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Capítulo 8
Muito cedo à manhã seguinte, Bianca se levantou, vestiu-se e se dirigiu para o escritório do visconde. Ele havia dito que podia ensaiar ali, o qual significava que podia entrar. O fez, mas não com a intenção de cantar.
O resto das caixas que continha os objetos pessoais de Adam estavam empilhadas junto ao assento da janela. De joelhos, ela começou a pôr em fila as embalagens de madeira para examinar seus conteúdos.
Queria saber quanto devia odiar Adam Kenwood antes de tomar sua decisão sobre a herança. Reconheceu arrependida, que esperou encontrar alguma prova que o redimisse, pois desse modo não deveria sentir-se obrigada a renunciar à totalidade do recebido.
Estava tão concentrada alinhando as caixas que não ouviu o ruído de pegadas até que chegou junto a ela. Com a extremidade do olho viu umas botas limpas e calças de pele de cervo. Tremeu e ficou em estado de alerta, estupidamente excitada.
—Deveria estar cavalgando — disse ela— Ao menos a um dos dois é permitido desfrutar das manhãs.
—Será bem-vinda a se unir a mim qualquer manhã.
—Não acredito que seria muito prudente, não acha? —Ela parecia entretida com algumas pastas, sem chegar a ver realmente o que tinha nas mãos— Se quiser que saia, farei mais tarde. Estou tentando descobrir se minha mãe lhe escreveu depois da morte de meu pai, pedindo ajuda.
Ele caminhou até o outro lado da fileira de caixas e ficou de joelhos.
—Disse que foi durante a guerra. Parece que esses anos estão nesta caixa daqui.
Ela foi correndo e repassou as pastas até encontrar a correspondente ao ano 1814.
—Era um comerciante de escravos. Você sabia isso?
Ela soube, por seu desconcerto, que não sabia.
Ele começou a buscar em outra caixa.
—Muitas famílias têm esse comércio em seu passado. O pai de lorde Liverpool era um negociante de escravos, mas trabalhou para conseguir que isso se ilegalizasse.
—Meu avô fez o mesmo?
—Não acredito.
—Essa foi à razão pela que meu pai rompeu com ele. Na América, meu pai escreveu e falou contrário ao comércio de escravos. Estivemos a ponto de nos mudar para a Filadélfia para não viver em uma cidade que tivesse um porto de escravos, mas ele acreditava que podia fazer mais em Baltimore. —Puxou os laços que atavam as duas capas da pasta de 1814.
Uma carta de sua mãe encabeçava a pilha. Em resposta a uma oferta de ajuda financeira por parte de Adam, ela expressava seu rechaço pelas mesmas razões que levaram seu pai a não aceitar nunca o dinheiro.
E, contudo, para seguir seu caminho, para obrigar à família de seu filho a aceitá-lo tal como era, deixou a ela, sua neta, essa enorme soma de dinheiro.
Ela sabia o que tinha que fazer. E isso a entristecia, por mais correto e justo e nobre que fosse. Sem o sonho de fazer-se cantora, não estava segura de que ficasse algo.
—Minha herança foi construída com o comércio de escravos. Você estava certo, e usá-la seria uma grande brincadeira mais que uma grande justiça. A brincadeira, entretanto, era de Adam.
—Ele vendeu toda sua frota há muito tempo. A maior parte de sua fortuna vem de outras coisas.
Mas assim foi como começou. Não podia reconciliar-se, por muito que doesse. Sua consciência a obrigava a escolher aquilo que a aterrorizava. Ter um sonho ao alcance e voluntariamente não cumpri-lo…
—Não posso aceitá-lo. Quero que amarre tudo o que possa e entregue o dinheiro à caridade. Quando os recursos de investimento deem benefício, entrega-o também.
—Seria desatinado vendê-lo, inclusive embora seja seu desejo. Um tribunal fiscaliza minha administração, não você. Um tribunal constituído por homens que não entenderão, nem aceitarão que obedeço suas instruções, especialmente se isso significa te deixar na pobreza.
—Está me dizendo que vai me obrigar a aceitar esta fortuna manchada?
—Estou dizendo que a fortuna permanecerá intacta enquanto eu a controle. Quando começar a receber a renda, poderá dá-la de presente se for o que deseja.
—Bem. Enquanto isso, não há nenhuma razão para seguir ficando em Londres. Quero que me consiga duas passagens para que Jane e eu voltemos para Baltimore.
—Não me inclino a fazer tal coisa.
—Suas inclinações não me interessam.
—Acredito que está tomando esta decisão de uma forma muito precipitada, e possivelmente por razões equivocadas. Além disso, sua primeira razão para vir, a de arrumar a questão da fazenda, segue sendo importante inclusive embora tenha decidido que o dinheiro manchado te obriga a abandonar a outra.
—Eu não disse nada a respeito de abandonar meus planos de me preparar para a ópera. Encontrarei uma forma diferente para fazê-lo possível. Uma que não suponha trair as crenças e sacrifícios de meus pais.
—Agora me sinto ainda menos inclinado a conseguir sua passagem de volta a Baltimore.
—Além de ser sequestrada, parece que agora sou uma refém. Unicamente atrasa o inevitável, para desgosto de ambos. Quando dito fazer algo, sempre encontro a forma de chegar a minha meta.
Ele tinha outra vez essa expressão resolvida e severa. Ela sabia que era inútil tentar influir nele quando estava assim. Embora tivesse forças para tentá-lo. Aquele último dia deixou seu espírito espancado, e ficava muito pouca coragem para achar argumentos.
Para fingir conformidade, fez um gesto em direção às caixas e mudou de tema.
—Encontrou alguma outra coisa de seu irmão?
—Não olhei. São suas coisas.
Ela se levantou.
—As olhemos agora. Ajudarei. Quando construiu Adam Woodleigh e quando começou a amizade?
—Há seis anos.
—Estas são as que queremos, então. —Ela levantou um pesado montão de pastas e as deixou no chão.
As mãos de Vergil rapidamente pegaram as quatro primeiras. Sentou-se com as pernas cruzadas e começou a folhear os conteúdos. Parecia tão interessado que Bianca pensou que talvez se demorasse junto a ela em espera que surgisse esse convite.
Ela examinou as duas que ficavam.
—É estranho. Também há cartas do próprio Adam.
—São cópias de cartas que enviou. Em algum momento provavelmente adotou o costume de conservar cópias inclusive de sua correspondência privada.
—A maioria destas tem a ver com a construção de Woodleigh. Por seu tom, não invejo o arquiteto. Encontrou alguma de seu irmão?
—Sim, mas nada surpreendente. —Seu tom sugeria o contrário. Ela elevou a vista e o viu esquadrinhando uma carta com o cenho franzido. Tinha um aspecto muito sério e um pouco triste.
Sua expressão honesta e reveladora a desarmou. Era fácil esquecer que não só era um visconde e seu administrador, mas também um homem jovem que nunca imaginou que um dia deveria carregar com esse título e essas responsabilidades. Ela se perguntou se ele teria aceitado bem aquela inesperada mudança em sua vida. Dado que este tinha sido consequência da morte de seu irmão ela suspeitava que a culpa escurecesse qualquer alegria que pudesse proporcionar.
—Pode ficar com elas — disse ela— Fica com tudo o que seja dele ou tenha a ver com ele.
Ele a olhou.
—Obrigado.
Não voltou a dirigir o olhar à carta. Continuou olhando-a e Bianca sentiu que não podia mover-se. O silêncio do estúdio a atendia, mas uma espécie de melodia silenciosa ia e vinha apoderando do espaço onde estavam sentados, muito perto e muito isolados.
Ela deveria ter voltado para as ruínas, sustentada por ele, olhando aquele rosto que a paixão convertia em severo. Virtualmente esperava que ele deixasse de lado a carta e a alcançasse.
Por temor a esse impulso, e à forma em que seu coração rogava para que ocorresse, ficou de pé de repente e se dirigiu para a porta.
Com estupidez fez um gesto assinalando as caixas.
—Tem minha permissão para examinar todas. Faremos um trato. Se eu encontrar cartas que tenham a ver com seu irmão, lhe darei isso. Se você encontrar alguma sobre meus pais, faz o mesmo.
Sem esperar sua resposta, abandonou a estadia.
***
—Laclere.
A melodiosa voz alcançou Vergil aquela tarde enquanto subia a escada para o terraço. Maria Catalani estava de pé ante a porta aberta.
—Maria. Não saiu para cavalgar esta manhã?
—Passei com acréscimo a idade em que ir dando estrondos sobre um animal grosseiro resulte divertido, caro mio, e quanto às ruínas… Bom, meu país as tem em abundância. E você?
—Tenho assuntos dos que me ocupar.
Acoplou-se ao seu ritmo quando entrou no salão.
—Vai para seu escritório? Te acompanharei.
A casa estava silenciosa, vazia do ruído dos convidados. Catalani passeava a seu lado como se estivesse cruzando um cenário. Nos últimos anos se tornou uma mulher amadurecida e corpulenta e sua apaixonada voz lhe havia falhado, mas ainda era consciente de seu valor.
—Obrigado pelo convite. Estou encantada de que a tenha prolongado, e a senhora Gaston foi muito amável ao me permitir me unir a ela para que pudéssemos dar uma pequena surpresa a sua irmã.
—Quando ouvi que chegaram a Londres pensei que o campo podia te oferecer um pouco de descanso depois de sua viagem. Além disso, como te disse ontem, tinha outra intenção além de dar a Penelope uma surpresa. Necessito uma opinião profissional, e acredito que a sua é a melhor. O que opina da atuação da senhorita Kenwood?
—Tem muito talento, Laclere.
—Quanto talento?
—Necessita que diga isso? Qualquer que tenha ouvido pode dizê-lo. Qualquer que tenha coração pode senti-lo.
—Alguns ouvidos são melhores que outros.
—Precisa polir-se, é obvio. Levará algum tempo. Além disso, deveria aprender idiomas para que as palavras tenham um significado mais preciso para ela, mas é inteligente e será fácil. Seu registro nos níveis superiores poderia demonstrar seus limites. Os papéis para meio-soprano poderiam demonstrar sua força. Pode atuar muitos anos na ópera. Tem o talento e a determinação, e o mais importante de tudo, a coragem. Todo um achado, Laclere. Vai me pedir que a leve comigo de volta a Milão como minha pupila?
—De maneira nenhuma, e devo te pedir que não faça a ela essa sugestão. —Bianca falou de renunciar a sua herança e encontrar outra maneira de perseguir seu objetivo. Ele não queria que Catalani fosse essa outra maneira.
Ela estudou seu rosto.
—Acredito que não está contente com minha valoração.
—Confesso que esperava que fosse menos positiva. Isso teria simplificado as coisas.
Chegou até a porta da biblioteca através do escritório. Maria examinou Vergil inclinando a cabeça.
—Acredito que o entendo. Não tem intenção de permitir que essa jovem siga seu caminho, e acreditava que meu julgamento ia te absolver. Se seu coração a tivesse escutado, saberia que não era isso o que ocorreria.
Sim, seu coração sabia, mas acreditava que talvez a luxúria tivesse escurecido seu julgamento.
—Ela não permitirá que te interponha, caro. Quando falamos fui muito franca a respeito dos sacrifícios, mas ela não se deixou intimidar. Era também isso parte de seu plano? Que ela viesse para mim em busca de informação e se desanimasse ante minhas explicações? Como te disse, ela tem a determinação. É inútil tentar detê-la.
—Possivelmente, mas é meu dever tentar.
—Seu dever? Ah, já vejo. Deve salvá-la. Muito encantador e muito masculino. Graças a Deus nenhum homem me salvou. —Negou com a cabeça e abriu a porta da biblioteca. Com a mão no trinco, voltou-se e sorriu com uma simpatia que a fazia parecer muito mais jovem. —O que te aconteceu, Laclere? Onde está aquele homem jovem cheio de sonhos e paixão que apareceu ante minha porta com um ramo de rosas um dia?
A suave repreensão lhe provocou mais nostalgia que ira.
—Aconteceu-me a vida, Maria. Os deveres me aconteceram. Cresci.
—Deveres que mortificam, pelo que posso ver e ouvir. Deveria ter te conservado como amante mais de um verão, já que estava disposto a se render tão rapidamente a um destino como este.
—Considero-me afortunado de que tenha durado um verão. Você não gostava muito dos meninos jovens, segundo lembro.
Ela fechou a porta e se apoiou contra a parede.
—Tinha tanta sensibilidade para a música, quem não teria se deixado enfeitiçar? Perdeu isso também? É por isso que devo te dizer o que há uns anos teria resultado óbvio? Essa sensibilidade já não te fala?
—Às vezes me fala com tanta força como sempre.
—Me alegro, caro. Deveríamos nos abraçar a algo que nos faça voltar a nos converter em jovens sonhadores, inclusive embora só seja por uns poucos minutos de vez em quando.
Finalmente ela não entrou na biblioteca, mas sim partiu caminhando pelo corredor para a escada.
***
Bianca se encolheu no divã, sem se atrever a se mover. Inclusive depois de que a porta voltasse a fechar-se e as vozes se convertessem em apenas murmúrios, inclusive ao fazer o silêncio, permaneceu feita uma bola de braços e pernas.
Não podia acreditar no que sem querer tinha ouvido. Catalani e Vergil…
Incrível. Assombroso.
Esse hipócrita.
Não era estranho que desse por certo que todas as artistas se convertiam em cortesãs ou em amantes. Ele provavelmente tinha toda uma fileira delas em seu passado, depois desse verão com Catalani. Provavelmente tinha uma instalada nesse imóvel do norte, precisamente como Charlotte especulava. Era um lugar isolado e discreto e ninguém nunca se inteiraria.
Pobre Fleur.
O muito descarado.
E justo no dia anterior pela manhã nas ruínas… Certamente aquilo jogava uma desagradável luz nisso também. Pelo que ela sabia, ele era um predador que queria mantê-la perto pela mais desonesta das razões. Ele podia ser… Podia ser perigoso.
O silêncio prolongado indicava que Vergil e Catalani se afastaram da porta. Esticou seus braços e pernas e tentou assimilar seu alarmante descobrimento.
A partir de agora já não ia ser a única culpada pelo ocorrido no dia anterior. Ao princípio sentia que era, em parte por Fleur e em parte porque parecia que aquilo foi uma inexplicável falha por sua parte quando tentava olhar da perspectiva dele. Mas se ele não foi um santo em sua juventude, provavelmente não teria se convertido em um mais tarde, e à luz destas notícias, a falha depois de tudo não tinha sido inexplicável.
Teria sido agradável jogar a culpa inteiramente nele, mas suas lembranças não a permitiam fazê-lo. Bem. Os dois eram culpados então.
Ou não, depende de como se olhe.
Ela não se sentia inclinada a culpar ninguém. Aquele abraço e esses beijos foram gloriosos e excitantes. Capazes de provocar uma intimidade que jamais conheceu e um laço que parecia inquebrável. Era por isso que ela sentia sua presença todo o tempo e que seu coração pulsava tão forte quando ele se aproximava. Devia reconhecer que estava esperando algum sinal de que ele também sentisse essas correntes invisíveis forjadas por aquela breve paixão.
Passou a mão pelos olhos e deixou escapar um gemido. Uma experiência como aquela podia fazer que ela se sentisse transportada, mas dificilmente mudaria algo no interior de um homem como o visconde Laclere. Ele teve a grande Catalani como amante. Uns poucos beijos e toques com uma inexperiente recruta para as paixões podiam esquecer-se facilmente.
Ela simplesmente deveria esquecê-los também. Era isso sem dúvida o que ele esperava.
Tentou concentrar-se nessa decisão. Sua cabeça estava decidida, mas seu coração não cooperava. Continuava vendo aquela expressão em seus olhos e voltava a sentir a excitação mágica de seu abraço.
Seu peito se enchia com uma esperançosa alegria que a impulsionava a cantar, e depois se esvaziava com uma decepcionante tristeza que a levava a beira das lágrimas.
Deixou escapar um suspiro e se endireitou. Converteu-se em uma pessoa triste e confusa que não reconhecia. Precisava encontrar a Bianca que foi até ontem.
Simplesmente daria um passo para trás e voltaria a recolher os fios de sua vida. Reataria seu plano para conseguir que ele a enviasse longe, só que desta vez seria a Baltimore. Ir se tornou fundamental agora.
Não podia viver os próximos dez meses desta forma, obcecada com um homem que, sem dúvida, estava arrependido do que ocorreu entre eles e o único que queria era manter-se afastado dela.
Precisava arrumar as coisas o antes possível. Teria que fazer algo muito escandaloso, algo que Vergil não pudesse ignorar, nem esquecer.
De repente a solução parecia evidente. Vergil podia racionalizar um episódio que aconteceu com ele culpando a si mesmo, mas dificilmente poderia fazer o mesmo se ela repetia esse episódio com outro homem pouco depois. Ele poderia ter aventuras com mulheres como Catalani, mas um irmão responsável não permitiria que Catalani vivesse com Charlotte.
Quem poderia ser o outro homem? Nigel não. Vergil podia decidir mantê-lo afastado.
Dante?
Pela primeira vez nas últimas vinte e quatro horas voltava a sentir-se como a Bianca de sempre. Planejar sua próxima jogada a ajudava a manter sua mente afastada da tristeza que roia sua alma.
Sim, Dante o faria muito bem, um libertino dificilmente poderia decepcioná-la.
***
No dia seguinte a festa se estendeu à beira do lago, e os convidados desfrutaram de uma tarde relaxada. Haviam trazido livros e cadernos de desenho nos carros, e muitas sombrinhas para as damas. Dante e Cornell Witherby tiraram as botas e as meias e jogaram suas linhas das varas de pescar na água profunda.
Dante saiu do lago. Ela captou seu olhar enquanto estava se secando. Sorriu-lhe. Depois de colocar as botas se aproximou dela.
Bianca nunca viu até que ponto eram sensíveis os homens. Se ele não fosse um libertino, ela teria se sentido culpada.
Dante vagabundeava a seu lado.
—Não desenha?
—Nunca aprendi. Minha educação não incluiu as típicas atividades de salão.
Ela notou que Vergil se levantava de seu lugar e rondava entre as árvores. Como se seu movimento fizesse com que os outros membros da festa começassem a reagrupar-se. Pen e Catalani aproximaram suas sombrinhas para Fleur.
—Se molhar no lago deve ser refrescante em um dia tão quente — continuou Bianca— Te invejo.
Ele entreabriu as pálpebras e a olhou daquele modo tão íntimo. Ela soube que estava recordando o banho que a viu tomando no lago no dia de sua chegada. Isso a fez dar-se conta de que estava jogando um jogo perigoso. Teria que escolher o momento com enorme cuidado.
—Estou cansada de estar sentada. Acredito que darei uma volta — anunciou ela.
—Posso te acompanhar?
—Seria uma amabilidade por sua parte.
O atalho formava um grande círculo através das árvores e arbustos. Ela o conduziu em direção oposta a que havia escolhido Vergil.
—Partirá com os outros amanhã? —perguntou-lhe ela.
—Acredito que ficarei alguns dias mais.
—Charlotte diz que o campo te parece aborrecido.
—Esta visita não foi aborrecida absolutamente, graças a sua companhia. E você? Poderá viver em Laclere Park durante os meses que ficam por diante?
—Confesso que duvido. Felizmente, Pen falou que terá que fazer logo uma visita a Londres, para que Charlotte possa escolher sua roupa da próxima temporada.
—Essa é uma razão para estar ali quando vierem.
Entraram em uma zona onde as árvores escasseavam e só a erva, muito cheia, e os arbustos flanqueavam o atalho. Ao fundo de uma colina não muito alta havia um claro cheio de flores perto de um lago.
—Olhe, campânulas azuis. Me ajude a baixar para poder pegar algumas.
Dante a ajudou com prazer e juntos desceram pela colina. Ela se ajoelhou em meio daquela fragrância e começou a recolher os brotos. Ele olhou ao redor assegurando-se de que estavam a sós e se acomodou junto a ela.
Ela esquadrinhou os altos arbustos que escondiam o atalho, esperando divisar o cabelo escuro de Vergil. Logo teria que passar por ali.
—Está preciosa, senhorita Kenwood, rodeada dessas flores. Fazem seus olhos ainda mais azuis.
—Me chame Bianca, Dante.
Parecia um homem encantado por uma súbita mudança de sorte.
Ainda não havia rastro de Vergil.
—É uma honra para mim que tenha aceitado passear hoje comigo. Preocupava-me que meu comportamento na biblioteca a tivesse deixado zangada e assustada.
—Zangada não. Só um pouco assustada, confesso.
—É a reação que qualquer um esperaria de uma jovem inocente. Te beijar dessa forma foi muito pouco apropriado. A única desculpa que posso usar em meu favor é que estava irresistível debaixo dessa luz tênue, e perdi o controle.
—Não precisa se desculpar. Não me senti ofendida, só surpreendida. Se reagi de forma brusca, foi por isso.
—Posso tomar como uma indicação de que minhas intenções podem chegar a encontrar seu favor?
Soava como uma frase que Vergil poderia ter dito. Só que Vergil não havia dito nada amável antes de beijá-la, e agora este libertino sim o fazia. Os homens podiam chegar a confundir muito as mulheres.
—Isso depende de quais sejam suas intenções.
—São completamente honestas, Bianca, prometo isso.
Não a havia tocado. Não se aproximou mais.
Quanto precisava ver-se animado um libertino? Olhou para o atalho com ansiedade.
—Mas não muito honestas, espero.
Sorriu surpreso e encantado, mas seguiu sem mover-se. A que vinha esse repentino e inoportuno autodomínio?
—Não pode saber quão feliz isso me faz. Agora deveríamos reatar nosso passeio e voltar junto aos outros.
Não podia acreditar no que acabava de ouvir.
—Ainda não quero voltar com os outros. Preferiria ficar aqui contigo.
—Sinto-me adulado, Bianca, mas…
—Quero que me peça permissão para me beijar. Disse que o faria e que eu não o negaria. Estive pensando nisso e decidi que tinha razão. Não negaria isso.
Ele olhou ao redor comprovando seu isolamento, com evidente confusão. Ela também o fez e finalmente conseguiu ver uma cabeleira escura movendo-se entre os ramos dos arbustos.
—Será melhor irmos agora — disse ele.
Para que servia um libertino se se comportava com decoro justo quando alguém necessitava que sua conduta fosse escandalosa? Além disso, tendo o convidado de forma direta a fazê-lo? Em uns poucos segundos Vergil alcançaria o topo da pequena colina e o que é o que ia ver? Nada.
A cabeleira escura estava mais perto. Mentalmente golpeou o chão com o pé, totalmente frustrada. Possivelmente nunca voltaria a ter essa oportunidade.
«Me beije idiota.»
Dante se levantou e ofereceu a mão para ajudá-la.
Ela se equilibrou sobre ele.
Ele caiu de costas sob seu peso e instintivamente a abraçou.
—Senhorita Kenwood… Bianca…
Ela o apertou contra o chão e ele lutou corpo a corpo, confuso. No frenesi que seguiu, ela rodou para que ele ficasse abraçando seu corpo recostado sobre as flores.
O mundo se endireitou e se fez o silêncio. Ela observou seu rosto, primeiro assombrado e depois perigosamente sensual.
—Bom, doce moça, já que insiste. —Levantou seu rosto para beijá-la.
Seus lábios não chegaram a encontrar-se. Um animal desbocado se precipitou da colina. Uma mão forte agarrou Dante pelo pescoço da roupa e o separou dela. Uns olhos azuis furiosos e selvagens se cravaram em um libertino tão aturdido como pasmado.
—O adverti — grunhiu Vergil.
A seguir derrubou Dante de um murro. Depois essa mesma mão levantou Bianca do chão, colocou-a direita e tirou as ervas da parte posterior de seu vestido com golpes que fizeram picar seu traseiro.
Ela olhou Dante com ar culpado. Não tinha esperado que Vergil reagisse com tanta violência.
Encarou-o com valentia. Olharam-se fixamente, ela desafiante e ele sem mal controlar sua fúria.
Dante cambaleou.
—Oh, diabos — murmurou.
—Exato — respondeu Vergil.
Aquilo a confundiu. Olhou com ar zombador de um a outro. Vergil sacudiu a cabeça com exasperação e se afastou a um lado. O olhar dela seguiu o de Dante.
Oh, Deus.
No topo da pequena colina, Fleur, Pen e Catalani observavam a cena sob suas sombrinhas.
***
—Digo-te que ela literalmente se atirou em cima. Em um momento estava oferecendo minha mão e no momento seguinte me achava escancarado no chão com ela em cima de mim.
Dante caminhava acima e abaixo frente à janela do escritório e parecia tão perturbado quanto o próprio Vergil.
Vergil permanecia atrás do escritório, porque se chegava a estar a menos de três metros de distância de seu irmão poderia lhe dar uma surra.
—Pretende que acredite que a senhorita Kenwood se lançou sobre você, te derrotou e depois te obrigou a abraçá-la? É ridículo.
—Me escute. Eu estava ali ajoelhado, a ponto de me levantar. Ela acabava de me pedir que a beijasse e eu tinha posto reparos. Então de repente ela se converteu em uma espécie de leão e…
—Você estava em cima dela.
—Essa parte é um pouco confusa. Tudo ocorreu muito rápido. Tenho que te dizer que seu comportamento foi surpreendente. Para ser franco direi que estou emocionado. Não recordo ter tido jamais uma experiência como esta.
—Virtualmente parece que tinha estado lutando por sua virtude.
—Bom, foi tão insistente. E eu sou humano.
Muito humano. Vergil tinha vontade de voltar a estelar seu punho contra a cara de Dante e depois agarrar Bianca Kenwood e pô-la de barriga para baixo sobre seus joelhos para lhe dar uns bons açoites.
—Não há nada mais a fazer, é obvio — disse Dante— Já que o viram as damas.
—Se descobrir que decidiu economizar tempo como me sugeriu aqui o outro dia, te asseguro que…
—Não entendo por que está tão preocupado. É o que queria. Sou eu o que tem que casar-se com uma garota moralmente muito duvidosa.
—Moralmente muito duvidosa?
—Se foi tão atrevida comigo, a gente tem que perguntar.
Assim era. Especialmente se a gente sabia de forma comprovada que estava beijando outro homem tão somente dois dias antes. Isso explicava em parte por que estava tão zangado. Entretanto, foi o fato de vê-los abraçados o que provocou essa explosão em sua cabeça que seguia jogando suas afiadas lascas.
Ela sabia que um comportamento tão indiscreto teria consequências extremas. Ele tinha explicado detalhadamente fazia menos de dois dias. Como podia ser tão descuidada para…
Em efeito… Como?
Afundou-se em sua poltrona e refletiu sobre isso. Ele tinha saído primeiro, seguido por Bianca e Dante. As damas começaram seu passeio um pouco depois. Pen e as demais o alcançaram só porque ele se deteve para pensar sobre certas coisas. Coisas relacionadas com Bianca, em realidade.
Tudo encaixava. Ela o planejou. Pretendia que ele os encontrasse juntos. Para deixá-lo com ciúme? Isso certamente conseguiu, mas ele não podia enganar-se acreditando que essa foi sua intenção. A vingança de uma mulher pelo que ocorreu nas ruínas? Uma declaração de indiferença porque notou que ele a observava? Tentou ser muito discreto nesse sentido, mas podia ter falhado.
Maldição.
—Tinha razão em uma coisa, Verg. Terei que ser muito firme com ela. Não importa o que ocorreu no passado, não quero que tenha amantes uma vez que estejamos casados. Terá que entender isso. —A ruga de censura na boca de Dante teria feito inclusive um bispo envergonhar-se.
—Pensa dizer como tem que se comportar?
—Não penso ser um cornudo.
—Dante, você converteu em cornudos a metade dos homens da Casa dos Lordes. Crê que essa jovem vai tolerar que lhe dê lições morais?
—Um marido tem seus direitos, e eu tenho uma reputação a considerar. Apesar das prováveis manchas em sua virtude, que sem dúvida são o resultado de uma supervisão pouco estrita, é uma criatura doce e complacente.
«Complacente?»
—Assombra-me.
—Quanto a meus próprios escarcéus, espero que permaneça ignorante deles.
—Ninguém na Inglaterra os ignora.
—É evidente que está apaixonada por mim, e em seu coração ainda é uma menina inocente. Não me cabe dúvida de que aceitará qualquer acordo que eu ofereça, e se submeterá de forma adequada a minha supervisão.
«Menina inocente? Submeter-se?»
Vergil sacudiu a cabeça com incredulidade. Dante adotou o semblante de um pai de família que dá por sentada a devoção marital e a obediência de uma esposa inocente e complacente.
Não tem a mínima possibilidade.
—Se ignorarmos o que este episódio revela a respeito de seu caráter, podemos afirmar que as coisas saíram como foi pedido. Eu assumirei a culpa, é obvio, mas ela nos concedeu a vantagem.
Certamente o fez. E ele deveria estar saboreando o triunfo, mas pensar nisso unicamente o deixava doente.
—Onde ela está? —perguntou Vergil.
—Acima em seu quarto. Pen reuniu todo mundo na biblioteca, tentando fingir que não aconteceu nada. O resto não sabe, mas todos terminarão inteirando-se. Falarei com ela de uma vez e farei meu oferecimento.
—Falaremos com ela juntos. Poderia necessitar alguém que a convença.
—Não posso imaginar e todo mundo sabe as regras.
Sim, todo mundo sabia as regras, mas Bianca nem por indício se mostrou inclinada a segui-las.
Capítulo 9
Para ser um quente dia de setembro, no escritório fazia bastante frio.
Provavelmente isso tinha algo a ver com os gelados olhos azuis que ostentosamente afastavam o olhar enquanto Dante ficava de joelhos e fazia sua proposta de matrimônio.
—Portanto, embora teria preferido te cortejar e te fazer meu oferecimento da forma habitual, dadas às circunstâncias o melhor será que nos casemos imediatamente — concluiu, apertando sua mão e oferecendo um sorriso alentador.
Vergil vagabundeava em sua cadeira atrás do escritório, girado para a janela com uma expressão distraída e insípida. Sentou-se ali como uma testemunha silenciosa enquanto seu irmão representava o mais íntimo dos rituais.
Ela devolveu sua atenção a aquele homem que cambaleava apoiado em um joelho.
—Por que o melhor é nos casar?
—Por quê?
—Sim, por quê?
—Porque a alternativa, senhorita Kenwood, seria escandalosa. —O tom de aço de Vergil cortou o ar em fragmentos. — Foi vista com meu irmão, e como cavalheiro, deve fazer o correto.
Ela olhou ao belo homem ajoelhado a seu lado. Pobre Dante. Ter sido um descarado com êxito durante todos estes anos para cair na armadilha na única ocasião em que tentava comportar-se de maneira honrada.
Deu uns golpezinhos na mão de Dante.
—É muito amável ao me fazer este oferecimento, mas devo rechaçá-lo.
—Rechaçá-lo?
—Te aliviará saber que não exijo um pagamento tão grande por uma indiscrição tão pequena.
«Como seu irmão sabe muito bem.»
Ele se levantou. Não parecia aliviado absolutamente. Incrédulo e um pouco ofendido, mas não aliviado.
—Vergil…
—Dirigirei isto agora mesmo, Dante.
Bianca se moveu para ficar diretamente frente a ele.
—Descobrirá que não estou disposta a ser dirigida, e muito menos por você. É imperdoável que obrigue seu irmão, alguém de seu próprio sangue, a fazer uma coisa tão séria por uma bobagem.
—Bianca querida, asseguro que não estou absolutamente descontente por isso.
—Uma bobagem? Não foi um leve flerte o que as damas viram. Estavam deitados juntos no chão. Unicamente podia ter sido pior se seus objetos tivessem estado desatados. O que aconteceria em Baltimore se a tivessem encontrado assim?
—Imagino que se meu pai vivesse, teria dado um tiro em Dante.
—Está dizendo que preferiria que desse um tiro em meu irmão?
—Estou dizendo que ele não teria aceitado o matrimônio debaixo dessas circunstâncias. O castigo é muito permanente para um crime tão pequeno. —«Já te expliquei tudo isto antes. Recorda?»
Vergil fez ameaça de responder, mas Dante o interrompeu com um gesto dominante. Agarrou-lhe as mãos e a olhou aos olhos.
—Minha querida Bianca, lhe asseguro que não vejo isto como um castigo. Ao contrário, é como um sonho feito realidade. É por você que digo que desejaria que as circunstâncias fossem diferentes. Roubou-me o coração imediatamente. Passei estas semanas rogando encontrar algum sinal de seu afeto. Este episódio só me deu aquilo que desejava com toda minha alma muito antes do que teria atrevido a esperar.
Sentiu um nó no estômago e seu coração deu um tombo. Dizia a sério. Não aquela parte sobre lhe roubar o coração, a não ser o resto. Não o incomodava aquele desenlace.
Com a extremidade do olho observou Vergil. Parecia decidido e zangado, mas para nada surpreso.
Seu coração se afundou mais ainda.
Aquele foi o plano desde o começo. Era por isso que Dante estava ali, e por isso Vergil não a deixava ir. Dante foi escolhido para ela. Toda sua estadia em Laclere Park foi uma espécie de armadilha, e sua própria estupidez a fez pular na armadilha.
—Assim não falemos mais sobre me perdoar o castigo — continuou Dante, levando as mãos dela para seus lábios— Em uns poucos dias estaremos casados, e prometo te fazer muito feliz, querida. Fazê-lo não será um castigo absolutamente.
Seu tom tranquilizador tinha um matiz sedutor. Vergil apertou a mandíbula. A ela embrulhou o estômago.
Resgatou sua mão.
—Sinto-me adulada por seu afeto, mas devo recusar.
A seguir se fez um silêncio tão tenso que alguém desejava ouvir algum ruído. Perplexidade, logo assombro e por último preocupação se refletiram no rosto de Dante.
—Possivelmente deveria sair Dante. Eu gostaria de falar a sós com minha pupila.
—É obvio — disse Dante— Bianca… Senhorita Kenwood. —Fez uma pequena reverência e partiu.
Ela lançou um olhar de ódio a Vergil, desafiando-o que continuasse com essa farsa. Ele se levantou e caminhou até a janela.
—Com sua mãe morta tempo atrás e sua tia solteira sua educação teve carências. Me perdoe se devo te falar com maior franqueza da que os homens usam com as mulheres. Viram-lhe prostrada sob meu irmão entre as flores, ocupada em relações sexuais.
»Quando uma coisa assim é descoberta o único rumo honrado que pode tomar o homem e a única redenção para a mulher é o matrimônio. Talvez você considere que é um preço muito alto por uma indiscrição, senhorita Kenwood, mas a sociedade não vê assim.
—Se não recordo mal, também estive ocupada em relações sexuais contigo e você aceitou que rechaçasse seu oferecimento. Suponho que isso significa que você conseguiu ser honrado, mas eu não consegui ser redimida. Bem. Aceitarei a mesma solução com Dante.
—Mas não… Isto é diferente. Viram-na. As consequências não podem evitar-se.
—Então ser visto é o que faz tão escandaloso esse comportamento? Que má sorte para Dante. É uma boa coisa para ele que eu não seja uma escrava da decência.
—Não me ouviu. Quando perdeu o controle com meu irmão, também perdeu o controle sobre as consequências que seguiriam se seu comportamento fosse descoberto.
—O que te faz pensar que perdi o controle com seu irmão? Eu não recordo que foi assim absolutamente.
Ele se voltou bruscamente com uma expressão de o que? Surpresa? Alívio?
—Está me dizendo que te importunou? Forçou-te?
Parecia quase esperançoso, por um momento ao menos, não tinha um ar tão severo. O peito dela se encheu de um surpreendente desejo. Ele parecia tão… Vulnerável. Um pensamento estranho, mas isso é o que ela viu durante um instante. Fez-lhe desejar poder abandonar aquele plano tão temerário. Mas devia continuar com ele, especialmente agora que sabia por que ele se mostrou tão firme com sua decisão de que permanecesse nessa família.
—Não estou dizendo nada disso. Seria diferente aos olhos da sociedade se assim fosse?
—Não.
«E tampouco seria diferente para você. Em realidade não, apesar desse olhar. Nossa paixão foi uma intromissão que quase estraga tudo terrivelmente. Afinal, você planejou que fosse Dante quem me tivesse.»
Ela se obrigou a atuar de um modo desenvolto apesar da crua ferida que rasgava sua serenidade.
—Já imaginava. A questão é que você não deixa de falar do escândalo e da sociedade, enquanto que a mim nenhuma dessas duas coisas me preocupa o mínimo. Parece esquecer que esta não é minha sociedade.
—É a sociedade em que agora vive.
—Só temporariamente. Pergunto-me o que teria ocorrido se me tivessem surpreendido dessa forma em Baltimore. Um duelo ou um casamento, como as famílias exigem aqui, teriam sido duas possibilidades. Mas outra opção teria sido me enviar longe. Sugiro que consideremos esta última possibilidade também agora.
A expressão dele relaxou. Desta vez definitivamente parecia aliviado.
—Ah, já vejo. É obvio. Perguntava-me por que fez isso, mas agora estou começando a ver com clareza. A independência foi sua meta desde o começo e continua perseguindo-a. Mas desta vez chegou muito longe.
«E você está encantado de que o tenha feito. Encantado de que tenha caído na armadilha tão facilmente. Encantado de que Dante me tenha. Oh, Laclere…»
—Asseguro-te que o fiz porque queria fazê-lo. E acredito que deveria me permitir partir. Não tenho intenção de arrumar as coisas me casando com seu irmão. Se o resultado for um escândalo, que o seja. Suponho que será um grande escândalo, mas recairá só sobre mim se partir. Deixaremos que todo mundo saiba que ele tentou arrumar as coisas, mas que eu me neguei. Uma vez que parta, tudo será esquecido.
Ele elevou a cabeça.
—Está segura de que está disposta a suportar o desprezo com o objetivo de conseguir seus fins?
—Suportaria inclusive mais se fosse necessário. Deveria me deixar partir. Do contrário se encontrará com que sua família se converta no centro de todo tipo de comportamentos escandalosos. —Sacudiu a cabeça com a pretensão de que o gesto resultasse poderoso.
O silêncio rangia. Ela deu a volta para descobrir que ele se pôs de repente de pé junto a sua cadeira.
Não parecia nada divertido.
—Não se atreveria.
—Já me atrevi. Primeiro contigo e agora com seu irmão. Já deveria ter claro que não sou o que esperava.
—O que se supõe que significa isso?
—Abre os olhos, Laclere. Que tipo de mulher poderia saltar de um homem a outro desta maneira?
—Diga-me você, senhorita Kenwood. —Seu tom tranquilo a fez sentir-se muito incômoda.
—Uma mulher muito livre de espírito para evitar o escândalo em uma sociedade tão decente como a tua, diria eu. Você o que opina?
—Ainda não decidi.
—O que terá que decidir? Sabe que meu comportamento foi escandaloso, e nem sequer sinto remorso. Oponho-me a ser redimida. A conclusão que deve extrair disso é muito pouco atrativa, mas nem sequer me importa.
—Que conclusão é essa?
Aquele descarado ia fazer que tivesse que explicar. Ela ficou de pé, cambaleante, confiando em que se armaria de valor se se sentisse menos pequena.
—A conclusão é que eu gosto muito dos homens para ser uma mulher decente. E que sou muito… Experiente para formar parte da respeitável sociedade inglesa.
Ele levantou um olho.
—Experiente?
—Perigosa, diz-se em Baltimore.
—Agora perigosa.
—Sim. Perigosa. De fato, há quem diz… Inclusive ouvi que algumas pessoas pensam que sou… Malvada.
—Está dizendo que houve outros homens?
Tornou-se difícil atuar com ar frívolo e despreocupado. Ele a estava fazendo sentir-se incômoda, ridícula e aturdida. Voltou para seus olhos algo daquela expressão que tinha nas ruínas, e seu olhar parecia mais profundo. É obvio era absurdo. Provavelmente simplesmente estava logicamente horrorizado por sua confissão.
—Outros homens? Refere-se além de Dante e de você?
—Refiro-me além de mim. Meu irmão me disse que em realidade hoje ocorreu muito pouco.
Aquele detalhe parecia o agradar muito. Uma rajada de irritação a sacudiu. Elevou o queixo para ele.
—É obvio que houve outros homens. Não acreditará que o ar inglês me fez perder a cabeça de repente. Entre todas as atmosferas que há no mundo, esta tão asfixiante é a que menos probabilidades teria para fazer que uma mulher perdesse a cabeça. Houve muitos outros homens.
Isso ele não gostou. Bem.
Aproximou-se mais, inclinando seu rosto para o dela.
—Muitos?
—Muitos. Dúzias.
—Dúzias?
—Centenas.
Achavam-se de pé frente a frente, desafiando-se mutuamente.
Um sorriso crispado.
—Centenas? É uma atriz soberba, e teria estado magnífica sobre o cenário, mas… Centenas?
—Sim, centenas.
Ele riu.
—Deveria ter ficado em muitos. Ou ao menos em dúzias. Mas centenas…
—Não acredita?
—Absolutamente.
Estava tão atrativo com esse sorriso suavizando sua boca e o humor cintilando em seus olhos. Incrivelmente atrativo. E aliviado. Para falar a verdade, triunfante.
Isso a fez zangar-se até limites insuspeitados, e reprimiu a estranha onda de emoção que bobamente se acendia em resposta a esse sorriso.
Chegou muito longe com este assunto, arriscou-se a ser assaltada por um conhecido libertino, provocou um escândalo que apesar de tanta fanfarronada ia ser terrível enfrentar e ele se negava a ver sua má reputação embora a estivesse lançando à cara. Isso a enfureceu, inclusive embora em seu coração, estupidamente, houvesse um brilho de gratidão.
—Não acredita porque seu orgulho masculino não quer aceitar que você não foi mais que um entre centenas, isso é tudo.
—Estou seguro de que não fui um entre centenas, e tampouco um entre dúzias. Tenho sérias suspeitas de que nem sequer fui um entre muitos, e é bastante provável que tampouco tenha sido um entre dois. Deveria abandonar esta ridícula comédia de uma vez.
Algo perigoso bulia no interior de Bianca. Algo rebelde e furioso, e até um pouco mal.
Estendeu ambas as mãos e lhe agarrou a cabeça. Empurrou-o para baixo e deu um firme beijo em seus lábios.
Sustentou-o até que a comoção começou a passar, depois o soltou e deu um passo atrás antes que se recuperasse por completo.
—Centenas, tio Vergil. Sou célebre por arruinar Santos.
Deu a volta para sair como uma atriz do cenário.
Uma mão firme a agarrou pelo braço.
Como em um torvelinho que a deixou sem fôlego ela se encontrou de repente entre seus braços, que a agarravam pelos ombros e a cintura. O Vergil das ruínas a contemplava, perigosamente.
—Faz-me desejar que fosse verdade — disse ele, levantando-a até que seus pés mal roçavam o chão e inclinando sua cabeça para ela.
Ela deveria o empurrar, mas seus braços não obedeciam a suas ordens. Sua mente se nublou de repente e lutava para achar palavras para colocá-lo em seu lugar, mas seu coração pulsava tão forte que mal podia ouvir seus próprios pensamentos. Os quentes lábios dele tocaram os dela e sentiu que simplesmente já não tinha mente.
Ele enfeitiçou sua boca com seus lábios exigentes, seus dentes brincalhões e sua língua exploradora. Sensações vergonhosas caíam em cascata e, que o céu a perdoasse, gozava com elas, saboreando sua força que a abrangia por inteiro, perdendo-se nessa calidez que obscurecia qualquer tipo de consideração.
Ele enterrou seu rosto na dobra de seu pescoço, o beijou e lhe deu uma dentada. Isso enviou sacudidas para seus seios, suas coxas e até seus pés. Ele tomou de novo sua boca com ardente insistência.
Deu as boas-vindas desta vez, separando seus lábios, em um convite a essa excitante invasão.
O abraço foi evoluindo em assombrosas carícias; ele apertava seus quadris, suas costas e suas nádegas através dos objetos. Essa desavergonhada Bianca que acabava de despertar se emocionava com cada carícia possessiva. A mão dele deslizou até seus seios e sua temerária paixão entoou uma súplica para que ele se apressasse a relaxar o ansioso desejo de sua consciência, um desejo que a deixava sem fôlego.
Ele se deteve bruscamente, como se uma bofetada o tivesse feito entrar em razão.
Seus lábios se afastaram. Elevou a cabeça. Não a soltou, mas a sustentava com um silêncio embaraçoso, acariciando suas costas lenta e brandamente.
O delírio foi se acalmando, fazendo voltar a Bianca Kenwood que ela conhecia para descobri-la nos braços de um homem que deveria odiar. Mas nem sequer esta Bianca queria separar-se. Descansava junto a seu peito e flutuava na amistosa ternura daquele abraço, porque este mantinha a raia as piores de suas confusas emoções.
Finalmente, ela inclinou a cabeça. Ele olhou através da janela como se não estivesse vendo nada.
De repente a olhou, tocou seu rosto e a separou dele.
—Parece que tornei a não ser eu mesmo.
Ele queria que uma vez mais voltassem a refugiar-se em seus róis de tutor ditatorial e pupila rebelde. É obvio. Que outra coisa poderia querer? Dava no mesmo. Se ele a beijasse desse modo cada dia e a sustentasse com tanta doçura depois, ela poderia decidir que nada mais importava na vida.
Não viu crítica em seus olhos, mas tendo em conta o que ela acabava de lhe dizer podia imaginar o que estava pensando. Inclusive embora não tivesse acreditado, sem dúvida acabava de fazê-la mudar de opinião.
«Diga algo.»
É obvio que não o faria. Mas quanto desejava seu coração que ele falasse de algo naquele momento, boa ou má. Ansiava de maneira inexplicável conhecer aquele homem, quem quer que fosse realmente, um modelo de pecador ou um sórdido impostor. Desejava desfrutar ao menos uma vez aquela intimidade especial de compartilhar, depois da paixão, suas confidências, inclusive se o resultado fosse ouvir que seus lábios condenavam a mulher que ela fingia ser.
O reconhecimento de que ele nunca se abriria a ela dessa maneira, de que respondia com luxúria, mas nada mais, deixou nesse canto recém descoberto de seu coração angustia e pesar.
—Realmente deveria me deixar partir — disse fracamente— Deveria estar preocupado por minha influência sobre Charlotte, e possivelmente deveria estar preocupado por si mesmo também, se te provoco desta maneira. Está suficientemente claro que devo abandonar esta família agora mesmo.
Ele se limitava a olhá-la, com essa expressão pensativa ainda no fundo de seu olhar.
—Não me casarei com seu irmão. Se não me deixa partir, o escândalo prejudicará toda sua família. Estará na boca das pessoas por dar proteção a uma mulher assim, e Charlotte será manchada por minha amizade. Pelo bem de sua irmã, se é que não quer pelo meu e o teu, deixar que eu parta é a única escolha decente para você.
Ele seguia sem dizer nada. Possivelmente porque não havia nada a dizer. De algum modo ela conseguiu dar a volta e afastar-se. Quase às cegas por culpa das lágrimas, encontrou o caminho até a porta.
Ele não se fez recriminações esta vez. Não sentiu culpa nenhuma grande comoção. Tampouco arrependimento.
Estava encantado de que seu beijo presunçoso tivesse destruído aquele dique que estava cheio até arrebentar. Encantado de que ela o tivesse provocado para liberar seu frágil controle. Isso era tudo o que significava seu beijo, uma desculpa a que ele se agarrou implacavelmente. Ele não ia degradá-la fingindo que se tratou de um convite deliberado por parte dela.
Com que rapidez a mente se rendia ao que queriam as paixões. Seu sangue tinha retumbado e o que soube a seguir é que ela estava entre seus braços.
Não era malvada, nem experiente, mas sim era definitivamente perigosa. Ao menos para ele.
Tinha razão. Realmente deveria partir. Dentro de um dia, todo mundo naquela casa saberia o que ocorreu entre ela e Dante. Dentro de um mês, o mundo inteiro estaria sussurrando. Não é que ela não tivesse entendido as lições que Pen estava dando respeito ao código de discrição da sociedade inglesa. Deliberadamente ela dispôs tudo para usar a ameaça do escândalo contra ele.
Mas essa era só uma parte das razões pelas que deveria partir, e ela também sabia isso.
Que imagem dele teria feito. O santo lhe dando lições de comportamento e logo a seduzindo no momento seguinte. Uma imagem digna de risada no melhor dos casos, depravada no pior.
Levantou a pequena bolinha de chumbo e a fez baixar percorrendo seu caminho por seu curso. Quando esta chegou ao final do percurso voltou a fazer o mesmo. O tinido e o som metálico apagaram seus pensamentos.
Deveria deixá-la partir e permitir fazer o que queria, mas não podia fazê-lo. O antes possível, precisava recuperar o controle sobre ela, e não só porque o incessante fervor se converteu em uma excitação que desejava, que o enchia de vida.
Caminhou até o escritório e pescou uma carta entre o montão de documentos que havia ali espalhados. Abriu-a com um movimento rápido e releu a informação que o advogado de Adam Kenwood enviou.
Miúdo problema.
Necessitava que ela permanecesse ali porque podia estar em perigo. Necessitava que ficasse ali se por acaso ainda pudesse atá-la a essa família.
Necessitava que ficasse ali porque sua ausência provocaria um vazio em sua vida, mas ela o encurralou para que tivesse que deixá-la partir.
Sorriu com tristeza e admiração. Ela chegou muito longe, e conseguiu que ele tivesse que atuar contra sua vontade.
A porta se abriu e apareceu a escura cabeça de Penelope.
—Vergil, teria um momento para nós?
—É obvio Pen.
A outra parte do «nós» resultaram ser Maria Catalani e Fleur. Esta última se dirigiu até o assento da janela e as demais se colocaram em cadeiras.
Penelope deixou escapar um profundo suspiro.
—Este é um assunto muito desafortunado. Não pode dizer que não te avisei.
—É certo, Pen. Não posso dizer isso.
—Suponho que Dante ofereceu casar-se com ela quando estavam os dois aqui.
—Não tive que apontá-lo com uma pistola, se isso a preocupa. Sente um grande afeto pela senhorita Kenwood, e pretendia propor-lhe em qualquer caso.
—Ah, sim? É interessante, mas não é isso o que me preocupa. Ou melhor dizendo, o que nos preocupa. —Assinalou Catalani e Fleur— Bianca é muito inocente para proteger-se de alguém como Dante. Deveríamos tê-lo advertido. E o que é pior, não acredito que ela sinta o mesmo afeto que ele sente por ela e poderia ser muito desafortunado que a obrigássemos a casar.
—Desafortunado não. Trágico — entoou Catalani— Não acredito que o matrimônio estivesse entre os planos de seu irmão, Laclere.
—Os planos às vezes mudam.
—É o desprezo típico de um homem arrogante ante as preferências de uma moça. E quanto a este casamento… Um homem tira vantagem da inocência de uma garota e a resposta de todo mundo é casá-los. É uma barbárie. Em meu país é pior, mas isto também é uma barbárie.
—Assim já vê — disse Pen— nós não acreditamos que o casamento seja uma solução.
—Bem, damas, suponho que eu deveria defender sua honra matando Dante, se isso se adaptar mais a seu gosto.
Catalani em realidade assentiu com a cabeça, mas Pen parecia horrorizada.
—Nos interpretou mal. Estivemos conversando e estamos de acordo em que o propósito do casamento é evitar o escândalo. Viemos te dizer que pode não haver um escândalo.
—Eu diria que pode haver um grande escândalo.
—Absolutamente. Maria, Fleur e eu nos demos conta…
—… De que não vimos nada — terminou Catalani triunfante.
Ele se colocou em sua cadeira e as olhou.
—Não viram nada?
—Exatamente, Laclere. Nada. Assim falar de casamento seria muito.
—Segundo recordo, viram o bastante.
—Oh, não — disse Pen— Maria estava nos falando de um novo corte de mangas que se pôs de moda em Milão e estávamos absortas na conversa. Até que os três não subiram à colina nem sequer demos conta de que Bianca e Dante estavam ali.
—Pensam ocultar isto entre vocês?
—Não há nada a ocultar. Mas embora o houvesse, não voltaremos a falar disso após sair desta estadia, nem sequer entre nós. O fato é que não vimos nada.
Vergil deveria resistir a aquela solução e esperar que Bianca mudasse de opinião, mas o alívio com o que ouviu o plano de Pen indicou que ele teria abraçado aquela oferta de silêncio inclusive embora Bianca tivesse aceitado o casamento desde o começo.
Naquele instante soube que não queria que Dante a tivesse. E tampouco nenhum outro homem. Exceto ele.
O qual era impossível.
Voltou-se para Fleur.
Ela notou sua atenção.
—Sou a última mulher no mundo que forçaria uma garota a casar-se, Laclere.
Ele considerou aquele indulto. Desse modo não teria que ir. Estaria a salvo. Agora ele podia mudar esses planos.
Ainda a veria.
—Nunca ouvi de mulheres que possam guardar em segredo estas coisas, e tampouco de homens. Entretanto, se pensarem que podem fazê-lo, possivelmente possa evitar-se o desastre.
—Posso ser uma muito discreta quando está justificado — disse Catalani, arqueando suas sobrancelhas de maneira significativa.
—Bom, agora que tudo está arrumado, devemos ir nos vestir para o jantar —disse Pen, levantando-se— É muito generoso por sua parte ser tão pormenorizado com este assunto, Vergil. Prometo que ninguém nunca saberá que por uma vez saltou as regras.
—Muito bem, Pen. Certamente não devemos deixar que ninguém saiba.
Encontrou Dante só na biblioteca.
—Parece que está salvo. As damas insistem em que não viram absolutamente nada. Caso que a senhorita Kenwood não dará início a rumores sobre si mesma, o qual apesar de seu descaramento resulta bastante improvável, o casamento não será necessário.
Dante elevou os braços em um gesto exasperado.
—Esqueceu que não queríamos que eu fosse salvo?
—Eu deixei bem claro que não queria apanhar a garota contra sua vontade.
—Eu não a apanhei, maldita seja, ela me apanhou.
—Será melhor que vá amanhã com os outros. Se te separar dela um tempo, voltará a sentir-se predisposta a seus cuidados.
—É mais tenaz que eu. A garota simplesmente me rechaçou, possivelmente não o tenha ouvido tão claramente como eu.
—Ouvi uma garota jovem opondo-se a ser coagida pelas circunstâncias.
—Não me importam as razões pelas que me rechaçou. Foi insultante, especialmente tendo em conta que a alternativa era desoladora. Subentendia-se que casar-se comigo para ela era um destino pior que a morte, e embora eu não seja um grande partido… Se não fosse por sua herança, mandaria você ao inferno.
—Pen levará ela e Charlotte a Londres logo. Espero que fiquem ali ao menos uma quinzena. Eu as acompanharei e ficarei com elas uns poucos dias, mas seria conveniente que você me substituísse quando for. Tanto se a senhorita Kenwood se interessa por você como se não, eu não gosto da ideia de que esteja sozinha na cidade com a única vigilância de Pen. Tem uma mente muito independente e pode tentar sair por sua própria conta.
—Não me surpreenderia que houvesse homens suficientes para vigiá-la assim que Pen comece a apresentar gente por ali.
—Exatamente, Dante. Se não se casar contigo, preferiria que não se casasse com ninguém de momento. Em particular, não quero que Nigel volte a estar a sós com ela em nenhum caso. Quero que esteja ali para se assegurar de que não tem a oportunidade de meter-se em mais problemas. Com um pouco de sorte, entretanto, poderá lutar por seus próprios interesses.
Em realidade não era isso o que acreditava, mas se Dante continuava cortejando-a ele se asseguraria de que alguém de confiança estivesse perto dela.
Depois do ocorrido no escritório, tornou-se imperativo que, em caso de ser possível, esse alguém de confiança não fosse ele a não ser outro homem.
Ao mesmo tempo, a falta de entusiasmo de Dante o animava, e lhe evitava um possível sentimento de culpa. Se Dante se apaixonou por ela…
—Possivelmente seja melhor que procure logo alguma nova conquista — acrescentou.
—Sei como dirigir às mulheres, Verg.
—É obvio. Minhas desculpas.
—Serei sutil. Condenadamente sutil. Não gostaria que essa garota me fizesse sentir de novo como um idiota.
Vergil deu a volta para ir encontrar-se com Fleur. Com um pouco de sorte, Dante seria tão sutil que Bianca nem sequer se daria conta de que ele continuava olhando-a.
Fleur estava sentada no banco onde às vezes se encontravam para conversar longe dos esperançosos olhos de sua mãe. Estava tão preciosa como sempre, parecia uma boneca de porcelana ou o belo retrato de um grande mestre. Voltou-se ao ouvir seus passos e esboçou um sorriso irônico.
—Espero que não tenhamos estragado muito seus planos.
Ele se sentou a seu lado.
—A verdade é que não. Foi ideia de Catalani?
—De Pen, embora a solução passasse pela minha mente. Entretanto, não teria me atrevido a propô-la por minha conta. Não sabia se te pareceria bem ou não.
—A união teria sido conveniente, mas as circunstâncias não me convenciam.
Estavam sentados, no meio do silêncio satisfeito da amizade. Ele estudou o sereno e delicado perfil dela, que sempre tinha admirado com uma peculiar objetividade. Nunca sentiu paixão por aquela deliciosa mulher, nem sequer antes de saber que ela era incapaz de sentir paixão por ele.
—Minha mãe está deixando ver sua impaciência, não acha? Fez alguns comentários nesta visita.
—Mostrou-se mordaz antes do que esperava. Não acredito que seja um motivo para preocupar-se, mas…
Ela levantou uma mão para interrompê-lo, e logo a deixou cair em um gesto de impotência sobre seu colo.
—Isso significa que há gente que esteve fazendo comentários. Já sei que passou quase um ano, mas eu esperava que pudéssemos esperar outra temporada.
—Eu também. Não parece possível.
—Não. Oh, quanto me incomoda isto, Laclere. A temporada passada foi a primeira que pude desfrutar. Sem pretendentes me incomodando com seus estúpidos pedidos. Sem especulações intermináveis sobre este ou aquele casal. Sem pressões por parte de meu pai, e o melhor de tudo, um bom amigo com quem poder desfrutar dos bailes. Uma mulher deveria poder desfrutar desta paz todo o tempo se assim o escolher.
Seu ardor teria surpreendido a qualquer outra pessoa que a conhecesse. Entretanto, ele a viu afogada em lágrimas, confessando os medos que a faziam resistir ao casamento, admitindo que não podia contemplar o amor de nenhum homem sem sentir calafrios de terror. Uma profunda amizade surgiu desta inesperada confissão, e uma associação fortuita se converteu em um engano calculado. Entretanto, um estratagema como aquele tinha uma duração limitada.
—Uma mulher de sua beleza está destinada a atrair pretendentes, Fleur, especialmente se, além disso, possui sua fortuna. Se fosse mais amável com eles, possivelmente algum…
—Você não, Laclere. Por favor, você não. Perdoe meu arrebatamento. Foi muito amável, me acompanhando em uma dança do qual sabia o final.
—Não foi amabilidade, Fleur. Recorda que isso me evitou as tribulações do mercado matrimonial. Por motivos próprios, tenho tantas razões para querer evitar que me pressionem para que tome uma esposa como você para evitar um marido.
—Nunca me disse por que. Não é justo compartilhar confidências só por uma parte. Muitas vezes senti a tentação de tentar averiguar seu segredo. Confio em que não seja nada sórdido.
—Isso depende do que chama sórdido.
—Nada que você estivesse disposto a fazer, estou segura. —Sua risada se converteu em um suspiro— Bonito casal fazemos Laclere. Acha que alguém descobriu nosso pequeno trato?
—Não, mas é provável que alguns comecem a fazer perguntas.
Girou para ele seus olhos pensativos e voltou a franzir o cenho.
—Suponho que sim, sobre tudo se minha mãe se tornou tão atrevida. Isto afeta a você, não? A suspeita de que não está se comportando de maneira honesta comigo.
—Não se disse nada disso, Fleur, não acredito que minha reputação se viu afetada.
—Mas minha mãe… Sim, as pessoas estão começando a fazer perguntas. Antes que partamos direi a minha mãe que você me ofereceu matrimônio e eu te rechacei. Deixarei que se saiba que a decisão foi minha, como sempre te prometi. Meu pai ficará furioso, é obvio. Sempre o faz quando deixo escapar um título. —Elevou a cabeça— A menos, naturalmente, que tenha decidido aceitar o acordo que te propus a primavera passada.
Ele não pôde mais que sorrir.
—Tinha seu atrativo. Uma solução permanente para os dois, e além sua herança. Mas não posso me casar agora, Fleur. Se chegar um dia em que posso, vou querer meninos. Um matrimônio sem filhos não é para mim. Não me cabe dúvida de que achará algum outro homem que aceite sua proposta.
—Não farei esse oferecimento a mais ninguém. Não confio em que nenhum outro homem respeite as condições. E além não espero achar nenhum outro de cuja companhia desfrute o bastante para contemplar a ideia de compartilhar minha vida com ele. Acredito que assim que rompamos esta relação empreenderei uma longa viagem. Muito longa. Quando voltar serei o bastante velha para tomar o hábito.
—Não é necessário que diga a sua mãe imediatamente. Tome o tempo que queira.
—Possivelmente possa alongá-lo um mês mais. Expressar alguma reserva a princípio, esse tipo de coisas.
Tocou sua mão.
—Não há pressa, como te disse.
Ela girou sua palma suave e pegou a sua com o desespero de uma criatura.
—Não quero enfrentar outra vez à solidão — sussurrou— Me prometa que sempre seremos amigos.
Quem dera pudesse salvá-la. Quem dera pudesse acabar com suas lágrimas e conseguir que encontrasse a felicidade junto a um bom homem.
Apertou com força sua pequena mão, para enfatizar suas palavras.
—É obvio Fleur. Sempre poderá contar comigo.
Capítulo 10
Os sabres chocavam e soavam sob o olho atento de Chevalier Corbet. Vergil fez frente ao desafio de Cornell Witherby. Do outro lado da grande estadia do imóvel de Hampstead, Julian Hampton treinava com Adrian Burchard. Dante e Colin, o irmão de Adrian formavam um terceiro par.
—Melhorou — disse Vergil enquanto parava a espada de Witherby com um novo movimento.
—Você não.
Não, ele não. Levava meses sem aparecer por ali. Aquilo que foi um esporte regular antes de converter-se em visconde se transformou em uma diversão que tinha pouco tempo para desfrutar.
Não só sua destreza se viu afetada, mas também a amizade que compartilhava com aqueles homens. Hoje tinha procurado tempo para eles e para o exercício.
O treinamento continuava, com o velho Chevalier francês repartindo elogios e críticas.
—Suas irmãs vieram à cidade contigo? —perguntou Witherby enquanto faziam uma pausa e se achavam frente a frente.
O brilho dos olhos de Witherby revelava mais do que Vergil queria saber. Ele tinha visto como mudou o comportamento de Pen desde a festa na casa. Sua felicidade entusiasta fazia mais fácil que ele se acostumasse a essa escandalosa intimidade, mas havia um marido que não faria jamais o mesmo. Vergil confiava em que se iniciavam uma história de amor, seu amigo seria cuidadosamente discreto, e não só por causa de sua velha amizade. Nenhum homem queria ser levado ante um tribunal por manter uma relação com a esposa de um conde.
—Sim, as duas vieram. Chegou o momento de preparar a primeira temporada de Charlotte.
Witherby pôs os olhos em branco.
—Sempre considerei um dom do céu não ter irmãs que requeiram esses gastos.
—Bom, todos achamos nossas maneiras de nos endividar, e uma irmã é um motivo tão digno como qualquer outro.
—Fala por você. Eu sou felizmente solvente.
Não havia dúvida de que tentava transmitir confiança ao irmão da mulher que pretendia, mas a Vergil a confissão pareceu interessante. Ao que parecia, a imprensa que tinha Witherby como negócio, que gostava de tratar como o simples hobby de um cavalheiro, servia para o propósito básico de incrementar sua renda.
Voltaram para o treinamento, mas um ruído a seu lado os deteve. Hampton e Burchard se dirigiam para a entrada com o propósito de sair.
Vergil fez uma exibição melhor durante os minutos seguintes. A falta de prática o obstaculizava menos com cada movimento. Obrigou-se a concentrar-se na tarefa e isso lhe fez melhorar notavelmente. Em lugar de continuar refletindo sobre sua improdutiva investigação da morte de Milton, ou explorando pensamentos indecentes relacionados com Bianca Kenwood, concentrou sua atenção nos movimentos de seu sabre.
O Chevalier ordenou uma parada e deu pequenas lições a respeito de como melhorar. Depois de um tempo se reuniram com Hampton e Burchard no vestuário, enquanto o Chevalier atendia desta vez Colin e Dante.
—Me alegro que pôde se reunir conosco, Duclairc — disse Hampton enquanto atava seu lenço ante o reflexo de um pequeno espelho enganchado à parede— Vai voltar para o clube?
—Tenho que acompanhar minhas irmãs esta tarde. Pen vai encarregar o vestido de apresentação de Charlotte.
—Não diga mais. Inclusive sob sua supervisão o gasto será obsceno. Se as deixasse por sua conta, o arruinariam.
Já vestido, Adrian se reuniu com eles.
—Ficará na cidade durante uns dias?
—Dois ou três.
—Te chamarei.
Vergil sabia por que Adrian pensava em chamá-lo, e sobre o que queria discutir. Mas embora quisesse saber o que Adrian descobriu em sua missão por Wellington, não desejava revelar suas próprias investigações.
Hampton e Adrian se dirigiram para pedir seus cavalos. Ao minuto de sua partida, os ruídos de uma briga penetraram através da janela do vestuário. De um carro se ouvia um homem que gritava maldições.
Vergil pegou seu casaco e se dirigiu para a entrada principal com Witherby logo atrás. Reuniram-se com Hampton e Adrian justo quando um homem esbelto com o cabelo cinza saltava do carro.
Tratava-se do conde de Glasbury, o marido de Penelope.
—Demônio — grunhiu, assinalando com uma bengala enquanto se dirigia a grandes pernadas para os homens que permaneciam junto à porta do edifício— Você, desprezível descarado.
Witherby ficou tenso. Vergil se aproximou uns passos a ele, para formar um escudo humano, e Adrian se aproximou pelo outro lado.
O conde avançava brandindo a bengala como se fosse uma espada. Sua boca frouxa formava uma linha flácida e franzida e seu rosto se voltava mais e mais vermelho a cada passo.
Entretanto, a ponta da bengala não se dirigiu a Witherby, mas sim o conde deu um golpe no peito de Julian Hampton.
—Não serei sua vítima — disse o conde, lhe cravando a bengala com cada palavra— Quem acredita que é se atrevendo a tentar rir de mim?
Hampton mal reagiu. Sua mão agarrou a ponta da bengala que descansava sobre seu peito. Nem sequer a afastou. Simplesmente a sustentou e caminhou para diante, obrigando o conde a retroceder.
Quando o teve a umas vinte jardas, puxou a bengala arrancando-a das mãos do conde e jogando-a no chão.
Teve então lugar uma conversa que nem Vergil, nem outros puderam ouvir. Vergil não podia ver o rosto de Hampton, mas era testemunha das reações do conde. O homem parecia meio louco, e não era só por culpa da ira. Um terror desesperado ardia em seus olhos.
O conde girou sobre seus calcanhares e dirigiu a Vergil um penetrante e desdenhoso olhar enquanto voltava a subir no carro. Como uma insígnia lançada à luz do sol, o carro se afastou.
—Serei condenado — murmurou Witherby com preocupação— Hampton? Quem pode ter pensado…?
—Isto não tem nada a ver com a condessa — disse Adrian.
A expressão de Hampton não mostrava nenhuma reação ante o drama que os tinha reunido.
—Um mal-entendido — disse em um tom anódino.
Todos pediram seus cavalos para cavalgar de retorno à cidade. Enquanto Vergil se preparava para montar, captou o olhar de Adrian. Não foi difícil, porque Adrian estava tentando que assim fosse.
Não necessitaram palavras para reconhecer a conclusão de ambos em relação ao que acabava de acontecer.
Alguém estava tentando chantagear o conde de Glasbury, e o conde acreditava que se tratava de Julian Hampton.
***
Bianca revisava as lâminas de moda e escolheu uma para afastá-la a um lado.
Muito despreocupadamente, Diane Saint John a tirou dentre as lâminas preferidas e a devolveu à pilha original.
—A cintura é muito alta.
Ao outro lado do elegante salão, Penelope e Charlotte inclinavam as cabeças, falavam com madame Tissot, discutiam sobre desenhos para o vestido de apresentação de Charlotte. Diane se reuniu com ela para oferecer sua opinião. Ela e seu marido visitavam com frequência a casa que tinham em Paris, assim estava a par das últimas tendências, inclusive mais que madame Tissot.
Vergil esperava pacientemente. A maior parte do tempo permanecia à margem, olhando através da janela ou caminhando acima e abaixo pela estadia.
—O que ele está fazendo aqui? —sussurrou Bianca a Diane— Sem dúvida poderia confiar no gosto de Pen para estes assuntos.
Diane deu a Vergil um olhar de relance com seus olhos cheios de sentimento enquanto inclinava sua cabeça castanha para a imagem de um vestido de dia.
—Possivelmente sua espera não tenha nada a ver com questões de moda.
—Bom, a verdade é que agora está todo o tempo em cima. Partiu de Laclere Park com o resto dos convidados depois da festa, mas depois inexplicavelmente retornou para viajar conosco a Londres. Agora a cada dia aparece na casa de Pen, sempre a tempo para nos acompanhar. Estas visitas a modistas devem aborrecê-lo.
—Sua irmã representará à família quando for apresentada. Entretanto, possivelmente a companhia feminina não pareça aborrecida. A muitos homens passa. —Diane falava tranquila e distraidamente, mas seu pequeno sorriso levou Bianca a perguntar-se se a senhora Saint John se referia à companhia de alguma mulher em particular.
Horrorizou-lhe pensar que talvez alguém tenha adivinhado algo sobre isso, especialmente tendo em conta que a essa altura Diane provavelmente já teria ouvido falar sobre o episódio com Dante.
Bianca estava segura de que a presença do visconde não tinha nada a ver com o desejo de sua companhia. Vergil andava rondando por alguma razão, provavelmente para vigiar a quantidade a que ascendiam os gastos do novo vestuário de Charlotte. Entretanto, o resultado tinha sido que Bianca não tinha podido escapulir como precisava fazer. O pior era que estava obrigada a suportar a desagradável presença de um homem com quem já tinha perdido o controle duas vezes.
E ele não parecia incômodo absolutamente. Atuava com tanta calma que alguém poderia pensar que já esqueceu aqueles episódios.
Exceto por alguns momentos em que ela o surpreendia olhando-a com uns olhos que parecia lembrar-se de tudo. Esses olhares davam pequenas sacudidas em sua serenidade. Eram provocações escandalosamente excitantes.
Uma mão masculina se aproximou de seu ombro e pegou uma lâmina da pilha.
—Este. Sem o laço nos ombros e nesta cor rosa daqui.
Com um movimento fluido, Diane Saint John se levantou e caminhou a grandes passos através da estadia até onde se achava madame Tissot desdobrando xales de seda para a noite.
—Eu preferiria este outro — disse Bianca, mostrando um chamativo vestido de baile com um excesso de volantes— Em vermelho escarlate.
—Entendo por que madame Tissot se negou a aceitar seus encargos. Ela tem seus critérios.
—Então terei que encontrar outra costureira que me vista como a sociedade espera. Não tem sentido que me envolva em seda rosa se todo mundo irá me ver escarlate de todos os modos.
—Não tem que preocupar-se por isso. Está claro que o episódio com meu irmão permanece oculto.
Ela o olhou surpreendida. Tinha assumido que a força da reputação de Vergil simplesmente tinha atrasado a tormenta.
—Passou uma quinzena, senhorita Kenwood. Se alguém dessa casa soubesse e tivesse intenção de contar a outros, já o teria feito. Salvou-se do escândalo.
—Possivelmente eu conte.
—Não acredito. Sofrer disparos de pistolas de outros é uma coisa. Voltar sobre a gente mesmo a própria pistola é muito diferente. Tem que estar muito desesperado para fazer isso. A teimosia não é suficiente.
Estava certo. Fortaleceu-se para ser atacada com o desprezo, em parte concentrando-se em como escapar dele. Necessitaria mais determinação da que possuía para provocar deliberadamente as fofocas que poderiam fazê-la livre.
Suspeitava que ele pensou em uma maneira de frustrar seu plano. Menos mal, então, que ela tinha um plano alternativo.
Madame Tissot desdobrava um ostentoso xale. Tecido em uma delicada seda de uma cor safira intensa com matizes violeta, ondeava sobre o colo de Charlotte como um redemoinho de água. A costureira elevou a cabeça com gravidade, depois a sacudiu com um suspiro.
—A cor não é adequada, senhorita. Dado que não é uma cor de moda este ano, deve cair muito bem à mulher que o leve.
Vergil se aproximou e pegou o delicioso xale. Caiu em cascata de sua mão como uma cachoeira.
Madame Tissot notou que gostava.
—Entretanto, com o vestido adequado, um violeta possivelmente…
—Ficaria bem em minha pupila.
Madame Tissot olhou Bianca com novos olhos. No momento a pequena mulher francesa havia coberto com o xale seus braços e suas costas.
—Fica precioso — disse Diane Saint John— Tem um olho excelente, Laclere.
Charlotte começou a aplaudir.
—É formoso Bianca. Tem que ficar com ele faz jogo com seus olhos Pen.
—Sim, deve ficar — repetiu Vergil— E o vestido violeta também, madame Tissot. Porém recatado e discreto.
—É obvio lorde Laclere.
Madame Tissot escoltou Bianca até seu santuário pessoal e iniciou um frenesi de medidas e provas. Uma hora mais tarde Bianca voltou a aparecer na sala principal para encontrar só Penelope, Diane e Charlotte esperando-a. O tutor que tão imperiosamente acabava de gastar um considerável beliscão de sua renda havia desaparecido.
O que significava que só Penelope se interpunha entre ela e umas poucas horas de liberdade.
—Voltemos caminhando — sugeriu ela enquanto Roger, o lacaio de Pen, levava o pacote com o xale até o carro.
—Céus, não — disse Charlotte— Estou esgotada. De onde tira energia, Bianca?
—Foi uma maldição toda minha vida, e realmente sinto um grande mal-estar se não puder esgotá-la caminhando.
Pen empalideceu ante a palavra mal-estar.
—Supõe-se que vamos ao teatro esta noite. Certamente antes preferirá descansar.
—Realmente necessito um bom passeio, Pen. Um longo. Por que Charlotte e você não levam à senhora Saint John no carro? Eu as seguirei. Conheço o caminho.
Bianca deu um olhar ao redor da rua, como se esperasse encontrar reforços. Bianca já estava segura de que o general tinha abandonado o campo.
—Se meu marido não estivesse me esperando, daria esse passeio contigo — disse Diane Saint John, piscando os olhos para Bianca— A gente assimila a vida da cidade ao passear por suas ruas. Por que não lhe permitir Pen? Especialmente se isso vai evitar sentir esse mal-estar, como diz ela.
—Se insiste. Entretanto, devo exigir que Roger vá contigo. Por favor, não se manche de alcatrão e tenha muito cuidado de não se perder.
—Dificilmente poderia me perder com Roger me escoltando.
As outras damas partiram na carruagem. Bianca começou a caminhar na direção em que acabavam de partir. Roger a seguia uns poucos passos atrás.
—Posso perguntar aonde vamos senhorita Kenwood? —aventurou-se a dizer depois de caminhar uma boa meia hora.
—Ao centro.
—Ao centro financeiro? Não há nada para ver ali e está muito longe. Mais vale que retornemos agora. Minha senhora disse que não deveria manchar-se de alcatrão.
Ela estava a ponto de responder quando uma carruagem que passava chamou sua atenção. Deu a volta e a viu avançar rua abaixo. Estava segura de que viu Nigel através da janela. E em frente dele a figura em sombras de uma mulher.
Roger esperava com tensa paciência. Parecia preparado para a negociação.
—Não há dúvida de que esta excursão está te distraindo de seus deveres, Roger. Possivelmente será melhor que procure um carro. Mostre-me onde posso alugar um e logo poderá voltar para casa.
Ele começou a negar com a cabeça inclusive antes de deixá-la terminar. Em vista de seu fracasso, ela deu a volta e continuou caminhando rua abaixo. Preferia fazer aquilo sozinha, mas inclusive se Roger falasse disso e chegasse aos ouvidos de Vergil, estava decidida a cumprir com seu encargo.
Como por arte de magia, o nome dele convocou sua lembrança e sua lembrança convocou sua presença. Um carro reduzia a marcha junto a ela. Ela o contemplou para descobrir Vergil sustentando as rédeas.
Tinha uma cidade inteira ao seu dispor. Podia ter tomado qualquer outra rua.
Ele desembarcou do carro e Roger se apressou a segurar o cavalo.
—Eu levarei à senhorita Kenwood para casa, Roger. Já não tem que se fazer cargo.
O lacaio deu a volta sobre seus tornozelos. Vergil fez um gesto para o carro.
—Não retornarei a casa ainda, Laclere, continuarei caminhando.
—Não o fará. Qualquer que seja seu destino te acompanharei.
Ela aceitou que sua mão a ajudasse a subir. Colocou-se junto a ela.
—Onde te levo?
—Ao centro financeiro. Quero ver o senhor Peterson.
Ele não moveu nem um cabelo.
—É uma sorte o que ocorreu. Pen estaria preocupada com seu atraso. Não convém que se ausente durante tanto tempo, nem sequer sob o amparo de um lacaio.
Uma flecha vermelha atravessou sua cabeça. Esse homem tinha o descaramento de chamar sua atenção por não moldar-se às restrições que impôs.
Deu a bem-vinda à velha indignação. Como um traje de aço sobre seu coração esta a protegia contra outras reações evocadas por voltar a estar a sós com ele.
Vergonha, confusão, reações perigosas.
—Acredito que meu primo Nigel está em Londres — disse enquanto se uniam aos outros veículos que enchiam as ruas.
—Chegou há uns poucos dias.
—É estranho que Penelope não o tenha convidado.
—Fez ontem uma visita.
—É estranho que Pen não mencionasse que deixou seu cartão.
—Ela não viu seu cartão. Eu o tirei do mordomo.
Ela se voltou surpreendida para seu impassível perfil.
—Sua irmã se sentiria ofendida se soubesse que se atreveu a fazer isso.
—Duvido, já que ele não ia visitar Pen.
Disse com absoluta tranquilidade, como se as implicações não tivessem que incomodá-la em nada.
—Descobriu que meu primo veio me visitar e se apropriou de seu cartão para que eu não me inteirasse? Como se atreve?
—Se comporte. Qualquer que nos veja pensará que estamos tendo uma briga.
—E estamos tendo uma briga. Já é hora de que nos ponhamos de acordo em umas quantas coisas, tio Vergil.
—Me chame Laclere. É desconcertante que uma mulher a quem beijei se dirija a mim como tio Vergil.
Ela o olhou atônita.
—Surpreende-me. Refere a isso com equanimidade inclusive enquanto assume uma postura autoritária.
—Nem refiro a isso, nem penso nisso com equanimidade. Unicamente assinalo que «tio Vergil» se tornou uma forma estranha para se dirigir a mim. Quanto a seu primo, não aprovo seu interesse por você.
—Considerando o homem que sim conta com sua aprovação, sua falta de aprovação deveria entender-se como a mais alta recomendação, e de motivações dignas de suspeita.
—Não quero discutir contigo sobre este assunto. Proíbo você de ver seu primo a sós, e devo insistir em que não faça nada para contrariar minha decisão. Não tomo esta decisão para apoiar a causa de meu irmão, a não ser para te proteger. Não acredito que Nigel Kenwood seja o que aparenta ser.
Ele devia ter ouvido falar da mulher que visitava Nigel em segredo.
—Não é o que parece ser? Oh, meu Deus, céus, céus, que comoção. —Uma tormenta de confusão, dor e ressentimento que tinha ido crescendo ao longo de três semanas estalou e ela deixou escapar sua fúria— Uma fina observação vindo de você. Me desculpe se não ficar desfeita por esta surpreendente notícia, mas é que acredito que não há nenhum único homem em sua fastidiosa sociedade que seja o que parece ser. Tia Edith me advertiu a respeito da oculta corrupção e imoralidade da aristocracia inglesa, e começo a entendê-la. Como se atreve a julgar Nigel. Se não é o que parece, não é mais fraudulento que você. É-o menos, porque não vai por aí fingindo ser um santo. Muito menos, inclusive, pois pelo que sei não faz amor a sua pupila enquanto corteja sua prometida e mantém uma amante em Lancashire.
Ele quase não reagiu. Quase. Uma diminuta piscada de consternação iluminou seus olhos. Esse instante de preocupação se manifestou com mais eloquência que qualquer palavra que tivesse acertado com sua última acusação.
Charlotte estava certa a respeito de suas viagens ao norte. Tinha ali uma mulher.
Aquilo acabou de repente com toda sua fúria. Afundou-se no assento, sobressaltada por uma desolação que a fazia sentir-se doente.
A profundidade de sua decepção a deixou aniquilada. Esse detalhe, de maneira irrevogável, transformava esses beijos de impetuosa paixão em sórdida loucura.
—Fleur não é minha prometida — disse por fim.
—Isso é o de menos, Laclere.
Conduzia com lentidão, como se alguma contemplação o distraísse.
—Quem te disse que tenho uma amante?
—Não se preocupe. Nenhum convidado da festa fez insinuações a respeito. E os criados não rumorejam. Só os mais próximos a você suspeitam. Notaram as frequentes visitas que faz. Que outra coisa poderia te levar ao norte com tanta frequência? Charlotte sugeriu essa explicação, mas imagino que Penelope e Dante desconfiam.
Ela ansiou que ele negasse. Inclusive desejou que mentisse. Que mal podia haver em outro engano mais?
Ele começou a conduzir pelas estreitas ruas da cidade sem dizer nenhuma palavra, mas o cenho franzido continuava enrugando sua testa. Considerando sua própria devastação, ela se alegrava de lhe ter dado algum motivo para preocupar-se.
Um escândalo público pelo assunto com Dante teria sido muito mais fácil de aguentar que aquela privada humilhação.
Bianca entrou nas estadias privadas do senhor Peterson com uma resolução renovada de jogar a presença de Vergil fora de sua vida.
O advogado sorriu aliviado ao ver que vinha sozinha. Vergil a escoltou até a sala exterior e logo partiu para ocupar-se de alguns assuntos próprios.
Não se entreteve com os habituais elogios de rigor.
—Não quero parecer abrupta, senhor Peterson, mas o visconde voltará logo para me recolher. A última vez que me escreveu me indicou que esperava logo novas notícias, e já que me encontro em Londres pensei que o melhor seria vir e escutá-las pessoalmente.
—Como você solicitou, obtive os nomes de alguns dos homens que mostraram interesse em suas sociedades de negócios. A maioria só pretendia fazer tímidas indagações, mas um deles era firme.
Rebuscou entre alguns documentos.
—Aqui está. É para a fábrica de malhas. O investimento já está produzindo benefícios. Por um lado, o negócio se consolidou. Por outro, você possui quarenta e cinco por cento. O diretor da fábrica, o senhor Clark, possui outros quarenta e cinco por cento. O seu avô entregou mais da metade do capital inicial há uns seis anos, quando foi construído.
—Quem possui o resto?
—Seu avô era o maior proprietário. Ele deixou os dez por cento restantes a seu sobrinho neto, Nigel Kenwood. Ele deseja a renda para poder manter Woodleigh.
—Alguém quer comprar a fábrica agora?
—Para me inteirar dos detalhes só tive que enrolar ao empregado do advogado de Adam Kenwood com umas poucas canecas de cerveja. Houve uma oferta séria por parte do senhor Johnston e o senhor Kennedy. Nigel Kenwood está entusiasmado para aceitá-la, mas o diretor rechaçou considerar a oferta. O senhor Johnston e o senhor Kennedy exigem ser os donos majoritários e controlar o negócio, assim que dez por cento do novo barão é inútil para eles sem a conformidade de um dos acionistas principais.
Ela pôs em fila os detalhes e os viu pavimentando uma estrada de volta a Baltimore.
—E eu sou a outra acionista principal. eu vendo e Nigel também, o diretor perderia o controle da fábrica.
—Correto. Continuará desfrutando de seus benefícios, caso os novos donos lhe paguem honestamente, mas há muitas formas de que os investidores minoritários não colham os mesmos benefícios que aqueles que têm o controle. É fácil alegar custos que não existem, e desviar os recursos de investimento. Não pretendo difamar o senhor Johnston e o senhor Kennedy, mas o certo é que eles são diretores de fábricas. Tipos desagradáveis, por toda a riqueza que acumulam.
Resultou mais que claro que esses homens eram definitivamente inferiores ao próprio senhor Peterson, que não era o que se diz precisamente um aristocrata.
—Qual foi à reação de meu tutor ante esta oferta?
—O visconde a teve em consideração e pediu o assessoramento de peritos financistas, que o senhor Clark demorou em lhe enviar. Não há dúvida de que o homem planeja ser um obstáculo enquanto lhe seja possível. Entretanto, o empregado com o que estive bebendo me indicou que o visconde parece inclinado a conservar o negócio. Teve esplêndidos benefícios.
O qual significava que voltaria a ter esplêndidos benefícios. Quem se inteiraria se conseguia que parte do próximo pagamento fosse desviado à conta que o senhor Peterson abriu para ela? Não muito, só o justo para que ela e Jane voltassem a América.
Se prometesse ao diretor não vender quando alcançasse os vinte e um anos, provavelmente aceitaria a proposta, pois a veria como um negócio que os beneficiava mutuamente.
—Senhor Peterson, queria que me entregasse um relatório por escrito com a informação a respeito dessa fábrica.
Aquela noite Bianca foi ao teatro com Vergil e Penelope. Levava o xale azul de seda pela primeira vez, e esperava que fosse também à última. Pretendia deixá-lo ali quando abandonasse a Inglaterra. Sua luxuosa queda lhe recordava a vida que sua herança lhe oferecia, essa que queria rechaçar o quanto antes.
Não queria retornar a Baltimore sem visitar Milão. Apesar da valente resolução que tinha mostrado ante Vergil, não estava segura de ser capaz de encontrar outra forma de cumprir com seu sonho e seus planos. Imaginava-se à idade de tia Edith, perguntando-se continuamente o que podia ter sido.
Possivelmente não era necessário repudiar a totalidade da herança. Possivelmente, se deixava a metade… Mentalmente se castigou. Se começasse a encontrar desculpas para usar parte da fortuna manchada de Adam, provavelmente acabaria seduzida pelo luxo que proporcionaria a herança em sua totalidade. Retornaria a Baltimore, e retornaria tão pobre de quando partiu.
Não estava muito atenta à atuação que tinha lugar no cenário. Seu debate moral a mantinha inteiramente ocupada. Isso e o homem que estava sentado ao seu lado. Sua mera presença a punha em alerta. O menor de seus movimentos fazia saltar seu coração. Tendo em conta o que tinha sabido dele esse dia, sua própria sensibilidade a enfurecia.
Sim, partiria a Baltimore, e o faria muito em breve. Quando estivesse de volta em casa seria capaz de esquecer esse homem que a tinha feito atuar como uma louca, inclusive sabendo que não era mais que um descarado e uma fraude.
Essa noite ao retirar-se achou uma carta esperando-a em seu quarto. Uma que Adam Kenwood tinha escrito a Milton.
Nela aceitava a sugestão de Milton de entregar à caridade uma quantidade de dinheiro equivalente a aquela que obteve ao vender seus navios, a fim de reparar de alguma forma o fato de ter obtido benefício do comércio de escravos.
Também achou uma nota dentro da carta, esta do atual visconde Laclere.
Encontrei esta carta entre os papéis de meu irmão e pensei que você gostaria de vê-la. Hoje visitei o advogado de Adam para comprovar se a intenção expressa aqui se levou a cabo. Assim foi há três anos. Portanto, a porção de seu patrimônio que você herdou não está manchada. Não há nenhuma culpa em aceitá-la. Ao que parece, Adam acabou deixando-se influir por seu filho neste assunto.
Ela contemplou a carta enquanto assimilava suas implicações. Seu coração pulsava rapidamente com alegria e excitação renascidas. Depois de tudo, não retornaria a Baltimore.
Foi a sua mente a imagem de Vergil deixando-a com o senhor Peterson e indo visitar o advogado para verificar o ocorrido. Não convinha a seus interesses que ela se inteirasse daquilo. A verdade devolveu seu sonho… Um sonho que ele não aceitava.
Sua generosidade a comoveu profundamente. Sua irritação ante seu afã de se intrometer desapareceu e suas suspeitas a respeito de seu caráter se voltaram insignificantes. Inclusive o sonho perdeu importância. O gesto de Vergil descobrindo a verdade chegou a seu coração.
Ele podia chegar a ser uma fraude, e podia ser perigoso, mas sentiria terrivelmente sua falta se partisse.
Capítulo 11
Vergil serviu dois copos de porto e ofereceu um a Dante. Seu irmão tirou seu paletó e agora vadiava satisfeito em uma poltrona frente ao fogo da lareira do escritório. Claramente parecia um homem cujos diversos apetites foram saciados. Vergil supôs que passou a noite com sua atual amante.
—Esperava que ontem à noite nos tivesse acompanhado ao teatro.
—Me distraí, e depois começou a fazer mal tempo. Já é o suficientemente mau que tenha que começar a fazer de babá amanhã. Não era necessário que estivéssemos ali os dois esta noite.
Não, não era necessário. Entretanto, a presença de Dante podia ter distraído Bianca e arrancá-la do humor apagado no que parecia ter se refugiado durante à tarde sem dar nenhuma explicação.
Foi uma noite incômoda. Bianca dissimulou suas reações com uma aparente serenidade, mas ele havia sentido seus pensamentos, e inclusive teve ocasião de vê-los com os olhos entreabertos e as olhadas que lhe dirigia. Quando acompanhava às damas de volta a casa de Pen esteve a ponto de afastá-la a um lado e soltar as primeiras boas explicações, rogando que o perdoasse.
Sem sentido. Sem esperança. O que podia dizer?
Ela chegou à conclusão de que era o mais desonesto dos homens, não por ter uma amante, mas sim pela forma em que se comportou com ela. Tinha concluído que era um monstro predador. Possivelmente estava certa.
A verdade é que sentia um desejo devorador ante sua contínua proximidade.
—Nigel Kenwood está na cidade. É muito importante que fique em Londres até que as damas partam — disse a Dante— Será melhor que se aloje aqui. Dei instruções a Morton para que prepare seu quarto.
—Laclere House é incômoda fora da temporada, com a maioria das estadias fechadas e quase todos os criados no campo. A você parece não importar viver como um monge em umas poucas salas com tão somente um camareiro, mas eu opino que seria preferível ficar em um de meus clubes.
—Quero que esteja perto da casa de Pen, não em um clube.
—Está atuando como um velho tio suscetível, Verg. O que pode fazer Kenwood? Ela não pode casar-se sem sua permissão, a menos que tema que fujam para a Escócia.
—Essa possibilidade não está tão longe de minha imaginação. Entretanto, devo te confessar que agora mesmo me preocupa algo muito mais sério. —Foi até o escritório e recuperou a carta do advogado de Adam Kenwood que tinha recebido em Laclere Park— Lê isto.
Dante leu prazerosamente o papel.
—Parece-me bastante comum. Se a senhorita Kenwood morrer sem filhos, sua herança irá para seu parente mais próximo.
—Sim, bastante comum. Exceto pela cláusula que determina que se considera parente só alguém que tenha sangue dos Kenwood. Eu não tinha me dado conta ao ler o testamento, mas a carta do advogado o expressa de maneira explícita. Isso exclui à tia avó de Baltimore e deixa unicamente a Nigel.
—E?
—Para ele ela tem mais valor morta que como esposa.
—Apenas, tendo em conta os direitos de um marido. Está dizendo que esse músico quer fazer mal a ela? Sua imaginação te supera.
—É o mais provável. É possível que minhas suspeitas a respeito de Kenwood sejam injustas, mas preferiria me mostrar cauteloso. Estive fazendo averiguações, e está seriamente endividado tanto aqui como na França.
—E por isso quer casar-se com ela. O qual não é precisamente um crime. Se eu herdasse com sua morte, deduziria que pretendo assassiná-la?
—É obvio que não. E tampouco suspeitaria dele se não fosse pelo fato de que esteve a ponto de ser assassinada duas vezes durante o último mês.
Aquilo apagou a diversão do rosto de Dante.
—Houve dois acidentes muito próximos em Laclere Park. Acidentes estranhos, Dante, e não estou de tudo convencido de que fossem realmente acidentes. —A seguir descreveu brevemente o ocorrido.
Dante refletiu a respeito dos sucessos.
—Pode ser que não tenha sido nada, certamente. Meras coincidências. Entretanto, posso entender que tomemos precauções, só para estar seguros.
—Exatamente.
—Não seria melhor adverti-la?
—Não posso acusar esse homem com provas tão pouco sólidas, e talvez esteja equivocado. Suspeito que a senhorita Kenwood atribuiria minhas advertências a um desejo de se mantê-la separada de Nigel. Se for assim, inclusive poderiam ter o efeito contrário.
Durante alguns momentos Dante franziu o cenho enquanto olhava o fogo.
—O velho Kenwood não te fez nenhum favor te nomeando seu tutor, Verg. Estou chegando à conclusão de que quão único causa são problemas. Uma mão firme não serve nem para começar a descrever o que se precisa fazer com ela. Acreditava que aquele pequeno episódio do lago foi simplesmente um engano encantador, mas agora me diz que enquanto estávamos em Laclere Park saía sozinha cedo na manhã para fazer longas caminhadas e passeios a cavalo, sem acompanhante. Surpreendem-na rodando comigo abraçados na erva e ignora todo sentido da decência rechaçando casar-se comigo. Deu mostras de uma educação muito liberal e um afã de independência de tudo inaceitável, e com toda probabilidade já faz tempo que perdeu sua virtude.
Vergil viu a expressão masculina e intransigente de seu irmão. Ela veria assim o visconde Laclere?
«Você não a conhece. Não é um problema, nem é indecente. É uma moça cheia de sonhos, lutando por sua vida.»
—Agora te digo que já não estou disposto a me casar com ela, e ao diabo com sua herança. Entretanto, estou de acordo com que não se mova da casa de Pen sem um acompanhante, e não só porque possa correr perigo. A questão é Verg, que acredito que não está sendo o bastante estrito com ela. Se não formos muito cuidadosos, pode trazer a ruína a esta família.
Depois de resolver a questão da segurança da senhorita Kenwood, começaram a falar de outros assuntos. Mas nas chamas que observava enquanto falavam, Vergil viu o corpo de Bianca dando as costas enquanto contemplava o espetáculo a passada noite. Levava o xale azul, e a seda deste caía como uma cascata sobre suas costas e seus braços, ganhando ainda mais intensidade com as luzes do teatro e realçando seu cabelo loiro através de um delicioso contraste.
Ele tinha invejado a forma em que esse xale a acariciava e estava encantado de que o usasse. O pagamento a madame Tissot não foi feito da renda de Bianca, mas ela jamais saberia. Havia sentido um enorme prazer ao vê-la levar seu presente secreto, inclusive embora sua atitude glacial indicasse que o jogaria no fogo se soubesse que ele o pagou.
Menos mal que por fim chegava Dante. Desfrutou muito de sua companhia, tinha-a contemplado muito frequentemente. Converteu-se em uma perigosa fascinação. Uma fome impossível de saciar.
Entrecerrou os olhos ante o baile das chamas. Era tempo de voltar a partir. A Lancashire. Para ver sua amante.
***
—Então está decidido. Fará de anfitriã na recepção da semana que vem. —A senhora Gaston fez que soasse como se estivesse concedendo a Penelope um grande favor.
Penelope pegou um pequeno e formoso livro da mesa que havia junto a sua cadeira.
—Dificilmente poderia me negar, dado que o senhor Witherby me dedicou o volume. Esta honra teria correspondido a você, como a patrocinadora da série.
—Seria vulgar para todos eles que me dedicassem seus poemas. Além disso, prefiro um reconhecimento menos ostentoso. Não quereríamos que ninguém insinuasse que o gênio de nossos poetas se compra como quem compra presunto no mercado.
Bianca observou o rosto da senhora Gaston enquanto punha reparos a sua própria importância. Suas altas bochechas pareciam mais proeminentes hoje, como se sua pele se esticasse contra elas. Bianca se perguntou se a senhora Gaston havia se sentido tão encantada como agora professava ao comprovar que seu mecenato não foi celebrado na breve dedicatória do senhor Witherby.
Penelope, por sua parte, estava radiante de felicidade. Seu olhar continuamente voltava sobre o livro encadernado em couro marrom, e as pontas de seus dedos passavam uma e outra vez sobre a elaborada capa.
—Seria melhor que fosse você a anfitriã na recepção, eu acho. Haverá quem não aceitará meu convite.
—Tolices. Me assegurarei de que as pessoas mais importantes estejam ali. Este será um acontecimento importante para você, querida. Um primeiro passo para te relançar dentro dos círculos que merece. Sua situação durou muito. Inclusive os prisioneiros eventualmente podem voltar para casa.
O vacilante sorriso de Pen revelava ceticismo, resignação e esperança. O coração de Bianca se comoveu ante a emoção que aflorava ao rosto da condessa. Penelope sempre parecia aceitar sua queda social, inclusive parecia se alegrar, mas naquele momento resultava óbvio que simplesmente escondia sua dor.
Bianca olhou à senhora Gaston com novos olhos. Até o momento não sentia simpatia por aquela mulher, mas agora sim. A senhora Gaston continuou sua amizade com Penelope quando muitos outros se negaram a fazê-lo. Agora conspirava a favor da reintrodução de Pen. Não era estranho que Pen contasse com ela como uma amiga querida apesar de seu caráter vaidoso e autoritário.
—Perguntarei a meu irmão se posso usar Laclere House — disse Pen firmemente decidida— Tem que fazer muitos preparativos é obvio, mas possivelmente aceite.
—Consegue que aceite — disse a senhora Gaston— Explique que isto é uma aposta. Muito mais que um evento poético. Witherby é amigo dele, assim Laclere deveria estar de acordo. —levantou-se— Agora devo ir fazer minhas outras visitas. Acredito que o senhor Witherby chegará logo. Permitiu-me a honra de te trazer este primeiro exemplar, mas não há dúvida de que quer ver pessoalmente o quanto você gosta.
Deixou Penelope contemplando o livro, acariciando outra vez sua capa. Bianca se aproximou para admirar o pequeno volume com Pen, e depois se sentou a seu lado. Preferia abordar seu pedido outro dia em que Pen não estivesse tão absorta na adulação dessa dedicatória.
—Penelope, eu gostaria de retornar a Laclere Park amanhã.
Aquilo fez que Pen afastasse a atenção do livro.
—Está dizendo que não é feliz aqui? Acreditava que preferia a cidade.
—Assim é. Entretanto, sinto-me muito incômoda com Dante tão presente.
—Céus, está dizendo que ele há…?
—Seu comportamento é de tudo irreprovável. Sei que é uma sorte que nos acompanhasse ao teatro, e a excursão ao Museu Britânico foi muito agradável. É só que… — Deixou que sua voz fosse se apagando.
Pen jamais falou do que viu naquele dia no lago, mas sua expressão indicava que entendia a razão pela qual Bianca queria abandonar Londres.
—Não posso pedir a Dante que se vá, Bianca. Charlotte passa muito pouco tempo com ele. Quanto a partir da cidade, acabo de prometer oferecer uma recepção para o senhor Witherby em honra de seu novo livro na próxima semana. Desejaria poder te oferecer alojamento, mas até que termine a recepção estaremos um pouco apertados aqui.
—Poderia voltar sozinha manhã com Jane, e você e Charlotte virão tal e como estava previsto.
—Não acredito que seja uma boa ideia.
—Jane e eu cruzamos o oceano. A viagem a Sussex não representa nenhum perigo, especialmente se formos em seu carro. Assim que estejamos de volta em Laclere Park nos cuidarão ali.
Pen começava a abrandar-se.
—Por favor. A alternativa para mim é me colocar na cama e fingir que estou doente. Com o tempo estou segura de que a companhia de Dante não me incomodará, mas por agora, tão pouco tempo depois de… Me resulta difícil estar frente a ele.
Pen tocou sua mão.
—Parece sempre tão serena que jamais me dei conta de quão incômodo é para ti.
—Muito incômodo.
—Acredito que permitirei isso. Entretanto, darei a meu chofer instruções estritas para que te leve diretamente a Laclere Park, e ele transmitirá ao mordomo e à governanta a ordem de que se assegurem de que permaneça ali. Vergil dificilmente poderá pôr objeções se se tomarem essas precauções.
—Obrigado, Pen. Poderá dar alguma desculpa a Dante?
—Encontrarei algo a dizer quando vier amanhã. Finalmente saberá que partiu, é obvio, mas não direi agora mesmo. —Ofereceu um simpático sorriso— Ele é em realidade muito doce, Bianca, apesar de seu comportamento travesso. Espero que se sinta cômoda com ele no futuro. Vergil me disse que Dante sente por você o mais honesto dos afetos.
—De verdade acredita que os homens são capazes disso? Pergunto-me se o afeto deles pode ser realmente honesto.
Pen sacudiu a cabeça e deixou escapar uma pequena risada.
—Sou a mulher menos indicada para dar conselhos a respeito a esse tema. —Acariciou o livro de poemas com as pontas dos dedos— Entretanto, surpreendo-me me perguntando se não poderia ser possível em uns poucos casos excepcionais.
***
O carro correio dobrou uma curva a toda velocidade e seus passageiros se prepararam para ficar esmagados no lado esquerdo. Bianca se amassou dentro da capa de Jane, procurando se proteger do frio úmido que impregnou em seus ossos há horas.
Não imaginou que aquela viagem seria tão miserável. A velocidade do carro fez que o trajeto fosse trepidante apesar das boas estradas.
Não havia alternativa. Não só necessitava que aquela viagem fosse veloz, mas também, além disso, o dinheiro que sobrava das vinte libras que lhe deu Vergil não dava para pagar um carro privado. Permitiu-se descansar a última noite em uma estalagem, e faria o mesmo à volta, mas duvidava que Jane pudesse manter o engano durante mais de três dias.
Ajustou mais a capa. Que má sorte que o único objeto com capuz que Jane havia trazido de Londres fosse de lã leve.
O pedido ao chofer de Pen de parar em uma estalagem próxima a Laclere Park para que Jane pudesse desviar-se para visitar uma amiga doente não levantou nenhuma suspeita. Tampouco chamou a atenção que ela pedisse permissão para ir ao banheiro. Atrás do edifício, ela e Jane trocaram as capas e a mulher equivocada retornou à carruagem. Inclusive o tempo cooperou, proporcionando uma chuva leve que justificasse os escuros capuzes cobrindo seus rostos.
A esperança era que quando Jane chegasse a Laclere Park conseguisse retirar-se de maneira abrupta se queixando de um esfriamento. Encolhida na cama de Bianca uns poucos dias, com a cabeça coberta e dormindo como uma doente poderia evitar que se descobrisse sua verdadeira identidade.
Se não, Bianca esperava retornar antes que corresse a voz de alarme.
O maior inconveniente do plano, a parte de suas extremidades intumescidas, era o fato de que não tinha podido trazer nenhuma bagagem consigo. Os únicos artigos de penteadeira e roupas que levava estavam apertados em sua bolsinha de mão e no interior de seu sutiã.
O carro corria a toda velocidade pelos arredores de Manchester, fazendo uma série de paradas rápidas enquanto a campina ia se convertendo em povos que logo se mesclaram com os subúrbios da própria cidade. Uma estranha combinação da mais pura novidade junto à velha miséria flanqueava as ruas residenciais. Possivelmente em dias ensolarados, se o visitante não estivesse faminto e gelado até os ossos, não pareceria um lugar tão inóspito. A gente sabia sem necessidade de que o dissessem que era uma cidade em crescimento. A aglomeração revelava que havia muita gente vivendo na estreiteza em domicílios que escasseavam.
Diminuíram a marcha até que o condutor fez uma parada. Outros dois passageiros recolheram sua bagagem.
—Se ia a Manchester, já chegamos — disse um— O carro se dirige agora a Liverpool, e o correio destinado à cidade será recolhido aqui por outros.
Bianca desceu em meio da garoa. Aproximou-se do compartimento do chofer e perguntou a este onde podia alugar uma pequena carruagem e um condutor por umas poucas horas.
Logo voltava a sentir a umidade contra suas costas, desta vez apertada contra um corpulento condutor que impulsionava seu carro através das ruas da cidade. Amassou-se dentro de sua fina capa com o capuz abaixado para tentar proteger-se da névoa.
—Está longe a fábrica de Clark?
—Um pouco para o este. É uma fábrica mais nova que outras e um pouco afastada das demais. Custa acreditar que ali quase tudo era campo aberto há dez anos. A cidade continua crescendo, como uma aranha que engorda comendo a todos aqueles que aterrissam perto. —Assinalou a um homem jovem apoiado contra um edifício— Como ele. Sempre podem reconhecer-se. Têm esse ar desconcertado. Então, se encontrarem trabalho em uma boa fábrica, crescem satisfeitos e se não se voltam miseráveis.
—O que é uma boa fábrica?
—Uma com salários decentes, dentro do possível. Onde as máquinas sejam seguras. Onde as famílias trabalhem nos mesmos horários. —A olhou de esguelha— Não é meu assunto, mas você está segura de que quer ir hoje a essa fábrica? Foi um lugar onde apareceram inesperadamente problemas uma e outra vez nestes últimos meses. Diz-se que está indo a pior.
—Devo ir hoje. Estou segura de que o senhor Clark tem uma dessas boas fábricas, assim ali não deveria haver problemas.
Ele se pôs a rir.
—Quando os problemas se propagam, não há boas fábricas.
Levou quase uma hora percorrer seu caminho até os arredores do este e chegar aos compridos e baixos edifícios da fábrica de Clark.
O condutor desembarcou de um salto e a ajudou a baixar.
—Deve estar ali. —Assinalou para um cubo de pedra de dois andares— A casa do diretor. Não é tão sofisticada como outras. —Elevou a cabeça como um cão satisfeito— Parece bastante tranquilo.
—Espere aqui, por favor. Quero voltar para a estalagem esta noite.
Ela se envolveu no leve tecido de sua capa e se dirigiu para a casa. Um homem jovem estava sentado ante o escritório na primeira estadia do edifício.
—Vim ver o senhor Clark — explicou ela.
Ele a olhou de cima abaixo, e não lhe causou boa impressão a simples capa de Jane.
—Está na fábrica agora. Possivelmente possa ajudá-la. Sou o senhor Thomas, seu secretário.
—Obrigado, mas quero falar pessoalmente com o senhor Clark.
Ele a examinou com atitude crítica uma vez mais.
—Normalmente não as enviam tão jovens. De que grupo de reformas vem você?
—Não sou de nenhuma organização de reformas. Tenho negócios de natureza muito séria com o diretor.
—Me diga seu nome e verei se ele está a par desses negócios.
—Senhor Thomas, não tenho a intenção de dar a você meu nome. Esperarei o senhor Clark que retorne. Asseguro que não estará agradecido se você puser obstáculos.
Sua primeira reação oscilou entre uma gargalhada e um franzimento de cenho. A diversão ganhou. Conduziu-a ao interior do escritório.
Ali ardia o fogo de uma lareira. Ficou perto e desfrutou do calor que começava a afugentar a umidade.
Voltou-se para esquentar um pouco as costas e inspecionou o escritório. Os móveis eram robustos, mas simples. Sobre a superfície do escritório só se viam utensílios de escrita e uma pequena pilha de documentos. Toda a sala parecia bastante vazia. Se isso refletia a personalidade do diretor este seria um homem insípido e pouco interessante. Esperava que isso não significasse que carecia de imaginação. Necessitava que ele fosse capaz de ver que sua proposição favorecia a seus interesses.
E também lhe dava o que queria. A oportunidade de partir longe.
Virou-se para o fogo. Imaginou-se caminhando por ruas ensolaradas e estando alegre, feliz e cantando durante horas. Sua vida seria tão brilhante e excitante que jamais voltaria a pensar naquele horrível interlúdio na úmida e nublada Inglaterra, e em como este remexeu suas emoções e tinha mudado tanto uma parte dela que nem sequer era capaz de reconhecer-se.
Só conservaria daquilo uma breve lembrança, uma parada de carro em seu caminho para a maturidade. Uma vez que tivesse partido, a dor que levava no interior de seu peito desapareceria. Um futuro maravilhoso a estava esperando. Se agarraria a ele com valentia e não olharia para trás e…
Um ruído a suas costas interrompeu seus sonhos cheios de esperança. Uma porta se abriu e ouviu o som de passos.
—O senhor Thomas diz que desejava ver-me, senhora.
As imagens da Itália se romperam em pedaços como golpeadas por um martelo. Os fragmentos choveram através de sua mente atônita.
Ficou boquiaberta enquanto cambaleava e cravava seus olhos nos olhos azuis do visconde Laclere.
Capítulo 12
—Diabos.
A maldição proferida ficou flutuando no ar. Olharam-se aturdidos durante um momento.
Lentamente, sua inteligência compreendeu as implicações da presença dele ali.
Vergil e o senhor Clark eram a mesma pessoa.
Que surpreendente descobrimento.
Que incrível má sorte.
Então outra vez…
Ele se sobrepôs primeiro.
—Que demônios está fazendo aqui?
O assombro a deixou sem fala. O assombro, junto ao feito de que sua explicação dificilmente poderia suavizar a expressão que ele tinha em seu rosto. Dizer que não parecia alegrar-se muito de vê-la seria dizer muito pouco.
Ele tinha um aspecto levemente distinto. Ainda era Vergil. Ainda era alto e moreno e severo. Ainda tinha esse rosto cinzelado e esses olhos chamativos. Mas seu paletó negro tinha um corte mais austero que aquele que usava habitualmente e parecia de inferior qualidade.
As pontas de seu pescoço eram de algum modo menos perfeitas, e levava uma gravata negra presa de um modo informal, algo que ela não havia visto antes.
Tinha um aspecto escuro e ameaçador embora bastante apresentável, mas ela não podia tirar de cima a sensação de que parecia um homem não acostumado a usar objetos finos, que ainda não sabia combiná-los e que carecia de um bom camareiro para acostumar-se. Um homem rico, mas não desde seu nascimento.
—Perguntei o que está fazendo aqui, senhorita Kenwood.
Apesar de que ele soltou abertamente uma maldição, ela sabia que havia vezes em que o silêncio era o melhor recurso. Seria difícil soltar facilmente que veio para extorquir o senhor Clark a fim de conseguir algum dinheiro que a permitisse escapar de seu malvado tutor.
—Como chegou até aqui?
—No carro do correio.
—Isso explica por que parece meio morta. Está seu carro fora?
Ela assentiu.
—Onde está sua bagagem? Deixou-o em sua estalagem com Jane?
Oh, Deus.
—Não.
Ele franziu o cenho.
—Fez toda esta viagem sem bagagem?
A falta de resposta não tardou a conclusão. Ele a transpassou com um olhar afiado.
—De fato veio sem Jane, verdade? Fez esta viagem sozinha.
Quis inventar uma história, uma completa mentira, se tivesse ocorrido alguma. Sua mente simplesmente não cooperava.
—Isso foi muito, mas muito temerário por sua parte, senhorita Kenwood. —Bruscamente abriu a porta e saiu.
Retornou ao cabo de uns poucos minutos.
—Suponho que está cansada e tem frio, mas devo atrasar o momento de que se ponha cômoda durante um bom momento. Paguei a seu chofer e enviei seu carro de volta. Minha carruagem estará aqui dentro de um momento. Enquanto esperamos, quero que me explique como preparou esta viagem, para poder determinar até onde alcança o desastre que pode ter provocado.
Sentindo-se como uma escolar travessa, explicou o brilhante plano que de um modo tão abrupto perdeu todo seu brilho.
—Assim se Jane ainda não foi descoberta, não houve nenhum tipo de desastre — concluiu. —E se seu estratagema sim foi descoberto, Penelope poderia estar agora removendo céu e terra por toda a Inglaterra.
—Assim que fale com Jane saberá que não fui sequestrada. Suponho que esperaria uns poucos dias para que retornasse.
—Jane sabe aonde foi e por quê?
—Não confiei os detalhes. Se me enviar de volta agora mesmo, ninguém terá razão para procurar o senhor Clark. Ninguém saberá seu segredo.
—Você saberá. Até que não dita o que fazer com respeito a isso não tenho intenção de te fazer retornar. Entretanto, não podemos discutir aqui.
O som do estalo continuado do carro se ouvia fora. Vergil desapareceu em uma sala contígua e voltou com seu casaco grosso. Colocou o pesado objeto sobre os ombros dela e a escoltou através do escritório principal até a porta.
Morton sustentava as rédeas no assento do condutor de um veículo que não levava nenhuma insígnia aristocrática. Sua boca, aberta pela surpresa, ficou enterrada entre a barba e o bigode ao ver que Vergil tirava Bianca do edifício.
—Bom, agora, milord, esta é uma complicação inoportuna.
—Tem talento para ficar curto, Morton.
—A garota foi muito atrevida, se me permite dizê-lo.
—Sim.
—Por outra parte…
—Exato.
O que se supunha que significava isso? Pelo que parecia, todos esses comentários estavam relacionados com ela.
Vergil se colocou frente a ela. Agarrou uma manta que havia no carro e a pôs sobre suas pernas.
—Tem os sapatos úmidos. Que tolice. São muito leves para levá-los em um carro de correio. —Desatou-lhe os sapatos e os tirou, depois envolveu seus pés com a manta de pele.
Agasalhou-a e a abrigou como se fosse uma menina. Cobriu-a bem com o casaco até que só sua cabeça se sobressaía de um enorme vulto.
Era muito encantador por sua parte que a mimasse daquele modo, especialmente tendo em conta que o brilho de seus olhos parecia indicar que estava pensando que se ela sofrisse de uma febre por culpa daquela escapada, seria merecido.
Morton conduziu o carro através de uma ponte e se encaminharam para o sul.
—Aonde vamos?
—Tenho um imóvel perto. Chegaremos em menos de uma hora.
O imóvel. Ela se perguntou se sua amante estaria ali. Dado que ela já conhecia a existência dessa mulher, perguntava-se se ele se incomodaria em escondê-la durante as poucas horas que necessitariam para resolver essa «complicação inoportuna».
Ele continuava olhando-a com uma concentração intensa. Era o tipo de expressão calculadora que às vezes se percebe em uma pessoa que pensa que ninguém a está olhando. O fato de que a olhasse daquele modo durante um silêncio tão longo resultava muito inquietante.
Não sentia medo por sua segurança. Justamente o contrário. Mas não podia deixar de sentir a sensação de que aquele homem sentado frente a ela se tornou repentinamente de tudo imprevisível, e que o senhor Clark possivelmente não jogava com as mesmas regras que o visconde Laclere.
—A menos que queira que chegue à conclusão de que fez esta viagem porque não podia suportar estar separada de mim terá que me dar uma explicação.
A descarada alusão a essa outra parte de sua relação a pôs em estado de alerta.
—Devia ver o senhor Clark.
—Por quê?
—Para ter um pequeno bate-papo. Para conhecê-lo.
—Não estou de humor para que insulte minha inteligência. Dado que sou o senhor Clark e nos conhecemos faz tempo, exponha seus negócios agora.
—Bem, se o senhor Clark estivesse disposto a ser razoável, e lamento dizer que não me parece que assim seja, eu pretendia propor um trato que nos beneficiaria mutuamente. O senhor Peterson me falou a respeito da oferta para comprar a fábrica e me explicou que o senhor Clark, assim você, não queria vendê-la, e que se eu vendesse minha parte e Nigel também, então… Oh… Oh, é por isso que tenta me obrigar a me casar com seu irmão. Para conseguir a propriedade dessa fábrica. Realmente, Laclere, estou muito decepcionada contigo.
—Tem muitas razões para estar, mas essa não é uma delas. Jamais pretendi te obrigar a se casar com meu irmão. Supunha que seria uma órfã provinciana e que, como todas as mulheres, se desmancharia de deleite cada vez que Dante sorrisse para você. Se apaixonaria, se casaria com ele, e isso é tudo. Não havia nada desonesto no plano. Quanto ao que aconteceu mais tarde, recordo que se você não tivesse se jogado sobre Dante eu não teria…
—Acredito que dizer que «me lancei sobre ele» não é um modo justo de expressá-lo.
—…Se não tivesse se jogado sobre Dante, eu não teria me achado ante a situação contraditória de ter que interceder contra um casamento que a mim só podia beneficiar.
—Por que o fez então?
O olhar que lhe dirigiu a deixou sem fôlego. «Você sabe por que», diziam seus olhos.
—Jamais foi minha intenção te apanhar em algo que não queria.
Passavam a grande velocidade por granjas nubladas pela névoa, deixando a cidade para trás. A expressão «potencialmente perigoso» não serviria nem para começar a explicar a situação. Mas aquele era Vergil Duclairc. Um santo. Por outro lado, dificilmente poderia importuná-la com sua amante residindo na casa.
—Morton evidentemente sabe quem é o senhor Clark. Alguém mais sabe? —perguntou ela.
—Não.
—Ninguém? Nem Penelope, nem Dante?
—Não.
—Fleur?
—Fleur menos que ninguém.
—Terá que dizer a ela. É muito difícil para um homem ocultar uma coisa assim de uma esposa, ainda mais difícil que ocultar a um camareiro.
—Fleur e eu não vamos nos casar. Não a interessa. Nosso noivado foi uma farsa para afastá-la do mercado de casamento durante um tempo. Espero que no prazo de um mês toda a sociedade saiba que ela rompeu o compromisso.
—Sinto muito. Nunca esperava que ela te decepcionasse.
—Entendeu mal. Eu sabia desde o começo. Assim pode me absolver ao menos de um crime. Não te amor com você enquanto cortejava uma prometida.
Ela preferia que deixasse de insistir tão alegremente em suas referências a aquilo.
—É estranho que ninguém te descobriu ainda.
—Quão fácil resultava o engano me surpreendeu a princípio. Mas o senhor Clark é um homem bastante solitário e vive fora da cidade. Rechaçou suficientes convites sociais para que deixem de chegar. Não sou desconhecido em Manchester, especialmente entre os outros homens de negócios, mas evito reuniões nas que não saiba quem irá. É obvio os aristocratas não se mesclam com os donos de fábricas, e a cidade não tem representação no Parlamento, assim não há membros da Câmara dos Comuns que possam me reconhecer.
—Manter uma vida dupla deve ser muito incômodo e difícil. Não entendo por que tem feito isto. Por que não dizê-lo abertamente?
—Não é para menos que não seja capaz de entendê-lo. Os cavalheiros não se metem em negócios, e menos em um deste tipo. Investimos em alguns, em navios e canais, mas as fábricas são muito sórdidas. E nunca dirigimos ativamente os negócios.
Ela recordou o senhor Peterson referindo-se aos donos das fábricas como pessoas de inferior categoria que a sua, e também recordou que lorde Calne os chamava «vulgares». Provavelmente seria muito escandaloso que um visconde encontrasse seu lugar entre esses homens. Suficientemente escandaloso para arruinar o status de toda sua família.
Estava anoitecendo quando o carro avançava pesadamente pela estrada principal. Diminuíram a marcha ao passar perto de algumas granjas.
—São suas?
—Vão anexas ao imóvel, mas estão hipotecadas até o último metro.
—Laclere Park também está hipotecada?
—A fazenda está restringida a seus herdeiros de sangue para impedi-lo, embora de todos os modos eu jamais o faria. Um homem não joga com o patrimônio de sua família.
Ela olhava através da janela, procurando sinais de algum povo. Com uma estalagem.
Morton deu um giro e trotaram colina acima. Um velho imóvel Tudor se situava em seu topo. Na minguante luz ela discerniu uma coleção dispersa de tetos de meia viga e paredes de gesso que se erguiam de uma planta principal de pedra.
Vergil desembarcou de um salto logo que chegaram frente a casa. Nenhuma só luz se via através das janelas. O lugar tinha um ar assustador. Parecia o tipo de imóvel sobre a que alguém lê nas mais fantásticas histórias. Onde as jovens inocentes terminam mal.
Vergil esperava como se soubesse que, quaisquer que fossem seus receios, concluiria que não tinha mais escolha que entrar.
Lutou para abrir caminho através da manta e o casaco que a envolviam só para recordar que não calçava sapatos. Ele os pegou, calçou e os atou como se fosse incapaz de vestir-se só de forma apropriada.
Um ancião levou o carro e Morton se apressou na frente deles.
—Parece deserto — disse ela enquanto Vergil a pegava pelo braço para ajudá-la a suportar o peso do tosco casaco.
—Não tenho empregados aqui, exceto o velho Lucas para cuidar dos cavalos e servir de porteiro. Quando eu resido Morton está comigo. Pertenceu à Armada quando era jovem, e é incrivelmente competente inclusive na cozinha.
Não tinha criados. Olhou-o com desconfiança. Ao anoitecer sua expressão parecia perigosamente alerta.
O vestíbulo de entrada, grande e quadrado, tinha uma lareira, cadeiras e um sofá. Velhas armaduras brilhavam com luz trêmula nos cantos e uma antiga tapeçaria pendurava da parede que subia com as escadas.
Por cima da cabeça se podia ver as vigas que suportavam o segundo andar. Embora desgastado, tudo estava em condições decentes. Aquela madeira escura podia necessitar um bom brilho, mas Morton conseguiu conservar as coisas limpas.
Morton aproximou duas cadeiras ao fogo que tinha acendido. Ela balançava sob o enorme casaco enquanto caminhava ao redor e aparecia através das portas abertas das estadias que davam ao vestíbulo. A um lado havia uma biblioteca e ao outro lado uma sala de estar, junto ao salão de jantar.
Vergil observava sua inspeção.
—Está procurando minha amante? Tenho-a encadeada no apartamento de cobertura. Morton, não esqueça de levar o jantar a minha querida escrava.
—Não tem graça, Laclere.
—Ela pensa que estou de brincadeira, Morton. A questão é que essa criada de cima começa a me aborrecer. Possivelmente a enviarei para casa e farei que a senhorita Kenwood ocupe seu lugar. Você o que pensa Morton?
—Tem a língua um pouco afiada, milord, mas é uma jovem de muito bom gosto.
—O bom deste assunto é que ninguém nunca saberá. Custará a acreditar que uma mulher possa ser tão imprudente, Morton, mas ela escapuliu do amparo de Pen e de Dante e veio ao norte sozinha. Sem dizer a ninguém aonde ia. Ficando totalmente desprotegida. Se desaparecer, quem pode dizer o que ocorreu? Todo tipo de acidentes e contratempos poderiam ocorrer nesta aventura. Nunca saberão onde começar a procurá-la.
—Deixa-me atônita, Laclere. Isto é muito vulgar, e não tem nada haver com você — disse Bianca.
—Não é o visconde Laclere quem contempla seu futuro. É o senhor Clark. Diz-se que é um homem estranho, não muito dado às relações sociais, nem aos amigos. Quem poderia esperar que uma mulher inteligente como você ficaria em poder de um homem de quem não sabe absolutamente nada? Sim, Morton, acredito que o fará muito bem. Necessitará um pouco de treinamento, é obvio.
—Espero que estejam desfrutando. O potencial poder do que fiz foi amplamente comunicado. Não me divertem suas insinuações, Laclere, e não estou nenhum pingo assustada.
—Não está? Tem mais fé em minha honra que eu, então.
Disse este último em um tom pensativo e reflexivo. O resto tinha um tom zombador, mas aquilo não.
O silêncio do imóvel de repente a angustiou.
Ele se aproximou uns passos atrás dela. Pôs as mãos sobre os ombros e ela sentiu um formigamento na pele, do pescoço até a cintura. Suas mãos se atrasaram um momento ali antes de tirar seu casaco dos ombros.
—Vá sentar perto do fogo para entrar em calor. Morton pode preparar um banho quente para a senhorita Kenwood? Será a única forma de tirar o frio de dentro. Busca também outros objetos. Seu vestido está muito úmido.
—Aqui não há mais que sua roupa e a minha milord.
—Traga algo meu então. A senhorita Kenwood é uma boa conhecedora das calças de montar. E faz o que teria que fazer para preparar um quarto para uma dama. Terá que ser a minha. Nenhuma das outras é adequada.
Sua última ordem a fez dar um tropeção em seu caminho para a lareira. Ele realmente não podia pretender que ela passasse à noite ali, em seu quarto.
Ela se sentou e afrouxou o pescoço da capa.
Ele se sentou em outra cadeira próxima.
—Entrou em calor? Morton preparará logo o jantar, mas posso encontrar algo se tiver fome.
—Esperarei. —tirou as luvas e as colocou em seu colo— Não há uma amante, verdade? Todas as viagens eram pela fábrica.
Limitou-se a olhá-la dessa forma reflexiva como fez no carro. Finalmente sacudiu a cabeça com um suspiro de exasperação.
—O que vou fazer contigo?
—O primeiro que vai fazer é dar instruções a Morton para que me leve a uma estalagem.
—Não penso fazê-lo. Está chovendo, não há lua e a estalagem mais próxima está a muitos quilômetros.
—Não é necessário que te recorde que é inaceitável para mim permanecer nesta casa esta noite. Nem sequer há criados aqui.
—O que significa que ninguém chegará. Se você fosse uma moça inocente e vergonhosa, poderia me preocupar com sua delicada sensibilidade. Entretanto, dado que é tão «experiente», «malvada» e, conforme dizem em Baltimore, «perigosa», podemos prescindir das pouco práticas normas de cortesia. Não porei em perigo nem Morton, nem meus cavalos para atender assuntos referentes à decência que você descobriu repentinamente esta noite. Por outro lado, uma mulher que admite ter «centenas» de amantes dificilmente pode estar à borda de um desmaio pela ideia de estar a sós com um homem durante uns poucos dias.
—Uns poucos dias?
—Não posso te deixar sair até que cheguemos a algum acordo.
—Isso não levará muito tempo. Prometo não dizer nada sobre seu segredo. Vê? Tudo arrumado.
—Dificilmente pode estar tudo arrumado, como você e eu sabemos.
Seu olhar significativo a deixou em silêncio, aniquilada. Não estava só falando de sua gestão da fábrica.
O vestíbulo se voltou muito silencioso. Suas implicações penduravam no ar, enchendo o vazio que havia entre eles com conexões e lembranças, forçando à atração a estremecer com mais insistência ainda que antes.
O fogo chispou, iluminando aos dois com um brilho íntimo. Este criou um pequeno mundo de amparo e calor na fria caverna do vestíbulo. Não, não era o fogo que fez aquilo. Era a presença daquele homem sentado a uns poucos passos dela. Sempre experimentou uma sedutora segurança quando estava com ele. Especialmente quando a abraçava. A fazia sentir durante um momento, tão somente um momento, que podia deixar que alguém tomasse as decisões e carregasse com as preocupações. Nem sequer de menina pôde tomar aquela pausa.
Com nervosismo alisou suas luvas. Sentia-se como se sua silenciosa contemplação a estivesse deliberadamente despindo de capas de camuflagem, revelando algo cuidadosamente oculto por trás de sua ira, do ressentimento e dos inteligentes combates verbais. Isso a deixava terrivelmente exposta a uma intimidade que se propagava como o calor do fogo, desenhando um círculo em torno de suas cadeiras, subjugando as posturas adversárias que adotavam entre eles do mesmo modo que a lareira acabava com o frio.
Ele também o notava? Dirigiu para ele um olhar furtivo. Ele contemplava o fogo com uma expressão sutil, cuja severidade refletia preocupação, mas também algo mais. Era como se estivesse caindo uma máscara.
Virou para ela. Seus olhos brilharam com ira, com calidez e com um brilho de vulnerabilidade. Não eram os olhos de um tutor. Tampouco os de um santo. Simplesmente os de um homem. O homem que a beijou junto às ruínas e a abraçou no escritório. Cada peça daquela lembrança blindada veio abaixo e cada medida de defesa desapareceu sob a honestidade daquele olhar.
—Podia ter feito mal a você. Se esse carro tivesse caído no rio, eu nunca saberia o que te ocorreu, só que você desapareceu um dia — disse ressentidamente.
Era a primeira confissão, a primeira vez que admitia que se preocupava com ela.
—É por isso que está tão zangado? Eu acreditava que era porque descobri seu segredo.
—Me dê um pouco de tempo e conseguirei me zangar também por isso.
—Devia ter sido mais considerada e pensar na preocupação que podia dar a Penelope. Sinto muito. É só que… — Dar a ele uma explicação a deixaria inclusive mais vulnerável ante a sedutora familiaridade que de repente sentia junto a ele. De um modo indefinível, entendia aquele homem muito melhor do que pensava. Junto a essa lareira, sem a couraça com a que até então se protegeu e sem a máscara dele, ela sentia que conhecia a parte mais essencial dele tão bem como conhecia a si mesma.
—É só que viu uma maneira de se liberar de seu intrometido tutor e conseguir seu sonho — acabou ele.
—Sim. Foi isso.
—É só que viu uma forma de escapar do hipócrita e o impostor que se aproveitou de você quando se supunha que deveria te proteger. —Expressava seus pensamentos de uma maneira franca, como se pretendesse esclarecer as coisas— Possivelmente por isso é que estou tão zangado. Tem a ver diretamente comigo e em realidade é injusto que arremeta contra você. Não posso evitar chegar à conclusão de que se acontecesse algo com você, teria sido minha culpa.
—Não de tudo. Não é certo que se aproveitou de mim. Nunca menti para mim mesma a respeito disso. Mas, como te disse no escritório, decidi que o melhor era partir.
—Como qualquer mulher sensata teria feito. E agora descobri que seu valente plano só te trouxe de volta a mim. Deve estar consternada.
—Não estou. Melhor você que o senhor Clark, que conforme dizem é um pouco estranho.
Ele riu em silêncio ao ouvir aquilo.
—Assim veio a Manchester para ter um bate-papo com o senhor Clark. Planejou o ameaçar?
—Claro que não.
—Negociar, então, se preferir esse termo. Me deixe adivinhar. Prometeria não vender a fábrica ao alcançar sua maior idade se te desse em troca um pouco de dinheiro. A ameaça seria que se não entregasse isso, se uniria com Nigel ao cumprir os vinte e um anos e venderia tudo. Estou certo?
—Não tem por que fazer com que soe como um ataque. O dinheiro que queria era meu em qualquer caso. Queria que uma parte dos benefícios fosse desviada a mim e não enviada a…
—A seu irracionável tutor. Seu advogado fez bem seu trabalho, te dando a informação que necessitava. Um plano brilhante, senhorita Kenwood. Tem minha admiração.
—Poderia ter funcionado? Quer dizer, se você não fosse o senhor Clark.
Ele sorriu com uma assombrosa cordialidade.
—É encantador por sua parte que pense que a situação é diferente pelo fato de que eu seja ele. Eu estou ante você em uma clara situação de desvantagem. Não vou prejudicar a mim mesmo assinalando-a, já que é só uma questão de tempo que se dê conta.
Ela já se deu conta, logo que o viu no escritório.
—Uma vez que tivesse conseguido o dinheiro do senhor Clark, o que iria fazer? Ir direto a Itália suponho. Imediatamente? Sem bagagem e sem Jane?
—Minha intenção era voltar para Laclere Park, para recolher Jane.
—Suponho que teria partido sem dizer nada. Uma carta em seu escritório para Penelope é o máximo que me atreveria a esperar. —Apoiou as gemas dos dedos de suas mãos umas contra outras e a estudou por cima do pico que formavam— Me sinto um pouco ofendido pelo fato de que este seu plano não me tenha em conta para nada.
—Certamente não tinha em conta que você podia ser o senhor Clark.
—Não refiro a isso. Possivelmente eu pude prever seu projeto. Possivelmente subministrei ao senhor Peterson a informação com o fim de te atrair aqui. Não te ocorreu que o homem a quem castigou no carro aquele dia pudesse ser tão perverso? Possivelmente não me acreditava o bastante inteligente para conspirar?
Pensou nisso, aquela ideia apareceu em sua mente em forma de uma momentânea e absurda precaução.
—Sim, o bastante inteligente, mas não o bastante perverso.
Seu julgamento pareceu lhe agradar.
—Se isto tivesse saído como você pretendia, o que esperava que fizesse?
—Esperava que se sentisse aliviado, e que se desse conta de que era o melhor.
—É obvio. O santo poderia voltar para seu noivado com a encantadora Fleur e o impostor poderia dedicar-se à libertinagem com sua amante. De novo uma vida cômoda, longe da fastidiosa e provocadora senhorita Kenwood.
—Algo assim.
Virou-se para ela.
—Devo te dizer que eu antecipava por sua parte uma nova tentativa de partir. Inclusive adverti Catalani sobre as nefastas consequências que podiam ter se te ajudava. Pedi a Saint John que revisasse as listas de passageiros das companhias navais para ver se tinha reservado um camarote.
—Planejava levar o dinheiro a França e viajar por terra, para que não pudesse me deter dessa forma.
—Então teria conseguido.
—Já vejo. Não queria que o futuro da fábrica dependesse de alguém que não pudesse controlar, e ainda tinha nove meses para me convencer de que me casasse com seu irmão.
Ele contemplou o fogo com renovada irritação.
—Te fazer voltar não tinha nada a ver com Dante, e muito pouco haver com a fábrica. Além disso, meus direitos legais como tutor tão somente me proporcionavam uma desculpa.
Suas palavras e sua expressão insinuavam mais que responsabilidades e manipulações, apesar de que não parecia precisamente contente com a ideia. A nova Bianca se ruborizou deleitada ante essa evidência de que era ela, e não a velha Bianca, quem estava certa sobre ele.
Uma tosse atraiu sua atenção para Morton, de pé no patamar da escada sustentando um candelabro.
—Tenho o quarto e o banho preparados, milord. Se a senhorita Kenwood estiver preparada, mostrarei a ela o caminho. —deu a volta para retirar-se escada acima.
Ambos se levantaram. Ela lamentava ter que renunciar à fresca honestidade que começava a criar-se entre eles. Provavelmente voltariam a adotar seus velhos costumes ao encontrar-se mais tarde.
Começou a subir a escada, notando que ele estava atento a ela. No patamar se voltou para descobri-lo contemplando-a.
—Não.
Deteve-se ante aquela simples negação, apesar de que não acreditava que fosse uma ordem para detê-la.
—Não — repetiu ele— A respeito a sua pergunta de antes. Estava certa. Não há nenhuma amante. Nem amante, nem noiva. —Fez uma pausa— Só existe você.
Pensou que suas pernas não fossem respondê-la. A nova Bianca queria saltar por cima do corrimão e jogar-se em seus braços.
—Se for para ser honestos, tenho que admitir que você também estava certo. Não houve centenas, nem dúzias. Nem sequer vários, devo esclarecer. Só você.
Ele se afastou com um sorriso irônico.
—Vá tomar seu banho, senhorita Kenwood. Já que tinha a intenção de te seduzir necessito algum tempo para decidir se me alegro de ouvir isso.
Capítulo 13
Vergil cruzou os braços e olhou fixamente através da janela do salão a úmida e escura noite.
Se Bianca tivesse um pouco de bom senso, jamais sairia do quarto de cima.
Era virgem. É obvio que era. Ele estava quase seguro. Entretanto, sua parte de pecador o animou o suficiente para duvidar e assim poder ignorar seu próprio julgamento e especular com as possibilidades que sua chegada oferecia. Talvez não fosse e então a ideia que ele contemplava resultava um pouco menos inconsciente. Possivelmente, se fazia amor com ela, se fazia amor bem, então cabia a esperança de que ela…
«Só você.»
Duas palavras arrasaram todos os «possivelmente», os «talvez» e as «esperanças».
Sacudiu a cabeça rindo em silêncio. Era sua sorte de sempre, uma ironia tremenda. Jamais pensou que chegaria o dia em que lamentaria que a mulher com a que tinha decidido casar-se fosse inocente.
Seria uma esposa esplêndida. Brilhante, interessante e, dessa sua maneira exasperante, imprevisível. O tipo de esposa com quem alguém estaria ansiando passar o tempo, e não simplesmente suportá-la. O tipo de mulher que animaria a existência de um homem além da cama onde se uniria com ela por prazer e para procriar, embora seu empenho em tê-la ali formava uma parte não desdenhável da atração.
Uma esposa perfeita para ele também em outros sentidos. Não só porque traria com ela os quarenta e cinco por cento da fábrica, embora isso fosse uma vantagem. O melhor de tudo seria que ele não teria que ocultar sua vida dupla. Ela vinha de um país onde os homens de negócios não estavam mal vistos. Já conhecia seu segredo e não havia nenhuma necessidade de ocultar-lhe.
Que a mulher que queria fosse, além disso, a única mulher com quem podia correr o risco de casar surpreendeu como um generoso presente do destino. Foi durante a viagem de carro quando se deu conta de que seu descobrimento o liberou para poder persegui-la.
A ária de Rossini que cantou nas ruínas começava a encher sua cabeça. Imaginou aquele corpo que conhecia melhor do que deveria esticado nu naquela cama de cima. Ela deitada sobre seu estômago, com os ombros levantados e o peso apoiado nos antebraços. O lençol cobriria a parte inferior de seu corpo até a metade de seu traseiro, como a água do lago aquele dia. Ela o olharia se aproximar com zombadores olhos azuis, que conseguiriam combinar o mundano com a inocência. Sua mão acariciaria sua pele suave e sua boca se encontraria com seus lábios…
«Só você.» depois de planejar uma atuação longa e elaborada que requeria experiência mundana, ela tinha tido que reconhecer isso aquela noite.
—Já está rindo sem nem sequer ter me visto? —Ouviu a voz dela— Ou me vê refletida na janela?
Ele deu a volta e tentou conter uma gargalhada.
O casaco caía sobre seus ombros e seus braços deixando suas mãos cobertas. As calças eram tão compridas que teve que enrolá-las nas pernas com grosas e torpes voltas. Em conjunto parecia estar metida em meio de um oceano de roupa onde seu corpo nadava aparecendo tão somente a cabeça.
Esticou os braços e agitou as mangas do casaco.
—Sinto-me como um menino pequeno vestido com a roupa de seu pai. Devo estar muito estranha.
Ele pensou que estava adorável.
—O azul do casaco te cai bem.
Ela levantou o braço e tentou deslizar a manga para baixo para a mão poder aparecer.
—Com isto será impossível comer, e estou faminta.
—Então terei que te alimentar. —Um pensamento delicioso— Ou avivaremos o fogo para que possa tirar o casaco. —Aquela era uma ideia atraente também.
—Faria? Aumentaria o fogo.
Justo quando conseguiu acender uma fogueira, Morton chegou com a sopa.
—Isto a ajudará a entrar em calor, senhorita Kenwood, mas temo que o resto da comida seja pratos frios. Estamos acostumados a comer de forma muito simples à noite. Farei melhor manhã — explicou Morton.
—Eu não me abasteceria na loja Morton. Espero estar na estrada amanhã de noite.
Morton a olhou como um oficial olharia a um soldado que não está cumprindo com seu dever.
—Por que não traz o resto agora, Morton? A senhorita Kenwood perdoará nossa informalidade.
—É obvio sir.
Bianca tirou o casaco e o deixou sobre uma cadeira. O colete cinza escuro também ficava muito folgado, mas seu corte e seu tecido não ocultavam de tudo suas formas. Vergil fez gestos para que se sentasse ante os talheres colocados para ela, separados dos seu por um ângulo reto, ao fundo da mesa de banquetes. Morton procurou que estivessem o mais perto possível sem que parecesse muito óbvio. Ao alcance das mãos, disso não cabia dúvida.
Ela contemplou a seu redor os espelhos, os quadros e os adornos de ouro que brilhavam a luz das velas e da lareira.
—É uma sala estranha para um imóvel como este.
—Minha bisavó materna detestava esta casa pelo lugar primitivo onde se encontrava, mas seu marido insistia em vir aqui. Ela decidiu que ao menos comeriam como gente civilizada, e mandou decorar esta sala como marcava a moda. Ele o permitiu, mas só no caso desta sala e seu próprio.
Ela começou a tomar a sopa. Seus lábios grossos se separaram delicadamente para receber o caldo quente, e a ponta de sua língua capturou uma gota errante. Sua boca o hipnotizou, colherada após colherada.
Aquela ia ser uma noite longa. Uma espécie de purgatório.
Ele imaginou que não provou uma comida decente desde que deixou Londres. Retificar aquele problema absorveu a atenção dela durante um momento. Quando Morton trouxe o presunto, ela devorou o seu. Vergil cortou outro pedaço e o colocou em seu prato.
Ruborizou-se e seu rosto adquiriu um tom incrivelmente adorável à luz das velas.
—Estou sendo grosseira.
—Está sendo humana. Deveríamos ter dado comida a você assim que chegou.
Ela olhou os objetos que levava e riu zombadora.
—Me dará um porto quando terminar?
—Você não toma licores fortes, e esta noite não é a melhor para começar.
—Se estou vestida assim, acredito que um copo de porto é quase obrigatório.
—Se insistir, mas só um copo muito pequeno. Não quero que me acuse de te embebedar.
Ela olhou seu prato de presunto com um sorriso peculiar.
—Estou segura de que nunca faria isso.
«Oh, não o faria?»
Depois de um pãozinho e um pedaço de presunto, ela finalmente parou. Ele virtualmente pôde ver como sua mente dirigia de novo a atenção ao assunto pendente.
—Como ocorreu, sua relação com a fábrica?
—É outra responsabilidade que herdei de meu irmão. Ele, por sua parte, envolveu-se quando recebeu um desafio.
—Um desafio?
—De seu avô. Adam Kenwood e Milton mantinham uma forte amizade, apesar da diferença de idade, formação e ideias políticas. A Milton parecia um homem interessante com a mente tão aguda como uma espada afiada. Muito ambicioso e muito inteligente. Você tem muito dele, por outra parte. Milton disse uma vez que encontrava em Adam um maravilhoso contraste em relação às abstrações filosóficas que enchiam sua própria vida.
—Assim Milton deixou o imóvel para trabalhar na fábrica?
—Há cinco anos houve em Manchester uma manifestação que acabou em sangue e foi batizada como Peterloo. As mortes dessas pessoas impactaram muito meu irmão. Milton não estava tão fechado em sua torre para não poder ver que o campo estava mudando muito. Adam e ele se envolveram em terríveis brigas a respeito das consequências morais do que estava ocorrendo nas novas indústrias. Milton acreditava que o problema era o caráter dos homens que as administravam. Homens melhores, menos obcecados pela cobiça, trariam como consequência melhores condições de trabalho e menos mal-estar entre as pessoas. Adam o desafiou a ter que enfrentar os mesmos riscos e escolhas que os homens de negócios para ver como ele atuaria. Desafiou Milton para que abrissem juntos uma nova fábrica.
—Aparenta uma provocação muito maliciosa e muito cara. Entretanto, quase posso vê-los, de mundos tão diferentes, discutindo sobre estas coisas, e também sobre outras. Influíram-se mutuamente, suponho. Seu irmão convenceu meu avô do engano de seu primeiro negócio, e Adam fez seu irmão ver o pouco práticas que eram suas ideias.
Sua expressão ao referir-se ao comércio de escravos de seu avô estava agora mais suavizada. A forma em que o olhava aos olhos transmitia sua gratidão por ter revelado que Adam expiou aquele pecado e que podia ficar com sua herança.
—Foi temerário por parte de meu irmão aceitar o desafio. As finanças familiares eram já um desastre. Adam o ajudou com uma parte importante do financiamento e lhe ofereceu conselho, mas o negócio seria de meu irmão. Sem dúvida Milton viu que era um experimento ambicioso, mas também contava com a perspicácia de Adam nos negócios para impedir que fracassasse.
—Possivelmente Milton pensou que não era temerário, a não ser um modo de salvar à família.
—Se assim era, estava certo. Aquela resultou ser a única decisão sensata em questões de dinheiro que tomou em sua vida, e com a ajuda de Adam, conseguiu que a fábrica fosse proveitosa. Foi o primeiro senhor Clark, já vê. Acredito que quando se vestiu com essa identidade literalmente se converteu em outro homem.
—Então depois da morte de Milton, o irmão do senhor Clark, que foi você, herdou sua parte. Foi então quando começou sua vida dupla? Esteve dirigindo essa fábrica após?
—Ao morrer meu irmão, comecei a viajar ao norte, e dependia muito dos conselhos de seu avô enquanto ia aprendendo. Com o tempo cheguei a tomar as decisões. Era essencial que como administrador tivesse muitíssimo cuidado. Os lucros da fábrica nos salvaram da ruína.
Também resultou útil passar tempo no norte como o senhor Clark, pois este podia visitar lugares e ouvir conversas inacessíveis para o visconde Laclere. O senhor Clark podia tentar averiguar se a resposta ao suicídio de Milton podia ser achada em algum lugar de Manchester, onde Milton fazia visita, e entre os políticos radicais a cujas ideias Milton deu apoio.
Ele se deu conta de que queria falar sobre isso também, e lamentava não poder fazê-lo.
Ela se inclinou para frente com o cotovelo apoiado na mesa e o queixo descansando sobre sua mão. Ele podia ver a mente sagaz de Adam Kenwood atrás da pensativa expressão de seus olhos.
—Você disse que teve dificuldades durante uns anos maus. Por que não a vende agora? A oferta do senhor Johnston e do senhor Kennedy está esperando. Pode te liberar deste engano.
—Johnston e Kennedy dirigem as piores fábricas de Leeds. A nossa em comparação é um paraíso, inclusive embora suponha levar uma vida dura. Se vendo a fábrica, também vendo qualquer oportunidade de que as pessoas que ali trabalham tenham um futuro decente.
Morton encontrou alguns pasteizinhos para apresentar com a comida. Ela pegou um. Seus pequenos dentes brancos o morderam com muito cuidado, mas de todas as formas um pouco do açúcar que os recobria manchou seus lábios. Ainda pensativa, parecia não dar-se conta de que sua língua emergia para limpar os doces grãos. Alguns escaparam e brilhavam sobre o rosado inchaço de seus lábios, como o convidando para que acabasse o trabalho.
—Pode vendê-la a outros. Deve haver alguns donos de fábricas decentes.
—Isso é verdade. Provavelmente poderia fazê-lo.
—Mas não quer.
Uma mulher perspicaz. Maravilhosa. Perigosa.
—Não.
Ela se tornou para trás e assimilou aquilo. Ele se perguntava que custo seria para ele essa confissão.
Ela sorriu como se já soubesse o que precisava saber.
—Posso tomar agora meu porto?
—Guardo-o na biblioteca.
Caminharam juntos através do vestíbulo até a biblioteca. Ele viu que atou as calças à cintura com uma corda das cortinas do dormitório. As mangas brancas da camisa flutuavam ao redor de seus braços e o pescoço do decote mostrava bastante quantidade de pele apesar do colete.
A imaginou com nada mais que essa camisa pendurando solta desde seus ombros e seus peitos, o tecido suave roçando seu corpo, deixando ver suas coxas e suas pernas nuas.
Morton acendeu a lareira na biblioteca. Ela se afundou em um canto do sofá e aceitou o porto que ele ofereceu.
Ele se sentou em uma poltrona frente a ela, perguntando-se quando começaria a abordar as questões de negócios. Afinal, essa era a razão que a fez baixar para jantar.
Ao que parecia não ainda. De repente se levantou de um salto e começou a examinar atentamente os volumes das estantes que cercavam a lareira. Enrugou a testa. Alcançou um candelabro do suporte, acendeu-o com as chamas da lareira e aproximou a luz às encadernações.
—Há alguns volumes de um tal Edmund Duclairc. Era seu pai?
—Sim. Esse vermelho grosso é sua epopeia sobre a marcha de Alejandro para o rio Indo. O marrom é uma visão anglo-saxã da batalha de Hastings. As tentativas literárias de Milton estão nessa pasta azul da prateleira do fundo. Sem publicar, já que não teve a oportunidade de terminá-los. Não eram poemas. Estava escrevendo uma análise comparativa da revolução de seu país e a da França.
Ela pegou o volume marrom.
—Parece muito erudito. Você também escreve grandes livros?
—Meus interesses foram por outros roteiros, para consternação de meu pai.
—Estava brigado com seu pai? Por alguma razão, não posso imaginá-lo menos que obediente.
—Como todos os jovens tinha minhas próprias ideias a respeito de meu futuro. Queria me alistar no Exército. Não na cavalaria, o qual teria sido aceitável, mas sim como engenheiro. As máquinas, os edifícios, as ferramentas para trabalhar a terra, essas coisas me fascinavam. Quando era menino rondava ao redor das carruagens, e não dos cavalos. Minha solicitação para obter uma graduação de oficial foi sonoramente rechaçada por meu pai. Me fez partir a Oxford, para estudar os poetas e os filósofos.
—Foi desventurado? —Seu rosto mostrava uma genuína preocupação.
—Nenhum homem jovem é desventurado na universidade. É uma vida livre e privilegiada. Esses poetas e filósofos tinham uma ou duas coisas a me ensinar. A experiência influiu em meus pensamentos, mas não em minhas inclinações naturais. Seu avô se deu conta disso, acredito. Ele e eu cercamos uma relação mais familiar depois da morte de meu irmão. Em uma ocasião fui com ele ver algumas das máquinas que se construíram recentemente. Contemplei minha primeira máquina de vapor com seu avô a meu lado. Quando saímos, disse o que pensava. «Seu mundo está agonizando — disse— Jamais voltará a ser o mesmo.»
—Me dá a sensação de que desfrutava com sua companhia. —Devolveu o livro a estante— Acredito que estava impressionado por seu interesse nas máquinas e no funcionamento das coisas. É injusto que seu pai interferisse contra isso.
Inteligente, uma garota inteligente. Colocando sutilmente os alicerces antes de começar a edificar sua argumentação.
Deu um passeio de volta até a poltrona e se colocou cuidadosamente no canto outra vez. Parecia vulnerável e desejável com suas roupas largas e o cabelo preso com simplicidade. A luz do fogo rompia suas formas com encantadores brilhos e sombras misteriosas.
Ele a olhou e ela devolveu o olhar. A inocente cautela aparecia apesar de seu sorriso aparentemente despreocupado. Só um santo poderia ignorar a espera pulsando através do ar, e ele não era precisamente um santo quando se tratava de estar ao lado dela.
Viu a si mesmo nadando contra uma maré que se movia, uma maré indiferente a qualquer ideia de honra. O esforço exaustivo começava a parecer cada vez mais fútil.
Sim, ela jamais deveria ter saído desse quarto.
Ele continuou olhando-a. Diretamente. Atentamente. Como se estivesse esperando algo. Ela suspeitava que ele soubesse o que sua prolongada atenção estava ocasionando, e que a alargava a propósito. Possivelmente ouvia aquele murmúrio de seu corpo cada vez mais alto.
O silêncio se tornou perigoso. A pele dela avermelhou e sua boca ficou seca. Continuava esperando que ele se levantasse e se aproximasse… Mas seguia sentado ali. Esperando.
Jamais o faria. Além disso, tinham negócios a atender. Por isso ela estava ali, não? Esforçou-se para aparentar certa compostura.
—Bom, Laclere, o que vamos fazer com isto?
Ele a obsequiou com um breve sorriso.
—Eu diria que é tua coisa. O que você quer fazer?
—Acredito que o acordo a que chegarmos deveria ser mútuo.
—Eu estou em desvantagem, e ambos sabemos. Qualquer tentativa de resolver a situação deve ser sua iniciativa.
—Acredito que o plano é óbvio. É injusto por sua parte pedir que eu explique isso.
—Suponho que é, mas sou incapaz de expor por mim mesmo um argumento razoável, porque não há. A única coisa que quero agora mesmo, o único rumo óbvio que vejo é te levar para cama e confiar em que amanhã será possível chegar a um mútuo acordo.
Seu coração deu um salto e se elevou até sua garganta.
—Você me interpreta mal… Isto não é… Estamos falando da fábrica.
—Não, não falamos disso.
—Eu sim.
—Você sim? Minhas desculpas então. —levantou-se e caminhou até a lareira. Ela teria preferido que ficasse sentado. Olhou durante um momento as chamas antes de voltar-se— Bem, vamos discutir sobre a fábrica e seu primeiro descobrimento.
Primeiro?
—Minha desvantagem a respeito a esse assunto é ainda mais grave que na outra questão.
—Já te disse que não direi a ninguém.
—Agradeço isso. E quanto me custará?
—Nada que já não seja meu. Quais são meus ganhos da fábrica?
—Este ano ao menos quatrocentas libras.
—Céus. Deve ser um bom administrador, Laclere.
—Obrigado. Entretanto, desde que alcançamos aquela soma há dois anos, nem Adam, nem o senhor Clark retiramos todo o dinheiro. Tornamos a investi-lo em uma ampliação da empresa. Embora se você reclamar a totalidade da soma não tenho mais como lhe dar isso.
—Quanto reaplicou?
—A metade.
—Isso significa que ainda fica muito. Mais que suficiente.
—Mais que suficiente para que?
—Para viver em Milão, naturalmente.
—Assim que o verdadeiro custo de seu silêncio é que te permita esse temerário plano. Se me negar, anunciará ao mundo que sou o senhor Clark.
—Eu não disse isso.
—Não, não disse. Sua chantagem é muito mais inteligente. Guardará meu segredo, mas se não estiver de acordo com suas condições venderá suas ações quando for maior de idade.
Seria mais fácil concentrar-se se ele deixasse de dar voltas ao redor do sofá. Círculos e círculos. Recordou aquela manhã na torre de guarda do castelo. Assim foi sua atitude, e assim eram seus olhos.
—O problema, a meu modo de ver, é que você não pode garantir sua parte do trato —disse ele.
—Duvida de minha palavra?
—Duvido de sua habilidade para predizer o futuro. Se se casar, a decisão a respeito de vender ou conservar esse investimento deixará de ser seu.
—Não me casarei.
Ele se deteve atrás dela.
—Agora acredita que não.
—Sei que não, nunca. —voltou-se para olhá-lo— Você mesmo assinalou que nenhum homem decente iria me querer se me convertesse em artista. Além disso, uma mulher não pode ser esposa e mãe e também cantora de ópera, embora a sociedade o permitisse. Ao ter bebês a carreira deve terminar.
—Talvez algum dia mude de ideia em relação ao que é mais importante para você.
Se torcia para poder vê-lo, era incômodo, e ele parecia não ter intenção de mover-se. Ela deu a volta e se ajoelhou no sofá. Isso a fez ficar mais perto dele do que imaginava.
—Disse isso uma vez, isto é imprescindível para mim. Devo fazê-lo se tiver o talento para ao menos tentar. Morrerei se não faço. Nenhum marido interferirá em nosso trato.
—Isso me resulta difícil de aceitar.
—Duvida de minha resolução? Você teria mais evidências dela que ninguém.
—Eu não duvido de sua resolução, mas jamais foi posta a prova. O tempo tem seu modo de converter os negros e brancos da vida em cinzas. Isso tão singular que você descreve é um tipo de liberdade que se volta pesada e aborrecida com os anos. Confia em mim, sei. Acredito que o trato que me oferece de boa fé esta noite pode deixar de ter sentido um dia.
—Trata-me como a uma menina tola que está jogando um jogo. É como se desse por certo que sou muito ignorante para conhecer a mim mesma. Me dou conta de que os homens pensam que as mulheres são muito estúpidas para pensar bem as coisas e pesar suas decisões, mas sua atitude é muito insultan…
De repente a mão dele apertou sua bochecha, fazendo-a emudecer. Olhava-a com uma expressão que fazia suspeitar que não ouviu nenhuma só palavra.
—Foi um engano, senhorita Kenwood, esta demonstração de aborrecimento. Tenho o dever de respeitar a inocência. Quanto ao mundano, sou um perito em resisti-la. Mas a luz de seus olhos quando me agride revela um espírito apaixonado que me provoca até o ponto de que nada me importa exceto te possuir. —Seu polegar roçou de forma sedutora seus lábios— O qual nos leva a outro assunto que devia ser resolvido entre nós.
Esse polegar a acariciava, como se estivesse preparando-a para ele. Ela estava ajoelhada muda de assombro, com os joelhos tremendo, contemplando um rosto enigmaticamente feliz ante sua fascinação. Seus lábios estremeciam com as sutis carícias. Abriu um oco para poder roçar as úmidas bordas interiores.
—Quer que te beije?
Nunca perguntou. E ela não tinha suficiente fôlego para responder. Seus lábios pulsaram inchando-se sensivelmente ante sua sedutora carícia. Seu corpo todo tremia pela espera, como se a tensão da espera que havia na estadia tivesse entrado dentro de seu corpo.
—Quer?
—Sim. —Não saiu nenhum som, mas seus lábios tomaram forma para dizer a palavra.
O fez. Maravilhosamente. Sustentou seu rosto entre as calorosas palmas de suas mãos e sua boca substituiu o dedo polegar naquelas carícias. Ela se agarrou na borda do sofá para não cair desfalecida entre seus braços. A nova Bianca renascia com triunfante alívio.
Brandamente, cuidadosamente, ele arrasou com todo pensamento além do prazer que procurava. Provou-a e a saboreou com firmes, ambiciosos, excitantes beliscões e lentas, profundas, embriagadoras invasões. O caminho daquela paixão era distinto ao da abrupta liberação das ruínas e do estúdio, e ela instintivamente sabia que era um caminho mais perigoso. Essa tenra exploração de seu consentimento despertava suas emoções de uma vez que seu corpo. Queria que a beijasse assim para sempre, inclusive enquanto essa voz interior começava a entoar seu canto pedindo mais proximidade, mais agrado, mais entrega.
O quente encanto a hipnotizava. Não podia mover-se, nem sequer para abraçá-lo. Quando terminou o beijo só pôde permanecer muda contemplando seus olhos azuis e reflexivos.
Acariciou o pescoço, seus dedos espalhando-se sobre sua pele, pressionando os batimentos de seu pulso, explorando seus ombros trementes. Ele observava o progresso de suas próprias mãos. Essa expressão contemplativa ainda velava seus olhos. A ela ocorreu que enquanto sua própria mente estava em branco para algo além daquele encantamento não acontecia o mesmo com ele.
Suas mãos e seu olhar desceram para o vale que havia entre seus seios. Sentiu que desabotoava o botão superior do colete. Depois o seguinte. Ela apertou com mais força o respaldo do sofá.
O colete caiu aberto e ele afastou as lapelas. Ela olhou para baixo. Os mamilos duros empurravam o tecido da camisa como orgulhosas declarações de desejo. Ele percorreu acariciando o lado e a base de seus seios, perfilando seus contornos. Seus olhos estavam imprecisos, como todo seu corpo e sua mente e seu coração reduzidos na minúscula e intensa ânsia de espera e desejo.
—Quer que te faça amor?
Quase não o ouviu. Seus olhos se encontraram com os dele e ela lutou para recuperar a capacidade de pensar e de falar. Continuava acariciando seus seios, distraindo-a, deixando-a indefesa. Estudou seu rosto como se procurasse ler em sua mente.
—Sabe o que significa se o faço?
Ouviu sua voz respondendo.
—Não sou ignorante dessas coisas.
Suas palavras podiam ter sido afiadas ferramentas cavando buracos no transe que compartilhavam. Toda lógica fugiu dali. Ele sorriu com alegria, e com remorso.
—Não estou falando disso.
Afastou-se. Ela se afundou no sofá, transbordada pela confusão e uma desilusão visceral.
Ele recuperou o candelabro do suporte e o aproximou. Uma mão forte lhe fez gestos para que se levantasse. Seus pensamentos ainda eram confusos, mas seu corpo virtualmente gritava de alívio.
Com encantadora cortesia ele a conduziu até a porta. Colocou o candelabro na mão dela e a ajudou a fechar os dedos em torno do objeto.
—Vá para cima. Rápido.
Ruborizou-se ao ver que ele previu tudo. Agarrando o abajur escapuliu escada acima. Enquanto subia seus pensamentos começaram a organizar-se e os últimos minutos cobraram sentido.
Ao chegar ao patamar da escada compreendeu o que acabava de acontecer. Ele não a enviou na frente para que se preparasse para compartilhar o leito.
Não tinha intenção de segui-la, nem agora, nem mais tarde.
Capítulo 14
Bianca se retorcia inquieta. Apertou o travesseiro, pôs em cima outro para formar um montículo alto e o colocou debaixo das costas.
Certamente era afortunada pelo fato de que Laclere fosse um homem tão decente. Sim, em efeito.
A camisa de dormir que Morton deixou estava enrugada. Seus quadris descobertos sentiam uma excitação. Fazendo alavanca com ele, empurrou o tecido para baixo.
Um homem muito decente. Muito honrado. Um santo, por Deus.
Qualquer outro homem a teria desvirginado no sofá. Qualquer outro homem subiria a esse quarto e estaria deitado a seu lado neste momento…
E ela se encontraria cara a cara com ele pela manhã, sabendo que cometeu um engano, provavelmente com todo tipo de preocupações.
Por outra parte, qualquer outro homem a estaria sustentando em seus braços, para acalmar todas essas preocupações.
Não podia sentir-se cômoda. Deveria estar exausta, entretanto, sentia-se horrivelmente acordada. Toda ela. Acordada e alerta com uma enorme parte de seu ser ainda esperando.
A metade da noite já devia ter transcorrido. Horas pensando o que ele teria querido dizer com aquela última pergunta. Minutos intermináveis desejando em segredo que ele nunca tivesse descoberto essa decência.
O silêncio enchia todo o imóvel. Em alguma parte Morton estaria dormindo em sua cama. Em alguma outra, em alguma dessas estadias inadequadas para ela, Vergil dormiria também. Sem dúvida dormiria o sono sereno e profundo dos honrados. Até os fantasmas estariam dormindo. Ela era a única alma totalmente acordada, retorcendo-se naquela enorme cama, rasgada entre a gratidão e o arrependimento.
Tirou de cima a roupa de cama. Possivelmente se lesse durante um momento se distrairia bastante e isso a ajudaria a descansar.
A camisa de dormir abrigava o suficiente dentro da cama, mas um calafrio a fez tremer ao ficar de pé. Ninguém ia vê-la, mas se sentia muito desprotegida com aquilo. Arrastou uma manta da cama e a colocou como uma capa. Pegou a calça e a vestiu.
Inclinou o candelabro para os carvões da lareira, deixou cair seu cabelo sobre os ombros e carregou seu pequeno abajur enquanto se aferrava à manta. Caminhando silenciosamente com os pés descalços, desceu a escada.
O fogo da biblioteca quase se apagou. Seu pequeno círculo de velas iluminava fracamente a penetrante escuridão. Flanqueou a parede e se dirigiu para os livros que estavam ao lado da lareira. Segurando as chamas perto das encadernações, dispôs-se a procurar um livro aborrecido.
Ouviu um leve rangido e um estalo de luz de repente iluminou as sombras. Ela deu um salto ante a surpresa e deu a volta. Vergil estava agachado junto à lareira, contemplando como as chamas escalavam por uma nova injeção de combustível. Uma colcha escura estava jogada sobre o sofá onde devia estar deitado.
Ele se levantou e o coração dela deu um tombo. Sua jaqueta e seu pescoço estavam desabotoados. Sua camisa deixava ver uma boa parte de seu pescoço e de seu peito. As calças delineavam a magra solidez de seus quadris e suas pernas. Ela olhava fixamente como uma idiota a maravilhosa imagem. Ele examinou a lareira com atitude despreocupada enquanto esperava para assegurar-se de que o fogo acendeu.
Finalmente se voltou para ela. Seus olhos chamejantes a esquadrinharam da cabeça aos pés e logo se encontraram com os seus. Alcançou um copo de porto que deixou sobre o suporte.
—Pensei em ler um momento e… — disse ela gaguejando, ao tempo que aturdida inclinava a vela para os livros, fingindo examiná-los.
Ele começou a passear.
—Poesia ou prosa?
—Humm… acredito que prosa. Possivelmente de seu irmão.
Ele deixou seu copo e pegou a vela que ela carregava.
—Me permita. Corre o perigo de por fogo a seu adorável cabelo. Quer a pasta azul do fundo.
Estava de pé atrás dela, sustentando a vela para ajudá-la em sua busca. Ela se esticou para alcançar o magro volume. Sua mão tremeu em contraste com a firme mão dele, a seu lado.
—O tratado possivelmente não te induza sonolência, se isso for o que busca. Meu irmão era brilhante.
Ela apertou a pasta contra seu peito. Não podia se afastar caminhando sem antes dar a volta, e temia encontrar-se de cara com ele. Uma espécie de poder parecia surgir dele, excitando zonas de seu espírito e desconcertando outras.
—Acreditava que já estaria dormindo — disse ela, pensando que era uma boa ideia esclarecer por que se atreveu a levantar.
A princípio não respondeu. Permanecia ali de pé, perto, como se pusesse a prova à atração que podia exercer se quisesse, inclusive quando era invisível para ela.
—Decidi esperar, para que você voltasse para mim. —Uns dedos firmes pousaram sobre seu ombro, segurando-o com suas carícias— Para que se desse conta que te enviar acima foi minha última reverência aos deuses do decoro no que diz respeito a você.
A vela piscou enquanto ele a colocava na quina do suporte. Esticou-se para tirar o volume de suas mãos e o pôs perto do copo de porto sobre a estante. Aproximou-se dela deixando-a abandonada contra as pastas amontoadas.
Uma rajada de fôlego quente penetrou através de seu cabelo. Duas mãos agarraram seus ombros. Brandamente separaram as mãos de Bianca de seu peito e as abriram de par em par. Como uma cortina a manta se abriu, estendeu-se e caiu ao chão. Achou-se mesmo segurando-se às estantes que havia a sua direita e a sua esquerda.
—Eu pensei… Eu devia buscar um livro — disse um pouco desesperada.
As mãos a agarravam pela cintura mantendo-a naquela vulnerável posição. Os beijos em seu pescoço e em suas orelhas acendiam reluzentes luzes em seu corpo.
—Não, não é certo. Veio aqui para se entregar a mim.
Sentiu vergonha ao ver que ele conhecia seu coração melhor que ela mesma. Era verdade que tinha esperança de que ele seguisse aí. A estadia escura e a lareira apagando provocaram uma espetada de decepção.
—Basta de fachadas, Bianca. Basta de farsas. Isso é uma das coisas que isto significa.
Era a primeira vez que pronunciou seu nome. Isso, inclusive mais que suas mãos decididas, indicou onde a estava levando. Acariciou suas costas subindo até seu pescoço e desabotoou o botão superior da camisa de dormir. Seu decote se soltou. Baixou o tecido até seus ombros e beijou a pele descoberta, encontrando lugares de inesperada sensibilidade.
Era estranho sentir-se protegida e indefesa ao mesmo tempo. Sua pele despertou com centenas de faíscas enquanto a contida antecipação surgia faminta e implorando satisfação. Soltou-se da estante e se afundou no abraço que a envolvia.
—E o que mais significa? —Baixar a escada havia tornado irrelevante a negociação, mas deveria saber o que aceitou.
As mãos dele se moveram sobre sua cintura e seu estômago, passando pelas partes antes cobertas pelo espartilho.
—Que é só minha. Não te compartilharei. Que se entregará a mim quando eu queira, como eu queira. Que… — Interrompeu a explicação com o comichão do nariz sobre sua nuca.
Era um pacto de amantes o que procurava.
—Possivelmente eu não goste.
—Corresponde a mim assegurar que você goste.
Deu a volta. Sustentando-a com um braço, afundou os dedos no porto. Como um pintor trabalhando em um delicado tecido fez correr o líquido sobre seus lábios e seu pescoço. Inclinou a cabeça para prová-lo.
Foi um beijo maravilhoso, cheio de confusos sabores e emoções misteriosas. Lambeu as veias que marcavam seu pescoço, acendendo pequenas chamas que faziam cócegas agradáveis. A luz criava um resplendor brilhante em seus seios e suas coxas, um banho de calidez interior que exigia mais combustível.
Suas mãos se moveram para o porto outra vez. Ela ficou esperando que as gotas esquentassem seus lábios. Em lugar disso ele molhou sua própria boca.
Ela nunca o beijou. Sentia que aceitar seria cruzar uma fronteira invisível. Aceitar era uma coisa e compartilhar era outra.
O porto brilhava.
—Acreditei que havia dito que não podia beber mais que um copo pequeno — disse ela, tentando ocultar o medo que ele a atraísse para águas profundas.
—Uma ou duas gotas dificilmente a converterão em uma discípula de Baco.
—Não estou segura.
—Não te pedirei nada mais, mas quero que me beije, Bianca.
E ela também queria. Tinha uma vontade enorme. Isso a assustava muito.
Deslizou sua mão por trás de seu pescoço e o empurrou para baixo. Franziu seus lábios sobre os dele e se aventurou a lhe jogar o porto. Sua boca se abriu ante a carícia de sua língua e de repente ela estava dentro dele. Apertou-a em um apertado abraço e uma resposta que rapidamente se intensificava.
Sua reação incitou um tipo diferente de prazer, e uma enjoativa sensação de poder.
Viu seus próprios dedos afundando-se no porto e desenhando um atalho por seu pescoço. O líquido caiu para baixo e serpenteou para a porção de peito que sua camisa deixava descoberto. Com dedos e dentadas sem dentes ela perseguiu a atrevida corrente. Seus dedos, junto a sua boca, apertavam a tensa pele enquanto se perdia nas sensações do tato e do gosto. Inclusive seus ouvidos se alimentavam de sensualidade, ouvindo os batimentos de seu coração e fortes suspiros que revelavam o que lhe estava provocando.
«Sim, sim. Me necessite e me queira como eu a você. Me tema um pouco, como eu a você. Perde uma parte de seu ser, como acontece comigo.»
Segurou sua mão e beijou a palma, seu pulso, e a suave carne da parte interior de seu braço.
—Pergunto outra vez. Quer que te faça amor?
Essa noite, nesse imóvel, nessa estadia, ela o ansiava desesperadamente. Uma importante parte de seu ser nunca tinha querido nada com tanta força, nem queira seu êxito como artista. Reconhecê-lo a assustava, mas mesmo assim assentiu com a cabeça.
—Está segura? Depois não haverá volta atrás à inocência.
Nunca esteve tão segura de nada como naquele momento. Caminhou para trás, conduzindo-a para a lareira.
—Então aqui. A primeira vez que te vi pensei na luz da lareira e nas colchas de veludo.
Pôs a colcha no chão e a fez sentar-se em seu colo, rodeada pelo calor do fogo e a força de seus braços. Era uma delícia fundir-se com ele e render-se a seu apoio. Olhou-a dessa maneira considerada enquanto acariciava seu cabelo.
A fez se inclinar com um longo e muito belo beijo. Deliciosas sensações caíam em cascata e seus sentidos espectadores davam voltas. O mundo ficou reduzido a esses cinco pés de luz e calor frente à lareira. O único sólido era o corpo do homem que a sustentava abraçada entre suas pernas cruzadas.
«Sim, sim.» Tão bom. Tão delicioso. Seu coração gozava com a intimidade, e seu estômago e suas costas se dilatavam com essa maravilhosa tensão. «Ah, sim.» Ele manteve sua necessidade sob controle, mas ela podia senti-la, um poder que se enroscava em torno dele introduzindo-a em sua espiral. «Por favor.» Seus braços lhe fizeram arquear as costas, levantando seu corpo para o seu. Seus beijos exploraram o oco de sua camisa de dormir, para a pele de seus seios.
Tão desesperadamente necessitava que a tocasse que deixou escapar um pequeno grito quando sua mão cercou seus seios. Acariciou-a brandamente e logo brincou com seu mamilo até que ela não pôde deixar seu corpo quieto.
—Crê que você gostará? —Aproximou sua boca ao outro seio, esquentando-a com seu fôlego através da roupa.
—Se tudo for como isto.
A suave fricção de sua palma lhe esquentou a pele através da roupa.
—É melhor que isto antes do final.
Seus firmes lábios tocaram os dela explorando-os com um beijo suave. Era tão bom e correto estar entre seus braços. Sentia-se completamente em paz com sua decisão.
—O que fazemos agora? —sussurrou ela.
—Agora te darei o prazer que já conhece, e enquanto o faço te despirei.
—Completamente? —A ideia de achar-se completamente nua ante ele a consternava e a excitava de uma vez.
—Completamente. Ao final. Por agora acredito que desabotoarei estes botões. Está muito sedutora com minha camisa de dormir, por outra parte.
—Sinto-me um pouco pícara com ela. É bastante modesta, mas sabendo que era sua pôr isso me parece mais atrevido que usar a mais escandalosa camisola de seda.
—Morro de vontade de te ver vestida com um desses alguma vez, mas encontro este do mais encantador esta noite.
Soltou o segundo botão e se dedicou ao terceiro. Tomava seu tempo e suas mãos se aproximavam tentadoramente a seus seios. A fina abertura se alargou ao longo de seu corpo, revelando uma franja de pele até a borda de suas calças.
Deitou-a no chão e afastou os dois lados da camisa deixando seu corpo descoberto até a cintura. O tecido pendurava dos ombros e se estendia para os lados. Ela duvidava de que estar completamente nua resultasse mais alarmante.
Acariciou a suave pele de seus seios, esfregou seus mamilos e descreveu círculos em torno deles, desencadeando uma ofegante sensibilidade que quase a faz saltar. Suas costas se arquearam de modo involuntário, de uma forma bem atrativa. «Sim, Oh, sim… Mais…» Lhe devolveu o beijo com crescente veemência, em um esforço por aplacar a pressão que a enchia. «Sim, sim…» Suas mãos e seus braços lutaram para capturá-lo em um abraço incapaz de romper-se. Sua camisa não obscurecia seu corpo como a jaqueta antes, e o deleite que sentia com o contato só fazia que o desejasse mais.
Levou um de seus seios à boca e o chupou. O prazer cresceu até fazer-se tão insuportável que sentiu desejo de chorar. Agarrou-se a ele e sua camisa foi um frustrante impedimento. A puxou para soltá-la de suas calças e arrancá-la de seu corpo. Ele a ajudou a tirá-la.
Realmente era magnífico contemplá-lo. Não pôde resistir a deixar correr os dedos sobre as cúpulas dos músculos que definiam seu peito e seus ombros. Ele se inclinou para ela e uniram seus corpos pele contra pele. Novas surpresas derramaram através dela; o tato, o aroma, seus fôlegos mesclando-se, e longas carícias que a prendiam e a possuíam. A intimidade a deixou indefesa e tensa.
Ele estalou em ferventes beijos e lhe sussurrou ao ouvido.
—Agora vou te dar o prazer que ainda não conhece.
—Não acredito que possa haver nenhum mais agradável que este.
—É como a diferença entre uma melodia de salão e um ária. —Desatou a corda de sua cintura enquanto falava. Os botões da calça se soltaram. Uma excitação indescritivelmente escandalosa arremeteu contra ela enquanto ele baixava o objeto por seus quadris e suas pernas. O estômago e um arbusto de cabelo emergiram através da fenda da camisa.
Ele levantou a prega, cobrindo suas partes mais íntimas, mas deixando suas coxas completamente expostas. Acariciou suas pernas como se modelasse sua forma. Uma exigência diferente se acendeu, interna e quente e enfocada na paisagem proibida que ele explorava. «Sim, sim. Oh, céus…» Um estremecimento que só podia aliviar se movendo a sacudiu. Seus quadris balançaram com a suavidade da cera, pressionadas por carícias esplêndidas. «Sim… mais acima… Tão perto. Eu quero… Eu quero…»
—Agora deve confiar em mim. —Baixou a camisa dos ombros e a levantou em um abraço que fez que as mangas saíssem. Converteu-se em um tecido branco enrugado entorno de seus quadris. Ele a deslizou para baixo.
Fora. Já não estava. Ela contemplou sua própria nudez e se deu conta de que ele também o fazia. Sentir-se exposta era também um motivo de excitação. O embriagador erotismo da situação a intoxicou. Ao cabo de um momento ele tirou o resto de sua roupa. Não teve o valor de examiná-lo como ele fez com ela, mas seus olhares furtivos assimilaram a força do corpo convexo junto ao dela.
Uma intimidade de sonho a penetrou. Seu corpo e sua alma esperavam em meio dessa harmonia. Esperavam como tinham esperado todo o dia e toda a noite. Como tinham esperado durante semanas. Queria tê-lo o mais perto possível, para poder possuir uma parte dele sem que importasse o que ocorresse além desse fogo brilhante e depois do poder daquela preciosa noite.
Olhou-o diretamente aos olhos. Sabia que o seguinte beijo seria distinto. Ele podia tê-la conduzido até aquele ponto com doce sedução, mas seria comedido até o final.
A paixão das ruínas instantaneamente a arrastou dentro de uma tempestade. Com um anseio de posse feroz beijou sua inconsciência, sua boca e sua língua conquistaram as dela antes de incorporar suas mãos nessa desumana estimulação de seu corpo. Uma insistente necessidade e uma ansiedade voraz se uniram ao prazer, convertendo-o em uma meta a perseguir. O anseio empurrava e doía com uma intensidade crescente.
Ele explorou sua nudez com audácia, aprendendo seus segredos e sentindo seus tremores. Gritos de surpresa escapavam entre sua respiração irregular, e estes só pareciam aumentar ainda mais a tensão dele. Pôs um de seus seios dentro da boca e o chupou até fazê-la gritar. O prazer deu voltas em torno de um centro, trancando-se e torcendo-se, querendo e querendo com um poder que atormentava.
Sim, por favor… Se agarrou a ele como se sua prudência dependesse disso, aferrando-se freneticamente a seus ombros. «Oh, Deus, por favor…» Ele a guiava para algo perigoso e maravilhoso e ela de uma vez queria continuar adiante e bater em retirada. «Me dê… Eu quero…» Suas carícias desceram para seu estômago e suas coxas. Com firmeza separou suas pernas. «Oh, Oh… sim, eu quero… por favor, mais acima, aí, Oh, eu… Eu…»
Seus dedos roçaram seu pêlo púbico, acariciando-a entre as pernas. Quando sua mão obedeceu sua súplica, uma aguda ponta de prazer a fez esticar-se. Ele colocou uma perna entre as suas para mantê-la no lugar. Seu falo duro se apertou contra seu quadril, sobressaltando-a ainda mais.
—Não vou te tomar ainda. Vai desfrutar, prometo isso. —Seu dedo deslizou para sua greta, entrando na umidade e nas dobras ocultas.
«Oh.» Toque. Carícias. A intensidade das sensações a assaltou em forma de uma desumana série de impressões prazerosas. Os lugares que ele explorava eram escandalosamente sensíveis. Perdeu a noção de tudo além do anseio que a fazia gemer e suplicar.
«Sim, sim, ah, sim.» Desesperada queria vencer o medo virginal. Estendeu as pernas e se moveu com seus dedos dentro, balançando-se para senti-lo mais perto. «Por favor… Ah.» O prazer só se fez mais forte, mais agudo, pior. Aumentando, aumentando, prolongando-se fora de controle agora, gritando seus resolvidos pensamentos, a carne que ele acariciava pulsava ao mesmo tempo em que seu apressado coração. «Eu… Eu… Oh, Deus…» Sua consciência se fez pedacinhos em luminosos fragmentos, cegando seus sentidos. Um prazer que não era deste mundo estalou em um instante, banhando-a de êxtase.
Ficou em cima dela e ela o apertou contra si. Em seu satisfeito estupor ele era quão único existia junto a sua própria realidade física. O mundo inteiro se achava compreendido nele.
Entrou nela com cuidado. Uma vaga consciência de dor penetrou a concentração que se centrava em seu aroma, sua pele e aquele alívio que agora sentia. Levantou-lhe uma das pernas por cima de seu próprio quadril e isso acalmou a opressão. «Sim, sim, é tão bom… Quero isto. Quero você.»
Ele empurrou até enchê-la. Um poder controlado surgia dele, esticando os ombros sobre ela e os braços que a rodeavam. Uma sensual gravidade esculpia seu rosto. Ela se uniu a seu ritmo balançando-se para aceitar cada uma de quão investidas a enchiam. «Tão bom, tão perto. Em mim, comigo. Te amo. Te amo.» O final chegou muito cedo, mas embora não tivesse chegado até a manhã teria sido muito cedo. Segurando a perna a seu próprio quadril fez alavanca e a penetrou ainda mais profundamente, entregando-se a um frenesi de movimentos duros que incitaram um renovado desenfreio nela. Um beijo final feroz, um estremecimento visceral, e de repente ele estava fora dela, seus braços ainda o envolviam, mas essa união tão íntima acabou.
Deixou-se levar em uma doce nuvem, aturdida e sem sentido. Seus braços continuavam o apertando bastante tempo que o abraço dele se afrouxou. Novas emoções a embargavam e não as compreendia todas.
Sua mente lentamente compreendeu o final. Ele tinha se retirado para protegê-la de uma possível gravidez. Sua consideração a comoveu, mas de uma vez sentiu uma espetada de inexplicável decepção.
Afastou o cabelo do rosto e lhe deu um beijo na bochecha.
—Nunca deixa de me surpreender, Bianca.
Lentamente aquela intimidade tão especial foi se convertendo em algo menos sagrado e mais sólido. O possessivo abraço se rompeu e ele se separou dela. Permaneceram deitados juntos durante um bom momento, e ela percebeu contente que ele dormiu. De um salto se levantou e escorreu para as estantes de livros.
—O que está fazendo? —Contemplou seu corpo nu de uma forma que agora ambos assumiam como correta. Que rápido se perdia a vergonha a respeito destas coisas.
—Procuro o porto. Acredito que deveria me permitir um pouco mais.
Pegou rapidamente o copo, deteve-se um momento para pensar, e pegou também o volume azul. De volta em seu ninho, se acomodou e ele arrumou a manta para que ambos se agasalhassem até que os dois estiveram envolvidos muito juntos.
Ele serviu o porto e o compartilhou com ela. Fez um gesto para o volume que deixou de lado.
—Tem vontade de ler? Já vejo que terei que fazê-lo melhor a próxima vez.
—Se você for cair adormecido, necessitarei algo que fazer, porque estou muito acordada. Eu gostaria de ler isto algum dia, para ver o que escreveu seu irmão a respeito de meu país. Tanto você como Charlotte falam dele com orgulho.
—Com orgulho sem dúvida, mas Milton tinha seus defeitos. Possuía uma arrogância intelectual que conseguia ofender até sem ter essa intenção. Além disso, podia ser muito pouco prático algumas vezes.
Talvez não tivesse venerado Milton, mas ela podia ouvir sua tristeza, ainda intensa apesar do passar do tempo, quando falava dele. Ela conhecia muito bem o sereno sentido que a dor assume com o tempo.
Ela afastou o volume da vista, com a esperança de que aquele tema doloroso pudesse ser suprimido tão facilmente. Para sua surpresa, ele se esticou para alcançá-lo, abriu-o e começou a folheá-lo. Deixou correr seus dedos pelas grandes folhas, como se o fazendo pudesse conectar com a mão que havia sustentado a pluma que escreveu aquelas palavras.
Ela seguiu seus dedos com o olhar e prestou atenção à caligrafia daquelas páginas.
—Então não eram dele — disse.
Ele a olhou com curiosidade.
—Havia algumas cartas do escritório de Adam em Woodleigh, no baú de meu quarto. Supus que eram de Milton e tinha a intenção de lhe dar isso, mas com os acontecimentos de nossos últimos dias em Laclere Park, esqueci. Entretanto, se esta for à letra de seu irmão essas cartas não eram dele.
—Levavam sua assinatura?
—Não me fixei. Nem sequer as li.
—Por que acreditou que eram de Milton?
Por que tinha sido?
—Foi pela saudação que encabeçava a primeira delas. Era algo assim como «meu mais querido amigo», e você me falou de sua grande amizade. Foi uma estupidez por minha parte dar por certo que eram de Milton. Suponho que Adam teria outros amigos.
Ele deixou correr seus dedos sobre a página outra vez.
—Onde estão agora essas cartas?
—Ainda em meu quarto em Laclere Park.
—Eu gostaria de vê-las, para me assegurar de que não são de Milton.
Ela o compreendeu. Acaso ela não se agarrou aos pequenos pedaços das vidas de seu pai e de sua mãe que encontrou naqueles papéis?
—Sempre é trágico que alguém tão talentoso morra jovem. Alguns sustentam que Deus leva antes os melhores. Todo mundo diz isso sobre meu pai, mas eu não acredito que Deus seja tão egoísta.
Vergil contemplou o fogo olhando sem ver e com o cenho franzido.
—Deus não levou Milton, Bianca. Ele mesmo se matou.
—Oh, Vergil. Sinto ter falado assim.
—Não podia suspeitar.
—E sabe por quê?
—Estou tentando averiguar. Podia ser melancólico, mas não acredito que a melancolia o levasse a isso.
Interrompeu-a de uma forma que a fez pensar que estava escolhendo as palavras muito cuidadosamente.
—Como muitos homens nascidos em sua época, meu irmão assumia que as regras eram necessárias, mas destinadas a qualquer um menos a ele. Perseguia seus interesses com tranquilidade, seguro de que o mundo o deixaria em paz se não chamasse muito a atenção. Estava certo, embora não totalmente. Entretanto, algumas de suas ideias e seu comportamento o faziam muito vulnerável, e chegou o dia em que alguém se aproveitou dessa vulnerabilidade.
—Foi chantageado?
—Disso estou seguro.
—Disse que algumas de suas ideias políticas eram radicais, mas… Ou foi por sua implicação na fábrica?
—Eu assumi que foi por questões políticas, porque não acredito que a questão da fábrica tivesse levado Milton ao suicídio. Há quem recorre à violência como um modo de resolver nossos problemas comuns, e houve tentativas de assassinato contra líderes do Governo. Se meu irmão tinha alguma conexão com os homens que planejavam essas coisas e essa conexão chegou a se descobrir… Esta é a razão pela que ocupei seu lugar aqui. Era uma maneira de conseguir entrar em sua vida, e conhecer os radicais desta região. Mas às vezes suspeito que talvez não fosse traído por questões políticas, mas sim por algo relacionado com sua vida privada.
—Então a resposta poderia não estar aqui, está dizendo, a não ser em algum lugar mais perto de sua casa.
A expressão dele mudou, como se ela o tivesse surpreendido.
—Sim. Perto de casa.
Deu-lhe um beijo no ombro.
—É por isso que te converteu em um santo? Para compensar o escândalo usado para trair seu irmão se se chegasse a se revelar? Eu pensava que era para desviar a atenção de sua vida secreta.
Ele sorriu lentamente.
—Possivelmente me transformei em um santo porque sê-lo forma parte de minha natureza.
Ela riu bobamente e olhou com intenção os objetos espalhados. Movendo furtivamente um braço para sua cintura lhe fez cócegas e ele deu um salto.
—Não parece que forme parte de sua natureza em nada, segundo minha forma de considerar os fatos.
Possivelmente, só possivelmente, ela desfrutou das seguintes horas inclusive mais do que tinha desfrutado do prazer físico. Em seu pequeno mundo à luz da lareira, contaram histórias do passado e falaram sobre as pessoas que conheciam. Bianca soube a respeito de suas preocupações pelo futuro de Charlotte e suas esperanças de que tivesse um matrimônio feliz. Ela contou tudo sobre sua tia Edith, e como repreendeu John Adams uma vez em um jantar formal. Especularam sobre a debilidade que Pen e Witherby sentiam um pelo outro e se perguntaram se Dante encontraria algum dia a felicidade.
Finalmente, pouco antes do amanhecer, ele a envolveu na manta e a levou acima ao quarto do lorde. Logo a despiu e lhe deu seu calor, e fez amor de uma forma tão lenta e comovedora, tão formosa, que chegou a seu coração.
Quando suas emoções e seu corpo estiveram saciados, lhe mostrou o último e o mais perigoso dos prazeres. Esse de cair adormecida na segurança dos braços de seu amante.