, assim sou virtualmente novo neste lugar.
—Não passou muito tempo na Inglaterra estes últimos anos, verdade Kenwood? —perguntou Vergil.
—Preferi Paris. Encontro que a cultura ali é de superior qualidade. A vida artística é muito rica.
—Você tem interesse nas artes? —perguntou Penelope— Então desfrutará com os convidados em minha festa. Sua prima, sem ir mais longe, é uma artista excelente. Canta como um anjo e teve a gentileza de entreter Charlotte e a mim em mais de uma ocasião.
A expressão de Nigel mostrava um educado interesse, mas também ia carregada de um matiz condescendente. Bianca supôs que devia ter conhecido muitas mulheres jovens cujos amigos acreditavam que cantavam como anjos.
—Nos deixe convencê-la para que cante agora — disse Charlotte— Vergil e Dante nunca a ouviram.
—Será uma honra acompanhá-la — ofereceu Nigel— Sou bastante aceitável com o pianoforte.
Bianca se sentia um pouco encurralada. Ela só tinha entretido Penelope e Charlotte com canções populares de salão, e não pode praticar seriamente durante as últimas duas semanas. Ao mesmo tempo, a oportunidade de cantar, inclusive embora não pudesse dar o melhor de si mesma, excitava-a.
Todos foram ao salão de música e Nigel ocupou seu lugar frente ao pianoforte.
—Meu repertório de canções populares é limitado — advertiu ele, dando-se certa importância.
—Possivelmente então tenha mais sentido uma ária.
Ele levantou o olhar agradavelmente surpreso. Ficaram de acordo em interpretar uma de Mozart, uma que ela tinha estado estudando justo antes de deixar Baltimore. A perspectiva dessa pequena atuação acelerou seu coração.
Os outros se colocaram em bancos e em cadeiras. Nigel começou a tocar para introduzir a peça.
Com o som das notas o espírito de Bianca imediatamente renasceu. Não precisava conter sua voz como quando praticava escalas em seu quarto. Não era o frio isolamento que tinha experimentado quando escapulia longe para cantar no campo. A alegria que sentia ao deixar sair sua voz com força dava cor aos sons.
As reações de sua pequena audiência produziram uma espécie de poder.
Penelope permanecia aniquilada, Dante encantado, Charlotte confusa, e Vergil fortemente interessado. Ela olhou Nigel e o viu dar sua surpreendida aprovação. Sua destreza com o pianoforte era considerável, e ela tinha a sensação de que ele sabia que o público apreciava essa destreza.
Ao terminar, a sala estava tão silenciosa que ela podia ouvir o zumbido dos insetos através da janela aberta. Ela desfrutou daquele momento de torcida euforia e depois relaxou.
—Foi assombroso, querida prima — disse Nigel com serenidade— Esteve estudando a sério.
—Surpreendeu a todos, Bianca — disse Penelope— E sua interpretação foi magistral, senhor Nigel. Já vejo que a música é um interesse sério para você.
—Não um interesse, a não ser uma paixão. —Seus olhos procuraram os de Bianca com um brilho trêmulo que parecia indicar que ambos compartilhavam um segredo que os outros jamais entenderiam.
—Deve me prometer que tocará para meus convidados. Possivelmente também poderemos persuadir Bianca para que cante. Será uma noite maravilhosa.
—Será uma honra para mim.
Ele começou a preparar-se para sair, rogando a Penelope que visitasse logo Woodleigh. O mordomo entrou antes que Pen o chamasse, com um cartão de visita.
—Acaba de chegar um homem, minha senhora. Deseja ver a senhorita Kenwood.
Penelope examinou o cartão e elevou as sobrancelhas ao entregar-lhe a Bianca. Antes de lê-lo, ela já sabia de quem se tratava.
O visitante que tinha estado esperando por fim tinha chegado.
—É um assunto de negócios, Penelope. Há algum lugar onde possa me entrevistar com ele a sós?
—Leva-o a meu escritório — indicou Vergil ao mordomo— A senhorita Kenwood poderá atender ali seus negócios.
Bianca se despediu de Nigel e depois se apressou a ir ao escritório, sentindo ainda a alegria do canto.
Nunca esteve no escritório. Estava orientado ao norte, e a luz se filtrava através das janelas góticas iluminando fracamente a escura mesa de madeira, as paredes cheias de livros e as paisagens de aquarela.
Seu visitante aproximou uma cadeira à janela.
—Senhor Peterson, estou encantada de que tenha vindo.
—Senti alívio ao receber sua chamada, senhorita Kenwood. Ao ver que não ia a nossa última entrevista fiquei preocupado.
—Lorde Laclere me encontrou e pôs em marcha outros planos para minha visita a seu país.
Ela se sentou em um assento acolchoado junto à janela. O batente era muito largo. Continha uma coleção de curiosos brinquedos. Um era uma catapulta feita de madeira e cadeias. Outro, uma carruagem de madeira e couro. Um terceiro não parecia ser nada em particular, tão somente um conjunto de rampas estriadas entrelaçando-se entre si, decorado com corrente e rodas.
O tipo de construção era algo rudimentar. Ela supôs que se tratava de objetos que Vergil tinha fabricado quando era menino. A ideia de que o sério e formal visconde guardasse lembranças de sua infância em seu santuário íntimo era adorável, embora se sentisse incapaz de imaginar de menino um homem como aquele.
O senhor Peterson era um homem de meia idade, pálido e calvo, com uns olhos cinza que podiam parecer sagazes ou respeitosos segundo as circunstâncias. Quando ela o visitou em Londres pela primeira vez, seu lado perspicaz tinha entendido rapidamente que embora ela não pudesse pagar seus honorários naquele momento, tinha expectativas que resolveriam as coisas adequadamente.
—Examinou o testamento? —perguntou ela.
—O fiz. Tive uma entrevista com o advogado de seu avô. Ele pareceu surpreender-se de que tivesse me encarregado o assunto, mas cooperou até onde estava obrigado a fazê-lo. Não mais, entretanto.
—E que conclusões tirou? Posso me liberar do domínio de lorde Laclere?
—Se ele não se ocupasse de você, ou houvesse alguma evidência de fraude, seria possível fazer algo a respeito, mas a Corte não permitiria a independência que você está procurando. Se o visconde não fosse seu tutor, outra pessoa seria nomeada em seu lugar. Com um homem de sua categoria, qualquer abuso de sua posição teria que ser realmente terrível para que se pudesse levar ante a Corte.
Ela se sentiu furiosa ante a decepção. Aquele brinquedo inútil captou sua atenção e viu uma pequena bola de chumbo em sua base. Refletindo a respeito de qual seria sua próxima estratégia com Vergil, pegou distraidamente a bola e a soltou sobre a rampa superior. Começou a rodar costa abaixo, de uma rampa a seguinte, de um lado ao outro, pondo em movimento várias pequenas rodas e polias cada vez que seu peso mudava de nível.
—Senhorita Kenwood, não se trata de uma situação permanente… Será menos de um ano. Você é uma moça e rica, e é compreensível que seu avô tenha querido protegê-la para evitar que seja vítima de algum caçador de fortunas sem escrúpulos.
—Quanto de rica?
—Perdoe? Supunha que você sabia.
—Sei em termos gerais. Mas exatamente a quanto ascende minha fortuna?
—Os ganhos pelo fundo de dinheiro investido sobem ao menos a três mil libras este ano.
—Essa quantidade por si só já é uma fortuna, e muito mais do que necessito para meus planos.
—Seu tutor dirigirá essa soma, subministrando os recursos de acordo com as necessidades que você tenha e os gastos que deva cobrir. Ele tem a obrigação de ser razoável em relação a seus pedidos.
Ela duvidava que Vergil fosse tão razoável para lhe dar várias centenas de libras que a permitissem escapar para Milão. Se ele controlava seus ganhos, controlava também seus movimentos. Em definitivo, controlava sua vida.
—Quanto à outra parte de sua herança, tudo resulta muito mais complicado — disse o senhor Peterson, continuando com seu relatório.
—Que outra parte?
—Seu avô era um homem de negócios. Para o final de sua vida vendeu a maioria deles. Entretanto, conservou três sociedades. Duas eram pequenas parcelas de companhias de transportes, e a terceira era a maior parte de uma companhia de algodão em Manchester. Também foram legadas a você suas ações nesses negócios, menos dez por cento das da fábrica, que foram cedidas ao seu primo.
—Entretanto, o visconde também é meu administrador. Ele dirige esses investimentos.
—As ações nessas sociedades não são parte dos investimentos permanentes, como sim o são os recursos de investimento. Se você se casar ou se faz maior de idade, ele deverá renunciar ao controle sobre elas. De fato me surpreende que ele não tenha vendido esses negócios. Representam uma ameaça para sua riqueza. Se algo sair mal, todos os proprietários são responsáveis pelas dívidas incorridas.
Aqueles negócios em realidade não lhe interessavam muito, a menos…
—Também há ganhos que provêm desses negócios?
—O advogado não esteve disposto a me permitir ver os documentos. Eu acredito que a fábrica deve dar lucros.
—E o que ocorre com esses ganhos?
—Vão para seu administrador, que presumivelmente os investe em mais investimentos. Ou se não, são enviados ao seu tutor.
Que era a mesma pessoa. Administrador. Tutor. Qualquer que fosse o lugar para o qual se desviava a conversa acabava indo parar em Vergil Duclairc.
—Senhor Peterson, eu gostaria que você estivesse presente enquanto falo com lorde Laclere. A situação que criou é intolerável. Estou prisioneira aqui.
Ela chamou o mordomo para que solicitasse a presença de Vergil. O senhor Peterson pareceu muito incômodo ante a ideia dessa entrevista. Quando Vergil entrou pela porta, o respeito havia superado a suspicacia naqueles olhos cinza, e a calvície daquele homem mostrava pequenas gotas de suor.
—Lorde Laclere, este é o senhor Peterson. Ele é meu procurador.
Vergil examinou friamente o advogado com um gesto aristocrático de aborrecimento. O senhor Peterson se desfez em um molho de nervos. Bianca lutou contra o impulso de bronquear com ele para que se comportasse como um homem.
Vergil posou sobre ela um olhar muito sério.
—Não sabia que tinha contratado um advogado, senhorita Kenwood.
—Foi uma das primeiras coisas das que me ocupei ao chegar a Londres.
—O advogado de seu avô, ou o meu, ou inclusive eu pessoalmente, teríamos lhe explicado gostosamente algo que precisasse saber.
—Pensei que era melhor ter meu próprio representante e decidir por mim mesma o que era o que precisava saber.
—Confio em que o senhor Peterson tenha satisfeito do toda sua curiosidade.
—Quase tudo. Falou-me a respeito das ações de negócios que herdei e sugeriu que você deveria as ter vendido, para maior segurança.
—Eu não o expressei dessa maneira milord — se apressou a esclarecer o senhor Peterson— Só lhe expliquei as leis em relação às responsabilidades financeiras dos sócios.
—Como deveria fazer com um cliente. Estou obtendo informação sobre o valor das ações. Como administrador seria irresponsável por minha parte as vender a um preço muito baixo. Houve várias propostas em relação à venda que terei em consideração quando estiver em melhores condições para julgar se forem justas. Entretanto, estas coisas levam seu tempo. É difícil obter informação honesta dos gerentes e dos outros proprietários.
—Excelente milord. Justo o tipo de prudente supervisão que alguém esperaria. Acredito que é evidente que tudo está em perfeita ordem, senhorita Kenwood, e que é você afortunada pelo fato de que lorde Laclere se faça cargo de…
—Quando se recebem os benefícios das companhias? —perguntou ela.
Uma paciência de aço controlou a mandíbula e a boca de Vergil.
—Se houver benefícios, as companhias os pagam uma vez ao ano. Serão reaplicados em recursos do Governo.
—E os recursos de investimento por eles mesmos deram lucros desde a morte de meu avô?
—Sim, deram.
—E essa parte dos benefícios foi também reaplicada?
—A maior parte.
A maior parte, mas não toda.
—Senhor Peterson, seria tão amável de me esperar na biblioteca?
O senhor Peterson estava encantado de fazê-lo. Quase tropeçou ao retirar-se apressadamente.
Bianca ocupou uma cadeira frente à Vergil.
—Quero que arrume as coisas para que os ganhos fiquem a minha disposição.
—Não tenho nenhuma intenção de fazer isso.
—Trata-se de minha herança.
—Inclusive embora fosse a mais sensata das jovens, não estaria cumprindo com meu dever se te deixasse dispor desse dinheiro. O certo é que confessou ter propósitos que me converteriam em um conspirador de sua ruína. É totalmente impossível.
—O senhor Peterson me explicou que se espera que um tutor seja razoável em relação a esses recursos.
—Com uma parte é suficiente para cobrir suas necessidades. Os lojistas só têm que me enviar suas faturas. As costureiras e outros profissionais que atendem às mulheres estão acostumados a isso. A menos que haja algum gasto exagerado por sua parte não precisamos voltar a falar disto.
—Dado que não há costureiras nesta casa não corro o perigo de ser acusada de nenhum gasto exagerado.
A expressão dele se suavizou um pouco.
—Minhas desculpas. É obvio que você gostaria de desfrutar dos frutos de sua enorme fortuna. Pedirei a Penelope que te leve a Londres dentro de umas poucas semanas.
—Obrigado. Entretanto, necessitarei um pouco de dinheiro para gastos menores agora. Tenho que comprar uns poucos artigos de natureza pessoal.
Tal como ela esperava, a palavra pessoal o impediu de seguir investigando. Abriu uma gaveta do escritório.
—Espero que vinte libras seja suficiente — disse ela.
—Isso é muito dinheiro para gastos menores, senhorita Kenwood.
—Usarei uma parte para pagar o senhor Peterson.
—O senhor Peterson pode me enviar sua fatura.
—Prefiro que não o faça. Prefiro que recorde quem o contratou. Tampouco me parece correto lhe pedir que aguarde minha herança.
Vergil tirou vários bilhetes da gaveta e os colocou em uma pilha sobre o escritório. Caminhou para ela, sem poder ocultar por mais tempo sua irritação. Ela com muita dificuldade pôde evitar encolher-se de medo ante a autoridade que emanava dele.
—Não estou acostumado a discussões abertas sobre assuntos de dinheiro, e muito menos com mulheres. Não estou disposto a tolerar perguntas que impliquem dúvidas a respeito de minha honestidade e minha capacidade na hora de administrar seu patrimônio, e menos diante de um homem que não conheço.
Ele se inclinou e se agarrou aos braços da cadeira. Ela se encolheu contra o respaldo, afastando-se das faíscas que brilhavam em seus olhos, tão somente a umas polegadas de seu rosto.
—A questão é senhorita Kenwood, que agora mesmo o tio Vergil está pensando que sua desrespeitosa pupila merece uma boa surra.
Os lábios dela se abriram com indignação. Ele saiu disparado e se afastou a grandes pernadas até a porta.
Logo que ele saiu, recolheu os bilhetes e se reuniu com o senhor Peterson. Entregou-lhe dez libras.
—Isto é em pagamento por seus honorários e gastos até o momento. Quero que você guarde o que sobre e abra uma conta para mim no banco. Use seu próprio nome se for necessário.
—Seguro que lorde Laclere terá uma conta onde se possam fazer remessas bancárias.
—Quero ter minha própria conta, e não quero que ele saiba. Me escreva informando quando estiver feito. Também quero que faça averiguações a respeito dessas ofertas para a compra das ações das companhias.
—Se insistir, verei o que posso averiguar. Devo lhe escrever aqui?
—Sim. Não acredito que o visconde me deixe ir muito longe durante um tempo.
Provavelmente não até que se casasse ou fizesse vinte e um anos.
Ela não tinha intenção de fazer o primeiro e tampouco de esperar o segundo. Se o senhor Peterson conseguia os nomes das partes interessadas nas sociedades, ela poderia conseguir o dinheiro necessário para ir à Itália, apesar do obstáculo que representava Vergil Duclairc.
***
Vergil com muita dificuldade conseguiu acalmar sua fúria depois da surpresa de encontrar-se com o senhor Peterson, quando outra visita inesperada chegou à última hora da tarde. Adrian Burchard, um dos amigos de Vergil, entrou em seu escritório, graças a Deus o distraindo das insistentes e eróticas imagens de uma Bianca Kenwood domesticada.
—Fazia muito tempo que não nos víamos Burchard — disse Vergil, lhe dando boas vindas.
—Se passasse algo mais que uns poucos dias em Londres cada vez que vai, não teria sido tanto tempo. Onde esteve metido? —Os escuros e exóticos olhos de Adrian não pareciam estar esperando uma resposta interessante.
E tampouco a conseguiu. Vergil assinalou o escritório.
—Temo que os assuntos familiares me tiveram a maior parte do tempo ocupado. —O conteúdo da afirmação era certo, mas não o gesto que a acompanhou e suas implicações. Não tinha passado em Laclere Park mais tempo que em Londres.
Dentre todos seus amigos, Burchard era o mais capaz de precaver-se dos silêncios.
—Com frequência escapei ao norte, à propriedade que tenho ali. Aí não tenho que me comportar como um visconde — acrescentou Vergil precisamente para romper o silêncio— É uma sorte que tenha cavalgado até aqui para me liberar de ter que exercer de visconde esta tarde.
—Lamento te dizer que esta não é uma visita social. Demos um passeio e te explicarei.
Cheio de curiosidade, Vergil o acompanhou até o princípio do caminho que dava a casa. Adrian o conduziu até o lugar onde outro caminho assinalava o fim da propriedade. Ali, à sombra de uma árvore, esperava um carro.
Um homem mais velho com um proeminente nariz farpado estava sentado em seu interior.
—Podia ter me avisado de que havia trazido Wellington contigo.
O duque o ouviu por acaso.
—Pedi que o trouxesse sem anunciar minha presença, e Burchard cumpriu com sua missão ao pé da letra.
—Sua excelência nos honra com esta visita.
—Não é uma visita, por isso pedi a Burchard que te trouxesse até aqui. Não pretendo ofender sua irmã, Laclere. Simplesmente hoje não tenho tempo para bate-papos de salão. —Fez um gesto com sua bengala — Este parece um caminho agradável e sombreado. Façamos um pouco de exercício.
Vergil começou a caminhar, com Adrian a seu lado. Adrian se converteu no protegido de Wellington. O mecenato daquele grande homem lhe proporcionou um lugar na Câmara dos Comuns como terceiro filho do conde de Dincaster.
Durante uns minutos se ouviu o rítmico ruído das botas contra o chão. O duque não tentou cobri-lo com elogios ou frases de rigor.
—Vim tratar de um tema delicado — disse por fim— Não há uma boa maneira de abordá-lo, assim irei direto ao ponto. Vim fazer umas perguntas sobre a morte de seu irmão. Sempre sinto curiosidade quando um homem morre por causa de uma ferida de bala disparada por si mesmo de forma acidental. Sou consciente de que não é fácil que isso ocorra. Quero saber se no caso de seu irmão não foi um acidente a não ser um suicídio.
Vergil dirigiu a Adrian um olhar ressentido, e este respondeu negando sutilmente com a cabeça. A evidência de que Adrian não tinha sido desleal ou indiscreto acalmou seu aborrecimento.
—Sim. Unicamente a família e uns poucos amigos sabem.
—Aprecio sua confiança em minha discrição, mas receber a confirmação de minhas suspeitas não me dá nenhuma satisfação. Me diga, alguma vez se expôs que resulta estranho que tenhamos tido dois suicídios de pessoas importantes durante a mesma semana? Seu irmão e o de Castlereagh.
—Meu irmão era propenso a crises de profunda melancolia. O ministro de Assuntos Exteriores estava desequilibrado. Foi uma coincidência.
—Laclere, não estou convencido de que foi uma coincidência. Existe alguma possibilidade de que seu irmão tenha sido vítima de uma chantagem? Você achou alguma prova neste sentido? Pergunto porquê há indícios de que Castlereagh sim foi.
—Acreditava que essas suspeitas tinham sido enterradas. Por você.
—Considerando sua posição dificilmente podia deixá-lo assim. Aquele homem era vítima de delírios, assim que concedi a ele pouca credibilidade. Entretanto, as últimas vezes que o vi me disse algo sobre uma carta. Aludiu a seus temores de ser convertido no alvo de um escândalo.
Um escândalo. Vergil suspeitava onde iria parar aquilo e não queria ir por esse caminho.
—Como você disse, era vítima de delírios.
Wellington deu cinco passos antes de reatar a conversa.
—O autor da carta afirma ter provas de certa atividade criminosa.
Vergil se deteve, forçando Adrian e Wellington a fazê-lo também.
—Assim depois de meses de reflexões esse detalhe me permitiu fazer algum tipo de conexão com meu irmão?
—Laclere, o deixe terminar — disse Adrian.
—Nem pensar!
—Compreendo sua ira, Laclere. Asseguro que a única conexão que vi foi a dos dois suicídios, um dos quais pode ter sido resultado de uma chantagem. —A voz de Wellington cobrou severidade— O pergunto outra vez, tem alguma razão para suspeitar que seu irmão pôde ter sido também vítima de uma chantagem? Para que não sinta a tentação de mentir em altares de proteger seu nome, me deixe lhe dizer que acredito que outras pessoas estão sendo vítimas agora, esse acidente de caça de lorde Fairhall em maio não foi o que parece, e teremos mais desastres e mortes se não chegarmos até o final deste assunto.
A fúria de Vergil se fez mais intensa. Não foi pelo tom severo do duque. Esteve pensando naquele segredo durante quase um ano, perguntando-se se as coincidências e as conexões que ele mesmo suspeitava não eram mais que seus próprios delírios.
—Sim, acredito que Milton estava sendo chantageado. Acredito que é por isso que se matou. Ele deixou uma carta. Encontrei-a entre seus papéis, onde ele sabia que eu procuraria para me ocupar dos gastos da fazenda. Aludia a uma traição, se era a ele ou a outra pessoa não sei. A maior parte da carta falava da família, e de que seria melhor que ele saísse de cena antes que nos arruinássemos. Eu quis acreditar que se referia às finanças, que estavam em uma situação péssima então. Entretanto, estive me perguntando se não o tinham obrigado a escrever essa carta.
Sentaram-se sobre o tronco de uma árvore caída enquanto ele contava sua história. Wellington fazia desenhos na terra com sua bengala enquanto escutava.
—Suponhamos que em ambos os casos houve uma chantagem. O objetivo era que morressem? —perguntou Adrian.
—Essa é a questão, não? —disse Wellington.
—No caso de meu irmão a razão da chantagem só podia ser para tirar dinheiro. Não havia nenhum modo de que alguém soubesse que não podia pagar. Nossa situação financeira não era óbvia. Ele gastava como se não houvesse um problema.
—Normalmente, se supõe que o único que quer um chantagista é sangrar sua vítima. Entretanto, o momento que estamos vivendo… Tivemos provas de que há radicais tentando assassinar membros do Governo e da Casa dos Lordes. A situação, portanto é propícia para provocar problemas deste tipo.
—Meu irmão não se destacava no Governo.
—Tinha interesse na política.
—Um interesse teórico.
—Um interesse teórico radical. Isso deve tê-lo levado a contatar com homens que defendem a violência e que poderiam enredá-lo, e através dele outros — disse Wellington — Ele deve ter se comunicado ou associado inocentemente com homens desses, só para que logo usassem essa conexão contra ele mais tarde.
O comentário pendurava no ar, mendigando uma resposta. O duque tinha articulado claramente os próprios temores de Vergil a respeito da morte de Milton.
—Você encontrou cartas que demonstrassem uma relação de amizade entre seu irmão e o ministro de Assuntos Exteriores? —perguntou Wellington.
—Não as busquei. —Era mentira. Uma maldita mentira. Entretanto, não podia permitir que a hipótese se convertesse em um fato tão facilmente.
—Possivelmente deveria fazê-lo.
—Estive procurando em outras direções. Não acredito que haja uma conexão direta entre essas mortes, exceto possivelmente pelo mesmo chantagista. Estou mais interessado em encontrar esse homem que em averiguar quão pecados ele descobriu.
—Assim que essa é a razão pela que não esteve muito em Londres e tampouco aqui — disse Adrian— Progrediu algo?
—Um pouco. —Condenadamente pouco considerando quanto de seu tempo e de sua vida investiu nisso.
—Não há nada que eu possa fazer a respeito, salvo observar o comportamento dos homens e me perguntar se estão preocupados — disse Wellington— Tenho razões para pensar que vários estão. É uma ideia horrenda, a de que alguém esteja desentranhando segredos e usando-os para intimidar ou extorquir seus amigos. E o pior é que esses homens andam tão escassos de dinheiro que tiram a vida para escapar.
—E você, Burchard? Qual é seu interesse nisto, ou só veio hoje para organizar um encontro privado com Sua Excelência? —perguntou Vergil.
Wellington respondeu enquanto os três se levantavam para retornar até o carro escondido.
—Ele está fazendo algumas discretas averiguações para mim sobre lorde Fairhall. Dado que você sabe que é um homem de confiança espero que compartilhe com ele algo que averigúe para que possamos resolver este assunto de uma maneira rápida.
—É obvio.
Era outra mentira descarada. Adrian era um amigo, e tinha experiência tanto em investigações como em discrição, mas Vergil não tinha intenção de revelar o que descobrisse a ninguém se isso podia repercutir negativamente em Milton ou na família Duclairc.
Ele suspeitava que assim seria por todas as razões que cuidadosamente evitou discutir.
Capítulo 5
—Vê o que quero dizer? —sussurrou Charlotte.
Estava sentada junto à Bianca no salão enquanto os convidados chegavam à festa.
Vergil se achava de pé ante o suporte, conversando amavelmente com Fleur e sua mãe, a senhora Monley. Tinham chegado justo depois do meio-dia, em uma magnífica carruagem.
—Nada — murmurou Charlotte, sacudindo a cabeça— Não… Bom, não sei… Sua atitude. Vergil poderia perfeitamente estar falando comigo e Fleur com seu pai.
Sentada do outro lado de Charlotte, Diane Saint John, uma das amigas mais queridas da condessa, dava golpezinhos na mão. Seus olhos cheios de sentimento se voltavam risonhos quando olhavam para o suporte.
—Eu não me preocuparia com seu irmão ou a senhorita Monley. As coisas nem sempre são o que parecem nestes assuntos. Os vê estupendamente juntos, não? Um bom casal.
Sim faziam um bom casal. Fleur era toda cortesia e elegância, alta e magra, com a pele de alabastro e o cabelo escuro. Os cachos caíam de um coque decorado com lacinhos, emoldurando seu rosto ovalado que levava no centro uma boca franzida como uma rosa. A Bianca parecia uma pessoa inteligente, de voz suave, cujos olhos marrons estavam atentos a todos os detalhes.
Bianca experimentou uma vaga decepção ao notar que Fleur não a desagradava instantaneamente, ao mesmo tempo em que sentia uma inexplicável pontada de melancolia cada vez que olhava ao grupo junto à lareira.
—Tenho medo de que Vergil esteja se sacrificando por sua fortuna — disse Charlotte— Parece contente de vê-la, mas tendo em conta que sua família deixou Londres há oito semanas e, entretanto, estiveram separados todo este tempo…
—Isso não sabe — disse a senhora Saint John— Pode ser que quando ele não está aqui nem em Londres vá visitá-la.
—Eu acredito que não. A maioria das vezes vai a seu imóvel de Lancashire. Diz a seus agentes, a Pen e a instrutora que vem ficar comigo onde podem encontrá-lo. Se não se tratasse de Vergil, qualquer um poderia suspeitar que vai visitar uma mulher ali. Alguém que ama, mas com quem não pode casar-se.
Bianca se meteu de repente na conversa olhando fixamente Charlotte com uma expressão triste.
—Sugerir isso é escandaloso.
—Tenho entendido que esse tipo de coisas é muito habitual. Pen inclusive me insinuou que devo esperar que meu marido tenha outras relações de vez em quando.
A senhora Saint John baixou as pálpebras.
—Acredito que muita gente foi indiscreta quando fala ao seu redor, Charlotte.
Bianca viu que a senhora Saint John não havia dito que Charlotte estava equivocada, ou que sua ignorância a tivesse levado a interpretar mal as palavras de Penelope.
—Bom, isso explicaria muitas coisas. Para começar aquilo. —Charlotte fez um gesto com a cabeça em direção ao suporte da lareira— A demora em anunciar o compromisso formal por outro. Com sua beleza e sua riqueza ela não tem por que estar o esperando. O estranho é que a Fleur não parece importar que as coisas estejam assim. É sua mãe quem se impacienta.
Sim, sua mãe estava se impacientando. Os olhos da senhora Monley eram os mais iluminados pelo fogo da lareira. Seguia a conversa de sua filha com um encantador sorriso e um movimento de cabeça que dava à pluma de seu turbante de seda e cordões um inquisitivo ângulo.
—A noite promete alongar-se. Deveria se retirar para descansar — disse uma voz masculina.
Bianca afastou sua atenção da lareira para ver que Daniel Saint John se uniu a elas e se dirigia a sua esposa. Aquele homem atrativo que podia deslizar rapidamente de uma passiva frieza a uma atenção intensa, enfocava esta agora no que mais o interessava.
—Daniel se mostra muito protetor comigo quando estou em estado — confessou Diane com um sorriso— Depois de dois filhos, querido, já não sou tão frágil.
—De todos os modos, é necessário que descanse. —Ofereceu-lhe a mão para acompanhá-la.
A Bianca não passou despercebido o olhar que trocaram. Ternura, humor e uma absoluta devoção fluíam nesse fugaz contato. Era como se anos de lembranças colorissem a forma em que viam um ao outro, e enriquecessem inclusive aquela comum troca.
Bianca voltou a dirigir o olhar à lareira e viu como o comportamento de Vergil e Fleur contrastava com o daquele outro casal.
O comentário de Charlotte teve para ela uma nova dimensão. Não havia necessidade de uma demonstração aberta de paixão e afeto. De uma maneira silenciosa que não implica o contato físico, um homem e uma mulher podem estar intimamente conectados.
Diane Saint John aceitou a sugestão de seu marido e se levantou.
—Suponho que um breve descanso pode ser uma boa ideia. —Juntos, sem falar, mas dizendo-se muito, dirigiram-se para o salão.
A atividade do vestíbulo anunciava a chegada de outro carro.
—Por fim o último. —Charlotte ficou em pé— Este deve ser o da senhora Gaston. É uma das amigas de Pen e uma grande mecenas das artes. Apoiou Pen quando outros a abandonaram após sua separação. Acredito que Pen a convidou pensando em você, por sua carreira de cantora.
Bianca e Charlotte seguiram Penelope e Vergil para receber à nova convidada.
A senhora Gaston tinha vindo em uma grande carruagem. Pen se adiantou estendendo os braços para lhe dar a bem-vinda.
—Que amável por sua parte fazer um encaixe para vir a nossa pequena festa.
A senhora Gaston era uma bela mulher de sorriso encantador, maçãs do rosto marcadas e um cabelo castanho acobreado. Movia-se com uma orgulhosa elegância, levava um casaco com um exótico estampado e um chapéu com plumas extravagantes.
—É você a que foi amável ao me dar uma oportunidade para escapar da cidade durante uns dias. Entretanto, temo que dei um passo em falso e devo pedir sua indulgência por isso.
—Um passo em falso? Você? Nunca.
—Infelizmente sim. Trouxe uma amiga comigo.
—Quando lhe escrevi disse que seus amigos seriam bem-vindos.
—Sim, fez. Normalmente no caso de trazer alguém eu teria escrito para lhe avisar. Mas esta amiga chegou à cidade inesperadamente.
Um lacaio se aproximou até a porta aberta da carruagem. Uma mão enluvada e uma manga na moda apareceu. Uma cabeça escura de elegante penteado e chapéu se agachou enquanto a amiga em questão inclinava seu corpo para descer.
—Maria — exclamou Pen, abraçando a escultural figura envolta em musselina azul pálida— Ninguém sabia que viria nos visitar este ano. É uma surpresa maravilhosa para mim.
O rosto da mulher não era formoso, com suas feições muito marcadas, mas sua forma de comportar-se transmitia uma sólida dignidade e inspirava confiança.
—Foi uma decisão impulsiva por minha parte, querida minha. Milão é horrível com o calor. Meus músicos estão se comportando como meninos mimados, e o tenor para a próxima produção é um jovem idiota e arrogante que não se deixa dirigir. Simplesmente deixei a todos. Vamos ver como as arrumam sem Catalani.
—Oh, Deus, que sorte — sussurrou Charlotte a Bianca— Sabe quem é?
Bianca sabia. A mais importante cantora de ópera da Inglaterra, Maria Catalani, retornou da Itália há seis anos e agora dirigia uma companhia de ópera em Milão.
Que maravilhoso golpe de sorte. Com a senhora Gaston e Catalani ali, aquela festa prometia ser enormemente mais interessante do que esperava.
Vergil se adiantou para saudar Catalani, beijando sua mão de maneira lisonjeadora. Ela disse algo em voz baixa e seu rosto se iluminou com um sorriso.
Se a visita inesperada de uma cantora de ópera afligia Laclere, este não o demonstrou. Provavelmente trataria do assunto com Penelope mais tarde.
Penelope conduziu seus novos convidados ao interior da casa.
A Bianca tremia os joelhos pela emoção.
—Esta deve ser Charlotte. Já parece uma jovenzinha, encantadora — disse Catalani— Já teve sua estréia em sociedade?
—No próximo ano — explicou Pen— Vergil não aprova que nestes dias as garotas se apresentem a uma idade tão jovem.
Catalani olhou para trás ao visconde que as seguia e franziu os lábios com picardia.
—Um bom estratagema, e será muito efetiva. Deixemos que tenham que esperar por um diamante assim. Será a sensação da temporada, Charlotte. Predigo que seus irmãos necessitarão lacaios extras para vigiar as paredes do jardim.
Pen atraiu Catalani até Bianca.
—Esta é Bianca Kenwood, de Baltimore. É a pupila de Vergil.
—Nunca tive o prazer de visitar seu país. Temos que falar. Tenho muitas perguntas a fazer.
—E eu também tenho perguntas para você. Visitarei a Itália muito em breve.
—Está planejando uma grande viagem para sua irmã e sua pupila, lorde Laclere? —perguntou Catalani enquanto Pen a conduzia para o interior da casa— Necessitará dez lacaios extras então, se envia duas belezas como estas a meu país.
Bianca se apressou a alcançar Charlotte, atônita pelo curso dos acontecimentos. Essa festa prometia ser o ponto culminante de sua estadia na Inglaterra.
—Por hoje já estão todos os convidados — explicou Charlotte— Pen disse que o senhor Witherby escreveu dizendo que chegaria amanhã pela manhã. Vamos descansar um momento antes de jantar.
Bianca decidiu não fazê-lo a menos que ficasse claro que Catalani também se retirava. Esperou até que a imponente mulher subisse a escada flutuando com Penelope a seu lado.
Ficou sozinha de pé no vestíbulo vazio, sabendo que seria totalmente impossível descansar. Procurando alguma forma de aliviar sua ansiedade, entrou na biblioteca, encontrou o volume de poemas de Shelley que tinha estado lendo e se amassou em um divã encarado uma janela.
Aquele era seu lugar favorito para ler, especialmente pelas tardes. Uma luz tênue penetrava através da janela acompanhada de uma suave brisa. Ninguém podia vê-la ali a menos que se aproximasse do divã. Aquele tinha se convertido em um de seus poucos cantos privados.
Ouviu-se o ruído de passos de alguém que entrava na estadia. Ela se incorporou um pouco para ver de quem se tratava. Dante a reconheceu e caminhou para ela; levava seu chapéu e o látego de montar. Sentou-se em uma poltrona, frente a ela e esticou as pernas; também levava botas.
—Chegaram todos? —desapareceu de casa depois da chegada de Fleur.
—Todos menos o senhor Witherby.
—Surpreende-me que se atrase. Esperava que quisesse aproveitar cada momento para seduzir minha irmã.
—Charlotte?
—Pen. Converteu-se em um amigo muito especial para ela durante o último ano. Ou ao menos ele pensa que assim é. Não sei que ideia tem Pen a respeito, embora pareça desfrutar de sua companhia. Estou seguro de que é por isso que o convidou, apesar de que também é um velho amigo de Vergil.
A frase «amigo muito especial» aludia a algo mais que a uma mera relação de companheirismo. Dante frequentemente se despistava e falava daquela maneira tão familiar, como se compartilhassem alguma compreensão do mundo. Aquele tom de conspiração implicava um tipo de intimidade.
Ele vadiava com ar despreocupado, olhando-a por debaixo das grossas pestanas desse modo que sempre a fazia sentir-se tão incômoda. Sempre estavam a sós quando a olhava dessa forma.
—Maria Catalani acaba de chegar com a senhora Gaston. Foi uma surpresa para todos —disse ela.
Aquilo pegou sua atenção.
—A senhora Gaston está aqui? Deveria ter perguntado a Pen a quem esperava receber antes de aceitar ficar.
—Não te cai bem?
—É por pura insistência que conseguiu introduzir-se em muitos círculos. Vê a si mesma como uma grande patrocinadora de artistas e quer que todos saibam como promove suas corridas.
—Faz? Promove corridas?
Ele deu de ombros.
—Não saberia lhe dizer isso. Os círculos artísticos de Pen não me interessam muito, e parece que isso é o que temos aqui. A senhora Gaston e Catalani, diz. Lorde Calne é outro patrocinador das artes. Cornell Witherby será uma boa companhia, ao menos, apesar de que com os outros que há aqui provavelmente só falará de sua poesia. Espero que Vergil o distraia com outras coisas.
—Crê que Vergil permitirá que Catalani fique?
—Por que não ia fazê-lo?
—Isso pensei, possivelmente, com Fleur aqui e Charlotte e…
Seu comentário o deixou preocupado.
—Esta é a festa de Pen, e meu irmão sabe o que isso significa. Vergil pode ser um santo, mas nunca se comporta de um modo rude. Por outro lado, Catalani tem suficiente poder para ocultar os meios pelos que conseguiu sua fama. —levantou-se— Acredito que darei um passeio. Será uma honra se me acompanhar. Te mostrarei as ruínas.
Bianca já tinha encontrado as ruínas medievais que se conservavam no parque Laclere, e não queria as visitar sozinha com um mulherengo. E menos ainda com um que naquele momento a olhava com esse brilho nos olhos.
—Obrigado, mas acredito que continuarei um bom momento lendo.
Uma repentina irritação alterou sua expressão. Para sua surpresa ele se aproximou e acariciou sua mandíbula com um dedo.
—Não tem que ter medo de mim Bianca.
Ela se tornou para trás ante seu gesto.
—Seu irmão diz que aqui não é habitual dirigir-se a uma mulher de um modo tão familiar.
—Eu não sou meu irmão.
Não, não era. A última semana ela tinha sido o centro da atenção desse jovem. Tinha tentado desanimá-lo. Ao que parecia sem êxito.
Sua mão a tocou outra vez, sustentando seu queixo. Os olhos de Bianca se alargaram com incredulidade quando ele inclinou sua cabeça para cima, aproximou a sua e lhe deu um beijo nos lábios. Aconteceu tão rápido que a impressão lhe fez ficar completamente imóvel.
Ele a interpretou mal. inclinou-se para ela e a beijou profundamente, ao tempo que a abraçava.
Ela se separou dele e o lançou contra a janela com uma assombrosa fúria. Raivosa e envergonhada o enfrentou.
—Não se atreva a voltar a fazer isso.
Ele se levantou.
—Minhas desculpas. Deveria ter te pedido primeiro permissão.
—Não o teria obtido.
—Eu acredito que sim.
—Interpreta mal nossa amizade.
—Não acredito. Está assustada e confusa, e isso é normal para alguém tão inocente. Não voltarei a te beijar sem sua permissão, mas quando lhe pedir isso me dará isso.
Ela andava a provas procurando uma resposta mordaz. Ele sorriu com uma confiança em si mesmo que resultava insofrível e saiu da estadia.
Ela voltou a afundar-se no divã, levantou as pernas e se encolheu em seu canto. O que teria feito pensar a aquele patife que ela reagiria bem ante semelhante coisa? Teria ouvido algo a respeito de seus espetáculos em Londres? Até onde ela sabia, tinha ido a um.
Que sorte para ela que o irmão equivocado tivesse concluído que ela era um pouco selvagem e descuidada com o decoro.
***
—Se escondendo das obrigações de sua condição? —perguntou Dante ao entrar no escritório onde Vergil se achava lendo sua correspondência.
—Tomando um descanso porque se seguir sorrindo durante mais tempo meus lábios vão se romper.
—Tampouco está tão mal. Convidou Witherby e Saint John, assim poderá se divertir.
Vergil estava agradecido de que Pen tivesse convidado Daniel e Diane Saint John. Não os via há meses. Eram também amigos de Pen.
Ela tinha amizade com Diane Saint John quando a jovem acabava de chegar a Londres, e desempenhou um papel nos dramáticos acontecimentos que precederam o casamento de Diane com o magnata de uma companhia naval.
Quanto a Witherby, Vergil suspeitava que Pen o convidasse por razões que nada tinham a ver com que ele se divertisse.
Dante vadiava apoiado contra o marco da janela e, distraidamente, deixava cair a bolinha de chumbo sobre as rampas do brinquedo.
—Fleur está tão encantadora como sempre. Podemos esperar que anunciem seu compromisso uma noite destas depois do jantar?
—Não acredito.
—Já é hora, Verg.
—Dentre todas as pessoas que poderiam me dar lições, Dante, você seria o último. Minhas responsabilidades com os membros atuais desta família pesam mais que qualquer responsabilidade que pudesse ter respeito a membros futuros.
—Está me dizendo que resultamos tão caros que não pode te permitir uma esposa?
—Estou dizendo que qualquer mulher que se case comigo terá certas expectativas que neste momento não estou em condições de cumprir. O qual nos conduz ao assunto de seu próprio matrimônio, que será um alívio significativo para nossas cargas financeiras. Devolvo-te a pergunta. Devemos esperar uma notícia? Recordo um jovem cheio de confiança em si mesmo dizendo com presunção que uma semana bastaria.
—Maldita seja, estas coisas levam seu tempo. Além disso, ela é… Difícil de entender.
Levou uma cadeira junto ao escritório e se sentou à mesma altura que seu irmão do outro lado, com as pernas cruzadas, apoiando o braço sobre a mesa e deixando descansar sobre este a cabeça. Era a pose que Dante adotava quando queria falar «de homem a homem».
Dado que o tema de conversa era Bianca Kenwood, Vergil teria desejado economizar as confidências. Bianca constantemente penetrava em seus pensamentos, e a última noite, depois de sua volta a Laclere Park, surpreendeu-se rondando o salão entre as damas até que ela se retirou.
—Às vezes penso que ganhei terreno só para acabar por me dar conta de que era uma ilusão. Ela parece muito quente uma manhã, mas pela tarde a vejo ser igualmente calorosa com um criado. Posa esses grandes olhos azuis em mim e penso que deveria lhe propor matrimônio naquele mesmo momento, mas depois me ignora durante toda a hora seguinte. Às vezes penso que estou tratando com uma garota tão ignorante que nem sequer nota meu interesse, e outras vezes…
—Outras vezes?
—Outras vezes me pergunto se é tudo menos ignorante e se não está me tratando como um brinquedo. Me perdoe, mas estamos falando sem disfarces.
—Você certamente sim.
—Pergunto-me se está sendo deliberadamente intrigante. Esquiva de um modo calculado.
—Soa-me como se lhe estivesse jogando a culpa de seu fracasso.
—Possivelmente. Mas há algo nela indefinível… Um ar, uma fragrância, não sei o que. A olho e vejo toda a inocência da primavera, e de repente me devolve o olhar e me encontro pensando que seria uma esplêndida amante. É uma combinação confusa e fascinante.
Assim Dante acabou percebendo aquilo que Vergil notou nessa primeira noite na sala de jogos, e muito frequentemente após.
—Confio em que não seja muito fascinante.
—É obvio que não. Mas deixa a um fora de jogo. Há uma arte na sedução, e conhecer a mulher é uma parte essencial.
—Sempre estou agradecido por suas instruções nessas matérias, Dante, mas vamos ao ponto. Se propuser matrimônio amanhã, acredita que aceitará?
—Maldita seja se sei.
Isso significava que provavelmente não.
—Sabe que está interessado por ela? Talvez interprete seus cuidados como uma amostra de simples amizade, uma mão amistosa em um país estranho.
—Agora já sabe.
—O que significa isso?
—Acabo de vê-la na biblioteca.
—Declarou suas intenções?
Dante olhou ao longe e Vergil instantaneamente soube que tinha expressado seus interesses com ações, e não com palavras.
Quase salta por cima do escritório para estrangulá-lo.
—Me deixe expressá-lo de outro modo. Sabe que suas intenções são honestas?
—De que outro modo poderiam ser? Ela é sua pupila.
Vergil esfregou o cenho.
—Bom, suponhamos que ela ouviu falar sobre você…
—De quem? Seria estranho que Pen fosse contando histórias.
—De outra pessoa. Um criado. Jane, sua empregada. Nigel Kenwood.
—Não viu Nigel mais que uma vez em toda a semana, quando Pen o convidou, e não estiveram a sós, assim que ele não pôde…
—De quem é Dante. Supondo que alguém contou algo. Se você não explicar que suas intenções são honestas, ela poderia pensar que a persegue por outras razões.
Dante se endireitou.
—Se for assim, fui insultado.
—De todos os modos…
—Não sou um descarado.
—Recomendo que esclareça as coisas. Se ela te interpretou mal, só conseguirá que a partir de agora te evite.
Dante se levantou e caminhou até a janela.
—É obvio, tem razão. Entretanto, se fizer uma proposta de matrimônio e me rechaça se acabou o jogo. Explicar minhas intenções, embora não seja pedir a mão, termina sendo o mesmo. As garotas têm estes caprichos, e um homem que as persegue apesar delas fica como um parvo. Estava sentado na biblioteca e me surpreendi perguntando isso acaso não é contraditório?
—O que diz não tem muito sentido.
—O que acontece se ela é realmente inocente, mas tem à outra dentro? O homem que conseguisse despertá-la estaria em uma posição muito poderosa a respeito dela. Se se tratar de chegar pelo caminho mais rápido, pois…
—Não.
—Não estou falando de nada desonroso, Vergil. Só um pequeno escarcéu que nos economizaria muito tempo.
—Não fará nada que possa comprometê-la nem remotamente.
—Está sendo pouco prático e se preocupa muito pelo decoro. A ideia foi tua, recorda? Se a comprometer, o matrimônio será inevitável.
Não era seu tão cacarejado sentido do decoro o que se rebelava contra as insinuações de Dante, a não ser algo mais visceral, algo que tinha a ver com um fervor incessante, o perfume de lavanda e uma voz melodiosa que tinha estado cantando em sua memória durante uma semana de viagem e obrigações. Ao menos ser um santo tinha suas vantagens. Não podia malograr seus planos, mas não permitiria que Dante estendesse uma armadilha à garota.
—Ganhar honestamente o afeto de uma mulher pode parecer um longo e tedioso esforço a um homem acostumado a aproveitar as paixões rápidas, Dante, mas se pretende consegui-la é o que terá que fazer.
—Ao menos alguém nesta família tem um pouco de paixão. Entre você e Milton…
Ante a menção do nome de seu irmão todo o corpo de Vergil se esticou.
—Acredito que deveria ser muito cuidadoso e não mencionar Milton e seu imprudente apetite na mesma frase.
O ressentimento escureceu o rosto de Dante.
—Continua me culpando de algo que não pude prever.
—Equivoca-se. Não te culpo. Não havia forma de que soubesse o que pretendia fazer. Mas não o coloque nestas discussões. Me insulte tudo o que queira, mas deixa nosso irmão e sua memória à margem deste assunto. Nada disso tem a ver com a senhorita Kenwood e sua forma de se comportar com ela.
—Ah, sim, a adorável Bianca. Está tão preocupado por ela que está te pondo muito sutil, Verg. Seu amparo é curiosamente seletivo e meio cego. Não permitirá que ninguém comprometa sua pupila, mas está disposto a consentir que se veja atada por toda vida a um homem que despreza.
Aquelas palavras deram no alvo por razões que Dante nunca saberia.
—Eu não te desprezo.
—Ah, não? Pode ser que não me culpe, mas jamais me perdoou.
Vergil viu dor naquele belo rosto que nunca se mostrava preocupado. Devia ter sido mais consciente do sentimento de culpa que a morte de Milton causou em Dante.
Era estranho que a discussão sobre uma garota que não tinha nada a ver com aquele episódio o tirasse do baú.
—Posso te fazer críticas sobre a forma em que vive sua vida, mas isso não reflete meus sentimentos com respeito ao rol que desempenhou sem te dar conta no desastre do ano passado. Não precisa ser perdoado por isso, Dante. A ignorância não é uma ofensa imperdoável. Se nunca falei disto contigo antes, não foi porque te jogue a culpa a não ser só porque não quero me lembrar daquilo. Entretanto, possivelmente minha reserva não tenha sido justa para você.
O rosto de Dante era uma imagem de tensa serenidade, mas seus olhos brilhavam.
—Eu estava aqui. Jantei com ele. Deveria ter visto…
—Estou agradecido que esteve com ele durante sua última hora. Acredito que ele também esteve.
O ar na estadia estava carregado com a crua intimidade que tinha nascido de uma franqueza inesperada. Caiu uma barreira invisível cuja existência Vergil jamais foi consciente. O abismo que se abriu entre eles após a morte de Milton foi superado, e tudo devido às conflitivas emoções que a presença de Bianca Kenwood criou naquela casa.
Olhou seu jovem irmão com novos olhos, e percebeu uma profundidade cuidadosamente disfarçada por aquele despreocupado libertino. Poderia ter homens piores para ela.
Dante sorriu com ironia e se dirigiu sem pressa até a porta.
—Farei a sua maneira, Verg. Será interessante, tentar inspirar um afeto casto nada mais que com insinuações. Mas me limita injustamente. Não posso jogar minha melhor carta. Depois de tudo, não tenho nada a oferecer à garota mais que o prazer.
Uma hora antes, Vergil teria estado de acordo.
Capítulo 6
Na manhã seguinte Vergil foi o primeiro a baixar à sala do café da manhã. Queria tomar o café da manhã sozinho antes que chegassem os convidados.
Acabava de se sentar ante seu prato quando um movimento junto à janela chamou sua atenção. O brilho verde e dourado de uma cabeça loira e uma figura esbelta desapareceram entre os arbustos.
Bianca Kenwood se levantou ao amanhecer.
Afastou a vista da janela com preocupação. Dante disse que ela só havia visto Nigel Kenwood uma vez, mas Dante não sabia nada a respeito das aventuras a alvorada de Bianca. Era possível que ela e Nigel levassem uma semana vendo-se em segredo.
Deixou que uma espessa cortina cobrisse a imagem que se formava em sua mente. Não havia nenhuma prova sólida de que estivesse se encontrando com seu primo. Ao mesmo tempo, qualquer que fosse seu propósito, o certo era que entrava alegremente no parque ao amanhecer apesar do perigo dos caçadores furtivos com o que teve que enfrentar naquele dia a cavalo. Aquele episódio teria bastado para que qualquer jovem normal desde aquele dia temesse aventurar-se a sair a menos que a acompanhasse meio exército.
Mas ela não era uma jovem normal.
Antes que o servissem o café da manhã, saiu ao jardim e se dirigiu para o caminho por onde ela entrou.
—Laclere.
Vergil se voltou para a voz que o chamava. Cornell Witherby se aproximou dele dando grandes pernadas através do caminho que conduzia ao estábulo.
Ao entrar no atalho, o dourado e o verde ficavam engolidos pela erva.
—Não me diga que cavalgou durante a noite, Witherby. —Vergil viu que o recém-chegado ia vestido com uma jaqueta marrom de montar e calças de cor parda clara. As botas pareciam novas e o cabelo loiro que aparecia sob seu chapéu tinha um corte moderno.
Witherby era muito belo e parecia estar com um humor estupendo.
—Cavalguei a maior parte do caminho ontem pela tarde e dormi em uma estalagem.
—Estava ansioso para chegar?
—A cidade se tornou ruidosa estes últimos dias. Há manifestações diariamente. Muitos arrestos. Me fará bem o ar do campo. A musa se volta irritável ante tantas distrações.
—Confio em que não se distraia aqui. O café da manhã te espera, mas deverá alimentar sua musa em solitário. Minha irmã ainda não se levantou para cumprir com seu papel de anfitriã.
Witherby esboçou um sorriso ao ouvir mencionar Penelope. Ele sabia que Vergil sabia suas intenções, e Vergil sabia que ele sabia, mas um homem não fala dessas coisas com o pretendente de sua irmã casada, nem sequer embora sejam velhos amigos.
—Ficará feliz em saber que a reunião é de artistas, como é de esperar com Pen — disse Vergil.
—As festas da condessa são sempre deliciosas. Espero que esta supere as outras.
Vergil decidiu não especular sobre quanto deleite poderia estar Witherby antecipando. Uma casa de campo grande e tranquila oferece todo tipo de oportunidades para a intimidade.
Com firmeza afastou esses pensamentos de sua mente.
—Está vestido para cavalgar — observou Witherby— Vou contigo.
—Primeiro um passeio, depois cavalgaremos. Vá e se instale com a maior comodidade que possa. Saint John está aqui, além disso, normalmente baixa cedo, assim não se aborrecerá muito tempo.
Dando pernadas alegres e calmas Witherby se dirigiu para a casa. Vergil esperou até perdê-lo de vista, depois deu a volta e prosseguiu em busca de Bianca.
Quando conseguiu divisá-la reduziu o passo para poder segui-la a uma distância prudente.
A seguia porque se preocupava com sua segurança, mas também devia admitir que queria saber se Nigel a esperava em algum lugar.
Quando tinha entrado mais de um quilômetro entre as árvores, ela tomou um atalho que ia para o oeste. Ele viu que se dirigia para as ruínas. Não era um bom sinal. O castelo medieval era um lugar ideal para um encontro de casal.
Ela já não estava à vista quando ele entrou entre a erva alta que rodeava as ruínas das mais antigas fortificações do parque Laclere. Da torre tinha sobrevivido meia armação, e só uma sessão das velhas ameias perdurava, muitas paredes vieram abaixo e outras se viam a ponto de desmoronar. Grandes pedras dispersas cobertas de más ervas deixavam claro que uma vez serviram como o muro de amparo. De toda a estrutura da muralha o único relativamente intacto era uma solitária torre quadrada.
O assaltaram nostálgicas lembranças da infância, como o do fácil vínculo que uma vez compartilhou com Dante, e que os segredos e a falta de cuidado quase destruíram. Esquadrinhou a paisagem em busca do rastro da senhorita Kenwood.
De repente um som apagado e doce flutuou através do silêncio da manhã. Elevava-se e baixava como uma suave onda no meio da brisa, enviando redemoinhos que o rodeavam. Ele o seguiu até a fonte de onde provinha na torre quadrada, e entrou através da soleira de pedras.
O som o afogou, elevando-se fora das paredes e a abóbada. Acima na câmara da sentinela, a senhorita Kenwood praticava suas escalas, e sua voz ganhava em volume com cada ascensão que repetia. Ele se deteve e ouviu a escala de repetições de alguém que afiava e esquentava sua voz.
Ela se interrompeu e ele a ouviu falar. A Nigel? O homem devia usar sua música para atraí-la até ali. Se assim era, não corria um perigo imediato. Ele duvidava que ela decidisse abandonar sua paixão original para dedicar-se a explorar outras justo agora.
O som emergiu de novo, baixando torrencialmente a escada. Agora não se tratava de escalas, mas sim de uma ária de Rossini.
A melodia o embargou. Precisa e disciplinada, tinha a textura da elaborada canção de um pássaro, empapava a mente, transbordava o coração e agitava os sentimentos do modo em que a melhor música sempre faz. Os sensuais matizes de sua voz alagaram o reservado esconderijo que ele esteve lutando para manter a salvo.
Quase de um modo involuntário, suas pernas o conduziram à escura escada, para a sereia que sem saber o atraía a uma borda proibida.
Ela estava de pé só na câmara, de costas a ele, emoldurada pelas linhas das paredes que se estreitavam para formar um teto abobadado. Nigel não estava. Não havia ninguém ali. Ela devia ter falado consigo mesma.
Ele apoiou o ombro contra o marco da entrada, para olhar e escutar. Desejava poder ver seu rosto, mas em sua memória ainda conservava a radiante expressão da que tinha sido testemunha aquele dia em que ela atuou no salão de música.
Não lutou contra suas reações. Teria sido incapaz de fazê-lo embora gostasse de fazer. Em lugar disso deixou que suas notas se elevassem em uma maré que fez desaparecer o mundo inteiro exceto essa paixão dela e seu próprio e atônito desejo.
A fazia sentir-se tão bem. Transportada. Gloriosa. Sua voz tomava o poder de seu corpo e dissolvia sua substância até que só o canto existia. As pedras enriqueciam o timbre como nenhuma sala poderia fazer. Ela desejava poder levar Catalani ali.
Terminou muito rápido, e ela, com pesar, sustentou a última nota mais do que a partitura requeria. Esta ficou pendurando por cima dela, gotejando como o néctar de uma gema no interior de seu espírito aberto.
E finalmente se extinguiu, deixando-a gasta e um pouco melancólica.
De repente notou que não estava sozinha. Temendo que Dante a tivesse seguido deu a volta com receio.
O visconde estava apoiado com ar despreocupado contra a entrada da câmara, com os braços cruzados sobre o peito, olhando-a. Estava muito bonito, e havia nele algo intenso apesar de sua pose despreocupada.
—Seguiu-me até aqui, tio Vergil? Para me espiar?
—Foi só para te proteger, mas sim, a segui.
—Estou segura de que não corro perigo no parque Laclere. Seus audazes caçadores furtivos devem ter se mudado ou mudado seus métodos de caça. Não houve disparos esta última semana.
—Se sabe isso, é porque deve ter vindo aqui frequentemente. Sempre para cantar?
A câmara tinha uma janela, não maior que a fenda de uma flecha. Ela se dirigiu para ali, afastando-se dele. As pedras aumentavam os matizes do tom de Vergil e isso a fez mostrar-se precavida. Seus olhos tinham uma expressão oculta que ela não podia ler. Sua presença a impressionava como se fosse perigosa. Era uma reação ridícula, mas não podia evitá-la.
Examinou a paisagem, evitando seu olhar fixo.
—Não aceito a situação que te faz pensar que tem direito de me interrogar. Sim, venho aqui frequentemente, geralmente em manhãs como esta. Encontrei esta torre um dia enquanto cavalgava. E sim, para cantar.
—Sozinha?
Ela o olhou por cima do ombro.
—Acaso acredita que marquei um encontro com Nigel aqui? Seguiu-me para me proteger de intenções desonestas? —A ideia lhe deu vontade de rir. Um amparo tão cuidadoso de sua virtude no campo enquanto seu próprio irmão a assaltava na biblioteca— Perdeu seu passeio a cavalo para nada. Não me ocorreu a ideia de usar esta torre para encontros desse tipo. Terei-o em mente para futuras ocasiões.
—Duvido que o faça. Não terá tempo para pôr em prática. Não a adverti antes, mas esta câmara afeta ao som do mesmo modo que as antigas Igrejas normandas. Qualquer que seja a potencial atração de seu primo, estas pedras têm mais.
—Possivelmente ele deva escutar. Como fez você.
Ele se separou da parede com um vago sorriso.
—Se o fizer, definitivamente necessitará amparo.
Caminhou para ela despreocupadamente. Ela sem se dar conta se afastou até a borda. Em realidade era uma tolice, mas aquele dia havia nele algo diferente. Algo fascinante, mas também desconcertante.
—Pen anunciou que cantará esta noite. Está ensaiando sua atuação, para se assegurar que estará nas melhores condições frente à Catalani?
—Sim.
—Falou um bom momento com ela ontem à noite. Um encontro tete a tete. Suponho que explicou seus planos.
—Não tem por que preocupar-se, não vou pôr nem você nem Pen em uma situação delicada. Ninguém mais me ouviu e acredito que ela sabe que é necessária a discrição entre os convidados de um visconde.
Ele continuava movendo-se, olhando ao redor do cômodo como se não tivesse estado ali em muito tempo. Ela sentia constantemente o impulso de partir longe.
—O que te aconselhou Catalani?
—Estava de acordo comigo em que se quero receber a melhor instrução devia ir a Itália, ou trazer um dos melhores professores aqui. Enquanto isso, deu-me o nome de um tutor com quem poderia trabalhar em Londres. Recomendou-me o senhor Bardi, que trabalha como professor do bel canto com alguns dos melhores cantores de Londres.
—Nenhum outro conselho? Não esperava que Catalani fosse tão reservada.
—Perguntou-me se entendia essa vida, se sabia o que implicava.
—E sabe?
—Sei que implica trabalho duro. Contínuas viagens. A necessidade de atuar apesar de estar cansada ou doente.
—Não é a isso a que ela se referia.
Seu rosto se acendeu.
—Sei a que se referia.
—Não acredito que saiba. Não de verdade. Duvido que tenha a mais remota ideia do que significa se converter em alguém que nenhuma mulher respeitável teria como amiga. Essa cantora de ópera pode visitar casas como esta, mas só há uma Catalani. Não será o mesmo para você. Não haverá nenhuma tia Edith na Inglaterra ou na Itália para te proteger das más línguas.
A irritação a fez ficar cravada no chão.
—Sei o que essa gente chamada decente pensa sobre essas mulheres. De fato vi muitos homens decentes aproximar-se de minha mãe às vezes. Quando cresci entendi o que queriam. Tratarei com eles como ela o fazia. Supõe-se que devo renunciar a algo importante para mim, essencial para mim, por culpa de preconceitos sem fundamento?
Ele continuava caminhando. Fazendo círculos e círculos. Se ele não fosse o proprietário de uma cidadela, se sua conduta não fosse tão despreocupada, ela teria sucumbido à sensação de estar sendo acossada. Por ser alto ele devia permanecer perto do centro do cômodo, e o círculo que desenhava parecia bastante menor agora que ela se achava justo no centro.
—Os preconceitos a respeito de muitas atrizes e cantoras estão muito bem fundados — disse ele, como se discutir sobre mulheres de má reputação fosse um tema perfeitamente aceitável.
—A vida dessas mulheres é muito insegura, e eu suponho que muitas artistas precisam aceitar o amparo que lhes oferecem.
—Você acredita que é o desespero o que faz que essas mulheres se convertam em amantes e cortesãs, e que sua herança te salvará? Seu julgamento é mais duro que o meu. Eu assumo que é a solidão. Um matrimônio decente é quase impossível. Haverá quem esteja disposto, mas ninguém a quem você seja capaz de amar.
Aquela conversa tão delicada se tornou de repente pessoal.
—Sei. Entretanto, há coisas que valem sacrifícios.
—Uma vida inteira de sacrifícios? Pensa isso agora, mas e dentro de dez anos? E de quinze? Sem casar, sem filhos, sem lar. Entendo que é mais triste que escandaloso que para a maioria dessas mulheres o dia começa quando alguém lhes oferece algo parecido ao amor e o agarram. Não importa o que decidam quando começam, depois de um período virtuoso, uma solidão antinatural, a escolha é virtualmente inevitável.
—Como se atreve a prognosticar um futuro tão desolado e sórdido para mim? É muito cínico ao afirmar que se perseguir minha carreira de cantora, estarei predestinada a me afundar. Embora tampouco veja por que se importa tanto.
Ele se deteve e se afastou uns passos.
—Sou responsável por você.
—E por isso se mete em minha vida, para me proteger de mim mesma. Durante dez meses.
—Mais. Se puder achar a maneira.
«Mais!»
—Não se atreva a tentar me impor mais obstáculos. Não o tolerarei.
—Sua decisão me deixa pouca escolha. Deve acreditar que pode viver como uma monja, mas duvido que possa fazer isso indefinidamente.
—Suas implicações são tão insultantes como escandalosas.
—Não são insultantes absolutamente. E escandalosas só se acabar por te converter na amante de um homem em lugar de na esposa de um homem.
—Cruzou a linha, cavalheiro. É impróprio que me fale dessa forma, inclusive sendo meu protetor.
Vergil inclinou a cabeça e um sorriso sarcástico bateu as asas brevemente em seus lábios.
—Cruzei a linha? É bastante provável. Surpreendo a mim mesmo. — Olhou a seu redor como se de repente se desse conta de onde estavam. —Terminou ou pretende seguir praticando?
—Quero ensaiar a ária uma vez mais. Voltarei para casa em seguida.
—Esperarei e te acompanharei de volta.
Apoiou-se outra vez contra a parede, em uma pose de relaxada paciência. Ela notou um acanhamento peculiar.
Ela se dispôs a dar volta, mas ele negou com a cabeça.
—Se não puder praticar com um homem te olhando, como atuará em um teatro que esteja cheio deles?
«Porque isso é diferente.» Parecia uma resposta irracional, mas era diferente. O foco de dois olhos, desses dois olhos, incomodava-a mais que um oceano de rostos. A atenção de uma pessoa, dessa pessoa, agitava-a mais que uma sala de concertos cheia a transbordar. Se ao menos outra pessoa estivesse presente, isso teria servido para diluir essa conexão singular. Depois de tudo, ele esteve no salão de música e ela não reagiu assim.
Ela afastou seu olhar e tentou apagar a consciência dele, mas não funcionou. A ária começou fracamente, como se o ar encontrasse um obstáculo ao passar através de sua garganta. A obstrução fez que seu coração palpitasse nervosamente. Estúpido. Estúpido. Recuperou certa calma graças ao ressentimento por sua intrusão e encontrou seu caminho.
A música se encarregou do resto. A concentração na técnica e a expressão a absorveram. O regozijo a transportou. Entretanto, não foi como a última vez. Outro espírito se unia a ela naquela viagem, seguindo-a, empurrando-a, abrangendo-a. Ao seguir com a canção não pôde resistir a olhá-lo. Ele esperava de um modo indiferente, olhando para baixo, um homem oferecendo educadamente seu tempo antes de passar a dedicar-se a outras coisas mais importantes.
Ele notou sua atenção. Elevou seu olhar e encontrou com o dela. Ela quase se quebra em um abrupto silêncio. Os olhos dele resultavam mais desconcertantes que de costume. Sua expressão profundamente cálida, sutilmente selvagem e claramente masculina não tinha nada de paternal ou distante, e muito menos de protetora.
Deus santo foi seu canto o que tinha provocado isso?
Apesar de seu desconcerto inicial, uma surpreendente emoção a atravessou como um raio. Em lugar de vacilar sua voz remontou voo. Não podia afastar a vista dele e a ária criava entre eles uma provocadora união. Espiritual. Sensual. Quase erótica.
Um instinto de alarme a sacudiu, apesar de que uma embriagadora sensação de poder crescia. A euforia se transformava em algo inegavelmente físico entre sua fascinante conexão.
Ela não poderia ter se detido embora tivesse querido. Emoções desconhecidas impulsionavam sua voz com novas paixões. Fechou os olhos ao final, mais para conter as sensações que para saboreá-lo. As pedras sustentaram os últimos sons como o silencioso eco de um longo pulsar do coração.
Não queria abrir os olhos. Ali ocorreu algo que não queria saber, algo que não implicava palavras nem tato, mas que era mais indecoroso que o beijo de Dante. Ele devia saber. Ela devia ter parado. Não queria olhá-lo até que aquela terrível falta de fôlego se aplacou.
Uma brisa cálida a fez abrir um pouco as pálpebras e viu umas botas limpas perto de sua saia. Uma mão dele, magra e forte, tomou a sua, a levou até os lábios e lhe deu um beijo veloz.
—Seu canto é nada menos que magnífico senhorita Kenwood. Catalani ficará impressionada esta noite.
Ela teve que olhá-lo. Ele fez um gesto formal assinalando a escada. Sua expressão recuperou seu habitual autodomínio e altivez, mas a outra seguia ali, como se o manto de reserva com que ele a cobriu fosse transparente.
Guiou-a pelo caminho, dando sua mão para baixar as tortuosas rochas, uma cuidadosa representação de uma imparcial e cortês preocupação. Enquanto davam a volta ao longo da parede para chegar até o atalho, ele se deteve e elevou a vista até as ameias.
—É muito pitoresco — disse ela, esperando que um pequeno bate-papo servisse para vencer aquela estranha sensação que parecia instalada.
—Meu pai considerou a possibilidade de restaurá-lo e reconstruí-lo. Mas finalmente, em lugar disso decidiu remodelar a casa. Isto teria custado três fortunas em lugar de uma, e o resultado teria sido uma moradia apenas habitável.
—Acredito que é mais bonito tal e como está, aos pedaços e com retalhos de história aparecendo entre os arbustos. Seria uma tolice reconstruí-lo completamente e com cimento novo.
—Estávamos acostumados a brincar aqui de meninos. Dante e eu éramos os cavalheiros, e obrigávamos Pen a interpretar o papel da dama prisioneira por um malvado guardião. —Um amplo sorriso apareceu ao dizê-lo— Você pode interpretar esse papel agora.
A pequena trama que contou podia tê-la ajudado a reduzir a percepção de tê-lo de pé junto a ela, mas simplesmente não era capaz de responder com o mesmo tom.
—Brincava também seu irmão mais velho com vocês?
—Quando éramos muito jovens sim o fazia. Depois cresceu e nos deixou para trás, suponho. —Seu olhar às ameias se voltou reflexivo— Quando se fez maior se refugiou em seus próprios interesses, e em sua própria mente. Quando começou a ir à universidade já era um estranho.
—É por isso que agora quer ler suas cartas? Para conhecer coisas dele que não te permitiu conhecer enquanto vivia?
De repente moveu a cabeça e lhe dirigiu um estranho olhar, como se ela o tivesse surpreendido.
—Suponho que sim, em parte.
Sua atenção se separou das emoções para voltar a centrar-se na torre outra vez. Ela se obrigou a afastar o olhar, para a parede.
—Eu gostaria de explorar o torreão algum dia.
—Não recomendo isso. Há anos é perigoso. O passeio pela muralha também é. Não havia tantas pedras espalhadas pelo chão quando era menino.
Para enfatizar sua afirmação, uma pedra do tamanho de um punho caiu ao chão, aterrissando justo aos seus pés. Vergil olhou para cima franzindo o cenho, esquadrinhando com seus olhos as ameias. Bianca deu a volta para afastar-se.
Um ruído sinistro se ouviu acima. Outra pedra caiu, golpeando o ombro de Bianca.
De repente tudo se fazia impreciso. Ele a pegou pelo braço para afastá-la, fazendo-a apoiar-se contra a parede. Ela comprovou que se achava imobilizada, entre uma pedra dura e um corpo duro também, com os ombros abraçados por uns braços que a cobriam, seu rosto escondido contra o pescoço dele e sua cabeça apertada contra a sua. Sua vista quase já tinha se endireitado quando uma avalanche letal de grandes rochas caiu ante eles, uma delas ricocheteou sobre suas cabeças antes de cair ao chão roçando as costas de Vergil.
Ela olhou horrorizada a chuva de morte e se encolheu dentro de seu refúgio. Pareceu transcorrer uma eternidade antes que os chiados e estrondos cessassem.
Vergil elevou a cabeça para examinar a parte superior do muro.
—Toda uma parte das ameias veio abaixo.
—Uma lição apropriada para evitar o encontro com estas ruínas no futuro. Quem imaginava que a tranquila Laclere Park podia ser tão perigoso?
Ela falou presa do nervosismo apoiada contra seu lenço. O tecido azul de seu casaco acariciava suas bochechas e seus dedos descansavam na seda bordada de rosas de seu colete cinza. A comoção a colocou em um estado de alerta extremamente sensível e uma parte de sua mente, de maneira absurda, contemplava a variedade de texturas de seus objetos. E a maravilhosa segurança que proporcionava seus braços. E sua masculina fragrância.
—É possível que meu canto tenha ocasionado isto?
—O mais provável é que a gravidade tenha rematado o que o tempo iniciou. De todos os modos, as possibilidades de presenciar algo assim são mínimas. Possivelmente sua voz acrescentasse um empurrão. —Inclinou a cabeça para ver seu rosto— Está ferida?
—Acredito que não.
Uma mão deslizou ao longo de suas costas para apertá-lo brandamente no ombro.
—E aqui dói?
—Está um pouco dolorido. Mas o mais provável é que só tenha um arranhão.
Ele não a soltou. Com uma mão ainda a envolvia e a outra descansava cuidadosamente em seu braço debaixo do ombro ferido. Sentir-se protegida por sua força a tranquilizava muito.
—Isto é mais ou menos o que disse depois que o cavalo te lançou ao chão. Supõe-se que deveria desmaiar ao enfrentar tanto perigo.
Ela sabia que ele não se referia às rochas, nem aos caçadores furtivos, a não ser à proximidade física que ambos os episódios favoreceram.
Sua advertência soou tão clara como uma sereia junto a seu ouvido. Mas não pôde lhe fazer caso. Sua masculinidade a fazia sentir-se pequena e indefesa de um modo deliciosamente pecaminoso.
Ela levantou a vista para seus reflexivos olhos.
—Eu nunca desmaio.
Voltou a ver nele aquela expressão que tinha quando se achavam no cômodo de pedra, enchendo-a de maravilhosas palpitações. A mão que tinha sobre seu braço deslizou para seu ombro, para voltar a baixar.
—Não desmaia? Nunca?
Ela voltou a sentir a lenta carícia. A suave fricção criou um murmúrio de sensações. Dentro dela. Através dela. Aquela ária havia a tornado vulnerável, e o medo tinha arrebatado seu habitual autodomínio.
Devia fazer algum comentário malicioso para acabar com esse pequeno jogo, mas só queria que aqueles dedos voltassem a deslizar sobre seu braço.
—Nunca.
—Todas as garotas deveriam desmaiar ao menos uma vez.
A mão a acariciou para cima e não baixou. Foi uma lenta carícia. Delicada sobre seu ombro, quente ao passar por seu pescoço, suave em sua bochecha, firme entre seu cabelo.
Ela quase se derrete quando ele inclinou a cabeça e a beijou nos lábios.
Lábios quentes. Firmes e controlados como tudo nele. Pausados. Comedidos, mas decididos. Ele roçou sua boca com carícias antes de passar a um jogo mais sedutor. Sutis beliscões fizeram que seu lábio inferior pulsasse e tremesse. As estocadas de uma língua diabólica enviaram espetadas dispersas através de seu rosto e seu pescoço. A sensibilidade de seus seios despertou e ela instintivamente o abraçou, procurando o contato que sua profunda ternura reclamava.
Ele a apertou para senti-la mais perto e a olhou de um modo tenso e cheio de avaliação. Da garganta dela escapou um suspiro ao sentir a pressão em seu peito. Beijando-a com feroz rendição, arrastou-a até a soleira da torre, entre a luz salpicada e as pedras frias.
Apoiou-se contra a parede e a atraiu contra seu corpo em meio de um torvelinho. Seus braços a rodearam e a dominaram, segurando-a firmemente contra seu corpo e os encantos de sua boca. Beijos febris assaltaram seu pescoço e suas orelhas, despertando um frenético e insistente anseio. Seus lábios seduziram os dela abrindo-os para uma investigação interna de escandalosa intimidade.
Ela se agarrou a ele e se rendeu tonta pelas extraordinárias sensações, elevando-se impotente em meio de uma euforia em que tudo se voltava impreciso.
Era tão agradável. Glorioso. Transcendente. A exaltação de seu canto feito física. O poder e potencial da última ária convertido em substância.
Aqui. Agora. Sim. Com uma voz inaudível seu sangue estalava em demandas entre seus ofegos. Aqui. Agora. Perfeito. Escandalosos batimentos de seu corpo se uniam ao canto. Inclusive sua mente, a parte que deveria conhecer melhor, repetia uma litania de escandalosos impulsos. Suas mãos deslizaram descaradamente sob a jaqueta dele para acariciar e agarrar seus lados e suas costas.
Algo se esticou dentro dele. Ela notou uma mudança perigosa e soube que seu gesto funcionou como algum tipo de afirmação. Os braços dele a acariciaram de uma forma possessiva e seu corpo arqueado se esticou com um impulso indecente. Suas mãos começaram uma exploração através de suas anáguas e ali ficaram. Sua imperiosa paixão e o lugar para onde ele se aventurava deveria assustá-la, mas a excitação só a permitia lamentar que a quantidade de roupa se interpusesse separando-os e inibindo-os.
«Sim. Quero… Quero…» Não sabia o que. Uma fome urgente pulsava através dela, com uma origem e um destino que não entendia. «Mais perto. Mais. Eu quero…»
Como se ele tivesse ouvido seu rogo silencioso, sua mão deslizou sobre sua cintura. Mantendo o polegar em seu estômago e os outros dedos em suas costas acariciaram para cima a bandagem de seu vestido. A desejada expectativa reduziu a respiração dela a uma série de inalações entrecortadas. Um beijo surpreendentemente suave acompanhou o gesto de sua mão para seus seios.
«Oh… Oh.» As deliciosas sensações que sua carícia provocou a deixou aturdida. Atravessaram-na e fluíram através dela, unindo-se aos estímulos provocados pelos crescentes beijos que lhe dava no pescoço e os assaltos a sua boca, que obscureciam sua mente. Deu e recebeu prazer a seu desejo, e o corpo dela, afligido e sem forças só podia aceitá-lo e submeter-se, muito ignorante para oferecer mais que consentimento ao ardor que ambos liberavam e subjugavam.
Os dedos brincavam com o tecido que cobria seus mamilos, duros e ardentes… «Sim…» Procurando agora o babado de seu decote… «Por favor…» Deslizando sob o tecido para explorar o novo desenfreio da pele contra a pele… «Ah, sim…» Seus braços a atraíram mais perto, com mais dureza, e um joelho dele pressionou entre as anáguas e a saia, a pressão foi vergonhosamente bem recebida… «Oh… Céus…» O vestido começou a soltar-se enquanto o corpo da manga deslizava pelo braço e uma mão elevava seu seio nu para uma cabeça morena… «Oh…» Ele o acolheu na umidade de sua boca e com seus quentes lábios iniciou um tortuoso percurso desde umas suaves mordidas até… «Oh…» Uns lamentos escandalosamente excitantes… «Oh…» Deliciosas correntes de prazer desceram por seus poros, enchendo-a, exigindo mais…
…Um movimento, um fraco rangido, ressoou entre as pedras.
Ele se endireitou bruscamente, cobrindo a nudez dela com seu peito, rodeando-a com seus braços para protegê-la enquanto escutava atento. O possível significado daqueles sons abriu passo através dos aturdidos sentidos de Bianca, destruindo o mundo de sensuais sonhos e fazendo-a voltar sem piedade para a realidade.
—Há alguém…? —sussurrou, apertando os dentes contra o lento desdobramento de sua excitação física. Ainda podia ouvir algo, era mais a vibração transportada através do muro que um som real. Incomodava como uma invasão entre os batimentos de seus corações.
Subiu a alça da blusa e a manga do vestido, logo a afastou.
—Fique aqui.
Caminhou a grandes pernadas até a torre. Ela lutou freneticamente contra seus objetos, conseguindo com muita dificuldade recompor seu vestido, experimentando a severa culpa de um criminoso surpreendido no ato do delito. Um abismo se abriu em seu coração.
Se alguém os visse, seria desastroso.
Podia ouvi-lo caminhando ao redor. O largo abismo se converteu em um enjoo, um imenso vazio. Cobrou consciência de seu comportamento como se recebesse um golpe. Aquilo tinha sido uma loucura. Ela tinha atuado de forma desavergonhada. Eles nem sequer se gostavam.
Ouviu-o voltar e tentou fortalecer seu ânimo.
Apareceu ante a soleira, uma forma magra e escura rodeada de luz. Ela não podia ver bem seu rosto.
—Se havia alguém aqui, já se foi. Deve ter sido tão somente um animal.
Ela rezou para que assim fosse, e esperava que se alguém veio da casa para explorar o torreão, não tinha esquadrinhado de perto a entrada da torre.
Ofereceu a mão em um gesto enérgico para fazê-la seguir. Ela se perguntava o que se suporia que deveria fazer ou dizer uma mulher depois de um comportamento tão descarado, e sentiu quase náuseas ante tanta confusão e vergonha. Empreenderam o caminho de volta para casa.
Ele não disse uma palavra. Para ela foi o quilômetro mais longo que já caminhou em sua vida.
Tentou achar consolo na ideia de que tinha demonstrado que era muito perigosa para estar perto de Charlotte, mas a ideia de abandonar Laclere Park estranhamente incrementou sua consternação.
Ele se deteve ante as árvores próximas ao estábulo.
—Faltam-me as palavras, senhorita Kenwood. Meu comportamento foi abominável, e me desculpar não é suficiente. Prometo que não tenho o costume de pressionar às mulheres jovens desta forma. A única explicação que posso dar é que não era eu mesmo esta manhã.
«Não o foi?» de repente o que ocorreu não resultava tão surpreendente tratando-se desse homem. Pareceu que o acontecido era uma consequência natural de seu caráter, um pouco controlado, mas que sempre estava ali, como uma corrente subterrânea sob a calma, uma corrente percebida, mas nunca vista e impossível de nomear. Esta produziu tensão entre eles desde o começo, como uma maré perigosa. Ela havia sentido seus efeitos, mas até hoje não os tinha entendido.
Ele seguia com os olhos sobre o atalho, sem olhá-la. Com suas palavras assumia a culpa, mas ela se perguntou o que pensaria realmente. Que demonstrou que não podia viver como uma monja? Que sua natureza era a de uma cortesã e ele deveria permitir que conseguisse a ruína que procurava? «Pressionar» não descrevia realmente o que ocorreu e os dois sabiam.
—Não fui prejudicada.
—Se nos vissem, definitivamente sim seria prejudicada.
—Eu não acredito que nos viram. Se alguém se aproximasse da entrada da torre, teríamos percebido.
—Se tivesse razão, isso só evitaria as piores das possíveis repercussões. Não pode negar que minhas ações foram indesculpáveis e desonestas, sobre tudo porque sou responsável por você. A comprometi, e não importa se alguém sabe ou não. Se você o exigir, farei o correto contigo.
—O correto? Quer dizer… Oh, não, essa é uma ideia absurda.
—Certamente promete ser uma ideia complicada, considerando… Bom… Enfim, complicada. De todos os modos…
—Não nos deixemos levar por seu senso de decoro e de dever, por favor. Não me sinto comprometida, nem arruinada.
Depois de dizer isto recebeu um severo olhar.
—Ah, não? É uma jovem extraordinariamente serena.
Aí estava. A insinuação de indecorosa cumplicidade por sua parte. Em realidade o animou, se a pessoa quisesse olhar as coisas com franqueza. Aquele olhar e aquela pergunta revelavam o que ele tinha em mente, e era difícil culpá-lo, considerando todas as ambiguidades que deliberadamente deixou cair com respeito a suas experiências.
—Digamos que não me sinto tão comprometida para recorrer a uma medida tão extrema como o matrimônio. Possivelmente simplesmente deveríamos esquecer este assunto.
—Sua equanimidade me impressiona. Deveria estar agradecido de que se mostre tão compassiva.
Não se sentia absolutamente compassiva. Sentia-se transtornada, desolada, decepcionada. Descer daquela glória a essa discussão formal sobre como expiar a poderosa experiência que compartilharam… Dava vontade de feri-lo, de bater nele, de dar uma bofetada que vencesse essas frias considerações sobre como retificar sua imprudência.
—Simplesmente não desejo complicar as coisas mais que o necessário, especialmente de um modo que me faria perder o controle sobre meu futuro e requereria um sacrifício por ambas as partes que levaria a uma vida inteira de infelicidade. Não me casaria contigo fosse qual fosse o escândalo que me ameaçasse. Entretanto, nossas futuras relações se tornaram embaraçosas. Acredito que será melhor que aceite minhas preferências a respeito de minha estadia na Inglaterra. Jane e eu encontraremos uma casa em Londres e…
—Serei eu que me afastarei. Minhas visitas a Laclere Park serão pouco frequentes e breves durante os próximos meses.
—Isso é muito injusto com suas irmãs.
—Quando você for à cidade passar a temporada minha presença será inevitável, mas por então possivelmente o tempo terá atenuado minha ofensa.
Ele não queria dizer isso. Sabia que não tinha sido realmente uma ofensa. Não se podia dizer que a tinha forçado ou forçado a si mesmo.
Ela deu a volta, aliviada e ao mesmo tempo triste por saber que depois daquela festa seriam muito poucas as ocasiões em que o veria.
Capítulo 7
Vergil estava certo. Ela seria uma amante esplêndida.
Tentou impedir aquele pensamento enquanto cavalgava de volta para as ruínas. Dava voltas em sua cabeça, uma reação absolutamente desonrosa de um homem que sucumbiu a desonrosas inclinações.
Seu comportamento foi vergonhoso. Censurável. Enlouquecido.
Isso não o impedia de voltar a rememorar e experimentar o contente consentimento que ela mostrou. Sentiu em sua boca seus suaves lábios e seus doces peitos. Explorou sua vibrante excitação com a pressão de seu joelho.
Se o intruso não os tivesse interrompido, a teria levado ao cômodo e teria feito amor até que as pedras ressonassem com seus gritos.
E ela permitiria.
Parou e bateu a palma da mão contra uma árvore, em busca de uma realidade tangível que pudesse destruir o desejo que voltava a dominá-lo.
«Confusa», havia dito Dante.
Maldita seja, sim era confusa.
Ela nem sequer gostava dele. Raramente falavam sem discutir. Ele esteve rondando em sua presença os últimos dois dias, mas ela nunca o buscava. E que então se lançou para cima sem nenhum tipo de inibições…
Caminhou com passo decidido através das árvores, possuído por um estado de ânimo perigoso. A calma que ela mostrou no estábulo foi mais que perturbadora. Exasperante. Quase para ruborizar-se. Uma serenidade total. Ele foi uma mescla desordenada de impulsos contraditórios, enquanto que ela se mostrou incrivelmente tranquila. «Não fui prejudicada.»
«Quase te arranco a roupa e te atiro ao chão sobre uma pedra.»
«Não me sinto comprometida, nem arruinada.»
«Bem, maldita seja, eu sim. Os homens que seduzem suas pupilas são repugnantes.»
«Não me casaria contigo fosse qual fosse o escândalo que me ameaçasse.»
Parou na borda da clareira do castelo com essas palavras ecoando uma e outra vez em sua memória.
Ele deveria se sentir agradecido ante seu terminante rechaço. Mas em vez disso experimentou uma ira irracional. Em parte porque sua serenidade o fazia perguntar-se se tudo teria sido para ela simplesmente um jogo caprichoso. E, sobre tudo, porque sua determinação o fazia cobrar consciência do fato deprimente de que ela jamais seria sua da forma em que ele queria.
Menos mal. Seria uma amante esplêndida, mas uma esposa impossível.
Deixaria que Dante se arrumasse com ela.
Essa ideia incitou nele um ressentimento primitivo e possessivo. Tentou reprimi-lo esforçando-se para concentrar-se nas ameias do castelo.
Uma escada se elevava em uma das bordas do muro, tão danificada que faltavam todos os degraus. Só podia subi-la esticando as pernas em busca de perigosos pontos de apoio para os pés. Uma pequena seção de rochas caiu sobre a erva enquanto escalava. Detinha-se a cada momento, tentando identificar se o som se parecia com aquele que tinha ouvido quando sustentava Bianca na torre.
Acima no caminho da muralha existiam ocos. Alguém tinha substituído algumas zonas desaparecidas com madeira nova, mas outras consistiam em fragmentos de tábuas podres, que sem dúvida não haviam sido reparados ao menos há um século.
Avançou com cuidado até chegar ao ponto do muro onde um enorme dente das ameias se desprendeu por completo. Aí abaixo se via o novo montão de pedras. «Quem teria imaginado que a tranquila Laclere Park podia ser tão perigosa?»
Uma questão endiabradamente certa.
Examinou a rugosa superfície onde as pedras se encontravam até tão pouco tempo e apalpou a argamassa das pedras que ainda se sustentavam em pé. As ligaduras podres caíam em uma pequena chuva de pó, unindo-se com um montão de pedrinhas a seus pés.
Nada parecido podia ver-se no resto das ameias. Examinou a superfície das pedras outra vez, procurando o rastro de alguma ferramenta. Podiam ser fruto de sua imaginação os sutis arranhões provocados por um instrumento metálico?
Caçadores furtivos disparando armas de fogo e depois uma muralha que vinha abaixo. Possivelmente tão somente fosse uma coincidência. Não havia nenhuma evidência do contrário. De todos os modos não gostava disso.
Desceu da muralha, procurando alguma prova de que alguém mais tivesse estado ali recentemente. Os sons da torre de pedra rondavam em sua memória. Não ouviu ninguém caminhando pelo atalho. Entretanto, aquele intruso podia ter sido simplesmente um dos convidados explorando o pitoresco castelo Laclere Park.
Retornou para casa. Quando passou ante a sala do café da manhã, viu Bianca em uma mesa na companhia de Cornell Witherby e Daniel Saint John.
Ela sorria e ria ante alguma brincadeira de Witherby.
Que incrível serenidade.
Provavelmente para ela só foi um jogo caprichoso, uma maneira de demonstrar ao santo que não era tão puro. «Possivelmente simplesmente deveríamos esquecer este assunto.» Dirigiu-se a seu escritório dando grandes passos, ressentido até a medula por um ponto de honestidade que admitia que enquanto ela poderia ser capaz de esquecê-lo, ele certamente não era.
«Eu nunca desmaio.»
«Por mim o fez!»
Estava reagindo como um moço inexperiente e isso o irritava ainda mais. Enviou um lacaio para procurar Morton, depois se recostou em sua poltrona e pegou alguns papéis.
Morton chegou quando estava terminando seu escrito.
—Quero que esta carta dirigida ao advogado de Adam Kenwood seja enviada a Londres pelo correio urgente — disse enquanto selava a missiva— Leva-a ao povoado pessoalmente agora mesmo. —Pôs a carta entre os grossos dedos de Morton— Ficará aqui quando voltar a partir para o norte. Eu não gosto da ideia de deixar à senhorita Kenwood em Laclere Park sem ninguém que a vigie.
—Acredita que corre algum outro perigo?
Vergil sabia que Morton empregava a palavra «outro» porque estava pensando no perigo que todas as mulheres belas corriam estando perto de Dante.
Possivelmente corria esse perigo. Ele não sabia. Entretanto, considerando os caçadores furtivos, as paredes que desabam e os assaltos do visconde Laclere, o perigo de estar perto de um libertino era muito menos preocupante.
***
Depois do jantar Bianca se achava sentada entre Fleur e a senhora Gaston, conversando com Pen e Cornell Witherby.
—Será uma série de epopéias — explicava à senhora Gaston— Vendidas por assinatura, embora financie a impressão. O poema do senhor Witherby será o primeiro.
Cornell Witherby sorriu modestamente. Penelope lhe dedicou um olhar cheio de admiração.
A senhora Gaston tinha a si mesma como uma rainha aceitando comemorações e oferecendo favores. Seu cabelo castanho avermelhado brilhava como o cobre à luz da lareira, e a satisfação que sentia ante sua própria importância se deixava ler em seu rosto.
—Enquanto nós falamos os impressores já estão trabalhando. Espero que cause sensação e que se necessitem mais edições. Não pelos benefícios materiais, é obvio. Pelo alcance das pessoas de bom gosto e sensibilidade o prodigioso talento do senhor Witherby é minha meta.
Falava como se o conselho divino ditasse seu trabalho, mas Bianca suspeitava que a importância que se outorgava ao ser patrocinadora a motivava muito mais que seu amor pela arte.
—Quais serão os outros poetas? —perguntou Fleur.
O que seguiu foi uma discussão sobre os méritos dos jovens poetas que poderiam merecer o mecenato.
Bianca mal ouvia o que diziam.
Passar a tarde desfrutando da doce companhia de Fleur provocou um horrível sentimento de culpa. A fria amostra de cortesia de Vergil deixou um vazio devastador. Um relógio interno advertia o passo de cada minuto daquele comprido dia com tic-tacs de agonia.
Tentou não voltar a olhar Vergil, nem dirigir-se a ele, mas era consciente dele a cada instante. Sentia sua presença quando estava perto. Ouvia cada palavra que dizia, inclusive embora se achasse na outra ponta da estadia.
Duas Biancas reagiam ante cada movimento dele. A velha Bianca, a inteligente, catalogava seus defeitos com uma ira mordaz. Mas havia uma nova que rezava para obter algum sinal por parte dele. Esta nova Bianca se rebaixava com lastimosos suspiros, mas a velha Bianca não podia fazê-la desaparecer.
De algum modo, de algum modo, superaria esse dia.
—… Haverá terríveis problemas se revogarmos a Ata de Combinação — entoou lorde Calne enquanto ele, Vergil e o senhor Saint John caminhavam para o pequeno grupo— Se se permitir que as classes mais baixas se agrupem, a ordem se verá ameaçada. Não podemos permiti-lo. É muito perigoso. Poderia terminar como a França em 93. Lamentará Laclere.
Pequenas chamas apareceram nos olhos de Daniel Saint John. Olhou lorde Calne como se fosse um imbecil.
—Parece como se soubesse muito pouco sobre o que aconteceu na França. Do contrário entenderia que as pessoas não podem viver para sempre com uma bota pisando em sua cabeça.
O rosto de lorde Calne ficou vermelho.
Vergil falou de forma apaziguadora.
—A Inglaterra não pode apoiar sua política nos excessos do povo francês de uma geração anterior, Calne.
—Oh, Deus nos libere. Política! —Cornell Witherby protestou brandamente, dirigindo-se às damas— Não serve nada mais que para a sátira.
Um calor especial brilhou em seus olhos ao dirigir seu bom humor para Pen, que ria. Parecia que Dante estava certo a respeito de sua amizade especial.
Sentindo-se em um estado de ânimo crítico em relação aos homens, Bianca o esquadrinhou minuciosamente. Aparentava uma boa figura e era de meia altura, mas sua postura tinha uma severidade muito pouco poética, como se uma vara de aço tivesse sido soldada a sua coluna. O cabelo loiro caía sobre sua testa e suas bochechas. Seu rosto era talvez um pouco alargado, mas era um homem atrativo ao redor de vinte e cinco anos de idade.
O fato de que cortejasse uma mulher que oficialmente estava casada não contava nada nas considerações de Bianca a respeito de ser bom para Pen. Muito mais significativo que isso era a atitude de absoluta devoção que tinha ao olhar para Penelope.
Ela jamais viu Vergil olhando daquele modo a uma mulher, nem sequer a Fleur. Quando o visconde Laclere examinava uma mulher, ela tinha a impressão de que estava avaliando seus defeitos.
Naturalmente isso não ocorreu quando a escutou cantar.
E decididamente tampouco ao beijá-la.
Nem ao lhe tirar o vestido.
Nem…
—Bom, ao menos essas liberações políticas mantêm seu impressor ocupado — disse a senhora Gaston.
Witherby suspirou.
—Foi só para dar suporte às artes literárias que aceitei o passatempo dessa imprensa. Preferiria dizer aos homens que rechacem qualquer comissão que não tenha a ver com poesia. Entretanto, os panfletos servem estupendamente para custear os trabalhos importantes. Assim ocorre com o patrocínio de grandes damas como você.
A senhora Gaston pareceu agradada com a adulação, e com seu êxito ao desviar a atenção para ela.
—Anular é uma necessidade moral. É uma falta de sentido proibir a homens livres assembleias livres — dizia Saint John aos homens que se achavam de pé perto.
—Se estiverem tão insatisfeitos deixemos que se vão —disse a senhora Gaston, unindo-se à conversa— Uma passagem grátis a Austrália para os que estejam descontentes. Não entendo por que ninguém propõe uma coisa assim. Para mim é uma saída completamente lógica.
—Se dá a todos os homens a oportunidade de votar, poderão decidir sobre seu futuro e estarão menos descontentes — disse Saint John.
—Acaso a multidão de Manchester deveria decidir as leis? —perguntou lorde Calne— A Câmara dos Comuns já está bastante alterada para acrescentar radicais e irlandeses.
Pen dirigiu a Saint John um sorriso suplicante e tranquilizador. O qual reprimiu a resposta destrutiva que pensou.
—As pessoas de Manchester não são uma multidão — disse Vergil— Eles estão ajudando a Inglaterra a se converter na nação mais rica do mundo. As cidades industriais como Manchester não podem continuar sendo privadas do direito ao voto por regras de distrito redigidas há séculos. É inevitável uma reforma do Parlamento.
Pen olhou seu irmão pondo os olhos em branco, a modo de reprovação por seguir alimentando a discussão.
Lorde Calne parecia estar sofrendo uma espécie de apoplexia.
—Antes me condeno no inferno. Se apoiar isso, Laclere está traindo seu sangue. Essas cidades do norte são lugares terríveis. Sujas de fábricas e máquinas e homens vis enriquecendo-se com comércios fétidos. Ouvi que é pior que em Londres. Não, me dê o ar limpo do campo e uma boa caçada. Nunca permitiremos que nos arrebatem isso.
Pen viu sua oportunidade.
—E como vai à caça em sua fazenda este ano? Podemos esperar as habituais caçadas magníficas?
—Parece boa, parece boa. Embora haja uma batalha contínua com os caçadores furtivos. Terei que levar cinco homens para as reuniões do trimestre.
A mudança de tema deu a Bianca uma oportunidade para escapar da proximidade de Vergil. Desculpou-se.
Os homens menos predispostos à política se dispersaram pela estadia. Nigel falava com Catalani e com a senhora Monley perto da janela. Seu primo a olhou com um caloroso e acolhedor sorriso quando ela passou ante ele.
Bianca se uniu a Diane Saint John, Charlotte e Dante.
Estavam falando sobre os dois filhos dos Saint John. Dante mostrava mais interesse nas travessuras dos pequenos meninos do que Bianca esperava, mas se aproximou para sentar-se a seu lado assim que ela chegou e permitiu que as damas conduzissem a conversa.
—Esteve muito calada hoje — disse ele em voz baixa— Espero que não esteja afligida por meu mau comportamento.
Ela quase esqueceu aquele beijo na biblioteca.
—Estou afligida ante tantos rostos novos. Tenho poucos temas que tratar com eles.
—Bom, aqui vem Saint John. É dono de uma companhia naval, como foi seu avô, assim tem algo em comum com ele.
Daniel Saint John se afastou da companhia de lorde Calne e se aproximava deles.
—Saint John, você conhecia Adam Kenwood, verdade? —perguntou Dante para facilitar as coisas a ela.
—Conheci-o sendo muito jovem. De fato, minha primeira viagem quando era um moço foi a bordo de um de seus navios. Muito antes que ele se dedicasse às finanças, é obvio.
—Quando ocorreu isso? —Bianca se sentiu obrigada a continuar a conversa, já que Dante iniciou por ela.
—Faz anos. Vendeu seus navios… Faz coisa de uns dez anos.
—Navegou com ele bastante tempo?
—Não, somente uma vez. Abandonei o navio ao chegar às Antilhas e encontrei um camarote com outro capitão.
—As regras de meu avô não o atraíam, suponho.
—Seu avô não era o capitão. Só era o dono dos navios e organizava os carregamentos. Eu simplesmente decidi navegar em outra parte.
Estava mentindo. Bianca estava segura disso por essa forma de falar muito educada.
—É estranho que vendesse todos os navios de uma vez — disse Dante— Ter uma frota de navios e no dia seguinte de repente ficar sem nenhum…
—Dado que comprei dois estava encantado de que o fizesse — disse Saint John.
—O que transportavam seus navios? —perguntou Bianca.
—Todo tipo de mercadorias, suponho, como meus.
Ela tinha a sensação de que o senhor Saint John se limitava a agradá-los, e não estava sendo muito franco. Dante tinha razão, era estranho que seu avô vendesse todos os navios de uma vez, não importava o que dissesse este outro comerciante marítimo.
Não teve tempo de pressioná-lo para conseguir uma explicação mais clara, porque Pen se dirigiu até o centro da estadia e reclamou atenção.
—Temos a sorte de contar com vários músicos consumados entre nós esta noite, e eu abusei de dois deles, o senhor Nigel Kenwood e a senhorita Bianca Kenwood, pedindo a eles que nos ofereçam uma atuação. Passemos com eles ao salão de música e os ofereçamos nossa agradecida atenção.
Ela mesma abriu caminho. Dante se dispôs a acompanhar Bianca, mas o senhor Saint John reclamou primeiro sua atenção.
—Parece que Catalani sabe quando deixar passo aos jovens.
—É amável por sua parte dizer isso, mas duvido que ela tema que eu possa lhe fazer concorrência.
—Cedeu a atuação por uma razão. Sabe que seu instrumento já não é o que era. —Pôs a mão dela entre seu braço enquanto caminhavam com o passar do corredor— Nervosa?
—Horrivelmente nervosa. Ansiava que chegasse este momento, e agora…
—Então isso explica seu ar distraído de hoje. Minha mulher me comentou isso. Ela é muito observadora a seu modo silencioso, e temia que você estivesse preocupada com algo. Se sentirá aliviada ao saber que se tratava de seu medo de cometer alguma estupidez na atuação de esta noite. Lhe direi que se tratava disso, e que é perfeitamente normal.
Não o era. Não para ela. Mas isto era diferente. Durante todo o dia a tinha aterrorizado a ideia de que chegasse esse momento. Voltar a cantar essa ária, diante de toda essa gente, com ele sentado ali… Algo se retorcia em seu interior com cada passo que dava.
Nigel ocupou seu lugar ante o piano. Os convidados se sentaram nas cadeiras colocadas ante ela. Vergil escolheu permanecer de pé junto à parede, perto de Fleur.
Ela o olhou, esperando um sorriso de boa sorte. Ele não se deu conta, pois se inclinou para dizer algo a sua prometida. Seu coração se encheu. Estava tão atrativo com seu casaco de um verde escuro e suas calças nata, com suas mechas onduladas emoldurando seu rosto e seus olhos azuis iluminados com um brilho de humor enquanto sorria a sua dama.
Deu-se conta com um sobressalto de que Nigel começou a introdução. Ela lutou para preparar-se.
Da outra ponta da estadia, Vergil a olhou.
Ela falhou. Essa primeira nota simplesmente não saía. Voltou-se para Nigel com desespero, suplicando sem palavras. Ele improvisou até que voltou a levar a melodia ao princípio outra vez. Ela se concentrou no chão e conseguiu acalmar-se. Ao levantar a vista viu um casaco verde deslizando através da porta.
«Obrigado.»
Afinou cada nota com precisão, mas sua alma não estava totalmente implicada nelas. Vergil podia não estar presente na sala, mas se achava em sua cabeça, confundindo-a com aquele olhar alarmante, misturando-se em seu espírito com lembranças indecorosas. Aquela ária não soou como a última vez nas ruínas, com sua emocionante exaltação. Uma emoção diferente gotejava desta vez. Um estranho oco existia em seu interior e a música o levava mais profundo e o enchia com um penetrante e doloroso desejo. Ao acabar ela não sabia se a atuação tinha saído bem ou não.
—Esplêndido, prima — sussurrou Nigel no meio do silêncio que se produziu.
O esforço a deixou imersa em uma névoa de melancolia. Deu uma olhada à expressão pensativa de Catalani enquanto recebia os elogios de outros convidados.
Catalani caminhou para ela, puxou-a pelas mãos e a afastou para um lado.
—Os anos me tornaram cética, e confesso que esperava uma voz bonita, adequada para salões e Igrejas. Estava equivocada. Possui um grande talento, querida. É excepcional.
Qualquer outro dia o julgamento de Catalani teria produzido euforia. Essa noite tão somente acrescentava um grande nó a mais ao matagal de emoções que a confundiam.
Pen encabeçou a marcha para a biblioteca para jogar cartas, mas Bianca se desculpou, dizendo que queria retirar-se. Seguiu à comitiva através do corredor, mas se desviou ao chegar à escada. Nigel se separou de outros.
—Esperava que nos encontrássemos jogando na mesma mesa, prima.
—Seria uma má companhia esta noite. A emoção de cantar com Catalani presente…
—É obvio. Entendo. De todas as formas agradeceria poder passar um momento mais contigo. Muito em comum, prima. Eu gostaria de te conhecer melhor.
Por mais que insistisse em usar a palavra «prima», por mais que empregasse um tom formal e correto suas intenções saíam à luz. O interesse que sentia por ela brilhava em sua expressão. Ela suspeitou que se naquele momento se achassem sozinhos no jardim Nigel teria tentado beijá-la.
Três homens em dois dias. Ela não tinha ideia de que fosse tão fácil voltar-se promíscua.
A experiência daquela manhã a havia tornado cínica. Possivelmente o interesse de Nigel fosse honesto.
—Se juntará com os outros para cavalgar amanhã pela manhã? —perguntou ele.
Pen organizou para todos uma visita pela fazenda, que terminaria com um almoço nas ruínas. Retornar ali tão cedo seria horrível.
—Não acredito. Não me encontro bem, ficarei aqui descansando.
Abriu-se a porta do estúdio que dava ao corredor. Dela emergiu a alta figura do visconde Laclere, que se dirigia à biblioteca. Ao vê-los se deteve, ficando de pé ante eles como uma sentinela. Nigel o olhou e a seguir dirigiu a ela um sorriso íntimo.
—Eu gostaria de falar contigo em algum momento em que seu guardião não esteja me olhando por cima do ombro. Os dois estamos sozinhos no mundo, e os parentes podem ser uma fonte de consolo. Se alguma vez necessitar minha ajuda, espero que venha a mim.
—É muito amável por sua parte me fazer essa oferta. Agora deveria se unir aos outros, eu preciso estar sozinha.
Vergil não se moveu, nem sequer quando Nigel passou ante ele lhe dirigindo uma saudação e entrou na biblioteca. Simplesmente seguia ali de pé, olhando-a. Ela queria girar a cabeça e afastar-se com altiva indiferença. Mas não podia mover-se.
—Retira-se?
—Sim. A noite foi uma prova.
—Eu acredito que a noite foi um triunfo. Escutei você. Superou a si mesma. Quanto ao dia, suponho que foi uma prova, e me desculpo por isso.
Ela não queria voltar a ouvir nada mais a respeito de suas desculpas.
—Os papéis pessoais de seu avô chegaram esta manhã — disse ele— A maioria das caixas está em meu escritório para que não a incomodem, mas separei as que correspondem aos anos em que seu pai vivia com ele e as mandei levar a seu quarto, junto com o que havia no escritório.
—Obrigado. —esforçou-se para mover-se e chegar até a escada.
—Há algo mais. Devo insistir em que não deve voltar a sair sozinha pela manhã cedo.
—Está preocupado por minha virtude? — A pergunta surgiu sem que ela pudesse impedir.
Ele nem sequer teve a decência de mostrar-se envergonhado.
—Estou preocupado por sua segurança.
—Irei onde queira e ensaiarei sempre que puder.
—Não pela manhã, e não sozinha. Se quiser praticar em privado e se preocupa que em seu quarto possa incomodar os outros, usa meu escritório. Mas não saia da casa.
—Continua cortando a correia, Laclere. Por que não me ata ao pilar da cama?
Seus olhos azuis a olharam de uma maneira que nada tinha a ver com o que usou nas insossas admoestações que acabava de lhe fazer.
—Tem talento para provocar as imagens mais surpreendentes, senhorita Kenwood. —deu a volta— Até amanhã então.
Jane a esperava em seu quarto. Sentia-se bem ao poder estar a sós com alguém que a conhecia há anos.
—Os convidados realmente o passam bem, verdade? —disse Jane— Todos esses homens bonitos com seus trajes elegantes.
Jane viu aquela viagem desde o começo como uma boa oportunidade para que Bianca encontrasse um marido. Nunca reconheceu que a falta de pretendentes em Baltimore era voluntária; o resultado de esmeradas dissuasões.
—Esse senhor Witherby parece prometedor. Um cavalheiro conforme se diz, e bastante atrativo.
—Suspeito que se interesse por Penelope.
Jane franziu o cenho.
—Por uma mulher casada? Separada ou não, isso é o que é. Bom, o visconde está fora de jogo. Está a ponto de prometer-se à senhorita Monley. E menos mal. Quem iria querer um homem tão estrito e severo? Sempre fica o irmão mais jovem de Charlotte, embora se diga…
—Sei o que se diz.
Jane a ajudou a colocar a camisola.
—Todos esses homens solteiros e nem sequer uma paquera? Quem ia esperar que a Inglaterra fosse tão aborrecida.
Algo menos aborrecida, e o de paquera não serviria nem para começar a descrever até que ponto estava se convertendo no contrário do aborrecimento.
—Meu primo Nigel me deu a conhecer seu interesse.
—Nunca gostei da ideia de que os parentes se mesclem. Não é bom juntar o sangue.
—É um parente bastante longínquo.
—Certo. Só que ouvi dizer embaixo que se parece muito a Dante. Vive endividado. Não pode permitir-se essa vida tão elegante. Seu avô deixou a você a maior parte do dinheiro. Diz-se que seu primo só tem dinheiro suficiente para manter o imóvel, e que tudo está disposto de forma que não possa acessar mais que os ganhos correspondentes para cada ano.
—Onde se inteira de todas essas coisas?
—Os criados daqui conhecem os poucos criados que ficam ali. Os arrendatários falam entre eles. É igual em nossa vizinhança. Tudo entra através da porta da cozinha — disse Jane— Se ele expressou esse tipo de interesse, deveria saber que pode ser como Dante em outros sentidos também. Parece que seu primo não está sempre só nessa grande casa. Uma mulher o visitou secretamente a semana passada. Segue meu conselho. Não acredito que queira o interesse desse homem.
Bianca não queria o interesse de nenhum homem. Rotundamente não. Nada mais que distrações, isso é o que eram os homens. Potencialmente distrações permanentes, assim funcionava o mundo. E, como ela vinha aprendendo a trancos e barrancos, fontes de dor e confusão.
Ansiava adormecer, mas sabia que só ocorreria quando estivesse completamente esgotada. Quando Jane saiu, aproximou as velas às caixas e ao baú, empilhados perto da lareira, e se sentou no chão para descobrir o que podiam revelar.
Uma chave estava na fechadura do baú. Girando-a abriu a tampa para examinar o conteúdo do escritório de Adam Woodleigh.
Tocou as plumas e o tinteiro barato. Buscou entre papéis cheios de escritas. Um tinha escrito o nome do irmão de Vergil, junto com outros, e ela supôs que foram os últimos que seu avô escreveu.
Uma pilha de cartas, atadas com um barbante, chamaram sua atenção. Estava a ponto de abri-las quando viu a saudação que encabeçava a primeira. Escrito pela mão de um homem, dirigia-se a Adam como «Meu mais querido amigo».
Com uma saudação como essa não podiam ser de seu pai. Provavelmente seriam do anterior visconde. As daria a Vergil.
Em um pequeno estojo de couro encontrou uma miniatura de uma mulher loira. Imaginou que seria sua avó. Encontrou certo parecido com seu pai, e a assaltaram lembranças de seu amor e sua nobre honestidade. Sua garganta ardia como se uma velha dor se unisse as novas.
Uma flor seca caiu em seu colo enquanto devolvia a diminuta pintura a seu ninho de veludo.
A flor não parecia muito velha. Não se desfez ao tocá-la, parecia que estava a anos naquele estojo.
Imaginou um homem velho recolhendo uma flor no jardim quando saía para caminhar e abrindo mais tarde esse estojo que continha a lembrança de sua esposa. Imaginou Adam lhe deixando essa pequena oferenda.
Fechou de repente o estojo. Não queria ficar sentimental com esse homem. Provavelmente a flor esteve ali sempre e foi sua avó quem a colocou ali.
O outro baú continha pastas. Adam foi um homem organizado, cada pasta correspondia há um ano e dito ano estava escrito na parte dianteira. Ela procurou as correspondentes aos anos em que ainda não tinha nascido, justo quando seu pai abandonou a Inglaterra.
Levou algum tempo encontrar o ano preciso. Não sabia que seu pai viajou a América ao menos seis anos antes que ela nascesse.
Era uma pasta magra com umas poucas cartas. Três eram de seu pai. Leu-as e compreendeu a razão pela que Adam Kenwood e seu filho se separaram.
Não foi por causa de sua mãe. Ocorreu antes que seus pais se conhecessem. Vergil estava certo a respeito do ocorrido. Seu pai rompeu a relação. Em uma carta onde rechaçava a oferta de uma pensão por parte de Adam expôs as razões.
As explicações esvaziaram seu coração das últimas frestas de alegria e confiança. O sonho que a sustentou desde a morte de sua mãe balançou como se seus alicerces tivessem sido atacados. A herança de repente a golpeou como uma brincadeira malvada, um chamariz do diabo para fazê-la pecar.
Não era para menos que seu pai tivesse dado as costas à fazenda e ao status que Adam edificou.
Seu avô fez sua primeira fortuna com o comércio de escravos.
CONTINUA
Vergil Duclairc é um homem acostumado a vencer. Como recém-nomeado tutor da senhorita Bianca Kenwood, está decidido a encontrá-la e devolvê-la ao lar custe o que custar, embora a última coisa que podia imaginar era achar sua pupila vestida de modo escandaloso cantando em um teatro de duvidosa reputação. Mas ainda estava menos preparado para a implacável atração que sentiu por ela somente em vê-la, um desejo que não pode permitir deixar fluir por medo de desmascarar segredos que jurou guardar.
De sua parte, Bianca não está disposta a abandonar sua independência, mas há algo irresistível no belo e persistente visconde Duclairc que o converte não só no administrador de sua herança, mas também no dono de seu coração. A jovem descobrirá em seguida que Vergil é um homem de profundos segredos e de uma sensualidade perturbadora a qual não se pode resistir. Quando suas vidas estão a ponto de mudar e seus caminhos a se separar, crescerá entre ambos uma paixão que os permitirá lutar contra o mundo ao qual pertencem.
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Capítulo 1
O canto de Jane Ormond, que Vergil apreciava a contra gosto, não apaziguou sua ira nem um pouco. Lamentava terrivelmente não poder jogá-la na prisão de Newgate, a que pertencia.
Ia vestida como uma rainha francesa do século passado, mas não parecia cômoda em seu papel. Movia-se com rigidez, como se temesse que a alta peruca branca caísse ou que o miriñaque[1] do vestido inclinasse. A confiança de sua voz contrastava com sua fragilidade física. E sua pose de profissional cheia de segurança destoava durante os breves momentos de vulnerabilidade.
Ele não se sentia deslumbrado com seus estudados encantos. Com seus olhos grandes, seus lábios carnudos e sua insinuada fragilidade, aparentava o tipo mais perigoso de inocência, dessa que impulsionaria um homem a sacrificar sua vida com o objetivo de protegê-la, mas que também poderia despertar outra parte escura, e conseguir que esse mesmo homem se imaginasse lhe arrancando a roupa e destruindo essa inocência.
Moveu-se em direção a ele, levantando a cabeça para cantar as notas mais altas em uma exibição vocal. Seus olhares se encontraram. Por um momento apareceu em seu rosto um brilho de curiosidade, como se percebesse que ele não estaria ali se não fosse pelo dever.
Ele sabia que não havia nada em sua aparência que pudesse revelar isso. Aquela sala de jogos incluía espetáculos para atender aos gostos dos homens de sua classe. Eles podiam descansar de suas apostas naquele salão para comer e desfrutar de um concerto de ópera, ou, mais tarde, desfrutar de formas de entretenimento muito mais baixas.
Ela o olhou por um tempo mais longo do que devia em resposta à inspeção a que se sentia submetida. Ele se surpreendeu ante a inquietante combinação de proteção e erotismo que aqueles grandes olhos convocavam, e se concentrou em todos os problemas que ocasionou durante as últimas duas semanas.
Morton se deixou cair na outra cadeira da mesa. Parecia desconjurado, com sua pinta de urso e sua barba fora de moda.
—A garota está aqui — disse— Em uma estadia traseira. A senhorita Ormond a traz aqui a cada noite, para que a espere enquanto ela canta. Falei com o homem da porta e ele as viu entrar juntas esta noite.
Vergil se levantou.
—A senhorita Ormond cantará outra canção depois da ária. Faremos agora. Temos que tirar à garota antes que acabe. —A senhorita Ormond, sem suspeitar nada, continuava com seus gorjeios— Se for inteligente, nos perseguirá pela costa quando se der conta de que seus planos fracassaram. Quanto à garota, a levaremos ao campo para que se recupere, e ninguém se inteirará de nada.
Estava contando é obvio, naturalmente, que a senhorita Jane Ormond ainda não vendeu à garota pelo maior preço. Concentrou sua atenção no rosto aparentemente ingênuo sob a muito alta peruca branca. Podia ver-se um traço de inteligência naqueles olhos. Não, essa mulher não teria se arriscado tanto por um prêmio tão pequeno como o dinheiro que podia obter de vender uma virgem. Possivelmente teria planejado pedir um resgate, mas o mais provável era que tivesse intenção de vender à garota para algum casamento. Ela, sem dúvida, tinha notícias de sua herança desde que servia de criada e partiram juntas da América.
Tudo aquilo podia ter sido evitado se Derem estivesse mais atento. A culpa era em realidade dele, por ter enviado seu irmão para receber o navio, mas quem ia pensar que uma criada que não era mais que uma menina se atreveria a fazer semelhante coisa.
O corredor de má morte contrastava com a opulência do salão. Morton assinalou para uma porta escondida sob uma escada. Vergil girou o trinco.
Já havia visitado camarins de cantoras, e normalmente era um autêntico desastre ao que se refere à ordem. Entretanto, aquele diminuto espaço foi arrumado cuidadosamente. Havia um par de velas sobre uma mesa, em que também podia ver-se um espelho e um recipiente com pinturas. Disfarces e roupas de dia penduravam de uma fila de cabides colocados na parede. À direita da mesa havia uma cadeira entre as sombras, onde uma moça permanecia sentada com uma agulha fazendo acertos em um tecido que sustentava perto das chamas.
—Senhorita Bianca Kenwood?
Ela levantou o olhar surpreendida e ele imediatamente começou a calcular quanto teria que incrementar o suborno que pensava fazer a Dante. Sem dúvida poderia tratar-se de uma garota doce, mas Dante julgava às mulheres por seu aspecto físico, não por seu caráter, e o dela não impressionava muito. As mechas de cabelo castanho que escapavam de seu gorro pareciam mais crespados que frisados. Seu nariz era arrebitado, o qual poderia ter resultado encantador no caso de que não fosse tão largo.
—Senhorita Kenwood, sou Laclere.
—Oh!
—Este é Morton, meu (criado). Tenho um carro estacionado atrás do edifício e a levaremos ali imediatamente. Sua terrível experiência terminou e te asseguro que ninguém jamais terá notícia deste desafortunado incidente.
—Oh! Oh, Deus…
—Por favor, é necessário sairmos agora. Falarei com a senhorita Ormond mais tarde. No momento, o melhor será que a tiremos daqui.
—Oh, não acredito que… Isto é… — Andou para trás, fazendo gestos de resistência e confusão. Ele se inclinou para ela e sorriu para transmitir confiança. Precaveu-se de que seu vestido era muito comum, um simples vestido longo e cinza. Era evidente que não tinha nenhuma noção do que era se vestir na moda.
—Vamos querida. Será melhor que saiamos antes que…
—Quem é você? —A indignada voz que fazia a pergunta era feminina, melodiosa e jovem.
Vergil deu a volta para ver Maria Antonieta ante a porta, com os braços em jarras e as mãos apoiadas sobre seu magro talhe. O vestido de largos quadris ocupava toda a soleira.
—E bem? Quem é você, senhor, e o que está fazendo aqui?
A senhorita Kenwood se levantou de um salto e se precipitou para a senhorita Ormond, que a abraçou de maneira protetora. Ou seja, que assim é como tinha ocorrido. Naturalmente, ela tinha cercado amizade com a garota. De outra forma não teria funcionado.
—Seu concerto terminou? —perguntou ele.
—Os lieder são peças breves. Agora, me faça o favor de sair. Minha irmã e eu…
—Senhorita Ormond, essa jovem não é sua irmã. Não são parentes. A convenceu a vir com você, mas sua ação não foi outra coisa mais que um sequestro e deverá ser examinada ante um juiz.
A senhorita Ormond afastou brandamente à garota e depois apertou seu vestido para conseguir entrar na estadia. A largura da ridícula saia obrigou Morton a se aproximar da parede.
Ela cruzou os braços. O gesto fez que Vergil se fixasse na forma em que seus peitos apareciam esmagados, sob o rígido sutiã.
—Quem é você?
—Vergilius Duclairc, o visconde Laclere. A senhorita Kenwood é minha pupila, como você já sabe.
Ela baixou lentamente o olhar, e logo voltou a elevá-lo.
—Eu não sei nada disso.
O aprumo que demonstrava, apesar de ter sido surpreendida em fragrante delito, acabou com a paciência de Vergil.
—Não tente brincar comigo, jovenzinha. A forma em que traiu a confiança de sua companheira de viagem é simplesmente abominável. O perigo e o possível escândalo ao que submeteu esta moça durante as últimas semanas são indesculpáveis. A partir de agora não tolerarei nenhuma intromissão. Se você se der pressa, poderá estar a caminho de volta a América antes que amanheça, mas unicamente estou disposto a fazer esta concessão por deferência à senhorita Kenwood.
Ela nem sequer pestanejou. Avançou uns passos para diante até que os volantes de sua saia roçaram a perna dele e levantou a vista para olhá-lo de uma forma curiosa.
—Assim é você um desses.
Ele a olhou fixamente. Se fosse um homem lhe daria uma boa surra.
Ela dirigiu a vista para a perturbada garota, encolhida com medo contra o vão da porta.
—Pelo visto parece que tudo terminou. É uma lástima, realmente acreditei que conseguiria. —Fez um gesto e a senhorita Kenwood se uniu a ela para ajudá-la a desprender e dobrar os objetos que tinha pendurados nos cabides.
Ele se colocou entre elas, pegou um vestido das mãos de sua pupila e o jogou para um lado.
—Iremos agora mesmo. Se a senhorita Kenwood tiver pertences aqui ou no lugar onde se aloja, enviarei alguém para buscá-los.
A senhorita Ormond sorriu de uma forma muito insolente.
—Oh, definitivamente é você um desses. Muito seguro de si mesmo. Um homem que decide que rumo seguir e que está sempre seguro do que é o correto. Advertiram-me que neste país havia muitos homens como você, homens que estão convencidos de que jamais cometem enganos.
Ele sentiu que se ruborizava ante a suja afirmação dessa pomba presunçosa. Já tinha sido suficiente. Pegou com sua mão a larga manga de tecido cinza de sua pupila.
A senhorita Ormond mudou de posição e obstruiu sua retirada com a largura de seu vestido. Com uma mão, suave e cálida, agarrou a mão dele e com delicadeza fez que seus dedos se abrissem e o tecido largo e cinza se deslizasse deles.
Uns olhos azuis o olharam com zombador deleite.
—Bem, esta vez cometeu um engano, Vergilius Duclairc, visconde Laclere. De fato, você está completamente equivocado. Ela não é Bianca Kenwood. Sou eu.
Ele teve um momento de confusão até que o significado daquelas palavras o golpeou. Insinuações de problemas se atropelaram em sua mente, uma luminosa névoa de premonições que sugeria que algo que parecia bastante simples de resolver acabava de voltar-se perigosamente complicado. Dirigiu seu olhar para o tímido passarinho cinza que retorcia as mãos, e depois para aquela ave do paraíso, borrada e cheia de confiança em si mesma, e se perguntou como teria reagido Dante ante desse escandaloso acontecimento.
***
Zas. Zas. Zas.
O látego de montar golpeava contra as altas botas do visconde Laclere enquanto caminhava acima e abaixo frente à chaminé.
No divã, Bianca abraçava Jane, e dava tapinhas no seu ombro. Na outra ponta do salão, meio adormecida, a condessa de Glasbury irmã do visconde, piscava com consternação, vestida com uma bata verde de estilo oriental.
Bianca pensou que era de muito má educação por parte de Vergil Duclairc arrastar Jane e a ela até a casa da condessa e interromper seu sono. Se ele deixasse de dar voltas ao assunto e de caminhar de um lado a outro, ela poderia esclarecer as coisas rapidamente e poderiam partir.
Zas. Zas.
—Não estará planejando usar isso, verdade? —perguntou Bianca. Sua voz rompeu o tenso silêncio que se fez depois que ele explicou à condessa onde encontrou sua pupila desaparecida após duas longas semanas de busca.
Ele parou em seco uma de suas idas e vindas para dar a volta e olhá-la. Era um homem alto, magro e robusto de uns vinte e cinco anos, com surpreendentes olhos azuis e o cabelo ondulado e escuro um pouco despenteado, como ditava a moda. Atrativo, de fato. Possivelmente inclusive bonito se deixasse de pôr essa cara mal-humorada, de momento ela não podia saber.
—O látego — insistiu— Não pretende usá-lo? Devo te dizer que tenho vinte anos, e Jane tem vinte e dois, o que significa que já passamos da idade para estas coisas. Embora minha tia tivesse uma criada que foi cortejada por um cavalheiro inglês que disse que há muitos homens que usam o látego com suas mulheres aqui na Inglaterra, o qual me pareceu bastante curioso, e que há outros que de fato querem mulheres para lhes dar chicotadas, o qual para mim não tem nenhum sentido.
A condessa ficou boquiaberta. De repente parecia completamente acordada.
Vergil se voltou para sua irmã com uma paciência cheia de tensão, e assinalou para o divã como querendo dizer «o vê?».
—Asseguro-lhe, senhorita Kenwood —disse a condessa com um sorriso vacilante— que, sem dúvida, meu irmão não tem nenhuma intenção de…
Vergil baixou as pálpebras como se não houvesse nenhuma razão de usar o «sem dúvida». Cruzou as mãos atrás das costas e estudou a moça com severidade.
—Meu irmão foi esperar seu navio em Liverpool. Por que não conseguiu encontrá-la?
Bianca considerou a possibilidade de usar a elaborada história cheia de peripécias que inventou se por acaso as coisas se estragavam, tal como tinha ocorrido. Mas de repente pareceu que era muito pouco convincente.
Examinou os olhos azuis que a esquadrinhavam. Tia Edith havia dito que os aristocratas ingleses eram gente indolente e decadente, um pouco estúpidos, e Bianca acreditava que aquilo seria certo. Infelizmente aquele parecia ser uma exceção, ao menos em relação ao último ponto. Não parecia capaz de acreditar em confusas histórias a respeito de uma moça inocente e desventurada.
—Havia a bordo um marinheiro que nos ajudou a tirar nossos baús e a encontrar um carro de aluguel antes que alguém viesse nos recolher.
—Ficou amiga de um marinheiro? —A condessa lançou a seu irmão um olhar oblíquo e este fechou por um momento os olhos.
—Senhorita Kenwood, talvez ocorreu um mal-entendido. O procurador de seu avô contatou com um advogado de Baltimore, o senhor Williams, para dirigir este assunto. Ele falou com você, ou acaso não fez? É possível que foi mal informada?
—Certamente falou comigo. É um homem muito agradável. De fato conseguiu nossa passagem para o navio.
—Escreveu-me dizendo que o faria. Explicou a você que um membro de nossa família iria recolhê-la em Liverpool?
—Explicou-o com muita claridade. Minha tia não teria me permitido vir se não tivesse convencida de que me recolheriam.
—Então admite você que desembarcou por sua conta própria sem esperar um acompanhante e que não foi acidental que meu irmão não a encontrasse?
—Não foi acidental. Foi completamente deliberado.
Por alguma razão sua franqueza o deixou mudo. Olhou-a como se fosse impossível compreendê-la.
—Acredito que será melhor que se sente Vergil, assim ela se sentirá menos incômoda — disse a condessa— Podemos falar as coisas com calma. Estou segura de que a senhorita Kenwood terá uma explicação para tudo.
Vergil se sentou em um pequeno banco, mas continuou envenenando a moça com sua atitude.
—Você tem alguma explicação?
—É obvio. —Jane dormiu apoiada em seu ombro e o peso morto a distraiu. O abraço tinha feito que sua peruca se desequilibrasse e se torcesse. Esses vestidos antigos não estavam desenhados para sentar-se e a saia formava uma espécie de plataforma a seu redor. O espartilho sob o disfarce lhe cravava ao lado da cintura.
Sentia-se um pouco ridícula e muito incômoda e lamentava que aquele visconde com ar de grandeza não a tivesse deixado tempo para trocar-se e lavar-se antes de arrastá-la até o carro.
—A explicação, senhorita Kenwood. Eu gostaria de ouvi-la.
—A verdade, senhor Duclairc, é que não acredito que gostará.
Ele entrecerrou os olhos.
—Seja como for vamos provar.
Ela subiu uma perna e a colocou sob seu traseiro para levantar-se um pouco mais. A condessa pestanejou. O visconde elevou uma sobrancelha em atitude de censura. Ao dar-se conta de que a perna que pendurava estava descoberta até a metade da panturrilha, Bianca sorriu a modo de desculpa e puxou a borda de sua saia para baixo.
—Senhor Duclairc, fui informada a respeito dos planos de minha visita aqui. Simplesmente decidi fazer umas pequenas mudanças. Se o senhor Williams falou com você a respeito de mim, você deve saber que eu vivia com minha tia avó Edith mais como uma companheira que como uma pupila. Viajei muito quando minha mãe vivia, e aprendi a cuidar de mim mesma. Sou considerada muito amadurecida para minha idade.
—Ele só me escreveu dizendo que sua tia era um baluarte da sociedade de Baltimore e que você era uma jovem bem educada. —Seu tom dava a entender que o senhor Williams devia alguma explicação.
—Sei que meu avô o nomeou meu protetor em seu testamento. É um gesto encantador e comovente. Provavelmente ele queria cobrir a eventualidade de que eu necessitasse realmente um protetor, mas obviamente não é o caso. Por outro lado, sou americana, assim não posso entender de que modo um testamento inglês pode estabelecer algum tipo de autoridade sobre mim.
—Será um prazer explicar mais tarde.
Ela já sabia a explicação. Simplesmente não a aceitava.
—Ante a insistência do senhor Williams, aceitei vir aqui para estudar assuntos referentes à minha herança e arrumá-los pessoalmente. Entretanto, nunca disse que iria ficar com sua família. —Omitiu o fato insignificante de que tampouco nunca havia dito que não fosse fazê-lo e que quando subiu a bordo desse navio tanto o agradável senhor Williams como a velha tia Edith davam por certo que era exatamente isso o que faria.
—A quem pensava visitar, querida? —perguntou a condessa— Vê Vergil, disse que haveria uma explicação. Ela esperava que outros amigos fossem recolhê-la e não se apresentaram.
A expressão dele se fez cautelosa.
—É assim, senhorita Kenwood?
—Não — admitiu ela. Curiosamente, ele pareceu aliviado— Minha intenção é viver por minha conta, com Jane como acompanhante. Em relação à oferta de alojamento em sua casa de campo… Bom, me sentiria como uma intrusa, e, além disso, prefiro a vida da cidade. E é obvio, não queria que se atrasassem minhas lições.
—Lições?
—Lições de canto. Esse é o motivo de ter vindo. Meus instrutores em Baltimore me disseram que me levaram tão longe quanto podiam e que a partir de agora necessitava professores melhores. Meu plano é tomar lições em Londres até que o assunto de minha herança esteja resolvido, e depois usar os ganhos para ir a Milão.
O visconde suspirou, levantou-se e começou a caminhar de novo frente à chaminé. A condessa inclinou sua cabeça de cabelo negro confidencialmente.
—Acredito que é maravilhoso que sinta esse ardor por sua música. Quanto talento! Quando formos a Londres para a temporada, estou segura de que poderemos encontrar um professor de canto. Conheço bastante gente nos círculos de arte e de música.
—Obrigado por tão amável oferecimento, mas não quero esperar até a temporada, seja quando for. As lições de canto foram o autêntico propósito de minha viagem e penso começá-las em seguida.
Vergil esfregou as superficiais rugas que se formavam entre suas sobrancelhas.
—Senhorita Kenwood, não quero incomodá-la, mas preciso saber como você conseguiu cantar nesse local.
—Vergil…
—Não, Penelope, é melhor esclarecê-lo agora e saber exatamente a que enfrentamos. Senhorita Kenwood?
—Bom, alugar esse carro para chegar a Londres resultou muito caro. Custou mais do dinheiro que trazia comigo. Quando chegamos a Londres encontrei emprego cantando, para nos manter até que pudesse obter o dinheiro do patrimônio de meu avô.
—Que inteligente e competente por sua parte — disse Penelope.
Vergil tinha o aspecto de alguém que jamais admirou virtudes como a inteligência ou a competência.
—É consciente da reputação desse lugar? Sabe o que ocorre no cenário depois de suas árias?
—Nunca ficamos. Parecia uma sala de música comum.
—Do mais comum. Nossa única esperança é que seu disfarce esconda sua identidade e que nenhuma das pessoas que te encontre no futuro a reconheça. Resulta escandaloso que uma mulher cante em um cenário de qualquer tipo, mas em um como esse, pintada e com esses babados… — Fez um gesto assinalando seu vestido, seu rosto, sua peruca.
—Minha mãe cantava em um cenário senhor Duclairc e este é seu vestuário.
—Estou segura de que era uma cantora encantadora — se apressou a dizer Penelope.
—Deixa de seguir a corrente, Pen. Talvez isso seja aceitável nos Estados Unidos, mas não na Inglaterra, senhorita Kenwood.
—Posto que não seja inglesa, isso não me preocupa. Acredito que o melhor será evitar qualquer contato social para que você não deva preocupar-se com minhas atuações, não parece? —Fez um sorriso forçado, como o animando a aceitar a lógica daquele raciocínio— Agora que já cumpriu com seu dever assegurando-se de que estou a salvo, por favor, leve Jane e a mim ao nosso alojamento.
—Você ficará aqui esta noite. Farei com que tragam seus pertences e que se relate ao proprietário da sala de jogos que suas atuações acabaram.
—Devo declinar sua oferta, senhor Duclairc. Não quero abusar da hospitalidade de sua irmã, e tenho a intenção de continuar com meu emprego. Como cantora, necessito experiência com o público e…
Ele a interrompeu com um gesto autoritário.
—Não. Definitivamente não. Não viverá de forma independente sem uma acompanhante e tampouco vai pavonear sobre um cenário. Enquanto esteja aqui eu sou responsável por você e deverá comportar-se como se espera de uma jovem dama.
Bianca devolveu o olhar a aquele intratável, alto e imponente visconde. Que um velho avaro, a quem nunca conheceu, pudesse ter complicado sua vida dessa maneira com os garranchos de uma pluma, resultava intolerável. Não esperava que o visconde a encontrasse tão rápido. Não esperava ter aquela conversa até estar preparada.
Vergil cruzou os braços. Aquela pose o fazia parecer muito alto e poderoso. Era o tipo de postura que devia adotar um rei quando ordenava executar alguém.
—Amanhã minha irmã acompanhará você e a sua criada até o campo — entoou, como expressando a vontade de um juiz— Não falará com ninguém a respeito desta experiência, nem sequer a outros membros de minha família. No que concerne ao mundo, você foi recolhida no navio e esteve sob nosso amparo desde o começo.
—Se você me tirar de Londres, será contra minha própria vontade. Como você disse antes, isso é um sequestro. Eu também posso ir me queixar ante o tribunal de Justiça.
Ela olhou com frieza.
—É legalmente impossível para mim sequestrá-la, senhorita Kenwood. Sou seu tutor. Até que você cumpra vinte e um anos ou se case permanecerá sob minha custódia. Pen, pede à governanta que mostre à senhorita Kenwood e à senhorita Ormond suas acomodações.
Despachada como uma escolar travessa, Bianca achou a si mesma e a uma sonolenta Jane guiadas por uma mulher através do corredor. Zangada por ter visto frustrado seu plano, e desconcertada ao ver aquele estranho assumindo uma responsabilidade que certamente desejaria não ter que assumir, baixou a escada guiada por aquela mulher.
Algo no final daquela confrontação a perturbava. Foi chegar ao patamar da escada quando se precaveu da importante omissão. «Até que você cumpra vinte e um anos ou se case permanecerá sob minha custódia.»
Ou até que abandone a Inglaterra, naturalmente. Verdade?
—Não acredita que foi muito duro com ela? —perguntou Penelope.
—Absolutamente. —Vergil observava Bianca Kenwood enquanto esta subia a escada cambaleando com suas delicadas sapatilhas de seda. A chuva de premonições se converteu em uma tormenta de neve.
Que desastre.
—É uma estrangeira aqui, Vergil. Ignorante de nossos costumes. Sem dúvida, as pessoas na América se comportam de maneira mais informal.
—Não acredito Pen. Ela sabia perfeitamente o que estava fazendo. —O qual significava que estava fazendo exatamente o que queria e pressupondo que aquilo o induziria a lavar as mãos a respeito dela.
Deu a volta, pensando em tomar um copo de porto antes de partir. Precisava fazer planos sobre como preparar seu irmão e como frear à senhorita Kenwood para que aquele caveira não ficasse impressionado por ela.
Penelope o pegou pelo braço, detendo-o.
—Foi muito amável de sua parte não dizer nada a respeito de como deve dirigir-se a você. Compreendeu que era só sua ingenuidade o que a fazia te chamar todo o tempo senhor Duclairc. Ela se sentia envergonhada e você foi muito generoso. O explicarei amanhã.
É isso o que Penelope viu naqueles olhos azuis? Ingenuidade? Vergonha? Normalmente sua irmã mais velha se mostrava mais ardilosa, apesar de sua natureza otimista.
—Não será necessário dar explicações, Pen. Apostaria mil libras que a senhorita Kenwood sabe perfeitamente qual é a forma apropriada de dirigir-se a um visconde.
Capítulo 2
Vergil lançou a seu camareiro seu chapéu empapado e desatou com violência o nó de seu lenço.
—Uísque para os dois, Morton. Depois desta viagem, necessito. Leva Hampton acima quando chegar.
Ao final de dez minutos, Morton não só serviu as bebidas, mas também queijo e carne de ave fria, acendeu um pequeno fogo na biblioteca e conseguiu que Vergil estivesse seco e arrumado. Não é que houvesse ninguém ante quem tivesse que estar arrumado. Só umas poucas estadias da luxuosa casa de Londres estavam abertas e, além de Morton, havia só outros dois criados.
Tampouco tinha por que arrumar-se para receber Julian Hampton. O advogado da família o viu em outras ocasiões vestido de maneira muito informal. Entretanto, a vida que levava em Londres requeria que se respeitassem as aparências.
Sentou-se junto ao fogo, bebendo a sorvos seu uísque com dois grandes livros em seus joelhos. Já sabia o que mostravam esses documentos e o que diria Hampton. As finanças da família Duclairc não atravessavam um período de prosperidade. Só a cuidadosa direção de Vergil durante aquele último ano tinha evitado o desastre total.
Ultimamente, entretanto, não teve muito tempo para dedicar-se a essas coisas. Outros assuntos, mais urgentes e também mais interessantes, tinham requerido sua atenção. Assuntos como o que acabava de atender no norte.
E agora, é obvio, precisava ocupar-se daquele novo assunto chamado Bianca Kenwood. As possíveis complicações que aquilo podia representar o fizeram fechar os olhos.
A imagem dela cintilou atrás de suas pálpebras, assim como ocorreu muito frequentemente durante as últimas duas semanas. Viu-a sentada na sala de estar de Pen com aquele absurdo vestido, sua magra perna pendurando do divã e a sapatilha de seda arqueando um pouco seu pequeno pé. Estava do mais inapresentável. Além de incorrigível e impertinente e maliciosa e fascinante…
Fascinante? Que ideia tão curiosa. De onde sairia?
—O senhor Hampton — anunciou Morton.
Julian Hampton entrou, levando posta sua cara de advogado. Sempre o fazia quando se encontravam por assuntos de negócios. Já que se tratava de um velho amigo provavelmente era necessário, especialmente quando tinham que falar de más notícias. Vergil viu aquela expressão muito frequentemente durante o último ano.
—Estudou-os? —perguntou Hampton, assinalando os tomos ao tempo que tomava assento e aceitava o copo que oferecia Morton.
—Espero que as coisas tenham mudado um pouco.
—Um pouco. A solvência nos faz gestos. Se sua irmã vivesse em Laclere Park…
—Não posso pedir que seja tão dependente.
—Ou se Dante vivesse de acordo com seus meios…
—Jamais o fez, assim não há nenhuma esperança.
—Poderia consolidar a granja e arrendar a terra.
—Essa é uma velha litania, Hampton, e já sabe minha resposta. Meu pai e meu irmão não jogaram essas famílias, e eu tampouco o farei.
—Bom, ao menos não estão na borda do abismo.
Estavam mais perto do abismo do que sabia Hampton e do que revelavam aqueles tomos. Entretanto, Vergil tinha um plano para tentar solucioná-lo. Infelizmente, uma parte fundamental desse plano podia causar problemas. A parte chamada Bianca Kenwood.
Hampton sorriu. Isso nunca era um bom sinal, especialmente na cara de seu advogado.
—Deve melhorar as coisas do modo mais simples. O modo tradicional.
—Sim, suponho que o pai de Fleur será muito generoso. Deveria estar agradecido de que meu valor tenha aumentado tanto depois da morte de meu irmão. Com o tempo, suponho que consentirei em me casar. De momento, entretanto, outros enredos fazem que resulte impossível.
Hampton não era um homem muito expressivo, assim que o brilho de curiosidade e preocupação que relampejou em seus olhos fez Vergil ter sabor que falou muito.
—Posso te procurar ajuda? Tenho experiência em negociar para que meus clientes solucionem seus enredos. —Destacou a última palavra de uma forma que parecia aludir a problemas de natureza romântica.
O enredo em que Vergil se achava envolvido necessitava algo mais que a destreza de Hampton para chegar a desembaraçar-se.
—É insuperável nisso, e aceitaria sua ajuda se acreditasse que poderia servir de algo. Não sei como conseguiu convencer o conde para que liberasse minha irmã.
—Todos os homens têm segredos que querem esconder. O conde de Glasbury simplesmente tem mais que a maioria. Como vai à condessa?
—Está bastante contente, e acabou por preferir aqueles círculos sociais que a aceitam.
—Sua queda teria sido muito pior se não fosse por você.
Vergil sabia. Graças a sua fama de homem íntegro e decente conseguiu aliviar o impacto social que foi o fato de que Pen se separasse do conde; também obteve que se subtraísse importância aos diversos pecados de Dante e inclusive que se retificasse em parte a fama que tinham os Duclairc por seu comportamento e suas ideias pouco convencionais. Apesar de que sua família atirasse para baixo, ele conseguiu que se mantivessem flutuando. Com muita dificuldade.
—Acabamos? —perguntou Vergil, levantando.
—Pelo visto você acredita que sim.
Vergil deixou cair os livros ao chão.
—Pode deixar para outro dia os detalhes tristes. Me diga o que esteve fazendo, além de dar conselhos a insensatos como eu.
—Se todos meus clientes fossem tão insensatos como você, morreria de fome.
A gravidade da expressão de Hampton se esfumaçou e voltou a ser o apreciado amigo de Vergil.
Resultou que esteve fazendo muito pouco. Hampton não frequentava muito as reuniões sociais, e permanecia um pouco à margem quando ia a elas. As mulheres o achavam melancólico e misterioso, enquanto que os homens o consideravam orgulhoso e aborrecido. Com seu cabelo negro e seus traços perfeitos e afiados, Hampton parecia uma figura desenhada com tinta e pluma por um ilustrador. O problema para a maioria da gente era que a ilustração vinha sem pé.
—Saint John voltou para Londres — disse Hampton— Burchard e eu nos encontraremos com ele no Corbet amanhã. Witherby e os outros provavelmente virão também. Agora que retornou de onde seja que estivesse, por que não se reúne conosco? A Sociedade do Duelo estará completa outra vez.
Estava se referindo ao grupo de homens jovens que se reuniam em Hampstead na academia de esgrima de Chevalier Corbet há cinco anos. Vergil não praticava com eles há meses.
Sua ausência resultava tão estranha porque ele foi o eixo da roda em torno do qual se agrupavam os outros homens. Conhecia Hampton desde a adolescência, e se fez amigo de Cornell Witherby durante a época universitária. Adrian Burchard, filho de um conde, o conheceu nos círculos da nobreza. Inclusive Daniel Saint John, o marinheiro, acrescentou-se à Sociedade do Duelo através de Vergil graças a sua amizade com Penelope.
—Oxalá pudesse, mas devo me encontrar com Dante e levá-lo a Laclere Park. Temos assuntos a atender ali.
—Burchard ficará decepcionado. Esteve te procurando para discutir sobre algo que não quer divulgar. Suponho que se tratará de política.
Se Adrian Burchard estava procurando alguém, logo o encontraria. Adrian era a última pessoa que Vergil desejaria ver interessado em suas atividades.
—Escreverei para ele o convidando a ir me visitar. Espero estar aqui durante vários dias.
—Por que não convida também Witherby? A prolongada ausência da condessa em Londres o tornou melancólico.
—Possivelmente assim se inspire para escrever outra ode. Witherby terá que esperar sua vez. A senhorita Kenwood chegou à Inglaterra, e Penelope a levou ao campo por uma temporada.
—Há algum problema?
Não estava claro se Hampton se referia a Bianca Kenwood ou à forma em que Cornell Witherby estava cortejando Penelope. Embora a primeira não prometesse nada mais que problemas, Vergil também preferiria se livrar do segundo. Ter um bom amigo apaixonado por uma irmã mais velha, especialmente quando essa irmã se acha separada de seu marido, só e vulnerável, era o tipo de situação que podia arruinar uma amizade.
—Não há nenhum tipo de problema. A senhorita Kenwood é encantadora. Estou desejando que a conheça.
Até esse ponto se enredou com suas confusões. Estava mentindo a um homem que conhecia há meia vida.
Hampton desviou a conversa para assuntos de política. Enquanto falavam de liberais e conservadores, as manifestações violentas e as mudanças ocorridas depois da morte do último ministro de Assuntos Exteriores, a mente de Vergil se mantinha ocupada com as questões privadas que o esperavam no campo.
Uma e outra vez aparecia em sua cabeça à imagem de uma moça vestida como uma rainha francesa, desafiando-o com uma excessiva auto-suficiência, e uma bonita perna pendurando por debaixo de uma prega indecorosamente alta.
***
—Sigo sem entender sua impaciência — disse Dante. Jogou a cinza de seu puro através da janela da carruagem— Não vejo a razão de que me fizesse voltar da Escócia. Ela não alcançará a maior idade até dentro de um ano.
Isso significava uma eternidade dada à forma em que Dante calculava seu calendário com as mulheres. Normalmente era capaz de cortejar, seduzir, levar a cama e desprezar duas amantes ao mesmo tempo. Vergil estudou o jovem e belo rosto de seu irmão, seus limpos olhos e seu cabelo castanho escuro. A história de Dante com as mulheres foi quase inevitável com traços como os seus. Vergil viu como damas da mais alta linhagem ficavam sem fôlego quando Dante se aproximava.
—Começa a temporada muito antes de seu aniversário, e com a estreia em sociedade de Charlotte não podemos exatamente ir todos à cidade, e deixar aqui à senhorita Kenwood. Já terão que estar casados então, e não só prometidos.
—Por quê? Você acha que algum caçador de fortunas tomará meu lugar? —O tom de Dante deixava ver que aquilo era absurdo.
«Não, acredito que se ela está casada, poderemos impedir que nem chegue a pisar em Londres se for necessário», pensou Vergil. Só a ideia de ver Bianca Kenwood entre a sociedade educada, tratando duques e condes de senhores e anunciando sua pretensão de estudar ópera era suficiente para deixar seu ânimo pelo chão aquele último dia de agosto.
Mas a pergunta de Dante também aguçava aquela premonição que continuava obcecando-o desde que abandonou a casa de Penelope aquela noite. Seria melhor que Dante acabasse com aquilo enquanto o campo estivesse livre.
Dante o olhou diretamente nos olhos.
—Já estamos quase chegando. Não acha que deveria me dizer isso já?
—Te dizer o que?
—Não me disse grande coisa a respeito da senhorita Kenwood, com quem espero me casar. Encontro-o um pouco suspeito. Depois de tudo, você a conheceu. Ambos sabemos que não tenho outra escolha mais que aceitar, mas se deve me fazer alguma advertência, seu tempo está acabando.
—Se não a descrevi com detalhes, é porque isso seria pouco delicado de se fazer. Não é um de seus cavalos de corridas.
—Não a descreveu absolutamente.
—Muito bem. É de compleição média e esbelta, com olhos azuis.
—De que cor é seu cabelo?
Como diabos ia saber. Que cor de cabelo podia ocultar-se debaixo daquela ridícula peruca?
—Até que ponto é má?
Vergil tinha toda a intenção de advertir Dante, mas não encontrava a forma apropriada de abordar o assunto. Um matiz de culpa coloria suas reflexões quando tentava fazê-lo. Afinal, virtualmente meteu seu irmão naquilo à força. Embora não é que Dante resistisse muito ao saber que em um ano ela receberia mais de cinco mil libras.
—O problema não é seu aspecto. Suas maneiras, entretanto…
—Isso é tudo? Está preocupado por uns poucos enganos de etiqueta? O que esperava? É americana. Pen a preparará em pouco tempo.
Falar de uns poucos enganos de etiqueta não fazia justiça a Bianca Kenwood, mas deixou passar.
—É obvio. Entretanto, ela é… Especial.
—Especial?
—Poderia dizer-se inclusive que é estranha.
—Estranha?
—E possivelmente um pouco… Original. O qual pode remediar-se, naturalmente. Enquanto sustentamos esta conversa Pen a tem em suas mãos.
Através do guichê do carro, Dante olhou mal-humorado a visão da campina de Sussex. Vergil não sabia se continuava, mas quase estavam chegando e mal ficava tempo.
—Necessita mão dura. É um pouco independente, por assim dizer de algum modo. —O olhar de seu irmão deslizou para ele— Independente… Tem alguns caprichos. É por sua juventude, passará.
—Seria de imensa ajuda que pudesse completar sua descrição acrescentando alguma informação a respeito de sua beleza.
Sem dúvida. O problema era que ele não sabia se ela era bela. Só recordava seus grandes olhos, com aquela interessante faísca de inteligência e vitalidade que havia neles.
Que mais podia acrescentar? Toda aquela pintura de teatro ocultava seu rosto. Era provável que sua pele fosse preciosa, mas quem poderia estar seguro antes de ver seu rosto lavado? Também sua silhueta parecia bonita, mas podia ter sido pelo vestido. E fazer algum comentário sobre sua sensualidade… Não era muito apropriado tratando-se da futura noiva de um irmão.
—Maldita seja, se for vulgar não estou disposto a fazê-lo, Vergil. E você não deveria desejar que o fizesse. Além do fato de que ela repercutiria positivamente em mim e minha família, posso ignorá-la virtualmente por completo uma vez que estejamos casados, inclusive poderia ir viver na cidade e deixá-la aqui, que é de fato o que pretendo fazer. E até que se case com Fleur e estabeleça sua própria descendência, coisa que está demorando muito em fazer, eu sou seu herdeiro e essa americana poderia acabar convertendo-se na viscondessa Laclere.
Não necessitava que Vergil enumerasse a seu jovem irmão os obstáculos que o esperavam naquele caminho. Abismos muito mais profundos e numerosos do que Dante imaginava. Um favo desses abismos. Se pudesse pensar em alguma alternativa o teria feito, mas depois de duas semanas considerando distintas opções sempre terminava chegando à mesma conclusão. Era necessário que Bianca Kenwood fosse atada a sua família com correntes indestrutíveis.
Dante mordeu o lábio inferior e voltou a olhar através do guichê com seus olhos de espessas pestanas.
—A renda de seus recursos será minha? Como depositário, você não interferirá? E minha atribuição continuará até o casamento, aumentando como o acordo?
—É obvio. Também prometo continuar dirigindo os investimentos financeiros, como solicitou. A renda dos recursos é segura, mas outros assuntos requerem ser fiscalizados, e eu sei que você odeia essas coisas.
Dante fez um gesto de desdém.
—São coisas sórdidas e chatas. Duvido que valha a pena preocupar-se com elas. Pode vendê-las ou conservá-las, o que achar melhor. Depois de ver como se arrumou após a morte de Milton, seria um idiota se me atrevesse a te questionar.
Viajavam silenciosamente através dos bosques de carvalhos e fresnos que havia atrás de Laclere Park. Vergil preferia esse caminho ao longo horizonte de paisagem que se abria da parte frontal, e sempre dava instruções a seu chofer para que se aproximasse da casa por ali. Normalmente servia como um espaço de transição, uns poucos quilômetros durante os quais se preparava para assumir seu papel de visconde Laclere e confrontar as responsabilidades que este conduzia.
Fez aquele caminho pela primeira vez quando chegou à notícia da morte de Milton; escolheu então aquela longa rota para demorar sua chegada, lutando contra emoções conflitivas e agudos ressentimentos pelas mudanças que suportaria em sua vida a repentina morte de seu irmão.
Foi naqueles bosques onde terminou aceitando aquela nova realidade e suas correspondentes restrições. Não chegou nem a intuir até que ponto complicaria sua vida a morte de seu irmão. Restrições, mistérios e decepções o estavam esperando ao final daquela viagem.
De repente Dante se inclinou sobre a janela. Afiou o olhar.
—Que diabos…?
—Algum problema? —Vergil afastou um pouco a cabeça de Dante para poder aparecer a sua através da janela aberta.
—Ali, no lago. Espera, há árvores que nos tampam a vista. Agora. Essa não é Charlotte?
As árvores eram mais magras agora que passavam em frente do lago. Duas mulheres estavam se banhando, rindo e salpicando-se. Virtualmente nuas, pois suas roupas se tornaram transparentes pela água. Diabos, sim, era sua irmã pequena, Charlotte, com aquela criada, Jane Ormond.
Um terceiro corpo feminino emergiu de repente da água. A roupa empapada se aderia a sua pele a obscurecendo um pouco. Bonitos ombros… Umas costas que ia se estreitando… Uma pequena cintura… Gráceis quadris… Finalmente os topos de suas encantadoramente arredondadas nádegas apareceram à vista. Uma larga cabeleira loira se desdobrou em um leque sobre a água para aferrar-se depois a aquele corpo em espessa queda de uma cabeça bem formada.
Seus esbeltos braços começaram a golpear a superfície da água, criando ondas na direção de suas companheiras de jogo. As outras duas gritaram e empreenderam um maciço contra ataque de salpicaduras, enviando jorros de água ao redor dela até que acabou parecendo uma imagem emergente em meio de um sonho de bruma.
Ela lançou um chiado de jubiloso protesto. Rindo, deu a volta para responder ao ataque.
Vergil não podia estar seguro de que aqueles grandes olhos azuis viram passar o carro com seus dois atônitos ocupantes. Mas o certo é que ela se deteve, cobriu os peitos com um braço e deslizou a outra mão até o triângulo de sombra que havia justo entre suas coxas. Durante um breve instante antes de dar a volta e voltar a afundar-se na água, adotou a pose da Vênus de Botticelli, uma deusa de rosto adorável e formas luxuriosas, jorrando água, ainda virginal e pudica, mas já amadurecida e apaixonada. Aquela mescla de instinto protetor e desejos eróticos que Vergil experimentou na sala de jogos ressurgiu com força.
Ele e Dante se recuperaram ao mesmo tempo. Endireitaram-se e se afundaram em seus assentos.
Seu irmão o olhou com suspicacia.
—O que era isso?
—Não estou totalmente seguro, mas acredito que era a senhorita Kenwood.
Dante fechou os olhos e apoiou a cabeça contra o respaldo do assento.
—Deixe assegurar que entendi minha posição, Vergil. Tenho que me casar com isso? Tenho que me sacrificar no altar pelo deus da estabilidade financeira e ser forçado a ter como companheira durante o resto de minha vida essa fêmea que acabamos de ver? Uma garota tão especial, estranha e independente que se banha quase nua diante da estrada a plena luz do dia e influência nossa irmã a fazer o mesmo? Você pretendia me coagir, achando necessária a ameaça de retirar minha atribuição? Ela é a noiva que escolheu para mim?
—Sim. —Realmente não havia nada a acrescentar.
Dante manteve sua pose pensativa durante um longo tempo. Seus olhos se abriram. Uma limpa simpatia brilhou neles. Um sorriso muito masculino apareceu lentamente.
—Obrigado.
***
—Muito bem, Pen. Muito bem.
Penelope ruborizou com um tom rosado ainda mais intenso que o que sua pele tinha adquirido enquanto ele explicava sua história.
—Não me jogue a culpa. Não podia imaginar uma coisa assim. Ela foi uma hóspede da mais cortês. Seu comportamento não resultou inapropriado absolutamente. Ao menos até onde eu sei.
Acompanhou esta última observação de uma pequena careta. Penelope era suficientemente inteligente para reconhecer que a escapada desse dia era uma amostra de que ela não conhecia as atividades da senhorita Kenwood em todo seu alcance. Vergil imaginou toda uma série de escandalosos episódios tendo lugar sob o nariz da confiada Penelope.
—Durante sua estadia aqui parecia sentir-se como um peixe na água.
—Dadas as circunstâncias, «como um peixe na água» não é a melhor expressão que possa escolher Pen.
Pen abaixou a cabeça, envergonhada e sem forças ante a acusação. Dante deu uma palmada em seu ombro para consolá-la. Era simplesmente incapaz de imaginar o pior, e era sempre muito pormenorizada.
Bianca Kenwood provavelmente se deu conta em seguida de como era Penelope e tirou vantagem disso.
O que a senhorita Kenwood precisava era uma tia similar a uma velha harpia cheia de caráter que não permitisse desafiá-la, capaz de fazer tremer às moças jovens com seu olhar de aço e cujas estritas advertências provocassem uma imediata submissão.
Desgraçadamente, essa tia não existia.
—Talvez banhar-se assim seja normal na América.
—Por favor, Pen.
—Falarei com ela, e darei em Charlotte uma boa reprimenda.
—Não fará tal coisa.
—Pretende fazê-lo em meu lugar? Oh, Vergil, desejaria que não o fizesse. Seu rosto adquire uma expressão muito peculiar cada vez que se menciona seu nome. Suspeito que te vê como o guardião de um cárcere, e se for assim, o pior que pode fazer ao voltar a vê-la é lhe dar uma lição de comportamento…
—Não direi uma palavra sobre este assunto. Ninguém o fará. E tampouco a Charlotte. Mencioná-lo seria admitir que Dante e eu fomos testemunhas do ocorrido. —Não se atrevia sequer a contemplar a ideia dessa confrontação. Reconhecer o fato suporia ter que confrontar uma embaraçosa e difícil… Intimidade— Não temos mais remédio que ignorar o que aconteceu. Falarei com Charlotte em termos gerais para evitar que se deixe influenciar.
Dante se uniu a eles, com aspecto de estar contente e sentindo-se mais fresco ao mudar de roupa. Levava um traje delicioso perfeitamente engomado. Seu rosto estava cheio de espera sob seus cabelos cuidadosamente despenteados, um pouco compridos como marcava a moda romântica.
—É muito amável por sua parte se reunir conosco durante uns poucos dias — disse Penelope, levantando-se para lhe dar um beijo.
—Às vezes posso sentir falta da família, Pen. De fato, é provável que fique pelo menos uma semana. Sim, ficarei uma semana. —A piscada que lançou a Vergil fez com que Penelope franzisse o cenho com curiosidade.
Vergil devolveu um olhar reprovatório. Penelope não sabia nada a respeito dos planos que eles tinham em relação à senhorita Kenwood. Além disso, por alguma razão, a confiança em si mesmo que demonstrava seu irmão o irritava.
—Uma semana inteira? Isso é maravilhoso, Dante, e muito amável por sua parte. Sei quanto odeia o campo se não houver um bom esporte.
—Bom, Pen, há esportes e logo há esportes. Disseram-me que Verg comprou um novo cavalo que precisa domar e me senti obrigado a ajudá-lo, já que tenho tão boa mão com os animais e é, além disso, um presente para mim.
—Um cavalo novo? Vergil, não me disse nada.
—Chegará dentro de uns dias — murmurou ele. Que inteligente por parte de Dante. Desfrutar da metáfora e de passagem sair ganhando um cavalo. Não era uma metáfora tão má. A senhorita Kenwood tinha um ar menos de inacabada que de indômita. Era típico de Dante que tivesse fichado uma mulher em poucos segundos a uns sessenta metros de distância, e se deleitava no desafio que o estava esperando. Não era assombroso que parecesse tão insuportavelmente feliz.
A égua em questão se uniu a eles ao final de pouco tempo, chegando junto a Charlotte acompanhada de um fraco rangido de anáguas. Charlotte estava tão encantadora como de costume, sua elegância de magro salgueiro ainda ficava suavizada por sua inocência infantil. Junto ao cabelo negro, a pele branca e o vestido rosa pálido de Charlotte, Bianca Kenwood exalava um ar de senhorita de campo.
Seu vestido azul era um pouco antiquado e pouco atrativo. Sua pele tinha um bronzeado fora de moda, mas a ideia que fez de sua irrepreensível beleza foi acertada. Seu cabelo loiro dourado estava recolhido em um simples coque que enfatizava sua feminina, mas firme mandíbula destacando o contorno da parte inferior de seu rosto, com forma de coração. Dificilmente se ajustaria à definição de beleza da moda, mas possuía uma formosura singular, transbordava saúde e se movia com uma elegância amadurecida.
Dante a estudou com olhos calculadores durante um breve instante antes que Penelope o chamasse para apresentá-lo. Esse exame fez com que Vergil se sentisse incômodo. De repente se sentia sujo por aquele negócio. Ridículo. Semelhantes acertos se faziam todo o tempo, e frequentemente com menos sutileza.
Dante avançou para sua presa. Seu êxito com as mulheres estava mais no magnetismo do que na perseguição. Certa dama confessou uma vez a Vergil que quando Dante olhava uma mulher nos olhos esta se sentia como se ele pudesse ler sua alma e seus cuidados a deixavam sem respiração.
Se fosse assim, pelo visto a alma de Bianca Kenwood não era fácil de observar. Respondeu à saudação de Dante com soltura e não pareceu ficar sem respiração absolutamente. Vergil não pôde deixar de admirar seu aprumo, apesar de que o plano seria que ela caísse apaixonada por Dante a primeira vista.
—E recorda Vergil — acrescentou Penelope rapidamente, fazendo um gesto em sua direção.
—Dificilmente poderia esquecer o senhor Duclairc. Estou encantada de voltar a lhe ver. Possivelmente antes que se vá possamos ter uma conversa.
—É obvio, se assim o deseja.
Oh, desejava-o. Esteve guardando palavra após palavra há duas semanas. Dificilmente poderia ter enterrado seu ressentimento ante a imperiosa intromissão que a enviou até ali.
Deu-se conta de que o estava olhando com raiva, e de que todo mundo estava observando que o fazia.
—Está encontrando agradável sua estadia aqui? —perguntou Dante, guiando-a para o sofá.
—Muito agradável, obrigado.
Sentou-se ao lado dela, dedicando toda sua atenção. Era um homem bonito, mas um pouco delicado em suas formas e em seu rosto, como se Deus, ao esculpir os ossos de seu irmão mais velho tivesse esgotado seus melhores materiais e tivesse logo que arrumar-se com o resto. Formosos olhos marrons a contemplavam sob uns volumosos cílios. Uma faísca de familiaridade um tanto inapropriada brilhava neles.
Sim, eles as viram. Discutiu isso com Charlotte que não havia ninguém olhando no carro que passava. Em realidade, por um momento acreditou ver uns rostos espionando-a, mas ao comprovar que ninguém dizia nada horas depois de sua volta, simplesmente supôs…
—Assim leva o nome do poeta italiano — disse, sentindo-se muito desconfortável ante a ideia de que Vergil Duclairc a tivesse visto virtualmente nua. Curiosamente, o fato de que aquele seu irmão também a tivesse visto não importava muito.
—Foi uma desafortunada ideia de meu pai. Dava-se ares de poeta épico e pôs em seus filhos os nomes dos melhores. Nosso irmão mais velho se chamava Milton.
—Podia ter sido pior. Podia ter escolhido os nomes dos herois em lugar dos nomes dos autores.
Charlotte riu.
—Teria sido horrível. Ulisses, e Eneas e coisas assim.
—Ou poderia ter se motivado pelas histórias de Camelot que mais tarde o fascinaram tanto — acrescentou Dante— Lancelot, Gawain e Galahad.
Brincaram com aquela ideia durante um momento, e Penelope se uniu a eles. O homem que permanecia junto à janela não o fez, mas Bianca notou que seguia as brincadeiras com maior interesse do que seus olhares ocasionais pareciam revelar.
Podia ver seu adversário claramente de sua posição. Possuía uma figura refinada, era alto e magro, mas seus ombros e suas pernas sugeriam mais força da que era claramente visível. Naquele momento não tinha um olhar de desgosto, sim, era bastante bonito com seus ossos marcados, como cinzelados com certa aspereza. Seus olhos azuis surpreendiam penetrantes sob suas sobrancelhas escuras.
Eram penetrantes agora, que acabavam de descobri-la olhando-o. Ela dirigiu sua atenção a Dante, conseguindo —ou ao menos assim esperava— não ruborizar-se. Tinha a incômoda sensação de que durante aquele olhar o visconde estava recordando o que viu no lago.
Dante acabava de dizer algo. Ela respondeu com uma pergunta, retornando incômoda ao bate-papo banal típico da casa.
—E você o que faz?
Enfrentou-se a um silêncio total.
—Fazer? —repetiu Dante depois de contar até dez.
—Seu irmão é um membro do Parlamento, conforme entendi. Qual é sua ocupação?
Charlotte riu. A mandíbula de Vergil parecia mais rígida que de costume, mas uma faísca de brilho apareceu em seus olhos quando deu a volta para prestar toda a atenção em seu irmão.
Dante sorriu.
—Sou um cavalheiro.
—Jamais sugeriria o contrário, mas qual é seu emprego?
—Quando meu irmão diz que é um cavalheiro não está evitando sua pergunta, senhorita Kenwood. Está respondendo — explicou Vergil.
Em outras palavras, ser um cavalheiro significava que não tinha um emprego remunerado. A refinação do homem que havia a seu lado de repente pareceu tão estranha como os índios que viu em uma ocasião quando sua mãe percorria os povos próximos à fronteira. Era outro exemplo do que tia Edith queria dizer quando a advertiu que encontraria aquele país familiar em certas coisas, mas muito estranho em outras.
—Sem dúvida terão cavalheiros nos Estados Unidos — disse Penelope.
—Temos homens de grande riqueza e posição. Há fazendas tão grandes como esta. Mas um homem que não trabalha… Enfim, é considerado como quase pecaminoso.
Imediatamente desejou não tê-lo expresso dessa forma, embora pensasse que tanta indolência era uma evidência de uma séria falta de caráter. Não desejava insultar aquelas pessoas, com três das quais não teve nenhuma discussão.
A única com quem sim teve uma discussão rompeu o incômodo silêncio.
—Que pitoresco. Mas afinal de contas, seu país é ainda jovem.
Vindo de qualquer dos outros o teria deixado passar.
—A velha Inglaterra está aprendendo que há força na juventude.
—Refere-se a nossa última guerra. Uma escaramuça menor. Teria acabado de modo distinto se Napoleão não nos tivesse deixado tão ocupados.
Por alguma razão, com muita dificuldade, ela conseguiu manter um tom civilizado.
—Meu pai morreu nessa escaramuça, senhor Duclairc.
Fez-se outro silêncio tenso. Penelope sorriu fracamente e se levantou.
—Por que não pensamos em comer?
Dante tentou monopolizar a atenção de Bianca durante o almoço. O visconde não falou muito. Em várias ocasiões em que deu uma olhada o surpreendeu esquadrinhando-a, como se estivesse se perguntando o que era o que tinha diante. Nada mais que problemas, ela gostaria de advertir. Realmente deveria me enviar de passeio de uma vez por todas.
Ela estava decidida a abordá-lo depois do almoço para esclarecer coisas, mas Vergil se retirou, depois de desculpar-se, logo que voltaram para a sala de estar. Dante, entretanto, ficou unindo-se a elas para jogar cartas.
O moço elogiou o jogo de Bianca mais do que seu talento merecia. A familiaridade crescia com o passar das horas e os sorrisos de Dante começaram a adquirir uma calidez perturbadora. Ela começou a suspeitar que Vergil a estava evitando e usava Dante para distraí-la.
—Onde está o visconde? —acabou perguntando a Charlotte— Talvez goste de me substituir.
—Estará na biblioteca, suponho. Ou em seu escritório.
Bianca se levantou.
—Me desculpem. O convidarei a unir-se a nós.
Não esperou que dessem permissão; atravessou a sala de estar e se encaminhou pelo corredor para a biblioteca.
Ele estava ali, sentado ante o escritório examinando uns papéis. Levantou a vista ao ouvi-la entrar e ficou de pé.
—Parece surpreso em me ver. Cometi um engano? Supõe-se que devia ter pedido uma audiência? —perguntou.
—É obvio que não. Supus que meu irmão e minhas irmãs a manteriam entretida toda à tarde, isso é tudo.
—As cartas não me divertem muito tempo se me dão de presente todas as mãos. Se estivéssemos jogando por dinheiro, a esta altura já teria ganhado toda a fortuna de seu irmão. Decidi dar um descanso a seu orgulho e generosidade.
—Somente está tentando fazer com que se sinta bem recebida. Entretanto, me alegro de que tenha me procurado. Quero me desculpar por meu imprudente comentário na sala de estar. Devia ter tido em conta a possibilidade de que tivesse sofrido nessa guerra. Não pretendia menosprezar o sacrifício de seu pai.
A sinceridade com que se expressou a deixou desarmada. Não parecia tão severo como de costume.
—Possivelmente agora entenda por que não desejo prolongar muito minha visita a este país, senhor Duclairc, e por que não quero formar parte da sociedade para a qual sua irmã tenta me preparar. Queria retornar a Londres o antes possível para me ocupar de meus assuntos.
—A guerra terminou faz tempo, senhorita Kenwood. Nossos países voltam a ser amigos. Quanto a seus assuntos, estou me ocupando deles em seu lugar — disse esse último com um firme sorriso que parecia indicar que considerava pouco recomendável dirigir a conversa nessa direção.
—Está me convencendo de que cometi um engano vindo à Inglaterra. Deveria ter seguido minha primeira inclinação e dizer ao senhor Williams que vendesse os investimentos que herdei.
—Isso não pode fazer-se. A maior parte de seu patrimônio pertence a um fundo de investimentos. A menos que se faça uma solicitação ante o tribunal de Chancery, o qual é um processo muito longo que levaria anos, é impossível romper os termos desse fundo de investimentos.
—Isso ele me explicou. Minha segunda ideia foi então arrumar as coisas para que me enviasse a renda a Baltimore.
—E por que não o fez? Especialmente tendo em conta que nos acusa de está-la prejudicando.
—Como expliquei em Londres, tinha razões para vir.
—Sim, suas aulas de ópera. —Seu tom transmitia o alívio que sentia ante o fato de que esses planos tivessem fracassado.
Mas necessitaria mais que a desaprovação daquele homem para fazê-los fracassar de tudo. Esses planos continuavam vivos, e ela estava desesperadamente impaciente por fazê-los progredir.
—Sejam quais sejam minhas razões, estou na Inglaterra por um curto período de tempo e tenho interesses que não podem ser satisfeitos enquanto permaneça nesta casa. Não aceito sua intromissão. Não necessito um guardião.
—Tendo em conta como a conheci, acredito que é óbvio que sim o necessita. E hoje não tem feito nada que possa me fazer mudar de ideia.
Estava se referindo ao lago. Em realidade não houve nenhuma mudança em sua expressão, mas aquele provocador murmúrio formou redemoinhos entre eles. Entrou no corpo de Bianca fazendo que seus membros estremecessem. Sim, a viu com aquela roupa empapada. E apesar de sua aparência desapaixonada, naquele momento estava vendo-a outra vez.
Por um instante, em seus olhos se acendeu um brilho que indicava que ele era consciente de que ela sabia. Esse reconhecimento acrescentou um matiz perigoso a sua masculinidade. De repente ela se sentiu em desvantagem e teve que lutar para recuperar sua indignação.
—Não consigo compreender por que você insiste tanto em complicar a minha vida.
—O testamento de seu avô cedia a responsabilidade ao visconde Laclere. Ia destinado ao meu irmão, mas dado que não mudou o testamento depois da morte de Milton, me corresponde. Eu não evito meus deveres, não importa quão problemáticos possam chegar a ser.
—Eu o libero de seu dever. E agora peço que me permita partir para Londres amanhã pela manhã.
—Não.
Ela esperava ouvir algo mais, mas nada mais foi acrescentado. Aquela palavra foi sua única resposta. Não.
Ela o observou, procurando o modo de ganhar aquela estúpida batalha. Devolveu o olhar como um general que é consciente da superioridade de seu exército.
Ela deu a volta. Em uns poucos dias esperava que chegassem seus reforços. Morria de impaciência por jogá-los contra ele.
—Senhorita Kenwood, se você voltar para a sala de estar, tenha a amabilidade de dizer a Charlotte que venha ver-me antes de retirar-se.
***
Bianca subiu a escada e deu uma volta através da enorme casa de estilo gótico até chegar a seu quarto. Era o dormitório mais longo e luxuoso que jamais havia usado, com um espelho emoldurado em ouro e móveis de madeira belamente esculpidos. Jane se aproximou dela para começar a desabotoar o vestido, ao mesmo tempo em que mexericava a respeito dos criados e arrendatários. Aquele mundo mais vulgar soava mais interessante que esse outro no que Bianca passou seus últimos dias.
As últimas duas semanas pareciam dois meses. Davam passeios. Arrumavam as flores. Trocavam visitas com vizinhos que ela não conhecia. Falavam sobre moda e sobre quem era quem na alta sociedade. Tudo enquanto Pen instruía à americana selvagem para ensiná-la a expressar-se e comportar-se adequadamente na Inglaterra.
Bianca chegou ao ponto de invejar os criados ocupados em polir a prata. Finalmente teve algumas ideias para romper a monotonia.
Charlotte apareceu justo quando Bianca já vestia sua bata. Teve um pequeno bate-papo com seu irmão.
—Não disse nenhuma palavra sobre o lago. —subiu à cama de um salto enquanto Jane começava a escovar o cabelo de Bianca— Em realidade o que queria era falar de você.
—De mim?
—Perguntou o que esteve fazendo. Não o disse dessa forma, claro. Quis saber se estava contente e com o que se entretinha.
«O maldito intrometido…»
—Acredito que sabe o do lago e joga a culpa em você, e quer saber se tem estado fazendo alguma outra coisa escandalosa.
«Maldito arrogante, pretensioso…»
—Depois me deu um sermão. Explicou que me criaram de um modo diferente e permitiram a você mais liberdades do que era apropriado, e que eu não devia me deixar influenciar por você e fazer coisas que não fossem apropriadas. Contei ao menos dez vezes a palavra «apropriado» antes que terminasse. Prometi a ele que me comportarei de maneira muito correta enquanto esteja aqui. —Charlotte sorriu— Acredito que tem ao santo de meu irmão muito preocupado.
Bianca não sabia o que dizer. Foi criada de um modo distinto, e permitiram mais liberdades das que Charlotte jamais chegaria a conhecer, mas não havia nada inapropriado nisso, tão somente pouco convencional, inclusive tendo em conta os costumes americanos. Além disso, ela planejava uma vida destinada a ser pouco convencional, mas não inapropriada, apesar de que Vergil Duclairc assumisse o contrário.
Charlotte se recostou na espaçosa cama.
—Estou encantada de que Dante veio nos visitar. Não o faz frequentemente. Prefere Londres. —Levantou o olhar com astúcia— Se supõe que não sei, mas acredito que tem uma amante ali. Este último ano venho intuindo que meu irmão é um pouco canalha. Você o que pensa? Acredita que Dante é um mulherengo?
—Não saberia dizê-lo — respondeu Bianca, embora adivinhasse que Dante era um autêntico mulherengo. Pensou, além disso, que aquele mulherengo a viu virtualmente nua e que passou a tarde lhe dirigindo intensos olhares e calorosos sorrisos.
—Sempre pensei que Vergil poderia parecer um bom mulherengo também, sempre e quando alguém não o conhecesse. Tem aspecto de ser, mas claro… Ele é tão correto. Esteve cortejando Fleur durante um ano e nunca o vi fazer nada mais que lhe tocar a mão.
Bianca ouviu falar da perfeita, etérea e saudável Fleur, que supostamente era a prometida de Vergil. Logo esperavam uma visita dela e de sua mãe.
Bianca não tinha intenção de seguir ali quando viessem.
—Charlotte, esta é a única propriedade que tem sua família?
—Há outras aqui em Sussex, mas ninguém as visita salvo Vergil. Não estão em muito bom estado. Papai não cuidou bem de algumas coisas. Estava tão ocupado com seus escritos e depois com a reconstrução desta casa. Vergil tem também um imóvel no norte. É sua parte da herança de nossa mãe.
—Vivem alguns parentes nesses outros lugares?
—Não há mais parentes ali, ou ao menos não há parentes dos que estejamos perto. Papai tendia a encerrar-se e perdemos o contato com eles enquanto vivia. Milton também era um pouco estranho. Vergil não é o menos excêntrico, e não reavivou os laços.
Não havia parentes próximos. Nenhuma tia, nem prima que pudesse fazer cargo de uma pupila errante.
—Acredito que meu irmão gosta de você — disse Charlotte.
«Que irmão?» Bianca reprimiu a impulsiva pergunta antes que saísse de sua garganta, surpreendida pelo sobressalto de excitação que a acompanhou.
—Estou segura de que simplesmente se sentia obrigado a me entreter.
—É muito estranho que Dante se sinta obrigado a fazer algo. Deixou-te ganhar nas cartas e não parou de te sorrir.
—Equivoca-se, mas se estiver certa e é um mulherengo, dificilmente poderia me sentir adulada.
—Oh, não tem que preocupar-se por isso. Sabe que é a protegida de Vergil e nossa convidada. —deslizou da cama— Será melhor que vá dormir. Dante nos levará a um passeio amanhã. Será divertido. É um perito com o látego e sempre conduz muito rápido.
—Também nos acompanhará o visconde?
—Não se preocupe, não vai danificar nossa diversão. Quando nos levantarmos, ele já viveu um dia completo. Levanta-se a alvorada, para ocupar-se dos assuntos da fazenda.
Quando Charlotte se foi, Bianca se sentou sobre a cama abraçada a seus joelhos.
Assim Vergil Duclairc se preocupava que a senhorita Kenwood pudesse supor uma má influência para sua irmã. Advertiu Charlotte que tomasse cuidado. O que faria aquele santo se chegasse a convencer-se de que a senhorita Kenwood não só era um pouco diferente, mas também muito pouco convencional e inclusive algo selvagem?
Não haveria outros parentes a quem enviá-la e resultaria muito perigoso tê-la ali. Não haveria mais remédio que romper todos os vínculos sociais e deixá-la seguir seu caminho. Seria a única decisão responsável para um irmão responsável.
Se asseguraria de que esse visconde concluísse que sua presença e influência naquela casa era totalmente inaceitável.
—Jane, quero que tome emprestados para mim alguns objetos dos criados. Dos homens concretamente.
Capítulo 3
Vergil pegou as botas limpas que oferecia Morton e as pôs. Aceitou o linho engomado e com destreza atou seu lenço com um nó conservador. Morton lhe sustentava o traje negro de montar.
Esses preparativos matinais eram uma rotina tanto em Laclere Park como em Londres, e Vergil os seguia de forma instintiva enquanto organizava em sua mente seus planos e deveres. Continuava se surpreendendo que não tivesse nenhuma dificuldade em abandonar certos detalhes ou hábitos quando as circunstâncias o requeriam.
Mal tinha amanhecido quando saiu pela porta e caminhou através do rocio até o estábulo. Preferia aquele silêncio, aquela solitária forma de cavalgar para romper o dia antes do circuito oficial que teria que fazer mais tarde com seu agente imobiliário. Era um dos poucos hábitos que tinha conservado de seus anos livres como segundo filho. Às vezes recuperava aquela crença juvenil nas oportunidades sem limites que permitiu então sua insignificância. Podia simplesmente ser, não o senhor vigiando seus domínios, a não ser unicamente um homem que cavalgava através do campo, admirando sua beleza e sonhando ao ritmo da vida.
Do estábulo chegavam sons. George, um moço do estábulo ruivo e rechonchudo, ria enquanto um moço mais jovem vestido com calças de montar e chapéu de palha murmurava alguma coisa. Juntos ajustavam as bridas a uma égua de cor castanha.
George ouviu as pisadas de Vergil e se virou ruborizado.
O menino mais jovem simplesmente ficou rígido. Vergil notou algo familiar naquelas costas esbelta, e se precaveu da forma peculiar em que as calças se esticavam sobre a curva das nádegas. Viu aquelas formas antes, emergindo nuas da água.
—Senhorita Kenwood, vejo que você também cavalga cedo.
Ela se voltou despreocupadamente, como se ninguém devesse se surpreender de encontrá-la nessa situação por usar calças de montar todos os dias. Talvez fosse assim. Quem podia sabê-lo? Pen, Charlotte e Dante provavelmente não sairiam de seus quartos até meio-dia.
—Pensei que seria agradável sair para cavalgar pela manhã. —Ajustou o freio como alguém que sabia o que estava fazendo.
—George se ofereceu a te acompanhar? Que cavalheiresco por sua parte.
—Tinha intenções de cavalgar sozinha.
—Bom, não podemos permiti-lo a uma hora tão inoportuna. Entretanto, pode cavalgar comigo. —Examinou a égua— Cometeu um engano, George. Se este animal for para a senhorita Kenwood, necessitará uma cadeira de mulheres. Depois pode preparar meu cavalo. Esperaremos fora.
Bianca caminhou para o pátio com ele. Ele retrocedeu um pouco na luz chapeada da manhã e percorreu um metro e sessenta e cinco de moléstia com seu olhar.
Sua camisa de algodão formava uma bolsa em torno de seu corpo, mas mesmo assim revelava o inchaço de seus peitos. As calças de montar penduravam folgadas de suas coxas até as botas, onde se introduziam, mas não eram folgadas em nenhum outro lugar. O chapéu de palha sobre sua testa enfatizava seus olhos.
Tinha todo o aspecto de uma mulher provocadora e de má reputação.
Caminhou para frente e golpeou a perna com o látego. O ligeiro picor o distraiu do impulso de… Nada que pudesse contemplar e sem dúvida nada que pudesse nomear.
—George demorará a preparar os cavalos. Volta para seu quarto e troque de roupa.
Ela baixou as pálpebras ante aquela ordem. Ele esperava que ela resistisse. Que demônios faria ele então? Ninguém debaixo de sua autoridade nunca o havia desafiado, e menos uma mulher. Por sorte, ela deu a volta e caminhou a grandes pernadas em direção à casa.
Ele retornou ao estábulo.
—A senhorita Kenwood cavalga sozinha frequentemente? —perguntou ao George.
George deu de ombros.
—Só estas últimas manhãs, milord. Ouvi um ruído aqui a semana passada e a encontrei selando essa égua, por isso a ajudei.
—E sua indumentária?
—Chegou com essa roupa esta manhã. Tem sentido, porque sempre cavalga escarranchada. É uma boa pessoa, só que com uma mentalidade um pouco livre para este lugar. São diferentes, os americanos. Falam como se o conhecessem de toda a vida. —inclinou-se para revisar uma ferradura.
—Sim, são diferentes. Não me deixe suspeitar que interpretou mal essa familiaridade.
George lançou um olhar de horror como se a insinuação fosse muito escandalosa para ser considerada. Vergil pegou as rédeas da égua e a levou até o pátio.
A senhorita Kenwood saiu da casa justo quando George tirava fora o cavalo castrado de Vergil. Levava uma bata de montar violeta de corte austero e com poucos adornos. Sobre seu penteado formal se encarapitava uma alta cartola, cuja borda roçava suas sobrancelhas.
—Onde tinha planejado cavalgar? —perguntou ele assim que estiveram montados.
—Oh, simplesmente queria dar um passeio pelos arredores.
Ele a conduziu através do parque. Ela não deixava de queixar-se por sua posição na cadeira de montar. Escorregava por ambos os lados olhando as pernas com o cenho franzido.
—Não está acostumada a isto?
—Não vivia nas margens da civilização. Também em Baltimore as mulheres fazem coisas horríveis e perigosas.
—Ali cavalgava escarranchada?
—Sim. —Olhou-o com atitude desafiante, depois sorriu de maneira zombadora— Tia Edith me proibia montar à inglesa a menos que avançasse a passo de tartaruga, e eu não me sentia inclinada a fazê-lo. Ela sabia de muitas mulheres que caíram da cadeira de montar quando cavalgavam rápido.
—E como reagia as pessoas quando cavalgava escarranchada através da cidade, com calças de montar e com botas?
—Se não fosse à sobrinha-neta de tia Edith, alguns teriam se escandalizado. Ninguém se atreve a atacá-la. Quando era moça participou ativamente em nossa guerra da Independência. Conhece todos os grandes homens daquela época. Se um presidente fizer visitas a uma mulher, ninguém se atreve a criticá-la muito.
—Parece uma mulher muito interessante. É uma lástima que não tenha te acompanhado nesta viagem.
—Se não fosse à idade, o teria feito. Estaria agora ali atrás, exortando George para que compreendesse que ele é igual aos outros moços e não deveria curvar-se ante ninguém.
—A Inglaterra não necessita radicais importados. Estamos criando muitos de produção própria. E não é que George se encurve. Retrocedeu porque sabe que levanta suspeitas sobre um homem o fato de que esteja a sós comportando-se de maneira tão familiar com uma dama jovem, especialmente a uma hora como essa.
—Já vejo. Entretanto, você é um homem e agora está a sós comigo, não? Isso é suspeito?
A insinuação o deixou desconcertado. O sorriso zombador da senhorita Kenwood era um indício de que não se achava ante uma escolar ingênua que permanecia ignorante sobre o que podia ocorrer entre um homem e uma mulher juntos e sozinhos durante horas.
—Sou seu tutor. É como se fosse seu pai.
Ela se pôs a rir a gargalhadas, melodiosas como o timbre de sua voz.
—Que o céu me ampare, senhor Duclairc. Com um pai como você teria me convertido na mais aborrecida das mulheres.
—Quer dar a entender que os pais aborrecidos criam filhas aborrecidas?
«Está insinuando que sou um homem aborrecido, uma espécie de bagagem molesta?» O desejo de demonstrar até que ponto podia deixar de ser aborrecido penetrou em sua mente desde que a tinha visto no estábulo.
—Não, senhor. Simplesmente acredito que os pais estritos criam filhas de mente muito estreita.
—Concluo que sua educação, menos ortodoxa, salvou-te de ter uma mente estreita.
Ela posou seus grandes olhos azuis nele durante um momento, observando-o como se fosse capaz de ver as noites e inapropriadas imagens que avançavam sigilosamente em torno das bordas de sua mente ao aludir impulsivamente essa indiscreta questão. O impacto daquele olhar nu foi tão assombroso como se ela acabasse de acariciar sua coxa.
—Tive experiências no mundo, senhor Duclairc, e por isso minha mente não é estreita. Quando meu pai morreu, minha mãe teve que manter-se e me manter, por isso voltou a cantar. Eu tinha onze anos então, e durante os seis anos seguintes vivemos uma vida errante, viajando uma grande parte do ano.
«Experiências no mundo.» Bianca devia ter dezessete anos ao morrer sua mãe, uma garota bonita viajando na companhia de uma mãe cuja profissão sem dúvida implicava tratar com homens.
—Minha opinião teria sido que o acertado seria te deixar com sua tia, em vez de te arrastar por cidades e povos estranhos.
—Ah, sim? Essa teria sido sua opinião? —Ela estava sugerindo que ele era tão previsível que essa opinião não a surpreendia absolutamente— Eu não teria insistido em ficar, não depois de perder meu pai. Minha mãe necessitava alguém que cuidasse dela. Não era uma mulher muito prática. Tocava-me assegurar que chegasse de um lugar a outro.
—Um estranho papel para uma menina.
—Não fui menina por muito tempo, e não é que estivesse planejado que me encarregasse dessas coisas. Simplesmente o fazia porque ela era muito torpe organizando as viagens.
«Não fui menina por muito tempo.»
—A vida deveria ser muito aborrecida quando foi viver com sua tia.
—Estava preparada. A morte de minha mãe acabou com minha vitalidade, e precisava estar um tempo instalada em um lugar para pôr as coisas em seu lugar. Só quando tia Edith contratou para mim um professor de música comecei a recuperar meu estado normal.
Vergil imaginava. Aquela menina precoce com sua mãe caprichosa, organizando o valor a ser pagos pelos concertos nas Igrejas e nos pequenos povoados. Os papéis estariam invertidos e aquela pequena garota loira se encarregaria de negociar pelo transporte e de administrar os recursos, emocionante, possivelmente, e sem dúvida uma experiência que a faria amadurecer.
Entretanto, não era uma infância normal. Não teve horas de brincadeiras despreocupadas e, provavelmente, tampouco teria amigos. Sem mais amparo, nem segurança que a que ela mesma pudesse procurar. Sentiu certa compaixão por ela e admirou sua força, apesar de que essa força prometesse ser um inconveniente.
Seu passeio distraído os levou até a parte sul do lago e deram a volta para retornar. A senhorita Kenwood parecia irritantemente indiferente ante o fato de achar-se no mesmo lugar onde no dia anterior foi tão indiscreta.
—Nossa família viveu aqui desde o tempo dos normandos — explicou ele, decidindo que devia impressioná-la com a história da família e prepará-la para os cuidados de Dante— Tanto nosso nome como o da fazenda provêm destas águas. «Lago claro.» Duclairc é uma junção de du clair lac, igual é Laclere.
—Tempos dos normandos. Naqueles tempos, os antepassados dos Kenwood provavelmente viviam em cabanas.
—Bom, o dinheiro tem seu modo de nivelar essas diferenças.
—Que ideia tão democrática, senhor Duclairc. Quase americana.
Ele entrou pelo caminho que conduzia para as granjas.
—Pode parar com isso. Já foi suficiente.
—Parar com o que?
—Senhor Duclairc.
—Não pretendia ofender. Tia Edith me fez prometer que não faria reverências a nenhum aristocrata, nem sequer ao rei.
—Seus diplomatas se adaptam aos costumes quando vêm a este país, como o fazem a maioria dos visitantes.
—Eu não sou uma diplomata. E tia Edith…
—Sim, sim, a revolução e tudo isso. Se se dirigir a mim como lorde Laclere conjura o fantasma de Washington, pode me chamar simplesmente Laclere.
—Que generoso por sua parte. Então possivelmente você poderia me chamar Bianca.
Ele preferiria não fazê-lo. Certamente. Inclusive aquela vaga familiaridade com essa jovem estava provocando sensações muito incômodas. Ela era sua pupila e logo poderia chegar a converter-se na esposa de seu irmão, e ele a encontrava exasperante, para falar de um modo delicado. Ao mesmo tempo, um atrativo e desconcertante fogo crescia em seu interior. Borbulhas em ebulição rompiam de vez em quando a superfície, pequenas explosões que não estava disposto a aceitar debaixo daquelas circunstâncias. Sob nenhuma circunstância. Chamá-la Bianca unicamente obteria que outra dessas borbulhas estalasse ao pronunciar seu nome.
—Acredito que isso seria muito familiar.
—Bom, então possivelmente Laclere também seja muito familiar. —Ela inclinou a cabeça— Já sei. O chamarei tio Vergil. Apesar de que disse que o fato de ser meu protetor o converte em uma espécie de pai, dizer «papai» soaria ridículo.
«Tio Vergil, por Deus.» Ele conseguiu olhar por debaixo da asa de seu chapéu e captou um fugaz sorriso. Estava brincando com ele deliberadamente e ele continuava mordendo a isca.
O pior era que suas provocadoras ambiguidades e seus olhares oblíquos a deixava com um ar mundano que tornava implacável aquele fervor que ele sentia.
—Tio Vergil, estamos perto da fronteira com Woodleigh?
—Está justo ao outro lado dessa colina. Pode ver a casa dessa cúpula. Você gostaria de subir?
Ela aceitou. A Vergil não passou despercebido que ela soube como encontrar o caminho mais simples sem necessidade de sua ajuda.
Bianca chegou até o topo da colina de onde se divisavam os principais campos de Woodleigh. A distância conseguiu ver a imponente mansão de inspiração clássica que Adam Kenwood construiu.
—É muito grande, não?
—Sim.
Ele respondeu em voz baixa, mas ela pôde ouvir um deixe de desaprovação. Muito grande. Muito. Essa enorme massa resultava vulgar, especialmente para alguém que acabava de ser renomado barão. Sua condição de novo rico se deixava ver dos alicerces até as chaminés. Vergil deveria ser amigo de Adam, ou do contrário seu avô não o teria renomado seu tutor, mas ao que parece isso não liberava aquele velho comerciante do julgamento desse aristocrata cuja linhagem se remontava à época dos normandos.
Ela não lamentava aquela censura. De fato, agradava-a. Embora Adam Kenwood tenha deixado em herança uma fortuna, ela o odiava de todos os modos. Se tivesse legado aquela casa a ela, a teria feito arder até seus alicerces. Ela sabia que ele cometeu um grande pecado, e não cabia dúvida de que muitos outros tinham escurecido sua vida.
Bianca baixou a colina a meio galope até os campos. Vergil chegou até seu lado quando se deteve frente à casa.
—Me ajude a desmontar, por favor.
—Senhorita Kenwood, seu primo herdou esta propriedade, e ainda não retornou da França. Deveria esperar que ele se instalasse aqui antes de fazer uma visita. A casa esteve fechada durante meses, e unicamente há uns poucos criados cuidando da propriedade.
—De fato, meu primo retornou há uma semana. Me ajude a baixar ou saltarei de um modo nada elegante.
A ajudou a descer do cavalo.
—Pretende entrar, verdade?
—Pode ser que Nigel, meu primo, tenha obtido a casa e as terras, mas os objetos privados de meu avô me pertencem. Quero ver como estão. Assim que explique quem sou e quais são meus direitos os criados me deixarão fazê-lo.
Ele aceitou sua decisão mais rápido do que ela esperava, e conseguiu que os deixassem entrar. Uma vez ali a acompanhou até o escritório de Adam Kenwood.
Bianca se deteve no centro da estadia e respirou o aroma da presença de seu avô. Um piso de madeira cobria a parte baixa das paredes, e um enorme escritório estava posto de lado em um canto. Havia prateleiras com pastas e grandes livros, mas outros documentos tinham sido amontoados em embalagens de madeira que se alinhavam ao longo de uma parede e rodeavam um pequeno baú.
Ela notou que Vergil a contemplava da soleira.
—Você o conhecia bem? —perguntou ela.
—Antes de construir Woodleigh tinha uma relação de amizade com meu irmão mais velho, Milton. Depois da morte de Milton, cheguei a conhecer Adam bastante bem.
—Nisso me leva vantagem. Eu sabia que era o avô da Inglaterra, mas meus pais nunca falavam dele. Ao me fazer maior me dei conta de que esse velho homem permitiu que meu pai vivesse na pobreza enquanto ele acumulava uma enorme fortuna. —Estendeu o braço para assinalar a luxuosa casa.
Vergil entrou na estadia e examinou as gavetas do escritório.
—Seu avô obteve muitos lucros da frota marinha e outros comércios. Durante as primeiras batalhas de Napoleão, seus navios fizeram um grande serviço ao Governo, e o rei lhe outorgou o título de barão. Como a maioria dos homens, ele pretendia que seu filho fosse um cavalheiro e planejava educá-lo para isso. Entendi que seu pai tinha outras ideias e por isso partiu para América.
—Acredito que não foi sua decisão ir a América o que fez que se distanciassem, mas sim a decisão de casar-se com minha mãe. Não era uma esposa adequada para o filho de um homem que lutava para abrir caminho na alta sociedade da Inglaterra.
Ele tirou uma pasta de uma gaveta e a folheou.
—Como já te expliquei, uma profissão como a de sua mãe não está bem vista aqui.
—Suspeito que não esteja bem vista em nenhuma parte. Minha mãe não estava tão má vista em parte por seu parentesco com tia Edith. Além disso, interrompeu sua profissão ao casar-se com meu pai. Ela dava aulas particulares, e ela conseguiu manter a casa com dignidade apesar das circunstâncias. Não foi suficiente para aquele velho homem.
Ele voltou a colocar a pasta em seu lugar e depois de uma inspeção mais atenta extraiu outra.
—Bom, ao final se lembrou de você.
—Desgraçadamente, o final chegou um pouco tarde.
—Ouço um deixe de amargura.
Havia um deixe de amargura. Até ela notou o ressentimento que podia ouvir em sua voz.
—Uma minúscula parte dessa herança teria economizado muitos pesares a minha mãe, e provavelmente até teria salvado sua vida. Morreu de uma febre da qual se contagiou enquanto viajávamos.
Ele levantou a vista da pasta como se ela houvesse dito algo particularmente interessante.
—Já vejo. Assim agora quer se vingar de Adam pela morte de sua mãe, usando sua fortuna para se converter em uma artista como a mulher que ele repudiou.
Aquela acusação lhe fez sentir uma pequena fúria dando voltas em sua cabeça.
—Você frivoliza meu propósito. Aspirava minha carreira como cantora de ópera muito antes de me inteirar dessa herança. —Observou de novo a estadia— Entretanto, agora que o diz, há certa justiça em usar o dinheiro desse homem para me converter precisamente no que ele desprezava.
—Parece mais uma brincadeira pesada que justiça. Antes que desfrute com sua brincadeira deveria te explicar que uma parte do que sabe sobre seu avô se apóia em um engano.
—Que engano?
—Pelo que ele me disse, estou seguro de que não rompeu relação com seu pai. Foi seu pai quem rompeu com ele.
—Não acredito.
—Pode acreditar no que quiser, mas isso era o que Adam recordava.
Aquilo estragou a brincadeira e a justiça. Provocou uma fratura no ressentimento que lhe gelava a alma, aquele ressentimento que tinha crescido em seu coração enquanto contemplava como sua mãe tossia e perdia a vida em uma hospedagem de aluguel nas margens do mundo.
—Disse isso a você só para que não o acreditasse frio e desalmado.
—Minha opinião não lhe importava muito.
—Então mentiu a si mesmo, para poder morrer sem culpa.
—Possivelmente.
Ela observou os documentos que havia na estadia. A verdade provavelmente estaria em alguma parte. Deveria procurar as cartas de seu pai. Inclusive podia haver algumas de sua mãe pedindo ajuda quando enviuvou.
Em realidade não deveria importar o que aconteceu, mas importava. Se ia construir sua vida ao amparo da riqueza daquele homem, queria saber se devia estar agradecida ou brincar com ele enquanto o fazia.
—Há algum modo de saber o que é o que me pertence do que há aqui?
—O advogado separou os papéis. Aquelas gavetas contêm os que são pessoais, enquanto as contas da propriedade estão nas estantes. —Assinalou o pequeno baú— Suponho que o que havia em seu escritório e outras coisas de valor estão ali sob chave.
—Quero ler esses documentos pessoais. Perguntarei a meu primo se posso o visitar e fazê-lo.
—Seria mais conveniente levá-los a Laclere Park. Ali poderá revisar o material a seu desejo. Me encarregarei da transferência.
—Estou segura de que meu primo não se importaria que revisasse os documentos aqui.
—Sim me importaria.
Ela o olhou diretamente aos olhos.
—Não tem sentido mudá-los duas vezes. Esperarei até que possam enviar-se a meu próprio alojamento em Londres.
Lhe devolveu o olhar.
—Não tem alojamento em Londres, e não o terá por muito tempo.
Ela não esperava que fosse tanto tempo, mas ele não se deu conta ainda.
—De acordo, para começar levemos isto a Laclere Park.
Quando abandonaram a casa, ela viu que ele ainda levava uma pasta. Ele notou seu olhar de curiosidade.
—Há aqui algumas cartas de meu irmão. Espero que não te importe que tome emprestada esta pasta para lê-las.
—Absolutamente. —Comoveu-a que quisesse fazê-lo. Era mais sentimental do que ela esperava— Quando seu irmão faleceu?
Ele a ajudou a montar o cavalo.
—Faz menos de um ano.
—Possivelmente haja mais cartas. Quando tivermos todo o material em Laclere Park, poderemos as procurar.
Enquanto passeavam com seus cavalos para os campos, um jovem loiro galopou para eles, saudando com o braço.
Parecia um modelo extraído de uma lâmina de moda, com o elaborado nó de seu lenço, seu alto chapéu de castor e seu moderno casaco.
O jovem desceu de seu cavalo e tirou o chapéu.
—Senhorita Kenwood! Que feliz coincidência vê-la outra vez. Pensar que se tivesse ficado mais um dia em Londres, como tinha planejado não a teria encontrado.
Vergil não se alterou por esse «outra vez».
—Você deve ser Nigel Kenwood, o primo de minha pupila. Eu sou Laclere.
—É um prazer o conhecer por fim, lorde Laclere.
—Teria o chamado se soubesse que residia em Woodleigh. Pensei que ainda estava na França. Minhas desculpas.
Nigel sorriu a Bianca. Pareciam-se um pouco. Seus olhos eram igualmente azuis e seu cabelo igualmente dourado. Um homem bonito decidiu, exceto as expressões de seu rosto sugeriam um temperamento instável.
—Levo aqui só uma semana. Revisar os assuntos de Woodleigh me manteve muito ocupado, mas agora minha vida está se estabilizando.
—Então deve visitar logo Laclere Park. Estou seguro de que as damas estarão encantadas. Há muito poucos rostos novos no campo.
—Obrigado. Farei.
Nigel sorriu de novo a Bianca com admiração. Bianca lhe devolveu um doce sorriso. Vergil sorriu muito fracamente aos dois.
Prestou a Nigel mais atenção da devida.
Graças a Deus Vergil era um homem inteligente. Ela não tinha nenhuma intenção de mentir, só estava semeando nele suficiente preocupação para que decidisse não expor sua influência a doce Charlotte.
Rechaçaram o convite de Nigel a um refrigério e retomaram seu caminho. Vergil se aproximou dela.
—Já tinha conhecido o novo barão. Não o mencionou.
—Não o fiz? Há uns dias cavalguei perto de Woodleigh e o encontrei. Pareceu-me correto parar e falar com ele, já que é meu parente.
—Mostrou-te Woodleigh?
«Entrou na casa? Esteve a sós com ele em sua casa?» A expressão dele permanecia tão cuidadosamente impassível que lhe deu vontade de rir.
—Sim, fez. Era a propriedade de meu avô, assim tinha curiosidade. —Em realidade só tinha visto os jardins, mas se sentiu contente consigo mesma por ter deixado o visconde dando voltas a uma nova ambiguidade.
—Acredito que era sua intenção desde o começo visitar Woodleigh para investigar o escritório de Adam esta manhã. Estou feliz de que tenha podido satisfazer esse desejo.
Ela não acreditava que ele estivesse feliz absolutamente. Parecia estar considerando o que implicava que ela visitasse Woodleigh com camisa e calças de montar sabendo possivelmente que Nigel não estava em Londres.
Ela concluiu que, em termos gerais, aquela manhã de passeio a cavalo tinha sido um êxito.
Tomaram um caminho de volta mais direto. Ela se sentia agora mais segura em sua cadeira de montar de mulher, galopou através do parque e não diminuiu o ritmo quando entraram no bosque. A rosada luz do sol penetrava entre os ramos, criando maravilhosas e imprecisas manchas enquanto ela avançava velozmente. Aquele efeito visual a distraía e se achava despreparada quando de repente, e de forma inexplicável, seu cavalo encabritou de um modo violento.
O entorno seguiu sendo impreciso, mas agora de um modo diferente. O chão e as árvores pareciam dar voltas enquanto ela lutava para recuperar o controle sobre o animal. Este estava como louco e se retorcia parado sobre as patas traseiras. A cadeira de montar não pôde sustentá-la. Caiu ao chão sobre seu estômago e recebeu um impacto que aturdiu seus sentidos.
Ainda mais espantoso foi o peso que imediatamente caiu sobre suas costas e os antebraços que sentia a cada lado de sua cabeça. Vergil estava em cima dela, cobrindo suas costas e sua cabeça com seu próprio corpo. Ela lutou contra ele indignada e abriu a boca para protestar.
Um estalo quebrou o silêncio da manhã. Vergil a pegou pelos ombros com firmeza e lhe deu a volta apoiando-a sobre o barro.
—Vigia seus disparos! —gritou ele encolerizado na direção do som. Com a mão direita apertava os extremos das rédeas e os dois cavalos relinchavam e faziam cambalhotas.
De repente não lhe importou que estivessem ridículos, escancarados juntos desse modo.
—Quem será que disparou?
—Caçadores furtivos, provavelmente procurando faisões. É muito audaz por sua parte usar revólveres em lugar de armadilhas. Só se atrevem a fazê-lo muito cedo na manhã. Estamos a vários quilômetros da casa e eles supõem que as famílias estão ainda na cama.
Ouviu-se um novo estalo. Desta vez ela ouviu um pequeno golpe como o de uma bola, contra a árvore que tinham à esquerda. Os cavalos encabritaram e quase conseguiram soltar-se. Vergil soltou uma maldição e voltou a gritar.
Ele continuava apertado contra ela, com todo seu peso sobre suas costas. Sua respiração fazia cócegas em sua nuca. O tecido de suas mangas roçava brandamente suas bochechas.
Ela não se sentia nada em perigo, a não ser segura e protegida do modo mais quente. A íntima proximidade acendeu nela uma ardente resposta. Respirou seu aroma a sabão e couro, e um estranho bater de asas a percorreu, do coração até o estômago.
—Agora pode entender por que não deve cavalgar a esta hora. É perigoso — disse ele.
—Você vai cavalgar.
—É diferente. —Ela sentia as palavras junto a seu ouvido, como se ele tivesse aproximado ainda mais a cabeça. Tinha-a abraçada contra o chão, o queixo dela se apoiava sobre as folhas e a terra. A cálida brisa de seu fôlego acariciava suas têmporas, fazendo que aquele bater de asas se voltasse furioso.
Ele se elevou, mas sem afastar-se completamente. Permaneceu sobre ela. Algo que não era capaz de nomear vertia dele para ela. Isso a assustou. O bater de asas se fez ainda mais forte e encheu seu peito.
Deu a volta e o olhou diretamente aos olhos. Ninguém em sua vida jamais cuidou dela de uma maneira tão… Explícita. Ao menos não de tão perto. Aquele olhar pareceu penetrar diretamente em sua mente e explorar sua vontade.
Já não se sentia segura e protegida. Mas bem o contrário. O bater de asas se multiplicou adquirindo um ritmo frenético e um zumbido que se apoderou de seu corpo e de seus membros. Os alertas de uma advertência. E excitação.
A tensão que refletia em sua expressão o fazia extraordinariamente atrativo. Incorporou-se, de joelhos, para lhe oferecer sua mão e ajudá-la a sentar-se.
—Se machucou ao cair?
Ela moveu as pernas com cautela.
—Só fiquei sem fôlego. Em realidade a queda não foi muito forte, mas estarei um pouco dolorida amanhã. —apressou-se a levantar-se— Como protetor é excelente, tio Vergil. Não haveria muitos homens dispostos a lançar seu corpo entre a bala de um mosquete e uma mulher que mal conhecem.
—Qualquer homem inglês de honra o teria feito senhorita Kenwood.
Fizeram os cavalos caminhar durante um tempo para que se acalmassem, depois cavalgaram os últimos quilômetros de volta a casa. Sua silenciosa companhia a incomodava e aquela estranha excitação ainda deixava ouvir seu murmúrio. Nos estábulos, ele se deixou cair do cavalo e foi ajudá-la a desmontar. Ela se deteve quando seus braços a alcançaram.
Ele notou sua vacilação. Seus olhos azuis se encontraram com os dela de uma maneira especial. Ela começou a respirar com dificuldade e se sentia incapaz de afastar o olhar.
Uns dedos fortes rodearam sua cintura e a deslizaram para baixo. Deu a impressão de que ele demorava muito em soltá-la, o momento pareceu prolongar-se enquanto ele a sustentava tão somente a escassos centímetros. A suave pressão de suas mãos e a cercania de seu corpo a fizeram tremer.
—Obrigado. Desfrutei muito do passeio a cavalo. —Ela recuperou sua compostura e deu a volta.
—Me alegro de que tenha desfrutado, especialmente já que é o último.
Ela deu meia volta para olhá-lo no rosto.
—Está dizendo que não poderei voltar a cavalgar enquanto esteja aqui?
—Naturalmente que pode, acompanhada e bem entrado o dia. Entretanto, pedirei aos moços que não voltem a te dar um cavalo tão cedo pela manhã, e a nenhuma hora se pretende ir sozinha. —Ele se expressou com tanta autoridade e tanta calma como sempre, mas ela sentiu crescer a tensão a seu redor— Não organizará mais encontros furtivos com seu primo Nigel. Poderá vê-lo quando ele vier aqui de visita, ou quando Penelope convidá-lo.
Encontros furtivos? Sua imaginação extraiu daquelas ambiguidades mais conclusões das que ela pretendia.
Continuou caminhando sem corrigi-lo.
«Deixemos que pense o pior.»
***
Vergil aproximou uma cadeira à cama, sentou-se nela e levantou sua bota para dar a seu irmão um bom empurrão no quadril.
Dante gemeu e cobriu os olhos com um braço. Olhou por debaixo deste, viu Vergil e voltou a resmungar com resignação. Deixou escapar um suspiro de irritação e se incorporou para apoiar-se contra a cabeceira.
—Bom dia, Vergil.
Vergil viu o peito nu de seu irmão e observou os dois copos e a garrafa de vinho vazia que havia sobre a mesa.
—Quase toda a noite com Marian suponho. Disse-lhe que deixe às criadas em paz, Dante. Não quero que ninguém as incomode.
—Um homem não molesta Marian; ele luta por sua vida. Mas o que acontece com você. Por mais que lhe goste. Não seria discreto por sua parte.
—Tampouco é discreto pela tua. A mulher que pretende se casar está na casa.
Dante apoiou a cabeça contra a cabeceira e sorriu.
—Ah, sim, a bela Bianca. Sua descrição não lhe fez justiça. É realmente uma coisinha doce e jovem, só que um pouco ingênua. É encantador ver como luta por imitar nossas formas.
«um pouco ingênua?»
—Acabo de dar uma longa volta com sua coisinha doce e jovem.
—A julgar pelo estado de seu casaco, parece que esteve derrubando pelo chão com ela.
—Alguns caçadores furtivos estavam atirando e acabamos caindo do cavalo. —Não era exatamente isso o que tinha acontecido, mas não fazia sentido explicar detalhes que suscitariam perguntas a respeito— Me alegra saber que a senhorita Kenwood te parece apropriada. Entretanto, devo te advertir que tem concorrência.
—Nada sério — disse Dante bocejando.
—Nem sequer ouviu de quem se trata.
—Confio em que não seja você.
Vergil lhe lançou um olhar mordaz que escondia um incômodo sentimento de culpa.
—Só estava brincando, Vergil — sorriu Dante— Está tão claro que não encaixam e que ela te odeia que não pude resistir.
A menos que ele se equivocou completamente ao interpretar as coisas quando estavam atirados no chão, se encaixavam de um modo estupendo e perturbador.
—Seu rival não sou eu, a não ser um homem com um título nobiliário.
Aquilo freou a alegria de seu irmão. Dante tinha uma suprema confiança em sua habilidade para tratar com as mulheres, mas dado que era o filho mais jovem dita habilidade não tinha por que traduzir-se na possibilidade de casar-se com quem quisesse.
—De quem se trata?
—De seu primo, Nigel Kenwood.
—O segundo barão de Woodleigh? Com seu título recém estreado e de pouca subida não impressiona a ninguém.
—A ela não importam as delicadas questões do nascimento e a fila, e eles são parentes, o qual significa que têm um vínculo natural. Eu acreditei que ele se achava na França, administrando a herança de Adam, mas temo que retornou antes do que eu calculava. A questão é que já está aqui e se estabeleceu como nosso vizinho. Suspeito que tinha a esperança de encontrá-la aqui conosco. Afinal, ela recebeu quase tudo o que não foi deixado à caridade. Suponho que ele acredita que tem algum direito a ela.
Dante não parecia exatamente preocupado, mas Vergil monopolizou sua atenção.
—O que sabe você desse primo dele?
—É o neto do irmão de Adam. Começaram juntos nos negócios, mas o irmão teve um problema financeiro e Adam comprou sua parte. O pai de Nigel não quis tocar o negócio, apesar de Adam lhe ofereceu participar. Nigel, por sua parte, decidiu fazer-se artista e viveu em Paris até alcançar sua maioridade.
—Um boêmio? Sejamos sérios, Vergil, não acredito que…
—Não é um pintor. É músico. Adam se gabou uma vez sobre o menino e seu pianoforte.
—Ah, bom. Um músico. Pequeno motivo para alarmar-se.
—A senhorita Kenwood também se dedica à música, assim é provável que sim haja um motivo para inquietar-se, e até para alarmar-se.
Dante elevou suas sobrancelhas ante essa nova fofoca.
—É cantor — explicou Vergil— Gosta da ópera. Assim Nigel tem um possível atrativo. Interesse em comum e um parentesco de sangue.
—Exagera as duas coisas. Estamos falando de casamento, não de uma relação amorosa. Tinham nossos pais interesses em comum? Você e Fleur têm algum interesse em comum?
Ele e Fleur tinham em comum os interesses mais básicos, mas aquele não era o assunto. Vergil ficou de pé.
—Bom, mais te vale atuar com rapidez. Eu tentarei evitar que Nigel faça visitas frequentes, mas não posso impedir sua entrada na casa.
Caminhou até a porta. A voz de Dante o seguiu.
—Bom, e agora, irmão mais velho, o quão rápido quer que vá?
Vergil deu a volta para olhar Dante. Imagens desse peito e esses braços nus abraçando Bianca estalaram em sua mente, incitando-o a uma reação desagradável. Durante um momento não respondeu, enquanto tentava desfazer-se das imagens e da ira. Aquele abraço seria inevitável. E necessário.
—Não chegue a desonrá-la —disse— E mantém suas mãos afastadas de Marian enquanto esteja nesta casa. Não quero que as damas se escandalizem.
Capítulo 4
Penelope visitou o escritório de Vergil aquela tarde, para lhe comunicar que tinha recebido uma carta no correio do dia dizendo que Fleur e sua mãe viriam de visita em um prazo de dez dias.
—Estarei fora na semana anterior, mas prometo voltar a tempo — a tranquilizou ele.
—Acredito que também convidarei alguns amigos de Londres — disse Penelope— Darei a Bianca à oportunidade de desdobrar suas asas.
—Não convide muita gente, Pen. E escolhe cuidadosamente.
—Há outra coisa, Vergil. Suspeito que Dante esteja começando a ter certa debilidade por ela.
Ele tentou concentrar-se no que Pen estava dizendo, mas sua mente estava absorta contemplando à senhorita Kenwood estendida sobre o chão e olhando-o com um rubor de surpresa que lhe enviava rajadas de calor através de suas veias. Suas mãos notavam sua feminina cintura uma vez mais e seu corpo lhe advertia o perigo da cercania ao ajudá-la a descer do cavalo. Um misterioso perfume de lavanda enchia sua cabeça.
—Não se preocupe Pen. Dante não se verá envolto em uma confusão sem dar-se conta.
—Não me preocupo com Dante. Bianca, entretanto, parece tão ingênua.
«Ingênua?»
—E Dante… Vergil, não sei se você é consciente, estou segura de que ninguém fala contigo sobre isto, vendo que é tão… Mas se rumoreja que é um mulherengo implacável.
Perguntou-se do que pensaria Pen que falavam os homens quando se reuniam depois de comer com uma taça de porto e uns cigarros. Passou anos recebendo brincadeiras pelas conquistas de seu irmão, e em mais de uma ocasião se viu obrigado a olhar de frente um marido irado.
—Inclusive Dante respeita as regras básicas. Se estiver interessado nela, estou seguro de que isso o honra.
Ela pestanejou atônita.
—Permitiria?
—Por que não teria que fazê-lo?
—Ela é muito ignorante das questões mundanas e se desiludiria terrivelmente quando soubesse a verdade a respeito dele.
—Não quero interferir, Pen. Deixemos que as coisas sigam seu curso. Se ele a conquista, terão que solucionar seus assuntos da mesma forma que todos os casais o fazem.
—Você pode dizer isso, mas eu sempre lamentei que ninguém tivesse me advertido a respeito de Anthony.
Ele quis fazê-lo, mas não o correspondia sendo tão somente um jovenzinho, especialmente com sua mãe viva e encarregando-se de tudo. Um moço não podia aproximar-se de sua irmã mais velha e informá-la de que o maravilhoso conde com quem estava disposta a casar-se tinha fama de libertino, e que as escuras alusões a seus pecados não eram das típicas.
Entretanto, alguém devia tê-la advertido, e ele recordava muito bem a infelicidade de sua irmã. A separação oficial do conde durante esses últimos cinco anos havia lhe trazido certa paz, mas a custa de sua reputação social e uma permanente solidão. A lembrança de que um mau matrimônio podia ser o inferno o fez sentir-se incômodo a respeito de Bianca, e desejou que Pen não tivesse trazido a conversa seu próprio matrimônio, sem amor e sem filhos.
Ela o olhou com feminino ceticismo.
—Manterei minha língua presa e observarei como se desenvolvem as coisas, mas se suspeitar que ele está jogando com ela, chamarei sua atenção severamente, Vergil. Isso é algo que não tolerarei.
—Faz o que acredite ser o melhor, Pen.
Ela saiu, e ele voltou a se concentrar na carta que estava lendo quando entrou.
Examinou o conteúdo outra vez. O maior problema de um segredo é que sempre reclama sua atenção no momento mais inoportuno. Tinha planejado ficar ali todo o tempo que Dante estivesse, mas agora não ia ser possível.
Saiu do escritório e se dirigiu a seu aposentos para dizer a Morton que empreenderia uma viagem depois de amanhã.
***
À tarde do dia seguinte Bianca se achava sentada no salão, dando golpezinhos com o pé de maneira impaciente. Esperava que logo se apresentasse uma visita. Infelizmente, aquele que anunciava o cartão que o mordomo entregou a Pen não era o mesmo que ela esperava.
Nigel entrou despreocupado, com um ar muito romântico graças a seu paletó parisiense tão estreito na cintura, seu cachecol escuro e seu cabelo despenteado que chegava ao ombro. Obsequiou Bianca um acolhedor sorriso de familiaridade enquanto Pen o recebia.
—Retornou recentemente de Paris — me disse Charlotte— Assim tem que nos contar tudo sobre Paris.
Nigel as entreteve amavelmente com algumas descrições das últimas modas. Bianca mal escutava, apesar de que seu primo virtualmente dirigisse a ela toda sua atenção. Ela estava atenta aos ruídos de outra chegada.
As portas se abriram, mas só para dar passo a Vergil e a Dante.
—Espero que seu propósito seja ficar em Woodleigh, ao menos durante o outono — disse Penelope.
—Essa é minha intenção.
—Logo vou ter umas visitas em casa, e conto com que se una a nós sempre que puder.
—É muito amável por sua parte. Visitava meu tio-avô com pouca frequência, assim sou virtualmente novo neste lugar.
—Não passou muito tempo na Inglaterra estes últimos anos, verdade Kenwood? —perguntou Vergil.
—Preferi Paris. Encontro que a cultura ali é de superior qualidade. A vida artística é muito rica.
—Você tem interesse nas artes? —perguntou Penelope— Então desfrutará com os convidados em minha festa. Sua prima, sem ir mais longe, é uma artista excelente. Canta como um anjo e teve a gentileza de entreter Charlotte e a mim em mais de uma ocasião.
A expressão de Nigel mostrava um educado interesse, mas também ia carregada de um matiz condescendente. Bianca supôs que devia ter conhecido muitas mulheres jovens cujos amigos acreditavam que cantavam como anjos.
—Nos deixe convencê-la para que cante agora — disse Charlotte— Vergil e Dante nunca a ouviram.
—Será uma honra acompanhá-la — ofereceu Nigel— Sou bastante aceitável com o pianoforte.
Bianca se sentia um pouco encurralada. Ela só tinha entretido Penelope e Charlotte com canções populares de salão, e não pode praticar seriamente durante as últimas duas semanas. Ao mesmo tempo, a oportunidade de cantar, inclusive embora não pudesse dar o melhor de si mesma, excitava-a.
Todos foram ao salão de música e Nigel ocupou seu lugar frente ao pianoforte.
—Meu repertório de canções populares é limitado — advertiu ele, dando-se certa importância.
—Possivelmente então tenha mais sentido uma ária.
Ele levantou o olhar agradavelmente surpreso. Ficaram de acordo em interpretar uma de Mozart, uma que ela tinha estado estudando justo antes de deixar Baltimore. A perspectiva dessa pequena atuação acelerou seu coração.
Os outros se colocaram em bancos e em cadeiras. Nigel começou a tocar para introduzir a peça.
Com o som das notas o espírito de Bianca imediatamente renasceu. Não precisava conter sua voz como quando praticava escalas em seu quarto. Não era o frio isolamento que tinha experimentado quando escapulia longe para cantar no campo. A alegria que sentia ao deixar sair sua voz com força dava cor aos sons.
As reações de sua pequena audiência produziram uma espécie de poder.
Penelope permanecia aniquilada, Dante encantado, Charlotte confusa, e Vergil fortemente interessado. Ela olhou Nigel e o viu dar sua surpreendida aprovação. Sua destreza com o pianoforte era considerável, e ela tinha a sensação de que ele sabia que o público apreciava essa destreza.
Ao terminar, a sala estava tão silenciosa que ela podia ouvir o zumbido dos insetos através da janela aberta. Ela desfrutou daquele momento de torcida euforia e depois relaxou.
—Foi assombroso, querida prima — disse Nigel com serenidade— Esteve estudando a sério.
—Surpreendeu a todos, Bianca — disse Penelope— E sua interpretação foi magistral, senhor Nigel. Já vejo que a música é um interesse sério para você.
—Não um interesse, a não ser uma paixão. —Seus olhos procuraram os de Bianca com um brilho trêmulo que parecia indicar que ambos compartilhavam um segredo que os outros jamais entenderiam.
—Deve me prometer que tocará para meus convidados. Possivelmente também poderemos persuadir Bianca para que cante. Será uma noite maravilhosa.
—Será uma honra para mim.
Ele começou a preparar-se para sair, rogando a Penelope que visitasse logo Woodleigh. O mordomo entrou antes que Pen o chamasse, com um cartão de visita.
—Acaba de chegar um homem, minha senhora. Deseja ver a senhorita Kenwood.
Penelope examinou o cartão e elevou as sobrancelhas ao entregar-lhe a Bianca. Antes de lê-lo, ela já sabia de quem se tratava.
O visitante que tinha estado esperando por fim tinha chegado.
—É um assunto de negócios, Penelope. Há algum lugar onde possa me entrevistar com ele a sós?
—Leva-o a meu escritório — indicou Vergil ao mordomo— A senhorita Kenwood poderá atender ali seus negócios.
Bianca se despediu de Nigel e depois se apressou a ir ao escritório, sentindo ainda a alegria do canto.
Nunca esteve no escritório. Estava orientado ao norte, e a luz se filtrava através das janelas góticas iluminando fracamente a escura mesa de madeira, as paredes cheias de livros e as paisagens de aquarela.
Seu visitante aproximou uma cadeira à janela.
—Senhor Peterson, estou encantada de que tenha vindo.
—Senti alívio ao receber sua chamada, senhorita Kenwood. Ao ver que não ia a nossa última entrevista fiquei preocupado.
—Lorde Laclere me encontrou e pôs em marcha outros planos para minha visita a seu país.
Ela se sentou em um assento acolchoado junto à janela. O batente era muito largo. Continha uma coleção de curiosos brinquedos. Um era uma catapulta feita de madeira e cadeias. Outro, uma carruagem de madeira e couro. Um terceiro não parecia ser nada em particular, tão somente um conjunto de rampas estriadas entrelaçando-se entre si, decorado com corrente e rodas.
O tipo de construção era algo rudimentar. Ela supôs que se tratava de objetos que Vergil tinha fabricado quando era menino. A ideia de que o sério e formal visconde guardasse lembranças de sua infância em seu santuário íntimo era adorável, embora se sentisse incapaz de imaginar de menino um homem como aquele.
O senhor Peterson era um homem de meia idade, pálido e calvo, com uns olhos cinza que podiam parecer sagazes ou respeitosos segundo as circunstâncias. Quando ela o visitou em Londres pela primeira vez, seu lado perspicaz tinha entendido rapidamente que embora ela não pudesse pagar seus honorários naquele momento, tinha expectativas que resolveriam as coisas adequadamente.
—Examinou o testamento? —perguntou ela.
—O fiz. Tive uma entrevista com o advogado de seu avô. Ele pareceu surpreender-se de que tivesse me encarregado o assunto, mas cooperou até onde estava obrigado a fazê-lo. Não mais, entretanto.
—E que conclusões tirou? Posso me liberar do domínio de lorde Laclere?
—Se ele não se ocupasse de você, ou houvesse alguma evidência de fraude, seria possível fazer algo a respeito, mas a Corte não permitiria a independência que você está procurando. Se o visconde não fosse seu tutor, outra pessoa seria nomeada em seu lugar. Com um homem de sua categoria, qualquer abuso de sua posição teria que ser realmente terrível para que se pudesse levar ante a Corte.
Ela se sentiu furiosa ante a decepção. Aquele brinquedo inútil captou sua atenção e viu uma pequena bola de chumbo em sua base. Refletindo a respeito de qual seria sua próxima estratégia com Vergil, pegou distraidamente a bola e a soltou sobre a rampa superior. Começou a rodar costa abaixo, de uma rampa a seguinte, de um lado ao outro, pondo em movimento várias pequenas rodas e polias cada vez que seu peso mudava de nível.
—Senhorita Kenwood, não se trata de uma situação permanente… Será menos de um ano. Você é uma moça e rica, e é compreensível que seu avô tenha querido protegê-la para evitar que seja vítima de algum caçador de fortunas sem escrúpulos.
—Quanto de rica?
—Perdoe? Supunha que você sabia.
—Sei em termos gerais. Mas exatamente a quanto ascende minha fortuna?
—Os ganhos pelo fundo de dinheiro investido sobem ao menos a três mil libras este ano.
—Essa quantidade por si só já é uma fortuna, e muito mais do que necessito para meus planos.
—Seu tutor dirigirá essa soma, subministrando os recursos de acordo com as necessidades que você tenha e os gastos que deva cobrir. Ele tem a obrigação de ser razoável em relação a seus pedidos.
Ela duvidava que Vergil fosse tão razoável para lhe dar várias centenas de libras que a permitissem escapar para Milão. Se ele controlava seus ganhos, controlava também seus movimentos. Em definitivo, controlava sua vida.
—Quanto à outra parte de sua herança, tudo resulta muito mais complicado — disse o senhor Peterson, continuando com seu relatório.
—Que outra parte?
—Seu avô era um homem de negócios. Para o final de sua vida vendeu a maioria deles. Entretanto, conservou três sociedades. Duas eram pequenas parcelas de companhias de transportes, e a terceira era a maior parte de uma companhia de algodão em Manchester. Também foram legadas a você suas ações nesses negócios, menos dez por cento das da fábrica, que foram cedidas ao seu primo.
—Entretanto, o visconde também é meu administrador. Ele dirige esses investimentos.
—As ações nessas sociedades não são parte dos investimentos permanentes, como sim o são os recursos de investimento. Se você se casar ou se faz maior de idade, ele deverá renunciar ao controle sobre elas. De fato me surpreende que ele não tenha vendido esses negócios. Representam uma ameaça para sua riqueza. Se algo sair mal, todos os proprietários são responsáveis pelas dívidas incorridas.
Aqueles negócios em realidade não lhe interessavam muito, a menos…
—Também há ganhos que provêm desses negócios?
—O advogado não esteve disposto a me permitir ver os documentos. Eu acredito que a fábrica deve dar lucros.
—E o que ocorre com esses ganhos?
—Vão para seu administrador, que presumivelmente os investe em mais investimentos. Ou se não, são enviados ao seu tutor.
Que era a mesma pessoa. Administrador. Tutor. Qualquer que fosse o lugar para o qual se desviava a conversa acabava indo parar em Vergil Duclairc.
—Senhor Peterson, eu gostaria que você estivesse presente enquanto falo com lorde Laclere. A situação que criou é intolerável. Estou prisioneira aqui.
Ela chamou o mordomo para que solicitasse a presença de Vergil. O senhor Peterson pareceu muito incômodo ante a ideia dessa entrevista. Quando Vergil entrou pela porta, o respeito havia superado a suspicacia naqueles olhos cinza, e a calvície daquele homem mostrava pequenas gotas de suor.
—Lorde Laclere, este é o senhor Peterson. Ele é meu procurador.
Vergil examinou friamente o advogado com um gesto aristocrático de aborrecimento. O senhor Peterson se desfez em um molho de nervos. Bianca lutou contra o impulso de bronquear com ele para que se comportasse como um homem.
Vergil posou sobre ela um olhar muito sério.
—Não sabia que tinha contratado um advogado, senhorita Kenwood.
—Foi uma das primeiras coisas das que me ocupei ao chegar a Londres.
—O advogado de seu avô, ou o meu, ou inclusive eu pessoalmente, teríamos lhe explicado gostosamente algo que precisasse saber.
—Pensei que era melhor ter meu próprio representante e decidir por mim mesma o que era o que precisava saber.
—Confio em que o senhor Peterson tenha satisfeito do toda sua curiosidade.
—Quase tudo. Falou-me a respeito das ações de negócios que herdei e sugeriu que você deveria as ter vendido, para maior segurança.
—Eu não o expressei dessa maneira milord — se apressou a esclarecer o senhor Peterson— Só lhe expliquei as leis em relação às responsabilidades financeiras dos sócios.
—Como deveria fazer com um cliente. Estou obtendo informação sobre o valor das ações. Como administrador seria irresponsável por minha parte as vender a um preço muito baixo. Houve várias propostas em relação à venda que terei em consideração quando estiver em melhores condições para julgar se forem justas. Entretanto, estas coisas levam seu tempo. É difícil obter informação honesta dos gerentes e dos outros proprietários.
—Excelente milord. Justo o tipo de prudente supervisão que alguém esperaria. Acredito que é evidente que tudo está em perfeita ordem, senhorita Kenwood, e que é você afortunada pelo fato de que lorde Laclere se faça cargo de…
—Quando se recebem os benefícios das companhias? —perguntou ela.
Uma paciência de aço controlou a mandíbula e a boca de Vergil.
—Se houver benefícios, as companhias os pagam uma vez ao ano. Serão reaplicados em recursos do Governo.
—E os recursos de investimento por eles mesmos deram lucros desde a morte de meu avô?
—Sim, deram.
—E essa parte dos benefícios foi também reaplicada?
—A maior parte.
A maior parte, mas não toda.
—Senhor Peterson, seria tão amável de me esperar na biblioteca?
O senhor Peterson estava encantado de fazê-lo. Quase tropeçou ao retirar-se apressadamente.
Bianca ocupou uma cadeira frente à Vergil.
—Quero que arrume as coisas para que os ganhos fiquem a minha disposição.
—Não tenho nenhuma intenção de fazer isso.
—Trata-se de minha herança.
—Inclusive embora fosse a mais sensata das jovens, não estaria cumprindo com meu dever se te deixasse dispor desse dinheiro. O certo é que confessou ter propósitos que me converteriam em um conspirador de sua ruína. É totalmente impossível.
—O senhor Peterson me explicou que se espera que um tutor seja razoável em relação a esses recursos.
—Com uma parte é suficiente para cobrir suas necessidades. Os lojistas só têm que me enviar suas faturas. As costureiras e outros profissionais que atendem às mulheres estão acostumados a isso. A menos que haja algum gasto exagerado por sua parte não precisamos voltar a falar disto.
—Dado que não há costureiras nesta casa não corro o perigo de ser acusada de nenhum gasto exagerado.
A expressão dele se suavizou um pouco.
—Minhas desculpas. É obvio que você gostaria de desfrutar dos frutos de sua enorme fortuna. Pedirei a Penelope que te leve a Londres dentro de umas poucas semanas.
—Obrigado. Entretanto, necessitarei um pouco de dinheiro para gastos menores agora. Tenho que comprar uns poucos artigos de natureza pessoal.
Tal como ela esperava, a palavra pessoal o impediu de seguir investigando. Abriu uma gaveta do escritório.
—Espero que vinte libras seja suficiente — disse ela.
—Isso é muito dinheiro para gastos menores, senhorita Kenwood.
—Usarei uma parte para pagar o senhor Peterson.
—O senhor Peterson pode me enviar sua fatura.
—Prefiro que não o faça. Prefiro que recorde quem o contratou. Tampouco me parece correto lhe pedir que aguarde minha herança.
Vergil tirou vários bilhetes da gaveta e os colocou em uma pilha sobre o escritório. Caminhou para ela, sem poder ocultar por mais tempo sua irritação. Ela com muita dificuldade pôde evitar encolher-se de medo ante a autoridade que emanava dele.
—Não estou acostumado a discussões abertas sobre assuntos de dinheiro, e muito menos com mulheres. Não estou disposto a tolerar perguntas que impliquem dúvidas a respeito de minha honestidade e minha capacidade na hora de administrar seu patrimônio, e menos diante de um homem que não conheço.
Ele se inclinou e se agarrou aos braços da cadeira. Ela se encolheu contra o respaldo, afastando-se das faíscas que brilhavam em seus olhos, tão somente a umas polegadas de seu rosto.
—A questão é senhorita Kenwood, que agora mesmo o tio Vergil está pensando que sua desrespeitosa pupila merece uma boa surra.
Os lábios dela se abriram com indignação. Ele saiu disparado e se afastou a grandes pernadas até a porta.
Logo que ele saiu, recolheu os bilhetes e se reuniu com o senhor Peterson. Entregou-lhe dez libras.
—Isto é em pagamento por seus honorários e gastos até o momento. Quero que você guarde o que sobre e abra uma conta para mim no banco. Use seu próprio nome se for necessário.
—Seguro que lorde Laclere terá uma conta onde se possam fazer remessas bancárias.
—Quero ter minha própria conta, e não quero que ele saiba. Me escreva informando quando estiver feito. Também quero que faça averiguações a respeito dessas ofertas para a compra das ações das companhias.
—Se insistir, verei o que posso averiguar. Devo lhe escrever aqui?
—Sim. Não acredito que o visconde me deixe ir muito longe durante um tempo.
Provavelmente não até que se casasse ou fizesse vinte e um anos.
Ela não tinha intenção de fazer o primeiro e tampouco de esperar o segundo. Se o senhor Peterson conseguia os nomes das partes interessadas nas sociedades, ela poderia conseguir o dinheiro necessário para ir à Itália, apesar do obstáculo que representava Vergil Duclairc.
***
Vergil com muita dificuldade conseguiu acalmar sua fúria depois da surpresa de encontrar-se com o senhor Peterson, quando outra visita inesperada chegou à última hora da tarde. Adrian Burchard, um dos amigos de Vergil, entrou em seu escritório, graças a Deus o distraindo das insistentes e eróticas imagens de uma Bianca Kenwood domesticada.
—Fazia muito tempo que não nos víamos Burchard — disse Vergil, lhe dando boas vindas.
—Se passasse algo mais que uns poucos dias em Londres cada vez que vai, não teria sido tanto tempo. Onde esteve metido? —Os escuros e exóticos olhos de Adrian não pareciam estar esperando uma resposta interessante.
E tampouco a conseguiu. Vergil assinalou o escritório.
—Temo que os assuntos familiares me tiveram a maior parte do tempo ocupado. —O conteúdo da afirmação era certo, mas não o gesto que a acompanhou e suas implicações. Não tinha passado em Laclere Park mais tempo que em Londres.
Dentre todos seus amigos, Burchard era o mais capaz de precaver-se dos silêncios.
—Com frequência escapei ao norte, à propriedade que tenho ali. Aí não tenho que me comportar como um visconde — acrescentou Vergil precisamente para romper o silêncio— É uma sorte que tenha cavalgado até aqui para me liberar de ter que exercer de visconde esta tarde.
—Lamento te dizer que esta não é uma visita social. Demos um passeio e te explicarei.
Cheio de curiosidade, Vergil o acompanhou até o princípio do caminho que dava a casa. Adrian o conduziu até o lugar onde outro caminho assinalava o fim da propriedade. Ali, à sombra de uma árvore, esperava um carro.
Um homem mais velho com um proeminente nariz farpado estava sentado em seu interior.
—Podia ter me avisado de que havia trazido Wellington contigo.
O duque o ouviu por acaso.
—Pedi que o trouxesse sem anunciar minha presença, e Burchard cumpriu com sua missão ao pé da letra.
—Sua excelência nos honra com esta visita.
—Não é uma visita, por isso pedi a Burchard que te trouxesse até aqui. Não pretendo ofender sua irmã, Laclere. Simplesmente hoje não tenho tempo para bate-papos de salão. —Fez um gesto com sua bengala — Este parece um caminho agradável e sombreado. Façamos um pouco de exercício.
Vergil começou a caminhar, com Adrian a seu lado. Adrian se converteu no protegido de Wellington. O mecenato daquele grande homem lhe proporcionou um lugar na Câmara dos Comuns como terceiro filho do conde de Dincaster.
Durante uns minutos se ouviu o rítmico ruído das botas contra o chão. O duque não tentou cobri-lo com elogios ou frases de rigor.
—Vim tratar de um tema delicado — disse por fim— Não há uma boa maneira de abordá-lo, assim irei direto ao ponto. Vim fazer umas perguntas sobre a morte de seu irmão. Sempre sinto curiosidade quando um homem morre por causa de uma ferida de bala disparada por si mesmo de forma acidental. Sou consciente de que não é fácil que isso ocorra. Quero saber se no caso de seu irmão não foi um acidente a não ser um suicídio.
Vergil dirigiu a Adrian um olhar ressentido, e este respondeu negando sutilmente com a cabeça. A evidência de que Adrian não tinha sido desleal ou indiscreto acalmou seu aborrecimento.
—Sim. Unicamente a família e uns poucos amigos sabem.
—Aprecio sua confiança em minha discrição, mas receber a confirmação de minhas suspeitas não me dá nenhuma satisfação. Me diga, alguma vez se expôs que resulta estranho que tenhamos tido dois suicídios de pessoas importantes durante a mesma semana? Seu irmão e o de Castlereagh.
—Meu irmão era propenso a crises de profunda melancolia. O ministro de Assuntos Exteriores estava desequilibrado. Foi uma coincidência.
—Laclere, não estou convencido de que foi uma coincidência. Existe alguma possibilidade de que seu irmão tenha sido vítima de uma chantagem? Você achou alguma prova neste sentido? Pergunto porquê há indícios de que Castlereagh sim foi.
—Acreditava que essas suspeitas tinham sido enterradas. Por você.
—Considerando sua posição dificilmente podia deixá-lo assim. Aquele homem era vítima de delírios, assim que concedi a ele pouca credibilidade. Entretanto, as últimas vezes que o vi me disse algo sobre uma carta. Aludiu a seus temores de ser convertido no alvo de um escândalo.
Um escândalo. Vergil suspeitava onde iria parar aquilo e não queria ir por esse caminho.
—Como você disse, era vítima de delírios.
Wellington deu cinco passos antes de reatar a conversa.
—O autor da carta afirma ter provas de certa atividade criminosa.
Vergil se deteve, forçando Adrian e Wellington a fazê-lo também.
—Assim depois de meses de reflexões esse detalhe me permitiu fazer algum tipo de conexão com meu irmão?
—Laclere, o deixe terminar — disse Adrian.
—Nem pensar!
—Compreendo sua ira, Laclere. Asseguro que a única conexão que vi foi a dos dois suicídios, um dos quais pode ter sido resultado de uma chantagem. —A voz de Wellington cobrou severidade— O pergunto outra vez, tem alguma razão para suspeitar que seu irmão pôde ter sido também vítima de uma chantagem? Para que não sinta a tentação de mentir em altares de proteger seu nome, me deixe lhe dizer que acredito que outras pessoas estão sendo vítimas agora, esse acidente de caça de lorde Fairhall em maio não foi o que parece, e teremos mais desastres e mortes se não chegarmos até o final deste assunto.
A fúria de Vergil se fez mais intensa. Não foi pelo tom severo do duque. Esteve pensando naquele segredo durante quase um ano, perguntando-se se as coincidências e as conexões que ele mesmo suspeitava não eram mais que seus próprios delírios.
—Sim, acredito que Milton estava sendo chantageado. Acredito que é por isso que se matou. Ele deixou uma carta. Encontrei-a entre seus papéis, onde ele sabia que eu procuraria para me ocupar dos gastos da fazenda. Aludia a uma traição, se era a ele ou a outra pessoa não sei. A maior parte da carta falava da família, e de que seria melhor que ele saísse de cena antes que nos arruinássemos. Eu quis acreditar que se referia às finanças, que estavam em uma situação péssima então. Entretanto, estive me perguntando se não o tinham obrigado a escrever essa carta.
Sentaram-se sobre o tronco de uma árvore caída enquanto ele contava sua história. Wellington fazia desenhos na terra com sua bengala enquanto escutava.
—Suponhamos que em ambos os casos houve uma chantagem. O objetivo era que morressem? —perguntou Adrian.
—Essa é a questão, não? —disse Wellington.
—No caso de meu irmão a razão da chantagem só podia ser para tirar dinheiro. Não havia nenhum modo de que alguém soubesse que não podia pagar. Nossa situação financeira não era óbvia. Ele gastava como se não houvesse um problema.
—Normalmente, se supõe que o único que quer um chantagista é sangrar sua vítima. Entretanto, o momento que estamos vivendo… Tivemos provas de que há radicais tentando assassinar membros do Governo e da Casa dos Lordes. A situação, portanto é propícia para provocar problemas deste tipo.
—Meu irmão não se destacava no Governo.
—Tinha interesse na política.
—Um interesse teórico.
—Um interesse teórico radical. Isso deve tê-lo levado a contatar com homens que defendem a violência e que poderiam enredá-lo, e através dele outros — disse Wellington — Ele deve ter se comunicado ou associado inocentemente com homens desses, só para que logo usassem essa conexão contra ele mais tarde.
O comentário pendurava no ar, mendigando uma resposta. O duque tinha articulado claramente os próprios temores de Vergil a respeito da morte de Milton.
—Você encontrou cartas que demonstrassem uma relação de amizade entre seu irmão e o ministro de Assuntos Exteriores? —perguntou Wellington.
—Não as busquei. —Era mentira. Uma maldita mentira. Entretanto, não podia permitir que a hipótese se convertesse em um fato tão facilmente.
—Possivelmente deveria fazê-lo.
—Estive procurando em outras direções. Não acredito que haja uma conexão direta entre essas mortes, exceto possivelmente pelo mesmo chantagista. Estou mais interessado em encontrar esse homem que em averiguar quão pecados ele descobriu.
—Assim que essa é a razão pela que não esteve muito em Londres e tampouco aqui — disse Adrian— Progrediu algo?
—Um pouco. —Condenadamente pouco considerando quanto de seu tempo e de sua vida investiu nisso.
—Não há nada que eu possa fazer a respeito, salvo observar o comportamento dos homens e me perguntar se estão preocupados — disse Wellington— Tenho razões para pensar que vários estão. É uma ideia horrenda, a de que alguém esteja desentranhando segredos e usando-os para intimidar ou extorquir seus amigos. E o pior é que esses homens andam tão escassos de dinheiro que tiram a vida para escapar.
—E você, Burchard? Qual é seu interesse nisto, ou só veio hoje para organizar um encontro privado com Sua Excelência? —perguntou Vergil.
Wellington respondeu enquanto os três se levantavam para retornar até o carro escondido.
—Ele está fazendo algumas discretas averiguações para mim sobre lorde Fairhall. Dado que você sabe que é um homem de confiança espero que compartilhe com ele algo que averigúe para que possamos resolver este assunto de uma maneira rápida.
—É obvio.
Era outra mentira descarada. Adrian era um amigo, e tinha experiência tanto em investigações como em discrição, mas Vergil não tinha intenção de revelar o que descobrisse a ninguém se isso podia repercutir negativamente em Milton ou na família Duclairc.
Ele suspeitava que assim seria por todas as razões que cuidadosamente evitou discutir.
Capítulo 5
—Vê o que quero dizer? —sussurrou Charlotte.
Estava sentada junto à Bianca no salão enquanto os convidados chegavam à festa.
Vergil se achava de pé ante o suporte, conversando amavelmente com Fleur e sua mãe, a senhora Monley. Tinham chegado justo depois do meio-dia, em uma magnífica carruagem.
—Nada — murmurou Charlotte, sacudindo a cabeça— Não… Bom, não sei… Sua atitude. Vergil poderia perfeitamente estar falando comigo e Fleur com seu pai.
Sentada do outro lado de Charlotte, Diane Saint John, uma das amigas mais queridas da condessa, dava golpezinhos na mão. Seus olhos cheios de sentimento se voltavam risonhos quando olhavam para o suporte.
—Eu não me preocuparia com seu irmão ou a senhorita Monley. As coisas nem sempre são o que parecem nestes assuntos. Os vê estupendamente juntos, não? Um bom casal.
Sim faziam um bom casal. Fleur era toda cortesia e elegância, alta e magra, com a pele de alabastro e o cabelo escuro. Os cachos caíam de um coque decorado com lacinhos, emoldurando seu rosto ovalado que levava no centro uma boca franzida como uma rosa. A Bianca parecia uma pessoa inteligente, de voz suave, cujos olhos marrons estavam atentos a todos os detalhes.
Bianca experimentou uma vaga decepção ao notar que Fleur não a desagradava instantaneamente, ao mesmo tempo em que sentia uma inexplicável pontada de melancolia cada vez que olhava ao grupo junto à lareira.
—Tenho medo de que Vergil esteja se sacrificando por sua fortuna — disse Charlotte— Parece contente de vê-la, mas tendo em conta que sua família deixou Londres há oito semanas e, entretanto, estiveram separados todo este tempo…
—Isso não sabe — disse a senhora Saint John— Pode ser que quando ele não está aqui nem em Londres vá visitá-la.
—Eu acredito que não. A maioria das vezes vai a seu imóvel de Lancashire. Diz a seus agentes, a Pen e a instrutora que vem ficar comigo onde podem encontrá-lo. Se não se tratasse de Vergil, qualquer um poderia suspeitar que vai visitar uma mulher ali. Alguém que ama, mas com quem não pode casar-se.
Bianca se meteu de repente na conversa olhando fixamente Charlotte com uma expressão triste.
—Sugerir isso é escandaloso.
—Tenho entendido que esse tipo de coisas é muito habitual. Pen inclusive me insinuou que devo esperar que meu marido tenha outras relações de vez em quando.
A senhora Saint John baixou as pálpebras.
—Acredito que muita gente foi indiscreta quando fala ao seu redor, Charlotte.
Bianca viu que a senhora Saint John não havia dito que Charlotte estava equivocada, ou que sua ignorância a tivesse levado a interpretar mal as palavras de Penelope.
—Bom, isso explicaria muitas coisas. Para começar aquilo. —Charlotte fez um gesto com a cabeça em direção ao suporte da lareira— A demora em anunciar o compromisso formal por outro. Com sua beleza e sua riqueza ela não tem por que estar o esperando. O estranho é que a Fleur não parece importar que as coisas estejam assim. É sua mãe quem se impacienta.
Sim, sua mãe estava se impacientando. Os olhos da senhora Monley eram os mais iluminados pelo fogo da lareira. Seguia a conversa de sua filha com um encantador sorriso e um movimento de cabeça que dava à pluma de seu turbante de seda e cordões um inquisitivo ângulo.
—A noite promete alongar-se. Deveria se retirar para descansar — disse uma voz masculina.
Bianca afastou sua atenção da lareira para ver que Daniel Saint John se uniu a elas e se dirigia a sua esposa. Aquele homem atrativo que podia deslizar rapidamente de uma passiva frieza a uma atenção intensa, enfocava esta agora no que mais o interessava.
—Daniel se mostra muito protetor comigo quando estou em estado — confessou Diane com um sorriso— Depois de dois filhos, querido, já não sou tão frágil.
—De todos os modos, é necessário que descanse. —Ofereceu-lhe a mão para acompanhá-la.
A Bianca não passou despercebido o olhar que trocaram. Ternura, humor e uma absoluta devoção fluíam nesse fugaz contato. Era como se anos de lembranças colorissem a forma em que viam um ao outro, e enriquecessem inclusive aquela comum troca.
Bianca voltou a dirigir o olhar à lareira e viu como o comportamento de Vergil e Fleur contrastava com o daquele outro casal.
O comentário de Charlotte teve para ela uma nova dimensão. Não havia necessidade de uma demonstração aberta de paixão e afeto. De uma maneira silenciosa que não implica o contato físico, um homem e uma mulher podem estar intimamente conectados.
Diane Saint John aceitou a sugestão de seu marido e se levantou.
—Suponho que um breve descanso pode ser uma boa ideia. —Juntos, sem falar, mas dizendo-se muito, dirigiram-se para o salão.
A atividade do vestíbulo anunciava a chegada de outro carro.
—Por fim o último. —Charlotte ficou em pé— Este deve ser o da senhora Gaston. É uma das amigas de Pen e uma grande mecenas das artes. Apoiou Pen quando outros a abandonaram após sua separação. Acredito que Pen a convidou pensando em você, por sua carreira de cantora.
Bianca e Charlotte seguiram Penelope e Vergil para receber à nova convidada.
A senhora Gaston tinha vindo em uma grande carruagem. Pen se adiantou estendendo os braços para lhe dar a bem-vinda.
—Que amável por sua parte fazer um encaixe para vir a nossa pequena festa.
A senhora Gaston era uma bela mulher de sorriso encantador, maçãs do rosto marcadas e um cabelo castanho acobreado. Movia-se com uma orgulhosa elegância, levava um casaco com um exótico estampado e um chapéu com plumas extravagantes.
—É você a que foi amável ao me dar uma oportunidade para escapar da cidade durante uns dias. Entretanto, temo que dei um passo em falso e devo pedir sua indulgência por isso.
—Um passo em falso? Você? Nunca.
—Infelizmente sim. Trouxe uma amiga comigo.
—Quando lhe escrevi disse que seus amigos seriam bem-vindos.
—Sim, fez. Normalmente no caso de trazer alguém eu teria escrito para lhe avisar. Mas esta amiga chegou à cidade inesperadamente.
Um lacaio se aproximou até a porta aberta da carruagem. Uma mão enluvada e uma manga na moda apareceu. Uma cabeça escura de elegante penteado e chapéu se agachou enquanto a amiga em questão inclinava seu corpo para descer.
—Maria — exclamou Pen, abraçando a escultural figura envolta em musselina azul pálida— Ninguém sabia que viria nos visitar este ano. É uma surpresa maravilhosa para mim.
O rosto da mulher não era formoso, com suas feições muito marcadas, mas sua forma de comportar-se transmitia uma sólida dignidade e inspirava confiança.
—Foi uma decisão impulsiva por minha parte, querida minha. Milão é horrível com o calor. Meus músicos estão se comportando como meninos mimados, e o tenor para a próxima produção é um jovem idiota e arrogante que não se deixa dirigir. Simplesmente deixei a todos. Vamos ver como as arrumam sem Catalani.
—Oh, Deus, que sorte — sussurrou Charlotte a Bianca— Sabe quem é?
Bianca sabia. A mais importante cantora de ópera da Inglaterra, Maria Catalani, retornou da Itália há seis anos e agora dirigia uma companhia de ópera em Milão.
Que maravilhoso golpe de sorte. Com a senhora Gaston e Catalani ali, aquela festa prometia ser enormemente mais interessante do que esperava.
Vergil se adiantou para saudar Catalani, beijando sua mão de maneira lisonjeadora. Ela disse algo em voz baixa e seu rosto se iluminou com um sorriso.
Se a visita inesperada de uma cantora de ópera afligia Laclere, este não o demonstrou. Provavelmente trataria do assunto com Penelope mais tarde.
Penelope conduziu seus novos convidados ao interior da casa.
A Bianca tremia os joelhos pela emoção.
—Esta deve ser Charlotte. Já parece uma jovenzinha, encantadora — disse Catalani— Já teve sua estréia em sociedade?
—No próximo ano — explicou Pen— Vergil não aprova que nestes dias as garotas se apresentem a uma idade tão jovem.
Catalani olhou para trás ao visconde que as seguia e franziu os lábios com picardia.
—Um bom estratagema, e será muito efetiva. Deixemos que tenham que esperar por um diamante assim. Será a sensação da temporada, Charlotte. Predigo que seus irmãos necessitarão lacaios extras para vigiar as paredes do jardim.
Pen atraiu Catalani até Bianca.
—Esta é Bianca Kenwood, de Baltimore. É a pupila de Vergil.
—Nunca tive o prazer de visitar seu país. Temos que falar. Tenho muitas perguntas a fazer.
—E eu também tenho perguntas para você. Visitarei a Itália muito em breve.
—Está planejando uma grande viagem para sua irmã e sua pupila, lorde Laclere? —perguntou Catalani enquanto Pen a conduzia para o interior da casa— Necessitará dez lacaios extras então, se envia duas belezas como estas a meu país.
Bianca se apressou a alcançar Charlotte, atônita pelo curso dos acontecimentos. Essa festa prometia ser o ponto culminante de sua estadia na Inglaterra.
—Por hoje já estão todos os convidados — explicou Charlotte— Pen disse que o senhor Witherby escreveu dizendo que chegaria amanhã pela manhã. Vamos descansar um momento antes de jantar.
Bianca decidiu não fazê-lo a menos que ficasse claro que Catalani também se retirava. Esperou até que a imponente mulher subisse a escada flutuando com Penelope a seu lado.
Ficou sozinha de pé no vestíbulo vazio, sabendo que seria totalmente impossível descansar. Procurando alguma forma de aliviar sua ansiedade, entrou na biblioteca, encontrou o volume de poemas de Shelley que tinha estado lendo e se amassou em um divã encarado uma janela.
Aquele era seu lugar favorito para ler, especialmente pelas tardes. Uma luz tênue penetrava através da janela acompanhada de uma suave brisa. Ninguém podia vê-la ali a menos que se aproximasse do divã. Aquele tinha se convertido em um de seus poucos cantos privados.
Ouviu-se o ruído de passos de alguém que entrava na estadia. Ela se incorporou um pouco para ver de quem se tratava. Dante a reconheceu e caminhou para ela; levava seu chapéu e o látego de montar. Sentou-se em uma poltrona, frente a ela e esticou as pernas; também levava botas.
—Chegaram todos? —desapareceu de casa depois da chegada de Fleur.
—Todos menos o senhor Witherby.
—Surpreende-me que se atrase. Esperava que quisesse aproveitar cada momento para seduzir minha irmã.
—Charlotte?
—Pen. Converteu-se em um amigo muito especial para ela durante o último ano. Ou ao menos ele pensa que assim é. Não sei que ideia tem Pen a respeito, embora pareça desfrutar de sua companhia. Estou seguro de que é por isso que o convidou, apesar de que também é um velho amigo de Vergil.
A frase «amigo muito especial» aludia a algo mais que a uma mera relação de companheirismo. Dante frequentemente se despistava e falava daquela maneira tão familiar, como se compartilhassem alguma compreensão do mundo. Aquele tom de conspiração implicava um tipo de intimidade.
Ele vadiava com ar despreocupado, olhando-a por debaixo das grossas pestanas desse modo que sempre a fazia sentir-se tão incômoda. Sempre estavam a sós quando a olhava dessa forma.
—Maria Catalani acaba de chegar com a senhora Gaston. Foi uma surpresa para todos —disse ela.
Aquilo pegou sua atenção.
—A senhora Gaston está aqui? Deveria ter perguntado a Pen a quem esperava receber antes de aceitar ficar.
—Não te cai bem?
—É por pura insistência que conseguiu introduzir-se em muitos círculos. Vê a si mesma como uma grande patrocinadora de artistas e quer que todos saibam como promove suas corridas.
—Faz? Promove corridas?
Ele deu de ombros.
—Não saberia lhe dizer isso. Os círculos artísticos de Pen não me interessam muito, e parece que isso é o que temos aqui. A senhora Gaston e Catalani, diz. Lorde Calne é outro patrocinador das artes. Cornell Witherby será uma boa companhia, ao menos, apesar de que com os outros que há aqui provavelmente só falará de sua poesia. Espero que Vergil o distraia com outras coisas.
—Crê que Vergil permitirá que Catalani fique?
—Por que não ia fazê-lo?
—Isso pensei, possivelmente, com Fleur aqui e Charlotte e…
Seu comentário o deixou preocupado.
—Esta é a festa de Pen, e meu irmão sabe o que isso significa. Vergil pode ser um santo, mas nunca se comporta de um modo rude. Por outro lado, Catalani tem suficiente poder para ocultar os meios pelos que conseguiu sua fama. —levantou-se— Acredito que darei um passeio. Será uma honra se me acompanhar. Te mostrarei as ruínas.
Bianca já tinha encontrado as ruínas medievais que se conservavam no parque Laclere, e não queria as visitar sozinha com um mulherengo. E menos ainda com um que naquele momento a olhava com esse brilho nos olhos.
—Obrigado, mas acredito que continuarei um bom momento lendo.
Uma repentina irritação alterou sua expressão. Para sua surpresa ele se aproximou e acariciou sua mandíbula com um dedo.
—Não tem que ter medo de mim Bianca.
Ela se tornou para trás ante seu gesto.
—Seu irmão diz que aqui não é habitual dirigir-se a uma mulher de um modo tão familiar.
—Eu não sou meu irmão.
Não, não era. A última semana ela tinha sido o centro da atenção desse jovem. Tinha tentado desanimá-lo. Ao que parecia sem êxito.
Sua mão a tocou outra vez, sustentando seu queixo. Os olhos de Bianca se alargaram com incredulidade quando ele inclinou sua cabeça para cima, aproximou a sua e lhe deu um beijo nos lábios. Aconteceu tão rápido que a impressão lhe fez ficar completamente imóvel.
Ele a interpretou mal. inclinou-se para ela e a beijou profundamente, ao tempo que a abraçava.
Ela se separou dele e o lançou contra a janela com uma assombrosa fúria. Raivosa e envergonhada o enfrentou.
—Não se atreva a voltar a fazer isso.
Ele se levantou.
—Minhas desculpas. Deveria ter te pedido primeiro permissão.
—Não o teria obtido.
—Eu acredito que sim.
—Interpreta mal nossa amizade.
—Não acredito. Está assustada e confusa, e isso é normal para alguém tão inocente. Não voltarei a te beijar sem sua permissão, mas quando lhe pedir isso me dará isso.
Ela andava a provas procurando uma resposta mordaz. Ele sorriu com uma confiança em si mesmo que resultava insofrível e saiu da estadia.
Ela voltou a afundar-se no divã, levantou as pernas e se encolheu em seu canto. O que teria feito pensar a aquele patife que ela reagiria bem ante semelhante coisa? Teria ouvido algo a respeito de seus espetáculos em Londres? Até onde ela sabia, tinha ido a um.
Que sorte para ela que o irmão equivocado tivesse concluído que ela era um pouco selvagem e descuidada com o decoro.
***
—Se escondendo das obrigações de sua condição? —perguntou Dante ao entrar no escritório onde Vergil se achava lendo sua correspondência.
—Tomando um descanso porque se seguir sorrindo durante mais tempo meus lábios vão se romper.
—Tampouco está tão mal. Convidou Witherby e Saint John, assim poderá se divertir.
Vergil estava agradecido de que Pen tivesse convidado Daniel e Diane Saint John. Não os via há meses. Eram também amigos de Pen.
Ela tinha amizade com Diane Saint John quando a jovem acabava de chegar a Londres, e desempenhou um papel nos dramáticos acontecimentos que precederam o casamento de Diane com o magnata de uma companhia naval.
Quanto a Witherby, Vergil suspeitava que Pen o convidasse por razões que nada tinham a ver com que ele se divertisse.
Dante vadiava apoiado contra o marco da janela e, distraidamente, deixava cair a bolinha de chumbo sobre as rampas do brinquedo.
—Fleur está tão encantadora como sempre. Podemos esperar que anunciem seu compromisso uma noite destas depois do jantar?
—Não acredito.
—Já é hora, Verg.
—Dentre todas as pessoas que poderiam me dar lições, Dante, você seria o último. Minhas responsabilidades com os membros atuais desta família pesam mais que qualquer responsabilidade que pudesse ter respeito a membros futuros.
—Está me dizendo que resultamos tão caros que não pode te permitir uma esposa?
—Estou dizendo que qualquer mulher que se case comigo terá certas expectativas que neste momento não estou em condições de cumprir. O qual nos conduz ao assunto de seu próprio matrimônio, que será um alívio significativo para nossas cargas financeiras. Devolvo-te a pergunta. Devemos esperar uma notícia? Recordo um jovem cheio de confiança em si mesmo dizendo com presunção que uma semana bastaria.
—Maldita seja, estas coisas levam seu tempo. Além disso, ela é… Difícil de entender.
Levou uma cadeira junto ao escritório e se sentou à mesma altura que seu irmão do outro lado, com as pernas cruzadas, apoiando o braço sobre a mesa e deixando descansar sobre este a cabeça. Era a pose que Dante adotava quando queria falar «de homem a homem».
Dado que o tema de conversa era Bianca Kenwood, Vergil teria desejado economizar as confidências. Bianca constantemente penetrava em seus pensamentos, e a última noite, depois de sua volta a Laclere Park, surpreendeu-se rondando o salão entre as damas até que ela se retirou.
—Às vezes penso que ganhei terreno só para acabar por me dar conta de que era uma ilusão. Ela parece muito quente uma manhã, mas pela tarde a vejo ser igualmente calorosa com um criado. Posa esses grandes olhos azuis em mim e penso que deveria lhe propor matrimônio naquele mesmo momento, mas depois me ignora durante toda a hora seguinte. Às vezes penso que estou tratando com uma garota tão ignorante que nem sequer nota meu interesse, e outras vezes…
—Outras vezes?
—Outras vezes me pergunto se é tudo menos ignorante e se não está me tratando como um brinquedo. Me perdoe, mas estamos falando sem disfarces.
—Você certamente sim.
—Pergunto-me se está sendo deliberadamente intrigante. Esquiva de um modo calculado.
—Soa-me como se lhe estivesse jogando a culpa de seu fracasso.
—Possivelmente. Mas há algo nela indefinível… Um ar, uma fragrância, não sei o que. A olho e vejo toda a inocência da primavera, e de repente me devolve o olhar e me encontro pensando que seria uma esplêndida amante. É uma combinação confusa e fascinante.
Assim Dante acabou percebendo aquilo que Vergil notou nessa primeira noite na sala de jogos, e muito frequentemente após.
—Confio em que não seja muito fascinante.
—É obvio que não. Mas deixa a um fora de jogo. Há uma arte na sedução, e conhecer a mulher é uma parte essencial.
—Sempre estou agradecido por suas instruções nessas matérias, Dante, mas vamos ao ponto. Se propuser matrimônio amanhã, acredita que aceitará?
—Maldita seja se sei.
Isso significava que provavelmente não.
—Sabe que está interessado por ela? Talvez interprete seus cuidados como uma amostra de simples amizade, uma mão amistosa em um país estranho.
—Agora já sabe.
—O que significa isso?
—Acabo de vê-la na biblioteca.
—Declarou suas intenções?
Dante olhou ao longe e Vergil instantaneamente soube que tinha expressado seus interesses com ações, e não com palavras.
Quase salta por cima do escritório para estrangulá-lo.
—Me deixe expressá-lo de outro modo. Sabe que suas intenções são honestas?
—De que outro modo poderiam ser? Ela é sua pupila.
Vergil esfregou o cenho.
—Bom, suponhamos que ela ouviu falar sobre você…
—De quem? Seria estranho que Pen fosse contando histórias.
—De outra pessoa. Um criado. Jane, sua empregada. Nigel Kenwood.
—Não viu Nigel mais que uma vez em toda a semana, quando Pen o convidou, e não estiveram a sós, assim que ele não pôde…
—De quem é Dante. Supondo que alguém contou algo. Se você não explicar que suas intenções são honestas, ela poderia pensar que a persegue por outras razões.
Dante se endireitou.
—Se for assim, fui insultado.
—De todos os modos…
—Não sou um descarado.
—Recomendo que esclareça as coisas. Se ela te interpretou mal, só conseguirá que a partir de agora te evite.
Dante se levantou e caminhou até a janela.
—É obvio, tem razão. Entretanto, se fizer uma proposta de matrimônio e me rechaça se acabou o jogo. Explicar minhas intenções, embora não seja pedir a mão, termina sendo o mesmo. As garotas têm estes caprichos, e um homem que as persegue apesar delas fica como um parvo. Estava sentado na biblioteca e me surpreendi perguntando isso acaso não é contraditório?
—O que diz não tem muito sentido.
—O que acontece se ela é realmente inocente, mas tem à outra dentro? O homem que conseguisse despertá-la estaria em uma posição muito poderosa a respeito dela. Se se tratar de chegar pelo caminho mais rápido, pois…
—Não.
—Não estou falando de nada desonroso, Vergil. Só um pequeno escarcéu que nos economizaria muito tempo.
—Não fará nada que possa comprometê-la nem remotamente.
—Está sendo pouco prático e se preocupa muito pelo decoro. A ideia foi tua, recorda? Se a comprometer, o matrimônio será inevitável.
Não era seu tão cacarejado sentido do decoro o que se rebelava contra as insinuações de Dante, a não ser algo mais visceral, algo que tinha a ver com um fervor incessante, o perfume de lavanda e uma voz melodiosa que tinha estado cantando em sua memória durante uma semana de viagem e obrigações. Ao menos ser um santo tinha suas vantagens. Não podia malograr seus planos, mas não permitiria que Dante estendesse uma armadilha à garota.
—Ganhar honestamente o afeto de uma mulher pode parecer um longo e tedioso esforço a um homem acostumado a aproveitar as paixões rápidas, Dante, mas se pretende consegui-la é o que terá que fazer.
—Ao menos alguém nesta família tem um pouco de paixão. Entre você e Milton…
Ante a menção do nome de seu irmão todo o corpo de Vergil se esticou.
—Acredito que deveria ser muito cuidadoso e não mencionar Milton e seu imprudente apetite na mesma frase.
O ressentimento escureceu o rosto de Dante.
—Continua me culpando de algo que não pude prever.
—Equivoca-se. Não te culpo. Não havia forma de que soubesse o que pretendia fazer. Mas não o coloque nestas discussões. Me insulte tudo o que queira, mas deixa nosso irmão e sua memória à margem deste assunto. Nada disso tem a ver com a senhorita Kenwood e sua forma de se comportar com ela.
—Ah, sim, a adorável Bianca. Está tão preocupado por ela que está te pondo muito sutil, Verg. Seu amparo é curiosamente seletivo e meio cego. Não permitirá que ninguém comprometa sua pupila, mas está disposto a consentir que se veja atada por toda vida a um homem que despreza.
Aquelas palavras deram no alvo por razões que Dante nunca saberia.
—Eu não te desprezo.
—Ah, não? Pode ser que não me culpe, mas jamais me perdoou.
Vergil viu dor naquele belo rosto que nunca se mostrava preocupado. Devia ter sido mais consciente do sentimento de culpa que a morte de Milton causou em Dante.
Era estranho que a discussão sobre uma garota que não tinha nada a ver com aquele episódio o tirasse do baú.
—Posso te fazer críticas sobre a forma em que vive sua vida, mas isso não reflete meus sentimentos com respeito ao rol que desempenhou sem te dar conta no desastre do ano passado. Não precisa ser perdoado por isso, Dante. A ignorância não é uma ofensa imperdoável. Se nunca falei disto contigo antes, não foi porque te jogue a culpa a não ser só porque não quero me lembrar daquilo. Entretanto, possivelmente minha reserva não tenha sido justa para você.
O rosto de Dante era uma imagem de tensa serenidade, mas seus olhos brilhavam.
—Eu estava aqui. Jantei com ele. Deveria ter visto…
—Estou agradecido que esteve com ele durante sua última hora. Acredito que ele também esteve.
O ar na estadia estava carregado com a crua intimidade que tinha nascido de uma franqueza inesperada. Caiu uma barreira invisível cuja existência Vergil jamais foi consciente. O abismo que se abriu entre eles após a morte de Milton foi superado, e tudo devido às conflitivas emoções que a presença de Bianca Kenwood criou naquela casa.
Olhou seu jovem irmão com novos olhos, e percebeu uma profundidade cuidadosamente disfarçada por aquele despreocupado libertino. Poderia ter homens piores para ela.
Dante sorriu com ironia e se dirigiu sem pressa até a porta.
—Farei a sua maneira, Verg. Será interessante, tentar inspirar um afeto casto nada mais que com insinuações. Mas me limita injustamente. Não posso jogar minha melhor carta. Depois de tudo, não tenho nada a oferecer à garota mais que o prazer.
Uma hora antes, Vergil teria estado de acordo.
Capítulo 6
Na manhã seguinte Vergil foi o primeiro a baixar à sala do café da manhã. Queria tomar o café da manhã sozinho antes que chegassem os convidados.
Acabava de se sentar ante seu prato quando um movimento junto à janela chamou sua atenção. O brilho verde e dourado de uma cabeça loira e uma figura esbelta desapareceram entre os arbustos.
Bianca Kenwood se levantou ao amanhecer.
Afastou a vista da janela com preocupação. Dante disse que ela só havia visto Nigel Kenwood uma vez, mas Dante não sabia nada a respeito das aventuras a alvorada de Bianca. Era possível que ela e Nigel levassem uma semana vendo-se em segredo.
Deixou que uma espessa cortina cobrisse a imagem que se formava em sua mente. Não havia nenhuma prova sólida de que estivesse se encontrando com seu primo. Ao mesmo tempo, qualquer que fosse seu propósito, o certo era que entrava alegremente no parque ao amanhecer apesar do perigo dos caçadores furtivos com o que teve que enfrentar naquele dia a cavalo. Aquele episódio teria bastado para que qualquer jovem normal desde aquele dia temesse aventurar-se a sair a menos que a acompanhasse meio exército.
Mas ela não era uma jovem normal.
Antes que o servissem o café da manhã, saiu ao jardim e se dirigiu para o caminho por onde ela entrou.
—Laclere.
Vergil se voltou para a voz que o chamava. Cornell Witherby se aproximou dele dando grandes pernadas através do caminho que conduzia ao estábulo.
Ao entrar no atalho, o dourado e o verde ficavam engolidos pela erva.
—Não me diga que cavalgou durante a noite, Witherby. —Vergil viu que o recém-chegado ia vestido com uma jaqueta marrom de montar e calças de cor parda clara. As botas pareciam novas e o cabelo loiro que aparecia sob seu chapéu tinha um corte moderno.
Witherby era muito belo e parecia estar com um humor estupendo.
—Cavalguei a maior parte do caminho ontem pela tarde e dormi em uma estalagem.
—Estava ansioso para chegar?
—A cidade se tornou ruidosa estes últimos dias. Há manifestações diariamente. Muitos arrestos. Me fará bem o ar do campo. A musa se volta irritável ante tantas distrações.
—Confio em que não se distraia aqui. O café da manhã te espera, mas deverá alimentar sua musa em solitário. Minha irmã ainda não se levantou para cumprir com seu papel de anfitriã.
Witherby esboçou um sorriso ao ouvir mencionar Penelope. Ele sabia que Vergil sabia suas intenções, e Vergil sabia que ele sabia, mas um homem não fala dessas coisas com o pretendente de sua irmã casada, nem sequer embora sejam velhos amigos.
—Ficará feliz em saber que a reunião é de artistas, como é de esperar com Pen — disse Vergil.
—As festas da condessa são sempre deliciosas. Espero que esta supere as outras.
Vergil decidiu não especular sobre quanto deleite poderia estar Witherby antecipando. Uma casa de campo grande e tranquila oferece todo tipo de oportunidades para a intimidade.
Com firmeza afastou esses pensamentos de sua mente.
—Está vestido para cavalgar — observou Witherby— Vou contigo.
—Primeiro um passeio, depois cavalgaremos. Vá e se instale com a maior comodidade que possa. Saint John está aqui, além disso, normalmente baixa cedo, assim não se aborrecerá muito tempo.
Dando pernadas alegres e calmas Witherby se dirigiu para a casa. Vergil esperou até perdê-lo de vista, depois deu a volta e prosseguiu em busca de Bianca.
Quando conseguiu divisá-la reduziu o passo para poder segui-la a uma distância prudente.
A seguia porque se preocupava com sua segurança, mas também devia admitir que queria saber se Nigel a esperava em algum lugar.
Quando tinha entrado mais de um quilômetro entre as árvores, ela tomou um atalho que ia para o oeste. Ele viu que se dirigia para as ruínas. Não era um bom sinal. O castelo medieval era um lugar ideal para um encontro de casal.
Ela já não estava à vista quando ele entrou entre a erva alta que rodeava as ruínas das mais antigas fortificações do parque Laclere. Da torre tinha sobrevivido meia armação, e só uma sessão das velhas ameias perdurava, muitas paredes vieram abaixo e outras se viam a ponto de desmoronar. Grandes pedras dispersas cobertas de más ervas deixavam claro que uma vez serviram como o muro de amparo. De toda a estrutura da muralha o único relativamente intacto era uma solitária torre quadrada.
O assaltaram nostálgicas lembranças da infância, como o do fácil vínculo que uma vez compartilhou com Dante, e que os segredos e a falta de cuidado quase destruíram. Esquadrinhou a paisagem em busca do rastro da senhorita Kenwood.
De repente um som apagado e doce flutuou através do silêncio da manhã. Elevava-se e baixava como uma suave onda no meio da brisa, enviando redemoinhos que o rodeavam. Ele o seguiu até a fonte de onde provinha na torre quadrada, e entrou através da soleira de pedras.
O som o afogou, elevando-se fora das paredes e a abóbada. Acima na câmara da sentinela, a senhorita Kenwood praticava suas escalas, e sua voz ganhava em volume com cada ascensão que repetia. Ele se deteve e ouviu a escala de repetições de alguém que afiava e esquentava sua voz.
Ela se interrompeu e ele a ouviu falar. A Nigel? O homem devia usar sua música para atraí-la até ali. Se assim era, não corria um perigo imediato. Ele duvidava que ela decidisse abandonar sua paixão original para dedicar-se a explorar outras justo agora.
O som emergiu de novo, baixando torrencialmente a escada. Agora não se tratava de escalas, mas sim de uma ária de Rossini.
A melodia o embargou. Precisa e disciplinada, tinha a textura da elaborada canção de um pássaro, empapava a mente, transbordava o coração e agitava os sentimentos do modo em que a melhor música sempre faz. Os sensuais matizes de sua voz alagaram o reservado esconderijo que ele esteve lutando para manter a salvo.
Quase de um modo involuntário, suas pernas o conduziram à escura escada, para a sereia que sem saber o atraía a uma borda proibida.
Ela estava de pé só na câmara, de costas a ele, emoldurada pelas linhas das paredes que se estreitavam para formar um teto abobadado. Nigel não estava. Não havia ninguém ali. Ela devia ter falado consigo mesma.
Ele apoiou o ombro contra o marco da entrada, para olhar e escutar. Desejava poder ver seu rosto, mas em sua memória ainda conservava a radiante expressão da que tinha sido testemunha aquele dia em que ela atuou no salão de música.
Não lutou contra suas reações. Teria sido incapaz de fazê-lo embora gostasse de fazer. Em lugar disso deixou que suas notas se elevassem em uma maré que fez desaparecer o mundo inteiro exceto essa paixão dela e seu próprio e atônito desejo.
A fazia sentir-se tão bem. Transportada. Gloriosa. Sua voz tomava o poder de seu corpo e dissolvia sua substância até que só o canto existia. As pedras enriqueciam o timbre como nenhuma sala poderia fazer. Ela desejava poder levar Catalani ali.
Terminou muito rápido, e ela, com pesar, sustentou a última nota mais do que a partitura requeria. Esta ficou pendurando por cima dela, gotejando como o néctar de uma gema no interior de seu espírito aberto.
E finalmente se extinguiu, deixando-a gasta e um pouco melancólica.
De repente notou que não estava sozinha. Temendo que Dante a tivesse seguido deu a volta com receio.
O visconde estava apoiado com ar despreocupado contra a entrada da câmara, com os braços cruzados sobre o peito, olhando-a. Estava muito bonito, e havia nele algo intenso apesar de sua pose despreocupada.
—Seguiu-me até aqui, tio Vergil? Para me espiar?
—Foi só para te proteger, mas sim, a segui.
—Estou segura de que não corro perigo no parque Laclere. Seus audazes caçadores furtivos devem ter se mudado ou mudado seus métodos de caça. Não houve disparos esta última semana.
—Se sabe isso, é porque deve ter vindo aqui frequentemente. Sempre para cantar?
A câmara tinha uma janela, não maior que a fenda de uma flecha. Ela se dirigiu para ali, afastando-se dele. As pedras aumentavam os matizes do tom de Vergil e isso a fez mostrar-se precavida. Seus olhos tinham uma expressão oculta que ela não podia ler. Sua presença a impressionava como se fosse perigosa. Era uma reação ridícula, mas não podia evitá-la.
Examinou a paisagem, evitando seu olhar fixo.
—Não aceito a situação que te faz pensar que tem direito de me interrogar. Sim, venho aqui frequentemente, geralmente em manhãs como esta. Encontrei esta torre um dia enquanto cavalgava. E sim, para cantar.
—Sozinha?
Ela o olhou por cima do ombro.
—Acaso acredita que marquei um encontro com Nigel aqui? Seguiu-me para me proteger de intenções desonestas? —A ideia lhe deu vontade de rir. Um amparo tão cuidadoso de sua virtude no campo enquanto seu próprio irmão a assaltava na biblioteca— Perdeu seu passeio a cavalo para nada. Não me ocorreu a ideia de usar esta torre para encontros desse tipo. Terei-o em mente para futuras ocasiões.
—Duvido que o faça. Não terá tempo para pôr em prática. Não a adverti antes, mas esta câmara afeta ao som do mesmo modo que as antigas Igrejas normandas. Qualquer que seja a potencial atração de seu primo, estas pedras têm mais.
—Possivelmente ele deva escutar. Como fez você.
Ele se separou da parede com um vago sorriso.
—Se o fizer, definitivamente necessitará amparo.
Caminhou para ela despreocupadamente. Ela sem se dar conta se afastou até a borda. Em realidade era uma tolice, mas aquele dia havia nele algo diferente. Algo fascinante, mas também desconcertante.
—Pen anunciou que cantará esta noite. Está ensaiando sua atuação, para se assegurar que estará nas melhores condições frente à Catalani?
—Sim.
—Falou um bom momento com ela ontem à noite. Um encontro tete a tete. Suponho que explicou seus planos.
—Não tem por que preocupar-se, não vou pôr nem você nem Pen em uma situação delicada. Ninguém mais me ouviu e acredito que ela sabe que é necessária a discrição entre os convidados de um visconde.
Ele continuava movendo-se, olhando ao redor do cômodo como se não tivesse estado ali em muito tempo. Ela sentia constantemente o impulso de partir longe.
—O que te aconselhou Catalani?
—Estava de acordo comigo em que se quero receber a melhor instrução devia ir a Itália, ou trazer um dos melhores professores aqui. Enquanto isso, deu-me o nome de um tutor com quem poderia trabalhar em Londres. Recomendou-me o senhor Bardi, que trabalha como professor do bel canto com alguns dos melhores cantores de Londres.
—Nenhum outro conselho? Não esperava que Catalani fosse tão reservada.
—Perguntou-me se entendia essa vida, se sabia o que implicava.
—E sabe?
—Sei que implica trabalho duro. Contínuas viagens. A necessidade de atuar apesar de estar cansada ou doente.
—Não é a isso a que ela se referia.
Seu rosto se acendeu.
—Sei a que se referia.
—Não acredito que saiba. Não de verdade. Duvido que tenha a mais remota ideia do que significa se converter em alguém que nenhuma mulher respeitável teria como amiga. Essa cantora de ópera pode visitar casas como esta, mas só há uma Catalani. Não será o mesmo para você. Não haverá nenhuma tia Edith na Inglaterra ou na Itália para te proteger das más línguas.
A irritação a fez ficar cravada no chão.
—Sei o que essa gente chamada decente pensa sobre essas mulheres. De fato vi muitos homens decentes aproximar-se de minha mãe às vezes. Quando cresci entendi o que queriam. Tratarei com eles como ela o fazia. Supõe-se que devo renunciar a algo importante para mim, essencial para mim, por culpa de preconceitos sem fundamento?
Ele continuava caminhando. Fazendo círculos e círculos. Se ele não fosse o proprietário de uma cidadela, se sua conduta não fosse tão despreocupada, ela teria sucumbido à sensação de estar sendo acossada. Por ser alto ele devia permanecer perto do centro do cômodo, e o círculo que desenhava parecia bastante menor agora que ela se achava justo no centro.
—Os preconceitos a respeito de muitas atrizes e cantoras estão muito bem fundados — disse ele, como se discutir sobre mulheres de má reputação fosse um tema perfeitamente aceitável.
—A vida dessas mulheres é muito insegura, e eu suponho que muitas artistas precisam aceitar o amparo que lhes oferecem.
—Você acredita que é o desespero o que faz que essas mulheres se convertam em amantes e cortesãs, e que sua herança te salvará? Seu julgamento é mais duro que o meu. Eu assumo que é a solidão. Um matrimônio decente é quase impossível. Haverá quem esteja disposto, mas ninguém a quem você seja capaz de amar.
Aquela conversa tão delicada se tornou de repente pessoal.
—Sei. Entretanto, há coisas que valem sacrifícios.
—Uma vida inteira de sacrifícios? Pensa isso agora, mas e dentro de dez anos? E de quinze? Sem casar, sem filhos, sem lar. Entendo que é mais triste que escandaloso que para a maioria dessas mulheres o dia começa quando alguém lhes oferece algo parecido ao amor e o agarram. Não importa o que decidam quando começam, depois de um período virtuoso, uma solidão antinatural, a escolha é virtualmente inevitável.
—Como se atreve a prognosticar um futuro tão desolado e sórdido para mim? É muito cínico ao afirmar que se perseguir minha carreira de cantora, estarei predestinada a me afundar. Embora tampouco veja por que se importa tanto.
Ele se deteve e se afastou uns passos.
—Sou responsável por você.
—E por isso se mete em minha vida, para me proteger de mim mesma. Durante dez meses.
—Mais. Se puder achar a maneira.
«Mais!»
—Não se atreva a tentar me impor mais obstáculos. Não o tolerarei.
—Sua decisão me deixa pouca escolha. Deve acreditar que pode viver como uma monja, mas duvido que possa fazer isso indefinidamente.
—Suas implicações são tão insultantes como escandalosas.
—Não são insultantes absolutamente. E escandalosas só se acabar por te converter na amante de um homem em lugar de na esposa de um homem.
—Cruzou a linha, cavalheiro. É impróprio que me fale dessa forma, inclusive sendo meu protetor.
Vergil inclinou a cabeça e um sorriso sarcástico bateu as asas brevemente em seus lábios.
—Cruzei a linha? É bastante provável. Surpreendo a mim mesmo. — Olhou a seu redor como se de repente se desse conta de onde estavam. —Terminou ou pretende seguir praticando?
—Quero ensaiar a ária uma vez mais. Voltarei para casa em seguida.
—Esperarei e te acompanharei de volta.
Apoiou-se outra vez contra a parede, em uma pose de relaxada paciência. Ela notou um acanhamento peculiar.
Ela se dispôs a dar volta, mas ele negou com a cabeça.
—Se não puder praticar com um homem te olhando, como atuará em um teatro que esteja cheio deles?
«Porque isso é diferente.» Parecia uma resposta irracional, mas era diferente. O foco de dois olhos, desses dois olhos, incomodava-a mais que um oceano de rostos. A atenção de uma pessoa, dessa pessoa, agitava-a mais que uma sala de concertos cheia a transbordar. Se ao menos outra pessoa estivesse presente, isso teria servido para diluir essa conexão singular. Depois de tudo, ele esteve no salão de música e ela não reagiu assim.
Ela afastou seu olhar e tentou apagar a consciência dele, mas não funcionou. A ária começou fracamente, como se o ar encontrasse um obstáculo ao passar através de sua garganta. A obstrução fez que seu coração palpitasse nervosamente. Estúpido. Estúpido. Recuperou certa calma graças ao ressentimento por sua intrusão e encontrou seu caminho.
A música se encarregou do resto. A concentração na técnica e a expressão a absorveram. O regozijo a transportou. Entretanto, não foi como a última vez. Outro espírito se unia a ela naquela viagem, seguindo-a, empurrando-a, abrangendo-a. Ao seguir com a canção não pôde resistir a olhá-lo. Ele esperava de um modo indiferente, olhando para baixo, um homem oferecendo educadamente seu tempo antes de passar a dedicar-se a outras coisas mais importantes.
Ele notou sua atenção. Elevou seu olhar e encontrou com o dela. Ela quase se quebra em um abrupto silêncio. Os olhos dele resultavam mais desconcertantes que de costume. Sua expressão profundamente cálida, sutilmente selvagem e claramente masculina não tinha nada de paternal ou distante, e muito menos de protetora.
Deus santo foi seu canto o que tinha provocado isso?
Apesar de seu desconcerto inicial, uma surpreendente emoção a atravessou como um raio. Em lugar de vacilar sua voz remontou voo. Não podia afastar a vista dele e a ária criava entre eles uma provocadora união. Espiritual. Sensual. Quase erótica.
Um instinto de alarme a sacudiu, apesar de que uma embriagadora sensação de poder crescia. A euforia se transformava em algo inegavelmente físico entre sua fascinante conexão.
Ela não poderia ter se detido embora tivesse querido. Emoções desconhecidas impulsionavam sua voz com novas paixões. Fechou os olhos ao final, mais para conter as sensações que para saboreá-lo. As pedras sustentaram os últimos sons como o silencioso eco de um longo pulsar do coração.
Não queria abrir os olhos. Ali ocorreu algo que não queria saber, algo que não implicava palavras nem tato, mas que era mais indecoroso que o beijo de Dante. Ele devia saber. Ela devia ter parado. Não queria olhá-lo até que aquela terrível falta de fôlego se aplacou.
Uma brisa cálida a fez abrir um pouco as pálpebras e viu umas botas limpas perto de sua saia. Uma mão dele, magra e forte, tomou a sua, a levou até os lábios e lhe deu um beijo veloz.
—Seu canto é nada menos que magnífico senhorita Kenwood. Catalani ficará impressionada esta noite.
Ela teve que olhá-lo. Ele fez um gesto formal assinalando a escada. Sua expressão recuperou seu habitual autodomínio e altivez, mas a outra seguia ali, como se o manto de reserva com que ele a cobriu fosse transparente.
Guiou-a pelo caminho, dando sua mão para baixar as tortuosas rochas, uma cuidadosa representação de uma imparcial e cortês preocupação. Enquanto davam a volta ao longo da parede para chegar até o atalho, ele se deteve e elevou a vista até as ameias.
—É muito pitoresco — disse ela, esperando que um pequeno bate-papo servisse para vencer aquela estranha sensação que parecia instalada.
—Meu pai considerou a possibilidade de restaurá-lo e reconstruí-lo. Mas finalmente, em lugar disso decidiu remodelar a casa. Isto teria custado três fortunas em lugar de uma, e o resultado teria sido uma moradia apenas habitável.
—Acredito que é mais bonito tal e como está, aos pedaços e com retalhos de história aparecendo entre os arbustos. Seria uma tolice reconstruí-lo completamente e com cimento novo.
—Estávamos acostumados a brincar aqui de meninos. Dante e eu éramos os cavalheiros, e obrigávamos Pen a interpretar o papel da dama prisioneira por um malvado guardião. —Um amplo sorriso apareceu ao dizê-lo— Você pode interpretar esse papel agora.
A pequena trama que contou podia tê-la ajudado a reduzir a percepção de tê-lo de pé junto a ela, mas simplesmente não era capaz de responder com o mesmo tom.
—Brincava também seu irmão mais velho com vocês?
—Quando éramos muito jovens sim o fazia. Depois cresceu e nos deixou para trás, suponho. —Seu olhar às ameias se voltou reflexivo— Quando se fez maior se refugiou em seus próprios interesses, e em sua própria mente. Quando começou a ir à universidade já era um estranho.
—É por isso que agora quer ler suas cartas? Para conhecer coisas dele que não te permitiu conhecer enquanto vivia?
De repente moveu a cabeça e lhe dirigiu um estranho olhar, como se ela o tivesse surpreendido.
—Suponho que sim, em parte.
Sua atenção se separou das emoções para voltar a centrar-se na torre outra vez. Ela se obrigou a afastar o olhar, para a parede.
—Eu gostaria de explorar o torreão algum dia.
—Não recomendo isso. Há anos é perigoso. O passeio pela muralha também é. Não havia tantas pedras espalhadas pelo chão quando era menino.
Para enfatizar sua afirmação, uma pedra do tamanho de um punho caiu ao chão, aterrissando justo aos seus pés. Vergil olhou para cima franzindo o cenho, esquadrinhando com seus olhos as ameias. Bianca deu a volta para afastar-se.
Um ruído sinistro se ouviu acima. Outra pedra caiu, golpeando o ombro de Bianca.
De repente tudo se fazia impreciso. Ele a pegou pelo braço para afastá-la, fazendo-a apoiar-se contra a parede. Ela comprovou que se achava imobilizada, entre uma pedra dura e um corpo duro também, com os ombros abraçados por uns braços que a cobriam, seu rosto escondido contra o pescoço dele e sua cabeça apertada contra a sua. Sua vista quase já tinha se endireitado quando uma avalanche letal de grandes rochas caiu ante eles, uma delas ricocheteou sobre suas cabeças antes de cair ao chão roçando as costas de Vergil.
Ela olhou horrorizada a chuva de morte e se encolheu dentro de seu refúgio. Pareceu transcorrer uma eternidade antes que os chiados e estrondos cessassem.
Vergil elevou a cabeça para examinar a parte superior do muro.
—Toda uma parte das ameias veio abaixo.
—Uma lição apropriada para evitar o encontro com estas ruínas no futuro. Quem imaginava que a tranquila Laclere Park podia ser tão perigoso?
Ela falou presa do nervosismo apoiada contra seu lenço. O tecido azul de seu casaco acariciava suas bochechas e seus dedos descansavam na seda bordada de rosas de seu colete cinza. A comoção a colocou em um estado de alerta extremamente sensível e uma parte de sua mente, de maneira absurda, contemplava a variedade de texturas de seus objetos. E a maravilhosa segurança que proporcionava seus braços. E sua masculina fragrância.
—É possível que meu canto tenha ocasionado isto?
—O mais provável é que a gravidade tenha rematado o que o tempo iniciou. De todos os modos, as possibilidades de presenciar algo assim são mínimas. Possivelmente sua voz acrescentasse um empurrão. —Inclinou a cabeça para ver seu rosto— Está ferida?
—Acredito que não.
Uma mão deslizou ao longo de suas costas para apertá-lo brandamente no ombro.
—E aqui dói?
—Está um pouco dolorido. Mas o mais provável é que só tenha um arranhão.
Ele não a soltou. Com uma mão ainda a envolvia e a outra descansava cuidadosamente em seu braço debaixo do ombro ferido. Sentir-se protegida por sua força a tranquilizava muito.
—Isto é mais ou menos o que disse depois que o cavalo te lançou ao chão. Supõe-se que deveria desmaiar ao enfrentar tanto perigo.
Ela sabia que ele não se referia às rochas, nem aos caçadores furtivos, a não ser à proximidade física que ambos os episódios favoreceram.
Sua advertência soou tão clara como uma sereia junto a seu ouvido. Mas não pôde lhe fazer caso. Sua masculinidade a fazia sentir-se pequena e indefesa de um modo deliciosamente pecaminoso.
Ela levantou a vista para seus reflexivos olhos.
—Eu nunca desmaio.
Voltou a ver nele aquela expressão que tinha quando se achavam no cômodo de pedra, enchendo-a de maravilhosas palpitações. A mão que tinha sobre seu braço deslizou para seu ombro, para voltar a baixar.
—Não desmaia? Nunca?
Ela voltou a sentir a lenta carícia. A suave fricção criou um murmúrio de sensações. Dentro dela. Através dela. Aquela ária havia a tornado vulnerável, e o medo tinha arrebatado seu habitual autodomínio.
Devia fazer algum comentário malicioso para acabar com esse pequeno jogo, mas só queria que aqueles dedos voltassem a deslizar sobre seu braço.
—Nunca.
—Todas as garotas deveriam desmaiar ao menos uma vez.
A mão a acariciou para cima e não baixou. Foi uma lenta carícia. Delicada sobre seu ombro, quente ao passar por seu pescoço, suave em sua bochecha, firme entre seu cabelo.
Ela quase se derrete quando ele inclinou a cabeça e a beijou nos lábios.
Lábios quentes. Firmes e controlados como tudo nele. Pausados. Comedidos, mas decididos. Ele roçou sua boca com carícias antes de passar a um jogo mais sedutor. Sutis beliscões fizeram que seu lábio inferior pulsasse e tremesse. As estocadas de uma língua diabólica enviaram espetadas dispersas através de seu rosto e seu pescoço. A sensibilidade de seus seios despertou e ela instintivamente o abraçou, procurando o contato que sua profunda ternura reclamava.
Ele a apertou para senti-la mais perto e a olhou de um modo tenso e cheio de avaliação. Da garganta dela escapou um suspiro ao sentir a pressão em seu peito. Beijando-a com feroz rendição, arrastou-a até a soleira da torre, entre a luz salpicada e as pedras frias.
Apoiou-se contra a parede e a atraiu contra seu corpo em meio de um torvelinho. Seus braços a rodearam e a dominaram, segurando-a firmemente contra seu corpo e os encantos de sua boca. Beijos febris assaltaram seu pescoço e suas orelhas, despertando um frenético e insistente anseio. Seus lábios seduziram os dela abrindo-os para uma investigação interna de escandalosa intimidade.
Ela se agarrou a ele e se rendeu tonta pelas extraordinárias sensações, elevando-se impotente em meio de uma euforia em que tudo se voltava impreciso.
Era tão agradável. Glorioso. Transcendente. A exaltação de seu canto feito física. O poder e potencial da última ária convertido em substância.
Aqui. Agora. Sim. Com uma voz inaudível seu sangue estalava em demandas entre seus ofegos. Aqui. Agora. Perfeito. Escandalosos batimentos de seu corpo se uniam ao canto. Inclusive sua mente, a parte que deveria conhecer melhor, repetia uma litania de escandalosos impulsos. Suas mãos deslizaram descaradamente sob a jaqueta dele para acariciar e agarrar seus lados e suas costas.
Algo se esticou dentro dele. Ela notou uma mudança perigosa e soube que seu gesto funcionou como algum tipo de afirmação. Os braços dele a acariciaram de uma forma possessiva e seu corpo arqueado se esticou com um impulso indecente. Suas mãos começaram uma exploração através de suas anáguas e ali ficaram. Sua imperiosa paixão e o lugar para onde ele se aventurava deveria assustá-la, mas a excitação só a permitia lamentar que a quantidade de roupa se interpusesse separando-os e inibindo-os.
«Sim. Quero… Quero…» Não sabia o que. Uma fome urgente pulsava através dela, com uma origem e um destino que não entendia. «Mais perto. Mais. Eu quero…»
Como se ele tivesse ouvido seu rogo silencioso, sua mão deslizou sobre sua cintura. Mantendo o polegar em seu estômago e os outros dedos em suas costas acariciaram para cima a bandagem de seu vestido. A desejada expectativa reduziu a respiração dela a uma série de inalações entrecortadas. Um beijo surpreendentemente suave acompanhou o gesto de sua mão para seus seios.
«Oh… Oh.» As deliciosas sensações que sua carícia provocou a deixou aturdida. Atravessaram-na e fluíram através dela, unindo-se aos estímulos provocados pelos crescentes beijos que lhe dava no pescoço e os assaltos a sua boca, que obscureciam sua mente. Deu e recebeu prazer a seu desejo, e o corpo dela, afligido e sem forças só podia aceitá-lo e submeter-se, muito ignorante para oferecer mais que consentimento ao ardor que ambos liberavam e subjugavam.
Os dedos brincavam com o tecido que cobria seus mamilos, duros e ardentes… «Sim…» Procurando agora o babado de seu decote… «Por favor…» Deslizando sob o tecido para explorar o novo desenfreio da pele contra a pele… «Ah, sim…» Seus braços a atraíram mais perto, com mais dureza, e um joelho dele pressionou entre as anáguas e a saia, a pressão foi vergonhosamente bem recebida… «Oh… Céus…» O vestido começou a soltar-se enquanto o corpo da manga deslizava pelo braço e uma mão elevava seu seio nu para uma cabeça morena… «Oh…» Ele o acolheu na umidade de sua boca e com seus quentes lábios iniciou um tortuoso percurso desde umas suaves mordidas até… «Oh…» Uns lamentos escandalosamente excitantes… «Oh…» Deliciosas correntes de prazer desceram por seus poros, enchendo-a, exigindo mais…
…Um movimento, um fraco rangido, ressoou entre as pedras.
Ele se endireitou bruscamente, cobrindo a nudez dela com seu peito, rodeando-a com seus braços para protegê-la enquanto escutava atento. O possível significado daqueles sons abriu passo através dos aturdidos sentidos de Bianca, destruindo o mundo de sensuais sonhos e fazendo-a voltar sem piedade para a realidade.
—Há alguém…? —sussurrou, apertando os dentes contra o lento desdobramento de sua excitação física. Ainda podia ouvir algo, era mais a vibração transportada através do muro que um som real. Incomodava como uma invasão entre os batimentos de seus corações.
Subiu a alça da blusa e a manga do vestido, logo a afastou.
—Fique aqui.
Caminhou a grandes pernadas até a torre. Ela lutou freneticamente contra seus objetos, conseguindo com muita dificuldade recompor seu vestido, experimentando a severa culpa de um criminoso surpreendido no ato do delito. Um abismo se abriu em seu coração.
Se alguém os visse, seria desastroso.
Podia ouvi-lo caminhando ao redor. O largo abismo se converteu em um enjoo, um imenso vazio. Cobrou consciência de seu comportamento como se recebesse um golpe. Aquilo tinha sido uma loucura. Ela tinha atuado de forma desavergonhada. Eles nem sequer se gostavam.
Ouviu-o voltar e tentou fortalecer seu ânimo.
Apareceu ante a soleira, uma forma magra e escura rodeada de luz. Ela não podia ver bem seu rosto.
—Se havia alguém aqui, já se foi. Deve ter sido tão somente um animal.
Ela rezou para que assim fosse, e esperava que se alguém veio da casa para explorar o torreão, não tinha esquadrinhado de perto a entrada da torre.
Ofereceu a mão em um gesto enérgico para fazê-la seguir. Ela se perguntava o que se suporia que deveria fazer ou dizer uma mulher depois de um comportamento tão descarado, e sentiu quase náuseas ante tanta confusão e vergonha. Empreenderam o caminho de volta para casa.
Ele não disse uma palavra. Para ela foi o quilômetro mais longo que já caminhou em sua vida.
Tentou achar consolo na ideia de que tinha demonstrado que era muito perigosa para estar perto de Charlotte, mas a ideia de abandonar Laclere Park estranhamente incrementou sua consternação.
Ele se deteve ante as árvores próximas ao estábulo.
—Faltam-me as palavras, senhorita Kenwood. Meu comportamento foi abominável, e me desculpar não é suficiente. Prometo que não tenho o costume de pressionar às mulheres jovens desta forma. A única explicação que posso dar é que não era eu mesmo esta manhã.
«Não o foi?» de repente o que ocorreu não resultava tão surpreendente tratando-se desse homem. Pareceu que o acontecido era uma consequência natural de seu caráter, um pouco controlado, mas que sempre estava ali, como uma corrente subterrânea sob a calma, uma corrente percebida, mas nunca vista e impossível de nomear. Esta produziu tensão entre eles desde o começo, como uma maré perigosa. Ela havia sentido seus efeitos, mas até hoje não os tinha entendido.
Ele seguia com os olhos sobre o atalho, sem olhá-la. Com suas palavras assumia a culpa, mas ela se perguntou o que pensaria realmente. Que demonstrou que não podia viver como uma monja? Que sua natureza era a de uma cortesã e ele deveria permitir que conseguisse a ruína que procurava? «Pressionar» não descrevia realmente o que ocorreu e os dois sabiam.
—Não fui prejudicada.
—Se nos vissem, definitivamente sim seria prejudicada.
—Eu não acredito que nos viram. Se alguém se aproximasse da entrada da torre, teríamos percebido.
—Se tivesse razão, isso só evitaria as piores das possíveis repercussões. Não pode negar que minhas ações foram indesculpáveis e desonestas, sobre tudo porque sou responsável por você. A comprometi, e não importa se alguém sabe ou não. Se você o exigir, farei o correto contigo.
—O correto? Quer dizer… Oh, não, essa é uma ideia absurda.
—Certamente promete ser uma ideia complicada, considerando… Bom… Enfim, complicada. De todos os modos…
—Não nos deixemos levar por seu senso de decoro e de dever, por favor. Não me sinto comprometida, nem arruinada.
Depois de dizer isto recebeu um severo olhar.
—Ah, não? É uma jovem extraordinariamente serena.
Aí estava. A insinuação de indecorosa cumplicidade por sua parte. Em realidade o animou, se a pessoa quisesse olhar as coisas com franqueza. Aquele olhar e aquela pergunta revelavam o que ele tinha em mente, e era difícil culpá-lo, considerando todas as ambiguidades que deliberadamente deixou cair com respeito a suas experiências.
—Digamos que não me sinto tão comprometida para recorrer a uma medida tão extrema como o matrimônio. Possivelmente simplesmente deveríamos esquecer este assunto.
—Sua equanimidade me impressiona. Deveria estar agradecido de que se mostre tão compassiva.
Não se sentia absolutamente compassiva. Sentia-se transtornada, desolada, decepcionada. Descer daquela glória a essa discussão formal sobre como expiar a poderosa experiência que compartilharam… Dava vontade de feri-lo, de bater nele, de dar uma bofetada que vencesse essas frias considerações sobre como retificar sua imprudência.
—Simplesmente não desejo complicar as coisas mais que o necessário, especialmente de um modo que me faria perder o controle sobre meu futuro e requereria um sacrifício por ambas as partes que levaria a uma vida inteira de infelicidade. Não me casaria contigo fosse qual fosse o escândalo que me ameaçasse. Entretanto, nossas futuras relações se tornaram embaraçosas. Acredito que será melhor que aceite minhas preferências a respeito de minha estadia na Inglaterra. Jane e eu encontraremos uma casa em Londres e…
—Serei eu que me afastarei. Minhas visitas a Laclere Park serão pouco frequentes e breves durante os próximos meses.
—Isso é muito injusto com suas irmãs.
—Quando você for à cidade passar a temporada minha presença será inevitável, mas por então possivelmente o tempo terá atenuado minha ofensa.
Ele não queria dizer isso. Sabia que não tinha sido realmente uma ofensa. Não se podia dizer que a tinha forçado ou forçado a si mesmo.
Ela deu a volta, aliviada e ao mesmo tempo triste por saber que depois daquela festa seriam muito poucas as ocasiões em que o veria.
Capítulo 7
Vergil estava certo. Ela seria uma amante esplêndida.
Tentou impedir aquele pensamento enquanto cavalgava de volta para as ruínas. Dava voltas em sua cabeça, uma reação absolutamente desonrosa de um homem que sucumbiu a desonrosas inclinações.
Seu comportamento foi vergonhoso. Censurável. Enlouquecido.
Isso não o impedia de voltar a rememorar e experimentar o contente consentimento que ela mostrou. Sentiu em sua boca seus suaves lábios e seus doces peitos. Explorou sua vibrante excitação com a pressão de seu joelho.
Se o intruso não os tivesse interrompido, a teria levado ao cômodo e teria feito amor até que as pedras ressonassem com seus gritos.
E ela permitiria.
Parou e bateu a palma da mão contra uma árvore, em busca de uma realidade tangível que pudesse destruir o desejo que voltava a dominá-lo.
«Confusa», havia dito Dante.
Maldita seja, sim era confusa.
Ela nem sequer gostava dele. Raramente falavam sem discutir. Ele esteve rondando em sua presença os últimos dois dias, mas ela nunca o buscava. E que então se lançou para cima sem nenhum tipo de inibições…
Caminhou com passo decidido através das árvores, possuído por um estado de ânimo perigoso. A calma que ela mostrou no estábulo foi mais que perturbadora. Exasperante. Quase para ruborizar-se. Uma serenidade total. Ele foi uma mescla desordenada de impulsos contraditórios, enquanto que ela se mostrou incrivelmente tranquila. «Não fui prejudicada.»
«Quase te arranco a roupa e te atiro ao chão sobre uma pedra.»
«Não me sinto comprometida, nem arruinada.»
«Bem, maldita seja, eu sim. Os homens que seduzem suas pupilas são repugnantes.»
«Não me casaria contigo fosse qual fosse o escândalo que me ameaçasse.»
Parou na borda da clareira do castelo com essas palavras ecoando uma e outra vez em sua memória.
Ele deveria se sentir agradecido ante seu terminante rechaço. Mas em vez disso experimentou uma ira irracional. Em parte porque sua serenidade o fazia perguntar-se se tudo teria sido para ela simplesmente um jogo caprichoso. E, sobre tudo, porque sua determinação o fazia cobrar consciência do fato deprimente de que ela jamais seria sua da forma em que ele queria.
Menos mal. Seria uma amante esplêndida, mas uma esposa impossível.
Deixaria que Dante se arrumasse com ela.
Essa ideia incitou nele um ressentimento primitivo e possessivo. Tentou reprimi-lo esforçando-se para concentrar-se nas ameias do castelo.
Uma escada se elevava em uma das bordas do muro, tão danificada que faltavam todos os degraus. Só podia subi-la esticando as pernas em busca de perigosos pontos de apoio para os pés. Uma pequena seção de rochas caiu sobre a erva enquanto escalava. Detinha-se a cada momento, tentando identificar se o som se parecia com aquele que tinha ouvido quando sustentava Bianca na torre.
Acima no caminho da muralha existiam ocos. Alguém tinha substituído algumas zonas desaparecidas com madeira nova, mas outras consistiam em fragmentos de tábuas podres, que sem dúvida não haviam sido reparados ao menos há um século.
Avançou com cuidado até chegar ao ponto do muro onde um enorme dente das ameias se desprendeu por completo. Aí abaixo se via o novo montão de pedras. «Quem teria imaginado que a tranquila Laclere Park podia ser tão perigosa?»
Uma questão endiabradamente certa.
Examinou a rugosa superfície onde as pedras se encontravam até tão pouco tempo e apalpou a argamassa das pedras que ainda se sustentavam em pé. As ligaduras podres caíam em uma pequena chuva de pó, unindo-se com um montão de pedrinhas a seus pés.
Nada parecido podia ver-se no resto das ameias. Examinou a superfície das pedras outra vez, procurando o rastro de alguma ferramenta. Podiam ser fruto de sua imaginação os sutis arranhões provocados por um instrumento metálico?
Caçadores furtivos disparando armas de fogo e depois uma muralha que vinha abaixo. Possivelmente tão somente fosse uma coincidência. Não havia nenhuma evidência do contrário. De todos os modos não gostava disso.
Desceu da muralha, procurando alguma prova de que alguém mais tivesse estado ali recentemente. Os sons da torre de pedra rondavam em sua memória. Não ouviu ninguém caminhando pelo atalho. Entretanto, aquele intruso podia ter sido simplesmente um dos convidados explorando o pitoresco castelo Laclere Park.
Retornou para casa. Quando passou ante a sala do café da manhã, viu Bianca em uma mesa na companhia de Cornell Witherby e Daniel Saint John.
Ela sorria e ria ante alguma brincadeira de Witherby.
Que incrível serenidade.
Provavelmente para ela só foi um jogo caprichoso, uma maneira de demonstrar ao santo que não era tão puro. «Possivelmente simplesmente deveríamos esquecer este assunto.» Dirigiu-se a seu escritório dando grandes passos, ressentido até a medula por um ponto de honestidade que admitia que enquanto ela poderia ser capaz de esquecê-lo, ele certamente não era.
«Eu nunca desmaio.»
«Por mim o fez!»
Estava reagindo como um moço inexperiente e isso o irritava ainda mais. Enviou um lacaio para procurar Morton, depois se recostou em sua poltrona e pegou alguns papéis.
Morton chegou quando estava terminando seu escrito.
—Quero que esta carta dirigida ao advogado de Adam Kenwood seja enviada a Londres pelo correio urgente — disse enquanto selava a missiva— Leva-a ao povoado pessoalmente agora mesmo. —Pôs a carta entre os grossos dedos de Morton— Ficará aqui quando voltar a partir para o norte. Eu não gosto da ideia de deixar à senhorita Kenwood em Laclere Park sem ninguém que a vigie.
—Acredita que corre algum outro perigo?
Vergil sabia que Morton empregava a palavra «outro» porque estava pensando no perigo que todas as mulheres belas corriam estando perto de Dante.
Possivelmente corria esse perigo. Ele não sabia. Entretanto, considerando os caçadores furtivos, as paredes que desabam e os assaltos do visconde Laclere, o perigo de estar perto de um libertino era muito menos preocupante.
***
Depois do jantar Bianca se achava sentada entre Fleur e a senhora Gaston, conversando com Pen e Cornell Witherby.
—Será uma série de epopéias — explicava à senhora Gaston— Vendidas por assinatura, embora financie a impressão. O poema do senhor Witherby será o primeiro.
Cornell Witherby sorriu modestamente. Penelope lhe dedicou um olhar cheio de admiração.
A senhora Gaston tinha a si mesma como uma rainha aceitando comemorações e oferecendo favores. Seu cabelo castanho avermelhado brilhava como o cobre à luz da lareira, e a satisfação que sentia ante sua própria importância se deixava ler em seu rosto.
—Enquanto nós falamos os impressores já estão trabalhando. Espero que cause sensação e que se necessitem mais edições. Não pelos benefícios materiais, é obvio. Pelo alcance das pessoas de bom gosto e sensibilidade o prodigioso talento do senhor Witherby é minha meta.
Falava como se o conselho divino ditasse seu trabalho, mas Bianca suspeitava que a importância que se outorgava ao ser patrocinadora a motivava muito mais que seu amor pela arte.
—Quais serão os outros poetas? —perguntou Fleur.
O que seguiu foi uma discussão sobre os méritos dos jovens poetas que poderiam merecer o mecenato.
Bianca mal ouvia o que diziam.
Passar a tarde desfrutando da doce companhia de Fleur provocou um horrível sentimento de culpa. A fria amostra de cortesia de Vergil deixou um vazio devastador. Um relógio interno advertia o passo de cada minuto daquele comprido dia com tic-tacs de agonia.
Tentou não voltar a olhar Vergil, nem dirigir-se a ele, mas era consciente dele a cada instante. Sentia sua presença quando estava perto. Ouvia cada palavra que dizia, inclusive embora se achasse na outra ponta da estadia.
Duas Biancas reagiam ante cada movimento dele. A velha Bianca, a inteligente, catalogava seus defeitos com uma ira mordaz. Mas havia uma nova que rezava para obter algum sinal por parte dele. Esta nova Bianca se rebaixava com lastimosos suspiros, mas a velha Bianca não podia fazê-la desaparecer.
De algum modo, de algum modo, superaria esse dia.
—… Haverá terríveis problemas se revogarmos a Ata de Combinação — entoou lorde Calne enquanto ele, Vergil e o senhor Saint John caminhavam para o pequeno grupo— Se se permitir que as classes mais baixas se agrupem, a ordem se verá ameaçada. Não podemos permiti-lo. É muito perigoso. Poderia terminar como a França em 93. Lamentará Laclere.
Pequenas chamas apareceram nos olhos de Daniel Saint John. Olhou lorde Calne como se fosse um imbecil.
—Parece como se soubesse muito pouco sobre o que aconteceu na França. Do contrário entenderia que as pessoas não podem viver para sempre com uma bota pisando em sua cabeça.
O rosto de lorde Calne ficou vermelho.
Vergil falou de forma apaziguadora.
—A Inglaterra não pode apoiar sua política nos excessos do povo francês de uma geração anterior, Calne.
—Oh, Deus nos libere. Política! —Cornell Witherby protestou brandamente, dirigindo-se às damas— Não serve nada mais que para a sátira.
Um calor especial brilhou em seus olhos ao dirigir seu bom humor para Pen, que ria. Parecia que Dante estava certo a respeito de sua amizade especial.
Sentindo-se em um estado de ânimo crítico em relação aos homens, Bianca o esquadrinhou minuciosamente. Aparentava uma boa figura e era de meia altura, mas sua postura tinha uma severidade muito pouco poética, como se uma vara de aço tivesse sido soldada a sua coluna. O cabelo loiro caía sobre sua testa e suas bochechas. Seu rosto era talvez um pouco alargado, mas era um homem atrativo ao redor de vinte e cinco anos de idade.
O fato de que cortejasse uma mulher que oficialmente estava casada não contava nada nas considerações de Bianca a respeito de ser bom para Pen. Muito mais significativo que isso era a atitude de absoluta devoção que tinha ao olhar para Penelope.
Ela jamais viu Vergil olhando daquele modo a uma mulher, nem sequer a Fleur. Quando o visconde Laclere examinava uma mulher, ela tinha a impressão de que estava avaliando seus defeitos.
Naturalmente isso não ocorreu quando a escutou cantar.
E decididamente tampouco ao beijá-la.
Nem ao lhe tirar o vestido.
Nem…
—Bom, ao menos essas liberações políticas mantêm seu impressor ocupado — disse a senhora Gaston.
Witherby suspirou.
—Foi só para dar suporte às artes literárias que aceitei o passatempo dessa imprensa. Preferiria dizer aos homens que rechacem qualquer comissão que não tenha a ver com poesia. Entretanto, os panfletos servem estupendamente para custear os trabalhos importantes. Assim ocorre com o patrocínio de grandes damas como você.
A senhora Gaston pareceu agradada com a adulação, e com seu êxito ao desviar a atenção para ela.
—Anular é uma necessidade moral. É uma falta de sentido proibir a homens livres assembleias livres — dizia Saint John aos homens que se achavam de pé perto.
—Se estiverem tão insatisfeitos deixemos que se vão —disse a senhora Gaston, unindo-se à conversa— Uma passagem grátis a Austrália para os que estejam descontentes. Não entendo por que ninguém propõe uma coisa assim. Para mim é uma saída completamente lógica.
—Se dá a todos os homens a oportunidade de votar, poderão decidir sobre seu futuro e estarão menos descontentes — disse Saint John.
—Acaso a multidão de Manchester deveria decidir as leis? —perguntou lorde Calne— A Câmara dos Comuns já está bastante alterada para acrescentar radicais e irlandeses.
Pen dirigiu a Saint John um sorriso suplicante e tranquilizador. O qual reprimiu a resposta destrutiva que pensou.
—As pessoas de Manchester não são uma multidão — disse Vergil— Eles estão ajudando a Inglaterra a se converter na nação mais rica do mundo. As cidades industriais como Manchester não podem continuar sendo privadas do direito ao voto por regras de distrito redigidas há séculos. É inevitável uma reforma do Parlamento.
Pen olhou seu irmão pondo os olhos em branco, a modo de reprovação por seguir alimentando a discussão.
Lorde Calne parecia estar sofrendo uma espécie de apoplexia.
—Antes me condeno no inferno. Se apoiar isso, Laclere está traindo seu sangue. Essas cidades do norte são lugares terríveis. Sujas de fábricas e máquinas e homens vis enriquecendo-se com comércios fétidos. Ouvi que é pior que em Londres. Não, me dê o ar limpo do campo e uma boa caçada. Nunca permitiremos que nos arrebatem isso.
Pen viu sua oportunidade.
—E como vai à caça em sua fazenda este ano? Podemos esperar as habituais caçadas magníficas?
—Parece boa, parece boa. Embora haja uma batalha contínua com os caçadores furtivos. Terei que levar cinco homens para as reuniões do trimestre.
A mudança de tema deu a Bianca uma oportunidade para escapar da proximidade de Vergil. Desculpou-se.
Os homens menos predispostos à política se dispersaram pela estadia. Nigel falava com Catalani e com a senhora Monley perto da janela. Seu primo a olhou com um caloroso e acolhedor sorriso quando ela passou ante ele.
Bianca se uniu a Diane Saint John, Charlotte e Dante.
Estavam falando sobre os dois filhos dos Saint John. Dante mostrava mais interesse nas travessuras dos pequenos meninos do que Bianca esperava, mas se aproximou para sentar-se a seu lado assim que ela chegou e permitiu que as damas conduzissem a conversa.
—Esteve muito calada hoje — disse ele em voz baixa— Espero que não esteja afligida por meu mau comportamento.
Ela quase esqueceu aquele beijo na biblioteca.
—Estou afligida ante tantos rostos novos. Tenho poucos temas que tratar com eles.
—Bom, aqui vem Saint John. É dono de uma companhia naval, como foi seu avô, assim tem algo em comum com ele.
Daniel Saint John se afastou da companhia de lorde Calne e se aproximava deles.
—Saint John, você conhecia Adam Kenwood, verdade? —perguntou Dante para facilitar as coisas a ela.
—Conheci-o sendo muito jovem. De fato, minha primeira viagem quando era um moço foi a bordo de um de seus navios. Muito antes que ele se dedicasse às finanças, é obvio.
—Quando ocorreu isso? —Bianca se sentiu obrigada a continuar a conversa, já que Dante iniciou por ela.
—Faz anos. Vendeu seus navios… Faz coisa de uns dez anos.
—Navegou com ele bastante tempo?
—Não, somente uma vez. Abandonei o navio ao chegar às Antilhas e encontrei um camarote com outro capitão.
—As regras de meu avô não o atraíam, suponho.
—Seu avô não era o capitão. Só era o dono dos navios e organizava os carregamentos. Eu simplesmente decidi navegar em outra parte.
Estava mentindo. Bianca estava segura disso por essa forma de falar muito educada.
—É estranho que vendesse todos os navios de uma vez — disse Dante— Ter uma frota de navios e no dia seguinte de repente ficar sem nenhum…
—Dado que comprei dois estava encantado de que o fizesse — disse Saint John.
—O que transportavam seus navios? —perguntou Bianca.
—Todo tipo de mercadorias, suponho, como meus.
Ela tinha a sensação de que o senhor Saint John se limitava a agradá-los, e não estava sendo muito franco. Dante tinha razão, era estranho que seu avô vendesse todos os navios de uma vez, não importava o que dissesse este outro comerciante marítimo.
Não teve tempo de pressioná-lo para conseguir uma explicação mais clara, porque Pen se dirigiu até o centro da estadia e reclamou atenção.
—Temos a sorte de contar com vários músicos consumados entre nós esta noite, e eu abusei de dois deles, o senhor Nigel Kenwood e a senhorita Bianca Kenwood, pedindo a eles que nos ofereçam uma atuação. Passemos com eles ao salão de música e os ofereçamos nossa agradecida atenção.
Ela mesma abriu caminho. Dante se dispôs a acompanhar Bianca, mas o senhor Saint John reclamou primeiro sua atenção.
—Parece que Catalani sabe quando deixar passo aos jovens.
—É amável por sua parte dizer isso, mas duvido que ela tema que eu possa lhe fazer concorrência.
—Cedeu a atuação por uma razão. Sabe que seu instrumento já não é o que era. —Pôs a mão dela entre seu braço enquanto caminhavam com o passar do corredor— Nervosa?
—Horrivelmente nervosa. Ansiava que chegasse este momento, e agora…
—Então isso explica seu ar distraído de hoje. Minha mulher me comentou isso. Ela é muito observadora a seu modo silencioso, e temia que você estivesse preocupada com algo. Se sentirá aliviada ao saber que se tratava de seu medo de cometer alguma estupidez na atuação de esta noite. Lhe direi que se tratava disso, e que é perfeitamente normal.
Não o era. Não para ela. Mas isto era diferente. Durante todo o dia a tinha aterrorizado a ideia de que chegasse esse momento. Voltar a cantar essa ária, diante de toda essa gente, com ele sentado ali… Algo se retorcia em seu interior com cada passo que dava.
Nigel ocupou seu lugar ante o piano. Os convidados se sentaram nas cadeiras colocadas ante ela. Vergil escolheu permanecer de pé junto à parede, perto de Fleur.
Ela o olhou, esperando um sorriso de boa sorte. Ele não se deu conta, pois se inclinou para dizer algo a sua prometida. Seu coração se encheu. Estava tão atrativo com seu casaco de um verde escuro e suas calças nata, com suas mechas onduladas emoldurando seu rosto e seus olhos azuis iluminados com um brilho de humor enquanto sorria a sua dama.
Deu-se conta com um sobressalto de que Nigel começou a introdução. Ela lutou para preparar-se.
Da outra ponta da estadia, Vergil a olhou.
Ela falhou. Essa primeira nota simplesmente não saía. Voltou-se para Nigel com desespero, suplicando sem palavras. Ele improvisou até que voltou a levar a melodia ao princípio outra vez. Ela se concentrou no chão e conseguiu acalmar-se. Ao levantar a vista viu um casaco verde deslizando através da porta.
«Obrigado.»
Afinou cada nota com precisão, mas sua alma não estava totalmente implicada nelas. Vergil podia não estar presente na sala, mas se achava em sua cabeça, confundindo-a com aquele olhar alarmante, misturando-se em seu espírito com lembranças indecorosas. Aquela ária não soou como a última vez nas ruínas, com sua emocionante exaltação. Uma emoção diferente gotejava desta vez. Um estranho oco existia em seu interior e a música o levava mais profundo e o enchia com um penetrante e doloroso desejo. Ao acabar ela não sabia se a atuação tinha saído bem ou não.
—Esplêndido, prima — sussurrou Nigel no meio do silêncio que se produziu.
O esforço a deixou imersa em uma névoa de melancolia. Deu uma olhada à expressão pensativa de Catalani enquanto recebia os elogios de outros convidados.
Catalani caminhou para ela, puxou-a pelas mãos e a afastou para um lado.
—Os anos me tornaram cética, e confesso que esperava uma voz bonita, adequada para salões e Igrejas. Estava equivocada. Possui um grande talento, querida. É excepcional.
Qualquer outro dia o julgamento de Catalani teria produzido euforia. Essa noite tão somente acrescentava um grande nó a mais ao matagal de emoções que a confundiam.
Pen encabeçou a marcha para a biblioteca para jogar cartas, mas Bianca se desculpou, dizendo que queria retirar-se. Seguiu à comitiva através do corredor, mas se desviou ao chegar à escada. Nigel se separou de outros.
—Esperava que nos encontrássemos jogando na mesma mesa, prima.
—Seria uma má companhia esta noite. A emoção de cantar com Catalani presente…
—É obvio. Entendo. De todas as formas agradeceria poder passar um momento mais contigo. Muito em comum, prima. Eu gostaria de te conhecer melhor.
Por mais que insistisse em usar a palavra «prima», por mais que empregasse um tom formal e correto suas intenções saíam à luz. O interesse que sentia por ela brilhava em sua expressão. Ela suspeitou que se naquele momento se achassem sozinhos no jardim Nigel teria tentado beijá-la.
Três homens em dois dias. Ela não tinha ideia de que fosse tão fácil voltar-se promíscua.
A experiência daquela manhã a havia tornado cínica. Possivelmente o interesse de Nigel fosse honesto.
—Se juntará com os outros para cavalgar amanhã pela manhã? —perguntou ele.
Pen organizou para todos uma visita pela fazenda, que terminaria com um almoço nas ruínas. Retornar ali tão cedo seria horrível.
—Não acredito. Não me encontro bem, ficarei aqui descansando.
Abriu-se a porta do estúdio que dava ao corredor. Dela emergiu a alta figura do visconde Laclere, que se dirigia à biblioteca. Ao vê-los se deteve, ficando de pé ante eles como uma sentinela. Nigel o olhou e a seguir dirigiu a ela um sorriso íntimo.
—Eu gostaria de falar contigo em algum momento em que seu guardião não esteja me olhando por cima do ombro. Os dois estamos sozinhos no mundo, e os parentes podem ser uma fonte de consolo. Se alguma vez necessitar minha ajuda, espero que venha a mim.
—É muito amável por sua parte me fazer essa oferta. Agora deveria se unir aos outros, eu preciso estar sozinha.
Vergil não se moveu, nem sequer quando Nigel passou ante ele lhe dirigindo uma saudação e entrou na biblioteca. Simplesmente seguia ali de pé, olhando-a. Ela queria girar a cabeça e afastar-se com altiva indiferença. Mas não podia mover-se.
—Retira-se?
—Sim. A noite foi uma prova.
—Eu acredito que a noite foi um triunfo. Escutei você. Superou a si mesma. Quanto ao dia, suponho que foi uma prova, e me desculpo por isso.
Ela não queria voltar a ouvir nada mais a respeito de suas desculpas.
—Os papéis pessoais de seu avô chegaram esta manhã — disse ele— A maioria das caixas está em meu escritório para que não a incomodem, mas separei as que correspondem aos anos em que seu pai vivia com ele e as mandei levar a seu quarto, junto com o que havia no escritório.
—Obrigado. —esforçou-se para mover-se e chegar até a escada.
—Há algo mais. Devo insistir em que não deve voltar a sair sozinha pela manhã cedo.
—Está preocupado por minha virtude? — A pergunta surgiu sem que ela pudesse impedir.
Ele nem sequer teve a decência de mostrar-se envergonhado.
—Estou preocupado por sua segurança.
—Irei onde queira e ensaiarei sempre que puder.
—Não pela manhã, e não sozinha. Se quiser praticar em privado e se preocupa que em seu quarto possa incomodar os outros, usa meu escritório. Mas não saia da casa.
—Continua cortando a correia, Laclere. Por que não me ata ao pilar da cama?
Seus olhos azuis a olharam de uma maneira que nada tinha a ver com o que usou nas insossas admoestações que acabava de lhe fazer.
—Tem talento para provocar as imagens mais surpreendentes, senhorita Kenwood. —deu a volta— Até amanhã então.
Jane a esperava em seu quarto. Sentia-se bem ao poder estar a sós com alguém que a conhecia há anos.
—Os convidados realmente o passam bem, verdade? —disse Jane— Todos esses homens bonitos com seus trajes elegantes.
Jane viu aquela viagem desde o começo como uma boa oportunidade para que Bianca encontrasse um marido. Nunca reconheceu que a falta de pretendentes em Baltimore era voluntária; o resultado de esmeradas dissuasões.
—Esse senhor Witherby parece prometedor. Um cavalheiro conforme se diz, e bastante atrativo.
—Suspeito que se interesse por Penelope.
Jane franziu o cenho.
—Por uma mulher casada? Separada ou não, isso é o que é. Bom, o visconde está fora de jogo. Está a ponto de prometer-se à senhorita Monley. E menos mal. Quem iria querer um homem tão estrito e severo? Sempre fica o irmão mais jovem de Charlotte, embora se diga…
—Sei o que se diz.
Jane a ajudou a colocar a camisola.
—Todos esses homens solteiros e nem sequer uma paquera? Quem ia esperar que a Inglaterra fosse tão aborrecida.
Algo menos aborrecida, e o de paquera não serviria nem para começar a descrever até que ponto estava se convertendo no contrário do aborrecimento.
—Meu primo Nigel me deu a conhecer seu interesse.
—Nunca gostei da ideia de que os parentes se mesclem. Não é bom juntar o sangue.
—É um parente bastante longínquo.
—Certo. Só que ouvi dizer embaixo que se parece muito a Dante. Vive endividado. Não pode permitir-se essa vida tão elegante. Seu avô deixou a você a maior parte do dinheiro. Diz-se que seu primo só tem dinheiro suficiente para manter o imóvel, e que tudo está disposto de forma que não possa acessar mais que os ganhos correspondentes para cada ano.
—Onde se inteira de todas essas coisas?
—Os criados daqui conhecem os poucos criados que ficam ali. Os arrendatários falam entre eles. É igual em nossa vizinhança. Tudo entra através da porta da cozinha — disse Jane— Se ele expressou esse tipo de interesse, deveria saber que pode ser como Dante em outros sentidos também. Parece que seu primo não está sempre só nessa grande casa. Uma mulher o visitou secretamente a semana passada. Segue meu conselho. Não acredito que queira o interesse desse homem.
Bianca não queria o interesse de nenhum homem. Rotundamente não. Nada mais que distrações, isso é o que eram os homens. Potencialmente distrações permanentes, assim funcionava o mundo. E, como ela vinha aprendendo a trancos e barrancos, fontes de dor e confusão.
Ansiava adormecer, mas sabia que só ocorreria quando estivesse completamente esgotada. Quando Jane saiu, aproximou as velas às caixas e ao baú, empilhados perto da lareira, e se sentou no chão para descobrir o que podiam revelar.
Uma chave estava na fechadura do baú. Girando-a abriu a tampa para examinar o conteúdo do escritório de Adam Woodleigh.
Tocou as plumas e o tinteiro barato. Buscou entre papéis cheios de escritas. Um tinha escrito o nome do irmão de Vergil, junto com outros, e ela supôs que foram os últimos que seu avô escreveu.
Uma pilha de cartas, atadas com um barbante, chamaram sua atenção. Estava a ponto de abri-las quando viu a saudação que encabeçava a primeira. Escrito pela mão de um homem, dirigia-se a Adam como «Meu mais querido amigo».
Com uma saudação como essa não podiam ser de seu pai. Provavelmente seriam do anterior visconde. As daria a Vergil.
Em um pequeno estojo de couro encontrou uma miniatura de uma mulher loira. Imaginou que seria sua avó. Encontrou certo parecido com seu pai, e a assaltaram lembranças de seu amor e sua nobre honestidade. Sua garganta ardia como se uma velha dor se unisse as novas.
Uma flor seca caiu em seu colo enquanto devolvia a diminuta pintura a seu ninho de veludo.
A flor não parecia muito velha. Não se desfez ao tocá-la, parecia que estava a anos naquele estojo.
Imaginou um homem velho recolhendo uma flor no jardim quando saía para caminhar e abrindo mais tarde esse estojo que continha a lembrança de sua esposa. Imaginou Adam lhe deixando essa pequena oferenda.
Fechou de repente o estojo. Não queria ficar sentimental com esse homem. Provavelmente a flor esteve ali sempre e foi sua avó quem a colocou ali.
O outro baú continha pastas. Adam foi um homem organizado, cada pasta correspondia há um ano e dito ano estava escrito na parte dianteira. Ela procurou as correspondentes aos anos em que ainda não tinha nascido, justo quando seu pai abandonou a Inglaterra.
Levou algum tempo encontrar o ano preciso. Não sabia que seu pai viajou a América ao menos seis anos antes que ela nascesse.
Era uma pasta magra com umas poucas cartas. Três eram de seu pai. Leu-as e compreendeu a razão pela que Adam Kenwood e seu filho se separaram.
Não foi por causa de sua mãe. Ocorreu antes que seus pais se conhecessem. Vergil estava certo a respeito do ocorrido. Seu pai rompeu a relação. Em uma carta onde rechaçava a oferta de uma pensão por parte de Adam expôs as razões.
As explicações esvaziaram seu coração das últimas frestas de alegria e confiança. O sonho que a sustentou desde a morte de sua mãe balançou como se seus alicerces tivessem sido atacados. A herança de repente a golpeou como uma brincadeira malvada, um chamariz do diabo para fazê-la pecar.
Não era para menos que seu pai tivesse dado as costas à fazenda e ao status que Adam edificou.
Seu avô fez sua primeira fortuna com o comércio de escravos.
CONTINUA
Vergil Duclairc é um homem acostumado a vencer. Como recém-nomeado tutor da senhorita Bianca Kenwood, está decidido a encontrá-la e devolvê-la ao lar custe o que custar, embora a última coisa que podia imaginar era achar sua pupila vestida de modo escandaloso cantando em um teatro de duvidosa reputação. Mas ainda estava menos preparado para a implacável atração que sentiu por ela somente em vê-la, um desejo que não pode permitir deixar fluir por medo de desmascarar segredos que jurou guardar.
De sua parte, Bianca não está disposta a abandonar sua independência, mas há algo irresistível no belo e persistente visconde Duclairc que o converte não só no administrador de sua herança, mas também no dono de seu coração. A jovem descobrirá em seguida que Vergil é um homem de profundos segredos e de uma sensualidade perturbadora a qual não se pode resistir. Quando suas vidas estão a ponto de mudar e seus caminhos a se separar, crescerá entre ambos uma paixão que os permitirá lutar contra o mundo ao qual pertencem.
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Capítulo 1
O canto de Jane Ormond, que Vergil apreciava a contra gosto, não apaziguou sua ira nem um pouco. Lamentava terrivelmente não poder jogá-la na prisão de Newgate, a que pertencia.
Ia vestida como uma rainha francesa do século passado, mas não parecia cômoda em seu papel. Movia-se com rigidez, como se temesse que a alta peruca branca caísse ou que o miriñaque[1] do vestido inclinasse. A confiança de sua voz contrastava com sua fragilidade física. E sua pose de profissional cheia de segurança destoava durante os breves momentos de vulnerabilidade.
Ele não se sentia deslumbrado com seus estudados encantos. Com seus olhos grandes, seus lábios carnudos e sua insinuada fragilidade, aparentava o tipo mais perigoso de inocência, dessa que impulsionaria um homem a sacrificar sua vida com o objetivo de protegê-la, mas que também poderia despertar outra parte escura, e conseguir que esse mesmo homem se imaginasse lhe arrancando a roupa e destruindo essa inocência.
Moveu-se em direção a ele, levantando a cabeça para cantar as notas mais altas em uma exibição vocal. Seus olhares se encontraram. Por um momento apareceu em seu rosto um brilho de curiosidade, como se percebesse que ele não estaria ali se não fosse pelo dever.
Ele sabia que não havia nada em sua aparência que pudesse revelar isso. Aquela sala de jogos incluía espetáculos para atender aos gostos dos homens de sua classe. Eles podiam descansar de suas apostas naquele salão para comer e desfrutar de um concerto de ópera, ou, mais tarde, desfrutar de formas de entretenimento muito mais baixas.
Ela o olhou por um tempo mais longo do que devia em resposta à inspeção a que se sentia submetida. Ele se surpreendeu ante a inquietante combinação de proteção e erotismo que aqueles grandes olhos convocavam, e se concentrou em todos os problemas que ocasionou durante as últimas duas semanas.
Morton se deixou cair na outra cadeira da mesa. Parecia desconjurado, com sua pinta de urso e sua barba fora de moda.
—A garota está aqui — disse— Em uma estadia traseira. A senhorita Ormond a traz aqui a cada noite, para que a espere enquanto ela canta. Falei com o homem da porta e ele as viu entrar juntas esta noite.
Vergil se levantou.
—A senhorita Ormond cantará outra canção depois da ária. Faremos agora. Temos que tirar à garota antes que acabe. —A senhorita Ormond, sem suspeitar nada, continuava com seus gorjeios— Se for inteligente, nos perseguirá pela costa quando se der conta de que seus planos fracassaram. Quanto à garota, a levaremos ao campo para que se recupere, e ninguém se inteirará de nada.
Estava contando é obvio, naturalmente, que a senhorita Jane Ormond ainda não vendeu à garota pelo maior preço. Concentrou sua atenção no rosto aparentemente ingênuo sob a muito alta peruca branca. Podia ver-se um traço de inteligência naqueles olhos. Não, essa mulher não teria se arriscado tanto por um prêmio tão pequeno como o dinheiro que podia obter de vender uma virgem. Possivelmente teria planejado pedir um resgate, mas o mais provável era que tivesse intenção de vender à garota para algum casamento. Ela, sem dúvida, tinha notícias de sua herança desde que servia de criada e partiram juntas da América.
Tudo aquilo podia ter sido evitado se Derem estivesse mais atento. A culpa era em realidade dele, por ter enviado seu irmão para receber o navio, mas quem ia pensar que uma criada que não era mais que uma menina se atreveria a fazer semelhante coisa.
O corredor de má morte contrastava com a opulência do salão. Morton assinalou para uma porta escondida sob uma escada. Vergil girou o trinco.
Já havia visitado camarins de cantoras, e normalmente era um autêntico desastre ao que se refere à ordem. Entretanto, aquele diminuto espaço foi arrumado cuidadosamente. Havia um par de velas sobre uma mesa, em que também podia ver-se um espelho e um recipiente com pinturas. Disfarces e roupas de dia penduravam de uma fila de cabides colocados na parede. À direita da mesa havia uma cadeira entre as sombras, onde uma moça permanecia sentada com uma agulha fazendo acertos em um tecido que sustentava perto das chamas.
—Senhorita Bianca Kenwood?
Ela levantou o olhar surpreendida e ele imediatamente começou a calcular quanto teria que incrementar o suborno que pensava fazer a Dante. Sem dúvida poderia tratar-se de uma garota doce, mas Dante julgava às mulheres por seu aspecto físico, não por seu caráter, e o dela não impressionava muito. As mechas de cabelo castanho que escapavam de seu gorro pareciam mais crespados que frisados. Seu nariz era arrebitado, o qual poderia ter resultado encantador no caso de que não fosse tão largo.
—Senhorita Kenwood, sou Laclere.
—Oh!
—Este é Morton, meu (criado). Tenho um carro estacionado atrás do edifício e a levaremos ali imediatamente. Sua terrível experiência terminou e te asseguro que ninguém jamais terá notícia deste desafortunado incidente.
—Oh! Oh, Deus…
—Por favor, é necessário sairmos agora. Falarei com a senhorita Ormond mais tarde. No momento, o melhor será que a tiremos daqui.
—Oh, não acredito que… Isto é… — Andou para trás, fazendo gestos de resistência e confusão. Ele se inclinou para ela e sorriu para transmitir confiança. Precaveu-se de que seu vestido era muito comum, um simples vestido longo e cinza. Era evidente que não tinha nenhuma noção do que era se vestir na moda.
—Vamos querida. Será melhor que saiamos antes que…
—Quem é você? —A indignada voz que fazia a pergunta era feminina, melodiosa e jovem.
Vergil deu a volta para ver Maria Antonieta ante a porta, com os braços em jarras e as mãos apoiadas sobre seu magro talhe. O vestido de largos quadris ocupava toda a soleira.
—E bem? Quem é você, senhor, e o que está fazendo aqui?
A senhorita Kenwood se levantou de um salto e se precipitou para a senhorita Ormond, que a abraçou de maneira protetora. Ou seja, que assim é como tinha ocorrido. Naturalmente, ela tinha cercado amizade com a garota. De outra forma não teria funcionado.
—Seu concerto terminou? —perguntou ele.
—Os lieder são peças breves. Agora, me faça o favor de sair. Minha irmã e eu…
—Senhorita Ormond, essa jovem não é sua irmã. Não são parentes. A convenceu a vir com você, mas sua ação não foi outra coisa mais que um sequestro e deverá ser examinada ante um juiz.
A senhorita Ormond afastou brandamente à garota e depois apertou seu vestido para conseguir entrar na estadia. A largura da ridícula saia obrigou Morton a se aproximar da parede.
Ela cruzou os braços. O gesto fez que Vergil se fixasse na forma em que seus peitos apareciam esmagados, sob o rígido sutiã.
—Quem é você?
—Vergilius Duclairc, o visconde Laclere. A senhorita Kenwood é minha pupila, como você já sabe.
Ela baixou lentamente o olhar, e logo voltou a elevá-lo.
—Eu não sei nada disso.
O aprumo que demonstrava, apesar de ter sido surpreendida em fragrante delito, acabou com a paciência de Vergil.
—Não tente brincar comigo, jovenzinha. A forma em que traiu a confiança de sua companheira de viagem é simplesmente abominável. O perigo e o possível escândalo ao que submeteu esta moça durante as últimas semanas são indesculpáveis. A partir de agora não tolerarei nenhuma intromissão. Se você se der pressa, poderá estar a caminho de volta a América antes que amanheça, mas unicamente estou disposto a fazer esta concessão por deferência à senhorita Kenwood.
Ela nem sequer pestanejou. Avançou uns passos para diante até que os volantes de sua saia roçaram a perna dele e levantou a vista para olhá-lo de uma forma curiosa.
—Assim é você um desses.
Ele a olhou fixamente. Se fosse um homem lhe daria uma boa surra.
Ela dirigiu a vista para a perturbada garota, encolhida com medo contra o vão da porta.
—Pelo visto parece que tudo terminou. É uma lástima, realmente acreditei que conseguiria. —Fez um gesto e a senhorita Kenwood se uniu a ela para ajudá-la a desprender e dobrar os objetos que tinha pendurados nos cabides.
Ele se colocou entre elas, pegou um vestido das mãos de sua pupila e o jogou para um lado.
—Iremos agora mesmo. Se a senhorita Kenwood tiver pertences aqui ou no lugar onde se aloja, enviarei alguém para buscá-los.
A senhorita Ormond sorriu de uma forma muito insolente.
—Oh, definitivamente é você um desses. Muito seguro de si mesmo. Um homem que decide que rumo seguir e que está sempre seguro do que é o correto. Advertiram-me que neste país havia muitos homens como você, homens que estão convencidos de que jamais cometem enganos.
Ele sentiu que se ruborizava ante a suja afirmação dessa pomba presunçosa. Já tinha sido suficiente. Pegou com sua mão a larga manga de tecido cinza de sua pupila.
A senhorita Ormond mudou de posição e obstruiu sua retirada com a largura de seu vestido. Com uma mão, suave e cálida, agarrou a mão dele e com delicadeza fez que seus dedos se abrissem e o tecido largo e cinza se deslizasse deles.
Uns olhos azuis o olharam com zombador deleite.
—Bem, esta vez cometeu um engano, Vergilius Duclairc, visconde Laclere. De fato, você está completamente equivocado. Ela não é Bianca Kenwood. Sou eu.
Ele teve um momento de confusão até que o significado daquelas palavras o golpeou. Insinuações de problemas se atropelaram em sua mente, uma luminosa névoa de premonições que sugeria que algo que parecia bastante simples de resolver acabava de voltar-se perigosamente complicado. Dirigiu seu olhar para o tímido passarinho cinza que retorcia as mãos, e depois para aquela ave do paraíso, borrada e cheia de confiança em si mesma, e se perguntou como teria reagido Dante ante desse escandaloso acontecimento.
***
Zas. Zas. Zas.
O látego de montar golpeava contra as altas botas do visconde Laclere enquanto caminhava acima e abaixo frente à chaminé.
No divã, Bianca abraçava Jane, e dava tapinhas no seu ombro. Na outra ponta do salão, meio adormecida, a condessa de Glasbury irmã do visconde, piscava com consternação, vestida com uma bata verde de estilo oriental.
Bianca pensou que era de muito má educação por parte de Vergil Duclairc arrastar Jane e a ela até a casa da condessa e interromper seu sono. Se ele deixasse de dar voltas ao assunto e de caminhar de um lado a outro, ela poderia esclarecer as coisas rapidamente e poderiam partir.
Zas. Zas.
—Não estará planejando usar isso, verdade? —perguntou Bianca. Sua voz rompeu o tenso silêncio que se fez depois que ele explicou à condessa onde encontrou sua pupila desaparecida após duas longas semanas de busca.
Ele parou em seco uma de suas idas e vindas para dar a volta e olhá-la. Era um homem alto, magro e robusto de uns vinte e cinco anos, com surpreendentes olhos azuis e o cabelo ondulado e escuro um pouco despenteado, como ditava a moda. Atrativo, de fato. Possivelmente inclusive bonito se deixasse de pôr essa cara mal-humorada, de momento ela não podia saber.
—O látego — insistiu— Não pretende usá-lo? Devo te dizer que tenho vinte anos, e Jane tem vinte e dois, o que significa que já passamos da idade para estas coisas. Embora minha tia tivesse uma criada que foi cortejada por um cavalheiro inglês que disse que há muitos homens que usam o látego com suas mulheres aqui na Inglaterra, o qual me pareceu bastante curioso, e que há outros que de fato querem mulheres para lhes dar chicotadas, o qual para mim não tem nenhum sentido.
A condessa ficou boquiaberta. De repente parecia completamente acordada.
Vergil se voltou para sua irmã com uma paciência cheia de tensão, e assinalou para o divã como querendo dizer «o vê?».
—Asseguro-lhe, senhorita Kenwood —disse a condessa com um sorriso vacilante— que, sem dúvida, meu irmão não tem nenhuma intenção de…
Vergil baixou as pálpebras como se não houvesse nenhuma razão de usar o «sem dúvida». Cruzou as mãos atrás das costas e estudou a moça com severidade.
—Meu irmão foi esperar seu navio em Liverpool. Por que não conseguiu encontrá-la?
Bianca considerou a possibilidade de usar a elaborada história cheia de peripécias que inventou se por acaso as coisas se estragavam, tal como tinha ocorrido. Mas de repente pareceu que era muito pouco convincente.
Examinou os olhos azuis que a esquadrinhavam. Tia Edith havia dito que os aristocratas ingleses eram gente indolente e decadente, um pouco estúpidos, e Bianca acreditava que aquilo seria certo. Infelizmente aquele parecia ser uma exceção, ao menos em relação ao último ponto. Não parecia capaz de acreditar em confusas histórias a respeito de uma moça inocente e desventurada.
—Havia a bordo um marinheiro que nos ajudou a tirar nossos baús e a encontrar um carro de aluguel antes que alguém viesse nos recolher.
—Ficou amiga de um marinheiro? —A condessa lançou a seu irmão um olhar oblíquo e este fechou por um momento os olhos.
—Senhorita Kenwood, talvez ocorreu um mal-entendido. O procurador de seu avô contatou com um advogado de Baltimore, o senhor Williams, para dirigir este assunto. Ele falou com você, ou acaso não fez? É possível que foi mal informada?
—Certamente falou comigo. É um homem muito agradável. De fato conseguiu nossa passagem para o navio.
—Escreveu-me dizendo que o faria. Explicou a você que um membro de nossa família iria recolhê-la em Liverpool?
—Explicou-o com muita claridade. Minha tia não teria me permitido vir se não tivesse convencida de que me recolheriam.
—Então admite você que desembarcou por sua conta própria sem esperar um acompanhante e que não foi acidental que meu irmão não a encontrasse?
—Não foi acidental. Foi completamente deliberado.
Por alguma razão sua franqueza o deixou mudo. Olhou-a como se fosse impossível compreendê-la.
—Acredito que será melhor que se sente Vergil, assim ela se sentirá menos incômoda — disse a condessa— Podemos falar as coisas com calma. Estou segura de que a senhorita Kenwood terá uma explicação para tudo.
Vergil se sentou em um pequeno banco, mas continuou envenenando a moça com sua atitude.
—Você tem alguma explicação?
—É obvio. —Jane dormiu apoiada em seu ombro e o peso morto a distraiu. O abraço tinha feito que sua peruca se desequilibrasse e se torcesse. Esses vestidos antigos não estavam desenhados para sentar-se e a saia formava uma espécie de plataforma a seu redor. O espartilho sob o disfarce lhe cravava ao lado da cintura.
Sentia-se um pouco ridícula e muito incômoda e lamentava que aquele visconde com ar de grandeza não a tivesse deixado tempo para trocar-se e lavar-se antes de arrastá-la até o carro.
—A explicação, senhorita Kenwood. Eu gostaria de ouvi-la.
—A verdade, senhor Duclairc, é que não acredito que gostará.
Ele entrecerrou os olhos.
—Seja como for vamos provar.
Ela subiu uma perna e a colocou sob seu traseiro para levantar-se um pouco mais. A condessa pestanejou. O visconde elevou uma sobrancelha em atitude de censura. Ao dar-se conta de que a perna que pendurava estava descoberta até a metade da panturrilha, Bianca sorriu a modo de desculpa e puxou a borda de sua saia para baixo.
—Senhor Duclairc, fui informada a respeito dos planos de minha visita aqui. Simplesmente decidi fazer umas pequenas mudanças. Se o senhor Williams falou com você a respeito de mim, você deve saber que eu vivia com minha tia avó Edith mais como uma companheira que como uma pupila. Viajei muito quando minha mãe vivia, e aprendi a cuidar de mim mesma. Sou considerada muito amadurecida para minha idade.
—Ele só me escreveu dizendo que sua tia era um baluarte da sociedade de Baltimore e que você era uma jovem bem educada. —Seu tom dava a entender que o senhor Williams devia alguma explicação.
—Sei que meu avô o nomeou meu protetor em seu testamento. É um gesto encantador e comovente. Provavelmente ele queria cobrir a eventualidade de que eu necessitasse realmente um protetor, mas obviamente não é o caso. Por outro lado, sou americana, assim não posso entender de que modo um testamento inglês pode estabelecer algum tipo de autoridade sobre mim.
—Será um prazer explicar mais tarde.
Ela já sabia a explicação. Simplesmente não a aceitava.
—Ante a insistência do senhor Williams, aceitei vir aqui para estudar assuntos referentes à minha herança e arrumá-los pessoalmente. Entretanto, nunca disse que iria ficar com sua família. —Omitiu o fato insignificante de que tampouco nunca havia dito que não fosse fazê-lo e que quando subiu a bordo desse navio tanto o agradável senhor Williams como a velha tia Edith davam por certo que era exatamente isso o que faria.
—A quem pensava visitar, querida? —perguntou a condessa— Vê Vergil, disse que haveria uma explicação. Ela esperava que outros amigos fossem recolhê-la e não se apresentaram.
A expressão dele se fez cautelosa.
—É assim, senhorita Kenwood?
—Não — admitiu ela. Curiosamente, ele pareceu aliviado— Minha intenção é viver por minha conta, com Jane como acompanhante. Em relação à oferta de alojamento em sua casa de campo… Bom, me sentiria como uma intrusa, e, além disso, prefiro a vida da cidade. E é obvio, não queria que se atrasassem minhas lições.
—Lições?
—Lições de canto. Esse é o motivo de ter vindo. Meus instrutores em Baltimore me disseram que me levaram tão longe quanto podiam e que a partir de agora necessitava professores melhores. Meu plano é tomar lições em Londres até que o assunto de minha herança esteja resolvido, e depois usar os ganhos para ir a Milão.
O visconde suspirou, levantou-se e começou a caminhar de novo frente à chaminé. A condessa inclinou sua cabeça de cabelo negro confidencialmente.
—Acredito que é maravilhoso que sinta esse ardor por sua música. Quanto talento! Quando formos a Londres para a temporada, estou segura de que poderemos encontrar um professor de canto. Conheço bastante gente nos círculos de arte e de música.
—Obrigado por tão amável oferecimento, mas não quero esperar até a temporada, seja quando for. As lições de canto foram o autêntico propósito de minha viagem e penso começá-las em seguida.
Vergil esfregou as superficiais rugas que se formavam entre suas sobrancelhas.
—Senhorita Kenwood, não quero incomodá-la, mas preciso saber como você conseguiu cantar nesse local.
—Vergil…
—Não, Penelope, é melhor esclarecê-lo agora e saber exatamente a que enfrentamos. Senhorita Kenwood?
—Bom, alugar esse carro para chegar a Londres resultou muito caro. Custou mais do dinheiro que trazia comigo. Quando chegamos a Londres encontrei emprego cantando, para nos manter até que pudesse obter o dinheiro do patrimônio de meu avô.
—Que inteligente e competente por sua parte — disse Penelope.
Vergil tinha o aspecto de alguém que jamais admirou virtudes como a inteligência ou a competência.
—É consciente da reputação desse lugar? Sabe o que ocorre no cenário depois de suas árias?
—Nunca ficamos. Parecia uma sala de música comum.
—Do mais comum. Nossa única esperança é que seu disfarce esconda sua identidade e que nenhuma das pessoas que te encontre no futuro a reconheça. Resulta escandaloso que uma mulher cante em um cenário de qualquer tipo, mas em um como esse, pintada e com esses babados… — Fez um gesto assinalando seu vestido, seu rosto, sua peruca.
—Minha mãe cantava em um cenário senhor Duclairc e este é seu vestuário.
—Estou segura de que era uma cantora encantadora — se apressou a dizer Penelope.
—Deixa de seguir a corrente, Pen. Talvez isso seja aceitável nos Estados Unidos, mas não na Inglaterra, senhorita Kenwood.
—Posto que não seja inglesa, isso não me preocupa. Acredito que o melhor será evitar qualquer contato social para que você não deva preocupar-se com minhas atuações, não parece? —Fez um sorriso forçado, como o animando a aceitar a lógica daquele raciocínio— Agora que já cumpriu com seu dever assegurando-se de que estou a salvo, por favor, leve Jane e a mim ao nosso alojamento.
—Você ficará aqui esta noite. Farei com que tragam seus pertences e que se relate ao proprietário da sala de jogos que suas atuações acabaram.
—Devo declinar sua oferta, senhor Duclairc. Não quero abusar da hospitalidade de sua irmã, e tenho a intenção de continuar com meu emprego. Como cantora, necessito experiência com o público e…
Ele a interrompeu com um gesto autoritário.
—Não. Definitivamente não. Não viverá de forma independente sem uma acompanhante e tampouco vai pavonear sobre um cenário. Enquanto esteja aqui eu sou responsável por você e deverá comportar-se como se espera de uma jovem dama.
Bianca devolveu o olhar a aquele intratável, alto e imponente visconde. Que um velho avaro, a quem nunca conheceu, pudesse ter complicado sua vida dessa maneira com os garranchos de uma pluma, resultava intolerável. Não esperava que o visconde a encontrasse tão rápido. Não esperava ter aquela conversa até estar preparada.
Vergil cruzou os braços. Aquela pose o fazia parecer muito alto e poderoso. Era o tipo de postura que devia adotar um rei quando ordenava executar alguém.
—Amanhã minha irmã acompanhará você e a sua criada até o campo — entoou, como expressando a vontade de um juiz— Não falará com ninguém a respeito desta experiência, nem sequer a outros membros de minha família. No que concerne ao mundo, você foi recolhida no navio e esteve sob nosso amparo desde o começo.
—Se você me tirar de Londres, será contra minha própria vontade. Como você disse antes, isso é um sequestro. Eu também posso ir me queixar ante o tribunal de Justiça.
Ela olhou com frieza.
—É legalmente impossível para mim sequestrá-la, senhorita Kenwood. Sou seu tutor. Até que você cumpra vinte e um anos ou se case permanecerá sob minha custódia. Pen, pede à governanta que mostre à senhorita Kenwood e à senhorita Ormond suas acomodações.
Despachada como uma escolar travessa, Bianca achou a si mesma e a uma sonolenta Jane guiadas por uma mulher através do corredor. Zangada por ter visto frustrado seu plano, e desconcertada ao ver aquele estranho assumindo uma responsabilidade que certamente desejaria não ter que assumir, baixou a escada guiada por aquela mulher.
Algo no final daquela confrontação a perturbava. Foi chegar ao patamar da escada quando se precaveu da importante omissão. «Até que você cumpra vinte e um anos ou se case permanecerá sob minha custódia.»
Ou até que abandone a Inglaterra, naturalmente. Verdade?
—Não acredita que foi muito duro com ela? —perguntou Penelope.
—Absolutamente. —Vergil observava Bianca Kenwood enquanto esta subia a escada cambaleando com suas delicadas sapatilhas de seda. A chuva de premonições se converteu em uma tormenta de neve.
Que desastre.
—É uma estrangeira aqui, Vergil. Ignorante de nossos costumes. Sem dúvida, as pessoas na América se comportam de maneira mais informal.
—Não acredito Pen. Ela sabia perfeitamente o que estava fazendo. —O qual significava que estava fazendo exatamente o que queria e pressupondo que aquilo o induziria a lavar as mãos a respeito dela.
Deu a volta, pensando em tomar um copo de porto antes de partir. Precisava fazer planos sobre como preparar seu irmão e como frear à senhorita Kenwood para que aquele caveira não ficasse impressionado por ela.
Penelope o pegou pelo braço, detendo-o.
—Foi muito amável de sua parte não dizer nada a respeito de como deve dirigir-se a você. Compreendeu que era só sua ingenuidade o que a fazia te chamar todo o tempo senhor Duclairc. Ela se sentia envergonhada e você foi muito generoso. O explicarei amanhã.
É isso o que Penelope viu naqueles olhos azuis? Ingenuidade? Vergonha? Normalmente sua irmã mais velha se mostrava mais ardilosa, apesar de sua natureza otimista.
—Não será necessário dar explicações, Pen. Apostaria mil libras que a senhorita Kenwood sabe perfeitamente qual é a forma apropriada de dirigir-se a um visconde.
Capítulo 2
Vergil lançou a seu camareiro seu chapéu empapado e desatou com violência o nó de seu lenço.
—Uísque para os dois, Morton. Depois desta viagem, necessito. Leva Hampton acima quando chegar.
Ao final de dez minutos, Morton não só serviu as bebidas, mas também queijo e carne de ave fria, acendeu um pequeno fogo na biblioteca e conseguiu que Vergil estivesse seco e arrumado. Não é que houvesse ninguém ante quem tivesse que estar arrumado. Só umas poucas estadias da luxuosa casa de Londres estavam abertas e, além de Morton, havia só outros dois criados.
Tampouco tinha por que arrumar-se para receber Julian Hampton. O advogado da família o viu em outras ocasiões vestido de maneira muito informal. Entretanto, a vida que levava em Londres requeria que se respeitassem as aparências.
Sentou-se junto ao fogo, bebendo a sorvos seu uísque com dois grandes livros em seus joelhos. Já sabia o que mostravam esses documentos e o que diria Hampton. As finanças da família Duclairc não atravessavam um período de prosperidade. Só a cuidadosa direção de Vergil durante aquele último ano tinha evitado o desastre total.
Ultimamente, entretanto, não teve muito tempo para dedicar-se a essas coisas. Outros assuntos, mais urgentes e também mais interessantes, tinham requerido sua atenção. Assuntos como o que acabava de atender no norte.
E agora, é obvio, precisava ocupar-se daquele novo assunto chamado Bianca Kenwood. As possíveis complicações que aquilo podia representar o fizeram fechar os olhos.
A imagem dela cintilou atrás de suas pálpebras, assim como ocorreu muito frequentemente durante as últimas duas semanas. Viu-a sentada na sala de estar de Pen com aquele absurdo vestido, sua magra perna pendurando do divã e a sapatilha de seda arqueando um pouco seu pequeno pé. Estava do mais inapresentável. Além de incorrigível e impertinente e maliciosa e fascinante…
Fascinante? Que ideia tão curiosa. De onde sairia?
—O senhor Hampton — anunciou Morton.
Julian Hampton entrou, levando posta sua cara de advogado. Sempre o fazia quando se encontravam por assuntos de negócios. Já que se tratava de um velho amigo provavelmente era necessário, especialmente quando tinham que falar de más notícias. Vergil viu aquela expressão muito frequentemente durante o último ano.
—Estudou-os? —perguntou Hampton, assinalando os tomos ao tempo que tomava assento e aceitava o copo que oferecia Morton.
—Espero que as coisas tenham mudado um pouco.
—Um pouco. A solvência nos faz gestos. Se sua irmã vivesse em Laclere Park…
—Não posso pedir que seja tão dependente.
—Ou se Dante vivesse de acordo com seus meios…
—Jamais o fez, assim não há nenhuma esperança.
—Poderia consolidar a granja e arrendar a terra.
—Essa é uma velha litania, Hampton, e já sabe minha resposta. Meu pai e meu irmão não jogaram essas famílias, e eu tampouco o farei.
—Bom, ao menos não estão na borda do abismo.
Estavam mais perto do abismo do que sabia Hampton e do que revelavam aqueles tomos. Entretanto, Vergil tinha um plano para tentar solucioná-lo. Infelizmente, uma parte fundamental desse plano podia causar problemas. A parte chamada Bianca Kenwood.
Hampton sorriu. Isso nunca era um bom sinal, especialmente na cara de seu advogado.
—Deve melhorar as coisas do modo mais simples. O modo tradicional.
—Sim, suponho que o pai de Fleur será muito generoso. Deveria estar agradecido de que meu valor tenha aumentado tanto depois da morte de meu irmão. Com o tempo, suponho que consentirei em me casar. De momento, entretanto, outros enredos fazem que resulte impossível.
Hampton não era um homem muito expressivo, assim que o brilho de curiosidade e preocupação que relampejou em seus olhos fez Vergil ter sabor que falou muito.
—Posso te procurar ajuda? Tenho experiência em negociar para que meus clientes solucionem seus enredos. —Destacou a última palavra de uma forma que parecia aludir a problemas de natureza romântica.
O enredo em que Vergil se achava envolvido necessitava algo mais que a destreza de Hampton para chegar a desembaraçar-se.
—É insuperável nisso, e aceitaria sua ajuda se acreditasse que poderia servir de algo. Não sei como conseguiu convencer o conde para que liberasse minha irmã.
—Todos os homens têm segredos que querem esconder. O conde de Glasbury simplesmente tem mais que a maioria. Como vai à condessa?
—Está bastante contente, e acabou por preferir aqueles círculos sociais que a aceitam.
—Sua queda teria sido muito pior se não fosse por você.
Vergil sabia. Graças a sua fama de homem íntegro e decente conseguiu aliviar o impacto social que foi o fato de que Pen se separasse do conde; também obteve que se subtraísse importância aos diversos pecados de Dante e inclusive que se retificasse em parte a fama que tinham os Duclairc por seu comportamento e suas ideias pouco convencionais. Apesar de que sua família atirasse para baixo, ele conseguiu que se mantivessem flutuando. Com muita dificuldade.
—Acabamos? —perguntou Vergil, levantando.
—Pelo visto você acredita que sim.
Vergil deixou cair os livros ao chão.
—Pode deixar para outro dia os detalhes tristes. Me diga o que esteve fazendo, além de dar conselhos a insensatos como eu.
—Se todos meus clientes fossem tão insensatos como você, morreria de fome.
A gravidade da expressão de Hampton se esfumaçou e voltou a ser o apreciado amigo de Vergil.
Resultou que esteve fazendo muito pouco. Hampton não frequentava muito as reuniões sociais, e permanecia um pouco à margem quando ia a elas. As mulheres o achavam melancólico e misterioso, enquanto que os homens o consideravam orgulhoso e aborrecido. Com seu cabelo negro e seus traços perfeitos e afiados, Hampton parecia uma figura desenhada com tinta e pluma por um ilustrador. O problema para a maioria da gente era que a ilustração vinha sem pé.
—Saint John voltou para Londres — disse Hampton— Burchard e eu nos encontraremos com ele no Corbet amanhã. Witherby e os outros provavelmente virão também. Agora que retornou de onde seja que estivesse, por que não se reúne conosco? A Sociedade do Duelo estará completa outra vez.
Estava se referindo ao grupo de homens jovens que se reuniam em Hampstead na academia de esgrima de Chevalier Corbet há cinco anos. Vergil não praticava com eles há meses.
Sua ausência resultava tão estranha porque ele foi o eixo da roda em torno do qual se agrupavam os outros homens. Conhecia Hampton desde a adolescência, e se fez amigo de Cornell Witherby durante a época universitária. Adrian Burchard, filho de um conde, o conheceu nos círculos da nobreza. Inclusive Daniel Saint John, o marinheiro, acrescentou-se à Sociedade do Duelo através de Vergil graças a sua amizade com Penelope.
—Oxalá pudesse, mas devo me encontrar com Dante e levá-lo a Laclere Park. Temos assuntos a atender ali.
—Burchard ficará decepcionado. Esteve te procurando para discutir sobre algo que não quer divulgar. Suponho que se tratará de política.
Se Adrian Burchard estava procurando alguém, logo o encontraria. Adrian era a última pessoa que Vergil desejaria ver interessado em suas atividades.
—Escreverei para ele o convidando a ir me visitar. Espero estar aqui durante vários dias.
—Por que não convida também Witherby? A prolongada ausência da condessa em Londres o tornou melancólico.
—Possivelmente assim se inspire para escrever outra ode. Witherby terá que esperar sua vez. A senhorita Kenwood chegou à Inglaterra, e Penelope a levou ao campo por uma temporada.
—Há algum problema?
Não estava claro se Hampton se referia a Bianca Kenwood ou à forma em que Cornell Witherby estava cortejando Penelope. Embora a primeira não prometesse nada mais que problemas, Vergil também preferiria se livrar do segundo. Ter um bom amigo apaixonado por uma irmã mais velha, especialmente quando essa irmã se acha separada de seu marido, só e vulnerável, era o tipo de situação que podia arruinar uma amizade.
—Não há nenhum tipo de problema. A senhorita Kenwood é encantadora. Estou desejando que a conheça.
Até esse ponto se enredou com suas confusões. Estava mentindo a um homem que conhecia há meia vida.
Hampton desviou a conversa para assuntos de política. Enquanto falavam de liberais e conservadores, as manifestações violentas e as mudanças ocorridas depois da morte do último ministro de Assuntos Exteriores, a mente de Vergil se mantinha ocupada com as questões privadas que o esperavam no campo.
Uma e outra vez aparecia em sua cabeça à imagem de uma moça vestida como uma rainha francesa, desafiando-o com uma excessiva auto-suficiência, e uma bonita perna pendurando por debaixo de uma prega indecorosamente alta.
***
—Sigo sem entender sua impaciência — disse Dante. Jogou a cinza de seu puro através da janela da carruagem— Não vejo a razão de que me fizesse voltar da Escócia. Ela não alcançará a maior idade até dentro de um ano.
Isso significava uma eternidade dada à forma em que Dante calculava seu calendário com as mulheres. Normalmente era capaz de cortejar, seduzir, levar a cama e desprezar duas amantes ao mesmo tempo. Vergil estudou o jovem e belo rosto de seu irmão, seus limpos olhos e seu cabelo castanho escuro. A história de Dante com as mulheres foi quase inevitável com traços como os seus. Vergil viu como damas da mais alta linhagem ficavam sem fôlego quando Dante se aproximava.
—Começa a temporada muito antes de seu aniversário, e com a estreia em sociedade de Charlotte não podemos exatamente ir todos à cidade, e deixar aqui à senhorita Kenwood. Já terão que estar casados então, e não só prometidos.
—Por quê? Você acha que algum caçador de fortunas tomará meu lugar? —O tom de Dante deixava ver que aquilo era absurdo.
«Não, acredito que se ela está casada, poderemos impedir que nem chegue a pisar em Londres se for necessário», pensou Vergil. Só a ideia de ver Bianca Kenwood entre a sociedade educada, tratando duques e condes de senhores e anunciando sua pretensão de estudar ópera era suficiente para deixar seu ânimo pelo chão aquele último dia de agosto.
Mas a pergunta de Dante também aguçava aquela premonição que continuava obcecando-o desde que abandonou a casa de Penelope aquela noite. Seria melhor que Dante acabasse com aquilo enquanto o campo estivesse livre.
Dante o olhou diretamente nos olhos.
—Já estamos quase chegando. Não acha que deveria me dizer isso já?
—Te dizer o que?
—Não me disse grande coisa a respeito da senhorita Kenwood, com quem espero me casar. Encontro-o um pouco suspeito. Depois de tudo, você a conheceu. Ambos sabemos que não tenho outra escolha mais que aceitar, mas se deve me fazer alguma advertência, seu tempo está acabando.
—Se não a descrevi com detalhes, é porque isso seria pouco delicado de se fazer. Não é um de seus cavalos de corridas.
—Não a descreveu absolutamente.
—Muito bem. É de compleição média e esbelta, com olhos azuis.
—De que cor é seu cabelo?
Como diabos ia saber. Que cor de cabelo podia ocultar-se debaixo daquela ridícula peruca?
—Até que ponto é má?
Vergil tinha toda a intenção de advertir Dante, mas não encontrava a forma apropriada de abordar o assunto. Um matiz de culpa coloria suas reflexões quando tentava fazê-lo. Afinal, virtualmente meteu seu irmão naquilo à força. Embora não é que Dante resistisse muito ao saber que em um ano ela receberia mais de cinco mil libras.
—O problema não é seu aspecto. Suas maneiras, entretanto…
—Isso é tudo? Está preocupado por uns poucos enganos de etiqueta? O que esperava? É americana. Pen a preparará em pouco tempo.
Falar de uns poucos enganos de etiqueta não fazia justiça a Bianca Kenwood, mas deixou passar.
—É obvio. Entretanto, ela é… Especial.
—Especial?
—Poderia dizer-se inclusive que é estranha.
—Estranha?
—E possivelmente um pouco… Original. O qual pode remediar-se, naturalmente. Enquanto sustentamos esta conversa Pen a tem em suas mãos.
Através do guichê do carro, Dante olhou mal-humorado a visão da campina de Sussex. Vergil não sabia se continuava, mas quase estavam chegando e mal ficava tempo.
—Necessita mão dura. É um pouco independente, por assim dizer de algum modo. —O olhar de seu irmão deslizou para ele— Independente… Tem alguns caprichos. É por sua juventude, passará.
—Seria de imensa ajuda que pudesse completar sua descrição acrescentando alguma informação a respeito de sua beleza.
Sem dúvida. O problema era que ele não sabia se ela era bela. Só recordava seus grandes olhos, com aquela interessante faísca de inteligência e vitalidade que havia neles.
Que mais podia acrescentar? Toda aquela pintura de teatro ocultava seu rosto. Era provável que sua pele fosse preciosa, mas quem poderia estar seguro antes de ver seu rosto lavado? Também sua silhueta parecia bonita, mas podia ter sido pelo vestido. E fazer algum comentário sobre sua sensualidade… Não era muito apropriado tratando-se da futura noiva de um irmão.
—Maldita seja, se for vulgar não estou disposto a fazê-lo, Vergil. E você não deveria desejar que o fizesse. Além do fato de que ela repercutiria positivamente em mim e minha família, posso ignorá-la virtualmente por completo uma vez que estejamos casados, inclusive poderia ir viver na cidade e deixá-la aqui, que é de fato o que pretendo fazer. E até que se case com Fleur e estabeleça sua própria descendência, coisa que está demorando muito em fazer, eu sou seu herdeiro e essa americana poderia acabar convertendo-se na viscondessa Laclere.
Não necessitava que Vergil enumerasse a seu jovem irmão os obstáculos que o esperavam naquele caminho. Abismos muito mais profundos e numerosos do que Dante imaginava. Um favo desses abismos. Se pudesse pensar em alguma alternativa o teria feito, mas depois de duas semanas considerando distintas opções sempre terminava chegando à mesma conclusão. Era necessário que Bianca Kenwood fosse atada a sua família com correntes indestrutíveis.
Dante mordeu o lábio inferior e voltou a olhar através do guichê com seus olhos de espessas pestanas.
—A renda de seus recursos será minha? Como depositário, você não interferirá? E minha atribuição continuará até o casamento, aumentando como o acordo?
—É obvio. Também prometo continuar dirigindo os investimentos financeiros, como solicitou. A renda dos recursos é segura, mas outros assuntos requerem ser fiscalizados, e eu sei que você odeia essas coisas.
Dante fez um gesto de desdém.
—São coisas sórdidas e chatas. Duvido que valha a pena preocupar-se com elas. Pode vendê-las ou conservá-las, o que achar melhor. Depois de ver como se arrumou após a morte de Milton, seria um idiota se me atrevesse a te questionar.
Viajavam silenciosamente através dos bosques de carvalhos e fresnos que havia atrás de Laclere Park. Vergil preferia esse caminho ao longo horizonte de paisagem que se abria da parte frontal, e sempre dava instruções a seu chofer para que se aproximasse da casa por ali. Normalmente servia como um espaço de transição, uns poucos quilômetros durante os quais se preparava para assumir seu papel de visconde Laclere e confrontar as responsabilidades que este conduzia.
Fez aquele caminho pela primeira vez quando chegou à notícia da morte de Milton; escolheu então aquela longa rota para demorar sua chegada, lutando contra emoções conflitivas e agudos ressentimentos pelas mudanças que suportaria em sua vida a repentina morte de seu irmão.
Foi naqueles bosques onde terminou aceitando aquela nova realidade e suas correspondentes restrições. Não chegou nem a intuir até que ponto complicaria sua vida a morte de seu irmão. Restrições, mistérios e decepções o estavam esperando ao final daquela viagem.
De repente Dante se inclinou sobre a janela. Afiou o olhar.
—Que diabos…?
—Algum problema? —Vergil afastou um pouco a cabeça de Dante para poder aparecer a sua através da janela aberta.
—Ali, no lago. Espera, há árvores que nos tampam a vista. Agora. Essa não é Charlotte?
As árvores eram mais magras agora que passavam em frente do lago. Duas mulheres estavam se banhando, rindo e salpicando-se. Virtualmente nuas, pois suas roupas se tornaram transparentes pela água. Diabos, sim, era sua irmã pequena, Charlotte, com aquela criada, Jane Ormond.
Um terceiro corpo feminino emergiu de repente da água. A roupa empapada se aderia a sua pele a obscurecendo um pouco. Bonitos ombros… Umas costas que ia se estreitando… Uma pequena cintura… Gráceis quadris… Finalmente os topos de suas encantadoramente arredondadas nádegas apareceram à vista. Uma larga cabeleira loira se desdobrou em um leque sobre a água para aferrar-se depois a aquele corpo em espessa queda de uma cabeça bem formada.
Seus esbeltos braços começaram a golpear a superfície da água, criando ondas na direção de suas companheiras de jogo. As outras duas gritaram e empreenderam um maciço contra ataque de salpicaduras, enviando jorros de água ao redor dela até que acabou parecendo uma imagem emergente em meio de um sonho de bruma.
Ela lançou um chiado de jubiloso protesto. Rindo, deu a volta para responder ao ataque.
Vergil não podia estar seguro de que aqueles grandes olhos azuis viram passar o carro com seus dois atônitos ocupantes. Mas o certo é que ela se deteve, cobriu os peitos com um braço e deslizou a outra mão até o triângulo de sombra que havia justo entre suas coxas. Durante um breve instante antes de dar a volta e voltar a afundar-se na água, adotou a pose da Vênus de Botticelli, uma deusa de rosto adorável e formas luxuriosas, jorrando água, ainda virginal e pudica, mas já amadurecida e apaixonada. Aquela mescla de instinto protetor e desejos eróticos que Vergil experimentou na sala de jogos ressurgiu com força.
Ele e Dante se recuperaram ao mesmo tempo. Endireitaram-se e se afundaram em seus assentos.
Seu irmão o olhou com suspicacia.
—O que era isso?
—Não estou totalmente seguro, mas acredito que era a senhorita Kenwood.
Dante fechou os olhos e apoiou a cabeça contra o respaldo do assento.
—Deixe assegurar que entendi minha posição, Vergil. Tenho que me casar com isso? Tenho que me sacrificar no altar pelo deus da estabilidade financeira e ser forçado a ter como companheira durante o resto de minha vida essa fêmea que acabamos de ver? Uma garota tão especial, estranha e independente que se banha quase nua diante da estrada a plena luz do dia e influência nossa irmã a fazer o mesmo? Você pretendia me coagir, achando necessária a ameaça de retirar minha atribuição? Ela é a noiva que escolheu para mim?
—Sim. —Realmente não havia nada a acrescentar.
Dante manteve sua pose pensativa durante um longo tempo. Seus olhos se abriram. Uma limpa simpatia brilhou neles. Um sorriso muito masculino apareceu lentamente.
—Obrigado.
***
—Muito bem, Pen. Muito bem.
Penelope ruborizou com um tom rosado ainda mais intenso que o que sua pele tinha adquirido enquanto ele explicava sua história.
—Não me jogue a culpa. Não podia imaginar uma coisa assim. Ela foi uma hóspede da mais cortês. Seu comportamento não resultou inapropriado absolutamente. Ao menos até onde eu sei.
Acompanhou esta última observação de uma pequena careta. Penelope era suficientemente inteligente para reconhecer que a escapada desse dia era uma amostra de que ela não conhecia as atividades da senhorita Kenwood em todo seu alcance. Vergil imaginou toda uma série de escandalosos episódios tendo lugar sob o nariz da confiada Penelope.
—Durante sua estadia aqui parecia sentir-se como um peixe na água.
—Dadas as circunstâncias, «como um peixe na água» não é a melhor expressão que possa escolher Pen.
Pen abaixou a cabeça, envergonhada e sem forças ante a acusação. Dante deu uma palmada em seu ombro para consolá-la. Era simplesmente incapaz de imaginar o pior, e era sempre muito pormenorizada.
Bianca Kenwood provavelmente se deu conta em seguida de como era Penelope e tirou vantagem disso.
O que a senhorita Kenwood precisava era uma tia similar a uma velha harpia cheia de caráter que não permitisse desafiá-la, capaz de fazer tremer às moças jovens com seu olhar de aço e cujas estritas advertências provocassem uma imediata submissão.
Desgraçadamente, essa tia não existia.
—Talvez banhar-se assim seja normal na América.
—Por favor, Pen.
—Falarei com ela, e darei em Charlotte uma boa reprimenda.
—Não fará tal coisa.
—Pretende fazê-lo em meu lugar? Oh, Vergil, desejaria que não o fizesse. Seu rosto adquire uma expressão muito peculiar cada vez que se menciona seu nome. Suspeito que te vê como o guardião de um cárcere, e se for assim, o pior que pode fazer ao voltar a vê-la é lhe dar uma lição de comportamento…
—Não direi uma palavra sobre este assunto. Ninguém o fará. E tampouco a Charlotte. Mencioná-lo seria admitir que Dante e eu fomos testemunhas do ocorrido. —Não se atrevia sequer a contemplar a ideia dessa confrontação. Reconhecer o fato suporia ter que confrontar uma embaraçosa e difícil… Intimidade— Não temos mais remédio que ignorar o que aconteceu. Falarei com Charlotte em termos gerais para evitar que se deixe influenciar.
Dante se uniu a eles, com aspecto de estar contente e sentindo-se mais fresco ao mudar de roupa. Levava um traje delicioso perfeitamente engomado. Seu rosto estava cheio de espera sob seus cabelos cuidadosamente despenteados, um pouco compridos como marcava a moda romântica.
—É muito amável por sua parte se reunir conosco durante uns poucos dias — disse Penelope, levantando-se para lhe dar um beijo.
—Às vezes posso sentir falta da família, Pen. De fato, é provável que fique pelo menos uma semana. Sim, ficarei uma semana. —A piscada que lançou a Vergil fez com que Penelope franzisse o cenho com curiosidade.
Vergil devolveu um olhar reprovatório. Penelope não sabia nada a respeito dos planos que eles tinham em relação à senhorita Kenwood. Além disso, por alguma razão, a confiança em si mesmo que demonstrava seu irmão o irritava.
—Uma semana inteira? Isso é maravilhoso, Dante, e muito amável por sua parte. Sei quanto odeia o campo se não houver um bom esporte.
—Bom, Pen, há esportes e logo há esportes. Disseram-me que Verg comprou um novo cavalo que precisa domar e me senti obrigado a ajudá-lo, já que tenho tão boa mão com os animais e é, além disso, um presente para mim.
—Um cavalo novo? Vergil, não me disse nada.
—Chegará dentro de uns dias — murmurou ele. Que inteligente por parte de Dante. Desfrutar da metáfora e de passagem sair ganhando um cavalo. Não era uma metáfora tão má. A senhorita Kenwood tinha um ar menos de inacabada que de indômita. Era típico de Dante que tivesse fichado uma mulher em poucos segundos a uns sessenta metros de distância, e se deleitava no desafio que o estava esperando. Não era assombroso que parecesse tão insuportavelmente feliz.
A égua em questão se uniu a eles ao final de pouco tempo, chegando junto a Charlotte acompanhada de um fraco rangido de anáguas. Charlotte estava tão encantadora como de costume, sua elegância de magro salgueiro ainda ficava suavizada por sua inocência infantil. Junto ao cabelo negro, a pele branca e o vestido rosa pálido de Charlotte, Bianca Kenwood exalava um ar de senhorita de campo.
Seu vestido azul era um pouco antiquado e pouco atrativo. Sua pele tinha um bronzeado fora de moda, mas a ideia que fez de sua irrepreensível beleza foi acertada. Seu cabelo loiro dourado estava recolhido em um simples coque que enfatizava sua feminina, mas firme mandíbula destacando o contorno da parte inferior de seu rosto, com forma de coração. Dificilmente se ajustaria à definição de beleza da moda, mas possuía uma formosura singular, transbordava saúde e se movia com uma elegância amadurecida.
Dante a estudou com olhos calculadores durante um breve instante antes que Penelope o chamasse para apresentá-lo. Esse exame fez com que Vergil se sentisse incômodo. De repente se sentia sujo por aquele negócio. Ridículo. Semelhantes acertos se faziam todo o tempo, e frequentemente com menos sutileza.
Dante avançou para sua presa. Seu êxito com as mulheres estava mais no magnetismo do que na perseguição. Certa dama confessou uma vez a Vergil que quando Dante olhava uma mulher nos olhos esta se sentia como se ele pudesse ler sua alma e seus cuidados a deixavam sem respiração.
Se fosse assim, pelo visto a alma de Bianca Kenwood não era fácil de observar. Respondeu à saudação de Dante com soltura e não pareceu ficar sem respiração absolutamente. Vergil não pôde deixar de admirar seu aprumo, apesar de que o plano seria que ela caísse apaixonada por Dante a primeira vista.
—E recorda Vergil — acrescentou Penelope rapidamente, fazendo um gesto em sua direção.
—Dificilmente poderia esquecer o senhor Duclairc. Estou encantada de voltar a lhe ver. Possivelmente antes que se vá possamos ter uma conversa.
—É obvio, se assim o deseja.
Oh, desejava-o. Esteve guardando palavra após palavra há duas semanas. Dificilmente poderia ter enterrado seu ressentimento ante a imperiosa intromissão que a enviou até ali.
Deu-se conta de que o estava olhando com raiva, e de que todo mundo estava observando que o fazia.
—Está encontrando agradável sua estadia aqui? —perguntou Dante, guiando-a para o sofá.
—Muito agradável, obrigado.
Sentou-se ao lado dela, dedicando toda sua atenção. Era um homem bonito, mas um pouco delicado em suas formas e em seu rosto, como se Deus, ao esculpir os ossos de seu irmão mais velho tivesse esgotado seus melhores materiais e tivesse logo que arrumar-se com o resto. Formosos olhos marrons a contemplavam sob uns volumosos cílios. Uma faísca de familiaridade um tanto inapropriada brilhava neles.
Sim, eles as viram. Discutiu isso com Charlotte que não havia ninguém olhando no carro que passava. Em realidade, por um momento acreditou ver uns rostos espionando-a, mas ao comprovar que ninguém dizia nada horas depois de sua volta, simplesmente supôs…
—Assim leva o nome do poeta italiano — disse, sentindo-se muito desconfortável ante a ideia de que Vergil Duclairc a tivesse visto virtualmente nua. Curiosamente, o fato de que aquele seu irmão também a tivesse visto não importava muito.
—Foi uma desafortunada ideia de meu pai. Dava-se ares de poeta épico e pôs em seus filhos os nomes dos melhores. Nosso irmão mais velho se chamava Milton.
—Podia ter sido pior. Podia ter escolhido os nomes dos herois em lugar dos nomes dos autores.
Charlotte riu.
—Teria sido horrível. Ulisses, e Eneas e coisas assim.
—Ou poderia ter se motivado pelas histórias de Camelot que mais tarde o fascinaram tanto — acrescentou Dante— Lancelot, Gawain e Galahad.
Brincaram com aquela ideia durante um momento, e Penelope se uniu a eles. O homem que permanecia junto à janela não o fez, mas Bianca notou que seguia as brincadeiras com maior interesse do que seus olhares ocasionais pareciam revelar.
Podia ver seu adversário claramente de sua posição. Possuía uma figura refinada, era alto e magro, mas seus ombros e suas pernas sugeriam mais força da que era claramente visível. Naquele momento não tinha um olhar de desgosto, sim, era bastante bonito com seus ossos marcados, como cinzelados com certa aspereza. Seus olhos azuis surpreendiam penetrantes sob suas sobrancelhas escuras.
Eram penetrantes agora, que acabavam de descobri-la olhando-o. Ela dirigiu sua atenção a Dante, conseguindo —ou ao menos assim esperava— não ruborizar-se. Tinha a incômoda sensação de que durante aquele olhar o visconde estava recordando o que viu no lago.
Dante acabava de dizer algo. Ela respondeu com uma pergunta, retornando incômoda ao bate-papo banal típico da casa.
—E você o que faz?
Enfrentou-se a um silêncio total.
—Fazer? —repetiu Dante depois de contar até dez.
—Seu irmão é um membro do Parlamento, conforme entendi. Qual é sua ocupação?
Charlotte riu. A mandíbula de Vergil parecia mais rígida que de costume, mas uma faísca de brilho apareceu em seus olhos quando deu a volta para prestar toda a atenção em seu irmão.
Dante sorriu.
—Sou um cavalheiro.
—Jamais sugeriria o contrário, mas qual é seu emprego?
—Quando meu irmão diz que é um cavalheiro não está evitando sua pergunta, senhorita Kenwood. Está respondendo — explicou Vergil.
Em outras palavras, ser um cavalheiro significava que não tinha um emprego remunerado. A refinação do homem que havia a seu lado de repente pareceu tão estranha como os índios que viu em uma ocasião quando sua mãe percorria os povos próximos à fronteira. Era outro exemplo do que tia Edith queria dizer quando a advertiu que encontraria aquele país familiar em certas coisas, mas muito estranho em outras.
—Sem dúvida terão cavalheiros nos Estados Unidos — disse Penelope.
—Temos homens de grande riqueza e posição. Há fazendas tão grandes como esta. Mas um homem que não trabalha… Enfim, é considerado como quase pecaminoso.
Imediatamente desejou não tê-lo expresso dessa forma, embora pensasse que tanta indolência era uma evidência de uma séria falta de caráter. Não desejava insultar aquelas pessoas, com três das quais não teve nenhuma discussão.
A única com quem sim teve uma discussão rompeu o incômodo silêncio.
—Que pitoresco. Mas afinal de contas, seu país é ainda jovem.
Vindo de qualquer dos outros o teria deixado passar.
—A velha Inglaterra está aprendendo que há força na juventude.
—Refere-se a nossa última guerra. Uma escaramuça menor. Teria acabado de modo distinto se Napoleão não nos tivesse deixado tão ocupados.
Por alguma razão, com muita dificuldade, ela conseguiu manter um tom civilizado.
—Meu pai morreu nessa escaramuça, senhor Duclairc.
Fez-se outro silêncio tenso. Penelope sorriu fracamente e se levantou.
—Por que não pensamos em comer?
Dante tentou monopolizar a atenção de Bianca durante o almoço. O visconde não falou muito. Em várias ocasiões em que deu uma olhada o surpreendeu esquadrinhando-a, como se estivesse se perguntando o que era o que tinha diante. Nada mais que problemas, ela gostaria de advertir. Realmente deveria me enviar de passeio de uma vez por todas.
Ela estava decidida a abordá-lo depois do almoço para esclarecer coisas, mas Vergil se retirou, depois de desculpar-se, logo que voltaram para a sala de estar. Dante, entretanto, ficou unindo-se a elas para jogar cartas.
O moço elogiou o jogo de Bianca mais do que seu talento merecia. A familiaridade crescia com o passar das horas e os sorrisos de Dante começaram a adquirir uma calidez perturbadora. Ela começou a suspeitar que Vergil a estava evitando e usava Dante para distraí-la.
—Onde está o visconde? —acabou perguntando a Charlotte— Talvez goste de me substituir.
—Estará na biblioteca, suponho. Ou em seu escritório.
Bianca se levantou.
—Me desculpem. O convidarei a unir-se a nós.
Não esperou que dessem permissão; atravessou a sala de estar e se encaminhou pelo corredor para a biblioteca.
Ele estava ali, sentado ante o escritório examinando uns papéis. Levantou a vista ao ouvi-la entrar e ficou de pé.
—Parece surpreso em me ver. Cometi um engano? Supõe-se que devia ter pedido uma audiência? —perguntou.
—É obvio que não. Supus que meu irmão e minhas irmãs a manteriam entretida toda à tarde, isso é tudo.
—As cartas não me divertem muito tempo se me dão de presente todas as mãos. Se estivéssemos jogando por dinheiro, a esta altura já teria ganhado toda a fortuna de seu irmão. Decidi dar um descanso a seu orgulho e generosidade.
—Somente está tentando fazer com que se sinta bem recebida. Entretanto, me alegro de que tenha me procurado. Quero me desculpar por meu imprudente comentário na sala de estar. Devia ter tido em conta a possibilidade de que tivesse sofrido nessa guerra. Não pretendia menosprezar o sacrifício de seu pai.
A sinceridade com que se expressou a deixou desarmada. Não parecia tão severo como de costume.
—Possivelmente agora entenda por que não desejo prolongar muito minha visita a este país, senhor Duclairc, e por que não quero formar parte da sociedade para a qual sua irmã tenta me preparar. Queria retornar a Londres o antes possível para me ocupar de meus assuntos.
—A guerra terminou faz tempo, senhorita Kenwood. Nossos países voltam a ser amigos. Quanto a seus assuntos, estou me ocupando deles em seu lugar — disse esse último com um firme sorriso que parecia indicar que considerava pouco recomendável dirigir a conversa nessa direção.
—Está me convencendo de que cometi um engano vindo à Inglaterra. Deveria ter seguido minha primeira inclinação e dizer ao senhor Williams que vendesse os investimentos que herdei.
—Isso não pode fazer-se. A maior parte de seu patrimônio pertence a um fundo de investimentos. A menos que se faça uma solicitação ante o tribunal de Chancery, o qual é um processo muito longo que levaria anos, é impossível romper os termos desse fundo de investimentos.
—Isso ele me explicou. Minha segunda ideia foi então arrumar as coisas para que me enviasse a renda a Baltimore.
—E por que não o fez? Especialmente tendo em conta que nos acusa de está-la prejudicando.
—Como expliquei em Londres, tinha razões para vir.
—Sim, suas aulas de ópera. —Seu tom transmitia o alívio que sentia ante o fato de que esses planos tivessem fracassado.
Mas necessitaria mais que a desaprovação daquele homem para fazê-los fracassar de tudo. Esses planos continuavam vivos, e ela estava desesperadamente impaciente por fazê-los progredir.
—Sejam quais sejam minhas razões, estou na Inglaterra por um curto período de tempo e tenho interesses que não podem ser satisfeitos enquanto permaneça nesta casa. Não aceito sua intromissão. Não necessito um guardião.
—Tendo em conta como a conheci, acredito que é óbvio que sim o necessita. E hoje não tem feito nada que possa me fazer mudar de ideia.
Estava se referindo ao lago. Em realidade não houve nenhuma mudança em sua expressão, mas aquele provocador murmúrio formou redemoinhos entre eles. Entrou no corpo de Bianca fazendo que seus membros estremecessem. Sim, a viu com aquela roupa empapada. E apesar de sua aparência desapaixonada, naquele momento estava vendo-a outra vez.
Por um instante, em seus olhos se acendeu um brilho que indicava que ele era consciente de que ela sabia. Esse reconhecimento acrescentou um matiz perigoso a sua masculinidade. De repente ela se sentiu em desvantagem e teve que lutar para recuperar sua indignação.
—Não consigo compreender por que você insiste tanto em complicar a minha vida.
—O testamento de seu avô cedia a responsabilidade ao visconde Laclere. Ia destinado ao meu irmão, mas dado que não mudou o testamento depois da morte de Milton, me corresponde. Eu não evito meus deveres, não importa quão problemáticos possam chegar a ser.
—Eu o libero de seu dever. E agora peço que me permita partir para Londres amanhã pela manhã.
—Não.
Ela esperava ouvir algo mais, mas nada mais foi acrescentado. Aquela palavra foi sua única resposta. Não.
Ela o observou, procurando o modo de ganhar aquela estúpida batalha. Devolveu o olhar como um general que é consciente da superioridade de seu exército.
Ela deu a volta. Em uns poucos dias esperava que chegassem seus reforços. Morria de impaciência por jogá-los contra ele.
—Senhorita Kenwood, se você voltar para a sala de estar, tenha a amabilidade de dizer a Charlotte que venha ver-me antes de retirar-se.
***
Bianca subiu a escada e deu uma volta através da enorme casa de estilo gótico até chegar a seu quarto. Era o dormitório mais longo e luxuoso que jamais havia usado, com um espelho emoldurado em ouro e móveis de madeira belamente esculpidos. Jane se aproximou dela para começar a desabotoar o vestido, ao mesmo tempo em que mexericava a respeito dos criados e arrendatários. Aquele mundo mais vulgar soava mais interessante que esse outro no que Bianca passou seus últimos dias.
As últimas duas semanas pareciam dois meses. Davam passeios. Arrumavam as flores. Trocavam visitas com vizinhos que ela não conhecia. Falavam sobre moda e sobre quem era quem na alta sociedade. Tudo enquanto Pen instruía à americana selvagem para ensiná-la a expressar-se e comportar-se adequadamente na Inglaterra.
Bianca chegou ao ponto de invejar os criados ocupados em polir a prata. Finalmente teve algumas ideias para romper a monotonia.
Charlotte apareceu justo quando Bianca já vestia sua bata. Teve um pequeno bate-papo com seu irmão.
—Não disse nenhuma palavra sobre o lago. —subiu à cama de um salto enquanto Jane começava a escovar o cabelo de Bianca— Em realidade o que queria era falar de você.
—De mim?
—Perguntou o que esteve fazendo. Não o disse dessa forma, claro. Quis saber se estava contente e com o que se entretinha.
«O maldito intrometido…»
—Acredito que sabe o do lago e joga a culpa em você, e quer saber se tem estado fazendo alguma outra coisa escandalosa.
«Maldito arrogante, pretensioso…»
—Depois me deu um sermão. Explicou que me criaram de um modo diferente e permitiram a você mais liberdades do que era apropriado, e que eu não devia me deixar influenciar por você e fazer coisas que não fossem apropriadas. Contei ao menos dez vezes a palavra «apropriado» antes que terminasse. Prometi a ele que me comportarei de maneira muito correta enquanto esteja aqui. —Charlotte sorriu— Acredito que tem ao santo de meu irmão muito preocupado.
Bianca não sabia o que dizer. Foi criada de um modo distinto, e permitiram mais liberdades das que Charlotte jamais chegaria a conhecer, mas não havia nada inapropriado nisso, tão somente pouco convencional, inclusive tendo em conta os costumes americanos. Além disso, ela planejava uma vida destinada a ser pouco convencional, mas não inapropriada, apesar de que Vergil Duclairc assumisse o contrário.
Charlotte se recostou na espaçosa cama.
—Estou encantada de que Dante veio nos visitar. Não o faz frequentemente. Prefere Londres. —Levantou o olhar com astúcia— Se supõe que não sei, mas acredito que tem uma amante ali. Este último ano venho intuindo que meu irmão é um pouco canalha. Você o que pensa? Acredita que Dante é um mulherengo?
—Não saberia dizê-lo — respondeu Bianca, embora adivinhasse que Dante era um autêntico mulherengo. Pensou, além disso, que aquele mulherengo a viu virtualmente nua e que passou a tarde lhe dirigindo intensos olhares e calorosos sorrisos.
—Sempre pensei que Vergil poderia parecer um bom mulherengo também, sempre e quando alguém não o conhecesse. Tem aspecto de ser, mas claro… Ele é tão correto. Esteve cortejando Fleur durante um ano e nunca o vi fazer nada mais que lhe tocar a mão.
Bianca ouviu falar da perfeita, etérea e saudável Fleur, que supostamente era a prometida de Vergil. Logo esperavam uma visita dela e de sua mãe.
Bianca não tinha intenção de seguir ali quando viessem.
—Charlotte, esta é a única propriedade que tem sua família?
—Há outras aqui em Sussex, mas ninguém as visita salvo Vergil. Não estão em muito bom estado. Papai não cuidou bem de algumas coisas. Estava tão ocupado com seus escritos e depois com a reconstrução desta casa. Vergil tem também um imóvel no norte. É sua parte da herança de nossa mãe.
—Vivem alguns parentes nesses outros lugares?
—Não há mais parentes ali, ou ao menos não há parentes dos que estejamos perto. Papai tendia a encerrar-se e perdemos o contato com eles enquanto vivia. Milton também era um pouco estranho. Vergil não é o menos excêntrico, e não reavivou os laços.
Não havia parentes próximos. Nenhuma tia, nem prima que pudesse fazer cargo de uma pupila errante.
—Acredito que meu irmão gosta de você — disse Charlotte.
«Que irmão?» Bianca reprimiu a impulsiva pergunta antes que saísse de sua garganta, surpreendida pelo sobressalto de excitação que a acompanhou.
—Estou segura de que simplesmente se sentia obrigado a me entreter.
—É muito estranho que Dante se sinta obrigado a fazer algo. Deixou-te ganhar nas cartas e não parou de te sorrir.
—Equivoca-se, mas se estiver certa e é um mulherengo, dificilmente poderia me sentir adulada.
—Oh, não tem que preocupar-se por isso. Sabe que é a protegida de Vergil e nossa convidada. —deslizou da cama— Será melhor que vá dormir. Dante nos levará a um passeio amanhã. Será divertido. É um perito com o látego e sempre conduz muito rápido.
—Também nos acompanhará o visconde?
—Não se preocupe, não vai danificar nossa diversão. Quando nos levantarmos, ele já viveu um dia completo. Levanta-se a alvorada, para ocupar-se dos assuntos da fazenda.
Quando Charlotte se foi, Bianca se sentou sobre a cama abraçada a seus joelhos.
Assim Vergil Duclairc se preocupava que a senhorita Kenwood pudesse supor uma má influência para sua irmã. Advertiu Charlotte que tomasse cuidado. O que faria aquele santo se chegasse a convencer-se de que a senhorita Kenwood não só era um pouco diferente, mas também muito pouco convencional e inclusive algo selvagem?
Não haveria outros parentes a quem enviá-la e resultaria muito perigoso tê-la ali. Não haveria mais remédio que romper todos os vínculos sociais e deixá-la seguir seu caminho. Seria a única decisão responsável para um irmão responsável.
Se asseguraria de que esse visconde concluísse que sua presença e influência naquela casa era totalmente inaceitável.
—Jane, quero que tome emprestados para mim alguns objetos dos criados. Dos homens concretamente.
Capítulo 3
Vergil pegou as botas limpas que oferecia Morton e as pôs. Aceitou o linho engomado e com destreza atou seu lenço com um nó conservador. Morton lhe sustentava o traje negro de montar.
Esses preparativos matinais eram uma rotina tanto em Laclere Park como em Londres, e Vergil os seguia de forma instintiva enquanto organizava em sua mente seus planos e deveres. Continuava se surpreendendo que não tivesse nenhuma dificuldade em abandonar certos detalhes ou hábitos quando as circunstâncias o requeriam.
Mal tinha amanhecido quando saiu pela porta e caminhou através do rocio até o estábulo. Preferia aquele silêncio, aquela solitária forma de cavalgar para romper o dia antes do circuito oficial que teria que fazer mais tarde com seu agente imobiliário. Era um dos poucos hábitos que tinha conservado de seus anos livres como segundo filho. Às vezes recuperava aquela crença juvenil nas oportunidades sem limites que permitiu então sua insignificância. Podia simplesmente ser, não o senhor vigiando seus domínios, a não ser unicamente um homem que cavalgava através do campo, admirando sua beleza e sonhando ao ritmo da vida.
Do estábulo chegavam sons. George, um moço do estábulo ruivo e rechonchudo, ria enquanto um moço mais jovem vestido com calças de montar e chapéu de palha murmurava alguma coisa. Juntos ajustavam as bridas a uma égua de cor castanha.
George ouviu as pisadas de Vergil e se virou ruborizado.
O menino mais jovem simplesmente ficou rígido. Vergil notou algo familiar naquelas costas esbelta, e se precaveu da forma peculiar em que as calças se esticavam sobre a curva das nádegas. Viu aquelas formas antes, emergindo nuas da água.
—Senhorita Kenwood, vejo que você também cavalga cedo.
Ela se voltou despreocupadamente, como se ninguém devesse se surpreender de encontrá-la nessa situação por usar calças de montar todos os dias. Talvez fosse assim. Quem podia sabê-lo? Pen, Charlotte e Dante provavelmente não sairiam de seus quartos até meio-dia.
—Pensei que seria agradável sair para cavalgar pela manhã. —Ajustou o freio como alguém que sabia o que estava fazendo.
—George se ofereceu a te acompanhar? Que cavalheiresco por sua parte.
—Tinha intenções de cavalgar sozinha.
—Bom, não podemos permiti-lo a uma hora tão inoportuna. Entretanto, pode cavalgar comigo. —Examinou a égua— Cometeu um engano, George. Se este animal for para a senhorita Kenwood, necessitará uma cadeira de mulheres. Depois pode preparar meu cavalo. Esperaremos fora.
Bianca caminhou para o pátio com ele. Ele retrocedeu um pouco na luz chapeada da manhã e percorreu um metro e sessenta e cinco de moléstia com seu olhar.
Sua camisa de algodão formava uma bolsa em torno de seu corpo, mas mesmo assim revelava o inchaço de seus peitos. As calças de montar penduravam folgadas de suas coxas até as botas, onde se introduziam, mas não eram folgadas em nenhum outro lugar. O chapéu de palha sobre sua testa enfatizava seus olhos.
Tinha todo o aspecto de uma mulher provocadora e de má reputação.
Caminhou para frente e golpeou a perna com o látego. O ligeiro picor o distraiu do impulso de… Nada que pudesse contemplar e sem dúvida nada que pudesse nomear.
—George demorará a preparar os cavalos. Volta para seu quarto e troque de roupa.
Ela baixou as pálpebras ante aquela ordem. Ele esperava que ela resistisse. Que demônios faria ele então? Ninguém debaixo de sua autoridade nunca o havia desafiado, e menos uma mulher. Por sorte, ela deu a volta e caminhou a grandes pernadas em direção à casa.
Ele retornou ao estábulo.
—A senhorita Kenwood cavalga sozinha frequentemente? —perguntou ao George.
George deu de ombros.
—Só estas últimas manhãs, milord. Ouvi um ruído aqui a semana passada e a encontrei selando essa égua, por isso a ajudei.
—E sua indumentária?
—Chegou com essa roupa esta manhã. Tem sentido, porque sempre cavalga escarranchada. É uma boa pessoa, só que com uma mentalidade um pouco livre para este lugar. São diferentes, os americanos. Falam como se o conhecessem de toda a vida. —inclinou-se para revisar uma ferradura.
—Sim, são diferentes. Não me deixe suspeitar que interpretou mal essa familiaridade.
George lançou um olhar de horror como se a insinuação fosse muito escandalosa para ser considerada. Vergil pegou as rédeas da égua e a levou até o pátio.
A senhorita Kenwood saiu da casa justo quando George tirava fora o cavalo castrado de Vergil. Levava uma bata de montar violeta de corte austero e com poucos adornos. Sobre seu penteado formal se encarapitava uma alta cartola, cuja borda roçava suas sobrancelhas.
—Onde tinha planejado cavalgar? —perguntou ele assim que estiveram montados.
—Oh, simplesmente queria dar um passeio pelos arredores.
Ele a conduziu através do parque. Ela não deixava de queixar-se por sua posição na cadeira de montar. Escorregava por ambos os lados olhando as pernas com o cenho franzido.
—Não está acostumada a isto?
—Não vivia nas margens da civilização. Também em Baltimore as mulheres fazem coisas horríveis e perigosas.
—Ali cavalgava escarranchada?
—Sim. —Olhou-o com atitude desafiante, depois sorriu de maneira zombadora— Tia Edith me proibia montar à inglesa a menos que avançasse a passo de tartaruga, e eu não me sentia inclinada a fazê-lo. Ela sabia de muitas mulheres que caíram da cadeira de montar quando cavalgavam rápido.
—E como reagia as pessoas quando cavalgava escarranchada através da cidade, com calças de montar e com botas?
—Se não fosse à sobrinha-neta de tia Edith, alguns teriam se escandalizado. Ninguém se atreve a atacá-la. Quando era moça participou ativamente em nossa guerra da Independência. Conhece todos os grandes homens daquela época. Se um presidente fizer visitas a uma mulher, ninguém se atreve a criticá-la muito.
—Parece uma mulher muito interessante. É uma lástima que não tenha te acompanhado nesta viagem.
—Se não fosse à idade, o teria feito. Estaria agora ali atrás, exortando George para que compreendesse que ele é igual aos outros moços e não deveria curvar-se ante ninguém.
—A Inglaterra não necessita radicais importados. Estamos criando muitos de produção própria. E não é que George se encurve. Retrocedeu porque sabe que levanta suspeitas sobre um homem o fato de que esteja a sós comportando-se de maneira tão familiar com uma dama jovem, especialmente a uma hora como essa.
—Já vejo. Entretanto, você é um homem e agora está a sós comigo, não? Isso é suspeito?
A insinuação o deixou desconcertado. O sorriso zombador da senhorita Kenwood era um indício de que não se achava ante uma escolar ingênua que permanecia ignorante sobre o que podia ocorrer entre um homem e uma mulher juntos e sozinhos durante horas.
—Sou seu tutor. É como se fosse seu pai.
Ela se pôs a rir a gargalhadas, melodiosas como o timbre de sua voz.
—Que o céu me ampare, senhor Duclairc. Com um pai como você teria me convertido na mais aborrecida das mulheres.
—Quer dar a entender que os pais aborrecidos criam filhas aborrecidas?
«Está insinuando que sou um homem aborrecido, uma espécie de bagagem molesta?» O desejo de demonstrar até que ponto podia deixar de ser aborrecido penetrou em sua mente desde que a tinha visto no estábulo.
—Não, senhor. Simplesmente acredito que os pais estritos criam filhas de mente muito estreita.
—Concluo que sua educação, menos ortodoxa, salvou-te de ter uma mente estreita.
Ela posou seus grandes olhos azuis nele durante um momento, observando-o como se fosse capaz de ver as noites e inapropriadas imagens que avançavam sigilosamente em torno das bordas de sua mente ao aludir impulsivamente essa indiscreta questão. O impacto daquele olhar nu foi tão assombroso como se ela acabasse de acariciar sua coxa.
—Tive experiências no mundo, senhor Duclairc, e por isso minha mente não é estreita. Quando meu pai morreu, minha mãe teve que manter-se e me manter, por isso voltou a cantar. Eu tinha onze anos então, e durante os seis anos seguintes vivemos uma vida errante, viajando uma grande parte do ano.
«Experiências no mundo.» Bianca devia ter dezessete anos ao morrer sua mãe, uma garota bonita viajando na companhia de uma mãe cuja profissão sem dúvida implicava tratar com homens.
—Minha opinião teria sido que o acertado seria te deixar com sua tia, em vez de te arrastar por cidades e povos estranhos.
—Ah, sim? Essa teria sido sua opinião? —Ela estava sugerindo que ele era tão previsível que essa opinião não a surpreendia absolutamente— Eu não teria insistido em ficar, não depois de perder meu pai. Minha mãe necessitava alguém que cuidasse dela. Não era uma mulher muito prática. Tocava-me assegurar que chegasse de um lugar a outro.
—Um estranho papel para uma menina.
—Não fui menina por muito tempo, e não é que estivesse planejado que me encarregasse dessas coisas. Simplesmente o fazia porque ela era muito torpe organizando as viagens.
«Não fui menina por muito tempo.»
—A vida deveria ser muito aborrecida quando foi viver com sua tia.
—Estava preparada. A morte de minha mãe acabou com minha vitalidade, e precisava estar um tempo instalada em um lugar para pôr as coisas em seu lugar. Só quando tia Edith contratou para mim um professor de música comecei a recuperar meu estado normal.
Vergil imaginava. Aquela menina precoce com sua mãe caprichosa, organizando o valor a ser pagos pelos concertos nas Igrejas e nos pequenos povoados. Os papéis estariam invertidos e aquela pequena garota loira se encarregaria de negociar pelo transporte e de administrar os recursos, emocionante, possivelmente, e sem dúvida uma experiência que a faria amadurecer.
Entretanto, não era uma infância normal. Não teve horas de brincadeiras despreocupadas e, provavelmente, tampouco teria amigos. Sem mais amparo, nem segurança que a que ela mesma pudesse procurar. Sentiu certa compaixão por ela e admirou sua força, apesar de que essa força prometesse ser um inconveniente.
Seu passeio distraído os levou até a parte sul do lago e deram a volta para retornar. A senhorita Kenwood parecia irritantemente indiferente ante o fato de achar-se no mesmo lugar onde no dia anterior foi tão indiscreta.
—Nossa família viveu aqui desde o tempo dos normandos — explicou ele, decidindo que devia impressioná-la com a história da família e prepará-la para os cuidados de Dante— Tanto nosso nome como o da fazenda provêm destas águas. «Lago claro.» Duclairc é uma junção de du clair lac, igual é Laclere.
—Tempos dos normandos. Naqueles tempos, os antepassados dos Kenwood provavelmente viviam em cabanas.
—Bom, o dinheiro tem seu modo de nivelar essas diferenças.
—Que ideia tão democrática, senhor Duclairc. Quase americana.
Ele entrou pelo caminho que conduzia para as granjas.
—Pode parar com isso. Já foi suficiente.
—Parar com o que?
—Senhor Duclairc.
—Não pretendia ofender. Tia Edith me fez prometer que não faria reverências a nenhum aristocrata, nem sequer ao rei.
—Seus diplomatas se adaptam aos costumes quando vêm a este país, como o fazem a maioria dos visitantes.
—Eu não sou uma diplomata. E tia Edith…
—Sim, sim, a revolução e tudo isso. Se se dirigir a mim como lorde Laclere conjura o fantasma de Washington, pode me chamar simplesmente Laclere.
—Que generoso por sua parte. Então possivelmente você poderia me chamar Bianca.
Ele preferiria não fazê-lo. Certamente. Inclusive aquela vaga familiaridade com essa jovem estava provocando sensações muito incômodas. Ela era sua pupila e logo poderia chegar a converter-se na esposa de seu irmão, e ele a encontrava exasperante, para falar de um modo delicado. Ao mesmo tempo, um atrativo e desconcertante fogo crescia em seu interior. Borbulhas em ebulição rompiam de vez em quando a superfície, pequenas explosões que não estava disposto a aceitar debaixo daquelas circunstâncias. Sob nenhuma circunstância. Chamá-la Bianca unicamente obteria que outra dessas borbulhas estalasse ao pronunciar seu nome.
—Acredito que isso seria muito familiar.
—Bom, então possivelmente Laclere também seja muito familiar. —Ela inclinou a cabeça— Já sei. O chamarei tio Vergil. Apesar de que disse que o fato de ser meu protetor o converte em uma espécie de pai, dizer «papai» soaria ridículo.
«Tio Vergil, por Deus.» Ele conseguiu olhar por debaixo da asa de seu chapéu e captou um fugaz sorriso. Estava brincando com ele deliberadamente e ele continuava mordendo a isca.
O pior era que suas provocadoras ambiguidades e seus olhares oblíquos a deixava com um ar mundano que tornava implacável aquele fervor que ele sentia.
—Tio Vergil, estamos perto da fronteira com Woodleigh?
—Está justo ao outro lado dessa colina. Pode ver a casa dessa cúpula. Você gostaria de subir?
Ela aceitou. A Vergil não passou despercebido que ela soube como encontrar o caminho mais simples sem necessidade de sua ajuda.
Bianca chegou até o topo da colina de onde se divisavam os principais campos de Woodleigh. A distância conseguiu ver a imponente mansão de inspiração clássica que Adam Kenwood construiu.
—É muito grande, não?
—Sim.
Ele respondeu em voz baixa, mas ela pôde ouvir um deixe de desaprovação. Muito grande. Muito. Essa enorme massa resultava vulgar, especialmente para alguém que acabava de ser renomado barão. Sua condição de novo rico se deixava ver dos alicerces até as chaminés. Vergil deveria ser amigo de Adam, ou do contrário seu avô não o teria renomado seu tutor, mas ao que parece isso não liberava aquele velho comerciante do julgamento desse aristocrata cuja linhagem se remontava à época dos normandos.
Ela não lamentava aquela censura. De fato, agradava-a. Embora Adam Kenwood tenha deixado em herança uma fortuna, ela o odiava de todos os modos. Se tivesse legado aquela casa a ela, a teria feito arder até seus alicerces. Ela sabia que ele cometeu um grande pecado, e não cabia dúvida de que muitos outros tinham escurecido sua vida.
Bianca baixou a colina a meio galope até os campos. Vergil chegou até seu lado quando se deteve frente à casa.
—Me ajude a desmontar, por favor.
—Senhorita Kenwood, seu primo herdou esta propriedade, e ainda não retornou da França. Deveria esperar que ele se instalasse aqui antes de fazer uma visita. A casa esteve fechada durante meses, e unicamente há uns poucos criados cuidando da propriedade.
—De fato, meu primo retornou há uma semana. Me ajude a baixar ou saltarei de um modo nada elegante.
A ajudou a descer do cavalo.
—Pretende entrar, verdade?
—Pode ser que Nigel, meu primo, tenha obtido a casa e as terras, mas os objetos privados de meu avô me pertencem. Quero ver como estão. Assim que explique quem sou e quais são meus direitos os criados me deixarão fazê-lo.
Ele aceitou sua decisão mais rápido do que ela esperava, e conseguiu que os deixassem entrar. Uma vez ali a acompanhou até o escritório de Adam Kenwood.
Bianca se deteve no centro da estadia e respirou o aroma da presença de seu avô. Um piso de madeira cobria a parte baixa das paredes, e um enorme escritório estava posto de lado em um canto. Havia prateleiras com pastas e grandes livros, mas outros documentos tinham sido amontoados em embalagens de madeira que se alinhavam ao longo de uma parede e rodeavam um pequeno baú.
Ela notou que Vergil a contemplava da soleira.
—Você o conhecia bem? —perguntou ela.
—Antes de construir Woodleigh tinha uma relação de amizade com meu irmão mais velho, Milton. Depois da morte de Milton, cheguei a conhecer Adam bastante bem.
—Nisso me leva vantagem. Eu sabia que era o avô da Inglaterra, mas meus pais nunca falavam dele. Ao me fazer maior me dei conta de que esse velho homem permitiu que meu pai vivesse na pobreza enquanto ele acumulava uma enorme fortuna. —Estendeu o braço para assinalar a luxuosa casa.
Vergil entrou na estadia e examinou as gavetas do escritório.
—Seu avô obteve muitos lucros da frota marinha e outros comércios. Durante as primeiras batalhas de Napoleão, seus navios fizeram um grande serviço ao Governo, e o rei lhe outorgou o título de barão. Como a maioria dos homens, ele pretendia que seu filho fosse um cavalheiro e planejava educá-lo para isso. Entendi que seu pai tinha outras ideias e por isso partiu para América.
—Acredito que não foi sua decisão ir a América o que fez que se distanciassem, mas sim a decisão de casar-se com minha mãe. Não era uma esposa adequada para o filho de um homem que lutava para abrir caminho na alta sociedade da Inglaterra.
Ele tirou uma pasta de uma gaveta e a folheou.
—Como já te expliquei, uma profissão como a de sua mãe não está bem vista aqui.
—Suspeito que não esteja bem vista em nenhuma parte. Minha mãe não estava tão má vista em parte por seu parentesco com tia Edith. Além disso, interrompeu sua profissão ao casar-se com meu pai. Ela dava aulas particulares, e ela conseguiu manter a casa com dignidade apesar das circunstâncias. Não foi suficiente para aquele velho homem.
Ele voltou a colocar a pasta em seu lugar e depois de uma inspeção mais atenta extraiu outra.
—Bom, ao final se lembrou de você.
—Desgraçadamente, o final chegou um pouco tarde.
—Ouço um deixe de amargura.
Havia um deixe de amargura. Até ela notou o ressentimento que podia ouvir em sua voz.
—Uma minúscula parte dessa herança teria economizado muitos pesares a minha mãe, e provavelmente até teria salvado sua vida. Morreu de uma febre da qual se contagiou enquanto viajávamos.
Ele levantou a vista da pasta como se ela houvesse dito algo particularmente interessante.
—Já vejo. Assim agora quer se vingar de Adam pela morte de sua mãe, usando sua fortuna para se converter em uma artista como a mulher que ele repudiou.
Aquela acusação lhe fez sentir uma pequena fúria dando voltas em sua cabeça.
—Você frivoliza meu propósito. Aspirava minha carreira como cantora de ópera muito antes de me inteirar dessa herança. —Observou de novo a estadia— Entretanto, agora que o diz, há certa justiça em usar o dinheiro desse homem para me converter precisamente no que ele desprezava.
—Parece mais uma brincadeira pesada que justiça. Antes que desfrute com sua brincadeira deveria te explicar que uma parte do que sabe sobre seu avô se apóia em um engano.
—Que engano?
—Pelo que ele me disse, estou seguro de que não rompeu relação com seu pai. Foi seu pai quem rompeu com ele.
—Não acredito.
—Pode acreditar no que quiser, mas isso era o que Adam recordava.
Aquilo estragou a brincadeira e a justiça. Provocou uma fratura no ressentimento que lhe gelava a alma, aquele ressentimento que tinha crescido em seu coração enquanto contemplava como sua mãe tossia e perdia a vida em uma hospedagem de aluguel nas margens do mundo.
—Disse isso a você só para que não o acreditasse frio e desalmado.
—Minha opinião não lhe importava muito.
—Então mentiu a si mesmo, para poder morrer sem culpa.
—Possivelmente.
Ela observou os documentos que havia na estadia. A verdade provavelmente estaria em alguma parte. Deveria procurar as cartas de seu pai. Inclusive podia haver algumas de sua mãe pedindo ajuda quando enviuvou.
Em realidade não deveria importar o que aconteceu, mas importava. Se ia construir sua vida ao amparo da riqueza daquele homem, queria saber se devia estar agradecida ou brincar com ele enquanto o fazia.
—Há algum modo de saber o que é o que me pertence do que há aqui?
—O advogado separou os papéis. Aquelas gavetas contêm os que são pessoais, enquanto as contas da propriedade estão nas estantes. —Assinalou o pequeno baú— Suponho que o que havia em seu escritório e outras coisas de valor estão ali sob chave.
—Quero ler esses documentos pessoais. Perguntarei a meu primo se posso o visitar e fazê-lo.
—Seria mais conveniente levá-los a Laclere Park. Ali poderá revisar o material a seu desejo. Me encarregarei da transferência.
—Estou segura de que meu primo não se importaria que revisasse os documentos aqui.
—Sim me importaria.
Ela o olhou diretamente aos olhos.
—Não tem sentido mudá-los duas vezes. Esperarei até que possam enviar-se a meu próprio alojamento em Londres.
Lhe devolveu o olhar.
—Não tem alojamento em Londres, e não o terá por muito tempo.
Ela não esperava que fosse tanto tempo, mas ele não se deu conta ainda.
—De acordo, para começar levemos isto a Laclere Park.
Quando abandonaram a casa, ela viu que ele ainda levava uma pasta. Ele notou seu olhar de curiosidade.
—Há aqui algumas cartas de meu irmão. Espero que não te importe que tome emprestada esta pasta para lê-las.
—Absolutamente. —Comoveu-a que quisesse fazê-lo. Era mais sentimental do que ela esperava— Quando seu irmão faleceu?
Ele a ajudou a montar o cavalo.
—Faz menos de um ano.
—Possivelmente haja mais cartas. Quando tivermos todo o material em Laclere Park, poderemos as procurar.
Enquanto passeavam com seus cavalos para os campos, um jovem loiro galopou para eles, saudando com o braço.
Parecia um modelo extraído de uma lâmina de moda, com o elaborado nó de seu lenço, seu alto chapéu de castor e seu moderno casaco.
O jovem desceu de seu cavalo e tirou o chapéu.
—Senhorita Kenwood! Que feliz coincidência vê-la outra vez. Pensar que se tivesse ficado mais um dia em Londres, como tinha planejado não a teria encontrado.
Vergil não se alterou por esse «outra vez».
—Você deve ser Nigel Kenwood, o primo de minha pupila. Eu sou Laclere.
—É um prazer o conhecer por fim, lorde Laclere.
—Teria o chamado se soubesse que residia em Woodleigh. Pensei que ainda estava na França. Minhas desculpas.
Nigel sorriu a Bianca. Pareciam-se um pouco. Seus olhos eram igualmente azuis e seu cabelo igualmente dourado. Um homem bonito decidiu, exceto as expressões de seu rosto sugeriam um temperamento instável.
—Levo aqui só uma semana. Revisar os assuntos de Woodleigh me manteve muito ocupado, mas agora minha vida está se estabilizando.
—Então deve visitar logo Laclere Park. Estou seguro de que as damas estarão encantadas. Há muito poucos rostos novos no campo.
—Obrigado. Farei.
Nigel sorriu de novo a Bianca com admiração. Bianca lhe devolveu um doce sorriso. Vergil sorriu muito fracamente aos dois.
Prestou a Nigel mais atenção da devida.
Graças a Deus Vergil era um homem inteligente. Ela não tinha nenhuma intenção de mentir, só estava semeando nele suficiente preocupação para que decidisse não expor sua influência a doce Charlotte.
Rechaçaram o convite de Nigel a um refrigério e retomaram seu caminho. Vergil se aproximou dela.
—Já tinha conhecido o novo barão. Não o mencionou.
—Não o fiz? Há uns dias cavalguei perto de Woodleigh e o encontrei. Pareceu-me correto parar e falar com ele, já que é meu parente.
—Mostrou-te Woodleigh?
«Entrou na casa? Esteve a sós com ele em sua casa?» A expressão dele permanecia tão cuidadosamente impassível que lhe deu vontade de rir.
—Sim, fez. Era a propriedade de meu avô, assim tinha curiosidade. —Em realidade só tinha visto os jardins, mas se sentiu contente consigo mesma por ter deixado o visconde dando voltas a uma nova ambiguidade.
—Acredito que era sua intenção desde o começo visitar Woodleigh para investigar o escritório de Adam esta manhã. Estou feliz de que tenha podido satisfazer esse desejo.
Ela não acreditava que ele estivesse feliz absolutamente. Parecia estar considerando o que implicava que ela visitasse Woodleigh com camisa e calças de montar sabendo possivelmente que Nigel não estava em Londres.
Ela concluiu que, em termos gerais, aquela manhã de passeio a cavalo tinha sido um êxito.
Tomaram um caminho de volta mais direto. Ela se sentia agora mais segura em sua cadeira de montar de mulher, galopou através do parque e não diminuiu o ritmo quando entraram no bosque. A rosada luz do sol penetrava entre os ramos, criando maravilhosas e imprecisas manchas enquanto ela avançava velozmente. Aquele efeito visual a distraía e se achava despreparada quando de repente, e de forma inexplicável, seu cavalo encabritou de um modo violento.
O entorno seguiu sendo impreciso, mas agora de um modo diferente. O chão e as árvores pareciam dar voltas enquanto ela lutava para recuperar o controle sobre o animal. Este estava como louco e se retorcia parado sobre as patas traseiras. A cadeira de montar não pôde sustentá-la. Caiu ao chão sobre seu estômago e recebeu um impacto que aturdiu seus sentidos.
Ainda mais espantoso foi o peso que imediatamente caiu sobre suas costas e os antebraços que sentia a cada lado de sua cabeça. Vergil estava em cima dela, cobrindo suas costas e sua cabeça com seu próprio corpo. Ela lutou contra ele indignada e abriu a boca para protestar.
Um estalo quebrou o silêncio da manhã. Vergil a pegou pelos ombros com firmeza e lhe deu a volta apoiando-a sobre o barro.
—Vigia seus disparos! —gritou ele encolerizado na direção do som. Com a mão direita apertava os extremos das rédeas e os dois cavalos relinchavam e faziam cambalhotas.
De repente não lhe importou que estivessem ridículos, escancarados juntos desse modo.
—Quem será que disparou?
—Caçadores furtivos, provavelmente procurando faisões. É muito audaz por sua parte usar revólveres em lugar de armadilhas. Só se atrevem a fazê-lo muito cedo na manhã. Estamos a vários quilômetros da casa e eles supõem que as famílias estão ainda na cama.
Ouviu-se um novo estalo. Desta vez ela ouviu um pequeno golpe como o de uma bola, contra a árvore que tinham à esquerda. Os cavalos encabritaram e quase conseguiram soltar-se. Vergil soltou uma maldição e voltou a gritar.
Ele continuava apertado contra ela, com todo seu peso sobre suas costas. Sua respiração fazia cócegas em sua nuca. O tecido de suas mangas roçava brandamente suas bochechas.
Ela não se sentia nada em perigo, a não ser segura e protegida do modo mais quente. A íntima proximidade acendeu nela uma ardente resposta. Respirou seu aroma a sabão e couro, e um estranho bater de asas a percorreu, do coração até o estômago.
—Agora pode entender por que não deve cavalgar a esta hora. É perigoso — disse ele.
—Você vai cavalgar.
—É diferente. —Ela sentia as palavras junto a seu ouvido, como se ele tivesse aproximado ainda mais a cabeça. Tinha-a abraçada contra o chão, o queixo dela se apoiava sobre as folhas e a terra. A cálida brisa de seu fôlego acariciava suas têmporas, fazendo que aquele bater de asas se voltasse furioso.
Ele se elevou, mas sem afastar-se completamente. Permaneceu sobre ela. Algo que não era capaz de nomear vertia dele para ela. Isso a assustou. O bater de asas se fez ainda mais forte e encheu seu peito.
Deu a volta e o olhou diretamente aos olhos. Ninguém em sua vida jamais cuidou dela de uma maneira tão… Explícita. Ao menos não de tão perto. Aquele olhar pareceu penetrar diretamente em sua mente e explorar sua vontade.
Já não se sentia segura e protegida. Mas bem o contrário. O bater de asas se multiplicou adquirindo um ritmo frenético e um zumbido que se apoderou de seu corpo e de seus membros. Os alertas de uma advertência. E excitação.
A tensão que refletia em sua expressão o fazia extraordinariamente atrativo. Incorporou-se, de joelhos, para lhe oferecer sua mão e ajudá-la a sentar-se.
—Se machucou ao cair?
Ela moveu as pernas com cautela.
—Só fiquei sem fôlego. Em realidade a queda não foi muito forte, mas estarei um pouco dolorida amanhã. —apressou-se a levantar-se— Como protetor é excelente, tio Vergil. Não haveria muitos homens dispostos a lançar seu corpo entre a bala de um mosquete e uma mulher que mal conhecem.
—Qualquer homem inglês de honra o teria feito senhorita Kenwood.
Fizeram os cavalos caminhar durante um tempo para que se acalmassem, depois cavalgaram os últimos quilômetros de volta a casa. Sua silenciosa companhia a incomodava e aquela estranha excitação ainda deixava ouvir seu murmúrio. Nos estábulos, ele se deixou cair do cavalo e foi ajudá-la a desmontar. Ela se deteve quando seus braços a alcançaram.
Ele notou sua vacilação. Seus olhos azuis se encontraram com os dela de uma maneira especial. Ela começou a respirar com dificuldade e se sentia incapaz de afastar o olhar.
Uns dedos fortes rodearam sua cintura e a deslizaram para baixo. Deu a impressão de que ele demorava muito em soltá-la, o momento pareceu prolongar-se enquanto ele a sustentava tão somente a escassos centímetros. A suave pressão de suas mãos e a cercania de seu corpo a fizeram tremer.
—Obrigado. Desfrutei muito do passeio a cavalo. —Ela recuperou sua compostura e deu a volta.
—Me alegro de que tenha desfrutado, especialmente já que é o último.
Ela deu meia volta para olhá-lo no rosto.
—Está dizendo que não poderei voltar a cavalgar enquanto esteja aqui?
—Naturalmente que pode, acompanhada e bem entrado o dia. Entretanto, pedirei aos moços que não voltem a te dar um cavalo tão cedo pela manhã, e a nenhuma hora se pretende ir sozinha. —Ele se expressou com tanta autoridade e tanta calma como sempre, mas ela sentiu crescer a tensão a seu redor— Não organizará mais encontros furtivos com seu primo Nigel. Poderá vê-lo quando ele vier aqui de visita, ou quando Penelope convidá-lo.
Encontros furtivos? Sua imaginação extraiu daquelas ambiguidades mais conclusões das que ela pretendia.
Continuou caminhando sem corrigi-lo.
«Deixemos que pense o pior.»
***
Vergil aproximou uma cadeira à cama, sentou-se nela e levantou sua bota para dar a seu irmão um bom empurrão no quadril.
Dante gemeu e cobriu os olhos com um braço. Olhou por debaixo deste, viu Vergil e voltou a resmungar com resignação. Deixou escapar um suspiro de irritação e se incorporou para apoiar-se contra a cabeceira.
—Bom dia, Vergil.
Vergil viu o peito nu de seu irmão e observou os dois copos e a garrafa de vinho vazia que havia sobre a mesa.
—Quase toda a noite com Marian suponho. Disse-lhe que deixe às criadas em paz, Dante. Não quero que ninguém as incomode.
—Um homem não molesta Marian; ele luta por sua vida. Mas o que acontece com você. Por mais que lhe goste. Não seria discreto por sua parte.
—Tampouco é discreto pela tua. A mulher que pretende se casar está na casa.
Dante apoiou a cabeça contra a cabeceira e sorriu.
—Ah, sim, a bela Bianca. Sua descrição não lhe fez justiça. É realmente uma coisinha doce e jovem, só que um pouco ingênua. É encantador ver como luta por imitar nossas formas.
«um pouco ingênua?»
—Acabo de dar uma longa volta com sua coisinha doce e jovem.
—A julgar pelo estado de seu casaco, parece que esteve derrubando pelo chão com ela.
—Alguns caçadores furtivos estavam atirando e acabamos caindo do cavalo. —Não era exatamente isso o que tinha acontecido, mas não fazia sentido explicar detalhes que suscitariam perguntas a respeito— Me alegra saber que a senhorita Kenwood te parece apropriada. Entretanto, devo te advertir que tem concorrência.
—Nada sério — disse Dante bocejando.
—Nem sequer ouviu de quem se trata.
—Confio em que não seja você.
Vergil lhe lançou um olhar mordaz que escondia um incômodo sentimento de culpa.
—Só estava brincando, Vergil — sorriu Dante— Está tão claro que não encaixam e que ela te odeia que não pude resistir.
A menos que ele se equivocou completamente ao interpretar as coisas quando estavam atirados no chão, se encaixavam de um modo estupendo e perturbador.
—Seu rival não sou eu, a não ser um homem com um título nobiliário.
Aquilo freou a alegria de seu irmão. Dante tinha uma suprema confiança em sua habilidade para tratar com as mulheres, mas dado que era o filho mais jovem dita habilidade não tinha por que traduzir-se na possibilidade de casar-se com quem quisesse.
—De quem se trata?
—De seu primo, Nigel Kenwood.
—O segundo barão de Woodleigh? Com seu título recém estreado e de pouca subida não impressiona a ninguém.
—A ela não importam as delicadas questões do nascimento e a fila, e eles são parentes, o qual significa que têm um vínculo natural. Eu acreditei que ele se achava na França, administrando a herança de Adam, mas temo que retornou antes do que eu calculava. A questão é que já está aqui e se estabeleceu como nosso vizinho. Suspeito que tinha a esperança de encontrá-la aqui conosco. Afinal, ela recebeu quase tudo o que não foi deixado à caridade. Suponho que ele acredita que tem algum direito a ela.
Dante não parecia exatamente preocupado, mas Vergil monopolizou sua atenção.
—O que sabe você desse primo dele?
—É o neto do irmão de Adam. Começaram juntos nos negócios, mas o irmão teve um problema financeiro e Adam comprou sua parte. O pai de Nigel não quis tocar o negócio, apesar de Adam lhe ofereceu participar. Nigel, por sua parte, decidiu fazer-se artista e viveu em Paris até alcançar sua maioridade.
—Um boêmio? Sejamos sérios, Vergil, não acredito que…
—Não é um pintor. É músico. Adam se gabou uma vez sobre o menino e seu pianoforte.
—Ah, bom. Um músico. Pequeno motivo para alarmar-se.
—A senhorita Kenwood também se dedica à música, assim é provável que sim haja um motivo para inquietar-se, e até para alarmar-se.
Dante elevou suas sobrancelhas ante essa nova fofoca.
—É cantor — explicou Vergil— Gosta da ópera. Assim Nigel tem um possível atrativo. Interesse em comum e um parentesco de sangue.
—Exagera as duas coisas. Estamos falando de casamento, não de uma relação amorosa. Tinham nossos pais interesses em comum? Você e Fleur têm algum interesse em comum?
Ele e Fleur tinham em comum os interesses mais básicos, mas aquele não era o assunto. Vergil ficou de pé.
—Bom, mais te vale atuar com rapidez. Eu tentarei evitar que Nigel faça visitas frequentes, mas não posso impedir sua entrada na casa.
Caminhou até a porta. A voz de Dante o seguiu.
—Bom, e agora, irmão mais velho, o quão rápido quer que vá?
Vergil deu a volta para olhar Dante. Imagens desse peito e esses braços nus abraçando Bianca estalaram em sua mente, incitando-o a uma reação desagradável. Durante um momento não respondeu, enquanto tentava desfazer-se das imagens e da ira. Aquele abraço seria inevitável. E necessário.
—Não chegue a desonrá-la —disse— E mantém suas mãos afastadas de Marian enquanto esteja nesta casa. Não quero que as damas se escandalizem.
Capítulo 4
Penelope visitou o escritório de Vergil aquela tarde, para lhe comunicar que tinha recebido uma carta no correio do dia dizendo que Fleur e sua mãe viriam de visita em um prazo de dez dias.
—Estarei fora na semana anterior, mas prometo voltar a tempo — a tranquilizou ele.
—Acredito que também convidarei alguns amigos de Londres — disse Penelope— Darei a Bianca à oportunidade de desdobrar suas asas.
—Não convide muita gente, Pen. E escolhe cuidadosamente.
—Há outra coisa, Vergil. Suspeito que Dante esteja começando a ter certa debilidade por ela.
Ele tentou concentrar-se no que Pen estava dizendo, mas sua mente estava absorta contemplando à senhorita Kenwood estendida sobre o chão e olhando-o com um rubor de surpresa que lhe enviava rajadas de calor através de suas veias. Suas mãos notavam sua feminina cintura uma vez mais e seu corpo lhe advertia o perigo da cercania ao ajudá-la a descer do cavalo. Um misterioso perfume de lavanda enchia sua cabeça.
—Não se preocupe Pen. Dante não se verá envolto em uma confusão sem dar-se conta.
—Não me preocupo com Dante. Bianca, entretanto, parece tão ingênua.
«Ingênua?»
—E Dante… Vergil, não sei se você é consciente, estou segura de que ninguém fala contigo sobre isto, vendo que é tão… Mas se rumoreja que é um mulherengo implacável.
Perguntou-se do que pensaria Pen que falavam os homens quando se reuniam depois de comer com uma taça de porto e uns cigarros. Passou anos recebendo brincadeiras pelas conquistas de seu irmão, e em mais de uma ocasião se viu obrigado a olhar de frente um marido irado.
—Inclusive Dante respeita as regras básicas. Se estiver interessado nela, estou seguro de que isso o honra.
Ela pestanejou atônita.
—Permitiria?
—Por que não teria que fazê-lo?
—Ela é muito ignorante das questões mundanas e se desiludiria terrivelmente quando soubesse a verdade a respeito dele.
—Não quero interferir, Pen. Deixemos que as coisas sigam seu curso. Se ele a conquista, terão que solucionar seus assuntos da mesma forma que todos os casais o fazem.
—Você pode dizer isso, mas eu sempre lamentei que ninguém tivesse me advertido a respeito de Anthony.
Ele quis fazê-lo, mas não o correspondia sendo tão somente um jovenzinho, especialmente com sua mãe viva e encarregando-se de tudo. Um moço não podia aproximar-se de sua irmã mais velha e informá-la de que o maravilhoso conde com quem estava disposta a casar-se tinha fama de libertino, e que as escuras alusões a seus pecados não eram das típicas.
Entretanto, alguém devia tê-la advertido, e ele recordava muito bem a infelicidade de sua irmã. A separação oficial do conde durante esses últimos cinco anos havia lhe trazido certa paz, mas a custa de sua reputação social e uma permanente solidão. A lembrança de que um mau matrimônio podia ser o inferno o fez sentir-se incômodo a respeito de Bianca, e desejou que Pen não tivesse trazido a conversa seu próprio matrimônio, sem amor e sem filhos.
Ela o olhou com feminino ceticismo.
—Manterei minha língua presa e observarei como se desenvolvem as coisas, mas se suspeitar que ele está jogando com ela, chamarei sua atenção severamente, Vergil. Isso é algo que não tolerarei.
—Faz o que acredite ser o melhor, Pen.
Ela saiu, e ele voltou a se concentrar na carta que estava lendo quando entrou.
Examinou o conteúdo outra vez. O maior problema de um segredo é que sempre reclama sua atenção no momento mais inoportuno. Tinha planejado ficar ali todo o tempo que Dante estivesse, mas agora não ia ser possível.
Saiu do escritório e se dirigiu a seu aposentos para dizer a Morton que empreenderia uma viagem depois de amanhã.
***
À tarde do dia seguinte Bianca se achava sentada no salão, dando golpezinhos com o pé de maneira impaciente. Esperava que logo se apresentasse uma visita. Infelizmente, aquele que anunciava o cartão que o mordomo entregou a Pen não era o mesmo que ela esperava.
Nigel entrou despreocupado, com um ar muito romântico graças a seu paletó parisiense tão estreito na cintura, seu cachecol escuro e seu cabelo despenteado que chegava ao ombro. Obsequiou Bianca um acolhedor sorriso de familiaridade enquanto Pen o recebia.
—Retornou recentemente de Paris — me disse Charlotte— Assim tem que nos contar tudo sobre Paris.
Nigel as entreteve amavelmente com algumas descrições das últimas modas. Bianca mal escutava, apesar de que seu primo virtualmente dirigisse a ela toda sua atenção. Ela estava atenta aos ruídos de outra chegada.
As portas se abriram, mas só para dar passo a Vergil e a Dante.
—Espero que seu propósito seja ficar em Woodleigh, ao menos durante o outono — disse Penelope.
—Essa é minha intenção.
—Logo vou ter umas visitas em casa, e conto com que se una a nós sempre que puder.
—É muito amável por sua parte. Visitava meu tio-avô com pouca frequência, assim sou virtualmente novo neste lugar.
—Não passou muito tempo na Inglaterra estes últimos anos, verdade Kenwood? —perguntou Vergil.
—Preferi Paris. Encontro que a cultura ali é de superior qualidade. A vida artística é muito rica.
—Você tem interesse nas artes? —perguntou Penelope— Então desfrutará com os convidados em minha festa. Sua prima, sem ir mais longe, é uma artista excelente. Canta como um anjo e teve a gentileza de entreter Charlotte e a mim em mais de uma ocasião.
A expressão de Nigel mostrava um educado interesse, mas também ia carregada de um matiz condescendente. Bianca supôs que devia ter conhecido muitas mulheres jovens cujos amigos acreditavam que cantavam como anjos.
—Nos deixe convencê-la para que cante agora — disse Charlotte— Vergil e Dante nunca a ouviram.
—Será uma honra acompanhá-la — ofereceu Nigel— Sou bastante aceitável com o pianoforte.
Bianca se sentia um pouco encurralada. Ela só tinha entretido Penelope e Charlotte com canções populares de salão, e não pode praticar seriamente durante as últimas duas semanas. Ao mesmo tempo, a oportunidade de cantar, inclusive embora não pudesse dar o melhor de si mesma, excitava-a.
Todos foram ao salão de música e Nigel ocupou seu lugar frente ao pianoforte.
—Meu repertório de canções populares é limitado — advertiu ele, dando-se certa importância.
—Possivelmente então tenha mais sentido uma ária.
Ele levantou o olhar agradavelmente surpreso. Ficaram de acordo em interpretar uma de Mozart, uma que ela tinha estado estudando justo antes de deixar Baltimore. A perspectiva dessa pequena atuação acelerou seu coração.
Os outros se colocaram em bancos e em cadeiras. Nigel começou a tocar para introduzir a peça.
Com o som das notas o espírito de Bianca imediatamente renasceu. Não precisava conter sua voz como quando praticava escalas em seu quarto. Não era o frio isolamento que tinha experimentado quando escapulia longe para cantar no campo. A alegria que sentia ao deixar sair sua voz com força dava cor aos sons.
As reações de sua pequena audiência produziram uma espécie de poder.
Penelope permanecia aniquilada, Dante encantado, Charlotte confusa, e Vergil fortemente interessado. Ela olhou Nigel e o viu dar sua surpreendida aprovação. Sua destreza com o pianoforte era considerável, e ela tinha a sensação de que ele sabia que o público apreciava essa destreza.
Ao terminar, a sala estava tão silenciosa que ela podia ouvir o zumbido dos insetos através da janela aberta. Ela desfrutou daquele momento de torcida euforia e depois relaxou.
—Foi assombroso, querida prima — disse Nigel com serenidade— Esteve estudando a sério.
—Surpreendeu a todos, Bianca — disse Penelope— E sua interpretação foi magistral, senhor Nigel. Já vejo que a música é um interesse sério para você.
—Não um interesse, a não ser uma paixão. —Seus olhos procuraram os de Bianca com um brilho trêmulo que parecia indicar que ambos compartilhavam um segredo que os outros jamais entenderiam.
—Deve me prometer que tocará para meus convidados. Possivelmente também poderemos persuadir Bianca para que cante. Será uma noite maravilhosa.
—Será uma honra para mim.
Ele começou a preparar-se para sair, rogando a Penelope que visitasse logo Woodleigh. O mordomo entrou antes que Pen o chamasse, com um cartão de visita.
—Acaba de chegar um homem, minha senhora. Deseja ver a senhorita Kenwood.
Penelope examinou o cartão e elevou as sobrancelhas ao entregar-lhe a Bianca. Antes de lê-lo, ela já sabia de quem se tratava.
O visitante que tinha estado esperando por fim tinha chegado.
—É um assunto de negócios, Penelope. Há algum lugar onde possa me entrevistar com ele a sós?
—Leva-o a meu escritório — indicou Vergil ao mordomo— A senhorita Kenwood poderá atender ali seus negócios.
Bianca se despediu de Nigel e depois se apressou a ir ao escritório, sentindo ainda a alegria do canto.
Nunca esteve no escritório. Estava orientado ao norte, e a luz se filtrava através das janelas góticas iluminando fracamente a escura mesa de madeira, as paredes cheias de livros e as paisagens de aquarela.
Seu visitante aproximou uma cadeira à janela.
—Senhor Peterson, estou encantada de que tenha vindo.
—Senti alívio ao receber sua chamada, senhorita Kenwood. Ao ver que não ia a nossa última entrevista fiquei preocupado.
—Lorde Laclere me encontrou e pôs em marcha outros planos para minha visita a seu país.
Ela se sentou em um assento acolchoado junto à janela. O batente era muito largo. Continha uma coleção de curiosos brinquedos. Um era uma catapulta feita de madeira e cadeias. Outro, uma carruagem de madeira e couro. Um terceiro não parecia ser nada em particular, tão somente um conjunto de rampas estriadas entrelaçando-se entre si, decorado com corrente e rodas.
O tipo de construção era algo rudimentar. Ela supôs que se tratava de objetos que Vergil tinha fabricado quando era menino. A ideia de que o sério e formal visconde guardasse lembranças de sua infância em seu santuário íntimo era adorável, embora se sentisse incapaz de imaginar de menino um homem como aquele.
O senhor Peterson era um homem de meia idade, pálido e calvo, com uns olhos cinza que podiam parecer sagazes ou respeitosos segundo as circunstâncias. Quando ela o visitou em Londres pela primeira vez, seu lado perspicaz tinha entendido rapidamente que embora ela não pudesse pagar seus honorários naquele momento, tinha expectativas que resolveriam as coisas adequadamente.
—Examinou o testamento? —perguntou ela.
—O fiz. Tive uma entrevista com o advogado de seu avô. Ele pareceu surpreender-se de que tivesse me encarregado o assunto, mas cooperou até onde estava obrigado a fazê-lo. Não mais, entretanto.
—E que conclusões tirou? Posso me liberar do domínio de lorde Laclere?
—Se ele não se ocupasse de você, ou houvesse alguma evidência de fraude, seria possível fazer algo a respeito, mas a Corte não permitiria a independência que você está procurando. Se o visconde não fosse seu tutor, outra pessoa seria nomeada em seu lugar. Com um homem de sua categoria, qualquer abuso de sua posição teria que ser realmente terrível para que se pudesse levar ante a Corte.
Ela se sentiu furiosa ante a decepção. Aquele brinquedo inútil captou sua atenção e viu uma pequena bola de chumbo em sua base. Refletindo a respeito de qual seria sua próxima estratégia com Vergil, pegou distraidamente a bola e a soltou sobre a rampa superior. Começou a rodar costa abaixo, de uma rampa a seguinte, de um lado ao outro, pondo em movimento várias pequenas rodas e polias cada vez que seu peso mudava de nível.
—Senhorita Kenwood, não se trata de uma situação permanente… Será menos de um ano. Você é uma moça e rica, e é compreensível que seu avô tenha querido protegê-la para evitar que seja vítima de algum caçador de fortunas sem escrúpulos.
—Quanto de rica?
—Perdoe? Supunha que você sabia.
—Sei em termos gerais. Mas exatamente a quanto ascende minha fortuna?
—Os ganhos pelo fundo de dinheiro investido sobem ao menos a três mil libras este ano.
—Essa quantidade por si só já é uma fortuna, e muito mais do que necessito para meus planos.
—Seu tutor dirigirá essa soma, subministrando os recursos de acordo com as necessidades que você tenha e os gastos que deva cobrir. Ele tem a obrigação de ser razoável em relação a seus pedidos.
Ela duvidava que Vergil fosse tão razoável para lhe dar várias centenas de libras que a permitissem escapar para Milão. Se ele controlava seus ganhos, controlava também seus movimentos. Em definitivo, controlava sua vida.
—Quanto à outra parte de sua herança, tudo resulta muito mais complicado — disse o senhor Peterson, continuando com seu relatório.
—Que outra parte?
—Seu avô era um homem de negócios. Para o final de sua vida vendeu a maioria deles. Entretanto, conservou três sociedades. Duas eram pequenas parcelas de companhias de transportes, e a terceira era a maior parte de uma companhia de algodão em Manchester. Também foram legadas a você suas ações nesses negócios, menos dez por cento das da fábrica, que foram cedidas ao seu primo.
—Entretanto, o visconde também é meu administrador. Ele dirige esses investimentos.
—As ações nessas sociedades não são parte dos investimentos permanentes, como sim o são os recursos de investimento. Se você se casar ou se faz maior de idade, ele deverá renunciar ao controle sobre elas. De fato me surpreende que ele não tenha vendido esses negócios. Representam uma ameaça para sua riqueza. Se algo sair mal, todos os proprietários são responsáveis pelas dívidas incorridas.
Aqueles negócios em realidade não lhe interessavam muito, a menos…
—Também há ganhos que provêm desses negócios?
—O advogado não esteve disposto a me permitir ver os documentos. Eu acredito que a fábrica deve dar lucros.
—E o que ocorre com esses ganhos?
—Vão para seu administrador, que presumivelmente os investe em mais investimentos. Ou se não, são enviados ao seu tutor.
Que era a mesma pessoa. Administrador. Tutor. Qualquer que fosse o lugar para o qual se desviava a conversa acabava indo parar em Vergil Duclairc.
—Senhor Peterson, eu gostaria que você estivesse presente enquanto falo com lorde Laclere. A situação que criou é intolerável. Estou prisioneira aqui.
Ela chamou o mordomo para que solicitasse a presença de Vergil. O senhor Peterson pareceu muito incômodo ante a ideia dessa entrevista. Quando Vergil entrou pela porta, o respeito havia superado a suspicacia naqueles olhos cinza, e a calvície daquele homem mostrava pequenas gotas de suor.
—Lorde Laclere, este é o senhor Peterson. Ele é meu procurador.
Vergil examinou friamente o advogado com um gesto aristocrático de aborrecimento. O senhor Peterson se desfez em um molho de nervos. Bianca lutou contra o impulso de bronquear com ele para que se comportasse como um homem.
Vergil posou sobre ela um olhar muito sério.
—Não sabia que tinha contratado um advogado, senhorita Kenwood.
—Foi uma das primeiras coisas das que me ocupei ao chegar a Londres.
—O advogado de seu avô, ou o meu, ou inclusive eu pessoalmente, teríamos lhe explicado gostosamente algo que precisasse saber.
—Pensei que era melhor ter meu próprio representante e decidir por mim mesma o que era o que precisava saber.
—Confio em que o senhor Peterson tenha satisfeito do toda sua curiosidade.
—Quase tudo. Falou-me a respeito das ações de negócios que herdei e sugeriu que você deveria as ter vendido, para maior segurança.
—Eu não o expressei dessa maneira milord — se apressou a esclarecer o senhor Peterson— Só lhe expliquei as leis em relação às responsabilidades financeiras dos sócios.
—Como deveria fazer com um cliente. Estou obtendo informação sobre o valor das ações. Como administrador seria irresponsável por minha parte as vender a um preço muito baixo. Houve várias propostas em relação à venda que terei em consideração quando estiver em melhores condições para julgar se forem justas. Entretanto, estas coisas levam seu tempo. É difícil obter informação honesta dos gerentes e dos outros proprietários.
—Excelente milord. Justo o tipo de prudente supervisão que alguém esperaria. Acredito que é evidente que tudo está em perfeita ordem, senhorita Kenwood, e que é você afortunada pelo fato de que lorde Laclere se faça cargo de…
—Quando se recebem os benefícios das companhias? —perguntou ela.
Uma paciência de aço controlou a mandíbula e a boca de Vergil.
—Se houver benefícios, as companhias os pagam uma vez ao ano. Serão reaplicados em recursos do Governo.
—E os recursos de investimento por eles mesmos deram lucros desde a morte de meu avô?
—Sim, deram.
—E essa parte dos benefícios foi também reaplicada?
—A maior parte.
A maior parte, mas não toda.
—Senhor Peterson, seria tão amável de me esperar na biblioteca?
O senhor Peterson estava encantado de fazê-lo. Quase tropeçou ao retirar-se apressadamente.
Bianca ocupou uma cadeira frente à Vergil.
—Quero que arrume as coisas para que os ganhos fiquem a minha disposição.
—Não tenho nenhuma intenção de fazer isso.
—Trata-se de minha herança.
—Inclusive embora fosse a mais sensata das jovens, não estaria cumprindo com meu dever se te deixasse dispor desse dinheiro. O certo é que confessou ter propósitos que me converteriam em um conspirador de sua ruína. É totalmente impossível.
—O senhor Peterson me explicou que se espera que um tutor seja razoável em relação a esses recursos.
—Com uma parte é suficiente para cobrir suas necessidades. Os lojistas só têm que me enviar suas faturas. As costureiras e outros profissionais que atendem às mulheres estão acostumados a isso. A menos que haja algum gasto exagerado por sua parte não precisamos voltar a falar disto.
—Dado que não há costureiras nesta casa não corro o perigo de ser acusada de nenhum gasto exagerado.
A expressão dele se suavizou um pouco.
—Minhas desculpas. É obvio que você gostaria de desfrutar dos frutos de sua enorme fortuna. Pedirei a Penelope que te leve a Londres dentro de umas poucas semanas.
—Obrigado. Entretanto, necessitarei um pouco de dinheiro para gastos menores agora. Tenho que comprar uns poucos artigos de natureza pessoal.
Tal como ela esperava, a palavra pessoal o impediu de seguir investigando. Abriu uma gaveta do escritório.
—Espero que vinte libras seja suficiente — disse ela.
—Isso é muito dinheiro para gastos menores, senhorita Kenwood.
—Usarei uma parte para pagar o senhor Peterson.
—O senhor Peterson pode me enviar sua fatura.
—Prefiro que não o faça. Prefiro que recorde quem o contratou. Tampouco me parece correto lhe pedir que aguarde minha herança.
Vergil tirou vários bilhetes da gaveta e os colocou em uma pilha sobre o escritório. Caminhou para ela, sem poder ocultar por mais tempo sua irritação. Ela com muita dificuldade pôde evitar encolher-se de medo ante a autoridade que emanava dele.
—Não estou acostumado a discussões abertas sobre assuntos de dinheiro, e muito menos com mulheres. Não estou disposto a tolerar perguntas que impliquem dúvidas a respeito de minha honestidade e minha capacidade na hora de administrar seu patrimônio, e menos diante de um homem que não conheço.
Ele se inclinou e se agarrou aos braços da cadeira. Ela se encolheu contra o respaldo, afastando-se das faíscas que brilhavam em seus olhos, tão somente a umas polegadas de seu rosto.
—A questão é senhorita Kenwood, que agora mesmo o tio Vergil está pensando que sua desrespeitosa pupila merece uma boa surra.
Os lábios dela se abriram com indignação. Ele saiu disparado e se afastou a grandes pernadas até a porta.
Logo que ele saiu, recolheu os bilhetes e se reuniu com o senhor Peterson. Entregou-lhe dez libras.
—Isto é em pagamento por seus honorários e gastos até o momento. Quero que você guarde o que sobre e abra uma conta para mim no banco. Use seu próprio nome se for necessário.
—Seguro que lorde Laclere terá uma conta onde se possam fazer remessas bancárias.
—Quero ter minha própria conta, e não quero que ele saiba. Me escreva informando quando estiver feito. Também quero que faça averiguações a respeito dessas ofertas para a compra das ações das companhias.
—Se insistir, verei o que posso averiguar. Devo lhe escrever aqui?
—Sim. Não acredito que o visconde me deixe ir muito longe durante um tempo.
Provavelmente não até que se casasse ou fizesse vinte e um anos.
Ela não tinha intenção de fazer o primeiro e tampouco de esperar o segundo. Se o senhor Peterson conseguia os nomes das partes interessadas nas sociedades, ela poderia conseguir o dinheiro necessário para ir à Itália, apesar do obstáculo que representava Vergil Duclairc.
***
Vergil com muita dificuldade conseguiu acalmar sua fúria depois da surpresa de encontrar-se com o senhor Peterson, quando outra visita inesperada chegou à última hora da tarde. Adrian Burchard, um dos amigos de Vergil, entrou em seu escritório, graças a Deus o distraindo das insistentes e eróticas imagens de uma Bianca Kenwood domesticada.
—Fazia muito tempo que não nos víamos Burchard — disse Vergil, lhe dando boas vindas.
—Se passasse algo mais que uns poucos dias em Londres cada vez que vai, não teria sido tanto tempo. Onde esteve metido? —Os escuros e exóticos olhos de Adrian não pareciam estar esperando uma resposta interessante.
E tampouco a conseguiu. Vergil assinalou o escritório.
—Temo que os assuntos familiares me tiveram a maior parte do tempo ocupado. —O conteúdo da afirmação era certo, mas não o gesto que a acompanhou e suas implicações. Não tinha passado em Laclere Park mais tempo que em Londres.
Dentre todos seus amigos, Burchard era o mais capaz de precaver-se dos silêncios.
—Com frequência escapei ao norte, à propriedade que tenho ali. Aí não tenho que me comportar como um visconde — acrescentou Vergil precisamente para romper o silêncio— É uma sorte que tenha cavalgado até aqui para me liberar de ter que exercer de visconde esta tarde.
—Lamento te dizer que esta não é uma visita social. Demos um passeio e te explicarei.
Cheio de curiosidade, Vergil o acompanhou até o princípio do caminho que dava a casa. Adrian o conduziu até o lugar onde outro caminho assinalava o fim da propriedade. Ali, à sombra de uma árvore, esperava um carro.
Um homem mais velho com um proeminente nariz farpado estava sentado em seu interior.
—Podia ter me avisado de que havia trazido Wellington contigo.
O duque o ouviu por acaso.
—Pedi que o trouxesse sem anunciar minha presença, e Burchard cumpriu com sua missão ao pé da letra.
—Sua excelência nos honra com esta visita.
—Não é uma visita, por isso pedi a Burchard que te trouxesse até aqui. Não pretendo ofender sua irmã, Laclere. Simplesmente hoje não tenho tempo para bate-papos de salão. —Fez um gesto com sua bengala — Este parece um caminho agradável e sombreado. Façamos um pouco de exercício.
Vergil começou a caminhar, com Adrian a seu lado. Adrian se converteu no protegido de Wellington. O mecenato daquele grande homem lhe proporcionou um lugar na Câmara dos Comuns como terceiro filho do conde de Dincaster.
Durante uns minutos se ouviu o rítmico ruído das botas contra o chão. O duque não tentou cobri-lo com elogios ou frases de rigor.
—Vim tratar de um tema delicado — disse por fim— Não há uma boa maneira de abordá-lo, assim irei direto ao ponto. Vim fazer umas perguntas sobre a morte de seu irmão. Sempre sinto curiosidade quando um homem morre por causa de uma ferida de bala disparada por si mesmo de forma acidental. Sou consciente de que não é fácil que isso ocorra. Quero saber se no caso de seu irmão não foi um acidente a não ser um suicídio.
Vergil dirigiu a Adrian um olhar ressentido, e este respondeu negando sutilmente com a cabeça. A evidência de que Adrian não tinha sido desleal ou indiscreto acalmou seu aborrecimento.
—Sim. Unicamente a família e uns poucos amigos sabem.
—Aprecio sua confiança em minha discrição, mas receber a confirmação de minhas suspeitas não me dá nenhuma satisfação. Me diga, alguma vez se expôs que resulta estranho que tenhamos tido dois suicídios de pessoas importantes durante a mesma semana? Seu irmão e o de Castlereagh.
—Meu irmão era propenso a crises de profunda melancolia. O ministro de Assuntos Exteriores estava desequilibrado. Foi uma coincidência.
—Laclere, não estou convencido de que foi uma coincidência. Existe alguma possibilidade de que seu irmão tenha sido vítima de uma chantagem? Você achou alguma prova neste sentido? Pergunto porquê há indícios de que Castlereagh sim foi.
—Acreditava que essas suspeitas tinham sido enterradas. Por você.
—Considerando sua posição dificilmente podia deixá-lo assim. Aquele homem era vítima de delírios, assim que concedi a ele pouca credibilidade. Entretanto, as últimas vezes que o vi me disse algo sobre uma carta. Aludiu a seus temores de ser convertido no alvo de um escândalo.
Um escândalo. Vergil suspeitava onde iria parar aquilo e não queria ir por esse caminho.
—Como você disse, era vítima de delírios.
Wellington deu cinco passos antes de reatar a conversa.
—O autor da carta afirma ter provas de certa atividade criminosa.
Vergil se deteve, forçando Adrian e Wellington a fazê-lo também.
—Assim depois de meses de reflexões esse detalhe me permitiu fazer algum tipo de conexão com meu irmão?
—Laclere, o deixe terminar — disse Adrian.
—Nem pensar!
—Compreendo sua ira, Laclere. Asseguro que a única conexão que vi foi a dos dois suicídios, um dos quais pode ter sido resultado de uma chantagem. —A voz de Wellington cobrou severidade— O pergunto outra vez, tem alguma razão para suspeitar que seu irmão pôde ter sido também vítima de uma chantagem? Para que não sinta a tentação de mentir em altares de proteger seu nome, me deixe lhe dizer que acredito que outras pessoas estão sendo vítimas agora, esse acidente de caça de lorde Fairhall em maio não foi o que parece, e teremos mais desastres e mortes se não chegarmos até o final deste assunto.
A fúria de Vergil se fez mais intensa. Não foi pelo tom severo do duque. Esteve pensando naquele segredo durante quase um ano, perguntando-se se as coincidências e as conexões que ele mesmo suspeitava não eram mais que seus próprios delírios.
—Sim, acredito que Milton estava sendo chantageado. Acredito que é por isso que se matou. Ele deixou uma carta. Encontrei-a entre seus papéis, onde ele sabia que eu procuraria para me ocupar dos gastos da fazenda. Aludia a uma traição, se era a ele ou a outra pessoa não sei. A maior parte da carta falava da família, e de que seria melhor que ele saísse de cena antes que nos arruinássemos. Eu quis acreditar que se referia às finanças, que estavam em uma situação péssima então. Entretanto, estive me perguntando se não o tinham obrigado a escrever essa carta.
Sentaram-se sobre o tronco de uma árvore caída enquanto ele contava sua história. Wellington fazia desenhos na terra com sua bengala enquanto escutava.
—Suponhamos que em ambos os casos houve uma chantagem. O objetivo era que morressem? —perguntou Adrian.
—Essa é a questão, não? —disse Wellington.
—No caso de meu irmão a razão da chantagem só podia ser para tirar dinheiro. Não havia nenhum modo de que alguém soubesse que não podia pagar. Nossa situação financeira não era óbvia. Ele gastava como se não houvesse um problema.
—Normalmente, se supõe que o único que quer um chantagista é sangrar sua vítima. Entretanto, o momento que estamos vivendo… Tivemos provas de que há radicais tentando assassinar membros do Governo e da Casa dos Lordes. A situação, portanto é propícia para provocar problemas deste tipo.
—Meu irmão não se destacava no Governo.
—Tinha interesse na política.
—Um interesse teórico.
—Um interesse teórico radical. Isso deve tê-lo levado a contatar com homens que defendem a violência e que poderiam enredá-lo, e através dele outros — disse Wellington — Ele deve ter se comunicado ou associado inocentemente com homens desses, só para que logo usassem essa conexão contra ele mais tarde.
O comentário pendurava no ar, mendigando uma resposta. O duque tinha articulado claramente os próprios temores de Vergil a respeito da morte de Milton.
—Você encontrou cartas que demonstrassem uma relação de amizade entre seu irmão e o ministro de Assuntos Exteriores? —perguntou Wellington.
—Não as busquei. —Era mentira. Uma maldita mentira. Entretanto, não podia permitir que a hipótese se convertesse em um fato tão facilmente.
—Possivelmente deveria fazê-lo.
—Estive procurando em outras direções. Não acredito que haja uma conexão direta entre essas mortes, exceto possivelmente pelo mesmo chantagista. Estou mais interessado em encontrar esse homem que em averiguar quão pecados ele descobriu.
—Assim que essa é a razão pela que não esteve muito em Londres e tampouco aqui — disse Adrian— Progrediu algo?
—Um pouco. —Condenadamente pouco considerando quanto de seu tempo e de sua vida investiu nisso.
—Não há nada que eu possa fazer a respeito, salvo observar o comportamento dos homens e me perguntar se estão preocupados — disse Wellington— Tenho razões para pensar que vários estão. É uma ideia horrenda, a de que alguém esteja desentranhando segredos e usando-os para intimidar ou extorquir seus amigos. E o pior é que esses homens andam tão escassos de dinheiro que tiram a vida para escapar.
—E você, Burchard? Qual é seu interesse nisto, ou só veio hoje para organizar um encontro privado com Sua Excelência? —perguntou Vergil.
Wellington respondeu enquanto os três se levantavam para retornar até o carro escondido.
—Ele está fazendo algumas discretas averiguações para mim sobre lorde Fairhall. Dado que você sabe que é um homem de confiança espero que compartilhe com ele algo que averigúe para que possamos resolver este assunto de uma maneira rápida.
—É obvio.
Era outra mentira descarada. Adrian era um amigo, e tinha experiência tanto em investigações como em discrição, mas Vergil não tinha intenção de revelar o que descobrisse a ninguém se isso podia repercutir negativamente em Milton ou na família Duclairc.
Ele suspeitava que assim seria por todas as razões que cuidadosamente evitou discutir.
Capítulo 5
—Vê o que quero dizer? —sussurrou Charlotte.
Estava sentada junto à Bianca no salão enquanto os convidados chegavam à festa.
Vergil se achava de pé ante o suporte, conversando amavelmente com Fleur e sua mãe, a senhora Monley. Tinham chegado justo depois do meio-dia, em uma magnífica carruagem.
—Nada — murmurou Charlotte, sacudindo a cabeça— Não… Bom, não sei… Sua atitude. Vergil poderia perfeitamente estar falando comigo e Fleur com seu pai.
Sentada do outro lado de Charlotte, Diane Saint John, uma das amigas mais queridas da condessa, dava golpezinhos na mão. Seus olhos cheios de sentimento se voltavam risonhos quando olhavam para o suporte.
—Eu não me preocuparia com seu irmão ou a senhorita Monley. As coisas nem sempre são o que parecem nestes assuntos. Os vê estupendamente juntos, não? Um bom casal.
Sim faziam um bom casal. Fleur era toda cortesia e elegância, alta e magra, com a pele de alabastro e o cabelo escuro. Os cachos caíam de um coque decorado com lacinhos, emoldurando seu rosto ovalado que levava no centro uma boca franzida como uma rosa. A Bianca parecia uma pessoa inteligente, de voz suave, cujos olhos marrons estavam atentos a todos os detalhes.
Bianca experimentou uma vaga decepção ao notar que Fleur não a desagradava instantaneamente, ao mesmo tempo em que sentia uma inexplicável pontada de melancolia cada vez que olhava ao grupo junto à lareira.
—Tenho medo de que Vergil esteja se sacrificando por sua fortuna — disse Charlotte— Parece contente de vê-la, mas tendo em conta que sua família deixou Londres há oito semanas e, entretanto, estiveram separados todo este tempo…
—Isso não sabe — disse a senhora Saint John— Pode ser que quando ele não está aqui nem em Londres vá visitá-la.
—Eu acredito que não. A maioria das vezes vai a seu imóvel de Lancashire. Diz a seus agentes, a Pen e a instrutora que vem ficar comigo onde podem encontrá-lo. Se não se tratasse de Vergil, qualquer um poderia suspeitar que vai visitar uma mulher ali. Alguém que ama, mas com quem não pode casar-se.
Bianca se meteu de repente na conversa olhando fixamente Charlotte com uma expressão triste.
—Sugerir isso é escandaloso.
—Tenho entendido que esse tipo de coisas é muito habitual. Pen inclusive me insinuou que devo esperar que meu marido tenha outras relações de vez em quando.
A senhora Saint John baixou as pálpebras.
—Acredito que muita gente foi indiscreta quando fala ao seu redor, Charlotte.
Bianca viu que a senhora Saint John não havia dito que Charlotte estava equivocada, ou que sua ignorância a tivesse levado a interpretar mal as palavras de Penelope.
—Bom, isso explicaria muitas coisas. Para começar aquilo. —Charlotte fez um gesto com a cabeça em direção ao suporte da lareira— A demora em anunciar o compromisso formal por outro. Com sua beleza e sua riqueza ela não tem por que estar o esperando. O estranho é que a Fleur não parece importar que as coisas estejam assim. É sua mãe quem se impacienta.
Sim, sua mãe estava se impacientando. Os olhos da senhora Monley eram os mais iluminados pelo fogo da lareira. Seguia a conversa de sua filha com um encantador sorriso e um movimento de cabeça que dava à pluma de seu turbante de seda e cordões um inquisitivo ângulo.
—A noite promete alongar-se. Deveria se retirar para descansar — disse uma voz masculina.
Bianca afastou sua atenção da lareira para ver que Daniel Saint John se uniu a elas e se dirigia a sua esposa. Aquele homem atrativo que podia deslizar rapidamente de uma passiva frieza a uma atenção intensa, enfocava esta agora no que mais o interessava.
—Daniel se mostra muito protetor comigo quando estou em estado — confessou Diane com um sorriso— Depois de dois filhos, querido, já não sou tão frágil.
—De todos os modos, é necessário que descanse. —Ofereceu-lhe a mão para acompanhá-la.
A Bianca não passou despercebido o olhar que trocaram. Ternura, humor e uma absoluta devoção fluíam nesse fugaz contato. Era como se anos de lembranças colorissem a forma em que viam um ao outro, e enriquecessem inclusive aquela comum troca.
Bianca voltou a dirigir o olhar à lareira e viu como o comportamento de Vergil e Fleur contrastava com o daquele outro casal.
O comentário de Charlotte teve para ela uma nova dimensão. Não havia necessidade de uma demonstração aberta de paixão e afeto. De uma maneira silenciosa que não implica o contato físico, um homem e uma mulher podem estar intimamente conectados.
Diane Saint John aceitou a sugestão de seu marido e se levantou.
—Suponho que um breve descanso pode ser uma boa ideia. —Juntos, sem falar, mas dizendo-se muito, dirigiram-se para o salão.
A atividade do vestíbulo anunciava a chegada de outro carro.
—Por fim o último. —Charlotte ficou em pé— Este deve ser o da senhora Gaston. É uma das amigas de Pen e uma grande mecenas das artes. Apoiou Pen quando outros a abandonaram após sua separação. Acredito que Pen a convidou pensando em você, por sua carreira de cantora.
Bianca e Charlotte seguiram Penelope e Vergil para receber à nova convidada.
A senhora Gaston tinha vindo em uma grande carruagem. Pen se adiantou estendendo os braços para lhe dar a bem-vinda.
—Que amável por sua parte fazer um encaixe para vir a nossa pequena festa.
A senhora Gaston era uma bela mulher de sorriso encantador, maçãs do rosto marcadas e um cabelo castanho acobreado. Movia-se com uma orgulhosa elegância, levava um casaco com um exótico estampado e um chapéu com plumas extravagantes.
—É você a que foi amável ao me dar uma oportunidade para escapar da cidade durante uns dias. Entretanto, temo que dei um passo em falso e devo pedir sua indulgência por isso.
—Um passo em falso? Você? Nunca.
—Infelizmente sim. Trouxe uma amiga comigo.
—Quando lhe escrevi disse que seus amigos seriam bem-vindos.
—Sim, fez. Normalmente no caso de trazer alguém eu teria escrito para lhe avisar. Mas esta amiga chegou à cidade inesperadamente.
Um lacaio se aproximou até a porta aberta da carruagem. Uma mão enluvada e uma manga na moda apareceu. Uma cabeça escura de elegante penteado e chapéu se agachou enquanto a amiga em questão inclinava seu corpo para descer.
—Maria — exclamou Pen, abraçando a escultural figura envolta em musselina azul pálida— Ninguém sabia que viria nos visitar este ano. É uma surpresa maravilhosa para mim.
O rosto da mulher não era formoso, com suas feições muito marcadas, mas sua forma de comportar-se transmitia uma sólida dignidade e inspirava confiança.
—Foi uma decisão impulsiva por minha parte, querida minha. Milão é horrível com o calor. Meus músicos estão se comportando como meninos mimados, e o tenor para a próxima produção é um jovem idiota e arrogante que não se deixa dirigir. Simplesmente deixei a todos. Vamos ver como as arrumam sem Catalani.
—Oh, Deus, que sorte — sussurrou Charlotte a Bianca— Sabe quem é?
Bianca sabia. A mais importante cantora de ópera da Inglaterra, Maria Catalani, retornou da Itália há seis anos e agora dirigia uma companhia de ópera em Milão.
Que maravilhoso golpe de sorte. Com a senhora Gaston e Catalani ali, aquela festa prometia ser enormemente mais interessante do que esperava.
Vergil se adiantou para saudar Catalani, beijando sua mão de maneira lisonjeadora. Ela disse algo em voz baixa e seu rosto se iluminou com um sorriso.
Se a visita inesperada de uma cantora de ópera afligia Laclere, este não o demonstrou. Provavelmente trataria do assunto com Penelope mais tarde.
Penelope conduziu seus novos convidados ao interior da casa.
A Bianca tremia os joelhos pela emoção.
—Esta deve ser Charlotte. Já parece uma jovenzinha, encantadora — disse Catalani— Já teve sua estréia em sociedade?
—No próximo ano — explicou Pen— Vergil não aprova que nestes dias as garotas se apresentem a uma idade tão jovem.
Catalani olhou para trás ao visconde que as seguia e franziu os lábios com picardia.
—Um bom estratagema, e será muito efetiva. Deixemos que tenham que esperar por um diamante assim. Será a sensação da temporada, Charlotte. Predigo que seus irmãos necessitarão lacaios extras para vigiar as paredes do jardim.
Pen atraiu Catalani até Bianca.
—Esta é Bianca Kenwood, de Baltimore. É a pupila de Vergil.
—Nunca tive o prazer de visitar seu país. Temos que falar. Tenho muitas perguntas a fazer.
—E eu também tenho perguntas para você. Visitarei a Itália muito em breve.
—Está planejando uma grande viagem para sua irmã e sua pupila, lorde Laclere? —perguntou Catalani enquanto Pen a conduzia para o interior da casa— Necessitará dez lacaios extras então, se envia duas belezas como estas a meu país.
Bianca se apressou a alcançar Charlotte, atônita pelo curso dos acontecimentos. Essa festa prometia ser o ponto culminante de sua estadia na Inglaterra.
—Por hoje já estão todos os convidados — explicou Charlotte— Pen disse que o senhor Witherby escreveu dizendo que chegaria amanhã pela manhã. Vamos descansar um momento antes de jantar.
Bianca decidiu não fazê-lo a menos que ficasse claro que Catalani também se retirava. Esperou até que a imponente mulher subisse a escada flutuando com Penelope a seu lado.
Ficou sozinha de pé no vestíbulo vazio, sabendo que seria totalmente impossível descansar. Procurando alguma forma de aliviar sua ansiedade, entrou na biblioteca, encontrou o volume de poemas de Shelley que tinha estado lendo e se amassou em um divã encarado uma janela.
Aquele era seu lugar favorito para ler, especialmente pelas tardes. Uma luz tênue penetrava através da janela acompanhada de uma suave brisa. Ninguém podia vê-la ali a menos que se aproximasse do divã. Aquele tinha se convertido em um de seus poucos cantos privados.
Ouviu-se o ruído de passos de alguém que entrava na estadia. Ela se incorporou um pouco para ver de quem se tratava. Dante a reconheceu e caminhou para ela; levava seu chapéu e o látego de montar. Sentou-se em uma poltrona, frente a ela e esticou as pernas; também levava botas.
—Chegaram todos? —desapareceu de casa depois da chegada de Fleur.
—Todos menos o senhor Witherby.
—Surpreende-me que se atrase. Esperava que quisesse aproveitar cada momento para seduzir minha irmã.
—Charlotte?
—Pen. Converteu-se em um amigo muito especial para ela durante o último ano. Ou ao menos ele pensa que assim é. Não sei que ideia tem Pen a respeito, embora pareça desfrutar de sua companhia. Estou seguro de que é por isso que o convidou, apesar de que também é um velho amigo de Vergil.
A frase «amigo muito especial» aludia a algo mais que a uma mera relação de companheirismo. Dante frequentemente se despistava e falava daquela maneira tão familiar, como se compartilhassem alguma compreensão do mundo. Aquele tom de conspiração implicava um tipo de intimidade.
Ele vadiava com ar despreocupado, olhando-a por debaixo das grossas pestanas desse modo que sempre a fazia sentir-se tão incômoda. Sempre estavam a sós quando a olhava dessa forma.
—Maria Catalani acaba de chegar com a senhora Gaston. Foi uma surpresa para todos —disse ela.
Aquilo pegou sua atenção.
—A senhora Gaston está aqui? Deveria ter perguntado a Pen a quem esperava receber antes de aceitar ficar.
—Não te cai bem?
—É por pura insistência que conseguiu introduzir-se em muitos círculos. Vê a si mesma como uma grande patrocinadora de artistas e quer que todos saibam como promove suas corridas.
—Faz? Promove corridas?
Ele deu de ombros.
—Não saberia lhe dizer isso. Os círculos artísticos de Pen não me interessam muito, e parece que isso é o que temos aqui. A senhora Gaston e Catalani, diz. Lorde Calne é outro patrocinador das artes. Cornell Witherby será uma boa companhia, ao menos, apesar de que com os outros que há aqui provavelmente só falará de sua poesia. Espero que Vergil o distraia com outras coisas.
—Crê que Vergil permitirá que Catalani fique?
—Por que não ia fazê-lo?
—Isso pensei, possivelmente, com Fleur aqui e Charlotte e…
Seu comentário o deixou preocupado.
—Esta é a festa de Pen, e meu irmão sabe o que isso significa. Vergil pode ser um santo, mas nunca se comporta de um modo rude. Por outro lado, Catalani tem suficiente poder para ocultar os meios pelos que conseguiu sua fama. —levantou-se— Acredito que darei um passeio. Será uma honra se me acompanhar. Te mostrarei as ruínas.
Bianca já tinha encontrado as ruínas medievais que se conservavam no parque Laclere, e não queria as visitar sozinha com um mulherengo. E menos ainda com um que naquele momento a olhava com esse brilho nos olhos.
—Obrigado, mas acredito que continuarei um bom momento lendo.
Uma repentina irritação alterou sua expressão. Para sua surpresa ele se aproximou e acariciou sua mandíbula com um dedo.
—Não tem que ter medo de mim Bianca.
Ela se tornou para trás ante seu gesto.
—Seu irmão diz que aqui não é habitual dirigir-se a uma mulher de um modo tão familiar.
—Eu não sou meu irmão.
Não, não era. A última semana ela tinha sido o centro da atenção desse jovem. Tinha tentado desanimá-lo. Ao que parecia sem êxito.
Sua mão a tocou outra vez, sustentando seu queixo. Os olhos de Bianca se alargaram com incredulidade quando ele inclinou sua cabeça para cima, aproximou a sua e lhe deu um beijo nos lábios. Aconteceu tão rápido que a impressão lhe fez ficar completamente imóvel.
Ele a interpretou mal. inclinou-se para ela e a beijou profundamente, ao tempo que a abraçava.
Ela se separou dele e o lançou contra a janela com uma assombrosa fúria. Raivosa e envergonhada o enfrentou.
—Não se atreva a voltar a fazer isso.
Ele se levantou.
—Minhas desculpas. Deveria ter te pedido primeiro permissão.
—Não o teria obtido.
—Eu acredito que sim.
—Interpreta mal nossa amizade.
—Não acredito. Está assustada e confusa, e isso é normal para alguém tão inocente. Não voltarei a te beijar sem sua permissão, mas quando lhe pedir isso me dará isso.
Ela andava a provas procurando uma resposta mordaz. Ele sorriu com uma confiança em si mesmo que resultava insofrível e saiu da estadia.
Ela voltou a afundar-se no divã, levantou as pernas e se encolheu em seu canto. O que teria feito pensar a aquele patife que ela reagiria bem ante semelhante coisa? Teria ouvido algo a respeito de seus espetáculos em Londres? Até onde ela sabia, tinha ido a um.
Que sorte para ela que o irmão equivocado tivesse concluído que ela era um pouco selvagem e descuidada com o decoro.
***
—Se escondendo das obrigações de sua condição? —perguntou Dante ao entrar no escritório onde Vergil se achava lendo sua correspondência.
—Tomando um descanso porque se seguir sorrindo durante mais tempo meus lábios vão se romper.
—Tampouco está tão mal. Convidou Witherby e Saint John, assim poderá se divertir.
Vergil estava agradecido de que Pen tivesse convidado Daniel e Diane Saint John. Não os via há meses. Eram também amigos de Pen.
Ela tinha amizade com Diane Saint John quando a jovem acabava de chegar a Londres, e desempenhou um papel nos dramáticos acontecimentos que precederam o casamento de Diane com o magnata de uma companhia naval.
Quanto a Witherby, Vergil suspeitava que Pen o convidasse por razões que nada tinham a ver com que ele se divertisse.
Dante vadiava apoiado contra o marco da janela e, distraidamente, deixava cair a bolinha de chumbo sobre as rampas do brinquedo.
—Fleur está tão encantadora como sempre. Podemos esperar que anunciem seu compromisso uma noite destas depois do jantar?
—Não acredito.
—Já é hora, Verg.
—Dentre todas as pessoas que poderiam me dar lições, Dante, você seria o último. Minhas responsabilidades com os membros atuais desta família pesam mais que qualquer responsabilidade que pudesse ter respeito a membros futuros.
—Está me dizendo que resultamos tão caros que não pode te permitir uma esposa?
—Estou dizendo que qualquer mulher que se case comigo terá certas expectativas que neste momento não estou em condições de cumprir. O qual nos conduz ao assunto de seu próprio matrimônio, que será um alívio significativo para nossas cargas financeiras. Devolvo-te a pergunta. Devemos esperar uma notícia? Recordo um jovem cheio de confiança em si mesmo dizendo com presunção que uma semana bastaria.
—Maldita seja, estas coisas levam seu tempo. Além disso, ela é… Difícil de entender.
Levou uma cadeira junto ao escritório e se sentou à mesma altura que seu irmão do outro lado, com as pernas cruzadas, apoiando o braço sobre a mesa e deixando descansar sobre este a cabeça. Era a pose que Dante adotava quando queria falar «de homem a homem».
Dado que o tema de conversa era Bianca Kenwood, Vergil teria desejado economizar as confidências. Bianca constantemente penetrava em seus pensamentos, e a última noite, depois de sua volta a Laclere Park, surpreendeu-se rondando o salão entre as damas até que ela se retirou.
—Às vezes penso que ganhei terreno só para acabar por me dar conta de que era uma ilusão. Ela parece muito quente uma manhã, mas pela tarde a vejo ser igualmente calorosa com um criado. Posa esses grandes olhos azuis em mim e penso que deveria lhe propor matrimônio naquele mesmo momento, mas depois me ignora durante toda a hora seguinte. Às vezes penso que estou tratando com uma garota tão ignorante que nem sequer nota meu interesse, e outras vezes…
—Outras vezes?
—Outras vezes me pergunto se é tudo menos ignorante e se não está me tratando como um brinquedo. Me perdoe, mas estamos falando sem disfarces.
—Você certamente sim.
—Pergunto-me se está sendo deliberadamente intrigante. Esquiva de um modo calculado.
—Soa-me como se lhe estivesse jogando a culpa de seu fracasso.
—Possivelmente. Mas há algo nela indefinível… Um ar, uma fragrância, não sei o que. A olho e vejo toda a inocência da primavera, e de repente me devolve o olhar e me encontro pensando que seria uma esplêndida amante. É uma combinação confusa e fascinante.
Assim Dante acabou percebendo aquilo que Vergil notou nessa primeira noite na sala de jogos, e muito frequentemente após.
—Confio em que não seja muito fascinante.
—É obvio que não. Mas deixa a um fora de jogo. Há uma arte na sedução, e conhecer a mulher é uma parte essencial.
—Sempre estou agradecido por suas instruções nessas matérias, Dante, mas vamos ao ponto. Se propuser matrimônio amanhã, acredita que aceitará?
—Maldita seja se sei.
Isso significava que provavelmente não.
—Sabe que está interessado por ela? Talvez interprete seus cuidados como uma amostra de simples amizade, uma mão amistosa em um país estranho.
—Agora já sabe.
—O que significa isso?
—Acabo de vê-la na biblioteca.
—Declarou suas intenções?
Dante olhou ao longe e Vergil instantaneamente soube que tinha expressado seus interesses com ações, e não com palavras.
Quase salta por cima do escritório para estrangulá-lo.
—Me deixe expressá-lo de outro modo. Sabe que suas intenções são honestas?
—De que outro modo poderiam ser? Ela é sua pupila.
Vergil esfregou o cenho.
—Bom, suponhamos que ela ouviu falar sobre você…
—De quem? Seria estranho que Pen fosse contando histórias.
—De outra pessoa. Um criado. Jane, sua empregada. Nigel Kenwood.
—Não viu Nigel mais que uma vez em toda a semana, quando Pen o convidou, e não estiveram a sós, assim que ele não pôde…
—De quem é Dante. Supondo que alguém contou algo. Se você não explicar que suas intenções são honestas, ela poderia pensar que a persegue por outras razões.
Dante se endireitou.
—Se for assim, fui insultado.
—De todos os modos…
—Não sou um descarado.
—Recomendo que esclareça as coisas. Se ela te interpretou mal, só conseguirá que a partir de agora te evite.
Dante se levantou e caminhou até a janela.
—É obvio, tem razão. Entretanto, se fizer uma proposta de matrimônio e me rechaça se acabou o jogo. Explicar minhas intenções, embora não seja pedir a mão, termina sendo o mesmo. As garotas têm estes caprichos, e um homem que as persegue apesar delas fica como um parvo. Estava sentado na biblioteca e me surpreendi perguntando isso acaso não é contraditório?
—O que diz não tem muito sentido.
—O que acontece se ela é realmente inocente, mas tem à outra dentro? O homem que conseguisse despertá-la estaria em uma posição muito poderosa a respeito dela. Se se tratar de chegar pelo caminho mais rápido, pois…
—Não.
—Não estou falando de nada desonroso, Vergil. Só um pequeno escarcéu que nos economizaria muito tempo.
—Não fará nada que possa comprometê-la nem remotamente.
—Está sendo pouco prático e se preocupa muito pelo decoro. A ideia foi tua, recorda? Se a comprometer, o matrimônio será inevitável.
Não era seu tão cacarejado sentido do decoro o que se rebelava contra as insinuações de Dante, a não ser algo mais visceral, algo que tinha a ver com um fervor incessante, o perfume de lavanda e uma voz melodiosa que tinha estado cantando em sua memória durante uma semana de viagem e obrigações. Ao menos ser um santo tinha suas vantagens. Não podia malograr seus planos, mas não permitiria que Dante estendesse uma armadilha à garota.
—Ganhar honestamente o afeto de uma mulher pode parecer um longo e tedioso esforço a um homem acostumado a aproveitar as paixões rápidas, Dante, mas se pretende consegui-la é o que terá que fazer.
—Ao menos alguém nesta família tem um pouco de paixão. Entre você e Milton…
Ante a menção do nome de seu irmão todo o corpo de Vergil se esticou.
—Acredito que deveria ser muito cuidadoso e não mencionar Milton e seu imprudente apetite na mesma frase.
O ressentimento escureceu o rosto de Dante.
—Continua me culpando de algo que não pude prever.
—Equivoca-se. Não te culpo. Não havia forma de que soubesse o que pretendia fazer. Mas não o coloque nestas discussões. Me insulte tudo o que queira, mas deixa nosso irmão e sua memória à margem deste assunto. Nada disso tem a ver com a senhorita Kenwood e sua forma de se comportar com ela.
—Ah, sim, a adorável Bianca. Está tão preocupado por ela que está te pondo muito sutil, Verg. Seu amparo é curiosamente seletivo e meio cego. Não permitirá que ninguém comprometa sua pupila, mas está disposto a consentir que se veja atada por toda vida a um homem que despreza.
Aquelas palavras deram no alvo por razões que Dante nunca saberia.
—Eu não te desprezo.
—Ah, não? Pode ser que não me culpe, mas jamais me perdoou.
Vergil viu dor naquele belo rosto que nunca se mostrava preocupado. Devia ter sido mais consciente do sentimento de culpa que a morte de Milton causou em Dante.
Era estranho que a discussão sobre uma garota que não tinha nada a ver com aquele episódio o tirasse do baú.
—Posso te fazer críticas sobre a forma em que vive sua vida, mas isso não reflete meus sentimentos com respeito ao rol que desempenhou sem te dar conta no desastre do ano passado. Não precisa ser perdoado por isso, Dante. A ignorância não é uma ofensa imperdoável. Se nunca falei disto contigo antes, não foi porque te jogue a culpa a não ser só porque não quero me lembrar daquilo. Entretanto, possivelmente minha reserva não tenha sido justa para você.
O rosto de Dante era uma imagem de tensa serenidade, mas seus olhos brilhavam.
—Eu estava aqui. Jantei com ele. Deveria ter visto…
—Estou agradecido que esteve com ele durante sua última hora. Acredito que ele também esteve.
O ar na estadia estava carregado com a crua intimidade que tinha nascido de uma franqueza inesperada. Caiu uma barreira invisível cuja existência Vergil jamais foi consciente. O abismo que se abriu entre eles após a morte de Milton foi superado, e tudo devido às conflitivas emoções que a presença de Bianca Kenwood criou naquela casa.
Olhou seu jovem irmão com novos olhos, e percebeu uma profundidade cuidadosamente disfarçada por aquele despreocupado libertino. Poderia ter homens piores para ela.
Dante sorriu com ironia e se dirigiu sem pressa até a porta.
—Farei a sua maneira, Verg. Será interessante, tentar inspirar um afeto casto nada mais que com insinuações. Mas me limita injustamente. Não posso jogar minha melhor carta. Depois de tudo, não tenho nada a oferecer à garota mais que o prazer.
Uma hora antes, Vergil teria estado de acordo.
Capítulo 6
Na manhã seguinte Vergil foi o primeiro a baixar à sala do café da manhã. Queria tomar o café da manhã sozinho antes que chegassem os convidados.
Acabava de se sentar ante seu prato quando um movimento junto à janela chamou sua atenção. O brilho verde e dourado de uma cabeça loira e uma figura esbelta desapareceram entre os arbustos.
Bianca Kenwood se levantou ao amanhecer.
Afastou a vista da janela com preocupação. Dante disse que ela só havia visto Nigel Kenwood uma vez, mas Dante não sabia nada a respeito das aventuras a alvorada de Bianca. Era possível que ela e Nigel levassem uma semana vendo-se em segredo.
Deixou que uma espessa cortina cobrisse a imagem que se formava em sua mente. Não havia nenhuma prova sólida de que estivesse se encontrando com seu primo. Ao mesmo tempo, qualquer que fosse seu propósito, o certo era que entrava alegremente no parque ao amanhecer apesar do perigo dos caçadores furtivos com o que teve que enfrentar naquele dia a cavalo. Aquele episódio teria bastado para que qualquer jovem normal desde aquele dia temesse aventurar-se a sair a menos que a acompanhasse meio exército.
Mas ela não era uma jovem normal.
Antes que o servissem o café da manhã, saiu ao jardim e se dirigiu para o caminho por onde ela entrou.
—Laclere.
Vergil se voltou para a voz que o chamava. Cornell Witherby se aproximou dele dando grandes pernadas através do caminho que conduzia ao estábulo.
Ao entrar no atalho, o dourado e o verde ficavam engolidos pela erva.
—Não me diga que cavalgou durante a noite, Witherby. —Vergil viu que o recém-chegado ia vestido com uma jaqueta marrom de montar e calças de cor parda clara. As botas pareciam novas e o cabelo loiro que aparecia sob seu chapéu tinha um corte moderno.
Witherby era muito belo e parecia estar com um humor estupendo.
—Cavalguei a maior parte do caminho ontem pela tarde e dormi em uma estalagem.
—Estava ansioso para chegar?
—A cidade se tornou ruidosa estes últimos dias. Há manifestações diariamente. Muitos arrestos. Me fará bem o ar do campo. A musa se volta irritável ante tantas distrações.
—Confio em que não se distraia aqui. O café da manhã te espera, mas deverá alimentar sua musa em solitário. Minha irmã ainda não se levantou para cumprir com seu papel de anfitriã.
Witherby esboçou um sorriso ao ouvir mencionar Penelope. Ele sabia que Vergil sabia suas intenções, e Vergil sabia que ele sabia, mas um homem não fala dessas coisas com o pretendente de sua irmã casada, nem sequer embora sejam velhos amigos.
—Ficará feliz em saber que a reunião é de artistas, como é de esperar com Pen — disse Vergil.
—As festas da condessa são sempre deliciosas. Espero que esta supere as outras.
Vergil decidiu não especular sobre quanto deleite poderia estar Witherby antecipando. Uma casa de campo grande e tranquila oferece todo tipo de oportunidades para a intimidade.
Com firmeza afastou esses pensamentos de sua mente.
—Está vestido para cavalgar — observou Witherby— Vou contigo.
—Primeiro um passeio, depois cavalgaremos. Vá e se instale com a maior comodidade que possa. Saint John está aqui, além disso, normalmente baixa cedo, assim não se aborrecerá muito tempo.
Dando pernadas alegres e calmas Witherby se dirigiu para a casa. Vergil esperou até perdê-lo de vista, depois deu a volta e prosseguiu em busca de Bianca.
Quando conseguiu divisá-la reduziu o passo para poder segui-la a uma distância prudente.
A seguia porque se preocupava com sua segurança, mas também devia admitir que queria saber se Nigel a esperava em algum lugar.
Quando tinha entrado mais de um quilômetro entre as árvores, ela tomou um atalho que ia para o oeste. Ele viu que se dirigia para as ruínas. Não era um bom sinal. O castelo medieval era um lugar ideal para um encontro de casal.
Ela já não estava à vista quando ele entrou entre a erva alta que rodeava as ruínas das mais antigas fortificações do parque Laclere. Da torre tinha sobrevivido meia armação, e só uma sessão das velhas ameias perdurava, muitas paredes vieram abaixo e outras se viam a ponto de desmoronar. Grandes pedras dispersas cobertas de más ervas deixavam claro que uma vez serviram como o muro de amparo. De toda a estrutura da muralha o único relativamente intacto era uma solitária torre quadrada.
O assaltaram nostálgicas lembranças da infância, como o do fácil vínculo que uma vez compartilhou com Dante, e que os segredos e a falta de cuidado quase destruíram. Esquadrinhou a paisagem em busca do rastro da senhorita Kenwood.
De repente um som apagado e doce flutuou através do silêncio da manhã. Elevava-se e baixava como uma suave onda no meio da brisa, enviando redemoinhos que o rodeavam. Ele o seguiu até a fonte de onde provinha na torre quadrada, e entrou através da soleira de pedras.
O som o afogou, elevando-se fora das paredes e a abóbada. Acima na câmara da sentinela, a senhorita Kenwood praticava suas escalas, e sua voz ganhava em volume com cada ascensão que repetia. Ele se deteve e ouviu a escala de repetições de alguém que afiava e esquentava sua voz.
Ela se interrompeu e ele a ouviu falar. A Nigel? O homem devia usar sua música para atraí-la até ali. Se assim era, não corria um perigo imediato. Ele duvidava que ela decidisse abandonar sua paixão original para dedicar-se a explorar outras justo agora.
O som emergiu de novo, baixando torrencialmente a escada. Agora não se tratava de escalas, mas sim de uma ária de Rossini.
A melodia o embargou. Precisa e disciplinada, tinha a textura da elaborada canção de um pássaro, empapava a mente, transbordava o coração e agitava os sentimentos do modo em que a melhor música sempre faz. Os sensuais matizes de sua voz alagaram o reservado esconderijo que ele esteve lutando para manter a salvo.
Quase de um modo involuntário, suas pernas o conduziram à escura escada, para a sereia que sem saber o atraía a uma borda proibida.
Ela estava de pé só na câmara, de costas a ele, emoldurada pelas linhas das paredes que se estreitavam para formar um teto abobadado. Nigel não estava. Não havia ninguém ali. Ela devia ter falado consigo mesma.
Ele apoiou o ombro contra o marco da entrada, para olhar e escutar. Desejava poder ver seu rosto, mas em sua memória ainda conservava a radiante expressão da que tinha sido testemunha aquele dia em que ela atuou no salão de música.
Não lutou contra suas reações. Teria sido incapaz de fazê-lo embora gostasse de fazer. Em lugar disso deixou que suas notas se elevassem em uma maré que fez desaparecer o mundo inteiro exceto essa paixão dela e seu próprio e atônito desejo.
A fazia sentir-se tão bem. Transportada. Gloriosa. Sua voz tomava o poder de seu corpo e dissolvia sua substância até que só o canto existia. As pedras enriqueciam o timbre como nenhuma sala poderia fazer. Ela desejava poder levar Catalani ali.
Terminou muito rápido, e ela, com pesar, sustentou a última nota mais do que a partitura requeria. Esta ficou pendurando por cima dela, gotejando como o néctar de uma gema no interior de seu espírito aberto.
E finalmente se extinguiu, deixando-a gasta e um pouco melancólica.
De repente notou que não estava sozinha. Temendo que Dante a tivesse seguido deu a volta com receio.
O visconde estava apoiado com ar despreocupado contra a entrada da câmara, com os braços cruzados sobre o peito, olhando-a. Estava muito bonito, e havia nele algo intenso apesar de sua pose despreocupada.
—Seguiu-me até aqui, tio Vergil? Para me espiar?
—Foi só para te proteger, mas sim, a segui.
—Estou segura de que não corro perigo no parque Laclere. Seus audazes caçadores furtivos devem ter se mudado ou mudado seus métodos de caça. Não houve disparos esta última semana.
—Se sabe isso, é porque deve ter vindo aqui frequentemente. Sempre para cantar?
A câmara tinha uma janela, não maior que a fenda de uma flecha. Ela se dirigiu para ali, afastando-se dele. As pedras aumentavam os matizes do tom de Vergil e isso a fez mostrar-se precavida. Seus olhos tinham uma expressão oculta que ela não podia ler. Sua presença a impressionava como se fosse perigosa. Era uma reação ridícula, mas não podia evitá-la.
Examinou a paisagem, evitando seu olhar fixo.
—Não aceito a situação que te faz pensar que tem direito de me interrogar. Sim, venho aqui frequentemente, geralmente em manhãs como esta. Encontrei esta torre um dia enquanto cavalgava. E sim, para cantar.
—Sozinha?
Ela o olhou por cima do ombro.
—Acaso acredita que marquei um encontro com Nigel aqui? Seguiu-me para me proteger de intenções desonestas? —A ideia lhe deu vontade de rir. Um amparo tão cuidadoso de sua virtude no campo enquanto seu próprio irmão a assaltava na biblioteca— Perdeu seu passeio a cavalo para nada. Não me ocorreu a ideia de usar esta torre para encontros desse tipo. Terei-o em mente para futuras ocasiões.
—Duvido que o faça. Não terá tempo para pôr em prática. Não a adverti antes, mas esta câmara afeta ao som do mesmo modo que as antigas Igrejas normandas. Qualquer que seja a potencial atração de seu primo, estas pedras têm mais.
—Possivelmente ele deva escutar. Como fez você.
Ele se separou da parede com um vago sorriso.
—Se o fizer, definitivamente necessitará amparo.
Caminhou para ela despreocupadamente. Ela sem se dar conta se afastou até a borda. Em realidade era uma tolice, mas aquele dia havia nele algo diferente. Algo fascinante, mas também desconcertante.
—Pen anunciou que cantará esta noite. Está ensaiando sua atuação, para se assegurar que estará nas melhores condições frente à Catalani?
—Sim.
—Falou um bom momento com ela ontem à noite. Um encontro tete a tete. Suponho que explicou seus planos.
—Não tem por que preocupar-se, não vou pôr nem você nem Pen em uma situação delicada. Ninguém mais me ouviu e acredito que ela sabe que é necessária a discrição entre os convidados de um visconde.
Ele continuava movendo-se, olhando ao redor do cômodo como se não tivesse estado ali em muito tempo. Ela sentia constantemente o impulso de partir longe.
—O que te aconselhou Catalani?
—Estava de acordo comigo em que se quero receber a melhor instrução devia ir a Itália, ou trazer um dos melhores professores aqui. Enquanto isso, deu-me o nome de um tutor com quem poderia trabalhar em Londres. Recomendou-me o senhor Bardi, que trabalha como professor do bel canto com alguns dos melhores cantores de Londres.
—Nenhum outro conselho? Não esperava que Catalani fosse tão reservada.
—Perguntou-me se entendia essa vida, se sabia o que implicava.
—E sabe?
—Sei que implica trabalho duro. Contínuas viagens. A necessidade de atuar apesar de estar cansada ou doente.
—Não é a isso a que ela se referia.
Seu rosto se acendeu.
—Sei a que se referia.
—Não acredito que saiba. Não de verdade. Duvido que tenha a mais remota ideia do que significa se converter em alguém que nenhuma mulher respeitável teria como amiga. Essa cantora de ópera pode visitar casas como esta, mas só há uma Catalani. Não será o mesmo para você. Não haverá nenhuma tia Edith na Inglaterra ou na Itália para te proteger das más línguas.
A irritação a fez ficar cravada no chão.
—Sei o que essa gente chamada decente pensa sobre essas mulheres. De fato vi muitos homens decentes aproximar-se de minha mãe às vezes. Quando cresci entendi o que queriam. Tratarei com eles como ela o fazia. Supõe-se que devo renunciar a algo importante para mim, essencial para mim, por culpa de preconceitos sem fundamento?
Ele continuava caminhando. Fazendo círculos e círculos. Se ele não fosse o proprietário de uma cidadela, se sua conduta não fosse tão despreocupada, ela teria sucumbido à sensação de estar sendo acossada. Por ser alto ele devia permanecer perto do centro do cômodo, e o círculo que desenhava parecia bastante menor agora que ela se achava justo no centro.
—Os preconceitos a respeito de muitas atrizes e cantoras estão muito bem fundados — disse ele, como se discutir sobre mulheres de má reputação fosse um tema perfeitamente aceitável.
—A vida dessas mulheres é muito insegura, e eu suponho que muitas artistas precisam aceitar o amparo que lhes oferecem.
—Você acredita que é o desespero o que faz que essas mulheres se convertam em amantes e cortesãs, e que sua herança te salvará? Seu julgamento é mais duro que o meu. Eu assumo que é a solidão. Um matrimônio decente é quase impossível. Haverá quem esteja disposto, mas ninguém a quem você seja capaz de amar.
Aquela conversa tão delicada se tornou de repente pessoal.
—Sei. Entretanto, há coisas que valem sacrifícios.
—Uma vida inteira de sacrifícios? Pensa isso agora, mas e dentro de dez anos? E de quinze? Sem casar, sem filhos, sem lar. Entendo que é mais triste que escandaloso que para a maioria dessas mulheres o dia começa quando alguém lhes oferece algo parecido ao amor e o agarram. Não importa o que decidam quando começam, depois de um período virtuoso, uma solidão antinatural, a escolha é virtualmente inevitável.
—Como se atreve a prognosticar um futuro tão desolado e sórdido para mim? É muito cínico ao afirmar que se perseguir minha carreira de cantora, estarei predestinada a me afundar. Embora tampouco veja por que se importa tanto.
Ele se deteve e se afastou uns passos.
—Sou responsável por você.
—E por isso se mete em minha vida, para me proteger de mim mesma. Durante dez meses.
—Mais. Se puder achar a maneira.
«Mais!»
—Não se atreva a tentar me impor mais obstáculos. Não o tolerarei.
—Sua decisão me deixa pouca escolha. Deve acreditar que pode viver como uma monja, mas duvido que possa fazer isso indefinidamente.
—Suas implicações são tão insultantes como escandalosas.
—Não são insultantes absolutamente. E escandalosas só se acabar por te converter na amante de um homem em lugar de na esposa de um homem.
—Cruzou a linha, cavalheiro. É impróprio que me fale dessa forma, inclusive sendo meu protetor.
Vergil inclinou a cabeça e um sorriso sarcástico bateu as asas brevemente em seus lábios.
—Cruzei a linha? É bastante provável. Surpreendo a mim mesmo. — Olhou a seu redor como se de repente se desse conta de onde estavam. —Terminou ou pretende seguir praticando?
—Quero ensaiar a ária uma vez mais. Voltarei para casa em seguida.
—Esperarei e te acompanharei de volta.
Apoiou-se outra vez contra a parede, em uma pose de relaxada paciência. Ela notou um acanhamento peculiar.
Ela se dispôs a dar volta, mas ele negou com a cabeça.
—Se não puder praticar com um homem te olhando, como atuará em um teatro que esteja cheio deles?
«Porque isso é diferente.» Parecia uma resposta irracional, mas era diferente. O foco de dois olhos, desses dois olhos, incomodava-a mais que um oceano de rostos. A atenção de uma pessoa, dessa pessoa, agitava-a mais que uma sala de concertos cheia a transbordar. Se ao menos outra pessoa estivesse presente, isso teria servido para diluir essa conexão singular. Depois de tudo, ele esteve no salão de música e ela não reagiu assim.
Ela afastou seu olhar e tentou apagar a consciência dele, mas não funcionou. A ária começou fracamente, como se o ar encontrasse um obstáculo ao passar através de sua garganta. A obstrução fez que seu coração palpitasse nervosamente. Estúpido. Estúpido. Recuperou certa calma graças ao ressentimento por sua intrusão e encontrou seu caminho.
A música se encarregou do resto. A concentração na técnica e a expressão a absorveram. O regozijo a transportou. Entretanto, não foi como a última vez. Outro espírito se unia a ela naquela viagem, seguindo-a, empurrando-a, abrangendo-a. Ao seguir com a canção não pôde resistir a olhá-lo. Ele esperava de um modo indiferente, olhando para baixo, um homem oferecendo educadamente seu tempo antes de passar a dedicar-se a outras coisas mais importantes.
Ele notou sua atenção. Elevou seu olhar e encontrou com o dela. Ela quase se quebra em um abrupto silêncio. Os olhos dele resultavam mais desconcertantes que de costume. Sua expressão profundamente cálida, sutilmente selvagem e claramente masculina não tinha nada de paternal ou distante, e muito menos de protetora.
Deus santo foi seu canto o que tinha provocado isso?
Apesar de seu desconcerto inicial, uma surpreendente emoção a atravessou como um raio. Em lugar de vacilar sua voz remontou voo. Não podia afastar a vista dele e a ária criava entre eles uma provocadora união. Espiritual. Sensual. Quase erótica.
Um instinto de alarme a sacudiu, apesar de que uma embriagadora sensação de poder crescia. A euforia se transformava em algo inegavelmente físico entre sua fascinante conexão.
Ela não poderia ter se detido embora tivesse querido. Emoções desconhecidas impulsionavam sua voz com novas paixões. Fechou os olhos ao final, mais para conter as sensações que para saboreá-lo. As pedras sustentaram os últimos sons como o silencioso eco de um longo pulsar do coração.
Não queria abrir os olhos. Ali ocorreu algo que não queria saber, algo que não implicava palavras nem tato, mas que era mais indecoroso que o beijo de Dante. Ele devia saber. Ela devia ter parado. Não queria olhá-lo até que aquela terrível falta de fôlego se aplacou.
Uma brisa cálida a fez abrir um pouco as pálpebras e viu umas botas limpas perto de sua saia. Uma mão dele, magra e forte, tomou a sua, a levou até os lábios e lhe deu um beijo veloz.
—Seu canto é nada menos que magnífico senhorita Kenwood. Catalani ficará impressionada esta noite.
Ela teve que olhá-lo. Ele fez um gesto formal assinalando a escada. Sua expressão recuperou seu habitual autodomínio e altivez, mas a outra seguia ali, como se o manto de reserva com que ele a cobriu fosse transparente.
Guiou-a pelo caminho, dando sua mão para baixar as tortuosas rochas, uma cuidadosa representação de uma imparcial e cortês preocupação. Enquanto davam a volta ao longo da parede para chegar até o atalho, ele se deteve e elevou a vista até as ameias.
—É muito pitoresco — disse ela, esperando que um pequeno bate-papo servisse para vencer aquela estranha sensação que parecia instalada.
—Meu pai considerou a possibilidade de restaurá-lo e reconstruí-lo. Mas finalmente, em lugar disso decidiu remodelar a casa. Isto teria custado três fortunas em lugar de uma, e o resultado teria sido uma moradia apenas habitável.
—Acredito que é mais bonito tal e como está, aos pedaços e com retalhos de história aparecendo entre os arbustos. Seria uma tolice reconstruí-lo completamente e com cimento novo.
—Estávamos acostumados a brincar aqui de meninos. Dante e eu éramos os cavalheiros, e obrigávamos Pen a interpretar o papel da dama prisioneira por um malvado guardião. —Um amplo sorriso apareceu ao dizê-lo— Você pode interpretar esse papel agora.
A pequena trama que contou podia tê-la ajudado a reduzir a percepção de tê-lo de pé junto a ela, mas simplesmente não era capaz de responder com o mesmo tom.
—Brincava também seu irmão mais velho com vocês?
—Quando éramos muito jovens sim o fazia. Depois cresceu e nos deixou para trás, suponho. —Seu olhar às ameias se voltou reflexivo— Quando se fez maior se refugiou em seus próprios interesses, e em sua própria mente. Quando começou a ir à universidade já era um estranho.
—É por isso que agora quer ler suas cartas? Para conhecer coisas dele que não te permitiu conhecer enquanto vivia?
De repente moveu a cabeça e lhe dirigiu um estranho olhar, como se ela o tivesse surpreendido.
—Suponho que sim, em parte.
Sua atenção se separou das emoções para voltar a centrar-se na torre outra vez. Ela se obrigou a afastar o olhar, para a parede.
—Eu gostaria de explorar o torreão algum dia.
—Não recomendo isso. Há anos é perigoso. O passeio pela muralha também é. Não havia tantas pedras espalhadas pelo chão quando era menino.
Para enfatizar sua afirmação, uma pedra do tamanho de um punho caiu ao chão, aterrissando justo aos seus pés. Vergil olhou para cima franzindo o cenho, esquadrinhando com seus olhos as ameias. Bianca deu a volta para afastar-se.
Um ruído sinistro se ouviu acima. Outra pedra caiu, golpeando o ombro de Bianca.
De repente tudo se fazia impreciso. Ele a pegou pelo braço para afastá-la, fazendo-a apoiar-se contra a parede. Ela comprovou que se achava imobilizada, entre uma pedra dura e um corpo duro também, com os ombros abraçados por uns braços que a cobriam, seu rosto escondido contra o pescoço dele e sua cabeça apertada contra a sua. Sua vista quase já tinha se endireitado quando uma avalanche letal de grandes rochas caiu ante eles, uma delas ricocheteou sobre suas cabeças antes de cair ao chão roçando as costas de Vergil.
Ela olhou horrorizada a chuva de morte e se encolheu dentro de seu refúgio. Pareceu transcorrer uma eternidade antes que os chiados e estrondos cessassem.
Vergil elevou a cabeça para examinar a parte superior do muro.
—Toda uma parte das ameias veio abaixo.
—Uma lição apropriada para evitar o encontro com estas ruínas no futuro. Quem imaginava que a tranquila Laclere Park podia ser tão perigoso?
Ela falou presa do nervosismo apoiada contra seu lenço. O tecido azul de seu casaco acariciava suas bochechas e seus dedos descansavam na seda bordada de rosas de seu colete cinza. A comoção a colocou em um estado de alerta extremamente sensível e uma parte de sua mente, de maneira absurda, contemplava a variedade de texturas de seus objetos. E a maravilhosa segurança que proporcionava seus braços. E sua masculina fragrância.
—É possível que meu canto tenha ocasionado isto?
—O mais provável é que a gravidade tenha rematado o que o tempo iniciou. De todos os modos, as possibilidades de presenciar algo assim são mínimas. Possivelmente sua voz acrescentasse um empurrão. —Inclinou a cabeça para ver seu rosto— Está ferida?
—Acredito que não.
Uma mão deslizou ao longo de suas costas para apertá-lo brandamente no ombro.
—E aqui dói?
—Está um pouco dolorido. Mas o mais provável é que só tenha um arranhão.
Ele não a soltou. Com uma mão ainda a envolvia e a outra descansava cuidadosamente em seu braço debaixo do ombro ferido. Sentir-se protegida por sua força a tranquilizava muito.
—Isto é mais ou menos o que disse depois que o cavalo te lançou ao chão. Supõe-se que deveria desmaiar ao enfrentar tanto perigo.
Ela sabia que ele não se referia às rochas, nem aos caçadores furtivos, a não ser à proximidade física que ambos os episódios favoreceram.
Sua advertência soou tão clara como uma sereia junto a seu ouvido. Mas não pôde lhe fazer caso. Sua masculinidade a fazia sentir-se pequena e indefesa de um modo deliciosamente pecaminoso.
Ela levantou a vista para seus reflexivos olhos.
—Eu nunca desmaio.
Voltou a ver nele aquela expressão que tinha quando se achavam no cômodo de pedra, enchendo-a de maravilhosas palpitações. A mão que tinha sobre seu braço deslizou para seu ombro, para voltar a baixar.
—Não desmaia? Nunca?
Ela voltou a sentir a lenta carícia. A suave fricção criou um murmúrio de sensações. Dentro dela. Através dela. Aquela ária havia a tornado vulnerável, e o medo tinha arrebatado seu habitual autodomínio.
Devia fazer algum comentário malicioso para acabar com esse pequeno jogo, mas só queria que aqueles dedos voltassem a deslizar sobre seu braço.
—Nunca.
—Todas as garotas deveriam desmaiar ao menos uma vez.
A mão a acariciou para cima e não baixou. Foi uma lenta carícia. Delicada sobre seu ombro, quente ao passar por seu pescoço, suave em sua bochecha, firme entre seu cabelo.
Ela quase se derrete quando ele inclinou a cabeça e a beijou nos lábios.
Lábios quentes. Firmes e controlados como tudo nele. Pausados. Comedidos, mas decididos. Ele roçou sua boca com carícias antes de passar a um jogo mais sedutor. Sutis beliscões fizeram que seu lábio inferior pulsasse e tremesse. As estocadas de uma língua diabólica enviaram espetadas dispersas através de seu rosto e seu pescoço. A sensibilidade de seus seios despertou e ela instintivamente o abraçou, procurando o contato que sua profunda ternura reclamava.
Ele a apertou para senti-la mais perto e a olhou de um modo tenso e cheio de avaliação. Da garganta dela escapou um suspiro ao sentir a pressão em seu peito. Beijando-a com feroz rendição, arrastou-a até a soleira da torre, entre a luz salpicada e as pedras frias.
Apoiou-se contra a parede e a atraiu contra seu corpo em meio de um torvelinho. Seus braços a rodearam e a dominaram, segurando-a firmemente contra seu corpo e os encantos de sua boca. Beijos febris assaltaram seu pescoço e suas orelhas, despertando um frenético e insistente anseio. Seus lábios seduziram os dela abrindo-os para uma investigação interna de escandalosa intimidade.
Ela se agarrou a ele e se rendeu tonta pelas extraordinárias sensações, elevando-se impotente em meio de uma euforia em que tudo se voltava impreciso.
Era tão agradável. Glorioso. Transcendente. A exaltação de seu canto feito física. O poder e potencial da última ária convertido em substância.
Aqui. Agora. Sim. Com uma voz inaudível seu sangue estalava em demandas entre seus ofegos. Aqui. Agora. Perfeito. Escandalosos batimentos de seu corpo se uniam ao canto. Inclusive sua mente, a parte que deveria conhecer melhor, repetia uma litania de escandalosos impulsos. Suas mãos deslizaram descaradamente sob a jaqueta dele para acariciar e agarrar seus lados e suas costas.
Algo se esticou dentro dele. Ela notou uma mudança perigosa e soube que seu gesto funcionou como algum tipo de afirmação. Os braços dele a acariciaram de uma forma possessiva e seu corpo arqueado se esticou com um impulso indecente. Suas mãos começaram uma exploração através de suas anáguas e ali ficaram. Sua imperiosa paixão e o lugar para onde ele se aventurava deveria assustá-la, mas a excitação só a permitia lamentar que a quantidade de roupa se interpusesse separando-os e inibindo-os.
«Sim. Quero… Quero…» Não sabia o que. Uma fome urgente pulsava através dela, com uma origem e um destino que não entendia. «Mais perto. Mais. Eu quero…»
Como se ele tivesse ouvido seu rogo silencioso, sua mão deslizou sobre sua cintura. Mantendo o polegar em seu estômago e os outros dedos em suas costas acariciaram para cima a bandagem de seu vestido. A desejada expectativa reduziu a respiração dela a uma série de inalações entrecortadas. Um beijo surpreendentemente suave acompanhou o gesto de sua mão para seus seios.
«Oh… Oh.» As deliciosas sensações que sua carícia provocou a deixou aturdida. Atravessaram-na e fluíram através dela, unindo-se aos estímulos provocados pelos crescentes beijos que lhe dava no pescoço e os assaltos a sua boca, que obscureciam sua mente. Deu e recebeu prazer a seu desejo, e o corpo dela, afligido e sem forças só podia aceitá-lo e submeter-se, muito ignorante para oferecer mais que consentimento ao ardor que ambos liberavam e subjugavam.
Os dedos brincavam com o tecido que cobria seus mamilos, duros e ardentes… «Sim…» Procurando agora o babado de seu decote… «Por favor…» Deslizando sob o tecido para explorar o novo desenfreio da pele contra a pele… «Ah, sim…» Seus braços a atraíram mais perto, com mais dureza, e um joelho dele pressionou entre as anáguas e a saia, a pressão foi vergonhosamente bem recebida… «Oh… Céus…» O vestido começou a soltar-se enquanto o corpo da manga deslizava pelo braço e uma mão elevava seu seio nu para uma cabeça morena… «Oh…» Ele o acolheu na umidade de sua boca e com seus quentes lábios iniciou um tortuoso percurso desde umas suaves mordidas até… «Oh…» Uns lamentos escandalosamente excitantes… «Oh…» Deliciosas correntes de prazer desceram por seus poros, enchendo-a, exigindo mais…
…Um movimento, um fraco rangido, ressoou entre as pedras.
Ele se endireitou bruscamente, cobrindo a nudez dela com seu peito, rodeando-a com seus braços para protegê-la enquanto escutava atento. O possível significado daqueles sons abriu passo através dos aturdidos sentidos de Bianca, destruindo o mundo de sensuais sonhos e fazendo-a voltar sem piedade para a realidade.
—Há alguém…? —sussurrou, apertando os dentes contra o lento desdobramento de sua excitação física. Ainda podia ouvir algo, era mais a vibração transportada através do muro que um som real. Incomodava como uma invasão entre os batimentos de seus corações.
Subiu a alça da blusa e a manga do vestido, logo a afastou.
—Fique aqui.
Caminhou a grandes pernadas até a torre. Ela lutou freneticamente contra seus objetos, conseguindo com muita dificuldade recompor seu vestido, experimentando a severa culpa de um criminoso surpreendido no ato do delito. Um abismo se abriu em seu coração.
Se alguém os visse, seria desastroso.
Podia ouvi-lo caminhando ao redor. O largo abismo se converteu em um enjoo, um imenso vazio. Cobrou consciência de seu comportamento como se recebesse um golpe. Aquilo tinha sido uma loucura. Ela tinha atuado de forma desavergonhada. Eles nem sequer se gostavam.
Ouviu-o voltar e tentou fortalecer seu ânimo.
Apareceu ante a soleira, uma forma magra e escura rodeada de luz. Ela não podia ver bem seu rosto.
—Se havia alguém aqui, já se foi. Deve ter sido tão somente um animal.
Ela rezou para que assim fosse, e esperava que se alguém veio da casa para explorar o torreão, não tinha esquadrinhado de perto a entrada da torre.
Ofereceu a mão em um gesto enérgico para fazê-la seguir. Ela se perguntava o que se suporia que deveria fazer ou dizer uma mulher depois de um comportamento tão descarado, e sentiu quase náuseas ante tanta confusão e vergonha. Empreenderam o caminho de volta para casa.
Ele não disse uma palavra. Para ela foi o quilômetro mais longo que já caminhou em sua vida.
Tentou achar consolo na ideia de que tinha demonstrado que era muito perigosa para estar perto de Charlotte, mas a ideia de abandonar Laclere Park estranhamente incrementou sua consternação.
Ele se deteve ante as árvores próximas ao estábulo.
—Faltam-me as palavras, senhorita Kenwood. Meu comportamento foi abominável, e me desculpar não é suficiente. Prometo que não tenho o costume de pressionar às mulheres jovens desta forma. A única explicação que posso dar é que não era eu mesmo esta manhã.
«Não o foi?» de repente o que ocorreu não resultava tão surpreendente tratando-se desse homem. Pareceu que o acontecido era uma consequência natural de seu caráter, um pouco controlado, mas que sempre estava ali, como uma corrente subterrânea sob a calma, uma corrente percebida, mas nunca vista e impossível de nomear. Esta produziu tensão entre eles desde o começo, como uma maré perigosa. Ela havia sentido seus efeitos, mas até hoje não os tinha entendido.
Ele seguia com os olhos sobre o atalho, sem olhá-la. Com suas palavras assumia a culpa, mas ela se perguntou o que pensaria realmente. Que demonstrou que não podia viver como uma monja? Que sua natureza era a de uma cortesã e ele deveria permitir que conseguisse a ruína que procurava? «Pressionar» não descrevia realmente o que ocorreu e os dois sabiam.
—Não fui prejudicada.
—Se nos vissem, definitivamente sim seria prejudicada.
—Eu não acredito que nos viram. Se alguém se aproximasse da entrada da torre, teríamos percebido.
—Se tivesse razão, isso só evitaria as piores das possíveis repercussões. Não pode negar que minhas ações foram indesculpáveis e desonestas, sobre tudo porque sou responsável por você. A comprometi, e não importa se alguém sabe ou não. Se você o exigir, farei o correto contigo.
—O correto? Quer dizer… Oh, não, essa é uma ideia absurda.
—Certamente promete ser uma ideia complicada, considerando… Bom… Enfim, complicada. De todos os modos…
—Não nos deixemos levar por seu senso de decoro e de dever, por favor. Não me sinto comprometida, nem arruinada.
Depois de dizer isto recebeu um severo olhar.
—Ah, não? É uma jovem extraordinariamente serena.
Aí estava. A insinuação de indecorosa cumplicidade por sua parte. Em realidade o animou, se a pessoa quisesse olhar as coisas com franqueza. Aquele olhar e aquela pergunta revelavam o que ele tinha em mente, e era difícil culpá-lo, considerando todas as ambiguidades que deliberadamente deixou cair com respeito a suas experiências.
—Digamos que não me sinto tão comprometida para recorrer a uma medida tão extrema como o matrimônio. Possivelmente simplesmente deveríamos esquecer este assunto.
—Sua equanimidade me impressiona. Deveria estar agradecido de que se mostre tão compassiva.
Não se sentia absolutamente compassiva. Sentia-se transtornada, desolada, decepcionada. Descer daquela glória a essa discussão formal sobre como expiar a poderosa experiência que compartilharam… Dava vontade de feri-lo, de bater nele, de dar uma bofetada que vencesse essas frias considerações sobre como retificar sua imprudência.
—Simplesmente não desejo complicar as coisas mais que o necessário, especialmente de um modo que me faria perder o controle sobre meu futuro e requereria um sacrifício por ambas as partes que levaria a uma vida inteira de infelicidade. Não me casaria contigo fosse qual fosse o escândalo que me ameaçasse. Entretanto, nossas futuras relações se tornaram embaraçosas. Acredito que será melhor que aceite minhas preferências a respeito de minha estadia na Inglaterra. Jane e eu encontraremos uma casa em Londres e…
—Serei eu que me afastarei. Minhas visitas a Laclere Park serão pouco frequentes e breves durante os próximos meses.
—Isso é muito injusto com suas irmãs.
—Quando você for à cidade passar a temporada minha presença será inevitável, mas por então possivelmente o tempo terá atenuado minha ofensa.
Ele não queria dizer isso. Sabia que não tinha sido realmente uma ofensa. Não se podia dizer que a tinha forçado ou forçado a si mesmo.
Ela deu a volta, aliviada e ao mesmo tempo triste por saber que depois daquela festa seriam muito poucas as ocasiões em que o veria.
Capítulo 7
Vergil estava certo. Ela seria uma amante esplêndida.
Tentou impedir aquele pensamento enquanto cavalgava de volta para as ruínas. Dava voltas em sua cabeça, uma reação absolutamente desonrosa de um homem que sucumbiu a desonrosas inclinações.
Seu comportamento foi vergonhoso. Censurável. Enlouquecido.
Isso não o impedia de voltar a rememorar e experimentar o contente consentimento que ela mostrou. Sentiu em sua boca seus suaves lábios e seus doces peitos. Explorou sua vibrante excitação com a pressão de seu joelho.
Se o intruso não os tivesse interrompido, a teria levado ao cômodo e teria feito amor até que as pedras ressonassem com seus gritos.
E ela permitiria.
Parou e bateu a palma da mão contra uma árvore, em busca de uma realidade tangível que pudesse destruir o desejo que voltava a dominá-lo.
«Confusa», havia dito Dante.
Maldita seja, sim era confusa.
Ela nem sequer gostava dele. Raramente falavam sem discutir. Ele esteve rondando em sua presença os últimos dois dias, mas ela nunca o buscava. E que então se lançou para cima sem nenhum tipo de inibições…
Caminhou com passo decidido através das árvores, possuído por um estado de ânimo perigoso. A calma que ela mostrou no estábulo foi mais que perturbadora. Exasperante. Quase para ruborizar-se. Uma serenidade total. Ele foi uma mescla desordenada de impulsos contraditórios, enquanto que ela se mostrou incrivelmente tranquila. «Não fui prejudicada.»
«Quase te arranco a roupa e te atiro ao chão sobre uma pedra.»
«Não me sinto comprometida, nem arruinada.»
«Bem, maldita seja, eu sim. Os homens que seduzem suas pupilas são repugnantes.»
«Não me casaria contigo fosse qual fosse o escândalo que me ameaçasse.»
Parou na borda da clareira do castelo com essas palavras ecoando uma e outra vez em sua memória.
Ele deveria se sentir agradecido ante seu terminante rechaço. Mas em vez disso experimentou uma ira irracional. Em parte porque sua serenidade o fazia perguntar-se se tudo teria sido para ela simplesmente um jogo caprichoso. E, sobre tudo, porque sua determinação o fazia cobrar consciência do fato deprimente de que ela jamais seria sua da forma em que ele queria.
Menos mal. Seria uma amante esplêndida, mas uma esposa impossível.
Deixaria que Dante se arrumasse com ela.
Essa ideia incitou nele um ressentimento primitivo e possessivo. Tentou reprimi-lo esforçando-se para concentrar-se nas ameias do castelo.
Uma escada se elevava em uma das bordas do muro, tão danificada que faltavam todos os degraus. Só podia subi-la esticando as pernas em busca de perigosos pontos de apoio para os pés. Uma pequena seção de rochas caiu sobre a erva enquanto escalava. Detinha-se a cada momento, tentando identificar se o som se parecia com aquele que tinha ouvido quando sustentava Bianca na torre.
Acima no caminho da muralha existiam ocos. Alguém tinha substituído algumas zonas desaparecidas com madeira nova, mas outras consistiam em fragmentos de tábuas podres, que sem dúvida não haviam sido reparados ao menos há um século.
Avançou com cuidado até chegar ao ponto do muro onde um enorme dente das ameias se desprendeu por completo. Aí abaixo se via o novo montão de pedras. «Quem teria imaginado que a tranquila Laclere Park podia ser tão perigosa?»
Uma questão endiabradamente certa.
Examinou a rugosa superfície onde as pedras se encontravam até tão pouco tempo e apalpou a argamassa das pedras que ainda se sustentavam em pé. As ligaduras podres caíam em uma pequena chuva de pó, unindo-se com um montão de pedrinhas a seus pés.
Nada parecido podia ver-se no resto das ameias. Examinou a superfície das pedras outra vez, procurando o rastro de alguma ferramenta. Podiam ser fruto de sua imaginação os sutis arranhões provocados por um instrumento metálico?
Caçadores furtivos disparando armas de fogo e depois uma muralha que vinha abaixo. Possivelmente tão somente fosse uma coincidência. Não havia nenhuma evidência do contrário. De todos os modos não gostava disso.
Desceu da muralha, procurando alguma prova de que alguém mais tivesse estado ali recentemente. Os sons da torre de pedra rondavam em sua memória. Não ouviu ninguém caminhando pelo atalho. Entretanto, aquele intruso podia ter sido simplesmente um dos convidados explorando o pitoresco castelo Laclere Park.
Retornou para casa. Quando passou ante a sala do café da manhã, viu Bianca em uma mesa na companhia de Cornell Witherby e Daniel Saint John.
Ela sorria e ria ante alguma brincadeira de Witherby.
Que incrível serenidade.
Provavelmente para ela só foi um jogo caprichoso, uma maneira de demonstrar ao santo que não era tão puro. «Possivelmente simplesmente deveríamos esquecer este assunto.» Dirigiu-se a seu escritório dando grandes passos, ressentido até a medula por um ponto de honestidade que admitia que enquanto ela poderia ser capaz de esquecê-lo, ele certamente não era.
«Eu nunca desmaio.»
«Por mim o fez!»
Estava reagindo como um moço inexperiente e isso o irritava ainda mais. Enviou um lacaio para procurar Morton, depois se recostou em sua poltrona e pegou alguns papéis.
Morton chegou quando estava terminando seu escrito.
—Quero que esta carta dirigida ao advogado de Adam Kenwood seja enviada a Londres pelo correio urgente — disse enquanto selava a missiva— Leva-a ao povoado pessoalmente agora mesmo. —Pôs a carta entre os grossos dedos de Morton— Ficará aqui quando voltar a partir para o norte. Eu não gosto da ideia de deixar à senhorita Kenwood em Laclere Park sem ninguém que a vigie.
—Acredita que corre algum outro perigo?
Vergil sabia que Morton empregava a palavra «outro» porque estava pensando no perigo que todas as mulheres belas corriam estando perto de Dante.
Possivelmente corria esse perigo. Ele não sabia. Entretanto, considerando os caçadores furtivos, as paredes que desabam e os assaltos do visconde Laclere, o perigo de estar perto de um libertino era muito menos preocupante.
***
Depois do jantar Bianca se achava sentada entre Fleur e a senhora Gaston, conversando com Pen e Cornell Witherby.
—Será uma série de epopéias — explicava à senhora Gaston— Vendidas por assinatura, embora financie a impressão. O poema do senhor Witherby será o primeiro.
Cornell Witherby sorriu modestamente. Penelope lhe dedicou um olhar cheio de admiração.
A senhora Gaston tinha a si mesma como uma rainha aceitando comemorações e oferecendo favores. Seu cabelo castanho avermelhado brilhava como o cobre à luz da lareira, e a satisfação que sentia ante sua própria importância se deixava ler em seu rosto.
—Enquanto nós falamos os impressores já estão trabalhando. Espero que cause sensação e que se necessitem mais edições. Não pelos benefícios materiais, é obvio. Pelo alcance das pessoas de bom gosto e sensibilidade o prodigioso talento do senhor Witherby é minha meta.
Falava como se o conselho divino ditasse seu trabalho, mas Bianca suspeitava que a importância que se outorgava ao ser patrocinadora a motivava muito mais que seu amor pela arte.
—Quais serão os outros poetas? —perguntou Fleur.
O que seguiu foi uma discussão sobre os méritos dos jovens poetas que poderiam merecer o mecenato.
Bianca mal ouvia o que diziam.
Passar a tarde desfrutando da doce companhia de Fleur provocou um horrível sentimento de culpa. A fria amostra de cortesia de Vergil deixou um vazio devastador. Um relógio interno advertia o passo de cada minuto daquele comprido dia com tic-tacs de agonia.
Tentou não voltar a olhar Vergil, nem dirigir-se a ele, mas era consciente dele a cada instante. Sentia sua presença quando estava perto. Ouvia cada palavra que dizia, inclusive embora se achasse na outra ponta da estadia.
Duas Biancas reagiam ante cada movimento dele. A velha Bianca, a inteligente, catalogava seus defeitos com uma ira mordaz. Mas havia uma nova que rezava para obter algum sinal por parte dele. Esta nova Bianca se rebaixava com lastimosos suspiros, mas a velha Bianca não podia fazê-la desaparecer.
De algum modo, de algum modo, superaria esse dia.
—… Haverá terríveis problemas se revogarmos a Ata de Combinação — entoou lorde Calne enquanto ele, Vergil e o senhor Saint John caminhavam para o pequeno grupo— Se se permitir que as classes mais baixas se agrupem, a ordem se verá ameaçada. Não podemos permiti-lo. É muito perigoso. Poderia terminar como a França em 93. Lamentará Laclere.
Pequenas chamas apareceram nos olhos de Daniel Saint John. Olhou lorde Calne como se fosse um imbecil.
—Parece como se soubesse muito pouco sobre o que aconteceu na França. Do contrário entenderia que as pessoas não podem viver para sempre com uma bota pisando em sua cabeça.
O rosto de lorde Calne ficou vermelho.
Vergil falou de forma apaziguadora.
—A Inglaterra não pode apoiar sua política nos excessos do povo francês de uma geração anterior, Calne.
—Oh, Deus nos libere. Política! —Cornell Witherby protestou brandamente, dirigindo-se às damas— Não serve nada mais que para a sátira.
Um calor especial brilhou em seus olhos ao dirigir seu bom humor para Pen, que ria. Parecia que Dante estava certo a respeito de sua amizade especial.
Sentindo-se em um estado de ânimo crítico em relação aos homens, Bianca o esquadrinhou minuciosamente. Aparentava uma boa figura e era de meia altura, mas sua postura tinha uma severidade muito pouco poética, como se uma vara de aço tivesse sido soldada a sua coluna. O cabelo loiro caía sobre sua testa e suas bochechas. Seu rosto era talvez um pouco alargado, mas era um homem atrativo ao redor de vinte e cinco anos de idade.
O fato de que cortejasse uma mulher que oficialmente estava casada não contava nada nas considerações de Bianca a respeito de ser bom para Pen. Muito mais significativo que isso era a atitude de absoluta devoção que tinha ao olhar para Penelope.
Ela jamais viu Vergil olhando daquele modo a uma mulher, nem sequer a Fleur. Quando o visconde Laclere examinava uma mulher, ela tinha a impressão de que estava avaliando seus defeitos.
Naturalmente isso não ocorreu quando a escutou cantar.
E decididamente tampouco ao beijá-la.
Nem ao lhe tirar o vestido.
Nem…
—Bom, ao menos essas liberações políticas mantêm seu impressor ocupado — disse a senhora Gaston.
Witherby suspirou.
—Foi só para dar suporte às artes literárias que aceitei o passatempo dessa imprensa. Preferiria dizer aos homens que rechacem qualquer comissão que não tenha a ver com poesia. Entretanto, os panfletos servem estupendamente para custear os trabalhos importantes. Assim ocorre com o patrocínio de grandes damas como você.
A senhora Gaston pareceu agradada com a adulação, e com seu êxito ao desviar a atenção para ela.
—Anular é uma necessidade moral. É uma falta de sentido proibir a homens livres assembleias livres — dizia Saint John aos homens que se achavam de pé perto.
—Se estiverem tão insatisfeitos deixemos que se vão —disse a senhora Gaston, unindo-se à conversa— Uma passagem grátis a Austrália para os que estejam descontentes. Não entendo por que ninguém propõe uma coisa assim. Para mim é uma saída completamente lógica.
—Se dá a todos os homens a oportunidade de votar, poderão decidir sobre seu futuro e estarão menos descontentes — disse Saint John.
—Acaso a multidão de Manchester deveria decidir as leis? —perguntou lorde Calne— A Câmara dos Comuns já está bastante alterada para acrescentar radicais e irlandeses.
Pen dirigiu a Saint John um sorriso suplicante e tranquilizador. O qual reprimiu a resposta destrutiva que pensou.
—As pessoas de Manchester não são uma multidão — disse Vergil— Eles estão ajudando a Inglaterra a se converter na nação mais rica do mundo. As cidades industriais como Manchester não podem continuar sendo privadas do direito ao voto por regras de distrito redigidas há séculos. É inevitável uma reforma do Parlamento.
Pen olhou seu irmão pondo os olhos em branco, a modo de reprovação por seguir alimentando a discussão.
Lorde Calne parecia estar sofrendo uma espécie de apoplexia.
—Antes me condeno no inferno. Se apoiar isso, Laclere está traindo seu sangue. Essas cidades do norte são lugares terríveis. Sujas de fábricas e máquinas e homens vis enriquecendo-se com comércios fétidos. Ouvi que é pior que em Londres. Não, me dê o ar limpo do campo e uma boa caçada. Nunca permitiremos que nos arrebatem isso.
Pen viu sua oportunidade.
—E como vai à caça em sua fazenda este ano? Podemos esperar as habituais caçadas magníficas?
—Parece boa, parece boa. Embora haja uma batalha contínua com os caçadores furtivos. Terei que levar cinco homens para as reuniões do trimestre.
A mudança de tema deu a Bianca uma oportunidade para escapar da proximidade de Vergil. Desculpou-se.
Os homens menos predispostos à política se dispersaram pela estadia. Nigel falava com Catalani e com a senhora Monley perto da janela. Seu primo a olhou com um caloroso e acolhedor sorriso quando ela passou ante ele.
Bianca se uniu a Diane Saint John, Charlotte e Dante.
Estavam falando sobre os dois filhos dos Saint John. Dante mostrava mais interesse nas travessuras dos pequenos meninos do que Bianca esperava, mas se aproximou para sentar-se a seu lado assim que ela chegou e permitiu que as damas conduzissem a conversa.
—Esteve muito calada hoje — disse ele em voz baixa— Espero que não esteja afligida por meu mau comportamento.
Ela quase esqueceu aquele beijo na biblioteca.
—Estou afligida ante tantos rostos novos. Tenho poucos temas que tratar com eles.
—Bom, aqui vem Saint John. É dono de uma companhia naval, como foi seu avô, assim tem algo em comum com ele.
Daniel Saint John se afastou da companhia de lorde Calne e se aproximava deles.
—Saint John, você conhecia Adam Kenwood, verdade? —perguntou Dante para facilitar as coisas a ela.
—Conheci-o sendo muito jovem. De fato, minha primeira viagem quando era um moço foi a bordo de um de seus navios. Muito antes que ele se dedicasse às finanças, é obvio.
—Quando ocorreu isso? —Bianca se sentiu obrigada a continuar a conversa, já que Dante iniciou por ela.
—Faz anos. Vendeu seus navios… Faz coisa de uns dez anos.
—Navegou com ele bastante tempo?
—Não, somente uma vez. Abandonei o navio ao chegar às Antilhas e encontrei um camarote com outro capitão.
—As regras de meu avô não o atraíam, suponho.
—Seu avô não era o capitão. Só era o dono dos navios e organizava os carregamentos. Eu simplesmente decidi navegar em outra parte.
Estava mentindo. Bianca estava segura disso por essa forma de falar muito educada.
—É estranho que vendesse todos os navios de uma vez — disse Dante— Ter uma frota de navios e no dia seguinte de repente ficar sem nenhum…
—Dado que comprei dois estava encantado de que o fizesse — disse Saint John.
—O que transportavam seus navios? —perguntou Bianca.
—Todo tipo de mercadorias, suponho, como meus.
Ela tinha a sensação de que o senhor Saint John se limitava a agradá-los, e não estava sendo muito franco. Dante tinha razão, era estranho que seu avô vendesse todos os navios de uma vez, não importava o que dissesse este outro comerciante marítimo.
Não teve tempo de pressioná-lo para conseguir uma explicação mais clara, porque Pen se dirigiu até o centro da estadia e reclamou atenção.
—Temos a sorte de contar com vários músicos consumados entre nós esta noite, e eu abusei de dois deles, o senhor Nigel Kenwood e a senhorita Bianca Kenwood, pedindo a eles que nos ofereçam uma atuação. Passemos com eles ao salão de música e os ofereçamos nossa agradecida atenção.
Ela mesma abriu caminho. Dante se dispôs a acompanhar Bianca, mas o senhor Saint John reclamou primeiro sua atenção.
—Parece que Catalani sabe quando deixar passo aos jovens.
—É amável por sua parte dizer isso, mas duvido que ela tema que eu possa lhe fazer concorrência.
—Cedeu a atuação por uma razão. Sabe que seu instrumento já não é o que era. —Pôs a mão dela entre seu braço enquanto caminhavam com o passar do corredor— Nervosa?
—Horrivelmente nervosa. Ansiava que chegasse este momento, e agora…
—Então isso explica seu ar distraído de hoje. Minha mulher me comentou isso. Ela é muito observadora a seu modo silencioso, e temia que você estivesse preocupada com algo. Se sentirá aliviada ao saber que se tratava de seu medo de cometer alguma estupidez na atuação de esta noite. Lhe direi que se tratava disso, e que é perfeitamente normal.
Não o era. Não para ela. Mas isto era diferente. Durante todo o dia a tinha aterrorizado a ideia de que chegasse esse momento. Voltar a cantar essa ária, diante de toda essa gente, com ele sentado ali… Algo se retorcia em seu interior com cada passo que dava.
Nigel ocupou seu lugar ante o piano. Os convidados se sentaram nas cadeiras colocadas ante ela. Vergil escolheu permanecer de pé junto à parede, perto de Fleur.
Ela o olhou, esperando um sorriso de boa sorte. Ele não se deu conta, pois se inclinou para dizer algo a sua prometida. Seu coração se encheu. Estava tão atrativo com seu casaco de um verde escuro e suas calças nata, com suas mechas onduladas emoldurando seu rosto e seus olhos azuis iluminados com um brilho de humor enquanto sorria a sua dama.
Deu-se conta com um sobressalto de que Nigel começou a introdução. Ela lutou para preparar-se.
Da outra ponta da estadia, Vergil a olhou.
Ela falhou. Essa primeira nota simplesmente não saía. Voltou-se para Nigel com desespero, suplicando sem palavras. Ele improvisou até que voltou a levar a melodia ao princípio outra vez. Ela se concentrou no chão e conseguiu acalmar-se. Ao levantar a vista viu um casaco verde deslizando através da porta.
«Obrigado.»
Afinou cada nota com precisão, mas sua alma não estava totalmente implicada nelas. Vergil podia não estar presente na sala, mas se achava em sua cabeça, confundindo-a com aquele olhar alarmante, misturando-se em seu espírito com lembranças indecorosas. Aquela ária não soou como a última vez nas ruínas, com sua emocionante exaltação. Uma emoção diferente gotejava desta vez. Um estranho oco existia em seu interior e a música o levava mais profundo e o enchia com um penetrante e doloroso desejo. Ao acabar ela não sabia se a atuação tinha saído bem ou não.
—Esplêndido, prima — sussurrou Nigel no meio do silêncio que se produziu.
O esforço a deixou imersa em uma névoa de melancolia. Deu uma olhada à expressão pensativa de Catalani enquanto recebia os elogios de outros convidados.
Catalani caminhou para ela, puxou-a pelas mãos e a afastou para um lado.
—Os anos me tornaram cética, e confesso que esperava uma voz bonita, adequada para salões e Igrejas. Estava equivocada. Possui um grande talento, querida. É excepcional.
Qualquer outro dia o julgamento de Catalani teria produzido euforia. Essa noite tão somente acrescentava um grande nó a mais ao matagal de emoções que a confundiam.
Pen encabeçou a marcha para a biblioteca para jogar cartas, mas Bianca se desculpou, dizendo que queria retirar-se. Seguiu à comitiva através do corredor, mas se desviou ao chegar à escada. Nigel se separou de outros.
—Esperava que nos encontrássemos jogando na mesma mesa, prima.
—Seria uma má companhia esta noite. A emoção de cantar com Catalani presente…
—É obvio. Entendo. De todas as formas agradeceria poder passar um momento mais contigo. Muito em comum, prima. Eu gostaria de te conhecer melhor.
Por mais que insistisse em usar a palavra «prima», por mais que empregasse um tom formal e correto suas intenções saíam à luz. O interesse que sentia por ela brilhava em sua expressão. Ela suspeitou que se naquele momento se achassem sozinhos no jardim Nigel teria tentado beijá-la.
Três homens em dois dias. Ela não tinha ideia de que fosse tão fácil voltar-se promíscua.
A experiência daquela manhã a havia tornado cínica. Possivelmente o interesse de Nigel fosse honesto.
—Se juntará com os outros para cavalgar amanhã pela manhã? —perguntou ele.
Pen organizou para todos uma visita pela fazenda, que terminaria com um almoço nas ruínas. Retornar ali tão cedo seria horrível.
—Não acredito. Não me encontro bem, ficarei aqui descansando.
Abriu-se a porta do estúdio que dava ao corredor. Dela emergiu a alta figura do visconde Laclere, que se dirigia à biblioteca. Ao vê-los se deteve, ficando de pé ante eles como uma sentinela. Nigel o olhou e a seguir dirigiu a ela um sorriso íntimo.
—Eu gostaria de falar contigo em algum momento em que seu guardião não esteja me olhando por cima do ombro. Os dois estamos sozinhos no mundo, e os parentes podem ser uma fonte de consolo. Se alguma vez necessitar minha ajuda, espero que venha a mim.
—É muito amável por sua parte me fazer essa oferta. Agora deveria se unir aos outros, eu preciso estar sozinha.
Vergil não se moveu, nem sequer quando Nigel passou ante ele lhe dirigindo uma saudação e entrou na biblioteca. Simplesmente seguia ali de pé, olhando-a. Ela queria girar a cabeça e afastar-se com altiva indiferença. Mas não podia mover-se.
—Retira-se?
—Sim. A noite foi uma prova.
—Eu acredito que a noite foi um triunfo. Escutei você. Superou a si mesma. Quanto ao dia, suponho que foi uma prova, e me desculpo por isso.
Ela não queria voltar a ouvir nada mais a respeito de suas desculpas.
—Os papéis pessoais de seu avô chegaram esta manhã — disse ele— A maioria das caixas está em meu escritório para que não a incomodem, mas separei as que correspondem aos anos em que seu pai vivia com ele e as mandei levar a seu quarto, junto com o que havia no escritório.
—Obrigado. —esforçou-se para mover-se e chegar até a escada.
—Há algo mais. Devo insistir em que não deve voltar a sair sozinha pela manhã cedo.
—Está preocupado por minha virtude? — A pergunta surgiu sem que ela pudesse impedir.
Ele nem sequer teve a decência de mostrar-se envergonhado.
—Estou preocupado por sua segurança.
—Irei onde queira e ensaiarei sempre que puder.
—Não pela manhã, e não sozinha. Se quiser praticar em privado e se preocupa que em seu quarto possa incomodar os outros, usa meu escritório. Mas não saia da casa.
—Continua cortando a correia, Laclere. Por que não me ata ao pilar da cama?
Seus olhos azuis a olharam de uma maneira que nada tinha a ver com o que usou nas insossas admoestações que acabava de lhe fazer.
—Tem talento para provocar as imagens mais surpreendentes, senhorita Kenwood. —deu a volta— Até amanhã então.
Jane a esperava em seu quarto. Sentia-se bem ao poder estar a sós com alguém que a conhecia há anos.
—Os convidados realmente o passam bem, verdade? —disse Jane— Todos esses homens bonitos com seus trajes elegantes.
Jane viu aquela viagem desde o começo como uma boa oportunidade para que Bianca encontrasse um marido. Nunca reconheceu que a falta de pretendentes em Baltimore era voluntária; o resultado de esmeradas dissuasões.
—Esse senhor Witherby parece prometedor. Um cavalheiro conforme se diz, e bastante atrativo.
—Suspeito que se interesse por Penelope.
Jane franziu o cenho.
—Por uma mulher casada? Separada ou não, isso é o que é. Bom, o visconde está fora de jogo. Está a ponto de prometer-se à senhorita Monley. E menos mal. Quem iria querer um homem tão estrito e severo? Sempre fica o irmão mais jovem de Charlotte, embora se diga…
—Sei o que se diz.
Jane a ajudou a colocar a camisola.
—Todos esses homens solteiros e nem sequer uma paquera? Quem ia esperar que a Inglaterra fosse tão aborrecida.
Algo menos aborrecida, e o de paquera não serviria nem para começar a descrever até que ponto estava se convertendo no contrário do aborrecimento.
—Meu primo Nigel me deu a conhecer seu interesse.
—Nunca gostei da ideia de que os parentes se mesclem. Não é bom juntar o sangue.
—É um parente bastante longínquo.
—Certo. Só que ouvi dizer embaixo que se parece muito a Dante. Vive endividado. Não pode permitir-se essa vida tão elegante. Seu avô deixou a você a maior parte do dinheiro. Diz-se que seu primo só tem dinheiro suficiente para manter o imóvel, e que tudo está disposto de forma que não possa acessar mais que os ganhos correspondentes para cada ano.
—Onde se inteira de todas essas coisas?
—Os criados daqui conhecem os poucos criados que ficam ali. Os arrendatários falam entre eles. É igual em nossa vizinhança. Tudo entra através da porta da cozinha — disse Jane— Se ele expressou esse tipo de interesse, deveria saber que pode ser como Dante em outros sentidos também. Parece que seu primo não está sempre só nessa grande casa. Uma mulher o visitou secretamente a semana passada. Segue meu conselho. Não acredito que queira o interesse desse homem.
Bianca não queria o interesse de nenhum homem. Rotundamente não. Nada mais que distrações, isso é o que eram os homens. Potencialmente distrações permanentes, assim funcionava o mundo. E, como ela vinha aprendendo a trancos e barrancos, fontes de dor e confusão.
Ansiava adormecer, mas sabia que só ocorreria quando estivesse completamente esgotada. Quando Jane saiu, aproximou as velas às caixas e ao baú, empilhados perto da lareira, e se sentou no chão para descobrir o que podiam revelar.
Uma chave estava na fechadura do baú. Girando-a abriu a tampa para examinar o conteúdo do escritório de Adam Woodleigh.
Tocou as plumas e o tinteiro barato. Buscou entre papéis cheios de escritas. Um tinha escrito o nome do irmão de Vergil, junto com outros, e ela supôs que foram os últimos que seu avô escreveu.
Uma pilha de cartas, atadas com um barbante, chamaram sua atenção. Estava a ponto de abri-las quando viu a saudação que encabeçava a primeira. Escrito pela mão de um homem, dirigia-se a Adam como «Meu mais querido amigo».
Com uma saudação como essa não podiam ser de seu pai. Provavelmente seriam do anterior visconde. As daria a Vergil.
Em um pequeno estojo de couro encontrou uma miniatura de uma mulher loira. Imaginou que seria sua avó. Encontrou certo parecido com seu pai, e a assaltaram lembranças de seu amor e sua nobre honestidade. Sua garganta ardia como se uma velha dor se unisse as novas.
Uma flor seca caiu em seu colo enquanto devolvia a diminuta pintura a seu ninho de veludo.
A flor não parecia muito velha. Não se desfez ao tocá-la, parecia que estava a anos naquele estojo.
Imaginou um homem velho recolhendo uma flor no jardim quando saía para caminhar e abrindo mais tarde esse estojo que continha a lembrança de sua esposa. Imaginou Adam lhe deixando essa pequena oferenda.
Fechou de repente o estojo. Não queria ficar sentimental com esse homem. Provavelmente a flor esteve ali sempre e foi sua avó quem a colocou ali.
O outro baú continha pastas. Adam foi um homem organizado, cada pasta correspondia há um ano e dito ano estava escrito na parte dianteira. Ela procurou as correspondentes aos anos em que ainda não tinha nascido, justo quando seu pai abandonou a Inglaterra.
Levou algum tempo encontrar o ano preciso. Não sabia que seu pai viajou a América ao menos seis anos antes que ela nascesse.
Era uma pasta magra com umas poucas cartas. Três eram de seu pai. Leu-as e compreendeu a razão pela que Adam Kenwood e seu filho se separaram.
Não foi por causa de sua mãe. Ocorreu antes que seus pais se conhecessem. Vergil estava certo a respeito do ocorrido. Seu pai rompeu a relação. Em uma carta onde rechaçava a oferta de uma pensão por parte de Adam expôs as razões.
As explicações esvaziaram seu coração das últimas frestas de alegria e confiança. O sonho que a sustentou desde a morte de sua mãe balançou como se seus alicerces tivessem sido atacados. A herança de repente a golpeou como uma brincadeira malvada, um chamariz do diabo para fazê-la pecar.
Não era para menos que seu pai tivesse dado as costas à fazenda e ao status que Adam edificou.
Seu avô fez sua primeira fortuna com o comércio de escravos.
CONTINUA
Vergil Duclairc é um homem acostumado a vencer. Como recém-nomeado tutor da senhorita Bianca Kenwood, está decidido a encontrá-la e devolvê-la ao lar custe o que custar, embora a última coisa que podia imaginar era achar sua pupila vestida de modo escandaloso cantando em um teatro de duvidosa reputação. Mas ainda estava menos preparado para a implacável atração que sentiu por ela somente em vê-la, um desejo que não pode permitir deixar fluir por medo de desmascarar segredos que jurou guardar.
De sua parte, Bianca não está disposta a abandonar sua independência, mas há algo irresistível no belo e persistente visconde Duclairc que o converte não só no administrador de sua herança, mas também no dono de seu coração. A jovem descobrirá em seguida que Vergil é um homem de profundos segredos e de uma sensualidade perturbadora a qual não se pode resistir. Quando suas vidas estão a ponto de mudar e seus caminhos a se separar, crescerá entre ambos uma paixão que os permitirá lutar contra o mundo ao qual pertencem.
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Capítulo 1
O canto de Jane Ormond, que Vergil apreciava a contra gosto, não apaziguou sua ira nem um pouco. Lamentava terrivelmente não poder jogá-la na prisão de Newgate, a que pertencia.
Ia vestida como uma rainha francesa do século passado, mas não parecia cômoda em seu papel. Movia-se com rigidez, como se temesse que a alta peruca branca caísse ou que o miriñaque[1] do vestido inclinasse. A confiança de sua voz contrastava com sua fragilidade física. E sua pose de profissional cheia de segurança destoava durante os breves momentos de vulnerabilidade.
Ele não se sentia deslumbrado com seus estudados encantos. Com seus olhos grandes, seus lábios carnudos e sua insinuada fragilidade, aparentava o tipo mais perigoso de inocência, dessa que impulsionaria um homem a sacrificar sua vida com o objetivo de protegê-la, mas que também poderia despertar outra parte escura, e conseguir que esse mesmo homem se imaginasse lhe arrancando a roupa e destruindo essa inocência.
Moveu-se em direção a ele, levantando a cabeça para cantar as notas mais altas em uma exibição vocal. Seus olhares se encontraram. Por um momento apareceu em seu rosto um brilho de curiosidade, como se percebesse que ele não estaria ali se não fosse pelo dever.
Ele sabia que não havia nada em sua aparência que pudesse revelar isso. Aquela sala de jogos incluía espetáculos para atender aos gostos dos homens de sua classe. Eles podiam descansar de suas apostas naquele salão para comer e desfrutar de um concerto de ópera, ou, mais tarde, desfrutar de formas de entretenimento muito mais baixas.
Ela o olhou por um tempo mais longo do que devia em resposta à inspeção a que se sentia submetida. Ele se surpreendeu ante a inquietante combinação de proteção e erotismo que aqueles grandes olhos convocavam, e se concentrou em todos os problemas que ocasionou durante as últimas duas semanas.
Morton se deixou cair na outra cadeira da mesa. Parecia desconjurado, com sua pinta de urso e sua barba fora de moda.
—A garota está aqui — disse— Em uma estadia traseira. A senhorita Ormond a traz aqui a cada noite, para que a espere enquanto ela canta. Falei com o homem da porta e ele as viu entrar juntas esta noite.
Vergil se levantou.
—A senhorita Ormond cantará outra canção depois da ária. Faremos agora. Temos que tirar à garota antes que acabe. —A senhorita Ormond, sem suspeitar nada, continuava com seus gorjeios— Se for inteligente, nos perseguirá pela costa quando se der conta de que seus planos fracassaram. Quanto à garota, a levaremos ao campo para que se recupere, e ninguém se inteirará de nada.
Estava contando é obvio, naturalmente, que a senhorita Jane Ormond ainda não vendeu à garota pelo maior preço. Concentrou sua atenção no rosto aparentemente ingênuo sob a muito alta peruca branca. Podia ver-se um traço de inteligência naqueles olhos. Não, essa mulher não teria se arriscado tanto por um prêmio tão pequeno como o dinheiro que podia obter de vender uma virgem. Possivelmente teria planejado pedir um resgate, mas o mais provável era que tivesse intenção de vender à garota para algum casamento. Ela, sem dúvida, tinha notícias de sua herança desde que servia de criada e partiram juntas da América.
Tudo aquilo podia ter sido evitado se Derem estivesse mais atento. A culpa era em realidade dele, por ter enviado seu irmão para receber o navio, mas quem ia pensar que uma criada que não era mais que uma menina se atreveria a fazer semelhante coisa.
O corredor de má morte contrastava com a opulência do salão. Morton assinalou para uma porta escondida sob uma escada. Vergil girou o trinco.
Já havia visitado camarins de cantoras, e normalmente era um autêntico desastre ao que se refere à ordem. Entretanto, aquele diminuto espaço foi arrumado cuidadosamente. Havia um par de velas sobre uma mesa, em que também podia ver-se um espelho e um recipiente com pinturas. Disfarces e roupas de dia penduravam de uma fila de cabides colocados na parede. À direita da mesa havia uma cadeira entre as sombras, onde uma moça permanecia sentada com uma agulha fazendo acertos em um tecido que sustentava perto das chamas.
—Senhorita Bianca Kenwood?
Ela levantou o olhar surpreendida e ele imediatamente começou a calcular quanto teria que incrementar o suborno que pensava fazer a Dante. Sem dúvida poderia tratar-se de uma garota doce, mas Dante julgava às mulheres por seu aspecto físico, não por seu caráter, e o dela não impressionava muito. As mechas de cabelo castanho que escapavam de seu gorro pareciam mais crespados que frisados. Seu nariz era arrebitado, o qual poderia ter resultado encantador no caso de que não fosse tão largo.
—Senhorita Kenwood, sou Laclere.
—Oh!
—Este é Morton, meu (criado). Tenho um carro estacionado atrás do edifício e a levaremos ali imediatamente. Sua terrível experiência terminou e te asseguro que ninguém jamais terá notícia deste desafortunado incidente.
—Oh! Oh, Deus…
—Por favor, é necessário sairmos agora. Falarei com a senhorita Ormond mais tarde. No momento, o melhor será que a tiremos daqui.
—Oh, não acredito que… Isto é… — Andou para trás, fazendo gestos de resistência e confusão. Ele se inclinou para ela e sorriu para transmitir confiança. Precaveu-se de que seu vestido era muito comum, um simples vestido longo e cinza. Era evidente que não tinha nenhuma noção do que era se vestir na moda.
—Vamos querida. Será melhor que saiamos antes que…
—Quem é você? —A indignada voz que fazia a pergunta era feminina, melodiosa e jovem.
Vergil deu a volta para ver Maria Antonieta ante a porta, com os braços em jarras e as mãos apoiadas sobre seu magro talhe. O vestido de largos quadris ocupava toda a soleira.
—E bem? Quem é você, senhor, e o que está fazendo aqui?
A senhorita Kenwood se levantou de um salto e se precipitou para a senhorita Ormond, que a abraçou de maneira protetora. Ou seja, que assim é como tinha ocorrido. Naturalmente, ela tinha cercado amizade com a garota. De outra forma não teria funcionado.
—Seu concerto terminou? —perguntou ele.
—Os lieder são peças breves. Agora, me faça o favor de sair. Minha irmã e eu…
—Senhorita Ormond, essa jovem não é sua irmã. Não são parentes. A convenceu a vir com você, mas sua ação não foi outra coisa mais que um sequestro e deverá ser examinada ante um juiz.
A senhorita Ormond afastou brandamente à garota e depois apertou seu vestido para conseguir entrar na estadia. A largura da ridícula saia obrigou Morton a se aproximar da parede.
Ela cruzou os braços. O gesto fez que Vergil se fixasse na forma em que seus peitos apareciam esmagados, sob o rígido sutiã.
—Quem é você?
—Vergilius Duclairc, o visconde Laclere. A senhorita Kenwood é minha pupila, como você já sabe.
Ela baixou lentamente o olhar, e logo voltou a elevá-lo.
—Eu não sei nada disso.
O aprumo que demonstrava, apesar de ter sido surpreendida em fragrante delito, acabou com a paciência de Vergil.
—Não tente brincar comigo, jovenzinha. A forma em que traiu a confiança de sua companheira de viagem é simplesmente abominável. O perigo e o possível escândalo ao que submeteu esta moça durante as últimas semanas são indesculpáveis. A partir de agora não tolerarei nenhuma intromissão. Se você se der pressa, poderá estar a caminho de volta a América antes que amanheça, mas unicamente estou disposto a fazer esta concessão por deferência à senhorita Kenwood.
Ela nem sequer pestanejou. Avançou uns passos para diante até que os volantes de sua saia roçaram a perna dele e levantou a vista para olhá-lo de uma forma curiosa.
—Assim é você um desses.
Ele a olhou fixamente. Se fosse um homem lhe daria uma boa surra.
Ela dirigiu a vista para a perturbada garota, encolhida com medo contra o vão da porta.
—Pelo visto parece que tudo terminou. É uma lástima, realmente acreditei que conseguiria. —Fez um gesto e a senhorita Kenwood se uniu a ela para ajudá-la a desprender e dobrar os objetos que tinha pendurados nos cabides.
Ele se colocou entre elas, pegou um vestido das mãos de sua pupila e o jogou para um lado.
—Iremos agora mesmo. Se a senhorita Kenwood tiver pertences aqui ou no lugar onde se aloja, enviarei alguém para buscá-los.
A senhorita Ormond sorriu de uma forma muito insolente.
—Oh, definitivamente é você um desses. Muito seguro de si mesmo. Um homem que decide que rumo seguir e que está sempre seguro do que é o correto. Advertiram-me que neste país havia muitos homens como você, homens que estão convencidos de que jamais cometem enganos.
Ele sentiu que se ruborizava ante a suja afirmação dessa pomba presunçosa. Já tinha sido suficiente. Pegou com sua mão a larga manga de tecido cinza de sua pupila.
A senhorita Ormond mudou de posição e obstruiu sua retirada com a largura de seu vestido. Com uma mão, suave e cálida, agarrou a mão dele e com delicadeza fez que seus dedos se abrissem e o tecido largo e cinza se deslizasse deles.
Uns olhos azuis o olharam com zombador deleite.
—Bem, esta vez cometeu um engano, Vergilius Duclairc, visconde Laclere. De fato, você está completamente equivocado. Ela não é Bianca Kenwood. Sou eu.
Ele teve um momento de confusão até que o significado daquelas palavras o golpeou. Insinuações de problemas se atropelaram em sua mente, uma luminosa névoa de premonições que sugeria que algo que parecia bastante simples de resolver acabava de voltar-se perigosamente complicado. Dirigiu seu olhar para o tímido passarinho cinza que retorcia as mãos, e depois para aquela ave do paraíso, borrada e cheia de confiança em si mesma, e se perguntou como teria reagido Dante ante desse escandaloso acontecimento.
***
Zas. Zas. Zas.
O látego de montar golpeava contra as altas botas do visconde Laclere enquanto caminhava acima e abaixo frente à chaminé.
No divã, Bianca abraçava Jane, e dava tapinhas no seu ombro. Na outra ponta do salão, meio adormecida, a condessa de Glasbury irmã do visconde, piscava com consternação, vestida com uma bata verde de estilo oriental.
Bianca pensou que era de muito má educação por parte de Vergil Duclairc arrastar Jane e a ela até a casa da condessa e interromper seu sono. Se ele deixasse de dar voltas ao assunto e de caminhar de um lado a outro, ela poderia esclarecer as coisas rapidamente e poderiam partir.
Zas. Zas.
—Não estará planejando usar isso, verdade? —perguntou Bianca. Sua voz rompeu o tenso silêncio que se fez depois que ele explicou à condessa onde encontrou sua pupila desaparecida após duas longas semanas de busca.
Ele parou em seco uma de suas idas e vindas para dar a volta e olhá-la. Era um homem alto, magro e robusto de uns vinte e cinco anos, com surpreendentes olhos azuis e o cabelo ondulado e escuro um pouco despenteado, como ditava a moda. Atrativo, de fato. Possivelmente inclusive bonito se deixasse de pôr essa cara mal-humorada, de momento ela não podia saber.
—O látego — insistiu— Não pretende usá-lo? Devo te dizer que tenho vinte anos, e Jane tem vinte e dois, o que significa que já passamos da idade para estas coisas. Embora minha tia tivesse uma criada que foi cortejada por um cavalheiro inglês que disse que há muitos homens que usam o látego com suas mulheres aqui na Inglaterra, o qual me pareceu bastante curioso, e que há outros que de fato querem mulheres para lhes dar chicotadas, o qual para mim não tem nenhum sentido.
A condessa ficou boquiaberta. De repente parecia completamente acordada.
Vergil se voltou para sua irmã com uma paciência cheia de tensão, e assinalou para o divã como querendo dizer «o vê?».
—Asseguro-lhe, senhorita Kenwood —disse a condessa com um sorriso vacilante— que, sem dúvida, meu irmão não tem nenhuma intenção de…
Vergil baixou as pálpebras como se não houvesse nenhuma razão de usar o «sem dúvida». Cruzou as mãos atrás das costas e estudou a moça com severidade.
—Meu irmão foi esperar seu navio em Liverpool. Por que não conseguiu encontrá-la?
Bianca considerou a possibilidade de usar a elaborada história cheia de peripécias que inventou se por acaso as coisas se estragavam, tal como tinha ocorrido. Mas de repente pareceu que era muito pouco convincente.
Examinou os olhos azuis que a esquadrinhavam. Tia Edith havia dito que os aristocratas ingleses eram gente indolente e decadente, um pouco estúpidos, e Bianca acreditava que aquilo seria certo. Infelizmente aquele parecia ser uma exceção, ao menos em relação ao último ponto. Não parecia capaz de acreditar em confusas histórias a respeito de uma moça inocente e desventurada.
—Havia a bordo um marinheiro que nos ajudou a tirar nossos baús e a encontrar um carro de aluguel antes que alguém viesse nos recolher.
—Ficou amiga de um marinheiro? —A condessa lançou a seu irmão um olhar oblíquo e este fechou por um momento os olhos.
—Senhorita Kenwood, talvez ocorreu um mal-entendido. O procurador de seu avô contatou com um advogado de Baltimore, o senhor Williams, para dirigir este assunto. Ele falou com você, ou acaso não fez? É possível que foi mal informada?
—Certamente falou comigo. É um homem muito agradável. De fato conseguiu nossa passagem para o navio.
—Escreveu-me dizendo que o faria. Explicou a você que um membro de nossa família iria recolhê-la em Liverpool?
—Explicou-o com muita claridade. Minha tia não teria me permitido vir se não tivesse convencida de que me recolheriam.
—Então admite você que desembarcou por sua conta própria sem esperar um acompanhante e que não foi acidental que meu irmão não a encontrasse?
—Não foi acidental. Foi completamente deliberado.
Por alguma razão sua franqueza o deixou mudo. Olhou-a como se fosse impossível compreendê-la.
—Acredito que será melhor que se sente Vergil, assim ela se sentirá menos incômoda — disse a condessa— Podemos falar as coisas com calma. Estou segura de que a senhorita Kenwood terá uma explicação para tudo.
Vergil se sentou em um pequeno banco, mas continuou envenenando a moça com sua atitude.
—Você tem alguma explicação?
—É obvio. —Jane dormiu apoiada em seu ombro e o peso morto a distraiu. O abraço tinha feito que sua peruca se desequilibrasse e se torcesse. Esses vestidos antigos não estavam desenhados para sentar-se e a saia formava uma espécie de plataforma a seu redor. O espartilho sob o disfarce lhe cravava ao lado da cintura.
Sentia-se um pouco ridícula e muito incômoda e lamentava que aquele visconde com ar de grandeza não a tivesse deixado tempo para trocar-se e lavar-se antes de arrastá-la até o carro.
—A explicação, senhorita Kenwood. Eu gostaria de ouvi-la.
—A verdade, senhor Duclairc, é que não acredito que gostará.
Ele entrecerrou os olhos.
—Seja como for vamos provar.
Ela subiu uma perna e a colocou sob seu traseiro para levantar-se um pouco mais. A condessa pestanejou. O visconde elevou uma sobrancelha em atitude de censura. Ao dar-se conta de que a perna que pendurava estava descoberta até a metade da panturrilha, Bianca sorriu a modo de desculpa e puxou a borda de sua saia para baixo.
—Senhor Duclairc, fui informada a respeito dos planos de minha visita aqui. Simplesmente decidi fazer umas pequenas mudanças. Se o senhor Williams falou com você a respeito de mim, você deve saber que eu vivia com minha tia avó Edith mais como uma companheira que como uma pupila. Viajei muito quando minha mãe vivia, e aprendi a cuidar de mim mesma. Sou considerada muito amadurecida para minha idade.
—Ele só me escreveu dizendo que sua tia era um baluarte da sociedade de Baltimore e que você era uma jovem bem educada. —Seu tom dava a entender que o senhor Williams devia alguma explicação.
—Sei que meu avô o nomeou meu protetor em seu testamento. É um gesto encantador e comovente. Provavelmente ele queria cobrir a eventualidade de que eu necessitasse realmente um protetor, mas obviamente não é o caso. Por outro lado, sou americana, assim não posso entender de que modo um testamento inglês pode estabelecer algum tipo de autoridade sobre mim.
—Será um prazer explicar mais tarde.
Ela já sabia a explicação. Simplesmente não a aceitava.
—Ante a insistência do senhor Williams, aceitei vir aqui para estudar assuntos referentes à minha herança e arrumá-los pessoalmente. Entretanto, nunca disse que iria ficar com sua família. —Omitiu o fato insignificante de que tampouco nunca havia dito que não fosse fazê-lo e que quando subiu a bordo desse navio tanto o agradável senhor Williams como a velha tia Edith davam por certo que era exatamente isso o que faria.
—A quem pensava visitar, querida? —perguntou a condessa— Vê Vergil, disse que haveria uma explicação. Ela esperava que outros amigos fossem recolhê-la e não se apresentaram.
A expressão dele se fez cautelosa.
—É assim, senhorita Kenwood?
—Não — admitiu ela. Curiosamente, ele pareceu aliviado— Minha intenção é viver por minha conta, com Jane como acompanhante. Em relação à oferta de alojamento em sua casa de campo… Bom, me sentiria como uma intrusa, e, além disso, prefiro a vida da cidade. E é obvio, não queria que se atrasassem minhas lições.
—Lições?
—Lições de canto. Esse é o motivo de ter vindo. Meus instrutores em Baltimore me disseram que me levaram tão longe quanto podiam e que a partir de agora necessitava professores melhores. Meu plano é tomar lições em Londres até que o assunto de minha herança esteja resolvido, e depois usar os ganhos para ir a Milão.
O visconde suspirou, levantou-se e começou a caminhar de novo frente à chaminé. A condessa inclinou sua cabeça de cabelo negro confidencialmente.
—Acredito que é maravilhoso que sinta esse ardor por sua música. Quanto talento! Quando formos a Londres para a temporada, estou segura de que poderemos encontrar um professor de canto. Conheço bastante gente nos círculos de arte e de música.
—Obrigado por tão amável oferecimento, mas não quero esperar até a temporada, seja quando for. As lições de canto foram o autêntico propósito de minha viagem e penso começá-las em seguida.
Vergil esfregou as superficiais rugas que se formavam entre suas sobrancelhas.
—Senhorita Kenwood, não quero incomodá-la, mas preciso saber como você conseguiu cantar nesse local.
—Vergil…
—Não, Penelope, é melhor esclarecê-lo agora e saber exatamente a que enfrentamos. Senhorita Kenwood?
—Bom, alugar esse carro para chegar a Londres resultou muito caro. Custou mais do dinheiro que trazia comigo. Quando chegamos a Londres encontrei emprego cantando, para nos manter até que pudesse obter o dinheiro do patrimônio de meu avô.
—Que inteligente e competente por sua parte — disse Penelope.
Vergil tinha o aspecto de alguém que jamais admirou virtudes como a inteligência ou a competência.
—É consciente da reputação desse lugar? Sabe o que ocorre no cenário depois de suas árias?
—Nunca ficamos. Parecia uma sala de música comum.
—Do mais comum. Nossa única esperança é que seu disfarce esconda sua identidade e que nenhuma das pessoas que te encontre no futuro a reconheça. Resulta escandaloso que uma mulher cante em um cenário de qualquer tipo, mas em um como esse, pintada e com esses babados… — Fez um gesto assinalando seu vestido, seu rosto, sua peruca.
—Minha mãe cantava em um cenário senhor Duclairc e este é seu vestuário.
—Estou segura de que era uma cantora encantadora — se apressou a dizer Penelope.
—Deixa de seguir a corrente, Pen. Talvez isso seja aceitável nos Estados Unidos, mas não na Inglaterra, senhorita Kenwood.
—Posto que não seja inglesa, isso não me preocupa. Acredito que o melhor será evitar qualquer contato social para que você não deva preocupar-se com minhas atuações, não parece? —Fez um sorriso forçado, como o animando a aceitar a lógica daquele raciocínio— Agora que já cumpriu com seu dever assegurando-se de que estou a salvo, por favor, leve Jane e a mim ao nosso alojamento.
—Você ficará aqui esta noite. Farei com que tragam seus pertences e que se relate ao proprietário da sala de jogos que suas atuações acabaram.
—Devo declinar sua oferta, senhor Duclairc. Não quero abusar da hospitalidade de sua irmã, e tenho a intenção de continuar com meu emprego. Como cantora, necessito experiência com o público e…
Ele a interrompeu com um gesto autoritário.
—Não. Definitivamente não. Não viverá de forma independente sem uma acompanhante e tampouco vai pavonear sobre um cenário. Enquanto esteja aqui eu sou responsável por você e deverá comportar-se como se espera de uma jovem dama.
Bianca devolveu o olhar a aquele intratável, alto e imponente visconde. Que um velho avaro, a quem nunca conheceu, pudesse ter complicado sua vida dessa maneira com os garranchos de uma pluma, resultava intolerável. Não esperava que o visconde a encontrasse tão rápido. Não esperava ter aquela conversa até estar preparada.
Vergil cruzou os braços. Aquela pose o fazia parecer muito alto e poderoso. Era o tipo de postura que devia adotar um rei quando ordenava executar alguém.
—Amanhã minha irmã acompanhará você e a sua criada até o campo — entoou, como expressando a vontade de um juiz— Não falará com ninguém a respeito desta experiência, nem sequer a outros membros de minha família. No que concerne ao mundo, você foi recolhida no navio e esteve sob nosso amparo desde o começo.
—Se você me tirar de Londres, será contra minha própria vontade. Como você disse antes, isso é um sequestro. Eu também posso ir me queixar ante o tribunal de Justiça.
Ela olhou com frieza.
—É legalmente impossível para mim sequestrá-la, senhorita Kenwood. Sou seu tutor. Até que você cumpra vinte e um anos ou se case permanecerá sob minha custódia. Pen, pede à governanta que mostre à senhorita Kenwood e à senhorita Ormond suas acomodações.
Despachada como uma escolar travessa, Bianca achou a si mesma e a uma sonolenta Jane guiadas por uma mulher através do corredor. Zangada por ter visto frustrado seu plano, e desconcertada ao ver aquele estranho assumindo uma responsabilidade que certamente desejaria não ter que assumir, baixou a escada guiada por aquela mulher.
Algo no final daquela confrontação a perturbava. Foi chegar ao patamar da escada quando se precaveu da importante omissão. «Até que você cumpra vinte e um anos ou se case permanecerá sob minha custódia.»
Ou até que abandone a Inglaterra, naturalmente. Verdade?
—Não acredita que foi muito duro com ela? —perguntou Penelope.
—Absolutamente. —Vergil observava Bianca Kenwood enquanto esta subia a escada cambaleando com suas delicadas sapatilhas de seda. A chuva de premonições se converteu em uma tormenta de neve.
Que desastre.
—É uma estrangeira aqui, Vergil. Ignorante de nossos costumes. Sem dúvida, as pessoas na América se comportam de maneira mais informal.
—Não acredito Pen. Ela sabia perfeitamente o que estava fazendo. —O qual significava que estava fazendo exatamente o que queria e pressupondo que aquilo o induziria a lavar as mãos a respeito dela.
Deu a volta, pensando em tomar um copo de porto antes de partir. Precisava fazer planos sobre como preparar seu irmão e como frear à senhorita Kenwood para que aquele caveira não ficasse impressionado por ela.
Penelope o pegou pelo braço, detendo-o.
—Foi muito amável de sua parte não dizer nada a respeito de como deve dirigir-se a você. Compreendeu que era só sua ingenuidade o que a fazia te chamar todo o tempo senhor Duclairc. Ela se sentia envergonhada e você foi muito generoso. O explicarei amanhã.
É isso o que Penelope viu naqueles olhos azuis? Ingenuidade? Vergonha? Normalmente sua irmã mais velha se mostrava mais ardilosa, apesar de sua natureza otimista.
—Não será necessário dar explicações, Pen. Apostaria mil libras que a senhorita Kenwood sabe perfeitamente qual é a forma apropriada de dirigir-se a um visconde.
Capítulo 2
Vergil lançou a seu camareiro seu chapéu empapado e desatou com violência o nó de seu lenço.
—Uísque para os dois, Morton. Depois desta viagem, necessito. Leva Hampton acima quando chegar.
Ao final de dez minutos, Morton não só serviu as bebidas, mas também queijo e carne de ave fria, acendeu um pequeno fogo na biblioteca e conseguiu que Vergil estivesse seco e arrumado. Não é que houvesse ninguém ante quem tivesse que estar arrumado. Só umas poucas estadias da luxuosa casa de Londres estavam abertas e, além de Morton, havia só outros dois criados.
Tampouco tinha por que arrumar-se para receber Julian Hampton. O advogado da família o viu em outras ocasiões vestido de maneira muito informal. Entretanto, a vida que levava em Londres requeria que se respeitassem as aparências.
Sentou-se junto ao fogo, bebendo a sorvos seu uísque com dois grandes livros em seus joelhos. Já sabia o que mostravam esses documentos e o que diria Hampton. As finanças da família Duclairc não atravessavam um período de prosperidade. Só a cuidadosa direção de Vergil durante aquele último ano tinha evitado o desastre total.
Ultimamente, entretanto, não teve muito tempo para dedicar-se a essas coisas. Outros assuntos, mais urgentes e também mais interessantes, tinham requerido sua atenção. Assuntos como o que acabava de atender no norte.
E agora, é obvio, precisava ocupar-se daquele novo assunto chamado Bianca Kenwood. As possíveis complicações que aquilo podia representar o fizeram fechar os olhos.
A imagem dela cintilou atrás de suas pálpebras, assim como ocorreu muito frequentemente durante as últimas duas semanas. Viu-a sentada na sala de estar de Pen com aquele absurdo vestido, sua magra perna pendurando do divã e a sapatilha de seda arqueando um pouco seu pequeno pé. Estava do mais inapresentável. Além de incorrigível e impertinente e maliciosa e fascinante…
Fascinante? Que ideia tão curiosa. De onde sairia?
—O senhor Hampton — anunciou Morton.
Julian Hampton entrou, levando posta sua cara de advogado. Sempre o fazia quando se encontravam por assuntos de negócios. Já que se tratava de um velho amigo provavelmente era necessário, especialmente quando tinham que falar de más notícias. Vergil viu aquela expressão muito frequentemente durante o último ano.
—Estudou-os? —perguntou Hampton, assinalando os tomos ao tempo que tomava assento e aceitava o copo que oferecia Morton.
—Espero que as coisas tenham mudado um pouco.
—Um pouco. A solvência nos faz gestos. Se sua irmã vivesse em Laclere Park…
—Não posso pedir que seja tão dependente.
—Ou se Dante vivesse de acordo com seus meios…
—Jamais o fez, assim não há nenhuma esperança.
—Poderia consolidar a granja e arrendar a terra.
—Essa é uma velha litania, Hampton, e já sabe minha resposta. Meu pai e meu irmão não jogaram essas famílias, e eu tampouco o farei.
—Bom, ao menos não estão na borda do abismo.
Estavam mais perto do abismo do que sabia Hampton e do que revelavam aqueles tomos. Entretanto, Vergil tinha um plano para tentar solucioná-lo. Infelizmente, uma parte fundamental desse plano podia causar problemas. A parte chamada Bianca Kenwood.
Hampton sorriu. Isso nunca era um bom sinal, especialmente na cara de seu advogado.
—Deve melhorar as coisas do modo mais simples. O modo tradicional.
—Sim, suponho que o pai de Fleur será muito generoso. Deveria estar agradecido de que meu valor tenha aumentado tanto depois da morte de meu irmão. Com o tempo, suponho que consentirei em me casar. De momento, entretanto, outros enredos fazem que resulte impossível.
Hampton não era um homem muito expressivo, assim que o brilho de curiosidade e preocupação que relampejou em seus olhos fez Vergil ter sabor que falou muito.
—Posso te procurar ajuda? Tenho experiência em negociar para que meus clientes solucionem seus enredos. —Destacou a última palavra de uma forma que parecia aludir a problemas de natureza romântica.
O enredo em que Vergil se achava envolvido necessitava algo mais que a destreza de Hampton para chegar a desembaraçar-se.
—É insuperável nisso, e aceitaria sua ajuda se acreditasse que poderia servir de algo. Não sei como conseguiu convencer o conde para que liberasse minha irmã.
—Todos os homens têm segredos que querem esconder. O conde de Glasbury simplesmente tem mais que a maioria. Como vai à condessa?
—Está bastante contente, e acabou por preferir aqueles círculos sociais que a aceitam.
—Sua queda teria sido muito pior se não fosse por você.
Vergil sabia. Graças a sua fama de homem íntegro e decente conseguiu aliviar o impacto social que foi o fato de que Pen se separasse do conde; também obteve que se subtraísse importância aos diversos pecados de Dante e inclusive que se retificasse em parte a fama que tinham os Duclairc por seu comportamento e suas ideias pouco convencionais. Apesar de que sua família atirasse para baixo, ele conseguiu que se mantivessem flutuando. Com muita dificuldade.
—Acabamos? —perguntou Vergil, levantando.
—Pelo visto você acredita que sim.
Vergil deixou cair os livros ao chão.
—Pode deixar para outro dia os detalhes tristes. Me diga o que esteve fazendo, além de dar conselhos a insensatos como eu.
—Se todos meus clientes fossem tão insensatos como você, morreria de fome.
A gravidade da expressão de Hampton se esfumaçou e voltou a ser o apreciado amigo de Vergil.
Resultou que esteve fazendo muito pouco. Hampton não frequentava muito as reuniões sociais, e permanecia um pouco à margem quando ia a elas. As mulheres o achavam melancólico e misterioso, enquanto que os homens o consideravam orgulhoso e aborrecido. Com seu cabelo negro e seus traços perfeitos e afiados, Hampton parecia uma figura desenhada com tinta e pluma por um ilustrador. O problema para a maioria da gente era que a ilustração vinha sem pé.
—Saint John voltou para Londres — disse Hampton— Burchard e eu nos encontraremos com ele no Corbet amanhã. Witherby e os outros provavelmente virão também. Agora que retornou de onde seja que estivesse, por que não se reúne conosco? A Sociedade do Duelo estará completa outra vez.
Estava se referindo ao grupo de homens jovens que se reuniam em Hampstead na academia de esgrima de Chevalier Corbet há cinco anos. Vergil não praticava com eles há meses.
Sua ausência resultava tão estranha porque ele foi o eixo da roda em torno do qual se agrupavam os outros homens. Conhecia Hampton desde a adolescência, e se fez amigo de Cornell Witherby durante a época universitária. Adrian Burchard, filho de um conde, o conheceu nos círculos da nobreza. Inclusive Daniel Saint John, o marinheiro, acrescentou-se à Sociedade do Duelo através de Vergil graças a sua amizade com Penelope.
—Oxalá pudesse, mas devo me encontrar com Dante e levá-lo a Laclere Park. Temos assuntos a atender ali.
—Burchard ficará decepcionado. Esteve te procurando para discutir sobre algo que não quer divulgar. Suponho que se tratará de política.
Se Adrian Burchard estava procurando alguém, logo o encontraria. Adrian era a última pessoa que Vergil desejaria ver interessado em suas atividades.
—Escreverei para ele o convidando a ir me visitar. Espero estar aqui durante vários dias.
—Por que não convida também Witherby? A prolongada ausência da condessa em Londres o tornou melancólico.
—Possivelmente assim se inspire para escrever outra ode. Witherby terá que esperar sua vez. A senhorita Kenwood chegou à Inglaterra, e Penelope a levou ao campo por uma temporada.
—Há algum problema?
Não estava claro se Hampton se referia a Bianca Kenwood ou à forma em que Cornell Witherby estava cortejando Penelope. Embora a primeira não prometesse nada mais que problemas, Vergil também preferiria se livrar do segundo. Ter um bom amigo apaixonado por uma irmã mais velha, especialmente quando essa irmã se acha separada de seu marido, só e vulnerável, era o tipo de situação que podia arruinar uma amizade.
—Não há nenhum tipo de problema. A senhorita Kenwood é encantadora. Estou desejando que a conheça.
Até esse ponto se enredou com suas confusões. Estava mentindo a um homem que conhecia há meia vida.
Hampton desviou a conversa para assuntos de política. Enquanto falavam de liberais e conservadores, as manifestações violentas e as mudanças ocorridas depois da morte do último ministro de Assuntos Exteriores, a mente de Vergil se mantinha ocupada com as questões privadas que o esperavam no campo.
Uma e outra vez aparecia em sua cabeça à imagem de uma moça vestida como uma rainha francesa, desafiando-o com uma excessiva auto-suficiência, e uma bonita perna pendurando por debaixo de uma prega indecorosamente alta.
***
—Sigo sem entender sua impaciência — disse Dante. Jogou a cinza de seu puro através da janela da carruagem— Não vejo a razão de que me fizesse voltar da Escócia. Ela não alcançará a maior idade até dentro de um ano.
Isso significava uma eternidade dada à forma em que Dante calculava seu calendário com as mulheres. Normalmente era capaz de cortejar, seduzir, levar a cama e desprezar duas amantes ao mesmo tempo. Vergil estudou o jovem e belo rosto de seu irmão, seus limpos olhos e seu cabelo castanho escuro. A história de Dante com as mulheres foi quase inevitável com traços como os seus. Vergil viu como damas da mais alta linhagem ficavam sem fôlego quando Dante se aproximava.
—Começa a temporada muito antes de seu aniversário, e com a estreia em sociedade de Charlotte não podemos exatamente ir todos à cidade, e deixar aqui à senhorita Kenwood. Já terão que estar casados então, e não só prometidos.
—Por quê? Você acha que algum caçador de fortunas tomará meu lugar? —O tom de Dante deixava ver que aquilo era absurdo.
«Não, acredito que se ela está casada, poderemos impedir que nem chegue a pisar em Londres se for necessário», pensou Vergil. Só a ideia de ver Bianca Kenwood entre a sociedade educada, tratando duques e condes de senhores e anunciando sua pretensão de estudar ópera era suficiente para deixar seu ânimo pelo chão aquele último dia de agosto.
Mas a pergunta de Dante também aguçava aquela premonição que continuava obcecando-o desde que abandonou a casa de Penelope aquela noite. Seria melhor que Dante acabasse com aquilo enquanto o campo estivesse livre.
Dante o olhou diretamente nos olhos.
—Já estamos quase chegando. Não acha que deveria me dizer isso já?
—Te dizer o que?
—Não me disse grande coisa a respeito da senhorita Kenwood, com quem espero me casar. Encontro-o um pouco suspeito. Depois de tudo, você a conheceu. Ambos sabemos que não tenho outra escolha mais que aceitar, mas se deve me fazer alguma advertência, seu tempo está acabando.
—Se não a descrevi com detalhes, é porque isso seria pouco delicado de se fazer. Não é um de seus cavalos de corridas.
—Não a descreveu absolutamente.
—Muito bem. É de compleição média e esbelta, com olhos azuis.
—De que cor é seu cabelo?
Como diabos ia saber. Que cor de cabelo podia ocultar-se debaixo daquela ridícula peruca?
—Até que ponto é má?
Vergil tinha toda a intenção de advertir Dante, mas não encontrava a forma apropriada de abordar o assunto. Um matiz de culpa coloria suas reflexões quando tentava fazê-lo. Afinal, virtualmente meteu seu irmão naquilo à força. Embora não é que Dante resistisse muito ao saber que em um ano ela receberia mais de cinco mil libras.
—O problema não é seu aspecto. Suas maneiras, entretanto…
—Isso é tudo? Está preocupado por uns poucos enganos de etiqueta? O que esperava? É americana. Pen a preparará em pouco tempo.
Falar de uns poucos enganos de etiqueta não fazia justiça a Bianca Kenwood, mas deixou passar.
—É obvio. Entretanto, ela é… Especial.
—Especial?
—Poderia dizer-se inclusive que é estranha.
—Estranha?
—E possivelmente um pouco… Original. O qual pode remediar-se, naturalmente. Enquanto sustentamos esta conversa Pen a tem em suas mãos.
Através do guichê do carro, Dante olhou mal-humorado a visão da campina de Sussex. Vergil não sabia se continuava, mas quase estavam chegando e mal ficava tempo.
—Necessita mão dura. É um pouco independente, por assim dizer de algum modo. —O olhar de seu irmão deslizou para ele— Independente… Tem alguns caprichos. É por sua juventude, passará.
—Seria de imensa ajuda que pudesse completar sua descrição acrescentando alguma informação a respeito de sua beleza.
Sem dúvida. O problema era que ele não sabia se ela era bela. Só recordava seus grandes olhos, com aquela interessante faísca de inteligência e vitalidade que havia neles.
Que mais podia acrescentar? Toda aquela pintura de teatro ocultava seu rosto. Era provável que sua pele fosse preciosa, mas quem poderia estar seguro antes de ver seu rosto lavado? Também sua silhueta parecia bonita, mas podia ter sido pelo vestido. E fazer algum comentário sobre sua sensualidade… Não era muito apropriado tratando-se da futura noiva de um irmão.
—Maldita seja, se for vulgar não estou disposto a fazê-lo, Vergil. E você não deveria desejar que o fizesse. Além do fato de que ela repercutiria positivamente em mim e minha família, posso ignorá-la virtualmente por completo uma vez que estejamos casados, inclusive poderia ir viver na cidade e deixá-la aqui, que é de fato o que pretendo fazer. E até que se case com Fleur e estabeleça sua própria descendência, coisa que está demorando muito em fazer, eu sou seu herdeiro e essa americana poderia acabar convertendo-se na viscondessa Laclere.
Não necessitava que Vergil enumerasse a seu jovem irmão os obstáculos que o esperavam naquele caminho. Abismos muito mais profundos e numerosos do que Dante imaginava. Um favo desses abismos. Se pudesse pensar em alguma alternativa o teria feito, mas depois de duas semanas considerando distintas opções sempre terminava chegando à mesma conclusão. Era necessário que Bianca Kenwood fosse atada a sua família com correntes indestrutíveis.
Dante mordeu o lábio inferior e voltou a olhar através do guichê com seus olhos de espessas pestanas.
—A renda de seus recursos será minha? Como depositário, você não interferirá? E minha atribuição continuará até o casamento, aumentando como o acordo?
—É obvio. Também prometo continuar dirigindo os investimentos financeiros, como solicitou. A renda dos recursos é segura, mas outros assuntos requerem ser fiscalizados, e eu sei que você odeia essas coisas.
Dante fez um gesto de desdém.
—São coisas sórdidas e chatas. Duvido que valha a pena preocupar-se com elas. Pode vendê-las ou conservá-las, o que achar melhor. Depois de ver como se arrumou após a morte de Milton, seria um idiota se me atrevesse a te questionar.
Viajavam silenciosamente através dos bosques de carvalhos e fresnos que havia atrás de Laclere Park. Vergil preferia esse caminho ao longo horizonte de paisagem que se abria da parte frontal, e sempre dava instruções a seu chofer para que se aproximasse da casa por ali. Normalmente servia como um espaço de transição, uns poucos quilômetros durante os quais se preparava para assumir seu papel de visconde Laclere e confrontar as responsabilidades que este conduzia.
Fez aquele caminho pela primeira vez quando chegou à notícia da morte de Milton; escolheu então aquela longa rota para demorar sua chegada, lutando contra emoções conflitivas e agudos ressentimentos pelas mudanças que suportaria em sua vida a repentina morte de seu irmão.
Foi naqueles bosques onde terminou aceitando aquela nova realidade e suas correspondentes restrições. Não chegou nem a intuir até que ponto complicaria sua vida a morte de seu irmão. Restrições, mistérios e decepções o estavam esperando ao final daquela viagem.
De repente Dante se inclinou sobre a janela. Afiou o olhar.
—Que diabos…?
—Algum problema? —Vergil afastou um pouco a cabeça de Dante para poder aparecer a sua através da janela aberta.
—Ali, no lago. Espera, há árvores que nos tampam a vista. Agora. Essa não é Charlotte?
As árvores eram mais magras agora que passavam em frente do lago. Duas mulheres estavam se banhando, rindo e salpicando-se. Virtualmente nuas, pois suas roupas se tornaram transparentes pela água. Diabos, sim, era sua irmã pequena, Charlotte, com aquela criada, Jane Ormond.
Um terceiro corpo feminino emergiu de repente da água. A roupa empapada se aderia a sua pele a obscurecendo um pouco. Bonitos ombros… Umas costas que ia se estreitando… Uma pequena cintura… Gráceis quadris… Finalmente os topos de suas encantadoramente arredondadas nádegas apareceram à vista. Uma larga cabeleira loira se desdobrou em um leque sobre a água para aferrar-se depois a aquele corpo em espessa queda de uma cabeça bem formada.
Seus esbeltos braços começaram a golpear a superfície da água, criando ondas na direção de suas companheiras de jogo. As outras duas gritaram e empreenderam um maciço contra ataque de salpicaduras, enviando jorros de água ao redor dela até que acabou parecendo uma imagem emergente em meio de um sonho de bruma.
Ela lançou um chiado de jubiloso protesto. Rindo, deu a volta para responder ao ataque.
Vergil não podia estar seguro de que aqueles grandes olhos azuis viram passar o carro com seus dois atônitos ocupantes. Mas o certo é que ela se deteve, cobriu os peitos com um braço e deslizou a outra mão até o triângulo de sombra que havia justo entre suas coxas. Durante um breve instante antes de dar a volta e voltar a afundar-se na água, adotou a pose da Vênus de Botticelli, uma deusa de rosto adorável e formas luxuriosas, jorrando água, ainda virginal e pudica, mas já amadurecida e apaixonada. Aquela mescla de instinto protetor e desejos eróticos que Vergil experimentou na sala de jogos ressurgiu com força.
Ele e Dante se recuperaram ao mesmo tempo. Endireitaram-se e se afundaram em seus assentos.
Seu irmão o olhou com suspicacia.
—O que era isso?
—Não estou totalmente seguro, mas acredito que era a senhorita Kenwood.
Dante fechou os olhos e apoiou a cabeça contra o respaldo do assento.
—Deixe assegurar que entendi minha posição, Vergil. Tenho que me casar com isso? Tenho que me sacrificar no altar pelo deus da estabilidade financeira e ser forçado a ter como companheira durante o resto de minha vida essa fêmea que acabamos de ver? Uma garota tão especial, estranha e independente que se banha quase nua diante da estrada a plena luz do dia e influência nossa irmã a fazer o mesmo? Você pretendia me coagir, achando necessária a ameaça de retirar minha atribuição? Ela é a noiva que escolheu para mim?
—Sim. —Realmente não havia nada a acrescentar.
Dante manteve sua pose pensativa durante um longo tempo. Seus olhos se abriram. Uma limpa simpatia brilhou neles. Um sorriso muito masculino apareceu lentamente.
—Obrigado.
***
—Muito bem, Pen. Muito bem.
Penelope ruborizou com um tom rosado ainda mais intenso que o que sua pele tinha adquirido enquanto ele explicava sua história.
—Não me jogue a culpa. Não podia imaginar uma coisa assim. Ela foi uma hóspede da mais cortês. Seu comportamento não resultou inapropriado absolutamente. Ao menos até onde eu sei.
Acompanhou esta última observação de uma pequena careta. Penelope era suficientemente inteligente para reconhecer que a escapada desse dia era uma amostra de que ela não conhecia as atividades da senhorita Kenwood em todo seu alcance. Vergil imaginou toda uma série de escandalosos episódios tendo lugar sob o nariz da confiada Penelope.
—Durante sua estadia aqui parecia sentir-se como um peixe na água.
—Dadas as circunstâncias, «como um peixe na água» não é a melhor expressão que possa escolher Pen.
Pen abaixou a cabeça, envergonhada e sem forças ante a acusação. Dante deu uma palmada em seu ombro para consolá-la. Era simplesmente incapaz de imaginar o pior, e era sempre muito pormenorizada.
Bianca Kenwood provavelmente se deu conta em seguida de como era Penelope e tirou vantagem disso.
O que a senhorita Kenwood precisava era uma tia similar a uma velha harpia cheia de caráter que não permitisse desafiá-la, capaz de fazer tremer às moças jovens com seu olhar de aço e cujas estritas advertências provocassem uma imediata submissão.
Desgraçadamente, essa tia não existia.
—Talvez banhar-se assim seja normal na América.
—Por favor, Pen.
—Falarei com ela, e darei em Charlotte uma boa reprimenda.
—Não fará tal coisa.
—Pretende fazê-lo em meu lugar? Oh, Vergil, desejaria que não o fizesse. Seu rosto adquire uma expressão muito peculiar cada vez que se menciona seu nome. Suspeito que te vê como o guardião de um cárcere, e se for assim, o pior que pode fazer ao voltar a vê-la é lhe dar uma lição de comportamento…
—Não direi uma palavra sobre este assunto. Ninguém o fará. E tampouco a Charlotte. Mencioná-lo seria admitir que Dante e eu fomos testemunhas do ocorrido. —Não se atrevia sequer a contemplar a ideia dessa confrontação. Reconhecer o fato suporia ter que confrontar uma embaraçosa e difícil… Intimidade— Não temos mais remédio que ignorar o que aconteceu. Falarei com Charlotte em termos gerais para evitar que se deixe influenciar.
Dante se uniu a eles, com aspecto de estar contente e sentindo-se mais fresco ao mudar de roupa. Levava um traje delicioso perfeitamente engomado. Seu rosto estava cheio de espera sob seus cabelos cuidadosamente despenteados, um pouco compridos como marcava a moda romântica.
—É muito amável por sua parte se reunir conosco durante uns poucos dias — disse Penelope, levantando-se para lhe dar um beijo.
—Às vezes posso sentir falta da família, Pen. De fato, é provável que fique pelo menos uma semana. Sim, ficarei uma semana. —A piscada que lançou a Vergil fez com que Penelope franzisse o cenho com curiosidade.
Vergil devolveu um olhar reprovatório. Penelope não sabia nada a respeito dos planos que eles tinham em relação à senhorita Kenwood. Além disso, por alguma razão, a confiança em si mesmo que demonstrava seu irmão o irritava.
—Uma semana inteira? Isso é maravilhoso, Dante, e muito amável por sua parte. Sei quanto odeia o campo se não houver um bom esporte.
—Bom, Pen, há esportes e logo há esportes. Disseram-me que Verg comprou um novo cavalo que precisa domar e me senti obrigado a ajudá-lo, já que tenho tão boa mão com os animais e é, além disso, um presente para mim.
—Um cavalo novo? Vergil, não me disse nada.
—Chegará dentro de uns dias — murmurou ele. Que inteligente por parte de Dante. Desfrutar da metáfora e de passagem sair ganhando um cavalo. Não era uma metáfora tão má. A senhorita Kenwood tinha um ar menos de inacabada que de indômita. Era típico de Dante que tivesse fichado uma mulher em poucos segundos a uns sessenta metros de distância, e se deleitava no desafio que o estava esperando. Não era assombroso que parecesse tão insuportavelmente feliz.
A égua em questão se uniu a eles ao final de pouco tempo, chegando junto a Charlotte acompanhada de um fraco rangido de anáguas. Charlotte estava tão encantadora como de costume, sua elegância de magro salgueiro ainda ficava suavizada por sua inocência infantil. Junto ao cabelo negro, a pele branca e o vestido rosa pálido de Charlotte, Bianca Kenwood exalava um ar de senhorita de campo.
Seu vestido azul era um pouco antiquado e pouco atrativo. Sua pele tinha um bronzeado fora de moda, mas a ideia que fez de sua irrepreensível beleza foi acertada. Seu cabelo loiro dourado estava recolhido em um simples coque que enfatizava sua feminina, mas firme mandíbula destacando o contorno da parte inferior de seu rosto, com forma de coração. Dificilmente se ajustaria à definição de beleza da moda, mas possuía uma formosura singular, transbordava saúde e se movia com uma elegância amadurecida.
Dante a estudou com olhos calculadores durante um breve instante antes que Penelope o chamasse para apresentá-lo. Esse exame fez com que Vergil se sentisse incômodo. De repente se sentia sujo por aquele negócio. Ridículo. Semelhantes acertos se faziam todo o tempo, e frequentemente com menos sutileza.
Dante avançou para sua presa. Seu êxito com as mulheres estava mais no magnetismo do que na perseguição. Certa dama confessou uma vez a Vergil que quando Dante olhava uma mulher nos olhos esta se sentia como se ele pudesse ler sua alma e seus cuidados a deixavam sem respiração.
Se fosse assim, pelo visto a alma de Bianca Kenwood não era fácil de observar. Respondeu à saudação de Dante com soltura e não pareceu ficar sem respiração absolutamente. Vergil não pôde deixar de admirar seu aprumo, apesar de que o plano seria que ela caísse apaixonada por Dante a primeira vista.
—E recorda Vergil — acrescentou Penelope rapidamente, fazendo um gesto em sua direção.
—Dificilmente poderia esquecer o senhor Duclairc. Estou encantada de voltar a lhe ver. Possivelmente antes que se vá possamos ter uma conversa.
—É obvio, se assim o deseja.
Oh, desejava-o. Esteve guardando palavra após palavra há duas semanas. Dificilmente poderia ter enterrado seu ressentimento ante a imperiosa intromissão que a enviou até ali.
Deu-se conta de que o estava olhando com raiva, e de que todo mundo estava observando que o fazia.
—Está encontrando agradável sua estadia aqui? —perguntou Dante, guiando-a para o sofá.
—Muito agradável, obrigado.
Sentou-se ao lado dela, dedicando toda sua atenção. Era um homem bonito, mas um pouco delicado em suas formas e em seu rosto, como se Deus, ao esculpir os ossos de seu irmão mais velho tivesse esgotado seus melhores materiais e tivesse logo que arrumar-se com o resto. Formosos olhos marrons a contemplavam sob uns volumosos cílios. Uma faísca de familiaridade um tanto inapropriada brilhava neles.
Sim, eles as viram. Discutiu isso com Charlotte que não havia ninguém olhando no carro que passava. Em realidade, por um momento acreditou ver uns rostos espionando-a, mas ao comprovar que ninguém dizia nada horas depois de sua volta, simplesmente supôs…
—Assim leva o nome do poeta italiano — disse, sentindo-se muito desconfortável ante a ideia de que Vergil Duclairc a tivesse visto virtualmente nua. Curiosamente, o fato de que aquele seu irmão também a tivesse visto não importava muito.
—Foi uma desafortunada ideia de meu pai. Dava-se ares de poeta épico e pôs em seus filhos os nomes dos melhores. Nosso irmão mais velho se chamava Milton.
—Podia ter sido pior. Podia ter escolhido os nomes dos herois em lugar dos nomes dos autores.
Charlotte riu.
—Teria sido horrível. Ulisses, e Eneas e coisas assim.
—Ou poderia ter se motivado pelas histórias de Camelot que mais tarde o fascinaram tanto — acrescentou Dante— Lancelot, Gawain e Galahad.
Brincaram com aquela ideia durante um momento, e Penelope se uniu a eles. O homem que permanecia junto à janela não o fez, mas Bianca notou que seguia as brincadeiras com maior interesse do que seus olhares ocasionais pareciam revelar.
Podia ver seu adversário claramente de sua posição. Possuía uma figura refinada, era alto e magro, mas seus ombros e suas pernas sugeriam mais força da que era claramente visível. Naquele momento não tinha um olhar de desgosto, sim, era bastante bonito com seus ossos marcados, como cinzelados com certa aspereza. Seus olhos azuis surpreendiam penetrantes sob suas sobrancelhas escuras.
Eram penetrantes agora, que acabavam de descobri-la olhando-o. Ela dirigiu sua atenção a Dante, conseguindo —ou ao menos assim esperava— não ruborizar-se. Tinha a incômoda sensação de que durante aquele olhar o visconde estava recordando o que viu no lago.
Dante acabava de dizer algo. Ela respondeu com uma pergunta, retornando incômoda ao bate-papo banal típico da casa.
—E você o que faz?
Enfrentou-se a um silêncio total.
—Fazer? —repetiu Dante depois de contar até dez.
—Seu irmão é um membro do Parlamento, conforme entendi. Qual é sua ocupação?
Charlotte riu. A mandíbula de Vergil parecia mais rígida que de costume, mas uma faísca de brilho apareceu em seus olhos quando deu a volta para prestar toda a atenção em seu irmão.
Dante sorriu.
—Sou um cavalheiro.
—Jamais sugeriria o contrário, mas qual é seu emprego?
—Quando meu irmão diz que é um cavalheiro não está evitando sua pergunta, senhorita Kenwood. Está respondendo — explicou Vergil.
Em outras palavras, ser um cavalheiro significava que não tinha um emprego remunerado. A refinação do homem que havia a seu lado de repente pareceu tão estranha como os índios que viu em uma ocasião quando sua mãe percorria os povos próximos à fronteira. Era outro exemplo do que tia Edith queria dizer quando a advertiu que encontraria aquele país familiar em certas coisas, mas muito estranho em outras.
—Sem dúvida terão cavalheiros nos Estados Unidos — disse Penelope.
—Temos homens de grande riqueza e posição. Há fazendas tão grandes como esta. Mas um homem que não trabalha… Enfim, é considerado como quase pecaminoso.
Imediatamente desejou não tê-lo expresso dessa forma, embora pensasse que tanta indolência era uma evidência de uma séria falta de caráter. Não desejava insultar aquelas pessoas, com três das quais não teve nenhuma discussão.
A única com quem sim teve uma discussão rompeu o incômodo silêncio.
—Que pitoresco. Mas afinal de contas, seu país é ainda jovem.
Vindo de qualquer dos outros o teria deixado passar.
—A velha Inglaterra está aprendendo que há força na juventude.
—Refere-se a nossa última guerra. Uma escaramuça menor. Teria acabado de modo distinto se Napoleão não nos tivesse deixado tão ocupados.
Por alguma razão, com muita dificuldade, ela conseguiu manter um tom civilizado.
—Meu pai morreu nessa escaramuça, senhor Duclairc.
Fez-se outro silêncio tenso. Penelope sorriu fracamente e se levantou.
—Por que não pensamos em comer?
Dante tentou monopolizar a atenção de Bianca durante o almoço. O visconde não falou muito. Em várias ocasiões em que deu uma olhada o surpreendeu esquadrinhando-a, como se estivesse se perguntando o que era o que tinha diante. Nada mais que problemas, ela gostaria de advertir. Realmente deveria me enviar de passeio de uma vez por todas.
Ela estava decidida a abordá-lo depois do almoço para esclarecer coisas, mas Vergil se retirou, depois de desculpar-se, logo que voltaram para a sala de estar. Dante, entretanto, ficou unindo-se a elas para jogar cartas.
O moço elogiou o jogo de Bianca mais do que seu talento merecia. A familiaridade crescia com o passar das horas e os sorrisos de Dante começaram a adquirir uma calidez perturbadora. Ela começou a suspeitar que Vergil a estava evitando e usava Dante para distraí-la.
—Onde está o visconde? —acabou perguntando a Charlotte— Talvez goste de me substituir.
—Estará na biblioteca, suponho. Ou em seu escritório.
Bianca se levantou.
—Me desculpem. O convidarei a unir-se a nós.
Não esperou que dessem permissão; atravessou a sala de estar e se encaminhou pelo corredor para a biblioteca.
Ele estava ali, sentado ante o escritório examinando uns papéis. Levantou a vista ao ouvi-la entrar e ficou de pé.
—Parece surpreso em me ver. Cometi um engano? Supõe-se que devia ter pedido uma audiência? —perguntou.
—É obvio que não. Supus que meu irmão e minhas irmãs a manteriam entretida toda à tarde, isso é tudo.
—As cartas não me divertem muito tempo se me dão de presente todas as mãos. Se estivéssemos jogando por dinheiro, a esta altura já teria ganhado toda a fortuna de seu irmão. Decidi dar um descanso a seu orgulho e generosidade.
—Somente está tentando fazer com que se sinta bem recebida. Entretanto, me alegro de que tenha me procurado. Quero me desculpar por meu imprudente comentário na sala de estar. Devia ter tido em conta a possibilidade de que tivesse sofrido nessa guerra. Não pretendia menosprezar o sacrifício de seu pai.
A sinceridade com que se expressou a deixou desarmada. Não parecia tão severo como de costume.
—Possivelmente agora entenda por que não desejo prolongar muito minha visita a este país, senhor Duclairc, e por que não quero formar parte da sociedade para a qual sua irmã tenta me preparar. Queria retornar a Londres o antes possível para me ocupar de meus assuntos.
—A guerra terminou faz tempo, senhorita Kenwood. Nossos países voltam a ser amigos. Quanto a seus assuntos, estou me ocupando deles em seu lugar — disse esse último com um firme sorriso que parecia indicar que considerava pouco recomendável dirigir a conversa nessa direção.
—Está me convencendo de que cometi um engano vindo à Inglaterra. Deveria ter seguido minha primeira inclinação e dizer ao senhor Williams que vendesse os investimentos que herdei.
—Isso não pode fazer-se. A maior parte de seu patrimônio pertence a um fundo de investimentos. A menos que se faça uma solicitação ante o tribunal de Chancery, o qual é um processo muito longo que levaria anos, é impossível romper os termos desse fundo de investimentos.
—Isso ele me explicou. Minha segunda ideia foi então arrumar as coisas para que me enviasse a renda a Baltimore.
—E por que não o fez? Especialmente tendo em conta que nos acusa de está-la prejudicando.
—Como expliquei em Londres, tinha razões para vir.
—Sim, suas aulas de ópera. —Seu tom transmitia o alívio que sentia ante o fato de que esses planos tivessem fracassado.
Mas necessitaria mais que a desaprovação daquele homem para fazê-los fracassar de tudo. Esses planos continuavam vivos, e ela estava desesperadamente impaciente por fazê-los progredir.
—Sejam quais sejam minhas razões, estou na Inglaterra por um curto período de tempo e tenho interesses que não podem ser satisfeitos enquanto permaneça nesta casa. Não aceito sua intromissão. Não necessito um guardião.
—Tendo em conta como a conheci, acredito que é óbvio que sim o necessita. E hoje não tem feito nada que possa me fazer mudar de ideia.
Estava se referindo ao lago. Em realidade não houve nenhuma mudança em sua expressão, mas aquele provocador murmúrio formou redemoinhos entre eles. Entrou no corpo de Bianca fazendo que seus membros estremecessem. Sim, a viu com aquela roupa empapada. E apesar de sua aparência desapaixonada, naquele momento estava vendo-a outra vez.
Por um instante, em seus olhos se acendeu um brilho que indicava que ele era consciente de que ela sabia. Esse reconhecimento acrescentou um matiz perigoso a sua masculinidade. De repente ela se sentiu em desvantagem e teve que lutar para recuperar sua indignação.
—Não consigo compreender por que você insiste tanto em complicar a minha vida.
—O testamento de seu avô cedia a responsabilidade ao visconde Laclere. Ia destinado ao meu irmão, mas dado que não mudou o testamento depois da morte de Milton, me corresponde. Eu não evito meus deveres, não importa quão problemáticos possam chegar a ser.
—Eu o libero de seu dever. E agora peço que me permita partir para Londres amanhã pela manhã.
—Não.
Ela esperava ouvir algo mais, mas nada mais foi acrescentado. Aquela palavra foi sua única resposta. Não.
Ela o observou, procurando o modo de ganhar aquela estúpida batalha. Devolveu o olhar como um general que é consciente da superioridade de seu exército.
Ela deu a volta. Em uns poucos dias esperava que chegassem seus reforços. Morria de impaciência por jogá-los contra ele.
—Senhorita Kenwood, se você voltar para a sala de estar, tenha a amabilidade de dizer a Charlotte que venha ver-me antes de retirar-se.
***
Bianca subiu a escada e deu uma volta através da enorme casa de estilo gótico até chegar a seu quarto. Era o dormitório mais longo e luxuoso que jamais havia usado, com um espelho emoldurado em ouro e móveis de madeira belamente esculpidos. Jane se aproximou dela para começar a desabotoar o vestido, ao mesmo tempo em que mexericava a respeito dos criados e arrendatários. Aquele mundo mais vulgar soava mais interessante que esse outro no que Bianca passou seus últimos dias.
As últimas duas semanas pareciam dois meses. Davam passeios. Arrumavam as flores. Trocavam visitas com vizinhos que ela não conhecia. Falavam sobre moda e sobre quem era quem na alta sociedade. Tudo enquanto Pen instruía à americana selvagem para ensiná-la a expressar-se e comportar-se adequadamente na Inglaterra.
Bianca chegou ao ponto de invejar os criados ocupados em polir a prata. Finalmente teve algumas ideias para romper a monotonia.
Charlotte apareceu justo quando Bianca já vestia sua bata. Teve um pequeno bate-papo com seu irmão.
—Não disse nenhuma palavra sobre o lago. —subiu à cama de um salto enquanto Jane começava a escovar o cabelo de Bianca— Em realidade o que queria era falar de você.
—De mim?
—Perguntou o que esteve fazendo. Não o disse dessa forma, claro. Quis saber se estava contente e com o que se entretinha.
«O maldito intrometido…»
—Acredito que sabe o do lago e joga a culpa em você, e quer saber se tem estado fazendo alguma outra coisa escandalosa.
«Maldito arrogante, pretensioso…»
—Depois me deu um sermão. Explicou que me criaram de um modo diferente e permitiram a você mais liberdades do que era apropriado, e que eu não devia me deixar influenciar por você e fazer coisas que não fossem apropriadas. Contei ao menos dez vezes a palavra «apropriado» antes que terminasse. Prometi a ele que me comportarei de maneira muito correta enquanto esteja aqui. —Charlotte sorriu— Acredito que tem ao santo de meu irmão muito preocupado.
Bianca não sabia o que dizer. Foi criada de um modo distinto, e permitiram mais liberdades das que Charlotte jamais chegaria a conhecer, mas não havia nada inapropriado nisso, tão somente pouco convencional, inclusive tendo em conta os costumes americanos. Além disso, ela planejava uma vida destinada a ser pouco convencional, mas não inapropriada, apesar de que Vergil Duclairc assumisse o contrário.
Charlotte se recostou na espaçosa cama.
—Estou encantada de que Dante veio nos visitar. Não o faz frequentemente. Prefere Londres. —Levantou o olhar com astúcia— Se supõe que não sei, mas acredito que tem uma amante ali. Este último ano venho intuindo que meu irmão é um pouco canalha. Você o que pensa? Acredita que Dante é um mulherengo?
—Não saberia dizê-lo — respondeu Bianca, embora adivinhasse que Dante era um autêntico mulherengo. Pensou, além disso, que aquele mulherengo a viu virtualmente nua e que passou a tarde lhe dirigindo intensos olhares e calorosos sorrisos.
—Sempre pensei que Vergil poderia parecer um bom mulherengo também, sempre e quando alguém não o conhecesse. Tem aspecto de ser, mas claro… Ele é tão correto. Esteve cortejando Fleur durante um ano e nunca o vi fazer nada mais que lhe tocar a mão.
Bianca ouviu falar da perfeita, etérea e saudável Fleur, que supostamente era a prometida de Vergil. Logo esperavam uma visita dela e de sua mãe.
Bianca não tinha intenção de seguir ali quando viessem.
—Charlotte, esta é a única propriedade que tem sua família?
—Há outras aqui em Sussex, mas ninguém as visita salvo Vergil. Não estão em muito bom estado. Papai não cuidou bem de algumas coisas. Estava tão ocupado com seus escritos e depois com a reconstrução desta casa. Vergil tem também um imóvel no norte. É sua parte da herança de nossa mãe.
—Vivem alguns parentes nesses outros lugares?
—Não há mais parentes ali, ou ao menos não há parentes dos que estejamos perto. Papai tendia a encerrar-se e perdemos o contato com eles enquanto vivia. Milton também era um pouco estranho. Vergil não é o menos excêntrico, e não reavivou os laços.
Não havia parentes próximos. Nenhuma tia, nem prima que pudesse fazer cargo de uma pupila errante.
—Acredito que meu irmão gosta de você — disse Charlotte.
«Que irmão?» Bianca reprimiu a impulsiva pergunta antes que saísse de sua garganta, surpreendida pelo sobressalto de excitação que a acompanhou.
—Estou segura de que simplesmente se sentia obrigado a me entreter.
—É muito estranho que Dante se sinta obrigado a fazer algo. Deixou-te ganhar nas cartas e não parou de te sorrir.
—Equivoca-se, mas se estiver certa e é um mulherengo, dificilmente poderia me sentir adulada.
—Oh, não tem que preocupar-se por isso. Sabe que é a protegida de Vergil e nossa convidada. —deslizou da cama— Será melhor que vá dormir. Dante nos levará a um passeio amanhã. Será divertido. É um perito com o látego e sempre conduz muito rápido.
—Também nos acompanhará o visconde?
—Não se preocupe, não vai danificar nossa diversão. Quando nos levantarmos, ele já viveu um dia completo. Levanta-se a alvorada, para ocupar-se dos assuntos da fazenda.
Quando Charlotte se foi, Bianca se sentou sobre a cama abraçada a seus joelhos.
Assim Vergil Duclairc se preocupava que a senhorita Kenwood pudesse supor uma má influência para sua irmã. Advertiu Charlotte que tomasse cuidado. O que faria aquele santo se chegasse a convencer-se de que a senhorita Kenwood não só era um pouco diferente, mas também muito pouco convencional e inclusive algo selvagem?
Não haveria outros parentes a quem enviá-la e resultaria muito perigoso tê-la ali. Não haveria mais remédio que romper todos os vínculos sociais e deixá-la seguir seu caminho. Seria a única decisão responsável para um irmão responsável.
Se asseguraria de que esse visconde concluísse que sua presença e influência naquela casa era totalmente inaceitável.
—Jane, quero que tome emprestados para mim alguns objetos dos criados. Dos homens concretamente.
Capítulo 3
Vergil pegou as botas limpas que oferecia Morton e as pôs. Aceitou o linho engomado e com destreza atou seu lenço com um nó conservador. Morton lhe sustentava o traje negro de montar.
Esses preparativos matinais eram uma rotina tanto em Laclere Park como em Londres, e Vergil os seguia de forma instintiva enquanto organizava em sua mente seus planos e deveres. Continuava se surpreendendo que não tivesse nenhuma dificuldade em abandonar certos detalhes ou hábitos quando as circunstâncias o requeriam.
Mal tinha amanhecido quando saiu pela porta e caminhou através do rocio até o estábulo. Preferia aquele silêncio, aquela solitária forma de cavalgar para romper o dia antes do circuito oficial que teria que fazer mais tarde com seu agente imobiliário. Era um dos poucos hábitos que tinha conservado de seus anos livres como segundo filho. Às vezes recuperava aquela crença juvenil nas oportunidades sem limites que permitiu então sua insignificância. Podia simplesmente ser, não o senhor vigiando seus domínios, a não ser unicamente um homem que cavalgava através do campo, admirando sua beleza e sonhando ao ritmo da vida.
Do estábulo chegavam sons. George, um moço do estábulo ruivo e rechonchudo, ria enquanto um moço mais jovem vestido com calças de montar e chapéu de palha murmurava alguma coisa. Juntos ajustavam as bridas a uma égua de cor castanha.
George ouviu as pisadas de Vergil e se virou ruborizado.
O menino mais jovem simplesmente ficou rígido. Vergil notou algo familiar naquelas costas esbelta, e se precaveu da forma peculiar em que as calças se esticavam sobre a curva das nádegas. Viu aquelas formas antes, emergindo nuas da água.
—Senhorita Kenwood, vejo que você também cavalga cedo.
Ela se voltou despreocupadamente, como se ninguém devesse se surpreender de encontrá-la nessa situação por usar calças de montar todos os dias. Talvez fosse assim. Quem podia sabê-lo? Pen, Charlotte e Dante provavelmente não sairiam de seus quartos até meio-dia.
—Pensei que seria agradável sair para cavalgar pela manhã. —Ajustou o freio como alguém que sabia o que estava fazendo.
—George se ofereceu a te acompanhar? Que cavalheiresco por sua parte.
—Tinha intenções de cavalgar sozinha.
—Bom, não podemos permiti-lo a uma hora tão inoportuna. Entretanto, pode cavalgar comigo. —Examinou a égua— Cometeu um engano, George. Se este animal for para a senhorita Kenwood, necessitará uma cadeira de mulheres. Depois pode preparar meu cavalo. Esperaremos fora.
Bianca caminhou para o pátio com ele. Ele retrocedeu um pouco na luz chapeada da manhã e percorreu um metro e sessenta e cinco de moléstia com seu olhar.
Sua camisa de algodão formava uma bolsa em torno de seu corpo, mas mesmo assim revelava o inchaço de seus peitos. As calças de montar penduravam folgadas de suas coxas até as botas, onde se introduziam, mas não eram folgadas em nenhum outro lugar. O chapéu de palha sobre sua testa enfatizava seus olhos.
Tinha todo o aspecto de uma mulher provocadora e de má reputação.
Caminhou para frente e golpeou a perna com o látego. O ligeiro picor o distraiu do impulso de… Nada que pudesse contemplar e sem dúvida nada que pudesse nomear.
—George demorará a preparar os cavalos. Volta para seu quarto e troque de roupa.
Ela baixou as pálpebras ante aquela ordem. Ele esperava que ela resistisse. Que demônios faria ele então? Ninguém debaixo de sua autoridade nunca o havia desafiado, e menos uma mulher. Por sorte, ela deu a volta e caminhou a grandes pernadas em direção à casa.
Ele retornou ao estábulo.
—A senhorita Kenwood cavalga sozinha frequentemente? —perguntou ao George.
George deu de ombros.
—Só estas últimas manhãs, milord. Ouvi um ruído aqui a semana passada e a encontrei selando essa égua, por isso a ajudei.
—E sua indumentária?
—Chegou com essa roupa esta manhã. Tem sentido, porque sempre cavalga escarranchada. É uma boa pessoa, só que com uma mentalidade um pouco livre para este lugar. São diferentes, os americanos. Falam como se o conhecessem de toda a vida. —inclinou-se para revisar uma ferradura.
—Sim, são diferentes. Não me deixe suspeitar que interpretou mal essa familiaridade.
George lançou um olhar de horror como se a insinuação fosse muito escandalosa para ser considerada. Vergil pegou as rédeas da égua e a levou até o pátio.
A senhorita Kenwood saiu da casa justo quando George tirava fora o cavalo castrado de Vergil. Levava uma bata de montar violeta de corte austero e com poucos adornos. Sobre seu penteado formal se encarapitava uma alta cartola, cuja borda roçava suas sobrancelhas.
—Onde tinha planejado cavalgar? —perguntou ele assim que estiveram montados.
—Oh, simplesmente queria dar um passeio pelos arredores.
Ele a conduziu através do parque. Ela não deixava de queixar-se por sua posição na cadeira de montar. Escorregava por ambos os lados olhando as pernas com o cenho franzido.
—Não está acostumada a isto?
—Não vivia nas margens da civilização. Também em Baltimore as mulheres fazem coisas horríveis e perigosas.
—Ali cavalgava escarranchada?
—Sim. —Olhou-o com atitude desafiante, depois sorriu de maneira zombadora— Tia Edith me proibia montar à inglesa a menos que avançasse a passo de tartaruga, e eu não me sentia inclinada a fazê-lo. Ela sabia de muitas mulheres que caíram da cadeira de montar quando cavalgavam rápido.
—E como reagia as pessoas quando cavalgava escarranchada através da cidade, com calças de montar e com botas?
—Se não fosse à sobrinha-neta de tia Edith, alguns teriam se escandalizado. Ninguém se atreve a atacá-la. Quando era moça participou ativamente em nossa guerra da Independência. Conhece todos os grandes homens daquela época. Se um presidente fizer visitas a uma mulher, ninguém se atreve a criticá-la muito.
—Parece uma mulher muito interessante. É uma lástima que não tenha te acompanhado nesta viagem.
—Se não fosse à idade, o teria feito. Estaria agora ali atrás, exortando George para que compreendesse que ele é igual aos outros moços e não deveria curvar-se ante ninguém.
—A Inglaterra não necessita radicais importados. Estamos criando muitos de produção própria. E não é que George se encurve. Retrocedeu porque sabe que levanta suspeitas sobre um homem o fato de que esteja a sós comportando-se de maneira tão familiar com uma dama jovem, especialmente a uma hora como essa.
—Já vejo. Entretanto, você é um homem e agora está a sós comigo, não? Isso é suspeito?
A insinuação o deixou desconcertado. O sorriso zombador da senhorita Kenwood era um indício de que não se achava ante uma escolar ingênua que permanecia ignorante sobre o que podia ocorrer entre um homem e uma mulher juntos e sozinhos durante horas.
—Sou seu tutor. É como se fosse seu pai.
Ela se pôs a rir a gargalhadas, melodiosas como o timbre de sua voz.
—Que o céu me ampare, senhor Duclairc. Com um pai como você teria me convertido na mais aborrecida das mulheres.
—Quer dar a entender que os pais aborrecidos criam filhas aborrecidas?
«Está insinuando que sou um homem aborrecido, uma espécie de bagagem molesta?» O desejo de demonstrar até que ponto podia deixar de ser aborrecido penetrou em sua mente desde que a tinha visto no estábulo.
—Não, senhor. Simplesmente acredito que os pais estritos criam filhas de mente muito estreita.
—Concluo que sua educação, menos ortodoxa, salvou-te de ter uma mente estreita.
Ela posou seus grandes olhos azuis nele durante um momento, observando-o como se fosse capaz de ver as noites e inapropriadas imagens que avançavam sigilosamente em torno das bordas de sua mente ao aludir impulsivamente essa indiscreta questão. O impacto daquele olhar nu foi tão assombroso como se ela acabasse de acariciar sua coxa.
—Tive experiências no mundo, senhor Duclairc, e por isso minha mente não é estreita. Quando meu pai morreu, minha mãe teve que manter-se e me manter, por isso voltou a cantar. Eu tinha onze anos então, e durante os seis anos seguintes vivemos uma vida errante, viajando uma grande parte do ano.
«Experiências no mundo.» Bianca devia ter dezessete anos ao morrer sua mãe, uma garota bonita viajando na companhia de uma mãe cuja profissão sem dúvida implicava tratar com homens.
—Minha opinião teria sido que o acertado seria te deixar com sua tia, em vez de te arrastar por cidades e povos estranhos.
—Ah, sim? Essa teria sido sua opinião? —Ela estava sugerindo que ele era tão previsível que essa opinião não a surpreendia absolutamente— Eu não teria insistido em ficar, não depois de perder meu pai. Minha mãe necessitava alguém que cuidasse dela. Não era uma mulher muito prática. Tocava-me assegurar que chegasse de um lugar a outro.
—Um estranho papel para uma menina.
—Não fui menina por muito tempo, e não é que estivesse planejado que me encarregasse dessas coisas. Simplesmente o fazia porque ela era muito torpe organizando as viagens.
«Não fui menina por muito tempo.»
—A vida deveria ser muito aborrecida quando foi viver com sua tia.
—Estava preparada. A morte de minha mãe acabou com minha vitalidade, e precisava estar um tempo instalada em um lugar para pôr as coisas em seu lugar. Só quando tia Edith contratou para mim um professor de música comecei a recuperar meu estado normal.
Vergil imaginava. Aquela menina precoce com sua mãe caprichosa, organizando o valor a ser pagos pelos concertos nas Igrejas e nos pequenos povoados. Os papéis estariam invertidos e aquela pequena garota loira se encarregaria de negociar pelo transporte e de administrar os recursos, emocionante, possivelmente, e sem dúvida uma experiência que a faria amadurecer.
Entretanto, não era uma infância normal. Não teve horas de brincadeiras despreocupadas e, provavelmente, tampouco teria amigos. Sem mais amparo, nem segurança que a que ela mesma pudesse procurar. Sentiu certa compaixão por ela e admirou sua força, apesar de que essa força prometesse ser um inconveniente.
Seu passeio distraído os levou até a parte sul do lago e deram a volta para retornar. A senhorita Kenwood parecia irritantemente indiferente ante o fato de achar-se no mesmo lugar onde no dia anterior foi tão indiscreta.
—Nossa família viveu aqui desde o tempo dos normandos — explicou ele, decidindo que devia impressioná-la com a história da família e prepará-la para os cuidados de Dante— Tanto nosso nome como o da fazenda provêm destas águas. «Lago claro.» Duclairc é uma junção de du clair lac, igual é Laclere.
—Tempos dos normandos. Naqueles tempos, os antepassados dos Kenwood provavelmente viviam em cabanas.
—Bom, o dinheiro tem seu modo de nivelar essas diferenças.
—Que ideia tão democrática, senhor Duclairc. Quase americana.
Ele entrou pelo caminho que conduzia para as granjas.
—Pode parar com isso. Já foi suficiente.
—Parar com o que?
—Senhor Duclairc.
—Não pretendia ofender. Tia Edith me fez prometer que não faria reverências a nenhum aristocrata, nem sequer ao rei.
—Seus diplomatas se adaptam aos costumes quando vêm a este país, como o fazem a maioria dos visitantes.
—Eu não sou uma diplomata. E tia Edith…
—Sim, sim, a revolução e tudo isso. Se se dirigir a mim como lorde Laclere conjura o fantasma de Washington, pode me chamar simplesmente Laclere.
—Que generoso por sua parte. Então possivelmente você poderia me chamar Bianca.
Ele preferiria não fazê-lo. Certamente. Inclusive aquela vaga familiaridade com essa jovem estava provocando sensações muito incômodas. Ela era sua pupila e logo poderia chegar a converter-se na esposa de seu irmão, e ele a encontrava exasperante, para falar de um modo delicado. Ao mesmo tempo, um atrativo e desconcertante fogo crescia em seu interior. Borbulhas em ebulição rompiam de vez em quando a superfície, pequenas explosões que não estava disposto a aceitar debaixo daquelas circunstâncias. Sob nenhuma circunstância. Chamá-la Bianca unicamente obteria que outra dessas borbulhas estalasse ao pronunciar seu nome.
—Acredito que isso seria muito familiar.
—Bom, então possivelmente Laclere também seja muito familiar. —Ela inclinou a cabeça— Já sei. O chamarei tio Vergil. Apesar de que disse que o fato de ser meu protetor o converte em uma espécie de pai, dizer «papai» soaria ridículo.
«Tio Vergil, por Deus.» Ele conseguiu olhar por debaixo da asa de seu chapéu e captou um fugaz sorriso. Estava brincando com ele deliberadamente e ele continuava mordendo a isca.
O pior era que suas provocadoras ambiguidades e seus olhares oblíquos a deixava com um ar mundano que tornava implacável aquele fervor que ele sentia.
—Tio Vergil, estamos perto da fronteira com Woodleigh?
—Está justo ao outro lado dessa colina. Pode ver a casa dessa cúpula. Você gostaria de subir?
Ela aceitou. A Vergil não passou despercebido que ela soube como encontrar o caminho mais simples sem necessidade de sua ajuda.
Bianca chegou até o topo da colina de onde se divisavam os principais campos de Woodleigh. A distância conseguiu ver a imponente mansão de inspiração clássica que Adam Kenwood construiu.
—É muito grande, não?
—Sim.
Ele respondeu em voz baixa, mas ela pôde ouvir um deixe de desaprovação. Muito grande. Muito. Essa enorme massa resultava vulgar, especialmente para alguém que acabava de ser renomado barão. Sua condição de novo rico se deixava ver dos alicerces até as chaminés. Vergil deveria ser amigo de Adam, ou do contrário seu avô não o teria renomado seu tutor, mas ao que parece isso não liberava aquele velho comerciante do julgamento desse aristocrata cuja linhagem se remontava à época dos normandos.
Ela não lamentava aquela censura. De fato, agradava-a. Embora Adam Kenwood tenha deixado em herança uma fortuna, ela o odiava de todos os modos. Se tivesse legado aquela casa a ela, a teria feito arder até seus alicerces. Ela sabia que ele cometeu um grande pecado, e não cabia dúvida de que muitos outros tinham escurecido sua vida.
Bianca baixou a colina a meio galope até os campos. Vergil chegou até seu lado quando se deteve frente à casa.
—Me ajude a desmontar, por favor.
—Senhorita Kenwood, seu primo herdou esta propriedade, e ainda não retornou da França. Deveria esperar que ele se instalasse aqui antes de fazer uma visita. A casa esteve fechada durante meses, e unicamente há uns poucos criados cuidando da propriedade.
—De fato, meu primo retornou há uma semana. Me ajude a baixar ou saltarei de um modo nada elegante.
A ajudou a descer do cavalo.
—Pretende entrar, verdade?
—Pode ser que Nigel, meu primo, tenha obtido a casa e as terras, mas os objetos privados de meu avô me pertencem. Quero ver como estão. Assim que explique quem sou e quais são meus direitos os criados me deixarão fazê-lo.
Ele aceitou sua decisão mais rápido do que ela esperava, e conseguiu que os deixassem entrar. Uma vez ali a acompanhou até o escritório de Adam Kenwood.
Bianca se deteve no centro da estadia e respirou o aroma da presença de seu avô. Um piso de madeira cobria a parte baixa das paredes, e um enorme escritório estava posto de lado em um canto. Havia prateleiras com pastas e grandes livros, mas outros documentos tinham sido amontoados em embalagens de madeira que se alinhavam ao longo de uma parede e rodeavam um pequeno baú.
Ela notou que Vergil a contemplava da soleira.
—Você o conhecia bem? —perguntou ela.
—Antes de construir Woodleigh tinha uma relação de amizade com meu irmão mais velho, Milton. Depois da morte de Milton, cheguei a conhecer Adam bastante bem.
—Nisso me leva vantagem. Eu sabia que era o avô da Inglaterra, mas meus pais nunca falavam dele. Ao me fazer maior me dei conta de que esse velho homem permitiu que meu pai vivesse na pobreza enquanto ele acumulava uma enorme fortuna. —Estendeu o braço para assinalar a luxuosa casa.
Vergil entrou na estadia e examinou as gavetas do escritório.
—Seu avô obteve muitos lucros da frota marinha e outros comércios. Durante as primeiras batalhas de Napoleão, seus navios fizeram um grande serviço ao Governo, e o rei lhe outorgou o título de barão. Como a maioria dos homens, ele pretendia que seu filho fosse um cavalheiro e planejava educá-lo para isso. Entendi que seu pai tinha outras ideias e por isso partiu para América.
—Acredito que não foi sua decisão ir a América o que fez que se distanciassem, mas sim a decisão de casar-se com minha mãe. Não era uma esposa adequada para o filho de um homem que lutava para abrir caminho na alta sociedade da Inglaterra.
Ele tirou uma pasta de uma gaveta e a folheou.
—Como já te expliquei, uma profissão como a de sua mãe não está bem vista aqui.
—Suspeito que não esteja bem vista em nenhuma parte. Minha mãe não estava tão má vista em parte por seu parentesco com tia Edith. Além disso, interrompeu sua profissão ao casar-se com meu pai. Ela dava aulas particulares, e ela conseguiu manter a casa com dignidade apesar das circunstâncias. Não foi suficiente para aquele velho homem.
Ele voltou a colocar a pasta em seu lugar e depois de uma inspeção mais atenta extraiu outra.
—Bom, ao final se lembrou de você.
—Desgraçadamente, o final chegou um pouco tarde.
—Ouço um deixe de amargura.
Havia um deixe de amargura. Até ela notou o ressentimento que podia ouvir em sua voz.
—Uma minúscula parte dessa herança teria economizado muitos pesares a minha mãe, e provavelmente até teria salvado sua vida. Morreu de uma febre da qual se contagiou enquanto viajávamos.
Ele levantou a vista da pasta como se ela houvesse dito algo particularmente interessante.
—Já vejo. Assim agora quer se vingar de Adam pela morte de sua mãe, usando sua fortuna para se converter em uma artista como a mulher que ele repudiou.
Aquela acusação lhe fez sentir uma pequena fúria dando voltas em sua cabeça.
—Você frivoliza meu propósito. Aspirava minha carreira como cantora de ópera muito antes de me inteirar dessa herança. —Observou de novo a estadia— Entretanto, agora que o diz, há certa justiça em usar o dinheiro desse homem para me converter precisamente no que ele desprezava.
—Parece mais uma brincadeira pesada que justiça. Antes que desfrute com sua brincadeira deveria te explicar que uma parte do que sabe sobre seu avô se apóia em um engano.
—Que engano?
—Pelo que ele me disse, estou seguro de que não rompeu relação com seu pai. Foi seu pai quem rompeu com ele.
—Não acredito.
—Pode acreditar no que quiser, mas isso era o que Adam recordava.
Aquilo estragou a brincadeira e a justiça. Provocou uma fratura no ressentimento que lhe gelava a alma, aquele ressentimento que tinha crescido em seu coração enquanto contemplava como sua mãe tossia e perdia a vida em uma hospedagem de aluguel nas margens do mundo.
—Disse isso a você só para que não o acreditasse frio e desalmado.
—Minha opinião não lhe importava muito.
—Então mentiu a si mesmo, para poder morrer sem culpa.
—Possivelmente.
Ela observou os documentos que havia na estadia. A verdade provavelmente estaria em alguma parte. Deveria procurar as cartas de seu pai. Inclusive podia haver algumas de sua mãe pedindo ajuda quando enviuvou.
Em realidade não deveria importar o que aconteceu, mas importava. Se ia construir sua vida ao amparo da riqueza daquele homem, queria saber se devia estar agradecida ou brincar com ele enquanto o fazia.
—Há algum modo de saber o que é o que me pertence do que há aqui?
—O advogado separou os papéis. Aquelas gavetas contêm os que são pessoais, enquanto as contas da propriedade estão nas estantes. —Assinalou o pequeno baú— Suponho que o que havia em seu escritório e outras coisas de valor estão ali sob chave.
—Quero ler esses documentos pessoais. Perguntarei a meu primo se posso o visitar e fazê-lo.
—Seria mais conveniente levá-los a Laclere Park. Ali poderá revisar o material a seu desejo. Me encarregarei da transferência.
—Estou segura de que meu primo não se importaria que revisasse os documentos aqui.
—Sim me importaria.
Ela o olhou diretamente aos olhos.
—Não tem sentido mudá-los duas vezes. Esperarei até que possam enviar-se a meu próprio alojamento em Londres.
Lhe devolveu o olhar.
—Não tem alojamento em Londres, e não o terá por muito tempo.
Ela não esperava que fosse tanto tempo, mas ele não se deu conta ainda.
—De acordo, para começar levemos isto a Laclere Park.
Quando abandonaram a casa, ela viu que ele ainda levava uma pasta. Ele notou seu olhar de curiosidade.
—Há aqui algumas cartas de meu irmão. Espero que não te importe que tome emprestada esta pasta para lê-las.
—Absolutamente. —Comoveu-a que quisesse fazê-lo. Era mais sentimental do que ela esperava— Quando seu irmão faleceu?
Ele a ajudou a montar o cavalo.
—Faz menos de um ano.
—Possivelmente haja mais cartas. Quando tivermos todo o material em Laclere Park, poderemos as procurar.
Enquanto passeavam com seus cavalos para os campos, um jovem loiro galopou para eles, saudando com o braço.
Parecia um modelo extraído de uma lâmina de moda, com o elaborado nó de seu lenço, seu alto chapéu de castor e seu moderno casaco.
O jovem desceu de seu cavalo e tirou o chapéu.
—Senhorita Kenwood! Que feliz coincidência vê-la outra vez. Pensar que se tivesse ficado mais um dia em Londres, como tinha planejado não a teria encontrado.
Vergil não se alterou por esse «outra vez».
—Você deve ser Nigel Kenwood, o primo de minha pupila. Eu sou Laclere.
—É um prazer o conhecer por fim, lorde Laclere.
—Teria o chamado se soubesse que residia em Woodleigh. Pensei que ainda estava na França. Minhas desculpas.
Nigel sorriu a Bianca. Pareciam-se um pouco. Seus olhos eram igualmente azuis e seu cabelo igualmente dourado. Um homem bonito decidiu, exceto as expressões de seu rosto sugeriam um temperamento instável.
—Levo aqui só uma semana. Revisar os assuntos de Woodleigh me manteve muito ocupado, mas agora minha vida está se estabilizando.
—Então deve visitar logo Laclere Park. Estou seguro de que as damas estarão encantadas. Há muito poucos rostos novos no campo.
—Obrigado. Farei.
Nigel sorriu de novo a Bianca com admiração. Bianca lhe devolveu um doce sorriso. Vergil sorriu muito fracamente aos dois.
Prestou a Nigel mais atenção da devida.
Graças a Deus Vergil era um homem inteligente. Ela não tinha nenhuma intenção de mentir, só estava semeando nele suficiente preocupação para que decidisse não expor sua influência a doce Charlotte.
Rechaçaram o convite de Nigel a um refrigério e retomaram seu caminho. Vergil se aproximou dela.
—Já tinha conhecido o novo barão. Não o mencionou.
—Não o fiz? Há uns dias cavalguei perto de Woodleigh e o encontrei. Pareceu-me correto parar e falar com ele, já que é meu parente.
—Mostrou-te Woodleigh?
«Entrou na casa? Esteve a sós com ele em sua casa?» A expressão dele permanecia tão cuidadosamente impassível que lhe deu vontade de rir.
—Sim, fez. Era a propriedade de meu avô, assim tinha curiosidade. —Em realidade só tinha visto os jardins, mas se sentiu contente consigo mesma por ter deixado o visconde dando voltas a uma nova ambiguidade.
—Acredito que era sua intenção desde o começo visitar Woodleigh para investigar o escritório de Adam esta manhã. Estou feliz de que tenha podido satisfazer esse desejo.
Ela não acreditava que ele estivesse feliz absolutamente. Parecia estar considerando o que implicava que ela visitasse Woodleigh com camisa e calças de montar sabendo possivelmente que Nigel não estava em Londres.
Ela concluiu que, em termos gerais, aquela manhã de passeio a cavalo tinha sido um êxito.
Tomaram um caminho de volta mais direto. Ela se sentia agora mais segura em sua cadeira de montar de mulher, galopou através do parque e não diminuiu o ritmo quando entraram no bosque. A rosada luz do sol penetrava entre os ramos, criando maravilhosas e imprecisas manchas enquanto ela avançava velozmente. Aquele efeito visual a distraía e se achava despreparada quando de repente, e de forma inexplicável, seu cavalo encabritou de um modo violento.
O entorno seguiu sendo impreciso, mas agora de um modo diferente. O chão e as árvores pareciam dar voltas enquanto ela lutava para recuperar o controle sobre o animal. Este estava como louco e se retorcia parado sobre as patas traseiras. A cadeira de montar não pôde sustentá-la. Caiu ao chão sobre seu estômago e recebeu um impacto que aturdiu seus sentidos.
Ainda mais espantoso foi o peso que imediatamente caiu sobre suas costas e os antebraços que sentia a cada lado de sua cabeça. Vergil estava em cima dela, cobrindo suas costas e sua cabeça com seu próprio corpo. Ela lutou contra ele indignada e abriu a boca para protestar.
Um estalo quebrou o silêncio da manhã. Vergil a pegou pelos ombros com firmeza e lhe deu a volta apoiando-a sobre o barro.
—Vigia seus disparos! —gritou ele encolerizado na direção do som. Com a mão direita apertava os extremos das rédeas e os dois cavalos relinchavam e faziam cambalhotas.
De repente não lhe importou que estivessem ridículos, escancarados juntos desse modo.
—Quem será que disparou?
—Caçadores furtivos, provavelmente procurando faisões. É muito audaz por sua parte usar revólveres em lugar de armadilhas. Só se atrevem a fazê-lo muito cedo na manhã. Estamos a vários quilômetros da casa e eles supõem que as famílias estão ainda na cama.
Ouviu-se um novo estalo. Desta vez ela ouviu um pequeno golpe como o de uma bola, contra a árvore que tinham à esquerda. Os cavalos encabritaram e quase conseguiram soltar-se. Vergil soltou uma maldição e voltou a gritar.
Ele continuava apertado contra ela, com todo seu peso sobre suas costas. Sua respiração fazia cócegas em sua nuca. O tecido de suas mangas roçava brandamente suas bochechas.
Ela não se sentia nada em perigo, a não ser segura e protegida do modo mais quente. A íntima proximidade acendeu nela uma ardente resposta. Respirou seu aroma a sabão e couro, e um estranho bater de asas a percorreu, do coração até o estômago.
—Agora pode entender por que não deve cavalgar a esta hora. É perigoso — disse ele.
—Você vai cavalgar.
—É diferente. —Ela sentia as palavras junto a seu ouvido, como se ele tivesse aproximado ainda mais a cabeça. Tinha-a abraçada contra o chão, o queixo dela se apoiava sobre as folhas e a terra. A cálida brisa de seu fôlego acariciava suas têmporas, fazendo que aquele bater de asas se voltasse furioso.
Ele se elevou, mas sem afastar-se completamente. Permaneceu sobre ela. Algo que não era capaz de nomear vertia dele para ela. Isso a assustou. O bater de asas se fez ainda mais forte e encheu seu peito.
Deu a volta e o olhou diretamente aos olhos. Ninguém em sua vida jamais cuidou dela de uma maneira tão… Explícita. Ao menos não de tão perto. Aquele olhar pareceu penetrar diretamente em sua mente e explorar sua vontade.
Já não se sentia segura e protegida. Mas bem o contrário. O bater de asas se multiplicou adquirindo um ritmo frenético e um zumbido que se apoderou de seu corpo e de seus membros. Os alertas de uma advertência. E excitação.
A tensão que refletia em sua expressão o fazia extraordinariamente atrativo. Incorporou-se, de joelhos, para lhe oferecer sua mão e ajudá-la a sentar-se.
—Se machucou ao cair?
Ela moveu as pernas com cautela.
—Só fiquei sem fôlego. Em realidade a queda não foi muito forte, mas estarei um pouco dolorida amanhã. —apressou-se a levantar-se— Como protetor é excelente, tio Vergil. Não haveria muitos homens dispostos a lançar seu corpo entre a bala de um mosquete e uma mulher que mal conhecem.
—Qualquer homem inglês de honra o teria feito senhorita Kenwood.
Fizeram os cavalos caminhar durante um tempo para que se acalmassem, depois cavalgaram os últimos quilômetros de volta a casa. Sua silenciosa companhia a incomodava e aquela estranha excitação ainda deixava ouvir seu murmúrio. Nos estábulos, ele se deixou cair do cavalo e foi ajudá-la a desmontar. Ela se deteve quando seus braços a alcançaram.
Ele notou sua vacilação. Seus olhos azuis se encontraram com os dela de uma maneira especial. Ela começou a respirar com dificuldade e se sentia incapaz de afastar o olhar.
Uns dedos fortes rodearam sua cintura e a deslizaram para baixo. Deu a impressão de que ele demorava muito em soltá-la, o momento pareceu prolongar-se enquanto ele a sustentava tão somente a escassos centímetros. A suave pressão de suas mãos e a cercania de seu corpo a fizeram tremer.
—Obrigado. Desfrutei muito do passeio a cavalo. —Ela recuperou sua compostura e deu a volta.
—Me alegro de que tenha desfrutado, especialmente já que é o último.
Ela deu meia volta para olhá-lo no rosto.
—Está dizendo que não poderei voltar a cavalgar enquanto esteja aqui?
—Naturalmente que pode, acompanhada e bem entrado o dia. Entretanto, pedirei aos moços que não voltem a te dar um cavalo tão cedo pela manhã, e a nenhuma hora se pretende ir sozinha. —Ele se expressou com tanta autoridade e tanta calma como sempre, mas ela sentiu crescer a tensão a seu redor— Não organizará mais encontros furtivos com seu primo Nigel. Poderá vê-lo quando ele vier aqui de visita, ou quando Penelope convidá-lo.
Encontros furtivos? Sua imaginação extraiu daquelas ambiguidades mais conclusões das que ela pretendia.
Continuou caminhando sem corrigi-lo.
«Deixemos que pense o pior.»
***
Vergil aproximou uma cadeira à cama, sentou-se nela e levantou sua bota para dar a seu irmão um bom empurrão no quadril.
Dante gemeu e cobriu os olhos com um braço. Olhou por debaixo deste, viu Vergil e voltou a resmungar com resignação. Deixou escapar um suspiro de irritação e se incorporou para apoiar-se contra a cabeceira.
—Bom dia, Vergil.
Vergil viu o peito nu de seu irmão e observou os dois copos e a garrafa de vinho vazia que havia sobre a mesa.
—Quase toda a noite com Marian suponho. Disse-lhe que deixe às criadas em paz, Dante. Não quero que ninguém as incomode.
—Um homem não molesta Marian; ele luta por sua vida. Mas o que acontece com você. Por mais que lhe goste. Não seria discreto por sua parte.
—Tampouco é discreto pela tua. A mulher que pretende se casar está na casa.
Dante apoiou a cabeça contra a cabeceira e sorriu.
—Ah, sim, a bela Bianca. Sua descrição não lhe fez justiça. É realmente uma coisinha doce e jovem, só que um pouco ingênua. É encantador ver como luta por imitar nossas formas.
«um pouco ingênua?»
—Acabo de dar uma longa volta com sua coisinha doce e jovem.
—A julgar pelo estado de seu casaco, parece que esteve derrubando pelo chão com ela.
—Alguns caçadores furtivos estavam atirando e acabamos caindo do cavalo. —Não era exatamente isso o que tinha acontecido, mas não fazia sentido explicar detalhes que suscitariam perguntas a respeito— Me alegra saber que a senhorita Kenwood te parece apropriada. Entretanto, devo te advertir que tem concorrência.
—Nada sério — disse Dante bocejando.
—Nem sequer ouviu de quem se trata.
—Confio em que não seja você.
Vergil lhe lançou um olhar mordaz que escondia um incômodo sentimento de culpa.
—Só estava brincando, Vergil — sorriu Dante— Está tão claro que não encaixam e que ela te odeia que não pude resistir.
A menos que ele se equivocou completamente ao interpretar as coisas quando estavam atirados no chão, se encaixavam de um modo estupendo e perturbador.
—Seu rival não sou eu, a não ser um homem com um título nobiliário.
Aquilo freou a alegria de seu irmão. Dante tinha uma suprema confiança em sua habilidade para tratar com as mulheres, mas dado que era o filho mais jovem dita habilidade não tinha por que traduzir-se na possibilidade de casar-se com quem quisesse.
—De quem se trata?
—De seu primo, Nigel Kenwood.
—O segundo barão de Woodleigh? Com seu título recém estreado e de pouca subida não impressiona a ninguém.
—A ela não importam as delicadas questões do nascimento e a fila, e eles são parentes, o qual significa que têm um vínculo natural. Eu acreditei que ele se achava na França, administrando a herança de Adam, mas temo que retornou antes do que eu calculava. A questão é que já está aqui e se estabeleceu como nosso vizinho. Suspeito que tinha a esperança de encontrá-la aqui conosco. Afinal, ela recebeu quase tudo o que não foi deixado à caridade. Suponho que ele acredita que tem algum direito a ela.
Dante não parecia exatamente preocupado, mas Vergil monopolizou sua atenção.
—O que sabe você desse primo dele?
—É o neto do irmão de Adam. Começaram juntos nos negócios, mas o irmão teve um problema financeiro e Adam comprou sua parte. O pai de Nigel não quis tocar o negócio, apesar de Adam lhe ofereceu participar. Nigel, por sua parte, decidiu fazer-se artista e viveu em Paris até alcançar sua maioridade.
—Um boêmio? Sejamos sérios, Vergil, não acredito que…
—Não é um pintor. É músico. Adam se gabou uma vez sobre o menino e seu pianoforte.
—Ah, bom. Um músico. Pequeno motivo para alarmar-se.
—A senhorita Kenwood também se dedica à música, assim é provável que sim haja um motivo para inquietar-se, e até para alarmar-se.
Dante elevou suas sobrancelhas ante essa nova fofoca.
—É cantor — explicou Vergil— Gosta da ópera. Assim Nigel tem um possível atrativo. Interesse em comum e um parentesco de sangue.
—Exagera as duas coisas. Estamos falando de casamento, não de uma relação amorosa. Tinham nossos pais interesses em comum? Você e Fleur têm algum interesse em comum?
Ele e Fleur tinham em comum os interesses mais básicos, mas aquele não era o assunto. Vergil ficou de pé.
—Bom, mais te vale atuar com rapidez. Eu tentarei evitar que Nigel faça visitas frequentes, mas não posso impedir sua entrada na casa.
Caminhou até a porta. A voz de Dante o seguiu.
—Bom, e agora, irmão mais velho, o quão rápido quer que vá?
Vergil deu a volta para olhar Dante. Imagens desse peito e esses braços nus abraçando Bianca estalaram em sua mente, incitando-o a uma reação desagradável. Durante um momento não respondeu, enquanto tentava desfazer-se das imagens e da ira. Aquele abraço seria inevitável. E necessário.
—Não chegue a desonrá-la —disse— E mantém suas mãos afastadas de Marian enquanto esteja nesta casa. Não quero que as damas se escandalizem.
Capítulo 4
Penelope visitou o escritório de Vergil aquela tarde, para lhe comunicar que tinha recebido uma carta no correio do dia dizendo que Fleur e sua mãe viriam de visita em um prazo de dez dias.
—Estarei fora na semana anterior, mas prometo voltar a tempo — a tranquilizou ele.
—Acredito que também convidarei alguns amigos de Londres — disse Penelope— Darei a Bianca à oportunidade de desdobrar suas asas.
—Não convide muita gente, Pen. E escolhe cuidadosamente.
—Há outra coisa, Vergil. Suspeito que Dante esteja começando a ter certa debilidade por ela.
Ele tentou concentrar-se no que Pen estava dizendo, mas sua mente estava absorta contemplando à senhorita Kenwood estendida sobre o chão e olhando-o com um rubor de surpresa que lhe enviava rajadas de calor através de suas veias. Suas mãos notavam sua feminina cintura uma vez mais e seu corpo lhe advertia o perigo da cercania ao ajudá-la a descer do cavalo. Um misterioso perfume de lavanda enchia sua cabeça.
—Não se preocupe Pen. Dante não se verá envolto em uma confusão sem dar-se conta.
—Não me preocupo com Dante. Bianca, entretanto, parece tão ingênua.
«Ingênua?»
—E Dante… Vergil, não sei se você é consciente, estou segura de que ninguém fala contigo sobre isto, vendo que é tão… Mas se rumoreja que é um mulherengo implacável.
Perguntou-se do que pensaria Pen que falavam os homens quando se reuniam depois de comer com uma taça de porto e uns cigarros. Passou anos recebendo brincadeiras pelas conquistas de seu irmão, e em mais de uma ocasião se viu obrigado a olhar de frente um marido irado.
—Inclusive Dante respeita as regras básicas. Se estiver interessado nela, estou seguro de que isso o honra.
Ela pestanejou atônita.
—Permitiria?
—Por que não teria que fazê-lo?
—Ela é muito ignorante das questões mundanas e se desiludiria terrivelmente quando soubesse a verdade a respeito dele.
—Não quero interferir, Pen. Deixemos que as coisas sigam seu curso. Se ele a conquista, terão que solucionar seus assuntos da mesma forma que todos os casais o fazem.
—Você pode dizer isso, mas eu sempre lamentei que ninguém tivesse me advertido a respeito de Anthony.
Ele quis fazê-lo, mas não o correspondia sendo tão somente um jovenzinho, especialmente com sua mãe viva e encarregando-se de tudo. Um moço não podia aproximar-se de sua irmã mais velha e informá-la de que o maravilhoso conde com quem estava disposta a casar-se tinha fama de libertino, e que as escuras alusões a seus pecados não eram das típicas.
Entretanto, alguém devia tê-la advertido, e ele recordava muito bem a infelicidade de sua irmã. A separação oficial do conde durante esses últimos cinco anos havia lhe trazido certa paz, mas a custa de sua reputação social e uma permanente solidão. A lembrança de que um mau matrimônio podia ser o inferno o fez sentir-se incômodo a respeito de Bianca, e desejou que Pen não tivesse trazido a conversa seu próprio matrimônio, sem amor e sem filhos.
Ela o olhou com feminino ceticismo.
—Manterei minha língua presa e observarei como se desenvolvem as coisas, mas se suspeitar que ele está jogando com ela, chamarei sua atenção severamente, Vergil. Isso é algo que não tolerarei.
—Faz o que acredite ser o melhor, Pen.
Ela saiu, e ele voltou a se concentrar na carta que estava lendo quando entrou.
Examinou o conteúdo outra vez. O maior problema de um segredo é que sempre reclama sua atenção no momento mais inoportuno. Tinha planejado ficar ali todo o tempo que Dante estivesse, mas agora não ia ser possível.
Saiu do escritório e se dirigiu a seu aposentos para dizer a Morton que empreenderia uma viagem depois de amanhã.
***
À tarde do dia seguinte Bianca se achava sentada no salão, dando golpezinhos com o pé de maneira impaciente. Esperava que logo se apresentasse uma visita. Infelizmente, aquele que anunciava o cartão que o mordomo entregou a Pen não era o mesmo que ela esperava.
Nigel entrou despreocupado, com um ar muito romântico graças a seu paletó parisiense tão estreito na cintura, seu cachecol escuro e seu cabelo despenteado que chegava ao ombro. Obsequiou Bianca um acolhedor sorriso de familiaridade enquanto Pen o recebia.
—Retornou recentemente de Paris — me disse Charlotte— Assim tem que nos contar tudo sobre Paris.
Nigel as entreteve amavelmente com algumas descrições das últimas modas. Bianca mal escutava, apesar de que seu primo virtualmente dirigisse a ela toda sua atenção. Ela estava atenta aos ruídos de outra chegada.
As portas se abriram, mas só para dar passo a Vergil e a Dante.
—Espero que seu propósito seja ficar em Woodleigh, ao menos durante o outono — disse Penelope.
—Essa é minha intenção.
—Logo vou ter umas visitas em casa, e conto com que se una a nós sempre que puder.
—É muito amável por sua parte. Visitava meu tio-avô com pouca frequência, assim sou virtualmente novo neste lugar.
—Não passou muito tempo na Inglaterra estes últimos anos, verdade Kenwood? —perguntou Vergil.
—Preferi Paris. Encontro que a cultura ali é de superior qualidade. A vida artística é muito rica.
—Você tem interesse nas artes? —perguntou Penelope— Então desfrutará com os convidados em minha festa. Sua prima, sem ir mais longe, é uma artista excelente. Canta como um anjo e teve a gentileza de entreter Charlotte e a mim em mais de uma ocasião.
A expressão de Nigel mostrava um educado interesse, mas também ia carregada de um matiz condescendente. Bianca supôs que devia ter conhecido muitas mulheres jovens cujos amigos acreditavam que cantavam como anjos.
—Nos deixe convencê-la para que cante agora — disse Charlotte— Vergil e Dante nunca a ouviram.
—Será uma honra acompanhá-la — ofereceu Nigel— Sou bastante aceitável com o pianoforte.
Bianca se sentia um pouco encurralada. Ela só tinha entretido Penelope e Charlotte com canções populares de salão, e não pode praticar seriamente durante as últimas duas semanas. Ao mesmo tempo, a oportunidade de cantar, inclusive embora não pudesse dar o melhor de si mesma, excitava-a.
Todos foram ao salão de música e Nigel ocupou seu lugar frente ao pianoforte.
—Meu repertório de canções populares é limitado — advertiu ele, dando-se certa importância.
—Possivelmente então tenha mais sentido uma ária.
Ele levantou o olhar agradavelmente surpreso. Ficaram de acordo em interpretar uma de Mozart, uma que ela tinha estado estudando justo antes de deixar Baltimore. A perspectiva dessa pequena atuação acelerou seu coração.
Os outros se colocaram em bancos e em cadeiras. Nigel começou a tocar para introduzir a peça.
Com o som das notas o espírito de Bianca imediatamente renasceu. Não precisava conter sua voz como quando praticava escalas em seu quarto. Não era o frio isolamento que tinha experimentado quando escapulia longe para cantar no campo. A alegria que sentia ao deixar sair sua voz com força dava cor aos sons.
As reações de sua pequena audiência produziram uma espécie de poder.
Penelope permanecia aniquilada, Dante encantado, Charlotte confusa, e Vergil fortemente interessado. Ela olhou Nigel e o viu dar sua surpreendida aprovação. Sua destreza com o pianoforte era considerável, e ela tinha a sensação de que ele sabia que o público apreciava essa destreza.
Ao terminar, a sala estava tão silenciosa que ela podia ouvir o zumbido dos insetos através da janela aberta. Ela desfrutou daquele momento de torcida euforia e depois relaxou.
—Foi assombroso, querida prima — disse Nigel com serenidade— Esteve estudando a sério.
—Surpreendeu a todos, Bianca — disse Penelope— E sua interpretação foi magistral, senhor Nigel. Já vejo que a música é um interesse sério para você.
—Não um interesse, a não ser uma paixão. —Seus olhos procuraram os de Bianca com um brilho trêmulo que parecia indicar que ambos compartilhavam um segredo que os outros jamais entenderiam.
—Deve me prometer que tocará para meus convidados. Possivelmente também poderemos persuadir Bianca para que cante. Será uma noite maravilhosa.
—Será uma honra para mim.
Ele começou a preparar-se para sair, rogando a Penelope que visitasse logo Woodleigh. O mordomo entrou antes que Pen o chamasse, com um cartão de visita.
—Acaba de chegar um homem, minha senhora. Deseja ver a senhorita Kenwood.
Penelope examinou o cartão e elevou as sobrancelhas ao entregar-lhe a Bianca. Antes de lê-lo, ela já sabia de quem se tratava.
O visitante que tinha estado esperando por fim tinha chegado.
—É um assunto de negócios, Penelope. Há algum lugar onde possa me entrevistar com ele a sós?
—Leva-o a meu escritório — indicou Vergil ao mordomo— A senhorita Kenwood poderá atender ali seus negócios.
Bianca se despediu de Nigel e depois se apressou a ir ao escritório, sentindo ainda a alegria do canto.
Nunca esteve no escritório. Estava orientado ao norte, e a luz se filtrava através das janelas góticas iluminando fracamente a escura mesa de madeira, as paredes cheias de livros e as paisagens de aquarela.
Seu visitante aproximou uma cadeira à janela.
—Senhor Peterson, estou encantada de que tenha vindo.
—Senti alívio ao receber sua chamada, senhorita Kenwood. Ao ver que não ia a nossa última entrevista fiquei preocupado.
—Lorde Laclere me encontrou e pôs em marcha outros planos para minha visita a seu país.
Ela se sentou em um assento acolchoado junto à janela. O batente era muito largo. Continha uma coleção de curiosos brinquedos. Um era uma catapulta feita de madeira e cadeias. Outro, uma carruagem de madeira e couro. Um terceiro não parecia ser nada em particular, tão somente um conjunto de rampas estriadas entrelaçando-se entre si, decorado com corrente e rodas.
O tipo de construção era algo rudimentar. Ela supôs que se tratava de objetos que Vergil tinha fabricado quando era menino. A ideia de que o sério e formal visconde guardasse lembranças de sua infância em seu santuário íntimo era adorável, embora se sentisse incapaz de imaginar de menino um homem como aquele.
O senhor Peterson era um homem de meia idade, pálido e calvo, com uns olhos cinza que podiam parecer sagazes ou respeitosos segundo as circunstâncias. Quando ela o visitou em Londres pela primeira vez, seu lado perspicaz tinha entendido rapidamente que embora ela não pudesse pagar seus honorários naquele momento, tinha expectativas que resolveriam as coisas adequadamente.
—Examinou o testamento? —perguntou ela.
—O fiz. Tive uma entrevista com o advogado de seu avô. Ele pareceu surpreender-se de que tivesse me encarregado o assunto, mas cooperou até onde estava obrigado a fazê-lo. Não mais, entretanto.
—E que conclusões tirou? Posso me liberar do domínio de lorde Laclere?
—Se ele não se ocupasse de você, ou houvesse alguma evidência de fraude, seria possível fazer algo a respeito, mas a Corte não permitiria a independência que você está procurando. Se o visconde não fosse seu tutor, outra pessoa seria nomeada em seu lugar. Com um homem de sua categoria, qualquer abuso de sua posição teria que ser realmente terrível para que se pudesse levar ante a Corte.
Ela se sentiu furiosa ante a decepção. Aquele brinquedo inútil captou sua atenção e viu uma pequena bola de chumbo em sua base. Refletindo a respeito de qual seria sua próxima estratégia com Vergil, pegou distraidamente a bola e a soltou sobre a rampa superior. Começou a rodar costa abaixo, de uma rampa a seguinte, de um lado ao outro, pondo em movimento várias pequenas rodas e polias cada vez que seu peso mudava de nível.
—Senhorita Kenwood, não se trata de uma situação permanente… Será menos de um ano. Você é uma moça e rica, e é compreensível que seu avô tenha querido protegê-la para evitar que seja vítima de algum caçador de fortunas sem escrúpulos.
—Quanto de rica?
—Perdoe? Supunha que você sabia.
—Sei em termos gerais. Mas exatamente a quanto ascende minha fortuna?
—Os ganhos pelo fundo de dinheiro investido sobem ao menos a três mil libras este ano.
—Essa quantidade por si só já é uma fortuna, e muito mais do que necessito para meus planos.
—Seu tutor dirigirá essa soma, subministrando os recursos de acordo com as necessidades que você tenha e os gastos que deva cobrir. Ele tem a obrigação de ser razoável em relação a seus pedidos.
Ela duvidava que Vergil fosse tão razoável para lhe dar várias centenas de libras que a permitissem escapar para Milão. Se ele controlava seus ganhos, controlava também seus movimentos. Em definitivo, controlava sua vida.
—Quanto à outra parte de sua herança, tudo resulta muito mais complicado — disse o senhor Peterson, continuando com seu relatório.
—Que outra parte?
—Seu avô era um homem de negócios. Para o final de sua vida vendeu a maioria deles. Entretanto, conservou três sociedades. Duas eram pequenas parcelas de companhias de transportes, e a terceira era a maior parte de uma companhia de algodão em Manchester. Também foram legadas a você suas ações nesses negócios, menos dez por cento das da fábrica, que foram cedidas ao seu primo.
—Entretanto, o visconde também é meu administrador. Ele dirige esses investimentos.
—As ações nessas sociedades não são parte dos investimentos permanentes, como sim o são os recursos de investimento. Se você se casar ou se faz maior de idade, ele deverá renunciar ao controle sobre elas. De fato me surpreende que ele não tenha vendido esses negócios. Representam uma ameaça para sua riqueza. Se algo sair mal, todos os proprietários são responsáveis pelas dívidas incorridas.
Aqueles negócios em realidade não lhe interessavam muito, a menos…
—Também há ganhos que provêm desses negócios?
—O advogado não esteve disposto a me permitir ver os documentos. Eu acredito que a fábrica deve dar lucros.
—E o que ocorre com esses ganhos?
—Vão para seu administrador, que presumivelmente os investe em mais investimentos. Ou se não, são enviados ao seu tutor.
Que era a mesma pessoa. Administrador. Tutor. Qualquer que fosse o lugar para o qual se desviava a conversa acabava indo parar em Vergil Duclairc.
—Senhor Peterson, eu gostaria que você estivesse presente enquanto falo com lorde Laclere. A situação que criou é intolerável. Estou prisioneira aqui.
Ela chamou o mordomo para que solicitasse a presença de Vergil. O senhor Peterson pareceu muito incômodo ante a ideia dessa entrevista. Quando Vergil entrou pela porta, o respeito havia superado a suspicacia naqueles olhos cinza, e a calvície daquele homem mostrava pequenas gotas de suor.
—Lorde Laclere, este é o senhor Peterson. Ele é meu procurador.
Vergil examinou friamente o advogado com um gesto aristocrático de aborrecimento. O senhor Peterson se desfez em um molho de nervos. Bianca lutou contra o impulso de bronquear com ele para que se comportasse como um homem.
Vergil posou sobre ela um olhar muito sério.
—Não sabia que tinha contratado um advogado, senhorita Kenwood.
—Foi uma das primeiras coisas das que me ocupei ao chegar a Londres.
—O advogado de seu avô, ou o meu, ou inclusive eu pessoalmente, teríamos lhe explicado gostosamente algo que precisasse saber.
—Pensei que era melhor ter meu próprio representante e decidir por mim mesma o que era o que precisava saber.
—Confio em que o senhor Peterson tenha satisfeito do toda sua curiosidade.
—Quase tudo. Falou-me a respeito das ações de negócios que herdei e sugeriu que você deveria as ter vendido, para maior segurança.
—Eu não o expressei dessa maneira milord — se apressou a esclarecer o senhor Peterson— Só lhe expliquei as leis em relação às responsabilidades financeiras dos sócios.
—Como deveria fazer com um cliente. Estou obtendo informação sobre o valor das ações. Como administrador seria irresponsável por minha parte as vender a um preço muito baixo. Houve várias propostas em relação à venda que terei em consideração quando estiver em melhores condições para julgar se forem justas. Entretanto, estas coisas levam seu tempo. É difícil obter informação honesta dos gerentes e dos outros proprietários.
—Excelente milord. Justo o tipo de prudente supervisão que alguém esperaria. Acredito que é evidente que tudo está em perfeita ordem, senhorita Kenwood, e que é você afortunada pelo fato de que lorde Laclere se faça cargo de…
—Quando se recebem os benefícios das companhias? —perguntou ela.
Uma paciência de aço controlou a mandíbula e a boca de Vergil.
—Se houver benefícios, as companhias os pagam uma vez ao ano. Serão reaplicados em recursos do Governo.
—E os recursos de investimento por eles mesmos deram lucros desde a morte de meu avô?
—Sim, deram.
—E essa parte dos benefícios foi também reaplicada?
—A maior parte.
A maior parte, mas não toda.
—Senhor Peterson, seria tão amável de me esperar na biblioteca?
O senhor Peterson estava encantado de fazê-lo. Quase tropeçou ao retirar-se apressadamente.
Bianca ocupou uma cadeira frente à Vergil.
—Quero que arrume as coisas para que os ganhos fiquem a minha disposição.
—Não tenho nenhuma intenção de fazer isso.
—Trata-se de minha herança.
—Inclusive embora fosse a mais sensata das jovens, não estaria cumprindo com meu dever se te deixasse dispor desse dinheiro. O certo é que confessou ter propósitos que me converteriam em um conspirador de sua ruína. É totalmente impossível.
—O senhor Peterson me explicou que se espera que um tutor seja razoável em relação a esses recursos.
—Com uma parte é suficiente para cobrir suas necessidades. Os lojistas só têm que me enviar suas faturas. As costureiras e outros profissionais que atendem às mulheres estão acostumados a isso. A menos que haja algum gasto exagerado por sua parte não precisamos voltar a falar disto.
—Dado que não há costureiras nesta casa não corro o perigo de ser acusada de nenhum gasto exagerado.
A expressão dele se suavizou um pouco.
—Minhas desculpas. É obvio que você gostaria de desfrutar dos frutos de sua enorme fortuna. Pedirei a Penelope que te leve a Londres dentro de umas poucas semanas.
—Obrigado. Entretanto, necessitarei um pouco de dinheiro para gastos menores agora. Tenho que comprar uns poucos artigos de natureza pessoal.
Tal como ela esperava, a palavra pessoal o impediu de seguir investigando. Abriu uma gaveta do escritório.
—Espero que vinte libras seja suficiente — disse ela.
—Isso é muito dinheiro para gastos menores, senhorita Kenwood.
—Usarei uma parte para pagar o senhor Peterson.
—O senhor Peterson pode me enviar sua fatura.
—Prefiro que não o faça. Prefiro que recorde quem o contratou. Tampouco me parece correto lhe pedir que aguarde minha herança.
Vergil tirou vários bilhetes da gaveta e os colocou em uma pilha sobre o escritório. Caminhou para ela, sem poder ocultar por mais tempo sua irritação. Ela com muita dificuldade pôde evitar encolher-se de medo ante a autoridade que emanava dele.
—Não estou acostumado a discussões abertas sobre assuntos de dinheiro, e muito menos com mulheres. Não estou disposto a tolerar perguntas que impliquem dúvidas a respeito de minha honestidade e minha capacidade na hora de administrar seu patrimônio, e menos diante de um homem que não conheço.
Ele se inclinou e se agarrou aos braços da cadeira. Ela se encolheu contra o respaldo, afastando-se das faíscas que brilhavam em seus olhos, tão somente a umas polegadas de seu rosto.
—A questão é senhorita Kenwood, que agora mesmo o tio Vergil está pensando que sua desrespeitosa pupila merece uma boa surra.
Os lábios dela se abriram com indignação. Ele saiu disparado e se afastou a grandes pernadas até a porta.
Logo que ele saiu, recolheu os bilhetes e se reuniu com o senhor Peterson. Entregou-lhe dez libras.
—Isto é em pagamento por seus honorários e gastos até o momento. Quero que você guarde o que sobre e abra uma conta para mim no banco. Use seu próprio nome se for necessário.
—Seguro que lorde Laclere terá uma conta onde se possam fazer remessas bancárias.
—Quero ter minha própria conta, e não quero que ele saiba. Me escreva informando quando estiver feito. Também quero que faça averiguações a respeito dessas ofertas para a compra das ações das companhias.
—Se insistir, verei o que posso averiguar. Devo lhe escrever aqui?
—Sim. Não acredito que o visconde me deixe ir muito longe durante um tempo.
Provavelmente não até que se casasse ou fizesse vinte e um anos.
Ela não tinha intenção de fazer o primeiro e tampouco de esperar o segundo. Se o senhor Peterson conseguia os nomes das partes interessadas nas sociedades, ela poderia conseguir o dinheiro necessário para ir à Itália, apesar do obstáculo que representava Vergil Duclairc.
***
Vergil com muita dificuldade conseguiu acalmar sua fúria depois da surpresa de encontrar-se com o senhor Peterson, quando outra visita inesperada chegou à última hora da tarde. Adrian Burchard, um dos amigos de Vergil, entrou em seu escritório, graças a Deus o distraindo das insistentes e eróticas imagens de uma Bianca Kenwood domesticada.
—Fazia muito tempo que não nos víamos Burchard — disse Vergil, lhe dando boas vindas.
—Se passasse algo mais que uns poucos dias em Londres cada vez que vai, não teria sido tanto tempo. Onde esteve metido? —Os escuros e exóticos olhos de Adrian não pareciam estar esperando uma resposta interessante.
E tampouco a conseguiu. Vergil assinalou o escritório.
—Temo que os assuntos familiares me tiveram a maior parte do tempo ocupado. —O conteúdo da afirmação era certo, mas não o gesto que a acompanhou e suas implicações. Não tinha passado em Laclere Park mais tempo que em Londres.
Dentre todos seus amigos, Burchard era o mais capaz de precaver-se dos silêncios.
—Com frequência escapei ao norte, à propriedade que tenho ali. Aí não tenho que me comportar como um visconde — acrescentou Vergil precisamente para romper o silêncio— É uma sorte que tenha cavalgado até aqui para me liberar de ter que exercer de visconde esta tarde.
—Lamento te dizer que esta não é uma visita social. Demos um passeio e te explicarei.
Cheio de curiosidade, Vergil o acompanhou até o princípio do caminho que dava a casa. Adrian o conduziu até o lugar onde outro caminho assinalava o fim da propriedade. Ali, à sombra de uma árvore, esperava um carro.
Um homem mais velho com um proeminente nariz farpado estava sentado em seu interior.
—Podia ter me avisado de que havia trazido Wellington contigo.
O duque o ouviu por acaso.
—Pedi que o trouxesse sem anunciar minha presença, e Burchard cumpriu com sua missão ao pé da letra.
—Sua excelência nos honra com esta visita.
—Não é uma visita, por isso pedi a Burchard que te trouxesse até aqui. Não pretendo ofender sua irmã, Laclere. Simplesmente hoje não tenho tempo para bate-papos de salão. —Fez um gesto com sua bengala — Este parece um caminho agradável e sombreado. Façamos um pouco de exercício.
Vergil começou a caminhar, com Adrian a seu lado. Adrian se converteu no protegido de Wellington. O mecenato daquele grande homem lhe proporcionou um lugar na Câmara dos Comuns como terceiro filho do conde de Dincaster.
Durante uns minutos se ouviu o rítmico ruído das botas contra o chão. O duque não tentou cobri-lo com elogios ou frases de rigor.
—Vim tratar de um tema delicado — disse por fim— Não há uma boa maneira de abordá-lo, assim irei direto ao ponto. Vim fazer umas perguntas sobre a morte de seu irmão. Sempre sinto curiosidade quando um homem morre por causa de uma ferida de bala disparada por si mesmo de forma acidental. Sou consciente de que não é fácil que isso ocorra. Quero saber se no caso de seu irmão não foi um acidente a não ser um suicídio.
Vergil dirigiu a Adrian um olhar ressentido, e este respondeu negando sutilmente com a cabeça. A evidência de que Adrian não tinha sido desleal ou indiscreto acalmou seu aborrecimento.
—Sim. Unicamente a família e uns poucos amigos sabem.
—Aprecio sua confiança em minha discrição, mas receber a confirmação de minhas suspeitas não me dá nenhuma satisfação. Me diga, alguma vez se expôs que resulta estranho que tenhamos tido dois suicídios de pessoas importantes durante a mesma semana? Seu irmão e o de Castlereagh.
—Meu irmão era propenso a crises de profunda melancolia. O ministro de Assuntos Exteriores estava desequilibrado. Foi uma coincidência.
—Laclere, não estou convencido de que foi uma coincidência. Existe alguma possibilidade de que seu irmão tenha sido vítima de uma chantagem? Você achou alguma prova neste sentido? Pergunto porquê há indícios de que Castlereagh sim foi.
—Acreditava que essas suspeitas tinham sido enterradas. Por você.
—Considerando sua posição dificilmente podia deixá-lo assim. Aquele homem era vítima de delírios, assim que concedi a ele pouca credibilidade. Entretanto, as últimas vezes que o vi me disse algo sobre uma carta. Aludiu a seus temores de ser convertido no alvo de um escândalo.
Um escândalo. Vergil suspeitava onde iria parar aquilo e não queria ir por esse caminho.
—Como você disse, era vítima de delírios.
Wellington deu cinco passos antes de reatar a conversa.
—O autor da carta afirma ter provas de certa atividade criminosa.
Vergil se deteve, forçando Adrian e Wellington a fazê-lo também.
—Assim depois de meses de reflexões esse detalhe me permitiu fazer algum tipo de conexão com meu irmão?
—Laclere, o deixe terminar — disse Adrian.
—Nem pensar!
—Compreendo sua ira, Laclere. Asseguro que a única conexão que vi foi a dos dois suicídios, um dos quais pode ter sido resultado de uma chantagem. —A voz de Wellington cobrou severidade— O pergunto outra vez, tem alguma razão para suspeitar que seu irmão pôde ter sido também vítima de uma chantagem? Para que não sinta a tentação de mentir em altares de proteger seu nome, me deixe lhe dizer que acredito que outras pessoas estão sendo vítimas agora, esse acidente de caça de lorde Fairhall em maio não foi o que parece, e teremos mais desastres e mortes se não chegarmos até o final deste assunto.
A fúria de Vergil se fez mais intensa. Não foi pelo tom severo do duque. Esteve pensando naquele segredo durante quase um ano, perguntando-se se as coincidências e as conexões que ele mesmo suspeitava não eram mais que seus próprios delírios.
—Sim, acredito que Milton estava sendo chantageado. Acredito que é por isso que se matou. Ele deixou uma carta. Encontrei-a entre seus papéis, onde ele sabia que eu procuraria para me ocupar dos gastos da fazenda. Aludia a uma traição, se era a ele ou a outra pessoa não sei. A maior parte da carta falava da família, e de que seria melhor que ele saísse de cena antes que nos arruinássemos. Eu quis acreditar que se referia às finanças, que estavam em uma situação péssima então. Entretanto, estive me perguntando se não o tinham obrigado a escrever essa carta.
Sentaram-se sobre o tronco de uma árvore caída enquanto ele contava sua história. Wellington fazia desenhos na terra com sua bengala enquanto escutava.
—Suponhamos que em ambos os casos houve uma chantagem. O objetivo era que morressem? —perguntou Adrian.
—Essa é a questão, não? —disse Wellington.
—No caso de meu irmão a razão da chantagem só podia ser para tirar dinheiro. Não havia nenhum modo de que alguém soubesse que não podia pagar. Nossa situação financeira não era óbvia. Ele gastava como se não houvesse um problema.
—Normalmente, se supõe que o único que quer um chantagista é sangrar sua vítima. Entretanto, o momento que estamos vivendo… Tivemos provas de que há radicais tentando assassinar membros do Governo e da Casa dos Lordes. A situação, portanto é propícia para provocar problemas deste tipo.
—Meu irmão não se destacava no Governo.
—Tinha interesse na política.
—Um interesse teórico.
—Um interesse teórico radical. Isso deve tê-lo levado a contatar com homens que defendem a violência e que poderiam enredá-lo, e através dele outros — disse Wellington — Ele deve ter se comunicado ou associado inocentemente com homens desses, só para que logo usassem essa conexão contra ele mais tarde.
O comentário pendurava no ar, mendigando uma resposta. O duque tinha articulado claramente os próprios temores de Vergil a respeito da morte de Milton.
—Você encontrou cartas que demonstrassem uma relação de amizade entre seu irmão e o ministro de Assuntos Exteriores? —perguntou Wellington.
—Não as busquei. —Era mentira. Uma maldita mentira. Entretanto, não podia permitir que a hipótese se convertesse em um fato tão facilmente.
—Possivelmente deveria fazê-lo.
—Estive procurando em outras direções. Não acredito que haja uma conexão direta entre essas mortes, exceto possivelmente pelo mesmo chantagista. Estou mais interessado em encontrar esse homem que em averiguar quão pecados ele descobriu.
—Assim que essa é a razão pela que não esteve muito em Londres e tampouco aqui — disse Adrian— Progrediu algo?
—Um pouco. —Condenadamente pouco considerando quanto de seu tempo e de sua vida investiu nisso.
—Não há nada que eu possa fazer a respeito, salvo observar o comportamento dos homens e me perguntar se estão preocupados — disse Wellington— Tenho razões para pensar que vários estão. É uma ideia horrenda, a de que alguém esteja desentranhando segredos e usando-os para intimidar ou extorquir seus amigos. E o pior é que esses homens andam tão escassos de dinheiro que tiram a vida para escapar.
—E você, Burchard? Qual é seu interesse nisto, ou só veio hoje para organizar um encontro privado com Sua Excelência? —perguntou Vergil.
Wellington respondeu enquanto os três se levantavam para retornar até o carro escondido.
—Ele está fazendo algumas discretas averiguações para mim sobre lorde Fairhall. Dado que você sabe que é um homem de confiança espero que compartilhe com ele algo que averigúe para que possamos resolver este assunto de uma maneira rápida.
—É obvio.
Era outra mentira descarada. Adrian era um amigo, e tinha experiência tanto em investigações como em discrição, mas Vergil não tinha intenção de revelar o que descobrisse a ninguém se isso podia repercutir negativamente em Milton ou na família Duclairc.
Ele suspeitava que assim seria por todas as razões que cuidadosamente evitou discutir.
Capítulo 5
—Vê o que quero dizer? —sussurrou Charlotte.
Estava sentada junto à Bianca no salão enquanto os convidados chegavam à festa.
Vergil se achava de pé ante o suporte, conversando amavelmente com Fleur e sua mãe, a senhora Monley. Tinham chegado justo depois do meio-dia, em uma magnífica carruagem.
—Nada — murmurou Charlotte, sacudindo a cabeça— Não… Bom, não sei… Sua atitude. Vergil poderia perfeitamente estar falando comigo e Fleur com seu pai.
Sentada do outro lado de Charlotte, Diane Saint John, uma das amigas mais queridas da condessa, dava golpezinhos na mão. Seus olhos cheios de sentimento se voltavam risonhos quando olhavam para o suporte.
—Eu não me preocuparia com seu irmão ou a senhorita Monley. As coisas nem sempre são o que parecem nestes assuntos. Os vê estupendamente juntos, não? Um bom casal.
Sim faziam um bom casal. Fleur era toda cortesia e elegância, alta e magra, com a pele de alabastro e o cabelo escuro. Os cachos caíam de um coque decorado com lacinhos, emoldurando seu rosto ovalado que levava no centro uma boca franzida como uma rosa. A Bianca parecia uma pessoa inteligente, de voz suave, cujos olhos marrons estavam atentos a todos os detalhes.
Bianca experimentou uma vaga decepção ao notar que Fleur não a desagradava instantaneamente, ao mesmo tempo em que sentia uma inexplicável pontada de melancolia cada vez que olhava ao grupo junto à lareira.
—Tenho medo de que Vergil esteja se sacrificando por sua fortuna — disse Charlotte— Parece contente de vê-la, mas tendo em conta que sua família deixou Londres há oito semanas e, entretanto, estiveram separados todo este tempo…
—Isso não sabe — disse a senhora Saint John— Pode ser que quando ele não está aqui nem em Londres vá visitá-la.
—Eu acredito que não. A maioria das vezes vai a seu imóvel de Lancashire. Diz a seus agentes, a Pen e a instrutora que vem ficar comigo onde podem encontrá-lo. Se não se tratasse de Vergil, qualquer um poderia suspeitar que vai visitar uma mulher ali. Alguém que ama, mas com quem não pode casar-se.
Bianca se meteu de repente na conversa olhando fixamente Charlotte com uma expressão triste.
—Sugerir isso é escandaloso.
—Tenho entendido que esse tipo de coisas é muito habitual. Pen inclusive me insinuou que devo esperar que meu marido tenha outras relações de vez em quando.
A senhora Saint John baixou as pálpebras.
—Acredito que muita gente foi indiscreta quando fala ao seu redor, Charlotte.
Bianca viu que a senhora Saint John não havia dito que Charlotte estava equivocada, ou que sua ignorância a tivesse levado a interpretar mal as palavras de Penelope.
—Bom, isso explicaria muitas coisas. Para começar aquilo. —Charlotte fez um gesto com a cabeça em direção ao suporte da lareira— A demora em anunciar o compromisso formal por outro. Com sua beleza e sua riqueza ela não tem por que estar o esperando. O estranho é que a Fleur não parece importar que as coisas estejam assim. É sua mãe quem se impacienta.
Sim, sua mãe estava se impacientando. Os olhos da senhora Monley eram os mais iluminados pelo fogo da lareira. Seguia a conversa de sua filha com um encantador sorriso e um movimento de cabeça que dava à pluma de seu turbante de seda e cordões um inquisitivo ângulo.
—A noite promete alongar-se. Deveria se retirar para descansar — disse uma voz masculina.
Bianca afastou sua atenção da lareira para ver que Daniel Saint John se uniu a elas e se dirigia a sua esposa. Aquele homem atrativo que podia deslizar rapidamente de uma passiva frieza a uma atenção intensa, enfocava esta agora no que mais o interessava.
—Daniel se mostra muito protetor comigo quando estou em estado — confessou Diane com um sorriso— Depois de dois filhos, querido, já não sou tão frágil.
—De todos os modos, é necessário que descanse. —Ofereceu-lhe a mão para acompanhá-la.
A Bianca não passou despercebido o olhar que trocaram. Ternura, humor e uma absoluta devoção fluíam nesse fugaz contato. Era como se anos de lembranças colorissem a forma em que viam um ao outro, e enriquecessem inclusive aquela comum troca.
Bianca voltou a dirigir o olhar à lareira e viu como o comportamento de Vergil e Fleur contrastava com o daquele outro casal.
O comentário de Charlotte teve para ela uma nova dimensão. Não havia necessidade de uma demonstração aberta de paixão e afeto. De uma maneira silenciosa que não implica o contato físico, um homem e uma mulher podem estar intimamente conectados.
Diane Saint John aceitou a sugestão de seu marido e se levantou.
—Suponho que um breve descanso pode ser uma boa ideia. —Juntos, sem falar, mas dizendo-se muito, dirigiram-se para o salão.
A atividade do vestíbulo anunciava a chegada de outro carro.
—Por fim o último. —Charlotte ficou em pé— Este deve ser o da senhora Gaston. É uma das amigas de Pen e uma grande mecenas das artes. Apoiou Pen quando outros a abandonaram após sua separação. Acredito que Pen a convidou pensando em você, por sua carreira de cantora.
Bianca e Charlotte seguiram Penelope e Vergil para receber à nova convidada.
A senhora Gaston tinha vindo em uma grande carruagem. Pen se adiantou estendendo os braços para lhe dar a bem-vinda.
—Que amável por sua parte fazer um encaixe para vir a nossa pequena festa.
A senhora Gaston era uma bela mulher de sorriso encantador, maçãs do rosto marcadas e um cabelo castanho acobreado. Movia-se com uma orgulhosa elegância, levava um casaco com um exótico estampado e um chapéu com plumas extravagantes.
—É você a que foi amável ao me dar uma oportunidade para escapar da cidade durante uns dias. Entretanto, temo que dei um passo em falso e devo pedir sua indulgência por isso.
—Um passo em falso? Você? Nunca.
—Infelizmente sim. Trouxe uma amiga comigo.
—Quando lhe escrevi disse que seus amigos seriam bem-vindos.
—Sim, fez. Normalmente no caso de trazer alguém eu teria escrito para lhe avisar. Mas esta amiga chegou à cidade inesperadamente.
Um lacaio se aproximou até a porta aberta da carruagem. Uma mão enluvada e uma manga na moda apareceu. Uma cabeça escura de elegante penteado e chapéu se agachou enquanto a amiga em questão inclinava seu corpo para descer.
—Maria — exclamou Pen, abraçando a escultural figura envolta em musselina azul pálida— Ninguém sabia que viria nos visitar este ano. É uma surpresa maravilhosa para mim.
O rosto da mulher não era formoso, com suas feições muito marcadas, mas sua forma de comportar-se transmitia uma sólida dignidade e inspirava confiança.
—Foi uma decisão impulsiva por minha parte, querida minha. Milão é horrível com o calor. Meus músicos estão se comportando como meninos mimados, e o tenor para a próxima produção é um jovem idiota e arrogante que não se deixa dirigir. Simplesmente deixei a todos. Vamos ver como as arrumam sem Catalani.
—Oh, Deus, que sorte — sussurrou Charlotte a Bianca— Sabe quem é?
Bianca sabia. A mais importante cantora de ópera da Inglaterra, Maria Catalani, retornou da Itália há seis anos e agora dirigia uma companhia de ópera em Milão.
Que maravilhoso golpe de sorte. Com a senhora Gaston e Catalani ali, aquela festa prometia ser enormemente mais interessante do que esperava.
Vergil se adiantou para saudar Catalani, beijando sua mão de maneira lisonjeadora. Ela disse algo em voz baixa e seu rosto se iluminou com um sorriso.
Se a visita inesperada de uma cantora de ópera afligia Laclere, este não o demonstrou. Provavelmente trataria do assunto com Penelope mais tarde.
Penelope conduziu seus novos convidados ao interior da casa.
A Bianca tremia os joelhos pela emoção.
—Esta deve ser Charlotte. Já parece uma jovenzinha, encantadora — disse Catalani— Já teve sua estréia em sociedade?
—No próximo ano — explicou Pen— Vergil não aprova que nestes dias as garotas se apresentem a uma idade tão jovem.
Catalani olhou para trás ao visconde que as seguia e franziu os lábios com picardia.
—Um bom estratagema, e será muito efetiva. Deixemos que tenham que esperar por um diamante assim. Será a sensação da temporada, Charlotte. Predigo que seus irmãos necessitarão lacaios extras para vigiar as paredes do jardim.
Pen atraiu Catalani até Bianca.
—Esta é Bianca Kenwood, de Baltimore. É a pupila de Vergil.
—Nunca tive o prazer de visitar seu país. Temos que falar. Tenho muitas perguntas a fazer.
—E eu também tenho perguntas para você. Visitarei a Itália muito em breve.
—Está planejando uma grande viagem para sua irmã e sua pupila, lorde Laclere? —perguntou Catalani enquanto Pen a conduzia para o interior da casa— Necessitará dez lacaios extras então, se envia duas belezas como estas a meu país.
Bianca se apressou a alcançar Charlotte, atônita pelo curso dos acontecimentos. Essa festa prometia ser o ponto culminante de sua estadia na Inglaterra.
—Por hoje já estão todos os convidados — explicou Charlotte— Pen disse que o senhor Witherby escreveu dizendo que chegaria amanhã pela manhã. Vamos descansar um momento antes de jantar.
Bianca decidiu não fazê-lo a menos que ficasse claro que Catalani também se retirava. Esperou até que a imponente mulher subisse a escada flutuando com Penelope a seu lado.
Ficou sozinha de pé no vestíbulo vazio, sabendo que seria totalmente impossível descansar. Procurando alguma forma de aliviar sua ansiedade, entrou na biblioteca, encontrou o volume de poemas de Shelley que tinha estado lendo e se amassou em um divã encarado uma janela.
Aquele era seu lugar favorito para ler, especialmente pelas tardes. Uma luz tênue penetrava através da janela acompanhada de uma suave brisa. Ninguém podia vê-la ali a menos que se aproximasse do divã. Aquele tinha se convertido em um de seus poucos cantos privados.
Ouviu-se o ruído de passos de alguém que entrava na estadia. Ela se incorporou um pouco para ver de quem se tratava. Dante a reconheceu e caminhou para ela; levava seu chapéu e o látego de montar. Sentou-se em uma poltrona, frente a ela e esticou as pernas; também levava botas.
—Chegaram todos? —desapareceu de casa depois da chegada de Fleur.
—Todos menos o senhor Witherby.
—Surpreende-me que se atrase. Esperava que quisesse aproveitar cada momento para seduzir minha irmã.
—Charlotte?
—Pen. Converteu-se em um amigo muito especial para ela durante o último ano. Ou ao menos ele pensa que assim é. Não sei que ideia tem Pen a respeito, embora pareça desfrutar de sua companhia. Estou seguro de que é por isso que o convidou, apesar de que também é um velho amigo de Vergil.
A frase «amigo muito especial» aludia a algo mais que a uma mera relação de companheirismo. Dante frequentemente se despistava e falava daquela maneira tão familiar, como se compartilhassem alguma compreensão do mundo. Aquele tom de conspiração implicava um tipo de intimidade.
Ele vadiava com ar despreocupado, olhando-a por debaixo das grossas pestanas desse modo que sempre a fazia sentir-se tão incômoda. Sempre estavam a sós quando a olhava dessa forma.
—Maria Catalani acaba de chegar com a senhora Gaston. Foi uma surpresa para todos —disse ela.
Aquilo pegou sua atenção.
—A senhora Gaston está aqui? Deveria ter perguntado a Pen a quem esperava receber antes de aceitar ficar.
—Não te cai bem?
—É por pura insistência que conseguiu introduzir-se em muitos círculos. Vê a si mesma como uma grande patrocinadora de artistas e quer que todos saibam como promove suas corridas.
—Faz? Promove corridas?
Ele deu de ombros.
—Não saberia lhe dizer isso. Os círculos artísticos de Pen não me interessam muito, e parece que isso é o que temos aqui. A senhora Gaston e Catalani, diz. Lorde Calne é outro patrocinador das artes. Cornell Witherby será uma boa companhia, ao menos, apesar de que com os outros que há aqui provavelmente só falará de sua poesia. Espero que Vergil o distraia com outras coisas.
—Crê que Vergil permitirá que Catalani fique?
—Por que não ia fazê-lo?
—Isso pensei, possivelmente, com Fleur aqui e Charlotte e…
Seu comentário o deixou preocupado.
—Esta é a festa de Pen, e meu irmão sabe o que isso significa. Vergil pode ser um santo, mas nunca se comporta de um modo rude. Por outro lado, Catalani tem suficiente poder para ocultar os meios pelos que conseguiu sua fama. —levantou-se— Acredito que darei um passeio. Será uma honra se me acompanhar. Te mostrarei as ruínas.
Bianca já tinha encontrado as ruínas medievais que se conservavam no parque Laclere, e não queria as visitar sozinha com um mulherengo. E menos ainda com um que naquele momento a olhava com esse brilho nos olhos.
—Obrigado, mas acredito que continuarei um bom momento lendo.
Uma repentina irritação alterou sua expressão. Para sua surpresa ele se aproximou e acariciou sua mandíbula com um dedo.
—Não tem que ter medo de mim Bianca.
Ela se tornou para trás ante seu gesto.
—Seu irmão diz que aqui não é habitual dirigir-se a uma mulher de um modo tão familiar.
—Eu não sou meu irmão.
Não, não era. A última semana ela tinha sido o centro da atenção desse jovem. Tinha tentado desanimá-lo. Ao que parecia sem êxito.
Sua mão a tocou outra vez, sustentando seu queixo. Os olhos de Bianca se alargaram com incredulidade quando ele inclinou sua cabeça para cima, aproximou a sua e lhe deu um beijo nos lábios. Aconteceu tão rápido que a impressão lhe fez ficar completamente imóvel.
Ele a interpretou mal. inclinou-se para ela e a beijou profundamente, ao tempo que a abraçava.
Ela se separou dele e o lançou contra a janela com uma assombrosa fúria. Raivosa e envergonhada o enfrentou.
—Não se atreva a voltar a fazer isso.
Ele se levantou.
—Minhas desculpas. Deveria ter te pedido primeiro permissão.
—Não o teria obtido.
—Eu acredito que sim.
—Interpreta mal nossa amizade.
—Não acredito. Está assustada e confusa, e isso é normal para alguém tão inocente. Não voltarei a te beijar sem sua permissão, mas quando lhe pedir isso me dará isso.
Ela andava a provas procurando uma resposta mordaz. Ele sorriu com uma confiança em si mesmo que resultava insofrível e saiu da estadia.
Ela voltou a afundar-se no divã, levantou as pernas e se encolheu em seu canto. O que teria feito pensar a aquele patife que ela reagiria bem ante semelhante coisa? Teria ouvido algo a respeito de seus espetáculos em Londres? Até onde ela sabia, tinha ido a um.
Que sorte para ela que o irmão equivocado tivesse concluído que ela era um pouco selvagem e descuidada com o decoro.
***
—Se escondendo das obrigações de sua condição? —perguntou Dante ao entrar no escritório onde Vergil se achava lendo sua correspondência.
—Tomando um descanso porque se seguir sorrindo durante mais tempo meus lábios vão se romper.
—Tampouco está tão mal. Convidou Witherby e Saint John, assim poderá se divertir.
Vergil estava agradecido de que Pen tivesse convidado Daniel e Diane Saint John. Não os via há meses. Eram também amigos de Pen.
Ela tinha amizade com Diane Saint John quando a jovem acabava de chegar a Londres, e desempenhou um papel nos dramáticos acontecimentos que precederam o casamento de Diane com o magnata de uma companhia naval.
Quanto a Witherby, Vergil suspeitava que Pen o convidasse por razões que nada tinham a ver com que ele se divertisse.
Dante vadiava apoiado contra o marco da janela e, distraidamente, deixava cair a bolinha de chumbo sobre as rampas do brinquedo.
—Fleur está tão encantadora como sempre. Podemos esperar que anunciem seu compromisso uma noite destas depois do jantar?
—Não acredito.
—Já é hora, Verg.
—Dentre todas as pessoas que poderiam me dar lições, Dante, você seria o último. Minhas responsabilidades com os membros atuais desta família pesam mais que qualquer responsabilidade que pudesse ter respeito a membros futuros.
—Está me dizendo que resultamos tão caros que não pode te permitir uma esposa?
—Estou dizendo que qualquer mulher que se case comigo terá certas expectativas que neste momento não estou em condições de cumprir. O qual nos conduz ao assunto de seu próprio matrimônio, que será um alívio significativo para nossas cargas financeiras. Devolvo-te a pergunta. Devemos esperar uma notícia? Recordo um jovem cheio de confiança em si mesmo dizendo com presunção que uma semana bastaria.
—Maldita seja, estas coisas levam seu tempo. Além disso, ela é… Difícil de entender.
Levou uma cadeira junto ao escritório e se sentou à mesma altura que seu irmão do outro lado, com as pernas cruzadas, apoiando o braço sobre a mesa e deixando descansar sobre este a cabeça. Era a pose que Dante adotava quando queria falar «de homem a homem».
Dado que o tema de conversa era Bianca Kenwood, Vergil teria desejado economizar as confidências. Bianca constantemente penetrava em seus pensamentos, e a última noite, depois de sua volta a Laclere Park, surpreendeu-se rondando o salão entre as damas até que ela se retirou.
—Às vezes penso que ganhei terreno só para acabar por me dar conta de que era uma ilusão. Ela parece muito quente uma manhã, mas pela tarde a vejo ser igualmente calorosa com um criado. Posa esses grandes olhos azuis em mim e penso que deveria lhe propor matrimônio naquele mesmo momento, mas depois me ignora durante toda a hora seguinte. Às vezes penso que estou tratando com uma garota tão ignorante que nem sequer nota meu interesse, e outras vezes…
—Outras vezes?
—Outras vezes me pergunto se é tudo menos ignorante e se não está me tratando como um brinquedo. Me perdoe, mas estamos falando sem disfarces.
—Você certamente sim.
—Pergunto-me se está sendo deliberadamente intrigante. Esquiva de um modo calculado.
—Soa-me como se lhe estivesse jogando a culpa de seu fracasso.
—Possivelmente. Mas há algo nela indefinível… Um ar, uma fragrância, não sei o que. A olho e vejo toda a inocência da primavera, e de repente me devolve o olhar e me encontro pensando que seria uma esplêndida amante. É uma combinação confusa e fascinante.
Assim Dante acabou percebendo aquilo que Vergil notou nessa primeira noite na sala de jogos, e muito frequentemente após.
—Confio em que não seja muito fascinante.
—É obvio que não. Mas deixa a um fora de jogo. Há uma arte na sedução, e conhecer a mulher é uma parte essencial.
—Sempre estou agradecido por suas instruções nessas matérias, Dante, mas vamos ao ponto. Se propuser matrimônio amanhã, acredita que aceitará?
—Maldita seja se sei.
Isso significava que provavelmente não.
—Sabe que está interessado por ela? Talvez interprete seus cuidados como uma amostra de simples amizade, uma mão amistosa em um país estranho.
—Agora já sabe.
—O que significa isso?
—Acabo de vê-la na biblioteca.
—Declarou suas intenções?
Dante olhou ao longe e Vergil instantaneamente soube que tinha expressado seus interesses com ações, e não com palavras.
Quase salta por cima do escritório para estrangulá-lo.
—Me deixe expressá-lo de outro modo. Sabe que suas intenções são honestas?
—De que outro modo poderiam ser? Ela é sua pupila.
Vergil esfregou o cenho.
—Bom, suponhamos que ela ouviu falar sobre você…
—De quem? Seria estranho que Pen fosse contando histórias.
—De outra pessoa. Um criado. Jane, sua empregada. Nigel Kenwood.
—Não viu Nigel mais que uma vez em toda a semana, quando Pen o convidou, e não estiveram a sós, assim que ele não pôde…
—De quem é Dante. Supondo que alguém contou algo. Se você não explicar que suas intenções são honestas, ela poderia pensar que a persegue por outras razões.
Dante se endireitou.
—Se for assim, fui insultado.
—De todos os modos…
—Não sou um descarado.
—Recomendo que esclareça as coisas. Se ela te interpretou mal, só conseguirá que a partir de agora te evite.
Dante se levantou e caminhou até a janela.
—É obvio, tem razão. Entretanto, se fizer uma proposta de matrimônio e me rechaça se acabou o jogo. Explicar minhas intenções, embora não seja pedir a mão, termina sendo o mesmo. As garotas têm estes caprichos, e um homem que as persegue apesar delas fica como um parvo. Estava sentado na biblioteca e me surpreendi perguntando isso acaso não é contraditório?
—O que diz não tem muito sentido.
—O que acontece se ela é realmente inocente, mas tem à outra dentro? O homem que conseguisse despertá-la estaria em uma posição muito poderosa a respeito dela. Se se tratar de chegar pelo caminho mais rápido, pois…
—Não.
—Não estou falando de nada desonroso, Vergil. Só um pequeno escarcéu que nos economizaria muito tempo.
—Não fará nada que possa comprometê-la nem remotamente.
—Está sendo pouco prático e se preocupa muito pelo decoro. A ideia foi tua, recorda? Se a comprometer, o matrimônio será inevitável.
Não era seu tão cacarejado sentido do decoro o que se rebelava contra as insinuações de Dante, a não ser algo mais visceral, algo que tinha a ver com um fervor incessante, o perfume de lavanda e uma voz melodiosa que tinha estado cantando em sua memória durante uma semana de viagem e obrigações. Ao menos ser um santo tinha suas vantagens. Não podia malograr seus planos, mas não permitiria que Dante estendesse uma armadilha à garota.
—Ganhar honestamente o afeto de uma mulher pode parecer um longo e tedioso esforço a um homem acostumado a aproveitar as paixões rápidas, Dante, mas se pretende consegui-la é o que terá que fazer.
—Ao menos alguém nesta família tem um pouco de paixão. Entre você e Milton…
Ante a menção do nome de seu irmão todo o corpo de Vergil se esticou.
—Acredito que deveria ser muito cuidadoso e não mencionar Milton e seu imprudente apetite na mesma frase.
O ressentimento escureceu o rosto de Dante.
—Continua me culpando de algo que não pude prever.
—Equivoca-se. Não te culpo. Não havia forma de que soubesse o que pretendia fazer. Mas não o coloque nestas discussões. Me insulte tudo o que queira, mas deixa nosso irmão e sua memória à margem deste assunto. Nada disso tem a ver com a senhorita Kenwood e sua forma de se comportar com ela.
—Ah, sim, a adorável Bianca. Está tão preocupado por ela que está te pondo muito sutil, Verg. Seu amparo é curiosamente seletivo e meio cego. Não permitirá que ninguém comprometa sua pupila, mas está disposto a consentir que se veja atada por toda vida a um homem que despreza.
Aquelas palavras deram no alvo por razões que Dante nunca saberia.
—Eu não te desprezo.
—Ah, não? Pode ser que não me culpe, mas jamais me perdoou.
Vergil viu dor naquele belo rosto que nunca se mostrava preocupado. Devia ter sido mais consciente do sentimento de culpa que a morte de Milton causou em Dante.
Era estranho que a discussão sobre uma garota que não tinha nada a ver com aquele episódio o tirasse do baú.
—Posso te fazer críticas sobre a forma em que vive sua vida, mas isso não reflete meus sentimentos com respeito ao rol que desempenhou sem te dar conta no desastre do ano passado. Não precisa ser perdoado por isso, Dante. A ignorância não é uma ofensa imperdoável. Se nunca falei disto contigo antes, não foi porque te jogue a culpa a não ser só porque não quero me lembrar daquilo. Entretanto, possivelmente minha reserva não tenha sido justa para você.
O rosto de Dante era uma imagem de tensa serenidade, mas seus olhos brilhavam.
—Eu estava aqui. Jantei com ele. Deveria ter visto…
—Estou agradecido que esteve com ele durante sua última hora. Acredito que ele também esteve.
O ar na estadia estava carregado com a crua intimidade que tinha nascido de uma franqueza inesperada. Caiu uma barreira invisível cuja existência Vergil jamais foi consciente. O abismo que se abriu entre eles após a morte de Milton foi superado, e tudo devido às conflitivas emoções que a presença de Bianca Kenwood criou naquela casa.
Olhou seu jovem irmão com novos olhos, e percebeu uma profundidade cuidadosamente disfarçada por aquele despreocupado libertino. Poderia ter homens piores para ela.
Dante sorriu com ironia e se dirigiu sem pressa até a porta.
—Farei a sua maneira, Verg. Será interessante, tentar inspirar um afeto casto nada mais que com insinuações. Mas me limita injustamente. Não posso jogar minha melhor carta. Depois de tudo, não tenho nada a oferecer à garota mais que o prazer.
Uma hora antes, Vergil teria estado de acordo.
Capítulo 6
Na manhã seguinte Vergil foi o primeiro a baixar à sala do café da manhã. Queria tomar o café da manhã sozinho antes que chegassem os convidados.
Acabava de se sentar ante seu prato quando um movimento junto à janela chamou sua atenção. O brilho verde e dourado de uma cabeça loira e uma figura esbelta desapareceram entre os arbustos.
Bianca Kenwood se levantou ao amanhecer.
Afastou a vista da janela com preocupação. Dante disse que ela só havia visto Nigel Kenwood uma vez, mas Dante não sabia nada a respeito das aventuras a alvorada de Bianca. Era possível que ela e Nigel levassem uma semana vendo-se em segredo.
Deixou que uma espessa cortina cobrisse a imagem que se formava em sua mente. Não havia nenhuma prova sólida de que estivesse se encontrando com seu primo. Ao mesmo tempo, qualquer que fosse seu propósito, o certo era que entrava alegremente no parque ao amanhecer apesar do perigo dos caçadores furtivos com o que teve que enfrentar naquele dia a cavalo. Aquele episódio teria bastado para que qualquer jovem normal desde aquele dia temesse aventurar-se a sair a menos que a acompanhasse meio exército.
Mas ela não era uma jovem normal.
Antes que o servissem o café da manhã, saiu ao jardim e se dirigiu para o caminho por onde ela entrou.
—Laclere.
Vergil se voltou para a voz que o chamava. Cornell Witherby se aproximou dele dando grandes pernadas através do caminho que conduzia ao estábulo.
Ao entrar no atalho, o dourado e o verde ficavam engolidos pela erva.
—Não me diga que cavalgou durante a noite, Witherby. —Vergil viu que o recém-chegado ia vestido com uma jaqueta marrom de montar e calças de cor parda clara. As botas pareciam novas e o cabelo loiro que aparecia sob seu chapéu tinha um corte moderno.
Witherby era muito belo e parecia estar com um humor estupendo.
—Cavalguei a maior parte do caminho ontem pela tarde e dormi em uma estalagem.
—Estava ansioso para chegar?
—A cidade se tornou ruidosa estes últimos dias. Há manifestações diariamente. Muitos arrestos. Me fará bem o ar do campo. A musa se volta irritável ante tantas distrações.
—Confio em que não se distraia aqui. O café da manhã te espera, mas deverá alimentar sua musa em solitário. Minha irmã ainda não se levantou para cumprir com seu papel de anfitriã.
Witherby esboçou um sorriso ao ouvir mencionar Penelope. Ele sabia que Vergil sabia suas intenções, e Vergil sabia que ele sabia, mas um homem não fala dessas coisas com o pretendente de sua irmã casada, nem sequer embora sejam velhos amigos.
—Ficará feliz em saber que a reunião é de artistas, como é de esperar com Pen — disse Vergil.
—As festas da condessa são sempre deliciosas. Espero que esta supere as outras.
Vergil decidiu não especular sobre quanto deleite poderia estar Witherby antecipando. Uma casa de campo grande e tranquila oferece todo tipo de oportunidades para a intimidade.
Com firmeza afastou esses pensamentos de sua mente.
—Está vestido para cavalgar — observou Witherby— Vou contigo.
—Primeiro um passeio, depois cavalgaremos. Vá e se instale com a maior comodidade que possa. Saint John está aqui, além disso, normalmente baixa cedo, assim não se aborrecerá muito tempo.
Dando pernadas alegres e calmas Witherby se dirigiu para a casa. Vergil esperou até perdê-lo de vista, depois deu a volta e prosseguiu em busca de Bianca.
Quando conseguiu divisá-la reduziu o passo para poder segui-la a uma distância prudente.
A seguia porque se preocupava com sua segurança, mas também devia admitir que queria saber se Nigel a esperava em algum lugar.
Quando tinha entrado mais de um quilômetro entre as árvores, ela tomou um atalho que ia para o oeste. Ele viu que se dirigia para as ruínas. Não era um bom sinal. O castelo medieval era um lugar ideal para um encontro de casal.
Ela já não estava à vista quando ele entrou entre a erva alta que rodeava as ruínas das mais antigas fortificações do parque Laclere. Da torre tinha sobrevivido meia armação, e só uma sessão das velhas ameias perdurava, muitas paredes vieram abaixo e outras se viam a ponto de desmoronar. Grandes pedras dispersas cobertas de más ervas deixavam claro que uma vez serviram como o muro de amparo. De toda a estrutura da muralha o único relativamente intacto era uma solitária torre quadrada.
O assaltaram nostálgicas lembranças da infância, como o do fácil vínculo que uma vez compartilhou com Dante, e que os segredos e a falta de cuidado quase destruíram. Esquadrinhou a paisagem em busca do rastro da senhorita Kenwood.
De repente um som apagado e doce flutuou através do silêncio da manhã. Elevava-se e baixava como uma suave onda no meio da brisa, enviando redemoinhos que o rodeavam. Ele o seguiu até a fonte de onde provinha na torre quadrada, e entrou através da soleira de pedras.
O som o afogou, elevando-se fora das paredes e a abóbada. Acima na câmara da sentinela, a senhorita Kenwood praticava suas escalas, e sua voz ganhava em volume com cada ascensão que repetia. Ele se deteve e ouviu a escala de repetições de alguém que afiava e esquentava sua voz.
Ela se interrompeu e ele a ouviu falar. A Nigel? O homem devia usar sua música para atraí-la até ali. Se assim era, não corria um perigo imediato. Ele duvidava que ela decidisse abandonar sua paixão original para dedicar-se a explorar outras justo agora.
O som emergiu de novo, baixando torrencialmente a escada. Agora não se tratava de escalas, mas sim de uma ária de Rossini.
A melodia o embargou. Precisa e disciplinada, tinha a textura da elaborada canção de um pássaro, empapava a mente, transbordava o coração e agitava os sentimentos do modo em que a melhor música sempre faz. Os sensuais matizes de sua voz alagaram o reservado esconderijo que ele esteve lutando para manter a salvo.
Quase de um modo involuntário, suas pernas o conduziram à escura escada, para a sereia que sem saber o atraía a uma borda proibida.
Ela estava de pé só na câmara, de costas a ele, emoldurada pelas linhas das paredes que se estreitavam para formar um teto abobadado. Nigel não estava. Não havia ninguém ali. Ela devia ter falado consigo mesma.
Ele apoiou o ombro contra o marco da entrada, para olhar e escutar. Desejava poder ver seu rosto, mas em sua memória ainda conservava a radiante expressão da que tinha sido testemunha aquele dia em que ela atuou no salão de música.
Não lutou contra suas reações. Teria sido incapaz de fazê-lo embora gostasse de fazer. Em lugar disso deixou que suas notas se elevassem em uma maré que fez desaparecer o mundo inteiro exceto essa paixão dela e seu próprio e atônito desejo.
A fazia sentir-se tão bem. Transportada. Gloriosa. Sua voz tomava o poder de seu corpo e dissolvia sua substância até que só o canto existia. As pedras enriqueciam o timbre como nenhuma sala poderia fazer. Ela desejava poder levar Catalani ali.
Terminou muito rápido, e ela, com pesar, sustentou a última nota mais do que a partitura requeria. Esta ficou pendurando por cima dela, gotejando como o néctar de uma gema no interior de seu espírito aberto.
E finalmente se extinguiu, deixando-a gasta e um pouco melancólica.
De repente notou que não estava sozinha. Temendo que Dante a tivesse seguido deu a volta com receio.
O visconde estava apoiado com ar despreocupado contra a entrada da câmara, com os braços cruzados sobre o peito, olhando-a. Estava muito bonito, e havia nele algo intenso apesar de sua pose despreocupada.
—Seguiu-me até aqui, tio Vergil? Para me espiar?
—Foi só para te proteger, mas sim, a segui.
—Estou segura de que não corro perigo no parque Laclere. Seus audazes caçadores furtivos devem ter se mudado ou mudado seus métodos de caça. Não houve disparos esta última semana.
—Se sabe isso, é porque deve ter vindo aqui frequentemente. Sempre para cantar?
A câmara tinha uma janela, não maior que a fenda de uma flecha. Ela se dirigiu para ali, afastando-se dele. As pedras aumentavam os matizes do tom de Vergil e isso a fez mostrar-se precavida. Seus olhos tinham uma expressão oculta que ela não podia ler. Sua presença a impressionava como se fosse perigosa. Era uma reação ridícula, mas não podia evitá-la.
Examinou a paisagem, evitando seu olhar fixo.
—Não aceito a situação que te faz pensar que tem direito de me interrogar. Sim, venho aqui frequentemente, geralmente em manhãs como esta. Encontrei esta torre um dia enquanto cavalgava. E sim, para cantar.
—Sozinha?
Ela o olhou por cima do ombro.
—Acaso acredita que marquei um encontro com Nigel aqui? Seguiu-me para me proteger de intenções desonestas? —A ideia lhe deu vontade de rir. Um amparo tão cuidadoso de sua virtude no campo enquanto seu próprio irmão a assaltava na biblioteca— Perdeu seu passeio a cavalo para nada. Não me ocorreu a ideia de usar esta torre para encontros desse tipo. Terei-o em mente para futuras ocasiões.
—Duvido que o faça. Não terá tempo para pôr em prática. Não a adverti antes, mas esta câmara afeta ao som do mesmo modo que as antigas Igrejas normandas. Qualquer que seja a potencial atração de seu primo, estas pedras têm mais.
—Possivelmente ele deva escutar. Como fez você.
Ele se separou da parede com um vago sorriso.
—Se o fizer, definitivamente necessitará amparo.
Caminhou para ela despreocupadamente. Ela sem se dar conta se afastou até a borda. Em realidade era uma tolice, mas aquele dia havia nele algo diferente. Algo fascinante, mas também desconcertante.
—Pen anunciou que cantará esta noite. Está ensaiando sua atuação, para se assegurar que estará nas melhores condições frente à Catalani?
—Sim.
—Falou um bom momento com ela ontem à noite. Um encontro tete a tete. Suponho que explicou seus planos.
—Não tem por que preocupar-se, não vou pôr nem você nem Pen em uma situação delicada. Ninguém mais me ouviu e acredito que ela sabe que é necessária a discrição entre os convidados de um visconde.
Ele continuava movendo-se, olhando ao redor do cômodo como se não tivesse estado ali em muito tempo. Ela sentia constantemente o impulso de partir longe.
—O que te aconselhou Catalani?
—Estava de acordo comigo em que se quero receber a melhor instrução devia ir a Itália, ou trazer um dos melhores professores aqui. Enquanto isso, deu-me o nome de um tutor com quem poderia trabalhar em Londres. Recomendou-me o senhor Bardi, que trabalha como professor do bel canto com alguns dos melhores cantores de Londres.
—Nenhum outro conselho? Não esperava que Catalani fosse tão reservada.
—Perguntou-me se entendia essa vida, se sabia o que implicava.
—E sabe?
—Sei que implica trabalho duro. Contínuas viagens. A necessidade de atuar apesar de estar cansada ou doente.
—Não é a isso a que ela se referia.
Seu rosto se acendeu.
—Sei a que se referia.
—Não acredito que saiba. Não de verdade. Duvido que tenha a mais remota ideia do que significa se converter em alguém que nenhuma mulher respeitável teria como amiga. Essa cantora de ópera pode visitar casas como esta, mas só há uma Catalani. Não será o mesmo para você. Não haverá nenhuma tia Edith na Inglaterra ou na Itália para te proteger das más línguas.
A irritação a fez ficar cravada no chão.
—Sei o que essa gente chamada decente pensa sobre essas mulheres. De fato vi muitos homens decentes aproximar-se de minha mãe às vezes. Quando cresci entendi o que queriam. Tratarei com eles como ela o fazia. Supõe-se que devo renunciar a algo importante para mim, essencial para mim, por culpa de preconceitos sem fundamento?
Ele continuava caminhando. Fazendo círculos e círculos. Se ele não fosse o proprietário de uma cidadela, se sua conduta não fosse tão despreocupada, ela teria sucumbido à sensação de estar sendo acossada. Por ser alto ele devia permanecer perto do centro do cômodo, e o círculo que desenhava parecia bastante menor agora que ela se achava justo no centro.
—Os preconceitos a respeito de muitas atrizes e cantoras estão muito bem fundados — disse ele, como se discutir sobre mulheres de má reputação fosse um tema perfeitamente aceitável.
—A vida dessas mulheres é muito insegura, e eu suponho que muitas artistas precisam aceitar o amparo que lhes oferecem.
—Você acredita que é o desespero o que faz que essas mulheres se convertam em amantes e cortesãs, e que sua herança te salvará? Seu julgamento é mais duro que o meu. Eu assumo que é a solidão. Um matrimônio decente é quase impossível. Haverá quem esteja disposto, mas ninguém a quem você seja capaz de amar.
Aquela conversa tão delicada se tornou de repente pessoal.
—Sei. Entretanto, há coisas que valem sacrifícios.
—Uma vida inteira de sacrifícios? Pensa isso agora, mas e dentro de dez anos? E de quinze? Sem casar, sem filhos, sem lar. Entendo que é mais triste que escandaloso que para a maioria dessas mulheres o dia começa quando alguém lhes oferece algo parecido ao amor e o agarram. Não importa o que decidam quando começam, depois de um período virtuoso, uma solidão antinatural, a escolha é virtualmente inevitável.
—Como se atreve a prognosticar um futuro tão desolado e sórdido para mim? É muito cínico ao afirmar que se perseguir minha carreira de cantora, estarei predestinada a me afundar. Embora tampouco veja por que se importa tanto.
Ele se deteve e se afastou uns passos.
—Sou responsável por você.
—E por isso se mete em minha vida, para me proteger de mim mesma. Durante dez meses.
—Mais. Se puder achar a maneira.
«Mais!»
—Não se atreva a tentar me impor mais obstáculos. Não o tolerarei.
—Sua decisão me deixa pouca escolha. Deve acreditar que pode viver como uma monja, mas duvido que possa fazer isso indefinidamente.
—Suas implicações são tão insultantes como escandalosas.
—Não são insultantes absolutamente. E escandalosas só se acabar por te converter na amante de um homem em lugar de na esposa de um homem.
—Cruzou a linha, cavalheiro. É impróprio que me fale dessa forma, inclusive sendo meu protetor.
Vergil inclinou a cabeça e um sorriso sarcástico bateu as asas brevemente em seus lábios.
—Cruzei a linha? É bastante provável. Surpreendo a mim mesmo. — Olhou a seu redor como se de repente se desse conta de onde estavam. —Terminou ou pretende seguir praticando?
—Quero ensaiar a ária uma vez mais. Voltarei para casa em seguida.
—Esperarei e te acompanharei de volta.
Apoiou-se outra vez contra a parede, em uma pose de relaxada paciência. Ela notou um acanhamento peculiar.
Ela se dispôs a dar volta, mas ele negou com a cabeça.
—Se não puder praticar com um homem te olhando, como atuará em um teatro que esteja cheio deles?
«Porque isso é diferente.» Parecia uma resposta irracional, mas era diferente. O foco de dois olhos, desses dois olhos, incomodava-a mais que um oceano de rostos. A atenção de uma pessoa, dessa pessoa, agitava-a mais que uma sala de concertos cheia a transbordar. Se ao menos outra pessoa estivesse presente, isso teria servido para diluir essa conexão singular. Depois de tudo, ele esteve no salão de música e ela não reagiu assim.
Ela afastou seu olhar e tentou apagar a consciência dele, mas não funcionou. A ária começou fracamente, como se o ar encontrasse um obstáculo ao passar através de sua garganta. A obstrução fez que seu coração palpitasse nervosamente. Estúpido. Estúpido. Recuperou certa calma graças ao ressentimento por sua intrusão e encontrou seu caminho.
A música se encarregou do resto. A concentração na técnica e a expressão a absorveram. O regozijo a transportou. Entretanto, não foi como a última vez. Outro espírito se unia a ela naquela viagem, seguindo-a, empurrando-a, abrangendo-a. Ao seguir com a canção não pôde resistir a olhá-lo. Ele esperava de um modo indiferente, olhando para baixo, um homem oferecendo educadamente seu tempo antes de passar a dedicar-se a outras coisas mais importantes.
Ele notou sua atenção. Elevou seu olhar e encontrou com o dela. Ela quase se quebra em um abrupto silêncio. Os olhos dele resultavam mais desconcertantes que de costume. Sua expressão profundamente cálida, sutilmente selvagem e claramente masculina não tinha nada de paternal ou distante, e muito menos de protetora.
Deus santo foi seu canto o que tinha provocado isso?
Apesar de seu desconcerto inicial, uma surpreendente emoção a atravessou como um raio. Em lugar de vacilar sua voz remontou voo. Não podia afastar a vista dele e a ária criava entre eles uma provocadora união. Espiritual. Sensual. Quase erótica.
Um instinto de alarme a sacudiu, apesar de que uma embriagadora sensação de poder crescia. A euforia se transformava em algo inegavelmente físico entre sua fascinante conexão.
Ela não poderia ter se detido embora tivesse querido. Emoções desconhecidas impulsionavam sua voz com novas paixões. Fechou os olhos ao final, mais para conter as sensações que para saboreá-lo. As pedras sustentaram os últimos sons como o silencioso eco de um longo pulsar do coração.
Não queria abrir os olhos. Ali ocorreu algo que não queria saber, algo que não implicava palavras nem tato, mas que era mais indecoroso que o beijo de Dante. Ele devia saber. Ela devia ter parado. Não queria olhá-lo até que aquela terrível falta de fôlego se aplacou.
Uma brisa cálida a fez abrir um pouco as pálpebras e viu umas botas limpas perto de sua saia. Uma mão dele, magra e forte, tomou a sua, a levou até os lábios e lhe deu um beijo veloz.
—Seu canto é nada menos que magnífico senhorita Kenwood. Catalani ficará impressionada esta noite.
Ela teve que olhá-lo. Ele fez um gesto formal assinalando a escada. Sua expressão recuperou seu habitual autodomínio e altivez, mas a outra seguia ali, como se o manto de reserva com que ele a cobriu fosse transparente.
Guiou-a pelo caminho, dando sua mão para baixar as tortuosas rochas, uma cuidadosa representação de uma imparcial e cortês preocupação. Enquanto davam a volta ao longo da parede para chegar até o atalho, ele se deteve e elevou a vista até as ameias.
—É muito pitoresco — disse ela, esperando que um pequeno bate-papo servisse para vencer aquela estranha sensação que parecia instalada.
—Meu pai considerou a possibilidade de restaurá-lo e reconstruí-lo. Mas finalmente, em lugar disso decidiu remodelar a casa. Isto teria custado três fortunas em lugar de uma, e o resultado teria sido uma moradia apenas habitável.
—Acredito que é mais bonito tal e como está, aos pedaços e com retalhos de história aparecendo entre os arbustos. Seria uma tolice reconstruí-lo completamente e com cimento novo.
—Estávamos acostumados a brincar aqui de meninos. Dante e eu éramos os cavalheiros, e obrigávamos Pen a interpretar o papel da dama prisioneira por um malvado guardião. —Um amplo sorriso apareceu ao dizê-lo— Você pode interpretar esse papel agora.
A pequena trama que contou podia tê-la ajudado a reduzir a percepção de tê-lo de pé junto a ela, mas simplesmente não era capaz de responder com o mesmo tom.
—Brincava também seu irmão mais velho com vocês?
—Quando éramos muito jovens sim o fazia. Depois cresceu e nos deixou para trás, suponho. —Seu olhar às ameias se voltou reflexivo— Quando se fez maior se refugiou em seus próprios interesses, e em sua própria mente. Quando começou a ir à universidade já era um estranho.
—É por isso que agora quer ler suas cartas? Para conhecer coisas dele que não te permitiu conhecer enquanto vivia?
De repente moveu a cabeça e lhe dirigiu um estranho olhar, como se ela o tivesse surpreendido.
—Suponho que sim, em parte.
Sua atenção se separou das emoções para voltar a centrar-se na torre outra vez. Ela se obrigou a afastar o olhar, para a parede.
—Eu gostaria de explorar o torreão algum dia.
—Não recomendo isso. Há anos é perigoso. O passeio pela muralha também é. Não havia tantas pedras espalhadas pelo chão quando era menino.
Para enfatizar sua afirmação, uma pedra do tamanho de um punho caiu ao chão, aterrissando justo aos seus pés. Vergil olhou para cima franzindo o cenho, esquadrinhando com seus olhos as ameias. Bianca deu a volta para afastar-se.
Um ruído sinistro se ouviu acima. Outra pedra caiu, golpeando o ombro de Bianca.
De repente tudo se fazia impreciso. Ele a pegou pelo braço para afastá-la, fazendo-a apoiar-se contra a parede. Ela comprovou que se achava imobilizada, entre uma pedra dura e um corpo duro também, com os ombros abraçados por uns braços que a cobriam, seu rosto escondido contra o pescoço dele e sua cabeça apertada contra a sua. Sua vista quase já tinha se endireitado quando uma avalanche letal de grandes rochas caiu ante eles, uma delas ricocheteou sobre suas cabeças antes de cair ao chão roçando as costas de Vergil.
Ela olhou horrorizada a chuva de morte e se encolheu dentro de seu refúgio. Pareceu transcorrer uma eternidade antes que os chiados e estrondos cessassem.
Vergil elevou a cabeça para examinar a parte superior do muro.
—Toda uma parte das ameias veio abaixo.
—Uma lição apropriada para evitar o encontro com estas ruínas no futuro. Quem imaginava que a tranquila Laclere Park podia ser tão perigoso?
Ela falou presa do nervosismo apoiada contra seu lenço. O tecido azul de seu casaco acariciava suas bochechas e seus dedos descansavam na seda bordada de rosas de seu colete cinza. A comoção a colocou em um estado de alerta extremamente sensível e uma parte de sua mente, de maneira absurda, contemplava a variedade de texturas de seus objetos. E a maravilhosa segurança que proporcionava seus braços. E sua masculina fragrância.
—É possível que meu canto tenha ocasionado isto?
—O mais provável é que a gravidade tenha rematado o que o tempo iniciou. De todos os modos, as possibilidades de presenciar algo assim são mínimas. Possivelmente sua voz acrescentasse um empurrão. —Inclinou a cabeça para ver seu rosto— Está ferida?
—Acredito que não.
Uma mão deslizou ao longo de suas costas para apertá-lo brandamente no ombro.
—E aqui dói?
—Está um pouco dolorido. Mas o mais provável é que só tenha um arranhão.
Ele não a soltou. Com uma mão ainda a envolvia e a outra descansava cuidadosamente em seu braço debaixo do ombro ferido. Sentir-se protegida por sua força a tranquilizava muito.
—Isto é mais ou menos o que disse depois que o cavalo te lançou ao chão. Supõe-se que deveria desmaiar ao enfrentar tanto perigo.
Ela sabia que ele não se referia às rochas, nem aos caçadores furtivos, a não ser à proximidade física que ambos os episódios favoreceram.
Sua advertência soou tão clara como uma sereia junto a seu ouvido. Mas não pôde lhe fazer caso. Sua masculinidade a fazia sentir-se pequena e indefesa de um modo deliciosamente pecaminoso.
Ela levantou a vista para seus reflexivos olhos.
—Eu nunca desmaio.
Voltou a ver nele aquela expressão que tinha quando se achavam no cômodo de pedra, enchendo-a de maravilhosas palpitações. A mão que tinha sobre seu braço deslizou para seu ombro, para voltar a baixar.
—Não desmaia? Nunca?
Ela voltou a sentir a lenta carícia. A suave fricção criou um murmúrio de sensações. Dentro dela. Através dela. Aquela ária havia a tornado vulnerável, e o medo tinha arrebatado seu habitual autodomínio.
Devia fazer algum comentário malicioso para acabar com esse pequeno jogo, mas só queria que aqueles dedos voltassem a deslizar sobre seu braço.
—Nunca.
—Todas as garotas deveriam desmaiar ao menos uma vez.
A mão a acariciou para cima e não baixou. Foi uma lenta carícia. Delicada sobre seu ombro, quente ao passar por seu pescoço, suave em sua bochecha, firme entre seu cabelo.
Ela quase se derrete quando ele inclinou a cabeça e a beijou nos lábios.
Lábios quentes. Firmes e controlados como tudo nele. Pausados. Comedidos, mas decididos. Ele roçou sua boca com carícias antes de passar a um jogo mais sedutor. Sutis beliscões fizeram que seu lábio inferior pulsasse e tremesse. As estocadas de uma língua diabólica enviaram espetadas dispersas através de seu rosto e seu pescoço. A sensibilidade de seus seios despertou e ela instintivamente o abraçou, procurando o contato que sua profunda ternura reclamava.
Ele a apertou para senti-la mais perto e a olhou de um modo tenso e cheio de avaliação. Da garganta dela escapou um suspiro ao sentir a pressão em seu peito. Beijando-a com feroz rendição, arrastou-a até a soleira da torre, entre a luz salpicada e as pedras frias.
Apoiou-se contra a parede e a atraiu contra seu corpo em meio de um torvelinho. Seus braços a rodearam e a dominaram, segurando-a firmemente contra seu corpo e os encantos de sua boca. Beijos febris assaltaram seu pescoço e suas orelhas, despertando um frenético e insistente anseio. Seus lábios seduziram os dela abrindo-os para uma investigação interna de escandalosa intimidade.
Ela se agarrou a ele e se rendeu tonta pelas extraordinárias sensações, elevando-se impotente em meio de uma euforia em que tudo se voltava impreciso.
Era tão agradável. Glorioso. Transcendente. A exaltação de seu canto feito física. O poder e potencial da última ária convertido em substância.
Aqui. Agora. Sim. Com uma voz inaudível seu sangue estalava em demandas entre seus ofegos. Aqui. Agora. Perfeito. Escandalosos batimentos de seu corpo se uniam ao canto. Inclusive sua mente, a parte que deveria conhecer melhor, repetia uma litania de escandalosos impulsos. Suas mãos deslizaram descaradamente sob a jaqueta dele para acariciar e agarrar seus lados e suas costas.
Algo se esticou dentro dele. Ela notou uma mudança perigosa e soube que seu gesto funcionou como algum tipo de afirmação. Os braços dele a acariciaram de uma forma possessiva e seu corpo arqueado se esticou com um impulso indecente. Suas mãos começaram uma exploração através de suas anáguas e ali ficaram. Sua imperiosa paixão e o lugar para onde ele se aventurava deveria assustá-la, mas a excitação só a permitia lamentar que a quantidade de roupa se interpusesse separando-os e inibindo-os.
«Sim. Quero… Quero…» Não sabia o que. Uma fome urgente pulsava através dela, com uma origem e um destino que não entendia. «Mais perto. Mais. Eu quero…»
Como se ele tivesse ouvido seu rogo silencioso, sua mão deslizou sobre sua cintura. Mantendo o polegar em seu estômago e os outros dedos em suas costas acariciaram para cima a bandagem de seu vestido. A desejada expectativa reduziu a respiração dela a uma série de inalações entrecortadas. Um beijo surpreendentemente suave acompanhou o gesto de sua mão para seus seios.
«Oh… Oh.» As deliciosas sensações que sua carícia provocou a deixou aturdida. Atravessaram-na e fluíram através dela, unindo-se aos estímulos provocados pelos crescentes beijos que lhe dava no pescoço e os assaltos a sua boca, que obscureciam sua mente. Deu e recebeu prazer a seu desejo, e o corpo dela, afligido e sem forças só podia aceitá-lo e submeter-se, muito ignorante para oferecer mais que consentimento ao ardor que ambos liberavam e subjugavam.
Os dedos brincavam com o tecido que cobria seus mamilos, duros e ardentes… «Sim…» Procurando agora o babado de seu decote… «Por favor…» Deslizando sob o tecido para explorar o novo desenfreio da pele contra a pele… «Ah, sim…» Seus braços a atraíram mais perto, com mais dureza, e um joelho dele pressionou entre as anáguas e a saia, a pressão foi vergonhosamente bem recebida… «Oh… Céus…» O vestido começou a soltar-se enquanto o corpo da manga deslizava pelo braço e uma mão elevava seu seio nu para uma cabeça morena… «Oh…» Ele o acolheu na umidade de sua boca e com seus quentes lábios iniciou um tortuoso percurso desde umas suaves mordidas até… «Oh…» Uns lamentos escandalosamente excitantes… «Oh…» Deliciosas correntes de prazer desceram por seus poros, enchendo-a, exigindo mais…
…Um movimento, um fraco rangido, ressoou entre as pedras.
Ele se endireitou bruscamente, cobrindo a nudez dela com seu peito, rodeando-a com seus braços para protegê-la enquanto escutava atento. O possível significado daqueles sons abriu passo através dos aturdidos sentidos de Bianca, destruindo o mundo de sensuais sonhos e fazendo-a voltar sem piedade para a realidade.
—Há alguém…? —sussurrou, apertando os dentes contra o lento desdobramento de sua excitação física. Ainda podia ouvir algo, era mais a vibração transportada através do muro que um som real. Incomodava como uma invasão entre os batimentos de seus corações.
Subiu a alça da blusa e a manga do vestido, logo a afastou.
—Fique aqui.
Caminhou a grandes pernadas até a torre. Ela lutou freneticamente contra seus objetos, conseguindo com muita dificuldade recompor seu vestido, experimentando a severa culpa de um criminoso surpreendido no ato do delito. Um abismo se abriu em seu coração.
Se alguém os visse, seria desastroso.
Podia ouvi-lo caminhando ao redor. O largo abismo se converteu em um enjoo, um imenso vazio. Cobrou consciência de seu comportamento como se recebesse um golpe. Aquilo tinha sido uma loucura. Ela tinha atuado de forma desavergonhada. Eles nem sequer se gostavam.
Ouviu-o voltar e tentou fortalecer seu ânimo.
Apareceu ante a soleira, uma forma magra e escura rodeada de luz. Ela não podia ver bem seu rosto.
—Se havia alguém aqui, já se foi. Deve ter sido tão somente um animal.
Ela rezou para que assim fosse, e esperava que se alguém veio da casa para explorar o torreão, não tinha esquadrinhado de perto a entrada da torre.
Ofereceu a mão em um gesto enérgico para fazê-la seguir. Ela se perguntava o que se suporia que deveria fazer ou dizer uma mulher depois de um comportamento tão descarado, e sentiu quase náuseas ante tanta confusão e vergonha. Empreenderam o caminho de volta para casa.
Ele não disse uma palavra. Para ela foi o quilômetro mais longo que já caminhou em sua vida.
Tentou achar consolo na ideia de que tinha demonstrado que era muito perigosa para estar perto de Charlotte, mas a ideia de abandonar Laclere Park estranhamente incrementou sua consternação.
Ele se deteve ante as árvores próximas ao estábulo.
—Faltam-me as palavras, senhorita Kenwood. Meu comportamento foi abominável, e me desculpar não é suficiente. Prometo que não tenho o costume de pressionar às mulheres jovens desta forma. A única explicação que posso dar é que não era eu mesmo esta manhã.
«Não o foi?» de repente o que ocorreu não resultava tão surpreendente tratando-se desse homem. Pareceu que o acontecido era uma consequência natural de seu caráter, um pouco controlado, mas que sempre estava ali, como uma corrente subterrânea sob a calma, uma corrente percebida, mas nunca vista e impossível de nomear. Esta produziu tensão entre eles desde o começo, como uma maré perigosa. Ela havia sentido seus efeitos, mas até hoje não os tinha entendido.
Ele seguia com os olhos sobre o atalho, sem olhá-la. Com suas palavras assumia a culpa, mas ela se perguntou o que pensaria realmente. Que demonstrou que não podia viver como uma monja? Que sua natureza era a de uma cortesã e ele deveria permitir que conseguisse a ruína que procurava? «Pressionar» não descrevia realmente o que ocorreu e os dois sabiam.
—Não fui prejudicada.
—Se nos vissem, definitivamente sim seria prejudicada.
—Eu não acredito que nos viram. Se alguém se aproximasse da entrada da torre, teríamos percebido.
—Se tivesse razão, isso só evitaria as piores das possíveis repercussões. Não pode negar que minhas ações foram indesculpáveis e desonestas, sobre tudo porque sou responsável por você. A comprometi, e não importa se alguém sabe ou não. Se você o exigir, farei o correto contigo.
—O correto? Quer dizer… Oh, não, essa é uma ideia absurda.
—Certamente promete ser uma ideia complicada, considerando… Bom… Enfim, complicada. De todos os modos…
—Não nos deixemos levar por seu senso de decoro e de dever, por favor. Não me sinto comprometida, nem arruinada.
Depois de dizer isto recebeu um severo olhar.
—Ah, não? É uma jovem extraordinariamente serena.
Aí estava. A insinuação de indecorosa cumplicidade por sua parte. Em realidade o animou, se a pessoa quisesse olhar as coisas com franqueza. Aquele olhar e aquela pergunta revelavam o que ele tinha em mente, e era difícil culpá-lo, considerando todas as ambiguidades que deliberadamente deixou cair com respeito a suas experiências.
—Digamos que não me sinto tão comprometida para recorrer a uma medida tão extrema como o matrimônio. Possivelmente simplesmente deveríamos esquecer este assunto.
—Sua equanimidade me impressiona. Deveria estar agradecido de que se mostre tão compassiva.
Não se sentia absolutamente compassiva. Sentia-se transtornada, desolada, decepcionada. Descer daquela glória a essa discussão formal sobre como expiar a poderosa experiência que compartilharam… Dava vontade de feri-lo, de bater nele, de dar uma bofetada que vencesse essas frias considerações sobre como retificar sua imprudência.
—Simplesmente não desejo complicar as coisas mais que o necessário, especialmente de um modo que me faria perder o controle sobre meu futuro e requereria um sacrifício por ambas as partes que levaria a uma vida inteira de infelicidade. Não me casaria contigo fosse qual fosse o escândalo que me ameaçasse. Entretanto, nossas futuras relações se tornaram embaraçosas. Acredito que será melhor que aceite minhas preferências a respeito de minha estadia na Inglaterra. Jane e eu encontraremos uma casa em Londres e…
—Serei eu que me afastarei. Minhas visitas a Laclere Park serão pouco frequentes e breves durante os próximos meses.
—Isso é muito injusto com suas irmãs.
—Quando você for à cidade passar a temporada minha presença será inevitável, mas por então possivelmente o tempo terá atenuado minha ofensa.
Ele não queria dizer isso. Sabia que não tinha sido realmente uma ofensa. Não se podia dizer que a tinha forçado ou forçado a si mesmo.
Ela deu a volta, aliviada e ao mesmo tempo triste por saber que depois daquela festa seriam muito poucas as ocasiões em que o veria.
Capítulo 7
Vergil estava certo. Ela seria uma amante esplêndida.
Tentou impedir aquele pensamento enquanto cavalgava de volta para as ruínas. Dava voltas em sua cabeça, uma reação absolutamente desonrosa de um homem que sucumbiu a desonrosas inclinações.
Seu comportamento foi vergonhoso. Censurável. Enlouquecido.
Isso não o impedia de voltar a rememorar e experimentar o contente consentimento que ela mostrou. Sentiu em sua boca seus suaves lábios e seus doces peitos. Explorou sua vibrante excitação com a pressão de seu joelho.
Se o intruso não os tivesse interrompido, a teria levado ao cômodo e teria feito amor até que as pedras ressonassem com seus gritos.
E ela permitiria.
Parou e bateu a palma da mão contra uma árvore, em busca de uma realidade tangível que pudesse destruir o desejo que voltava a dominá-lo.
«Confusa», havia dito Dante.
Maldita seja, sim era confusa.
Ela nem sequer gostava dele. Raramente falavam sem discutir. Ele esteve rondando em sua presença os últimos dois dias, mas ela nunca o buscava. E que então se lançou para cima sem nenhum tipo de inibições…
Caminhou com passo decidido através das árvores, possuído por um estado de ânimo perigoso. A calma que ela mostrou no estábulo foi mais que perturbadora. Exasperante. Quase para ruborizar-se. Uma serenidade total. Ele foi uma mescla desordenada de impulsos contraditórios, enquanto que ela se mostrou incrivelmente tranquila. «Não fui prejudicada.»
«Quase te arranco a roupa e te atiro ao chão sobre uma pedra.»
«Não me sinto comprometida, nem arruinada.»
«Bem, maldita seja, eu sim. Os homens que seduzem suas pupilas são repugnantes.»
«Não me casaria contigo fosse qual fosse o escândalo que me ameaçasse.»
Parou na borda da clareira do castelo com essas palavras ecoando uma e outra vez em sua memória.
Ele deveria se sentir agradecido ante seu terminante rechaço. Mas em vez disso experimentou uma ira irracional. Em parte porque sua serenidade o fazia perguntar-se se tudo teria sido para ela simplesmente um jogo caprichoso. E, sobre tudo, porque sua determinação o fazia cobrar consciência do fato deprimente de que ela jamais seria sua da forma em que ele queria.
Menos mal. Seria uma amante esplêndida, mas uma esposa impossível.
Deixaria que Dante se arrumasse com ela.
Essa ideia incitou nele um ressentimento primitivo e possessivo. Tentou reprimi-lo esforçando-se para concentrar-se nas ameias do castelo.
Uma escada se elevava em uma das bordas do muro, tão danificada que faltavam todos os degraus. Só podia subi-la esticando as pernas em busca de perigosos pontos de apoio para os pés. Uma pequena seção de rochas caiu sobre a erva enquanto escalava. Detinha-se a cada momento, tentando identificar se o som se parecia com aquele que tinha ouvido quando sustentava Bianca na torre.
Acima no caminho da muralha existiam ocos. Alguém tinha substituído algumas zonas desaparecidas com madeira nova, mas outras consistiam em fragmentos de tábuas podres, que sem dúvida não haviam sido reparados ao menos há um século.
Avançou com cuidado até chegar ao ponto do muro onde um enorme dente das ameias se desprendeu por completo. Aí abaixo se via o novo montão de pedras. «Quem teria imaginado que a tranquila Laclere Park podia ser tão perigosa?»
Uma questão endiabradamente certa.
Examinou a rugosa superfície onde as pedras se encontravam até tão pouco tempo e apalpou a argamassa das pedras que ainda se sustentavam em pé. As ligaduras podres caíam em uma pequena chuva de pó, unindo-se com um montão de pedrinhas a seus pés.
Nada parecido podia ver-se no resto das ameias. Examinou a superfície das pedras outra vez, procurando o rastro de alguma ferramenta. Podiam ser fruto de sua imaginação os sutis arranhões provocados por um instrumento metálico?
Caçadores furtivos disparando armas de fogo e depois uma muralha que vinha abaixo. Possivelmente tão somente fosse uma coincidência. Não havia nenhuma evidência do contrário. De todos os modos não gostava disso.
Desceu da muralha, procurando alguma prova de que alguém mais tivesse estado ali recentemente. Os sons da torre de pedra rondavam em sua memória. Não ouviu ninguém caminhando pelo atalho. Entretanto, aquele intruso podia ter sido simplesmente um dos convidados explorando o pitoresco castelo Laclere Park.
Retornou para casa. Quando passou ante a sala do café da manhã, viu Bianca em uma mesa na companhia de Cornell Witherby e Daniel Saint John.
Ela sorria e ria ante alguma brincadeira de Witherby.
Que incrível serenidade.
Provavelmente para ela só foi um jogo caprichoso, uma maneira de demonstrar ao santo que não era tão puro. «Possivelmente simplesmente deveríamos esquecer este assunto.» Dirigiu-se a seu escritório dando grandes passos, ressentido até a medula por um ponto de honestidade que admitia que enquanto ela poderia ser capaz de esquecê-lo, ele certamente não era.
«Eu nunca desmaio.»
«Por mim o fez!»
Estava reagindo como um moço inexperiente e isso o irritava ainda mais. Enviou um lacaio para procurar Morton, depois se recostou em sua poltrona e pegou alguns papéis.
Morton chegou quando estava terminando seu escrito.
—Quero que esta carta dirigida ao advogado de Adam Kenwood seja enviada a Londres pelo correio urgente — disse enquanto selava a missiva— Leva-a ao povoado pessoalmente agora mesmo. —Pôs a carta entre os grossos dedos de Morton— Ficará aqui quando voltar a partir para o norte. Eu não gosto da ideia de deixar à senhorita Kenwood em Laclere Park sem ninguém que a vigie.
—Acredita que corre algum outro perigo?
Vergil sabia que Morton empregava a palavra «outro» porque estava pensando no perigo que todas as mulheres belas corriam estando perto de Dante.
Possivelmente corria esse perigo. Ele não sabia. Entretanto, considerando os caçadores furtivos, as paredes que desabam e os assaltos do visconde Laclere, o perigo de estar perto de um libertino era muito menos preocupante.
***
Depois do jantar Bianca se achava sentada entre Fleur e a senhora Gaston, conversando com Pen e Cornell Witherby.
—Será uma série de epopéias — explicava à senhora Gaston— Vendidas por assinatura, embora financie a impressão. O poema do senhor Witherby será o primeiro.
Cornell Witherby sorriu modestamente. Penelope lhe dedicou um olhar cheio de admiração.
A senhora Gaston tinha a si mesma como uma rainha aceitando comemorações e oferecendo favores. Seu cabelo castanho avermelhado brilhava como o cobre à luz da lareira, e a satisfação que sentia ante sua própria importância se deixava ler em seu rosto.
—Enquanto nós falamos os impressores já estão trabalhando. Espero que cause sensação e que se necessitem mais edições. Não pelos benefícios materiais, é obvio. Pelo alcance das pessoas de bom gosto e sensibilidade o prodigioso talento do senhor Witherby é minha meta.
Falava como se o conselho divino ditasse seu trabalho, mas Bianca suspeitava que a importância que se outorgava ao ser patrocinadora a motivava muito mais que seu amor pela arte.
—Quais serão os outros poetas? —perguntou Fleur.
O que seguiu foi uma discussão sobre os méritos dos jovens poetas que poderiam merecer o mecenato.
Bianca mal ouvia o que diziam.
Passar a tarde desfrutando da doce companhia de Fleur provocou um horrível sentimento de culpa. A fria amostra de cortesia de Vergil deixou um vazio devastador. Um relógio interno advertia o passo de cada minuto daquele comprido dia com tic-tacs de agonia.
Tentou não voltar a olhar Vergil, nem dirigir-se a ele, mas era consciente dele a cada instante. Sentia sua presença quando estava perto. Ouvia cada palavra que dizia, inclusive embora se achasse na outra ponta da estadia.
Duas Biancas reagiam ante cada movimento dele. A velha Bianca, a inteligente, catalogava seus defeitos com uma ira mordaz. Mas havia uma nova que rezava para obter algum sinal por parte dele. Esta nova Bianca se rebaixava com lastimosos suspiros, mas a velha Bianca não podia fazê-la desaparecer.
De algum modo, de algum modo, superaria esse dia.
—… Haverá terríveis problemas se revogarmos a Ata de Combinação — entoou lorde Calne enquanto ele, Vergil e o senhor Saint John caminhavam para o pequeno grupo— Se se permitir que as classes mais baixas se agrupem, a ordem se verá ameaçada. Não podemos permiti-lo. É muito perigoso. Poderia terminar como a França em 93. Lamentará Laclere.
Pequenas chamas apareceram nos olhos de Daniel Saint John. Olhou lorde Calne como se fosse um imbecil.
—Parece como se soubesse muito pouco sobre o que aconteceu na França. Do contrário entenderia que as pessoas não podem viver para sempre com uma bota pisando em sua cabeça.
O rosto de lorde Calne ficou vermelho.
Vergil falou de forma apaziguadora.
—A Inglaterra não pode apoiar sua política nos excessos do povo francês de uma geração anterior, Calne.
—Oh, Deus nos libere. Política! —Cornell Witherby protestou brandamente, dirigindo-se às damas— Não serve nada mais que para a sátira.
Um calor especial brilhou em seus olhos ao dirigir seu bom humor para Pen, que ria. Parecia que Dante estava certo a respeito de sua amizade especial.
Sentindo-se em um estado de ânimo crítico em relação aos homens, Bianca o esquadrinhou minuciosamente. Aparentava uma boa figura e era de meia altura, mas sua postura tinha uma severidade muito pouco poética, como se uma vara de aço tivesse sido soldada a sua coluna. O cabelo loiro caía sobre sua testa e suas bochechas. Seu rosto era talvez um pouco alargado, mas era um homem atrativo ao redor de vinte e cinco anos de idade.
O fato de que cortejasse uma mulher que oficialmente estava casada não contava nada nas considerações de Bianca a respeito de ser bom para Pen. Muito mais significativo que isso era a atitude de absoluta devoção que tinha ao olhar para Penelope.
Ela jamais viu Vergil olhando daquele modo a uma mulher, nem sequer a Fleur. Quando o visconde Laclere examinava uma mulher, ela tinha a impressão de que estava avaliando seus defeitos.
Naturalmente isso não ocorreu quando a escutou cantar.
E decididamente tampouco ao beijá-la.
Nem ao lhe tirar o vestido.
Nem…
—Bom, ao menos essas liberações políticas mantêm seu impressor ocupado — disse a senhora Gaston.
Witherby suspirou.
—Foi só para dar suporte às artes literárias que aceitei o passatempo dessa imprensa. Preferiria dizer aos homens que rechacem qualquer comissão que não tenha a ver com poesia. Entretanto, os panfletos servem estupendamente para custear os trabalhos importantes. Assim ocorre com o patrocínio de grandes damas como você.
A senhora Gaston pareceu agradada com a adulação, e com seu êxito ao desviar a atenção para ela.
—Anular é uma necessidade moral. É uma falta de sentido proibir a homens livres assembleias livres — dizia Saint John aos homens que se achavam de pé perto.
—Se estiverem tão insatisfeitos deixemos que se vão —disse a senhora Gaston, unindo-se à conversa— Uma passagem grátis a Austrália para os que estejam descontentes. Não entendo por que ninguém propõe uma coisa assim. Para mim é uma saída completamente lógica.
—Se dá a todos os homens a oportunidade de votar, poderão decidir sobre seu futuro e estarão menos descontentes — disse Saint John.
—Acaso a multidão de Manchester deveria decidir as leis? —perguntou lorde Calne— A Câmara dos Comuns já está bastante alterada para acrescentar radicais e irlandeses.
Pen dirigiu a Saint John um sorriso suplicante e tranquilizador. O qual reprimiu a resposta destrutiva que pensou.
—As pessoas de Manchester não são uma multidão — disse Vergil— Eles estão ajudando a Inglaterra a se converter na nação mais rica do mundo. As cidades industriais como Manchester não podem continuar sendo privadas do direito ao voto por regras de distrito redigidas há séculos. É inevitável uma reforma do Parlamento.
Pen olhou seu irmão pondo os olhos em branco, a modo de reprovação por seguir alimentando a discussão.
Lorde Calne parecia estar sofrendo uma espécie de apoplexia.
—Antes me condeno no inferno. Se apoiar isso, Laclere está traindo seu sangue. Essas cidades do norte são lugares terríveis. Sujas de fábricas e máquinas e homens vis enriquecendo-se com comércios fétidos. Ouvi que é pior que em Londres. Não, me dê o ar limpo do campo e uma boa caçada. Nunca permitiremos que nos arrebatem isso.
Pen viu sua oportunidade.
—E como vai à caça em sua fazenda este ano? Podemos esperar as habituais caçadas magníficas?
—Parece boa, parece boa. Embora haja uma batalha contínua com os caçadores furtivos. Terei que levar cinco homens para as reuniões do trimestre.
A mudança de tema deu a Bianca uma oportunidade para escapar da proximidade de Vergil. Desculpou-se.
Os homens menos predispostos à política se dispersaram pela estadia. Nigel falava com Catalani e com a senhora Monley perto da janela. Seu primo a olhou com um caloroso e acolhedor sorriso quando ela passou ante ele.
Bianca se uniu a Diane Saint John, Charlotte e Dante.
Estavam falando sobre os dois filhos dos Saint John. Dante mostrava mais interesse nas travessuras dos pequenos meninos do que Bianca esperava, mas se aproximou para sentar-se a seu lado assim que ela chegou e permitiu que as damas conduzissem a conversa.
—Esteve muito calada hoje — disse ele em voz baixa— Espero que não esteja afligida por meu mau comportamento.
Ela quase esqueceu aquele beijo na biblioteca.
—Estou afligida ante tantos rostos novos. Tenho poucos temas que tratar com eles.
—Bom, aqui vem Saint John. É dono de uma companhia naval, como foi seu avô, assim tem algo em comum com ele.
Daniel Saint John se afastou da companhia de lorde Calne e se aproximava deles.
—Saint John, você conhecia Adam Kenwood, verdade? —perguntou Dante para facilitar as coisas a ela.
—Conheci-o sendo muito jovem. De fato, minha primeira viagem quando era um moço foi a bordo de um de seus navios. Muito antes que ele se dedicasse às finanças, é obvio.
—Quando ocorreu isso? —Bianca se sentiu obrigada a continuar a conversa, já que Dante iniciou por ela.
—Faz anos. Vendeu seus navios… Faz coisa de uns dez anos.
—Navegou com ele bastante tempo?
—Não, somente uma vez. Abandonei o navio ao chegar às Antilhas e encontrei um camarote com outro capitão.
—As regras de meu avô não o atraíam, suponho.
—Seu avô não era o capitão. Só era o dono dos navios e organizava os carregamentos. Eu simplesmente decidi navegar em outra parte.
Estava mentindo. Bianca estava segura disso por essa forma de falar muito educada.
—É estranho que vendesse todos os navios de uma vez — disse Dante— Ter uma frota de navios e no dia seguinte de repente ficar sem nenhum…
—Dado que comprei dois estava encantado de que o fizesse — disse Saint John.
—O que transportavam seus navios? —perguntou Bianca.
—Todo tipo de mercadorias, suponho, como meus.
Ela tinha a sensação de que o senhor Saint John se limitava a agradá-los, e não estava sendo muito franco. Dante tinha razão, era estranho que seu avô vendesse todos os navios de uma vez, não importava o que dissesse este outro comerciante marítimo.
Não teve tempo de pressioná-lo para conseguir uma explicação mais clara, porque Pen se dirigiu até o centro da estadia e reclamou atenção.
—Temos a sorte de contar com vários músicos consumados entre nós esta noite, e eu abusei de dois deles, o senhor Nigel Kenwood e a senhorita Bianca Kenwood, pedindo a eles que nos ofereçam uma atuação. Passemos com eles ao salão de música e os ofereçamos nossa agradecida atenção.
Ela mesma abriu caminho. Dante se dispôs a acompanhar Bianca, mas o senhor Saint John reclamou primeiro sua atenção.
—Parece que Catalani sabe quando deixar passo aos jovens.
—É amável por sua parte dizer isso, mas duvido que ela tema que eu possa lhe fazer concorrência.
—Cedeu a atuação por uma razão. Sabe que seu instrumento já não é o que era. —Pôs a mão dela entre seu braço enquanto caminhavam com o passar do corredor— Nervosa?
—Horrivelmente nervosa. Ansiava que chegasse este momento, e agora…
—Então isso explica seu ar distraído de hoje. Minha mulher me comentou isso. Ela é muito observadora a seu modo silencioso, e temia que você estivesse preocupada com algo. Se sentirá aliviada ao saber que se tratava de seu medo de cometer alguma estupidez na atuação de esta noite. Lhe direi que se tratava disso, e que é perfeitamente normal.
Não o era. Não para ela. Mas isto era diferente. Durante todo o dia a tinha aterrorizado a ideia de que chegasse esse momento. Voltar a cantar essa ária, diante de toda essa gente, com ele sentado ali… Algo se retorcia em seu interior com cada passo que dava.
Nigel ocupou seu lugar ante o piano. Os convidados se sentaram nas cadeiras colocadas ante ela. Vergil escolheu permanecer de pé junto à parede, perto de Fleur.
Ela o olhou, esperando um sorriso de boa sorte. Ele não se deu conta, pois se inclinou para dizer algo a sua prometida. Seu coração se encheu. Estava tão atrativo com seu casaco de um verde escuro e suas calças nata, com suas mechas onduladas emoldurando seu rosto e seus olhos azuis iluminados com um brilho de humor enquanto sorria a sua dama.
Deu-se conta com um sobressalto de que Nigel começou a introdução. Ela lutou para preparar-se.
Da outra ponta da estadia, Vergil a olhou.
Ela falhou. Essa primeira nota simplesmente não saía. Voltou-se para Nigel com desespero, suplicando sem palavras. Ele improvisou até que voltou a levar a melodia ao princípio outra vez. Ela se concentrou no chão e conseguiu acalmar-se. Ao levantar a vista viu um casaco verde deslizando através da porta.
«Obrigado.»
Afinou cada nota com precisão, mas sua alma não estava totalmente implicada nelas. Vergil podia não estar presente na sala, mas se achava em sua cabeça, confundindo-a com aquele olhar alarmante, misturando-se em seu espírito com lembranças indecorosas. Aquela ária não soou como a última vez nas ruínas, com sua emocionante exaltação. Uma emoção diferente gotejava desta vez. Um estranho oco existia em seu interior e a música o levava mais profundo e o enchia com um penetrante e doloroso desejo. Ao acabar ela não sabia se a atuação tinha saído bem ou não.
—Esplêndido, prima — sussurrou Nigel no meio do silêncio que se produziu.
O esforço a deixou imersa em uma névoa de melancolia. Deu uma olhada à expressão pensativa de Catalani enquanto recebia os elogios de outros convidados.
Catalani caminhou para ela, puxou-a pelas mãos e a afastou para um lado.
—Os anos me tornaram cética, e confesso que esperava uma voz bonita, adequada para salões e Igrejas. Estava equivocada. Possui um grande talento, querida. É excepcional.
Qualquer outro dia o julgamento de Catalani teria produzido euforia. Essa noite tão somente acrescentava um grande nó a mais ao matagal de emoções que a confundiam.
Pen encabeçou a marcha para a biblioteca para jogar cartas, mas Bianca se desculpou, dizendo que queria retirar-se. Seguiu à comitiva através do corredor, mas se desviou ao chegar à escada. Nigel se separou de outros.
—Esperava que nos encontrássemos jogando na mesma mesa, prima.
—Seria uma má companhia esta noite. A emoção de cantar com Catalani presente…
—É obvio. Entendo. De todas as formas agradeceria poder passar um momento mais contigo. Muito em comum, prima. Eu gostaria de te conhecer melhor.
Por mais que insistisse em usar a palavra «prima», por mais que empregasse um tom formal e correto suas intenções saíam à luz. O interesse que sentia por ela brilhava em sua expressão. Ela suspeitou que se naquele momento se achassem sozinhos no jardim Nigel teria tentado beijá-la.
Três homens em dois dias. Ela não tinha ideia de que fosse tão fácil voltar-se promíscua.
A experiência daquela manhã a havia tornado cínica. Possivelmente o interesse de Nigel fosse honesto.
—Se juntará com os outros para cavalgar amanhã pela manhã? —perguntou ele.
Pen organizou para todos uma visita pela fazenda, que terminaria com um almoço nas ruínas. Retornar ali tão cedo seria horrível.
—Não acredito. Não me encontro bem, ficarei aqui descansando.
Abriu-se a porta do estúdio que dava ao corredor. Dela emergiu a alta figura do visconde Laclere, que se dirigia à biblioteca. Ao vê-los se deteve, ficando de pé ante eles como uma sentinela. Nigel o olhou e a seguir dirigiu a ela um sorriso íntimo.
—Eu gostaria de falar contigo em algum momento em que seu guardião não esteja me olhando por cima do ombro. Os dois estamos sozinhos no mundo, e os parentes podem ser uma fonte de consolo. Se alguma vez necessitar minha ajuda, espero que venha a mim.
—É muito amável por sua parte me fazer essa oferta. Agora deveria se unir aos outros, eu preciso estar sozinha.
Vergil não se moveu, nem sequer quando Nigel passou ante ele lhe dirigindo uma saudação e entrou na biblioteca. Simplesmente seguia ali de pé, olhando-a. Ela queria girar a cabeça e afastar-se com altiva indiferença. Mas não podia mover-se.
—Retira-se?
—Sim. A noite foi uma prova.
—Eu acredito que a noite foi um triunfo. Escutei você. Superou a si mesma. Quanto ao dia, suponho que foi uma prova, e me desculpo por isso.
Ela não queria voltar a ouvir nada mais a respeito de suas desculpas.
—Os papéis pessoais de seu avô chegaram esta manhã — disse ele— A maioria das caixas está em meu escritório para que não a incomodem, mas separei as que correspondem aos anos em que seu pai vivia com ele e as mandei levar a seu quarto, junto com o que havia no escritório.
—Obrigado. —esforçou-se para mover-se e chegar até a escada.
—Há algo mais. Devo insistir em que não deve voltar a sair sozinha pela manhã cedo.
—Está preocupado por minha virtude? — A pergunta surgiu sem que ela pudesse impedir.
Ele nem sequer teve a decência de mostrar-se envergonhado.
—Estou preocupado por sua segurança.
—Irei onde queira e ensaiarei sempre que puder.
—Não pela manhã, e não sozinha. Se quiser praticar em privado e se preocupa que em seu quarto possa incomodar os outros, usa meu escritório. Mas não saia da casa.
—Continua cortando a correia, Laclere. Por que não me ata ao pilar da cama?
Seus olhos azuis a olharam de uma maneira que nada tinha a ver com o que usou nas insossas admoestações que acabava de lhe fazer.
—Tem talento para provocar as imagens mais surpreendentes, senhorita Kenwood. —deu a volta— Até amanhã então.
Jane a esperava em seu quarto. Sentia-se bem ao poder estar a sós com alguém que a conhecia há anos.
—Os convidados realmente o passam bem, verdade? —disse Jane— Todos esses homens bonitos com seus trajes elegantes.
Jane viu aquela viagem desde o começo como uma boa oportunidade para que Bianca encontrasse um marido. Nunca reconheceu que a falta de pretendentes em Baltimore era voluntária; o resultado de esmeradas dissuasões.
—Esse senhor Witherby parece prometedor. Um cavalheiro conforme se diz, e bastante atrativo.
—Suspeito que se interesse por Penelope.
Jane franziu o cenho.
—Por uma mulher casada? Separada ou não, isso é o que é. Bom, o visconde está fora de jogo. Está a ponto de prometer-se à senhorita Monley. E menos mal. Quem iria querer um homem tão estrito e severo? Sempre fica o irmão mais jovem de Charlotte, embora se diga…
—Sei o que se diz.
Jane a ajudou a colocar a camisola.
—Todos esses homens solteiros e nem sequer uma paquera? Quem ia esperar que a Inglaterra fosse tão aborrecida.
Algo menos aborrecida, e o de paquera não serviria nem para começar a descrever até que ponto estava se convertendo no contrário do aborrecimento.
—Meu primo Nigel me deu a conhecer seu interesse.
—Nunca gostei da ideia de que os parentes se mesclem. Não é bom juntar o sangue.
—É um parente bastante longínquo.
—Certo. Só que ouvi dizer embaixo que se parece muito a Dante. Vive endividado. Não pode permitir-se essa vida tão elegante. Seu avô deixou a você a maior parte do dinheiro. Diz-se que seu primo só tem dinheiro suficiente para manter o imóvel, e que tudo está disposto de forma que não possa acessar mais que os ganhos correspondentes para cada ano.
—Onde se inteira de todas essas coisas?
—Os criados daqui conhecem os poucos criados que ficam ali. Os arrendatários falam entre eles. É igual em nossa vizinhança. Tudo entra através da porta da cozinha — disse Jane— Se ele expressou esse tipo de interesse, deveria saber que pode ser como Dante em outros sentidos também. Parece que seu primo não está sempre só nessa grande casa. Uma mulher o visitou secretamente a semana passada. Segue meu conselho. Não acredito que queira o interesse desse homem.
Bianca não queria o interesse de nenhum homem. Rotundamente não. Nada mais que distrações, isso é o que eram os homens. Potencialmente distrações permanentes, assim funcionava o mundo. E, como ela vinha aprendendo a trancos e barrancos, fontes de dor e confusão.
Ansiava adormecer, mas sabia que só ocorreria quando estivesse completamente esgotada. Quando Jane saiu, aproximou as velas às caixas e ao baú, empilhados perto da lareira, e se sentou no chão para descobrir o que podiam revelar.
Uma chave estava na fechadura do baú. Girando-a abriu a tampa para examinar o conteúdo do escritório de Adam Woodleigh.
Tocou as plumas e o tinteiro barato. Buscou entre papéis cheios de escritas. Um tinha escrito o nome do irmão de Vergil, junto com outros, e ela supôs que foram os últimos que seu avô escreveu.
Uma pilha de cartas, atadas com um barbante, chamaram sua atenção. Estava a ponto de abri-las quando viu a saudação que encabeçava a primeira. Escrito pela mão de um homem, dirigia-se a Adam como «Meu mais querido amigo».
Com uma saudação como essa não podiam ser de seu pai. Provavelmente seriam do anterior visconde. As daria a Vergil.
Em um pequeno estojo de couro encontrou uma miniatura de uma mulher loira. Imaginou que seria sua avó. Encontrou certo parecido com seu pai, e a assaltaram lembranças de seu amor e sua nobre honestidade. Sua garganta ardia como se uma velha dor se unisse as novas.
Uma flor seca caiu em seu colo enquanto devolvia a diminuta pintura a seu ninho de veludo.
A flor não parecia muito velha. Não se desfez ao tocá-la, parecia que estava a anos naquele estojo.
Imaginou um homem velho recolhendo uma flor no jardim quando saía para caminhar e abrindo mais tarde esse estojo que continha a lembrança de sua esposa. Imaginou Adam lhe deixando essa pequena oferenda.
Fechou de repente o estojo. Não queria ficar sentimental com esse homem. Provavelmente a flor esteve ali sempre e foi sua avó quem a colocou ali.
O outro baú continha pastas. Adam foi um homem organizado, cada pasta correspondia há um ano e dito ano estava escrito na parte dianteira. Ela procurou as correspondentes aos anos em que ainda não tinha nascido, justo quando seu pai abandonou a Inglaterra.
Levou algum tempo encontrar o ano preciso. Não sabia que seu pai viajou a América ao menos seis anos antes que ela nascesse.
Era uma pasta magra com umas poucas cartas. Três eram de seu pai. Leu-as e compreendeu a razão pela que Adam Kenwood e seu filho se separaram.
Não foi por causa de sua mãe. Ocorreu antes que seus pais se conhecessem. Vergil estava certo a respeito do ocorrido. Seu pai rompeu a relação. Em uma carta onde rechaçava a oferta de uma pensão por parte de Adam expôs as razões.
As explicações esvaziaram seu coração das últimas frestas de alegria e confiança. O sonho que a sustentou desde a morte de sua mãe balançou como se seus alicerces tivessem sido atacados. A herança de repente a golpeou como uma brincadeira malvada, um chamariz do diabo para fazê-la pecar.
Não era para menos que seu pai tivesse dado as costas à fazenda e ao status que Adam edificou.
Seu avô fez sua primeira fortuna com o comércio de escravos.
CONTINUA
Vergil Duclairc é um homem acostumado a vencer. Como recém-nomeado tutor da senhorita Bianca Kenwood, está decidido a encontrá-la e devolvê-la ao lar custe o que custar, embora a última coisa que podia imaginar era achar sua pupila vestida de modo escandaloso cantando em um teatro de duvidosa reputação. Mas ainda estava menos preparado para a implacável atração que sentiu por ela somente em vê-la, um desejo que não pode permitir deixar fluir por medo de desmascarar segredos que jurou guardar.
De sua parte, Bianca não está disposta a abandonar sua independência, mas há algo irresistível no belo e persistente visconde Duclairc que o converte não só no administrador de sua herança, mas também no dono de seu coração. A jovem descobrirá em seguida que Vergil é um homem de profundos segredos e de uma sensualidade perturbadora a qual não se pode resistir. Quando suas vidas estão a ponto de mudar e seus caminhos a se separar, crescerá entre ambos uma paixão que os permitirá lutar contra o mundo ao qual pertencem.
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Capítulo 1
O canto de Jane Ormond, que Vergil apreciava a contra gosto, não apaziguou sua ira nem um pouco. Lamentava terrivelmente não poder jogá-la na prisão de Newgate, a que pertencia.
Ia vestida como uma rainha francesa do século passado, mas não parecia cômoda em seu papel. Movia-se com rigidez, como se temesse que a alta peruca branca caísse ou que o miriñaque[1] do vestido inclinasse. A confiança de sua voz contrastava com sua fragilidade física. E sua pose de profissional cheia de segurança destoava durante os breves momentos de vulnerabilidade.
Ele não se sentia deslumbrado com seus estudados encantos. Com seus olhos grandes, seus lábios carnudos e sua insinuada fragilidade, aparentava o tipo mais perigoso de inocência, dessa que impulsionaria um homem a sacrificar sua vida com o objetivo de protegê-la, mas que também poderia despertar outra parte escura, e conseguir que esse mesmo homem se imaginasse lhe arrancando a roupa e destruindo essa inocência.
Moveu-se em direção a ele, levantando a cabeça para cantar as notas mais altas em uma exibição vocal. Seus olhares se encontraram. Por um momento apareceu em seu rosto um brilho de curiosidade, como se percebesse que ele não estaria ali se não fosse pelo dever.
Ele sabia que não havia nada em sua aparência que pudesse revelar isso. Aquela sala de jogos incluía espetáculos para atender aos gostos dos homens de sua classe. Eles podiam descansar de suas apostas naquele salão para comer e desfrutar de um concerto de ópera, ou, mais tarde, desfrutar de formas de entretenimento muito mais baixas.
Ela o olhou por um tempo mais longo do que devia em resposta à inspeção a que se sentia submetida. Ele se surpreendeu ante a inquietante combinação de proteção e erotismo que aqueles grandes olhos convocavam, e se concentrou em todos os problemas que ocasionou durante as últimas duas semanas.
Morton se deixou cair na outra cadeira da mesa. Parecia desconjurado, com sua pinta de urso e sua barba fora de moda.
—A garota está aqui — disse— Em uma estadia traseira. A senhorita Ormond a traz aqui a cada noite, para que a espere enquanto ela canta. Falei com o homem da porta e ele as viu entrar juntas esta noite.
Vergil se levantou.
—A senhorita Ormond cantará outra canção depois da ária. Faremos agora. Temos que tirar à garota antes que acabe. —A senhorita Ormond, sem suspeitar nada, continuava com seus gorjeios— Se for inteligente, nos perseguirá pela costa quando se der conta de que seus planos fracassaram. Quanto à garota, a levaremos ao campo para que se recupere, e ninguém se inteirará de nada.
Estava contando é obvio, naturalmente, que a senhorita Jane Ormond ainda não vendeu à garota pelo maior preço. Concentrou sua atenção no rosto aparentemente ingênuo sob a muito alta peruca branca. Podia ver-se um traço de inteligência naqueles olhos. Não, essa mulher não teria se arriscado tanto por um prêmio tão pequeno como o dinheiro que podia obter de vender uma virgem. Possivelmente teria planejado pedir um resgate, mas o mais provável era que tivesse intenção de vender à garota para algum casamento. Ela, sem dúvida, tinha notícias de sua herança desde que servia de criada e partiram juntas da América.
Tudo aquilo podia ter sido evitado se Derem estivesse mais atento. A culpa era em realidade dele, por ter enviado seu irmão para receber o navio, mas quem ia pensar que uma criada que não era mais que uma menina se atreveria a fazer semelhante coisa.
O corredor de má morte contrastava com a opulência do salão. Morton assinalou para uma porta escondida sob uma escada. Vergil girou o trinco.
Já havia visitado camarins de cantoras, e normalmente era um autêntico desastre ao que se refere à ordem. Entretanto, aquele diminuto espaço foi arrumado cuidadosamente. Havia um par de velas sobre uma mesa, em que também podia ver-se um espelho e um recipiente com pinturas. Disfarces e roupas de dia penduravam de uma fila de cabides colocados na parede. À direita da mesa havia uma cadeira entre as sombras, onde uma moça permanecia sentada com uma agulha fazendo acertos em um tecido que sustentava perto das chamas.
—Senhorita Bianca Kenwood?
Ela levantou o olhar surpreendida e ele imediatamente começou a calcular quanto teria que incrementar o suborno que pensava fazer a Dante. Sem dúvida poderia tratar-se de uma garota doce, mas Dante julgava às mulheres por seu aspecto físico, não por seu caráter, e o dela não impressionava muito. As mechas de cabelo castanho que escapavam de seu gorro pareciam mais crespados que frisados. Seu nariz era arrebitado, o qual poderia ter resultado encantador no caso de que não fosse tão largo.
—Senhorita Kenwood, sou Laclere.
—Oh!
—Este é Morton, meu (criado). Tenho um carro estacionado atrás do edifício e a levaremos ali imediatamente. Sua terrível experiência terminou e te asseguro que ninguém jamais terá notícia deste desafortunado incidente.
—Oh! Oh, Deus…
—Por favor, é necessário sairmos agora. Falarei com a senhorita Ormond mais tarde. No momento, o melhor será que a tiremos daqui.
—Oh, não acredito que… Isto é… — Andou para trás, fazendo gestos de resistência e confusão. Ele se inclinou para ela e sorriu para transmitir confiança. Precaveu-se de que seu vestido era muito comum, um simples vestido longo e cinza. Era evidente que não tinha nenhuma noção do que era se vestir na moda.
—Vamos querida. Será melhor que saiamos antes que…
—Quem é você? —A indignada voz que fazia a pergunta era feminina, melodiosa e jovem.
Vergil deu a volta para ver Maria Antonieta ante a porta, com os braços em jarras e as mãos apoiadas sobre seu magro talhe. O vestido de largos quadris ocupava toda a soleira.
—E bem? Quem é você, senhor, e o que está fazendo aqui?
A senhorita Kenwood se levantou de um salto e se precipitou para a senhorita Ormond, que a abraçou de maneira protetora. Ou seja, que assim é como tinha ocorrido. Naturalmente, ela tinha cercado amizade com a garota. De outra forma não teria funcionado.
—Seu concerto terminou? —perguntou ele.
—Os lieder são peças breves. Agora, me faça o favor de sair. Minha irmã e eu…
—Senhorita Ormond, essa jovem não é sua irmã. Não são parentes. A convenceu a vir com você, mas sua ação não foi outra coisa mais que um sequestro e deverá ser examinada ante um juiz.
A senhorita Ormond afastou brandamente à garota e depois apertou seu vestido para conseguir entrar na estadia. A largura da ridícula saia obrigou Morton a se aproximar da parede.
Ela cruzou os braços. O gesto fez que Vergil se fixasse na forma em que seus peitos apareciam esmagados, sob o rígido sutiã.
—Quem é você?
—Vergilius Duclairc, o visconde Laclere. A senhorita Kenwood é minha pupila, como você já sabe.
Ela baixou lentamente o olhar, e logo voltou a elevá-lo.
—Eu não sei nada disso.
O aprumo que demonstrava, apesar de ter sido surpreendida em fragrante delito, acabou com a paciência de Vergil.
—Não tente brincar comigo, jovenzinha. A forma em que traiu a confiança de sua companheira de viagem é simplesmente abominável. O perigo e o possível escândalo ao que submeteu esta moça durante as últimas semanas são indesculpáveis. A partir de agora não tolerarei nenhuma intromissão. Se você se der pressa, poderá estar a caminho de volta a América antes que amanheça, mas unicamente estou disposto a fazer esta concessão por deferência à senhorita Kenwood.
Ela nem sequer pestanejou. Avançou uns passos para diante até que os volantes de sua saia roçaram a perna dele e levantou a vista para olhá-lo de uma forma curiosa.
—Assim é você um desses.
Ele a olhou fixamente. Se fosse um homem lhe daria uma boa surra.
Ela dirigiu a vista para a perturbada garota, encolhida com medo contra o vão da porta.
—Pelo visto parece que tudo terminou. É uma lástima, realmente acreditei que conseguiria. —Fez um gesto e a senhorita Kenwood se uniu a ela para ajudá-la a desprender e dobrar os objetos que tinha pendurados nos cabides.
Ele se colocou entre elas, pegou um vestido das mãos de sua pupila e o jogou para um lado.
—Iremos agora mesmo. Se a senhorita Kenwood tiver pertences aqui ou no lugar onde se aloja, enviarei alguém para buscá-los.
A senhorita Ormond sorriu de uma forma muito insolente.
—Oh, definitivamente é você um desses. Muito seguro de si mesmo. Um homem que decide que rumo seguir e que está sempre seguro do que é o correto. Advertiram-me que neste país havia muitos homens como você, homens que estão convencidos de que jamais cometem enganos.
Ele sentiu que se ruborizava ante a suja afirmação dessa pomba presunçosa. Já tinha sido suficiente. Pegou com sua mão a larga manga de tecido cinza de sua pupila.
A senhorita Ormond mudou de posição e obstruiu sua retirada com a largura de seu vestido. Com uma mão, suave e cálida, agarrou a mão dele e com delicadeza fez que seus dedos se abrissem e o tecido largo e cinza se deslizasse deles.
Uns olhos azuis o olharam com zombador deleite.
—Bem, esta vez cometeu um engano, Vergilius Duclairc, visconde Laclere. De fato, você está completamente equivocado. Ela não é Bianca Kenwood. Sou eu.
Ele teve um momento de confusão até que o significado daquelas palavras o golpeou. Insinuações de problemas se atropelaram em sua mente, uma luminosa névoa de premonições que sugeria que algo que parecia bastante simples de resolver acabava de voltar-se perigosamente complicado. Dirigiu seu olhar para o tímido passarinho cinza que retorcia as mãos, e depois para aquela ave do paraíso, borrada e cheia de confiança em si mesma, e se perguntou como teria reagido Dante ante desse escandaloso acontecimento.
***
Zas. Zas. Zas.
O látego de montar golpeava contra as altas botas do visconde Laclere enquanto caminhava acima e abaixo frente à chaminé.
No divã, Bianca abraçava Jane, e dava tapinhas no seu ombro. Na outra ponta do salão, meio adormecida, a condessa de Glasbury irmã do visconde, piscava com consternação, vestida com uma bata verde de estilo oriental.
Bianca pensou que era de muito má educação por parte de Vergil Duclairc arrastar Jane e a ela até a casa da condessa e interromper seu sono. Se ele deixasse de dar voltas ao assunto e de caminhar de um lado a outro, ela poderia esclarecer as coisas rapidamente e poderiam partir.
Zas. Zas.
—Não estará planejando usar isso, verdade? —perguntou Bianca. Sua voz rompeu o tenso silêncio que se fez depois que ele explicou à condessa onde encontrou sua pupila desaparecida após duas longas semanas de busca.
Ele parou em seco uma de suas idas e vindas para dar a volta e olhá-la. Era um homem alto, magro e robusto de uns vinte e cinco anos, com surpreendentes olhos azuis e o cabelo ondulado e escuro um pouco despenteado, como ditava a moda. Atrativo, de fato. Possivelmente inclusive bonito se deixasse de pôr essa cara mal-humorada, de momento ela não podia saber.
—O látego — insistiu— Não pretende usá-lo? Devo te dizer que tenho vinte anos, e Jane tem vinte e dois, o que significa que já passamos da idade para estas coisas. Embora minha tia tivesse uma criada que foi cortejada por um cavalheiro inglês que disse que há muitos homens que usam o látego com suas mulheres aqui na Inglaterra, o qual me pareceu bastante curioso, e que há outros que de fato querem mulheres para lhes dar chicotadas, o qual para mim não tem nenhum sentido.
A condessa ficou boquiaberta. De repente parecia completamente acordada.
Vergil se voltou para sua irmã com uma paciência cheia de tensão, e assinalou para o divã como querendo dizer «o vê?».
—Asseguro-lhe, senhorita Kenwood —disse a condessa com um sorriso vacilante— que, sem dúvida, meu irmão não tem nenhuma intenção de…
Vergil baixou as pálpebras como se não houvesse nenhuma razão de usar o «sem dúvida». Cruzou as mãos atrás das costas e estudou a moça com severidade.
—Meu irmão foi esperar seu navio em Liverpool. Por que não conseguiu encontrá-la?
Bianca considerou a possibilidade de usar a elaborada história cheia de peripécias que inventou se por acaso as coisas se estragavam, tal como tinha ocorrido. Mas de repente pareceu que era muito pouco convincente.
Examinou os olhos azuis que a esquadrinhavam. Tia Edith havia dito que os aristocratas ingleses eram gente indolente e decadente, um pouco estúpidos, e Bianca acreditava que aquilo seria certo. Infelizmente aquele parecia ser uma exceção, ao menos em relação ao último ponto. Não parecia capaz de acreditar em confusas histórias a respeito de uma moça inocente e desventurada.
—Havia a bordo um marinheiro que nos ajudou a tirar nossos baús e a encontrar um carro de aluguel antes que alguém viesse nos recolher.
—Ficou amiga de um marinheiro? —A condessa lançou a seu irmão um olhar oblíquo e este fechou por um momento os olhos.
—Senhorita Kenwood, talvez ocorreu um mal-entendido. O procurador de seu avô contatou com um advogado de Baltimore, o senhor Williams, para dirigir este assunto. Ele falou com você, ou acaso não fez? É possível que foi mal informada?
—Certamente falou comigo. É um homem muito agradável. De fato conseguiu nossa passagem para o navio.
—Escreveu-me dizendo que o faria. Explicou a você que um membro de nossa família iria recolhê-la em Liverpool?
—Explicou-o com muita claridade. Minha tia não teria me permitido vir se não tivesse convencida de que me recolheriam.
—Então admite você que desembarcou por sua conta própria sem esperar um acompanhante e que não foi acidental que meu irmão não a encontrasse?
—Não foi acidental. Foi completamente deliberado.
Por alguma razão sua franqueza o deixou mudo. Olhou-a como se fosse impossível compreendê-la.
—Acredito que será melhor que se sente Vergil, assim ela se sentirá menos incômoda — disse a condessa— Podemos falar as coisas com calma. Estou segura de que a senhorita Kenwood terá uma explicação para tudo.
Vergil se sentou em um pequeno banco, mas continuou envenenando a moça com sua atitude.
—Você tem alguma explicação?
—É obvio. —Jane dormiu apoiada em seu ombro e o peso morto a distraiu. O abraço tinha feito que sua peruca se desequilibrasse e se torcesse. Esses vestidos antigos não estavam desenhados para sentar-se e a saia formava uma espécie de plataforma a seu redor. O espartilho sob o disfarce lhe cravava ao lado da cintura.
Sentia-se um pouco ridícula e muito incômoda e lamentava que aquele visconde com ar de grandeza não a tivesse deixado tempo para trocar-se e lavar-se antes de arrastá-la até o carro.
—A explicação, senhorita Kenwood. Eu gostaria de ouvi-la.
—A verdade, senhor Duclairc, é que não acredito que gostará.
Ele entrecerrou os olhos.
—Seja como for vamos provar.
Ela subiu uma perna e a colocou sob seu traseiro para levantar-se um pouco mais. A condessa pestanejou. O visconde elevou uma sobrancelha em atitude de censura. Ao dar-se conta de que a perna que pendurava estava descoberta até a metade da panturrilha, Bianca sorriu a modo de desculpa e puxou a borda de sua saia para baixo.
—Senhor Duclairc, fui informada a respeito dos planos de minha visita aqui. Simplesmente decidi fazer umas pequenas mudanças. Se o senhor Williams falou com você a respeito de mim, você deve saber que eu vivia com minha tia avó Edith mais como uma companheira que como uma pupila. Viajei muito quando minha mãe vivia, e aprendi a cuidar de mim mesma. Sou considerada muito amadurecida para minha idade.
—Ele só me escreveu dizendo que sua tia era um baluarte da sociedade de Baltimore e que você era uma jovem bem educada. —Seu tom dava a entender que o senhor Williams devia alguma explicação.
—Sei que meu avô o nomeou meu protetor em seu testamento. É um gesto encantador e comovente. Provavelmente ele queria cobrir a eventualidade de que eu necessitasse realmente um protetor, mas obviamente não é o caso. Por outro lado, sou americana, assim não posso entender de que modo um testamento inglês pode estabelecer algum tipo de autoridade sobre mim.
—Será um prazer explicar mais tarde.
Ela já sabia a explicação. Simplesmente não a aceitava.
—Ante a insistência do senhor Williams, aceitei vir aqui para estudar assuntos referentes à minha herança e arrumá-los pessoalmente. Entretanto, nunca disse que iria ficar com sua família. —Omitiu o fato insignificante de que tampouco nunca havia dito que não fosse fazê-lo e que quando subiu a bordo desse navio tanto o agradável senhor Williams como a velha tia Edith davam por certo que era exatamente isso o que faria.
—A quem pensava visitar, querida? —perguntou a condessa— Vê Vergil, disse que haveria uma explicação. Ela esperava que outros amigos fossem recolhê-la e não se apresentaram.
A expressão dele se fez cautelosa.
—É assim, senhorita Kenwood?
—Não — admitiu ela. Curiosamente, ele pareceu aliviado— Minha intenção é viver por minha conta, com Jane como acompanhante. Em relação à oferta de alojamento em sua casa de campo… Bom, me sentiria como uma intrusa, e, além disso, prefiro a vida da cidade. E é obvio, não queria que se atrasassem minhas lições.
—Lições?
—Lições de canto. Esse é o motivo de ter vindo. Meus instrutores em Baltimore me disseram que me levaram tão longe quanto podiam e que a partir de agora necessitava professores melhores. Meu plano é tomar lições em Londres até que o assunto de minha herança esteja resolvido, e depois usar os ganhos para ir a Milão.
O visconde suspirou, levantou-se e começou a caminhar de novo frente à chaminé. A condessa inclinou sua cabeça de cabelo negro confidencialmente.
—Acredito que é maravilhoso que sinta esse ardor por sua música. Quanto talento! Quando formos a Londres para a temporada, estou segura de que poderemos encontrar um professor de canto. Conheço bastante gente nos círculos de arte e de música.
—Obrigado por tão amável oferecimento, mas não quero esperar até a temporada, seja quando for. As lições de canto foram o autêntico propósito de minha viagem e penso começá-las em seguida.
Vergil esfregou as superficiais rugas que se formavam entre suas sobrancelhas.
—Senhorita Kenwood, não quero incomodá-la, mas preciso saber como você conseguiu cantar nesse local.
—Vergil…
—Não, Penelope, é melhor esclarecê-lo agora e saber exatamente a que enfrentamos. Senhorita Kenwood?
—Bom, alugar esse carro para chegar a Londres resultou muito caro. Custou mais do dinheiro que trazia comigo. Quando chegamos a Londres encontrei emprego cantando, para nos manter até que pudesse obter o dinheiro do patrimônio de meu avô.
—Que inteligente e competente por sua parte — disse Penelope.
Vergil tinha o aspecto de alguém que jamais admirou virtudes como a inteligência ou a competência.
—É consciente da reputação desse lugar? Sabe o que ocorre no cenário depois de suas árias?
—Nunca ficamos. Parecia uma sala de música comum.
—Do mais comum. Nossa única esperança é que seu disfarce esconda sua identidade e que nenhuma das pessoas que te encontre no futuro a reconheça. Resulta escandaloso que uma mulher cante em um cenário de qualquer tipo, mas em um como esse, pintada e com esses babados… — Fez um gesto assinalando seu vestido, seu rosto, sua peruca.
—Minha mãe cantava em um cenário senhor Duclairc e este é seu vestuário.
—Estou segura de que era uma cantora encantadora — se apressou a dizer Penelope.
—Deixa de seguir a corrente, Pen. Talvez isso seja aceitável nos Estados Unidos, mas não na Inglaterra, senhorita Kenwood.
—Posto que não seja inglesa, isso não me preocupa. Acredito que o melhor será evitar qualquer contato social para que você não deva preocupar-se com minhas atuações, não parece? —Fez um sorriso forçado, como o animando a aceitar a lógica daquele raciocínio— Agora que já cumpriu com seu dever assegurando-se de que estou a salvo, por favor, leve Jane e a mim ao nosso alojamento.
—Você ficará aqui esta noite. Farei com que tragam seus pertences e que se relate ao proprietário da sala de jogos que suas atuações acabaram.
—Devo declinar sua oferta, senhor Duclairc. Não quero abusar da hospitalidade de sua irmã, e tenho a intenção de continuar com meu emprego. Como cantora, necessito experiência com o público e…
Ele a interrompeu com um gesto autoritário.
—Não. Definitivamente não. Não viverá de forma independente sem uma acompanhante e tampouco vai pavonear sobre um cenário. Enquanto esteja aqui eu sou responsável por você e deverá comportar-se como se espera de uma jovem dama.
Bianca devolveu o olhar a aquele intratável, alto e imponente visconde. Que um velho avaro, a quem nunca conheceu, pudesse ter complicado sua vida dessa maneira com os garranchos de uma pluma, resultava intolerável. Não esperava que o visconde a encontrasse tão rápido. Não esperava ter aquela conversa até estar preparada.
Vergil cruzou os braços. Aquela pose o fazia parecer muito alto e poderoso. Era o tipo de postura que devia adotar um rei quando ordenava executar alguém.
—Amanhã minha irmã acompanhará você e a sua criada até o campo — entoou, como expressando a vontade de um juiz— Não falará com ninguém a respeito desta experiência, nem sequer a outros membros de minha família. No que concerne ao mundo, você foi recolhida no navio e esteve sob nosso amparo desde o começo.
—Se você me tirar de Londres, será contra minha própria vontade. Como você disse antes, isso é um sequestro. Eu também posso ir me queixar ante o tribunal de Justiça.
Ela olhou com frieza.
—É legalmente impossível para mim sequestrá-la, senhorita Kenwood. Sou seu tutor. Até que você cumpra vinte e um anos ou se case permanecerá sob minha custódia. Pen, pede à governanta que mostre à senhorita Kenwood e à senhorita Ormond suas acomodações.
Despachada como uma escolar travessa, Bianca achou a si mesma e a uma sonolenta Jane guiadas por uma mulher através do corredor. Zangada por ter visto frustrado seu plano, e desconcertada ao ver aquele estranho assumindo uma responsabilidade que certamente desejaria não ter que assumir, baixou a escada guiada por aquela mulher.
Algo no final daquela confrontação a perturbava. Foi chegar ao patamar da escada quando se precaveu da importante omissão. «Até que você cumpra vinte e um anos ou se case permanecerá sob minha custódia.»
Ou até que abandone a Inglaterra, naturalmente. Verdade?
—Não acredita que foi muito duro com ela? —perguntou Penelope.
—Absolutamente. —Vergil observava Bianca Kenwood enquanto esta subia a escada cambaleando com suas delicadas sapatilhas de seda. A chuva de premonições se converteu em uma tormenta de neve.
Que desastre.
—É uma estrangeira aqui, Vergil. Ignorante de nossos costumes. Sem dúvida, as pessoas na América se comportam de maneira mais informal.
—Não acredito Pen. Ela sabia perfeitamente o que estava fazendo. —O qual significava que estava fazendo exatamente o que queria e pressupondo que aquilo o induziria a lavar as mãos a respeito dela.
Deu a volta, pensando em tomar um copo de porto antes de partir. Precisava fazer planos sobre como preparar seu irmão e como frear à senhorita Kenwood para que aquele caveira não ficasse impressionado por ela.
Penelope o pegou pelo braço, detendo-o.
—Foi muito amável de sua parte não dizer nada a respeito de como deve dirigir-se a você. Compreendeu que era só sua ingenuidade o que a fazia te chamar todo o tempo senhor Duclairc. Ela se sentia envergonhada e você foi muito generoso. O explicarei amanhã.
É isso o que Penelope viu naqueles olhos azuis? Ingenuidade? Vergonha? Normalmente sua irmã mais velha se mostrava mais ardilosa, apesar de sua natureza otimista.
—Não será necessário dar explicações, Pen. Apostaria mil libras que a senhorita Kenwood sabe perfeitamente qual é a forma apropriada de dirigir-se a um visconde.
Capítulo 2
Vergil lançou a seu camareiro seu chapéu empapado e desatou com violência o nó de seu lenço.
—Uísque para os dois, Morton. Depois desta viagem, necessito. Leva Hampton acima quando chegar.
Ao final de dez minutos, Morton não só serviu as bebidas, mas também queijo e carne de ave fria, acendeu um pequeno fogo na biblioteca e conseguiu que Vergil estivesse seco e arrumado. Não é que houvesse ninguém ante quem tivesse que estar arrumado. Só umas poucas estadias da luxuosa casa de Londres estavam abertas e, além de Morton, havia só outros dois criados.
Tampouco tinha por que arrumar-se para receber Julian Hampton. O advogado da família o viu em outras ocasiões vestido de maneira muito informal. Entretanto, a vida que levava em Londres requeria que se respeitassem as aparências.
Sentou-se junto ao fogo, bebendo a sorvos seu uísque com dois grandes livros em seus joelhos. Já sabia o que mostravam esses documentos e o que diria Hampton. As finanças da família Duclairc não atravessavam um período de prosperidade. Só a cuidadosa direção de Vergil durante aquele último ano tinha evitado o desastre total.
Ultimamente, entretanto, não teve muito tempo para dedicar-se a essas coisas. Outros assuntos, mais urgentes e também mais interessantes, tinham requerido sua atenção. Assuntos como o que acabava de atender no norte.
E agora, é obvio, precisava ocupar-se daquele novo assunto chamado Bianca Kenwood. As possíveis complicações que aquilo podia representar o fizeram fechar os olhos.
A imagem dela cintilou atrás de suas pálpebras, assim como ocorreu muito frequentemente durante as últimas duas semanas. Viu-a sentada na sala de estar de Pen com aquele absurdo vestido, sua magra perna pendurando do divã e a sapatilha de seda arqueando um pouco seu pequeno pé. Estava do mais inapresentável. Além de incorrigível e impertinente e maliciosa e fascinante…
Fascinante? Que ideia tão curiosa. De onde sairia?
—O senhor Hampton — anunciou Morton.
Julian Hampton entrou, levando posta sua cara de advogado. Sempre o fazia quando se encontravam por assuntos de negócios. Já que se tratava de um velho amigo provavelmente era necessário, especialmente quando tinham que falar de más notícias. Vergil viu aquela expressão muito frequentemente durante o último ano.
—Estudou-os? —perguntou Hampton, assinalando os tomos ao tempo que tomava assento e aceitava o copo que oferecia Morton.
—Espero que as coisas tenham mudado um pouco.
—Um pouco. A solvência nos faz gestos. Se sua irmã vivesse em Laclere Park…
—Não posso pedir que seja tão dependente.
—Ou se Dante vivesse de acordo com seus meios…
—Jamais o fez, assim não há nenhuma esperança.
—Poderia consolidar a granja e arrendar a terra.
—Essa é uma velha litania, Hampton, e já sabe minha resposta. Meu pai e meu irmão não jogaram essas famílias, e eu tampouco o farei.
—Bom, ao menos não estão na borda do abismo.
Estavam mais perto do abismo do que sabia Hampton e do que revelavam aqueles tomos. Entretanto, Vergil tinha um plano para tentar solucioná-lo. Infelizmente, uma parte fundamental desse plano podia causar problemas. A parte chamada Bianca Kenwood.
Hampton sorriu. Isso nunca era um bom sinal, especialmente na cara de seu advogado.
—Deve melhorar as coisas do modo mais simples. O modo tradicional.
—Sim, suponho que o pai de Fleur será muito generoso. Deveria estar agradecido de que meu valor tenha aumentado tanto depois da morte de meu irmão. Com o tempo, suponho que consentirei em me casar. De momento, entretanto, outros enredos fazem que resulte impossível.
Hampton não era um homem muito expressivo, assim que o brilho de curiosidade e preocupação que relampejou em seus olhos fez Vergil ter sabor que falou muito.
—Posso te procurar ajuda? Tenho experiência em negociar para que meus clientes solucionem seus enredos. —Destacou a última palavra de uma forma que parecia aludir a problemas de natureza romântica.
O enredo em que Vergil se achava envolvido necessitava algo mais que a destreza de Hampton para chegar a desembaraçar-se.
—É insuperável nisso, e aceitaria sua ajuda se acreditasse que poderia servir de algo. Não sei como conseguiu convencer o conde para que liberasse minha irmã.
—Todos os homens têm segredos que querem esconder. O conde de Glasbury simplesmente tem mais que a maioria. Como vai à condessa?
—Está bastante contente, e acabou por preferir aqueles círculos sociais que a aceitam.
—Sua queda teria sido muito pior se não fosse por você.
Vergil sabia. Graças a sua fama de homem íntegro e decente conseguiu aliviar o impacto social que foi o fato de que Pen se separasse do conde; também obteve que se subtraísse importância aos diversos pecados de Dante e inclusive que se retificasse em parte a fama que tinham os Duclairc por seu comportamento e suas ideias pouco convencionais. Apesar de que sua família atirasse para baixo, ele conseguiu que se mantivessem flutuando. Com muita dificuldade.
—Acabamos? —perguntou Vergil, levantando.
—Pelo visto você acredita que sim.
Vergil deixou cair os livros ao chão.
—Pode deixar para outro dia os detalhes tristes. Me diga o que esteve fazendo, além de dar conselhos a insensatos como eu.
—Se todos meus clientes fossem tão insensatos como você, morreria de fome.
A gravidade da expressão de Hampton se esfumaçou e voltou a ser o apreciado amigo de Vergil.
Resultou que esteve fazendo muito pouco. Hampton não frequentava muito as reuniões sociais, e permanecia um pouco à margem quando ia a elas. As mulheres o achavam melancólico e misterioso, enquanto que os homens o consideravam orgulhoso e aborrecido. Com seu cabelo negro e seus traços perfeitos e afiados, Hampton parecia uma figura desenhada com tinta e pluma por um ilustrador. O problema para a maioria da gente era que a ilustração vinha sem pé.
—Saint John voltou para Londres — disse Hampton— Burchard e eu nos encontraremos com ele no Corbet amanhã. Witherby e os outros provavelmente virão também. Agora que retornou de onde seja que estivesse, por que não se reúne conosco? A Sociedade do Duelo estará completa outra vez.
Estava se referindo ao grupo de homens jovens que se reuniam em Hampstead na academia de esgrima de Chevalier Corbet há cinco anos. Vergil não praticava com eles há meses.
Sua ausência resultava tão estranha porque ele foi o eixo da roda em torno do qual se agrupavam os outros homens. Conhecia Hampton desde a adolescência, e se fez amigo de Cornell Witherby durante a época universitária. Adrian Burchard, filho de um conde, o conheceu nos círculos da nobreza. Inclusive Daniel Saint John, o marinheiro, acrescentou-se à Sociedade do Duelo através de Vergil graças a sua amizade com Penelope.
—Oxalá pudesse, mas devo me encontrar com Dante e levá-lo a Laclere Park. Temos assuntos a atender ali.
—Burchard ficará decepcionado. Esteve te procurando para discutir sobre algo que não quer divulgar. Suponho que se tratará de política.
Se Adrian Burchard estava procurando alguém, logo o encontraria. Adrian era a última pessoa que Vergil desejaria ver interessado em suas atividades.
—Escreverei para ele o convidando a ir me visitar. Espero estar aqui durante vários dias.
—Por que não convida também Witherby? A prolongada ausência da condessa em Londres o tornou melancólico.
—Possivelmente assim se inspire para escrever outra ode. Witherby terá que esperar sua vez. A senhorita Kenwood chegou à Inglaterra, e Penelope a levou ao campo por uma temporada.
—Há algum problema?
Não estava claro se Hampton se referia a Bianca Kenwood ou à forma em que Cornell Witherby estava cortejando Penelope. Embora a primeira não prometesse nada mais que problemas, Vergil também preferiria se livrar do segundo. Ter um bom amigo apaixonado por uma irmã mais velha, especialmente quando essa irmã se acha separada de seu marido, só e vulnerável, era o tipo de situação que podia arruinar uma amizade.
—Não há nenhum tipo de problema. A senhorita Kenwood é encantadora. Estou desejando que a conheça.
Até esse ponto se enredou com suas confusões. Estava mentindo a um homem que conhecia há meia vida.
Hampton desviou a conversa para assuntos de política. Enquanto falavam de liberais e conservadores, as manifestações violentas e as mudanças ocorridas depois da morte do último ministro de Assuntos Exteriores, a mente de Vergil se mantinha ocupada com as questões privadas que o esperavam no campo.
Uma e outra vez aparecia em sua cabeça à imagem de uma moça vestida como uma rainha francesa, desafiando-o com uma excessiva auto-suficiência, e uma bonita perna pendurando por debaixo de uma prega indecorosamente alta.
***
—Sigo sem entender sua impaciência — disse Dante. Jogou a cinza de seu puro através da janela da carruagem— Não vejo a razão de que me fizesse voltar da Escócia. Ela não alcançará a maior idade até dentro de um ano.
Isso significava uma eternidade dada à forma em que Dante calculava seu calendário com as mulheres. Normalmente era capaz de cortejar, seduzir, levar a cama e desprezar duas amantes ao mesmo tempo. Vergil estudou o jovem e belo rosto de seu irmão, seus limpos olhos e seu cabelo castanho escuro. A história de Dante com as mulheres foi quase inevitável com traços como os seus. Vergil viu como damas da mais alta linhagem ficavam sem fôlego quando Dante se aproximava.
—Começa a temporada muito antes de seu aniversário, e com a estreia em sociedade de Charlotte não podemos exatamente ir todos à cidade, e deixar aqui à senhorita Kenwood. Já terão que estar casados então, e não só prometidos.
—Por quê? Você acha que algum caçador de fortunas tomará meu lugar? —O tom de Dante deixava ver que aquilo era absurdo.
«Não, acredito que se ela está casada, poderemos impedir que nem chegue a pisar em Londres se for necessário», pensou Vergil. Só a ideia de ver Bianca Kenwood entre a sociedade educada, tratando duques e condes de senhores e anunciando sua pretensão de estudar ópera era suficiente para deixar seu ânimo pelo chão aquele último dia de agosto.
Mas a pergunta de Dante também aguçava aquela premonição que continuava obcecando-o desde que abandonou a casa de Penelope aquela noite. Seria melhor que Dante acabasse com aquilo enquanto o campo estivesse livre.
Dante o olhou diretamente nos olhos.
—Já estamos quase chegando. Não acha que deveria me dizer isso já?
—Te dizer o que?
—Não me disse grande coisa a respeito da senhorita Kenwood, com quem espero me casar. Encontro-o um pouco suspeito. Depois de tudo, você a conheceu. Ambos sabemos que não tenho outra escolha mais que aceitar, mas se deve me fazer alguma advertência, seu tempo está acabando.
—Se não a descrevi com detalhes, é porque isso seria pouco delicado de se fazer. Não é um de seus cavalos de corridas.
—Não a descreveu absolutamente.
—Muito bem. É de compleição média e esbelta, com olhos azuis.
—De que cor é seu cabelo?
Como diabos ia saber. Que cor de cabelo podia ocultar-se debaixo daquela ridícula peruca?
—Até que ponto é má?
Vergil tinha toda a intenção de advertir Dante, mas não encontrava a forma apropriada de abordar o assunto. Um matiz de culpa coloria suas reflexões quando tentava fazê-lo. Afinal, virtualmente meteu seu irmão naquilo à força. Embora não é que Dante resistisse muito ao saber que em um ano ela receberia mais de cinco mil libras.
—O problema não é seu aspecto. Suas maneiras, entretanto…
—Isso é tudo? Está preocupado por uns poucos enganos de etiqueta? O que esperava? É americana. Pen a preparará em pouco tempo.
Falar de uns poucos enganos de etiqueta não fazia justiça a Bianca Kenwood, mas deixou passar.
—É obvio. Entretanto, ela é… Especial.
—Especial?
—Poderia dizer-se inclusive que é estranha.
—Estranha?
—E possivelmente um pouco… Original. O qual pode remediar-se, naturalmente. Enquanto sustentamos esta conversa Pen a tem em suas mãos.
Através do guichê do carro, Dante olhou mal-humorado a visão da campina de Sussex. Vergil não sabia se continuava, mas quase estavam chegando e mal ficava tempo.
—Necessita mão dura. É um pouco independente, por assim dizer de algum modo. —O olhar de seu irmão deslizou para ele— Independente… Tem alguns caprichos. É por sua juventude, passará.
—Seria de imensa ajuda que pudesse completar sua descrição acrescentando alguma informação a respeito de sua beleza.
Sem dúvida. O problema era que ele não sabia se ela era bela. Só recordava seus grandes olhos, com aquela interessante faísca de inteligência e vitalidade que havia neles.
Que mais podia acrescentar? Toda aquela pintura de teatro ocultava seu rosto. Era provável que sua pele fosse preciosa, mas quem poderia estar seguro antes de ver seu rosto lavado? Também sua silhueta parecia bonita, mas podia ter sido pelo vestido. E fazer algum comentário sobre sua sensualidade… Não era muito apropriado tratando-se da futura noiva de um irmão.
—Maldita seja, se for vulgar não estou disposto a fazê-lo, Vergil. E você não deveria desejar que o fizesse. Além do fato de que ela repercutiria positivamente em mim e minha família, posso ignorá-la virtualmente por completo uma vez que estejamos casados, inclusive poderia ir viver na cidade e deixá-la aqui, que é de fato o que pretendo fazer. E até que se case com Fleur e estabeleça sua própria descendência, coisa que está demorando muito em fazer, eu sou seu herdeiro e essa americana poderia acabar convertendo-se na viscondessa Laclere.
Não necessitava que Vergil enumerasse a seu jovem irmão os obstáculos que o esperavam naquele caminho. Abismos muito mais profundos e numerosos do que Dante imaginava. Um favo desses abismos. Se pudesse pensar em alguma alternativa o teria feito, mas depois de duas semanas considerando distintas opções sempre terminava chegando à mesma conclusão. Era necessário que Bianca Kenwood fosse atada a sua família com correntes indestrutíveis.
Dante mordeu o lábio inferior e voltou a olhar através do guichê com seus olhos de espessas pestanas.
—A renda de seus recursos será minha? Como depositário, você não interferirá? E minha atribuição continuará até o casamento, aumentando como o acordo?
—É obvio. Também prometo continuar dirigindo os investimentos financeiros, como solicitou. A renda dos recursos é segura, mas outros assuntos requerem ser fiscalizados, e eu sei que você odeia essas coisas.
Dante fez um gesto de desdém.
—São coisas sórdidas e chatas. Duvido que valha a pena preocupar-se com elas. Pode vendê-las ou conservá-las, o que achar melhor. Depois de ver como se arrumou após a morte de Milton, seria um idiota se me atrevesse a te questionar.
Viajavam silenciosamente através dos bosques de carvalhos e fresnos que havia atrás de Laclere Park. Vergil preferia esse caminho ao longo horizonte de paisagem que se abria da parte frontal, e sempre dava instruções a seu chofer para que se aproximasse da casa por ali. Normalmente servia como um espaço de transição, uns poucos quilômetros durante os quais se preparava para assumir seu papel de visconde Laclere e confrontar as responsabilidades que este conduzia.
Fez aquele caminho pela primeira vez quando chegou à notícia da morte de Milton; escolheu então aquela longa rota para demorar sua chegada, lutando contra emoções conflitivas e agudos ressentimentos pelas mudanças que suportaria em sua vida a repentina morte de seu irmão.
Foi naqueles bosques onde terminou aceitando aquela nova realidade e suas correspondentes restrições. Não chegou nem a intuir até que ponto complicaria sua vida a morte de seu irmão. Restrições, mistérios e decepções o estavam esperando ao final daquela viagem.
De repente Dante se inclinou sobre a janela. Afiou o olhar.
—Que diabos…?
—Algum problema? —Vergil afastou um pouco a cabeça de Dante para poder aparecer a sua através da janela aberta.
—Ali, no lago. Espera, há árvores que nos tampam a vista. Agora. Essa não é Charlotte?
As árvores eram mais magras agora que passavam em frente do lago. Duas mulheres estavam se banhando, rindo e salpicando-se. Virtualmente nuas, pois suas roupas se tornaram transparentes pela água. Diabos, sim, era sua irmã pequena, Charlotte, com aquela criada, Jane Ormond.
Um terceiro corpo feminino emergiu de repente da água. A roupa empapada se aderia a sua pele a obscurecendo um pouco. Bonitos ombros… Umas costas que ia se estreitando… Uma pequena cintura… Gráceis quadris… Finalmente os topos de suas encantadoramente arredondadas nádegas apareceram à vista. Uma larga cabeleira loira se desdobrou em um leque sobre a água para aferrar-se depois a aquele corpo em espessa queda de uma cabeça bem formada.
Seus esbeltos braços começaram a golpear a superfície da água, criando ondas na direção de suas companheiras de jogo. As outras duas gritaram e empreenderam um maciço contra ataque de salpicaduras, enviando jorros de água ao redor dela até que acabou parecendo uma imagem emergente em meio de um sonho de bruma.
Ela lançou um chiado de jubiloso protesto. Rindo, deu a volta para responder ao ataque.
Vergil não podia estar seguro de que aqueles grandes olhos azuis viram passar o carro com seus dois atônitos ocupantes. Mas o certo é que ela se deteve, cobriu os peitos com um braço e deslizou a outra mão até o triângulo de sombra que havia justo entre suas coxas. Durante um breve instante antes de dar a volta e voltar a afundar-se na água, adotou a pose da Vênus de Botticelli, uma deusa de rosto adorável e formas luxuriosas, jorrando água, ainda virginal e pudica, mas já amadurecida e apaixonada. Aquela mescla de instinto protetor e desejos eróticos que Vergil experimentou na sala de jogos ressurgiu com força.
Ele e Dante se recuperaram ao mesmo tempo. Endireitaram-se e se afundaram em seus assentos.
Seu irmão o olhou com suspicacia.
—O que era isso?
—Não estou totalmente seguro, mas acredito que era a senhorita Kenwood.
Dante fechou os olhos e apoiou a cabeça contra o respaldo do assento.
—Deixe assegurar que entendi minha posição, Vergil. Tenho que me casar com isso? Tenho que me sacrificar no altar pelo deus da estabilidade financeira e ser forçado a ter como companheira durante o resto de minha vida essa fêmea que acabamos de ver? Uma garota tão especial, estranha e independente que se banha quase nua diante da estrada a plena luz do dia e influência nossa irmã a fazer o mesmo? Você pretendia me coagir, achando necessária a ameaça de retirar minha atribuição? Ela é a noiva que escolheu para mim?
—Sim. —Realmente não havia nada a acrescentar.
Dante manteve sua pose pensativa durante um longo tempo. Seus olhos se abriram. Uma limpa simpatia brilhou neles. Um sorriso muito masculino apareceu lentamente.
—Obrigado.
***
—Muito bem, Pen. Muito bem.
Penelope ruborizou com um tom rosado ainda mais intenso que o que sua pele tinha adquirido enquanto ele explicava sua história.
—Não me jogue a culpa. Não podia imaginar uma coisa assim. Ela foi uma hóspede da mais cortês. Seu comportamento não resultou inapropriado absolutamente. Ao menos até onde eu sei.
Acompanhou esta última observação de uma pequena careta. Penelope era suficientemente inteligente para reconhecer que a escapada desse dia era uma amostra de que ela não conhecia as atividades da senhorita Kenwood em todo seu alcance. Vergil imaginou toda uma série de escandalosos episódios tendo lugar sob o nariz da confiada Penelope.
—Durante sua estadia aqui parecia sentir-se como um peixe na água.
—Dadas as circunstâncias, «como um peixe na água» não é a melhor expressão que possa escolher Pen.
Pen abaixou a cabeça, envergonhada e sem forças ante a acusação. Dante deu uma palmada em seu ombro para consolá-la. Era simplesmente incapaz de imaginar o pior, e era sempre muito pormenorizada.
Bianca Kenwood provavelmente se deu conta em seguida de como era Penelope e tirou vantagem disso.
O que a senhorita Kenwood precisava era uma tia similar a uma velha harpia cheia de caráter que não permitisse desafiá-la, capaz de fazer tremer às moças jovens com seu olhar de aço e cujas estritas advertências provocassem uma imediata submissão.
Desgraçadamente, essa tia não existia.
—Talvez banhar-se assim seja normal na América.
—Por favor, Pen.
—Falarei com ela, e darei em Charlotte uma boa reprimenda.
—Não fará tal coisa.
—Pretende fazê-lo em meu lugar? Oh, Vergil, desejaria que não o fizesse. Seu rosto adquire uma expressão muito peculiar cada vez que se menciona seu nome. Suspeito que te vê como o guardião de um cárcere, e se for assim, o pior que pode fazer ao voltar a vê-la é lhe dar uma lição de comportamento…
—Não direi uma palavra sobre este assunto. Ninguém o fará. E tampouco a Charlotte. Mencioná-lo seria admitir que Dante e eu fomos testemunhas do ocorrido. —Não se atrevia sequer a contemplar a ideia dessa confrontação. Reconhecer o fato suporia ter que confrontar uma embaraçosa e difícil… Intimidade— Não temos mais remédio que ignorar o que aconteceu. Falarei com Charlotte em termos gerais para evitar que se deixe influenciar.
Dante se uniu a eles, com aspecto de estar contente e sentindo-se mais fresco ao mudar de roupa. Levava um traje delicioso perfeitamente engomado. Seu rosto estava cheio de espera sob seus cabelos cuidadosamente despenteados, um pouco compridos como marcava a moda romântica.
—É muito amável por sua parte se reunir conosco durante uns poucos dias — disse Penelope, levantando-se para lhe dar um beijo.
—Às vezes posso sentir falta da família, Pen. De fato, é provável que fique pelo menos uma semana. Sim, ficarei uma semana. —A piscada que lançou a Vergil fez com que Penelope franzisse o cenho com curiosidade.
Vergil devolveu um olhar reprovatório. Penelope não sabia nada a respeito dos planos que eles tinham em relação à senhorita Kenwood. Além disso, por alguma razão, a confiança em si mesmo que demonstrava seu irmão o irritava.
—Uma semana inteira? Isso é maravilhoso, Dante, e muito amável por sua parte. Sei quanto odeia o campo se não houver um bom esporte.
—Bom, Pen, há esportes e logo há esportes. Disseram-me que Verg comprou um novo cavalo que precisa domar e me senti obrigado a ajudá-lo, já que tenho tão boa mão com os animais e é, além disso, um presente para mim.
—Um cavalo novo? Vergil, não me disse nada.
—Chegará dentro de uns dias — murmurou ele. Que inteligente por parte de Dante. Desfrutar da metáfora e de passagem sair ganhando um cavalo. Não era uma metáfora tão má. A senhorita Kenwood tinha um ar menos de inacabada que de indômita. Era típico de Dante que tivesse fichado uma mulher em poucos segundos a uns sessenta metros de distância, e se deleitava no desafio que o estava esperando. Não era assombroso que parecesse tão insuportavelmente feliz.
A égua em questão se uniu a eles ao final de pouco tempo, chegando junto a Charlotte acompanhada de um fraco rangido de anáguas. Charlotte estava tão encantadora como de costume, sua elegância de magro salgueiro ainda ficava suavizada por sua inocência infantil. Junto ao cabelo negro, a pele branca e o vestido rosa pálido de Charlotte, Bianca Kenwood exalava um ar de senhorita de campo.
Seu vestido azul era um pouco antiquado e pouco atrativo. Sua pele tinha um bronzeado fora de moda, mas a ideia que fez de sua irrepreensível beleza foi acertada. Seu cabelo loiro dourado estava recolhido em um simples coque que enfatizava sua feminina, mas firme mandíbula destacando o contorno da parte inferior de seu rosto, com forma de coração. Dificilmente se ajustaria à definição de beleza da moda, mas possuía uma formosura singular, transbordava saúde e se movia com uma elegância amadurecida.
Dante a estudou com olhos calculadores durante um breve instante antes que Penelope o chamasse para apresentá-lo. Esse exame fez com que Vergil se sentisse incômodo. De repente se sentia sujo por aquele negócio. Ridículo. Semelhantes acertos se faziam todo o tempo, e frequentemente com menos sutileza.
Dante avançou para sua presa. Seu êxito com as mulheres estava mais no magnetismo do que na perseguição. Certa dama confessou uma vez a Vergil que quando Dante olhava uma mulher nos olhos esta se sentia como se ele pudesse ler sua alma e seus cuidados a deixavam sem respiração.
Se fosse assim, pelo visto a alma de Bianca Kenwood não era fácil de observar. Respondeu à saudação de Dante com soltura e não pareceu ficar sem respiração absolutamente. Vergil não pôde deixar de admirar seu aprumo, apesar de que o plano seria que ela caísse apaixonada por Dante a primeira vista.
—E recorda Vergil — acrescentou Penelope rapidamente, fazendo um gesto em sua direção.
—Dificilmente poderia esquecer o senhor Duclairc. Estou encantada de voltar a lhe ver. Possivelmente antes que se vá possamos ter uma conversa.
—É obvio, se assim o deseja.
Oh, desejava-o. Esteve guardando palavra após palavra há duas semanas. Dificilmente poderia ter enterrado seu ressentimento ante a imperiosa intromissão que a enviou até ali.
Deu-se conta de que o estava olhando com raiva, e de que todo mundo estava observando que o fazia.
—Está encontrando agradável sua estadia aqui? —perguntou Dante, guiando-a para o sofá.
—Muito agradável, obrigado.
Sentou-se ao lado dela, dedicando toda sua atenção. Era um homem bonito, mas um pouco delicado em suas formas e em seu rosto, como se Deus, ao esculpir os ossos de seu irmão mais velho tivesse esgotado seus melhores materiais e tivesse logo que arrumar-se com o resto. Formosos olhos marrons a contemplavam sob uns volumosos cílios. Uma faísca de familiaridade um tanto inapropriada brilhava neles.
Sim, eles as viram. Discutiu isso com Charlotte que não havia ninguém olhando no carro que passava. Em realidade, por um momento acreditou ver uns rostos espionando-a, mas ao comprovar que ninguém dizia nada horas depois de sua volta, simplesmente supôs…
—Assim leva o nome do poeta italiano — disse, sentindo-se muito desconfortável ante a ideia de que Vergil Duclairc a tivesse visto virtualmente nua. Curiosamente, o fato de que aquele seu irmão também a tivesse visto não importava muito.
—Foi uma desafortunada ideia de meu pai. Dava-se ares de poeta épico e pôs em seus filhos os nomes dos melhores. Nosso irmão mais velho se chamava Milton.
—Podia ter sido pior. Podia ter escolhido os nomes dos herois em lugar dos nomes dos autores.
Charlotte riu.
—Teria sido horrível. Ulisses, e Eneas e coisas assim.
—Ou poderia ter se motivado pelas histórias de Camelot que mais tarde o fascinaram tanto — acrescentou Dante— Lancelot, Gawain e Galahad.
Brincaram com aquela ideia durante um momento, e Penelope se uniu a eles. O homem que permanecia junto à janela não o fez, mas Bianca notou que seguia as brincadeiras com maior interesse do que seus olhares ocasionais pareciam revelar.
Podia ver seu adversário claramente de sua posição. Possuía uma figura refinada, era alto e magro, mas seus ombros e suas pernas sugeriam mais força da que era claramente visível. Naquele momento não tinha um olhar de desgosto, sim, era bastante bonito com seus ossos marcados, como cinzelados com certa aspereza. Seus olhos azuis surpreendiam penetrantes sob suas sobrancelhas escuras.
Eram penetrantes agora, que acabavam de descobri-la olhando-o. Ela dirigiu sua atenção a Dante, conseguindo —ou ao menos assim esperava— não ruborizar-se. Tinha a incômoda sensação de que durante aquele olhar o visconde estava recordando o que viu no lago.
Dante acabava de dizer algo. Ela respondeu com uma pergunta, retornando incômoda ao bate-papo banal típico da casa.
—E você o que faz?
Enfrentou-se a um silêncio total.
—Fazer? —repetiu Dante depois de contar até dez.
—Seu irmão é um membro do Parlamento, conforme entendi. Qual é sua ocupação?
Charlotte riu. A mandíbula de Vergil parecia mais rígida que de costume, mas uma faísca de brilho apareceu em seus olhos quando deu a volta para prestar toda a atenção em seu irmão.
Dante sorriu.
—Sou um cavalheiro.
—Jamais sugeriria o contrário, mas qual é seu emprego?
—Quando meu irmão diz que é um cavalheiro não está evitando sua pergunta, senhorita Kenwood. Está respondendo — explicou Vergil.
Em outras palavras, ser um cavalheiro significava que não tinha um emprego remunerado. A refinação do homem que havia a seu lado de repente pareceu tão estranha como os índios que viu em uma ocasião quando sua mãe percorria os povos próximos à fronteira. Era outro exemplo do que tia Edith queria dizer quando a advertiu que encontraria aquele país familiar em certas coisas, mas muito estranho em outras.
—Sem dúvida terão cavalheiros nos Estados Unidos — disse Penelope.
—Temos homens de grande riqueza e posição. Há fazendas tão grandes como esta. Mas um homem que não trabalha… Enfim, é considerado como quase pecaminoso.
Imediatamente desejou não tê-lo expresso dessa forma, embora pensasse que tanta indolência era uma evidência de uma séria falta de caráter. Não desejava insultar aquelas pessoas, com três das quais não teve nenhuma discussão.
A única com quem sim teve uma discussão rompeu o incômodo silêncio.
—Que pitoresco. Mas afinal de contas, seu país é ainda jovem.
Vindo de qualquer dos outros o teria deixado passar.
—A velha Inglaterra está aprendendo que há força na juventude.
—Refere-se a nossa última guerra. Uma escaramuça menor. Teria acabado de modo distinto se Napoleão não nos tivesse deixado tão ocupados.
Por alguma razão, com muita dificuldade, ela conseguiu manter um tom civilizado.
—Meu pai morreu nessa escaramuça, senhor Duclairc.
Fez-se outro silêncio tenso. Penelope sorriu fracamente e se levantou.
—Por que não pensamos em comer?
Dante tentou monopolizar a atenção de Bianca durante o almoço. O visconde não falou muito. Em várias ocasiões em que deu uma olhada o surpreendeu esquadrinhando-a, como se estivesse se perguntando o que era o que tinha diante. Nada mais que problemas, ela gostaria de advertir. Realmente deveria me enviar de passeio de uma vez por todas.
Ela estava decidida a abordá-lo depois do almoço para esclarecer coisas, mas Vergil se retirou, depois de desculpar-se, logo que voltaram para a sala de estar. Dante, entretanto, ficou unindo-se a elas para jogar cartas.
O moço elogiou o jogo de Bianca mais do que seu talento merecia. A familiaridade crescia com o passar das horas e os sorrisos de Dante começaram a adquirir uma calidez perturbadora. Ela começou a suspeitar que Vergil a estava evitando e usava Dante para distraí-la.
—Onde está o visconde? —acabou perguntando a Charlotte— Talvez goste de me substituir.
—Estará na biblioteca, suponho. Ou em seu escritório.
Bianca se levantou.
—Me desculpem. O convidarei a unir-se a nós.
Não esperou que dessem permissão; atravessou a sala de estar e se encaminhou pelo corredor para a biblioteca.
Ele estava ali, sentado ante o escritório examinando uns papéis. Levantou a vista ao ouvi-la entrar e ficou de pé.
—Parece surpreso em me ver. Cometi um engano? Supõe-se que devia ter pedido uma audiência? —perguntou.
—É obvio que não. Supus que meu irmão e minhas irmãs a manteriam entretida toda à tarde, isso é tudo.
—As cartas não me divertem muito tempo se me dão de presente todas as mãos. Se estivéssemos jogando por dinheiro, a esta altura já teria ganhado toda a fortuna de seu irmão. Decidi dar um descanso a seu orgulho e generosidade.
—Somente está tentando fazer com que se sinta bem recebida. Entretanto, me alegro de que tenha me procurado. Quero me desculpar por meu imprudente comentário na sala de estar. Devia ter tido em conta a possibilidade de que tivesse sofrido nessa guerra. Não pretendia menosprezar o sacrifício de seu pai.
A sinceridade com que se expressou a deixou desarmada. Não parecia tão severo como de costume.
—Possivelmente agora entenda por que não desejo prolongar muito minha visita a este país, senhor Duclairc, e por que não quero formar parte da sociedade para a qual sua irmã tenta me preparar. Queria retornar a Londres o antes possível para me ocupar de meus assuntos.
—A guerra terminou faz tempo, senhorita Kenwood. Nossos países voltam a ser amigos. Quanto a seus assuntos, estou me ocupando deles em seu lugar — disse esse último com um firme sorriso que parecia indicar que considerava pouco recomendável dirigir a conversa nessa direção.
—Está me convencendo de que cometi um engano vindo à Inglaterra. Deveria ter seguido minha primeira inclinação e dizer ao senhor Williams que vendesse os investimentos que herdei.
—Isso não pode fazer-se. A maior parte de seu patrimônio pertence a um fundo de investimentos. A menos que se faça uma solicitação ante o tribunal de Chancery, o qual é um processo muito longo que levaria anos, é impossível romper os termos desse fundo de investimentos.
—Isso ele me explicou. Minha segunda ideia foi então arrumar as coisas para que me enviasse a renda a Baltimore.
—E por que não o fez? Especialmente tendo em conta que nos acusa de está-la prejudicando.
—Como expliquei em Londres, tinha razões para vir.
—Sim, suas aulas de ópera. —Seu tom transmitia o alívio que sentia ante o fato de que esses planos tivessem fracassado.
Mas necessitaria mais que a desaprovação daquele homem para fazê-los fracassar de tudo. Esses planos continuavam vivos, e ela estava desesperadamente impaciente por fazê-los progredir.
—Sejam quais sejam minhas razões, estou na Inglaterra por um curto período de tempo e tenho interesses que não podem ser satisfeitos enquanto permaneça nesta casa. Não aceito sua intromissão. Não necessito um guardião.
—Tendo em conta como a conheci, acredito que é óbvio que sim o necessita. E hoje não tem feito nada que possa me fazer mudar de ideia.
Estava se referindo ao lago. Em realidade não houve nenhuma mudança em sua expressão, mas aquele provocador murmúrio formou redemoinhos entre eles. Entrou no corpo de Bianca fazendo que seus membros estremecessem. Sim, a viu com aquela roupa empapada. E apesar de sua aparência desapaixonada, naquele momento estava vendo-a outra vez.
Por um instante, em seus olhos se acendeu um brilho que indicava que ele era consciente de que ela sabia. Esse reconhecimento acrescentou um matiz perigoso a sua masculinidade. De repente ela se sentiu em desvantagem e teve que lutar para recuperar sua indignação.
—Não consigo compreender por que você insiste tanto em complicar a minha vida.
—O testamento de seu avô cedia a responsabilidade ao visconde Laclere. Ia destinado ao meu irmão, mas dado que não mudou o testamento depois da morte de Milton, me corresponde. Eu não evito meus deveres, não importa quão problemáticos possam chegar a ser.
—Eu o libero de seu dever. E agora peço que me permita partir para Londres amanhã pela manhã.
—Não.
Ela esperava ouvir algo mais, mas nada mais foi acrescentado. Aquela palavra foi sua única resposta. Não.
Ela o observou, procurando o modo de ganhar aquela estúpida batalha. Devolveu o olhar como um general que é consciente da superioridade de seu exército.
Ela deu a volta. Em uns poucos dias esperava que chegassem seus reforços. Morria de impaciência por jogá-los contra ele.
—Senhorita Kenwood, se você voltar para a sala de estar, tenha a amabilidade de dizer a Charlotte que venha ver-me antes de retirar-se.
***
Bianca subiu a escada e deu uma volta através da enorme casa de estilo gótico até chegar a seu quarto. Era o dormitório mais longo e luxuoso que jamais havia usado, com um espelho emoldurado em ouro e móveis de madeira belamente esculpidos. Jane se aproximou dela para começar a desabotoar o vestido, ao mesmo tempo em que mexericava a respeito dos criados e arrendatários. Aquele mundo mais vulgar soava mais interessante que esse outro no que Bianca passou seus últimos dias.
As últimas duas semanas pareciam dois meses. Davam passeios. Arrumavam as flores. Trocavam visitas com vizinhos que ela não conhecia. Falavam sobre moda e sobre quem era quem na alta sociedade. Tudo enquanto Pen instruía à americana selvagem para ensiná-la a expressar-se e comportar-se adequadamente na Inglaterra.
Bianca chegou ao ponto de invejar os criados ocupados em polir a prata. Finalmente teve algumas ideias para romper a monotonia.
Charlotte apareceu justo quando Bianca já vestia sua bata. Teve um pequeno bate-papo com seu irmão.
—Não disse nenhuma palavra sobre o lago. —subiu à cama de um salto enquanto Jane começava a escovar o cabelo de Bianca— Em realidade o que queria era falar de você.
—De mim?
—Perguntou o que esteve fazendo. Não o disse dessa forma, claro. Quis saber se estava contente e com o que se entretinha.
«O maldito intrometido…»
—Acredito que sabe o do lago e joga a culpa em você, e quer saber se tem estado fazendo alguma outra coisa escandalosa.
«Maldito arrogante, pretensioso…»
—Depois me deu um sermão. Explicou que me criaram de um modo diferente e permitiram a você mais liberdades do que era apropriado, e que eu não devia me deixar influenciar por você e fazer coisas que não fossem apropriadas. Contei ao menos dez vezes a palavra «apropriado» antes que terminasse. Prometi a ele que me comportarei de maneira muito correta enquanto esteja aqui. —Charlotte sorriu— Acredito que tem ao santo de meu irmão muito preocupado.
Bianca não sabia o que dizer. Foi criada de um modo distinto, e permitiram mais liberdades das que Charlotte jamais chegaria a conhecer, mas não havia nada inapropriado nisso, tão somente pouco convencional, inclusive tendo em conta os costumes americanos. Além disso, ela planejava uma vida destinada a ser pouco convencional, mas não inapropriada, apesar de que Vergil Duclairc assumisse o contrário.
Charlotte se recostou na espaçosa cama.
—Estou encantada de que Dante veio nos visitar. Não o faz frequentemente. Prefere Londres. —Levantou o olhar com astúcia— Se supõe que não sei, mas acredito que tem uma amante ali. Este último ano venho intuindo que meu irmão é um pouco canalha. Você o que pensa? Acredita que Dante é um mulherengo?
—Não saberia dizê-lo — respondeu Bianca, embora adivinhasse que Dante era um autêntico mulherengo. Pensou, além disso, que aquele mulherengo a viu virtualmente nua e que passou a tarde lhe dirigindo intensos olhares e calorosos sorrisos.
—Sempre pensei que Vergil poderia parecer um bom mulherengo também, sempre e quando alguém não o conhecesse. Tem aspecto de ser, mas claro… Ele é tão correto. Esteve cortejando Fleur durante um ano e nunca o vi fazer nada mais que lhe tocar a mão.
Bianca ouviu falar da perfeita, etérea e saudável Fleur, que supostamente era a prometida de Vergil. Logo esperavam uma visita dela e de sua mãe.
Bianca não tinha intenção de seguir ali quando viessem.
—Charlotte, esta é a única propriedade que tem sua família?
—Há outras aqui em Sussex, mas ninguém as visita salvo Vergil. Não estão em muito bom estado. Papai não cuidou bem de algumas coisas. Estava tão ocupado com seus escritos e depois com a reconstrução desta casa. Vergil tem também um imóvel no norte. É sua parte da herança de nossa mãe.
—Vivem alguns parentes nesses outros lugares?
—Não há mais parentes ali, ou ao menos não há parentes dos que estejamos perto. Papai tendia a encerrar-se e perdemos o contato com eles enquanto vivia. Milton também era um pouco estranho. Vergil não é o menos excêntrico, e não reavivou os laços.
Não havia parentes próximos. Nenhuma tia, nem prima que pudesse fazer cargo de uma pupila errante.
—Acredito que meu irmão gosta de você — disse Charlotte.
«Que irmão?» Bianca reprimiu a impulsiva pergunta antes que saísse de sua garganta, surpreendida pelo sobressalto de excitação que a acompanhou.
—Estou segura de que simplesmente se sentia obrigado a me entreter.
—É muito estranho que Dante se sinta obrigado a fazer algo. Deixou-te ganhar nas cartas e não parou de te sorrir.
—Equivoca-se, mas se estiver certa e é um mulherengo, dificilmente poderia me sentir adulada.
—Oh, não tem que preocupar-se por isso. Sabe que é a protegida de Vergil e nossa convidada. —deslizou da cama— Será melhor que vá dormir. Dante nos levará a um passeio amanhã. Será divertido. É um perito com o látego e sempre conduz muito rápido.
—Também nos acompanhará o visconde?
—Não se preocupe, não vai danificar nossa diversão. Quando nos levantarmos, ele já viveu um dia completo. Levanta-se a alvorada, para ocupar-se dos assuntos da fazenda.
Quando Charlotte se foi, Bianca se sentou sobre a cama abraçada a seus joelhos.
Assim Vergil Duclairc se preocupava que a senhorita Kenwood pudesse supor uma má influência para sua irmã. Advertiu Charlotte que tomasse cuidado. O que faria aquele santo se chegasse a convencer-se de que a senhorita Kenwood não só era um pouco diferente, mas também muito pouco convencional e inclusive algo selvagem?
Não haveria outros parentes a quem enviá-la e resultaria muito perigoso tê-la ali. Não haveria mais remédio que romper todos os vínculos sociais e deixá-la seguir seu caminho. Seria a única decisão responsável para um irmão responsável.
Se asseguraria de que esse visconde concluísse que sua presença e influência naquela casa era totalmente inaceitável.
—Jane, quero que tome emprestados para mim alguns objetos dos criados. Dos homens concretamente.
Capítulo 3
Vergil pegou as botas limpas que oferecia Morton e as pôs. Aceitou o linho engomado e com destreza atou seu lenço com um nó conservador. Morton lhe sustentava o traje negro de montar.
Esses preparativos matinais eram uma rotina tanto em Laclere Park como em Londres, e Vergil os seguia de forma instintiva enquanto organizava em sua mente seus planos e deveres. Continuava se surpreendendo que não tivesse nenhuma dificuldade em abandonar certos detalhes ou hábitos quando as circunstâncias o requeriam.
Mal tinha amanhecido quando saiu pela porta e caminhou através do rocio até o estábulo. Preferia aquele silêncio, aquela solitária forma de cavalgar para romper o dia antes do circuito oficial que teria que fazer mais tarde com seu agente imobiliário. Era um dos poucos hábitos que tinha conservado de seus anos livres como segundo filho. Às vezes recuperava aquela crença juvenil nas oportunidades sem limites que permitiu então sua insignificância. Podia simplesmente ser, não o senhor vigiando seus domínios, a não ser unicamente um homem que cavalgava através do campo, admirando sua beleza e sonhando ao ritmo da vida.
Do estábulo chegavam sons. George, um moço do estábulo ruivo e rechonchudo, ria enquanto um moço mais jovem vestido com calças de montar e chapéu de palha murmurava alguma coisa. Juntos ajustavam as bridas a uma égua de cor castanha.
George ouviu as pisadas de Vergil e se virou ruborizado.
O menino mais jovem simplesmente ficou rígido. Vergil notou algo familiar naquelas costas esbelta, e se precaveu da forma peculiar em que as calças se esticavam sobre a curva das nádegas. Viu aquelas formas antes, emergindo nuas da água.
—Senhorita Kenwood, vejo que você também cavalga cedo.
Ela se voltou despreocupadamente, como se ninguém devesse se surpreender de encontrá-la nessa situação por usar calças de montar todos os dias. Talvez fosse assim. Quem podia sabê-lo? Pen, Charlotte e Dante provavelmente não sairiam de seus quartos até meio-dia.
—Pensei que seria agradável sair para cavalgar pela manhã. —Ajustou o freio como alguém que sabia o que estava fazendo.
—George se ofereceu a te acompanhar? Que cavalheiresco por sua parte.
—Tinha intenções de cavalgar sozinha.
—Bom, não podemos permiti-lo a uma hora tão inoportuna. Entretanto, pode cavalgar comigo. —Examinou a égua— Cometeu um engano, George. Se este animal for para a senhorita Kenwood, necessitará uma cadeira de mulheres. Depois pode preparar meu cavalo. Esperaremos fora.
Bianca caminhou para o pátio com ele. Ele retrocedeu um pouco na luz chapeada da manhã e percorreu um metro e sessenta e cinco de moléstia com seu olhar.
Sua camisa de algodão formava uma bolsa em torno de seu corpo, mas mesmo assim revelava o inchaço de seus peitos. As calças de montar penduravam folgadas de suas coxas até as botas, onde se introduziam, mas não eram folgadas em nenhum outro lugar. O chapéu de palha sobre sua testa enfatizava seus olhos.
Tinha todo o aspecto de uma mulher provocadora e de má reputação.
Caminhou para frente e golpeou a perna com o látego. O ligeiro picor o distraiu do impulso de… Nada que pudesse contemplar e sem dúvida nada que pudesse nomear.
—George demorará a preparar os cavalos. Volta para seu quarto e troque de roupa.
Ela baixou as pálpebras ante aquela ordem. Ele esperava que ela resistisse. Que demônios faria ele então? Ninguém debaixo de sua autoridade nunca o havia desafiado, e menos uma mulher. Por sorte, ela deu a volta e caminhou a grandes pernadas em direção à casa.
Ele retornou ao estábulo.
—A senhorita Kenwood cavalga sozinha frequentemente? —perguntou ao George.
George deu de ombros.
—Só estas últimas manhãs, milord. Ouvi um ruído aqui a semana passada e a encontrei selando essa égua, por isso a ajudei.
—E sua indumentária?
—Chegou com essa roupa esta manhã. Tem sentido, porque sempre cavalga escarranchada. É uma boa pessoa, só que com uma mentalidade um pouco livre para este lugar. São diferentes, os americanos. Falam como se o conhecessem de toda a vida. —inclinou-se para revisar uma ferradura.
—Sim, são diferentes. Não me deixe suspeitar que interpretou mal essa familiaridade.
George lançou um olhar de horror como se a insinuação fosse muito escandalosa para ser considerada. Vergil pegou as rédeas da égua e a levou até o pátio.
A senhorita Kenwood saiu da casa justo quando George tirava fora o cavalo castrado de Vergil. Levava uma bata de montar violeta de corte austero e com poucos adornos. Sobre seu penteado formal se encarapitava uma alta cartola, cuja borda roçava suas sobrancelhas.
—Onde tinha planejado cavalgar? —perguntou ele assim que estiveram montados.
—Oh, simplesmente queria dar um passeio pelos arredores.
Ele a conduziu através do parque. Ela não deixava de queixar-se por sua posição na cadeira de montar. Escorregava por ambos os lados olhando as pernas com o cenho franzido.
—Não está acostumada a isto?
—Não vivia nas margens da civilização. Também em Baltimore as mulheres fazem coisas horríveis e perigosas.
—Ali cavalgava escarranchada?
—Sim. —Olhou-o com atitude desafiante, depois sorriu de maneira zombadora— Tia Edith me proibia montar à inglesa a menos que avançasse a passo de tartaruga, e eu não me sentia inclinada a fazê-lo. Ela sabia de muitas mulheres que caíram da cadeira de montar quando cavalgavam rápido.
—E como reagia as pessoas quando cavalgava escarranchada através da cidade, com calças de montar e com botas?
—Se não fosse à sobrinha-neta de tia Edith, alguns teriam se escandalizado. Ninguém se atreve a atacá-la. Quando era moça participou ativamente em nossa guerra da Independência. Conhece todos os grandes homens daquela época. Se um presidente fizer visitas a uma mulher, ninguém se atreve a criticá-la muito.
—Parece uma mulher muito interessante. É uma lástima que não tenha te acompanhado nesta viagem.
—Se não fosse à idade, o teria feito. Estaria agora ali atrás, exortando George para que compreendesse que ele é igual aos outros moços e não deveria curvar-se ante ninguém.
—A Inglaterra não necessita radicais importados. Estamos criando muitos de produção própria. E não é que George se encurve. Retrocedeu porque sabe que levanta suspeitas sobre um homem o fato de que esteja a sós comportando-se de maneira tão familiar com uma dama jovem, especialmente a uma hora como essa.
—Já vejo. Entretanto, você é um homem e agora está a sós comigo, não? Isso é suspeito?
A insinuação o deixou desconcertado. O sorriso zombador da senhorita Kenwood era um indício de que não se achava ante uma escolar ingênua que permanecia ignorante sobre o que podia ocorrer entre um homem e uma mulher juntos e sozinhos durante horas.
—Sou seu tutor. É como se fosse seu pai.
Ela se pôs a rir a gargalhadas, melodiosas como o timbre de sua voz.
—Que o céu me ampare, senhor Duclairc. Com um pai como você teria me convertido na mais aborrecida das mulheres.
—Quer dar a entender que os pais aborrecidos criam filhas aborrecidas?
«Está insinuando que sou um homem aborrecido, uma espécie de bagagem molesta?» O desejo de demonstrar até que ponto podia deixar de ser aborrecido penetrou em sua mente desde que a tinha visto no estábulo.
—Não, senhor. Simplesmente acredito que os pais estritos criam filhas de mente muito estreita.
—Concluo que sua educação, menos ortodoxa, salvou-te de ter uma mente estreita.
Ela posou seus grandes olhos azuis nele durante um momento, observando-o como se fosse capaz de ver as noites e inapropriadas imagens que avançavam sigilosamente em torno das bordas de sua mente ao aludir impulsivamente essa indiscreta questão. O impacto daquele olhar nu foi tão assombroso como se ela acabasse de acariciar sua coxa.
—Tive experiências no mundo, senhor Duclairc, e por isso minha mente não é estreita. Quando meu pai morreu, minha mãe teve que manter-se e me manter, por isso voltou a cantar. Eu tinha onze anos então, e durante os seis anos seguintes vivemos uma vida errante, viajando uma grande parte do ano.
«Experiências no mundo.» Bianca devia ter dezessete anos ao morrer sua mãe, uma garota bonita viajando na companhia de uma mãe cuja profissão sem dúvida implicava tratar com homens.
—Minha opinião teria sido que o acertado seria te deixar com sua tia, em vez de te arrastar por cidades e povos estranhos.
—Ah, sim? Essa teria sido sua opinião? —Ela estava sugerindo que ele era tão previsível que essa opinião não a surpreendia absolutamente— Eu não teria insistido em ficar, não depois de perder meu pai. Minha mãe necessitava alguém que cuidasse dela. Não era uma mulher muito prática. Tocava-me assegurar que chegasse de um lugar a outro.
—Um estranho papel para uma menina.
—Não fui menina por muito tempo, e não é que estivesse planejado que me encarregasse dessas coisas. Simplesmente o fazia porque ela era muito torpe organizando as viagens.
«Não fui menina por muito tempo.»
—A vida deveria ser muito aborrecida quando foi viver com sua tia.
—Estava preparada. A morte de minha mãe acabou com minha vitalidade, e precisava estar um tempo instalada em um lugar para pôr as coisas em seu lugar. Só quando tia Edith contratou para mim um professor de música comecei a recuperar meu estado normal.
Vergil imaginava. Aquela menina precoce com sua mãe caprichosa, organizando o valor a ser pagos pelos concertos nas Igrejas e nos pequenos povoados. Os papéis estariam invertidos e aquela pequena garota loira se encarregaria de negociar pelo transporte e de administrar os recursos, emocionante, possivelmente, e sem dúvida uma experiência que a faria amadurecer.
Entretanto, não era uma infância normal. Não teve horas de brincadeiras despreocupadas e, provavelmente, tampouco teria amigos. Sem mais amparo, nem segurança que a que ela mesma pudesse procurar. Sentiu certa compaixão por ela e admirou sua força, apesar de que essa força prometesse ser um inconveniente.
Seu passeio distraído os levou até a parte sul do lago e deram a volta para retornar. A senhorita Kenwood parecia irritantemente indiferente ante o fato de achar-se no mesmo lugar onde no dia anterior foi tão indiscreta.
—Nossa família viveu aqui desde o tempo dos normandos — explicou ele, decidindo que devia impressioná-la com a história da família e prepará-la para os cuidados de Dante— Tanto nosso nome como o da fazenda provêm destas águas. «Lago claro.» Duclairc é uma junção de du clair lac, igual é Laclere.
—Tempos dos normandos. Naqueles tempos, os antepassados dos Kenwood provavelmente viviam em cabanas.
—Bom, o dinheiro tem seu modo de nivelar essas diferenças.
—Que ideia tão democrática, senhor Duclairc. Quase americana.
Ele entrou pelo caminho que conduzia para as granjas.
—Pode parar com isso. Já foi suficiente.
—Parar com o que?
—Senhor Duclairc.
—Não pretendia ofender. Tia Edith me fez prometer que não faria reverências a nenhum aristocrata, nem sequer ao rei.
—Seus diplomatas se adaptam aos costumes quando vêm a este país, como o fazem a maioria dos visitantes.
—Eu não sou uma diplomata. E tia Edith…
—Sim, sim, a revolução e tudo isso. Se se dirigir a mim como lorde Laclere conjura o fantasma de Washington, pode me chamar simplesmente Laclere.
—Que generoso por sua parte. Então possivelmente você poderia me chamar Bianca.
Ele preferiria não fazê-lo. Certamente. Inclusive aquela vaga familiaridade com essa jovem estava provocando sensações muito incômodas. Ela era sua pupila e logo poderia chegar a converter-se na esposa de seu irmão, e ele a encontrava exasperante, para falar de um modo delicado. Ao mesmo tempo, um atrativo e desconcertante fogo crescia em seu interior. Borbulhas em ebulição rompiam de vez em quando a superfície, pequenas explosões que não estava disposto a aceitar debaixo daquelas circunstâncias. Sob nenhuma circunstância. Chamá-la Bianca unicamente obteria que outra dessas borbulhas estalasse ao pronunciar seu nome.
—Acredito que isso seria muito familiar.
—Bom, então possivelmente Laclere também seja muito familiar. —Ela inclinou a cabeça— Já sei. O chamarei tio Vergil. Apesar de que disse que o fato de ser meu protetor o converte em uma espécie de pai, dizer «papai» soaria ridículo.
«Tio Vergil, por Deus.» Ele conseguiu olhar por debaixo da asa de seu chapéu e captou um fugaz sorriso. Estava brincando com ele deliberadamente e ele continuava mordendo a isca.
O pior era que suas provocadoras ambiguidades e seus olhares oblíquos a deixava com um ar mundano que tornava implacável aquele fervor que ele sentia.
—Tio Vergil, estamos perto da fronteira com Woodleigh?
—Está justo ao outro lado dessa colina. Pode ver a casa dessa cúpula. Você gostaria de subir?
Ela aceitou. A Vergil não passou despercebido que ela soube como encontrar o caminho mais simples sem necessidade de sua ajuda.
Bianca chegou até o topo da colina de onde se divisavam os principais campos de Woodleigh. A distância conseguiu ver a imponente mansão de inspiração clássica que Adam Kenwood construiu.
—É muito grande, não?
—Sim.
Ele respondeu em voz baixa, mas ela pôde ouvir um deixe de desaprovação. Muito grande. Muito. Essa enorme massa resultava vulgar, especialmente para alguém que acabava de ser renomado barão. Sua condição de novo rico se deixava ver dos alicerces até as chaminés. Vergil deveria ser amigo de Adam, ou do contrário seu avô não o teria renomado seu tutor, mas ao que parece isso não liberava aquele velho comerciante do julgamento desse aristocrata cuja linhagem se remontava à época dos normandos.
Ela não lamentava aquela censura. De fato, agradava-a. Embora Adam Kenwood tenha deixado em herança uma fortuna, ela o odiava de todos os modos. Se tivesse legado aquela casa a ela, a teria feito arder até seus alicerces. Ela sabia que ele cometeu um grande pecado, e não cabia dúvida de que muitos outros tinham escurecido sua vida.
Bianca baixou a colina a meio galope até os campos. Vergil chegou até seu lado quando se deteve frente à casa.
—Me ajude a desmontar, por favor.
—Senhorita Kenwood, seu primo herdou esta propriedade, e ainda não retornou da França. Deveria esperar que ele se instalasse aqui antes de fazer uma visita. A casa esteve fechada durante meses, e unicamente há uns poucos criados cuidando da propriedade.
—De fato, meu primo retornou há uma semana. Me ajude a baixar ou saltarei de um modo nada elegante.
A ajudou a descer do cavalo.
—Pretende entrar, verdade?
—Pode ser que Nigel, meu primo, tenha obtido a casa e as terras, mas os objetos privados de meu avô me pertencem. Quero ver como estão. Assim que explique quem sou e quais são meus direitos os criados me deixarão fazê-lo.
Ele aceitou sua decisão mais rápido do que ela esperava, e conseguiu que os deixassem entrar. Uma vez ali a acompanhou até o escritório de Adam Kenwood.
Bianca se deteve no centro da estadia e respirou o aroma da presença de seu avô. Um piso de madeira cobria a parte baixa das paredes, e um enorme escritório estava posto de lado em um canto. Havia prateleiras com pastas e grandes livros, mas outros documentos tinham sido amontoados em embalagens de madeira que se alinhavam ao longo de uma parede e rodeavam um pequeno baú.
Ela notou que Vergil a contemplava da soleira.
—Você o conhecia bem? —perguntou ela.
—Antes de construir Woodleigh tinha uma relação de amizade com meu irmão mais velho, Milton. Depois da morte de Milton, cheguei a conhecer Adam bastante bem.
—Nisso me leva vantagem. Eu sabia que era o avô da Inglaterra, mas meus pais nunca falavam dele. Ao me fazer maior me dei conta de que esse velho homem permitiu que meu pai vivesse na pobreza enquanto ele acumulava uma enorme fortuna. —Estendeu o braço para assinalar a luxuosa casa.
Vergil entrou na estadia e examinou as gavetas do escritório.
—Seu avô obteve muitos lucros da frota marinha e outros comércios. Durante as primeiras batalhas de Napoleão, seus navios fizeram um grande serviço ao Governo, e o rei lhe outorgou o título de barão. Como a maioria dos homens, ele pretendia que seu filho fosse um cavalheiro e planejava educá-lo para isso. Entendi que seu pai tinha outras ideias e por isso partiu para América.
—Acredito que não foi sua decisão ir a América o que fez que se distanciassem, mas sim a decisão de casar-se com minha mãe. Não era uma esposa adequada para o filho de um homem que lutava para abrir caminho na alta sociedade da Inglaterra.
Ele tirou uma pasta de uma gaveta e a folheou.
—Como já te expliquei, uma profissão como a de sua mãe não está bem vista aqui.
—Suspeito que não esteja bem vista em nenhuma parte. Minha mãe não estava tão má vista em parte por seu parentesco com tia Edith. Além disso, interrompeu sua profissão ao casar-se com meu pai. Ela dava aulas particulares, e ela conseguiu manter a casa com dignidade apesar das circunstâncias. Não foi suficiente para aquele velho homem.
Ele voltou a colocar a pasta em seu lugar e depois de uma inspeção mais atenta extraiu outra.
—Bom, ao final se lembrou de você.
—Desgraçadamente, o final chegou um pouco tarde.
—Ouço um deixe de amargura.
Havia um deixe de amargura. Até ela notou o ressentimento que podia ouvir em sua voz.
—Uma minúscula parte dessa herança teria economizado muitos pesares a minha mãe, e provavelmente até teria salvado sua vida. Morreu de uma febre da qual se contagiou enquanto viajávamos.
Ele levantou a vista da pasta como se ela houvesse dito algo particularmente interessante.
—Já vejo. Assim agora quer se vingar de Adam pela morte de sua mãe, usando sua fortuna para se converter em uma artista como a mulher que ele repudiou.
Aquela acusação lhe fez sentir uma pequena fúria dando voltas em sua cabeça.
—Você frivoliza meu propósito. Aspirava minha carreira como cantora de ópera muito antes de me inteirar dessa herança. —Observou de novo a estadia— Entretanto, agora que o diz, há certa justiça em usar o dinheiro desse homem para me converter precisamente no que ele desprezava.
—Parece mais uma brincadeira pesada que justiça. Antes que desfrute com sua brincadeira deveria te explicar que uma parte do que sabe sobre seu avô se apóia em um engano.
—Que engano?
—Pelo que ele me disse, estou seguro de que não rompeu relação com seu pai. Foi seu pai quem rompeu com ele.
—Não acredito.
—Pode acreditar no que quiser, mas isso era o que Adam recordava.
Aquilo estragou a brincadeira e a justiça. Provocou uma fratura no ressentimento que lhe gelava a alma, aquele ressentimento que tinha crescido em seu coração enquanto contemplava como sua mãe tossia e perdia a vida em uma hospedagem de aluguel nas margens do mundo.
—Disse isso a você só para que não o acreditasse frio e desalmado.
—Minha opinião não lhe importava muito.
—Então mentiu a si mesmo, para poder morrer sem culpa.
—Possivelmente.
Ela observou os documentos que havia na estadia. A verdade provavelmente estaria em alguma parte. Deveria procurar as cartas de seu pai. Inclusive podia haver algumas de sua mãe pedindo ajuda quando enviuvou.
Em realidade não deveria importar o que aconteceu, mas importava. Se ia construir sua vida ao amparo da riqueza daquele homem, queria saber se devia estar agradecida ou brincar com ele enquanto o fazia.
—Há algum modo de saber o que é o que me pertence do que há aqui?
—O advogado separou os papéis. Aquelas gavetas contêm os que são pessoais, enquanto as contas da propriedade estão nas estantes. —Assinalou o pequeno baú— Suponho que o que havia em seu escritório e outras coisas de valor estão ali sob chave.
—Quero ler esses documentos pessoais. Perguntarei a meu primo se posso o visitar e fazê-lo.
—Seria mais conveniente levá-los a Laclere Park. Ali poderá revisar o material a seu desejo. Me encarregarei da transferência.
—Estou segura de que meu primo não se importaria que revisasse os documentos aqui.
—Sim me importaria.
Ela o olhou diretamente aos olhos.
—Não tem sentido mudá-los duas vezes. Esperarei até que possam enviar-se a meu próprio alojamento em Londres.
Lhe devolveu o olhar.
—Não tem alojamento em Londres, e não o terá por muito tempo.
Ela não esperava que fosse tanto tempo, mas ele não se deu conta ainda.
—De acordo, para começar levemos isto a Laclere Park.
Quando abandonaram a casa, ela viu que ele ainda levava uma pasta. Ele notou seu olhar de curiosidade.
—Há aqui algumas cartas de meu irmão. Espero que não te importe que tome emprestada esta pasta para lê-las.
—Absolutamente. —Comoveu-a que quisesse fazê-lo. Era mais sentimental do que ela esperava— Quando seu irmão faleceu?
Ele a ajudou a montar o cavalo.
—Faz menos de um ano.
—Possivelmente haja mais cartas. Quando tivermos todo o material em Laclere Park, poderemos as procurar.
Enquanto passeavam com seus cavalos para os campos, um jovem loiro galopou para eles, saudando com o braço.
Parecia um modelo extraído de uma lâmina de moda, com o elaborado nó de seu lenço, seu alto chapéu de castor e seu moderno casaco.
O jovem desceu de seu cavalo e tirou o chapéu.
—Senhorita Kenwood! Que feliz coincidência vê-la outra vez. Pensar que se tivesse ficado mais um dia em Londres, como tinha planejado não a teria encontrado.
Vergil não se alterou por esse «outra vez».
—Você deve ser Nigel Kenwood, o primo de minha pupila. Eu sou Laclere.
—É um prazer o conhecer por fim, lorde Laclere.
—Teria o chamado se soubesse que residia em Woodleigh. Pensei que ainda estava na França. Minhas desculpas.
Nigel sorriu a Bianca. Pareciam-se um pouco. Seus olhos eram igualmente azuis e seu cabelo igualmente dourado. Um homem bonito decidiu, exceto as expressões de seu rosto sugeriam um temperamento instável.
—Levo aqui só uma semana. Revisar os assuntos de Woodleigh me manteve muito ocupado, mas agora minha vida está se estabilizando.
—Então deve visitar logo Laclere Park. Estou seguro de que as damas estarão encantadas. Há muito poucos rostos novos no campo.
—Obrigado. Farei.
Nigel sorriu de novo a Bianca com admiração. Bianca lhe devolveu um doce sorriso. Vergil sorriu muito fracamente aos dois.
Prestou a Nigel mais atenção da devida.
Graças a Deus Vergil era um homem inteligente. Ela não tinha nenhuma intenção de mentir, só estava semeando nele suficiente preocupação para que decidisse não expor sua influência a doce Charlotte.
Rechaçaram o convite de Nigel a um refrigério e retomaram seu caminho. Vergil se aproximou dela.
—Já tinha conhecido o novo barão. Não o mencionou.
—Não o fiz? Há uns dias cavalguei perto de Woodleigh e o encontrei. Pareceu-me correto parar e falar com ele, já que é meu parente.
—Mostrou-te Woodleigh?
«Entrou na casa? Esteve a sós com ele em sua casa?» A expressão dele permanecia tão cuidadosamente impassível que lhe deu vontade de rir.
—Sim, fez. Era a propriedade de meu avô, assim tinha curiosidade. —Em realidade só tinha visto os jardins, mas se sentiu contente consigo mesma por ter deixado o visconde dando voltas a uma nova ambiguidade.
—Acredito que era sua intenção desde o começo visitar Woodleigh para investigar o escritório de Adam esta manhã. Estou feliz de que tenha podido satisfazer esse desejo.
Ela não acreditava que ele estivesse feliz absolutamente. Parecia estar considerando o que implicava que ela visitasse Woodleigh com camisa e calças de montar sabendo possivelmente que Nigel não estava em Londres.
Ela concluiu que, em termos gerais, aquela manhã de passeio a cavalo tinha sido um êxito.
Tomaram um caminho de volta mais direto. Ela se sentia agora mais segura em sua cadeira de montar de mulher, galopou através do parque e não diminuiu o ritmo quando entraram no bosque. A rosada luz do sol penetrava entre os ramos, criando maravilhosas e imprecisas manchas enquanto ela avançava velozmente. Aquele efeito visual a distraía e se achava despreparada quando de repente, e de forma inexplicável, seu cavalo encabritou de um modo violento.
O entorno seguiu sendo impreciso, mas agora de um modo diferente. O chão e as árvores pareciam dar voltas enquanto ela lutava para recuperar o controle sobre o animal. Este estava como louco e se retorcia parado sobre as patas traseiras. A cadeira de montar não pôde sustentá-la. Caiu ao chão sobre seu estômago e recebeu um impacto que aturdiu seus sentidos.
Ainda mais espantoso foi o peso que imediatamente caiu sobre suas costas e os antebraços que sentia a cada lado de sua cabeça. Vergil estava em cima dela, cobrindo suas costas e sua cabeça com seu próprio corpo. Ela lutou contra ele indignada e abriu a boca para protestar.
Um estalo quebrou o silêncio da manhã. Vergil a pegou pelos ombros com firmeza e lhe deu a volta apoiando-a sobre o barro.
—Vigia seus disparos! —gritou ele encolerizado na direção do som. Com a mão direita apertava os extremos das rédeas e os dois cavalos relinchavam e faziam cambalhotas.
De repente não lhe importou que estivessem ridículos, escancarados juntos desse modo.
—Quem será que disparou?
—Caçadores furtivos, provavelmente procurando faisões. É muito audaz por sua parte usar revólveres em lugar de armadilhas. Só se atrevem a fazê-lo muito cedo na manhã. Estamos a vários quilômetros da casa e eles supõem que as famílias estão ainda na cama.
Ouviu-se um novo estalo. Desta vez ela ouviu um pequeno golpe como o de uma bola, contra a árvore que tinham à esquerda. Os cavalos encabritaram e quase conseguiram soltar-se. Vergil soltou uma maldição e voltou a gritar.
Ele continuava apertado contra ela, com todo seu peso sobre suas costas. Sua respiração fazia cócegas em sua nuca. O tecido de suas mangas roçava brandamente suas bochechas.
Ela não se sentia nada em perigo, a não ser segura e protegida do modo mais quente. A íntima proximidade acendeu nela uma ardente resposta. Respirou seu aroma a sabão e couro, e um estranho bater de asas a percorreu, do coração até o estômago.
—Agora pode entender por que não deve cavalgar a esta hora. É perigoso — disse ele.
—Você vai cavalgar.
—É diferente. —Ela sentia as palavras junto a seu ouvido, como se ele tivesse aproximado ainda mais a cabeça. Tinha-a abraçada contra o chão, o queixo dela se apoiava sobre as folhas e a terra. A cálida brisa de seu fôlego acariciava suas têmporas, fazendo que aquele bater de asas se voltasse furioso.
Ele se elevou, mas sem afastar-se completamente. Permaneceu sobre ela. Algo que não era capaz de nomear vertia dele para ela. Isso a assustou. O bater de asas se fez ainda mais forte e encheu seu peito.
Deu a volta e o olhou diretamente aos olhos. Ninguém em sua vida jamais cuidou dela de uma maneira tão… Explícita. Ao menos não de tão perto. Aquele olhar pareceu penetrar diretamente em sua mente e explorar sua vontade.
Já não se sentia segura e protegida. Mas bem o contrário. O bater de asas se multiplicou adquirindo um ritmo frenético e um zumbido que se apoderou de seu corpo e de seus membros. Os alertas de uma advertência. E excitação.
A tensão que refletia em sua expressão o fazia extraordinariamente atrativo. Incorporou-se, de joelhos, para lhe oferecer sua mão e ajudá-la a sentar-se.
—Se machucou ao cair?
Ela moveu as pernas com cautela.
—Só fiquei sem fôlego. Em realidade a queda não foi muito forte, mas estarei um pouco dolorida amanhã. —apressou-se a levantar-se— Como protetor é excelente, tio Vergil. Não haveria muitos homens dispostos a lançar seu corpo entre a bala de um mosquete e uma mulher que mal conhecem.
—Qualquer homem inglês de honra o teria feito senhorita Kenwood.
Fizeram os cavalos caminhar durante um tempo para que se acalmassem, depois cavalgaram os últimos quilômetros de volta a casa. Sua silenciosa companhia a incomodava e aquela estranha excitação ainda deixava ouvir seu murmúrio. Nos estábulos, ele se deixou cair do cavalo e foi ajudá-la a desmontar. Ela se deteve quando seus braços a alcançaram.
Ele notou sua vacilação. Seus olhos azuis se encontraram com os dela de uma maneira especial. Ela começou a respirar com dificuldade e se sentia incapaz de afastar o olhar.
Uns dedos fortes rodearam sua cintura e a deslizaram para baixo. Deu a impressão de que ele demorava muito em soltá-la, o momento pareceu prolongar-se enquanto ele a sustentava tão somente a escassos centímetros. A suave pressão de suas mãos e a cercania de seu corpo a fizeram tremer.
—Obrigado. Desfrutei muito do passeio a cavalo. —Ela recuperou sua compostura e deu a volta.
—Me alegro de que tenha desfrutado, especialmente já que é o último.
Ela deu meia volta para olhá-lo no rosto.
—Está dizendo que não poderei voltar a cavalgar enquanto esteja aqui?
—Naturalmente que pode, acompanhada e bem entrado o dia. Entretanto, pedirei aos moços que não voltem a te dar um cavalo tão cedo pela manhã, e a nenhuma hora se pretende ir sozinha. —Ele se expressou com tanta autoridade e tanta calma como sempre, mas ela sentiu crescer a tensão a seu redor— Não organizará mais encontros furtivos com seu primo Nigel. Poderá vê-lo quando ele vier aqui de visita, ou quando Penelope convidá-lo.
Encontros furtivos? Sua imaginação extraiu daquelas ambiguidades mais conclusões das que ela pretendia.
Continuou caminhando sem corrigi-lo.
«Deixemos que pense o pior.»
***
Vergil aproximou uma cadeira à cama, sentou-se nela e levantou sua bota para dar a seu irmão um bom empurrão no quadril.
Dante gemeu e cobriu os olhos com um braço. Olhou por debaixo deste, viu Vergil e voltou a resmungar com resignação. Deixou escapar um suspiro de irritação e se incorporou para apoiar-se contra a cabeceira.
—Bom dia, Vergil.
Vergil viu o peito nu de seu irmão e observou os dois copos e a garrafa de vinho vazia que havia sobre a mesa.
—Quase toda a noite com Marian suponho. Disse-lhe que deixe às criadas em paz, Dante. Não quero que ninguém as incomode.
—Um homem não molesta Marian; ele luta por sua vida. Mas o que acontece com você. Por mais que lhe goste. Não seria discreto por sua parte.
—Tampouco é discreto pela tua. A mulher que pretende se casar está na casa.
Dante apoiou a cabeça contra a cabeceira e sorriu.
—Ah, sim, a bela Bianca. Sua descrição não lhe fez justiça. É realmente uma coisinha doce e jovem, só que um pouco ingênua. É encantador ver como luta por imitar nossas formas.
«um pouco ingênua?»
—Acabo de dar uma longa volta com sua coisinha doce e jovem.
—A julgar pelo estado de seu casaco, parece que esteve derrubando pelo chão com ela.
—Alguns caçadores furtivos estavam atirando e acabamos caindo do cavalo. —Não era exatamente isso o que tinha acontecido, mas não fazia sentido explicar detalhes que suscitariam perguntas a respeito— Me alegra saber que a senhorita Kenwood te parece apropriada. Entretanto, devo te advertir que tem concorrência.
—Nada sério — disse Dante bocejando.
—Nem sequer ouviu de quem se trata.
—Confio em que não seja você.
Vergil lhe lançou um olhar mordaz que escondia um incômodo sentimento de culpa.
—Só estava brincando, Vergil — sorriu Dante— Está tão claro que não encaixam e que ela te odeia que não pude resistir.
A menos que ele se equivocou completamente ao interpretar as coisas quando estavam atirados no chão, se encaixavam de um modo estupendo e perturbador.
—Seu rival não sou eu, a não ser um homem com um título nobiliário.
Aquilo freou a alegria de seu irmão. Dante tinha uma suprema confiança em sua habilidade para tratar com as mulheres, mas dado que era o filho mais jovem dita habilidade não tinha por que traduzir-se na possibilidade de casar-se com quem quisesse.
—De quem se trata?
—De seu primo, Nigel Kenwood.
—O segundo barão de Woodleigh? Com seu título recém estreado e de pouca subida não impressiona a ninguém.
—A ela não importam as delicadas questões do nascimento e a fila, e eles são parentes, o qual significa que têm um vínculo natural. Eu acreditei que ele se achava na França, administrando a herança de Adam, mas temo que retornou antes do que eu calculava. A questão é que já está aqui e se estabeleceu como nosso vizinho. Suspeito que tinha a esperança de encontrá-la aqui conosco. Afinal, ela recebeu quase tudo o que não foi deixado à caridade. Suponho que ele acredita que tem algum direito a ela.
Dante não parecia exatamente preocupado, mas Vergil monopolizou sua atenção.
—O que sabe você desse primo dele?
—É o neto do irmão de Adam. Começaram juntos nos negócios, mas o irmão teve um problema financeiro e Adam comprou sua parte. O pai de Nigel não quis tocar o negócio, apesar de Adam lhe ofereceu participar. Nigel, por sua parte, decidiu fazer-se artista e viveu em Paris até alcançar sua maioridade.
—Um boêmio? Sejamos sérios, Vergil, não acredito que…
—Não é um pintor. É músico. Adam se gabou uma vez sobre o menino e seu pianoforte.
—Ah, bom. Um músico. Pequeno motivo para alarmar-se.
—A senhorita Kenwood também se dedica à música, assim é provável que sim haja um motivo para inquietar-se, e até para alarmar-se.
Dante elevou suas sobrancelhas ante essa nova fofoca.
—É cantor — explicou Vergil— Gosta da ópera. Assim Nigel tem um possível atrativo. Interesse em comum e um parentesco de sangue.
—Exagera as duas coisas. Estamos falando de casamento, não de uma relação amorosa. Tinham nossos pais interesses em comum? Você e Fleur têm algum interesse em comum?
Ele e Fleur tinham em comum os interesses mais básicos, mas aquele não era o assunto. Vergil ficou de pé.
—Bom, mais te vale atuar com rapidez. Eu tentarei evitar que Nigel faça visitas frequentes, mas não posso impedir sua entrada na casa.
Caminhou até a porta. A voz de Dante o seguiu.
—Bom, e agora, irmão mais velho, o quão rápido quer que vá?
Vergil deu a volta para olhar Dante. Imagens desse peito e esses braços nus abraçando Bianca estalaram em sua mente, incitando-o a uma reação desagradável. Durante um momento não respondeu, enquanto tentava desfazer-se das imagens e da ira. Aquele abraço seria inevitável. E necessário.
—Não chegue a desonrá-la —disse— E mantém suas mãos afastadas de Marian enquanto esteja nesta casa. Não quero que as damas se escandalizem.
Capítulo 4
Penelope visitou o escritório de Vergil aquela tarde, para lhe comunicar que tinha recebido uma carta no correio do dia dizendo que Fleur e sua mãe viriam de visita em um prazo de dez dias.
—Estarei fora na semana anterior, mas prometo voltar a tempo — a tranquilizou ele.
—Acredito que também convidarei alguns amigos de Londres — disse Penelope— Darei a Bianca à oportunidade de desdobrar suas asas.
—Não convide muita gente, Pen. E escolhe cuidadosamente.
—Há outra coisa, Vergil. Suspeito que Dante esteja começando a ter certa debilidade por ela.
Ele tentou concentrar-se no que Pen estava dizendo, mas sua mente estava absorta contemplando à senhorita Kenwood estendida sobre o chão e olhando-o com um rubor de surpresa que lhe enviava rajadas de calor através de suas veias. Suas mãos notavam sua feminina cintura uma vez mais e seu corpo lhe advertia o perigo da cercania ao ajudá-la a descer do cavalo. Um misterioso perfume de lavanda enchia sua cabeça.
—Não se preocupe Pen. Dante não se verá envolto em uma confusão sem dar-se conta.
—Não me preocupo com Dante. Bianca, entretanto, parece tão ingênua.
«Ingênua?»
—E Dante… Vergil, não sei se você é consciente, estou segura de que ninguém fala contigo sobre isto, vendo que é tão… Mas se rumoreja que é um mulherengo implacável.
Perguntou-se do que pensaria Pen que falavam os homens quando se reuniam depois de comer com uma taça de porto e uns cigarros. Passou anos recebendo brincadeiras pelas conquistas de seu irmão, e em mais de uma ocasião se viu obrigado a olhar de frente um marido irado.
—Inclusive Dante respeita as regras básicas. Se estiver interessado nela, estou seguro de que isso o honra.
Ela pestanejou atônita.
—Permitiria?
—Por que não teria que fazê-lo?
—Ela é muito ignorante das questões mundanas e se desiludiria terrivelmente quando soubesse a verdade a respeito dele.
—Não quero interferir, Pen. Deixemos que as coisas sigam seu curso. Se ele a conquista, terão que solucionar seus assuntos da mesma forma que todos os casais o fazem.
—Você pode dizer isso, mas eu sempre lamentei que ninguém tivesse me advertido a respeito de Anthony.
Ele quis fazê-lo, mas não o correspondia sendo tão somente um jovenzinho, especialmente com sua mãe viva e encarregando-se de tudo. Um moço não podia aproximar-se de sua irmã mais velha e informá-la de que o maravilhoso conde com quem estava disposta a casar-se tinha fama de libertino, e que as escuras alusões a seus pecados não eram das típicas.
Entretanto, alguém devia tê-la advertido, e ele recordava muito bem a infelicidade de sua irmã. A separação oficial do conde durante esses últimos cinco anos havia lhe trazido certa paz, mas a custa de sua reputação social e uma permanente solidão. A lembrança de que um mau matrimônio podia ser o inferno o fez sentir-se incômodo a respeito de Bianca, e desejou que Pen não tivesse trazido a conversa seu próprio matrimônio, sem amor e sem filhos.
Ela o olhou com feminino ceticismo.
—Manterei minha língua presa e observarei como se desenvolvem as coisas, mas se suspeitar que ele está jogando com ela, chamarei sua atenção severamente, Vergil. Isso é algo que não tolerarei.
—Faz o que acredite ser o melhor, Pen.
Ela saiu, e ele voltou a se concentrar na carta que estava lendo quando entrou.
Examinou o conteúdo outra vez. O maior problema de um segredo é que sempre reclama sua atenção no momento mais inoportuno. Tinha planejado ficar ali todo o tempo que Dante estivesse, mas agora não ia ser possível.
Saiu do escritório e se dirigiu a seu aposentos para dizer a Morton que empreenderia uma viagem depois de amanhã.
***
À tarde do dia seguinte Bianca se achava sentada no salão, dando golpezinhos com o pé de maneira impaciente. Esperava que logo se apresentasse uma visita. Infelizmente, aquele que anunciava o cartão que o mordomo entregou a Pen não era o mesmo que ela esperava.
Nigel entrou despreocupado, com um ar muito romântico graças a seu paletó parisiense tão estreito na cintura, seu cachecol escuro e seu cabelo despenteado que chegava ao ombro. Obsequiou Bianca um acolhedor sorriso de familiaridade enquanto Pen o recebia.
—Retornou recentemente de Paris — me disse Charlotte— Assim tem que nos contar tudo sobre Paris.
Nigel as entreteve amavelmente com algumas descrições das últimas modas. Bianca mal escutava, apesar de que seu primo virtualmente dirigisse a ela toda sua atenção. Ela estava atenta aos ruídos de outra chegada.
As portas se abriram, mas só para dar passo a Vergil e a Dante.
—Espero que seu propósito seja ficar em Woodleigh, ao menos durante o outono — disse Penelope.
—Essa é minha intenção.
—Logo vou ter umas visitas em casa, e conto com que se una a nós sempre que puder.
—É muito amável por sua parte. Visitava meu tio-avô com pouca frequência, assim sou virtualmente novo neste lugar.
—Não passou muito tempo na Inglaterra estes últimos anos, verdade Kenwood? —perguntou Vergil.
—Preferi Paris. Encontro que a cultura ali é de superior qualidade. A vida artística é muito rica.
—Você tem interesse nas artes? —perguntou Penelope— Então desfrutará com os convidados em minha festa. Sua prima, sem ir mais longe, é uma artista excelente. Canta como um anjo e teve a gentileza de entreter Charlotte e a mim em mais de uma ocasião.
A expressão de Nigel mostrava um educado interesse, mas também ia carregada de um matiz condescendente. Bianca supôs que devia ter conhecido muitas mulheres jovens cujos amigos acreditavam que cantavam como anjos.
—Nos deixe convencê-la para que cante agora — disse Charlotte— Vergil e Dante nunca a ouviram.
—Será uma honra acompanhá-la — ofereceu Nigel— Sou bastante aceitável com o pianoforte.
Bianca se sentia um pouco encurralada. Ela só tinha entretido Penelope e Charlotte com canções populares de salão, e não pode praticar seriamente durante as últimas duas semanas. Ao mesmo tempo, a oportunidade de cantar, inclusive embora não pudesse dar o melhor de si mesma, excitava-a.
Todos foram ao salão de música e Nigel ocupou seu lugar frente ao pianoforte.
—Meu repertório de canções populares é limitado — advertiu ele, dando-se certa importância.
—Possivelmente então tenha mais sentido uma ária.
Ele levantou o olhar agradavelmente surpreso. Ficaram de acordo em interpretar uma de Mozart, uma que ela tinha estado estudando justo antes de deixar Baltimore. A perspectiva dessa pequena atuação acelerou seu coração.
Os outros se colocaram em bancos e em cadeiras. Nigel começou a tocar para introduzir a peça.
Com o som das notas o espírito de Bianca imediatamente renasceu. Não precisava conter sua voz como quando praticava escalas em seu quarto. Não era o frio isolamento que tinha experimentado quando escapulia longe para cantar no campo. A alegria que sentia ao deixar sair sua voz com força dava cor aos sons.
As reações de sua pequena audiência produziram uma espécie de poder.
Penelope permanecia aniquilada, Dante encantado, Charlotte confusa, e Vergil fortemente interessado. Ela olhou Nigel e o viu dar sua surpreendida aprovação. Sua destreza com o pianoforte era considerável, e ela tinha a sensação de que ele sabia que o público apreciava essa destreza.
Ao terminar, a sala estava tão silenciosa que ela podia ouvir o zumbido dos insetos através da janela aberta. Ela desfrutou daquele momento de torcida euforia e depois relaxou.
—Foi assombroso, querida prima — disse Nigel com serenidade— Esteve estudando a sério.
—Surpreendeu a todos, Bianca — disse Penelope— E sua interpretação foi magistral, senhor Nigel. Já vejo que a música é um interesse sério para você.
—Não um interesse, a não ser uma paixão. —Seus olhos procuraram os de Bianca com um brilho trêmulo que parecia indicar que ambos compartilhavam um segredo que os outros jamais entenderiam.
—Deve me prometer que tocará para meus convidados. Possivelmente também poderemos persuadir Bianca para que cante. Será uma noite maravilhosa.
—Será uma honra para mim.
Ele começou a preparar-se para sair, rogando a Penelope que visitasse logo Woodleigh. O mordomo entrou antes que Pen o chamasse, com um cartão de visita.
—Acaba de chegar um homem, minha senhora. Deseja ver a senhorita Kenwood.
Penelope examinou o cartão e elevou as sobrancelhas ao entregar-lhe a Bianca. Antes de lê-lo, ela já sabia de quem se tratava.
O visitante que tinha estado esperando por fim tinha chegado.
—É um assunto de negócios, Penelope. Há algum lugar onde possa me entrevistar com ele a sós?
—Leva-o a meu escritório — indicou Vergil ao mordomo— A senhorita Kenwood poderá atender ali seus negócios.
Bianca se despediu de Nigel e depois se apressou a ir ao escritório, sentindo ainda a alegria do canto.
Nunca esteve no escritório. Estava orientado ao norte, e a luz se filtrava através das janelas góticas iluminando fracamente a escura mesa de madeira, as paredes cheias de livros e as paisagens de aquarela.
Seu visitante aproximou uma cadeira à janela.
—Senhor Peterson, estou encantada de que tenha vindo.
—Senti alívio ao receber sua chamada, senhorita Kenwood. Ao ver que não ia a nossa última entrevista fiquei preocupado.
—Lorde Laclere me encontrou e pôs em marcha outros planos para minha visita a seu país.
Ela se sentou em um assento acolchoado junto à janela. O batente era muito largo. Continha uma coleção de curiosos brinquedos. Um era uma catapulta feita de madeira e cadeias. Outro, uma carruagem de madeira e couro. Um terceiro não parecia ser nada em particular, tão somente um conjunto de rampas estriadas entrelaçando-se entre si, decorado com corrente e rodas.
O tipo de construção era algo rudimentar. Ela supôs que se tratava de objetos que Vergil tinha fabricado quando era menino. A ideia de que o sério e formal visconde guardasse lembranças de sua infância em seu santuário íntimo era adorável, embora se sentisse incapaz de imaginar de menino um homem como aquele.
O senhor Peterson era um homem de meia idade, pálido e calvo, com uns olhos cinza que podiam parecer sagazes ou respeitosos segundo as circunstâncias. Quando ela o visitou em Londres pela primeira vez, seu lado perspicaz tinha entendido rapidamente que embora ela não pudesse pagar seus honorários naquele momento, tinha expectativas que resolveriam as coisas adequadamente.
—Examinou o testamento? —perguntou ela.
—O fiz. Tive uma entrevista com o advogado de seu avô. Ele pareceu surpreender-se de que tivesse me encarregado o assunto, mas cooperou até onde estava obrigado a fazê-lo. Não mais, entretanto.
—E que conclusões tirou? Posso me liberar do domínio de lorde Laclere?
—Se ele não se ocupasse de você, ou houvesse alguma evidência de fraude, seria possível fazer algo a respeito, mas a Corte não permitiria a independência que você está procurando. Se o visconde não fosse seu tutor, outra pessoa seria nomeada em seu lugar. Com um homem de sua categoria, qualquer abuso de sua posição teria que ser realmente terrível para que se pudesse levar ante a Corte.
Ela se sentiu furiosa ante a decepção. Aquele brinquedo inútil captou sua atenção e viu uma pequena bola de chumbo em sua base. Refletindo a respeito de qual seria sua próxima estratégia com Vergil, pegou distraidamente a bola e a soltou sobre a rampa superior. Começou a rodar costa abaixo, de uma rampa a seguinte, de um lado ao outro, pondo em movimento várias pequenas rodas e polias cada vez que seu peso mudava de nível.
—Senhorita Kenwood, não se trata de uma situação permanente… Será menos de um ano. Você é uma moça e rica, e é compreensível que seu avô tenha querido protegê-la para evitar que seja vítima de algum caçador de fortunas sem escrúpulos.
—Quanto de rica?
—Perdoe? Supunha que você sabia.
—Sei em termos gerais. Mas exatamente a quanto ascende minha fortuna?
—Os ganhos pelo fundo de dinheiro investido sobem ao menos a três mil libras este ano.
—Essa quantidade por si só já é uma fortuna, e muito mais do que necessito para meus planos.
—Seu tutor dirigirá essa soma, subministrando os recursos de acordo com as necessidades que você tenha e os gastos que deva cobrir. Ele tem a obrigação de ser razoável em relação a seus pedidos.
Ela duvidava que Vergil fosse tão razoável para lhe dar várias centenas de libras que a permitissem escapar para Milão. Se ele controlava seus ganhos, controlava também seus movimentos. Em definitivo, controlava sua vida.
—Quanto à outra parte de sua herança, tudo resulta muito mais complicado — disse o senhor Peterson, continuando com seu relatório.
—Que outra parte?
—Seu avô era um homem de negócios. Para o final de sua vida vendeu a maioria deles. Entretanto, conservou três sociedades. Duas eram pequenas parcelas de companhias de transportes, e a terceira era a maior parte de uma companhia de algodão em Manchester. Também foram legadas a você suas ações nesses negócios, menos dez por cento das da fábrica, que foram cedidas ao seu primo.
—Entretanto, o visconde também é meu administrador. Ele dirige esses investimentos.
—As ações nessas sociedades não são parte dos investimentos permanentes, como sim o são os recursos de investimento. Se você se casar ou se faz maior de idade, ele deverá renunciar ao controle sobre elas. De fato me surpreende que ele não tenha vendido esses negócios. Representam uma ameaça para sua riqueza. Se algo sair mal, todos os proprietários são responsáveis pelas dívidas incorridas.
Aqueles negócios em realidade não lhe interessavam muito, a menos…
—Também há ganhos que provêm desses negócios?
—O advogado não esteve disposto a me permitir ver os documentos. Eu acredito que a fábrica deve dar lucros.
—E o que ocorre com esses ganhos?
—Vão para seu administrador, que presumivelmente os investe em mais investimentos. Ou se não, são enviados ao seu tutor.
Que era a mesma pessoa. Administrador. Tutor. Qualquer que fosse o lugar para o qual se desviava a conversa acabava indo parar em Vergil Duclairc.
—Senhor Peterson, eu gostaria que você estivesse presente enquanto falo com lorde Laclere. A situação que criou é intolerável. Estou prisioneira aqui.
Ela chamou o mordomo para que solicitasse a presença de Vergil. O senhor Peterson pareceu muito incômodo ante a ideia dessa entrevista. Quando Vergil entrou pela porta, o respeito havia superado a suspicacia naqueles olhos cinza, e a calvície daquele homem mostrava pequenas gotas de suor.
—Lorde Laclere, este é o senhor Peterson. Ele é meu procurador.
Vergil examinou friamente o advogado com um gesto aristocrático de aborrecimento. O senhor Peterson se desfez em um molho de nervos. Bianca lutou contra o impulso de bronquear com ele para que se comportasse como um homem.
Vergil posou sobre ela um olhar muito sério.
—Não sabia que tinha contratado um advogado, senhorita Kenwood.
—Foi uma das primeiras coisas das que me ocupei ao chegar a Londres.
—O advogado de seu avô, ou o meu, ou inclusive eu pessoalmente, teríamos lhe explicado gostosamente algo que precisasse saber.
—Pensei que era melhor ter meu próprio representante e decidir por mim mesma o que era o que precisava saber.
—Confio em que o senhor Peterson tenha satisfeito do toda sua curiosidade.
—Quase tudo. Falou-me a respeito das ações de negócios que herdei e sugeriu que você deveria as ter vendido, para maior segurança.
—Eu não o expressei dessa maneira milord — se apressou a esclarecer o senhor Peterson— Só lhe expliquei as leis em relação às responsabilidades financeiras dos sócios.
—Como deveria fazer com um cliente. Estou obtendo informação sobre o valor das ações. Como administrador seria irresponsável por minha parte as vender a um preço muito baixo. Houve várias propostas em relação à venda que terei em consideração quando estiver em melhores condições para julgar se forem justas. Entretanto, estas coisas levam seu tempo. É difícil obter informação honesta dos gerentes e dos outros proprietários.
—Excelente milord. Justo o tipo de prudente supervisão que alguém esperaria. Acredito que é evidente que tudo está em perfeita ordem, senhorita Kenwood, e que é você afortunada pelo fato de que lorde Laclere se faça cargo de…
—Quando se recebem os benefícios das companhias? —perguntou ela.
Uma paciência de aço controlou a mandíbula e a boca de Vergil.
—Se houver benefícios, as companhias os pagam uma vez ao ano. Serão reaplicados em recursos do Governo.
—E os recursos de investimento por eles mesmos deram lucros desde a morte de meu avô?
—Sim, deram.
—E essa parte dos benefícios foi também reaplicada?
—A maior parte.
A maior parte, mas não toda.
—Senhor Peterson, seria tão amável de me esperar na biblioteca?
O senhor Peterson estava encantado de fazê-lo. Quase tropeçou ao retirar-se apressadamente.
Bianca ocupou uma cadeira frente à Vergil.
—Quero que arrume as coisas para que os ganhos fiquem a minha disposição.
—Não tenho nenhuma intenção de fazer isso.
—Trata-se de minha herança.
—Inclusive embora fosse a mais sensata das jovens, não estaria cumprindo com meu dever se te deixasse dispor desse dinheiro. O certo é que confessou ter propósitos que me converteriam em um conspirador de sua ruína. É totalmente impossível.
—O senhor Peterson me explicou que se espera que um tutor seja razoável em relação a esses recursos.
—Com uma parte é suficiente para cobrir suas necessidades. Os lojistas só têm que me enviar suas faturas. As costureiras e outros profissionais que atendem às mulheres estão acostumados a isso. A menos que haja algum gasto exagerado por sua parte não precisamos voltar a falar disto.
—Dado que não há costureiras nesta casa não corro o perigo de ser acusada de nenhum gasto exagerado.
A expressão dele se suavizou um pouco.
—Minhas desculpas. É obvio que você gostaria de desfrutar dos frutos de sua enorme fortuna. Pedirei a Penelope que te leve a Londres dentro de umas poucas semanas.
—Obrigado. Entretanto, necessitarei um pouco de dinheiro para gastos menores agora. Tenho que comprar uns poucos artigos de natureza pessoal.
Tal como ela esperava, a palavra pessoal o impediu de seguir investigando. Abriu uma gaveta do escritório.
—Espero que vinte libras seja suficiente — disse ela.
—Isso é muito dinheiro para gastos menores, senhorita Kenwood.
—Usarei uma parte para pagar o senhor Peterson.
—O senhor Peterson pode me enviar sua fatura.
—Prefiro que não o faça. Prefiro que recorde quem o contratou. Tampouco me parece correto lhe pedir que aguarde minha herança.
Vergil tirou vários bilhetes da gaveta e os colocou em uma pilha sobre o escritório. Caminhou para ela, sem poder ocultar por mais tempo sua irritação. Ela com muita dificuldade pôde evitar encolher-se de medo ante a autoridade que emanava dele.
—Não estou acostumado a discussões abertas sobre assuntos de dinheiro, e muito menos com mulheres. Não estou disposto a tolerar perguntas que impliquem dúvidas a respeito de minha honestidade e minha capacidade na hora de administrar seu patrimônio, e menos diante de um homem que não conheço.
Ele se inclinou e se agarrou aos braços da cadeira. Ela se encolheu contra o respaldo, afastando-se das faíscas que brilhavam em seus olhos, tão somente a umas polegadas de seu rosto.
—A questão é senhorita Kenwood, que agora mesmo o tio Vergil está pensando que sua desrespeitosa pupila merece uma boa surra.
Os lábios dela se abriram com indignação. Ele saiu disparado e se afastou a grandes pernadas até a porta.
Logo que ele saiu, recolheu os bilhetes e se reuniu com o senhor Peterson. Entregou-lhe dez libras.
—Isto é em pagamento por seus honorários e gastos até o momento. Quero que você guarde o que sobre e abra uma conta para mim no banco. Use seu próprio nome se for necessário.
—Seguro que lorde Laclere terá uma conta onde se possam fazer remessas bancárias.
—Quero ter minha própria conta, e não quero que ele saiba. Me escreva informando quando estiver feito. Também quero que faça averiguações a respeito dessas ofertas para a compra das ações das companhias.
—Se insistir, verei o que posso averiguar. Devo lhe escrever aqui?
—Sim. Não acredito que o visconde me deixe ir muito longe durante um tempo.
Provavelmente não até que se casasse ou fizesse vinte e um anos.
Ela não tinha intenção de fazer o primeiro e tampouco de esperar o segundo. Se o senhor Peterson conseguia os nomes das partes interessadas nas sociedades, ela poderia conseguir o dinheiro necessário para ir à Itália, apesar do obstáculo que representava Vergil Duclairc.
***
Vergil com muita dificuldade conseguiu acalmar sua fúria depois da surpresa de encontrar-se com o senhor Peterson, quando outra visita inesperada chegou à última hora da tarde. Adrian Burchard, um dos amigos de Vergil, entrou em seu escritório, graças a Deus o distraindo das insistentes e eróticas imagens de uma Bianca Kenwood domesticada.
—Fazia muito tempo que não nos víamos Burchard — disse Vergil, lhe dando boas vindas.
—Se passasse algo mais que uns poucos dias em Londres cada vez que vai, não teria sido tanto tempo. Onde esteve metido? —Os escuros e exóticos olhos de Adrian não pareciam estar esperando uma resposta interessante.
E tampouco a conseguiu. Vergil assinalou o escritório.
—Temo que os assuntos familiares me tiveram a maior parte do tempo ocupado. —O conteúdo da afirmação era certo, mas não o gesto que a acompanhou e suas implicações. Não tinha passado em Laclere Park mais tempo que em Londres.
Dentre todos seus amigos, Burchard era o mais capaz de precaver-se dos silêncios.
—Com frequência escapei ao norte, à propriedade que tenho ali. Aí não tenho que me comportar como um visconde — acrescentou Vergil precisamente para romper o silêncio— É uma sorte que tenha cavalgado até aqui para me liberar de ter que exercer de visconde esta tarde.
—Lamento te dizer que esta não é uma visita social. Demos um passeio e te explicarei.
Cheio de curiosidade, Vergil o acompanhou até o princípio do caminho que dava a casa. Adrian o conduziu até o lugar onde outro caminho assinalava o fim da propriedade. Ali, à sombra de uma árvore, esperava um carro.
Um homem mais velho com um proeminente nariz farpado estava sentado em seu interior.
—Podia ter me avisado de que havia trazido Wellington contigo.
O duque o ouviu por acaso.
—Pedi que o trouxesse sem anunciar minha presença, e Burchard cumpriu com sua missão ao pé da letra.
—Sua excelência nos honra com esta visita.
—Não é uma visita, por isso pedi a Burchard que te trouxesse até aqui. Não pretendo ofender sua irmã, Laclere. Simplesmente hoje não tenho tempo para bate-papos de salão. —Fez um gesto com sua bengala — Este parece um caminho agradável e sombreado. Façamos um pouco de exercício.
Vergil começou a caminhar, com Adrian a seu lado. Adrian se converteu no protegido de Wellington. O mecenato daquele grande homem lhe proporcionou um lugar na Câmara dos Comuns como terceiro filho do conde de Dincaster.
Durante uns minutos se ouviu o rítmico ruído das botas contra o chão. O duque não tentou cobri-lo com elogios ou frases de rigor.
—Vim tratar de um tema delicado — disse por fim— Não há uma boa maneira de abordá-lo, assim irei direto ao ponto. Vim fazer umas perguntas sobre a morte de seu irmão. Sempre sinto curiosidade quando um homem morre por causa de uma ferida de bala disparada por si mesmo de forma acidental. Sou consciente de que não é fácil que isso ocorra. Quero saber se no caso de seu irmão não foi um acidente a não ser um suicídio.
Vergil dirigiu a Adrian um olhar ressentido, e este respondeu negando sutilmente com a cabeça. A evidência de que Adrian não tinha sido desleal ou indiscreto acalmou seu aborrecimento.
—Sim. Unicamente a família e uns poucos amigos sabem.
—Aprecio sua confiança em minha discrição, mas receber a confirmação de minhas suspeitas não me dá nenhuma satisfação. Me diga, alguma vez se expôs que resulta estranho que tenhamos tido dois suicídios de pessoas importantes durante a mesma semana? Seu irmão e o de Castlereagh.
—Meu irmão era propenso a crises de profunda melancolia. O ministro de Assuntos Exteriores estava desequilibrado. Foi uma coincidência.
—Laclere, não estou convencido de que foi uma coincidência. Existe alguma possibilidade de que seu irmão tenha sido vítima de uma chantagem? Você achou alguma prova neste sentido? Pergunto porquê há indícios de que Castlereagh sim foi.
—Acreditava que essas suspeitas tinham sido enterradas. Por você.
—Considerando sua posição dificilmente podia deixá-lo assim. Aquele homem era vítima de delírios, assim que concedi a ele pouca credibilidade. Entretanto, as últimas vezes que o vi me disse algo sobre uma carta. Aludiu a seus temores de ser convertido no alvo de um escândalo.
Um escândalo. Vergil suspeitava onde iria parar aquilo e não queria ir por esse caminho.
—Como você disse, era vítima de delírios.
Wellington deu cinco passos antes de reatar a conversa.
—O autor da carta afirma ter provas de certa atividade criminosa.
Vergil se deteve, forçando Adrian e Wellington a fazê-lo também.
—Assim depois de meses de reflexões esse detalhe me permitiu fazer algum tipo de conexão com meu irmão?
—Laclere, o deixe terminar — disse Adrian.
—Nem pensar!
—Compreendo sua ira, Laclere. Asseguro que a única conexão que vi foi a dos dois suicídios, um dos quais pode ter sido resultado de uma chantagem. —A voz de Wellington cobrou severidade— O pergunto outra vez, tem alguma razão para suspeitar que seu irmão pôde ter sido também vítima de uma chantagem? Para que não sinta a tentação de mentir em altares de proteger seu nome, me deixe lhe dizer que acredito que outras pessoas estão sendo vítimas agora, esse acidente de caça de lorde Fairhall em maio não foi o que parece, e teremos mais desastres e mortes se não chegarmos até o final deste assunto.
A fúria de Vergil se fez mais intensa. Não foi pelo tom severo do duque. Esteve pensando naquele segredo durante quase um ano, perguntando-se se as coincidências e as conexões que ele mesmo suspeitava não eram mais que seus próprios delírios.
—Sim, acredito que Milton estava sendo chantageado. Acredito que é por isso que se matou. Ele deixou uma carta. Encontrei-a entre seus papéis, onde ele sabia que eu procuraria para me ocupar dos gastos da fazenda. Aludia a uma traição, se era a ele ou a outra pessoa não sei. A maior parte da carta falava da família, e de que seria melhor que ele saísse de cena antes que nos arruinássemos. Eu quis acreditar que se referia às finanças, que estavam em uma situação péssima então. Entretanto, estive me perguntando se não o tinham obrigado a escrever essa carta.
Sentaram-se sobre o tronco de uma árvore caída enquanto ele contava sua história. Wellington fazia desenhos na terra com sua bengala enquanto escutava.
—Suponhamos que em ambos os casos houve uma chantagem. O objetivo era que morressem? —perguntou Adrian.
—Essa é a questão, não? —disse Wellington.
—No caso de meu irmão a razão da chantagem só podia ser para tirar dinheiro. Não havia nenhum modo de que alguém soubesse que não podia pagar. Nossa situação financeira não era óbvia. Ele gastava como se não houvesse um problema.
—Normalmente, se supõe que o único que quer um chantagista é sangrar sua vítima. Entretanto, o momento que estamos vivendo… Tivemos provas de que há radicais tentando assassinar membros do Governo e da Casa dos Lordes. A situação, portanto é propícia para provocar problemas deste tipo.
—Meu irmão não se destacava no Governo.
—Tinha interesse na política.
—Um interesse teórico.
—Um interesse teórico radical. Isso deve tê-lo levado a contatar com homens que defendem a violência e que poderiam enredá-lo, e através dele outros — disse Wellington — Ele deve ter se comunicado ou associado inocentemente com homens desses, só para que logo usassem essa conexão contra ele mais tarde.
O comentário pendurava no ar, mendigando uma resposta. O duque tinha articulado claramente os próprios temores de Vergil a respeito da morte de Milton.
—Você encontrou cartas que demonstrassem uma relação de amizade entre seu irmão e o ministro de Assuntos Exteriores? —perguntou Wellington.
—Não as busquei. —Era mentira. Uma maldita mentira. Entretanto, não podia permitir que a hipótese se convertesse em um fato tão facilmente.
—Possivelmente deveria fazê-lo.
—Estive procurando em outras direções. Não acredito que haja uma conexão direta entre essas mortes, exceto possivelmente pelo mesmo chantagista. Estou mais interessado em encontrar esse homem que em averiguar quão pecados ele descobriu.
—Assim que essa é a razão pela que não esteve muito em Londres e tampouco aqui — disse Adrian— Progrediu algo?
—Um pouco. —Condenadamente pouco considerando quanto de seu tempo e de sua vida investiu nisso.
—Não há nada que eu possa fazer a respeito, salvo observar o comportamento dos homens e me perguntar se estão preocupados — disse Wellington— Tenho razões para pensar que vários estão. É uma ideia horrenda, a de que alguém esteja desentranhando segredos e usando-os para intimidar ou extorquir seus amigos. E o pior é que esses homens andam tão escassos de dinheiro que tiram a vida para escapar.
—E você, Burchard? Qual é seu interesse nisto, ou só veio hoje para organizar um encontro privado com Sua Excelência? —perguntou Vergil.
Wellington respondeu enquanto os três se levantavam para retornar até o carro escondido.
—Ele está fazendo algumas discretas averiguações para mim sobre lorde Fairhall. Dado que você sabe que é um homem de confiança espero que compartilhe com ele algo que averigúe para que possamos resolver este assunto de uma maneira rápida.
—É obvio.
Era outra mentira descarada. Adrian era um amigo, e tinha experiência tanto em investigações como em discrição, mas Vergil não tinha intenção de revelar o que descobrisse a ninguém se isso podia repercutir negativamente em Milton ou na família Duclairc.
Ele suspeitava que assim seria por todas as razões que cuidadosamente evitou discutir.
Capítulo 5
—Vê o que quero dizer? —sussurrou Charlotte.
Estava sentada junto à Bianca no salão enquanto os convidados chegavam à festa.
Vergil se achava de pé ante o suporte, conversando amavelmente com Fleur e sua mãe, a senhora Monley. Tinham chegado justo depois do meio-dia, em uma magnífica carruagem.
—Nada — murmurou Charlotte, sacudindo a cabeça— Não… Bom, não sei… Sua atitude. Vergil poderia perfeitamente estar falando comigo e Fleur com seu pai.
Sentada do outro lado de Charlotte, Diane Saint John, uma das amigas mais queridas da condessa, dava golpezinhos na mão. Seus olhos cheios de sentimento se voltavam risonhos quando olhavam para o suporte.
—Eu não me preocuparia com seu irmão ou a senhorita Monley. As coisas nem sempre são o que parecem nestes assuntos. Os vê estupendamente juntos, não? Um bom casal.
Sim faziam um bom casal. Fleur era toda cortesia e elegância, alta e magra, com a pele de alabastro e o cabelo escuro. Os cachos caíam de um coque decorado com lacinhos, emoldurando seu rosto ovalado que levava no centro uma boca franzida como uma rosa. A Bianca parecia uma pessoa inteligente, de voz suave, cujos olhos marrons estavam atentos a todos os detalhes.
Bianca experimentou uma vaga decepção ao notar que Fleur não a desagradava instantaneamente, ao mesmo tempo em que sentia uma inexplicável pontada de melancolia cada vez que olhava ao grupo junto à lareira.
—Tenho medo de que Vergil esteja se sacrificando por sua fortuna — disse Charlotte— Parece contente de vê-la, mas tendo em conta que sua família deixou Londres há oito semanas e, entretanto, estiveram separados todo este tempo…
—Isso não sabe — disse a senhora Saint John— Pode ser que quando ele não está aqui nem em Londres vá visitá-la.
—Eu acredito que não. A maioria das vezes vai a seu imóvel de Lancashire. Diz a seus agentes, a Pen e a instrutora que vem ficar comigo onde podem encontrá-lo. Se não se tratasse de Vergil, qualquer um poderia suspeitar que vai visitar uma mulher ali. Alguém que ama, mas com quem não pode casar-se.
Bianca se meteu de repente na conversa olhando fixamente Charlotte com uma expressão triste.
—Sugerir isso é escandaloso.
—Tenho entendido que esse tipo de coisas é muito habitual. Pen inclusive me insinuou que devo esperar que meu marido tenha outras relações de vez em quando.
A senhora Saint John baixou as pálpebras.
—Acredito que muita gente foi indiscreta quando fala ao seu redor, Charlotte.
Bianca viu que a senhora Saint John não havia dito que Charlotte estava equivocada, ou que sua ignorância a tivesse levado a interpretar mal as palavras de Penelope.
—Bom, isso explicaria muitas coisas. Para começar aquilo. —Charlotte fez um gesto com a cabeça em direção ao suporte da lareira— A demora em anunciar o compromisso formal por outro. Com sua beleza e sua riqueza ela não tem por que estar o esperando. O estranho é que a Fleur não parece importar que as coisas estejam assim. É sua mãe quem se impacienta.
Sim, sua mãe estava se impacientando. Os olhos da senhora Monley eram os mais iluminados pelo fogo da lareira. Seguia a conversa de sua filha com um encantador sorriso e um movimento de cabeça que dava à pluma de seu turbante de seda e cordões um inquisitivo ângulo.
—A noite promete alongar-se. Deveria se retirar para descansar — disse uma voz masculina.
Bianca afastou sua atenção da lareira para ver que Daniel Saint John se uniu a elas e se dirigia a sua esposa. Aquele homem atrativo que podia deslizar rapidamente de uma passiva frieza a uma atenção intensa, enfocava esta agora no que mais o interessava.
—Daniel se mostra muito protetor comigo quando estou em estado — confessou Diane com um sorriso— Depois de dois filhos, querido, já não sou tão frágil.
—De todos os modos, é necessário que descanse. —Ofereceu-lhe a mão para acompanhá-la.
A Bianca não passou despercebido o olhar que trocaram. Ternura, humor e uma absoluta devoção fluíam nesse fugaz contato. Era como se anos de lembranças colorissem a forma em que viam um ao outro, e enriquecessem inclusive aquela comum troca.
Bianca voltou a dirigir o olhar à lareira e viu como o comportamento de Vergil e Fleur contrastava com o daquele outro casal.
O comentário de Charlotte teve para ela uma nova dimensão. Não havia necessidade de uma demonstração aberta de paixão e afeto. De uma maneira silenciosa que não implica o contato físico, um homem e uma mulher podem estar intimamente conectados.
Diane Saint John aceitou a sugestão de seu marido e se levantou.
—Suponho que um breve descanso pode ser uma boa ideia. —Juntos, sem falar, mas dizendo-se muito, dirigiram-se para o salão.
A atividade do vestíbulo anunciava a chegada de outro carro.
—Por fim o último. —Charlotte ficou em pé— Este deve ser o da senhora Gaston. É uma das amigas de Pen e uma grande mecenas das artes. Apoiou Pen quando outros a abandonaram após sua separação. Acredito que Pen a convidou pensando em você, por sua carreira de cantora.
Bianca e Charlotte seguiram Penelope e Vergil para receber à nova convidada.
A senhora Gaston tinha vindo em uma grande carruagem. Pen se adiantou estendendo os braços para lhe dar a bem-vinda.
—Que amável por sua parte fazer um encaixe para vir a nossa pequena festa.
A senhora Gaston era uma bela mulher de sorriso encantador, maçãs do rosto marcadas e um cabelo castanho acobreado. Movia-se com uma orgulhosa elegância, levava um casaco com um exótico estampado e um chapéu com plumas extravagantes.
—É você a que foi amável ao me dar uma oportunidade para escapar da cidade durante uns dias. Entretanto, temo que dei um passo em falso e devo pedir sua indulgência por isso.
—Um passo em falso? Você? Nunca.
—Infelizmente sim. Trouxe uma amiga comigo.
—Quando lhe escrevi disse que seus amigos seriam bem-vindos.
—Sim, fez. Normalmente no caso de trazer alguém eu teria escrito para lhe avisar. Mas esta amiga chegou à cidade inesperadamente.
Um lacaio se aproximou até a porta aberta da carruagem. Uma mão enluvada e uma manga na moda apareceu. Uma cabeça escura de elegante penteado e chapéu se agachou enquanto a amiga em questão inclinava seu corpo para descer.
—Maria — exclamou Pen, abraçando a escultural figura envolta em musselina azul pálida— Ninguém sabia que viria nos visitar este ano. É uma surpresa maravilhosa para mim.
O rosto da mulher não era formoso, com suas feições muito marcadas, mas sua forma de comportar-se transmitia uma sólida dignidade e inspirava confiança.
—Foi uma decisão impulsiva por minha parte, querida minha. Milão é horrível com o calor. Meus músicos estão se comportando como meninos mimados, e o tenor para a próxima produção é um jovem idiota e arrogante que não se deixa dirigir. Simplesmente deixei a todos. Vamos ver como as arrumam sem Catalani.
—Oh, Deus, que sorte — sussurrou Charlotte a Bianca— Sabe quem é?
Bianca sabia. A mais importante cantora de ópera da Inglaterra, Maria Catalani, retornou da Itália há seis anos e agora dirigia uma companhia de ópera em Milão.
Que maravilhoso golpe de sorte. Com a senhora Gaston e Catalani ali, aquela festa prometia ser enormemente mais interessante do que esperava.
Vergil se adiantou para saudar Catalani, beijando sua mão de maneira lisonjeadora. Ela disse algo em voz baixa e seu rosto se iluminou com um sorriso.
Se a visita inesperada de uma cantora de ópera afligia Laclere, este não o demonstrou. Provavelmente trataria do assunto com Penelope mais tarde.
Penelope conduziu seus novos convidados ao interior da casa.
A Bianca tremia os joelhos pela emoção.
—Esta deve ser Charlotte. Já parece uma jovenzinha, encantadora — disse Catalani— Já teve sua estréia em sociedade?
—No próximo ano — explicou Pen— Vergil não aprova que nestes dias as garotas se apresentem a uma idade tão jovem.
Catalani olhou para trás ao visconde que as seguia e franziu os lábios com picardia.
—Um bom estratagema, e será muito efetiva. Deixemos que tenham que esperar por um diamante assim. Será a sensação da temporada, Charlotte. Predigo que seus irmãos necessitarão lacaios extras para vigiar as paredes do jardim.
Pen atraiu Catalani até Bianca.
—Esta é Bianca Kenwood, de Baltimore. É a pupila de Vergil.
—Nunca tive o prazer de visitar seu país. Temos que falar. Tenho muitas perguntas a fazer.
—E eu também tenho perguntas para você. Visitarei a Itália muito em breve.
—Está planejando uma grande viagem para sua irmã e sua pupila, lorde Laclere? —perguntou Catalani enquanto Pen a conduzia para o interior da casa— Necessitará dez lacaios extras então, se envia duas belezas como estas a meu país.
Bianca se apressou a alcançar Charlotte, atônita pelo curso dos acontecimentos. Essa festa prometia ser o ponto culminante de sua estadia na Inglaterra.
—Por hoje já estão todos os convidados — explicou Charlotte— Pen disse que o senhor Witherby escreveu dizendo que chegaria amanhã pela manhã. Vamos descansar um momento antes de jantar.
Bianca decidiu não fazê-lo a menos que ficasse claro que Catalani também se retirava. Esperou até que a imponente mulher subisse a escada flutuando com Penelope a seu lado.
Ficou sozinha de pé no vestíbulo vazio, sabendo que seria totalmente impossível descansar. Procurando alguma forma de aliviar sua ansiedade, entrou na biblioteca, encontrou o volume de poemas de Shelley que tinha estado lendo e se amassou em um divã encarado uma janela.
Aquele era seu lugar favorito para ler, especialmente pelas tardes. Uma luz tênue penetrava através da janela acompanhada de uma suave brisa. Ninguém podia vê-la ali a menos que se aproximasse do divã. Aquele tinha se convertido em um de seus poucos cantos privados.
Ouviu-se o ruído de passos de alguém que entrava na estadia. Ela se incorporou um pouco para ver de quem se tratava. Dante a reconheceu e caminhou para ela; levava seu chapéu e o látego de montar. Sentou-se em uma poltrona, frente a ela e esticou as pernas; também levava botas.
—Chegaram todos? —desapareceu de casa depois da chegada de Fleur.
—Todos menos o senhor Witherby.
—Surpreende-me que se atrase. Esperava que quisesse aproveitar cada momento para seduzir minha irmã.
—Charlotte?
—Pen. Converteu-se em um amigo muito especial para ela durante o último ano. Ou ao menos ele pensa que assim é. Não sei que ideia tem Pen a respeito, embora pareça desfrutar de sua companhia. Estou seguro de que é por isso que o convidou, apesar de que também é um velho amigo de Vergil.
A frase «amigo muito especial» aludia a algo mais que a uma mera relação de companheirismo. Dante frequentemente se despistava e falava daquela maneira tão familiar, como se compartilhassem alguma compreensão do mundo. Aquele tom de conspiração implicava um tipo de intimidade.
Ele vadiava com ar despreocupado, olhando-a por debaixo das grossas pestanas desse modo que sempre a fazia sentir-se tão incômoda. Sempre estavam a sós quando a olhava dessa forma.
—Maria Catalani acaba de chegar com a senhora Gaston. Foi uma surpresa para todos —disse ela.
Aquilo pegou sua atenção.
—A senhora Gaston está aqui? Deveria ter perguntado a Pen a quem esperava receber antes de aceitar ficar.
—Não te cai bem?
—É por pura insistência que conseguiu introduzir-se em muitos círculos. Vê a si mesma como uma grande patrocinadora de artistas e quer que todos saibam como promove suas corridas.
—Faz? Promove corridas?
Ele deu de ombros.
—Não saberia lhe dizer isso. Os círculos artísticos de Pen não me interessam muito, e parece que isso é o que temos aqui. A senhora Gaston e Catalani, diz. Lorde Calne é outro patrocinador das artes. Cornell Witherby será uma boa companhia, ao menos, apesar de que com os outros que há aqui provavelmente só falará de sua poesia. Espero que Vergil o distraia com outras coisas.
—Crê que Vergil permitirá que Catalani fique?
—Por que não ia fazê-lo?
—Isso pensei, possivelmente, com Fleur aqui e Charlotte e…
Seu comentário o deixou preocupado.
—Esta é a festa de Pen, e meu irmão sabe o que isso significa. Vergil pode ser um santo, mas nunca se comporta de um modo rude. Por outro lado, Catalani tem suficiente poder para ocultar os meios pelos que conseguiu sua fama. —levantou-se— Acredito que darei um passeio. Será uma honra se me acompanhar. Te mostrarei as ruínas.
Bianca já tinha encontrado as ruínas medievais que se conservavam no parque Laclere, e não queria as visitar sozinha com um mulherengo. E menos ainda com um que naquele momento a olhava com esse brilho nos olhos.
—Obrigado, mas acredito que continuarei um bom momento lendo.
Uma repentina irritação alterou sua expressão. Para sua surpresa ele se aproximou e acariciou sua mandíbula com um dedo.
—Não tem que ter medo de mim Bianca.
Ela se tornou para trás ante seu gesto.
—Seu irmão diz que aqui não é habitual dirigir-se a uma mulher de um modo tão familiar.
—Eu não sou meu irmão.
Não, não era. A última semana ela tinha sido o centro da atenção desse jovem. Tinha tentado desanimá-lo. Ao que parecia sem êxito.
Sua mão a tocou outra vez, sustentando seu queixo. Os olhos de Bianca se alargaram com incredulidade quando ele inclinou sua cabeça para cima, aproximou a sua e lhe deu um beijo nos lábios. Aconteceu tão rápido que a impressão lhe fez ficar completamente imóvel.
Ele a interpretou mal. inclinou-se para ela e a beijou profundamente, ao tempo que a abraçava.
Ela se separou dele e o lançou contra a janela com uma assombrosa fúria. Raivosa e envergonhada o enfrentou.
—Não se atreva a voltar a fazer isso.
Ele se levantou.
—Minhas desculpas. Deveria ter te pedido primeiro permissão.
—Não o teria obtido.
—Eu acredito que sim.
—Interpreta mal nossa amizade.
—Não acredito. Está assustada e confusa, e isso é normal para alguém tão inocente. Não voltarei a te beijar sem sua permissão, mas quando lhe pedir isso me dará isso.
Ela andava a provas procurando uma resposta mordaz. Ele sorriu com uma confiança em si mesmo que resultava insofrível e saiu da estadia.
Ela voltou a afundar-se no divã, levantou as pernas e se encolheu em seu canto. O que teria feito pensar a aquele patife que ela reagiria bem ante semelhante coisa? Teria ouvido algo a respeito de seus espetáculos em Londres? Até onde ela sabia, tinha ido a um.
Que sorte para ela que o irmão equivocado tivesse concluído que ela era um pouco selvagem e descuidada com o decoro.
***
—Se escondendo das obrigações de sua condição? —perguntou Dante ao entrar no escritório onde Vergil se achava lendo sua correspondência.
—Tomando um descanso porque se seguir sorrindo durante mais tempo meus lábios vão se romper.
—Tampouco está tão mal. Convidou Witherby e Saint John, assim poderá se divertir.
Vergil estava agradecido de que Pen tivesse convidado Daniel e Diane Saint John. Não os via há meses. Eram também amigos de Pen.
Ela tinha amizade com Diane Saint John quando a jovem acabava de chegar a Londres, e desempenhou um papel nos dramáticos acontecimentos que precederam o casamento de Diane com o magnata de uma companhia naval.
Quanto a Witherby, Vergil suspeitava que Pen o convidasse por razões que nada tinham a ver com que ele se divertisse.
Dante vadiava apoiado contra o marco da janela e, distraidamente, deixava cair a bolinha de chumbo sobre as rampas do brinquedo.
—Fleur está tão encantadora como sempre. Podemos esperar que anunciem seu compromisso uma noite destas depois do jantar?
—Não acredito.
—Já é hora, Verg.
—Dentre todas as pessoas que poderiam me dar lições, Dante, você seria o último. Minhas responsabilidades com os membros atuais desta família pesam mais que qualquer responsabilidade que pudesse ter respeito a membros futuros.
—Está me dizendo que resultamos tão caros que não pode te permitir uma esposa?
—Estou dizendo que qualquer mulher que se case comigo terá certas expectativas que neste momento não estou em condições de cumprir. O qual nos conduz ao assunto de seu próprio matrimônio, que será um alívio significativo para nossas cargas financeiras. Devolvo-te a pergunta. Devemos esperar uma notícia? Recordo um jovem cheio de confiança em si mesmo dizendo com presunção que uma semana bastaria.
—Maldita seja, estas coisas levam seu tempo. Além disso, ela é… Difícil de entender.
Levou uma cadeira junto ao escritório e se sentou à mesma altura que seu irmão do outro lado, com as pernas cruzadas, apoiando o braço sobre a mesa e deixando descansar sobre este a cabeça. Era a pose que Dante adotava quando queria falar «de homem a homem».
Dado que o tema de conversa era Bianca Kenwood, Vergil teria desejado economizar as confidências. Bianca constantemente penetrava em seus pensamentos, e a última noite, depois de sua volta a Laclere Park, surpreendeu-se rondando o salão entre as damas até que ela se retirou.
—Às vezes penso que ganhei terreno só para acabar por me dar conta de que era uma ilusão. Ela parece muito quente uma manhã, mas pela tarde a vejo ser igualmente calorosa com um criado. Posa esses grandes olhos azuis em mim e penso que deveria lhe propor matrimônio naquele mesmo momento, mas depois me ignora durante toda a hora seguinte. Às vezes penso que estou tratando com uma garota tão ignorante que nem sequer nota meu interesse, e outras vezes…
—Outras vezes?
—Outras vezes me pergunto se é tudo menos ignorante e se não está me tratando como um brinquedo. Me perdoe, mas estamos falando sem disfarces.
—Você certamente sim.
—Pergunto-me se está sendo deliberadamente intrigante. Esquiva de um modo calculado.
—Soa-me como se lhe estivesse jogando a culpa de seu fracasso.
—Possivelmente. Mas há algo nela indefinível… Um ar, uma fragrância, não sei o que. A olho e vejo toda a inocência da primavera, e de repente me devolve o olhar e me encontro pensando que seria uma esplêndida amante. É uma combinação confusa e fascinante.
Assim Dante acabou percebendo aquilo que Vergil notou nessa primeira noite na sala de jogos, e muito frequentemente após.
—Confio em que não seja muito fascinante.
—É obvio que não. Mas deixa a um fora de jogo. Há uma arte na sedução, e conhecer a mulher é uma parte essencial.
—Sempre estou agradecido por suas instruções nessas matérias, Dante, mas vamos ao ponto. Se propuser matrimônio amanhã, acredita que aceitará?
—Maldita seja se sei.
Isso significava que provavelmente não.
—Sabe que está interessado por ela? Talvez interprete seus cuidados como uma amostra de simples amizade, uma mão amistosa em um país estranho.
—Agora já sabe.
—O que significa isso?
—Acabo de vê-la na biblioteca.
—Declarou suas intenções?
Dante olhou ao longe e Vergil instantaneamente soube que tinha expressado seus interesses com ações, e não com palavras.
Quase salta por cima do escritório para estrangulá-lo.
—Me deixe expressá-lo de outro modo. Sabe que suas intenções são honestas?
—De que outro modo poderiam ser? Ela é sua pupila.
Vergil esfregou o cenho.
—Bom, suponhamos que ela ouviu falar sobre você…
—De quem? Seria estranho que Pen fosse contando histórias.
—De outra pessoa. Um criado. Jane, sua empregada. Nigel Kenwood.
—Não viu Nigel mais que uma vez em toda a semana, quando Pen o convidou, e não estiveram a sós, assim que ele não pôde…
—De quem é Dante. Supondo que alguém contou algo. Se você não explicar que suas intenções são honestas, ela poderia pensar que a persegue por outras razões.
Dante se endireitou.
—Se for assim, fui insultado.
—De todos os modos…
—Não sou um descarado.
—Recomendo que esclareça as coisas. Se ela te interpretou mal, só conseguirá que a partir de agora te evite.
Dante se levantou e caminhou até a janela.
—É obvio, tem razão. Entretanto, se fizer uma proposta de matrimônio e me rechaça se acabou o jogo. Explicar minhas intenções, embora não seja pedir a mão, termina sendo o mesmo. As garotas têm estes caprichos, e um homem que as persegue apesar delas fica como um parvo. Estava sentado na biblioteca e me surpreendi perguntando isso acaso não é contraditório?
—O que diz não tem muito sentido.
—O que acontece se ela é realmente inocente, mas tem à outra dentro? O homem que conseguisse despertá-la estaria em uma posição muito poderosa a respeito dela. Se se tratar de chegar pelo caminho mais rápido, pois…
—Não.
—Não estou falando de nada desonroso, Vergil. Só um pequeno escarcéu que nos economizaria muito tempo.
—Não fará nada que possa comprometê-la nem remotamente.
—Está sendo pouco prático e se preocupa muito pelo decoro. A ideia foi tua, recorda? Se a comprometer, o matrimônio será inevitável.
Não era seu tão cacarejado sentido do decoro o que se rebelava contra as insinuações de Dante, a não ser algo mais visceral, algo que tinha a ver com um fervor incessante, o perfume de lavanda e uma voz melodiosa que tinha estado cantando em sua memória durante uma semana de viagem e obrigações. Ao menos ser um santo tinha suas vantagens. Não podia malograr seus planos, mas não permitiria que Dante estendesse uma armadilha à garota.
—Ganhar honestamente o afeto de uma mulher pode parecer um longo e tedioso esforço a um homem acostumado a aproveitar as paixões rápidas, Dante, mas se pretende consegui-la é o que terá que fazer.
—Ao menos alguém nesta família tem um pouco de paixão. Entre você e Milton…
Ante a menção do nome de seu irmão todo o corpo de Vergil se esticou.
—Acredito que deveria ser muito cuidadoso e não mencionar Milton e seu imprudente apetite na mesma frase.
O ressentimento escureceu o rosto de Dante.
—Continua me culpando de algo que não pude prever.
—Equivoca-se. Não te culpo. Não havia forma de que soubesse o que pretendia fazer. Mas não o coloque nestas discussões. Me insulte tudo o que queira, mas deixa nosso irmão e sua memória à margem deste assunto. Nada disso tem a ver com a senhorita Kenwood e sua forma de se comportar com ela.
—Ah, sim, a adorável Bianca. Está tão preocupado por ela que está te pondo muito sutil, Verg. Seu amparo é curiosamente seletivo e meio cego. Não permitirá que ninguém comprometa sua pupila, mas está disposto a consentir que se veja atada por toda vida a um homem que despreza.
Aquelas palavras deram no alvo por razões que Dante nunca saberia.
—Eu não te desprezo.
—Ah, não? Pode ser que não me culpe, mas jamais me perdoou.
Vergil viu dor naquele belo rosto que nunca se mostrava preocupado. Devia ter sido mais consciente do sentimento de culpa que a morte de Milton causou em Dante.
Era estranho que a discussão sobre uma garota que não tinha nada a ver com aquele episódio o tirasse do baú.
—Posso te fazer críticas sobre a forma em que vive sua vida, mas isso não reflete meus sentimentos com respeito ao rol que desempenhou sem te dar conta no desastre do ano passado. Não precisa ser perdoado por isso, Dante. A ignorância não é uma ofensa imperdoável. Se nunca falei disto contigo antes, não foi porque te jogue a culpa a não ser só porque não quero me lembrar daquilo. Entretanto, possivelmente minha reserva não tenha sido justa para você.
O rosto de Dante era uma imagem de tensa serenidade, mas seus olhos brilhavam.
—Eu estava aqui. Jantei com ele. Deveria ter visto…
—Estou agradecido que esteve com ele durante sua última hora. Acredito que ele também esteve.
O ar na estadia estava carregado com a crua intimidade que tinha nascido de uma franqueza inesperada. Caiu uma barreira invisível cuja existência Vergil jamais foi consciente. O abismo que se abriu entre eles após a morte de Milton foi superado, e tudo devido às conflitivas emoções que a presença de Bianca Kenwood criou naquela casa.
Olhou seu jovem irmão com novos olhos, e percebeu uma profundidade cuidadosamente disfarçada por aquele despreocupado libertino. Poderia ter homens piores para ela.
Dante sorriu com ironia e se dirigiu sem pressa até a porta.
—Farei a sua maneira, Verg. Será interessante, tentar inspirar um afeto casto nada mais que com insinuações. Mas me limita injustamente. Não posso jogar minha melhor carta. Depois de tudo, não tenho nada a oferecer à garota mais que o prazer.
Uma hora antes, Vergil teria estado de acordo.
Capítulo 6
Na manhã seguinte Vergil foi o primeiro a baixar à sala do café da manhã. Queria tomar o café da manhã sozinho antes que chegassem os convidados.
Acabava de se sentar ante seu prato quando um movimento junto à janela chamou sua atenção. O brilho verde e dourado de uma cabeça loira e uma figura esbelta desapareceram entre os arbustos.
Bianca Kenwood se levantou ao amanhecer.
Afastou a vista da janela com preocupação. Dante disse que ela só havia visto Nigel Kenwood uma vez, mas Dante não sabia nada a respeito das aventuras a alvorada de Bianca. Era possível que ela e Nigel levassem uma semana vendo-se em segredo.
Deixou que uma espessa cortina cobrisse a imagem que se formava em sua mente. Não havia nenhuma prova sólida de que estivesse se encontrando com seu primo. Ao mesmo tempo, qualquer que fosse seu propósito, o certo era que entrava alegremente no parque ao amanhecer apesar do perigo dos caçadores furtivos com o que teve que enfrentar naquele dia a cavalo. Aquele episódio teria bastado para que qualquer jovem normal desde aquele dia temesse aventurar-se a sair a menos que a acompanhasse meio exército.
Mas ela não era uma jovem normal.
Antes que o servissem o café da manhã, saiu ao jardim e se dirigiu para o caminho por onde ela entrou.
—Laclere.
Vergil se voltou para a voz que o chamava. Cornell Witherby se aproximou dele dando grandes pernadas através do caminho que conduzia ao estábulo.
Ao entrar no atalho, o dourado e o verde ficavam engolidos pela erva.
—Não me diga que cavalgou durante a noite, Witherby. —Vergil viu que o recém-chegado ia vestido com uma jaqueta marrom de montar e calças de cor parda clara. As botas pareciam novas e o cabelo loiro que aparecia sob seu chapéu tinha um corte moderno.
Witherby era muito belo e parecia estar com um humor estupendo.
—Cavalguei a maior parte do caminho ontem pela tarde e dormi em uma estalagem.
—Estava ansioso para chegar?
—A cidade se tornou ruidosa estes últimos dias. Há manifestações diariamente. Muitos arrestos. Me fará bem o ar do campo. A musa se volta irritável ante tantas distrações.
—Confio em que não se distraia aqui. O café da manhã te espera, mas deverá alimentar sua musa em solitário. Minha irmã ainda não se levantou para cumprir com seu papel de anfitriã.
Witherby esboçou um sorriso ao ouvir mencionar Penelope. Ele sabia que Vergil sabia suas intenções, e Vergil sabia que ele sabia, mas um homem não fala dessas coisas com o pretendente de sua irmã casada, nem sequer embora sejam velhos amigos.
—Ficará feliz em saber que a reunião é de artistas, como é de esperar com Pen — disse Vergil.
—As festas da condessa são sempre deliciosas. Espero que esta supere as outras.
Vergil decidiu não especular sobre quanto deleite poderia estar Witherby antecipando. Uma casa de campo grande e tranquila oferece todo tipo de oportunidades para a intimidade.
Com firmeza afastou esses pensamentos de sua mente.
—Está vestido para cavalgar — observou Witherby— Vou contigo.
—Primeiro um passeio, depois cavalgaremos. Vá e se instale com a maior comodidade que possa. Saint John está aqui, além disso, normalmente baixa cedo, assim não se aborrecerá muito tempo.
Dando pernadas alegres e calmas Witherby se dirigiu para a casa. Vergil esperou até perdê-lo de vista, depois deu a volta e prosseguiu em busca de Bianca.
Quando conseguiu divisá-la reduziu o passo para poder segui-la a uma distância prudente.
A seguia porque se preocupava com sua segurança, mas também devia admitir que queria saber se Nigel a esperava em algum lugar.
Quando tinha entrado mais de um quilômetro entre as árvores, ela tomou um atalho que ia para o oeste. Ele viu que se dirigia para as ruínas. Não era um bom sinal. O castelo medieval era um lugar ideal para um encontro de casal.
Ela já não estava à vista quando ele entrou entre a erva alta que rodeava as ruínas das mais antigas fortificações do parque Laclere. Da torre tinha sobrevivido meia armação, e só uma sessão das velhas ameias perdurava, muitas paredes vieram abaixo e outras se viam a ponto de desmoronar. Grandes pedras dispersas cobertas de más ervas deixavam claro que uma vez serviram como o muro de amparo. De toda a estrutura da muralha o único relativamente intacto era uma solitária torre quadrada.
O assaltaram nostálgicas lembranças da infância, como o do fácil vínculo que uma vez compartilhou com Dante, e que os segredos e a falta de cuidado quase destruíram. Esquadrinhou a paisagem em busca do rastro da senhorita Kenwood.
De repente um som apagado e doce flutuou através do silêncio da manhã. Elevava-se e baixava como uma suave onda no meio da brisa, enviando redemoinhos que o rodeavam. Ele o seguiu até a fonte de onde provinha na torre quadrada, e entrou através da soleira de pedras.
O som o afogou, elevando-se fora das paredes e a abóbada. Acima na câmara da sentinela, a senhorita Kenwood praticava suas escalas, e sua voz ganhava em volume com cada ascensão que repetia. Ele se deteve e ouviu a escala de repetições de alguém que afiava e esquentava sua voz.
Ela se interrompeu e ele a ouviu falar. A Nigel? O homem devia usar sua música para atraí-la até ali. Se assim era, não corria um perigo imediato. Ele duvidava que ela decidisse abandonar sua paixão original para dedicar-se a explorar outras justo agora.
O som emergiu de novo, baixando torrencialmente a escada. Agora não se tratava de escalas, mas sim de uma ária de Rossini.
A melodia o embargou. Precisa e disciplinada, tinha a textura da elaborada canção de um pássaro, empapava a mente, transbordava o coração e agitava os sentimentos do modo em que a melhor música sempre faz. Os sensuais matizes de sua voz alagaram o reservado esconderijo que ele esteve lutando para manter a salvo.
Quase de um modo involuntário, suas pernas o conduziram à escura escada, para a sereia que sem saber o atraía a uma borda proibida.
Ela estava de pé só na câmara, de costas a ele, emoldurada pelas linhas das paredes que se estreitavam para formar um teto abobadado. Nigel não estava. Não havia ninguém ali. Ela devia ter falado consigo mesma.
Ele apoiou o ombro contra o marco da entrada, para olhar e escutar. Desejava poder ver seu rosto, mas em sua memória ainda conservava a radiante expressão da que tinha sido testemunha aquele dia em que ela atuou no salão de música.
Não lutou contra suas reações. Teria sido incapaz de fazê-lo embora gostasse de fazer. Em lugar disso deixou que suas notas se elevassem em uma maré que fez desaparecer o mundo inteiro exceto essa paixão dela e seu próprio e atônito desejo.
A fazia sentir-se tão bem. Transportada. Gloriosa. Sua voz tomava o poder de seu corpo e dissolvia sua substância até que só o canto existia. As pedras enriqueciam o timbre como nenhuma sala poderia fazer. Ela desejava poder levar Catalani ali.
Terminou muito rápido, e ela, com pesar, sustentou a última nota mais do que a partitura requeria. Esta ficou pendurando por cima dela, gotejando como o néctar de uma gema no interior de seu espírito aberto.
E finalmente se extinguiu, deixando-a gasta e um pouco melancólica.
De repente notou que não estava sozinha. Temendo que Dante a tivesse seguido deu a volta com receio.
O visconde estava apoiado com ar despreocupado contra a entrada da câmara, com os braços cruzados sobre o peito, olhando-a. Estava muito bonito, e havia nele algo intenso apesar de sua pose despreocupada.
—Seguiu-me até aqui, tio Vergil? Para me espiar?
—Foi só para te proteger, mas sim, a segui.
—Estou segura de que não corro perigo no parque Laclere. Seus audazes caçadores furtivos devem ter se mudado ou mudado seus métodos de caça. Não houve disparos esta última semana.
—Se sabe isso, é porque deve ter vindo aqui frequentemente. Sempre para cantar?
A câmara tinha uma janela, não maior que a fenda de uma flecha. Ela se dirigiu para ali, afastando-se dele. As pedras aumentavam os matizes do tom de Vergil e isso a fez mostrar-se precavida. Seus olhos tinham uma expressão oculta que ela não podia ler. Sua presença a impressionava como se fosse perigosa. Era uma reação ridícula, mas não podia evitá-la.
Examinou a paisagem, evitando seu olhar fixo.
—Não aceito a situação que te faz pensar que tem direito de me interrogar. Sim, venho aqui frequentemente, geralmente em manhãs como esta. Encontrei esta torre um dia enquanto cavalgava. E sim, para cantar.
—Sozinha?
Ela o olhou por cima do ombro.
—Acaso acredita que marquei um encontro com Nigel aqui? Seguiu-me para me proteger de intenções desonestas? —A ideia lhe deu vontade de rir. Um amparo tão cuidadoso de sua virtude no campo enquanto seu próprio irmão a assaltava na biblioteca— Perdeu seu passeio a cavalo para nada. Não me ocorreu a ideia de usar esta torre para encontros desse tipo. Terei-o em mente para futuras ocasiões.
—Duvido que o faça. Não terá tempo para pôr em prática. Não a adverti antes, mas esta câmara afeta ao som do mesmo modo que as antigas Igrejas normandas. Qualquer que seja a potencial atração de seu primo, estas pedras têm mais.
—Possivelmente ele deva escutar. Como fez você.
Ele se separou da parede com um vago sorriso.
—Se o fizer, definitivamente necessitará amparo.
Caminhou para ela despreocupadamente. Ela sem se dar conta se afastou até a borda. Em realidade era uma tolice, mas aquele dia havia nele algo diferente. Algo fascinante, mas também desconcertante.
—Pen anunciou que cantará esta noite. Está ensaiando sua atuação, para se assegurar que estará nas melhores condições frente à Catalani?
—Sim.
—Falou um bom momento com ela ontem à noite. Um encontro tete a tete. Suponho que explicou seus planos.
—Não tem por que preocupar-se, não vou pôr nem você nem Pen em uma situação delicada. Ninguém mais me ouviu e acredito que ela sabe que é necessária a discrição entre os convidados de um visconde.
Ele continuava movendo-se, olhando ao redor do cômodo como se não tivesse estado ali em muito tempo. Ela sentia constantemente o impulso de partir longe.
—O que te aconselhou Catalani?
—Estava de acordo comigo em que se quero receber a melhor instrução devia ir a Itália, ou trazer um dos melhores professores aqui. Enquanto isso, deu-me o nome de um tutor com quem poderia trabalhar em Londres. Recomendou-me o senhor Bardi, que trabalha como professor do bel canto com alguns dos melhores cantores de Londres.
—Nenhum outro conselho? Não esperava que Catalani fosse tão reservada.
—Perguntou-me se entendia essa vida, se sabia o que implicava.
—E sabe?
—Sei que implica trabalho duro. Contínuas viagens. A necessidade de atuar apesar de estar cansada ou doente.
—Não é a isso a que ela se referia.
Seu rosto se acendeu.
—Sei a que se referia.
—Não acredito que saiba. Não de verdade. Duvido que tenha a mais remota ideia do que significa se converter em alguém que nenhuma mulher respeitável teria como amiga. Essa cantora de ópera pode visitar casas como esta, mas só há uma Catalani. Não será o mesmo para você. Não haverá nenhuma tia Edith na Inglaterra ou na Itália para te proteger das más línguas.
A irritação a fez ficar cravada no chão.
—Sei o que essa gente chamada decente pensa sobre essas mulheres. De fato vi muitos homens decentes aproximar-se de minha mãe às vezes. Quando cresci entendi o que queriam. Tratarei com eles como ela o fazia. Supõe-se que devo renunciar a algo importante para mim, essencial para mim, por culpa de preconceitos sem fundamento?
Ele continuava caminhando. Fazendo círculos e círculos. Se ele não fosse o proprietário de uma cidadela, se sua conduta não fosse tão despreocupada, ela teria sucumbido à sensação de estar sendo acossada. Por ser alto ele devia permanecer perto do centro do cômodo, e o círculo que desenhava parecia bastante menor agora que ela se achava justo no centro.
—Os preconceitos a respeito de muitas atrizes e cantoras estão muito bem fundados — disse ele, como se discutir sobre mulheres de má reputação fosse um tema perfeitamente aceitável.
—A vida dessas mulheres é muito insegura, e eu suponho que muitas artistas precisam aceitar o amparo que lhes oferecem.
—Você acredita que é o desespero o que faz que essas mulheres se convertam em amantes e cortesãs, e que sua herança te salvará? Seu julgamento é mais duro que o meu. Eu assumo que é a solidão. Um matrimônio decente é quase impossível. Haverá quem esteja disposto, mas ninguém a quem você seja capaz de amar.
Aquela conversa tão delicada se tornou de repente pessoal.
—Sei. Entretanto, há coisas que valem sacrifícios.
—Uma vida inteira de sacrifícios? Pensa isso agora, mas e dentro de dez anos? E de quinze? Sem casar, sem filhos, sem lar. Entendo que é mais triste que escandaloso que para a maioria dessas mulheres o dia começa quando alguém lhes oferece algo parecido ao amor e o agarram. Não importa o que decidam quando começam, depois de um período virtuoso, uma solidão antinatural, a escolha é virtualmente inevitável.
—Como se atreve a prognosticar um futuro tão desolado e sórdido para mim? É muito cínico ao afirmar que se perseguir minha carreira de cantora, estarei predestinada a me afundar. Embora tampouco veja por que se importa tanto.
Ele se deteve e se afastou uns passos.
—Sou responsável por você.
—E por isso se mete em minha vida, para me proteger de mim mesma. Durante dez meses.
—Mais. Se puder achar a maneira.
«Mais!»
—Não se atreva a tentar me impor mais obstáculos. Não o tolerarei.
—Sua decisão me deixa pouca escolha. Deve acreditar que pode viver como uma monja, mas duvido que possa fazer isso indefinidamente.
—Suas implicações são tão insultantes como escandalosas.
—Não são insultantes absolutamente. E escandalosas só se acabar por te converter na amante de um homem em lugar de na esposa de um homem.
—Cruzou a linha, cavalheiro. É impróprio que me fale dessa forma, inclusive sendo meu protetor.
Vergil inclinou a cabeça e um sorriso sarcástico bateu as asas brevemente em seus lábios.
—Cruzei a linha? É bastante provável. Surpreendo a mim mesmo. — Olhou a seu redor como se de repente se desse conta de onde estavam. —Terminou ou pretende seguir praticando?
—Quero ensaiar a ária uma vez mais. Voltarei para casa em seguida.
—Esperarei e te acompanharei de volta.
Apoiou-se outra vez contra a parede, em uma pose de relaxada paciência. Ela notou um acanhamento peculiar.
Ela se dispôs a dar volta, mas ele negou com a cabeça.
—Se não puder praticar com um homem te olhando, como atuará em um teatro que esteja cheio deles?
«Porque isso é diferente.» Parecia uma resposta irracional, mas era diferente. O foco de dois olhos, desses dois olhos, incomodava-a mais que um oceano de rostos. A atenção de uma pessoa, dessa pessoa, agitava-a mais que uma sala de concertos cheia a transbordar. Se ao menos outra pessoa estivesse presente, isso teria servido para diluir essa conexão singular. Depois de tudo, ele esteve no salão de música e ela não reagiu assim.
Ela afastou seu olhar e tentou apagar a consciência dele, mas não funcionou. A ária começou fracamente, como se o ar encontrasse um obstáculo ao passar através de sua garganta. A obstrução fez que seu coração palpitasse nervosamente. Estúpido. Estúpido. Recuperou certa calma graças ao ressentimento por sua intrusão e encontrou seu caminho.
A música se encarregou do resto. A concentração na técnica e a expressão a absorveram. O regozijo a transportou. Entretanto, não foi como a última vez. Outro espírito se unia a ela naquela viagem, seguindo-a, empurrando-a, abrangendo-a. Ao seguir com a canção não pôde resistir a olhá-lo. Ele esperava de um modo indiferente, olhando para baixo, um homem oferecendo educadamente seu tempo antes de passar a dedicar-se a outras coisas mais importantes.
Ele notou sua atenção. Elevou seu olhar e encontrou com o dela. Ela quase se quebra em um abrupto silêncio. Os olhos dele resultavam mais desconcertantes que de costume. Sua expressão profundamente cálida, sutilmente selvagem e claramente masculina não tinha nada de paternal ou distante, e muito menos de protetora.
Deus santo foi seu canto o que tinha provocado isso?
Apesar de seu desconcerto inicial, uma surpreendente emoção a atravessou como um raio. Em lugar de vacilar sua voz remontou voo. Não podia afastar a vista dele e a ária criava entre eles uma provocadora união. Espiritual. Sensual. Quase erótica.
Um instinto de alarme a sacudiu, apesar de que uma embriagadora sensação de poder crescia. A euforia se transformava em algo inegavelmente físico entre sua fascinante conexão.
Ela não poderia ter se detido embora tivesse querido. Emoções desconhecidas impulsionavam sua voz com novas paixões. Fechou os olhos ao final, mais para conter as sensações que para saboreá-lo. As pedras sustentaram os últimos sons como o silencioso eco de um longo pulsar do coração.
Não queria abrir os olhos. Ali ocorreu algo que não queria saber, algo que não implicava palavras nem tato, mas que era mais indecoroso que o beijo de Dante. Ele devia saber. Ela devia ter parado. Não queria olhá-lo até que aquela terrível falta de fôlego se aplacou.
Uma brisa cálida a fez abrir um pouco as pálpebras e viu umas botas limpas perto de sua saia. Uma mão dele, magra e forte, tomou a sua, a levou até os lábios e lhe deu um beijo veloz.
—Seu canto é nada menos que magnífico senhorita Kenwood. Catalani ficará impressionada esta noite.
Ela teve que olhá-lo. Ele fez um gesto formal assinalando a escada. Sua expressão recuperou seu habitual autodomínio e altivez, mas a outra seguia ali, como se o manto de reserva com que ele a cobriu fosse transparente.
Guiou-a pelo caminho, dando sua mão para baixar as tortuosas rochas, uma cuidadosa representação de uma imparcial e cortês preocupação. Enquanto davam a volta ao longo da parede para chegar até o atalho, ele se deteve e elevou a vista até as ameias.
—É muito pitoresco — disse ela, esperando que um pequeno bate-papo servisse para vencer aquela estranha sensação que parecia instalada.
—Meu pai considerou a possibilidade de restaurá-lo e reconstruí-lo. Mas finalmente, em lugar disso decidiu remodelar a casa. Isto teria custado três fortunas em lugar de uma, e o resultado teria sido uma moradia apenas habitável.
—Acredito que é mais bonito tal e como está, aos pedaços e com retalhos de história aparecendo entre os arbustos. Seria uma tolice reconstruí-lo completamente e com cimento novo.
—Estávamos acostumados a brincar aqui de meninos. Dante e eu éramos os cavalheiros, e obrigávamos Pen a interpretar o papel da dama prisioneira por um malvado guardião. —Um amplo sorriso apareceu ao dizê-lo— Você pode interpretar esse papel agora.
A pequena trama que contou podia tê-la ajudado a reduzir a percepção de tê-lo de pé junto a ela, mas simplesmente não era capaz de responder com o mesmo tom.
—Brincava também seu irmão mais velho com vocês?
—Quando éramos muito jovens sim o fazia. Depois cresceu e nos deixou para trás, suponho. —Seu olhar às ameias se voltou reflexivo— Quando se fez maior se refugiou em seus próprios interesses, e em sua própria mente. Quando começou a ir à universidade já era um estranho.
—É por isso que agora quer ler suas cartas? Para conhecer coisas dele que não te permitiu conhecer enquanto vivia?
De repente moveu a cabeça e lhe dirigiu um estranho olhar, como se ela o tivesse surpreendido.
—Suponho que sim, em parte.
Sua atenção se separou das emoções para voltar a centrar-se na torre outra vez. Ela se obrigou a afastar o olhar, para a parede.
—Eu gostaria de explorar o torreão algum dia.
—Não recomendo isso. Há anos é perigoso. O passeio pela muralha também é. Não havia tantas pedras espalhadas pelo chão quando era menino.
Para enfatizar sua afirmação, uma pedra do tamanho de um punho caiu ao chão, aterrissando justo aos seus pés. Vergil olhou para cima franzindo o cenho, esquadrinhando com seus olhos as ameias. Bianca deu a volta para afastar-se.
Um ruído sinistro se ouviu acima. Outra pedra caiu, golpeando o ombro de Bianca.
De repente tudo se fazia impreciso. Ele a pegou pelo braço para afastá-la, fazendo-a apoiar-se contra a parede. Ela comprovou que se achava imobilizada, entre uma pedra dura e um corpo duro também, com os ombros abraçados por uns braços que a cobriam, seu rosto escondido contra o pescoço dele e sua cabeça apertada contra a sua. Sua vista quase já tinha se endireitado quando uma avalanche letal de grandes rochas caiu ante eles, uma delas ricocheteou sobre suas cabeças antes de cair ao chão roçando as costas de Vergil.
Ela olhou horrorizada a chuva de morte e se encolheu dentro de seu refúgio. Pareceu transcorrer uma eternidade antes que os chiados e estrondos cessassem.
Vergil elevou a cabeça para examinar a parte superior do muro.
—Toda uma parte das ameias veio abaixo.
—Uma lição apropriada para evitar o encontro com estas ruínas no futuro. Quem imaginava que a tranquila Laclere Park podia ser tão perigoso?
Ela falou presa do nervosismo apoiada contra seu lenço. O tecido azul de seu casaco acariciava suas bochechas e seus dedos descansavam na seda bordada de rosas de seu colete cinza. A comoção a colocou em um estado de alerta extremamente sensível e uma parte de sua mente, de maneira absurda, contemplava a variedade de texturas de seus objetos. E a maravilhosa segurança que proporcionava seus braços. E sua masculina fragrância.
—É possível que meu canto tenha ocasionado isto?
—O mais provável é que a gravidade tenha rematado o que o tempo iniciou. De todos os modos, as possibilidades de presenciar algo assim são mínimas. Possivelmente sua voz acrescentasse um empurrão. —Inclinou a cabeça para ver seu rosto— Está ferida?
—Acredito que não.
Uma mão deslizou ao longo de suas costas para apertá-lo brandamente no ombro.
—E aqui dói?
—Está um pouco dolorido. Mas o mais provável é que só tenha um arranhão.
Ele não a soltou. Com uma mão ainda a envolvia e a outra descansava cuidadosamente em seu braço debaixo do ombro ferido. Sentir-se protegida por sua força a tranquilizava muito.
—Isto é mais ou menos o que disse depois que o cavalo te lançou ao chão. Supõe-se que deveria desmaiar ao enfrentar tanto perigo.
Ela sabia que ele não se referia às rochas, nem aos caçadores furtivos, a não ser à proximidade física que ambos os episódios favoreceram.
Sua advertência soou tão clara como uma sereia junto a seu ouvido. Mas não pôde lhe fazer caso. Sua masculinidade a fazia sentir-se pequena e indefesa de um modo deliciosamente pecaminoso.
Ela levantou a vista para seus reflexivos olhos.
—Eu nunca desmaio.
Voltou a ver nele aquela expressão que tinha quando se achavam no cômodo de pedra, enchendo-a de maravilhosas palpitações. A mão que tinha sobre seu braço deslizou para seu ombro, para voltar a baixar.
—Não desmaia? Nunca?
Ela voltou a sentir a lenta carícia. A suave fricção criou um murmúrio de sensações. Dentro dela. Através dela. Aquela ária havia a tornado vulnerável, e o medo tinha arrebatado seu habitual autodomínio.
Devia fazer algum comentário malicioso para acabar com esse pequeno jogo, mas só queria que aqueles dedos voltassem a deslizar sobre seu braço.
—Nunca.
—Todas as garotas deveriam desmaiar ao menos uma vez.
A mão a acariciou para cima e não baixou. Foi uma lenta carícia. Delicada sobre seu ombro, quente ao passar por seu pescoço, suave em sua bochecha, firme entre seu cabelo.
Ela quase se derrete quando ele inclinou a cabeça e a beijou nos lábios.
Lábios quentes. Firmes e controlados como tudo nele. Pausados. Comedidos, mas decididos. Ele roçou sua boca com carícias antes de passar a um jogo mais sedutor. Sutis beliscões fizeram que seu lábio inferior pulsasse e tremesse. As estocadas de uma língua diabólica enviaram espetadas dispersas através de seu rosto e seu pescoço. A sensibilidade de seus seios despertou e ela instintivamente o abraçou, procurando o contato que sua profunda ternura reclamava.
Ele a apertou para senti-la mais perto e a olhou de um modo tenso e cheio de avaliação. Da garganta dela escapou um suspiro ao sentir a pressão em seu peito. Beijando-a com feroz rendição, arrastou-a até a soleira da torre, entre a luz salpicada e as pedras frias.
Apoiou-se contra a parede e a atraiu contra seu corpo em meio de um torvelinho. Seus braços a rodearam e a dominaram, segurando-a firmemente contra seu corpo e os encantos de sua boca. Beijos febris assaltaram seu pescoço e suas orelhas, despertando um frenético e insistente anseio. Seus lábios seduziram os dela abrindo-os para uma investigação interna de escandalosa intimidade.
Ela se agarrou a ele e se rendeu tonta pelas extraordinárias sensações, elevando-se impotente em meio de uma euforia em que tudo se voltava impreciso.
Era tão agradável. Glorioso. Transcendente. A exaltação de seu canto feito física. O poder e potencial da última ária convertido em substância.
Aqui. Agora. Sim. Com uma voz inaudível seu sangue estalava em demandas entre seus ofegos. Aqui. Agora. Perfeito. Escandalosos batimentos de seu corpo se uniam ao canto. Inclusive sua mente, a parte que deveria conhecer melhor, repetia uma litania de escandalosos impulsos. Suas mãos deslizaram descaradamente sob a jaqueta dele para acariciar e agarrar seus lados e suas costas.
Algo se esticou dentro dele. Ela notou uma mudança perigosa e soube que seu gesto funcionou como algum tipo de afirmação. Os braços dele a acariciaram de uma forma possessiva e seu corpo arqueado se esticou com um impulso indecente. Suas mãos começaram uma exploração através de suas anáguas e ali ficaram. Sua imperiosa paixão e o lugar para onde ele se aventurava deveria assustá-la, mas a excitação só a permitia lamentar que a quantidade de roupa se interpusesse separando-os e inibindo-os.
«Sim. Quero… Quero…» Não sabia o que. Uma fome urgente pulsava através dela, com uma origem e um destino que não entendia. «Mais perto. Mais. Eu quero…»
Como se ele tivesse ouvido seu rogo silencioso, sua mão deslizou sobre sua cintura. Mantendo o polegar em seu estômago e os outros dedos em suas costas acariciaram para cima a bandagem de seu vestido. A desejada expectativa reduziu a respiração dela a uma série de inalações entrecortadas. Um beijo surpreendentemente suave acompanhou o gesto de sua mão para seus seios.
«Oh… Oh.» As deliciosas sensações que sua carícia provocou a deixou aturdida. Atravessaram-na e fluíram através dela, unindo-se aos estímulos provocados pelos crescentes beijos que lhe dava no pescoço e os assaltos a sua boca, que obscureciam sua mente. Deu e recebeu prazer a seu desejo, e o corpo dela, afligido e sem forças só podia aceitá-lo e submeter-se, muito ignorante para oferecer mais que consentimento ao ardor que ambos liberavam e subjugavam.
Os dedos brincavam com o tecido que cobria seus mamilos, duros e ardentes… «Sim…» Procurando agora o babado de seu decote… «Por favor…» Deslizando sob o tecido para explorar o novo desenfreio da pele contra a pele… «Ah, sim…» Seus braços a atraíram mais perto, com mais dureza, e um joelho dele pressionou entre as anáguas e a saia, a pressão foi vergonhosamente bem recebida… «Oh… Céus…» O vestido começou a soltar-se enquanto o corpo da manga deslizava pelo braço e uma mão elevava seu seio nu para uma cabeça morena… «Oh…» Ele o acolheu na umidade de sua boca e com seus quentes lábios iniciou um tortuoso percurso desde umas suaves mordidas até… «Oh…» Uns lamentos escandalosamente excitantes… «Oh…» Deliciosas correntes de prazer desceram por seus poros, enchendo-a, exigindo mais…
…Um movimento, um fraco rangido, ressoou entre as pedras.
Ele se endireitou bruscamente, cobrindo a nudez dela com seu peito, rodeando-a com seus braços para protegê-la enquanto escutava atento. O possível significado daqueles sons abriu passo através dos aturdidos sentidos de Bianca, destruindo o mundo de sensuais sonhos e fazendo-a voltar sem piedade para a realidade.
—Há alguém…? —sussurrou, apertando os dentes contra o lento desdobramento de sua excitação física. Ainda podia ouvir algo, era mais a vibração transportada através do muro que um som real. Incomodava como uma invasão entre os batimentos de seus corações.
Subiu a alça da blusa e a manga do vestido, logo a afastou.
—Fique aqui.
Caminhou a grandes pernadas até a torre. Ela lutou freneticamente contra seus objetos, conseguindo com muita dificuldade recompor seu vestido, experimentando a severa culpa de um criminoso surpreendido no ato do delito. Um abismo se abriu em seu coração.
Se alguém os visse, seria desastroso.
Podia ouvi-lo caminhando ao redor. O largo abismo se converteu em um enjoo, um imenso vazio. Cobrou consciência de seu comportamento como se recebesse um golpe. Aquilo tinha sido uma loucura. Ela tinha atuado de forma desavergonhada. Eles nem sequer se gostavam.
Ouviu-o voltar e tentou fortalecer seu ânimo.
Apareceu ante a soleira, uma forma magra e escura rodeada de luz. Ela não podia ver bem seu rosto.
—Se havia alguém aqui, já se foi. Deve ter sido tão somente um animal.
Ela rezou para que assim fosse, e esperava que se alguém veio da casa para explorar o torreão, não tinha esquadrinhado de perto a entrada da torre.
Ofereceu a mão em um gesto enérgico para fazê-la seguir. Ela se perguntava o que se suporia que deveria fazer ou dizer uma mulher depois de um comportamento tão descarado, e sentiu quase náuseas ante tanta confusão e vergonha. Empreenderam o caminho de volta para casa.
Ele não disse uma palavra. Para ela foi o quilômetro mais longo que já caminhou em sua vida.
Tentou achar consolo na ideia de que tinha demonstrado que era muito perigosa para estar perto de Charlotte, mas a ideia de abandonar Laclere Park estranhamente incrementou sua consternação.
Ele se deteve ante as árvores próximas ao estábulo.
—Faltam-me as palavras, senhorita Kenwood. Meu comportamento foi abominável, e me desculpar não é suficiente. Prometo que não tenho o costume de pressionar às mulheres jovens desta forma. A única explicação que posso dar é que não era eu mesmo esta manhã.
«Não o foi?» de repente o que ocorreu não resultava tão surpreendente tratando-se desse homem. Pareceu que o acontecido era uma consequência natural de seu caráter, um pouco controlado, mas que sempre estava ali, como uma corrente subterrânea sob a calma, uma corrente percebida, mas nunca vista e impossível de nomear. Esta produziu tensão entre eles desde o começo, como uma maré perigosa. Ela havia sentido seus efeitos, mas até hoje não os tinha entendido.
Ele seguia com os olhos sobre o atalho, sem olhá-la. Com suas palavras assumia a culpa, mas ela se perguntou o que pensaria realmente. Que demonstrou que não podia viver como uma monja? Que sua natureza era a de uma cortesã e ele deveria permitir que conseguisse a ruína que procurava? «Pressionar» não descrevia realmente o que ocorreu e os dois sabiam.
—Não fui prejudicada.
—Se nos vissem, definitivamente sim seria prejudicada.
—Eu não acredito que nos viram. Se alguém se aproximasse da entrada da torre, teríamos percebido.
—Se tivesse razão, isso só evitaria as piores das possíveis repercussões. Não pode negar que minhas ações foram indesculpáveis e desonestas, sobre tudo porque sou responsável por você. A comprometi, e não importa se alguém sabe ou não. Se você o exigir, farei o correto contigo.
—O correto? Quer dizer… Oh, não, essa é uma ideia absurda.
—Certamente promete ser uma ideia complicada, considerando… Bom… Enfim, complicada. De todos os modos…
—Não nos deixemos levar por seu senso de decoro e de dever, por favor. Não me sinto comprometida, nem arruinada.
Depois de dizer isto recebeu um severo olhar.
—Ah, não? É uma jovem extraordinariamente serena.
Aí estava. A insinuação de indecorosa cumplicidade por sua parte. Em realidade o animou, se a pessoa quisesse olhar as coisas com franqueza. Aquele olhar e aquela pergunta revelavam o que ele tinha em mente, e era difícil culpá-lo, considerando todas as ambiguidades que deliberadamente deixou cair com respeito a suas experiências.
—Digamos que não me sinto tão comprometida para recorrer a uma medida tão extrema como o matrimônio. Possivelmente simplesmente deveríamos esquecer este assunto.
—Sua equanimidade me impressiona. Deveria estar agradecido de que se mostre tão compassiva.
Não se sentia absolutamente compassiva. Sentia-se transtornada, desolada, decepcionada. Descer daquela glória a essa discussão formal sobre como expiar a poderosa experiência que compartilharam… Dava vontade de feri-lo, de bater nele, de dar uma bofetada que vencesse essas frias considerações sobre como retificar sua imprudência.
—Simplesmente não desejo complicar as coisas mais que o necessário, especialmente de um modo que me faria perder o controle sobre meu futuro e requereria um sacrifício por ambas as partes que levaria a uma vida inteira de infelicidade. Não me casaria contigo fosse qual fosse o escândalo que me ameaçasse. Entretanto, nossas futuras relações se tornaram embaraçosas. Acredito que será melhor que aceite minhas preferências a respeito de minha estadia na Inglaterra. Jane e eu encontraremos uma casa em Londres e…
—Serei eu que me afastarei. Minhas visitas a Laclere Park serão pouco frequentes e breves durante os próximos meses.
—Isso é muito injusto com suas irmãs.
—Quando você for à cidade passar a temporada minha presença será inevitável, mas por então possivelmente o tempo terá atenuado minha ofensa.
Ele não queria dizer isso. Sabia que não tinha sido realmente uma ofensa. Não se podia dizer que a tinha forçado ou forçado a si mesmo.
Ela deu a volta, aliviada e ao mesmo tempo triste por saber que depois daquela festa seriam muito poucas as ocasiões em que o veria.
Capítulo 7
Vergil estava certo. Ela seria uma amante esplêndida.
Tentou impedir aquele pensamento enquanto cavalgava de volta para as ruínas. Dava voltas em sua cabeça, uma reação absolutamente desonrosa de um homem que sucumbiu a desonrosas inclinações.
Seu comportamento foi vergonhoso. Censurável. Enlouquecido.
Isso não o impedia de voltar a rememorar e experimentar o contente consentimento que ela mostrou. Sentiu em sua boca seus suaves lábios e seus doces peitos. Explorou sua vibrante excitação com a pressão de seu joelho.
Se o intruso não os tivesse interrompido, a teria levado ao cômodo e teria feito amor até que as pedras ressonassem com seus gritos.
E ela permitiria.
Parou e bateu a palma da mão contra uma árvore, em busca de uma realidade tangível que pudesse destruir o desejo que voltava a dominá-lo.
«Confusa», havia dito Dante.
Maldita seja, sim era confusa.
Ela nem sequer gostava dele. Raramente falavam sem discutir. Ele esteve rondando em sua presença os últimos dois dias, mas ela nunca o buscava. E que então se lançou para cima sem nenhum tipo de inibições…
Caminhou com passo decidido através das árvores, possuído por um estado de ânimo perigoso. A calma que ela mostrou no estábulo foi mais que perturbadora. Exasperante. Quase para ruborizar-se. Uma serenidade total. Ele foi uma mescla desordenada de impulsos contraditórios, enquanto que ela se mostrou incrivelmente tranquila. «Não fui prejudicada.»
«Quase te arranco a roupa e te atiro ao chão sobre uma pedra.»
«Não me sinto comprometida, nem arruinada.»
«Bem, maldita seja, eu sim. Os homens que seduzem suas pupilas são repugnantes.»
«Não me casaria contigo fosse qual fosse o escândalo que me ameaçasse.»
Parou na borda da clareira do castelo com essas palavras ecoando uma e outra vez em sua memória.
Ele deveria se sentir agradecido ante seu terminante rechaço. Mas em vez disso experimentou uma ira irracional. Em parte porque sua serenidade o fazia perguntar-se se tudo teria sido para ela simplesmente um jogo caprichoso. E, sobre tudo, porque sua determinação o fazia cobrar consciência do fato deprimente de que ela jamais seria sua da forma em que ele queria.
Menos mal. Seria uma amante esplêndida, mas uma esposa impossível.
Deixaria que Dante se arrumasse com ela.
Essa ideia incitou nele um ressentimento primitivo e possessivo. Tentou reprimi-lo esforçando-se para concentrar-se nas ameias do castelo.
Uma escada se elevava em uma das bordas do muro, tão danificada que faltavam todos os degraus. Só podia subi-la esticando as pernas em busca de perigosos pontos de apoio para os pés. Uma pequena seção de rochas caiu sobre a erva enquanto escalava. Detinha-se a cada momento, tentando identificar se o som se parecia com aquele que tinha ouvido quando sustentava Bianca na torre.
Acima no caminho da muralha existiam ocos. Alguém tinha substituído algumas zonas desaparecidas com madeira nova, mas outras consistiam em fragmentos de tábuas podres, que sem dúvida não haviam sido reparados ao menos há um século.
Avançou com cuidado até chegar ao ponto do muro onde um enorme dente das ameias se desprendeu por completo. Aí abaixo se via o novo montão de pedras. «Quem teria imaginado que a tranquila Laclere Park podia ser tão perigosa?»
Uma questão endiabradamente certa.
Examinou a rugosa superfície onde as pedras se encontravam até tão pouco tempo e apalpou a argamassa das pedras que ainda se sustentavam em pé. As ligaduras podres caíam em uma pequena chuva de pó, unindo-se com um montão de pedrinhas a seus pés.
Nada parecido podia ver-se no resto das ameias. Examinou a superfície das pedras outra vez, procurando o rastro de alguma ferramenta. Podiam ser fruto de sua imaginação os sutis arranhões provocados por um instrumento metálico?
Caçadores furtivos disparando armas de fogo e depois uma muralha que vinha abaixo. Possivelmente tão somente fosse uma coincidência. Não havia nenhuma evidência do contrário. De todos os modos não gostava disso.
Desceu da muralha, procurando alguma prova de que alguém mais tivesse estado ali recentemente. Os sons da torre de pedra rondavam em sua memória. Não ouviu ninguém caminhando pelo atalho. Entretanto, aquele intruso podia ter sido simplesmente um dos convidados explorando o pitoresco castelo Laclere Park.
Retornou para casa. Quando passou ante a sala do café da manhã, viu Bianca em uma mesa na companhia de Cornell Witherby e Daniel Saint John.
Ela sorria e ria ante alguma brincadeira de Witherby.
Que incrível serenidade.
Provavelmente para ela só foi um jogo caprichoso, uma maneira de demonstrar ao santo que não era tão puro. «Possivelmente simplesmente deveríamos esquecer este assunto.» Dirigiu-se a seu escritório dando grandes passos, ressentido até a medula por um ponto de honestidade que admitia que enquanto ela poderia ser capaz de esquecê-lo, ele certamente não era.
«Eu nunca desmaio.»
«Por mim o fez!»
Estava reagindo como um moço inexperiente e isso o irritava ainda mais. Enviou um lacaio para procurar Morton, depois se recostou em sua poltrona e pegou alguns papéis.
Morton chegou quando estava terminando seu escrito.
—Quero que esta carta dirigida ao advogado de Adam Kenwood seja enviada a Londres pelo correio urgente — disse enquanto selava a missiva— Leva-a ao povoado pessoalmente agora mesmo. —Pôs a carta entre os grossos dedos de Morton— Ficará aqui quando voltar a partir para o norte. Eu não gosto da ideia de deixar à senhorita Kenwood em Laclere Park sem ninguém que a vigie.
—Acredita que corre algum outro perigo?
Vergil sabia que Morton empregava a palavra «outro» porque estava pensando no perigo que todas as mulheres belas corriam estando perto de Dante.
Possivelmente corria esse perigo. Ele não sabia. Entretanto, considerando os caçadores furtivos, as paredes que desabam e os assaltos do visconde Laclere, o perigo de estar perto de um libertino era muito menos preocupante.
***
Depois do jantar Bianca se achava sentada entre Fleur e a senhora Gaston, conversando com Pen e Cornell Witherby.
—Será uma série de epopéias — explicava à senhora Gaston— Vendidas por assinatura, embora financie a impressão. O poema do senhor Witherby será o primeiro.
Cornell Witherby sorriu modestamente. Penelope lhe dedicou um olhar cheio de admiração.
A senhora Gaston tinha a si mesma como uma rainha aceitando comemorações e oferecendo favores. Seu cabelo castanho avermelhado brilhava como o cobre à luz da lareira, e a satisfação que sentia ante sua própria importância se deixava ler em seu rosto.
—Enquanto nós falamos os impressores já estão trabalhando. Espero que cause sensação e que se necessitem mais edições. Não pelos benefícios materiais, é obvio. Pelo alcance das pessoas de bom gosto e sensibilidade o prodigioso talento do senhor Witherby é minha meta.
Falava como se o conselho divino ditasse seu trabalho, mas Bianca suspeitava que a importância que se outorgava ao ser patrocinadora a motivava muito mais que seu amor pela arte.
—Quais serão os outros poetas? —perguntou Fleur.
O que seguiu foi uma discussão sobre os méritos dos jovens poetas que poderiam merecer o mecenato.
Bianca mal ouvia o que diziam.
Passar a tarde desfrutando da doce companhia de Fleur provocou um horrível sentimento de culpa. A fria amostra de cortesia de Vergil deixou um vazio devastador. Um relógio interno advertia o passo de cada minuto daquele comprido dia com tic-tacs de agonia.
Tentou não voltar a olhar Vergil, nem dirigir-se a ele, mas era consciente dele a cada instante. Sentia sua presença quando estava perto. Ouvia cada palavra que dizia, inclusive embora se achasse na outra ponta da estadia.
Duas Biancas reagiam ante cada movimento dele. A velha Bianca, a inteligente, catalogava seus defeitos com uma ira mordaz. Mas havia uma nova que rezava para obter algum sinal por parte dele. Esta nova Bianca se rebaixava com lastimosos suspiros, mas a velha Bianca não podia fazê-la desaparecer.
De algum modo, de algum modo, superaria esse dia.
—… Haverá terríveis problemas se revogarmos a Ata de Combinação — entoou lorde Calne enquanto ele, Vergil e o senhor Saint John caminhavam para o pequeno grupo— Se se permitir que as classes mais baixas se agrupem, a ordem se verá ameaçada. Não podemos permiti-lo. É muito perigoso. Poderia terminar como a França em 93. Lamentará Laclere.
Pequenas chamas apareceram nos olhos de Daniel Saint John. Olhou lorde Calne como se fosse um imbecil.
—Parece como se soubesse muito pouco sobre o que aconteceu na França. Do contrário entenderia que as pessoas não podem viver para sempre com uma bota pisando em sua cabeça.
O rosto de lorde Calne ficou vermelho.
Vergil falou de forma apaziguadora.
—A Inglaterra não pode apoiar sua política nos excessos do povo francês de uma geração anterior, Calne.
—Oh, Deus nos libere. Política! —Cornell Witherby protestou brandamente, dirigindo-se às damas— Não serve nada mais que para a sátira.
Um calor especial brilhou em seus olhos ao dirigir seu bom humor para Pen, que ria. Parecia que Dante estava certo a respeito de sua amizade especial.
Sentindo-se em um estado de ânimo crítico em relação aos homens, Bianca o esquadrinhou minuciosamente. Aparentava uma boa figura e era de meia altura, mas sua postura tinha uma severidade muito pouco poética, como se uma vara de aço tivesse sido soldada a sua coluna. O cabelo loiro caía sobre sua testa e suas bochechas. Seu rosto era talvez um pouco alargado, mas era um homem atrativo ao redor de vinte e cinco anos de idade.
O fato de que cortejasse uma mulher que oficialmente estava casada não contava nada nas considerações de Bianca a respeito de ser bom para Pen. Muito mais significativo que isso era a atitude de absoluta devoção que tinha ao olhar para Penelope.
Ela jamais viu Vergil olhando daquele modo a uma mulher, nem sequer a Fleur. Quando o visconde Laclere examinava uma mulher, ela tinha a impressão de que estava avaliando seus defeitos.
Naturalmente isso não ocorreu quando a escutou cantar.
E decididamente tampouco ao beijá-la.
Nem ao lhe tirar o vestido.
Nem…
—Bom, ao menos essas liberações políticas mantêm seu impressor ocupado — disse a senhora Gaston.
Witherby suspirou.
—Foi só para dar suporte às artes literárias que aceitei o passatempo dessa imprensa. Preferiria dizer aos homens que rechacem qualquer comissão que não tenha a ver com poesia. Entretanto, os panfletos servem estupendamente para custear os trabalhos importantes. Assim ocorre com o patrocínio de grandes damas como você.
A senhora Gaston pareceu agradada com a adulação, e com seu êxito ao desviar a atenção para ela.
—Anular é uma necessidade moral. É uma falta de sentido proibir a homens livres assembleias livres — dizia Saint John aos homens que se achavam de pé perto.
—Se estiverem tão insatisfeitos deixemos que se vão —disse a senhora Gaston, unindo-se à conversa— Uma passagem grátis a Austrália para os que estejam descontentes. Não entendo por que ninguém propõe uma coisa assim. Para mim é uma saída completamente lógica.
—Se dá a todos os homens a oportunidade de votar, poderão decidir sobre seu futuro e estarão menos descontentes — disse Saint John.
—Acaso a multidão de Manchester deveria decidir as leis? —perguntou lorde Calne— A Câmara dos Comuns já está bastante alterada para acrescentar radicais e irlandeses.
Pen dirigiu a Saint John um sorriso suplicante e tranquilizador. O qual reprimiu a resposta destrutiva que pensou.
—As pessoas de Manchester não são uma multidão — disse Vergil— Eles estão ajudando a Inglaterra a se converter na nação mais rica do mundo. As cidades industriais como Manchester não podem continuar sendo privadas do direito ao voto por regras de distrito redigidas há séculos. É inevitável uma reforma do Parlamento.
Pen olhou seu irmão pondo os olhos em branco, a modo de reprovação por seguir alimentando a discussão.
Lorde Calne parecia estar sofrendo uma espécie de apoplexia.
—Antes me condeno no inferno. Se apoiar isso, Laclere está traindo seu sangue. Essas cidades do norte são lugares terríveis. Sujas de fábricas e máquinas e homens vis enriquecendo-se com comércios fétidos. Ouvi que é pior que em Londres. Não, me dê o ar limpo do campo e uma boa caçada. Nunca permitiremos que nos arrebatem isso.
Pen viu sua oportunidade.
—E como vai à caça em sua fazenda este ano? Podemos esperar as habituais caçadas magníficas?
—Parece boa, parece boa. Embora haja uma batalha contínua com os caçadores furtivos. Terei que levar cinco homens para as reuniões do trimestre.
A mudança de tema deu a Bianca uma oportunidade para escapar da proximidade de Vergil. Desculpou-se.
Os homens menos predispostos à política se dispersaram pela estadia. Nigel falava com Catalani e com a senhora Monley perto da janela. Seu primo a olhou com um caloroso e acolhedor sorriso quando ela passou ante ele.
Bianca se uniu a Diane Saint John, Charlotte e Dante.
Estavam falando sobre os dois filhos dos Saint John. Dante mostrava mais interesse nas travessuras dos pequenos meninos do que Bianca esperava, mas se aproximou para sentar-se a seu lado assim que ela chegou e permitiu que as damas conduzissem a conversa.
—Esteve muito calada hoje — disse ele em voz baixa— Espero que não esteja afligida por meu mau comportamento.
Ela quase esqueceu aquele beijo na biblioteca.
—Estou afligida ante tantos rostos novos. Tenho poucos temas que tratar com eles.
—Bom, aqui vem Saint John. É dono de uma companhia naval, como foi seu avô, assim tem algo em comum com ele.
Daniel Saint John se afastou da companhia de lorde Calne e se aproximava deles.
—Saint John, você conhecia Adam Kenwood, verdade? —perguntou Dante para facilitar as coisas a ela.
—Conheci-o sendo muito jovem. De fato, minha primeira viagem quando era um moço foi a bordo de um de seus navios. Muito antes que ele se dedicasse às finanças, é obvio.
—Quando ocorreu isso? —Bianca se sentiu obrigada a continuar a conversa, já que Dante iniciou por ela.
—Faz anos. Vendeu seus navios… Faz coisa de uns dez anos.
—Navegou com ele bastante tempo?
—Não, somente uma vez. Abandonei o navio ao chegar às Antilhas e encontrei um camarote com outro capitão.
—As regras de meu avô não o atraíam, suponho.
—Seu avô não era o capitão. Só era o dono dos navios e organizava os carregamentos. Eu simplesmente decidi navegar em outra parte.
Estava mentindo. Bianca estava segura disso por essa forma de falar muito educada.
—É estranho que vendesse todos os navios de uma vez — disse Dante— Ter uma frota de navios e no dia seguinte de repente ficar sem nenhum…
—Dado que comprei dois estava encantado de que o fizesse — disse Saint John.
—O que transportavam seus navios? —perguntou Bianca.
—Todo tipo de mercadorias, suponho, como meus.
Ela tinha a sensação de que o senhor Saint John se limitava a agradá-los, e não estava sendo muito franco. Dante tinha razão, era estranho que seu avô vendesse todos os navios de uma vez, não importava o que dissesse este outro comerciante marítimo.
Não teve tempo de pressioná-lo para conseguir uma explicação mais clara, porque Pen se dirigiu até o centro da estadia e reclamou atenção.
—Temos a sorte de contar com vários músicos consumados entre nós esta noite, e eu abusei de dois deles, o senhor Nigel Kenwood e a senhorita Bianca Kenwood, pedindo a eles que nos ofereçam uma atuação. Passemos com eles ao salão de música e os ofereçamos nossa agradecida atenção.
Ela mesma abriu caminho. Dante se dispôs a acompanhar Bianca, mas o senhor Saint John reclamou primeiro sua atenção.
—Parece que Catalani sabe quando deixar passo aos jovens.
—É amável por sua parte dizer isso, mas duvido que ela tema que eu possa lhe fazer concorrência.
—Cedeu a atuação por uma razão. Sabe que seu instrumento já não é o que era. —Pôs a mão dela entre seu braço enquanto caminhavam com o passar do corredor— Nervosa?
—Horrivelmente nervosa. Ansiava que chegasse este momento, e agora…
—Então isso explica seu ar distraído de hoje. Minha mulher me comentou isso. Ela é muito observadora a seu modo silencioso, e temia que você estivesse preocupada com algo. Se sentirá aliviada ao saber que se tratava de seu medo de cometer alguma estupidez na atuação de esta noite. Lhe direi que se tratava disso, e que é perfeitamente normal.
Não o era. Não para ela. Mas isto era diferente. Durante todo o dia a tinha aterrorizado a ideia de que chegasse esse momento. Voltar a cantar essa ária, diante de toda essa gente, com ele sentado ali… Algo se retorcia em seu interior com cada passo que dava.
Nigel ocupou seu lugar ante o piano. Os convidados se sentaram nas cadeiras colocadas ante ela. Vergil escolheu permanecer de pé junto à parede, perto de Fleur.
Ela o olhou, esperando um sorriso de boa sorte. Ele não se deu conta, pois se inclinou para dizer algo a sua prometida. Seu coração se encheu. Estava tão atrativo com seu casaco de um verde escuro e suas calças nata, com suas mechas onduladas emoldurando seu rosto e seus olhos azuis iluminados com um brilho de humor enquanto sorria a sua dama.
Deu-se conta com um sobressalto de que Nigel começou a introdução. Ela lutou para preparar-se.
Da outra ponta da estadia, Vergil a olhou.
Ela falhou. Essa primeira nota simplesmente não saía. Voltou-se para Nigel com desespero, suplicando sem palavras. Ele improvisou até que voltou a levar a melodia ao princípio outra vez. Ela se concentrou no chão e conseguiu acalmar-se. Ao levantar a vista viu um casaco verde deslizando através da porta.
«Obrigado.»
Afinou cada nota com precisão, mas sua alma não estava totalmente implicada nelas. Vergil podia não estar presente na sala, mas se achava em sua cabeça, confundindo-a com aquele olhar alarmante, misturando-se em seu espírito com lembranças indecorosas. Aquela ária não soou como a última vez nas ruínas, com sua emocionante exaltação. Uma emoção diferente gotejava desta vez. Um estranho oco existia em seu interior e a música o levava mais profundo e o enchia com um penetrante e doloroso desejo. Ao acabar ela não sabia se a atuação tinha saído bem ou não.
—Esplêndido, prima — sussurrou Nigel no meio do silêncio que se produziu.
O esforço a deixou imersa em uma névoa de melancolia. Deu uma olhada à expressão pensativa de Catalani enquanto recebia os elogios de outros convidados.
Catalani caminhou para ela, puxou-a pelas mãos e a afastou para um lado.
—Os anos me tornaram cética, e confesso que esperava uma voz bonita, adequada para salões e Igrejas. Estava equivocada. Possui um grande talento, querida. É excepcional.
Qualquer outro dia o julgamento de Catalani teria produzido euforia. Essa noite tão somente acrescentava um grande nó a mais ao matagal de emoções que a confundiam.
Pen encabeçou a marcha para a biblioteca para jogar cartas, mas Bianca se desculpou, dizendo que queria retirar-se. Seguiu à comitiva através do corredor, mas se desviou ao chegar à escada. Nigel se separou de outros.
—Esperava que nos encontrássemos jogando na mesma mesa, prima.
—Seria uma má companhia esta noite. A emoção de cantar com Catalani presente…
—É obvio. Entendo. De todas as formas agradeceria poder passar um momento mais contigo. Muito em comum, prima. Eu gostaria de te conhecer melhor.
Por mais que insistisse em usar a palavra «prima», por mais que empregasse um tom formal e correto suas intenções saíam à luz. O interesse que sentia por ela brilhava em sua expressão. Ela suspeitou que se naquele momento se achassem sozinhos no jardim Nigel teria tentado beijá-la.
Três homens em dois dias. Ela não tinha ideia de que fosse tão fácil voltar-se promíscua.
A experiência daquela manhã a havia tornado cínica. Possivelmente o interesse de Nigel fosse honesto.
—Se juntará com os outros para cavalgar amanhã pela manhã? —perguntou ele.
Pen organizou para todos uma visita pela fazenda, que terminaria com um almoço nas ruínas. Retornar ali tão cedo seria horrível.
—Não acredito. Não me encontro bem, ficarei aqui descansando.
Abriu-se a porta do estúdio que dava ao corredor. Dela emergiu a alta figura do visconde Laclere, que se dirigia à biblioteca. Ao vê-los se deteve, ficando de pé ante eles como uma sentinela. Nigel o olhou e a seguir dirigiu a ela um sorriso íntimo.
—Eu gostaria de falar contigo em algum momento em que seu guardião não esteja me olhando por cima do ombro. Os dois estamos sozinhos no mundo, e os parentes podem ser uma fonte de consolo. Se alguma vez necessitar minha ajuda, espero que venha a mim.
—É muito amável por sua parte me fazer essa oferta. Agora deveria se unir aos outros, eu preciso estar sozinha.
Vergil não se moveu, nem sequer quando Nigel passou ante ele lhe dirigindo uma saudação e entrou na biblioteca. Simplesmente seguia ali de pé, olhando-a. Ela queria girar a cabeça e afastar-se com altiva indiferença. Mas não podia mover-se.
—Retira-se?
—Sim. A noite foi uma prova.
—Eu acredito que a noite foi um triunfo. Escutei você. Superou a si mesma. Quanto ao dia, suponho que foi uma prova, e me desculpo por isso.
Ela não queria voltar a ouvir nada mais a respeito de suas desculpas.
—Os papéis pessoais de seu avô chegaram esta manhã — disse ele— A maioria das caixas está em meu escritório para que não a incomodem, mas separei as que correspondem aos anos em que seu pai vivia com ele e as mandei levar a seu quarto, junto com o que havia no escritório.
—Obrigado. —esforçou-se para mover-se e chegar até a escada.
—Há algo mais. Devo insistir em que não deve voltar a sair sozinha pela manhã cedo.
—Está preocupado por minha virtude? — A pergunta surgiu sem que ela pudesse impedir.
Ele nem sequer teve a decência de mostrar-se envergonhado.
—Estou preocupado por sua segurança.
—Irei onde queira e ensaiarei sempre que puder.
—Não pela manhã, e não sozinha. Se quiser praticar em privado e se preocupa que em seu quarto possa incomodar os outros, usa meu escritório. Mas não saia da casa.
—Continua cortando a correia, Laclere. Por que não me ata ao pilar da cama?
Seus olhos azuis a olharam de uma maneira que nada tinha a ver com o que usou nas insossas admoestações que acabava de lhe fazer.
—Tem talento para provocar as imagens mais surpreendentes, senhorita Kenwood. —deu a volta— Até amanhã então.
Jane a esperava em seu quarto. Sentia-se bem ao poder estar a sós com alguém que a conhecia há anos.
—Os convidados realmente o passam bem, verdade? —disse Jane— Todos esses homens bonitos com seus trajes elegantes.
Jane viu aquela viagem desde o começo como uma boa oportunidade para que Bianca encontrasse um marido. Nunca reconheceu que a falta de pretendentes em Baltimore era voluntária; o resultado de esmeradas dissuasões.
—Esse senhor Witherby parece prometedor. Um cavalheiro conforme se diz, e bastante atrativo.
—Suspeito que se interesse por Penelope.
Jane franziu o cenho.
—Por uma mulher casada? Separada ou não, isso é o que é. Bom, o visconde está fora de jogo. Está a ponto de prometer-se à senhorita Monley. E menos mal. Quem iria querer um homem tão estrito e severo? Sempre fica o irmão mais jovem de Charlotte, embora se diga…
—Sei o que se diz.
Jane a ajudou a colocar a camisola.
—Todos esses homens solteiros e nem sequer uma paquera? Quem ia esperar que a Inglaterra fosse tão aborrecida.
Algo menos aborrecida, e o de paquera não serviria nem para começar a descrever até que ponto estava se convertendo no contrário do aborrecimento.
—Meu primo Nigel me deu a conhecer seu interesse.
—Nunca gostei da ideia de que os parentes se mesclem. Não é bom juntar o sangue.
—É um parente bastante longínquo.
—Certo. Só que ouvi dizer embaixo que se parece muito a Dante. Vive endividado. Não pode permitir-se essa vida tão elegante. Seu avô deixou a você a maior parte do dinheiro. Diz-se que seu primo só tem dinheiro suficiente para manter o imóvel, e que tudo está disposto de forma que não possa acessar mais que os ganhos correspondentes para cada ano.
—Onde se inteira de todas essas coisas?
—Os criados daqui conhecem os poucos criados que ficam ali. Os arrendatários falam entre eles. É igual em nossa vizinhança. Tudo entra através da porta da cozinha — disse Jane— Se ele expressou esse tipo de interesse, deveria saber que pode ser como Dante em outros sentidos também. Parece que seu primo não está sempre só nessa grande casa. Uma mulher o visitou secretamente a semana passada. Segue meu conselho. Não acredito que queira o interesse desse homem.
Bianca não queria o interesse de nenhum homem. Rotundamente não. Nada mais que distrações, isso é o que eram os homens. Potencialmente distrações permanentes, assim funcionava o mundo. E, como ela vinha aprendendo a trancos e barrancos, fontes de dor e confusão.
Ansiava adormecer, mas sabia que só ocorreria quando estivesse completamente esgotada. Quando Jane saiu, aproximou as velas às caixas e ao baú, empilhados perto da lareira, e se sentou no chão para descobrir o que podiam revelar.
Uma chave estava na fechadura do baú. Girando-a abriu a tampa para examinar o conteúdo do escritório de Adam Woodleigh.
Tocou as plumas e o tinteiro barato. Buscou entre papéis cheios de escritas. Um tinha escrito o nome do irmão de Vergil, junto com outros, e ela supôs que foram os últimos que seu avô escreveu.
Uma pilha de cartas, atadas com um barbante, chamaram sua atenção. Estava a ponto de abri-las quando viu a saudação que encabeçava a primeira. Escrito pela mão de um homem, dirigia-se a Adam como «Meu mais querido amigo».
Com uma saudação como essa não podiam ser de seu pai. Provavelmente seriam do anterior visconde. As daria a Vergil.
Em um pequeno estojo de couro encontrou uma miniatura de uma mulher loira. Imaginou que seria sua avó. Encontrou certo parecido com seu pai, e a assaltaram lembranças de seu amor e sua nobre honestidade. Sua garganta ardia como se uma velha dor se unisse as novas.
Uma flor seca caiu em seu colo enquanto devolvia a diminuta pintura a seu ninho de veludo.
A flor não parecia muito velha. Não se desfez ao tocá-la, parecia que estava a anos naquele estojo.
Imaginou um homem velho recolhendo uma flor no jardim quando saía para caminhar e abrindo mais tarde esse estojo que continha a lembrança de sua esposa. Imaginou Adam lhe deixando essa pequena oferenda.
Fechou de repente o estojo. Não queria ficar sentimental com esse homem. Provavelmente a flor esteve ali sempre e foi sua avó quem a colocou ali.
O outro baú continha pastas. Adam foi um homem organizado, cada pasta correspondia há um ano e dito ano estava escrito na parte dianteira. Ela procurou as correspondentes aos anos em que ainda não tinha nascido, justo quando seu pai abandonou a Inglaterra.
Levou algum tempo encontrar o ano preciso. Não sabia que seu pai viajou a América ao menos seis anos antes que ela nascesse.
Era uma pasta magra com umas poucas cartas. Três eram de seu pai. Leu-as e compreendeu a razão pela que Adam Kenwood e seu filho se separaram.
Não foi por causa de sua mãe. Ocorreu antes que seus pais se conhecessem. Vergil estava certo a respeito do ocorrido. Seu pai rompeu a relação. Em uma carta onde rechaçava a oferta de uma pensão por parte de Adam expôs as razões.
As explicações esvaziaram seu coração das últimas frestas de alegria e confiança. O sonho que a sustentou desde a morte de sua mãe balançou como se seus alicerces tivessem sido atacados. A herança de repente a golpeou como uma brincadeira malvada, um chamariz do diabo para fazê-la pecar.
Não era para menos que seu pai tivesse dado as costas à fazenda e ao status que Adam edificou.
Seu avô fez sua primeira fortuna com o comércio de escravos.